Celio Costa-Tese de Doutorado
Celio Costa-Tese de Doutorado
Celio Costa-Tese de Doutorado
PIRACICABA, SP
2004
A RACIONALIDADE JESUÍTICA EM TEMPOS DE
ARREDONDAMENTO DO MUNDO: O IMPÉRIO
PORTUGUÊS (1540-1599)
PIRACICABA, SP
2004
Comissão Julgadora
aos colegas da turma de doutorado, pelo prazer que foi estudar junto de todos
vocês, especialmente pelos momentos lúdicos;
The Jesuit rationality during the period of the rounding of de world is the
study regarding the form of being of de Company of Jesus inside of the Portuguese
Empire between 1540 and 1599. Understanding the influence of the Jesuits in the
context of the Portuguese Patronage in the process of the commercial and political
expansion of the domain of the Lusitan Crown is the objective of this text. The
Patronage means the diffusion of catholic and roman Christianity in the new
discovered or dominated land by the Christians Kingdoms. The mercantile thought
present in the so called colonial and commercial enterprise in some way, also
influenced the actions of the Jesuits, although, considering that the mercantile
rationality still isn’t a synonym of the bourgeoisie reason in this period. The Jesuit
rationality was constructed over time, from the moment in which those priests
assumed several activities, such as the educational and missionary. The thesis is
structured in three parts: the first one examines the relationship of the Jesuits with
the Portuguese Crown and the missionary actions under the name of Patronage; the
second examines the intellectual and spiritual formation of the forthcoming Jesuit; the
third examines rationality in it’s practicity highlighting the adaptation, the organization
and the education of the Jesuits, mainly on missions. The period chosen comprises
since the arrival of the first Jesuits in Portugal (1540) until the official publication of
Ratio Studiorum, the main education documents produced by the Company of Jesus
(1599). This essay also has the objective to contribute to comprehend the Brazilian
cultural formation, because the work of the first Jesuits in Brazilian lands, since 1549,
made part of the Portuguese Patronage encompass.
RESUMO ................................................................................................................................................................. 7
ABSTRACT ............................................................................................................................................................. 8
RÉSUMÉ .................................................................................................................................................................. 9
ÍNDICE ................................................................................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................................... 12
Os padres da Companhia de Jesus não educaram somente através dos seus colégios,
mas também, por meio do teatro, da atuação política, da atuação literária, da evangelização,
enfim, de todas as atividades inerentes à sua atuação como missionários. A ação deles para
com os brancos portugueses, para com os índios brasileiros e negros africanos foi, antes de
tudo, educacional, e, como tal, uma atuação cultural, pois, tratava-se de fazer da nova terra
com seus habitantes, seres crentes e obedientes ao Deus cristão e ao monarca português.
O ponto de partida deste trabalho foi, portanto, entender a Companhia de Jesus para
além de um ponto de vista estritamente religioso, teológico ou de uma história das instituições
13
eclesiásticas; o que se procurou, e é isso o que se apresenta, foi entender aquele instituto
religioso historicamente, como participante efetivo da construção da sociedade e cultura
brasileiras. Nesse sentido, mais do que saber se ela cumpriu ou não desígnios religiosos, o que
importou foi apreendê-la como instituição humanamente criada, dirigida e construída por
homens.
Esta pesquisa individual está compreendida numa produção que se quer coletiva de um
grupo de pesquisa formado em torno do tema “Educação, História e Cultura Brasileira: 1549-
1759”1. A existência deste grupo sugere a importância desta pesquisa para a academia, na
medida em que, com ela, almeja-se contribuir com estudos que visam à compreensão da
formação cultural brasileira, principalmente nos seus aspectos educacionais e históricos. A
convicção de que o entendimento da racionalidade jesuítica, cronológica e espacialmente
delimitada, contribuirá para a compreensão de mais um aspecto da cultura brasileira, é o que
guia o presente trabalho.
(...) O nosso tempo é tão tolerante, de espírito tão liberal e tão avesso à violência
em suas ideologias, que encontrar sólidos argumentos em prol do caráter do
século XVI ou XVII está irremediavelmente fadado a ofender os justos e virtuosos.
(Barzun, 2002, p. 10)
1
O grupo de pesquisa Educação, História e Cultura Brasileira: 1549-1759 está cadastrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do Brasil, no CNPq, e é coordenado pelo Professor Doutor José Maria de Paiva e tem
participantes de seis universidades brasileiras.
14
(...) Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na
nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na sabedoria ou na
loucura dos actos políticos e administrativos passados há um meio de prevenir e
encaminhar a direcção dos actos futuros, A história é, nesse sentido, a grande
mestra da vida. (Martins, 1972, p. 12)
Por ser a história uma grande mestra, ela não pode ser condenada, mesmo que, do
ponto de vista do historiador, esteja repleta de erros:
Luís Felipe Barreto, por sua vez, adverte que um dos grandes riscos ao se estudar a
história é proceder a um julgamento discricionário e assim “matar uma vez mais os mortos”.
Quando se propõe a ver a História como Rigor, diferentemente da História da Memória,
Barreto quer mostrar que se deve olhar “o ser do passado como lugar de perspectiva e não de
retrospectiva, significa agora conceder a cada época o seu próprio direito à essência e
também à sua própria perfeição” (Barreto, 1983, p. 10). Tomando por base Febvre e Braudel,
no útimo capítulo de seu livro, Barreto mostra uma vez mais a obrigação do historiador em
não retirar do seu contexto as questões e autores estudados:
L. Febvre dizia muitas vezes para não se matar uma segunda vez o morto e matar
um objeto da história é descontextualizá-lo, retirá-lo das medidas de sua
ambiência epocal, não lê-lo na medida do seu século para utilizar uma expressão
querida a F. Braudel. (Idem, ibidem, p. 262)
A sociedade, como dizia Marx na famosa carta a Annenkov, é produto dos homens, os
quais a constroem sob determinadas condições e não livremente a seu bel-prazer. A história
dos homens é a história de suas sociedades, das formas como se organizaram para produzir e
15
reproduzir a vida. Nessas formas de organização, tudo o que foi feito é produto dos homens,
mesmo conceituado como menos ou mais humano. Como afirma Barzun, o historiador não
pode escolher como humano o que foi feito de melhor e desprezar o restante, pois se assim o
fizer, desprezará a própria história; o “historiador não pode subscrever tal política, sabendo
como ele sabe que crueldade, assassinato e massacre estão entre os mais característicos atos
humanos” (Bazun, 2002, p. 85).
Francisco Rodrigues, no prólogo de sua obra, ao enunciar a forma como vai tratar o
tema da formação intelectual do jesuíta, afirma que sua preocupação é com uma análise isenta
de paixão. As análises apaixonadas traduzem-se ou pela amizade ou pela inimizade excessiva,
pois amor e ódio são apenas duas faces da mesma moeda. Assim como no namoro, a paixão
na história também cega, onde os “amigos não ha quem os acredite porque são amigos, e os
adversarios não deviam acreditar-se porque o são; aquelles, dizem, cega-os o amor, a estes
desnortei-os a desaffeição.” (Rodrigues, 1917, p. IX). Na continuação deste anteparo
metodológico, Rodrigues convoca a deusa da imparcialidade como a melhor guia para a
realização de um trabalho verdadeiramente científico:
René Füllöp Miller é outro autor que, na introdução de sua obra, evidencia uma
postura metodológica de imparcialidade, repudiando a grande maioria da literatura sobre os
jesuítas por considerá-la pouco objetiva e mais disposta a julgá-los:
Dentre tôdas essas obras, poucas há, na verdade, cujos autores se houvessem
esforçado por ministrar dados objetivos sobre o assunto, enquanto tôdos os
demais se afanaram já por aviltar e acusar, já por defender e encomiar. (Miller,
1946, p. 09)
No caso do tema “Companhia de Jesus”, é preciso ter em conta que o século XVI é um
período de fervilhamento de novos acontecimentos, de novos valores, novas religiões, novas
sociedades, enfim, é um século repleto de novidades e, por conseqüência, repleto de lutas
materiais e teóricas. É por ter ciência dessa complexidade que, ainda mais, buscou-se tratar os
jesuítas no seu devido lugar e localizá-los no palco das lutas e ações próprias do período. As
respostas que a Companhia de Jesus deu, os trabalhos que assumiu, a complexidade de sua
organização explicam-se como resultado, principalmente, da Reforma da Igreja e da expansão
do cristianismo por terras de além-mar.
religiosa que acabara de ser criada era realizar uma espécie de cruzada moderna, indo até
Jerusalém com o intuito de converter os gentios e infiéis e retomar a cidade santa para a Igreja
Católica. Como a viagem não se realizou, em função da proibição, pelos turcos, de visitas à
Jerusalém, os sete fundadores acrescidos já de outros foram para Roma, onde sujeitaram-se às
ordens do Papa.
A ordem religiosa, criada por Inácio de Loyola e seus companheiros, faz parte de um
movimento interno da Igreja Católica no qual se desenvolveu a idéia da necessidade de uma
reforma interna. Já no século XV, e principalmente nas primeiras décadas do seguinte, a
Igreja romana deparou-se com a diminuição de seu poder frente aos soberanos, viu crescer em
meio ao clero em geral uma vida dissoluta, simoníaca e venal, além de enfrentar o
protestantismo que foi se tornando um forte adversário. Como resultado prático do
movimento reformista foram criadas algumas ordens religiosas, além e antes da Companhia
de Jesus, as quais nasceram com o intuito de revigorar a Igreja naquilo que a estava
enfraquecendo3. A Companhia de Jesus deve ser entendida, portanto, também nesse contexto
mais particular da Reforma da Igreja, o que explica, dentre outros aspectos, a rigorosa
formação de seus futuros padres e a disposição missionária sem precedentes.
A espinha dorsal deste trabalho foi formada a partir das fontes conseguidas e
estudadas: as Cartas Jesuíticas, as da edição da Edusp/Itatiaia e as reunidas por Serafim Leite
na série Monumenta Brasiliae, além de cartas de Francisco Xavier, Inácio de Loyola,
Mateus Ricci e Luís Fróis; as Constituições da Companhia de Jesus; os Exercícios
Espirituais, de Loyola; e o Ratio Studiorum. Outras fontes poderiam ter sido estudadas, no
entanto, pelo tempo e pelas dificuldades e inexperiência em localizá-las, não foi possível fazer
uso delas4; entretanto, o material que se conseguiu reunir – além das fontes, uma rica
bibliografia – possibilitou a confecção do trabalho abrindo horizonte, o que é mais importante,
para a continuidade da pesquisa neste tema.
2
Em todo o texto da tese, toda vez que for citada as Constituições da Companhia de Jesus além da página
correspondente à edição brasileira de 1997, também se colocará entre colchetes o parágrafo correspondente
para facilitar eventuais consultas.
3
Foram criadas, dentre outras, as seguintes ordens religiosas: Ordem dos Capuchinos, ou Irmãos Menores
Capuxinhos (1528); Ordem dos Teatinos (1524); Ordem dos Barnabitas e Ordem dos Somascos criadas na
primeira metade do século XVI.
4
O leitor mais acostumado com o tema com certeza dará falta de, pelo menos, duas fontes importantes que
contribuiriam com o desenvolvimento do tema, particularmente do padroado no Oriente; são elas:
Documentação para a história das missões do padroado português no Oriente, organizado por Antonio da
Silva Rego, e a Monumenta Indica.
19
Assim, o principal objetivo da pesquisa bem como sua hipótese foram apreender a
racionalidade jesuítica em terras portuguesas e mostrar, se possível, que a forma de ser e de se
organizar da Companhia de Jesus expressava uma racionalidade mercantil própria do processo
de expansão portuguesa do século XVI. Para dar conta destas questões organizou-se este
trabalho em três partes, cada qual com seus capítulos correspondentes.
A sociedade religiosa criada por Loyola e seus companheiros não nasceu pronta, no
sentido de que todas as características que lhes são próprias foram forjadas já desde o seu
22
nascimento. O que se insiste ao longo do trabalho é que a racionalidade jesuítica foi sendo
construída, foi sendo formada aos poucos, assim como a Companhia como um todo. De um
projeto cruzadístico e, nesse sentido francamente medieval, ela assumiu trabalhos e funções
que fizeram dela uma ordem religiosa em movimento, em construção, pelo menos no século
XVI.
OS JESUÍTAS EM PORTUGAL
25
Introdução
Por amor de Nosso Senhor que spreva ao consul da nossa naçam, que está em
Veneza, e a quem por V. A. faz os negócios em Roma [D. Pedro de
3
Mascarenhas ] que lhe falle, porque vendo elles carta de V. A. tanto mais se
1
“Diogo de Gouveia foi Teólogo e Professor. Nasceu em Beja, cerca de 1471 e faleceu em Lisboa, em 1557.
Estudou na universidade de Paris, foi provavelmente bolseiro de D. Manuel I, doutorou-se em Teologia, em
1510. (...) Cerca de 1520, Diogo de Gouveia arrenda o Colégio de Santa Bárbara e em 1527 obtém de D.
João III a criação de bolsas de estudo, o que atrairá muito estudantes para Paris. Sob a sua direcção, o
Colégio de Santa Bárbara tornou-se um dos mais importantes de Paris, atraindo estudantes portugueses e
estrangeiros, como Inácio de Loiola. Diogo de Gouveia foi também Reitor da Universidade de Paris. (...) Foi
ele quem, desde 1538, recomenda com insistência a D. João III os primeiros componentes da futura
Companhia de Jesus, que deveriam ser utilizados como missionários. Católico intransigente, defensor da
escolástica, o seu zelo critica todos os movimentos reformistas, quer se trate de Erasmo ou de Lutero. Em
Ruão fez parte do tribunal que condenou um certo número de luteranos”.
(http://www.terravista.pt/enseada/5147/diogo.html)
2
D. João III, filho de D. Manuel I e avô de D. Sebastião. No decorrer do seu governo à frente da Coroa
portuguesa teve início a colonização do Brasil e o Padroado sob a bandeira jesuítica. Como boa parte da tese
versa sobre o período joanino, outras informações a respeito dele serão incorporadas ao longo do texto.
3
D. Pedro de Mascarenhas nasceu em Palma, Portugal, em 1483 e faleceu em Goa em 1555. Sendo homem de
governo e da confiança da coroa e, ainda, dotado de habilidades diplomáticas foi nomeado embaixador de D.
João III junto à corte do poderoso Carlos V, mas “a embaixada de maiores conseqüências foi a da Santa Sé,
onde chegou em meados de 1538. (...) D. Pedro tomou a S. Inácio por confessor, o que vem a dizer que
ficaram amigos. E D. Pedro o foi sempre e também da Companhia de cujos negócios tratou como se fora dela.
26
Em 04 de agosto de 1539, um ano e meio após a carta de Gouveia, o Rei D. João III
escreveu a Pedro de Mascarenhas para que ele entrasse em contato com os padres tão
elogiados por Gouveia e constatasse a veracidade das informações e, no caso de não encontrar
óbices, falar com o Papa Paulo III (1534-1549) pedindo permissão6 para que aqueles padres
servissem ao Rei português como missionários nas Índias. Na carta fica claro que a empresa
comercial/colonial portuguesa nas Índias era, segundo o Rei, acima de tudo uma empresa
religiosa, isto é, de propagação da religião católica pelo mundo dos gentios e infiéis;
inicialmente era para esta tarefa que o Rei precisava dos jesuítas:
Porque o principal intento, como sabeys, asy meu como d’El-Rey meu senhor e
padre, que santa glória aja, na impresa da India e em todas as outras conquistas
que eu tenho, e se sempre manteveram com tantos perigos e trabalhos e
despesas, foy sempre o acrecentamento de nossa santa fé catholica, e por este se
sofre tudo de tam boa vontade, eu sempre trabalhey por haver letrados e homens
de bem em todas as partes que senhoreo, que principalmente facão este officio,
Voltou para Portugal em 1540, levando em sua companhia S. Francisco Xavier”. Em 1554 foi nomeado Vice-
Rei da Índia. (LEITE, 1956, pp. 33-34 da introdução geral)
4
Com relação às citações, principalmente da Monumenta Brasiliae, optou-se aqui por não fazer qualquer
atualização para a português moderno e nem possíveis correções gramaticais de acordo com a moderna
ortografia. As citações são sempre literais.
5
A Monumenta Histórica Societatis Iesu é uma coleção de 155 volumes que traz leis, documentos, cartas,
sermões, biografias e outros tipos de textos reunidos ao longo da história da Companhia de Jesus. Apenas para
se ter uma vaga idéia de como esta impressionante coleção se organiza, vejamos alguns exemplos: Cartas,
Instruções, obras, fontes narrativas e fontes documentais de S. Inácio de Loyola, 19 volumes; Constituições e
Regras da Companhia, 04 volumes; cartas e obras dos jesuítas Fabro, Salmerón, Bobadilha, Ribadaneira,
Polanco, Nadal e outros jesuítas do século XVI, 09 volumes; Monumenta Paedagogica 07 volumes; 08
volumes da Monumenta Peruana; M. Brasiliae, 05 volumes; 18 volmes da Documenta Indica; M. H. Japoniae,
03 volumes; M. Proximi Orientis, 06 volumes; e 01 volume da M. Sinica (Chinesa).
6
Como visto na Introdução, os jesuítas decidiram por fazer um quarto voto de obediência direta e irrestrita ao
Papa, se colocando diretamente sob suas ordens.
27
asy de pregação como de todo outro ensino necessario aos que novamente se
convertem à fee. E graças a Nosso Senhor, ategora he nisto tanto aproveitado, e
vay o bem em tanto crecimento, que, asy como me he muy craro sinal que a obra
he aceita a Nosso Senhor, sem cuja graça espicial seria impossível fazer-se
tamanho fruto, asy me parece que me obriga a nam somente a continuar com todo
cuydado, mas ainda, asy como acrecentar no numero dos obreiros. (In: Leite,
1956, p. 102)
Em reposta à missão para a qual el-Rei o designou, Pedro de Mascarenhas enviou uma
carta em 10 de março de 1540, noticiando que havia se certificado que as informações de
Gouveia eram verídicas – “e por achar nelles todallas calidades, que comvem ao efeicto pera
que os Vossa Alteza quer, lhe faley logo de sua parte” (in: Leite, 1956, pp. 105-106) – e já
havia, também, entrado em contato com o Papa, o qual “louvou muyto a temção de Vossa
Alteza” (p. 106), permitindo a ida dos “padres reformados” para Portugal com a condição de
que Mascarenhas os convencesse e, se assim o fizesse, a ida deles seria como que uma ordem
papal. Com o sucesso da empreitada, os primeiros padres destacados para irem para a corte
lusitana foram Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha, mas por problemas de saúde de
Bobadilha, Francisco Xavier foi em seu lugar.
É muito para maravilhar e para dar muitas graças a Nosso Senhor ver quão zeloso
é da glória de Deus Nosso Senhor o Rei e quão afeiçoado é a tudo o que é
piedoso e bom. Todos os da Companhia lhe devemos muito pela boa vontade que
nos dedica, tanto aos daí como aos daqui. Disse-me o Embaixador, que falou com
o Rei depois da nossa entrevista, ter-lhe informado o Rei seu senhor que gostaria
muito receber-nos aqui todos os da Companhia, embora isso lhe custasse parte
de seus haveres. (In: Cardoso, 1996, p. 28)
A julgar pelo conteúdo das cartas, e ajudado pela historiografia, pode-se afirmar que
houve empatia entre as pessoas da corte portuguesa e os padres reformados, tanto que o
objetivo primeiro ao convidá-los para irem a Portugal, que era serem missionários nas Índias,
estava sendo deixado de lado. Numa carta de Simão Rodrigues para Loyola e Codazzo, de
1540, é mostrado que, apesar da insistência dos padres em ir para as missões, o Rei ordenava
que eles ficassem no reino, com a justificativa de que muita coisa eles poderiam fazer, dentre
28
Antes, porém, de Xavier conseguir autorização real para ir para às Índias, destino que
é sempre reafirmado como prioritário para a Companhia, ele e Simão Rodrigues organizam o
instituto jesuítico em Portugal, inclusive já agregando novos membros. Conseqüentemente, as
atividades da Companhia vão se desenvolvendo sob os auspícios reais na direção da
permanência dela em terras lusitanas. Numa outra carta de Xavier para Codazzo e Loyola,
datada de 22 de outubro, ainda de 1540, depois de informar dos trabalhos desenvolvidos junto
à corte para conseguirem autorização para viajar para o Oriente e também dos novos jesuítas
que entraram na Companhia, ele solicita uma decisão acerca da conveniência de se abrir um
colégio dirigido por eles junto à Universidade de Coimbra:
Faça-nos saber o que nós podemos fazer aqui por aqueles que foram e por
aqueles que vão estudar em Paris, da mesma forma que a resposta às cartas que
nós escrevemos concernente a Estrada, ou que se refere à fundação de uma
Casa de estudantes na Universidade de Coimbra, porque aqui, nós contamos com
8
muito apoio e autoridade para realizar as obras pias. (...) (Xavier, 1987, p. 63)
Esta carta documenta o início de uma atividade que vai ser tão extensiva quanto a
missionária na vida da Companhia de Jesus: a educação, através dos inúmeros colégios e
seminários dirigidos por ela. A definição de se construir a Maison d’étudiantes junto à
universidade cunimbricense foi tomada por D. João III, como informa o próprio Xavier em
carta a Loyola e João Codure, de 18 de março de 1541. Não apenas o colégio, mas ainda uma
casa para os padres reformados será construída “neste verão”, informa Xavier. É a primeira
casa que os padres da Companhia de Jesus terão fora de Roma.
7
Os cristãos-novos foram os principais alvos do Tribunal da Inquisição em Portugal, o qual foi instituído em 23
de maio de 1536, através da bula Cum ad nihil magis, expedida por Paulo III, mas que foi montado nos
moldes da Inquisição Espanhola somente em 1547, dando autonomia quase plena à Coroa portuguesa na
condução dos processos inquisitoriais. Herculano (História da origem e estabelecimento da Inquisição em
Portugal) e Kayserling (História dos judeus em Portugal) mostram que D. João III não permitia que os
cristãos-novos deixassem o país, apesar de ser esta a grande queixa deles, pois não queria que a riqueza da
qual eram eles portadores, por serem em sua grande maioria grandes comerciantes, saísse de Portugal.
Também é digno de interesse o estudo de Francisco Bethencourt, História da Inquisição.
8
“Faites-nous savoir ce que nous pouvons faire ici por ceux que sont partis et pour ceux qui vont partir étudier
à Paris, ainsi que la réponse aux lettres que nous avons écrites pour ce qui concerne Estrada, ou pour ce qui
touche à la fondation d’une Maison d’étudiantes à l’université de Coïmbre, car ici, nous joissons de beaucoup
d’appuis et d’autorité pour accomplir des oeuvres pies. (...)”. São várias as passagens ao longo da tese que
foram retiradas da edição francesa das cartas e escritos de Francisco Xavier, organizada por Hugues Didier. A
tradução para o português é livre e de minha inteira responsabilidade. Em razão disso, optei por apresentar
sempre o original em francês como nota de rodapé.
29
A primeira casa própria em Portugal é, também, a primeira casa que a Companhia teve
no mundo todo. António Lopes, em seu artigo D. João III e Inácio de Loyola (1992, A),
informa que a casa de Santo Antão-o-Velho, em Lisboa, foi doada pelo Rei aos jesuítas em 05
de janeiro de 1542, sendo que, por exemplo, em Roma, onde estavam os seus dirigentes, a
Companhia só teve casa própria em 1544. Lopes informa também que no mesmo ano de 1542,
em 09 de junho, Simão Rodrigues se dirige para Coimbra, já então contando com doze
companheiros, onde abrem a primeira casa de formação nas proximidades da Universidade de
Coimbra, onde os futuros padres jesuítas teriam seus estudos também. A casa de Coimbra foi
a primeira instituição de formação jesuítica no mundo.
A respeito da ida dos jesuítas para Coimbra em 1542, António José Teixeira, em
Documentos para a história dos Jesuítas em Portugal, apresenta uma carta do Rei para o
chanceler da Universidade de Coimbra solicitando que os jesuítas fossem bem recebidos e
acomodados enquanto não tivessem casa própria. Este documento mostra o primeiro contato
dos padres da Companhia de Jesus com a Universidade que vai ser a grande formadora,
juntamente com o Real Colégio das Artes, também de Coimbra, dos missionários nas Índias,
no Oriente, na África e no Brasil.
Prior cancellario. Eu el-rei vos envio muito saudar. Mestre Simão vae a essa
cidade com doze de sua companhia, para os deixar aprendendo nessa
Universidade, como vos elle dirá. Encommendo-vos muito que lhe deis, e façaes
dar toda ajuda, e favor que lhe cumprir para os pôr em ordem de seu ensino, e
doutrina. E porque póde ser que elles não achem logo casas em que se
agasalhem; receberei prazer em que os mandeis agasalhar em algumas casas de
vossa hospedaria, ou em quaesquer outras desse mosteiro, emquanto assim não
acharem outras, porque além de assim ser serviço de Nosso Senhor, e que vós
por esse respeito folgareis fazer, eu receberei nisso muito contentamento, e vol-o
agradecerei muito. Manuel da Costa a fez em Lisboa a 5 dias de junho do anno de
1542. – REI. (In: Teixeira, 1899, p. 120)
9
O termo Colégio ao longo do trabalho é utilizado nos dois sentidos que lhe devem ser atribuídos: no primeiro, e
é esse o caso do Colégio das Artes, significa Faculdades ligadas diretamente à universidade, como, por
exemplo, as Écoles da Universidade de Paris, ou os Colleges da Universidade de Oxford. O outro sentido é o
que usa, por exemplo, no Brasil, como estudos propedêuticos não ligados diretamente à universidade.
30
O Real Colégio das Artes de Coimbra foi criado por D. João III em 1547 para servir de
base cultural e intelectual da universidade portuguesa que foi transferida de Lisboa para
Coimbra em 1537. Dirigido por professores franceses, com forte cunho humanista, o Colégio
foi entregue para a Companhia e se tornou um espaço cultural, intelectual e político muito
marcante na vida social portuguesa. Antes, porém, do Colégio das Artes, a Companhia de
Jesus já tinha sob sua direção outros três colégios: Colégio de Jesus, também em Coimbra, a
partir de 1542; o Colégio do Espírito Santo de Lisboa, em Évora10, a partir de 1551; e o
Colégio de Santo Antão de Lisboa, a partir de 1553. Teixeira apresenta a carta, de 10 de
setembro, de D. João III a Diogo de Teive, então Reitor do Colégio, o qual é informado da
decisão de passar aquele instituto para a direção dos jesuítas:
Doutor Diogo de Teive, eu el-rei vos envio muito saudar. Mando-vos que
entregueis esse collegio das Artes, e governo delle, inteiramente ao padre Diogo
Mirão, provincial da companhia de Jesus, o qual lhe assim entregareis do primeiro
dia do mez de outubro, que vem, deste anno presente de 1555, em deante,
porque assim o hei por bem e meu serviço, como vos já tenho escrito; (...). (In:
Teixeira, 1899, pp. 180-181)
Na carta citada acima, Xavier, depois de fazer uma avaliação da viagem e do que
encontrou em Goa, tanto dos costumes dos gentios como dos portugueses que residiam e
10
O Colégio do Espírito Santo foi elevado à categoria de Universidade de Évora em 1559, continuando sob a
direção da Companhia de Jesus.
31
comerciavam por lá, apresenta uma espécie de definição do que deveria ser o missionário e
como ele deveria encarar aquele tipo especial de serviço a Deus. Note-se que no trecho
escolhido da carta aparece algo que vai servir de edificação e consolação constantes para os
missionários jesuítas: o martírio como a melhor forma de morrer por seus ideais.
Surgiu a primeira ocasião quando D. João III pediu um confessor jesuíta. Depois
de Simão Rodrigues ter deixado o provincialato o rei pediu aos padres Mirão e
Gonçalves da Câmara para serem seus confessores. Estes logo consideraram
este encargo como contrário ao Instituto da Companhia. Inácio, contudo, a 1 de
Fevereiro de 1553, responde-lhes que deviam aceitar em virtude de 3 razões: a
primeira porque é próprio do Instituto da Companhia administrar os sacramentos a
qualquer pessoa de qualquer estado; a segunda, porque devemos tudo a S.A. e
que não existe nenhum outro príncipe cristão, a quem tanto devamos; e a última é
por causa do bem mais universal e do maior serviço, pois do bem que se fizer à
cabeça participarão todos os membros. E termina, ordenando-lhes que aceitem,
em virtude da Santa Obediência. (Lopes, 1992, B, p. 186)
Loyola percebe que não se tratava simplesmente de uma atividade sobre a qual se
poderia eximir de responsabilidade, pois era nada menos que o grande protetor da Companhia
a fazer o pedido, ou, uma ordem, na verdade. Loyola mostra que não era apenas uma questão
de obedecer a vontade real, mas o fazê-lo por razões de agradecimento, de obediência ao
Geral e, acima de tudo, um meio para assegurar o patrocínio real às atividades da Companhia,
tanto no reino como no império lusitano.
11
A função de confessores de reis não se restringiu a Portugal. Para conferir mais sobre o assunto ver Lacouture,
Os Jesuítas, v. I, capítulo XII, e Miller, Os Jesuítas, seus segredos e seu poder, sexta parte.
32
Nos poucos anos de vida da Companhia de Jesus em Portugal três são, basicamente, as
atividades desenvolvidas tanto no reino como no império colonial/comercial: a educação da
juventude, as missões no além-mar e a confissão dos soberanos. Cada atividade tem suas
peculiaridades e seus desdobramentos. O encargo de tais funções não foi premeditado nem
pelos jesuítas em Portugal, nem pelos de Roma; foram atividades que foram sendo
incrementadas e implementadas por eles em atendimento a circunstâncias e perfazendo, com o
tempo, a feição própria que a Societas Iesu vai ter.
Por isso pensei em recordar-vos como, logo após nossa entrada em Roma, fomos
favorecidos pelo Papa em muitas ocasiões inteiramente e continuamente,
recebendo graças especiais de Sua Santidade(...). (In: Cardoso, 1993, p. 24)
Ao Rei:
Por outro lado, como nos consta em toda a Companhia e a vós, entre todos, de
maneira mais manifesta, por estardes presente, quanto somos obrigados ao rei,
senhor vosso e nosso, no Senhor Nosso. (...)
Terceiro: depois de vossa chegada, estais melhor informados que todos os outros,
embora nada nos fique escondido também a nós. Tratou-vos com tanta afeição e
amor, até com ajudas materiais, o que não sucede com outros príncipes.
Ofereceu-se da abundância do seu coração, pela muita afeição que vos dedica, a
fundar um Colégio e edificar algumas casas para esta Companhia tão indigníssima
diante de nosso Criador e Senhor no céu e de tal príncipe na terra. (Idem, ibidem,
pp. 24-25)
12
O bispo era D. Miguel da Silva. Sobre este personagem da história portuguesa e sobre o demorado processo de
instauração da Inquisição em Portugal, ver Herculano e a sua já citada obra.
33
Em uma outra carta, agora de 14 de junho de 1553, mais de dez anos após a anterior,
Loyola escrevendo a todos os superiores – provinciais, vice-provinciais, reitores etc. - da
Companhia, pede que cada sacerdote jesuíta tenha “memoria de Su Alteza [D. João III], junto
con la serenísima Reyna, y Principe y Princesa sus hijos”, pois deve-se reconhecer a ajuda
que a Companhia recebeu desse Soberano, “com cuyo favor y mui liberal ayuda se començó a
fundar y se derramó em tantas partes nuestra Compañía, com mucho fruto del divino serviçio
y spiritual ayuda de las animas.” (In: Leite, 1956, pp. 488-489).
A relação entre o Rei e a Companhia de Jesus pode ser medida, também, por um
balanço da historiografia portuguesa sobre o assunto. Lopes (1992, A) afirma que no rescaldo
historiográfico há dois tipos opostos de análise acerca da atuação de D. João III na história
lusitana: de um lado ele é caracterizado como um homem fanático, piedoso, que implantou a
Inquisição e, por outro, em anotações posteriores ao anticlericalismo liberal do século XIX,
ele é visto como o grande arauto da cultura humanista em Portugal, principalmente pelo
incentivo pecuniário para que estudantes portugueses fossem estudar na Universidade de Paris
e, bem como pela mudança da universidade de Lisboa para Coimbra e, ainda pela criação do
Real Colégio das Artes. Lopes informa que em todas as vezes que a historiografia critica o
Rei Piedoso, também é criticada a Companhia e, em todas as vezes que se elogia a
Companhia, o Rei é encomiado.
Quais teriam sido as razões que explicam a rápida aceitação dos padres jesuítas em
Portugal, principalmente por parte de D. João III? Apesar de a resposta para esta questão não
ser objeto específico de análise neste trabalho, é interessante acompanhar o raciocínio de José
Sebastião da Silva Dias a respeito do assunto. É sabido que outras congregações surgiram na
mesma época que a Companhia de Jesus, também expressando o ambiente reformador da
Igreja13, e é sabido que outras congregações antigas já existiam em Portugal, inclusive
enviando padres para as terras de além-mar antes dos jesuítas; no entanto, o que fez com que
os padres reformados fossem os preferidos da corte portuguesa? Dias encontra numa
espiritualidade que aliava tradição e modernidade, uma explicação:
13
Mais a frente na tese, na parte II, voltar-se-á a este assunto, mostrando as principais ordens religiosas criadas
no século XVI, bem como o processo de reforma da Igreja, do qual as novas ordens fazem parte.
34
A razão do sucesso dos jesuítas seria uma espiritualidade encarnada nos novos
desafios postos pela modernidade. Dias mostra que o que agradou a D. João III, um Rei
reformador da Igreja em Portugal14, foi o desprendimento deles de uma roupagem exterior e
formal, praticando, por conseqüência, uma vida mais ativa e, ao mesmo tempo, interiorista.
Eis a síntese que Dias apresenta a respeito dessa espiritualidade jesuítica tão ao gosto do
Soberano português:
Poder-se-ia afirmar, com Dias, que a Companhia de Jesus ganhou a simpatia real e
teve uma rápida expansão – aliás, em todo o mundo – devido ao fato de ser uma ordem
religiosa que expressava radicalmente o ambiente da reforma católica do século XVI; reforma
que se originou, mais do que motivada pelas críticas protestantes, por um olhar crítico para
dentro dela própria e pela conclusão de que era preciso refazer certos comportamentos para
não deixar de ter influência na sociedade.
14
Sobre esse assunto, respaldados também em Dias, voltar-se-á mais adiante, fornecendo exemplos da atitude
reformista de D. João III.
35
Colégio das Artes, no qual os jesuítas pediam que se continuassem os privilégios da época
joanina:
Lourenço Pires de Tavora, amigo, eu el-rei vos envio muito saudar. Eu escrevo ao
sancto padre o que vereis pela cópia da carta que vos envio, e o intento que nisso
tenho é dar a conhecer a sua sanctidade quam proveitoso é o instituto da
companhia de Jesus para bem da egreja universal, e que sua sanctidade tomasse
grande affecto e devoção a esta religião, e a favorecesse para que, conforme a
seu instituto, pudesse ser augmentada e dilatada, pois disso se seguirá grande
bem a toda a christandade e religião christã, e especialmente a estes reinos e
senhorios pelas muitas obrigações espirituaes que tem, e parece que para mover
e inclinar sua sanctidade ajudará muito ter conhecimento das cousas particulares
que Nosso Senhor tem obrado, e obra cada dia, por esta religião, assim nestes
reinos como nas partes da Índia, e outras de infieis da conquista delles, e a grande
conta, reputação, e devoção que eu tenho, e todas as pessoas principaes destes
reinos, e prelados e religiosos delles têem, ao instituto e religião da dicta
companhia, vos encomendo muito que além das cousas particulares, que tereis
sabido, vos informeis ao padre geral da dicta companhia de todas as
particularidades que houver de edificação dando-lhe conta do que sobre isso
escrevo a sua sanctidade e desejo que faça; e informeis de tudo a sua sanctidade
mui particularmente, e me aviseis do que em sua sanctidade sentirdes, e
parecendo-vos que para este mesmo effeito ajudará falardes a alguns cardeaes e
o fareis de minha parte na maneira que virdes que convém; e com esta vos envio
duas cartas para elles em crença para vós: far-lheis pôr os sobrescritos e dar-lhas-
heis. Escripta em Lisboa a 16? [sic] de fevereiro de 1560 – RAINHA”. (Idem,
ibidem, p. 494-495)
Serafim Leite, na introdução que fez ao primeiro volume das Monumenta Brasiliae
apresenta um balanço do desenvolvimento da Companhia em 1556, ano da morte do fundador
e primeiro Geral Inácio de Loyola. Tal balanço visa mostrar a eficiência de Iñigo a frente do
instituto nos seus primeiros anos e é medido pelo número de padres e pelas províncias15
erigidas até então:
(...) Basta dizer que ao falecer em 31 de julho de 1556, a nova Ordem Religiosa
contava com mais de mil Padres e Irmãos, distribuidos, fora de Roma, em onze
províncias, erigidas nas seguintes datas: Portugal (1546), [Espanha 1547,
denominação que se manteve até 1554, desdobrando-se então em três], Goa
(1549), Itália (1551), França (1552), Brasil (1553), Sicília (1553), Castela (1554),
Aragão (1554), Andaluzia (1554), Alemanha Superior (1556), Alemanha Inferior
(1556). (Leite, 1956, p. 22 da introdução)
Em Portugal, o crescimento também foi relevante e pode ser medido tanto pelo
número de jesuítas como pelo número de colégios, universidade e seminários que eles
administraram. É interessante lembrar que os colégios, como veremos mais detalhadamente
em outra parte do trabalho, eram as residências dos padres e sedes administrativas ao mesmo
tempo. O maior historiador da Companhia de Jesus em Portugal, Francisco Rodrigues, no
texto A Companhia de Jesus em Portugal e nas missões, traça um esboço histórico
compreendendo os anos de 1540 a 1934 e apresenta, entre outras informações, os números de
todas as províncias
15
A Organização da Companhia de Jesus prevê como instância superior a Província, cujo principal, o Provincial,
está abaixo, hierarquicamente falando, apenas do Geral. O fato de se constituir uma Província representa, na
organização da Companhia, que ela cresceu e se faz necessário uma instância local para resolver grande parte
dos problemas e tomar decisões por delegação do Geral. Para maiores informações, vide as Constituições da
Companhia de Jesus.
38
jesuíticas que estavam nos domínios do império português16: no século XVI, período
que compreende este trabalho, o número total é de 37 entre colégios, seminários e uma
universidade, espalhados pelas três províncias; já no século XVIII este número salta para 81,
espalhados entre as sete províncias17.
16
As províncias no século XVI eram: Portugal (1546), Goa (1549) e Brasil (1553). No século XVIII
acrescentam-se: Alentejo (de 1654 a 1665), Malabar (1605), Japão (1611) e Maranhão (1727).
17
No livro citado encontram-se as relações de todos os colégios e seminários, com os respectivos nomes e datas
de fundação.
18
É difícil precisar em alguns momentos a quem se refere, no interior da organização jesuítica, quando se fala de
jesuíta. Na grande maioria das vezes é sobre os padres, mas em outras vezes engloba as outras funções
exercidas, principalmente, a de irmãos, os quais não eram padres, e exerciam trabalhos mais braçais dentro das
casas jesuíticas. Sobre estas funções específicas ver Constituições da Companhia de Jesus.
