D Fernando de Meneses Capitao de Ceuta 1

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2019

D. Fernando de Meneses
- Capitão de Ceuta, 1º Conde de Alcoutim
e 2º Marquês de Vila Real
Autor: Fernando Pessanha
Título: D. Fernando de Meneses, Capitão de Ceuta,
1º Conde de Alcoutim e 2º Marquês de Vila Real.
Editor: Gente Singular, Editora Lda.
Rua Gonçalo Velho, 90
8700-478 Olhão
Mail: [email protected]

Capa: João Graça.


Revisão: Carlos Lopes e Fernando Pessanha
Paginação: Maria João Gouveia

ISBN: 978-989-8314-16-1
Depósito Legal: 436775/18

CDU: 94(469.61)
Impressão: Tipografia Tavirense Lda

1ª edição: Fevereiro de 2019.


Tiragem: 500 exemplares.
Índice

Nota da editora 7

Nota de apresentação, por Alexandra Rodrigues Gonçalves 9

Agradecimentos 13

Introdução 15

O contexto familiar de D. Fernando de Meneses 19

- D. Pedro de Meneses: bisavô de D. Fernando de Meneses 20

- D. Fernando de Noronha: avô de D. Fernando de Meneses 23

- D. Pedro de Meneses: pai de D. Fernando de Meneses 27

A conjuntura em África antes da chegada de D. Fernando de


Meneses 31

Os serviços no Norte de África 35

- As intenções de Barraxa e a chegada de D. Fernando de Meneses


a Ceuta 35

- A tomada de Targa 41

- A tomada de Samice 44

- Porquê a conquista e destruição de Targa e Samice? 46

- Ceuta durante o governo de D. Fernando de Meneses 54

A atribuição de títulos nobiliárquicos 67

- D. Fernando de Meneses e a criação do Condado de Alcoutim 67

- Os alvores de uma política nobiliárquica no Algarve 74

D. Fernando de Meneses “Numa mão a espada, noutra a pena”? 81

Outros aspectos da vida de D. Fernando de Meneses 87

Considerações finais 91

Fontes e bibliografia 93

Imagens 111
Nota da editora

António Manuel Nunes Rosa Mendes (1954-2013) foi um dos


fundadores da Gente Singular Editora. Foi o seu mais importante fundador e
o seu grande dinamizador. Falar da Gente Singular é falar de António Rosa
Mendes. Como preito à sua memória a Gente Singular entendeu estabelecer
uns cadernos António Rosa Mendes de que ora se publica o número dois.
António Rosa Mendes era um académico de craveira, um
intelectual ímpar, um professor respeitável, um amigo solidário, um homem
inteligente, culto, brilhante, estudioso, atento ao mundo. Era um orador
cativante e um sedutor incomparável. Para quem com ele privava tinha
sempre uma palavra amiga, um conselho avisado, uma palavra de incentivo.
Implacável na polémica, nunca humilhou o adversário e ouvia toda a gente
com a atenção que o interlocutor nem sempre mereceria.
A Gente Singular tem a grande honra de apadrinhar esta obra de
Fernando Pessanha, um discípulo, amigo e admirador de Rosa Mendes,
sobre D. Fernando Meneses, figura da História dos Algarves de Aquém e de
Além-mar e homem culto e de pensamento humanista.
Sob a direcção ou influência de António Rosa Mendes, publicou a
Gente Singular A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA NO ALGARVE, de
Aurélio Nuno Cabrita, QUARTEIRA, de João Carlos Santos, O
CONCELHO DE CACELA, de Pedro Miguel Bandarra, e agora este, D.
FERNANDO DE MENESES – CAPITÃO DE CEUTA, 1º CONDE DE
ALCOUTIM E 2º MARQUÊS DE VILA REAL, de Fernando Pessanha.
Esta foi a primeira nota do editor que não foi escrita por Rosa

7
Mendes.
Esperemos que os leitores respondam com o apoio que o autor e o patrono
merecem.
A Gente Singular assim espera.

8
Nota de apresentação

Numa mão sempre a pena e noutra a resiliência!

Este livro merece-nos 3 reflexões sumárias, que exigem notas


significantes:

1. Foi António Rosa Mendes, a quem dirijo deliberadamente estas


primeiras linhas, reconhecidamente um paradigma de Gente
Singular. Um percurso de vida excessivamente curto de um
indivíduo único, que nos deixou um legado de grande Humanismo
e vários “testemunhos poéticos” de uma crença ensimesmada num
Algarve letrado e paradisíaco. Passados vários anos de interregno
retomar este trabalho editorial é uma bonita homenagem e deve ter
o devido reconhecimento, constituindo-se como mais uma
inspiração para este Sul de escritos.

2. A obra D. Fernando de Meneses – Capitão de Ceuta, 1º Conde


Alcoutim e 2º Marquês de Vila Real tem nos Algarves o palco
principal da narrativa e em Fernando Pessanha o seu ilustre
contador. A personagem, um dos capitães de Ceuta, é a premissa da
nova política real de reconhecimento de títulos nobiliárquicos no
Algarve e revela-nos a biografia de um homem que emerge num
contexto de expansão, em que se operaram grandes mudanças e em
que o Algarve assume um papel preponderante. O contexto social,

9
económico e as raízes familiares estabelecem o enquadramento em
que a acção se vai desenrolar. Ceuta e outras cidades da costa
africana respondem pelas distinções, mas não só. A cultura e a
poesia veicularam o pensamento do humanismo renascentista que
tinha em Cataldo o seu mestre, acompanhada de uma arte
tipográfica em expansão, que procurava o registo do novo
pensamento.

3. O outro Fernando, o autor, o escritor, o historiador e o músico é um


incansável homem da cultura e das letras do Algarve. Este trabalho
é mais um indicador de orgulho para todos os que com ele têm
partilhado estas aventuras. Só uma paixão inabalável pode
conduzir à intensidade de investigação e de publicação, com a
reconhecida qualidade, que mais uma vez está a ser publicamente
apresentada.

Nos Algarves de Aquém e de Além Mar há algumas almas que


diariamente persistem na partilha de conhecimento e na
sensibilização para a história e cultura do Algarve. Para vós, todo o
nosso apoio e toda a admiração.

Alexandra Rodrigues Gonçalves


Directora Regional de Cultura do Algarve

10
“Falava Camões daqueles que por obras valerosas
se vão da lei da morte libertando. Nesse sentido, o professor
Rosa Mendes libertou-se da lei da morte; conseguiu a imortalidade,
obteve-a através do seu legado, através dos livros que escreveu,
através dos seus ensinamentos. O pesar que senti com a sua partida
dificilmente poderá ser expressado através de triviais tentames, de
banais exercícios retóricos.
Até sempre, professor. A saudade que fica
não tem conta nem medida…”*

*Fernando Pessanha,
Subsídios para a História do Baixo Guadiana e dos Algarves Daquém e Dalém-mar, p.86.

11
12
Agradecimentos

Para a elaboração da presente obra foi fundamental o apoio de um


conjunto de pessoas e instituições sem as quais o resultado final seria,
certamente, mais pobre. Agradeço em primeiro lugar, à Câmara Municipal
de Vila Real de Santo António por me ter permitido representar o Arquivo
Histórico Municipal António Rosa Mendes nas XIX Jornadas de História de
Ceuta, onde tive a oportunidade de apresentar a conferência “A ascendência
de D. Fernando de Meneses, capitão de Ceuta e 1º Conde de Alcoutim –
exemplo da relação entre os serviços no Norte de África e a atribuição de
títulos nobiliárquicos”, estudo preliminar que serviu de base à investigação
que agora se apresenta.
Do mesmo modo, também me compete agradecer a aposta da Gente
Singular na publicação deste trabalho. Editora, refira-se, que teve António
Rosa Mendes como um dos seus fundadores e que conta, no seu catálogo,
com vários trabalhos da sua autoria, assim como de colegas e mestres por
quem sempre nutri particular estima, e de onde destaco a figura do meu
conterrâneo e antigo professor José Eduardo Horta Correia.
Por fim, não poderia concluir os meus agradecimentos sem voltar a
referir o saudoso orientador e amigo António Rosa Mendes. Utilizei estas
palavras aquando da publicação de Os 500 anos da fundação de Arenilha –
memórias de uma «vileta» nascida no decurso da Expansão Portuguesa.
Volto a utilizá-las agora, com redobrada convicção:
“Ainda que a sua presença não se prenda directamente com a
produção deste livro, o seu acompanhamento ao longo de todo o meu

13
percurso académico resultou numa influência tão decisiva quão inevitável
para que um dia viesse a produzir labores desta natureza. Por esse motivo,
aqui lhe deixo estas palavras de profundo reconhecimento e um comovido in
memoriam”.

14
Introdução

D. Fernando de Meneses – Capitão de Ceuta, 1º Conde de Alcoutim


e 2º Marquês de Vila Real, é um trabalho de investigação desenvolvido no
seguimento das XIX Jornadas de História de Ceuta, onde, a convite do
decano da Sección de Historia do Instituto de Estudios Ceutíes, Jose Antonio
Alarcón Caballero, apresentámos a conferência “A ascendência de D.
Fernando de Meneses, capitão de Ceuta e 1º Conde de Alcoutim – exemplo
da relação entre os serviços no Norte de África e a atribuição de títulos
nobiliárquicos”, em 26 de Novembro de 2016.
Com efeito, a História dos Algarves de Aquém e de Além-mar está
repleta de personalidades dignas de registo. De entre essas personalidades
destacam-se, desde logo, várias figuras que passaram por Ceuta, cidade
integrante dos Algarves de Além-mar, formalmente instituídos por D.
Afonso V, em 1471. Naturalmente que, em dois séculos e meio de domínio
português em Ceuta - desde a conquista lusa de 1415 até à assinatura do
Tratado de Lisboa de 1668 - surgiram várias personalidades
interessantíssimas. É nesse sentido que nos impelimos a analisar o percurso
de D. Fernando de Meneses, capitão de Ceuta entre 1490 e 1509, 1º conde de
Alcoutim e 2º marquês de Vila Real.
É exactamente o título de conde de Alcoutim, criado pelo rei D.
Manuel I a favor de D. Fernando de Meneses, em 1496, que serve de pretexto
para abordarmos o percurso deste capitão de Ceuta, uma vez que este título
foi atribuído de modo a reconhecer os serviços prestados no Norte de África
pelo próprio D. Fernando de Meneses e pelos seus antepassados – serviços,

15
refira-se, que começaram com o governo de D. Pedro de Meneses, primeiro
capitão da cidade, logo após a conquista de 1415. É nesse sentido, e tendo
como exemplo a atribuição do título de conde de Alcoutim, que o presente
trabalho pretende explicar de que modo a acção dos capitães que serviam nas
guerras do Norte de África foi determinante na atribuição de títulos
nobiliárquicos, e de que modo este modelo influenciou a política de
atribuições de mercês nos Algarves de Aquém como reconhecimento pela
participação da nobreza portuguesa nas guerras dos Algarves de Além. Para
tal, seguimos o rasto biográfico de D. Fernando de Meneses, respeitando a
cronologia do seu percurso de vida e contextualizando-o historicamente,
destacando, desde logo, a sua chegada a Ceuta e a sua acção em Marrocos,
assim como a criação do condado de Alcoutim.
A bibliografia relativa à Expansão Portuguesa para o Norte de
África tem privilegiado a acção de capitães contemporâneos de D. Fernando
de Meneses, como Nuno Fernandes de Ataíde, “o que nunca está quedo”1 ou
2
D. João de Meneses , figuras cujas competências militares foram destacadas

1
O autor do presente trabalho encontra-se, de momento, a preparar uma dissertação para
doutoramento para apresentar à Universidade de Huelva, intitulada Nuno Fernandes de Ataíde, «o que
nunca está quedo» - A acção do capitão de Safim no apogeu da presença militar portuguesa em
Marrocos. O objecto de estudo desta dissertação prende-se, desde logo, com a análise da acção de
Nuno Fernandes de Ataíde nos Algarves de Além-mar, entre 1510 e 1516, ano da sua morte. Por outras
palavras, o período que corresponde ao apogeu da presença militar portuguesa no Norte de África,
quando uma série de campanhas vitoriosas levou as armas lusas até ao Atlas. Do mesmo autor ver
também “Nuno Fernandes de Ataíde, «o que nunca está quedo» – De alcaide de Alvor a Capitão e
Governador de Safim”, in Anais do Município de Faro, Vol. XXXIX, pp.47-59. Ver também André
Teixeira, “Nuno Fernandes de Ataíde, o nunca está quedo capitão de Safim”, in A Nobreza e a
Expansão Portuguesa. Estudos Biográficos, pp.161-205.
2
Sobre D. João de Meneses veja-se Teresa Lacerda, “D. João de Meneses. Um retrato da Nobreza
Portuguesa em Marrocos”, in Estudos de História Luso-Marroquina, pp.117-140.

16
3
em obras como O Soldado Prático, de Diogo do Couto . Por outras palavras,
a historiografia não tem prestado grande atenção ao 1º conde de Alcoutim,
limitando-se apenas a breves referências de carácter generalista. De facto,
não são conhecidos estudos biográficos sobre esta figura dos Algarves, que
viveu entre a segunda metade do séc. XV e o primeiro quartel do séc. XVI,
ainda que, como veremos, a sua vida esteja marcada por acontecimentos
particularmente interessantes e não circunscritos ao domínio militar.
Reconstituir o percurso de D. Fernando de Meneses não foi tarefa fácil. Para
tal, tornou-se indispensável recorrer à cronística quatrocentista e
quinhentista, como também a estudos genealógicos e a documentação
avulsa do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Por fim, e sem querer parecer redundante, gostaria de reforçar uma
ideia anteriormente defendida em diversas sessões públicas e até mesmo
noutras publicações. Todos sabemos que a luta pela democratização da
cultura é um trabalho árduo, tendencialmente ingrato e, por vezes, encarado
com reservas e alguma displicência pelas classes instaladas no poder. No
entanto, é um trilho que tem de ser percorrido em prol de interesses
superiores e que se prende com a evolução das sociedades e com a
construção de futuros sustentáveis. Só através do conhecimento do passado
se torna possível a compreensão do mundo actual, e só através desse
conhecimento é que se podem tirar ilações sobre o porvir. Esse é o sentido
prático da História.

3
“valorosos capitães Nuno Fernandes de Ataíde e D. João de Meneses (…) capitães tão
experimentados, que não sei se houve outros que lhes avantajassem de então para cá”. Ver Diogo do
Couto, O Soldado Prático, p.135.

17
18
O contexto familiar de D. Fernando de Meneses

Como anteriormente referimos, é o título de conde de Alcoutim que


serve de pretexto para abordarmos o percurso de D. Fernando de Meneses, o
que não é possível sem a apresentação do seu contexto familiar. Filho de D.
Pedro de Meneses, 3º conde e 1º marquês de Vila Real, e de sua mulher, D.
Beatriz de Bragança, D. Fernando nasceu em Lagos, em 1463, tendo partido
para Ceuta pouco tempo depois. É Rui de Pina que no-lo diz:

“O conde de Villa Real partiu de Lisboa no ano de mil quatrocentos


e sessenta e três (…) e chegaram a Lagos onde a condessa sua mulher estava
4
parida de D. Fernando seu filho primeiro, e d'alli a levou a Ceuta” .

D. Pedro de Meneses, pai de D. Fernando de Meneses, era o 3º


conde de Vila Real quando o rei D. João II, em 1 de Março de 1489, elevou o
condado de Vila Real a marquesado, transformando-o em 1º marquês de Vila
Real. Este D. Pedro de Meneses era um nobre, filho de Fernando de
Noronha, 2º conde de Vila Real e capitão de Ceuta, e de Dona Brites de
Meneses, 2ª condessa de Vila Real e filha herdeira de D. Pedro de Meneses,
1º capitão de Ceuta. Com efeito, o título de conde de Vila Real tinha sido
criado por D. João I a favor de D. Pedro de Meneses que, para além de 1º
capitão de Ceuta, foi conde de Viana e alferes-mor de D. Duarte. Por outras
palavras, o nosso biografado, D. Fernando de Meneses, era bisneto de D.

4
Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CXLVII, p.24.

19
Pedro de Meneses, 1º conde de Vila Real e 1º capitão de Ceuta. Mas para que
a genealogia directa do nosso biografado seja apresentada de maneira clara e
eficaz, façamos uma brevíssima recapitulação, recuando até ao séc. XIV.

- D. Pedro de Meneses: bisavô de D. Fernando de Meneses

Antes de mais, convém ter em consideração que os Meneses eram


uma linhagem pertencente à nobreza titulada desde meados do séc. XIII e
que desde sempre procuraram alicerçar a sua influência através do exercício
de cargos e funções de relevo e de proximidade ao poder5. A grande
influência que esta linhagem teve fez com que em determinados momentos
da vida política e social do reino se visse obrigada a tomar posição, tendo em
conta as políticas e facções em confronto. Tal aconteceu quando, depois da
morte do rei D. Fernando, os Teles de Meneses, familiares da rainha Leonor
Teles6, se tornaram partidários de D. Beatriz durante o conflito resultante da
crise de 1383-1385. Por outras palavras, a lealdade dos Teles de Meneses a
D. Beatriz fez com que vários nobres apoiantes do partido da filha do
falecido monarca fossem considerados traidores, o que fez com que o seu
7
património fosse distribuído pelos apoiantes e partidários de D. João I . Quer
isto dizer que, quando se deu a conquista de Ceuta, D. Pedro de Meneses8 se

5
António Maria Falcão Pestana de Vasconcelos, Nobreza e Ordens Militares. Relações Sociais e de
Poder (séculos XIV a XVI), Dissertação para doutoramento em História Medieval e do Renascimento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p.451.
6
É o próprio Zurara que estabelece a relação de parentesco com a rainha Leonor Teles. Ver Gomes
Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro I, Capítulo III, p.12.
7
Ver Nuno Silva Campos, D. Pedro de Menezes – O primeiro capitão de Ceuta, pp.41-46. Ver também
Luís Miguel Duarte, “A Morte do Capitão (veteranos e “maçaricos” na guerra marroquina no séc. XV”,
in XII Colóquio “Laços Histórico Militares Luso Magrebinos. Perspectivas de Valorização”, p.100.

