Celio Costa-Tese de Doutorado

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A RACIONALIDADE JESUÍTICA EM TEMPOS DE


ARREDONDAMENTO DO MUNDO: O IMPÉRIO
PORTUGUÊS (1540-1599)

CÉLIO JUVENAL COSTA

PIRACICABA, SP

2004
A RACIONALIDADE JESUÍTICA EM TEMPOS DE
ARREDONDAMENTO DO MUNDO: O IMPÉRIO
PORTUGUÊS (1540-1599)

Autor: CÉLIO JUVENAL COSTA

Orientador: Prof. Dr. JOSÉ MARIA DE PAIVA

Tese apresentada à Banca


Examinadora do Programa de
Pós-Graduação em Educação
da UNIMEP como exigência
parcial para obtenção do título
de Doutor em Educação.

PIRACICABA, SP

2004
Comissão Julgadora

Profa. Dra. Silvina Rosa

Prof. Dr. Sezinando Luiz Menezes

Prof. Dr. Luís Francisco A. de Miranda

Prof. Dr. Ademir Gebara

Prof. Dr. José Maria de Paiva


À MARIA LUISA, por
continuarmos juntos na aventura
cúmplice e carinhosa no procurar
entender a História, agora com a
companhia da SOFIA, um
presente que nos foi dado para
encher de alegria e de esperança a
nossa vida.
Dedico este trabalho também à
Dona MIRA, como uma forma de
homenagem a uma extraordinária
mulher que, decididamente, nos
deixou de maneira tão precoce.
E u que penso desse modo, vejo nessas
desse modo, vejo nessas palavras uma
vejo nessas palavras
palavras uma profundidade tão
profundidade tão variada e infinita que o que
aprendo não comporta outro resultado senão o
de me fazer sentir quanto me resta ainda por
uma

aprender. À minha debilidade, tão amiúde


reconhecida, devo a inclinação que tenho para a
modéstia, para a obediência às crenças que me
prescrevem, para a serenidade e a moderação
nas minhas idéias, bem como o ódio que
experimento contra a arrogância importuna e
belicosa, inimiga figadal de toda disciplina e de
toda a verdade, dos que só crêem e só confiam
em si mesmos.” (MONTAIGNE)
MEUS AGRADECIMENTOS

Ao professor José Maria de Paiva, ou simplesmente Zé Maria, pela orientação


respeitosa, amigável e, acima de tudo, estimulante deste trabalho e por ser o
responsável direto pela minha viagem nestes mares que eu não vislumbrava
navegar;

aos Professores Doutores Sezinando Luiz Menezes e Ademir Gebara, pelas


contribuições quando do Exame de Qualificação e também aos Professores
Doutores Silvina Rosa e Luís Francisco Albuquerque de Miranda pela participação
na banca de defesa;

aos meus colegas do grupo de pesquisa “Educação, História e Cultura


Brasileira: 1549-1759”, pelos momentos de reflexão conjunta e amadurecimento
recíproco;

aos colegas da turma de doutorado, pelo prazer que foi estudar junto de todos
vocês, especialmente pelos momentos lúdicos;

ao Fernando, Luci e Lenice, pelo companheirismo carinhoso nestes quatro


anos;

a pessoas que me ajudaram muito copiando e/ou enviando materiais


importantes para mim: Silvia Azevedo, da biblioteca Padre António Vieira; Alberto
Sismondini, um italiano que estudou em Coimbra que me ajudou sem mesmo me
conhecer; padre Luis Gonzales-Quevedo, SJ, de Itaici; padre Hermínio, SJ, da
Revista Brotéria em Portugal; Rose Teixeira e Vanildo Pereira que trouxeram
material de Portugal;

ao Mário e aos Reimann, pelo apoio na tradução dos textos;

ao Lupércio, pelo apoio com a bibliografia;

a todos os professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em


Educação da Unimep, especialmente Raquel, Bruno, Valdemar, Gebara, Ivone e
Elaine, que ao lado da competência e muito trabalho, conseguem criar um ambiente
alegre e de profundo respeito humano entre todos. Quero que todos saibam o
quanto foi saboroso trabalhar com todos vocês estes quatro anos;

à Universidade Estadual de Maringá, através do Departamento de


Fundamentos da Educação, pela liberação nos quatro anos de dedicação ao curso
de doutorado, e à Capes, pelo apoio financeiro.
RESUMO

A racionalidade jesuítica em tempos de arredondamento do


mundo é um estudo sobre a forma de ser da Companhia de Jesus no interior do
Império Português durante os anos de 1540 a 1599. Entender a atuação dos jesuítas
no contexto do Padroado português e no processo de expansão comercial e política
dos domínios da Coroa lusitana é o grande objetivo deste trabalho. O Padroado
significou a expansão do cristianismo católico e romano nas novas terras
descobertas e/ou dominadas pelos reinos cristãos. O pensamento mercantil
presente na chamada empresa colonial e comercial também influenciou, de certa
forma, a atuação dos jesuítas, considerando, no entanto, que racionalidade mercantil
ainda não é sinônimo de razão burguesa nesse período. A racionalidade jesuítica se
construiu com o tempo, a partir do momento em que aqueles padres assumiram
atividades diversas, como as educacionais e missionárias. Para dar conta desta
problemática a tese está estruturada em três partes: a primeira versa sobre a relação
da Companhia de Jesus com a Coroa Portuguesa e a atuação missionária sob o
nome de Padroado; a segunda sobre a formação intelectual e espiritual do futuro
jesuíta; e, a terceira, sobre a racionalidade em termos mais práticos, destacando a
adaptação, a organização e a educação dos jesuítas, principalmente no terreno das
missões. O período escolhido compreende desde a chegada dos primeiros jesuítas
em Portugal (1540) até a publicação oficial do Ratio Studiorum, o principal
documento educacional que a Companhia de Jesus produziu (1599). Com este
trabalho objetiva-se, também, contribuir para a compressão da formação cultural do
Brasil, na medida em que a atuação dos primeiros jesuítas em terras brasileiras, a
partir de 1549, também fez parte da abrangência do Padroado português.

Palavras-chave: Companhia de Jesus – Império Português – século XVI – educação


– racionalidade jesuítica
ABSTRACT

The Jesuit rationality during the period of the rounding of de world is the
study regarding the form of being of de Company of Jesus inside of the Portuguese
Empire between 1540 and 1599. Understanding the influence of the Jesuits in the
context of the Portuguese Patronage in the process of the commercial and political
expansion of the domain of the Lusitan Crown is the objective of this text. The
Patronage means the diffusion of catholic and roman Christianity in the new
discovered or dominated land by the Christians Kingdoms. The mercantile thought
present in the so called colonial and commercial enterprise in some way, also
influenced the actions of the Jesuits, although, considering that the mercantile
rationality still isn’t a synonym of the bourgeoisie reason in this period. The Jesuit
rationality was constructed over time, from the moment in which those priests
assumed several activities, such as the educational and missionary. The thesis is
structured in three parts: the first one examines the relationship of the Jesuits with
the Portuguese Crown and the missionary actions under the name of Patronage; the
second examines the intellectual and spiritual formation of the forthcoming Jesuit; the
third examines rationality in it’s practicity highlighting the adaptation, the organization
and the education of the Jesuits, mainly on missions. The period chosen comprises
since the arrival of the first Jesuits in Portugal (1540) until the official publication of
Ratio Studiorum, the main education documents produced by the Company of Jesus
(1599). This essay also has the objective to contribute to comprehend the Brazilian
cultural formation, because the work of the first Jesuits in Brazilian lands, since 1549,
made part of the Portuguese Patronage encompass.

Key-words: Company of Jesus – Portuguese Empire – XVI century – education –


Jesuit rationality
RÉSUMÉ

Le raisonnement jésuite pendant la période de l’arrondissement du


monde est une étude concernant la forme d'être de la Compagnie de Jésus dans
l'Empire Portugais entre 1540 et 1599. L’objectif de ce travail est Comprendre
l'influence des Jésuites dans le contexte du Patronage Portugais et dans le
processus de l'expansion commerciale et politique du domaine de la Couronne
Lusitanienne. Le Patronage a signifié la diffusion du Christianisme Catholique
Romain dans le nouveau monde, découvert et/ou dominé par les Royaumes
Chrétiens. La pensée mercantile, propre à l’entreprise coloniale et commerciale, a
influencé, d'une certaine façon, l’action des Jésuites, bien que, pourtant, la rationalité
mercantile n'est pas encore un synonyme de la raison bourgeoise dans cette
période. La rationalité jésuite a été construite avec le temps, à partir du moment en
que ces prêtres ont assumé plusieurs tâches, tel que les éducatives et missionnaires.
Pour accomplir ces questions, la thèse est structurée dans trois parties: dans la
première, on examine le rapport des Jésuites avec la Couronne Portugaise et les
actions missionnaires sous le nom de Patronage; la seconde traite sur la formation
intellectuelle et spirituelle du futur Jésuite; la troisième, sur la rationalité en termes
pratiques, en metttant en valeur l'adaptation, examine l'organisation et l'éducation
des Jésuites, principalement sur le terrain de les missions. La période choisie
comprend dès l'arrivée des premiers Jésuites au Portugal (1540) jusqu'à la
publication officielle do Ratio Studiorum, le principal document sur éducation produit
par la Compagnie de Jésus (1599). Ce travail a aussi l'objectif de contribuer pour
comprendre la formation culturelle du Brésil, parce que l’action des premiers Jésuites
dans terres brésiliennes, depuis 1549, a fait partie de l’extension de la mission du
Patronage Portugais.