39
Capítulo 1
O Padroado Português:
O Padroado existiu, no século XVI, como instituição praticamente peculiar aos reinos
ibéricos. Charles Boxer, estudioso erudito da história dos países ibéricos, em A Igreja e a
Expansão Ibérica (1440-1770), mostra o Padroado como uma espécie de privilégio de
suserania da corte papal ao conceder direitos e privilégios, ao mesmo tempo em que
estabelecia deveres para as ações dos soberanos, os quais passavam a ser patronos da
expansão religiosa.
Durante séculos, a união da Cruz com a Coroa foi exemplificada pela peculiar
instituição (...) do padroado real da Igreja do ultramar exercido pela Coroas
ibéricas: Padroado Real em português e Patronato (ou Patronazgo) em espanhol.
O Padroado Real Português pode ser vagamente definido como uma combinação
de direitos, privilégios e deveres, concedidos pelo papado à Coroa portuguesa,
como patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e
Brasil. (Boxer, 1978, p. 99)
40
Oliveira (1958) mostra que o direito do Padroado português era extensivo também
para os lugares, como Japão e China, pois mesmo não havendo possessões portuguesas, os
padres missionários nestas regiões representavam além do Papa, a coroa lusitana.
O direito de Padroado, exercido de forma corrente no século XVI, não foi concedido
de uma só vez, e teve seu início no século XV. As sucessivas concessões papais, formalizadas
através de bulas, ocorreram de 145219 a 1534. Oliveira apresenta as principais bulas papais
que documentam o Padroado português:
19
A emissão das bulas coincide com a chamada expansão marítima portuguesa, que teve início com a tomada de
Ceuta (1415), cujo objetivo principal era posse de áreas agrícolas produtoras de cereais, das quais Portugal era
deficitário. Com essa conquista consagrou-se o desenvolvimento dos trabalhos náuticos. A idéia fundamental
era difundir o cristianismo e retomar a tradição de defesa do mesmo contra o islamismo. A expansão
continuou com algumas conquistas marítimas: em 1419 a Madeira; em 1432 Açores; em 1436 Rio do Ouro;
em 1436 a Serra Leoa, e em 1434, Gil Eanes dobrou o cabo Bojador. Depois de uma interrupção, outras
conquistas se seguiram: em 1441, Nuno Lisboa alcançou o cabo Branco e, em 1460, foi descoberto o
arquipélago de Cabo Verde. Já a chamada expansão comercial portuguesa, na qual se inicia o chamado
Império Lusitano, tem passo fundamental dado com a dobra do Cabo da Boa Esperança em 1497/1498, com
Vasco da Gama.
41
Antes, porém, para não correr o risco de passar uma idéia errada, é preciso esclarecer,
apoiado em Oliveira, que os jesuítas não foram os primeiros e nem os únicos padres a irem
para as missões em terra de além-mar (e nem poderiam ser os primeiros, pois o
empreendimento comercial português teve início antes mesmo da fundação da Companhia de
Jesus). Em Calecute, na Índia, por exemplo, os franciscanos foram os primeiros a chegar em
1500; e quando da chegada dos jesuítas, eram eles que dominavam as missões. Mesmo em
1540, continua informando Oliveira, não só os jesuítas foram para a Índia, mas também, os
franciscanos continuaram indo, como também os dominicanos, os oratorianos, os agostinhos,
42
20
É interessante a apresentação que Hugues Didier faz desta carta de Xavier, onde a aparente contradição é
resultado de uma soma: “Como das outras cartas enviadas ao Rei de Portugal, esta aqui ainda deixa
43
entanto, mais do que mostrar revolta, Xavier tem clareza que o chefe da missão a quem ele
deve se reportar é o próprio Rei, o qual sendo o patrono da evangelização nas Índias, era o
protetor da Companhia de Jesus: o Rei “é o principal e verdadeiro protetor de toda a
Companhia de Jesus, tanto por seu amor como por suas obras” (Xavier, 1987, p. 213)21.
Ainda em 1548, só que em outra carta dirigida aos jesuítas da Costa da Pescaria e de
Travancore, carta esta apresentada por Didier como de instrução, Xavier faz uma série de
recomendações aos irmãos jesuítas, já preparando sua partida para o Japão, o que ocorrerá no
ano seguinte. Além das práticas correntes do missionário, como catequizar, dizer missas,
batizar etc., também é alvo das preocupações a relação com os capitães portugueses. Mesmo
sabendo que a maioria dos capitães não eram confiáveis do ponto de vista da religião, Xavier
ordena aos seus subordinados “de sob nenhum pretexto estar em más relações com o capitão”
(p. 228)22. Há a consciência do Provincial jesuíta aqui de três aspectos relacionados entre si e
que estão sempre presentes no epistolário jesuítico: primeiro, o jesuíta não deve imiscuir-se
nos assuntos civis; segundo, a consciência de que o capitão é o representante legal do Rei
naquelas terras; e terceiro, se fosse para fazer alguma reclamação mais insistente e séria
deveria reportar-se diretamente ao Rei, como o próprio Xavier o fez.
Muitas vezes o sucesso das missões do Padroado era devido à interferência direta dos
agentes do Rei nas terras de além-mar, como também o contrário, como se verá mais à frente.
No Brasil, as cartas dos jesuítas revelam esse aspecto da relação do sucesso das missões com
o comportamento dos Governadores-gerais, por exemplo, e um deles destacado positivamente
foi Mem de Sá, que governou o Brasil de 1557 a 1572.
manifestar as contradições entre a obra missionária e a empresa colonial realizadas, uma e outra, em nome
do Padroado. São Francisco Xavier não se encontraria na Ásia se os portugueses não o tivessem precedido, e
ele sempre precisa deles. Mas, com os portugueses Xavier não pode cumprir seu objetivo” (Xavier, 1987,
213). (“Comme bien d’autres lettres envoyées au Roi du Portugal, celle-ci laisse encore se manifester les
contradictions entre l‘ouvre missisonaire et l’entreprise coloniale accomplies l’une et l’autre au nom du
Patronat. Saint François Xavier ne se trouverait pas en Asie si les Portugais ne l’avaient précédé, et il a
toujours besoin d’eux. Mais, avec eux, il ne peut parvenir à son but”).
21
“est le principal et véritable protecteur de toute da Compagnie de Jésus, aussi bien pou son amour que pour
ses ouvres”.
22
“de n’être sous aucun pretexte en mauvais termes avec le Capitaine”.
44
(...) Este temor os faz habeis para poderem ouvir a palavra de Deus; ensinam-se
seus filhos; os innocentes que morrem são todos bautizados; seus costumes se
vão esquecendo e mudando-se em outros bons, e, procedendo desta maneira, ao
menos a gente mais nova que agora ha e delles proceder, ficará uma boa
christandade. (Navarro, 1988, p. 230)
Noutra carta, agora de Ruy Pereira, escrita em 1560, nota-se que os jesuítas tinham
muito claro que o seu trabalho dependia do poder temporal, e a presença de Mem de Sá era a
segurança que eles tinham, pois “(...) finalmente, enquanto durar nesta terra o Senhor
Governador, ou quem conserve seus meios com tanto zelo como elle faz, irá a conversão
vento á popa. (...)” (Navarro, 1988, p. 287).
Na éra de 1557 veiu o terceiro governador Mem de Sá. Êste sujeitou quasi todo o
Brasil, teve guerra com os Indios do Paraguaçú fronteiros da Baía e muito
poderosos, em que lhes queimou 160 aldeias, matando muitos e os mais sujeitou.
Amansou os dos Ilhéus que estavam levantados e tinham destruidas muitas
fazendas e posta a capitania em grande apêrto. Dêstes houve muitas insignes
vitórias até que ficaram sujeitos todos os Indios comarcãos da Baía, desde
Camamú até o Itapucurú, que são 40 leguas. Sujeitou á lei de Deus e os fez
ajuntar e fazer egrejas e desta maneira foi em grandissimo aumento a conversão
que foi começada em tempo de dom Duarte da Costa. (Anchieta, 1988, p. 311)
Comentários como estes, louváveis à atuação das autoridades civis nas terras em
missão, eram menos freqüentes que as críticas, como ver-se-á mais adiante; no entanto,
evidenciam que uma das razões para que a empresa religiosa tivesse mais ou menos sucesso
era o comportamento das empresas comercial e colonial.
23
Pela demora e extravio de muitas cartas, Inácio de Loyola só ficou sabendo da morte de Xavier praticamente
três anos após. Por isso que essa carta é datada de 1553 sendo que Xavier já havia morrido nas portas da
China em dezembro de 1552.
45
bem como vós, podeis pensar que se moverá a realizar muitas propostas vossas
para o serviço de Deus N. Senhor e auxílio dessas regiões. (Cardoso, 1993, p. 82)
O auxílio que o Rei prestava às missões era, ou deveria ser, principalmente financeiro
para dar conta de todos os gastos que não eram poucos, relativos à edificação igrejas, de casas
e de colégios e ao sustento material de cada padre em particular. Não resolvia somente a
proteção política, que era sem sobra de dúvida importantíssima, se não houvesse o dinheiro
para o desenvolvimento das missões.
Na longa carta escrita por Francisco Xavier, em 29 de janeiro de 1552, na qual relata
toda a viagem de dois anos e meio pelo Japão, mostra, entre outras coisas, aos companheiros
da Europa, que durante todo o tempo da viagem, a única esmola – leia-se ajuda financeira -
que ele e os seus receberam foi do “cristianíssimo Rei de Portugal”, afirmando, na
continuidade que “não se pode crer quão favorecidos somos de Sua Alteza, e o muito que
conosco gasta em dar tão largas esmolas para Colégios, casas e as outras necessidades” (In:
Cardoso, 1996, p. 96).
Falta falar agora da clementíssima liberalidade do nosso Rei para connosco. Ele
não só provê os Nossos de viático [provisão de dinheiro e/ou de gêneros para
viagem], mas dá também dinheiro muito liberalmente para que aos Nossos se
enviem bibliotecas e outras coisas que faltam naquelas regiões até agora pouco
povoadas. Não lhe ficou por menos de oitocentos cruzados, só este ano, a
navegação dos Nossos; e, usando há dez anos de semelhante liberalidade, não
só não se cansa, mas cada dia acrescenta alguma coisa à soma da beneficência
anterior. Os seus dois irmãos, o Eminentíssimo Cardeal D. Henrique e o Infante D.
Luís procuram igualar o próprio Rei na caridade que a nós todos nos mostram. (In:
Leite, 1956, p. 467
24
O padre jesuíta Cipriano Suárez era natural de Toledo, tendo entrado na Companhia em 1549, faleceu em
1593. Foi professor e Reitor do Colégio de Braga (Leite, 1956, p. 464).
46
A outra obrigação do Rei para com as missões era a garantia de sempre enviar mais
missionários, não esquecendo que do ponto de vista do empreendimento como um todo, ao
Rei competia todo o aporte financeiro do envio deles. Nesse sentido, a tarefa de pedir mais
trabalhadores para a messe é dos missionários que já estão nas missões, particularmente dos
provinciais que pedem não só ao Geral ou ao Provincial de Portugal, mas também diretamente
ao Rei, como é o caso, por exemplo, de Xavier. Numa outra parte da carta já citada, de 20 de
janeiro de 1548, o jesuíta alerta D. João III para a necessidade de mais padres, pois sem eles
não haveria conversão espontânea dos gentios:
Eu presto contas de tudo isto a Vossa Alteza para que não se esqueça de enviar
os padres, pois com a falta deles na Índia, nem os portugueses e nem aqueles
que são convertidos a nossa fé são cristãos. Além disso, eu não tenho mais
esperança que tal bem espiritual [a cristianização] possa acontecer aqui nestes
territórios; pois a Índia possui esta particularidade: ela não suporta que se faça tão
25
grande bem espiritual. (Xavier, 1987, p. 216)
Se Xavier demonstra ter a exata noção de que a empresa religiosa é devedora do apoio
do Soberano e dos seus representantes civis e políticos nas Índias, revela, outrossim a
concepção de que se deixar por conta apenas dos colonos e comerciantes portugueses, a
empresa religiosa tendia para a falência; daí a advertência, feita várias vezes – aliás também
pelos padres jesuítas no Brasil –, de que os padres eram ali necessários. Xavier vai mais longe
ainda nesta concepção – como igualmente os do Brasil –, na medida em que não existe
confiança mesmo nos cleros seculares ou mesmo de outras ordens religiosas, como veremos
mais adiante.
Antes de mostrar mais detidamente como se dava o Padroado nas Índias e no Extremo
Oriente e no Brasil, ainda uma questão geral aparece e é reveladora da intrínseca união entre
Estado, no caso a Coroa26, e a Igreja. Em última instância, o chefe dos dois empreendimentos,
o comercial/colonial e o religioso, é o mesmo, pois a Igreja nacional é, às vezes de direito, às
25
“Je rends compte de tout cela à Votre Altesse pour n’oublie pas d’envoyer des prédicateurs, car par manque
de ces derniers en Inde, ni les Portugais ni ceux qui sont convertis à notre Foi se sont chrétiens. Par alleurs,
je n’ai point l’espoir qu’un tel bien spirituel puísse advenir en ces contrées-ici, car l’Inde possède cette
particularité: elle ne supporte pas qu’on y fasse un si grand bien spirituel.”
26
Ernest H. Kantorowicz, em Os dois corpos do Rei, mostra que a definição da Coroa, como um símbolo duplo
– por um lado, a coroa material, “visível”, símbolo do Rei e, de outro, a Coroa Imaterial, “invisível”, símbolo
da dinastia, símbolo da corte e do próprio reino – passou a ser mais utilizada na modernidade e expressa a
concepção absolutista de sociedade. A idéia que começou a tomar corpo no século XIII é a de que Coroa
representava o próprio reino, os direitos e aspirações fundamentais de um país. A Coroa e o reino eram
distintos, porém inseparáveis. Por isso se poderia julgar um príncipe por não atender às necessidades da Coroa,
mas não se poderia pensar na Coroa sem a existência de um príncipe (1998, capítulo VII). Aliás este livro de
Kantorowicz é muito interessante para quem quer conhecer um pouco mais ou mesmo se aprofundar em
questões relativa à teologia política medieval.
47
vezes de fato, subordinada ao Rei. Tal qual o Leviatã de Hobbes, os dois poderes, o temporal
e o espiritual estão sob sua autoridade.
27
“décharger la conscience de Votre Altesse”.
28
“l’expérience m’a enseigné que Votre Altesse n’exerce pas uniquement sa puissance dans l’Inde pour
accroître la foi du Christ: elle exerce aussi sa puissance pour saisir et pour posséder les richesses
temporalles de l’Inde”.
48
A diocese de Goa foi fundada em 1533, abrangendo todos os territórios desde o Cabo
da Boa Esperança até a China, passando pela Índia, e foi entregue ao Rei de Portugal, como
parte dos direitos do Padroado. Em 1557 a diocese de Goa foi desmembrada criando-se duas
outras: a de Cochim e a de Malaca, ficando a de Goa como Arquidiocese. Em 1576 foi criada
a diocese de Macau; em 1588 a de Funay; e em 1594 a de Angamale.
Os jesuítas que iam para as missões sempre desembarcavam em Goa, capital política e
religiosa do Estado da Índia. Eles não eram somente portugueses, mas sim de várias
nacionalidades; no entanto, como se tratava de uma empresa religiosa ligada ao direito de
Padroado da Coroa portuguesa, durante algum tempo todos os que iam para as Índias – e
igualmente para a África e Brasil – passavam por Portugal, estudando no Colégio das Artes e
na Universidade de Coimbra. Nesse sentido, mesmo sendo de países diferentes, é da cultura
de corte portuguesa que se tornavam arautos e divulgadores, a começar pelo esforço em
escrever as cartas em português.
29
“(...) Il a pratiquement adopté le portuguais, comme tous les Européens résidant au XVIe siècle em Asie. (...)
Xavier se sert très peu du latin, jamais du français qu’il a longtemps parlé à Paris, jamais du basque non plus
qui est as langue maternelle. Il a apris plusiers langues asiatiques dont il s’est servi pour dicter ou rédiger
des documents: nous n’en conservons aucun. (...)”.
49
Quanto ao cotidiano das missões, com o acúmulo da experiência tanto nos aspectos
mais propriamente religiosos quanto nos sociais e políticos, pode-se estabelecer quatro
aspectos a serem destacados: as críticas ao comportamento pouco cristão dos comerciantes e
colonos portugueses, bem como ao clero secular; o poder do clero nativo; o batismo e a
catequese das crianças; e, as qualificações necessárias dos futuros missionários.
Logo que chegou em Goa, Xavier foi surpreendido pelo fato de que aos portugueses os
interesses comerciais eram prioritários em relação aos religiosos. Ele escreve para Loyola, em
20 de setembro de 1542, mostrando sua indignação pelo fato de os cristãos daquelas terras
não cumprirem todos os ritos da quaresma.
(...) Ele [o Vice-rei] pede ainda isto [indulgências por ocasião da quaresma], pois,
durante a Quaresma, aqui é verão: todas as pessoas vão ao mar a bordo da frota
– pois aqui os Portugueses são mestres dos mares e os Infiéis da terra –; todos
vão, então, à guerra durante a Quaresma e é tempo também em que os
mercadores navegam. Eles não se confessam e nem comungam porque não se
30
encontram em terra. (...) (Idem, ibidem, p. 94)
30
“(...) Il demande encore ceci, car pendant le Câreme, c’est ici l’été: tous le gens prennent la mer à bord de la
flotte – car ici les Portugais sont maîtres des mers, et les Infidèles de la terre –; tous les gens vont donc a la
guerre pendant le Carême et c’est alors que les marchands naviguent. Ils ne se confessent pas ni ne
communient parce qu’ils ne se trouvent pas à terre. (...)”.
50
religiosa31 e a religião era a cristã, na época da quaresma várias atividades normais eram
reguladas ou mesmo suspensas, principalmente as relativas às guerras. A quaresma também
era um tempo especial em que os cristãos deveriam confessar os seus pecados e comungar.
Pela documentação consultada, esta foi a primeira grande decepção do missionário jesuíta. No
entanto, com o passar do tempo e a experiência adquirida, principalmente com o inverno
rigoroso daquelas terras, Xavier chega a propor ao Geral Loyola uma consulta ao Papa para
autorizar um ano litúrgico especial nas terras de além-mar, para que a quaresma não
coincidisse com o verão, pois chegou à conclusão de que se não se poderia ir de encontro aos
interesses comerciais, havia a necessidade de ajustar os momentos especiais de prática
religiosa.
As queixas de Xavier continuam por várias cartas e, talvez o momento em que ele se
encontre mais exaltado se revela numa carta ao Rei D. João III, escrita de Coxim, em 20 de
janeiro de 1545. Nesta missiva, onde começa citando conquistas cristãs do império lusitano e
da necessidade de gente virtuosa para fazer o trabalho de cristianização dos gentios, ele
endereça palavras duras ao Soberano português. Na condição de Superior das Índias e de
embaixador da coroa portuguesa, reclama de forma franca e direta – como faz em outras
cartas – sobre o relaxamento dos colonizadores, comerciantes e soldados portugueses a
respeito das coisas cristãs. A chamada de atenção é feita com a simulação do julgamento do
Rei no dia do juízo final, no qual a permissividade real seria duramente cobrada por Deus:
31
Lucién Febvre adjetiva o século XVI como “um século de vida religiosa” (apud, Barreto, 1983, p. 101).
32
“Je n’en aurais jamais fini si je voulais vous écrire le désir que j’ai de me rendre sur la Côte. Je vous l‘assure
et c’est la verité, que si je trouvais aujourd’hui un bateau pour m’embarquer, je m’en irais tout de suite”.
51
(...) De fato existe este perigo, a saber, que uma vez convocado por Nosso Senhor
diante de seu tribunal (e isto deve acontecer quando menos se espera; e não há
nem esperança nem meio de se evitar) Vossa Majestade não queira ouvir da parte
do Deus encolerizado o que eu ousaria dizer: “Porque não prestaste atenção
àqueles que, se apoiando sobre tua autoridade e estando sujeitos a ti, se
opuseram a mim na Índia? Enquanto puniste severamente, se eles foram
surpreendidos ao serem negligentes no zelo de tuas rendas e no cálculo de teus
impostos(...)” Eu ignoro Senhor qual será sua resposta para que Vossa Majestade
seja perdoada: “Em verdade, cada vez que eu escrevia de lá, cada ano, era para
recomendar as coisas do serviço divino”. Imediatamente seria respondido:
“Entretanto tu permitiste àqueles que recebiam tão santas ordens de agir
impunemente, quando ao mesmo tempo, tu fazias aplicar penas merecidas
àqueles que tinhas descoberto que haviam sido pouco fiéis ou pouco zelosos da
33
administração de teus negócios”. (Idem, ibidem, pp. 147-148)
Xavier pretende colocar D. João III em uma situação religiosa bastante incômoda, para
ver se dessa forma o Rei usava de sua autoridade para reprimir os portugueses pecadores.
Assim como o trabalho dos missionários aliviava a consciência do Rei, o comportamento dos
portugueses dava peso a ela. A saída para tal situação embaraçosa para o Rei é, do ponto de
vista do jesuíta, o envio de pessoa com autoridade e virtudes cristãs – um capitão, um
governador –, pois dessa forma, “no futuro serão evitados prejuízos e escândalos, que até o
presente momento foram numerosos e graves à causa cristã” (Idem, ibidem, p. 148).34
33
“(...) De fait il existe ce danger, à savoir qu’une fois convoquée par Dieu notre Seigneur devant son tribunal
(et cela doit arriver quand on s’y attend le moins; et il n’y a ni espoir ni moyen de l’eviter) Votre Majesté
n’ait à s’entendre dire de la part de Dieu courroucé, oserai-je le dire: ‘Pourquoi n’as-tu pas fait attention a
ceux qui, s’appuyant sur ton autorité en étant tes sujets, se sont opposés à moi dans l’Inde? Alors que tu as
sévèrement punis, s’ils ont été surpris à être négligents dans le soin de tes revenus et dans de calcul de ton
fisc(...)’ J’ignore, Seigneur, de quelle importance sera pour excuser alors Votre Majesté la réponse qu’elle
fera: ‘En verité, chaque fois que j’écrivais lá-bas, chaque année, c’était pour recommander les choses du
service divin.’ Il serait immédiatement répondu: ‘Et pourtant tu as permis à ceux qui accueillaient de si
saintes ordonnances d’agir impunément, alors que, pendant ce temps, tu faisais appliquer des peines méritées
à ceux dont tu avais découvert qu’ils avaient été peu fidèles ou peu empressés dans l’administration de tes
affaires’.”.
34
“on évitera à l’avenir les prejudices et les scandales, qui ont été jusqu’à présent nombreux et graves pour la
cause chrétienne”.
35
“commerce que nous avons avec les infidèlesest si intense, et notre dévotion si peu de chose, que l’on a bien
plus vite fait de négocier des profits matériels que des mystères du Christ notre Rédempteur et Seigneur”.
52
o jesuíta pede ao Rei que “envie a Santa Inquisição”36 (Idem, ibidem, 1987, p. 186) como um
remédio amargo, mas necessário, para coibir os escândalos realizados naquelas terras.
Xavier tem clareza de que somente a atividade dos padres não é suficiente para
converter todos os gentios e muito menos mantê-los convertidos e praticantes da religião
cristã; a ajuda e o exemplo dos outros portugueses era deveras importante, por isso a decepção
que ele mostra em várias cartas. Em 12 de janeiro de 1549, próximo de partir para o Japão,
escreve a Inácio de Loyola, mostrando que as conversões ao cristianismo eram diretamente
proporcionais ao tratamento dado pelos portugueses aos gentios:
(...) Dessa maneira, se os infiéis destes territórios fossem bem tratados pelos
portugueses, numerosos seriam aqueles que se tornariam cristãos; mas os gentios
viam que aqueles que são cristãos são tão maltratados e tão perseguidos que, por
37
esta razão, eles não querem se converter. (Idem, Ibidem, p. 248)
36
A Inquisição em Goa só vai ser edificada em 1560 e se tornou o mais ativo tribunal do império português,
sendo que os julgamentos mais numerosos foram relativos ao hinduísmo. (Bethencourt, 2000, capítulos VII e
VIII; e Tavares, 2002, capítulo III)
37
“(...) Toutefois, si les infidèles de ces contrées-ci étaient très bien traités par les Portugais, nombreux seraient
ceux que deviendraient chrétiens; mais les Gentils voient que ceux qui sont chrétiens sont si maltraités et si
persécutés que, pour cette raison, ils ne veulent point devenir tels.”
53
relata o encontro dele com os cristãos de Malabar, os quais, aliás, de cristãos tinham apenas a
roupagem, adjetiva a “casta” dos brâmanes, leia-se os sacerdotes e intermediários, de “a gente
mais perversa do mundo” (Idem, Ibidem, p. 108)39. Os sacerdotes brâmanes eram perversos,
pois ao pregarem àqueles que já haviam se convertido ao cristianismo, praguejavam que
iriam sofrer muito, os quais acreditavam, impedindo o progresso da missão. Para Xavier,
se “não existissem os Brâmanes, todos os gentios se converteriam à nossa fé” (p. 109)40.
38
Título religioso pelo qual Francisco Xavier teve reconhecido seus trabalhos de missionário em terras
japonesas.
39
“c’est la plus perverse gent du monde”.
40
“n’y avait pas les Bramanes, tous les Gentils se convertiraient à notre foi”.
41
Na última parte deste trabalho apresento uma definição das Cartas de Edificação, que eram diferentes das
Cartas de Negócios.
42
Alguns destes recursos serão apresentados na última parte da tese ligados mais diretamente à estratégia de
adaptação para facilitar as conversões.
54
optar pelo batismo em massa das crianças era o fato de que a mortalidade infantil parecia ser
muito intensa naquela época e território, pois acreditavam que as crianças eram inocentes e,
nesses casos, sem pecados e passíveis de serem batizadas.
Para dar conta de tanto trabalho de catequese, especialmente das crianças, mas
também dos outros, se fazia necessário mais missionários, afinal, como escrito em muitas
cartas de missionários, a messe é grande e os operários são poucos, parafraseando o
evangelista Mateus. O aspecto a se ressaltar aqui com relação ao freqüente pedido de mais
padres diz respeito ao rol de características necessárias para o futuro missionário.
43
“mettrez beaucoup de diligence à baptizer tous les enfants qui naissent e vous les instruirez de la façon que je
vous ai dite”.
55
(...) Com efeito, nestes lugares de infiéis, a ciência não é necessária; é suficiente
ensinar as preces e visitar as vilas para batizar as crianças; muitas dentre elas,
com efeito, morrem sem ter sido batizadas porque lá não há ninguém por batizá-
45
las e nós não podemos ir a todos os lugares. (...) (Idem, ibidem, p. 151)
E na mesma carta, Xavier mostra que não só virtudes cristãs, mas, virtudes físicas
eram pré-requisitos para as missões, pois a pouca comida, o muito calor, a falta de boa água,
eram problemas quase que cotidianos enfrentados pelos padres; por isso, os que fossem
enviados teriam que ser “bem jovens, sadios e não envelhecidos, afim de poder suportar as
fadigas contínuas para batizar, para ensinar, para ir de vila em vila” (p. 151)46.
Com relação ao primeiro aspecto das virtudes dos missionários, numa outra carta a
Loyola, já citada, escrita em 12 de janeiro de 1549, Xavier se mostra realista ao extremo para
com o Geral, na medida em que tem convicção de que para as missões entre os malabares
(tamouls) não era necessário que a pessoa fosse dotada de inteligência para pregar ou estudar,
recomendando que as pessoas da Companhia que “não possuam talentos nem para o estudo
nem para a pregação e que não sejam necessários onde moram ou em Roma ou em outras
localidades, serviriam a Deus com vantagem se eles estivessem aqui” (Idem, ibidem, p.
250)47, sendo que deveriam, ao menos, ser castos e com forças corporais necessárias para
enfrentar todos os problemas e rudezas daquelas terras.
44
“les adultes ne veulent aller au paradis ni par de bons ni par de mauvais procédés, qu’au moins puissent y
aller les petits enfants qui meurent après avoir été baptisés”.
45
“(...) En effet, dans ces contrées d’infidèles, la sciense n’est pas nécessaire; il suffit d’enseigner les prières et
de visiter les villages pour y baptiser les enfants; beaucoup d’entre eux, en effet, meurent sans avoir été
baptisés parce qu’il n’y a personne pour les baptiser et que nous ne pouvons pas aller partout. (...).”.
46
“jeunes et bien portants, et non pas malades ou âgés, a fin de pouvoir supporter les fatigues continuelles qu’il
y à baptiser, à enseigner, à aller de village en village.”.
47
“ne possédent de talent ni pour l’étude ni pour la prédication et dont on n’besoin chez vous ni à Rome ni
ailleurs, serviraient Dieu davantage s’ils étaient ici”.
56
Esta será a situação em que eles não terão mais tempo nem para comer nem para
dormir. O demônio utiliza então muitas maneiras para tentar, igualmente nestes
casos: quando um homem é privado do exercício espiritual, da meditação, da
contemplação mental, da oração e, a mais forte razão, quando ele é impedido de
tomar o Corpo do Senhor da mesma forma que de dizer a missa, e ao mesmo
tempo, quando se é perseguido pelos bonzos e também pelos grandes frios e pela
falta de provisões, quando se está longe de todo apoio e de toda ajuda humana,
49
se sentirá, creia-me, muito provado. (Idem, ibidem, p. 389)
Estas são as questões relativas ao Padroado português nas Índias e no Extremo Oriente
que julgou-se mais oportunas de serem apresentadas. São Francisco Xavier foi o grande
arauto das missões naquelas terras, tendo morrido justamente quando se preparava para levar
a religião cristã para mais uma região, a China. Apenas como mostra do trabalho realizado por
ele, Daniel-Rops (1969) afirma que Xavier teria percorrido, nos dez anos de missão, mais de
cem mil quilômetros, e isso levando-se em conta toda a dificuldade e morosidade dos
deslocamentos naquela época. E, como resultado da investida do jesuíta em terras japonesas,
informa que na última década de 1500, havia já 134 jesuítas no Japão, para uma população
católica estimada em 300 mil; trinta igrejas haviam sido construídas e em 1592, um bispo
havia sido nomeado.
48
São Francisco Xavier chegou em terras japonesas em 15 de agosto de 1549.
49
“Ce sera au point qu’ils n’auront plus de temps ni pour manger ni pour dormir. Le démon utilize alors de
grands procédés pour tenter, dans de pareils cas: lorsqu’un homme est privé d’exercice spirituel, de
méditation, de contemplation mentale, d’oraison et, à plus forte raison, quand il est empêché de prendre de
Corps du Seigneur aussi bien que de dire le messe, et en même temps, quand on est très persécuté par les
bonzes aussi bien que par les grands froids et par le manque de ravitaillement, quand on est loin de tout
appui et de tout aide humaine, on sera, croyez-moi, très éprouvé”.
57
O direito de Padroado nas Índias e Oriente teve seu momento de expansão na mesma
medida da expansão comercial portuguesa, ou seja, enquanto o poderio português era grande e
respeitado naquelas terras, o Padroado se desenvolvia; no entanto, como assevera Oliveira
(1958), a decadência do Padroado português seguiu, como não poderia deixar de ser, a
decadência do império português no Oriente.
O Padroado no Brasil
O direito de Padroado exercido em terras brasileiras sob a bandeira jesuíta, não diferiu
em muito do relatado por Francisco Xavier, havendo, porém, especificidades que não podem
ser ignoradas, como, por exemplo, a imensa diferença de poderio social, político e militar que
existia aqui entre os portugueses e os índios e os costumes dos aborígines daqui que eram
considerados bárbaros pela cultura européia, o que facilitava, de certa forma, o trabalho de
catequização. No entanto, como já informado anteriormente, algumas dessas especificidades
serão apresentadas na última parte deste trabalho, quando se discute a adaptação dos jesuítas.
Em mais uma carta, D. João III, agora em 1557, provavelmente a pedido dos próprios
jesuítas portugueses, escreve a Francisco Fernandes, que era vigário geral da Bahia,
encomendando àquela autoridade religiosa que “em tudo o que os Padres da Companhia de
Jesus vos pedirem os ajudeis, e favoreçaes no intento que tem do Serviço de Nosso Senhor, a
Salvação das Almas” (Idem, 1957, p. 357).
1. Dom Sebastião per graça de Deos, Rei de Portugal e dos Algarves d’aquem e
d’alem mar em Africa, senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comercio
d’Ethiopia, Arábia, Persia e da India, etc., como governador e perpetuo
administrador que são da Ordem e Cavalaria do Mestrado de Nosso Senhor Jesu
Chisto, faço saber a quantos esta minha carta de doação virem, que considerando
eu a obrigação que a Coroa de meus Reinos e Senhorios tem à conversão da
gentilidade das partes do Brasil e instrução e doutrina dos novamente convertidos,
assi por as ditas partes serem da conquista destes Reinos e Senhorios, como por
estarem os dizimos e fruitos ecclesiasticos delas, por Bullas dos Santos Padres,
aplicados à Ordem e Cavalaria do dito Mestrado de Nosso Senhor Jesu Christo,
de que eu e os Reis destes Reinos meus subcessores somos governadores e
perpetuos administradores.” (Idem, 1960, pp. 95-96)
4. O qual collegio fosse tal que nelle podessem residir e estar até sessenta pesoas
50
da dita Companhia , que parece que por agora deve aver nele, pellos diversos
lugares e muitas partes, em que os ditos Padres residem e a que do dito collegio
são emviados pera bem da conversão e outras obras de serviço de Nosso Senhor.
(Idem, ibidem, p. 97)
50
Em nota de rodapé, Serafim Leite ajuda a entender o motivo de se citar o número de jesuítas que existiam no
Brasil naquele momento: Os Padres e Irmãos residentes nos diversos lugares do Brasil, eram exactamente 61
em 1568. Donde se segue que nesta primeira dotação régia, o Colégio da Baía não se apresentava como
entidade local, mas representativa de toda a Companhia de Jesus no Brasil. (...)” (p. 97)
59
portugueses, bem como ao clero secular; o poder dos sacerdotes nativos; o batismo e a
catequese das crianças; e, as qualificações necessárias dos futuros missionários.
Assim como nas cartas de Xavier, não é difícil encontrar críticas ao comportamento
dos portugueses, pois a impressão que passa das cartas dos jesuítas no Brasil é que eles
também consideravam que havia uma contradição entre a empresa colonial e a empresa
religiosa. E essa apreensão não demorou a acontecer. Nas três primeiras cartas de Nóbrega a
Simão Rodrigues, Provincial de Portugal e seu Superior imediato, as críticas já existem.
Na primeira que escreve em 1549, a qual deve ter sido escrita entre 31 de março e 15
de abril, Nóbrega informa ao seu Superior imediato que uma das primeiras tarefas deles
consistiu em encontrar bons cristãos, tanto leigos como clérigos, que colaborassem com o
projeto religioso. No entanto, a decepção do jesuíta é evidente:
(...) Sómente temo o mau exemplo que o nosso Christianismo lhe dá, porque ha
homens que ha sete e dez annos que se não confessam e parece-me que põem a
felicidade em ter muitas mulheres. Dos sacerdotes ouço cousas feias. Parece-me
que devia Vossa Reverendissima de lembrar a Sua Alteza um Vigario Geral,
porque sei que mais moverá o temor da Justiça que o amor do Senhor. (...).
(Nóbrega, 1988, p. 75)
Na terceira carta de 1549 que escreve para Simão Rodrigues, datada de 09 de agosto,
Nóbrega faz um balanço das atividades na Bahia e, uma vez mais, faz questão de mostrar que
não é possível confiar nem nos colonos e comerciantes e nem no clero. Por exemplo, com
relação aos futuros bispos que deveriam vir para cá, assevera que viessem “para trabalhar e
não para ganhar” (Idem, ibidem, p. 83), pois se o objetivo era ganhar dinheiro, lucrar com a
prelazia, não havia diferença entre eles e os leigos que freqüentemente escandalizavam os
gentios da terra. Aliás, esse é um dos motivos alegados para a estratégia que vai ser comum
no Brasil, de juntar os índios, para melhor reduzi-los à fé cristã. Note-se, na passagem que
segue, que Nóbrega chega a considerar o gentio da terra moralmente melhor do que os
próprios cristãos:
61
De maneira que os primeiros escandalos são por causa dos Christãos, e certo
que, deixando os maus costumes que eram de seus avós, em muitas cousas
fazem vantagem aos Christãos, porque melhor moralmente vivem, e guardam
melhor a lei da natureza. Alguns destes escravos me parece que seria bom juntal-
os e tornal-os á sua terra e ficar lá um dos nossos para os ensinar, porque por
aqui se ordenaria grande entrada em todo este Gentio. (Idem, ibidem, p. 81)
Das críticas de Nóbrega, que são numerosas, mais alguns exemplos merecem menção.
No primeiro, escolhido de carta de 1551, escrita de Pernambuco para os irmãos de Portugal, o
Superior jesuíta no Brasil é radical em sua apreciação crítica dos sacerdotes, afirmando que
eles têm ofício mais de demônios do que de clérigos, acrescentando que se os jesuítas não
tivessem a proteção de el rey possivelmente já teriam sido mortos a mando dos clérigos
corruptos. Percebe-se que o embate dos jesuítas, particularmente de Nóbrega, com o clero,
principalmente o secular, era intenso. No próximo item deste trabalho, ter-se-á a oportunidade
de ver que as atitudes tidas como radicais de Nóbrega nem sempre eram vistas com bons
olhos pelos superiores de Portugal.
Um dos membros do alto clero que é criticado por Nóbrega é o bispo Pedro Fernandes.
Numa carta ácida a Simão Rodrigues, de 12 de fevereiro de 1553, o bispo é apresentado como
venal e corrupto, sendo odiado pelo povo. O interessante nesta crítica é que os escândalos que
o bispo e seus visitadores provocavam só faziam aumentar o crédito da Companhia de Jesus
entre as pessoas em geral:
El Obispo en el principio desacreditónos mucho y [se] puso muy bravo, pero luego
vino a caer algo, tanto que tenía sido los de la Compañía. El pueblo así de la
ciudad del Salvador como de las Capitanías, de ver que les llevan su dinero, de an
ganado grande odio al Obispo y a sus visitadores, y todo redunda en crédito de la
Compañía, aunque muchos a que no absolvemos y hallan quien los absuelva nos
quieren poco bien, quia testimonium perhibemus quod opera eorum mala sunt, et
ideo non possunt non odisse nos [Joao 7,7: “O mundo não vos pode odiar, mas
ele me odeia a mim, porquanto dele testifico que as suas obras são más”]. (In:
Leite, 1956, p. 422).
O outro exemplo referente às críticas do primeiro superior dos jesuítas no Brasil diz
respeito, uma vez mais, ao comportamento lascivo e escandaloso dos colonos portugueses. No
entanto, na carta de 1550, escrita em Porto Seguro, Nóbrega chega à conclusão de que tal
comportamento era devido, também, ao modo de vida dos colonos que, com a prática da
escravidão dos índios, deixam de ser trabalhadores, sendo invadidos pela preguiça e pela
sensualidade. E conclui ainda o jesuíta, de forma realista, que seria muito difícil tirar o
homem branco de uma vida de prazeres e comodidade, “porque os homens que aqui vêm não
acham outro modo sinão viver do trabalho dos escravos, que pescam e vão buscar-lhes o
62
alimento, tanto os domina a preguiça e são dados a cousas sensuaes e vicios diversos e nem
curam de estar excommungados, possuindo os ditos escravos” (Anchieta, 1988, p. 110).