20
encontrava numa posição de evidente fragilidade, na medida em que era
descendente de uma linhagem para quem o conflito resultante da crise
dinástica de 1383-1385 tinha sido decididamente adverso. Foi nesse sentido
que quando Nuno Álvares Pereira, Gonçalo Vasques Coutinho e Martim
Afonso de Melo declinaram o convite de D. João I para ficarem como
9
governadores de Ceuta , a oportunidade apresentou-se como providencial
para D. Pedro de Meneses, pois ao voluntariar-se para o cargo tornava-se
possível recuperar algum do prestígio perdido e voltar a ascender no seio da
nobreza. Vale a pena recordarmos as palavras que, de acordo com Zurara, D.
João I dirigiu a D. Pedro de Meneses, antes de regressar ao reino:

“leixo-vos mais, disse elle, todo meu comprido poder, perque


possais mandar em esta Cidade como Eu propiamente faria se presente
fosse, com o qual poderees poer Officiaes assy de Justiça como de Fazenda e
segundo vossa consciência podeis executar qualquer cousa que sentirdes
10
por bem do comum della” .

De facto, os serviços prestados por D. Pedro de Meneses em Ceuta,


de 1415 a 1430 e de 1434 a 1437, fizeram com que os Meneses recuperassem
a sua influência através do exercício de cargos e funções de relevo e de

8
Sobre a ascendência de D. Pedro de Meneses veja-se Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D.
Pedro de Meneses, Livro I, Capítulo III, pp.12-14; Ver Nuno Silva Campos, D. Pedro de Menezes – O
primeiro capitão de Ceuta, pp.41-50.
9
Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo XCIX, p.282; Gomes Eanes de
Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro I, Capítulo V, p.20.
10
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro I, Capítulo VII, p.26.

21
proximidade ao poder. A capitania de Ceuta – que era um importante porto
11
no mercado de cativos, mesmo antes da conquista portuguesa -
12
rentabilizada através da guerra e principalmente do corso , permitiu a
recuperação social e financeira de D. Pedro, conduzindo-o à nobreza
titulada.
Em 1424, D. João I agraciou D. Pedro de Meneses com o título de
13
conde de Vila Real e, em 1433-1434, quando D. Duarte assumiu o governo,
14
D. Pedro foi titulado conde de Viana do Alentejo . Com efeito, o título de
conde de Vila Real15 originou a casa de Vila Real, sobre a qual recaiu a
capitania de Ceuta e de outras praças norte-africanas. Recordemos que D.
Duarte de Meneses, filho natural de D. Pedro de Meneses, deteve a capitania
de Alcácer Ceguer desde a sua conquista, em 1458, até à sua morte, quando
deu a vida para proteger D. Afonso V na serra de Benacofú, durante a sua

11
O próprio vedor de D. João I, João Afonso, um dos principais incentivadores da conquista de Ceuta,
enviava pessoas a resgatar cativos nesta cidade. Ver Mateus Pisano, Livro da Guerra de Ceuta, p.7.
12
De acordo com Zurara, D. Pedro de Meneses tinha sempre prontos navios para guerrear os mouros,
fazendo todas as semanas “boa presa”. Ver Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Capítulo LV,
pp.161-163. Ver também Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 29,
pp.117-120. Estas actividades visavam o enriquecimento rápido através do furto de mercadorias e
captura de homens, depois utilizados como mão-de-obra ou bens para troca e venda no resgate de
cativos. Ver Edite Maria da Conceição Martins Alberto, “Resgatar cristãos em terras no Norte de
África – O ofício de Alfaqueque no século XV”, in Estudos de História Luso-Marroquina, pp.41-50.
Sobre a recuperação económica e social de D. Pedro de Meneses através da prática da guerra, do corso
e do tráfico de escravos veja-se Nuno Silva Campos, Don Pedro de Meneses y la fundación de la Casa
de Vila Real, pp.93-117; D. Pedro de Menezes – O primeiro capitão de Ceuta, pp.69-82; Abel dos
Santos Cruz, “A guerra de corso e pirataria no Mediterrâneo Ocidental ao tempo do conde D. Pedro de
Meneses (1415-1437) ”, in A Guerra Naval no Norte de África (séculos XV – XIX), pp.57-99.
13
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro II, Capítulo XI, pp.279-
281.
14
Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Terceiro, p.263.
15
Sobre a fundação da Casa de Vila Real veja-se Nuno Silva Campos, Don Pedro de Meneses y la
fundación de la Casa de Vila Real, Ceuta, Instituto de Estudios Ceutíes, 2011.

22
16
deslocação ao norte de Marrocos . De resto, Pedro de Meneses governou
Ceuta durante vinte e dois anos, tendo falecido naquela cidade, em Agosto de
17
1437 .

- D. Fernando de Noronha: avô de D. Fernando de Meneses

Depois da morte de D. Pedro de Meneses, o título passou para a sua


filha D. Brites de Meneses, casada com D. Fernando de Noronha - terceiro
filho de D. Afonso, conde de Noroña y Gijón (bastardo de D. Henrique II de
Castela) e de D. Isabel (bastarda de D. Fernando, rei de Portugal)18 -
transformando-os nos segundos condes de Vila Real.
Não se sabe ao certo a data de nascimento de D. Fernando de
Noronha, mas supõe-se que terá sido por volta de 1400. Diz-nos D. Jerónimo
de Mascarenhas que, apesar de muito jovem, D. Fernando de Noronha
participou na conquista de Ceuta, “en q' dio singulares muestras de su
19
esfuerco” . Em 1418 acompanhou o seu irmão D. João no socorro àquela
20
praça, que se encontrava cercada . Com a morte do irmão, que veio a perecer

16
Ver Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, Capítulo CLIIII, in Crónica
do Conde D. Duarte de Meneses- Estudo histórico-cultural e edição semidiplomática, Dissertação
para doutoramento em Cultura Portuguesa apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, pp.196-199; Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CLVI, pp.45-50.
Ver também Augustin Manuel Vasconcelos, Vida de Don Dvarte de Meneses, Tercero Conde de Viana,
pp.191-193.
17
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro II, Capítulo XL, pp.371-
372.
18
Sobre a ascendência de D. Fernando de Noronha veja-se André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço
da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta
Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do Colóquio Internacional, pp.109-174.
19
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 48, p.191.

23
21
em virtude de uma ferida que recebeu no cerco , D. Fernando passou a ser o
varão mais velho (com excepção do primogénito, D. Pedro, que tinha
22
seguido a carreira eclesiástica ), pelo que o seu casamento deveria ser bem
planeado. Em meados de 1427 concertou-se o seu casamento com D. Beatriz
de Meneses, filha e herdeira de D. Pedro de Meneses e da sua primeira
mulher, D. Margarida de Miranda. D. Pedro de Meneses, apesar de ter
casado quatro vezes, apenas teve filhas legítimas, pelo que D. Beatriz e o seu
marido, D. Fernando de Noronha, vieram a herdar as propriedades, a
capitania de Ceuta e o título de condes de Vila Real. O contrato de
casamento, confirmado por D. João I em 143023, continha uma cláusula que
obrigava os herdeiros desta união a adoptarem o apelido de Meneses e as
suas armas24, pois era a maneira de transmitir o capital simbólico da sua
linhagem. De resto, a cerimónia decorreu em Ceuta, onde D. Fernando

20
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro I, Capítulo LXXIII,
pp.218-221.
21
D. João de Noronha, que combateu ao lado do príncipe D. Duarte na conquista de Ceuta, foi armado
cavaleiro após a conquista da cidade. Ver Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta,
Capítulo XCVI, p. 277. Ao comandar a primeira expedição que foi em socorro daquela praça, em 1418,
foi gravemente ferido, tendo permanecido em Ceuta durante um ano. Acabou por falecer em
Almodôvar, em virtude das feridas recebidas durante o cerco. Ver Jerónimo de Mascarenhas, Historia
de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 33, p.135.
22
Desde 1410 que D. Pedro de Noronha era administrador da diocese de Évora, tendo ocupado o cargo
de bispo nessa cidade entre 1419 e 1423, data em que o papa Martinho V o transferiu para o
arcebispado de Lisboa, à revelia da decisão do cabido, e onde foi arcebispo da cidade entre 1424 e
1452. Ver André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e
Meneses de Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia.
Actas do Colóquio Internacional, pp.109-174; Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de
Sintra, Livro Primeiro, p.48.
23
Contrato confirmado por D. João I, em 18 de Outubro de 1430. Documento publicado por Pedro de
Azevedo, Documentos das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, Tomo I,
pp.78-80, 382-384, 472-473.
24
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro II, Capítulo XXIV, pp.321-
322; Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 48, p.191; Anselmo
Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Primeiro, pp.123-124.

24
permaneceu cerca de um ano, tendo depois regressado ao reino.
Em 1434, o título de conde de Vila Real passou a pertencer a D.
25
Fernando de Noronha , “por merce del Rey Dom Duarte, com todas as
rendas, efljurifdicções daquella Villa: foy feita eſta merce a 7 de Setembro de
26
1434” .
Refira-se que este título catapultou D. Fernando no seio da nobreza,
na medida em que, durante o reinado de D. João I e D. Duarte, os condes de
Vila Real foram os únicos membros da nobreza titulada que não eram
familiares próximos dos monarcas, condição que bem reflecte a importância
que os primeiros reis da dinastia de Avis atribuíram à capitania de Ceuta27.
A acção de D. Fernando de Noronha também se destacou no plano
militar, ainda que, como veremos, a conjuntura vivida durante a sua
capitania exigisse grande prudência. Logo em 1428 comandou uma armada
que desbaratou, na costa da Andaluzia, corsários que ameaçavam a
segurança de Ceuta28 e, em 1437, foi um dos nobres que acompanhou os
29
infantes D. Fernando e D. Henrique na tentativa de conquista de Tânger .
Foi no decurso desta campanha militar que chegou a notícia do falecimento
de D. Pedro de Meneses. De imediato seguiu para a praça o seu filho, D.

25
Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Primeiro, p.125.
26
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Tomo XI, Capítulo III,
p.862
27
Cf. Luís Filipe Oliveira e Miguel Jasmim Rodrigues, “Um processo de reestruturação do domínio
social da nobreza. A titulação da 2.ª dinastia” in Revista de História Económica e Social, Nº 22, pp.77-
114; Madalena Ribeiro, “O Conde D. Henrique de Meneses, Capitão de Alcácer Ceguer e Arzila”, in A
Nobreza e a Expansão. Estudos Biográficos, pp.145-158; André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço
da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta
Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do Colóquio Internacional, pp.109-174.
28
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro II, Capítulo VII, pp.261-
264; Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 38, pp.151-154.

25
Duarte de Meneses, que assumiu as funções de capitão interino, até que D.
30
Fernando pudesse deslocar-se para Ceuta . Após o desastre de Tânger, D.
Fernando regressou ao reino. Foi nomeado governador de Ceuta por carta de
18 de Outubro de 1437, tomando este governo das mãos do seu cunhado D.
31
Duarte de Meneses, em princípios de 1438 . D. Fernando partiu para Ceuta
com instruções do monarca para suspender a guerra contra os mouros e
limitar-se apenas a acções defensivas, para que o infante D. Fernando não
32
sofresse represálias .
D. Fernando de Noronha não partilhou a opinião do infante D.
Pedro quanto à devolução de Ceuta em troca do infante D. Fernando, que se
encontrava no cativeiro, em Fez. O facto de o capitão de Ceuta ser contrário à
entrega da cidade colocou graves problemas nas negociações entre o regente
D. Pedro e os embaixadores do reino de Fez. Foi, por isso, acordado que o
governador da casa do infante D. Henrique, D. Fernando de Castro, e o seu
filho, D. Álvaro, iriam para Ceuta, onde tomariam a chave da cidade das
mãos de D. Fernando e a entregariam aos mouros quando o infante D.
Fernando já se encontrasse em Arzila. Esse plano falhou, pois a frota em que

29
Abel dos Santos Cruz, A Nobreza Portuguesa em Marrocos no século XV (1515-1464), Dissertação
para mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
p.108; Hugo Daniel Rocha Gomes da Silva Moreira, A Campanha Militar de Tânger (1433-1437),
Dissertação para mestrado em História Medieval e do Renascimento apresentada à Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, p.40.
30
Cf. Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, Capítulos XXXIII e XXIV,
pp.83-84.
31
Em Julho de 1438, já D. Duarte de Meneses se encontrava no reino, onde o rei D. Duarte fê-lo seu
alferes-mor, tal como anteriormente tinha sido o seu pai D. Pedro de Meneses. Ver Rui de Pina,
Chronica d'el-Rei D. Duarte, Capítulo XLIII, p.204; Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D.
Duarte de Meneses, Capítulo XXIV, pp.83-84; Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de
Ceuta, Capitulo 51, p.204.
32
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 53, p. 213.

26
D. Fernando de Castro seguia para Ceuta foi atacada ao largo do cabo de São
Vicente por uma armada genovesa, provocando a sua morte33. D. Fernando
de Noronha viria a morrer em Ceuta, no início de 1445, tendo capitaneado a
cidade durante 8 anos34. António Caetano de Sousa recorda-o enquanto
“Varaõ excellente na paz, e na guerra, confeguindo immortal nome na
guerra de Africa”35. Com a sua morte, a capitania de Ceuta passou para D.
Fernando, conde de Arraiolos36.

- D. Pedro de Meneses: pai de D. Fernando de Meneses

D. Pedro de Meneses foi o filho e herdeiro de D. Fernando de


Noronha e D. Brites de Meneses37. De acordo com Zurara, ficou combinado
entre D. Pedro de Meneses (1º conde de Vila Real) e o seu genro D. Fernando
de Noronha (2º conde de Vila Real), que o filho varão que este viesse a ter
com a sua filha, D. Brites de Meneses, adoptasse o nome do seu avô,
38
passando também a chamar-se Pedro de Meneses .

33
Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. I, Capítulo LIV, pp.108-113; Paulo Drumond
Braga, “A Expansão no Norte de África”, in Nova História da Expansão Portuguesa – Vol. II – A
Expansão Quatrocentista, p.267.
34
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 58, p.192, notas 1 e 2.
35
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Tomo XI, Capítulo III,
p.862.
36
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 55, pp.221-226; Sobre o conde
de Arraiolos veja-se Maria Dávila, “O Conde de Arraiolos e a política expansionista em Marrocos”, in
Portugal e o Magrebe. Actas do 4º Colóquio de História Luso-Marroquina, pp.69-74.
37
D. Fernando de Noronha viu ser-lhe confirmada a transmissão da sua casa para o filho primogénito,
D. Pedro de Meneses, após a sua morte. Ver Pedro de Azevedo, Documentos das Chancelarias Reais
anteriores a 1531 relativos a Marrocos, Tomo I, pp.78-80, 382-384, 472-473.
38
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, Livro II, Cap. XXIV, pp.321-322.

27
Durante os primeiros anos do reinado de D. Afonso V, D. Pedro de
Meneses desempenhou várias missões de carácter cerimonial, onde assumiu
39
posições de destaque . Porém, tal como o seu pai e o seu avô, também
combateu na guerra de Marrocos, palco para o exercício da vida militar a que
a sua condição obrigava. Em 1460 assumiu a capitania de Ceuta e, dois anos
depois, foi-lhe também atribuído o governo da cidade, com os mesmos
40
poderes que tivera o infante D. Henrique . Deteve a capitania de Ceuta até
1464, onde recebeu D. Afonso V quando ali se deslocou. De resto, o monarca
sempre se mostrou receptivo às suas opiniões, em detrimento de outras,
como as do experiente conde de Viana, D. Duarte de Meneses, então capitão
de Alcácer Ceguer41. Aliás, foi exactamente durante a capitania de D. Pedro
de Meneses que se deram as tentativas da conquista de Tânger, em 1463 e
146442. Participando apenas em investidas sob o comando do monarca, D.

39
Veja-se, a título de exemplo, a sua presença no baptizado do príncipe D. João, em que foi um dos
quatro que carregou o pálio, durante o cortejo até à Sé. Ver Damião de Góis, Chronica do Principe
Dom Joam, Capítulo II, p.4.
40
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, pp.118-119.
41
D. Afonso V atribuiu o título de conde de Viana a D. Duarte de Meneses em Abril de 1460. Ver Rui
de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CXLIII, pp.13-14. Para tal, em muito
contribuíram os muitos serviços de D. Duarte no Norte de África, nomeadamente, o facto de ter saído
vitorioso nos cercos que os mouros puseram a Alcácer Ceguer, em 1458 e 1459.
42
Na primeira vez, D. Afonso V afastou D. Duarte de Meneses, por pressão de D. Pedro de Meneses,
acabando a campanha por resultar num desastre. Ver Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol.
III, Capítulos CXLVII – CXLIX, pp.21-26. Posteriormente, contra o parecer de D. Duarte, o infante D.
Fernando tentou segundo escalamento, resultando em novo fracasso. Finalmente, em 19 de Janeiro de
1464, o infante repetiu a aventura, chegando alguns portugueses a subir os muros da cidade. Porém,
tudo resultou na prisão de cem homens e na morte de duzentos. Rui de Pina, Chronica de El-Rei D.
Afonso V, Vol. III, Capítulos CLII – CLIV, pp.33-42; D. Fernando de Meneses, História de Tânger
Durante la Dominacion Portuguesa, Libro Segundo, pp.43-44.

28
43
Pedro notabilizou-se, sobretudo, no ataque à serra de Benacofú . Sobre a sua
participação neste ataque, diz-nos Rui de Pina:

“O conde de Villa Real por sua bondade d'armas outras vezes


mereceu e ganhou grande honra e muito louvor, n'este dia em especial o
acrescentou muito mais; porque álém de se recolher como cumpria a um
singular capitão, indo como ardido cavaleiro, os imigos nas voltas e
esperadas que n'elles muitas vezes fez receberam muitas mortes e
damnos”44.

