6.1. Neurose e Psicose, de Sigmund Freud

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NEUROSE

E PSICOSE
(1924)
TÍTULO ORIGINAL: "NEUROSE
UNO PSYCHOSE". PUBLICADO
PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE
ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANAL YSE
[REVISTA INTERNACIONAL DE
PSICANÁLISE], V. 10, N. 1, PP. 1-5.
TRADUZIDO DE GESAMMELTE
WERKE XIII, PP. 387-91; TAMBÉM SE
ACHA EM STUDIENAUSGABE Ili, PP. 331-?.
Num trabalho que publiquei recentemente, O Eu e o Id, ofereci
uma divisão do aparelho psíquico que nos permite descrever
uma série de relações de forma clara e compreensível. Em outros
pontos, no que toca ao papel e à origem do Super-eu, por exem­
plo, restam bastantes coisas obscuras e não resolvidas. É lícito
esperar que o que foi ali colocado se revele útil e proveitoso tam­
bém para outras coisas, ainda que seja apenas para ver de uma
nova maneira o já conhecido, classificá-lo diferentemente ou
expô-lo de modo mais convincente. Tal aplicação poderia tam­
bém significar um vantajoso retorno da teoria cinzenta para a
verdejante experiência.*
Na obra mencionada caracterizei os múltiplos laços de de­
pendência do Eu, sua posição intermediária entre o mundo ex­
terior e o Id, e o seu empenho em fazer a vontade de todos os
seus senhores ao mesmo tempo. Relacionada a um curso de
pensamento vindo de outra parte, que dizia respeito à origem e
prevenção das psicoses, ocorreu-me uma fórmula simples, que
trata da diferença genética mais importante, talvez, que há entre
neurose e psicose: a neurose seria o resultado de um conflito
entre o Eu e seu Id, enquanto a psicose seria o análogo desfecho
de uma tal perturbação nos laços entre o Eu e o mundo exterior.
É justificada a advertência de que convém desconfiar de
soluções tão simples para um problema. Além disso, nossa ex­
pectativa máxima é que tal fórmula se mostre correta em linhas
muito gerais. Mas isso já seria algo. Logo lembramos de toda
uma série de percepções e achados que parecem apoiar nossa
tese. As neuroses de transferência, conforme todas as nossas an­
álises, surgem pelo fato de o Eu não querer aceitar e promover a
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efetivação motora de um impulso instintual poderoso no Id, ou


de contestar o objeto a que ele visa. O Eu, então, defende-se dele
através do mecanismo da repressão; o que é reprimido se revolta
contra esse destino, criando, por vias sobre as quais o Eu não
tem poder, um substituto que o representa,** que se impõe ao Eu
pela via do compromisso, o sintoma; o Eu vê ameaçada e preju­
dicada por esse intruso a sua unidade, dá prosseguimento à luta
contra o sintoma, tal como se defendia originalmente do impulso
instintual, e tudo isso resulta no quadro da neurose. Não con­
stitui objeção que o Eu, ao efetuar a repressão, no fundo esteja
seguindo as ordens do seu Super-eu, que, por sua vez, originam­
se das influências do mundo externo real que acharam repres­
entação no Super-eu. Permanece o fato de que o Eu se pôs ao
lado desses poderes, que nele as suas exigências têm mais força
do que as reivindicações instintuais do Id, e que o Eu é o poder
que coloca em andamento a repressão a essa parte do Id e forta­
lece a repressão mediante o contrainvestimento da resistência. A
serviço do Super-eu e da realidade, o Eu entrou em conflito com
o Id, e assim ocorre em todas as neuroses de transferência.
Por outro lado, será igualmente fácil, a partir do que até agora
conhecemos sobre o mecanismo das psicoses, dar exemplos que
apontam para um distúrbio na relação entre o Eu e o mundo ex­
terior. No que Meynert chama de "amência" - uma confusão
alucinatória aguda, talvez a mais extrema e impressionante
forma de psicose -, o mundo exterior não é percebido de modo
algum ou sua percepção não tem nenhum efeito. Pois normal­
mente o mundo exterior domina o Eu por duas vias: primeiro,
pelas percepções atuais que sempre podem se renovar; depois,
pelo acervo mnemônico de percepções anteriores, que, como
"mundo interior", constituem patrimônio e elemento do Eu. Na
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amência, não só é excluído o acolhimento de novas percepções,