Na carta escrita em 1559 da Bahia a Tomé de Souza, quando este já não era mais
governador do Brasil, encontra-se talvez o mais enfurecido desabafo de Nóbrega quanto aos
pecados dos capitães e prelados, ecclesiasticos e seculares. Nesta carta, o jesuíta lembra que
os dois chefes locais dos dois empreendimentos da Coroa portuguesa no Brasil, ele e Tomé de
Souza, tinham a esperança comum da vinda de um bispo para reformar os cristãos e a
conversão total e pacífica dos índios. Como nenhum dos dois objetivos foi conseguido, e
muito por culpa dos brancos portugueses, Nóbrega faz um dasabafo digno de nota:
51
Assim como Xavier é o Apóstolo do Japão, Anchieta recebeu o título religioso de Apóstolo do Brasil, por ser
considerado como o mais importante missionário jesuíta nestas terras.
63
Esta questão aparece com muita clareza em uma carta de outro missionário jesuíta no
Brasil, Antonio Blasquez que, em 1584, escrevendo ao Provincial de Portugal apresenta uma
síntese das agruras nas missões, destacando principalmente que o maior problema não era a
inconstância dos gentios, mas o enfrentamento com os portugueses que viam nos padres
jesuítas empecilhos às suas aspirações materiais. É muito interessante a passagem transcrita e
serve, também, como fecho deste tópico:
Posto que a Divina Providencia o anno proximo passado nos haja querido visitar
com alguns trabalhos, não foram todavia tão secos e duros, que não usasse
connosco da sua costumada misericordia e clemencia, fazendo o que em si era
aspero mui saboroso pelo seu divino amor; porque, fallando verdade, são tantos
os estorvos e impedimentos que ás vezes cá sobrevêm, não só da parte desta
Gentilidade por sua inconstancia e mutabilidade, como por parte dos Christãos
com seu pouco favor e auxilio, por lhes parecer que embaraçamos os seus
64
proprios interesses e proveitos que têm com os Indios, que se faria mui pesado o
seu suavissimo jugo aos homens fracos e debeis, si elle não misturasse e
temperasse essas continuas afflicções e ancias com as consolações que sentimos
em a conversão de muitas almas ao seu Creador”. (Navarro, 1988, p. 430)
Um outro aspecto a ser destacado do cotidiano das missões jesuítas no Brasil diz
respeito ao problema dos sacerdotes nativos ou, como são conhecidos aqui, os pajés.
Por mais que o processo de conversão e de doutrinação dos jesuítas para com os índios
não se revestisse de violência física, para os índios era muito difícil separar, pelo que aparece
nas cartas, a mensagem dos padres da força dos brancos portugueses. Os pajés incitavam
sempre os seus pares para compreenderem que a conversão à religião dos padres brancos era
sinônimo de subjugação aos interesses dos outros brancos. A tarefa do pajés era de resistência
de uma religião e de uma cultura; e era, também, a resistência de um poder que, com a nova
religião, deixava de ter status.
A vitória sobre os pajés era motivo de júbilo entre os jesuítas, pois representava
sempre a vitória sobre a maior resistência à conversão ao cristianismo. Nóbrega, em carta ao
Dr. Navarro, escrita ainda em 1549, narra, com nuances de disputa entre a Verdade e o Erro,
seu primeiro embate com um pajé:
melhor; não há espaço de divergência sobre a verdadeira religião; pode-se até polemizar se
era legítimo ou não escravizar os gentios da terra, ou se era viável ou não reduzi-los para
melhor evangelizá-los; o que não se discutia, tal qual um dogma, é que a cultura portuguesa
era a melhor pois a religião cristã, que era sua base, era a verdadeira. Por isso a vitória sobre
os pajés era importante.
Noutras cartas de Nóbrega aparece novamente a referência aos pajés como aqueles que
obstaculizavam, por dentro, ou seja, entre os próprios índios, o processo de conversão cristã.
Quando escreve para os irmãos de Portugal em 1551, por exemplo, o Superior do Brasil ao
fazer um resumo do comportamento dos gentios até aquele momento, mostra que os pajés
continuavam atuantes:
Na carta já citada de Nóbrega para o Dr. Navarro, de 1549, o jesuíta se ocupa também
de mostrar o sucesso das conversões entre os índios. É uma carta edificante para os jesuítas,
pois além de mostrar a vitória sobre o pajé, mostra que haviam conseguido inúmeras almas
para Deus, informando que era pelas crianças que se iniciava a conversão, as quais
convertiam, por sua vez, seus pais. Nesse primeiro momento o que se percebe, e que aparece
nesta mesma carta, é que as crianças e os chefes das tribos eram os alvos preferidos das
primeiras conversões, pois através deles toda a tribo seria convertida.
66
Um dos relatos mais interessantes a respeito do batismo é fornecido pelo jesuíta João
de Azpilcueta Navarro, através de uma carta para os companheiros de Portugal, escrita em 28
de março de 1550. Na epístola, o jesuíta discute a quem deveria e a quem não deveria deferir
o batismo, ou seja, no estado em que se encontravam os gentios, seus pecados, seus costumes,
suas relações etc., a quem era permitido ou não entrar para as hostes da religião cristã.
Observe-se que às crianças é permitido o batismo, pois são de boa inclinação ao contrário dos
adultos.
(...) Mas por duas cousas principalmente entendo que se lhes não deve
administrar o Baptismo. Uma, é não terem Rei a quem obedeçam, nem moradia
certa, mudando-se de aldêa todos os annos, e ás vezes mais frequentemente
quando succede algum d’elles embriagar-se e encolerisar-se, pois em taes
circumstancias nada menos fazem do que pegarem em um tição e tocarem fogo á
propria casa, donde o fogo pega nas outras por serem de palmas e d’esta arte
fica em cinzas toda a aldêa. (...) Não sei si dá por obra dos feiticeiros, os quaes
dizem que os vou ensinando para ter menos trabalho em fazer-lhes soffrer quando
forem feitos escravos nossos, tanto que asseveram que os fossos da cidade e
mais uma fonte que por necessidade se abriu, foram feitos para os pôr ali dentro e
os affogar, e os mais velhos são tão maliciosos, em grande parte, que todo o bem
que lhes diga convertem, como a aranha, em veneno; só aos pequenos acho com
boa inclinação, si os tirássemos de casa de seus Paes, o que não se poderá fazer
sem que Sua Alteza faça edificar um collegio nesta cidade com destino a essas
crianças para as educar, de maneira que com os maus costumes e malicia dos
Paes se não perca o ensino que se ministra aos filhos. (Navarro, 1988, pp. 76-77)
Vários são os relatos encontrados no interior das cartas dos padres jesuítas no Brasil
sobre o batismo das crianças, principalmente as doentes, e a catequese para elas. No entanto,
acredita-se que os exemplos aqui fornecidos são suficientes para mostrar esse aspecto do
cotidiano das missões.
Antes porém, de apresentar outro aspecto das missões, não se pode furtar, pelo menos,
a dar um destaque maior a uma questão presente nas duas últimas cartas citadas: a concepção
dos jesuítas de que, estrategicamente, a conversão dos chefes das tribos era de suma
importância. Esta crença, na verdade, expressava uma concepção e uma prática de sociedade
corrente no século XVI, quer seja, os povos com uma estrutura altamente centralizada e com
um governo de vastos poderes.
japonesa se converteria, ou pelo menos, uma grande parte, além de contar com o apoio do
principal mandatário do país. Aliás, um dos motivos da decepção de Xavier com as missões
entre os malabares, brâmanes e outros povos indianos, era o fato de entre eles inexistir um
poder central fortalecido e respeitado.
O outro aspecto das missões do Brasil, sobre o qual já se comentou nas missões nas
Índias, é referente ao contínuo pedido de mais padres para trabalharem na conversão dos
gentios, junto às cidades e também com os escravos negros das fazendas. Em praticamente
todas as cartas enviadas para os companheiros em Portugal, na Europa, para o Provincial
português, para o Geral em Roma, ou mesmo para o Soberano português, se pede
insistentemente mais trabalhadores para a messe. De todas as possíveis referências, ver-se-á
apenas duas que fogem um pouco do lugar-comum destes pedidos.
Outro aspecto que merece destaque e, de certa forma, é coerente com o anterior está
presente na carta de Inácio de Azevedo, o primeiro jesuíta Visitador da Província do Brasil52,
para o Geral Francisco de Borja, em 23 de agosto de 1566. A carta é um relatório acerca das
questões pendentes da decisão do Visitador e, a certa altura, indica que como o trabalho era
muito grande, era necessário o envio de muitos padres e irmãos para darem conta dele,
principalmente pelo fato de que não era possível contar, pelo menos ainda, com a
possibilidade de vocações próprias no Brasil:
4. Ay mucha falta de subieitos [sujeitos] en esta tierra, porque los naturales Indios,
por averiaguado se tiene acá que no son para ser admitidos a la Compañía ni los
mistizos. Los otros, que an venido del Reino, son todos ocupados en nuevas
haziendas y sus hijos lo mismo, de manera que no los poden en studios”. (In:
Leite, 1960, p. 368)
Já fazia dezessete anos que os jesuítas estavam no Brasil e não havia, ainda, como
contar com padres formados aqui mesmo. Essa constatação vai ao encontro do conceito que
os jesuítas tinham da própria religião gentílica e de como era difícil fazer com que eles, os
índios, permanecessem convertidos e praticantes da religião. Também contribuía o fato de a
racionalidade religiosa dos gentios da terra não ser preparada para dar conta de outra
racionalidade bem mais complexa, pois uma coisa era, por exemplo, ouvir missa e, outra,
dizer missa53.
Além destes aspectos das missões, comuns nas Índias e Oriente, existem alguns relatos
no Brasil que revelam outras facetas de como os jesuítas encaravam suas missões, do que era
importante informar aos outros irmãos, e de como, com o decorrer do tempo, apareceram as
dificuldades de manter casas e colégios.
52
Inácio de Azevedo foi escolhido primeiro Visitador da Província de Brasil, tendo chegado aqui em 23 de
agosto de 1566. Na viagem de retorno ao Brasil, em 1570, o navio onde ele e mais 39 jovens jesuítas ainda em
formação estavam, foi atacado por corsários hunguenotes de origem francesa e todos morreram no dia 15 de
julho.
53
Em sua tese de doutorado, Tavares faz uma interessante citação de uma determinação do padre jesuíta
Alexandre Valignano, como Visitador da província de Goa em 1588, proibindo que se aceitasse nativos
indianos entre os futuros jesuítas, “excetuando-se os japões” (p. 112, nota de rodapé 78). Ao que parece,
tanto entre os nativos do Brasil como entre os hindus não havia, na visão das autoridades
jesuíticas, preparo intelectual ou mesmo racionalidade própria para conseguir entender a complexidade
da religião cristã na condição de sacerdote. A exceção feita aos japoneses e, futuramente, aos chineses,
indica que para as mesmas autoridades, estes tinham uma religião intelectualizada, avançada mesmo, que os
capacitava a serem padres jesuítas.
69
serem conquistados para a fé cristã. Numa carta de Loyola, por exemplo, de 1553, para o já
Provincial Manuel da Nóbrega, são indicados os principais temas que deveriam fazer parte
das cartas, agora endereçadas diretamente ao Geral em Roma; nas cartas, além de informar
sobre os da Companhia, deveriam noticiar “quanto à região onde moram, qual o clima e
graus geográficos, quais os vizinhos, como andam vestidos, que comem, como são suas casas
e quantas, segundo se diz, e que costumes têm; quantos cristãos pode haver, quantos gentios
ou mouros (Cardoso, 1993, p. 89).
Quanto ao clima, fauna, flora do Brasil, bem como dos usos e costumes dos indígenas,
o documento talvez mais importante produzido pelos jesuítas é a famosa carta de Anchieta
para o Geral Laiñez, escrita em São Vicente, no mês de maio de 1560 (Anchieta, 1988). A
descrição que o Apóstolo do Brasil faz é deveras interessante e pode ser considerado um dos
primeiros documentos etnográficos e antropológicos do Brasil, o qual possibilitou, com
certeza, que inúmeros jesuítas espalhados pelo mundo e inúmeros fiéis que ouviram o relato
nas missas em que os padres liam cartas nos sermões, tivessem um conhecimento mais
pormenorizado destas terras. É claro que alguns nomes não coincidem com os conceitos; que
alguns erros foram cometidos, se se fizer a ingrata comparação com os avanços superiores da
biologia, da botânica e da antropologia; é claro, também, que a descrição é feita por um padre
do século XVI e, portanto, crivada pelo conteúdo religioso que ele carregava; no entanto, não
se pode simplesmente desconsiderar a importância e a sensibilidade de Anchieta ao elaborar
tal relatório.
54
O interessante, nesta parte do relato, e através do qual se pode perceber claramente a pena do homem religioso
que está a escrevê-lo, é o fato de Anchieta parecer crer realmente na existência desses seres fantásticos,
abribuindo sua existência ao fato de que os gentios não conheciam Deus e, portanto, eram vulneráveis a
demônios: “Ha tambem outros espectros do mesmo modo pavorosos, que não só assaltam os Indios, como
lhes causam dano; o que não admira, quando por êstes e outros meios semelhantes, que longo fôra enumerar,
quer o demonio tornar-se formidavel a êstes Brasis, que não conhecem a Deus, e exercer contra eles tão
cruel tirania” (p. 139).
70
Outro aspecto que perpassa muitas cartas dos missionários jesuítas e fazia parte da
preparação mística dos futuros agentes nas missões, diz respeito a como encarar a morte, algo
tão próximo deles devido às condições nem sempre satisfatórias de trabalho e às lutas e
desentendimentos com os inimigos. O martírio, ou seja, a morte violenta pelos inimigos da fé
cristã no pleno exercício das atividades de missionário, era algo com que se deveria conviver,
aceitar e até desejar como a forma mais digna, mais apostólica, de ter servido a Deus.
Mais uma vez se fará uso de uma carta de Anchieta para servir como um exemplo de
como um determinado aspecto das missões no Brasil é concebido pelos jesuítas, no caso, o
martírio. Em 15 de março 1555 escreve para os irmãos de Portugal relatando, entre outras
coisas, a morte de dois jesuítas pelas mãos dos índios ubirajaras:
A morte pelo martírio não deveria ser lamentada, mas edificada, glorificada, desejada
mesmo como a melhor forma de se dar a vida pela causa pela qual trabalhavam. Os relatos de
martírio não só edificavam aqueles próximos dos fatos mas, também, todos os jesuítas em
todo o mundo, através das cartas e, principalmente, tais relatos serviam, ou deveriam servir,
como incentivo para a continuidade das missões.
Outro aspecto das missões no Brasil que se quer evidenciar relaciona-se com a
situação financeira das casas e colégios. Os dotes reais dos colégios nem sempre eram pagos
com pontualidade e na totalidade a que haviam sido acordados e decididos pelo Rei. Esse fato
é usado como justificativa, em alguns momentos, de atividades produtivas próprias da
Companhia, como criação de gado, plantação de cana e comércio de produtos locais para a
manutenção das casas, as quais não abrigavam apenas os padres.
71
A recomendação do Prepósito Geral em Roma parece ter sido seguida pelo Visitador
Inácio de Azevedo, o qual em seu relatório final da visita, escrito ao que parece em julho de
1568 (Leite, 1960), definiu que prioritariamente se deveriam esperar as esmolas reais, mas, no
caso da falta ou insuficiência delas, poder-se-ia aceitar outros tipos de esmolas ou mesmo ter
fazendas, escravos etc. – “como de fazer roças, criar gado e ter pescador e escravos” (p. 484)
–, com a devida autorização e coordenação do Provincial.
55
Cada colégio que era fundado por ordem do Rei era dotado de uma renda anual – esmola real – para seu
sustento e desenvolvimento. O Real Colégio da Bahia, por exemplo, tinha um dote de três mil ducados. É
conveniente lembrar que no caso dos colégios dos jesuítas, a esmola real deveria suprir as necessidades
materiais de toda uma comunidade de pessoas e não apenas as atividades relacionadas à educação.
72
brancos, índios e negros escravos, as missas, as confissões, o trabalho nas reduções indígenas,
a educação nas escolas e colégios. No decorrer no século XVI a Companhia de Jesus possuía
fazendas, escravos, gado, fazendo uso tanto interno como externo deles, principalmente
comercializando o açúcar e o gado.
O último aspecto presente nas Cartas Jesuítas do Brasil que se quer dar destaque
refere-se a uma racionalidade comercial de um tipo contábil, a qual se manifesta na
necessidade que os padres jesuítas demonstravam de numerar a quantidade de sacramentos
distribuídos, principalmente para os gentios da terra.
Nesta capitania a mor parte da gente estava em peccado, e quis Nosso Senhor
que com minha chegada se começassem a mover de maneira que em pouco
tempo obrou o Senhor muito em muitas almas, (...) me detive com eles um mez e
fiz nove ou dez sermões e ouvi quase quarenta confissões e se apartaram muitos
do peccado mortal, e dous homens se casaram com Indias que tinham em casa.
(Navarro, 1988, p. 84)
Logo que chegamos a esta Itapuan, logo fiz assentar o numero de Indiozinhos
innocentes, os quaes me deram de mui boa vontade, e os baptizámos todos para
a glória do Senhor. Eram ao todo 31 (...)(Idem, ibidem, p. 258)
(...) logo ao domingo bautisou alguns, sessenta ou mais antre grandes e pequenos
e fez 8 ou 9 casamentos (...) (Idem, ibidem, p. 302)
(...) e com sua ida se bautisaram (...) 260 pouco mais ou menos, dos quaes fez
logo 43 casamentos da lei da graça (...) (Id., ibid., p. 304)
Fez também nesta povoação 11 casamentos de lei de naturaleza (...) (Id., ibid., p.
305).
(...) Para quando o padre Luiz da Grã vier, temos um solemnissimo baptismo
apparelhado: poderá ser que chegue e ainda que passe de quatrocentos e
cincoenta (...) (Idem, ibidem, p. 323).
(...) e no primeiro baptismo solemne que fez baptisou cento e setenta e tres e
casou doze casaes em lei da graça (...) (Id., ibid., p. 332)
(...) Haverá quinze dias que foi a S. Paulo e baptisou a cento e vinte e cinco Indios
e casou vinte e nove casaes em lei de graça (...) (Id., ibid., p. 333)
Daqui se partiu para S. João, onde lhe fizeram os Indios aquelle recebimento tão
solemne que acima disse, e baptisou a cento e tantos com grande alvoroço e
alegria de todos (...) (Id., ibid., p. 337)
“(...) Feito isto, Sua Senhoria baptisou a 120 e ao offertorio casou em lei da graça
a 20 casaes (...) (Id., ibid., p. 344).
Acabado tudo isto e despedidos os novos christãos com a benção que o bispo
lhes lançou solemnemente, a estas horas da noite que digo, se foi elle com os
Padres e mais gente branca a ceiar o jantar que houvera se ser, assás de
cansados todos corporalmente, mas mui alegres e contentes em o Senhor, por
74
verem a somma dos que se haviam regenerado, que foram passante de 530.
(Idem, Ibidem, p. 357)
Ao outro dia se ajuntou grande numero de gente pera verem os casamentos que,
por o dia d’antes não haver tempo pêra elles, (...) Foram os casados 80 menos
um, quero dizer, casaes (...) (Id., ibid., pp. 357-358)
(...) pera offerta da qual o Padre Provincial apparelhou muita riqueza de almas que
se haviam de bautisar, que foram 174, e casaes em lei da graça 86, (...) (Idem,
ibidem, p. 371)
(...) O número dos que se então bautisaram foi novecentos menos oito e casaes
em lei da graça 70, sendo que o primeiro bautismo solemne que naquella aldeia
se fizera e foi a 12 de Outubro de 1561(...) (Id., ibid., p. 373)
Os christãos que então se fizeram 130 pouco mais ou menos e 50 casaes em lei
das graças(...) (Id., ibid., p. 379)
(...) como foram 549 almas que se então bautisaram, de que elles foram
padrinhos, e 94 casaes em lei de graça(...) (Id., ibid., p. 379)
(...) e ali se fez outro bautismo de 400 e tantos christãos e 110 casaes em lei da
graça, e adiante, no Bom Jesus, foi de 242 christãos e (...) casaes em lei de graça,
e adeante, em São Pedro onde ainda não bautisara, fez um mui avantejado de
todolos outros de 1152 christãos e 150 e tantos casaes em lei da graça(...) (Id.,
ibid., p. 379)
(...) direi o de mais importância, que é o bautismo que se fez em Nossa Senhora
de Assumpção, o qual foi a 14 de junho de 1562, e bautisaram-se nelle 1015
almas e fizeram-se 123 casaes em lei de graça e dali um dia ou dous fez outro em
que se bautisaram 40 e fez 14 casaes em lei de graça, e depois fez outro
bautismo, em que se bautisaram 33 almas(...) (Id., ibid., p. 394)
(...) Ditas as missas, nas quaes commungaram algumas 120 pessoas das que
vieram ganhar o jubileu, (...) (Idem, ibidem, p. 446)
Na carta anual para a Provincia Toletana e Aragoneza, de 1567, escrita por Francisco
Gonçalves:
75
(...) commungaram mais de 200 pessoas, houve sermão e a egreja estava fresca e
ricamente ornada (...) (Id., ibid., p. 518)
Neste anno se baptizaram 283 innocentes, entre os quaes foram alguns adultos
(...) (Id., ibid., p. 522).
[No colégio da Bahia] Por tanto, unicamente aqueles que, arrependidos, se aliviam
do pêso de seus pecados, neste Colegio, e se confortam com o pão eucaristico,
se elevam ao número de 5742.
Nos dias, porém, de festa, nos quais pelo Sumo Pontifice se concede o santo
jubileu aos assistentes, contamos quatrocentos e quinhentos que se aproximam
da sagrada mesa. (Anchieta, 1988, p. 405)
[nas aldeias da Bahia] As confissões que neste ano computamos nestas aldeias
atingem a 1287: as comunhões chegam a 1.000, finalmente os batismos a 114.
(Id., ibid., p. 408)
[no colégio do Rio de Janeiro] Passam de 2.000 aqueles que, êste ano, foram
pelos nossos arrancados á impiedade e purificados pelo batismo, em toda a
provincia, se a eles se juntarem os trezentos que foram batizados no Colegio do
Rio de Janeiro (como é grande a bondade divina!), não contando os que foram
batizados em casas particulares e não puderam ser registrados. (Id., ibid., p. 413)
religião em guardar e vigiar seu rebanho. Uma outra possibilidade seria a economia de tempo
e de material para os sacramentos, dada as dificuldades de locomoção e mesmo financeiras
para se fazer as hóstias, os óleos e as roupas. E, uma última hipótese que se poderia levantar
iria na direção de entender que a quantificação dos sacramentos administrados expressaria, de
certa forma, uma racionalidade mercantil própria da vida da Colônia, onde os bens preciosos
eram contados e, de certa forma, evidenciavam se a riqueza, material ou espiritual, estava
crescendo a contento.
A três últimas hipóteses parecem se sustentar mais do que a primeira, pois numa
sociedade em que todos são cristãos não carece a quantificação dos sacramentos, pois a
própria sociedade estabelece um controle e, espontaneamente ou não, a freqüência aos
sacramentos é obrigatória e geral; e, como os relatos das cartas sempre se referem aos gentios,
ou seja, aos não cristãos ou aos neo-cristãos, o argumento da naturalidade não tem base, pelo
menos no Brasil-colônia.
Dos outros três argumentos, os dois primeiros poderiam explicar apenas parcialmente,
na medida em que realmente os sacramentos possibilitam um controle por parte da Igreja e,
ainda mais no caso do Brasil, um controle sobre os índios reduzidos; e ainda, a escassez de
matérias primas para a confecção e administração dos sacramentos resultava numa
valorização de tais produtos.
A relação entre as províncias de Portugal e do Brasil faz também parte desse item do
trabalho relacionado ao Padroado português sob a bandeira jesuítica, na medida em que
muitas questões e problemas acontecidos aqui tinham como primeira instância de resolução
ou debate a província portuguesa e, então, só depois, dependendo da gravidade e da
pertinência do assunto era levado à instância decisiva do generalato em Roma. Antes, porém
de adentrar nessa questão, que me parece de muita relevância, veja-se alguns números
relativos às missões no Brasil e no mundo como um todo.
O trabalho dos padres jesuítas foi fecundo, e isso pode ser medido, dentre outras
formas, pelo número das expedições, as quais sempre eram trabalhosas em sua organização e
custosas em sua execução. Só no Brasil, de 1549 a 1598, foram feitas 25 expedições; e de
1549 a 1568 em torno de 40 jesuítas, entre padres e irmãos, vieram para terras brasílicas,
sendo que alguns irmãos se tornaram padres aqui, como, por exemplo, José de Anchieta.
56
Estes e outros dados estão disponíveis no site www.companhia-jesus.pt.
57
As Constituições foram elaboradas pelo próprio Loyola em 1550, e, como passou a ser costume com todos os
documentos mais relevantes na Companhia, elas passaram por experiências concretas antes da sua redação
final. No prefácio escrito por Pedro Ribadaneira conta-se brevemente a história das Constituições, bem como
os objetivos de Loyola: “(...) Assim, com grande esforço, elaborou [Inácio de Loyola] as Constituições em
todas as suas partes, até completá-las totalmente. Mas, com a admirável prudência e a singular humildade
que o caracterizavam, o Padre compreendeu que, dada a diversidade dos costumes das diversas regiões, nem
tudo seria conveniente para todos. Por outro lado, para que a feição e a imagem da Companhia fossem a
mesma em toda a parte e as Constituições fossem aceitas e respeitadas permanentemente, era necessário que
78
um pequeno trecho mostrando que na escala da hierarquia rígida com a qual ela se estruturou,
onde a obediência é extremamente necessária, o Provincial estava sujeito apenas ao Geral, ou
a alguma função delegada, não regular, por ele, como, por exemplo, um Visitador. Depois do
prepósito geral, vem o prepósito provincial:
Na organização da Societas Iesu as províncias são criadas para dar uma maior
organicidade aos trabalhos, e para que problemas e questões menos graves sejam resolvidos
mais rapidamente pelas atribuições do Provincial. Quando uma província é criada, portanto,
mais um braço especial do geral é criado com a nomeação do Provincial.
Esta pequena introdução, resgatando o aspecto mais legal, mais formal e funcional da
organização dos jesuítas é trazida aqui para iniciar a discussão acerca da relação entre as
províncias de Portugal e do Brasil, não deixando de refletir, também, a relação da província
de Goa, ou do Malabar, ou, ainda do Japão, no início do século XVII, com a província de
Portugal. Porém, restringir-se-á ao Brasil pela razão de se encontrar documentação para o
argumento.
se ajustassem, quanto possível, aos costumes de todas as Províncias. Por isso, não superestimando o seu
próprio juízo, de modo que um assunto de tanta importância dependesse só de seu critério e maneira de ser,
no ano jubilar de 1550 apresentou o texto das Constituições a quase todos os padres professos, ainda vivos,
que tinham vindo a Roma, para que as discutissem. Tendo levado em conta as observações deles e muitas
outras sugestões hauridas da experiência cotidiana, entregou, finalmente, no ano de 1553, as Constituições
para sua promulgação na Espanha. O mesmo aconteceu em outras regiões, mas não em todas. Assim se iria
verificando pouco a pouco a sua aplicabilidade às situações de cada Província, de modo que a prática
confirmasse o que tinha sido estabelecido em teoria” (1997, p. 14).
58
Optou-se por trabalhar ao longo da tese com as Constituições originais, quer seja, aquelas que foram
aprovadas em 1559 e não as Normas Complementares que se constituem numa atualização e complementação
das primeiras. É interessante que mesmo a Companhia de Jesus até hoje valoriza muito seu aspecto histórico,
79
Este tipo de relação não parece ser estranha aos olhos de Loyola, a julgar pelo que
consta nos documentos analisados. Loyola tem dois pontos claros quanto aos trabalhos de sua
Companhia: um é a organicidade dela dado à sua expansão pelo mundo, e o outro, é que o
crescimento da Companhia era devido, em grande parte, aos soberanos, dentre eles, em
especial, ao Rei português. Numa carta ao Rei D. João III, de 15 de março de 1545, depois de
explicar as perseguições que já havia sofrido pela inquisição e que nenhum dos oito processos
movidos contra ele resultou em alguma condenação, indica que o Provincial português era,
acima de tudo, súdito do Rei e, como tal, lhe devia obrigações, dentre elas, solicitar-lhe
licença para se afastar do reino:
Notamos o desejo grande que os nossos daqui têm de ver a Mestre Simão e a
necessidade de provar em assuntos grandemente referentes à Companhia. Por
isso, humildemente suplicamos a V.S. para a glória divina, lhe queira dar grata e
amorosa licença, como a deu S.S. o Papa. Da vinda aqui de Mestre Simão e de
alguns outros que esperamos reunir, confio seja servida a divina Majestade e V.A.,
de quem esta Companhia é mais própria do que nossa. (Cardoso, 1993, p. 37)
É claro que não se pode esquecer que Loyola usava astuciosamente da diplomacia,
mas, também, não se pode olvidar que ele não poderia deixar de saber que ao se colocar a
serviço de um Soberano, a este passaria a dever obediência. A proteção dos soberanos era
importante, inclusive, na rede de comunicações e de poder que se estabelecia em torno do
trono papal; não se pode esquecer outrossim, o quarto voto de todo padre jesuíta de se colocar
diretamente sob a autoridade do Papa.
ao editar as normas originais seguidas das complementares e atuais, o que pode render um estudo sobre as
mudanças que ocorreram, perquirindo os aspectos culturais e históricos de tais mudanças.
80
Como súditos do Rei os jesuítas organizados nas casas e colégios estavam, em última
instância, sob a autoridade real, e os provinciais eram, para os efeitos da empresa religiosa,
representantes do Rei. Na relação que se estabelece, no entanto, entre dois destes
representantes, o Provincial de Portugal e o Provincial do Brasil, as questões às vezes são
claras e às vezes nem tanto.
Pelo lado da clareza, novamente Loyola é invocado, só que desta vez pela carta que
escreveu para Nóbrega, em 09 de julho de 1553, na mesma data daquela que o dava posse
como Provincial, para dar conselhos de como deveria agir, agora, na condição de Superior de
todos os padres e irmãos jesuítas do Brasil. Dentre as recomendações – ordens – está a de se
colocar, da mesma forma que o Provincial de Goa, “immediatamente debaxo del Prepósito
General”, mesmo tendo “communicatión mucha y intelligentia com Portugal” (In: Leite,
1956, p. 510). Loyola parece querer juntar duas coisas numa só: a valorização do neo-
Provincial estando ligado diretamente ao Geral e a subordinação contínua e necessária à
província de Portugal.
Em alguns momentos da história das missões no Brasil, houve polêmicas que só foram
solucionadas ou por Portugal ou por Roma, ouvido Portugal. No entanto, em pelo menos uma
destas polêmicas, a força da província de Portugal prevaleceu, inclusive, sobre a pretensão do
generalato. Trata-se da discussão se os padres, particularmente Nóbrega, deveriam ou não
adentrar mais ainda no sertão brasileiro para conquistarem mais gentios para a religião cristã.
81
A opinião dos portugueses, incluindo aí os soberanos, era de que enquanto não se dispusesse
de padres em número suficiente, se deveria ater aos trabalhos já começados, ainda mais se
pensando na edificação de um colégio real em Salvador. Por outro lado, de Roma, do
generalato, parece vir uma opinião diferente, autorizando a ida aos sertões, em busca de novas
fronteiras missionárias entre os gentios.
Esta polêmica encontra-se na carta que Diogo de Mirão escreve para Loyola, no dia 17
de setembro de 1554, na qual ele mostra claramente que a deliberação do Geral ia de encontro
à vontade real, o que se tornava um grande inconveniente:
Maestro Polanco me escrive aora que sería bueno entrassen por la tierra dentro si
pudiessen cumpliendo co lo demás. Pero ellos allá son muy pocos y están
repartidos en muchos lugares, y aora haziéndose el collegio está claro que no
podrán suplir a todo. Y a querer hazer otra cosa, es repugnar a la voluntad del Rey
y del Cardenal, y de los Gobernadores, que es muy grande inconveniente, ni tengo
yo razón que darles para que lo tengan por bien, por ser nosotros tan pocos y no
poder cumplir con todo. (In: Leite, 1957, p. 126)
O objetivo aqui não é julgar a honestidade ou não de uma ou de outra opinião. O que
transparece, pelo menos dos documentos, é que tanto o Geral como o Provincial português
estavam querendo resolver um problema da melhor forma possível. No entanto, em outros
enfrentamentos, particularmente quando se tratar da figura polêmica de Nóbrega, os
portugueses farão de tudo para impor sua opinião, utilizando-se da pressão da corte.
A primeira vez que Nóbrega encontra-se como centro e alvo das discussões está
registrado em três cartas de Miguel de Torres para o próprio Nóbrega, todas escritas no dia 12
de maio de 1559. Na verdade foram quatro escritas no mesmo dia para o mesmo destinatário,
e as três últimas – na ordem em que aparecem publicadas no volume III da Monumenta
Brasiliae – são reprimendas.
Na primeira das cartas, Torres dá conselhos a Nóbrega como se seu Superior fosse
mostrando, no entanto, que estava fazendo aquele papel não por vontade própria mas por
delegação do Geral:
a
De Roma se escrive y responde tan particularmente a V. R. que si nuestro Padre
[o geral] no me encargara que yo lo hiziesse también en lo que me pariciesse, casi
a
solo quedava consolarme com V. R. , dexando todo lo más a la experiencia que
tiene y spíritu que el Señor le há communicado, mas pues no me sacan desta
obligación, conforme a ella me pareció in Domino apuntar algunas cosas, parte por
occasión de sus cartas, parte de lo que acá se usa, y tiengo por cierto que de todo
se consolará en el Señor, pues es para mayor gloria de sua divina magestad.
(Idem, 1958, pp. 24-25)
82
Na breve carta que segue, o assunto continua sendo os destemperos de Nóbrega, agora
relacionados com um frade, que esteve no convento jesuíta de S. Roque, em Portugal, para
reclamar de um libelo que o jesuíta teria escrito contra ele. Torres adverte Nóbrega uma vez
mais, agora no sentido de que “tenga V.R.a cuenta, por amor de Dios, que no use de sus letras
sino en el foro interior, que lo exterior no es nuestro” (idem, ibidem, p. 29). Ao final da carta,
numa espécie de “P.S.”, o Provincial português lembra as lições que o mestre Inácio de
Loyola deixou quanto aos temperamentos e a necessidade de se buscar, à moda aristotélica, o
meio termo entre a personalidade colérica, como a de Nóbrega, e a fleumática:
Na última carta dessa série, Torres ordena que Nóbrega vá para a capitania de S.
Vicente para tratar da saúde, deixando o cargo de Provincial para Luis da Grã, o qual deveria
permanecer na Bahia, pois “la más común residencia del Provincial deve ser en la Bahia”
(idem, ibidem, p. 31). Esse fato não teria muita importância se não fosse a informação de
Serafim Leite acerca de ordens que Nóbrega teria recebido do Geral Laiñez de permanecer no
cargo de Provincial, mesmo tendo que viajar para o sul59. Não se pretende discutir aqui se
59
A nota de rodapé escrita por Leite é a seguinte: “Carta do P. Geral a Nóbrega (que Torres leu), em que lhe
mandava que continuasse no ofício de Provincial e que o P. Nóbrega agradece na sua carta de 30 de Julho
de 1559; pela qual se verá também o modo, verdadeiramente santo, como Nóbrega recebeu esta ordem do P.
Torres, oposta à do P. Geral” (p. 31).
83
Nóbrega foi mais ou menos santo ao acatar as ordens de Torres e não as do Geral. O que se
quer apresentar é uma discussão política que perpassou a Companhia logo no início do
generalato de Laiñez, tendo como pano de fundo a autoridade do Provincial de Portugal com
uma base sólida, que eram os interesses da corte portuguesa. E esse embate fica bem claro
quando se lê a carta de Torres para Laiñez, escrita em 16 de maio de 1559, logo após a série
de cartas para Nóbrega, na qual esclarece quais as verdadeiras razões de suas ordens para que
Luis da Grã assumisse o provincialato no Brasil:
e
2. Y pareciónos importante que el P. Manuel da Nóbrega se pasase de la Bahía
e
para la Capitania de San Vicente y que el P. Luís da Grã estuviesse en la Bahía
con el cargo de Provincial. Las razones son que en la Bahía estan todos muy
e
escandalizados del P. Manuel da Nóbrega, ansí las personas eclesiásticas como
seculares. (Idem, ibidem, pp. 33-34)
Nóbrega não era tolerante. Ele tomava partido em casos públicos e particulares, era
muito colérico, falava demais e tinha uma língua muito afiada. Eram estes os “defeitos” na
conduta do jesuíta que desagradava as autoridades na Colônia e ressoava negativamente na
Metrópole, ainda mais em se tratando de uma autoridade religiosa. Para dar mais credibilidade
ainda às suas ordens, Torres argumenta, ainda na carta a Laiñez, que havia recebido cartas
inclusive de outros padres jesuítas pedindo a substituição de Nóbrega no comando da
Companhia de Jesus no Brasil. Leite informa que se estas cartas existiram realmente, foram
perdidas.
província do Brasil ou seja, se deveria ficar em Portugal ou retornar para o Brasil, sendo esta
última opção, ao que parece, o desejo do próprio Inácio. De qualquer forma, o relevante aqui
não é o destino em si do Visitador no Brasil, mas o argumento utilizado por Henriques
advogando seu retorno para Portugal, o qual vai na direção de facilitar as coisas para os
próprios jesuítas no Brasil quanto ao que depende do Rei:
A carta é lamuriosa, como se afirmou, pois Henriques se queixa com o Geral que se
pede muito da sua província e se esquece que ela também é carente. No próprio caso de Inácio
de Azevedo, Henriques procura convencer o Geral que é melhor reter um homem tão sábio
junto da corte portuguesa para melhor influenciá-la no que for possível e para o bem da
Companhia.
Do relatório da visita ao Brasil feito pelo padre Inácio de Azevedo, já citado, também
se colhem algumas informações sobre este assunto. Por exemplo, nele é informado que havia
um único procurador dos interesses econômicos da Companhia para as províncias de Portugal,
de Goa e do Brasil, sendo que tal pessoa residia no reino e deveria ser um leigo. Os interesses
85
Ainda no relatório aparece a decisão sobre uma aspiração encabeçada por Nóbrega e
Anchieta, que se transformou numa questão polêmica na Companhia: adentrar no sertão e ir
até a região do Paragay para converter e catequizar os gentios de lá. A decisão do Provincial
é taxativa no sentido de não permitir tal investida, a não ser por ordem expressa do Geral, o
qual, com certeza, consultaria o Rei lusitano. A principal justificativa para tal decisão foi o
fato de que aquelas terras não pertenciam ao domínio lusitano:
E o Provincial, sem ordem de Nosso Padre Geral, não entre nem permitta
entrarem para aver de passar ao Paragay, o qualquer outra parte que não seja
senhorio de Portugal, nem ainda póla mesma terra, se for pera laa fazer residencia
perpetua; ainda que si, ad tempus, quando julgasse com seus consultores que
assi convinha. (Idem, 1960, p. 488)
O direito de Padroado, enfim, era restrito a uma configuração de poder localizado, não
existindo a possibilidade de se pensar em um Padroado universal para além das fronteiras
comerciais e coloniais próprios da expansão ultramarina do século XVI. As atividades
missionárias que a Companhia empregou nas Índias, no Oriente e no Brasil – é claro que não
se pode esquecer da África também –, se desenvolvia par a par com a expansão comercial e
colonial, sendo mesmo subordinada a ela, no sentido da sua garantia social e política. A razão
comercial daquele século imperava e determinava a forma das existências dos poderes
constituídos. A mentalidade mercantil era a ordem do dia, era a motivadora de se arriscar na
grande aventura por mares nunca d’antes navegados. A racionalidade mercantil movia o
mundo, arredondando-o e descobrindo novas terras, novos homens, novos mercados e novos
produtos. As novas terras, terras comerciais e terras coloniais, eram terreno também da
86
Como o Padroado, portanto, não pode ser entendido fora da expansão comercial do
século XVI, apresentar-se-á, na continuidade, um esboço sobre o domínio português nos
oceanos e os problemas acarretados, bem como o lugar do nascimento do Brasil nesse
contexto.