É provável que este desempenho tenha sido determinante para que


o rei lhe permitisse poder deixar ou nomear a capitania de Ceuta para
qualquer filho ou irmão, o que lhe foi confirmado em 16 de Janeiro de 146745.
De resto, tal veio a acontecer, pois o seu irmão, João de Noronha, capitaneou
Ceuta de 1481 a 148746 e o seu segundo filho, António de Noronha, também
47
foi capitão da cidade de 1487 a 1490 .
Já no final do reinado de D. Afonso V, D. Pedro de Meneses
acompanhou o monarca nas suas incursões por Castela, sendo ferido numa

43
Trata-se do mesmo ataque onde veio a perecer D. Duarte de Meneses. Ver Gomes Eanes de Zurara,
Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, Capítulo CLIIII, in Crónica do Conde D. Duarte de
Meneses- Estudo histórico-cultural e edição semidiplomática, Dissertação para doutoramento em
Cultura Portuguesa apresentada à Universidade de Trás os Montes e Alto Douro, pp.196-199; Rui de
Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CLVI, pp.45-50; Augustin Manuel
Vasconcelos, Vida de Don Dvarte de Meneses, Tercero Conde de Viana, pp.191-193.
44
Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CLVI, p.47.
45
António Dias Farinha, Portugal e Marrocos no séc. XV, Dissertação para doutoramento em História
apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Vol. II, p.274.
46
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 70, p.271.
47
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 66, p.257.

29
48
das contendas . É possível que o seu envolvimento nesta campanha régia
tenha sido determinante para garantir a perpetuação da Casa de Vila Real,
uma vez que, em 1476, D. Afonso V determinou que D. Pedro pudesse deixar
49
todos os seus bens e privilégios ao filho varão .
Com o reinado de D. João II, D. Pedro de Meneses tornou-se uma
figura muito activa, participando na recepção a D. Jorge, quando este se
deslocou pela primeira vez à corte, e marcando presença nos festejos de
50
casamento e no cortejo fúnebre do príncipe D. Afonso . De resto, este
monarca foi particularmente atencioso para com D. Pedro, por quem parecia
ter grande estima. Fê-lo 1º marquês de Vila Real, em 1 de Março de 1489,
numa cerimónia de invulgar solenidade51. É Garcia de Resende que no-lo
diz, num capítulo da sua crónica exclusivamente dedicado à cerimónia que o
monarca dedicou ao marquês de Vila Real:

“no ano de quatrocentos e oitenta e nove, estando el rei em Beja o


primeiro dia de Março com muita honra e grande solenidade, fez Marquês
de Vila Real, e Conde de Ourém a dom Pedro de Meneses, que era conde de
52
Vila Real” .

48
Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CLXXXVI, p.89.
49
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, p.120, nota 69.
50
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulos CXIII, CXIV e CXXXII, pp.83,
83-84,108-113.
51
Este acto reveste-se, desde logo, de singular importância, uma vez que este monarca, durante todo o
seu reinado, apenas concedeu outra distinção a nobres titulados, nomeadamente, a D. Vasco Coutinho,
agraciado com o título de conde de Borba. Sobre a acção de D. Vasco Coutinho no Norte de África
veja-se Anais de Arzila, de Bernardo Rodrigues.

30
A conjuntura em África
antes da chegada de D. Fernando de Meneses

Desde a década de 80 do séc. XV que o rei D. João II procurava pôr


em prática um ambicioso plano de intensificação da presença portuguesa em
Marrocos. Joaquim Veríssimo Serrão é da opinião de que este plano não
correspondia a uma verdadeira política militar, como acontecera durante o
reinado do seu pai, D. Afonso V, mas antes ao “desejo de dominar política e
comercialmente o Magrebe sem o recurso à força ostensiva”53. De facto, o
primeiro acordo conhecido entre Portugal e Safim remonta ao reinado de D.
Afonso V, como foi referido na carta que D. João II enviou a Amadux, o
alcaide da cidade em 148854. Do mesmo modo, também D. João II impôs a
55
soberania portuguesa aos habitantes mouros de Azamor, em 1486 . Dava-se
assim início a um segundo ciclo da ocupação portuguesa em Marrocos; um
ciclo caracterizado por uma soberania limitada no norte marroquino e que se
alastrava a alguns protectorados sobre algumas zonas mais a sul, com as
quais era mantida uma relação comercial56.

52
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo LXXIX, p.67.Ver também Rui de
Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXXVII, p.73; António Caetano de Sousa, Historia
Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V, pp.190-191.
53
Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. II, p.109.
54
Carta de D. João II ao alcaide e habitantes de Safim, em 16 de Outubro de 1488. Documento
publicado in Documentos do Corpo Cronológico relativos a Marrocos (1488 a 1514), pp.5-9; Les
Sources Inédites de l'histoire du Maroc, Vol. I, Doc. III, pp.25-30.
55
Carta de D. João II aos habitantes de Azamor, em 3 de Julho de 1486. Documento publicado in Les
Sources Inédites de l'histoire du Maroc, Vol. I, Doc. I, pp.4-8. Ver também Rui de Pina, Crónica de D.
João II, Capítulo XXI, pp.53-54; Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, p.56.
56
Fernando Pessanha, As Guarnições Militares nas Praças Portuguesas da Região da Duquela, no
Algarve Dalém Mar, Dissertação para mestrado em História do Algarve apresentada à Universidade
do Algarve, p.22.

31
Porém, a estabilidade dessas relações assentava, em última análise,
na ameaça de punições gravosas. É o próprio cronista Rui de Pina que refere
o medo dos habitantes de Azamor em serem conquistados pelas armas lusas:

“No ano de mil e quatrocentos e oitenta e seis a cidade de Azamor


do reino de Fez em África, temendo ser de el-rei tomada e conquistada pela
força, para escusarem sua perdição e cativeiro, com acordo e procuração de
todos os governantes e moradores dela, enviaram a el-rei, estando em
57
Santarém, sua obediência e o receberam por seu senhor” .

Contudo, a fidelidade dos mouros à coroa portuguesa sempre foi


muito irregular, pelo que nessas alturas a estratégia passava por ofensivas
militares de modo a punir os revoltosos. Em 1487, por exemplo, D. João II
lançou um ataque a Anafé (actual Casablanca). Foram trinta e cinco navios
com cento e cinquenta cavaleiros de elite, e mil de infantaria, besteiros e
espingardeiros. Segundo as fontes (que apresentam números algo
exagerados), mataram novecentos inimigos, para além dos muitos que
ficaram feridos, e cativaram quatrocentas pessoas, entre homens e mulheres.
Conclusão: o carácter de retaliação é evidente. Aliás, Rui de Pina justifica
esta acção alegando que os habitantes de Anafé estavam em desobediência
para com “Muley Befageja, seu rei, com quem el rei tinha então paz”58.

57
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXI, p.53. Também Garcia de Resende segue de perto
a crónica de Rui de Pina. Ver Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo LX,
p.56.
58
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXVII, p.59. Ver também Garcia de Resende, Crónica
de D. João II e Miscelânia, Capítulo LXVII, p.58.

32
Apesar da política de intimidação, a conjuntura norte-africana não
estava particularmente favorável nos últimos anos da década de 80 do séc.
XV. Em 11 de Outubro de 1487, o xeque Alle Barraxa atacou os campos de
Tânger com quatrocentos cavaleiros e muita infantaria. Já levavam gado e
alguns cristãos cativos quando o capitão de Tânger, D. João de Meneses, saiu
59
para lhe dar combate . Acabou por capturar o próprio Barraxa, que sangrava
por cinco feridas. D. João II mandou físicos e cirurgiões para tratarem do
alcaide mouro, dando instruções para que o tratassem de forma honrosa e
sem ferros60. Porém, a captura do líder muçulmano de pouco serviu, pois no
ano seguinte o capitão de Ceuta, D. António de Noronha, filho do já referido
D. Pedro de Meneses (o 1º marquês de Vila Real), foi ferido e capturado
numa entrada em que morreram muitos dos principais cavaleiros da cidade,
como o alcaide-mor de Évora, o senhor de Távora, entre outros. D. João II, ao
saber do desastre, mandou socorro e um novo capitão. Valeu a D. António de
Noronha ter sido trocado por Barraxa, que tinha sido aprisionado em Tânger
61
por D. João de Meneses .
Ainda nesse ano de 1488, a entrada de D. Vasco Coutinho, conde de
62
Borba e capitão de Arzila , podia ter terminado muito mal. Encontrava-se

59
Sobre o capitão de Tânger D. João de Meneses veja-se Susannah Charlton Humble, “O fardo do
patrocínio real: o caso do conde de Tarouca, mordomo-mor da Casa Real”, in A Alta Nobreza e a
Fundação do Estado da Índia. Actas do Colóquio Internacional, pp.101-108.
60
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXVIII, pp.60-61; Garcia de Resende, Crónica de D.
João II e Miscelânia, Capítulo LXVIII, p.59.
61
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXXV, p.67; Garcia de Resende, Crónica de D. João II
e Miscelânia, Capítulo LXXV, p.63.
62
Sobre a linhagem dos Coutinhos veja-se Luís Filipe Oliveira, A Casa dos Coutinhos: Linhagem,
Espaço e Poder (1360-1452), Cascais, Patrimonia, 1999; Vítor Luís Gaspar Rodrigues, “As
Linhagens Secundárias dos Coutinhos e a Construção do Império Manuelino”, in A Alta Nobreza e a
Fundação do Estado da Índia. Actas do Colóquio Internacional, pp.177-80.

33
apenas com setenta cavaleiros quando encontrou o alcaide de Alcácer
Quibir, que trazia consigo quinhentas e cinquenta lanças, “com tenção de
63
não deixar escapar o Conde” . Os portugueses, convencidos de que
dificilmente conseguiriam fugir, direccionaram um ataque cirúrgico contra o
alcaide de Alcácer Quibir, que acabou por ser aprisionado e levado para
Arzila, de onde foi libertado após ser pago o resgate. A sorte esteve do lado
dos portugueses e se o líder muçulmano não tivesse sido aprisionado, o
desfecho do combate teria sido desastroso para os cavaleiros de Arzila.
Foi, portanto, com o objectivo de reforçar militarmente a região
norte de Marrocos que, em Fevereiro de 1489, D. João II mandou construir a
fortaleza da Graciosa, a 15 quilómetros da foz no rio Lukkos e a caminho de
Fez. Pretendia o monarca português alargar o seu domínio às planícies de
Alcácer Quibir e constituir uma frente de ameaça contra esta praça e contra
Fez. A armada foi equipada para o efeito com artilharia, cal, pedra, madeira,
mantimentos, etc. Como facilmente se poderá depreender, a iniciativa era
claramente ofensiva e ameaçadora. Porém, prontamente se apercebeu o
monarca muçulmano da ameaça que isto constituía. Rapidamente se viram
os portugueses cercados, pelo que acabaram por negociar a retirada levando
64
consigo as armas, artilharia e cavalos .

63
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo LXXI, p.60; Rui de Pina, Crónica
de D. João II, Capítulo XXXI, pp.62-63.
64
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXXVIII, pp.74-78; Garcia de Resende, Crónica de D.
João II e Miscelânia, Capítulo LX, pp.68-70.Ver também António Borges Coelho, História de
Portugal Volume III – A Largada das Naus, pp.187-188; António Dias Farinha, “O Norte de África”,
in História da Expansão Portuguesa, Vol. I, pp.127-128; David Lopes, “Os portugueses em Marrocos
no tempo de D. Afonso V e de D. João II”, in História de Portugal, Damião Peres (dir.), Vol. III, p.451.

34
Os serviços no Norte de África

- As intenções de Barraxa e chegada de D. Fernando de Meneses


a Ceuta

“Depois de 1415 era sabido: fidalgo ia a Marrocos, dava à espada


contra mouros e trazia diploma. Marrocos foi escola reconhecida,
subterfúgio e cadinho. Nobreza de muitas nações... Autos de armar
cavaleiros foram espectáculos correntes desde a retomada de Ceuta”65.

Com efeito, foi esse o destino de D. Fernando de Meneses, tal como


tinha sido o do seu bisavô, avô, pai e irmão, entre muitos outros Meneses que
igualmente serviram nas praças lusas do Norte de África. Mas façamos uma
brevíssima retrospectiva de modo a podermos explicar em que contexto é
que D. Fernando de Meneses foi mandado para Ceuta. Decorria o ano de
1490 quando Alle Barraxa, o poderoso líder mouro que tinha sido
aprisionado em Tânger e trocado por D. António de Noronha, irmão de D.
Fernando de Meneses, fazia planos para tomar Ceuta. Alle Barraxa esperava
conseguir subornar Lopo Sanches para que este lhe entregasse a cidade, mas
o escudeiro, leal à coroa portuguesa, rapidamente avisou D. João II, que
então se encontrava em Évora. Foi então que o Príncipe Perfeito mandou
chamar à corte o nosso biografado, D. Fernando de Meneses. Enquanto

65
José Mattoso, História de Portugal – A Monarquia Feudal, Vol. 2, transcrito de Renata Cristina de
Sousa Nascimento, Os privilégios e os abusos da nobreza em um período de transição (1448-1481),
Dissertação para doutoramento em História apresentada à Universidade Federal do Paraná, p.64.

35
66
Garcia de Resende se refere a este como “pessoa de muito merecimento” ,
Rui de Pina enaltece a Casa de Vila Real quando escreve:

“D. Fernando de Meneses, filho maior, e tão herdeiro que esperava


ser da honrada casa e herança do marquês de Vila Real seu pai, como já o
era de suas muitas bondades e esforço de coração, em que já fora por muitas
67
vezes com louvor experimentado” .

Da reunião entre o monarca português e D. Fernando ficou decidido


que este deveria partir para Ceuta. E assim foi. No Algarve foram
prontamente armados cinquenta barcos, devidamente apetrechados com
muitos homens, cavalos, armas e mantimentos. Mas perguntemo-nos:
seriam as intenções de Barraxa motivo suficiente para alarmar D. João II ao
ponto de enviar D. Fernando de Meneses com tais reforços e tamanha
urgência? Antes de respondermos a esta questão convém determinarmos
quem era realmente este líder mouro. Como sabemos, com a conquista de
Arzila e a ocupação de Tânger pelos portugueses, Muley Xeque viu-se
68
obrigado a acordar tréguas de vinte anos com D. Afonso V , que passou a
deter o título de “Rei de Portugal e dos Algarves Daquém e Dalém Mar em
África”. Por outras palavras, em vez de lutar contra os cristãos invasores,
pactuou com eles. Mas a verdade é que Muley Xeque precisava desta paz
para continuar a luta contra os seus inimigos internos e conquistar o reino de

66
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo CXI, p.80.
67
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XLI, p.80.
68
Damião de Góis, Chronica do Principe Dom Joam, Capítulo XXIX, pp.119-120.

36
Fez. Deste modo, o seu reinado foi tão frágil que teve de permitir uma certa
autonomia a vários líderes que pregavam a guerra santa contra os
portugueses. Era entre estes líderes que se encontrava Muley Ali Ibn Rachid,
o célebre Barraxa das crónicas portuguesas. Foi este o fundador e primeiro
alcaide de Xauen, cidade construída em 1471-1472, para combater os
portugueses estabelecidos no norte de Marrocos. Graças à sua localização de
difícil acesso, situada nas montanhas, Xauen serviu de base aos muitos
ataques que Barraxa lançou contra as praças portuguesas no norte, quer
sozinho, quer acompanhado pelos alcaides de Tetuão e Alcácer Quibir.
Leão-o-Africano refere Xauen e o seu alcaide do seguinte modo:

“É a montanha mais amena de quantas há em África. Tem uma


pequena vila cheia de artesãos e mercadores, na qual reside o senhor de
várias destas montanhas. Foi ele que fez prosperar este país. Revoltou-se
contra o rei de Fez e chamava-se Sidiheli Berrased. Também fez guerra
69
incessante aos portugueses” .

Para além disso, Barraxa contribuiu eficaz e decisivamente para a


reconstrução da cidade de Tetuão, despovoada após o ataque de D. Duarte de
70
Meneses, em 1437 - levada a cabo pelo alcaide granadino Abul Hassan Ali

69
Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte, p.313. Tradução do castelhano
para português por Fernando Pessanha.
70
Rui de Pina, Choronica D'el Rey D. Duarte, Capítulo XXIII, p.156. D. Afonso V ainda doou a vila e
o seu termo a Vasco Fernandes Teixeira, provavelmente em 1471, e a Álvaro Pereira, em 1477. Porém,
os portugueses nunca tomaram a iniciativa de povoá-la. Ver David Lopes, “Os Portugueses em
Marrocos no tempo de D. Afonso V e de D. João II”, in História de Portugal, Damião Peres (dir.), Vol.
III, p.538. Ver também Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte III, p.303.

37
71 72
al Mandari , o Almandarim das crónicas portuguesas . Eram, portanto,
inúteis as tréguas estabelecidas entre os reis de Portugal e Muley Xeque, uma
vez que o alcaide de Xauen não as respeitava nem as cumpria. Aliás, nem ele
73
nem o já referido Mandari, que chegou a ser seu genro . A insubordinação de
Barraxa face à política do seu soberano e a sua sede de guerra contra os
portugueses denunciam o perfil psicológico do alcaide de Xauen. As suas
acções revelam tratar-se de um homem de uma ambição sem limites, que
procurava apoderar-se de qualquer uma das praças portuguesas, o que não só
serviria para afirmar o seu mérito bélico e pessoal, mas também como
garantia de êxitos políticos que pudessem legitimar a fundação de uma nova
dinastia74.
Por outro lado, o facto de D. António de Noronha ter sido
aprisionado aquando de uma entrada em território inimigo parece ter
retirado a sua credibilidade aos olhos do rei. Afinal, Barraxa encontrava-se
como prisioneiro em Tânger, pelo que a sua detenção poderia permitir aos
portugueses negociar com os seus adversários numa posição de força.
Porém, o cativeiro do então capitão de Ceuta veio a destruir um trunfo que
poderia ter sido útil aos interesses de Portugal no norte de Marrocos. D.
Jerónimo Mascarenhas, em Historia de la Ciudad de Ceuta, chegou a
comentar o infortúnio de D. António de Noronha:

71
Guillermo Gozalbes Busto, “al-Mandari y al-Mandar al-Manzir§ y al-Manzar”, in MEAH, Sección
Árabe-islam 45, pp.75-96.
72
Veja-se, a título de exemplo, Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III,
Capítulos XXXI e XXXVI, pp.336-337 e 343-345.
73
Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol. I, Capítulo XIV, p.57.
74
Guillermo Gozalbes Busto, Entre Portugal y España: Ceuta, p.68.