Les mots-clef: Compagnie du Jésus – l’Empire Portugais – XVIe siècle – Éducation –


Rationalité Jésuite
Índice

RESUMO ................................................................................................................................................................. 7

ABSTRACT ............................................................................................................................................................. 8

RÉSUMÉ .................................................................................................................................................................. 9

ÍNDICE ................................................................................................................................................................... 10

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................................... 12

PARTE I - OS JESUÍTAS EM PORTUGAL .................................................................................................... 24

INTRODUÇÃO - O COMEÇO DE UMA PRÓSPERA RELAÇÃO .................................................................................... 25

CAPÍTULO 1 - O PADROADO PORTUGUÊS: A COMPANHIA DE JESUS A SERVIÇO DA COROA PORTUGUESA ......... 39


O Padroado português nas Índias e no Oriente ............................................................................................. 48
O Padroado no Brasil .................................................................................................................................... 57
As Províncias Jesuíticas de Portugal e do Brasil na lógica do Padroado português ................................... 77

CAPÍTULO 2 - O CONTEXTO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI: A CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO ..................................... 86


A mercadoria e a expansão portuguesa ......................................................................................................... 87
A cultura e a religiosidade em Portugal ...................................................................................................... 100
Conseqüências da Expansão Portuguesa ..................................................................................................... 108

PARTE II - A RACIONALIDADE NA FORMAÇÃO DO FUTURO JESUÍTA ........................................ 116

CAPÍTULO 3 - A FORMAÇÃO DO JESUÍTA: A INTELECTUALIDADE E A ESPIRITUALIDADE ................................... 117


O Jesuíta como instrumento da Reforma Católica....................................................................................... 118
A formação rigorosa, escolástica e técnica ................................................................................................. 129
A formação da espiritualidade e o livre-arbítrio ......................................................................................... 147

PARTE III - A RACIONALIDADE INSTITUCIONALIZADA ..................................................................... 162

INTRODUÇÃO - A RACIONALIDADE VISTA COMO INSTRUMENTO DO AGIR JESUÍTICO ........................................ 163

CAPÍTULO 4 - A ADAPTAÇÃO COMO ESTRATÉGIA PARA AS MISSÕES ................................................................. 166


São Francisco Xavier ................................................................................................................................... 169
Mateus Ricci. ................................................................................................................................................ 177
Os Jesuítas no Brasil .................................................................................................................................... 187

CAPÍTULO 5 - A ORGANIZAÇÃO INTERNA .......................................................................................................... 193


A união interna ............................................................................................................................................. 193
A obediência ................................................................................................................................................ 195
O epistolário ................................................................................................................................................. 201
As bases de organização das missões .......................................................................................................... 211

CAPÍTULO 6 - A EDUCAÇÃO JESUÍTICA: O COLÉGIO E O RATIO STUDIORUM.................................................... 218


O colégio ...................................................................................................................................................... 219
Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu .......................................................................................... 226

CONCLUSÃO ...................................................................................................................................................... 234

REFERÊNCIAS ................................................................................................................................................... 239

FONTES .............................................................................................................................................................. 239

BIBLIOGRAFIA IMPRESSA ................................................................................................................................... 240

BIBLIOGRAFIA ELETRÔNICA .............................................................................................................................. 245


Introdução

Em 29 de março de 1549, Tomé de Souza, primeiro Governador Geral do Brasil,


desembarcou em Vila Velha do Pereira, acompanhado de mais de novecentas pessoas, entre
soldados, colonos e degredados. Com ele, chegaram ao Brasil também os padres Leonardo
Nunes, João de Azpilcueta Navarro, Antônio Pires e mais os irmãos Vicente Rodrigues e
Diogo Jácome, os primeiros jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega. Naquele mesmo ano,
começaram as atividades missionárias, catequéticas, evangelizadoras dos discípulos de Inácio
de Loyola, o que lhes valeu uma atuação destacada no conjunto da vida colonial brasileira, até
a sua expulsão em 1759.

É inegável a participação dos padres da Companhia de Jesus na formação da cultura


brasileira, na formação do cotidiano colonial brasileiro, nos valores sociais e na valorização
de certas atitudes sociais que marcam, indelevelmente, o modo de ser do povo brasileiro até
nossos dias; entretanto, possivelmente a maior área de atuação daqueles padres tenha sido o
campo educacional. A educação da elite rural brasileira, dos índios e dos escravos ficou a
cargo dos jesuítas que, principalmente através dos seus colégios – em 1750 eram 55 os
colégios jesuíticos no Brasil – detinham o monopólio, assim como em Portugal, do ensino no
Brasil.

Os padres da Companhia de Jesus não educaram somente através dos seus colégios,
mas também, por meio do teatro, da atuação política, da atuação literária, da evangelização,
enfim, de todas as atividades inerentes à sua atuação como missionários. A ação deles para
com os brancos portugueses, para com os índios brasileiros e negros africanos foi, antes de
tudo, educacional, e, como tal, uma atuação cultural, pois, tratava-se de fazer da nova terra
com seus habitantes, seres crentes e obedientes ao Deus cristão e ao monarca português.

O ponto de partida deste trabalho foi, portanto, entender a Companhia de Jesus para
além de um ponto de vista estritamente religioso, teológico ou de uma história das instituições
13

eclesiásticas; o que se procurou, e é isso o que se apresenta, foi entender aquele instituto
religioso historicamente, como participante efetivo da construção da sociedade e cultura
brasileiras. Nesse sentido, mais do que saber se ela cumpriu ou não desígnios religiosos, o que
importou foi apreendê-la como instituição humanamente criada, dirigida e construída por
homens.

Esta pesquisa individual está compreendida numa produção que se quer coletiva de um
grupo de pesquisa formado em torno do tema “Educação, História e Cultura Brasileira: 1549-
1759”1. A existência deste grupo sugere a importância desta pesquisa para a academia, na
medida em que, com ela, almeja-se contribuir com estudos que visam à compreensão da
formação cultural brasileira, principalmente nos seus aspectos educacionais e históricos. A
convicção de que o entendimento da racionalidade jesuítica, cronológica e espacialmente
delimitada, contribuirá para a compreensão de mais um aspecto da cultura brasileira, é o que
guia o presente trabalho.

Estudar os jesuítas no século XVI requereu uma postura metodológica de deixar


sempre uma “certa distância” entre os conceitos próprios desta nossa época atual e os
conceitos, virtudes, valores próprios do quinhentos europeu e português em particular. A
preocupação era, e continua sendo, em não julgar o passado pelos padrões do presente.
Jacques Barzun, que escreveu seu compêndio de história moderna e contemporânea quase já
centenário, no auge, portanto, de uma carreira profícua e reafirmando sempre o gosto pelos
clássicos, ensina aos seus leitores a dificuldade de se entender o passado pelos valores atuais:

(...) O nosso tempo é tão tolerante, de espírito tão liberal e tão avesso à violência
em suas ideologias, que encontrar sólidos argumentos em prol do caráter do
século XVI ou XVII está irremediavelmente fadado a ofender os justos e virtuosos.
(Barzun, 2002, p. 10)

Mais à frente, ensina sobre a tarefa do historiador em meio a esse clima:

Não que eu seja a favor de régios senhores, de perseguições ou de qualquer outra


excrescência supostamente maligna ou perversa. Cito esses exemplos como

1
O grupo de pesquisa Educação, História e Cultura Brasileira: 1549-1759 está cadastrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do Brasil, no CNPq, e é coordenado pelo Professor Doutor José Maria de Paiva e tem
participantes de seis universidades brasileiras.
14

indicação de que não considerei preconceitos correntes. Os meus próprios bastam


para manter-me ocupado quando viso o desprendimento e a simpatia do
historiador. (...) (Idem, ibidem, p. 10)

A história existe independentemente de vontades e de julgamentos. A nossa sociedade


tem um passado que foi construído por múltiplas determinações, umas mais coerentes e outras
contraditórias com os valores que são cultivados, ao menos teoricamente, na atualidade. Se o
objetivo é conhecer a história, e, com isso fazer dela mestra para a vida, não se deve julgá-la
ou, mais ainda, condená-la, tendo como crivo o que foi criado depois, aliás, também
historicamente. Oliveira Martins, numa das advertências que escreve ao leitor de sua obra,
mostra que a história é, sempre, uma lição de moral:

(...) Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na
nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na sabedoria ou na
loucura dos actos políticos e administrativos passados há um meio de prevenir e
encaminhar a direcção dos actos futuros, A história é, nesse sentido, a grande
mestra da vida. (Martins, 1972, p. 12)

Por ser a história uma grande mestra, ela não pode ser condenada, mesmo que, do
ponto de vista do historiador, esteja repleta de erros:

Se os vícios, os erros, o crime e a loucura predominam, iremos por isso condenar


a história por perniciosa? Não, decerto. Apresentar crua e realmente a verdade é o
melhor modo de educar, se reconhecemos no homem uma fibra íntima de
aspirações ideais e justas, sempre viva, embora mais ou menos obliterada.
Conhecer-se a si próprio foi, desde a mais remota antiguidade, a principal
condição da virtude. (Idem, ibidem, p. 12)

Luís Felipe Barreto, por sua vez, adverte que um dos grandes riscos ao se estudar a
história é proceder a um julgamento discricionário e assim “matar uma vez mais os mortos”.
Quando se propõe a ver a História como Rigor, diferentemente da História da Memória,
Barreto quer mostrar que se deve olhar “o ser do passado como lugar de perspectiva e não de
retrospectiva, significa agora conceder a cada época o seu próprio direito à essência e
também à sua própria perfeição” (Barreto, 1983, p. 10). Tomando por base Febvre e Braudel,
no útimo capítulo de seu livro, Barreto mostra uma vez mais a obrigação do historiador em
não retirar do seu contexto as questões e autores estudados:

L. Febvre dizia muitas vezes para não se matar uma segunda vez o morto e matar
um objeto da história é descontextualizá-lo, retirá-lo das medidas de sua
ambiência epocal, não lê-lo na medida do seu século para utilizar uma expressão
querida a F. Braudel. (Idem, ibidem, p. 262)

A sociedade, como dizia Marx na famosa carta a Annenkov, é produto dos homens, os
quais a constroem sob determinadas condições e não livremente a seu bel-prazer. A história
dos homens é a história de suas sociedades, das formas como se organizaram para produzir e
15

reproduzir a vida. Nessas formas de organização, tudo o que foi feito é produto dos homens,
mesmo conceituado como menos ou mais humano. Como afirma Barzun, o historiador não
pode escolher como humano o que foi feito de melhor e desprezar o restante, pois se assim o
fizer, desprezará a própria história; o “historiador não pode subscrever tal política, sabendo
como ele sabe que crueldade, assassinato e massacre estão entre os mais característicos atos
humanos” (Bazun, 2002, p. 85).

A história da Companhia de Jesus é, também, a história da modernidade e, como


construção humana que é, tem sua primeira explicação no contexto da época, com os
conceitos e preconceitos, valores e desvalores, virtudes e vícios daquele contexto e não do
nosso. Portanto, qualquer julgamento a posteriori que se faça daqueles padres imbuído dos
padrões valorativos da atualidade, é desmantelar a própria história, deixando vazar, por entre
as mãos, uma boa oportunidade de tê-la como professora.