Capítulo 2
a construção do Império
uma sociedade ponta de lança do mercado mundial que, no mesmo período, se torna uma
coluna avançada do catolicismo reformado no mundo, formando uma cultura baseada nos
valores do reformismo católico? Se pretende mostrar que a expansão comercial obedeceu a
uma lógica social e a uma opção política próprias do seu período e espaços, e que tal contexto
também produziu crises e uma cultura considerada, pela maioria da historiografia consultada,
atrasada em relação aos outros países da Europa.
A incursão por esse tema começa pela sua base: a mercadoria. A busca do produto que
podia ser comercializado, produzindo dividendos ao comerciante, faz com que homens se
aventurem por mares desconhecidos, vençam muitos obstáculos e “arredondem” o mundo, ou
seja, tornem conhecidos para o mundo terras e povos que eram até então desconhecidos.
Para além das grandes viagens que redundaram por exemplo, na travessia do Cabo das
Tormentas e a chegada às Índias e na descoberta do Brasil e da América, talvez a grande
viagem do século XVI tenha sido a expedição de Fernão de Magalhães entre 1519 e 1522. A
viagem liderada por Magalhães foi a primeira, pelo menos registrada, que realmente deu a
volta ao mundo.
89
60
“A ‘Primeira Viagem ao Redor do Mundo’, livro que Gabriel García Márquez constantemente cita entre os
mais importantes de sua vida, foi escrito pelo nobre e aventureiro italiano Antonio Pigafetta, que
acompanhou a expedição comandada por Fernão de Magalhães. Narrador sóbrio e comedido, Pigafetta
obteve sucesso com seu livro ao contar com vigor e precisão as terríveis privações e trágicas desventuras nas
quais a expedição se viu envolvida. Depois de três anos de viagem por rotas marítimas até então
desconhecidas, dos cinco navios e duzentos e trinta e sete homens que compunham a esquadra, não
retornaram a Sevilha, de onde haviam saído, mais do que um navio arruinado e dezoito homens fatigados.
Entre eles, estava o cavalheiro Pigafetta. Fernão de Magalhães fora morto pelos indígenas das Filipinas.
Tendo cruzado o estreito que mais tarde receberia o nome do audaz capitão e batizado de Pacífico o maior
oceano do planeta, a expedição de Magalhães tornou obsoletos todos os mapas existentes até então. Os
cartógrafos do mundo inteiro tiveram que refazer seus trabalhos e, se ainda havia alguma dúvida, ficava
agora definitivamente provado que a Terra era de fato redonda.” (http://www.lpm.com.br/c210_009.htm)
61
Fani Goldfarb Figueira, no capítulo 2 da parte II – Quanto custa um rato? – de sua tese de doutorado –
Diálogos de um novo tempo –, faz uma análise muito interessante e convidativa acerca da dramaticidade das
viagens de descoberta e, também, sobre o que significou, historicamente, a época dos Descobrimentos,
destacando a idéia de que os navegadores do século XVI fizeram a opção pela história ao aceitar os desafios
colocados diante deles.
90
Na terça feira, 12 de novembro de 1521, o rei [de Tadore, uma das ilhas do
arquipélago das Molucas] mandou construir uma cobertura, que acabaram em um
dia, para nossas mercadorias. Levamos para lá tudo o que tínhamos para cambiar
e deixamos sob a guarda de três dos nossos homens. O valor das mercadorias
que iríamos dar em troca dos cravos foi fixado da seguinte maneira: por dez
braças de tecido vermelho de boa qualidade deveriam dar-nos um bahar de
cravos; por quinze braças de pano de mediana qualidade, pediríamos um bahar
de cravos; por quinze machados, um bahar; por trinta e cinco taças de vidro, um
bahar (todas as taças de vidros foram trocadas nessa base com o rei); por cento e
cinqüenta facas, um bahar; por cinqüenta tesouras ou quarenta gorros, um bahar;
por dez braças de tecido de Guzzerate, um bahar; por um quintal de cobre, um
bahar(...) Fizemos, como se vê, um negócio muito vantajoso, não tirando maior
proveito, contudo, porque tínhamos pressa em retornar para a Espanha. Além dos
cravos, fizemos uma boa provisão de víveres(...) (Id., ibid., p. 150)
As grandes viagens da era dos Descobrimentos impulsionaram uma nova forma dos
homens viverem em sociedade, com novos valores tanto sociais como individuais. O século
XVI expressa um momento da história moderna em que se convive com velhos valores
aristocráticos ao lado de novos valores burgueses. A riqueza não é mais imóvel somente,
baseada na quantidade das terras; agora ela é móvel, ela é o dinheiro, o metal que é
conseguido via o comércio de mercadorias e vice-versa. Os deuses da história forjam um novo
91
homem, que é decorrente de uma nova sociedade e de novas necessidades que não são nunca
pessoais somente, mas, essencialmente, sociais.
O comércio ao longo do século XVI passou a fazer parte da vida cotidiana tanto das
pessoas como das nações européias. Os mercados que, durante a Idade Média, praticamente se
resumiam às grandes feiras, como a de Flandres, por exemplo, e que eram sazonais, passaram
a existir em todas as grandes cidades e entre elas. O mercado que era praticamente local,
passou, aos poucos, a se universalizar. Quando se afirma que o mundo se arredondou pela
mercadoria, não se quer apenas conceber que os homens passaram a dominar o conhecimento
de que o mundo não era mais uma porção de terras circundada de águas por todos os lados,
mas, principalmente, que o mundo começou a falar uma mesma “língua”, passou a se
relacionar internacionalmente através da troca de mercadorias e da compra e venda de
produtos. O mercado foi, aos poucos, se tornando mundial num mundo que agora era
redondo.
São muito comuns as análises que de certa forma ufanam o prodigioso acontecimento
das grandes navegações. De fato, para o mundo da época, como já visto em Pigafetta, tal
empreendimento não foi fácil nem tranqüilo, com inúmeras perdas humanas e materiais. Mas,
os grandes obstáculos não impediram os navegadores e comerciantes portugueses de
continuar e, aos poucos, desvelar, revelar para o mundo coisas somente imagináveis à época
como utopias.
62
“A 25 de Julho de 1415, sob o comando do Rei D. João I, largaram de Lisboa, em direcção ao Norte de
África, 242 navios, alguns armados de guerra e galés, nos quais seguiam D. Henrique, D. Pedro e D. Duarte.
A 21 de Agosto de 1415, os botes dos navios do Infante D. Henrique começaram a despejar gente na praia.
Depois de um pequeno ataque, cheios de pânico, os Mouros recolheram-se espavoridos às portas da cidade,
e 500 dos Portugueses, que correram logo sobre eles, entraram também de roldão, sendo depois auxiliados
pelos infantes D. Henrique e D. Duarte com mais forças. Também o Rei ao tomar conhecimento da situação,
foi em auxílio com as suas tropas. Ao anoitecer, os Mouros, sem comando, batidos por toda a parte,
abandonaram a luta, sem tentar sequer defender a cidade, que não tardou em cair nas mãos dos
Portugueses. A manhã de 22 veio encontrar os vencedores ainda no auge da colheita e na surpresa
de uma fácil vitória. Depois procedeu-se solenemente à sagração da mesquita e à cerimónia de
armar cavaleiros os três infantes e muitos fidalgos moços que valorosamente haviam recebido o baptismo
dos combates”. (http://www.terravista.pt/ancora/1627/ceuta.htm#Ceuta_Inicio)
93
63
Durante o reinado de D. Fernando se tentou, em Portugal, fixar o homem no campo através de leis de fixação,
mas, segundo Sérgio, o fracasso dessa empresa impulsionou a política do Transporte: “Se as leis agrárias de
D. Fernando não deram resultados apreciáveis [leis das sesmarias, objetivando fixar o homem no campo e
aumentar a produção], porque muitas causas as contrariavam (entre as quais o caráter da fidalguia, cuja
triste situação econômica, e conseqüente dependência em relação aos monarcas, já encontramos
documentada nas canções de escárnio dos cancioneiros), as do comércio marítimo, pelo contrário, garantem
a vitória do Transporte [sobre a política de Fixação] que deu em resultado a descoberta do globo, a moderna
sociedade capitalista, a realização do mercado mundial.” (Sérgio, 1972, p. 30)
94
Com o domínio português naquelas terras e o vasto comércio que daí se produziu com
a Europa, o porto da cidade de Lisboa passou a ser, como informa Magalhães no artigo Num
Mercado à Dimensão do Mundo, ponto de partida e chegada de barcos dos vários cantos do
mundo, como da Galiza, da Biscaia, de França, Flandres, Inglaterra, Dinamarca, Polônia,
Alemanha, Mediterrâneo, Andaluzia, Itália e Grécia. Em outro artigo do mesmo livro
organizado por José Mattoso, Magalhães mostra como Lisboa foi se impondo naturalmente
como capital “burguesa” do reino português:
Lisboa não foi reconhecida capital por qualquer dispositivo da lei, nem escolhida,
num repente, para sede burocrática do poder real. A capitalidade tem a ver com a
situação relativamente ao reino, as facilidades de comunicação pelas vias
marítimas e fluvial, a fertilidade dos campos que lhe servem de imediato suporte e
a bondade do porto para importação e exportação. Natural foi que aí começassem
a estabelecer-se e estabilizar-se mercadores nacionais e estrangeiros(...)
(Magalhães, 1993, A, p. 55)
A empresa das grandes viagens, que tinha um alto custo tanto material como humano,
nas condições da época deve ser analisado como algo admirável, principalmente se se for
comparar o pequeno reino português com sua vizinha Espanha. É esse o conceito que Charles
Boxer emite em seu livro O Império Colonial Português. Nem o tamanho da população e
nem a escassez de navios foram empecilhos para a expansão tornando ainda mais relevante
uma comparação com o vizinho reino ibérico:
(...) Pode calcular-se com razoável precisão que, durante o século XVI, saíam de
Portugal anualmente cerca de 2400 pessoas, sendo, na grande maioria, homens
válidos, jovens e solteiros, com destino a Goa ‘dourada’ e ao Extremo Oriente, de
onde apenas regressavam relativamente poucos. A sangria anual de número de
homens adultos portugueses foi, portanto, considerável e, de longe, muito maior
do que na vizinha Espanha, onde, de uma população avaliada em sete ou oito
milhões, apenas 60 000 pessoas tinham emigrado para a América até 1570 –
numa média inferior a 1000 pessoas por ano. (...) (Idem, ibidem, p. 70)
O domínio português nas Índias foi rápido e eficiente. De 1508 a 1515 as principais
praças comerciais – Suez, Ormuz, Malaca, Macau e Goa, que foi a sede principal de Portugal
– já estavam conquistadas para a Coroa lusitana. A partir daí foi bastante efetivo o domínio e
o monopólio comercial naquelas terras, apesar de revoltas populares e derrotas ocasionais do
96
poderio militar português. Oliveira Martins, retomando Manuel Godinho, estabelece uma
periodização do domínio português no Oriente, divindo-o em quatro fases: a primeira
corresponde aos 24 anos do reinado de D. Manuel (1495-1521); a segunda aos 35 anos do
reinado de D. João III (1521-1557); a terceira de 1557 a 1600; e a última depois de 1600 até a
perda do domínio. No século XVI, ou seja, na terceira fase o domínio atingiu o seu apogeu.
No entanto, atingir o apogeu significa, também, o início do declínio. Esta periodização
proposta por Martins não é consensual na historiografia portuguesa, porém, ela não deixa
também de ser aceita, pelo menos implicitamente, na medida que o século XVI, em sua
segunda metade mais precisamente, é o palco do apogeu e do início da queda do
empreendimento comercial/colonial português no Oriente.
no século XV se efetiva, segundo Lúcio de Azevedo e Sérgio, no reinado de D. João III. Esse
fato permite a esses autores conceberem Portugal, nesse momento, como um verdadeiro
Estado moderno, pautado no absolutismo. Tanto que o comércio dos produtos orientais era
organizado a partir de três órgãos criados e dirigidos direta ou indiretamente pela Coroa:
Feitoria do Oriente, para as compras; Casa da Índia, em Lisboa, para a recepção e pagamento
das partes; e a Feitoria de Flandres, para a distribuição.
O domínio português adquiria logo de começo o caráter duplo que jamais perdeu,
apesar de todas as tentativas posteriores de regularização e de ordem. Era no mar
uma anarquia de roubos, na terra uma série de depredações sanguinárias. Vasco
da Gama ensinara o modo de imperar com o fogo e o sangue; Sodré [sobrinho de
Vasco da Gama] indicava o modo de ceifar o mar, pela abordagem, as naus de
Meca. A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do domínio português,
cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a pimenta. (Martins, 1972, p. 224)
Por outro lado, Lúcio de Azevedo não nega que existiu a pirataria, o saque e a
violência por parte de muitos capitães portugueses, mas procura atenuar um julgamento
maniqueísta acerca do domínio português nas Índias. “Não estranhemos os factos nem nos
indignemos”, adverte ele, pois ao recorrer à história, assenta que “em todos os tempos e em
toda a parte, as empresas marítimas, como diz no Fausto o Mefistófeles, consistem na junção
de comércio, guerra e pirataria” (1978, p. 117). Não há expansão, ainda mais comercial, que
não aconteça em meio à luta, à cobiça, ao saque, enfim, ao domínio de uma parte por outra.
em sua avaliação, no mínimo um fanático religioso que deu guarida à mais perniciosa
instituição religiosa, a Companhia de Jesus. A Coroa portuguesa, para Lúcio de Azevedo, ao
contrário, independente do maior ou menor grau de fervor religioso, construiu um Estado que
foi moderno não no sentido de preparação para revoluções, mas no sentido do poder absoluto
e ao evitar derramamento de sangue e, também ao realizar, na prática, uma conciliação dos
interesses de classe. Para Lúcio de Azevedo, não foi a política marítimo-comercial que, em
princípio, emperrou o desenvolvimento do capitalismo em Portugal:
Apesar de não ser objeto específico de interesse nesta pesquisa, não é possível
simplesmente desconsiderar esse aspecto muito saliente na historiografia portuguesa. No
entanto, da mesma forma que com os jesuítas, também aqui não se fará qualquer julgamento a
posteriori condenando ou absolvendo a prática dos portugueses no domínio das Índias. Mas,
entre as duas posturas, exemplificadas por Martins de um lado e, de outro, Lúcio de Azevedo,
este trabalho se aproxima mais da direção do último, ou seja, em evitar qualquer julgamento
de fundo maniqueísta da política expansionista da Coroa portuguesa, aceitando,
historicamente, os fatos como se deram.
O que importa aqui é destacar que a expansão portuguesa pelo Oriente e pelo Ocidente
faz parte de uma lógica mercantil, mas que nem sempre é linear. O tempo do mercador e o
olhar do mercador são os sinais a indicar o que é e o que não é importante na empresa
expansionista. A mercadoria regula a vida dos homens; em função dela se constroem homens
e nações fortes; em razão dela, se destroem povos e se subjugam culturas.
99
Por seu turno, as concepções temporais também foram apanhadas por esse
tornado renascentista. Já não é só o tempo privilegiado da Igreja e dos intervalos
das preces que pauta o cotidiano, nem tão pouco é só o tempo de longa duração,
espesso e monótono, das lides rurais, marcados pelas noites e pelos dias, por sua
vez enquadrados nas estações do ano, que regula a cadência da vida humana.
Outros tempos vieram se juntar e, por vezes, se sobrepor àqueles: o tempo do
mercador e das comunas burguesas, com o relógio vigilante da torre sineira da
igreja do burgo, tempo este do mercador em regra sob o signo da permanência
imposta pelo pulsar frenético dos negócios (eis o ‘time is money’), ou ainda o
tempo repousado do descobridor de terras ignotas. (...) Em resumo e repetindo, o
Renascimento abriu uma nova era, onde coexistirão os mais diversos ritmos de
tempo. (Pinto, 1992, p. 199)
O “olhar” de mercador é também responsável pela “língua” que batiza os lugares que
vão sendo descobertos e/ou conquistados, informa Lúcio de Azevedo. Não é sem razão que
100
uma determinada região tomou o nome de Costa do Marfim, por exemplo, ou mesmo
naqueles lugares onde o nome era uma homenagem religiosa, “não duvidou a cobiça de
trocar a invocação” (Azevedo, 1978, p. 77), referindo-se, à troca de Vera Cruz para Brasil.
Ao mesmo tempo, porém, que a lógica mercantil segue como referência da expansão
comercial, não se pode deixar de lado o fato de que cultural e religiosamente, o Portugal
quinhentista é uma coluna avançada do cristianismo no mundo, desenvolvendo,
principalmente na segunda metade, uma cultura coadunada com a reformista católica. Em
termos históricos, no sentido de se pensar em que resultou a sociedade que fez da mercadoria
a razão de ser da sociedade, existe uma contradição na sociedade portuguesa do século XVI,
na medida em que colocou um pé na história e outro fora dela, ou seja, foi capitalista como
impulsionador do mercantilismo e medieval como bastião da contra-reforma. Em termos
culturais, no entanto, essa contradição pode ser mais aparente do que real, na medida que para
os homens daquele período, principalmente os comandantes e soberanos, não eram
dicotômicos o agir mercantil e o agir religioso, ou seja, a empresa comercial/colonial era
plenamente compatível com a empresa religiosa, ou melhor ainda, a lógica mercantil não era
necessariamente uma lógica renascentista ou revolucionária que implodiria a cultura religiosa
escolástica. A racionalidade comercial também fez parte da empresa religiosa que, grosso
modo, tinha os mesmos inimigos da empresa mercantil: os gentios e os infiéis.
Em linhas gerais a cultura religiosa em Portugal no século XVI pode ser dividida em
dois momentos: o primeiro onde coexistiram um ambiente de reforma da vida do clero por um
lado e, por outro, um lastro de humanismo crítico da escolástica, principalmente com a
101
Uma das marcas dos reis portugueses desde fins do século XV até D. João III, é a
reforma do clero, pois o estado moral deste era deveras dissoluto, aponta Dias (1960), o qual
apresenta uma amostragem da vida venal desregrada e simoníaca66 dos padres e prelados
portugueses nos séculos XV e XVI, indicando que a reforma da Igreja foi uma necessidade.
As razões de tal situação seriam: a estreita ligação do clero, principalmente o alto clero, com o
senhorio; a copiosa ganância por reditos etc; o fato de os prelados não residirem em suas
dioceses; as várias possessões de alguns prelados; a não exigência de requisitos intelectuais
para o exercício da função de clero; a lassidão dos costumes.
64
Como ficou conhecida a filosofia e o humanismo provindo de Erasmo de Roterdã.
65
Contra-reformista no sentido de se tornar refratária à onda protestante que entrava em vários países da Europa.
Neste trabalho se utiliza esparçamente o termo Contra-reforma e apenas num sentido mais didático, porque
partilho da concepção de não houve uma Contra-reforma católica em oposição à Reforma protestante; o que
houve, de fato, foi uma Reforma da Igreja Católica que já vinha se gestando a muito tempo e que o
movimento protestante se tornou um ingrediente a mais. Michel Mullett (1985), por exemplo, mostra que há
divergências entre os autores no que diz respeito aos termos “Reforma” e “Contra-Reforma”, mostrando que
para alguns a reforma da Igreja é resultado direto da reforma protestante e, para outros, a reforma era um
movimento que se aligeirou em função do protestantismo. O autor entende que as três reformas – protestante,
radical e católica – foram “subdivisões de uma experiência comum e que, efectivamente, constituíram uma
Reforma” (p. 14), que pode ser entendida, segundo Mullett, como a reanimação cristã do final da Idade
Média; “a Reforma Católica do Sul não foi provocada pela Reforma Protestante do Norte” (p. 36). Vitalino
Cesca (1996) informa que o termo Contra-reforma, no qual incluem-se os jesuítas, foi criado no século XIX
por historiadores alemães protestantes, reduzindo, ideologicamente, a ação dos jesuítas (p. 148). Outro autor
que defende a idéia da Reforma da Igreja ao invés de Contra-reforma é Daniel-Rops (1969, p. 09).
66
Simoníaco é adjetivo de simonia, que significa a venda, o tráfico de coisas sagradas, como, por exemplo,
relíquias de santos e, também, de coisas espirituais como sacramentos, dignidades e benefícios eclesiásticos.
102
muito malefícios sem receio, porque sabem que não hão-de haver penas por seus
males. Seja vossa mercê encomendar a seus Prelados que lhes ponham regra no
seu viver e nos trajos e hábitos; tragam suas coroas grandes e o cabelo [de modo]
que lhes apareçam as orelhas, segundo a disposição do direito canónico; os seus
vestidos [sejam honestos]; não tenham mancebas; suas armas sejam lágrimas e
orações; tragam o breviário sob o braço [=sempre consigo]; em rezar e dizer suas
missas sejam mui honestos e em seu viver limpos, e não ponham escândalo no
povo, como fazem muitos, pelo exemplo do seu mal e desonesto viver. Assim, dão
mal exemplo ao povo; por sua má vida, os leigos não têm devoção de lhes
pagarem os dízimos como devem; e são causa de pecado. Mas vivendo segundo
a
devem, muito edificarão nos leigos” (Santarém, Memórias das Cortes, p. te 2 ,
Provas, pp. 219-20). (Dias, 1960, p. 44)
A reforma do clero, tanto regular como secular, foi empreendida durante todo o século
XVI, especialmente no período de D. João III, mas já iniciado nos reinados anteriores. Dias
mostra que a reforma do clero diocesano, clero secular, se faz sentir já no segundo quartel do
século XVI, a ponto de desaparecerem, praticamente, as notícias de bispos concubinários.
Os esforços conjuntos dos Bispos e das Cortes tiraram a igreja lusitana do atoleiro
moral em que se encontrava. As irregularidades de vida, a inópia de cultura, a falta
de sentido evangélico e espírito apostólico, sofreram um duro golpe. Ao mesmo
tempo, reduziram-se os escândalos e limaram-se as arestas mais agudas do viver
eclesiástico, e fez-se aparecer um grupo relativamente numeroso de sacerdotes,
apostólicos, austeros, piedosos, que deram à reforma católica um elã e um
conteúdo religioso. A sua ação é palpável no movimento da piedade popular e no
esforço para a elevação do nível intelectual e moral dos pastores de almas. Sem
eles, teria sido mais difícil à reforma ultrapassar as simples proporções de uma
nova forma; e as aparências, que são a delícia dos políticos, andariam menos
juntas às realidades, que são o empenho dos apóstolos. (Idem, ibidem, p. 90)
inúmeras denúncias dirigidas ao Rei, feitas por vigários-gerais, legados reais e governadores,
do estado de lassidão moral de muitos padres residentes em Goa67.
67
Para ver mais detalhes com relação a esse aspecto, ver Tavares (2002), no capítulo segundo, no item A Igreja
no Oriente: ambição de um projeto.
104
O movimento chamado por Dias de pietista acabou sendo avaliado pela Coroa na
mesma esteira que o erasmismo e o protestantismo. Quando o Concílio de Trento chegou em
sua fase mais crítica e importante de definição das necessidades reais da Igreja, durante o
governo de Paulo IV (1555-1559), a convicção de um “esforço geral para uma reforma das
coisas eclesiásticas e para o estabelecimento de um ideal de vida assente em exigências
morais fortes e numa prática que, sem deixar de ser comunitária e fiel às tradições católicas,
fosse mais interior e mais intensa, atesta também que a falta de directrizes e de acção de
1520 estava ultrapassada” (Idem, ibidem, p. 418), ficando sem sustentação práticas e
propostas como o irenismo, o erasmismo e mesmo o pietismo, pois, por mais bem
intencionados que pudessem ser, poderiam abrigar, tal qual um moderno Cavalo de Tróia, as
hostes do inimigo protestante.
Com relação ainda à reforma do clero, particularmente do regular, Dias informa que
ela não se deu de forma tranqüila, pois enfrentou-se muita resistência de algumas ordens, as
quais, inclusive, enxergaram na morte de D. João III a possibilidade de voltar ao estado de
vida anterior. É preciso salientar, também, que todas as resoluções do Concílio de Trento não
foram implementadas de imediato em todos os Estados cristãos e aliados de Roma,
demorando algumas determinações até o século XVIII para serem efetivadas.
um dos seus livros a este Soberano, no entanto, o processo de reforma interno do clero regular
e secular, a inauguração de uma nova forma de piedade, a fundação do Tribunal da Santa
Inquisição e a instalação da Companhia de Jesus em terras lusitanas, contribuíram para
identificar qualquer forma de crítica mais contundente à Igreja, como no caso de Erasmo,
como expressão do protestantismo. Em vista disso Portugal se tornou praticamente refratário à
cristandade protestante.
Dias (1969) mostra que em Portugal não havia somente inviabilidade teológica, mas
também social para implantar o protestantismo, apresentando como razões pelas quais nem o
luteranismo e nem o calvinismo fincaram os pés em terras lusitanas: a falta de uma burguesia
mercantil forte, como classe com interesses políticos e ideológicos próprios; a falta da
tradição de uma discussão teológica mais aberta como na universidade de Paris; a inquisição e
a perseguição aos cristãos-novos; o envolvimento direto da coroa com os princípios e decisões
do Concílio de Trento.
A cultura católica reformista em Portugal pode ser medida também pela relação com
as decisões tridentinas. Joaquim Ramos de Carvalho, no artigo A jurisdição episcopal sobre
leigos em matéria de pecados públicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das
populações portuguesas do Antigo Regime, publicado na Revista Portuguesa de História,
afirma que Portugal foi o único país da cristandade que recebeu sem reservas e publicou, na
íntegra, todas as conclusões do Concílio de Trento. Não tenho condições de avaliar se esta
informação tão categórica é verídica ou não, mas, o que coincide com a verdade é que as
terras lusitanas foram um importante eco das reformas da Igreja definidas em Trento.
Francisco Xavier quando chegou em Goa teve a convicção de que estava a serviço de
uma nação realmente cristã. Em carta de 20 de setembro de 154268, ele escreve para o
Geral Loyola mostrando que o Governador-geral em Goa fez muitos elogios à atuação da
68
Não é a mesma carta citada anteriormente. Esta é mais cordial com os portugueses.
107
Entre todas as nações por mim vistas, creio que a portuguesa se avantaja a todas
na estima das graças e indulgências de Roma. A concessão destas graças será
causa de muitos mais se achegarem aos sacramentos, e assim por serem os
portugueses muito obedientes, aceitará conceder-lhes as indulgências esperadas.
Todas as graças que de lá trouxeram os de nossa Companhia, devem trazê-las
muito autorizadas por bulas de Sua Santidade, para maior autoridade e para maior
aumento da devoção. (in: Cardoso, 1996, p. 45)
Nesse sentido é que Boxer (1969) afirma que o império marítimo português na Ásia
pode ser “descrito como uma empresa militar e marítima moldada numa forma eclesiástica”
(p. 89); ou seja, não era possível separar o projeto de expansão comercial e consolidação das
praças dominadas, com o projeto de conversão dos gentios e de combate aos infiéis no
Oriente. A Companhia de Jesus, enquanto ordem religiosa que se transformou em missionária
também, não destoa do projeto político, social e econômico do Estado da Índia, ao contrário, é
o corolário necessariamente cristão que justificava, em muitos casos, a violência empregada
para conquistas comerciais e monopólio das rotas. A riqueza conseguida no Oriente era, de
certa forma, abençoada, na medida em que através dela, populações enormes de gentios
tinham acesso à verdadeira religião. Em outro texto, Boxer (1978) define como sendo uma
quinta-coluna cristã a união univitelina da cruz e da espada, na medida em que a
cristianização aplainava o caminho da dominação cultural e econômica da Coroa portuguesa.
Se a cruz dependia da espada, a cruz também predispunha a espada.
Com relação ao luxo, ao apego demasiado à riqueza, Martins afirma que esse aspecto
obliterava a visão das pessoas em geral para os verdadeiros problemas da sociedade:
109
69
Se fosse para definir uma data como causa externa da decadência do Império português no Oriente, poder-se-ia
arriscar o ano de 1595, pois, informa Morais (1997), naquele ano termina o monopólio de navegação
portuguesa para as Índias, após a travessia do Cabo da Boa Esperança pelos holandeses.
111
exclusivamente da riqueza produzida por aquele comércio e por aquele domínio. Joaquim
Romero Magalhães, no artigo As Fronteiras, mostra, por exemplo, que Portugal ficou refém
do que criou, pois “Portugal criou e desenvolveu um império ultramarino que se apossou de
tudo e de todos. E que ficou pendurado no que de lá vinha.” (Magalhães, 1993, A, p. 47).
Dias (1969) procura minimizar o real volume da riqueza do Oriente que realmente
chegava até a Coroa e nobreza em Portugal, afirmando que mesmo com a empresa nas Índias,
a nobreza continuou com os mesmo problemas – oriundos da falta crônica de dinheiro – pois
a maior parte da riqueza não ia para ela e sim para os mercadores. Dias procura mostrar que
não demorou muito para que a corte se apercebesse que o Estado da Índia não produzia tanta
riqueza quanto o que seria o necessário, no entanto, a rota não mudou:
Mas a dura realidade, apesar da enchente de sonhos fagueiros trazida pela maré
dos Descobrimentos, não deixou esquecer aos interessados a dor dos seus
apuros domésticos. E o sentido de desconforto social agravou-se à medida que as
relações de comércio e de domínio com os novos continentes se foram
desenvolvendo. Tornou-se cada vez mais claro que a aquisição de fortunas no
Oriente não era fácil e que as riquezas desembarcadas na Europa iam parar, em
grande parte, à mão do mercador, especialmente do judeu e do estrangeiro.
Mantiveram-se, por conseguinte, em aberto, senão mesmo aprofundados, os
velhos problemas da nobreza. (Dias, 1969, p. 743)
É interessante não perder de vista que o objeto de análise de Dias neste livro é a
política cultural à época de D. João III, meados do século XVI, portanto. Ele mostra, ainda,
que houve no período uma situação social de empobrecimento da sociedade portuguesa,
70
Raynal nasceu em 1713 e morreu em 1796. O artigo citado é, na verdade, uma compilação de alguns trechos
da obra História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio dos europeus nas duas Índias,
publicada pela primeira vez em 1770, colocada no Index em 1774 e proibida em 1779. Para se ter uma idéia
da oposição da Igreja, o colaborador de Raynal na composição final da obra foi Diderot.
112
principalmente da fidalguia que, naquelas alturas, já tinha o luxo como uma necessidade e não
uma superfluidade. Essa situação praticamente obrigou a proteção real aos nobres, através de
cargos públicos na administração direta, ocasionando uma mudança de comportamento da
fidalguia, a qual, contraditoriamente, teve que buscar competência técnica para, inclusive,
merecer os altos cargos:
(...) A idéia de descer ao nível do letrado para adquirir uma competência técnica,
pelo menos cultural, como requisito indispensável ao exercício de um múnus
qualificado na sociedade, e de lhe sofrer a concorrência na luta pela ascensão
política e administrativa, repugnava-lhe instintivamente. E repugnava-lhe tanto
mais, quanto mais notória a subida do letrado na escala social e mais freqüente a
subalternidade funcional do fidalgo em face dele no Estado. (Idem, ibidem, p. 730)
A idéia de ser um letrado era, para a fidalguia na época manuelina, repugnante, anota
Dias, e o fato de ela ter que descer a esse nível revela uma crise na sociedade, crise que é
sempre de fundo econômico, mas que não deve passar a idéia equivocada de que toda a
sociedade estava com problemas e que todos na sociedade tinham a exata noção do que estava
acontecendo. A riqueza vinda do Estado da Índia continuava existindo, alimentando o sonho
de riqueza fácil e acalentando o sono indolente de boa parcela da população, particularmente
da fidalguia.
O processo de crise teve momentos mais e menos acentuados, mais e menos graves
durante o decorrer do século XVI. O reinado de D. Henrique parece ter sido um desses
momentos de crise mais aguda, tanto que o seu final coincide com o início da chamada União
Ibérica, quando Portugal ficou sob o domínio da Espanha. Francisco Bethencourt, no artigo D.
Henrique, mostra que naquele curto período de tempo, Portugal passava por momentos
críticos, tanto em nível social e econômico, como moral e político:
Nas duas últimas décadas do século XVI em Portugal se cultuou de forma patética a
figura do Rei “Esperado” D. Sebastião71. Quando ele nasceu criou-se já toda uma atmosfera
heróica em torno dele, pois não se esperava mais descendentes do Rei D. João. No entanto,
ainda sem deixar herdeiro, D. Sebastião teve uma morte trágica na famosa batalha de Alcácer-
Quibir e, por não acharem seu corpo, imaginou-se que poderia ter sobrevivido à tão
desastrada empresa de conquista e que voltaria para reinar. Com a União Ibérica, a esperança
da volta do Rei transformou-se num mito, o Mito do Sebastianismo, que passou a fazer parte,
com o tempo, da cultura popular de Portugal. D. Sebastião seria o grande libertador
messiânico de Portugal do domínio espanhol72.
71
D. Sebastião era o Esperado porque todos os filhos de D. João III morreram antes do pai. Quando o Rei João
morreu seu neto Sebastião tinha apenas três anos e ficou sendo a garantia da continuidade da dinastia de Avis.
72
Este mito político ficou tão arraigado na cultura portuguesa que mais de uma vez foi utilizado como
argumento para determinadas questões. Por exemplo, o padre jesuíta António Vieira utilizou em alguns
sermões dirigidos à Coroa portuguesa o mito do sebastianismo como motivador para ações de soberania do
governo português.
114
O mesmo que se ponderou acima sobre as concepções de Martins valem para cá, ou
seja, ao citá-lo não se está necessariamente concordando com sua concepção de história e
particularmente com sua apreciação da história portuguesa do século XVI; no entanto, é
inegável que a criação do Sebastianismo expressou uma sociedade sem rumo, sem líderes
fortes e, naquele momento, em grave crise econômica e financeira. O Mito de D. Sebastião
ficou arraigado na cultura portuguesa e foi utilizado em momentos posteriores mais como
incentivo, como argumento dentro de uma intencionalidade própria, do que quando de sua
criação. Não poderia arriscar a afirmação de que toda vez que o mito foi lembrado e utilizado
também expressa uma determinada crise, mas pode-se afirmar que, em sua origem, o
Sebastianismo evidenciou ou fez parte da decadência portuguesa.
O último aspecto a ser trabalhado neste capítulo diz respeito ao projeto colonial
brasileiro como uma das conseqüências da expansão comercial e política portuguesa no
Oriente.
João Lúcio de Azevedo (1978), ao contrário de outros autores, como António Sérgio,
por exemplo, minimiza a importância da descoberta do Brasil para a Coroa portuguesa,
afirmando que é muito provável que realmente não se conhecesse de antemão as rotas
marítimas para o Brasil, até porque, nas primeiras décadas o Brasil não teve muita
importância para Portugal.
Lúcio de Azevedo assevera, aqui concordando com António Sérgio, que a história do
Brasil realmente começa somente a partir da vinda de Tomé de Souza, em 1549, investido
como primeiro Governador-geral do Brasil, com um projeto político de colonização e
ocupação do solo e com a centralização do poder. Essa decisão política da Coroa portuguesa é
tomada e efetivada concomitantemente e como resultado das primeiras crises do
empreendimento comercial nas Índias. Se se pensar que na metade do século XVI já aparecem
os problemas em manter o domínio português no Indico, a opção por estabelecer uma empresa
verdadeiramente colonial no Brasil ganha força e motivação.
Sem adentrar no debate em torno desta questão, que remete para polêmicas em torno
do próprio Estado da Índia, o que importa aqui é a concepção de que o Brasil entrou
efetivamente no mapa político do Império português a partir de 1549 como uma colônia que
deveria produzir mercadorias para serem consumidas em Portugal e comercializadas pela
Coroa. Prova disso é a informação de Lúcio de Azevedo de que em 1583, quando o jesuíta
Fernão Cardim chegou ao Brasil, existiam 118 engenhos e, em 1710, quando outro jesuíta,
André João Antonil, escreve, já são 528 os engenhos de açúcar no Brasil Colônia.
RACIONALIDADE NA FORMAÇÃO DO
FUTURO JESUÍTA
117
Capítulo 3
A formação do Jesuíta:
a intelectualidade e a espiritualidade
A Companhia de Jesus é uma ordem religiosa que nasceu sob os auspícios da Reforma
da Igreja Católica e com um grande objetivo: reconquistar a cidade de Jerusalém para os
cristãos. Deste ideal francamente cruzadístico até os trabalhos ligados às cortes, à educação e
às missões, através dos quais a Companhia tomou sua forma definitiva, vários anos se
passaram. O caráter educativo e, principalmente missionário dos padres jesuítas, não nasceu
pronto e longe estava de ser um objetivo quando da fundação da nova ordem em 1534. Como
verdadeiro instrumento reformador, a Societas Iesu, organização especifica com Constituições
próprias, se construiu historicamente ao assumir determinadas atividades avaliadas como
importantes; avaliação feita a partir da experiência de outras ordens religiosas e da
necessidade da Igreja e das Coroas cristãs.
pronta e acabada. Exemplo disto são os dois documentos fundamentais que a Companhia
produziu no século XVI: as Constituições e o Ratio Studiorum, os quais ficaram
prontas.depois de vários anos entre a primeira redação e a formatação final e isso após
experiências práticas e avaliações teóricas
1
Georges Duby, em Europa em la Edad Media (1986), mostra que S. Francisco de Assis (1181-1226) e S.
Domingos de Gusmão (1171-1221) fundaram a ordem dos franciscanos e a dos dominicanos em 1209 e 1217
respectivamente, como conseqüência da reforma da Igreja objetivada já desde o Papa S. Gregório VII (1073-
1085 – para ver mais sobre a atuação deste Papa ver François Guizot, 1907). O franciscanismo denunciava o
luxo exagerado dos príncipes e também dos clérigos, e os dominicanos, por sua vez, tornaram-se os grandes
intelectuais da reforma (Tomás de Aquino era dominicano) e perseguidores das heresias. Não se pode deixar
de atentar para o fato de que ambas as ordens surgem, também, como reação da Igreja à riqueza comercial que
começa a ser movimentada nos burgos e comunas medievais.
119
Outra ordem religiosa regular que nasceu no mesmo período foi a dos Teatinos, frades
regulares que, como os jesuítas mais tarde, se colocaram sujeitos a Santa Sé, diferentemente
das ordens monásticas3. A ordem dos teatinos foi fundada por S. Caetano de Thiene em 1524.
Daniel-Rops informa que esta ordem cresceu rapidamente em importância na Igreja,
fornecendo mais de 200 bispos, mas que no século XX perdeu muito de sua importância
inicial.
Também outras duas ordens são criadas na primeira metade do século XVI: a dos
Barnabitas4, fundada por S. Antonio Maria Zacarias, e a Ordem dos Somascos5, fundada por
Jerônimo Emiliano.