38
“Fue Don Antonio Cauallero de singular valor, como lo mostro en
todas las ocasiones militares, i aun q' es cierto tubo muchas el tiempo q'
governo, las olvidaran nuestras historias, acordandosse solamente de la
75
pelea en q' fue cautiuo” .

Certamente D. Fernando de Meneses sentia o peso da


responsabilidade. Partia para Ceuta, pela primeira vez, com
76
aproximadamente 27 anos , quando o seu pai, D. Pedro de Meneses, 1º
marquês de Vila Real, tinha sido nomeado 3º capitão donatário e governador
de Ceuta com apenas 20 anos77. António Caetano de Sousa teceu rasgados
elogios à capitania deste, destacando a sua prudência e valor na guerra contra
os mouros:

“principalmente quando venceo em batalha campal a Gilharé


poderoso, e principal capitaõ dos Mouros: nesta facção fazendo milagres o
valor sahio ferido o Marquez (entaõ Conde de Villa Real) e conseguindo
outros muitos prosperos sucessos, trouxe nos seu tempo taõ temerosos os
Mouros, que os obrigava a desampararem as povoaçoens, fazendo em suas
terras entradas com tanta felicidade, que se recolhia com os seus à Praça

75
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 66, p.33.
76
Segundo António Caetano de Sousa, D. Fernando de Meneses terá nascido por volta de 1463, o que
quer dizer que teria uns 27 anos em 1490. Cf. António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da
Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V, p.198. Rui de Pina, porém, é lacónico ao afirmar que D.
Fernando de Meneses nasceu em 1463. Ver Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III,
Capítulo CXLVII, pp.24.
77
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 59, p.236.

39
vitoriosos, e carregados de despojos, sendo elle o primeiro que fez os infieis
78
tributarios a este Reyno” .

Portanto, era natural que a acção do seu pai nas guerras do Norte de
África criasse expectativas quanto ao seu desempenho na capitania de
Ceuta. Por outro lado, a conjuntura também não era a mais favorável; os
mouros tinham conseguido impedir D. João II de reforçar militarmente a
região norte de Marrocos, e até o seu irmão, D. António de Noronha, tinha
sido aprisionado no ano anterior, durante uma entrada em território inimigo.
Felizmente, Alle Barraxa tinha sido aprisionado pelo capitão de Tânger, pelo
que foi possível trocar o líder muçulmano pelo Capitão de Ceuta.
Ironicamente, o mesmo Barraxa que agora tentava tomar a cidade.
Com efeito, não são conhecidos muitos documentos sobre a acção
de D. Fernando de Meneses no Norte de África. Ainda assim, quer Rui de
Pina79, quer Garcia de Resende80, nas suas crónicas de D. João II, dedicaram
um capítulo inteiro à sua chegada a Ceuta, narrando como este tomou as vilas
de Targa e Samice. O mesmo acontece com D. Jerónimo de Mascarenhas, na
81
sua Historia de la Ciudad de Ceuta, onde narra o feito em dois capítulos .
Para além destes cronistas, apenas encontrámos um resumo destes
acontecimentos na Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, de

78
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V,
p.193.
79
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XLI, pp.80-82.
80
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo CXI, pp.80-82.
81
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulos 66 e 67, pp.257-261.
82
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V,
pp.200-201.

40
82
António Caetano de Sousa , e em Entre Portugal y España: Ceuta, de
83
Guillermo Gozalbes Busto . De resto, as referências à acção de D. Fernando
de Meneses em Marrocos apenas aparecem de maneira muito breve em
84
obras como A Largada das Naus, de António Borges Coelho ou A
85
Expansão no Norte de África, de Paulo Drumond Braga .

- A tomada de Targa

Antes de D. Fernando de Meneses partir para Ceuta, antecipou-se-


lhe o escrivão da câmara Fernão de Pina, indivíduo da confiança do rei, e que
o aconselhou a dar entrada em Gibraltar de noite, de modo a que a frota não
fosse vista pelos mouros, caso contrário perder-se-ia o efeito da surpresa. Na
reunião entre D. Fernando de Meneses, D. António de Noronha e demais
cavaleiros, ficou decidido que iriam atacar Targa, uma vila de pescadores na
costa mediterrânica de Marrocos 86 , situada pelo geógrafo italiano
Magliabecchi a 55 Km de Ceuta87.

83
Guillermo Gozalbes Busto, Entre Portugal y España: Ceuta, pp.65-73.
84
António Borges Coelho, História de Portugal Volume III – A Largada das Naus, p.188.
85
Paulo Drumond Braga “A Expansão no Norte de África”, in Nova História da Expansão
Portuguesa – Vol. II – A Expansão Quatrocentista, p.293.
86
Cf. Vitorino Magalhães Godinho, História Económica e Social da Expansão Portuguesa, pp.27-28.
87
Carlos Gozalbes Cravioto, Ceuta en los portulanos medievales Siglos XIII, XIV, XV, p.80. Na
realidade, Targa encontra-se a 61 Km em linha recta e a 97 Km por estrada.

41
Fig. 1 – Distância entre Ceuta e Targa, no norte de Marrocos.

Depois de estudado o alvo e feitas as acções de espionagem, a


armada partiu juntamente com alguns navios de Ceuta e de Castela, que a ela
se juntaram na véspera de Ramos. Na frota iam dois mil homens, dos quais
cento e cinquenta a cavalo88. D. Fernando comandou de tal forma o
desembarque das tropas que estas, devidamente organizadas, tomaram a vila

88
Baseámo-nos em Garcia de Resende. Rui de Pina, por outro lado, refere serem 130 de cavalo.

42
rapidamente e sem resistência. Muitos mouros, apercebendo-se das
intenções da armada, abandonaram a vila, procurando refúgio na serra.
Porém, alguns foram mortos e cativos. A vila, por seu lado, foi totalmente
saqueada, incendiada e destruída, assim como as próprias árvores. Findo o
feito bélico, D. Fernando de Meneses armou cavaleiros os seus irmãos D.
Henrique e D. Diogo, para além de outros fidalgos e pessoas honradas89.
Aliás, recordamos, a este respeito, que também os infantes D. Duarte, D.
Pedro e D. Henrique foram armados cavaleiros por D. João I em Ceuta, logo
após a conquista da cidade90. A acção de D. Fernando de Noronha deve ser
entendida, portanto, como um exercício simbólico representativo do poder
político e militar de que ia investido.
Entre os despojos de guerra ficaram vinte e cinco navios do porto de
Targa, entre embarcações grandes e pequenas, para além de bombardas,
pólvora, salitre, âncoras, lanças, couraças, capacetes e muitas ferramentas de
armazém. Foram ainda encontrados trinta cristãos cativos que foram
libertados e levados para Ceuta, para além de outros que rumaram a
Castela91. E foi com todo este despojo que D. Fernando de Meneses entrou
em Ceuta, aclamado pelos soldados e sem ter sofrido qualquer baixa.

89
A Rui de Sande, por exemplo, foi feita mercê para usar o título de Dom, em consideração aos serviços
prestados ao rei D. João II, nomeadamente, “aquando da guerra dos mouros, no cerco da vila da
Graciosa, bem como na guerra de outros lugares de África – Arzila, Tânger, Ceuta e tomada de
Targa”. A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 19, fl. 5.
90
Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Capítulo XCVI, pp.276-277.
91
São várias as referências a cristãos cativos em Targa, já nas décadas seguintes. Veja-se, a título
de exemplo, a carta de Sebastião Vargas a D. João III, em 1542, onde refere a fuga de cristãos que
tinham estado cativos em Targa, onde as masmorras se encontravam cheias. Ver A.N.T.T., Corpo
Cronológico, Parte I, maço 72, n.º 41.

43
- A tomada de Samice

A tomada de Targa resultou num êxito tão grande que D. Fernando


de Meneses, desejoso de prestar mais serviços ao rei e arrecadar para si mais
glória, não se deu por satisfeito. A principal razão que o tinha levado a
África, isto é, os planos de Barraxa para tomar Ceuta, pareciam não se
concretizar, pelo que D. Fernando concebeu outro projecto. Reuniu com D.
Martinho de Távora, capitão de Alcácer Ceguer, e com Manuel Pessanha,
capitão de Tânger92, entre outros cavaleiros, para juntos atacarem e
destruírem Samice. Este era um lugar sem cerca, situado numa serra forte e
áspera a que os mouros “por sua grande fortaleza e muita povoação e até
então nunca de cristãos ser cometido nem visto chamavam o encantado”93.
Para a ofensiva juntaram-se em Alcácer Ceguer quatrocentos homens a
cavalo e mil e duzentos a pé. Porém, ao se aproximarem do local,
aperceberam-se da robustez do sítio e dos perigos que resultariam do ataque.
Avaliados os riscos, organizaram os homens e investiram contra o alvo com
a ousadia e esforço que tal carga implicava. Encontraram vários lugares e
povoações em que havia várias fortalezas, optando por atacar logo a que
parecia mais perigosa. Os habitantes, porém, foram apanhados de surpresa.
Não podendo responder ao ímpeto daquele assalto, tentaram evadir-se pelas
veredas da serra, mas esta já estava tomada pelos portugueses, que acabaram

92
Curiosamente, este feito não se encontra mencionado na História de Tânger Durante la
Dominacion Portuguesa, ainda que o capitão de Tânger Manuel Pessanha e as suas forças tenham
participado nesta ofensiva. Ver D. Fernando de Meneses, História de Tânger Durante la Dominacion
Portuguesa, Libro II, p.60.
93
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XLI, p.81.

44
por matá-los e cativá-los. Tal como em Targa, o lugar foi tomado, saqueado e
incendiado.
Bem sabemos que a cronística dos séculos XV e XVI é pautada por
uma preocupação em apresentar números aproximados de mortos, feridos e
cativos em cada combate com os mouros - condição iniciada com Zurara, nas
suas crónicas relativas à Expansão no Norte de África, e que teve
repercussões em cronistas como Pina ou Resende94. Porém, um esforço
quantitativo condicionado pela natureza política de que se revestem as
crónicas e pela tendência estilizada em exaltar os feitos de armas da nobreza.
Em última instância, a afirmação da acção deste grupo social enquanto braço
cumpridor da vontade régia95. No caso particular da tomada de Samice, as
fontes são algo confusas quanto aos quantitativos relativos às perdas de
vidas humanas. Garcia de Resende e D. Jerónimo de Mascarenhas
(seguramente baseado no primeiro) referem terem morrido setenta
cristãos96, enquanto Rui de Pina diz terem sido apenas sete97. António
Caetano de Sousa, por outro lado, diz terem perecido sessenta98. No entanto,
todos coincidem quanto aos quatrocentos mouros assassinados (número
seguramente exagerado) e cem aprisionados. Os despojos, que contavam

94
Joaquim Veríssimo Serrão, Cronistas do século XV posteriores a Fernão Lopes, Lisboa, Bertrand,
1989; Maria Augusta Lima Cruz, “Os cronistas do império: da gesta das armas aos heróis do mar”, in
Outro mundo novo vimos, pp.51-59.
95
Cf. Paulo Vicente, “Falar de Violência em Marrocos nos Séculos XV-XVI. A Perspectiva dos
Cronistas Portugueses”, in Portugal e o Magrebe. Actas do 4º Colóquio de História Luso-
Marroquina, p.347.
96
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo CXI, p.82; Jerónimo de
Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 67, p.261.
97
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XLI, p.81.
98
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Cap. V, p.201.

45
com grande número de gado e cavalos, foram levados para Alcácer Ceguer,
onde foram divididos pelas três praças envolvidas. D. Fernando de Meneses,
depois de mais uma vez ter sido louvado pelos soldados, regressou à corte,
onde foi recebido com honras e onde D. João II agradeceu os seus serviços.

- Porquê a conquista e destruição de Targa e Samice?

Expostos os ataques a estas duas localidades, torna-se pertinente


perguntarmo-nos o porquê da escolha destes alvos. Teria sido a selecção
aleatória? Corresponderia a algum plano de D. Fernando de Meneses?
Seguramente. Antes de mais, devemos ter em consideração que Targa
pertencia aos domínios dos alcaides do norte de Marrocos. Guillermo
Gozalbes Busto parece enganar-se ao afirmar que Targa era domínio de Ali
Ibn Rachid99, o mouro Barraxa das crónicas portuguesas e alcaide de Xauen.
Bernardo Rodrigues contraria-o, quando refere al-Mandari, o Almenderim
das crónicas portuguesas, como alcaide de Targa100. Sabemos, porém, que
este era genro de Alle Barraxa e que Targa se encontra geograficamente mais
próxima de Xauen que de Tetuão, portanto, bem podemos deduzir que a vila
costeira de Targa servia os interesses de ambas as cidades. Aqui
transcrevemos o testemunho que Leão-o-Africano deixou sobre Targa:

“Targa é uma pequena cidade construída pelos godos, segundo


alguns autores. Encontra-se na costa do Mediterrâneo, a aproximadamente

99
Guillermo Gozalbes Busto, Entre Portugal y España: Ceuta, p.71.
100
Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol. I, Capítulo XIV, p.57.

46
80 milhas do Estreito e conta com umas cento e cinquenta famílias. As suas
muralhas são débeis. É habitada por pescadores que costumam salgar o
peixe que capturam para vendê-lo aos mercadores da montanha. Levam-no
terra adentro até umas cento e vinte milhas. Esta cidade esteve bem atendida
e povoada, mas desde que os portugueses puseram ali os pés que começou a
declinar, tanto em conservação como em número de habitantes. Está
rodeada por bosques que cobrem montanhas ásperas e frias, em que cresce
cevada, ainda que tão pouca que a colheita não dure para meio ano. A gente
de esta terra é deveras valente, mas são brutais, ignorantes e bêbados.
Costumam vestir-se muito mal”101.

Como podemos ler na descrição de Leão-o-Africano, a localidade


vivia da pesca que vendia às populações da montanha. Já antes tinha sido
atacada, em 1479, pelo alcaide castelhano Pedro de Vargas, que fez
prisioneiros e levou consigo o saque102. Aliás, Zurara refere Targa várias
vezes, na Crónica do Conde D. Pedro de Meneses. Por outras palavras, Targa
tinha uma evidente importância estratégica enquanto porto do Riff.
Comprova-o as representações da vila nos portulanos do séc. XV103. Servia
as comarcas de Xauen e de Tetuão e ali estava concentrada uma pequena
frota, para além do considerável arsenal de armamento referido por Rui de

101
Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte, p.308. Tradução do
castelhano para português por Fernando Pessanha.
102
Vitorino Magalhães Godinho, História Económica e Social da Expansão Portuguesa, pp.27-28.
103
Segundo Carlos Gozalbes Cravioto, Targa detinha então a supremacia da região a leste de Ceuta,
face a outros núcleos urbanos, como Moçema (Alhucemas), Alcudia e Bedia (Vélez de la Gomera).
Ver Carlos Gozalbes Cravioto, Ceuta en los portulanos medievales Siglos XIII, XIV, XV, p.56.

47
Pina e Garcia de Resende. Portanto, podemos depreender que o ataque a este
alvo pretendia enfraquecer o poder militar de Barraxa, privando-o de
recursos que podiam perfeitamente ser utilizados contra Ceuta. Aliás, é
exactamente a importância estratégica de Targa que fará com que D. Manuel
I, em 1502, envie uma armada comandada por “George de Mello, y George
Daguiar, pera irem sobella villa de targa”104 e que em 1517, já durante a
capitania de D. Pedro de Meneses - filho do nosso biografado – conceba
novo ataque à localidade105.
Por outro lado, D. Fernando de Meneses, enquanto descendente de
uma linhagem que há muito combatia no Norte de África, tinha clara
consciência do poder dos ataques navais dos portugueses e de como estes
poderiam ser danosos a uma posição como Targa. Recordemos que apenas
três anos antes, em 1487, D. João II tinha lançado um ataque semelhante a
Anafé (Casablanca), tendo a cidade sido novamente destruída e a sua
população morta e aprisionada, e que já em 1468 o Infante D. Fernando “com
grande frota e muita gente, em pessoa, foi sobre esta cidade, e per força das
armas a entrou e destruiu”106. As palavras de Leão-o-Africano sobre a sua
passagem por Anafé e a representação desta cidade publicada no Civitates

104
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo LXII, p.83.
105
Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol. I, Capítulo XXXIX, p.226; Damião de Góis, Chronica
do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, IV, Capítulo XXII, p.494; Manuel de Faria e Sousa, Africa
Portuguesa, Capítulo VII, p.140; D. Fernando de Meneses, História de Tânger Durante la
Dominacion Portuguesa, Libro Segundo, p.72. Refira-se que também os espanhóis, conscientes da
importância estratégica de Targa, atacaram a vila por várias vezes. Veja-se, a título de exemplo, o
ataque a Targa por parte de D. Bernardino, capitão das galés do imperador Carlos V, em 1547. Ver
A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte I, maço 79, n.º 44. Ver também a tomada de navios de Targa por
parte de D. João de Mendonça, quando se encontrava ao serviço do príncipe de Castela, em 1548. Ver
A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte I, maço 81, n.º 23.

48
Orbis Terrarum, de Georg Braun, demostram o quão letais podiam ser os
ataques navais portugueses:

“o rei de Portugal determinou acabar com Anfa e mandou um


exército de quase cinquenta navios com gente de guerra munida de
artilharia (…) desembarcou as suas tropas e assaltaram a cidade com tanto
ímpeto que a saquearam e a explodiram inteira em apenas um dia,
queimando casas, derrubando muralhas por uma infinidade de sítios; ainda
hoje continua despovoada, e quando a visitei não pude conter as lágrimas. A
maior parte das casas, as lojas e as mesquitas continuam em pé e ferem os
olhos com a sua ruína, oferecendo um espectáculo do mais triste”107.