Francisco Rodrigues, no prólogo de sua obra, ao enunciar a forma como vai tratar o
tema da formação intelectual do jesuíta, afirma que sua preocupação é com uma análise isenta
de paixão. As análises apaixonadas traduzem-se ou pela amizade ou pela inimizade excessiva,
pois amor e ódio são apenas duas faces da mesma moeda. Assim como no namoro, a paixão
na história também cega, onde os “amigos não ha quem os acredite porque são amigos, e os
adversarios não deviam acreditar-se porque o são; aquelles, dizem, cega-os o amor, a estes
desnortei-os a desaffeição.” (Rodrigues, 1917, p. IX). Na continuação deste anteparo
metodológico, Rodrigues convoca a deusa da imparcialidade como a melhor guia para a
realização de um trabalho verdadeiramente científico:

Emmudeçam apologistas e accusadores de profissão; não se escutem as vozes


da affeição e do ódio e num seculo em que tanto alardeiam rigores de critica
histórica, seja também o Jesuita julgado com imparcialidade. Examinem-se
friamente as leis que o regem e as acções que practica e por ellas se dê a
sentença”. (Idem, ibidem, p. IX)

René Füllöp Miller é outro autor que, na introdução de sua obra, evidencia uma
postura metodológica de imparcialidade, repudiando a grande maioria da literatura sobre os
jesuítas por considerá-la pouco objetiva e mais disposta a julgá-los:

As obras relativas à Companhia de Jesus contam-se aos milhares; a partir do


nascimento da Ordem até chegar aos nossos dias, tôdas as épocas, quase tôdas
as nações e tôdas as línguas, trouxeram a lume uma copiosa literatura jesuítica.
16

Dentre tôdas essas obras, poucas há, na verdade, cujos autores se houvessem
esforçado por ministrar dados objetivos sobre o assunto, enquanto tôdos os
demais se afanaram já por aviltar e acusar, já por defender e encomiar. (Miller,
1946, p. 09)

Entretanto, Miller apresenta, na continuidade, uma opinião inesperada com relação à


vasta literatura apaixonada existente sobre a Companhia de Jesus. Não se deve repetir o
método de tais livros, adverte Miller, mas não se pode recusá-los como fonte de conhecimento
do próprio tema, na medida em que os relatos, defensivos ou ofensivos, revelam quanto o
jesuitismo tocou os corações humanos, contribuindo até para a dimensão de sua importância
para a história:

(...) Em compensação, uma visão incomparavelmente mais penetrante da


natureza e da significação do jesuitismo, no-la proporcionam todos os panfletos
ressumantes de ódio, as representações caricaturescas e as calúnias da história
da Ordem, bem como as apologias embelezadas, os relatos disfarçados e as
glorificações da mesma: todos êles nos mostram a atitude de homens de carne e
osso em face da idéia jesuítica; êles nos permitem reconhecer quão
profundamente essa idéia influiu sôbre o pensar e o agir de todos os tempos;
permitem reconhecer a que grau de revolta e entusiasmo apaixonados ela impeliu
o espírito humano. (Idem, ibidem, p. 09)

Todos estes alertas metodológicos influenciaram na confecção do trabalho que ora se


apresenta, mesmo ciente que depois da leitura dos livros citados, concluiu-se que nem sempre
os objetivos propostos foram cumpridos, pois realmente a isenção, a imparcialidade e a
objetividade são difíceis de se conseguir em meio a contextos explosivos, como, por exemplo,
o do início do século XX. Entretanto, procurou-se seguir os conselhos destes autores, e se em
algum momento há algum encômio ou crítica isso se deve, utilizando-se das palavras de
Barzun, aos meus próprios preconceitos.

No caso do tema “Companhia de Jesus”, é preciso ter em conta que o século XVI é um
período de fervilhamento de novos acontecimentos, de novos valores, novas religiões, novas
sociedades, enfim, é um século repleto de novidades e, por conseqüência, repleto de lutas
materiais e teóricas. É por ter ciência dessa complexidade que, ainda mais, buscou-se tratar os
jesuítas no seu devido lugar e localizá-los no palco das lutas e ações próprias do período. As
respostas que a Companhia de Jesus deu, os trabalhos que assumiu, a complexidade de sua
organização explicam-se como resultado, principalmente, da Reforma da Igreja e da expansão
do cristianismo por terras de além-mar.

No dia 15 de agosto de 1534 na capela de Montmartre, em Paris, nasceu a Societas


Iesu a partir dos votos de Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Simão Rodrigues, Pedro Fabro,
Diogo Laiñez, Afonso Salmerón e Bobadilla. O primeiro grande projeto da nova ordem
17

religiosa que acabara de ser criada era realizar uma espécie de cruzada moderna, indo até
Jerusalém com o intuito de converter os gentios e infiéis e retomar a cidade santa para a Igreja
Católica. Como a viagem não se realizou, em função da proibição, pelos turcos, de visitas à
Jerusalém, os sete fundadores acrescidos já de outros foram para Roma, onde sujeitaram-se às
ordens do Papa.

O Papa Paulo III autorizou o funcionamento da Companhia de Jesus, no dia 27 de


setembro de 1540, através da bula Regimini militantis Ecclesiae. Em 22 de abril de 1541,
Inácio assumiu, oficialmente, a condução da ordem como seu primeiro Geral. Diferentemente
de quase todas as ordens religiosas de então, os jesuítas determinaram, desde logo, fazer além
dos três votos normais que todos os religiosos fazem – de pobreza, caridade e obediência –,
um quarto voto, de obediência irrestrita ao Papa, colocando-se sob suas ordens.

Os dois principais documentos relativos à fundação da Companhia são as fórmulas


aprovadas em 1540 e confirmadas, com poucas alterações, em 21 de julho de 1550, pela Carta
Apostólica Exposcit debitum, do Papa Júlio III. Nas duas fórmulas aparece o voto de
obediência irrestrita ao Papa, mas na última está mais completa:

(...) Apesar de o Evangelho nos ensinar e de sabermos pela nossa fé ortodoxa e


firmemente acreditarmos que todos os fiéis cristãos estão sujeitos ao Romano
Pontífice, como Cabeça e Vigário de Jesus Cristo, nós, contudo, por maior
devoção à obediência da Sé Apostólica, para maior abnegação das nossas
vontades, e mais certa direção do Espírito Santo, julgamos da maior importância
que cada um de nós e todos os que para o futuro fizerem a mesma profissão,
além daquele vínculo comum dos três votos, com este fim nos liguemos por um
voto especial, pelo qual nos obrigamos a seguir tudo aquilo que o atual e os outros
Romanos Pontífices ao tempo existentes mandarem, para proveito das almas e
propagação da fé. E assim fiquemos obrigados, quanto estiver nossa mão, a ir
sem demora para qualquer região onde nos quiserem mandar, sem qualquer
subterfúgio ou escusa, quer julguem dever enviar-nos para entre os turcos ou
outros infiéis, mesmo que seja para as regiões a que chamam Índias, quer para
entre hereges e cismáticos, quer ainda para junto de quaisquer fiéis.
(Constituições, 1997, pp. 24-25)

Nas Constituições, entretanto, deixa-se claro que a obediência ao Papa refere-se


inteiramente às missões, pois é “neste sentido que devem entender-se as Bulas quando se
trata desta obediência; em tudo aquilo que ordenar o Sumo Pontífice, para onde quer que ele
envie etc.” (Idem, p. 167, [527]2). O fato de os jesuítas se colocarem sob as ordens diretas do
Papa sinaliza que a Companhia de Jesus é uma ordem moderna, no sentido de expressar e
assumir a Reforma da Igreja Católica como uma necessidade a ser enfrentada.
18

A ordem religiosa, criada por Inácio de Loyola e seus companheiros, faz parte de um
movimento interno da Igreja Católica no qual se desenvolveu a idéia da necessidade de uma
reforma interna. Já no século XV, e principalmente nas primeiras décadas do seguinte, a
Igreja romana deparou-se com a diminuição de seu poder frente aos soberanos, viu crescer em
meio ao clero em geral uma vida dissoluta, simoníaca e venal, além de enfrentar o
protestantismo que foi se tornando um forte adversário. Como resultado prático do
movimento reformista foram criadas algumas ordens religiosas, além e antes da Companhia
de Jesus, as quais nasceram com o intuito de revigorar a Igreja naquilo que a estava
enfraquecendo3. A Companhia de Jesus deve ser entendida, portanto, também nesse contexto
mais particular da Reforma da Igreja, o que explica, dentre outros aspectos, a rigorosa
formação de seus futuros padres e a disposição missionária sem precedentes.

Nos documentos oficiais da Companhia, no epistolário, nos sermões e em outras


fontes literárias aparecem, com freqüência, duas máximas que foram plasmando a vida dos
jesuítas: fazer tudo ad majorem Dei gloriam (para a maior glória de Deus) e obedecer perinde
ac cadaver (do mesmo modo como um cadáver). Um instituto religioso numa estrutura
altamente hierarquizada: essa pode ser a síntese, de um ponto de vista absolutamente formal,
da organização jesuítica.

A espinha dorsal deste trabalho foi formada a partir das fontes conseguidas e
estudadas: as Cartas Jesuíticas, as da edição da Edusp/Itatiaia e as reunidas por Serafim Leite
na série Monumenta Brasiliae, além de cartas de Francisco Xavier, Inácio de Loyola,
Mateus Ricci e Luís Fróis; as Constituições da Companhia de Jesus; os Exercícios
Espirituais, de Loyola; e o Ratio Studiorum. Outras fontes poderiam ter sido estudadas, no
entanto, pelo tempo e pelas dificuldades e inexperiência em localizá-las, não foi possível fazer
uso delas4; entretanto, o material que se conseguiu reunir – além das fontes, uma rica
bibliografia – possibilitou a confecção do trabalho abrindo horizonte, o que é mais importante,
para a continuidade da pesquisa neste tema.