2
“Os Irmãos Menores Capuchinhos constituem uma das três grandes famílias da Primeira Ordem Franciscana. Os
Capuchinhos são uma Reforma, dentro da Ordem Franciscana, que nasceu com o propósito de voltar ao genuíno
espírito de São Francisco e dos seus primeiros companheiros. (...) Uma Reforma provoca sempre um certo mal-
estar e algumas lutas internas entre os diversos grupos que manifestam diferentes tendências. Isto também
aconteceu na Ordem Franciscana com o aparecimento das diversas reformas e concretamente com a Reforma dos
Capuchinhos. (...) Os primeiros Franciscanos Observantes que se lançaram na aventura da Reforma foram,
depois de Frei Mateus de Báscio, os irmãos de sangue Frei Luís e Frei Rafael de Fossombrone. Começaram por
se chamar Irmãos Menores de vida eremítica, como consta das suas primeiras Constituições de Albacina, que
datam de 1529. O povo, devido à forma do capuz do hábito, passou a chamá-los Capuchinhos. (...) Foram
oficialmente reconhecidos pelo Papa Clemente VII com a bula Religionis Zelus de 3 de Julho de 1528”.
(http://www.capuchinhos.org/principal.htm - com grifos no original)
3
“Clérigo Regular, é o nome oficial da Ordem dos Clérigos Regulares –Teatinos –, que teve seu início na Igreja
no dia 14 de setembro de 1524, através de São Caetano de Thiene (1480-1547) fundador e Pai. Junto com
seus co-fundadores Bonifácio de Colli, Paulo Consiglieri e João Pedro Carafa, bisco de Chiete (Teati), da
qual o nome provêm: Teatino, e depois mais tarde se tornara Papa com o nome de Paulo IV (1555-1559). Os
Clérigos Regulares é a Primeira Ordem Religiosa da Reforma Católica”.
(http://www.teatinos.com.br/historia1.htm)
4
“Santo Antônio Maria Zaccaria nasceu em Cremona, norte da Itália em 1502. Morreu aos 5 de julho de 1539
(...) Aos 18 anos, renunciou aos seus bens, em favor da mãe. Estudou Medicina em duas Faculdades italianas
(Pádua e Pavia). Queria fazer muito mais do que ser médico! Criou um grupo de reflexão bíblica em
Cremona, chamado de "Confraria da Amizade". Ensinou Catecismo e a doutrina cristã. (...) Tornou-se padre
em 1528, independente de qualquer Diocese. Já em Milão, criou, com mais dois companheiros, três grupos de
vida cristã, orientados para a missão junto ao povo e para a reforma dos conventos: os Padres Barnabitas, as
Irmãs Angélicas e o Grupo dos Casais (...). Sua espiritualidade é bíblica, marcada, principalmente, pelo
120
O Papa Paulo III (1534-1549) é tido como o grande arauto da reforma moderna da
Igreja, não só por ter convocado pela primeira vez o Concílio de Trento, mas por ter tido
iniciativas reformistas de peso antes mesmo do Concílio. Foi ele quem fundou a Inquisição
moderna nos estados pontifícios através da instituição da Sacra Congregazione ou Sagrada
Congregação do Santo Ofício, em 1542, através da bula Licet ab Initio; criou também a
Sagrada Congregação do Index, em 1543, instituindo a censura oficial da Igreja
principalmente aos livros e, conseqüentemente, aos seus respectivos autores. Essas duas
instâncias formais instituídas com muitos poderes, visavam, além de censurar e perseguir as
modernas heresias, dentre elas o luteranismo e o calvinismo, rever os costumes das igrejas
e de seus prelados e
Apóstolo São Paulo: os dois eixos principais são o Cristo Crucificado e a Eucaristia. (...)”.
(http://www.barnabitas.org.br/cronologia.htm - com grifos no original)
5
“Jerônimo Emiliani, de nobre família, nasceu em Veneza (Itália) em 1486 (...) A experiência espiritual do
nosso Santo brotou e desenvolveu-se na irmandade do ‘Divino Amor’, importante movimento da Reforma
Católica, em unidade com pessoas de grande relevo, como Caetano Thiene, fundador dos Teatinos e João
Pedro Carafa, o futuro Paulo IV. Na irmandade do Divino Amor Jerônimo destaca-se pela habilidade na
organização das obras de caridade de Veneza (o hospital dos Incuráveis e são Roque, a casa de aprendizagem
para órfãos). Esta qualidade de Jerônimo fez com que os bispos das Regiões de Lombardia e Vêneto (norte da
Itália) o convidassem para organizar as obras de caridade das suas dioceses. Dos muitos colaboradores que
se aproximaram dele, alguns tomaram a decisão de seguir o seu estilo de vida. Originou-se então a
Companhia dos servos dos pobres, os atuais Religiosos Somascos Jerônimo faleceu em Somasca -Lecco, norte
da Itália- no dia 8 de fevereiro de 1537 (...)”. (http://www.somascos.org/portugues/portug.htm)
121
Neste sentido, a reforma da Igreja já era uma necessidade que foi tomando corpo aos
poucos nas décadas iniciais do século XVI e que se concretizou no Concílio de Trento (1545-
1563), pelo menos enquanto deliberação oficial da Igreja. Daniel-Rops, ao fazer uma
apresentação da Reforma Católica, afirma que ela já estava no espírito de muitos cristãos, de
muitos clérigos e de muitos papas, mas que só se realizou por iniciativa da reforma do próprio
Papa que resolveu convocar uma assembléia de seus prelados, um concílio, para proceder a
uma avaliação e reforma de pontos importantes da Igreja. O Concílio de Trento foi, portanto,
um dos momentos oficiais mais significativos da Igreja Católica no século XVI, e é tido como
o mais profundo até o Concílio Vaticano II - ocorrido na década de 60 do século XX –, por
tratar de tantas questões fundamentais para a existência do catolicismo naquele momento.
Assim sendo, optou-se por apresentar, mesmo que brevemente, o Concílio de Trento,
sua história, suas resoluções mais pertinentes para o presente caso e, a atuação dos papas
durante esse processo. É preciso que se atente, de início, que o Concílio demorou 18 anos e
não foi realizado apenas na pequena cidade italiana de Trento, e o foi muito mais por motivos
políticos do que estratégia de ação, pois sua realização nunca foi unânime nem dentro da
Igreja e nem entre os soberanos católicos e expressou, por conseguinte, a vitória do Papa e da
corrente reformista, que havia ganhado força com o crescimento do protestantismo na Europa.
Daniel-Rops informa que a primeira convocação para um Concílio não foi em 1545,
mas anos antes em 02 de julho de 1536 e para a cidade italiana de Mântua. Durante oito anos
outras convocatórias foram expedidas para outras diferentes cidades. Finalmente, suavizando
muitos obstáculos políticos e mesmos religiosos, o Concílio teve início, em Trento, no dia 13
122
Quando da morte de Paulo III, em 1549, o Concílio de Trento havia sido suspenso por
questões políticas, principalmente devido à interferência de Carlos V6 nas resoluções
conciliares. Mesmo assim, consoante Daniel-Rops, durante seis meses, houve oito sessões de
debates e avaliações. O período que sucedeu à morte de Paulo III foi bastante conturbado na
corte papal, onde os conchavos, os acordos, as influências, as disputas nos bastidores, fizeram
com que o conclave que escolheu Júlio III (1550-1555) se tornasse um dos mais longos da
história – incluindo aí os posteriores –, indo de novembro de 1549 a fevereiro de 1550.
O Concílio de Trento foi, na verdade, uma construção, no sentido de que com o tempo
ele se fortaleceu e assumiu o poder que lhe foi conferido depois, tendo que vencer muitas
6
“Carlos V (Gante, 1500 – Yuste, 1558) Imperador da Alemanha e Rei de Aragão e Castela. Primogénito de
Filipe, o Formoso, de Áustria, é, por parte do pai, neto do imperador Maximiliano I. Por parte da mãe, Joana,
a Louca, é neto dos Reis Católicos. Do pai herda os Países Baixos e o Franco Condado. Em 1516, por morte
de seu avô, Fernando, herda as coroas de Aragão e Castela. Em 1519 é eleito imperador da Alemanha como
sucessor de seu avô, Maximiliano, tornando-se, com vinte anos, Soberano de um império mais vasto do que
qualquer outro desde os tempos de Carlos Magno (...) Em 1555, o imperador, minado pela doença e pelo
desânimo, abdica dos tronos de Castela, Aragão e Países Baixos a favor de seu filho Filipe, entregando a
coroa imperial a seu irmão Fernando. Retira-se para o Mosteiro de Yuste (Cáceres), onde vem a morrer três
anos depois”. (http://www.vidaslusofonas.pt/carlos_v.htm)
7
“Henrique II da França (1519-1559), Rei da França (1547-1559), filho de Francisco I. Casou-se com Catarina
de Medici em 1533. Perseguiu os huguenotes nos últimos anos de seu reinado. Continuou a guerra
empreendida por seu pai contra o imperador Carlos V. Mediante o Tratado de Cateau-Cambrésis (1559)
aceitou entregar a Felipe II as possessões da França na Itália”. (Enciclopédia Microsoft Encarta)
123
(...) Quatro legados, três patriarcas, vinte e cinco arcebispos, cento e sessenta e
nove bispos, sete abades, sete gerais de Ordens, dez procuradores de bispos, e
os embaixadores de todas as potências católicas assinaram os decretos
solenemente. (...) (Idem, ibidem, 1969, p. 124)
Durante os anos em que ocorreu o Concílio tridentino cinco papas ocuparam o trono
de S. Pedro: Paulo III, Julio III, Marcelo II (1555), Paulo IV (1555-1559) e Pio IV. Destes
soberanos romanos, Paulo III, Paulo IV e Pio IV podem ser considerados papas fortes, com
convicções reformistas, contribuindo muito para o desenrolar do Concílio, mesmo no caso de
Paulo IV que não convocou uma segunda reunião, mas por conduta própria, procurou realizar
reformas em Roma e nas dioceses próximas da corte papal. Os outros papas foram, ainda na
avaliação de Daniel-Rops, fracos do ponto de vista da necessidade da reforma, pois eram
corruptos, mundanos e políticos inábeis.
É importante que se avalie a condução da Igreja no período pela atuação dos seus
mandantes no que se refere às causas e conseqüências do Concílio de Trento, pois aquelas
reuniões foram, acima de tudo, um Concílio dos bispos, como afirma Mullett (1985). A
reforma da Igreja deveria começar pelas dioceses8, ou seja, pelos bispos, na medida em que
muitas causas do estado de lassidão e corrupção moral em que se encontrava a Igreja
localizavam-se na esfera da ação dos prelados, fossem nas paróquias, na atuação dos padres
etc., e muitas das resoluções tinham seu âmbito de aplicação prática igualmente na esfera
administrativa das dioceses, como, por exemplo, a criação de seminários para preparar melhor
os futuros padres.
8
No Código de Direito Canônico, mesmo hoje em dia, não há qualquer instância de ação pastoral e decisão no
sentido jurídico entre a Cúria Romana e as dioceses, por isso a importância das dioceses e, conseqüentemente,
dos bispos, os quais, na hierarquia católica, só estão abaixo do Papa.
124
Nesse sentido, Mullett afirma que os “bispos foram agentes indispensáveis da Contra-
Reforma” (p. 17). O “coração pulsante” do Concílio de Trento foi, continua Millett, a reforma
sistemática dos bispados, paróquia por paróquia, implicando a inspeção dos padres, o
estabelecimento de escolas e seminários e a pregação e administração dos sacramentos. Como
se tratou de um Concílio que objetivava, desde o seu início, a avaliação e a reforma da Igreja,
dificilmente se poderia imaginar que as suas resoluções não apontassem, em sua grande
maioria, para uma ação diferente nas dioceses e seus chefes, até porque a diocese é o espaço
que reúne as paróquias, os padres seculares e regulares, os mosteiros e, enfim, o povo
católico.
São três os traços mais importantes da Igreja pós-Trento que representam a evolução
da tradição, avalia Daniel-Rops: os dogmas, perfeitamente formulados, parecem mais sólidos
e intangíveis; o sentido agudo da unidade; e o revigoramento da disciplina.
9
É preciso esclarecer que Daniel-Rops é um autor cristão, um clérigo que procura contar, de uma forma mais
liberal que a usual, a história da Igreja, procurando não esconder as mazelas que o papado e o alto clero
produziu ao longo de dois mil anos de história. No entanto, como homem de Igreja, mesmo crítico, sua
apreensão e avaliação do Concílio tridentino e do processo de reforma da Igreja no século XVI é positivo,
enaltecendo o trabalho dos arautos daquele processo. A opção por utilizar o livro de Rops nesta parte do
trabalho é por conta das ricas e isentas informações que ele apresenta, e não uma aproximação, mesmo que
teórica, de suas concepções religiosas.
125
como absolutismo, que tomou conta de toda a Europa a partir do século XVI. Em resposta ao
fortalecimento e centralização dos chamados Estados nacionais, a Igreja também se define
como uma instituição forte e com um poder centralizado, mas com uma diferença, ela era e
procurava se manter supranacional.
10
A esse respeito ver o interessante artigo Direito Natural e Direito das Gentes – a refundação moderna, de
Vitória a Suárez, de Jean-François Courtine (1998).
126
Ao falar do tema das reformas religiosas do século XVI não se pode esquecer que as
suas verdadeiras causas não se encontram dentro da própria Igreja, mas sim no movimento
social da modernidade que produziu condições materiais e espirituais suficientes para se
questionar o poder da Igreja Católica na sociedade, bem como dos seus mandantes,
especialmente do Papa. As reações protestantes eram, também, reações dos poderes locais e
nacionais ao domínio romano, reações estas que se tornaram, especialmente na segunda
metade do século, verdadeiras guerras de religião. O que importa anotar é que não se
compreende, num sentido mais amplo, a reforma da Igreja – que inclui a chamada Contra-
reforma – sem entender o contexto histórico do período.
Na sexta parte das Constituições, que trata de O que devem observar com respeito a si
mesmos os que foram incorporados, se estabelece que o fim da Companhia é percorrer as
diversas partes do mundo onde o Papa ou os superiores os enviarem, evitando, para isso, a
recitação em coro das horas canônicas, ou o cantar missas ou ofícios, bem como o encargo de
paróquias ou mosteiros masculinos ou femininos. O intuito para o qual a Societas Iesu foi
criada é o de missionar pelo mundo evangelizando os gentios e lutando contra os infiéis e,
desta forma, como ordem moderna e instrumento da reforma, não poderia dispor de tempo
para atividades próprias de monges regulares ou de padres seculares.
José Sebastião da Silva Dias (1960) quando principia sua análise acerca dos jesuítas
mostra que, apesar de não ser uma ordem em reforma, pois nova, ela expressava bem os ideais
da Reforma Católica, entendendo que o loiolismo seria uma síntese entre o medieval e o
moderno, síntese característica das novas necessidades da Igreja:
Como uma ordem imbuída de uma piedade positiva, piedade para a ação, os seus
padres não poderiam dedicar o tempo às horas em comum, como os monásticos, e nem perder
o tempo nas questões burocráticas da organização e administração de uma paróquia. Nesse
sentido, mais do que uma ordem religiosa que respirava os ares reformistas, ela se vai se
11
Como será mostrado no sexto e último capítulo deste trabalho esta parte das Constituições serviu como um dos
momentos para a elaboração do Ratio Studiorum.
128
O objetivo de Loyola não era somente formar sábios e nem reduzir a educação na
companhia ao domínio do saber, é o que defende Francisco Rodrigues em seu A Formação
Intellectual do Jesuíta:
12
Francisco Rodrigues é o equivalente português a Serafim Leite no Brasil.
129
Entre os jesuítas essa preocupação conciliar foi elevada à máxima potência, na medida
em que a formação em Letras, em Filosofia e em Teologia abrangia todo um extenso e
rigoroso conteúdo escolástico aliado às mais recentes discussões teológicas, revelando a
prioridade de se fazer uma formação mais profissional dos futuros sacerdotes. Na formação
dos jesuítas, pela estrutura dos seminários, pelas classes, pela organização interna, pelas
inovações e pela busca de uniformidade, apontavam-se, assevera Mullett, três aspectos
importantes: a liturgia, a pregação e a confissão; que são três momentos privilegiados da
atuação dos padres, através dos quais, se dava prioritariamente a evangelização seja entre os
próprios cristãos, seja entre os gentios. Os jesuítas aprendiam tanto o conteúdo cristão como a
melhor forma de transmiti-lo.
A formação do futuro jesuíta era acima de tudo rigorosa. Apenas como um exemplo
inicial desse rigor, as Constituições previam, na sua quinta parte - Incorporação na
Companhia daqueles que assim foram formados – que para o estudante se tornar professo e
13
Millett informa que a instituição dos seminários é uma norma moderna dentro da Igreja, pois antes não havia
essa preocupação, não se sabendo ao certo onde e quando os seminários foram instituídos, se na Espanha ou
Granada ou mesmo com o bispo Giberti em Verona, ou “talvez derivasse de um plano reformador do cardeal
Pole, que imaginou uma ‘sementeira’ (seminarium) para a preparação dos sacerdotes” (p. 28).
130
entrar de vez para a Ordem, deveria ser examinado com muito rigor em lógica, filosofia e
teologia escolástica perante uma banca de quatro examinadores14. O futuro padre tinha que
mostrar domínio do conteúdo de toda uma vida de estudante, desde os estudos básicos em
Artes, até os relativos às faculdades menor e maior, ou seja, faculdades de filosofia e teologia.
Francisco Rodrigues (1917) faz referência à disciplina como algo fundamental e não
meramente acessório na pedagogia jesuíta. Em seu livro, o historiador dos jesuítas em
Portugal procura evidenciar o lado positivo da disciplina nos colégios jesuíticos, apoiando-se
propositalmente em argumentos de um pedagogo protestante:
Não se pode esquecer de que Rodrigues está escrevendo numa época em que a
Companhia de Jesus e especialmente sua pedagogia estão sendo novamente colocados em
xeque pelo pensamento liberal, o qual apregoava a necessidade da liberdade para os
estudantes e criticava a dura disciplina que invariavelmente vinha acompanhada de castigos.
O debate parece ser intenso nos anos iniciais do século XX e Rodrigues defende que a
disciplina era o molde pedagógico que acomodava e potencializava o conteúdo e que formou
grandes personalidades científicas entre os jesuítas. A metáfora emprestada da casca de árvore
como sendo a disciplina lembra uma outra utilizada por Kant em Sobre a Pedagogia: a
disciplina – leia-se o freio a uma liberdade excessiva - faria com que o estudante fosse como a
árvore robusta que cresce junto com outras árvores e a presença delas faz com que se cresça
de forma reta e frondosa.
14
Nas Normas Complementares a exigência diminui para um exame compreensivo de teologia diante de três
examinadores. É interessante como, com o passar do tempo, o rigor foi sendo diminuído.
131
Mas a disciplina, ainda que vigilante não impede todas as faltas; tem que ser
também repressiva, corrigindo o culpado. É uma consequencia da debilidade do
homem, que não baste o sentimento do dever para lhe refrear os ímpetos da
paixão, mas seja necessária alguma vez a dureza do castigo para lhe robustecer a
fraqueza da vontade e lhe ter mão na inconstancia. Nem a punição moderada é
offensa á dignidade do homem, mas antes o ajuda a levantá-la, nem argúe
desaffeição em quem a dá, mas amor. A Escriptura deixou em provérbio: Qui
parcit virgae, odit Filium [Quem não faz uso da vara odeia seu filho] (Provérbios,
cap. 13, v. 24.). (Rodrigues, 1917, p. 31, com grifo no original)
Tais palavras, tão distantes e estranhas aos dias atuais, sintetiza, de certa forma, uma
prática pedagógica que não era apenas jesuítica, mas que se consagrou com a Companhia,
principalmente depois que veio à luz o Ratio Studiorum, pois tanto a disciplina com o castigo
em suas variadas espécies e graus de severidade são colocados como pedras angulares da
formação nos colégios da Societas, principalmente naqueles que se formavam futuros padres.
Quanto às punições, o Ratio prescreve desde repreensões verbais até o castigo físico
como corretivos de comportamentos indignos; no entanto, o castigo físico deveria ser aplicado
por alguém de fora da Companhia de Jesus, o qual exerceria esta função de forma contínua.
Não foi possível saber se esta norma era comum às demais ordens religiosas, mas na regra 38
do Prefeito de Estudos Inferiores (Letras) ela é clara:
Por causa dos que faltarem ou na aplicação ou em pontos relativos aos bons
costumes e aos quais não bastarem as boas palavras e exortações, nomeie-se um
Corretor, que não seja da Companhia. Onde não for possível, excogite-se um
modo que permita castiga-los por meio de algum estudante de maneira
conveniente. Por faltas, porém, cometidas em casa, não sejam punidos em aula a
não ser raras vezes e por motivo bem grave. 15.(Idem, ibidem, pp. 174-175)
15
É interessante esse aspecto na medida em que a Companhia não poderia ser acusada de usar de violência física
e que quando de tal necessidade, a sociedade em geral, na pessoa do Corretor, é que faria a repreensão ao mau
estudante. Poder-se-ia arriscar uma comparação deste aspecto da educação jesuítica com a Inquisição no que
132
A disciplina e a punição tinham por base uma concepção de homem por natureza fraco
e débil, que necessitava dos tais “estímulos externos” para conseguir realizar ou, numa
linguagem bem aristotélica, conseguir atualizar toda a potencialidade de que era dotado pelo
criador. O conteúdo a ser apreendido e aprendido era por si só muito exigente e, sem
disciplina dificilmente se conseguiria dar conta de todo ele. Existiram sim autodidatas na
Companhia de Jesus, mas a grande maioria dos seus eminentes quadros16 foram forjados na
forma da disciplina e da punição.
(...) É bom que haja no colégio cada domingo, ou em algum outro dia da semana,
depois da refeição, um estudante de cada classe das artes e de teologia,
designado pelo Reitor, para defender algumas teses, a não ser que se dêem
razões especiais em contrário. As teses serão afixadas na véspera à tarde, à porta
das aulas, a fim de que os que quiserem possam participar no debate ou assistir a
ele. Depois de provadas brevemente as teses, poderão argüir todos os que
quiserem, de casa ou de fora. Haverá um presidente para dirigir a discussão,
resolver as questões e deduzir com clareza a doutrina de que se trata, para
utilidade dos presentes. É ele que dará o sinal de acabar aos que tomem parte na
discussão, repartindo o tempo de modo que todos possam participar nela.
(Constituições, 1997, pp. 133-134, [378])
concerne ao fato de que quando o réu era julgado culpado e deveria ser queimado, não eram os inquisidores ou
qualquer outro eclesiástico que executava a sentença, pois o réu era relaxado para o braço secular e quem de
fato executava a sentença era algum oficial ou funcionário civil.
16
O termo “quadro” é utilizado aqui no sentido que os partidos de esquerda da atualidade lhe deram, ou seja, das
pessoas pertencentes a uma organização, no caso a Companhia de Jesus, mais destacados nas mais diversas
áreas da atuação social.
133
Incentivo que pode ser entendido também como uma forma de se obter resultados mais
rápidos, elevar o “padrão de qualidade” mínimo e criar um status dentro da própria
Companhia, o qual serviria, num futuro próximo, como um critério para se escolher os
melhores homens para os postos mais importantes.
A aula era dividida em dois campos, romanos e cartaginenses, cada qual com o
seu estandarte; em cada campo dispunham-se por ordem de merecimento os
diferentes graus da hierarquia militar; todo aluno tinha no campo adverso um
êmulo, rival ou oponente sempre pronto a advertir-lhe os erros e contar, corrigindo-
os, uma vitória para sua bandeira. Emulação entre os dois partidos; emulação
dentro de cada partido onde os postos de honra e de comando só eram
conquistados e mantidos à custa de provas e merecimentos escolares. Não raro
ainda emulação e luta mais solene entre uma aula toda e imediatamente superior.
O desafio, concertatio, freqüente mantinha assim oficiais e soldados num estado
de alerta permanente. As regras do Ratio recomendavam-no em todas as escolas
inferiores, ut honesta aemulatio, quae magnum ad studia incitamentum est,
foveatur [que se favoreça a honesta emulação, que é grande estímulo aos
estudos]. J-31 : era uma adaptação feliz da disputatio tão freqüente nos grandes
torneios filosóficos e teológicos da Idade Média. (Franca, 1952, pp. 38-39)
Cada mês haja uma disputa na qual arguam não menos de três, de manhã e
outros tantos, de tarde; o primeiro, durante uma hora, os outros, durante três
quartos de hora. Pela manhã, em primeiro lugar dispute um teólogo (se houver
teólogos em número suficiente) contra um metafísico, um metafísico contra um
físico, um físico contra um lógico; de tarde, porém, metafísico contra metafísico,
físico contra físico, lógico contra lógico. Assim também pela manhã um metafísico
e pela tarde um físico poderão demonstrar uma e outra tese breve e
filosoficamente. (Ratio, 1952, pp. 162-163)
visando, primeiro, os futuros jesuítas, pois ao estabelecer uma rigorosa educação para eles,
por derivação, os estudantes de fora da Companhia também seriam atingidos.
Para se ter uma idéia aproximada da importância dos prêmios como auge e alvo das
inúmeras formas de competição entre os estudantes, existe no Ratio uma sessão exclusiva
sobre Normas de distribuição de prêmios, cuja primeira regra prescreve a quantidade dos
prêmios no que toca apenas às classes inferiores, ou seja, do curso de Letras:
Para a classe de Retórica haverá oito prêmios: dois para prova latina, dois para
poesia; dois para prosa grega e outros tantos para poesia. Para a classe de
Humanidades e a primeira classe de Gramática haverá seis prêmios, na mesma
ordem, omitindo-se a poesia grega que, de regra, não ocorre abaixo da Retórica.
Para todas as outras classes inferiores, quatro prêmios, omitindo-se também a
poesia latina. Além disso, dê-se também, em todas as classes, um prêmio ao
aluno ou aos dois alunos que melhor houverem aprendido a doutrina cristã.
Conforme o número, grande ou pequeno dos estudantes, poderão distribuir-se
mais ou menos prêmios, contanto que se considere sempre mais importante o de
prosa latina. (Ratio, 1952, p. 178)
A competição entre os estudantes não era livre e sim dirigida, acompanhada e avaliada
pelos professores e reitores. A emulação era intencional e desta forma também fez parte da
forja que preparava os quadros jesuíticos.
A formação do futuro jesuíta era rigorosa, outrossim, pelo fato de que tanto a vontade
como a inteligência estavam sendo forjadas. A vontade de ser padre jesuíta, de se dedicar aos
colégios, de seguir em missões por terras inóspitas e repletas de gentios para serem
convertidos e evangelizados, aliada à sabedoria intelectual, à capacidade de compreender e
comunicar o conteúdo cristão, os seus fundamentos e seus dogmas, formava o padre jesuíta.
No prefácio de 1559 das Constituições, escrito por Pedro Ribadaneira, há uma síntese da
educação jesuítica no seu duplo caráter:
135
Os professores saberão que matérias ensinar e com que método, que exercícios
propor para que os alunos as assimilem, formando a sua consciência, não menos
que a sua inteligência. Os escolásticos compreenderão a finalidade dos seus
estudos e apreenderão a integrar oração e estudo, piedade e ciência, o
desenvolvimento da afetividade com a reflexão intelectual, evitando assim que as
suas ocupações apaguem ou entibiem o fervor do espírito. (...). (Constituições,
1997, pp. 16-17)
O professor era o primeiro exemplo do estudante jesuíta e, por isso mesmo, teria que
ter uma vida exemplar, tanto no sentido de uma vida reta como no sentido de aliar a vontade e
a inteligência. Rodrigues mostra três qualidades necessárias aos professores: a ciência, a
prudência e a fidelidade:
(...) Benci, auctorizado pedagogo jesuita do século XVI, requeria no professor três
qualidades absolutamente necessarias: Scientia, Prudentia, Fides. Na sciencia
incluia os conhecimentos precisos das materias de ensino; pela prudencia
entendia o methodo e tino para o applicar e na lealdade comprehendia o conjunto
de dotes moraes que tornam um mestre perfeito. Todas estas qualidades
procurava, segundo suas leis, a Companhia de Jesus que as tivessem os
professores dos seus collegios e universidades. (Rodrigues, 1917, pp. 91-92)
Dois outros anos são ainda consagrados ao estudo mais profundo das letras
clássicas, latim, grego, hebreu. No esboço do Ratio de 1586 aventou-se a idéia de
encaminha-los então imediatamente ao magistério. Foram quase unânimes as
reclamações das províncias contra esta medida. Uma sólida formação filosófica
de, pelo menos, três anos, pareceu-lhes preparação indispensável ao exercício
fecundo do ensino. A filosofia dava aos futuros mestres uma visão orgânica da
vida, amadurecia-lhes o espírito, e, com mais três anos de estudo, também a
experiência da vida. (Franca, 1952, pp. 53-54)
regra, termina o professor jesuíta a sua formação intelectual” (Franca, 1952, p. 54). Além do
conteúdo formativo, havia uma formação mais técnica, didática, diríamos hoje, para o
exercício pleno do magistério.
E na nona das Regras do Reitor a preparação técnica e prática dos futuros professores
fica ainda mais clara:
Para que os mestres dos cursos inferiores não comecem a sua tarefa sem
preparação prática, o Reitor do colégio donde costumam sair os professores de
humanidades e gramática escolha um homem de grande experiência de ensino.
Com ele, vão ter os futuros mestres, em se aproximando o fim dos seus estudos,
por espaço de uma hora, três vezes na semana, afim de que, alternando
preleções, ditados, escrita, correções e outros deveres de um bom professor, se
preparem para o seu novo oficio. (Idem, ibidem, pp. 134-135)
escolástica tomista produziu e que, em certa medida, ainda se mantinha atual do ponto de
vista da Igreja.
Na quarta parte das Constituições, a que trata da educação, o único autor cristão que é
citado como fonte de estudos tanto na universidade, no caso da teologia, como nas faculdades
menores, ou seja, a filosofia, é S. Tomás de Aquino. Os outros assuntos relativos à teologia e
filosofia são tratados de forma genérica, como, por exemplo, o de se assegurar ao estudante a
melhor doutrina através dos melhores autores. No caso específico da filosofia natural e moral
e na metafísica, as Constituições recomendam seguir a doutrina de Aristóteles, o que na
prática significa ratificar a teoria escolástica tomista. São estes dois autores apenas, S. Tomás
e Aristóteles, que são citados no livro das regras e normas da Companhia de Jesus, o que por
si só, poderia caracterizar como escolástica a formação do futuro jesuíta.
Nas mãos dos estudantes de teologia e filosofia não se ponham todos os livros
mas somente alguns, aconselhados pelos professores com o conhecimento do
Reitor: a saber, além da Suma de Santo Tomás para os teólogos e de Aristóteles
para os filósofos um comentário para consulta particular. Todos os teólogos devem
ter o Concilio Tridentíno e um exemplar da Bíblia, cuja leitura lhes deve ser
familiar. Consulte o Reitor se convém se lhes dê algum Santo Padre. Além disto,
dê a todos os estudantes de teologia e filosofia algum livro de estudos clássicos e
advirta-lhes que lhe não descuidem a leitura, em hora fixa, que parecer mais
conveniente”. (Ratio, 1952, p. 143)
alguma apartar-se dele, uma vez que os que de modo especial se professam
tomistas por vezes dele se afastam e não seja justo se liguem os nossos religiosos
a Santo Tomás mais estreitamente do que os próprios tomistas17. (Idem, ibidem, p.
152)
A seguir, apresentar-se-á uma síntese dos cursos e matérias que compunham os graus
na educação jesuítica, destacando o seu conteúdo escolástico.
Toda a carreira dos estudos se divide em tres cursos parciaes, distinctos, mas
dependentes uns dos outros emquanto o inferior é degrau e preparação para os
superiores: o curso de letras ou linguas, o de philosophia ou de artes e o de
theologia. O curso de letras prepara para o de philosophia e este para o theologia,
á qual se entregava com particular empenho a Companhia como a estudo que
mais directamente aproveitava para realizar suas aspirações religiosas.
(Rodrigues, 1917, p. 41, com grifos no original)18
O latim era a língua oficial do colégio, que, aprendido no curso de letras, era
aperfeiçoado nos cursos de filosofia e de teologia. Existe uma tendência na historiografia que
ao conceber a pedagogia jesuítica como humanista credita ao ensino do latim e do grego
principalmente o papel de porta de entrada para uma espécie de renascimento por recuperar a
elegância dos escritos latinos e gregos. Seria o que Dias (1960) conceitua de humanismo
cristão.
17
Não foi possível investigar a fundo esta consideração, mas creio que se pode inferir que no século XVI, com
Vitória, Suares e Molina, principalmente, algumas questões do tomismo foram revistas, principalmente as que
diziam respeito ao direito positivo e ao direito das gentes.
18
Francisco Rodrigues apresenta a organização de estudos da Companhia já definida na forma do documento
Ratio Studiorum. É importante lembar que tal documento teve sua redação final após pelo menos 50 anos de
experiência e de “rascunhos” (no último capítulo deste trabalho, é apresentado um histórico mas detalhado da
elaboração do Ratio).
139
O grande objetivo dos cursos inferiores era o de moldar a alma dos jovens e criar a
forma cristã necessária para o conteúdo igualmente religioso. Na primeira das Regras comuns
aos Professores das Classes Inferiores prescreve o Ratio:
entanto, assim como em outros autores jesuítas, não se pode desprezar as informações que
Franca apresenta, e, em alguns momentos, mesmo análises pontuais são verdadeiramente
interessantes e consequentes.
Cabe à Filosofia fornecer a base lógica e científica da teologia, além se ser suporte
para as ciências físico-naturais, como, por exemplo, a matemática, a biologia e a física19.
António Rosa Mendes, em seu artigo A Vida Cultural, procura evidenciar o aspecto
escolástico da filosofia no conjunto dos cursos da educação jesuítica:
19
Uma das características da Companhia de Jesus foi a formação de matemáticos, físicos, astrônomos, ou seja,
formação de cientistas físico-naturais. Para um conhecimento mais pormenorizado sobre esse assunto, ver os
textos de Miller (1946) e Rodrigues (1917). Se pensarmos que à época não havia a especialização da ciência,
pode-se admitir que a formação filosófica contribuía para uma espécie de polimatia entre os jesuítas.
141
A formação escolástica do futuro jesuíta era terminada com o curso de teologia, que
segundo as Constituições é o meio mais apropriado para ajudar o próximo a amar e conhecer
a Deus e a salvar sua alma, ou seja, o meio mais adequado para realizar o fim da Companhia
de Jesus. As matérias que compunham este curso eram a teologia escolástica e positiva, a
Sagrada Escritura, a moral, a casuística, o hebreu e, dependendo do caso, as línguas orientais.
(...) Não é que estas faculdades devam nunca separar-se no seu exercicio; a
intelligencia, a phantasia e a memoria hão de acompanhar-se sempre umas das
outras e dar-se mutuo auxilio na educação do homem; mas havemos de admitir
que obteem não simultaneo nem igual desenvolvimento, mas realmente
successivo. E com esta successão real conforma-se o plano do Ratio Studiorum.
Na grammatica domina a memoria, na literatura a imaginação, nas sciencias o
entendimento. (Rodrigues, 1917, p. 131)
A preocupação com aspectos mais práticos da atuação do futuro padre, seja como
professor ou missionário especialmente em terras de missões, é o último aspecto da formação
do jesuíta que se quer apresentar, como terminando de compor um quadro da educação jesuíta
142
que, ao mesmo tempo em que era rigorosa e fincava pé na tradição escolástica, assumia como
tarefa elementos novos trazidos com a expansão do cristianismo.
A preocupação para que os jesuítas fossem, acima de tudo, bons no ofício de dizer
missa era tão grande no seio da Companhia que essa questão aparece até nas Constituições.
Na parte dedicada à educação do futuro padre há a prescrição de que eles deveriam seguir,
dentro das possibilidades, o mesmo rito, mesmo nas mais variadas regiões e situações havia a
preocupação com a unidade ritualística da missa, bem como com a postura do padre que
deveria ser edificadora da comunidade:
C. Os meios próprios [para o exercício de dizer missa] são: ter lido os princípios
sobre a maneira de pregar, dados por aqueles que se distinguiram neste ofício, e
escutar os bons pregadores; exercitar-se a pregar em casa ou nos mosteiros; ter
um professor que note os defeitos quanto ao assunto da pregação, à voz, ao tom,
aos gestos e às atitudes. E refletindo em seguida dentro de si sobre o que fez,
pode ainda ajudar-se mais de tudo isto. (Idem, ibidem, p. 139, [405])
exemplo, os Sermões de Antonio Vieira, que são vários volumes contendo a fala “viva”
daquele jesuíta em diferentes situações para distintas platéias.
Nesse sentido, Miller (1946) mostra que após a Igreja ter determinado, no século XI, a
obrigatoriedade da confissão ao menos uma vez ao ano, este espaço se tornou tão importante
que incrementou uma nova linha na Moral da Igreja responsável pelos casos de consciência.
Na modernidade, vários são os padres das inúmeras ordens religiosas que escreveram manuais
de casos de consciência, conhecidos como manuais moralistas casuísticos, procurando cercar
da forma mais detalhada possível, os pecados em seus mais diversos atenuantes ou
agravantes.
Assim, dois espaços privilegiados da atuação dos futuros padres jesuítas eram objeto
de preocupação já desde a formação deles: a missa e a confissão; dois espaços que deveriam
ser de edificação para os cristãos e que serviam de controle da comunidade por parte do padre.
Esses momentos especiais, no entanto, não sofriam mudanças em sua forma ou conteúdo,
fossem em Portugal, nas Índias ou no Brasil, ou a rigor, em qualquer lugar. A preparação
técnica poderia ser aperfeiçoada mas não mudava muito, diferentemente da formação prática
20
Apenas para lembrar, as missas naquela época eram rezadas em latim, fato esse que somente foi mudado na
Igreja Católica com o Concílio Vaticano II na década de 60 do século XX, pois, a partir de então, as missas
passaram a ser rezadas no vernáculo.
144
para os assuntos relativos às missões, os quais exigiam sempre novas coisas a serem
aprendidas.
Para alargar mais a conveniente instrucção do alumno e dar como que um verniz
brilhante á formação literária, patenteia o Ratio um campo vastissimo que elle
distinguiu com o nome de erudição, na qual o professor experimentado e erudito,
sem desconcertar a unidade do plano, enriquecia o espirito com uma variedade
immensa de conhecimentos uteis e agradaveis. Neste campo entrava muito á
larga a chronologia, a historia, a geographia, os usos e costumes das gentes, a
noticia biographica e literaria dos auctores, noções de varia literatura, mythologia e
technologia e quanto pudesse concorrer para formar um espirito illustrado.
(Rodrigues, 1917, pp. 45-46)
Estes assuntos seriam vastamente encontrados nas terras das missões, existindo
sempre a preocupação em entender a história, a geografia, os usos e costumes das gentes, a
mitologia etc. dos gentios a serem catequizados. Lembremos da carta de Anchieta de 1560,
citada na primeira parte deste trabalho, em que são descritos a fauna e a flora do Brasil, bem
como os costumes dos índios e suas lendas. De certa forma, esses estudos que aguçavam a
imaginação dos estudantes jesuítas, já os preparava para atribuir importância a estes temas
quando missionários.