Fig. 2 - Representação de Anafé no Civitates Orbis Terrarum, de Georg Braun (1572).

106
Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo De Situ Orbis, I Parte, p.60. Ver também Rui de Pina, Chronica
de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CLX, pp.53-54. Apesar de conquistada, a cidade acabou por
não ser ocupada pelos portugueses, pois Anafé encontrava-se isolada em relação às outras possessões
portuguesas (Ceuta e Alcácer Ceguer). Perante a impossibilidade de deixar a cidade conquistada em
estado de defesa, D. Fernando optou por saqueá-la e destruir as suas muralhas.Ver Fernando Pessanha,
“A conquista e destruição de Anafé (Casablanca) pelo Infante D. Fernando (1468) - Considerações
sobre uma pouco conhecida operação anfíbia”, in Revista de História, Sociedade e Cultura, Nº 19,
Coimbra, Universidade de Coimbra, no prelo.
107
Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte, p.212. Tradução do
castelhano para português por Fernando Pessanha.

49
Dadas as circunstâncias, bem podemos depreender que o ataque a
Targa foi concebido ao abrigo de um plano estratégico que pretendia não só a
destruição e confisco de arsenal que poderia ser usado contra Ceuta, como
também o enfraquecimento e desmoralização do adversário. Tal como
podemos acompanhar nas crónicas, findo o ataque a Targa, “e também
porque o trato principal sobre que fora, ia já perdendo esperança de
concerto”, D. Fernando de Meneses, juntamente com o capitão de Alcácer
Ceguer, D. Martinho de Távora, e com o capitão de Tânger, Manuel
Pessanha, decidem atacar Samice. Não sabemos o que se terá passado
durante esse compasso de tempo. O mais provável é que o ataque e a
destruição de Targa tenha fragilizado a posição de Barraxa, abandonando
este qualquer plano de tomar Ceuta enquanto permanecesse em Marrocos o
reforço militar que tinha chegado com D. Fernando de Meneses. Resta-nos
perceber porque razão decidiram os capitães portugueses atacar Samice.
Com efeito, não temos certeza quanto à localização exacta desta
localidade. De acordo com Guillermo Gozalbes Busto, Samice tem vindo a
ser identificada com Samsa, poucos quilómetros a Noroeste de Tetuão,
embora este autor acredite tratar-se de Zemzem108, um serro localizado 19
km a norte da mesma cidade e 18 Km a sul de Ceuta. Não sabemos ao certo se
Samice corresponde à referida Zemzem, a meio caminho entre Ceuta e
Tetuão. No entanto, estamos inclinados a concordar com Guillermo
Gozalbes Busto, uma vez que Samice remete-nos para a serra de difícil
entrada, a alguns quilómetros de Tetuão, e que D. Duarte de Meneses

108
Guillermo Gozalbes Busto, Entre Portugal y España: Ceuta, p.70.

50
anteriormente tinha atacado. Gomes Eanes de Zurara, num capítulo da
Crónica de D. Duarte de Meneses que tem por título “Como dom Duarte foy
correr terra de mouros onde sse chama Cencem” descreve-nos o sítio do
seguinte modo:

“naquella serra contra Tutuã auya huü lugar que se chamaua


Cencë que era de boa pouoraçõ e de gente de boa vallya assy na fortelleza
como na fazëda”109.

Com efeito, não conseguimos identificar Cencem ou Samice com


qualquer topónimo presente na terceira parte da Descrição de África, de
Leão-o-Africano, o que é perfeitamente natural, se tivermos em
consideração que, por vezes, a toponímia das fontes portuguesas do séc. XV
pouco se assemelhava aos originais topónimos árabes / berberes110. No
entanto, quer o topónimo de Cencem, referido por Zurara, quer a descrição
geomorfológica do espaço vão ao encontro das alusões feitas por Rui de Pina
e Garcia de Resende. Por outro lado, as distâncias apontadas pelas fontes
também parecem coincidir. Como anteriormente foi referido, Zemzem é um
cerro localizado a meio caminho entre Ceuta e Tetuão. Zurara diz-nos que
Cencem se encontrava a 8 léguas de Ceuta111, e Leão-o-Africano refere que

109
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses – Estudo histórico-cultural e
edição semidiplomática, Livro I, Capítulo XIII, p.67.
110
Sobre a problemática da toponímia marroquina nas fontes portuguesas veja-se Hassan al Figuigui,
“Toponymie des sites dans le Nord-Oest marocain d'aprés les sources portugaises”, in Estudos de
História Luso-Marroquina, pp.67-78.
111
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Conde D. Duarte de Meneses – Estudo histórico-cultural e
edição semidiplomática, Livro I, Capítulo XIII, p.68.

51
Tetuão se encontrava a 18 milhas do Estreito112. Vemos, desta maneira, que
Zemzem - ou Cencem – se encontrava, aproximadamente, a meio caminho
entre Ceuta e Tetuão, tal como anteriormente foi defendido por Guillermo
Gozalbes Busto. No entanto, um problema se põe quanto à identificação de
Samice com Zemzem / Cencem: Pina e Resende referem nunca ter sido
aquele local atacado pelos cristãos, quando Zurara refere ter sido atacado por
D. Duarte de Meneses. Parece-nos, no entanto, que a alusão de Pina à
“povoação e até então nunca de cristãos ser cometido nem visto”113 prende-
se com uma certa preocupação em glorificar a campanha de D. Fernando de
Meneses. Com efeito, não nos devemos esquecer que este cronista redigiu a
Crónica de D. João II entre 1495 e 1504114, período em que, como adiante
veremos, D. Fernando de Meneses muito usufruiu da atenção que lhe foi
dispensada por D. Manuel I. Por outro lado, também devemos ter em
consideração que as crónicas de Zurara sobre os Meneses estavam alinhadas
com a “cronística oficial” do reinado de D. Afonso V, de modo a exaltar os
personagens principais no exercício da cavalaria e da guerra e a constituir
exemplos de fidalgos guerreiros que servissem de modelo à nobreza
portuguesa115. A verdade é que tal não deixou de acontecer nas crónicas que
se seguiram, nomeadamente, na Crónica de João II, onde Rui de Pina
continuou a destacar os feitos de armas liderados pelos fidalgos portugueses
no Norte de África e onde o peso da Casa de Vila Real terá, certamente,

112
Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte, p.303.
113
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XLI, p.81.
114
Joaquim Veríssimo Serrão, Cronistas do século XV posteriores a Fernão Lopes, pp.54-55.
115
Ver André Luiz Bertoli, “Ensaio sobre a Cronística e a Guerra em Portugal no final da Idade
Média”, in Revista Litteris História, Nº 5, s/l, Junho de 2012.

52
contribuído para dar visibilidade às campanhas de D. Fernando de Meneses
no Norte de Marrocos.

Fig. 3 – Provável localização de Samice, entre Ceuta e Tetuão.

Ora, se a Samice referida por Pina e Resende corresponde


realmente a Cencem / Zemzem, resta-nos perceber a razão da escolha deste
alvo. Tal como podemos acompanhar na Crónica do Conde D. Pedro de
Meneses ou na Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, era extremamente
arriscado para os portugueses saírem de Ceuta, aventurando-se em território

53
inimigo. Essas dificuldades acresceram com a fundação de Xauen, nos anos
70 do séc. XV, povoação concebida para servir de entrave ao expansionismo
português no Norte de Marrocos. Leão-o-Africano, por exemplo, refere que
os habitantes desta cidade e das montanhas não pagavam impostos ao seu
senhor, já que eram, na sua maioria, seus soldados de infantaria e cavalaria116,
ou seja, homens de guerra. Acresce ainda que, com a reconstrução e
repovoamento de Tetuão, nos anos 80 do mesmo século, e o aparecimento de
aldeias satélite súbditas destas cidades, a movimentação dos portugueses
ficou mais condicionada. Quer isto dizer que, em 1490, já seria muito difícil
os militares de Ceuta entrarem em território adversário sem tropeçar nas
forças de Barraxa ou de al Mandari. Ora, se Samice corresponde, de facto, a
Zemzem / Cencem, situado a meio caminho entre Ceuta e Tetuão, a
destruição da povoação, morte e cativeiro dos seus habitantes não só
renderia um bom saque, como desimpediria o caminho até Tetuão, tornando
mais segura a movimentação dos portugueses para sul.

- Ceuta durante o governo de D. Fernando de Meneses

É interessante verificar que raras são as notícias que nos chegam


sobre a acção governativa de D. Fernando de Meneses em Ceuta entre 1490 e
1509, ano em que é publicado o Livro do Armeiro-Mor, com o brasão de
armas do nosso biografado117.

116
Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte, pp.313-314. Tradução do
castelhano para português por Fernando Pessanha.

54
Fig. 4 - Armas de D. Fernando de Meneses, in Livro do Armeiro-Mor, de João
do Cró (1509). A.N.T.T., Casa Real, Cartório da Nobreza, Livro 19, fl. 46.

117
A.N.T.T., Livro do Armeiro-Mor, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 19, fl. 46. Também o Livro da
Nobreza e da perfeição das armas dos reis cristãos e nobres linhagens dos reinos e senhorios de
Portugal, de António Godinho, escrivão da Câmara de D. João III, apresenta o brasão de armas dos
Menezes. A.N.T.T., Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 20, Livro da Nobreza e da perfeição das
armas dos reis cristãos e nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal, fl.IX.

55
Com efeito, as crónicas de D. João II e de D. Manuel I não fazem
qualquer referência dignas de registo. Apenas D. Jerónimo de Mascarenhas
refere que, depois dos feitos bélicos contra Targa e Samice, D. Fernando
voltou para o reino, deixando em Ceuta “un criado suyo llamado Pedro
Bardas”118, para além de investigadores como Jorge Correia e Isabel e Paulo
Drumond Braga também o referirem como capitão interino na lista de
capitães e governadores de Ceuta119. Trata-se, portanto, do general que ficou
a capitanear Ceuta em nome de D. Fernando de Meneses.
O silêncio das fontes documentais relativamente a conflitos
militares entre 1490 e 1509 poderá reflectir, desde logo, que o governo de D.
Fernando correspondeu a um período de relativa estabilidade. De facto, não
há qualquer notícia de cercos, como aconteceu em 1418-1419, em 1458, em
1464 ou em 1476. Pelo contrário. Não só não há referência a situações de
guerra dignas de registo, como ainda se deu início às obras de fortificação de
Ceuta. Sabemos que por volta de 1480, provavelmente durante a capitania de
João de Noronha, tio de D. Fernando de Meneses, deu-se início a um
programa de renovação das defesas da cidade, uma vez que, durante as
primeiras décadas do domínio português foram mantidos os sistemas
defensivos muçulmanos. Como é sabido, no reinado de D. Manuel I foi
permanente a actividade construtiva, reforçando-se os dispositivos
defensivos das praças já conquistadas ou construindo outras de raiz. Diz-nos
Damião de Góis que em 1495, pouco depois de D. Manuel I ter subido ao
trono:

118
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 67, p.261.
119
Jorge Correia, Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África - Da tomada de Ceuta a
meados do Séc. XVI, p.68; Isabel Drumond Braga & Paulo Drumond Braga, Ceuta Portuguesa (1415
– 1656), p.187.

56
“proveu em muita abastança todolos lugares dalém, assi de
mantimentos, como de gente de pé, & de cavalo, artelharia, & outras
munições, acrecentando hos ordenados, soldos, & mantimentos aos
capitães, adais, & outros oficiais, & assi aos moradores, & outra gente de
guerra…”120.

Naturalmente que o mesmo ocorreu em Ceuta. Convém recordar


que D. Fernando de Meneses governou a cidade do Estreito durante os
últimos cinco anos de vida de D. João II e durante os primeiros catorze anos
do reinado de D. Manuel I, beneficiando, portanto, da atenção que o
Venturoso dispensou para prosseguir a guerra em África. É seguramente
nesse sentido que, em 1499, o cavaleiro e morador na cidade de Ceuta, Rui
Vaz, é nomeado vedor e escrivão das obras da cidade. Também em 1503,
encontramos Luís Mendes Correia como encarregado das obras em Ceuta, o
qual recebeu do rei, entre Junho desse ano e Maio de 1506, a quantia de
1.148.500 reais em materiais de construção, entre os quais se destacam 2.468
moios de cal, o que mostra bem a dimensão das empreitadas. De resto, a
corte continuou a despender somas avultadas para as obras de fortificação de
Ceuta durante os anos correspondentes à capitania de D. Fernando. Exemplo
disso são os 728.064 reais que o vedor Nuno Gato recebeu para esse fim, já
em 1508123.

120
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo XI, p.11.
121
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 14, fl. 30v.
122
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel, liv. 38, fl.62; Documento publicado por A. Braamcamp
Freire, in Archivo Historico Portuguez, Vol. IV, Cartas de quitação de D. Manuel, Nº 463, p.367.
123
Pedro Dias, A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos 1415 – 1769, p.37. Do mesmo autor ver
também História da Arte Portuguesa no Mundo – O Espaço Atlântico (séculos XV – XIX), p.25.

57
Com efeito, o governo de D. Fernando de Meneses corresponde a
um momento de grande actividade construtiva na cidade. A campanha de
obras para a construção do atalho, que se arrastou ao longo o séc. XV, ainda
era uma realidade no início do séc. XVI. É o que Valentim Fernandes nos
descreve para os anos de 1505 e 1507:

“Nesta cidade fizeram os Christãos hũa cerca noua pequena, assy


que da cerca grande ata esta pequena, he despouorado, e quebram cada dia
as ditas casas e fazem vinhas e pomares e semeam trigo e ceuada etc, porque
os Mouros vinham se esconder e faziam mal aos Christãos”124.

Esta descrição vai, aliás, ao encontro da célebre gravura de Ceuta,


publicada no Civitates Orbis Terrarum, de Georg Braun, onde é visível o
desaparecimento de edifícios entre a cidade portuguesa, concentrada no
quadrângulo do istmo e a extremidade da península. À excepção do forte de
vigilância situado no cimo do monte Hacho, os portugueses foram
desmantelando (e consequentemente despovoando) toda a área
compreendida entre o promontório e a cerca da cidade, sendo este terreno
transformado em zona de cultivo para abastecimento da população125.

124
Valentim Fernandes, Description de la côte d'Afrique de Ceuta au Sénegal par Valentim Fernandes
(1506/1507). (A Descripçam de Ceuta por sua Costa de Mauritania e Ethiopia pellos Nomes
Modernos Prosseguindo as Vezes Algũas Cousas do Sartão da Terra Firme), p.20. A primeira
publicação do manuscrito de Valentim Fernandes foi realizada por Pierre Cénival e Th. Monod (trad.),
Description de la Côte d'Afrique de Ceuta au Sénégal, Paris, Larose, 1938. Dois anos mais tarde,
António Baião publicou o manuscrito em português. O Manuscrito “Valentim Fernandes”, oferecido
à academia por Joaquim Bensaúde, António Baião (ed. lit.), Lisboa, Academia Portuguesa de
História, 1940. Especificamente sobre as praças marroquinas vejam-se as páginas 33-39. Acerca das
informações sobre Ceuta facultadas por Valentim Fernandes ver ainda Carlos Gozalbes Cravioto,
Ceuta en los portulanos medievales Siglos XIII, XIV, XV, p.86.

58
Fig. 5 – Representação de Ceuta no Civitates Orbis Terrarum, de Georg Braun
(1572).

Note-se, aliás, que é exactamente durante o governo de D.


Fernando de Meneses que surgem duas obras da maior importância para o
conhecimento do que foi Ceuta durante a primeira década do séc. XVI: a
Descripçam de Ceuta por sua Costa de Mauritania e Ethiopia pellos Nomes

125
Jorge Correia, Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África - Da tomada de Ceuta a
meados do Séc. XVI, p.105. Ver também Carlos Gozalbes Cravioto, Ceuta en los portulanos
medievales Siglos XIII, XIV, XV, p.87.

59
Modernos Prosseguindo as Vezes Algũas Cousas do Sartão da Terra Firme,
do já referido Valentim Fernandes, produzido entre 1505 e 1507, e o
Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, redigido em 1506.
Obras que, apesar de não terem sido publicadas no seu tempo e pouco terem
circulado em manuscrito, dão-nos hoje a conhecer informações
extremamente pertinentes quanto à geografia e urbanismo da “grande e
excelente cidade de Cepta (…) princípio das terras de África”126 no dealbar
da centúria quinhentista. Também uma carta de Correa da Franca, datada de
1507, revela-se do maior interesse, na medida em que nos dá conta do
processo de redução dos limites da cidade. Aqui transcrevemos parcialmente
o documento:

“se mantubo esta estendida ciudad de Ceuta com su antigua


muralla (…), pero ya se hallaba por muchas partes arruinada y com brechas
tales que con facilidad se podia entrar, y más por el frente que mira a
España; por lo que el rey don Manuel mandó la reconociessen hombres
prácticos de la guerra e inteligentes en el modo de fortificar, a quienes
pareció que, respecto ser preciso haber crecido gasto en el reparo de los
muros y que éste se devia sempre continuar, y que su âmbito prdía mui
numerosa guarnición en caso que llegase el tiempo que la ciñesen com
asedio regular, era conveniente reducirla a estado que com poca gente se
pudiese defender. Y así no quedaría tanta longitud de muro necessitado a
reedificar. Conformándose pues el rei com esta idea, se hubo de empreender
y, no siendo el número de sus havitadores cristianos igual, sino muchísimo

126
Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo De Situ Orbis, I Parte, p.52.