2
Em todo o texto da tese, toda vez que for citada as Constituições da Companhia de Jesus além da página
correspondente à edição brasileira de 1997, também se colocará entre colchetes o parágrafo correspondente
para facilitar eventuais consultas.
3
Foram criadas, dentre outras, as seguintes ordens religiosas: Ordem dos Capuchinos, ou Irmãos Menores
Capuxinhos (1528); Ordem dos Teatinos (1524); Ordem dos Barnabitas e Ordem dos Somascos criadas na
primeira metade do século XVI.
4
O leitor mais acostumado com o tema com certeza dará falta de, pelo menos, duas fontes importantes que
contribuiriam com o desenvolvimento do tema, particularmente do padroado no Oriente; são elas:
Documentação para a história das missões do padroado português no Oriente, organizado por Antonio da
Silva Rego, e a Monumenta Indica.
19

A delimitação cronológica do trabalho é resultado da opção por duas datas importantes


na história da Companhia de Jesus em sua relação com Portugal. Em 1540 os primeiros
jesuítas – Simão Rodrigues e Francisco Xavier – chegam em Lisboa, atendendo a um pedido
de D. João III, resultando na fundação da primeira província jesuíta no mundo, em Portugal, e
inaugurando o Padroado português sob a bandeira jesuítica. Em 1599 vem à luz, como
documento oficial e força de lei interna na Companhia, o famoso Ratio Studiorum, depois de
aproximadamente 50 anos de experiências e de idas e vindas nas províncias e colégios
jesuíticos no mundo todo. Apesar de só se tornar lei em 1599, o espírito do Ratio,
corporificado em uma educação rigorosa, escolástica e técnica, formou os jesuítas em geral
desde a fundação dos primeiros colégios.

A delimitação espacial é consoante aos objetivos do grupo de pesquisa mencionado,


na medida em que estudar o Império português no século XVI é estudar também o nascimento
oficial do Brasil, principalmente a partir do estabelecimento de um projeto colonial para as
terras brasileiras, projeto este que fazia parte, pelo menos no início, do processo de expansão
comercial e militar português. Nesse sentido, julgou-se necessário estudar a atuação dos
jesuítas também no Oriente.

A relação entre Portugal e a Companhia de Jesus era íntima no que se refere ao


empreendimento comercial e colonial, uma vez que junto com a espada da coroa carregada
pelos fidalgos, marinheiros e capitães portugueses ia a cruz da Igreja levada pelos padres,
fundamentalmente, os jesuítas. Onde a Coroa chegou para comerciar, traficar, rapinar,
dominar, colonizar, a Companhia chegou para pregar, converter, catequizar, organizar,
aculturar. A espada e a cruz eram dois lados da mesma moeda na sociedade portuguesa do
século XVI; o orbis christianus era a forma de ser religiosa e social, sendo que os jesuítas
foram verdadeiros militantes dessa empresa tida como santa.

Assim, o principal objetivo da pesquisa bem como sua hipótese foram apreender a
racionalidade jesuítica em terras portuguesas e mostrar, se possível, que a forma de ser e de se
organizar da Companhia de Jesus expressava uma racionalidade mercantil própria do processo
de expansão portuguesa do século XVI. Para dar conta destas questões organizou-se este
trabalho em três partes, cada qual com seus capítulos correspondentes.

Na primeira parte a preocupação foi apresentar a próspera relação da Companhia de


Jesus com Portugal, mostrando os primeiros contatos, as primeiras atividades, os primeiros
20

estabelecimentos e o crescimento formidável que a Societas Iesu teve em terras lusitanas,


destacando a atuação no Padroado Português e finalizando com o contexto expansionista e
cultural de Portugal. Para tanto, dividiu-se esta parte numa introdução e em dois capítulos. Na
introdução apresenta-se o início da presença dos jesuítas em Portugal, destacando
genericamente as primeiras atividades – relacionadas à educação, às missões e como
confessores dos reis e príncipes.

O capítulo 1 versa sobre o Padroado português sob a bandeira jesuítica, subdividido


em quatro partes: o Padroado em geral, o Padroado no Oriente, no Brasil e a relação das
províncias jesuíticas de Portugal e do Brasil na lógica do Padroado. Para o Oriente, utilizou-se
mais dos testemunhos de Xavier e para Brasil das cartas dos vários jesuítas que aqui atuaram.

O capítulo 2 é sobre a construção do Império Português, destacando o processo de


expansão comercial e política-militar sobre as Índias, a cultura e a religiosidade em Portugal
e, finalmente, a colonização do Brasil como projeto expansionista de ocupação. Na parte
sobre a cultura e religiosidade, a preocupação foi mostrar que se por um lado os portugueses
faziam a opção pelos novos valores sociais ligados à riqueza através da expansão, por outro,
Portugal foi o terreno, fora de Roma, onde o movimento reformista tomou tal corpo que
praticamente o solo lusitano se tornou refratário à onda protestante.

A segunda parte mostra a racionalidade jesuítica a partir da formação dos futuros


padres. Com apenas um capítulo, o terceiro, a opção foi mostrar, distribuídos em três sub-
títulos, que os padres eram formados como instrumentos, competentes, da Reforma da Igreja;
que sua formação era rigorosa, escolástica e técnica, pois visava também a atuação futura
deles como missionários; e a formação da espiritualidade jesuítica tendo como base teológica
a doutrina do livre-arbítrio. Destaca-se nesta parte do trabalho que a educação dos futuros
padres da Companhia de Jesus era mais ideal do que real, na medida em que era baseada no
plano de estudos do Ratio Studiorum, mas que, por isso mesmo, apresentava ao mesmo tempo
que uma necessidade, uma forma de pensar e de se relacionar com o mundo. Em síntese, os
jesuítas eram preparados para desenvolver suas atividades em meio ao mundo, principalmente
nas missões, no caso português, e não fora dele, vivendo isoladamente num mosteiro.

Na terceira e última parte é apresentada uma compreensão da racionalidade jesuítica


como uma espécie de instrumento concreto a guiar a vida, o que se chamou de racionalidade
institucionalizada. Composta por três capítulos, esta parte procurou mostrar como a
21

Companhia de Jesus foi se construindo e, ao fazê-lo, algumas características foram tomando


corpo e se destacando no todo; são estas características que foram traduzidas em conceitos
aglutinadores, porém, não estanques.

No capítulo 4 apresenta-se a adaptação como estratégia desenvolvida para as missões.


Mais de forma do que de conteúdo, os jesuítas, principalmente no Oriente – e um pouco no
Brasil – concluíram que deveriam adaptar-se aos costumes dos povos onde se encontravam
objetivando facilitar, abreviar o caminho da evangelização. Assim, Xavier e Mateus Ricci são
exemplos perfeitos deste tipo de atuação, elevando a necessidade de adaptação ao corpo
doutrinário da Companhia. Uma tese foi afirmada neste ponto do trabalho: quanto mais forte a
presença política e militar de Portugal menor a necessidade de adaptação – como foi o caso do
Brasil –, e quanto mais fraca ou praticamente inexistente a força da Coroa portuguesa, maior a
necessidade de adaptação.

O capítulo 5 apresenta a organização da Companhia de Jesus como uma das formas da


sua própria racionalidade. A união interna, a obediência, o epistolário e a base material para
as missões formam este capítulo que procurou evidenciar, através destas características, as
determinações que fizeram dos jesuítas uma organização fortemente estabelecida,
hierarquicamente determinada e materialmente preparada. Foi dado um destaque especial ao
epistolário jesuítico como uma rede de comunicações intencionalmente montada que garantia
que as notícias fossem distribuídas para todas as províncias estabelecendo, de certa forma,
tanto a troca de idéias como o controle por parte dos superiores.

Finalmente, no sexto e último capítulo, apresentou-se a educação jesuítica como


fazendo parte desta racionalidade institucionalizada. Dividido em dois momentos, a educação
foi apresentada através dos colégios e do Ratio Studiorum. O colégio como meio ideal de
propagação da cultura ocidental-cristã, na medida em que além de ser um estabelecimento de
ensino era também o centro administrativo dos jesuítas, tendo sob suas ordens e proteção as
casas, fazendas e reduções; e nessa condição, era o centro irradiador da cultura quinhentista
corte portuguesa. O Ratio foi apresentado como o plano de estudos para todos os colégios e
universidades da Companhia, portanto, como base da formação tanto dos estudantes internos
como externos.

A sociedade religiosa criada por Loyola e seus companheiros não nasceu pronta, no
sentido de que todas as características que lhes são próprias foram forjadas já desde o seu
22

nascimento. O que se insiste ao longo do trabalho é que a racionalidade jesuítica foi sendo
construída, foi sendo formada aos poucos, assim como a Companhia como um todo. De um
projeto cruzadístico e, nesse sentido francamente medieval, ela assumiu trabalhos e funções
que fizeram dela uma ordem religiosa em movimento, em construção, pelo menos no século
XVI.

Duas palavras antes de passar para o corpo do trabalho. O conceito de racionalidade


utilizado aqui é mais prático do que teórico, se assim for possível dizê-lo. Há um
distanciamento proposital do conceito de racionalidade como equivalente aos fundamentos
filosóficos ou teológicos ou mesmo científicos, e uma aproximação do entendimento da
racionalidade como algo mais palpável e concreto, tal qual um instrumento ou mesmo a forma
de ser de, no caso, a Companhia de Jesus. Bem ou mal, vários são os autores que intentaram
descortinar quais as bases teórico-históricas dos jesuítas e julgou-se inoportuno, pelo menos
no momento, traçar esse caminho trilhado já por muitos. Trabalhar, entretanto, com uma
racionalidade que se concretiza, realiza-se em características do modo de ser da Companhia é,
ao que parece menos discutido na academia. Basicamente, o que se entende por racionalidade
neste trabalho é a forma e o conteúdo que a Companhia encontrou para formar seus futuros
padres e irmãos somando-se às características construídas e sistematizadas da sua presença
nas missões.

O conceito de educação trabalhado aqui é amplo e relaciona-se mais à forma de ser de


uma sociedade, de uma cultura, do que propriamente, ao saber escolar. A educação que é
mostrada ao longo deste trabalho vai além dos meios, formas e conteúdos que envolve a
relação professor e aluno. Mesmo incluindo a educação escolar, quando se afirma que a
Companhia de Jesus foi, antes de tudo, educadora, se quer dizer que seu objetivo era formar
nos homens em geral e nos gentios em particular uma mentalidade religiosa cristã, uma
cultura própria da sociedade ocidental européia, cultura e religião tidas como verdadeiras. A
educação, portanto, resume o que os homens fazem para se reproduzir, tanto intelectual como
moralmente, em meio a um contexto definido.
PARTE I

OS JESUÍTAS EM PORTUGAL
25

Introdução

O começ o de uma próspera relação

A próspera e duradoura relação entre a Companhia de Jesus e o reino de Portugal teve


início em 1538 e o primeiro documento existente ainda hoje a registrar tal fato é uma carta
escrita em Paris no dia 27 de fevereiro daquele ano. Antes, portanto, da fundação oficial da
Companhia de Jesus, ocorrida em 27 de setembro de 1540, se encontram o instituto religiosos
e a sociedade que se tornam poderosos no século XVI.