Passo agora a referir-me à partida dos meus Caríssimos irmãos, para o Brasil e
para a Índia. São em tão grande número, tão exercitados não só no estudo das
letras, mas também na meditação das coisas divinas, e tão experimentados além
disso em ouvir confissões, administrar os sacramentos e aplicar-se a outras
ocupações salutares deste gênero, que há-de mitigar a nossa saudade o bem que
vão fazer a essas nações. (in: Leite, 1956, pp. 465-466)
A quarta parte das Constituições, aquela que trata justamente da educação do futuro
jesuíta, mostra que já era fato na Companhia que algumas universidades e colégios teriam o
encargo de formar os agentes missionários, sendo previsto, para tanto, uma formação especial
inclusive no aprendizado das línguas nativas:
A Arte da Língua Brasílica de Anchieta, depois de ser muito utilizada no Brasil como
manual para se aprender a língua dos gentios – daqueles mais próximos aos jesuítas –, foi
impresso em Portugal e passou a servir também como manual para preparar os futuros
missionários em terras brasílicas.
(...) los nuestros, que speran haý el tiempo en que han de passar par’aquellas
partes, se puedan començar exercitar en la lengua de aquella parte a donde han
de ser embiados, y nel tempo [sic] que se navega, y suele ser bien largo, también
se podrá ser sobrasse tiempo [sic] para esto. (in: Leite, 1960, p. 283)
Baptista (2003) informa que em 1593 o jesuíta Luís Fróis, missionário em terras
nipônicas, estava escrevendo uma História do Japão – a qual foi publicada poucos anos depois
– e sua finalização fora recomendada pelo Visitador Alexandre Valignano para que pudesse
ser útil aos futuros missionários. O livro de Fróis não era simplesmente uma obra individual,
146
mas uma obra que tinha de ser coletiva, pois tinha por objetivo exatamente facilitar as missões
naquelas terras.
Q.to a la fabrica del collegio para en el se criaren los hr.os japones como tanbien
el Pe. Visitador escrive a V. P. no fue sin grande consideration lo que en Japon en
la Congregation que se hizo se ha tratado desta materia porque ventilada con
mucha ponderation se no halló remedio mas eficaz que esto para reducir los
her.os japones al intento que la comp.ª dellos pretende que sacarlos de su R.no
custunbres y conversationes para se mejor domesticaren y uniren con los n.ros de
147
Europa. Y son tantas las utilidades que deste adventum se pueden seguir asi para
la solida direction de los hr.os japones en vertudes y letras y para el bien universal
de la christandad y aun tambien desta mission de la China quando N. S. fuere
servido de le abrir las puertas que no se ha visto medio mas eficaz y en todo
acomodado al intento de la comp.ª como la fundacion deste collegio. (...). (in:
Baptista, 2003, p. 03)21
O aprendizado das línguas nativas das terras em missão não era a única preocupação
que o jesuíta deveria ter em termos de dominar o vernáculo. Havia uma orientação do Geral
Loyola de que todos os jesuítas onde quer que se encontrassem se esforçassem para dominar o
vernáculo, aprendendo não só a falar, mas também a gramática da língua. Essa orientação está
numa carta de 01 de janeiro de 1556, de Polanco, a mando de Loyola, para os membros da
Companhia, que Leonel Franca transcreve como nota de rodapé:
“Y por eso ha mandado nuestro Padre que en todos los lugares dondes se halla
da Compañia hablen todos la lengua de la tierra; si en España, española; si en
Francia, francesa; si en Alemania, alemana; si en Italia, italiana, y asi de las
demas. Y aqui en Roma ha ordenado que hablen todos la lengua italiana; y a fin
de que la aprendan los que no la saben, todos los dias hay lección de gramatica
italiana (Cartas de San Ignacio de Loyola, Madrid, 1889, t. VI, p. 95)” (Franca,
1952, p. 62).
Até aqui, o que se pretendeu expor foi a formação do futuro jesuíta fazendo parte da
formação da própria racionalidade da Companhia de Jesus, e ambas, educação e
racionalidade, forjadas no espírito da reforma Católica, de forma rigorosa, com conteúdo
escolástico e preparo técnico para o exercício das funções próprias do padre jesuíta.
A formação da espiritualidade e o livre - arbítrio
21
Esta questão do colégio como espaço de reprodução da cultura ocidental em terras de além mar vai ser
retomada na parte seguinte deste trabalho quando for apresentada a educação como uma das formas como
aparece a racionalidade jesuítica.
148
O futuro padre jesuíta tinha uma formação espiritual, além da formação propriamente
intelectual. Afinal o homem forjado pela rígida educação era um sacerdote, um homem de
religião e da religião católica reformada, devendo, portanto, ter e exercitar uma espiritualidade
própria de quem está a serviço aqui na terra de uma força que é divina. Ser e se sentir
instrumento de Deus na terra passava por uma busca de uma experiência íntima com ele, e
isso se dava através de uma espiritualidade própria.
Na introdução aos Exercícios Espirituais há um alerta que demonstra que tal livrinho
tem uma função bem específica na formação do jesuíta, diferentemente das Constituições ou
do Ratio, pois são para serem praticados e não lidos simplesmente:
contemplação ativa do Salvador como “rei militante, empenhado em luta pelo seu reino”
(1946, p. 30), solicitando ao homem sua ajuda na construção do reino de Deus na luta contra
as forças do mal. A espiritualidade do século XVI, particularmente dos jesuítas, é diferente da
mística medieval, ao instigar o homem, no caso o futuro padre, à ação, não esperando que
Deus escolhesse o eleito, pois, continua Miller, “foi atribuída à vontade humana essa mesma
força que, anteriormente, se buscara apenas na ação de uma transfiguração sobrenatural”
(p. 22). A novidade da espiritualidade jesuíta, traduzida nos Exercícios, foi a valorização da
vontade humana no processo de se tornar um ser perfeito da mesma forma da perfeição do
Criador, vontade humana que ao não ficar somente na dependência de uma visão, de um
arrebatamento, dado por Deus, provocou uma “revolução completa no pensamento católico”
(p. 23). Talvez Miller exagere na tinta revolucionária em sua avaliação da espiritualidade de
Loyola, no entanto, é inegável que não se tratava mais da mesma mística medieval, típica de
um estoicismo cristão. Em síntese, o novo contato místico com Deus se dava, à maneira de
um catolicismo expansionista, na ação, nas atividades práticas de evangelização:
Antes de continuar, é preciso ter em conta que da mesma forma que a educação e o
preparo para as missões vão se definindo historicamente na Companhia, pois não nasceram
prontos, também a espiritualidade dos jesuítas passou por mudanças ao longo dos primeiros
anos de vida oficial da Societas Iesu. Prova disto foram as discussões entre Mestre Simão
Rodrigues e Loyola – o Provincial português e o Geral –, acerca do comportamento radical23
de estudantes jesuítas portugueses, que era incentivado por Rodrigues e censurado por
Loyola. A discordância de ponto de vista levou ao afastamento do Provincial português de seu
cargo, até porque tais atos causavam estranheza na corte portuguesa. Loyola entendia que as
atitudes vividas e incentivas por Rodrigues foram próprias de um período no qual os
primeiros jesuítas estavam decidindo seu futuro na Igreja e provando ao extremo suas novas
vocações e que já não mais tinham razão de ser, excetuando-se no período do noviciado.
Poder-se-ia afirmar que o comportamento de Mestre Simão estava mais próximo de uma
22
Na carta aos Gálatas, São Paulo diz: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em
mim, e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si
mesmo por mim”.
150
Outro autor estudado que talvez exagere também em sua avaliação dos Exercícios
Espirituais é Daniel-Rops, para o qual, tal livrinho é reputado como “o mais eficaz manual de
ação e de conquista que jamais possuiu a Igreja” (1969, p. 45). O elogio histórico que autores
fazem, Rops no caso, não se deve apenas ao conteúdo religioso e forma psicológica dos
Exercícios, mas também ao fato de que se tratava do primeiro documento da Companhia,
antes mesmo da bula de fundação, que ajudou a formar e provar a espiritualidade e a mística
dos primeiros jesuítas.
Trabalha como se tudo dependesse de ti; reza como se tudo dependesse de Deus! Esta
frase atribuída a Loyola sintetiza a formação espiritual do futuro jesuíta ao unir a ação e a
oração. Millett (1985) entende que esta frase também resume a atividade da Igreja, através das
atitudes reformistas dos papas do final do século XVI:
23
Tal comportamento radical se traduzia em severas autoglagelações, em dormir em hospitais junto a leprosos,
em andar nu pelas ruas em pleno inverno etc., como provas concretas de amor e experiência de Deus.
151
A rigor, existem duas posturas teóricas e doutrinárias que procuram dar conta da
relação criador e criatura: a doutrina do livre-arbítrio e a doutrina da predestinação ou da
graça. De modo distinto da teoria do livre-arbítrio, os adeptos da predestinação advogam, em
linhas gerais, que o futuro do homem já foi escrito e ele já está predestinado ou para a graça
ou desgraça eternas. Nessa doutrina, o plano sobrenatural é sobrevalorizado em detrimento do
plano natural, na medida em que não resta ao homem nada mais do que esperar seu destino e
privilegiar o contato mais íntimo com o criador através da oração, pois a ciência de quem são
os eleitos sempre será um mistério para os homens.
Esta definição, por um lado afirma o poder da vontade livre mas também requer o
concurso da graça, pois “o livre-arbítrio é salvo e a graça salva”. Ambos são
necessários à obra da salvação e o livre-arbítrio coopera com a graça. São
fundamentais a esta definição os conceitos de vontade e razão. Vontade é
definida por ele como movimento racional que preside os sentidos e os apetites,
mesmo que às vezes se dirija contra a razão. A razão por sua vez, é dada à
vontade, para torná-la eficiente e não para destruí-la. Se assim o fizesse, imporia à
vontade uma necessidade, cerceando seu livre agir conforme seu próprio arbítrio e
ela não seria mais a vontade, mas sim a necessidade. Assim, o livre-arbítrio tem
duas referências fundamentais: livre se refere à vontade e arbítrio à razão. Sua
teologia acaba se referindo depois a três tipos de liberdade: da natureza, pela qual
a natureza é submetida; da graça pela qual a carne é submetida; e a da vida e a
da glória, pela qual a morte é submetida. Elas são fundamentais ao homem e à
sua salvação. Aqui está então, a doutrina clássica da Igreja sobre este tema.
(Toledo, 1996, pp. 33-34, com grifo no original)
Desde Santo Agostinho até São Tomás de Aquino, este tema freqüentou os escritos
teológicos e filosóficos dos intelectuais da Igreja. Vitalino Cesca, em sua tese de
doutoramento Fundamentos teológico-filosóficos da Ratio Studiorum, faz uma apresentação
bastante didática da doutrina da predestinação e a do livre-arbítrio, remetendo a Platão e
Aristóteles os fundamentos filosóficos de tais doutrinas. Cesca, na esteira de compêndios
sobre a história do cristianismo, divide a história do pensamento cristão, no tocante a esta
questão, em duas correntes: uma representada por Santo Agostinho – a Patrística – que tem
Platão como o fundamento filosófico, passando por Plotino, pelos maniqueístas, por Duns
Scotus, Guilherme de Occkam, chegando em Calvino e Lutero; e a outra representada por São
Tomás de Aquino – a Escolástica – que tem Aristóteles como fundamento filosófico,
passando por Pelágio, Cardeal Cayetano e Domingos Bañes.
A doutrina defendida por Agostinho, segundo a divisão feita por Cesca, traz como
conseqüência a maior valorização da dimensão divina, sobrenatural, da criação, dado que o
destino do homem já está, de certa forma, traçado por Deus. Santo Agostinho é exemplo da
doutrina da predestinação, ou da valorização da graça divina, no concurso da salvação ou
condenação do homem:
É dentro do campo de criatura e de homem, que, com seu livre arbítrio, deverá
mover-se. Esta limitação não lhe tira a autonomia, mas o mantém e o conserva
dentro dos limites do humano. Proíbe-lhe negar-se a si mesmo, trair sua própria
natureza, conspirar contra sua identidade. Obriga-o a ser apenas humano. (Idem,
ibidem, p. 79)
Na filosofia e teologia cristãs até a Escolástica, pelo menos, não parece cabível fazer
uma distinção tão clara e nítida da doutrina da graça divina por um lado e do livre-arbítrio de
outro, como fez Cesca. Até por que, quando se fala em liberdade humana na esfera da
religião, em hipótese alguma se pretende emancipar completamente o homem de uma visão
claramente teocêntrica. Na valorização do livre-arbítrio humano está presente a valorização da
dimensão humana no processo de salvação ou condenação eternas, cabendo ao homem mais
responsabilidade, inclusive, no seu destino.
Como exemplo de que essa questão não pode ser tratada como uma dicotomia, Miller
(1946) mostra que somente no Concílio de Trento (1545-1563) é que a Igreja reunida,
impulsionada pelo combate aos reformadores, recusou firmemente a doutrina da
predestinação, mas não fez credo firme, claro e inabalável da doutrina do livre-arbítrio.
direito, ou seja, as teorias respeitantes ao direito natural e ao direito social à época ganharam
um status de ciência que, mesmo sob os olhares da autoridade eclesiástica e da teologia como
ciência mãe, abriram espaço próprio de reflexão.
(...) Ora, a mais profunda linha de fratura ocorrida nesse edifício é, sem dúvida
nenhuma, (...), a disjunção, tornada patente no século XVI, entre uma ordem
doravante qualificada de “sobrenatural” e um estatuto hipoteticamente constituído,
o da pura natureza. Doravante, é nesse quadro, como se viu explicitamente com
Suárez, que são elaboradas as teses fundamentais relativas à lex naturalis. (...) O
direito natural torna-se assim, em seu princípio, um direito racional e, a partir daí,
importa muito pouco saber (Vásques versus Suárez) se essa racionalidade,
codificável, é a de uma ordem das essências que se impõe ao próprio Deus ou se
se reserva em Deus uma instância propriamente volitiva e posicional. (Idem,
ibidem, p. 322)
Febvre, como já anotado, adjetiva o século XVI como “um século de vida religiosa”
(in: Barreto, 1983, p. 101), mostrando que não se pode ignorar que naquele século a religião
ainda domina os destinos dos homens e, inclusive, as guerras também são de religião. A partir
dessas reflexões, pode-se ver que o quinhentos é tão contraditório quanto humanista de um
lado e religioso de outro. O século XVI, talvez justamente por ser contraditório, é, entre outras
adjetivações, o século da grande epopéia moderna que, como as antigas, a par dos deuses
estão os heróis, a par das espiritualidades estão as individualidades humanas.
Cesca mostra que a moral jesuítica, por exemplo, está assentada na doutrina do livre-
arbítrio, exigindo mais da inteligência e da vontade:
A moral jesuítica, no entanto, tem seus alicerces no livre arbítrio. É com ele que o
homem deve agir. Trata-se, para tanto, de buscar sempre os maiores
esclarecimentos por parte da inteligência e um fortalecimento da vontade para que
sua ação seja livre; e, pela formação de hábitos, que a vontade seja persistente.
(Cesca, 1996, p. 131)
Foi de corpo e alma que os teólogos jesuítas dedicaram-se ao estudo dos casos.
Como paladinos do livre arbítrio, viram neste estudo a grande oportunidade de
reduzir a moralidade ao seu essencial, libertando-a de tudo o que viesse denegri-
la. Além da análise da matéria do ato, detiveram-se sobremaneira na análise das
condições subjetivas, isto é, o grau de conhecimento e de consentimento.
Qualquer limitação em um ou em ambos fazia com que o ato não tivesse sido
realizado com o exercício pleno do livre arbítrio e com isso a culpa também
diminuía. Tratava-se de desimpedir o caminho da moralidade, afastando
escrúpulos vãos, pruridos de consciência bem como a permissividade moral. Foi,
enfim, toda uma tentativa de definir objetiva e cientificamente a conduta moral, não
só através de princípios gerais, senão que aplicando estes a cada caso concreto.
(Idem, ibidem, p. 137)
Inclusive, Miller aponta que um dos segredos do sucesso da Companhia de Jesus foi
exatamente valorizar a liberdade individual no seio da própria Ordem, pois, aliado à
obediência cega, obediência “como um cadáver”, os jesuítas souberam “desde o início,
utilizar de maneira proveitosíssima as qualidades pessoais dos seus membros, e, justamente,
159
Voltando a Cesca, ele mostra que para o jesuíta Luis de Molina, por exemplo, a
questão do livre-arbítrio não era apenas uma questão de opção, mas de reflexão, no sentido de
justificá-lo teologicamente, em oposição, àquela altura, ao pensamento protestante que tinha
por base a defesa, intransigente, da predestinação. Molina procura justificar teologicamente a
liberdade humana:
A existência do livre arbítrio criado prova-o pela experiência. Ele existe nos anjos,
nos homens e às vezes o apetite sensível de alguns animais também manifesta
sinais de sua existência. Além de comprovar sua existência pela experiência,
deveríamos ainda considerar que se não houvesse o livre arbítrio no homem, por
que Deus haveria de castigá-lo? Deveria castigar-se a si próprio já que foi Ele que
assim o fez e o fez de tal maneira que as coisas necessariamente acontecessem
assim como estão acontecendo, isto é, decididas pelo livre arbítrio do homem (CF.
Concórdia, 23, 1).
Assim que se a primeira raiz dos efeitos do livre arbítrio é a vontade de Deus, pois
foi ela que o criou; a raiz próxima é o livre arbítrio criado.
Assim entendido, como se salva o livre arbítrio criado diante da presciência e da
providência divinas? Pela ciência livre, Deus sabe apenas que o homem com seu
livre arbítrio, em meio a tais circunstâncias, poderá fazer tais e tais opções e que
160
as opções que ele fizer Deus as prevê, as antevê como já existentes e por isso
ontologicamente depois e porque o homem as fez. É por isso que o homem irá
fazer tal opção que Deus a conhece. Salva-se com isto a autonomia do livre
arbítrio criado. (Cesca, 1996, p. 114)
Cesca procura mostrar também, que a visão otimista da ordem natural da criação,
propiciada teologicamente pela doutrina do livre-arbítrio, foi impressa, no seio da Companhia
de Jesus, pelos teóricos Luis de Molina e Francisco Suárez. Ao realizar e justificar tal opção,
eles também definiram uma orientação prática e não só especulativa, para a ação da
Companhia.
A noção de indivíduo ganha mais força ainda e a valorização do plano natural passa a
ser palavra de ordem para os padres da Companhia de Jesus. A noção valorizada do indivíduo
e a conseqüente noção igualmente valorizada da dimensão das obras no processo de
evangelização se traduzem, na racionalidade jesuítica, através da necessidade do
planejamento dos e nos colégios, das e nas missões, através da capacidade de decisão perante
o novo e através das reflexões sobre o direito.
da recompensa eterna; e isto acarreta, na prática jesuítica, não só ensinar a rezar o credo
cristão, mas procurar levar os homens a agir de acordo com o orbis christianus. A crença de
que o homem é co-participante do seu destino inspira e legitima a ênfase dada na Companhia
de Jesus aos processos de formação educativa e cultural dos futuros padres, a ênfase na
formas de organização, como os colégios, as reduções, as fazendas, as casas comerciais etc..
RACIONALIDADE INSTITUCIONALIZADA
163
Introdução:
1
Este termo foi cunhado por Lucien Febvre, o qual transformou-se num conceito historiográfico. Para Ronaldo
Vainfas (2002): “... Quanto a Lucien Febvre, que já havia enredado pela psicologia histórica em seu Un
destin, Martin Luther (1928), esboçou uma verdadeira teoria dos modos de pensar e de sentir no século XVI
europeu através do conceito de outillage mental – inspirado no conceito de mentalidade primitiva ou pré-
lógica de Lévy Bruhl –, o que fez na sua obra clássica Le problème de l’incroyance au XVIe siècle: la
religion de Rabelais (1942) – A época da descrença ...” (p. 18). Roger Chartier (1982) detalha um pouco mais
em que consiste tal conceito: “No seu Rabelais, publicado em 1942, Febvre não define a utensilagem mental,
mas caracteriza-a do seguinte modo: ‘A cada civilização, a sua utensilagem mental; mais ainda, a cada época
de uma mesma civilização, a cada progresso (quer das técnicas, quer das ciências) que a caracteriza – uma
utensilagem renovada, um pouco mais desenvolvida para certas utilizações, um pouco menos para outras.
Uma utensilagem mental que essa civilização, que essa época, não está segura da capacidade de transmitir,
integralmente, às civilizações, às épocas que lhe vão suceder, podendo conhecer mutilações, retrocessos,
deformações importantes. Ou, pelo contrário, progressos, enriquecimentos, novas complicações. A
164
Nesse sentido, a racionalidade aqui não deixa de ser um conceito abstrato, pois se trata
de uma síntese de alguns elementos ou mesmo características que perfazem um todo, sendo
isto o que permite se falar em racionalidade de algo ou de alguém. Portanto, como todo
conceito abstrato, a racionalidade é constituída por vários elementos, uns mais teóricos e
outros mais práticos. Na perspectiva aqui utilizada se quer destacar alguns desses elementos
constituintes da racionalidade jesuítica julgados importantes.
utensilagem vale pela civilização que soube forjá-la; vale pela época que a utiliza; não vale pela eternidade,
nem pela humanidade: nem sequer pelo curso restrito de uma evolução interna de uma civilização’ (ed. Albin
Michel, 1968, pp. 141-142” (p. 36).
165
Estes três aspectos da racionalidade jesuítica estão presentes, uns mais outros menos,
em todas as diversas atividades que a Companhia empreendeu no período estudado, como no
cuidado de colégios e universidades entregues por soberanos; nas missões nas Índias, no
Oriente, na África e nas Américas; na construção de tipografias em praticamente todas as
regiões onde estiveram presentes; nas fazendas de criação de gado e plantação de mate; como
confessores de reis e príncipes; como donos de navios; como donos de casas de comércio.
Enfim, nas várias atividades que os padres jesuítas empreenderam, a adaptação, a organização
e a educação estiveram presentes como componentes essenciais.
Capítulo 4
Inácio de Loyola, em carta de 1555, a João Nunes Barreto, padre jesuíta que iria
assumir a dignidade de Patriarca da Etiópia, a terra do lendário Preste João, faz uma série de
recomendações no tocante à evangelização e reconversão daquele povo que era cristão de
confissão oriental. Dentre as recomendações, uma é reveladora do que a prática dos primeiros
missionários ensinou à Companhia acerca da necessidade de que a doutrina cristã fosse
sempre adaptada às diferentes circunstâncias, no caso da Etiópia, ao povo que seguia dogmas
já admitidos como heresias em concílios do início da Idade Média:
Quando Inácio escreve essa carta, a Companhia de Jesus já tem quinze anos de
existência oficial e vinte e um de criação, contando já com uma experiência acumulada de
pelo menos treze anos em missões. Essa experiência não é apenas em termos de quantidade,
mas de qualidade também, na medida em que era vasta a correspondência entre os jesuítas,
principalmente das províncias com o Geral em Roma. Esse volumoso epistolário3 era
2
Monofisismo: seita cristã dos séculos V e VI, considerada herética por afirmar que Cristo tinha uma única
natureza (divina), em oposição à doutrina ortodoxa que proclamava existirem duas, divina e humana. Foi
condenada no ano 680-681, no III Concilio de Constantinopla.
3
Cardoso e Gonzáles-Quevedo, na Introdução das Cartas de Santo Inácio de Loyola, vol. 3, informam que
somente do fundador, enquanto Geral, são conservadas 6.815 cartas, das quais 5.301 são para os próprios
jesuítas. O fato de um líder como S. Inácio escrever muitas cartas acompanhava, de certa forma, uma prática à
época, pois, como informa Fernando Londoño (2002) citando o estudo do padre jesuíta Dominique Bertrand,
Erasmo de Roterdã teria escrito 1.908 cartas, Lutero 3.141, Calvino 1.247 e Catarina de Médicis 6.381.
167
incentivado a todo o momento pelo primeiro Geral4 e acarretava, entre outras coisas, uma
avaliação contínua dos trabalhos empreendidos pelos padres da Companhia, principalmente os
relativos às missões.
O trabalho nas missões exigia gente preparada para enfrentar muitas dificuldades,
como doenças próprias dos navios, doenças desconhecidas em regiões inóspitas, povos que
perseguiam os cristãos, viagens desconfortáveis por mar e por terra etc.. Esse tipo de trabalho
exigia pessoas preparadas para sofrer e, mais do que isso, para fazer do seu sofrimento uma
alegria própria de quem está levando a verdade para os ignorantes dela.
São Francisco Xavier reclama, numa carta de 1544, para os companheiros da Europa,
que os doutores da Universidade de Paris, ao se contentarem somente com as letras,
contribuem para que muitas almas se percam. Do ponto de vista do missionário e da
concepção cristã e cultural ocidental da época, tratava-se de levar a verdade para corrigir o
erro:
4
No próximo capítulo esse assunto voltará com mais profundidade, como um dos aspectos da organização da
Companhia de Jesus.
168
religião; no entanto, ele sabia, e externava ao Rei, que eram duas coisas “que são perigosas no
nosso tempo (e) se entre os cristãos é tão perigoso repreender e falar a verdade, quanto mais
será entre os gentios!” (Idem, ibidem, p. 112)
Numa outra carta, de 1542, para os companheiros em Roma, Xavier resume quais as
características que deveria ter o verdadeiro missionário. Ele insiste que somente aqueles que
estivessem dispostos a enfrentar muitos sofrimentos deveriam se colocar à disposição para o
trabalho:
Em outras cartas, ele insiste no mesmo ponto, chegando a afirmar que para ser
missionário não era tão necessário ser letrado, mas acima de tudo ser virtuoso5.
Apenas para se ter uma idéia relativa dos problemas que os missionários enfrentavam
à época, veja-se a informação de Xavier, na carta de 1548, aos companheiros de Roma, de que
demorava em torno de “três anos e nove meses” entre mandarem as cartas de lá e receberem
as respostas, que era o tempo que demoravam os navios de Roma para Goa e de Goa para as
Molucas e o retorno. Xavier dá essa informação para “saberdes quão longe estamos,
corporalmente, uns dos outros” (Idem, ibidem, p. 74)
5
Como veremos adiante, no final da década de 40, quando o santo estiver no Japão, ele enviará nova carta
mostrando que as letras e a ciência agora eram necessárias ao missionário. Essa diferença é resultado do
enfrentamento de uma cultura mais complexa como a japonesa.
169
numa nota a respeito dos relatos detalhados que São Francisco Xavier fez dos problemas que
a população das ilhas de Rau ou Morotai, nas Molucas, enfrentava com o vulcão Monte Tolo,
afirma que o Geral Loyola “exortava aos epistológrafos jesuítas a narrarem tais novidades
para os amigos da Companhia que liam essas cartas e se edificavam com os trabalhos
difíceis dos missionários” (Idem, ibidem, p. 66, nota de rodapé 15).
As missões eram um convite para que o jesuíta pudesse colocar à prova sua vocação,
pois, pelos problemas enfrentados, se tornava um tipo de trabalho mais difícil do que os
outros desenvolvidos pela Companhia. Não tendo recolhido dados suficientes para afirmar se
na visão dos fundadores, pelos menos, as missões se caracterizavam como o trabalho mais
importante, pode-se julgar, porém não sem medo de errar, que, pelo menos, as missões eram
igualmente importantes como os outros trabalhos. No entanto, aquele tipo de função requeria,
quase a todo o momento, um processo de adaptação e de contínua avaliação.
Para dar conta desse aspecto da racionalidade jesuítica far-se-á a apresentação de três
momentos julgados importantes: a adaptação através do missionário Francisco Xavier,
principalmente no Japão, de 1549 a 1552; a adaptação através do missionário Mateus Ricci,
na última década do século XVI, na China; e, a adaptação através dos primeiros missionários
no Brasil.
Como já mostrado na primeira parte, Francisco Xavier foi, juntamente com Simão
Rodrigues, designado para ir até Portugal, em resposta a um pedido de D. João III a Inácio de
Loyola. Simão Rodrigues ficou em terras lusitanas e Xavier foi como Núncio Apostólico para
os domínios lusitanos na Índia. De início o futuro Apóstolo do Japão já mostra que é
necessário conhecer bem o terreno em que se está pisando, especialmente porque a grande
maioria da população não professa o cristianismo. Apesar do domínio português naquela
6
Francisco Xavier nasceu em Navarra em 1506. Em 1525 foi para Paris estudar na Universidade, onde obteve o
grau de mestre em 1530. Em 1534 funda a Companhia junto com os outros seis estudantes. Em 1537 vai para a
170
região ser, à época, bastante eficiente, a religião e a cultura daqueles povos resistiam, sendo
que, no máximo, havia um sincretismo ritualista.
(...) “Se os argentários [muito ricos] percebem que a gente é experimentada nas
cousas da vida diária, como êles mesmos, sentem admiração e confiança; de
outra maneira as advertências do sacerdote só serão ridicularizadas”.
“Esforce-se, desde o primeiro dia”, continua Xavier, “por saber que espécie de
negócios são praticados nos diferentes lugares, quais os usos e costumes
adotados na região e nos arredores(...) Informe-se também dos pecados em que o
povo vive, e de como a prédica e a confissão deverão ser postos em prática(...)
Inteire-se, depois, dos casos judiciários mais freqüentes, dos embustes, perjúrios e
corrupções(...)”
“Fale a sós com os pecadores a respeito de suas faltas; e faça-o sempre com o
semblante risonho, sem violência, em tom amigável e carinhoso. De acôrdo com a
personalidade, abrace um e humilhe-se diante de outro(...) Se quiser colhêr bons
frutos em sua própria alma e na do próximo, então trate sempre os pecadores de
maneira que êles lhe abram o coração e depositem confiança em você. Êsses são
os livros vivos, mais eloqüentes do que todos os livros mortos, e nos quais você
deverá estudar(...)”(Miller, 1946, p. 239)
No entanto, os oito anos passados nas regiões de possessão da coroa portuguesa nas
Índias, de Goa até as ilhas Molucas, não foram muito fecundos para Xavier no que concerne a
uma efetiva catequese daqueles povos. Alguns autores apontam que Xavier se decepcionou
muito com a religião dos brâmanes e, principalmente, com o ritualismo sincrético que os ditos
cristãos praticavam. Lacouture, em seu livro Os Jesuítas, afirma que Xavier nutria um
verdadeiro preconceito para com aquela cultura e religião. Nada toca à inteligência do doutor
Xavier, pois somente as virtudes da pregação à exaustão, das confissões e das celebrações
eram necessárias para civilizar aquele povo bárbaro.
Itália. Chega em Lisboa em 1541. Em 1542 chega em Goa. Parte para o Japão em 1549. Morreu em 03 de
dezembro de 1552, em Sanchoão, a caminho da China.
171
Outra decepção de Xavier como missionário na Índia teria sido a constatação de que
os capitães, fidalgos, burgueses e comandantes portugueses não tratavam os gentios da forma
que ele considerava devidamente cristã. Como já foi mostrado na primeira parte deste
trabalho, muito dos “péssimos” costumes daqueles povos, como o concubinato, tinham sido
absorvidos pelos portugueses, além do mais, pela riqueza adquirida, muitos deles viviam com
todo o conforto, fazendo de muitos gentios escravos domésticos.
Xavier considerava, segundo Lacouture, que muitas das conquistas do Rei de Portugal
nas Índias eram indignas de receberem o selo de coisas cristãs. Numa carta7, por exemplo, de
1549, endereçada ao próprio D. João III, Xavier chama a atenção do monarca:
“... A experiência me ensinou que Vossa Alteza não exerce seu poder na Índia
unicamente para ali acrescer a fé em Cristo, mas também exerce seu poder para
assenhorear-se das riquezas temporais da Índia (...) Que Vossa Majestade faça
uma conta exata e bastante completa de todos os frutos e de todos os bens
temporais que colhe nas Índias mercê de Deus (...) Que Nosso Senhor faça
compreender a Vossa Alteza, no íntimo de sua alma, sua santíssima vontade e lhe
conceda sua graça a fim de cumpri-la, de modo que Vossa Alteza se regozije
disso, na hora da morte, quando V. A. prestar contas a Deus de toda a sua vida
passada; e essa hora virá mais depressa do que Vossa Alteza pensa. Seus reinos
e possessões têm um fim (...) Será coisa inaudita e nunca antes imaginada por
Vossa Alteza ver-se deles despossuído...”. (In: Lacouture, 1994, p. 138)
“... Senhor, eu sei o que ocorre aqui. Não tenho pois qualquer esperança de que
as ordens e prescrições que Vossa Alteza deve enviar em favor da cristandade
sejam obedecidas na Índia. É por isso que parto para o Japão, quase fugindo,
para não perder mais tempo do que já perdi...”. (Idem, ibidem, p. 140)
7
Esta carta é a mesma que foi utilizada na primeira parte.
8
Ele afirma no prefácio que a “imensidão do tema e a fragilidade de suas qualificações para abordá-lo
impedem o autor de propor uma História dos Jesuítas”, mas apenas “histórias de jesuítas” (p. 07).
172
concepção antropológica que constituirá a verdadeira glória dos jesuítas” (Idem, ibidem, p.
141).
Sendo outro o objetivo deste trabalho, não se fará uma discussão com Lacouture a
respeito da definição, defesa ou crítica que ele faz da concepção antropológica dos jesuítas.
Lacouture, ao longo de seu livro, faz uma série de críticas e uma série de elogios à postura de
inúmeros jesuítas em diferentes ramos de suas atividades; no entanto, a grande maioria das
apreensões críticas é feita por um homem do final do século XX, que parece não levar em
conta, muitas vezes, uma situação social, política e religiosa que é própria do século XVI.
Portanto, quando se cita aqui este importante historiador da Companhia de Jesus, não se está
necessariamente concordando com ele; apenas que as informações constantes do seu livro são
bastante profícuas para o trabalho.
Diante disto, pode-se afirmar que as informações que Xavier recebeu a respeito do
Japão e dos japoneses despertaram nele uma euforia que não somente tocou sua alma de
missionário, mas também, e principalmente, sua inteligência. Os japoneses seriam pessoas
racionais, que julgariam com sabedoria qual religião seria a verdadeira – se a dos bonzos, que
eram os sacerdotes do budismo e do xintoísmo, ou a dos padres cristãos; teriam uma
universidade na qual os sacerdotes eram formados, mais ou menos à moda das universidades
ocidentais; teriam um Rei que mandava no país todo, tal qual os reis ocidentais. Tais
informações, do ponto de vista do missionário que planeja sua missão, teciam um panorama
merecedor de entusiasmo.
Em carta de 1548, aos companheiros de Roma, Xavier informa dos planos que
estavam sendo feitos para a evangelização dos “japões”. Ao falar de Anjirô, o primeiro
japonês que Xavier conheceu em Malaca e que depois de conhecer e conviver com o jesuíta
se converteu ao cristianismo, ele mostra que a adaptação era fundamental para se chegar ao
bom termo as missões. Anjirô, por exemplo, “irá aprendendo melhor a língua portuguesa,
verá a Índia e os portugueses seus habitantes, assim como nossa maneira religiosa de viver”,
com o objetivo também de fazer dele um instrumento atuante na viagem ao Japão, na medida
que ao ensinar-lhe o catecismo, já “transladaremos toda a doutrina cristã para a língua
japonesa, com uma explicação dos artigos da fé”, ou seja, se traduzirá para a língua japonesa
a “história da vinda de Jesus Cristo Nosso Senhor” (In: Cardoso, 1996, p. 72).
173
Com relação a este episódio, Lacouture afirma que Xavier teve que se aproximar mais
dos japoneses – chefes locais e pessoas em geral – e buscar o diálogo, sendo que a partir daí,
sim, a necessidade da adaptação vai ser mais acentuada, acarretando o que Lacouture
conceitua como “inculturação”:
174
“São tão curiosos e importunos em perguntar, tão desejosos de saber, que nunca
acabam de perguntar e de falar aos outros as coisas que lhes respondemos às
suas perguntas. Não sabiam eles o mundo ser redondo, nem sabiam o curso do
sol; perguntando eles por estas coisas e por outras, como dos cometas,
relâmpagos, chuva e neve e outras semelhantes, a que nós respondendo e
declarando-lhas, ficavam muitos contentes e satisfeitos, tendo-nos por homens
doutos, o que ajudou não pouco pra darem crédito a nossas palavras”. (In:
Cardoso, 1996, p. 91)
Na mesma carta – na edição organizada por Cardoso – Xavier mostra que apesar dos
progressos na missão, a terra japonesa ainda é inóspita para os estrangeiros, requerendo muito
afinco e disposição para o trabalho. As perseguições continuam, as guerras idem, os caminhos
são difíceis, enfim, não era “terra para homens idosos, por causa dos muitos trabalhos, nem
para muito jovens, se não forem de grandes experiências, porque, fora disso, em lugar de
aproveitar a outros, perdem-se a si próprios” (in: Cardoso, 1996, p. 103).
9
António Lopes, no artigo Os jesuítas pioneiros relativamente a Galileu?, ao considerar o estudo da matemática
entre os jesuítas portugueses e, baseado em cartas e textos de Francisco Rodrigues principalmente, mostra que
não havia muito interesse entre eles pelo estudo das matemáticas e que aqueles poucos que se aprofundavam
nesta direção não tinham o mesmo status dos filósofos, por exemplo. Isso fez com que os superiores da
Companhia de Jesus envidassem esforços para que em Portugal se fomentasse o estudo da matemática entre os
jesuítas, para que não se “importassem” mais professores de outros países e para que se formasse quadro para
as missões, principalmente na China.
176
O comportamento mais modesto, mais humilde, foi deixado de lado por uma postura
mais altiva, arrogante mesmo. Essa mudança ocorreu devido à constatação de que a postura
de humildade exagerada era própria dos pobres e daqueles que não mereciam o respeito da
sociedade. Aqueles que se julgavam importantes teriam que ter um comportamento
adequadamente destacado e deveriam mostrar orgulho desse comportamento, pois era
revelador de quem detinha status social, seja através da riqueza, seja pelo conhecimento etc..
Nesse sentido, a nova postura adotada é para mostrar ao povo em geral que aqueles
missionários eram pessoas notáveis. Na visão de Xavier e dos outros, essa postura,
aparentemente contraditória com a virtudes evangélicas, facilitava o caminho das conversões,
que era o objetivo deles.
Outra mudança no comportamento dos missionários foi quanto à roupa que eles
usavam. Depois de constatarem que o linhão preto de suas túnicas era também próprio dos
pobres e vagabundos, concluiram de que ao querer se manter humildes no trajar, mais
dificuldades criavam eles próprios na relação com aquela sociedade. Assim, instauraram uma
polêmica na Igreja em geral e no seio da Companhia em particular: adotaram a seda como
tecido de suas túnicas. A seda era o tecido dos ricos, era o tecido coerente com o status da
pessoa na sociedade.
10
A respeito da questão da troca dos hábitos ver Lacouture, op. cit., pp. 165-166, e Miller, op. cit., pp. 150-151.
177
jesuítas alimentavam o propósito de alcançar aquilo que Xavier não pudera completar”,
sendo que cada um e todos eles estavam prontos para a difícil missão, possuindo de maneira
igual a aptidão para ser “comerciante com o comerciante, soldado com o soldado, para
tornar-se conselheiro do príncipe, amigo e confidente do escravo, para defrontar os
orgulhosos japonêses com altivez e para vencer os eruditos bonzos em debates dialéticos”
(Miller, 1946, p. 259).
Mateus Ricci 11 .
11
Mateus Ricci, ou Li Mateo, como vai também se tornar conhecido mais tarde, nasceu em Macerata, na Itália,
em 1552, ano da morte de Francisco Xavier. Entrou para a Companhia de Jesus em 1571. Em 1577 foi
destinado para as Índias Orientais, tendo estudado em Coimbra para se preparar para a missão. Foi ordenado
sacerdote em 1580. Em 1582 foi destinado para a China. Em 1594 chega a Nanquim, uma importante cidade
chinesa e é reconhecido como sábio do Ocidente. Ricci morreu na Cidade Imperial no dia 11 de maio de 1610.