60
menor del que tenian los moros al tiempo que el rei don Iuan la conquistó, las
más de las casas eran ya reducidas a tierras de //56v labor, viñas y
arboledas.
314. Por los frentes de oriente y occidente y por lo más hondo y
estrecho cortaron la ciudad, quedando el de oriente com latitud de ciento y
cinco toesas y el de occidente com ciento y veinte y cinco, sin incluir los
antíguos brazos o espigones que por ambos costados salen al mar. Y las
puertas quedaron en médio de estos frentes. La cara que mira al norte, com
la longitud de doscientas setenta y dos toesas, y la que mira al sur con de
doscientas treinta y dos, dejando las puertas de estos muros sin tocar.
La obra se había según costumbre y necesidad de aquellos tempos,
y en los presentes se demuestra en la muralla que mira al oriente, quedando
entonces conforme a ésta la que mira al occidente. En su âmbito quedaron la
catedral, combentos de Santo Domingo y el que en el presente tiempo es de
descalzos trinitários, ermitas de Nuestra Señora de África, San Antonio y
San Blas, palácio de los capitanes governadores y menos de quinientas
casas; cuasi todo el demás suelo se redujo también a huertos, viñas y
arboledas que poseían sus antíguos dueños, dejando para el común un
espácio que llamaron el Revellín y era desde el frente que ahora es de los
ornos de la munición y huerta interior del nuevo palácio del governador
hasta entonces la nueba muralla de la cuidad”127

127
Carta de A. Correa da Franca. Transcrito de Historia de la muy noble y fidelíssima ciudad de Ceuta,
edición de Mª del Carmen del caminho, Ceuta, Ciudad Autónoma, 1999, pp.158-159.

61
Em 1508, D. Manuel I escreve a D. Fernando de Meneses, pedindo-
lhe para colocar no governo de Ceuta o seu filho D. Pedro de Meneses, 2º
conde de Alcoutim, que nessa altura já tinha idade suficiente para o
desempenho do cargo. Porém, de acordo com Jerónimo de Mascarenhas, o
2º conde de Alcoutim não deve ter partido logo, uma vez que várias
memórias de 1509 indicam continuar a governar por essa altura Pedro
Barbas128. Por outro lado, também Damião de Góis refere o governo de D.
Pedro de Meneses entre 1512 e 1517:

“Nesse anno de M.D.ii. passou dom Pedro de meneses conde


Dalcoutim, filho de dom Fernando de meneses Marques de Villa Real, a
Septa, onde esteue por capitam, & gouernador da cidade cinco anos”129.

Esta informação vem reforçar a ideia de que D. Fernando terá


continuado a exercer a sua influência no governo de Ceuta durante a
capitania interina de Pedro Barbas, entre 1509 e 1512130, até tomar posse o
seu filho, D. Pedro de Meneses. Aliás, é o próprio Bernardo Rodrigues que,
ao escrever sobre o ano de 1511, louva os bons serviços do marquês de Vila
Real, dando a entender que por então ainda continuaria ligado ao governo da
cidade e referindo tratar-se de um período de estabilidade:

“Cepta o marquês de Vila Real e depois todos seus irmãos, todos

128
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 67, p.261.
129
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulos XL, p.353.
130
É o próprio Pedro Barbas que, ainda em 1512, escreve a D. Manuel I acerca do cerco de Arzila. Ver
A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte I, maço 11, n.º 70.

62
capitães excelentes e afamados; de todos alcançou vitorias e nunca ouve
revés, como polos sucesos da guerra destes lugares de nosso tempo”131.

Foi exactamente entre o fim do governo de D. Fernando de


Meneses, coadjuvado por Pedro Barbas, e a tomada de posse de D. Pedro de
Meneses que teve lugar a renovação de algumas estruturas da cidade. É nesse
sentido que António Carvalho, vedor e recebedor das obras de Ceuta,
recebeu 1.280.500 reais em materiais de construção para as obras de 1509 e
1510132. Foi também em 1511 que chegou de Portugal o mestre Francisco
Danzilho133, para dar início a trabalhos direccionados para três aspectos das
construções militares da cidade: o Baluarte e Porta da Almina, o castelo do
conde e as couraças - obras que continuaram já durante o governo de D.
Pedro de Meneses134.
Resta-nos perceber a que se deveu a intensa actividade construtiva
verificada no tempo de D. Fernando. É certo que quando este nobre chegou
ao governo da cidade, as estruturas defensivas de Ceuta já se encontrariam
muito débeis. Ainda que a contínua realização de obras de manutenção fosse
uma constante numa praça de guerra como Ceuta, há que ter em
consideração que as arquitecturas militares não tinham sofrido grandes
alterações aquando da passagem da cidade para domínio português. Por

131
Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Vol. I, Capítulo XIV, p.58.
132
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv.11, fl. 66 v. Documento publicado por A. Braamcamp
Freire, in Archivo Historico Portuguez, Vol. I, p.288.
133
Mário Jorge Barroca, “Tempos de Resistência e de Inovação: a arquitectura militar portuguesa no
reinado de D. Manuel I (1495 - 1521) ”, in Portvgalia, Vol. XXIV, p.101.
134
O que se conhece destas obras foi medido pelo mestre Boytac e Bastião Luiz a partir de 28 de Junho
de 1514. Ver Jorge Correia, Implantação da Cidade Portuguesa no Norte de África - Da tomada de
Ceuta a meados do Séc. XVI, p.112.

63
outras palavras, a degradação das estruturas defensivas foi sendo tolerada
até à entrada no séc. XVI, quando o uso crescente de artilharia começou a
mudar o modo de se fazer guerra e a impor a necessária actualização dos
modelos de fortificação.
No entanto, estamos convencidos de que outro motivo terá sido
determinante. É que foi exactamente durante o governo de D. Fernando de
Meneses que o reino de Granada foi conquistado pelos Reis Católicos, o que
fez com que o Norte de Marrocos começasse a receber uma vaga migratória
de refugiados muçulmanos da Andaluzia. Refugiados, sublinhe-se, que se
estabeleceram em cidades como Xauen e Tetuão e que muito contribuíram
para a reconstrução e repovoamento das mesmas, de onde passaram a fazer
guerra por terra e por mar aos portugueses instalados em Ceuta e em Alcácer
Ceguer, Tânger e Arzila. Usando as palavras de Guillermo Gozalbes Busto:

“las únicas fuentes de riqueza que tuvo para subsistir fueron las
producidas por la guerra, en tierra contra las fronteras lusitanas, en el mar
capturando toda presa cristiana que se ponía al alcance y poder de las
fustas”135.

Aliás, os três mil prisioneiros cristãos referidos por Leão-o-


Africano nas masmorras de Tetuão136 – ainda que se trate de um número

135
Guillermo Gozalbes Busto, “Convivencia judeo-morisca en el exilio”, in Espacio, Tiempo y
Forma, série IV, Hª Moderna, T.6, p.86.
136
Juan León Africano, Descripción General del África, Terceira Parte, p.303.

64
evidentemente exagerado137 - dão conta de que a actividade dos muçulmanos
contra as praças portuguesas do Norte de Marrocos era intensa, ainda que,
como anteriormente referimos, as fontes não refiram nenhum cerco ou
situação de guerra digna de registo durante o governo de D. Fernando de
Meneses. Seja como for, cabia ao governador zelar pela segurança da sua
praça, principalmente quando as estruturas defensivas começavam a
revelar-se obsoletas face aos avanços tecnológicos da guerra e face a um
adversário que, com a conquista de Granada e consequente exílio no Norte
de Marrocos, se tornava cada vez mais numeroso.

137
Sobre a problematização destes números veja-se Guillermo Gozalbes Busto, “Las Masmorras de
Tetuán (Contribuición para el estúdio de la Historia de Marruecos)”, in Biblioteca Española de
Tetuán, pp.247-248.

65
66
A atribuição de títulos nobiliárquicos

- D. Fernando de Meneses e a criação do Condado de Alcoutim

Como anteriormente vimos, D. Fernando de Meneses voltou ao


reino depois dos feitos bélicos contra Targa e Samice. A satisfação de D. João
II foi de tal ordem que, no mesmo ano destes feitos, cedeu a D. Fernando,
expressamente pelo grande desempenho militar demonstrado, os direitos
reais de Rio Maior, incluindo a alcaidaria do seu castelo, o que representou a
primeira doação à Casa de Vila Real138. Sublinhe-se que, nesta altura, D.
Fernando de Meneses ainda não era possuidor de qualquer título. Mas essa
situação havia de mudar com a chegada ao trono de D. Manuel I. Em 11 de
Outubro de 1496, encontrava-se o Venturoso em Torres Vedras, quando
determinou passar carta a D. Fernando, “do mesmo assentamento, que tinha
seu pai sendo conde, que ainda era vivo, mas já marquês de Vila Real” e, em
15 de Novembro de 1496, estando el-rei D. Manuel em Muge, fê-lo senhor
de Alcoutim, pelos seus serviços “e pelo devido em que a nós he tão
chegado”.
Segundo D. Jerónimo de Mascarenhas e Anselmo Braamcamp
Freire, D. Fernando de Meneses casou por amor e contra a vontade do seu pai
com D. Maria Freire de Andrade139, donzela que, alegadamente, era muito

138
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, p.124.
139
Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de Ceuta, Capitulo 49, p.196; Anselmo
Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Terceiro, p.146.

67
formosa. De resto, este matrimónio, que se terá realizado em 1496, parece ter
contado com o aval do rei D. Manuel I, primo de D. Fernando140. Não
podemos confirmar se D. Fernando de Meneses casou ou não por amor, seja
como for, é indiscutível que foi essa união que esteve na origem da criação
do título. Mas perguntemo-nos: quem era D. Maria Freire de Andrade? Era a
senhora de Alcoutim141, da linhagem dos Freire de Andrade142, senhores da
vila de Bobadela, hoje concelho de Oliveira do Hospital. Foi, portanto, pelo
casamento com D. Maria Freire de Andrade que D. Fernando de Meneses se
tornou senhor de Alcoutim, vila que D. Manuel I elevou a condado a favor de
D. Fernando, fazendo-lhe doação de juro e herdade para que os primogénitos
desta casa se tornassem condes de Alcoutim. É Damião de Góis que no-lo
diz:

“fez Conde Dalcoutim dom Fernando de Meneses, filho de dom


Pedro de Meneses, primeiro Marques de villa Real & lhe concedeo, & fez
graça, & merce, que dali por diante os filhos mais velhos legítimos dos
Marqueses de villa Real se chamassem Condes Dalcoutim”143.

140
Assim era porque a marquesa Dona Brites, mãe deste marquês, era prima com a irmã da infanta
Dona Brites, mãe de D. Manuel I. Não só esta mas outras mercês lhe fez el-Rei pelos seus
merecimentos, porque desde os primeiros anos o serviu o marquês conseguindo reputação. São vários
os documentos que fazem referência ao grau de parentesco. Veja-se, a título de exemplo: A.N.T.T.,
Chancelaria de D. Manuel I, liv. 41, fl. 121; A.N.T.T.; Chancelaria de D. Manuel I, liv. 4, fl. 17v.
141
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 5; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40,
fl. 21v; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 32, fl. 50.
142
Sobre a linhagem dos Freire de Andrade veja-se Óscar Caeiro Pinto, A Linhagem de João Freire de
Andrade, 1º Senhor de Alcoutim, Albufeira, Arandis Editora, 2014.
143
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo XVII, p.16.

68
Também Frei João de São José, na sua Corografia do Reino do
Algarve, alude à criação do título a favor de D. Fernando de Meneses,
quando se refere a Alcoutim:

“Esta vila é da casa de Vila Real, por respeito a D. Maria Freire,


filha e herdeira de João Freire, senhor de Alcoutim, a qual casou com D.
Fernando de Meneses, segundo Marquês de Vila Real- El-Rei D. Manuel
estando em Muja, depois de fazer Conde de Alcoutim este D. Fernando
acima dito, que foi filho de D. Pedro, primeiro Marquês de Vila Real, lhe fez
graça e mercê deste condado e título de juro, de maneira que os filhos
legítimos mais velhos do Marquês de Vila Real se intitulassem Condes de
Alcoutim”144.

Refira-se que se tratou de uma distinção rara, atribuída


perpetuamente, e em que o monarca previa a titulação simultânea do senhor
da Casa e do seu sucessor. Naturalmente que também foi cedido a D.
Fernando o senhorio de Alcoutim com todas as rendas, direitos e jurisdições,
tal como possuía a sua esposa, D. Maria Freire. Vários documentos do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo revelam a actividade administrativa
levada a cabo por D. Fernando enquanto conde de Alcoutim,
nomeadamente, as confirmações de privilégios e mercês atribuídas pelos
monarcas anteriores145. É nesse sentido que, em 17 de Julho de 1497, por

144
Frei João de São José, “Corografia do Reino do Algarve”, in Duas Descrições do Algarve do Século
XVI, Livro I, Capítulo IV, pp.56-57.
145
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 32, fl. 50; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 5;
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 21; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 21 v.

69
Fig. 6 – Alcoutim representado em O Livro das Fortalezas, de Duarte de
Armas (1509). Vista de sul para norte. A.N.T.T., PT-TT-CF-159_m0023.TIF

Fig. 7 – Alcoutim representado em O Livro das Fortalezas, de Duarte de


Armas (1509). Vista de este para oeste. A.N.T.T., PT-TT-CF-159_m0023.TIF

70
exemplo, D. Fernando consegue que a vila de Alcoutim veja confirmados os
privilégios e liberdades que tinham sido outorgadas aos homiziados de
Mértola146. Quanto a Alcoutim, devemos referir ainda que O Livro das
Fortalezas, de Duarte de Armas, apresenta representações desta vila de
1509147, data que corresponde ao último ano do governo de D. Fernando de
Meneses em Ceuta.

Ao que parece, o chefe activo da Casa de Vila Real, nos primeiros


anos do reinado de D. Manuel I, já não era D. Pedro de Meneses mas sim o
seu filho primogénito, D. Fernando. O certo é que, por então, era este a
participar nos actos oficiais do governo. Recordemos, a este propósito, que o
conde de Alcoutim acompanhou o rei a Valença de Alcântara, quando este foi
receber por mulher D. Isabel, viúva do príncipe D. Afonso, filha dos Reis
Católicos: “pera o acompanharem elegeo (…) dom Fernando de Meneses
Conde Dalcoutim”148. Saliente-se, também, que D. Fernando esteve presente
num momento de particular solenidade: a transladação do corpo de D. João
II para a o Mosteiro da Batalha, em 1499149.
As benesses régias, contudo, não se resumiram ao título de conde
de Alcoutim. De entre estas destacam-se os privilégios às suas terras de Rio

146
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 32, fl. 10.
147
Já em 1507 tinha Duarte de Armas seguido na armada de D. João Meneses, numa autêntica
operação de espionagem no sentido de debuxar Azamor, Mamora, Larache e Salé, na costa de
Marrocos, onde D. Manuel I planeava novas ofensivas militares. Ver Damião de Góis, Chronica do
Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, Parte II, Capítulo XXVII, p.208; Teresa Lacerda, “D. João de
Meneses. Um retrato da Nobreza Portuguesa em Marrocos”, in Estudos de História Luso-
Marroquina, p.126. Lamentavelmente, não é conhecido nenhum dos desenhos produzidos nesta
missão.
148
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo XXIV, p.24.
149
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânia, Capítulo CCXVI, pp.157-159.

71
Maior, a doação de bens em Vila Real, a concessão dos direitos reais de
Tavira150 e, em 25 de Novembro de 1496, a nomeação para o cargo de
fronteiro-mor do Algarve, do mesmo modo como o fora o infante D.
Fernando151. D. Pedro de Meneses, que em 1498 ficou com o duque de
Bragança a auxiliar D. Leonor na regência, durante a viagem de D. Manuel I
a Castela, faleceu em 1499. De acordo com Damião de Góis, a sua morte
causou grande prostração na corte, sobretudo no monarca, que se encerrou
nos dias seguintes à sua morte, pela grande consideração que lhe tinha152.
Com a morte de D. Pedro, D. Fernando herdou todos os bens e
privilégios do pai, não lhe sendo, no entanto, renovado o título de conde de
Ourém, concedido a D. Pedro de Meneses pelo Príncipe Perfeito, depois de
o confiscar aos Braganças. D. Manuel I, ao procurar restabelecer a Casa de
Bragança, restitui-o a D. Jaime, compensando a Casa de Vila Real com a
concessão vitalícia de vários senhorios, nomeadamente, os senhorios de
Valença do Minho, Caminha e Valadares, fazendo-os igualmente condes da
primeira vila e detentores dos direitos reais de Viana da Foz do Lima e
Monção153. Todas estas merçês, inegavelmente compensadoras da perda do

150
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, p.128.Ver também Jerónimo de Mascarenhas, Historia de la Ciudad de
Ceuta, Capitulo 49, p.196; Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Terceiro,
p.146.
151
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Livro VI,
p.199.
152
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo XXXIIII, pp.35-36.
153
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, pp.128-129.

72
título de conde de Ourém, transformava D. Fernando de Meneses no único
detentor das terras do alto Minho e titular da terceira casa mais rendosa do
reino.
Deste modo, D. Fernando de Meneses acabou por não deter o título
de conde de Alcoutim durante muito tempo, já que com o falecimento do seu
pai, em 1499, passou a ser o segundo marquês de Vila Real, pelo que o título
de conde de Alcoutim passou para o seu filho primogénito, Pedro de
Meneses. É nesse sentido que, logo nos anos seguintes, o nosso biografado já
aparece na documentação como “marquês de Vila Real, Conde de Valença,
senhor de Almeida e Caminha, capitão por el-Rei da cidade de Ceuta”154.
A proximidade entre o rei Venturoso e D. Fernando de Meneses
ficou bem marcada em 1502, quando o marquês de Vila Real acompanhou o
monarca na restrita viagem de peregrinação a Santiago de Compostela. D.
Manuel I, querendo passar desapercebido entre os demais, deu instruções
para que todos tratassem D. Fernando como se fosse a principal figura da
comitiva, o que resultou numa honra para o marquês:

“Nesta romagem leuou consigo (…) dom Fernando segundo


Marques de villa Real, a quem el Rei mandou depois de ser em Galliza, por
nam querer que se soubesse qual dos da companhia era, que todoa
acatassem como a sua pessoa”155.