A carta de 27 de fevereiro, escrita por Diogo da Gouveia1 a D. João III, Rei de


Portugal (1521-1557)2, trata de vários assuntos, dentre os quais o Rei é informado acerca dos
contatos com os padres renovados, os fundadores da Companhia de Jesus. Na parte da carta
que trata deste assunto, está claro que o Rei queria ter os novos padres trabalhando em
Portugal e nos seus domínios orientais:

Por amor de Nosso Senhor que spreva ao consul da nossa naçam, que está em
Veneza, e a quem por V. A. faz os negócios em Roma [D. Pedro de
3
Mascarenhas ] que lhe falle, porque vendo elles carta de V. A. tanto mais se

1
“Diogo de Gouveia foi Teólogo e Professor. Nasceu em Beja, cerca de 1471 e faleceu em Lisboa, em 1557.
Estudou na universidade de Paris, foi provavelmente bolseiro de D. Manuel I, doutorou-se em Teologia, em
1510. (...) Cerca de 1520, Diogo de Gouveia arrenda o Colégio de Santa Bárbara e em 1527 obtém de D.
João III a criação de bolsas de estudo, o que atrairá muito estudantes para Paris. Sob a sua direcção, o
Colégio de Santa Bárbara tornou-se um dos mais importantes de Paris, atraindo estudantes portugueses e
estrangeiros, como Inácio de Loiola. Diogo de Gouveia foi também Reitor da Universidade de Paris. (...) Foi
ele quem, desde 1538, recomenda com insistência a D. João III os primeiros componentes da futura
Companhia de Jesus, que deveriam ser utilizados como missionários. Católico intransigente, defensor da
escolástica, o seu zelo critica todos os movimentos reformistas, quer se trate de Erasmo ou de Lutero. Em
Ruão fez parte do tribunal que condenou um certo número de luteranos”.
(http://www.terravista.pt/enseada/5147/diogo.html)
2
D. João III, filho de D. Manuel I e avô de D. Sebastião. No decorrer do seu governo à frente da Coroa
portuguesa teve início a colonização do Brasil e o Padroado sob a bandeira jesuítica. Como boa parte da tese
versa sobre o período joanino, outras informações a respeito dele serão incorporadas ao longo do texto.
3
D. Pedro de Mascarenhas nasceu em Palma, Portugal, em 1483 e faleceu em Goa em 1555. Sendo homem de
governo e da confiança da coroa e, ainda, dotado de habilidades diplomáticas foi nomeado embaixador de D.
João III junto à corte do poderoso Carlos V, mas “a embaixada de maiores conseqüências foi a da Santa Sé,
onde chegou em meados de 1538. (...) D. Pedro tomou a S. Inácio por confessor, o que vem a dizer que
ficaram amigos. E D. Pedro o foi sempre e também da Companhia de cujos negócios tratou como se fora dela.
26

moveram. Sprevendo ao Mestre Simam Rodriguez e à Mestre Pedro Fabro e ao


Ignigo abastará, porque estes 3 moveram os outros. Isto nom he cousa pera se
poer em trespasso [deixar para depois], porque se elles podem este ano passar
[para Jerusalém], parece-me que o faram. Eu lhes sprevi já e antre as outras
cousas lhe dizia como a lingoa na India era muito facil d’aprender e os corações
más benignos e nom tam emperrados como os dos mouros. Nom quero disto mais
dizer a V. A. por conhecer o desejo que disto tem, que he muito maior do que eu
4
saberei pintar nem persuadir. (In: Leite, 1956, pp. 95-96)

Serafim Leite, organizador da série Monumenta Brasiliae, a qual integra a vasta


Monumenta Historica Societatis Iesu5, informa que a carta acima não é o primeiro
documento da aproximação da Coroa portuguesa com a Companhia de Jesus; mas,
infelizmente, cartas anteriores foram perdidas. Daquelas cartas que Leite conseguiu reunir no
volume primeiro mais duas são dignas de nota, pois mostram o processo, inclusive
diplomático, de estreitamento dos laços entre o Rei e a Companhia.

Em 04 de agosto de 1539, um ano e meio após a carta de Gouveia, o Rei D. João III
escreveu a Pedro de Mascarenhas para que ele entrasse em contato com os padres tão
elogiados por Gouveia e constatasse a veracidade das informações e, no caso de não encontrar
óbices, falar com o Papa Paulo III (1534-1549) pedindo permissão6 para que aqueles padres
servissem ao Rei português como missionários nas Índias. Na carta fica claro que a empresa
comercial/colonial portuguesa nas Índias era, segundo o Rei, acima de tudo uma empresa
religiosa, isto é, de propagação da religião católica pelo mundo dos gentios e infiéis;
inicialmente era para esta tarefa que o Rei precisava dos jesuítas:

Porque o principal intento, como sabeys, asy meu como d’El-Rey meu senhor e
padre, que santa glória aja, na impresa da India e em todas as outras conquistas
que eu tenho, e se sempre manteveram com tantos perigos e trabalhos e
despesas, foy sempre o acrecentamento de nossa santa fé catholica, e por este se
sofre tudo de tam boa vontade, eu sempre trabalhey por haver letrados e homens
de bem em todas as partes que senhoreo, que principalmente facão este officio,

Voltou para Portugal em 1540, levando em sua companhia S. Francisco Xavier”. Em 1554 foi nomeado Vice-
Rei da Índia. (LEITE, 1956, pp. 33-34 da introdução geral)
4
Com relação às citações, principalmente da Monumenta Brasiliae, optou-se aqui por não fazer qualquer
atualização para a português moderno e nem possíveis correções gramaticais de acordo com a moderna
ortografia. As citações são sempre literais.
5
A Monumenta Histórica Societatis Iesu é uma coleção de 155 volumes que traz leis, documentos, cartas,
sermões, biografias e outros tipos de textos reunidos ao longo da história da Companhia de Jesus. Apenas para
se ter uma vaga idéia de como esta impressionante coleção se organiza, vejamos alguns exemplos: Cartas,
Instruções, obras, fontes narrativas e fontes documentais de S. Inácio de Loyola, 19 volumes; Constituições e
Regras da Companhia, 04 volumes; cartas e obras dos jesuítas Fabro, Salmerón, Bobadilha, Ribadaneira,
Polanco, Nadal e outros jesuítas do século XVI, 09 volumes; Monumenta Paedagogica 07 volumes; 08
volumes da Monumenta Peruana; M. Brasiliae, 05 volumes; 18 volmes da Documenta Indica; M. H. Japoniae,
03 volumes; M. Proximi Orientis, 06 volumes; e 01 volume da M. Sinica (Chinesa).
6
Como visto na Introdução, os jesuítas decidiram por fazer um quarto voto de obediência direta e irrestrita ao
Papa, se colocando diretamente sob suas ordens.
27

asy de pregação como de todo outro ensino necessario aos que novamente se
convertem à fee. E graças a Nosso Senhor, ategora he nisto tanto aproveitado, e
vay o bem em tanto crecimento, que, asy como me he muy craro sinal que a obra
he aceita a Nosso Senhor, sem cuja graça espicial seria impossível fazer-se
tamanho fruto, asy me parece que me obriga a nam somente a continuar com todo
cuydado, mas ainda, asy como acrecentar no numero dos obreiros. (In: Leite,
1956, p. 102)

Em reposta à missão para a qual el-Rei o designou, Pedro de Mascarenhas enviou uma
carta em 10 de março de 1540, noticiando que havia se certificado que as informações de
Gouveia eram verídicas – “e por achar nelles todallas calidades, que comvem ao efeicto pera
que os Vossa Alteza quer, lhe faley logo de sua parte” (in: Leite, 1956, pp. 105-106) – e já
havia, também, entrado em contato com o Papa, o qual “louvou muyto a temção de Vossa
Alteza” (p. 106), permitindo a ida dos “padres reformados” para Portugal com a condição de
que Mascarenhas os convencesse e, se assim o fizesse, a ida deles seria como que uma ordem
papal. Com o sucesso da empreitada, os primeiros padres destacados para irem para a corte
lusitana foram Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha, mas por problemas de saúde de
Bobadilha, Francisco Xavier foi em seu lugar.

No dia 17 de abril de 1540 Simão Rodrigues chegou em Lisboa, seu companheiro


Francisco Xavier só chegou em fins de junho do mesmo ano, acompanhado por Pedro
Mascarenhas. Numa carta de 23 de julho, poucos dias após chegar em terras lusitanas, Xavier
escreve para Loyola e Bobadilha informando da boa chegada e que os portugueses em geral e
o Rei e a rainha em particular pedem para que a Companhia edifique uma casa em Portugal.
Na carta transparece a confiança que Xavier e Simão Rodrigues depositavam na Coroa
portuguesa:

É muito para maravilhar e para dar muitas graças a Nosso Senhor ver quão zeloso
é da glória de Deus Nosso Senhor o Rei e quão afeiçoado é a tudo o que é
piedoso e bom. Todos os da Companhia lhe devemos muito pela boa vontade que
nos dedica, tanto aos daí como aos daqui. Disse-me o Embaixador, que falou com
o Rei depois da nossa entrevista, ter-lhe informado o Rei seu senhor que gostaria
muito receber-nos aqui todos os da Companhia, embora isso lhe custasse parte
de seus haveres. (In: Cardoso, 1996, p. 28)

A julgar pelo conteúdo das cartas, e ajudado pela historiografia, pode-se afirmar que
houve empatia entre as pessoas da corte portuguesa e os padres reformados, tanto que o
objetivo primeiro ao convidá-los para irem a Portugal, que era serem missionários nas Índias,
estava sendo deixado de lado. Numa carta de Simão Rodrigues para Loyola e Codazzo, de
1540, é mostrado que, apesar da insistência dos padres em ir para as missões, o Rei ordenava
que eles ficassem no reino, com a justificativa de que muita coisa eles poderiam fazer, dentre
28

elas, acompanhar os presos dos tribunais da Inquisição e evangelizar os cristãos-novos7. O


resultado desse dilema foi a negociação feita diretamente por Inácio de Loyola de que Simão
Rodrigues permanecesse em Portugal e Francisco Xavier fosse para as Índias.