No artigo Mateus Ricci: um pioneiro da inculturação, Luis Gonzáles-Quevedo anota que Mateus Ricci foi “o
primeiro estrangeiro a ser enterrado, com todas as honras, na Cidade Imperial” (p. 81).
12
A China era concebida pela cultura sino como Império do Meio, existindo, inclusive, mapas que
representavam o mundo conhecido pelos mandarins chineses, com a China no meio dele.
13
É comum encontrarmos na história exemplos de grandes reinos e povos poderosos conceberem as suas
sociedades como civilizadas e as outras como bárbaras. Como exemplo, veja-se os gregos, os romanos, e o
próprio ocidente do século XVI.
178
Nessa realidade, culturalmente mais complexa que a encontrada pelo próprio Xavier,
pois se tratava de uma sociedade mais bem organizada, inclusive na sua religião, ciência e
política, Ricci teve que aprender e praticar a adaptação de forma até mais corrente que o
Apóstolo do Japão.
“É verdade que não é próprio de nossa profissão buscar honraria (mas) nesse país
em que a religião de Nosso Senhor é ignorada e onde a fama dessa santa lei
depende de tal forma do crédito e da reputação de seus pregadores, é necessário
adequar-se externamente aos costumes e à maneira de proceder dos chineses
(...) A honra e o crédito que começamos a gozar não prejudicarão nossa alma;
durante doze anos, Nosso Senhor nos fez passar primeiramente por tantas
humilhações, degradações, afrontas, e tão grandes perseguições que foi suficiente
para começar a estabelecer bons fundamentos de virtude; por todo o tempo,
fomos tratados como rebotalho do mundo. Por isso espero que, como Nosso
Senhor nos permitiu perseverar em meio a tantos sofrimentos, nos conceda
também a graça de não nos orgulharmos em meio a tais honrarias. Tanto mais
que, devendo ainda progredir, não nos faltarão ocasiões em que muito teremos
que sofrer por Nosso Senhor ...”. (In: Lacouture, 1994, p. 281)
14
Quase todas as citações de trechos de cartas de Ricci que Lacouture traz em seu livro e que serão utilizadas
aqui, são oriundas do livro citado de Bernard-Maitre. Quando for outra a fonte utilizada por Lacouture, ela será
citada.
179
“O povo da China (...) embora sendo aliás bastante engenhoso, dotado de altas e
extraordinárias capacidades, sempre viveu na ignorância da fé, deixando-se levar
a erros variados, seguindo diversas seitas (...).
“A primeira é a de Confúcio, filósofo notável (...) homem dos mais eminentes e
incorruptíveis (...) Sua doutrina pretende que os homens sigam a luz da natureza
como guia, que se esforcem zelosamente em adquirir as virtudes e que se
apliquem a governar de maneira ordenada suas famílias e sua comunidade. Tudo
isto, certamente, mereceria ser elogiado, se Confúcio tivesse feito menção do
Deus todo-poderoso e da vida futura (...) Apesar disso, devemos reconhecer que
nenhuma outra doutrina, entre os chineses, se aproxima tanto da verdade quanto
a sua.
“A segunda seita é a de Saca [Buda] (...) Os “Seng”, que são nossos bonzos, têm
alguma suspeita quanto à vida futura, à recompensa para os homens de bem e à
punição dos maus; contudo, todas as suas afirmações são eivadas de erros.
“Em terceiro lugar imitam um certo homem [Lao Tse] que, segundo acreditam,
deve ser adorado por sua santidade. Os padres das duas últimas seitas levam
uma vida muito baixa e servil”. (Idem, ibidem, pp. 279-280)
“... uma roupa de seda vermelha escura com bordados de seda azul muito claro
no avesso, nos galões da fímbria, nos punhos e gola de pouco mais de meio
palmo de largura. As mangas são muito largas e muito abertas, mais ou menos à
maneira de Veneza. O cinto é da mesma cor vermelha, também bordado de azul,
costurado na veste e dividido em duas tiras, como usam as viúvas na Itália. Os
calçados são de seda bordada; o toucado tem uma forma extraordinária, não
muito diferente daquele dos padres espanhóis mas um pouco mais alto, pontudo
180
como a mitra dos bispos e provido de duas espécies de asas equilibradas que
caem no chão quando fazemos movimentos imoderados, é recoberto de seda
negra e se chama sutumpo. Quando sai para alguma visita, é carregado num
palanquim, acompanhado por um escrivão e dois ou três servos (...).
Usa os cabelos puxados até as orelhas, não soltos como antigamente os
franceses, mas à guisa das mulheres torcidos em coifas de filé, na ponta das quais
sai por um orifício um chumaço de cabelos, tudo coberto por um chapéu (...). No
fim de um ano, a barba chegou-lhe à cintura, o que causa grande maravilha aos
chineses que jamais têm mais de quatro, oito ou dez pêlos no queixo...”. (In:
15
Lacouture, 1994, pp. 280-281)
Em 1594, os jesuítas adotam a roupa dos mandarins chineses, que eram letrados.
No ano seguinte, chegam à capital do sul da China, Nanquim (Nanjing), que tinha
fama de ser “a maior e a mais bela cidade do mundo”. Foi em Nanquim que os
letrados chineses começaram a respeitar a Mateus Ricci, chamando-o de “o sábio
do Ocidente”. Um sábio humilde, capaz de dialogar com os sábios do Oriente: “Ele
fala nossa língua com elegância, escreve nossos caracteres e conhece os Quatro
Livros fundamentais do confucionismo”. (González-Quevedo, 2002, p. 79)
“Nisto, chegou o médico para a visita cotidiana: ele falou dos meus quadrantes
solares, da mnemotecnia, do prisma triangular, etc. O Vice-Rei quis ver o prisma e,
depois de contemplar os jogos irisados da luz, mandou que fosse mostrado a suas
mulheres. Ele desejou ter um quadrante solar e um astrolábio. Quis também que
eu redigisse uma nota sobre mnemotecnia visual para seus três filhos os quais as
conveniências impediam de sair do palácio. Finalmente, ele disse à guisa de
conclusão: ‘Por que, então, não permaneceis em nossa muito nobre cidade?’.” (In:
Lacouture, 1994, p. 289)
No mesmo relato, um pouco mais adiante, Ricci mostra claramente que a fama de
sábios e letrados foi obtida graças aos instrumentos e tratados científicos novos que eram
desconhecidos dos sábios e nobres chineses:
181
“granjeou a mim e à nossa Europa mais crédito do que tudo o que realizáramos
até então, pois os outros objetos nos proporcionaram a reputação de peritos na
fabricação de instrumentos e utensílios mecânicos, mas graças a esse tratado
conquistamos a fama de letrado, amigo do espírito e da virtude”. (Idem, ibidem, p.
290)
15
Novamente se estabelece uma polêmica em torno da mudança das túnicas jesuíticas. Novamente o Visitador
Valignano resolve a questão autorizando, em 1595, tal mudança.
16
“Confucionismo é principal sistema de pensamento da China. Desenvolveu-se a partir dos ensinamentos de
Confúcio e seus discípulos e tratava da prática do bem, da sabedoria empírica e das relações sociais.
Influenciou a atitude chinesa diante da existência, fixando os modelos de vida e os princípios relativos aos
valores sociais e proporcionando a base das teorias políticas e das instituições do país. Da China, estendeu-se
à Coréia, ao Japão e ao Vietnã e, nas últimas décadas, tem despertado interesse entre os eruditos do
Ocidente. Embora o confucionismo tenha chegado a ser a ideologia oficial do Estado chinês, nunca existiu
como uma religião institucionalizada, com uma igreja e um clero. Confúcio tampouco se autoproclamou uma
divindade. Seus princípios estão reunidos nos nove livros antigos chineses deixados pelo mestre e por seus
seguidores: os Wu Ching (Cinco clássicos), que já existiam antes da época de Confúcio, e os Shih Shu (Quatro
livros), coletâneas dos ditos de Confúcio e Mencio, com os comentários de seguidores. O ponto chave da ética
confuciana é o jen, virtude suprema que representa as qualidades humanas” (Enciclopédia Microsoft
Encarta).
17
É interessante como o confucionismo predispôs, de certa forma, o cristianismo na China. Para entender esse
fato, poder-se-ia voltar à Grécia antiga, mais propriamente no período da chamada filosofia no helenismo,
período em que os gregos passaram a ser dominados pelos macedônios, a partir do final do século IV a.C.. Os
grandes sistemas filosóficos, como o aristotelismo e o platonismo foram deixados de lado, sendo substituídos
por filosofias que centravam sua discussão mais numa ética individual do que na política, como por exemplo,
o estoicismo e o epicurismo. Essas filosofias acabaram, de certa forma, por predispor a religião cristã,
principalmente na sua moral, quando o helenismo chegou em Roma.
18
Acerca da questão da moral entre os jesuítas, ver a quarta parte do livro de Miller, na qual o autor faz uma
apresentação bastante interessante desse tema que, pelos recortes do presente trabalho, não será analisado aqui.
Apenas para fazer uma ligação entre a moral dos jesuítas e a ciência deles, Miller aponta que a moral jesuítica
se tornou científica graças à opção feita pelo aristotelismo – “... de fato, em tôda a teoria moral jesuítica não
182
“Vosso servidor vindo do Ocidente dirige-se a vós com respeito para vos oferecer
alguns objetos de seu país (...) Apesar da distância, a fama me fez conhecer as
belas instituições de que a corte imperial dotou todos os seus povos. Eu desejei
participar de todas essas vantagens, e ser por toda a vida um de vossos súditos:
esperando, aliás, não ser totalmente inútil (...) Adquiri um conhecimento bastante
amplo da doutrina e dos antigos sábios da China, li e aprendi de cor algumas
partes dos livros clássicos e de outras obras, e compreendi em parte seu sentido
(...) A extrema benevolência com a qual a gloriosa dinastia convida e trata todos
os estrangeiros inspirou-me a confiança de vir diretamente ao palácio imperial.
Trago objetos que vieram comigo de meu país (...) Não são de grande valor mas,
vindo do Extremo Ocidente, parecerão raros e curiosos (...)
“Desde a infância, aspirei ao cultivo da virtude. Nunca tendo casado, estou livre de
qualquer embaraço e não espero favor algum. Ao vos oferecer imagens sagradas,
o meu desejo é que elas sirvam para pedir por vós uma vida longa, uma
prosperidade sem sombras, a proteção do Céu sobre o reino e a tranqüilidade do
povo. Suplico humildemente ao Imperador que tenha compaixão de quem veio se
colocar sinceramente sob sua lei.
“Outrora, em sua pátria, vosso servo foi promovido a um alto grau e já obteve
estipêndios e títulos. Ele conhece perfeitamente a esfera celeste, a geografia, a
geometria e o cálculo. Com a ajuda de instrumentos, observa os astros e usa o
gnomon; seus cálculos são inteiramente conformes aos dos antigos chineses. Se
o imperador não repelir um homem ignorante e incapaz, se ele me permitir exercer
meu fraco talento, meu mais vivo desejo será empregá-lo ao serviço de tão grande
príncipe. Todavia, nada ousaria prometer, considerando minha pouca capacidade.
“Vosso servo aguarda vossas ordens”. (Idem, ibidem, pp. 300-301)
A missão jesuítica em terras chinesas era “observada” com “olhos atentos” tanto pelos
companheiros de Roma, quanto pelos altos clérigos romanos e pela corte portuguesa – que,
àquela altura, já era dominada pelos Felipes espanhóis. Elogios eram feitos mas também
críticas eram desferidas ao trabalho daqueles missionários. Se haviam pessoas no seio da
há quase nenhuma concepção que não houvesse sido prefigurada na ‘Ética a Nicômaco’ do estagirita” (p.
189) – como corpo doutrinário sólido e estável.
19
Esta carta é citada por Lacouture a partir do livro de Ricci & Trigault, intitulado Histoire de l’expédition
chrétienne au royaume de la Chine, reed., Paris, Desclée de Brouwer, 1978.
183
Em carta ao padre Costa, em 1599, Mateus Ricci responde às críticas que lhe foram
comunicadas à respeito do pouco número de conversões realizadas na China. Ricci é
informado que havia grande decepção em Roma pela pouca efetividade em aumentar o
número de cristãos no Oriente. A resposta do Sábio do Ocidente é merecedora de atenção na
medida em que ele, ao defender o trabalho missionário no Oriente, parece querer dar uma
lição de estratégia missionária àqueles que não conheciam de perto a realidade chinesa:
“Pensamos nisto dia e noite. É com esse propósito que estamos aqui, tendo
deixado nossa pátria e nossos amigos caríssimos, vestindo e calçando à moda
chinesa, falando, comendo, bebendo, morando à moda chinesa, mas Deus não
quis ainda que obtivéssemos grandes frutos dos nossos trabalhos. E no entanto,
acredito que o resultado de nossas obras resiste à comparação com o das outras
missões que, aparentemente, realizam maravilhas, e pode até lhes ser preferido:
pois, nesse momento, não estamos na China para colher nem para semear, mas
unicamente para desbravar a selva (...) A tática mais suspeita que se pode praticar
na China é reunir ao nosso redor um grande número de cristãos. Desde que a
China é a China, não há lembrança de que um estrangeiro tenha adquirido aqui
uma situação comparável à nossa (...) Nós residimos aqui e nossa religião é tida
em grande estima por todos, e alguns nos consideram os maiores santos que
jamais viveram na China, vindos milagrosamente das extremidades do mundo. Os
chineses não são tão desprovidos de inteligência que ninguém dentre eles
compreenda perfeitamente nossa intenção última...”. (Idem, ibidem, pp. 305-306)
Assim como ocorreu depois da morte de Xavier com a missão no Japão, na China a
missão também teve continuidade após da morte de Ricci. A adaptação inaugurada pelo
jesuíta-mandarim teve continuidade com seus sucessores. No entanto, a estratégia de
permanecer, praticamente a qualquer custo, próximo ao imperador, teve seu preço, na medida
em que os padres jesuítas se tornaram praticamente funcionários especializados das vontades
do Soberano.
Miller traz informação interessante a respeito da relação dos jesuítas com o monarca
chinês, destacando a atuação deles e a contínua adaptação a que se submetiam, inclusive na
tarefa de decoradores dos imensos palácios internos na Cidade Proibida:
da dinastia Manchú], depois, procurava outra vez alguém que pudesse embelezar
os açudes e arroios, os jesuítas mandaram que se comunicasse que ninguém
melhor do que êles sabia trabalhar com essas obras hidráulicas. Eram retratistas,
quando o Imperador estava em busca de algum, e quando êle queria enfeitar as
paredes com pássaros e flores, logo se encontrava um padre que entendia
20
justamente dessas cousas e de maneira excelente. (Miller, 1946, p. 295)
Francisco Xavier e Mateus Ricci são apenas dois exemplos de missionários jesuítas
que, em suas respectivas missões, perceberam, na prática, a necessidade de mudar de
comportamento exterior objetivando abreviar o caminho das conversões. Tiveram que se
tornar conhecedores da vida, da religião e da cultura diferentes e complexas, onde deveriam
semear a sua religião e a sua cultura. Como foram dois missionários que se destacaram,
mostraram qualidades e virtudes necessárias para o enfrentamento do movediço terreno das
missões, se tornaram os mais célebres de todos dentre aqueles que missionaram no Japão e na
China no século XVI.
20
Em seu livro, entre as páginas 270 e 300, Miller informa acerca das inúmeras, diversificadas e curiosas
atividades que os padres jesuítas tiveram que desenvolver no reino chinês no período após a morte de Ricci.
185
Antes de passar para o processo de adaptação nas missões em terras brasílicas, vejam-
se, ainda, algumas questões relacionadas à presença jesuítica no Oriente.
(...) Y tan lexos está y remoto de se aplicar a querer vir y saber algo de las cosas
de Japon y de sus oviejas que con aver yo estado 30 años en Japon que le podria
en algo dar relation de lo que le nel tanto importa saber ni una sola palavra me
habla en esto ni quasi en ninguna otra cosa. Y se Diós n.ro S.or con extraordinario
concurso de gratia le no muda el coracón y desta manera que agora proçede
llegare a Japon eximindosse totalme[n]te de la cumonication y consolo de los
n.ros, temo que aya allá notables scandalos y mui grandes perturbationes en los
christianos, porque como los japones tienen brio y grande openion de su buen
juizio, viendo que los despreçian y que se tiene dellos mala satisfaçion y flaco
concepto y mas las personas constituidas en tan eminente grado no se ade
desfacer la saña y alteration que desto se ade seguir. Plega a Dios por su eterna
bondad dar a todas estas cosas mas acomodado & expedito exitu, de lo que
amenaza el prezente modo de proçeder. Y sobre todo lo que mas nos admira es
ver que ninguna cosa le ablanda ni haze enterneçer su coraçon, el amor servicios
benignidad, respecto y acatame[n]to que cada dia mas y mas le vá mustrando el
Pe. Visitador cõ su mucha prudentia y grande charidad. (In: Baptista, 2003, p. 03)
Outro aspecto das missões no Oriente é relatado por Francisco Rodrigues (1917);
relaciona-se com a produção de vocabulários, gramáticas, histórias nacionais, catecismo etc.
em línguas nativas, objetivando abreviar os caminhos da evangelização, através do
conhecimento da cultura e da sociedade dos povos e territórios em missão, incluindo aí as
estratégias de adaptação. Eis alguns exemplos: a arte e o vocabulário da língua tamulica, de
Henrique Henriques; a arte da língua da terra, além de obras de catecismo de Francisco
Henriques; obras em talmude do catecismo cristão, de Pedro do Valle; obras de gramáticas e
obras literárias em talmude, em concani, em canarês, em sânscrito e em bengali, na Índia,
além de obras em anamítico e siamês, na Índia Oriental, escritos por vários jesuítas no
186
decorrer dos séculos XVI e XVII; também obras na língua sinica, particularmente na área de
lingüística, e também na língua japonesa21.
Diante de culturas mais complexas e milenares, a tônica dos missionários jesuítas foi,
regra geral, procurar se adaptar – doutrinariamente menos e comportamentalmente mais –
objetivando o sucesso da empresa missionária. Onde o poderio português era militar e
comercialmente mais forte, os direitos de padroado possibilitavam uma imposição religiosa e
cultural mais contundente; onde, no entanto, esse poderio era bem mais restrito ou quase
inexistente, a imposição praticamente não era viável, ocorrendo aí uma maior adaptação.
“Repreender e falar a verdade” – o resumo da atividade do missionário, segundo Xavier –
nem sempre foi possível, pelo menos num primeiro momento.
21
Para um detalhamento das obras, seus autores e as línguas em que foram escritas, consultar o capítulo III do
livro II de Rodrigues (1917).
187
Os Jesuítas no Brasil
A leitura e o estudo das cartas dos padres jesuítas no Brasil confirmam a tese
apresentada supra de que a necessidade de uma maior adaptação é diretamente proporcional
ao poderio militar e político português, ou seja, em regiões onde a presença da Coroa
portuguesa é mais efetiva, a imposição cultural e religiosa é maior e a necessidade de
adaptação é menor. Esta questão fica bem clara se se fizer uma comparação entre as missões
no Extremo Oriente, principalmente na China, com as missões em terras brasileiras.
De uma forma geral, as primeiras impressões dos jesuítas no Brasil acerca dos
aborígines da terra foram boas. Como conceitua Alcir Pécora, no artigo Cartas à Segunda
Escolástica (1999), a primeira via adotada para a conversão dos índios foi a amorosa, ou seja,
a catequização pela palavra e não pela força. Para tanto, os relatos acerca dos gentios são bem
diferentes daqueles que caracterizavam os portugueses cristãos que viviam na Colônia. Se os
segundos pecavam sendo já cristãos, demonstrando uma índole má e corrompida, os gentios
da terra erravam por desconhecimento, sendo que, por natureza, eram bons.
Nas primeiras cartas se percebe a falta que os padres sentiam de alguns aspectos entre
os gentios, os quais facilitariam o processo de conversão. O primeiro deles era a inexistência
de uma sociedade organizada que tivesse na figura do Rei o poder centralizado. Inclusive a
falta de um Rei era agravante para não dar o batismo a esmo para aqueles gentios; é o que
assevera Navarro, em carta já citada no primeiro capítulo, datada de 28 de março de 1550:
(...) Mas por duas cousas principalmente entendo que se lhes não deve
administrar o Baptismo. Uma, é não terem Rei a quem obedeçam, nem moradia
certa, mudando-se de aldêa todos os annos, e ás vezes mais frequentemente
quando succede algum d’elles embriagar-se e encolerisar-se, pois em taes
circumstancias nada menos fazem do que pegarem em um tição e tocarem fogo á
188
propria casa, donde o fogo pega nas outras por serem de palmas e d’esta arte
fica em cinzas toda a aldêa. (...) (Navarro, 1988, p. 76)
É difícil não ver a semelhança dessa reclamação com a desilusão de Xavier depois de
chegar à capital do Japão e perceber que o Rei não tinha poder algum. A figura do Rei
pressupunha uma sociedade organizada e mais estável, além do mais, a figura do Rei era
importante, como apresentado em Xavier, pois na hipótese da sua conversão, muitos poderiam
seguir o mesmo caminho, abreviando o trabalho dos missionários e aumentando a quantidade
dos novos cristãos. Na carta do irmão Pero Correia, a inexistência de um Rei acarretava a
necessidade de mais missionários, pois “si tivessem um Rei, convertido este, converter-se-iam
todos” (Navarro, 1988, p. 121).
A falta de poder centralizado unindo todas as tribos indígenas era atenuada, no esboço
da estratégia de conversão, pela existência dos chefes das tribos, ou, na linguagem da época,
dos principais dos gentios. Nesse sentido, permanecia a máxima de converter o chefe para, em
decorrência, converter toda a tribo. Na carta de Nóbrega para o doutor Navarro, de 1549, a
estratégia já está definida, ao informar que os “Principaes da terra baptisaremos em breve”
(Nóbrega, 1988, p. 93). Entretanto, a experiência mostrou a Nóbrega e aos outros jesuítas que
nem sempre a conversão do chefe representou a conversão da tribo toda, ou seja, a realidade
mostrou que a teoria nem sempre tinha aplicação prática, uma vez que ser chefe não
representava necessariamente ser líder inconteste dessa mesma tribo.
Nas cartas jesuíticas do Brasil não raro encontra-se a alusão à alma dos índios como
sendo papel em branco (Nóbrega, carta de 1551 a D. João III) ou cera branca (Ruy Pereira,
carta de 1560). Evangelizar os gentios da terra não era difícil, pois eles não tinham, de fato,
nenhuma religião estruturada ou complexa, como era o caso, por exemplo, dos hindus, dos
japoneses e dos chineses. Como a natureza do gentio é boa, apesar de seus maus costumes, a
sua alma é como uma folha em branco em que se pode escrever o que se quiser.
Num segundo momento no processo de evangelização dos gentios, após a realidade ter
mostrado a dificuldade de mantê-los convertidos, os jesuítas mudaram a estratégia de atuação,
mesmo continuando a considerar que a natureza dos índios era boa. A outra via de conversão
foi a submissão pela força. A expressão maior dessa estratégia foram as guerras aos índios
empreendidas por Mem de Sá.
O uso da coerção pela força das armas foi uma necessidade imposta objetivando
devolver aos gentios sua verdadeira natureza. Na carta de Antonio Pires, já citada no primeiro
capítulo, de 12 de setembro de 1558, por exemplo, há o enaltecimento da figura de Mem de
Sá, do qual os índios “tremem de medo”, e tal temor ajudava a erradicar os maus costumes e
facilitava a doutrinação:
(...) Este temor os faz habeis para poderem ouvir a palavra de Deus; ensinam-se
seus filhos; os innocentes que morrem são todos bautizados; seus costumes se
vão esquecendo e mudando-se em outros bons, e, procedendo desta maneira, ao
menos a gente mais nova que agora ha e delles proceder, ficará uma boa
christandade. (Navarro, 1988, p. 230)
Como síntese do que se mostrou até aqui, pode-se concluir que não houve
necessidade, por parte dos jesuítas, de buscar alternativas estratégicas de adaptação para
facilitar o processo de conversão, pois, quando a via amorosa não foi suficiente, a via da
190
submissão pela força foi a opção adotada, diversamente do ocorrido nas missões no Oriente.
Entretanto, mesmo nestas condições amplamente favoráveis a um domínio efetivo da cultura
aborígine, houve necessidade de se proceder a adaptação de normas que levassem em conta as
especificidades locais, bem como de incorporação de características dos próprios índios para
uso na evangelização.
Item: si nos abraçarmos com alguns costumes deste Gentio, os quaes não são
contra a nossa Fé Catholica, nem são ritos dedicados a idolos, como é cantar
cantigas de Nosso Senhor em sua lingua pelo seu tom e tanger seus instrumentos
de musica, que elles em suas festas, quando matam contrarios, e quando andam
bebados, e isto para os attrahir a deixarem os outros costumes essenciaes, e,
permittindo-lhes e approvando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros, e
assim o prégar-lhes a seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo
nos peitos, como elles fazem, quando querem persuadir alguma cousa, e dizel-a
com muita efficacia, e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa
temos, a seu modo, porque a similhança é causa de amor, e outros costumes
similhantes a estes? (Nóbrega, 1988, p. 142)
Quando Nóbrega procede a uma consulta formal a respeito do uso de costumes dos
gentios, significa que ele e seus companheiros já estão utilizando-se destas vias e, questionado
sobre a coerência dessas atitudes com a religião cristã, empreende-se a consulta às autoridades
competentes. Da leitura das cartas dos jesuítas, seja no Brasil ou no Oriente, percebe-se que
os missionários encontravam-se, não raro, em condições que exigiam respostas e atitudes
rápidas e que só depois seriam objeto de consultas ou mesmo de discussões teológico-
jurídicas. A adaptação, seja mais profunda ou mais superficial, é uma necessidade constante
para quem tinha a pesada e essencial tarefa de levar a verdadeira religião àqueles que não as
tinham.
(Navarro, 1988, p. 326). O padre Gaspar Loureiro já incorporara o costume próprio dos chefes
da tribos quando doutrinavam seu povo em voz alta e de madrugada.
(...) Por isso, parece grandemente necessário que o direito positivo se afrouxe
nestas paragens, de modo que, a não ser o parentesco de irmão com irmã,
possam em todos os graus contrair casamento, o que é preciso que se faça em
outras leis da Santa Madre Igreja, ás quais, se os quizermos presentemente
obrigar, é fóra de dúvida que não quererão chegar-se ao culto da fé cristã; pois
são de tal fórma barbaros e indomitos, que, parecem aproximar-se mais á
natureza das feras do que á dos homens. (Anchieta, 1988, p. 56)
Em carta de 1556, escrita em São Vicente para o padre Visitador Inácio de Azevedo,
Nóbrega novamente fala da necessidade de se adaptar as leis positivas, dentre elas as do
Direito Canônico, para que se aceite os casamentos entre os índios de parentesco próximo:
(...) e este nos é o maior estorvo que temos não os poder pôr em estado de graça
[casar os gentios], e por isso não lhe ousamos a dar o Sacramento do Batismo,
pois é forçado a ficarem ainda servos do peccado. Será necessario haver de Sua
Santidade nisto largueza destes direitos positivos, e, si parecer ser muito duro ser
de todo o positivo, ao menos seja de toda affinidade e seja tio com sobrinha, que é
segundo grau de consanguinidade, e é cá o seu verdadeiro casamento, a
sobrinha, digo, da parte da irmã, porque a filha do irmão é entre elles como filha, e
não se casam com as taes; e, posto que tenhamos poder de dispensar no
parentesco de direito positivo com aquelles que, antes de se converterem, já eram
casados, conforme as nossas bulas, e ao direito canonico, isto não póde cá haver
lograr; porque não se casam para sempre viverem juntos, como outros Infieis, e si
disto usamos alguma hora é fazendo-os primeiro casar, in lege naturae, e depois
se baptisam. (Nóbrega, 1988, p. 148)
evangelização dos gentios, faz-se necessário citar que também no Brasil houve a preocupação
em aprender a língua nativa bem como de produzir material para ensinar outros jesuítas,
preparando-os melhor para as missões.
O padre José de Anchieta compôs, por volta de 1560, a Gramática da Língua Tupi,
que passou a ser utilizada nos colégios do Brasil, e teve sua primeira publicação oficial da
Companhia de Jesus, em Portugal, no ano de 1595. Como já era costume na Societas Iesu, os
documentos eram aferidos pela experiência, por décadas, antes de serem impressos. O livro de
Anchieta, da mesma forma que os semelhantes produzidos nas Índias e no Extremo Oriente,
tinha o objetivo de compreender melhor a cultura nativa e, com isso, facilitar a sua
compreensão para os futuros missionários.
Capítulo 5
A organização interna
A Companhia de Jesus foi criada como uma ordem que queria ser, de certa forma,
diferente das muitas outras. O mundo não era para ser hostilizado, mas encarado; a fé cristã
não era para ficar encerrada dentro de muros, mas deveria ser propagandeada, levada para
todos os cantos do mundo. No entender de Romano & Tenenti, o jesuíta se
A união interna
Nessa organização, era essencial a boa ordem interna, a união de todos os padres e
irmãos jesuítas. Numa carta de Santo Inácio, primeiro Geral, de 1556 seis meses antes de
morrer, ao padre Luis Gonçalves da Câmara, o qual foi investido na função de Colateral23
para as províncias de Portugal, Índias e Brasil, afirma a necessidade do respeito interno na
Companhia:
22
Por exemplo, o pe. Antonio Vieira, no século XVII, aqui no Brasil.
23
Cardoso informa que o ofício de Colateral na Companhia de Jesus, pela inerente dificuldade de sua natureza,
pois acabava se chocando com a do Provincial, foi caindo em desuso com o tempo.
195
uma legião de jesuítas espalhados por várias partes do mundo e desenvolvendo atividades
diferentes daquela para a qual a ordem teria sido criada: uma cruzada religiosa pelas terras
sagradas ao cristianismo.
Nas Constituições da Companhia de Jesus, como não poderia deixar de ser, também
é prescrita, em muitos momentos, a necessidade que os jesuítas permanecessem unidos, aliás,
poder-se-ia afirmar que a própria elaboração das Constituições já seria resultado da
preocupação com a união interna. Na terceira parte, que trata da Conservação e progresso no
espírito e na virtude dos que nele permanecerem, há a determinação de que não se admita no
seio da Companhia posturas divergentes, mesmo que elas existam no seio da Igreja mãe,
devendo-se sempre procurar a “conformidade na Companhia”, pois, a “diversidade é a mãe
da discórdia e inimiga da união das vontades” (Constituições, 1997, p. 108, [274]).
A obediência
(...) Se um dia queremos fazer nossa vontade em cousa alguma, por pequena que
seja, outro dia faz que a procuremos de a fazer em outra, e outras, até que
perdemos a obediencia que consiste em não fazermos nossa vontade, se não a
de Deus, que é interpretada pelos Superiores. (...) (Anchieta, 1988, p. 282)
Miller (1946) reserva um capítulo inteiro para apresentar o que considera um dos
segredos do poder dos jesuítas: a obediência como base de sustentação da organização
jesuítica. Ele afirma que eram três os tipos de obediência a que os jesuítas estavam sujeitos: a
obediência do ato, que se restringia a cumprir as ordens simplesmente; a obediência da
vontade, não apenas cumprir a ordem dada, mas cumpri-la como se fosse vontade própria;
obediência da inteligência, onde ocorre a imolação, o aniquilamento da vontade e inteligência
próprias para que se consiga a sintonia perfeita. A última forma de obediência é mais
importante, pois é a busca de um pensamento único, de um desejo único, de uma única forma
de agir. É a utopia no reino de qualquer organização.
(...) tem em mira, agora, a atividade exterior, ação una e consciente em prol do
seu objetivo; ela desempenha, nessas condições, um papel semelhante ao que
lhe cabe no serviço militar: os membros dessa Ordem, que se espalharam pelo
mundo afora, a fim de pregar e lutar nos países mais remotos, deveriam
permanecer ligados uns aos outros e à administração central da Ordem por uma
disciplina de ferro (Miller, 1946, p. 42).
É a obediência perinde ac cadaver (do mesmo modo como um cadáver), bem como o
lema ad majorem Dei gloriam (para a maior glória de Deus) eram duas máximas marcantes da
Companhia, que sempre deveriam acompanhar aqueles padres onde eles estivessem. Estes são
197
os lemas, opina Miller, de uma ordem religiosa orgânica, tal qual um exército com grande
força combativa.
Obedecer entre os jesuítas, entretanto, não era o mesmo que obedecer entre militares,
assevera José Sebastião da Silva Dias (1960). A obediência é a mortificação da vontade
própria e individual para que o bem maior aconteça na figura das ordenações dos superiores.
É, segundo Dias, uma característica ascética própria de um rigoroso e tradicional
monaquismo, meio religiosamente adequado para manter a unidade interna da Companhia.
obediência ao chefe, no caso o cozinheiro, deve ser igual à obediência ao Superior da casa,
pois se “bem entendemos as coisas não é a eles nem por eles que se obedece, mas só a Deus e
só por Deus Criador e Senhor” (Constituições, 1997, p. 57, [84]).
Na sexta parte das Constituições, sobre O que devem observar com respeito a si
mesmos os que foram incorporados, no capítulo que trata exatamente da obediência como um
dos três votos que todos os membros de ordens religiosas fazem, aparece a determinação, que
Miller destacou, de se obedecer tal qual um cadáver:
Como Miller destaca, a obediência entre os jesuítas é mais do que a simples ordenação
e respeito por uma hierarquia previamente definida, pois, como se trata de um instituto
religioso que nasce e se desenvolve sob os auspícios da reforma católica, a obediência se dá,
na verdade, ao plano e vontade divinos. Em última instância, obedecer o superior era obedecer
ao próprio Deus; e se deixar levar, como um cajado, pelas mãos dos superiores, equivale a se
deixar levar por Deus.
Na oitava parte das Constituições - O que diz respeito à união, entre si e com a
cabeça, dos que foram assim distribuídos – fica claro que a obediência é a base da
organização jesuítica, pois ela assegura sua verticalidade:
relação entre algumas províncias não era de igualdade, como apresentado na primeira parte
deste trabalho, o princípio da hierarquia permanece.
Entretanto, é possível supor, como afirmou Miller, que a sólida organização, baseada
numa radical obediência, é uma das características que fez da Companhia de Jesus uma das
ordens religiosas mais atuantes, sólidas e extensas nos séculos XVI, XVII e XVIII, pelo
menos. Na sexta parte das Constituições se encontra a definição das três formas de
obediência e da melhor e mais desejável delas:
(...) Com efeito, não só a nossa ação deverá corresponder ao que foi mandado, e
a nossa vontade ao que foi querido pelo Superior, mas também, o que é mais
difícil, a nossa própria inteligência deverá conformar-se com o seu pensamento no
que diz respeito à obediência. (Idem, ibidem, p. 17)
A obediência como norma de vida de todos os jesuítas era geral e atingia praticamente
todas as esferas da vida. Ela está presente na pedagogia jesuítica, de forma vasta através do
Ratio Studiorum; está presente na relação de subordinação nas casas e colégios; está presente
nas visitações oficiais e suas deliberações; está presente até na determinação para a contínua
correspondência interna. Na carta escrita da Bahia em 1565, para o Provincial de Portugal, o
padre Antonio Blasquez mostra a necessidade da correspondência, mesmo que aparentemente
não se tenha novidades a contar, pois “a obediência assim o ordena e o contentamento dos
Padres” (Navarro, 1988, p. 460), ao ler as cartas, o justificam.
No mesmo ano de 1565, o padre Pedro da Costa escreve, do Espírito Santo, aos irmãos
de Portugal, sobre a missão naquelas terras, deixando claro que a obediência foi a motivação
para escrevê-la:
O que ajuda para a união dos membros desta Companhia, entre si e com a
cabeça, ajudará também muito para a manter em seu bom estado. Em especial o
vínculo das vontades, ou seja, da caridade e do amor mútuo. Para isto concorrerá
que todos comuniquem freqüentemente uns com os outros, e recebam notícias
uns dos outros, professem a mesma doutrina, e guardem, tanto quanto possível, a
uniformidade em tudo. Todavia, o fator mais forte de união, será o vínculo da
obediência a unir os súditos com os Superiores, e os Superiores locais entre si e
com o Provincial, e uns e outros com o Geral, de forma que seja cuidadosamente
respeitada a subordinação de uns com relação aos outros. (Constituições, 1997, p.
250, [821])
O epistolário
escrever24. Apesar de ser uma longa citação, fez-se a opção por transcrevê-la integralmente
para mostrar como até detalhes – ad majorem Dei gloriam – eram importantes. Na carta é
possível verificar, com extrema clareza, que Inácio prezava muito a organização da
Sociedade, mostrando a necessidade da obediência e da disciplina.
Eu me lembro de ter falado aqui muitas vezes aos presentes, e outras vezes de ter
escrito aos ausentes, que cada membro da Companhia, quando quisesse escrever
para cá, escrevesse uma carta principal, a que se pudesse mostrar a qualquer
pessoa. Mas não ousamos mostrar a muitos que nos são afeiçoados e desejam ler
nossas cartas, porque elas não têm nem guardam ordem alguma. Falam nelas de
assuntos que não vêm ao caso. Sabendo esses amigos que temos cartas de um
ou de outro, passamos vergonha e damos mais desedificação do que edificação.
Mesmo nesses dias me sucedeu ser necessário mostrar umas cartas de sujeitos
da Companhia a dois Cardeais que deviam cuidar do assunto das próprias cartas
e, por elas virem escritas com fatos alheios dispostos sem ordem, não as pude
mostrar e me vi em apuros para declará-las em parte e em parte as encobrir.
Portanto, agora de novo repetirei o já recomendado, para nos entendermos todos
e em tudo. Assim, por amor e reverência de Deus N. S., peço que em nossa
correspondência procedamos para o maior serviço de sua divina bondade e maior
proveito do próximo. Escreva-se na carta principal o que cada um faz em sermões,
25
confissões, Exercícios e outras obras espirituais conforme Deus N. S. o executa
através de cada um, quanto possa servir para maior edificação dos ouvintes ou
leitores.
Se a terra fosse estéril e não houvesse assunto para carta, declare-se em poucas
palavras sua saúde corporal, alguma conversa com alguém ou fatos semelhantes.
Mas não se misture matéria que não vem ao caso. Deixem-na para folhas
separadas, nas quais podem vir as datas das cartas recebidas e o gozo espiritual
e sentimentos experimentados ao lê-las; enfermidades, notícias, negócios,
podendo até alargar-se em palavras de exortação.
Neste ponto, para ajudar-me a não errar, direi o que faço e espero fazer ao diante,
no Senhor, ao escrever aos membros da Companhia. A carta principal, eu a
escrevo uma vez, narrando fatos edificantes. Depois, olhando e corrigindo e ainda
considerando todos os leitores dela, torno a escrever, atendendo melhor ao que se
declara. Porque a escrita fica e dá testemunho, sem se poder corrigir e explicar
facilmente como quando se fala.
Com tudo isso, penso ainda faltar muito e temo faltar mais adiante. Deixo para
folhas separadas as outras particularidades impróprias da carta principal e não
aptas para edificação. Nessas folhas pode alguém escrever às pressas, da
abundância do coração, ordenada ou desordenadamente. Mas na principal não se
admite a falta de cuidado particular e edificação que não permita mostrar-se e
edificar os leitores.