154
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 13, fl. 14. Ver também A.N.T.T., Chancelaria de D.
Manuel I, liv. 38, fl. 92; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 44, fl. 89v; A.N.T.T., Chancelaria
de D. Manuel I, liv. 4, fl. 17v; A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 21, fl. 7.
155
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, I, Capítulo LXIIII, pp.85-86.

73
- Os alvores de uma política nobiliárquica no Algarve

Como anteriormente referimos, é o título de conde de Alcoutim que


serve de pretexto para abordarmos o percurso deste capitão de Ceuta, uma
vez que esta distinção foi atribuída de modo a reconhecer os serviços
prestados por D. Fernando e seus antecessores no Norte de África. Aliás, os
feitos de armas contra Targa e Samice estão plenamente subentendidos na
tença que lhe fora atribuída pelo monarca, em 13 de Julho de 1497:

“A dom Fernando de Meneses, Conde de Alcoutim, querendo em


parte galardoar os muitos serviços prestados nas partes de África, na
guerra contra os mouros, com trabalhos e perigos e despesa de sua fazenda,
lhe dava a tença, em cada um ano, desde o primeiro de Janeiro de 1497, em
cada um ano, enquanto sua mercê fosse, 100.000 rs. brancos, os quais ele já
tinha por uma outra semelhante carta de padrão, dada por el-rei D. João II,
a qual fora rota ao assinar desta. Francisco de matos a fez”156.

Se seguirmos a documentação do Arquivo Nacional da Torre do


Tombo relativa a D. Fernando de Meneses, rapidamente nos apercebemos de
que esta tença foi confirmada poucos anos depois, em 20 de Junho de 1506:

“Ao marquês de Vila Real, confirmação de uma carta de D.


Manuel, dada em Évora, a 13 de Julho de 1497, e feita por Francisco de

156
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 40, fl. 21.

74
Matos, na qual, querendo galardoar os serviços de D. Fernando de
Meneses, conde de Alcoutim, em África e na guerra dos mouros, lhe
concedia a tença de 100.000 rs. brancos, como ele tinha por outra
semelhante carta de D. João II”157.

Com efeito, as mercês que recaíram sobre D. Fernando foram


sempre atribuídas atendendo à sua experiência de guerra e aos serviços
continuamente prestados na luta contra os mouros em África, onde correra
grandes perigos e fizera grande despesa, uma alusão à administração directa
de Ceuta, que exerceu entre 1490 e 1509, dando corpo à prestigiante política
da dinastia de Avis de continuação da Reconquista em Marrocos e aos
projectos cruzadísticos manuelinos158. De referir que estes serviços
começaram com o governo de D. Pedro de Meneses, seu bisavô e primeiro
capitão da cidade, logo após a conquista de Ceuta, em 1415, e que se
prolongaram durante os oitenta anos seguintes. Aliás, como anteriormente
referimos, já este bisavô de D. Fernando tinha sido agraciado pelos seus
serviços, pelo que D. João I fê-lo conde de Vila Real, em 1424, e D. Duarte
fê-lo conde de Viana do Alentejo, em 1434. Do mesmo modo, D. Fernando
de Noronha, avô do nosso biografado, herdou o título de conde de Vila Real e
D. Pedro de Meneses, pai do biografado, foi feito 3º conde de Vila Real, 1º
marquês de Vila Real e 7º conde de Ourém. Note-se, porém, que estes são
títulos e mercês cujo património e respectivos rendimentos se encontravam
concentrados no Alentejo, norte e centro do reino.

157
A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv. 38, fl. 9.
158
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, p.128.

75
Com efeito, é a criação do condado de Alcoutim, em 1496, que
inaugura a política manuelina de atribuições de mercês e de títulos
nobiliárquicos relativos ao Algarve de Aquém, como reconhecimento pela
participação da nobreza portuguesa na cruzada lusa nos Algarves de Além-
mar. Algo que, refira-se, não era inédito, uma vez que, já em 1471, Henrique
de Meneses, capitão de Alcácer Ceguer, tinha participado na conquista de
Arzila159 e que em Novembro do mesmo ano D. Afonso V fê-lo conde de
Loulé160, título que teve por base um acordo em que D. Henrique de Meneses
recebia o condado de Loulé em troca da devolução à coroa do condado de
Valença. Sem dúvida, uma troca que foi ao encontro dos interesses
estratégicos da coroa e que, eventualmente, poderá ter chamado a atenção da
monarquia para as vantagens de fixar no Reino do Algarve alguma nobreza
capaz de socorrer as praças recém-conquistadas na costa marroquina.
Durante muito tempo subsistiu a ideia de que no Algarve não
haviam grandes senhores, que os fidalgos seriam muito poucos e que a
nobilitas algarvia

“é pequena de pergaminhos não muito carregados de feitos


heróicos. Serviços ao rei no Norte de África, um ou outro feito honroso em

159
Trata-se do filho de D. Duarte de Meneses, 1º capitão de Alcácer Ceguer, e neto de D. Pedro de
Meneses, 1º Capitão de Ceuta. Em 1471, D. Henrique de Meneses participou na conquista de Arzila
com a Armada do Reino do Algarve. Engana-se Damião de Góis quando refere tratar-se de D. Duarte,
pois este faleceu em 1464. O conde de Viana que participou na expedição foi o seu filho, D. Henrique.
Ver Damião de Góis, Chronica do Principe Dom Joam, Capítulo XXI, pp.96-97. Depois da conquista,
D. Afonso V nomeou D. Henrique capitão de Arzila, capitania que devia acumular com a de Alcácer
Ceguer. Ver Rui de Pina, Chronica de El-Rei D. Afonso V, Vol. III, Capítulo CLXVI, p.65.
160
Sobre D. Henrique de Meneses veja-se Madalena Ribeiro, “O Conde D. Henrique de Meneses,
Capitão de Alcácer Ceguer e Arzila”, in A Nobreza e a Expansão. Estudos Biográficos, pp.145-158.

76
anteriores guerras com Castela, algum serviço destacado no oriente,
poucos no seu conjunto”161.

No entanto, esta ideia tem vindo a dissipar-se ao longo dos últimos


anos. Os estudos relativos ao envolvimento da nobreza no processo
expansionista têm vindo a demonstrar o envolvimento de um Algarve onde,
paulatinamente, se começou a fixar uma nobreza guerreira, nomeadamente,
em Tavira, principal porto de ligação com as praças portuguesas do Norte de
África. Já em 1577 escrevia Frei João de São José sobre “estes (nobres),
pouco de ricos e muito de bons cavaleiros. E, como isto assim seja, não
pouca obrigação tem o rei de os favorecer a todos com honras e mercês”162.
Frei João de São José referia-se, portanto, não a uma nobreza titulada, mas
antes à baixa nobreza. De facto, foi durante o reinado de D. Manuel I que os
serviços prestados pela nobreza portuguesa no Norte de África começam a
ser compensados com a atribuição de títulos, rendas e mercês com vista a
fixar no reino do Algarve alguma fidalguia de guerra. Fidalgos, sublinhe-se,
que muitas vezes acumulavam a alcaidaria das terras algarvias com a
capitania das praças norte-africanas. São vários os exemplos. É o caso de
Garcia de Melo, nomeado alcaide-mor de Castro Marim, em 1509, depois
dos serviços prestados à Coroa em Larache, Arzila e Safim163. Outro caso

161
Joaquim Romero de Magalhães,“Uma Sociedade Cristalizada”, in O Algarve da Antiguidade aos
nossos dias, p.274.
162
Frei João de São José, “Corografia do Reino do Algarve (1577)”, in Duas Descrições do Algarve do
Século XVI, pp.53-54.
163
A.N.T.T., Gaveta 20, Maço V, nº 14; Luís Miguel Duarte, “Garcia de Melo em Castro Marim (a
actuação de um alcaide mor no início do século XVI)”, in Revista da Faculdade de Letras, Historia,
Série II, Vol. 05, pp.131-149. Ver também Fernando Pessanha, Subsídios para a História do Baixo
Guadiana e dos Algarves Daquém e Dalém-mar, pp.81-82.

77
interessante é o de Simão Correia, que acumulava os cargos de provedor das
obras e vedor da fazenda em Arzila com o de alcaide-mor de Castro
Marim164. Acabaria por ser feito fidalgo da Casa Real e capitão e governador
de Azamor165.
O célebre Nuno Fernandes de Ataíde, ainda antes de acumular a
capitania de Safim com a alcaidaria do Alvor, em 1510166, já tinha recebido a
doação do monopólio da venda de sal no termo de Sagres, de modo a
“galardoar os seus feitos no Algarve dalém mar”167. Também Rui Barreto,
alcaide-mor de Faro e vedor da fazenda do Algarve, ficou como capitão de
Azamor, após a conquista da cidade pelo duque da Bragança, em 1513168. E
que dizer de D. João de Meneses, veterano e capitão das guerras de África
que, antes de morrer, foi agraciado com o título de conde de Aljezur169?
De resto, esta política de atribuições de mercês continuou durante o
reinado de D. João III. A título de exemplo, apresentamos o caso do capitão
de Tânger João de Meneses170, o púcaro, a quem foi atribuída a alcaidaria de

164
Veja-se, a título de exemplo, A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 18, n.º 1; A.N.T.T.,
Corpo Cronológico, Parte II, maço 18, n.º 104; A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 18, n.º
19; A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 18, n.º 36; A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II,
maço 18, n.º 68; A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 18, n.º 71; A.N.T.T., Corpo
Cronológico, Parte II, maço 18, n.º 94; A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 18, n.º 96;
A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 32, n.º 31.
165
Na Parte II do Corpo Cronológico do Arquivo Nacional da Torre do Tombo encontram-se dezenas
de documentos relativos a Simão Correia enquanto capitão e governador de Azamor. Veja-se, a título
de exemplo, A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 66, n.º 23.
166
Fernando Pessanha, “Nuno Fernandes de Ataíde, «o que nunca está quedo» – De alcaide de Alvor a
Capitão e Governador de Safim”, in Anais do Município de Faro, Vol. XXXIX, pp.47-59.
167
Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506 – 1542), p.34.
168
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XLVI, p.368.
169
Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, Tomo I, Liv. II, Capítulo I, pp.115-116.
170
D. Fernando de Meneses, História de Tânger Durante la Dominacion Portuguesa, Libro Segundo,
pp.79-80.

78
Albufeira171, ou o caso de António Leite, capitão de Azamor e Mazagão,
agraciado por D. João III com o cargo vitalício de alcaide de Arenilha, em
1542, ficando incumbido de defender e proteger a margem portuguesa do
Guadiana das incursões da pirataria berberesca172.
Os exemplos sucedem-se uns aos outros, porém, não é objectivo do
presente trabalho apresentar uma discriminação exaustiva dos fidalgos que
usufruíram de cargos, títulos, rendas e mercês no Algarve como pagamento
pelos seus serviços no Norte de África. Importa, no entanto, salientar que
foram os serviços de D. Fernando de Meneses e dos seus antepassados que
levaram à criação do título de conde de Alcoutim, consolidando uma
tendência que se viria a manter até ao abandono das praças marroquinas. De
resto, é interessante notar que esta tradição continuará a persistir apesar da
reformulação da estratégia norte-africana de D. João III, já em meados do
séc. XVI. É nesse contexto que continuamos a encontrar como governadores
ou “capitães generaes” do Algarve antigos governadores de Mazagão, como
Martim Correia da Silva e D. Gonçalo Coutinho173, ou ainda antigos capitães
de Ceuta e Tânger, como D. Duarte de Meneses ou D. Afonso de Noronha174.

171
António Maria Falcão Pestana de Vasconcelos, Nobreza e Ordens Militares. Relações Sociais e de
Poder (séculos XIV a XVI), Dissertação para doutoramento em História Medieval e do Renascimento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p.450.
172
Fernando Pessanha, Os 500 anos da Fundação de Arenilha, pp.57-71; “Ataques da pirataria à foz
do Guadiana e a acção de António Leite, alcaide-mor de Arenilha”, in Anais do Município de Faro,
Vol. LX, pp.63-94. Sobre a carreira de António Leite no Norte de África veja-se também Rui Jorge
Ferreira Henriques, “Quão grande trabalho é viver!” António Leite – circuitos da nobreza portuguesa
no sul de Marrocos (1513-1549), Dissertação para mestrado em História Moderna e dos
Descobrimentos apresentada à Universidade Nova de Lisboa, pp.66-115.
173
Luíz Caetano de Lima, Geografia histórica de todos os estados soberanos de Europa…, pp.330-333;
Damião António de Lemos Faria e Castro, Politica Moral, E Civil, Aula da Nobreza Lusitana, pp.86-87.
174
Luíz Caetano de Lima, Geografia histórica de todos os estados soberanos de Europa…, pp.330-333;
Damião António de Lemos Faria e Castro, Politica Moral, E Civil, Aula da Nobreza Lusitana, p.87.

79
80
D. Fernando de Meneses
“Numa mão a espada, noutra a pena”?

Não se pense, contudo, que D. Fernando de Meneses marcou o seu


tempo somente pela sua acção política e militar. O Renascimento português,
que se começou a fazer sentir a partir da segunda metade do séc. XV,
produziu grande número de poetas, historiadores e críticos que fizeram do
séc. XVI uma idade de ouro. Como adiante veremos, D. Fernando de
Meneses esteve entre estes homens.
Desde logo, a prensa teve um papel fundamental no renascer das
novas ideias, tendo esta nova tecnologia chegado através de tipógrafos
judeus vindos de Itália. Do mesmo modo, também o reino recebeu grandes
latinistas e poetas italianos, como o doutor Cataldo Áquila Sículo, autor
publicado em Lisboa, em Fevereiro de 1500, e cuja obra, de onde
destacamos um poema que celebra a conquista de Arzila e Tânger por D.
Afonso V, constitui um dos monumentos mais raros da tipografia
portuguesa. Este insigne latinista destacou-se ainda por ter sido o mestre de
D. Jorge, filho ilegítimo de D. João II175, e de outros membros da aristocracia,
entre os quais D. Pedro de Meneses, o filho do nosso biografado D. Fernando
de Meneses. De facto, são inúmeras as referências que atestam D. Pedro de
Meneses como aluno e discípulo de Cataldo. António Caetano de Sousa, por
exemplo, refere D. Pedro como “erudito, como se vê nas Obras de Cataldo

175
Ver Carta de D. Manuel I, de 30 de Janeiro de 1497, confirmando uma tença de D. João II ao Dr.
Cataldo Sículo. A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel I, liv.27, fl. 74 v. Documentos publicados por
Sousa Viterbo, in Archivo Historico Portuguez, Vol. II, pp.265-267.

81
Siculo, onde se lem diversas cartas para o Marquez, entaõ Conde de
Alcoutim, em que louva a sua eloquencia na Lingua Latina”176, para além das
abundantes referências que podemos encontrar nos estudos de Américo da
Costa Ramalho.
Porém, um documento publicado por Sousa Viterbo no Archivo
Historico Portuguez e ao qual foi atribuída a data de 1499 vem levantar a
hipótese de o próprio D. Fernando de Meneses ter sido instruído pelo grande
latinista. Apresentamos de seguida a transcrição do mesmo:

“Senhor Valentim Fernandes Moravo.


Agrada-me extremamente a vossa maneira de imprimir, embora tenha
certas sombras de germanismo, e seria muito mais elegante e perfeita se não
confiásseis tanto nos vossos aprendizes; a posteridade porém há-de
carregar toda a culpa não nelles mas em vós, que tão entendido sois na arte.
As minhas obras que me pedis para imprimirdes, estão ainda
demasiado toscas e carecidas de lima, e pouco dignas de um imprimidor de
tal nomeada. Em lugar d'ellas mando-vos uns poucos trabalhos que nos
anos atrás obtive do nosso mestre Cataldo. Procedei segundo o vosso
alvedrio; eu já procedi segundo o meu – Conde de Alcoutim”177.

Trata-se, sem dúvida, de um documento do maior interesse para o


conhecimento da arte da tipografia em Portugal, merecendo ser analisada em

176
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V,
p.203.
177
Carta do conde de Alcoutim a Valentim Fernandes. Documento publicado por Sousa Viterbo, in
Archivo Historico Portuguez, Vol. II, p.265. A tradução desta carta é devida ao erudito professor e
filólogo Sr. Epiphanio Augusto Dias.

82
pormenor. Contudo, não existe unanimidade em relação à autoria da carta.
Tal como aqui já foi referido, corria o ano de 1499 quando faleceu D. Pedro
de Meneses, o 1º marquês de Vila Real. Por sua morte, o filho D. Fernando de
Meneses, 1º conde de Alcoutim, tornou-se o 2º marquês de Vila Real; e seu
neto, D. Pedro de Meneses, passou a ser o 2º conde de Alcoutim. Quer isto
dizer que o autor da carta, que assina simplesmente como “Conde de
Alcoutim”, tanto pode ser D. Fernando como D. Pedro.
Sousa Viterbo atribui a autoria do documento a D. Fernando, sem
sequer equacionar a possibilidade de se tratar do seu filho D. Pedro178.
Também o rei D. Manuel II, ilustre bibliófilo, considerava a famosa carta a
Valentim Fernandes de Morávia como sendo da autoria de D. Fernando,
alegando que D. Pedro seria demasiado novo para escrever essa missiva e
falar em composições da sua autoria. Essa opinião é contrariada por Américo
da Costa Ramalho, que se limita a exaltar as precoces capacidades do jovem
D. Pedro179.
São vários os motivos que nos levam a pensar que a carta poderá
ser, efectivamente, da autoria de D. Fernando. Em primeiro lugar, é o próprio
Américo da Costa Ramalho que refere que D. Pedro terá nascido em 1487180.
Quer isto dizer que se o jovem D. Pedro fosse o autor da carta, teria apenas 12
anos quando escreveu a Valentim Fernandes de Morávia! Achamos pouco
provável, uma vez que o conteúdo da mesma revela que o autor era portador
de conhecimentos adquiridos ao longo dos anos. Na missiva enviada ao

178
Sousa Viterbo, Archivo Historico Portuguez, Vol. II, p.260.
179
Américo da Costa Ramalho, “Investigações sobre Cataldo Sículo”, in Humanitas, Vol. XVII-
XVIII, pp.155-156.
180
AAVV, Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Vol.19, pp.733-734.