Antes, porém, de Xavier conseguir autorização real para ir para às Índias, destino que
é sempre reafirmado como prioritário para a Companhia, ele e Simão Rodrigues organizam o
instituto jesuítico em Portugal, inclusive já agregando novos membros. Conseqüentemente, as
atividades da Companhia vão se desenvolvendo sob os auspícios reais na direção da
permanência dela em terras lusitanas. Numa outra carta de Xavier para Codazzo e Loyola,
datada de 22 de outubro, ainda de 1540, depois de informar dos trabalhos desenvolvidos junto
à corte para conseguirem autorização para viajar para o Oriente e também dos novos jesuítas
que entraram na Companhia, ele solicita uma decisão acerca da conveniência de se abrir um
colégio dirigido por eles junto à Universidade de Coimbra:

Faça-nos saber o que nós podemos fazer aqui por aqueles que foram e por
aqueles que vão estudar em Paris, da mesma forma que a resposta às cartas que
nós escrevemos concernente a Estrada, ou que se refere à fundação de uma
Casa de estudantes na Universidade de Coimbra, porque aqui, nós contamos com
8
muito apoio e autoridade para realizar as obras pias. (...) (Xavier, 1987, p. 63)

Esta carta documenta o início de uma atividade que vai ser tão extensiva quanto a
missionária na vida da Companhia de Jesus: a educação, através dos inúmeros colégios e
seminários dirigidos por ela. A definição de se construir a Maison d’étudiantes junto à
universidade cunimbricense foi tomada por D. João III, como informa o próprio Xavier em
carta a Loyola e João Codure, de 18 de março de 1541. Não apenas o colégio, mas ainda uma
casa para os padres reformados será construída “neste verão”, informa Xavier. É a primeira
casa que os padres da Companhia de Jesus terão fora de Roma.

7
Os cristãos-novos foram os principais alvos do Tribunal da Inquisição em Portugal, o qual foi instituído em 23
de maio de 1536, através da bula Cum ad nihil magis, expedida por Paulo III, mas que foi montado nos
moldes da Inquisição Espanhola somente em 1547, dando autonomia quase plena à Coroa portuguesa na
condução dos processos inquisitoriais. Herculano (História da origem e estabelecimento da Inquisição em
Portugal) e Kayserling (História dos judeus em Portugal) mostram que D. João III não permitia que os
cristãos-novos deixassem o país, apesar de ser esta a grande queixa deles, pois não queria que a riqueza da
qual eram eles portadores, por serem em sua grande maioria grandes comerciantes, saísse de Portugal.
Também é digno de interesse o estudo de Francisco Bethencourt, História da Inquisição.
8
“Faites-nous savoir ce que nous pouvons faire ici por ceux que sont partis et pour ceux qui vont partir étudier
à Paris, ainsi que la réponse aux lettres que nous avons écrites pour ce qui concerne Estrada, ou pour ce qui
touche à la fondation d’une Maison d’étudiantes à l’université de Coïmbre, car ici, nous joissons de beaucoup
d’appuis et d’autorité pour accomplir des oeuvres pies. (...)”. São várias as passagens ao longo da tese que
foram retiradas da edição francesa das cartas e escritos de Francisco Xavier, organizada por Hugues Didier. A
tradução para o português é livre e de minha inteira responsabilidade. Em razão disso, optei por apresentar
sempre o original em francês como nota de rodapé.
29

A primeira casa própria em Portugal é, também, a primeira casa que a Companhia teve
no mundo todo. António Lopes, em seu artigo D. João III e Inácio de Loyola (1992, A),
informa que a casa de Santo Antão-o-Velho, em Lisboa, foi doada pelo Rei aos jesuítas em 05
de janeiro de 1542, sendo que, por exemplo, em Roma, onde estavam os seus dirigentes, a
Companhia só teve casa própria em 1544. Lopes informa também que no mesmo ano de 1542,
em 09 de junho, Simão Rodrigues se dirige para Coimbra, já então contando com doze
companheiros, onde abrem a primeira casa de formação nas proximidades da Universidade de
Coimbra, onde os futuros padres jesuítas teriam seus estudos também. A casa de Coimbra foi
a primeira instituição de formação jesuítica no mundo.

A respeito da ida dos jesuítas para Coimbra em 1542, António José Teixeira, em
Documentos para a história dos Jesuítas em Portugal, apresenta uma carta do Rei para o
chanceler da Universidade de Coimbra solicitando que os jesuítas fossem bem recebidos e
acomodados enquanto não tivessem casa própria. Este documento mostra o primeiro contato
dos padres da Companhia de Jesus com a Universidade que vai ser a grande formadora,
juntamente com o Real Colégio das Artes, também de Coimbra, dos missionários nas Índias,
no Oriente, na África e no Brasil.

Prior cancellario. Eu el-rei vos envio muito saudar. Mestre Simão vae a essa
cidade com doze de sua companhia, para os deixar aprendendo nessa
Universidade, como vos elle dirá. Encommendo-vos muito que lhe deis, e façaes
dar toda ajuda, e favor que lhe cumprir para os pôr em ordem de seu ensino, e
doutrina. E porque póde ser que elles não achem logo casas em que se
agasalhem; receberei prazer em que os mandeis agasalhar em algumas casas de
vossa hospedaria, ou em quaesquer outras desse mosteiro, emquanto assim não
acharem outras, porque além de assim ser serviço de Nosso Senhor, e que vós
por esse respeito folgareis fazer, eu receberei nisso muito contentamento, e vol-o
agradecerei muito. Manuel da Costa a fez em Lisboa a 5 dias de junho do anno de
1542. – REI. (In: Teixeira, 1899, p. 120)

Em Coimbra se concentrou, pelo menos nas décadas iniciais do estabelecimento dos


jesuítas em Portugal, as principais atividades educacionais, pois lá eram formados e
preparados a grande maioria dos missionários de além-mar. A Universidade de Coimbra não
era administrada por eles, no entanto, dirigiram, a partir de 10 de setembro de 1555, o Real
Colégio das Artes9, que era responsável pela chamadas Faculdades Menores, ou seja,
Filosofia e Humanidades, integrando a grande universidade.

9
O termo Colégio ao longo do trabalho é utilizado nos dois sentidos que lhe devem ser atribuídos: no primeiro, e
é esse o caso do Colégio das Artes, significa Faculdades ligadas diretamente à universidade, como, por
exemplo, as Écoles da Universidade de Paris, ou os Colleges da Universidade de Oxford. O outro sentido é o
que usa, por exemplo, no Brasil, como estudos propedêuticos não ligados diretamente à universidade.
30

O Real Colégio das Artes de Coimbra foi criado por D. João III em 1547 para servir de
base cultural e intelectual da universidade portuguesa que foi transferida de Lisboa para
Coimbra em 1537. Dirigido por professores franceses, com forte cunho humanista, o Colégio
foi entregue para a Companhia e se tornou um espaço cultural, intelectual e político muito
marcante na vida social portuguesa. Antes, porém, do Colégio das Artes, a Companhia de
Jesus já tinha sob sua direção outros três colégios: Colégio de Jesus, também em Coimbra, a
partir de 1542; o Colégio do Espírito Santo de Lisboa, em Évora10, a partir de 1551; e o
Colégio de Santo Antão de Lisboa, a partir de 1553. Teixeira apresenta a carta, de 10 de
setembro, de D. João III a Diogo de Teive, então Reitor do Colégio, o qual é informado da
decisão de passar aquele instituto para a direção dos jesuítas:

Doutor Diogo de Teive, eu el-rei vos envio muito saudar. Mando-vos que
entregueis esse collegio das Artes, e governo delle, inteiramente ao padre Diogo
Mirão, provincial da companhia de Jesus, o qual lhe assim entregareis do primeiro
dia do mez de outubro, que vem, deste anno presente de 1555, em deante,
porque assim o hei por bem e meu serviço, como vos já tenho escrito; (...). (In:
Teixeira, 1899, pp. 180-181)

Paralelo à edificação de casa e desenvolvimento da atividade educacional nos


primeiros anos, coube aos jesuítas cumprir o primeiro objetivo que tanto el Rei como os
próprios pretendiam quando se iniciaram as relações com Portugal: as missões nas Indias.
Francisco Xavier consegue autorização real para viajar, sob a proteção e com a delegação
reais também, para Goa, a primeira grande “capital” portuguesa em mares índicos. A viagem
aconteceu de 07 de abril de 1541 a 06 de maio de 1542, quando “geralmente não se costuma
empregar senão seis meses” (In: Cardoso, 1996, p. 31).

A carta de 20 de setembro de 1542, de Xavier para os companheiros de Roma, parece


ser o primeiro documento de um padre jesuíta nas terras de missões no além-mar. É o
documento que registra o início da atividade religiosa que mais rendeu fama histórica à
Companhia de Jesus, pois eles chegaram, evangelizaram, educaram, enfim, missionaram
desde o Extremo-Oriente passando pelas chamadas Índias, indo para a África Ocidental e
chegando ao Ocidente, em terras brasileiras. Depois da educação, o trabalho nas missões foi a
grande atividade desenvolvida pelos jesuítas.

Na carta citada acima, Xavier, depois de fazer uma avaliação da viagem e do que
encontrou em Goa, tanto dos costumes dos gentios como dos portugueses que residiam e

10
O Colégio do Espírito Santo foi elevado à categoria de Universidade de Évora em 1559, continuando sob a
direção da Companhia de Jesus.
31

comerciavam por lá, apresenta uma espécie de definição do que deveria ser o missionário e
como ele deveria encarar aquele tipo especial de serviço a Deus. Note-se que no trecho
escolhido da carta aparece algo que vai servir de edificação e consolação constantes para os
missionários jesuítas: o martírio como a melhor forma de morrer por seus ideais.