Neste ponto vejo faltas em todos e por isto escrevo esta carta e mando em cópias,
pedindo instantemente, no Senhor nosso, que ao escrever a carta principal, como
se disse acima, a torneis a olhar, e escrevais de novo ou a façais escrever. Assim,
escrevendo-a duas vezes, como eu o faço, me persuado que vossas cartas virão
mais ordenadas e claras. Se eu vir que não fazeis assim, daqui em diante, para
maior união, caridade e edificação de todos e para Deus não pedir contas de
minha negligência em assunto tão importante, serei forçado a escrever-vos e
ordenar-vos em obediência que olheis cada carta principal, torneis a escreve-la ou
a façais escrever depois de corrigida. Com isso e com o cumprimento do meu
24
Cardoso (1993) informa que a carta foi escrita quando Pedro Fabro se encontrava na Alemanha, na corte do
Imperador Carlos V a pedido do Papa Paulo III. Informa também que os conselhos contidos na carta foram
copiados e mandados a todas as casas jesuíticas.
25
Trata-se dos Exercícios Espirituais, redigidos por Inácio de Loyola já em 1522, bem antes da fundação da
própria Companhia de Jesus. Os Exercícios eram - e penso que ainda são - uma espécie de “porta de entrada”
para o espírito jesuítico, pois todos os noviços, irmãos e padres deveriam e devem fazê-los.
203
dever, ficarei contente, embora muito mais desejo que não me deis motivo para
assim escrever.
Portanto, eu vos exorto, como estou obrigado, para a maior glória de Deus, e vos
rogo somente por seu amor e reverência, que em vossa correspondência vos
emendeis, prezando-vos disso e desejando edificar vossos irmãos e outros
próximos com vossas cartas. O tempo gasto nisso, ponde-o na minha conta, pois
será bem gasto no senhor.
Eu me esforço para escrever duas vezes uma carta principal para que leve alguma
ordem, além de muitas outras de assunto particular. Até esta, eu a escrevi duas
vezes por minha própria mão: quanto mais o que deve fazer cada um da
Companhia. Porque vós deveis escrever a um só, e eu devo escrevera todos.
Posso dizer com verdade que nesta noite contamos as cartas que mandamos a
todas as partes e somaram duzentas e cinqüenta. E se alguns estão ocupados na
Companhia, quero crer que, se não estou muito, não estou menos do que
26
ninguém, e com menos saúde corporal .
Até agora, neste ponto, não podendo louvar ninguém, embora diga isto não para
pôr culpa a ninguém, mas para avisar a todos. Se as cópias que vos envio sobre
notícias de outros vos pareceram ordenadas e não supérfluas, isso é devido a
muita, muita perda de tempo para separar os fatos edificantes, em pôr e pospor as
mesmas expressões cortando e omitindo o que não vem ao caso, para dar a todos
prazer, no Senhor nosso, e edificação dos que a ouvirem de novo.
Portanto, torno a pedir-vos por amor e reverência de sua divina Majestade que,
com a boa vontade e inteira inteligência, trabalheis neste ponto que importa não
pouco ao proveito espiritual e consolação das almas. Podeis escrever de quinze
em quinze dias uma carta principal, revista e emendada, que equivale ao trabalho
de duas cartas, deixando para folhas separadas e alargando como quiserdes o
assunto destinado para quem somente tender a escrever.
Eu, com a ajuda de Deus N. S., vos escreverei a todos uma vez a cada mês sem
falta, embora brevemente; e de três em três meses mais longamente, enviando-
vos todas as notícias e cópias de todos os da Companhia. Assim, por amor de
Deus N. S., nos ajudemos todos e me favoreçais em levar e aliviar, de algum
27
modo, tanta carga como me pusestes às costas e a outras que ainda não faltam,
de obras pias e ganhos espirituais. Se eu valesse por dez ou estivéssemos todos
juntos em Roma, ainda nos sobraria o que fazer. Se vos falhar a memória, como a
mim sucede muitas vezes, ponde esta diante dos olhos ou um sinal em lugar
equivalente, quando escreverdes cartas principais.
De Roma, 10 de dezembro de 1542. (In: Cardoso, 1993, pp. 28-33)
26
Cardoso informa que naquela época Inácio sofria de freqüentes dores de estômago.
204
Numa outra carta, agora de 1553, para Manuel da Nóbrega, quando da nomeação dele
como primeiro Provincial do Brasil, Inácio de Loyola lembra que depois que o Brasil passou a
ser província independente da de Portugal, as cartas deveriam ser destinadas diretamente para
o Geral, em Roma, não necessitando mais passar pelo Provincial português. E, como agora se
tratava de um ligação mais direta do Superior brasileiro com o Geral, são apresentados,
inclusive, quais assuntos que deveriam ser, preferencialmente, tratados nas futuras cartas:
27
Segundo Cardoso, essa é uma alusão à eleição de Loyola como Geral da Companhia, ocorrida em 1541.
28
“choses qui montrent un manque d’amour ou des choses qui puissent donner une occasion d’être tenté”.
29
Metaepístola é um termo que se encontra em Pécora (1999), utilizado para referir-se às cartas de Loyola que
foram escritas para se analisar e se ensinar como deveriam ser escritas e que conteúdo teriam as cartas em
205
(de cinco ao todo) ao padre Gaspar Barzeu, escrita entre 06 e 14 de abril de 1552, quando
esteve em Goa pela última vez e se preparava para ir para a China:
(...) Ainda uma vez mais eu vos lembro; vigiais para ser muito prudente em vossa
maneira de escrever, pois as vossas cartas vão ser lidas e julgadas por muitos. (p.
31
452)
Geral na Companhia. A carta transcrita acima na totalidade, de Loyola para Fabro, é o exemplo perfeito de
metaepístola.
30
“Vouz écrirez à tous les endroits où il y a des Frères de la Compagnie ayant la charge d’autrui ou étant en
train du fruit: vous leur direz de mettre un soin particulier à écrire chaque année à notre bienheureux Père
Ignace pour qu’il sache quel fruit Dieu fait par eux dans ces contrées où ils vivent. Qu’ils prennent bien garde
de ne jamais écrire des choses dont pourraient être désédifiés ceux que verront ces lettres et qu’ils n’écrivent
rien d’autre que le fruit qu’on produit ou qu’on espère produire. / Egalement, qu’un par un tous ceux qui sont
dispersés et ont la charge d’autrui écrivent une autre lettre générale adressée à tous les Pères vivant en
Europe, pour leur faire savoir quel fruit ils produisent dans les pays où ils se trouvent. Que ces lettres soient
bien redigées et que n’y figurent point de choses scandaleuses, qu’on n’y dise pas du mal de qui que ce soit.
Les adresses des lettres qu’ils écriront diront: ‘Pour les Pères et les Frères de Coïmbre et pour les autres
Pères de la Compagnie vivant à Rome et en Europe’. / Quant à vous, vous écrirez au recteur de Coïmbre pour
lui dire le fruit que Dieu produit ici par ceux que vivent dans cette maison, très en détail, et que ce soit très
edifiant. Et faite bien attention à ce que vous écrivez, car cette lettre va être vue et jugée par beaucoup”.
31
“... Encore une fois, je vous le rapelle, veillez à être très prudent dans votre façon d’ecrire, parce que vos
lettres vont être vues et jugées par beaucoup”.
206
possa saber o que se faz nas outras partes, para consolação e edificação mútuas
em Nosso Senhor.
L. Os Superiores locais e os Reitores que residem na Província, assim como os
enviados a produzir fruto no campo do Senhor, devem escrever cada semana ao
seu Superior Provincial, se tiverem possibilidade. O Provincial e os outros
Superiores devem igualmente escrever todas as semanas ao Geral, se ele estiver
perto. Se, residindo no estrangeiro, não houver facilidade de comunicação, tanto
os enviados a ministérios apostólicos como os Superiores locais e Reitores, assim
como os Provinciais, escreverão ao Provincial uma vez por mês. Por seu lado, o
Geral terá cuidado de que se escreva habitualmente uma vez ao mês, pelo
menos, aos Provinciais, e estes aos Superiores locais, aos Reitores, e em caso de
necessidade, aos particulares. Enfim, uns e outros hão de fazê-lo mesmo mais
vezes consoante as circunstâncias o exigirem em Nosso Senhor.
M. Para que as notícias da Companhia possam comunicar-se a todos, proceder-
se-á da seguinte maneira: os que em diversas casas ou colégios dependem do
Provincial escreverão todos os quatro meses uma carta em língua vernácula, que
contenha só notícias de edificação, e outra em latim do mesmo teor. Enviarão uma
e outra em duplicado ao Provincial. Este mandará ao Geral um dos exemplares
em latim e outro em vernáculo, ajuntando uma carta sua a contar os fatos
importantes ou edificantes omitidos nas primeiras. Do mesmo exemplar tirará
tantas cópias quantas forem necessárias para dar conhecimento delas aos outros
membros da Província.
No caso de se perder muito tempo em enviar estas cartas ao Provincial, poderão
os Superiores locais e os Reitores despachar as suas cartas em latim e língua
vernácula diretamente ao Geral, mandando ao Provincial uma cópia delas.
Também o provincial poderá, quando lhe parecer bem, encarregar alguns
Superiores locais de informar os membros da própria província enviando-lhes
cópias das cartas a ele dirigidas.
Mas para que as notícias de uma província cheguem ao conhecimento das outras,
procurará o geral que, das cartas recebidas, se tirem exemplares bastantes para
fornecer a todos os outros Provinciais. Estes por sua vez mandarão tirar cópias
para os da sua Província.
Quando houver intercâmbio freqüente entre duas Províncias, como entre Portugal
e Castela, entre Sicilia e Nápoles, o Provincial de uma poderá mandar ao da outra
um exemplar da que enviou ao Geral.
N. Para melhor informação de todos, cada casa e cada colégio enviarão todos os
quatro meses ao Provincial uma breve lista, em duplicado, de todos os que vivem
na casa, e dos que morreram, ou dos que por qualquer motivo estão ausentes,
desde a última lista enviada até o presente, com breve menção das qualidades de
cada um. O Provincial, por sua vez, enviará todos os quatro meses ao Geral uma
cópia das listas de cada casa e de cada colégio. Assim será possível ter maior
conhecimento das pessoas, e dirigir melhor todo o corpo da Companhia para a
glória de Deus Nosso Senhor”. (Constituições, 1997, pp. 211-212 [673, 674, 675 e
32
676] )
32
Apenas como referência da mudança que o tempo provoca nas constituições em geral, nas Normas
Complementares das Constituições da Companhia de Jesus, todos esses parágrafos sobre a
correspondência são reduzidos para apenas dois pequenos parágrafos. As Normas Complementares, que
atualizaram as regras de 1556, foram aprovadas pela Congregação Geral XXXIV, em 1995.
207
que interessa aqui, que fossem lidas cartas edificantes, que eram geralmente aquelas escritas
pelos missionários.
Serafim Leite mostra que as cartas não demoravam a ser redistribuídas e usa como
exemplo as primeiras cartas que Nóbrega escreveu no Brasil em 1549. Depois de lidas em
Portugal no fim do mesmo ano já se encontravam em Roma, no generalado, e logo elas
estavam nas casas e colégios da Europa. De lá as cartas iam para Goa e chegavam ao “confins
do mundo oriental, que os navios portugueses acabavam de pôr em contacto directo com
Lisboa e o Ocidente” (Leite, 1956, p. 53 da Introdução). A única dúvida que se pode apor à
informação de Leite é se as cartas antes de irem para Goa passavam realmente por Roma. No
entanto, passando antes ou depois pelo Geral, as cartas acabavam rodando o mundo.
O efeito e estima geral destas cartas di-lo Luís Frois, e o contentamento que
experimentavam não apenas os da Companhia, mas também o “povo”. O mesmo,
e mais talvez na Europa, onde as Cartas “del’India di Portogallo” entravam nas
casas da gente culta como novela ou jornal. Elas informavam sobre as novas
terras, seus usos e costumes e mais particularidades, e orientavam ou, como se
dizia, edificavam e influiam até em vocações como a de S. Luís Gonzaga. Tal
208
As cartas ânuas se tornaram muito importantes para a Companhia, pois eram relatórios
mais extensos do que as quadrimestrais, encerrando, às vezes, verdadeiros tratados. António
Baptista relata, por exemplo, que Luis de Fróis havia se queixado de que sua História da
Japão teria que ser reduzida de três para um volume, por recomendação do Visitador
Valignano. O interessante nesta queixa é a informação contida na carta de 1593 ao Geral, de
que “todavía para se inbiar a Roma y ser vista por todo el mundo, que era necessario
abreviarla y resumirla en hun conpendio más breve, de manera que todo lo essencial della se
comprehendesse en hun volume poco maior que una annua de las que vienen impresas de
Roma” (Baptista, 2003, p. 01).
O tamanho e a quantidade das cartas que teriam que ser reproduzidas para serem
distribuídas pelos quatro cantos do mundo, acarretavam, não raro, queixas por parte de alguns
padres, pois, o serviço era deveras trabalhoso e exaustivo, além de requerer recurso humano
para este fim. Em carta escrita em 30 de julho de 1566 para Borja, por exemplo, o Provincial
português Leão Henriques faz um desabafo das dificuldades que encontra para mandar
missionários tanto para o Brasil como para as Índias, e, em meio às queixas, mostra que entre
as ocupações que demandavam tempo estava a cópia das cartas, “pues copiarlas aquí es cosa
209
que parece impossible por la muchedumbre de copias que se scriven” (in: Leite, 1960, p.
353); sendo que somente para as Índias, devido às inúmeras intempéries, se faziam quatro
cópias das cartas.
Outro padre jesuíta que igualmente reclama da quantidade de cartas que se tem de
copiar é Luis Fróis, consoante a informação de Baptista. As queixas de Fróis revelam por um
lado a quantidade de trabalho e de outro a seriedade com que a Companhia tratava a
correspondência interna.
(...) Em seguida, refere o historiador [Luís Fróis] que, após trinta anos de ausência,
regressara a Macau na companhia do Pe. Visitador [Alexandre Valignano], para o
ajudar na correspondência para a Índia e para a Europa. (Recordemos que o
padre Valignano trouxera do Japão para Macau mais de um milhar de cartas para
escrever. Escrever, ou melhor, para ditar, quem as escrevia era o padre Fróis). Por
isso, Luís Fróis diante desta tarefa ciclópica, queixar-se-á de modo especial do
clima, dos ares e da alimentação. (...) Apesar disso, confessa que continuava a
escrever 7 y 8 oras por dia, aquilo que o Pe. Visitador lhe ditava. (Baptista, 2003,
p. 01, com grifo no original)
A forma como o epistolário jesuíta foi tratado em documentos e nas próprias cartas,
revela a existência de uma verdadeira rede de comunicação, ao mesmo tempo vertical e
horizontal, e é resultado da intencionalidade de Inácio de Loiola. Nesta perspectiva, Londoño
concebe que o sistema de informações estava ligado ao sistema de decisões e que tal relação
era nitidamente de inspiração inaciana:
No caso das missões, na cópia e envio de cartas com diversos destinos, foi
construído e definido o projeto jesuítico missionário numa troca de informações
que se realizava no eixo Roma, Lisboa, Índia, Brasil. Tal projeto foi examinado
aqui a partir da procura de um método para levar a boa nova entre infiéis. Nessa
procura por um método no tempo de Loyola, Laynes e Borja, teria havido um
recurso contínuo à matriz inaciana no seu entendimento do bem universal e da
210
33
Pécora analisa mais detidamente somente as cartas de Nóbrega, no período de 1549 a 1560 – período coberto
pela edição da Edusp/Itatiaia –, aplicando a divisão das partes segundo o modelo histórico da ars dictaminis:
salutatio (expressão de cortesia, manifestação de um sentimento amistoso em relação ao destinatário,
independente do nível social), captatio benevolentiae (uma certa ordenação de palavras para influir com
eficácia na mente do receptor), narratio (o informe da matéria em discussão), petitio (o discurso pelo qual
tratamos de pedir algo) e conclusio (a parte em que se resumem as vantagens e desvantagens dos temas
tratados, para que fiquem impresso na memória do destinatário). Nesta divisão a parte do narratio é a parte
mais importante pois, em linhas gerais é a descrição de tudo o que envolve a missão e como estão atuando
nesse contexto para transforma-lo: “... Nesse sentido, a narração é sobretudo uma descrição ou composição de
um quadro temático em que os acontecimentos selecionados atuam no conjunto como exemplos de situações
repetidas, que referem menos ocorrências verdadeiramente únicas do que cenas exemplares, típicas, capazes
de evidenciar determinada prática ou costume longamente estabelecido” (p. 390).
34
É interessante atentar para a importância das cartas na história da humanidade, pelo menos até o início do
século XX. Muitos autores deixaram em cartas preciosos tratados teóricos, pois se tratava, praticamente, do
211
organização, pois não apenas incentiva a sistematização das ações, mas também obriga a que
se pense, cotidianamente, em toda a corporação.
único meio de comunicação à distância entre as pessoas. Apenas como exemplos, como são preciosas, do
ponto de vista teórico, as cartas de Platão, de Descartes, de Marx...
212
rápida adaptação e a rápida organicidade que a Companhia foi imprimindo em seus trabalhos,
principalmente o das missões.
Os círculos educados do país foram conquistados por meio do saber múltiplo dos
missionários. Os jesuítas edificaram escolas, mantiveram cursos de dialética e
fizeram vir da Europa uma tipografia, a qual, agora, editava livros japonêses:
gramáticas, dicionários, obras literárias, tratados teológicos, as fábulas de Esopo
em tradução japonêsa e também extratos dos livros clássicos chineses,
especialmente as obras de Confúcio. Impressos em muitos mil exemplares, êsses
livros baratos espalharam-se por todo o Japão. (Miller, 1946, p. 267)
A tipografia foi introduzida mais cedo nas regiões além-mar do que em Portugal, é o
que informa Rodrigues, justificando o fato pela necessidade de ela ser mais urgente naquelas
terras. A tipografia de Goa foi estabelecida em 1556, em Rachol, em 1616, na China e no
Japão, em 1590. Rodrigues conclui que foi “a imprensa nas mãos dos Jesuitas arma benefica
e poderosa, com que diffundiram as luzes da civilização, da fé e da sciencia” (Rodrigues,
1917, p. 514).
A experiência dos primeiros missionários serviu de base para que os continuadores das
missões fossem mais bem preparados, como, por exemplo, a necessidade de padres
especialistas em ciências matemáticas e físicas, como foi o caso da missão na corte imperial
213
A sétima parte – O que se deve observar para com o próximo na distribuição dos
operários e no seu emprego na vinha de Cristo Nosso Senhor – apresenta, de forma extensa,
as missões a que estão sujeitos todos os professos. Como a designação para as missões era
atributo dos superiores, existem recomendações detalhadas sobre a escolha do lugar para onde
se enviam os jesuítas, sobre a escolha dos fins das missões, a escolha do tipo de pessoas que
deverão ser enviadas de acordo com o tipo de missão e público-alvo a ser atingido, sobre as
diversas modalidades das missões e, também sobre a duração das missões. É interessante, por
exemplo, que de acordo com as exigências da missão e das pessoas com quem se relacionará,
35
Francisco Rodrigues, em a Companhia de Jesus em Portugal e nas missões, (no capítulo IV) informa que na
província de Portugal os jesuítas tiveram, de 1542 até 1599, 15 colégios; na província de Goa, no mesmo
período foram 05; na província de Malabar, de 1560 até o final do século XVI, foram 05 também; na província
do Japão, de 1580 a 1594, foram 02 colégios; e na província do Brasil, de 1556 a 1576 foram 03 colégios. E
isso sem contar os seminários e a universidade de Évora.
214
o jesuíta escolhido deve ter as qualidades e virtudes que mais se encaixam: os mais
experientes onde há mais perigos espirituais, os notáveis e discretos para tratar com aqueles
que têm encargos de governo; os mais dotados de inteligência para homens igualmente
inteligentes e instruídos, dentre outras recomendações.
O primeiro é o destaque que deve ser dado para a existência dos irmãos coadjutores.
Eles não eram padres e não tinham a mesma preparação intelectual rigorosa e escolástica, pois
não teriam a tarefa de dizer missa, nem de dar os sacramentos, não exercendo, também,
cargos superiores nem em casas nem em colégios. A eles cabia a sorte de Marta36, ou seja,
responsabilizar-se para que as coisas materiais estivessem em ordem para que as espirituais se
fizessem sem demora e obstáculos.
Os irmãos coadjutores pertenciam à família jesuítica, e suas tarefas eram tidas como
fundamentais para que o trabalho sacerdotal, missionário e evangelizador se fizesse. Os
irmãos liberavam os professos dos trabalhos manuais. É claro que isto em condições mais ou
menos ideais, já que em alguns casos, mais específicos das terras de além-mar nos primeiros
anos das missões, os padres acabavam fazendo o serviço manual37.
36
Alusão à passagem do Novo Testamento da Bíblia em que Cristo visita a casa de Lázaro, seu amigo, e
enquanto Maria lavava os pés de Cristo secando-os com seus cabelos, a outra irmã de Lázaro, Marta, cuidava
da casa, sendo que Cristo defendeu as duas atitudes como dignas de servir a Deus.
37
Em carta escrita de Pernambuco em 1551, para os irmãos de Portugal, o padre Antonio Pires informa que,
devido às circunstâncias, ele teve que aprender vários ofícios: “Nesta terra, pela falta que há de officiaes, a
necessidade nos faz aprender todos os officios; porque de mim vos digo que pelos officios que nesta terra
tenho aprendido poderia já viver” (Navarro, 1988, p. 110).
216
quanto à sua forma de governo. Nas Costituições, na nona parte, que trata de O que diz
respeito à cabeça e ao governo que dela desce até o corpo, há a definição e a justificativa da
forma de governo vitalício como a mais adequada àquele instituto religioso:
Capítulo 6
A educação jesuítica:
Primeiro, não se quer reproduzir neste capítulo o contido na segunda parte deste
trabalho, quando se apresentou em que consistia a formação do futuro jesuíta. Aqui o que se
propõe é mostrar a educação jesuíta de forma geral, através dos colégios e de documentos
oficiais.
Em segundo lugar, apresentar a educação jesuíta não significa, pelo menos aqui,
intencionar fazer qualquer discussão pedagógica, cotejando, por exemplo, o Ratio Studiorum
com qualquer outro plano pedagógico-escolar do período ou posterior a ele. Entende-se
educação aqui no sentido lato de produção e reprodução espiritual e cultural de uma
determinada sociedade geral ou particular. Portanto, a educação jesuítica concebida aqui não
se restringe à educação escolar, ou às relações didáticas entre professor e aluno mediadas por
disciplinas etc.. O colégio aqui adquire mais o sentido geral de espaço cultural, profissional,
religioso de formação de valores do que um conjunto de salas de aula.
O colégio
38
Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesuitas/_private/hj.htm.
220
Em 1556, quando o livro de regras e leis da Companhia vem à luz, ele já havia sido
experienciado na prática na província da Espanha e, portanto, no que toca aos colégios, já
carregava o sucesso deste empreendimento jesuítico em várias partes da Europa,
especialmente em Portugal. Nesse sentido, a confiança, expressa na letra da lei, é resultado já
da prática e não apenas de uma idealização, se bem que toda lei propositiva, em certo sentido,
não deixa de ter idealizações.
Na carta de recomendações, já referida, que escreve para João Nunes Barreto, futuro
Patriarca da Etiópia, Inácio de Loyola mostra a importância de criar casas de ler e escrever e
colégios para reduzir aquela população ao cristianismo, a começar pelas crianças e jovens:
Para a inteira redução daqueles reinos seria muito útil, tanto no início como em
todo tempo, que lá na Etiópia se fundassem muitas escolas de ler e escrever e
outras letras e Colégios para instruir a juventude e também aos mais que
precisarem, na língua latina, em costumes e doutrina cristã. Isto seria a salvação
para aquele povo. Porque, quando estes crescerem, ficariam afeiçoados ao que
tiverem aprendido no início e no qual pareceriam superar aos seus maiores. Desse
modo, em breve, cairiam e se extinguiriam seus antigos erros e abusos”. (in:
Cardoso, 1993, p. 115)
O colégio, nesse sentido, seria um instrumento eficaz da “nova cruzada”, pois através
do aprendizado de ler e escrever e dos assuntos mais complexos, a religião cristã, e
obviamente a cultura ocidental, era introjetada em meio ao ensino. O fato de o público dos
colégios se formar de crianças e jovens facilitava, na visão de Loyola, o aprendizado das
coisas cristãs e, com o tempo, os erros característicos daquela cultura seriam sanados. Essa
questão é tão significativa no ambiente cultural e religioso de Loyola que fica difícil querer
julgar tal concepção educacional como simplesmente de imposição, como se houvesse
possibilidade da existência de um padrão de comparação entre diferentes culturas e, após isso,
a mais forte seria imposta à mais fraca. Os valores iluministas que a sociedade atual tão bem
soube naturalizar, acarretam, às vezes, em julgamentos sem valor histórico algum. No caso,
222
não havia outra perspectiva para Loyola e seus comandados do que a de serem (verdadeiros)
instrumentos da verdadeira religião.
Na carta de Luís Fróis ao Geral Acquaviva se encontra talvez o exemplo mais bem
acabado da concepção dos jesuítas com relação ao papel dos colégios em terras de missões.
Apesar de ter citado anteriormente a parte da carta que vai adiante, cabe aqui novamente tal
informação pela riqueza do conteúdo e pela clareza da necessária ocidentalização dos futuros
jesuítas japoneses, pois sem ter acesso à “cultura mãe” da Companhia, eles não conseguiriam
realizar perfeitamente seus papéis, nem saberiam ponderar a necessidade e os limites da
adaptação. O colégio é aqui apresentado como espaço de reprodução da cultura ocidental
cristã e como o meio mais eficaz à consecução dos objetivos da Companhia de Jesus:
Q.to a la fabrica del collegio para en el se criaren los hr.os japones como tanbien
el Pe. Visitador escrive a V. P. no fue sin grande consideration lo que en Japon en
la Congregation que se hizo se ha tratado desta materia porque ventilada con
mucha ponderation se no halló remedio mas eficaz que esto para reducir los
her.os japones al intento que la comp.ª dellos pretende que sacarlos de su R.no
custunbres y conversationes para se mejor domesticaren y uniren con los n.ros de
Europa. Y son tantas las utilidades que deste adventum se pueden seguir asi para
la solida direction de los hr.os japones en vertudes y letras y para el bien universal
de la christandad y aun tambien desta mission de la China quando N. S. fuere
servido de le abrir las puertas que no se ha visto medio mas eficaz y en todo
acomodado al intento de la comp.ª como la fundacion deste collegio. (...) (in:
Baptista, 2003, p. 03)
é sem razão que na escala hierárquica da Companhia, o Reitor do colégio estava abaixo
apenas do Provincial na esfera da província.
4. O qual collegio fosse tal que nelle podessem residir e estar até sessenta pesoas
da dita Companhia, que parece que por agora deve aver nele, pellos diversos
lugares e muitas partes, em que os ditos Padres residem e a que do dito collegio
são emviados pera bem da conversão e outras obras de serviço de Nosso Senhor.
(in: Leite, 1960, p. 97)
Os residentes do colégio não eram apenas os professores, irmãos, Reitor etc., mas
todos os padres que pertenciam à província e que estavam espalhados por ela toda; é essa a
informação prestada por Serafim Leite em nota de rodapé, de que os padres e irmãos eram
exatamente sessenta e um em toda província do Brasil, o que representa “que nesta primeira
doação régia, o Colégio da Baía não se apresentava como entidade local, mas representativa
de toda a Companhia de Jesus no Brasil.” (idem, ibidem, p. 97). E mesmo depois da fundação
dos outros colégios, eles não perderam a sua função de entidade representativa, mesmo que
local, da Companhia de Jesus.
curricular deste nível de educação estava baseada no classicismo antigo, na gramática, nas
humanidades e na retórica, se tornando a porta de entrada do humanismo em Portugal:
39
“O modus parisiensis é o conjunto de normas pedagógicas que caracterizavam o ensino parisiense e lhe
conferiam uma personalidade única e original. Como mostra Joaquim Ferreira Gomes (1995: 30), de todos os
modelos universitários disponíveis, o modus parisiensis era o que apresentava maior coerência, rigor e eficácia
e aquele que mais valorizava a ordem, a rapidez e a disciplina da aprendizagem, leque de características que se
adaptavam perfeitamente aos intentos normativos da docência Jesuíta. O modus parisiensis caracteriza-se
por quatro tópicos fundamentais: a distribuição dos alunos em classes, uma actividade constante dos
alunos através de exercícios escolares, um regime de incentivos ao trabalho escolar, e a união da piedade e dos
bons costumes com as letras”. (www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesuitas/_private/mp.htm).
227
Com o objetivo de desmistificar a idéia de que o Ratio é um documento que veio à luz
como resultado simplesmente da cabeça de três ou quatro padres, os quais teriam elaborado
um tratado pedagógico com força de lei dentro da Companhia, obrigando de imediato que ele
fosse cumprido à risca em todos os colégios e universidades jesuíticas, apresenta-se a seguir
um pouco da história da construção das regras pedagógicas e educacionais dos jesuítas. Para
tanto, toma-se por base as obras de Leonel Franca (1952) e Francisco Rodrigues (1917), os
quais procuraram mostrar que o Ratio deve ser visto como um documento elaborado no
século XVI e fruto de muitas experiências e avaliações. Apesar de se pautar em dois autores
jesuítas, os quais obviamente defendem a Companhia e seus documentos dos ataques liberais
das primeiras décadas do século XX, não é objetivo do trabalho fazer coro a eles no que se
refere à defesa do Ratio, mas, tão somente, entendê-lo e apresentá-lo em sua historicidade, e,
nesse sentido, esses dois autores – como poderiam ser outros – contribuem com essa
perspectiva.
regulamento, chamado De Studiis Societatis, o qual foi enviado, com o tempo, aos colégios
existentes e os que se iam fundando à época.
Além do Jerônimo Nadal, outro padre jesuíta que individualmente foi importante para
o estabelecimento do plano de estudos foi Ledesma, o qual foi professor, tendo exercido,
também, várias funções no Colégio Romano de 1557 a 1575. Franca informa que dos 132
documentos publicados na série Monumenta Paedagogica, 59 foram tanscritos, anotados e
corrigidos pelo padre Ledesma. A principal contribuição dele foi ter escrito, em substituição
ao documento elaborado por Nadal, o De Ratione et Ordine Studiorum Colegii Romani,
apesar de ter ficado incompleto.
Outro momento importante que antecedeu o Ratio está presente nas Constituições da
Companhia. Rodrigues informa que as linhas gerais de um sistema de educação e de ensino,
criadas por Inácio, estão presentes na quarta parte que trata da Instrução, nas letras e outros
meios de ajudar o próximo, daqueles que tiverem progredido em espírito e virtude, e que tal
conteúdo serviu, também, para a elaboração do Ratio. Franca, citando Fouqueray (Histoire de
la Compagnie de Jesus em France), mostra que a parte das Constituições que trata da
educação dos futuros jesuítas animou toda a atividade pedagógica, sendo “um resumo da
doutrina pedagógica da Companhia” (Franca, 1952, p. 07)40.
40
“un abrégé de la doctrine pédagogique de la Compagnie”.
229
(Portugal, Espanha, França, Áustria, Alemanha e Itália) se reuniram em Roma para elaborar
um regulamento único e universal. A rotina de trabalho da comissão era austera:
Uma definitiva comissão se reuniu em 1598 em Roma para apreciar as novas críticas e
sugestões e, em 8 de janeiro de 1599, finalmente o Geral Acquaviva mandou uma circular
para todas as províncias acompanhada do Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu,
informando que já não se tratava de um projeto de estudos, mas de um plano de estudos
promulgado na forma de uma lei. Para mostrar que a síntese foi uma necessidade colocada
para os membros da última comissão, Franca informa que do documento de 1591 para o de
1599, reduziu-se de 400 para 208 páginas e o número total das regras baixou de 837 para 467.
No entanto, o próprio Franca adverte que os quase cinqüenta anos passados desde o
colégio de Messina até a publicação oficial do Ratio, e os vários padres que foram envolvidos
direta ou indiretamente nesse processo, não resultaram em nenhum tratado de pedagogia. O
Ratio não “expõe sistemas nem discute métodos” (Idem, ibidem, p. 24). A finalidade de tal
documento não é teórica, não é comparativa e nem discute princípios pedagógicos com outros
modelos; quem se propõe a estudá-lo não pode esquecer a sua “finalidade eminentemente
prática nem a moldura histórica que lhe enquadra as origens” (p. 25).
Quanto aos aspectos mais curriculares e didáticos do Ratio Studiorum, a segunda parte
deste trabalho parece ser suficiente para mostrar que pode-se resumir em três as grandes
preocupações contidas no documento: primeiro, educar o estudante na forma clássica antiga,
com o conteúdo escolástico e o preparo técnico para o exercício do sacerdócio; segundo,
como pano de fundo de toda esta educação estão o latim e o grego como as línguas mais
importantes para se aprender e se expressar; e, finalmente, como meios ideais para que a
educação aconteça da melhor forma possível, têm-se a emulação e a disciplina.
Brasil e de suas capitanias, de 1584, Anchieta relata que no Colégio da Bahia, o currículo não
era cumprido na sua totalidade, faltando, principalmente, os cursos de filosofia:
Na tão citada quarta parte das Constituições também é deixado claro que o fim “dos
estudos na Companhia é ajudar, com o favor de Deus, as almas dos seus membros e as do
próximo” (p. 129, [351]). Os cursos, a disciplina, o conhecimento e a ciência só têm sentido se
forem pensadas como meios para que a religião se estabeleça e, como lembra Rodrigues
acima, não qualquer religião mas a verdadeira.
A chamada educação jesuítica, enfim, não pode jamais ser descolada de uma
concepção religiosa, ou seja, os fins, o intuito, o objetivo final dos colégios e do Ratio
232
Studiorum é fornecer uma formação verdadeiramente religiosa e, para isso, se utiliza de uma
lógica educativa, que é distribuída pelos níveis, pelos cursos, pela didática, pelos valores,
enfim, pelo rigor, como meio, como instrumento para se formarem homens competentes e
padres responsáveis e corajosos para assumirem os mais diferentes serviços, especialmente os
concernentes às missões.
A Companhia de Jesus, que ficou mais conhecida no Brasil por sua atuação nos
campos educacional e missionário, é uma construção histórica, e isso nos dois sentidos do
termo: o de ser uma instituição humana, criada numa determinada época para desenvolver
atividades com fins religiosos, e, portanto, fazendo parte de um contexto definido; e, no
sentido de que as atividades por ela assumidas, a sua organização, suas leis internas, suas
prioridades de ação e formação foram incorporadas, avaliadas, sistematizadas com o tempo.
Assim, a primeira conclusão a que se chega com este trabalho é que a racionalidade jesuítica
também é uma construção histórica.
Por ter se tornado uma instituição solidamente estabelecida em boa parte do mundo, é
comum tomar-se a Companhia por seus resultados, como se eles já estivessem na sua origem,
dando a impressão de que a atuação principalmente educacional e missionária, parece ter sido
sua vocação desde o começo. Entretanto, das duas atividades, a educacional, pelo menos,
parece não estar entre os trabalhos que os seus fundadores imaginaram ou vislumbraram. O
começo da Companhia de Jesus apontava um desejo de realizar uma espécie de nova cruzada
contra os infiéis, objetivando retomar Jerusalém aos domínios dos cristãos. A impossibilidade
de realizar a viagem ao Oriente e os trabalhos realizados sob as ordens do Papa e dos reis,
dentre eles o Soberano português, levou os dirigentes da Companhia a assumirem atividades
que praticamente se tornaram sinônimos da atuação jesuíta.
Outra questão que pode ser levantada como decorrência da primeira conclusão
relaciona-se aos limites estabelecidos neste trabalho, quer seja, se a racionalidade expressa
uma organização em construção, é possível, então, estender as conclusões deste trabalho para
o restante da Companhia de Jesus, e não somente em Portugal? A maioria dos elementos que
compõem a racionalidade podem ser empregados, creio que com segurança, para toda a
Companhia, particularmente os relacionados à formação do futuro jesuíta, e os relacionados à
organização e à educação. A Companhia de Jesus é uma só, e mesmo atuando em inúmeros
lugares, sob o comando de diferentes soberanos, ela sempre buscou a unidade e organicidade
internas, ou seja, sempre procurou a unidade diante da universalidade de sua atuação.
Entretanto, um estudo mais aprofundado da atuação dos jesuítas em outros lugares que não
nos domínios portugueses, possivelmente traria aspectos particulares que fariam parte de uma
racionalidade própria e específica.
O Padroado, nome pelo qual ficou conhecida a atuação das Coroas católicas em prol
do desenvolvimento do cristianismo nas novas terras, sintetizou os trabalhos realizados pelos
jesuítas desde 1542 quando Xavier chegou em Goa. As duas faces de uma mesma moeda, a
comercial e a religiosa na expansão, nem sempre falaram a mesma linguagem, sendo mesmo
até discordantes segundo relatos dos próprios padres jesuítas seja no Oriente ou no Brasil.
Com o passar dos anos foi ficando claro que os novos interesses humanos apontavam em
direção diferente dos interesses religiosos. O tempo para os mercadores não significava mais
o tempo da religião. Lembremos que uma das primeiras constatações de Xavier na Índia foi
de que na quaresma, que é o principal tempo litúrgico na Igreja, os cristãos não se
encontravam em terra, pois era o tempo mais propício para as navegações comerciais e para
as guerras de conquista. A atuação dos portugueses indicou, dessa forma, a existência de, pelo
menos, dois projetos coloniais: o dos colonos e comerciantes e o dos religiosos; e os dois cada
vez mais em conflito. A expulsão dos jesuítas de Portugal e do Brasil em 1759 não foi tarefa
de uma individualidade raivosa chamada Marquês de Pombal; foi a história, de que Pombal
foi arauto, que tomou a decisão ao não tratar mais a religião da mesma forma que a tratava
nos séculos anteriores, uma vez que na sociedade burguesa que se consolidava, a Igreja não
tinha mais o mesmo poder de antes.
O século XVI, no entanto, ainda não permite tratar como sinônimos a racionalidade
mercantil e a razão burguesa, ou seja, a expansão comercial portuguesa aponta na direção de
uma sociedade diferente da feudal, mas que ainda não a realizou. Com isso, uma aparente
contradição poderia ser enunciada, e o foi no decorrer deste trabalho, a de que a racionalidade
jesuítica é, em certo sentido, mercantil. A intenção desta afirmação não é entrar na discussão
sobre a modernidade ou medievalidade da Companhia de Jesus, mas mostrar que a
237
garantia que sempre contasse em suas fileiras com ávidos padres para enfrentar desafios
enormes nos trabalhos de missão, de diplomacia e de educação. Porém, como geralmente a
paixão entorpece a razão, procurei sempre manter um certo distanciamento que me
possibilitou não ser de todo frio ao assunto tratado e nem me tostar com o seu calor próprio.
Creio que posso afirmar que este trabalho de tese pode ser considerado com um fio
que procurou unir numa lógica determinada as pérolas da forma de ser e de agir da
Companhia de Jesus. A atuação dos jesuítas sob a bandeira do Padroado Português, a sua
formação como instrumentos da Reforma Católica, sua formação intelectual rigorosa,
escolástica e técnica, a formação da espiritualidade e a defesa do livre-arbítrio humano, a
adaptação como forma de agir nas terras em missão, a organização interna baseada na
autoridade e na unidade, e a educação como meio de divulgação e de formação da cultura
cristã-ocidental perfazem esse fio que, ao seu tempo e lugar, recolheu e uniu as pérolas
encontradas principalmente nos documentos, os quais, assim como as pérolas, são vivos e,
cada vez que são lidos nos ensinam que o passado também atualiza o presente.
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