mas também é retirado o significado (investimento)*** do mundo
interior, que até então representava o mundo exterior, como sua
cópia; autonomamente o Eu cria um novo mundo exterior e in­
terior, e não há dúvida quanto a dois fatos: de que esse novo
mundo é edificado conforme os impulsos de desejo* do Id, e de
que o motivo dessa ruptura com o mundo exterior é uma difícil,
aparentemente intolerável frustração do desejo por parte da
realidade. Não podemos ignorar o íntimo parentesco entre essa
psicose e o sonho normal. Mas a precondição para o sonho é o
estado do sono, caracterizado, entre outras coisas, pelo total
afastamento da percepção e do mundo externo.
Quanto a outras formas de psicose, as esquizofrenias, sabe-se
que tendem a resultar no embotamento afetivo, isto é, na perda
de todo interesse no mundo exterior. Sobre a gênese das form­
ações delirantes, algumas análises nos ensinaram que o delírio é
como um remendo colocado onde originalmente surgira uma fis­
sura na relação do Eu com o mundo exterior. Se essa precon­
dição, o conflito com o mundo externo, não é muito mais patente
do que agora notamos, a razão para isso está no fato de no
quadro clínico da psicose as manifestações do processo pato­
gênico serem frequentemente cobertas por aquelas de uma tent­
ativa de cura ou reconstrução.
A etiologia comum à irrupção de uma psiconeurose ou psicose
é sempre a frustração, a não realização de um daqueles desejos
infantis nunca sujeitados, tão profundamente enraizados em
nossa organização filogeneticamente determinada. Tal frus­
tração é, no fundo, sempre externa; em casos individuais pode
vir daquela instância interior (no Super-eu) que se encarregou de
representar as exigências da realidade. O efeito patógeno
depende de que o Eu, nessa tensão conflituosa, continue fiel à
sua dependência do mundo externo e procure amordaçar o Id,
ou se deixe sobrepujar pelo Id e separar da realidade. Esta situ­
ação aparentemente simples, porém, é complicada pela existên­
cia do Super-eu, que, por um nexo ainda não esclarecido, reúne
influências que vêm tanto do Id como do mundo externo, sendo
como que um modelo ideal daquilo visado por todo o esforço do
Eu, a conciliação de suas múltiplas dependências. O comporta­
mento do Super-eu deve ser levado em consideração, o que não
se fez até agora, em todas as formas de doença psíquica. Po­
demos, no entanto, postular provisoriamente que tem de haver
afecções baseadas num conflito entre Eu e Super-eu. A análise
nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico
desse grupo, e reivindicaríamos para esses distúrbios o nome de
"psiconeuroses narcísicas". E não destoa de nossas impressões
que encontremos motivos para separar estados como a melan­
colia das outras psicoses. Percebemos, então, que pudemos com­
pletar nossa simples fórmula genética, sem abandoná-la. A neur­
ose de transferência corresponde ao conflito entre Eu e Id, a
neurose narcísica ao conflito entre Eu e Super-eu, a psicose
àquele entre Eu e mundo exterior. É certo que não podemos logo
dizer se realmente adquirimos novos conhecimentos ou se apen­
as aumentamos o nosso acervo de fórmulas; mas creio que esta
possibilidade de aplicação deve nos animar a manter a sugerida
divisão do aparelho psíquico em Eu, Super-eu e Id.
A afirmação de que neuroses e psicoses nascem dos conflitos
do Eu com suas diferentes instâncias dominantes, isto é, corres­
pondem a um fracasso da função do Eu, que evidentemente pro­
cura conciliar todas as diferentes reivindicações, pede uma outra
discussão que a complemente. Gostaríamos de saber em que
circunstâncias e por quais meios o Eu consegue sair, sem adoe­
cer, de tais conflitos que sempre se acham presentes. Eis um
novo âmbito de pesquisa, no qual certamente os mais diversos
fatores se apresentarão para serem examinados. Dois deles po­
dem ser imediatamente ressaltados. O resultado de todas essas
situações dependerá, não há dúvida, da constelação** econômica,
das grandezas relativas das tendências em luta. E para o Eu será
possível evitar a ruptura em qualquer direção, ao deformar a si
mesmo, permitir danos à sua unidade, eventualmente até se di­
vidir ou partir. Desse modo as incoerências, excentricidades e
loucuras dos homens apareceriam numa luz semelhante à de
suas perversões sexuais, cuja aceitação lhes permite poupar a si
mesmos repressoes.
Por fim, há a questão de qual pode ser o mecanismo, análogo
à repressão, mediante o qual o Eu se separa do mundo exterior.
Acho que isso não pode ser respondido sem novas investigações,
mas ele deve ter por conteúdo, como a repressão, uma retirada
do investimento lançado pelo Eu.