Os sofrimentos de tão longa navegação, cuidado de muitas enfermidades


espirituais (não lhe bastando as próprias suas), a morada em terra tão sujeita a
pecados de idolatria e tão difícil de habitar pelos grandes calores, se se tomarem
por amor de quem se devem tomar, tornam-se grandes alívios e matérias para
muitas e grandes consolações. Creio que os amantes da cruz de Cristo Nosso
Senhor descansam vindos para estes trabalhos, e morrem quando fogem deles ou
se acham fora deles. Que morte é tão grande viver, deixando a Cristo, depois de
tê-lo conhecido, para seguir suas próprias opiniões e afeições! Não há aflição igual
a esta. E pelo contrário, que descanso viver morrendo cada dia, por ir contra
nosso próprio querer, buscando não os próprios interesses mas os de Jesus
Cristo!. (In: Cardoso, 1996, pp. 36-37)

Uma outra atividade desenvolvida pelos padres jesuítas em Portugal foi a de


confessores de reis11. Esta atividade pelo que aparece nos documentos não foi muito bem
aceita, de início, pelos jesuítas em Portugal, sendo necessário a deliberação direta do Geral
Loyola. António Lopes, agora no artigo Gratidão de Inácio de Loyola para com D. João
III, apresenta a discussão acerca da aceitação ou não de encargo de tão grande
responsabilidade e da decisão de Loyola comunicada aos subordinados em Portugal:

Surgiu a primeira ocasião quando D. João III pediu um confessor jesuíta. Depois
de Simão Rodrigues ter deixado o provincialato o rei pediu aos padres Mirão e
Gonçalves da Câmara para serem seus confessores. Estes logo consideraram
este encargo como contrário ao Instituto da Companhia. Inácio, contudo, a 1 de
Fevereiro de 1553, responde-lhes que deviam aceitar em virtude de 3 razões: a
primeira porque é próprio do Instituto da Companhia administrar os sacramentos a
qualquer pessoa de qualquer estado; a segunda, porque devemos tudo a S.A. e
que não existe nenhum outro príncipe cristão, a quem tanto devamos; e a última é
por causa do bem mais universal e do maior serviço, pois do bem que se fizer à
cabeça participarão todos os membros. E termina, ordenando-lhes que aceitem,
em virtude da Santa Obediência. (Lopes, 1992, B, p. 186)

Loyola percebe que não se tratava simplesmente de uma atividade sobre a qual se
poderia eximir de responsabilidade, pois era nada menos que o grande protetor da Companhia
a fazer o pedido, ou, uma ordem, na verdade. Loyola mostra que não era apenas uma questão
de obedecer a vontade real, mas o fazê-lo por razões de agradecimento, de obediência ao
Geral e, acima de tudo, um meio para assegurar o patrocínio real às atividades da Companhia,
tanto no reino como no império lusitano.

11
A função de confessores de reis não se restringiu a Portugal. Para conferir mais sobre o assunto ver Lacouture,
Os Jesuítas, v. I, capítulo XII, e Miller, Os Jesuítas, seus segredos e seu poder, sexta parte.
32

Nos poucos anos de vida da Companhia de Jesus em Portugal três são, basicamente, as
atividades desenvolvidas tanto no reino como no império colonial/comercial: a educação da
juventude, as missões no além-mar e a confissão dos soberanos. Cada atividade tem suas
peculiaridades e seus desdobramentos. O encargo de tais funções não foi premeditado nem
pelos jesuítas em Portugal, nem pelos de Roma; foram atividades que foram sendo
incrementadas e implementadas por eles em atendimento a circunstâncias e perfazendo, com o
tempo, a feição própria que a Societas Iesu vai ter.

O rápido e sólido desenvolvimento da Companhia em Portugal, já nos primeiros anos,


deve ser creditado, sem dúvida alguma, à boa relação dos seus padres com o Rei D. João III.
Loyola tinha tanta clareza das suas obrigações para com o Soberano lusitano que mais de uma
vez lembrava seus subordinados da necessidade de lhe ser sempre grato. Por exemplo, numa
carta a mestre Simão Rodrigues, de 18 de março de 1542, Loyola escreve acerca da difícil
situação envolvendo dois grandes benfeitores da Companhia: o Papa Paulo III e o Rei D. João
III, que estavam com relações diplomáticas rompidas por causa da púrpura cardinalícia que
fora dado pelo Papa a um bispo português desafeto do Rei12, e isso por conta do processo
demorado que foi a autorização de Roma para o funcionamento do Tribunal da Inquisição em
terras lusitanas. Tal situação exigia que os jesuítas não tomassem abertamente partido de
nenhum dos lados, mas, também, não podiam eximir-se de tentar ajudar na situação buscando
a paz entre os dois soberanos. A ambos, portanto, deviam os jesuítas agradecer
continuadamente. Ao Papa:

Por isso pensei em recordar-vos como, logo após nossa entrada em Roma, fomos
favorecidos pelo Papa em muitas ocasiões inteiramente e continuamente,
recebendo graças especiais de Sua Santidade(...). (In: Cardoso, 1993, p. 24)

Ao Rei:

Por outro lado, como nos consta em toda a Companhia e a vós, entre todos, de
maneira mais manifesta, por estardes presente, quanto somos obrigados ao rei,
senhor vosso e nosso, no Senhor Nosso. (...)
Terceiro: depois de vossa chegada, estais melhor informados que todos os outros,
embora nada nos fique escondido também a nós. Tratou-vos com tanta afeição e
amor, até com ajudas materiais, o que não sucede com outros príncipes.
Ofereceu-se da abundância do seu coração, pela muita afeição que vos dedica, a
fundar um Colégio e edificar algumas casas para esta Companhia tão indigníssima
diante de nosso Criador e Senhor no céu e de tal príncipe na terra. (Idem, ibidem,
pp. 24-25)

12
O bispo era D. Miguel da Silva. Sobre este personagem da história portuguesa e sobre o demorado processo de
instauração da Inquisição em Portugal, ver Herculano e a sua já citada obra.
33

Em uma outra carta, agora de 14 de junho de 1553, mais de dez anos após a anterior,
Loyola escrevendo a todos os superiores – provinciais, vice-provinciais, reitores etc. - da
Companhia, pede que cada sacerdote jesuíta tenha “memoria de Su Alteza [D. João III], junto
con la serenísima Reyna, y Principe y Princesa sus hijos”, pois deve-se reconhecer a ajuda
que a Companhia recebeu desse Soberano, “com cuyo favor y mui liberal ayuda se començó a
fundar y se derramó em tantas partes nuestra Compañía, com mucho fruto del divino serviçio
y spiritual ayuda de las animas.” (In: Leite, 1956, pp. 488-489).

A relação entre o Rei e a Companhia de Jesus pode ser medida, também, por um
balanço da historiografia portuguesa sobre o assunto. Lopes (1992, A) afirma que no rescaldo
historiográfico há dois tipos opostos de análise acerca da atuação de D. João III na história
lusitana: de um lado ele é caracterizado como um homem fanático, piedoso, que implantou a
Inquisição e, por outro, em anotações posteriores ao anticlericalismo liberal do século XIX,
ele é visto como o grande arauto da cultura humanista em Portugal, principalmente pelo
incentivo pecuniário para que estudantes portugueses fossem estudar na Universidade de Paris
e, bem como pela mudança da universidade de Lisboa para Coimbra e, ainda pela criação do
Real Colégio das Artes. Lopes informa que em todas as vezes que a historiografia critica o
Rei Piedoso, também é criticada a Companhia e, em todas as vezes que se elogia a
Companhia, o Rei é encomiado.

Quais teriam sido as razões que explicam a rápida aceitação dos padres jesuítas em
Portugal, principalmente por parte de D. João III? Apesar de a resposta para esta questão não
ser objeto específico de análise neste trabalho, é interessante acompanhar o raciocínio de José
Sebastião da Silva Dias a respeito do assunto. É sabido que outras congregações surgiram na
mesma época que a Companhia de Jesus, também expressando o ambiente reformador da
Igreja13, e é sabido que outras congregações antigas já existiam em Portugal, inclusive
enviando padres para as terras de além-mar antes dos jesuítas; no entanto, o que fez com que
os padres reformados fossem os preferidos da corte portuguesa? Dias encontra numa
espiritualidade que aliava tradição e modernidade, uma explicação:

A fama de santidade pessoal que acompanhava os primeiros jesuítas é uma


explicação insuficiente do interesse de D. João III pela Companhia de Jesus e pela
facilidade com que esta se expandiu em Portugal em 1542 e 1560. Outros
institutos, como por exemplo o dos capuchos, que se podiam medir com eles
nesse capítulo, não alcançaram o mesmo êxito. O sucesso dos inacianos explica-
se de facto, em nosso entender, pela conjunção da fama de santidade com a

13
Mais a frente na tese, na parte II, voltar-se-á a este assunto, mostrando as principais ordens religiosas criadas
no século XVI, bem como o processo de reforma da Igreja, do qual as novas ordens fazem parte.
34

modernidade de cultura e a integração dinâmica da Ordem no movimento de


restauração católica. Mas ainda não só por isso. Explica-se também pela
espiritualidade adequada aos novos tempos de que eles se faziam arautos. E o
último factor, no nosso caso, é justamente o que mais interessa. (Dias, 1960, p.
641)

A razão do sucesso dos jesuítas seria uma espiritualidade encarnada nos novos
desafios postos pela modernidade. Dias mostra que o que agradou a D. João III, um Rei
reformador da Igreja em Portugal14, foi o desprendimento deles de uma roupagem exterior e
formal, praticando, por conseqüência, uma vida mais ativa e, ao mesmo tempo, interiorista.
Eis a síntese que Dias apresenta a respeito dessa espiritualidade jesuítica tão ao gosto do
Soberano português:

(...) Simplesmente, ninguém associou tão sàbiamente como eles a ânsia


interiorista do século XVI com o fundo legal, eclesial e litúrgico da prática cristã
forjada na Idade Média. E foi essa associação que lhes valeu o acolhimento
favorável de D. João III e de tantas almas interessadas num estilo de vida religiosa
que conciliasse a adesão às tradições católicas com a necessidade, derivada das
novas condições sociais, de uma piedade menos exterior e formal e mais apta à
concordância entre a perfeição cristã e a vida activa própria do laicado. (Idem,
ibidem, p. 642)

Poder-se-ia afirmar, com Dias, que a Companhia de Jesus ganhou a simpatia real e
teve uma rápida expansão – aliás, em todo o mundo – devido ao fato de ser uma ordem
religiosa que expressava radicalmente o ambiente da reforma católica do século XVI; reforma
que se originou, mais do que motivada pelas críticas protestantes, por um olhar crítico para
dentro dela própria e pela conclusão de que era preciso refazer certos comportamentos para
não deixar de ter influência na sociedade.

A Companhia de Jesus nasceu no ambiente de reforma e soube catalisar muito bem as


novas necessidades religiosas e sociais do período. O início das atividades dela em Portugal é
muito significativo dessa questão, pois nenhuma das atividades que foram sendo exercidas
estava, anteriormente, nos planos nem da própria Companhia e nem da Coroa portuguesa,
exceção feita, obviamente, na atividade missionária nas Índias.