83
impressor, o autor desculpa-se por não lhe enviar as suas obras para
impressão, já que as considerava toscas e indignas de serem publicadas. No
entanto, remetia-lhe as obras do mestre Cataldo, de quem as obtivera anos
antes. Ora, se o autor fosse realmente D. Pedro, com que idade as teria obtido
de Cataldo? Em criança? Algo bastante improvável, se tivermos em
consideração que D. Pedro só começou a ser ensinado pelo grande latinista
em 1498. Por outro lado, o autor tece rasgados elogios ao impressor, não
deixando de criticar algumas imperfeições cuja autoria atribui aos seus
aprendizes, nomeadamente, o gosto e as influências germânicas. Sentir-se-ia
um pré-adolescente com legitimidade e autoridade para fazer reparos a um
impressor como Valentim Fernandes de Morávia? E que compreenderia por
germanismos? Parece indubitável que o então conde de Alcoutim apreciava
a arte tipográfica e que lhe seguia os progressos, algo que fará mais sentido
para um homem de 36 anos181 que terá assistido à evolução desta arte, do que
para um jovem acabado de entrar na pré-adolescência.
Também outros motivos parecem indicar que o autor da carta fosse
D. Fernando de Meneses. Antes de mais, devemos ter em consideração que
D. Fernando não era apenas um homem das armas. Era um homem
sobretudo conhecido pela sua cultura, “pelo seu gosto pelas humaniores
litterae e pelas artes requintadas”182. Correspondia-se com o próprio

181
Segundo António Caetano de Sousa, D. Fernando de Meneses terá nascido por volta de 1463, o que
quer dizer que teria uns 36 anos em 1499. Cf. António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da
Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V, p.198. A idade de D. Fernando é também referida por
Cataldo Sículo em carta parcialmente publicada por Maria Luísa de Castro Soares in Do Classicismo
ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na actualidade, p.16.
182
Maria Luísa de Castro Soares, Do Classicismo ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na
actualidade, p.25.

84
Cataldo. Aliás, é a D. Fernando de Meneses que o grande latinista -
considerado por muitos como o introdutor do Humanismo em Portugal -
dirige a epístola em que defende o latim humanístico contra os ataques dos
que só conheciam o latim bárbaro medieval da maioria dos frades e de certos
escolásticos tradicionalistas183. Carta, sublinhe-se, onde Cataldo evidencia o
pensamento humanista de D. Fernando de Meneses. Isto vem demonstrar,
desde logo, que D. Fernando era um homem bastante culto, com uma
evidente sensibilidade para as Humanidades, independentemente de ter sido
(ou não) autor da célebre carta a Valentim Fernandes de Morávia.
Comprova-o não só a correspondência trocada com o insigne latinista como
também o cuidado que teve quando o escolheu para mestre do seu filho184. De
resto, Cataldo era um admirador assumido das virtudes de D. Fernando e
apreciava a sua dedicação à educação de D. Pedro, ao ponto de lhe dedicar
um paradigma185.

183
Esta carta de Cataldo Sículo a D. Fernando de Meneses foi publicada por Maria Luísa de Castro
Soares in Do Classicismo ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na actualidade, pp.14-15.
184
Veja-se a carta que Cataldo escreveu ao então conde de Alcoutim entre 1498 e 1499, quando se
preparava para começar a ensinar D. Pedro, e onde alertava para a necessidade de remuneração
adequada. Ver Américo da Costa Ramalho, “Investigações sobre Cataldo Sículo”, in Humanitas, Vol.
XVII-XVIII, p.140, nota1.
185
Américo da Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal, Vol. V, p.132.

85
86
Outros aspectos da vida de D. Fernando de Meneses

Exposto o perfil militar e humanista do nosso biografado, não


podemos dar por concluído o presente trabalho sem antes referirmos alguns
aspectos da sua vida após o seu governo em Ceuta. Como anteriormente
vimos, a capitania de D. Fernando de Meneses terminou oficialmente em
1509, ainda que, seguramente, se tenha mantido ligado ao governo da cidade
durante o período do capitão interino Pedro Barbas, entre 1509 e 1512, ano
em que o seu filho D. Pedro de Meneses tomou posse do governo da cidade.
Porém, o fim da sua capitania parece coincidir com uma crescente
degradação das relações com o monarca português. Com efeito, a “afeição
que D. Manuel lhe tinha”186 e a atenção que lhe dedicou no início do seu
reinado não se seguiu de outras distinções que destacassem o nosso
biografado como uma das personagens mais marcantes da sua época. Toda a
correspondência entre Cataldo e D. Fernando para os anos de 1511-1512
parecem indicar a degradação destas relações, que se terá iniciado a partir de
4 de Setembro de 1510, quando o monarca ordena a este nobre que lhe
restitua o castelo e as rendas de Ourém para os dar a D. Jaime, o duque de
Bragança, compensando-o, no entanto, com uma avultada tença187. Esta
atitude e certos comportamentos que a acompanharam levaram o marquês a
afastar-se da corte.
Não obstante a atenção que D. Manuel I inicialmente dispensou a

186
Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Terceiro, p.354.
187
Maria Luísa de Castro Soares, Do Classicismo ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na
actualidade, pp.25-26.

87
D. Fernando de Meneses, o marquesado de Vila Real foi moderadamente
acrescentado ao longo do seu reinado, quando comparado com outras casas.
Terá o Venturoso procurado evitar a constituição de um terceiro empório
senhorial, por temer eventuais desequilíbrios de poder, danosos à
centralização da Coroa?
Com o passar do tempo, esta retracção à promoção social da Casa
de Vila Real, despoletada pelos monarcas anteriores, foi sendo
compreendida por D. Fernando que, paulatinamente, se começou a
distanciar do governo de D. Manuel I. O cúmulo da indignação do marquês
contra o soberano terá sido a atribuição do título de conde de Vila Nova de
Portimão a D. Martinho de Castelo Branco188, por representar a ascensão de
novos indivíduos à esfera do poder, em detrimento da velha nobreza. D.
Fernando, inconformado, protestou contra esta nomeação alegando que o
seu irmão D. António deveria ser titulado antes de D. Martinho, em virtude
dos muitos serviços prestados no Norte de África, onde, como anteriormente
referimos, chegou a estar cativo, na altura em que deteve a capitania de
Ceuta189.
Face a um acumular de situações, indignado e com o orgulho
ferido, o marquês findou a gestão directa da praça de Ceuta, que herdara do
seu avô. Afastou-se da corte, retirando-se para as suas terras no norte do país,

188
A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte II, maço 8, n.º 72. Ao conde de Portimão, D. Martinho de
Castelo Branco, foram doadas as rendas da vila, que continuaram com os seus descendentes. Segundo
Damião de Góis, foi D. Martinho de Castelo Branco que, em apenas quatro meses, deu despacho à
armada destinada à conquista de Azamor, em 1513. Ver Damião de Góis, Chronica do Serenissimo
Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo LXVI, p.369.
189
Rui de Pina, Crónica de D. João II, Capítulo XXXV, p.67; Garcia de Resende, Crónica de D. João
II e Miscelânia, Capítulo LXXV, pp.63.

88
onde viveu exilado com a marquesa entre 1511 e 1517190. Desiludido e
despeitado em relação ao duque de Bragança191, seu primo, foi posto à
margem de empresas militares para as quais esperava ser convocado. Caso
notório foi a expedição enviada do reino para a conquista de Azamor, em
1513192, expedição militar cujo comando foi entregue ao duque de Bragança
e onde foi notória a ausência de D. Fernando e da casa de Vila Real193. Poucos
anos depois, em carta enviada ao rei, em 1517, D. Fernando apontava as
razões que o faziam sentir

“mui desestymado e despreciado de Vo s'Alteza e ca nestas


montanhas respondendo a capitolos ffalsos dados por meus imigos. E cando
me quero por no conto dos vosos parentes acho-me alem dos do quoarto
grão”194.

190
André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de
Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia. Actas do
Colóquio Internacional, p.130.
191
D. Fernando de Meneses teve disputas com o duque de Bragança relativamente ao casamento da
sua sobrinha D. Beatriz de Lara, filha de D. Joana e do condestável D. Afonso; o marquês queria casá-
la com o seu filho D. Pedro de Meneses, conde de Alcoutim, enquanto o duque queria casar-se com a
mesma pessoa. A situação fez com que o marquês protestasse veementemente ao rei, em 10 de Agosto
de 1515. Ver André Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e
Meneses de Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia.
Actas do Colóquio Internacional, p.130, nota 120.
192
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, III, Capítulo XLVI, pp.367-368;
Jerónimo Osório, Biografias da História de Portugal – Volume XXVII – D. Manuel I, p.157.
193
João Paulo Oliveira Costa & Vítor Luís Gaspar Rodrigues, A Batalha dos Alcaides – 1514. No
Apogeu da Presença Portuguesa em Marrocos, p.29.
194
Carta de D. Fernando de Meneses a D. Manuel I, em 24 de Janeiro de 1517. Excerto publicado por
Maria Luísa de Castro Soares in Do Classicismo ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na
actualidade, p.26.

89
Também outros motivos terão estado, seguramente, na origem da
degradação das relações com o Venturoso. É o que podemos depreender
pelos conflitos com a autoridade real relativamente à restrição de antigas
liberdades senhoriais, codificadas pela legislação e submetidas às
intervenções dos oficiais régios. Nos começos de Março de 1521, existiam
de quinze a vinte dossiers de processos contra o marquês de Vila Real, que os
encarava como um atentado à Casa de Vila Real e à hierarquia sagrada da
aristocracia195. D. Fernando de Meneses, como homem cultivado no domínio
das letras, insurgia-se juridicamente contra a legislação partidária que
procurava diminuir o poder aristocrático, contestando as disposições dos
novos forais outorgados por D. Manuel I, onde eram reduzidos os privilégios
dos nobres.
Só no final do reinado do Venturoso, após um certo desanuviar de
tensões com a corte, D. Fernando voltou a comparecer em cerimónias
públicas. Esteve presente no casamento do monarca com a infanta D.
Leonor196 e assistiu à morte do seu primo D. Manuel I197. Viria a falecer
poucos anos depois, em Almeirim, em 1523 ou 1524. Jaz no Convento de S.
Francisco de Leiria, para onde foi trasladado do de Santarém, em que esteve
depositado198. Para além de D. Pedro, que lhe sucedeu no título, teve outros

195
Maria Luísa de Castro Soares, Do Classicismo ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na
actualidade, p.26.
196
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, IV, Capítulo XXXIV, pp.510-
513.
197
Damião de Góis, Chronica do Serenissimo Senhor Rei D. Manoel, IV, Capítulo LXXXIII, pp.593-
594.
198
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V,
p.202; Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Livro Terceiro, p.355.

90
filhos: D. João de Noronha e D. Nuno Álvares de Noronha, que também
vieram a ser capitães de Ceuta, D. Afonso de Noronha, 5º Vice-rei da Índia,
D. Leonor de Noronha e D. Maria de Meneses.

91
92
Considerações finais

Não podemos terminar este estudo sem antes recapitularmos, de


forma muito sintética, as principais ideias expostas nas páginas anteriores.
Em primeiro lugar, parece-nos importante reforçar a ideia de que D.
Fernando de Meneses foi, sem dúvida, um homem do seu tempo, o modelo
de fidalgo da transição do séc. XV para o séc. XVI, apto para a guerra e
sensibilizado para a cultura. Por outras palavras, um indivíduo que se
enquadra na dinâmica social do processo de expansão lusa e cuja acção
sintetiza, em traços gerais, o perfil de uma nobreza ainda de tradição
medieval, em que a guerra e os feitos militares constituíam um dos mais
importantes meios de nobilitação e de ascensão social.
Descendente de uma linhagem sobre a qual recaiu a capitania de
Ceuta, D. Fernando de Meneses soube defender os interesses de Portugal no
Norte de África com serviços coroados de êxito e que foram reconhecidos
por D. Manuel I ao ser-lhe atribuído o título de conde de Alcoutim. De resto,
a sua acção nos Algarves de Além-mar foi louvada por António Caetano de
Sousa, que não lhe poupou elogios: “fez entradas notáveis nas terras dos
inimigos, com tanto valor como fortuna, em que desbaratando muitas vezes
os mouros, conseguiu as vitórias com que fez memorável o seu nome, e aos
soldados utilizava com os despojos, e quase sem perda na nossa gente199.
Em Ceuta, o governo de D. Fernando correspondeu a um período de
estabilidade, pautado pela ausência de conflitos bélicos dignos de registo e

199
António Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portuguesa, Vol. V, Capítulo V,
p.200.

93
pelas obras de fortificação na cidade do Estreito. Importa salientar que foram
os serviços de D. Fernando de Meneses e dos seus antepassados que levaram
à criação do título de conde de Alcoutim, inaugurando uma tendência
manuelina que se viria a manter até ao abandono das praças marroquinas, já
durante o reinado de D. João III. Mas D. Fernando de Meneses não marcou o
seu tempo somente pela sua acção administrativa e militar. Defensor das
antigas liberdades senhoriais, insurgiu-se juridicamente contra a legislação
que procurou diminuir o poder aristocrático, contestando as disposições dos
novos forais outorgados por D. Manuel I.
Porém, o perfil de D. Fernando de Meneses já apresentava laivos do
que viria a ser o protótipo do nobre português do Renascimento. Enquanto
homem culto e de pensamento humanista seguiu, de forma entusiasta, a
evolução das artes tipográficas e privou de perto com Cataldo Sículo, que se
assumia um admirador das virtudes de D. Fernando. É nesse sentido que não
podemos dar por concluído o presente trabalho sem antes recordarmos as
palavras que lhe dirigiu o grande latinista:

“Ainda mal tens trinta e seis anos e já causaste em África tanta


destruição de mouros quanta o próprio Aníbal, ao passar à Europa, nunca
fez. E não estás confiado no teu sangue de reis, mas tão só no teu valor
pessoal”200.

200
Carta de Cataldo Sículo a D. Fernando de Meneses, em 1499-1500. Excerto publicado por Maria
Luísa de Castro Soares in Do Classicismo ao Maneirismo e ao Barroco e a sua projecção na
actualidade, p.16.

94
Fontes e bibliografia

Arquivos

A.N.T.T.

Chancelaria de D. Manuel I

Livro 4, fl. 17v; liv. 6, fl. 96; livro 13, fl. 14; liv. 13, fl. 50v; liv. 14, fl. 30v; liv.
19, fl. 5; liv. 21, fl. 7; liv.27, fl. 74 v; livro 31, fl. 60; livro 32, fl. 10; livro 32, fl.
50; liv. 38, fl. 9; livro 38, fl.62; liv. 38, fl. 92; liv. 39, fl. 2v; livro 40, fl. 5; liv.
40, fl. 21; livro 40, fl. 21v; liv. 41, fl. 121; liv. 44, fl. 89; liv. 44, fl. 89v.

Corpo Cronológico

Parte I, maço 11, n.º 70; Parte I, maço 72, n.º 41; Parte I, maço 79, n.º 44.
Parte I, maço 81, n.º 23; Parte II, maço 8, n.º 72; Parte II, maço 18, n.º 1; Parte
II, maço 18, n.º 19; Parte II, maço 18, n.º 36; Parte II, maço 18, n.º 68; Parte
II, maço 18, n.º 71; Parte II, maço 18, n.º 94; Parte II, maço 18, n.º 96; Parte
II, maço 18, n.º 104; Parte II, maço 32, n.º 31; Parte II, maço 66, n.º 23; Parte
II, maço 114, n.º 114.

95
Gavetas

Gaveta 20, Maço V, nº 14;

Colecção de cartas

Núcleo Antigo 877, n.º 155

Casa Real, Cartório da Nobreza,

Livro 19 - Livro do Armeiro-Mor;


Livro 20 - Livro da Nobreza e da perfeição das armas dos reis cristãos e
nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal.

Códices e documentos de proveniência desconhecida

Livro 159 – Livro das fortalezas situadas no extremo de Portugal e Castela


por Duarte de Armas, escudeiro da casa do rei D. Manuel I.

96
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Imagens

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(Extraído em 20 de Maio de 2017), disponível em:
h p://www.distanciaentreciudades.com.es/calcular-distancia.php

Fig. 2 - Representação de Anafé no Civitates Orbis Terrarum, de Georg


Braun (1572). (On line), (Extraído em 20 de Maio de 2017), h p://historic-

ci es.huji.ac.il/morocco/casablanca/maps/braun_hogenberg_I_57_1_b.j

pg

Fig. 3 – Localização de Zemzem, entre Ceuta e Tetuão. (On line),


(Extraído em 20 de Maio de 2017), disponível em:
h p://www.distanciaentreciudades.com.es/calcular-distancia.php

Fig. 4 - Armas de D. Fernando de Meneses, in Livro do Armeiro-Mor, de


João do Cró (1509). A.N.T.T., Casa Real, Cartório da Nobreza, Livro 19,
fl. 46.

Fig. 5 – Representação de Ceuta no Civitates Orbis Terrarum, de Georg


Braun (1572). (On line), (Extraído em 20 de Maio de 2017), disponível em:
h p : / / h i s t o r i c -

ci es.huji.ac.il/spain/ceuta/maps/braun_hogenberg_I_56_3_b.jpg

113
Fig. 6 – Fig.4 – Alcoutim representado em O Livro das Fortalezas, de
Duarte de Armas (1509). Vista de sul para norte. A.N.T.T., PT-TT-CF-
159_m0023.TIF (On line), (Extraído em 20 de Maio de 2017), disponível
em: h p://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=3909707

Fig. 7 – Alcoutim representado em O Livro das Fortalezas, de Duarte de


Armas (1509). Vista de este para oeste. A.N.T.T., PT-TT-CF-
159_m0023.TIF (On line), (Extraído em 20 de Maio de 2017), disponível
em: h p://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=3909707

114

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