* Alusão a dois famosos versosdo Fausto, de Goethe: "Cinzenta é toda teoria,


caro amigo/ E verde a áurea árvore da vida" ( Grau, teurer Freund, ist alle
Theorie,/ Und grün des Lebens goldner Baum; falados por Mefistófeles, parte
1, cena 4).

**"Substituto que o representa": Ersatzvertretung - nas versões estrangeiras


consultadas: satisfacción [sic] substitutiva, subrogación substitutiva, rapp­
resentanza sostitutiva, il sefait représenter [...] par un substitut, substitutive
representation, substituut (além daquelas normalmente utilizadas - duas em
espanhol, a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa - consultamos tam­
bém uma francesa antiga, da PUF, e a holandesa da Boom). Em português,
"representar" corresponde a mais de um verbo alemão: os dois principais, ver­
treten e vorstellen, significam respectivamente "estar no lugar de, substituir"
e "figurar", entre outras coisas. A fim de escapar a uma possível confusão, re­
corremos aqui a uma paráfrase, pois "representação" é geralmente entendida
no sentido de Vorstellung (que tendemos a traduzir por "ideia", como faz
Strachey). Para um maior esclarecimento dessa questão, ver capítulo
"Vorstellung/ idea/ représentation", em Paulo César de Souza, As palavras
de Freud, op. cit.
***"O significado (investimento)": die Bedeutung (Besetzung). Em alemão, o
primeiro substantivo pode significar também "importância"; por isso as ver­
sões consultadas diferem: significación (carga), valor psíquico (investidura),
significato (investimento), signification (investissement), significance
(cathexis), betekenis (bezetting) [estes, equivalentes exatos dos termos
alemães].
* "Impulsos de desejo": Wunschregungen - nas versões consultadas: tenden­
cias optativas, mociones de deseo, moti di desiderio, désirs, wishful impulses,
wensimpulsen. Em algumas ocasiões traduzimos esse termo composto por
"impulsos envolvendo desejos" e até mesmo por "desejos" simplesmente; cf.
nota à p. 130 e As palavras de Freud, op. cit., apêndice B.
**"Constelação": Verhültnisse. Embora não seja "técnico", esse termo ilustra
uma característica de vários termos freudianos: a polissemia, a diversidade ou
amplitude de sentidos. Os tradutores estrangeiros recorrem a: circunstancias,
constelaciones, rapporti, circonstances, considerations, verhoudingen [equi­
valente ao alemão]. O original é plural, mas pareceu-nos melhor usar o termo
escolhido no singular, pois ele designa um conjunto de relações.

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