No processo de crescimento do instituto religioso dos jesuítas em Portugal, um


conceito foi ficando, aos poucos, muito claro e nítido: o da aproximação aos soberanos
católicos como a melhor estratégia de atuação na sociedade e melhor forma de se conseguir
evangelização em massa e, também, mais influência política. René Füllöp Miller, em seu
Os Jesuítas, seus segredos e seu poder, mostra como o papel político dos jesuítas começou

14
Sobre esse assunto, respaldados também em Dias, voltar-se-á mais adiante, fornecendo exemplos da atitude
reformista de D. João III.
35

com a aproximação deles com os soberanos, principalmente através do encargo de


confessores de reis:

Mas, à proporção que os jesuítas conquistavam um número sempre crescente de


confessados, ia-se desenvolvendo nêles a certeza de que não sòmente o poderio
sôbre as almas era importante, mas, antes de tudo, a conquista do predomínio
sôbre os poucos homens que ocupavam posições influentes e dos quais dependia
o destino dos homens. A partir do instante em que, pouco a pouco, o domínio
sôbre a consciência dos reis e príncipes veio a ter às suas mãos, iniciou-se,
também, o papel político dos jesuítas, pròpriamente dito. O caminho para a
dominação universal que havia conduzido, a princípio, das ações diretas da
caridade para as obras de beneficência social organizada, ia agora ao encontro de
novos objetivos, pelo fato de que a atividade da Ordem, sempre e sempre mais, se
voltava para a direção espiritual dos príncipes; pois nos soberanos é que a Ordem
dos Jesuítas viu, a partir daí, a personificação da alma coletiva do povo. (Miller,
1946, p. 101)

Como ver-se-á mais a frente, para os jesuítas a existência de um poder central, de


preferência um Rei com poderes absolutos, sempre foi desejado em todas as terras de além-
mar em que foram para evangelizar, pois a crença de que o Soberano personificaria a alma
coletiva do povo – “pois do bem que se fizer à cabeça participarão todos os membros” –
significava que se conseguisse converter o Soberano, todos os súditos se converteriam. No
entanto, a prática das missões vai mostrar que nem sempre os súditos reais se mostram
cristãos obedientes ao Soberano cristão. Isto vai ficar evidente pelas inúmeras queixas que
farão Xavier, Nóbrega, Anchieta e outros jesuítas do comportamento dos portugueses, tanto
os comerciantes quanto os colonos.

A relação da Companhia de Jesus com os soberanos portugueses continuou boa


mesmo depois da morte de D. João III. Quando o Rei Piedoso morreu, D. Sebastião, seu neto
e herdeiro legal do trono português, tinha apenas três anos e até 1562 quem governou foi a
esposa de D. João III, a rainha-regente D. Catarina. De 1562 a 1568, ano da maioridade de D.
Sebastião, o irmão de D. João III, cardeal Infante D. Henrique governou como regente. Após
a morte de D. Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, novamente o Rei foi D. Henrique que
governou de 1578 até 1580, ano do início da União Ibérica, na qual Portugal ficou submisso
ao reino espanhol até 1640.

Do período da regência de D. Catarina escolheu-se dois documentos compilados por


Teixeira, nos quais são feitos elogios à atuação dos jesuítas em Portugal e a recomendação
para a expansão daquela ordem religiosa. O primeiro documento é uma carta de 05 de outubro
de 1557, endereçado ao Reitor da Universidade de Coimbra sobre o assento do regimento do
36

Colégio das Artes, no qual os jesuítas pediam que se continuassem os privilégios da época
joanina:

Reitor, lentes, deputados e conselheiros da Universidade da cidade de Coimbra,


eu el-rei vos envio muito saudar. El-rei meu senhor e avô [D. João III], que sancta
gloria haja, havendo respeito ao muito fruito que os padres da companhia de
Jesus faziam nos collegios que tomavam a seu cargo, e confiando que assim o
fariam entregando-lhes a governança e administração do collegio das Artes, que
mandou fazer nessa Universidade, houve por bem que os dictos padres tomassem
e tivessem a governança do dicto collegio a seu cargo, e lha mandou entregar
com toda a jurdição, administração, preeminencias e liberdades, que ao dicto
collegio tinha concedidas; e vendo eu ora o grande proveito que se seguiu assim
nas letras, como nos costumes, ensino e boa creação dos que no dicto collegio
ouviam, depois que a governança delle aos dictos padres foi entregue, e confiando
que por ser obra de serviço de Nosso Senhor com a ajuda e a boa diligencia dos
dictos padres a virtude e sciencia no dicto collegio será cada vez maior e irá em
crescimento, houve por bem que conforme(...). (In: Teixeira, 1899, p. 282)

O documento seguinte é outra missiva, agora de fevereiro de 1560, endereçada ao


embaixador português em Roma, Lourenço Pires de Távora, para ser entregue ao Papa Pio IV
(1559-1565):

Lourenço Pires de Tavora, amigo, eu el-rei vos envio muito saudar. Eu escrevo ao
sancto padre o que vereis pela cópia da carta que vos envio, e o intento que nisso
tenho é dar a conhecer a sua sanctidade quam proveitoso é o instituto da
companhia de Jesus para bem da egreja universal, e que sua sanctidade tomasse
grande affecto e devoção a esta religião, e a favorecesse para que, conforme a
seu instituto, pudesse ser augmentada e dilatada, pois disso se seguirá grande
bem a toda a christandade e religião christã, e especialmente a estes reinos e
senhorios pelas muitas obrigações espirituaes que tem, e parece que para mover
e inclinar sua sanctidade ajudará muito ter conhecimento das cousas particulares
que Nosso Senhor tem obrado, e obra cada dia, por esta religião, assim nestes
reinos como nas partes da Índia, e outras de infieis da conquista delles, e a grande
conta, reputação, e devoção que eu tenho, e todas as pessoas principaes destes
reinos, e prelados e religiosos delles têem, ao instituto e religião da dicta
companhia, vos encomendo muito que além das cousas particulares, que tereis
sabido, vos informeis ao padre geral da dicta companhia de todas as
particularidades que houver de edificação dando-lhe conta do que sobre isso
escrevo a sua sanctidade e desejo que faça; e informeis de tudo a sua sanctidade
mui particularmente, e me aviseis do que em sua sanctidade sentirdes, e
parecendo-vos que para este mesmo effeito ajudará falardes a alguns cardeaes e
o fareis de minha parte na maneira que virdes que convém; e com esta vos envio
duas cartas para elles em crença para vós: far-lheis pôr os sobrescritos e dar-lhas-
heis. Escripta em Lisboa a 16? [sic] de fevereiro de 1560 – RAINHA”. (Idem,
ibidem, p. 494-495)

Como a relação com os soberanos continuou próspera, o crescimento da Companhia


de Jesus no mundo em geral e nos domínios lusitanos em particular foi rápido e fecundo.
Apenas para exemplificar e fornecer uma idéia aproximada do que representou a Societas Iesu
em termos da grandiosidade de sua organização e a conseqüente influência social e política
que deteve, apresenta-se a seguir alguns números da sua expansão, especialmente no reino e
império portugueses.
37

Serafim Leite, na introdução que fez ao primeiro volume das Monumenta Brasiliae
apresenta um balanço do desenvolvimento da Companhia em 1556, ano da morte do fundador
e primeiro Geral Inácio de Loyola. Tal balanço visa mostrar a eficiência de Iñigo a frente do
instituto nos seus primeiros anos e é medido pelo número de padres e pelas províncias15
erigidas até então:

(...) Basta dizer que ao falecer em 31 de julho de 1556, a nova Ordem Religiosa
contava com mais de mil Padres e Irmãos, distribuidos, fora de Roma, em onze
províncias, erigidas nas seguintes datas: Portugal (1546), [Espanha 1547,
denominação que se manteve até 1554, desdobrando-se então em três], Goa
(1549), Itália (1551), França (1552), Brasil (1553), Sicília (1553), Castela (1554),
Aragão (1554), Andaluzia (1554), Alemanha Superior (1556), Alemanha Inferior
(1556). (Leite, 1956, p. 22 da introdução)

Em Portugal, o crescimento também foi relevante e pode ser medido tanto pelo
número de jesuítas como pelo número de colégios, universidade e seminários que eles
administraram. É interessante lembrar que os colégios, como veremos mais detalhadamente
em outra parte do trabalho, eram as residências dos padres e sedes administrativas ao mesmo
tempo. O maior historiador da Companhia de Jesus em Portugal, Francisco Rodrigues, no
texto A Companhia de Jesus em Portugal e nas missões, traça um esboço histórico
compreendendo os anos de 1540 a 1934 e apresenta, entre outras informações, os números de
todas as províncias

15
A Organização da Companhia de Jesus prevê como instância superior a Província, cujo principal, o Provincial,
está abaixo, hierarquicamente falando, apenas do Geral. O fato de se constituir uma Província representa, na
organização da Companhia, que ela cresceu e se faz necessário uma instância local para resolver grande parte
dos problemas e tomar decisões por delegação do Geral. Para maiores informações, vide as Constituições da
Companhia de Jesus.
38

jesuíticas que estavam nos domínios do império português16: no século XVI, período
que compreende este trabalho, o número total é de 37 entre colégios, seminários e uma
universidade, espalhados pelas três províncias; já no século XVIII este número salta para 81,
espalhados entre as sete províncias17.

Quanto a quantidade de jesuítas18, Rodrigues também fornece alguns números


igualmente representativos da expansão da Companhia: “Em 1560 orçavam os jesuítas por
400; em 1574 chegavam a 520; em 1615 subiam a 662; em 1709 a 770; em 1749 tocam o
número de 861; e nesse mesmo ano avaliam-se no reino e ultramar em 1754” (Rodrigues,
1935, p. 07, com grifos no original).

As atividades e o crescimento da Companhia de Jesus, em Portugal, no reino e nas


missões além-mar, foi, como se pode verificar, muito fecundo. Numa tentativa de resumir
essa expansão, tanto física quanto político-religiosa, façamos uso de Miguel de Oliveira,
historiador da Igreja em Portugal, através da sua História eclesiástica de Portugal:

Estes progressos [fundação de várias casas e colégios em várias partes de


Portugal], aos quais se juntavam outros, não menores, nas missões africanas, na
Índia e no Brasil, assinalam a influência crescente da Companhia de Jesus na vida
portuguesa. Não havia departamento em que ela não interviesse, desde a direção
espiritual dos reis e a orientação de alguns negócios políticos, até ao ensino,
assistência e catequese popular. O primeiro século de sua existência em Portugal
foi de assombrosa e fecunda actividade. (Oliveira, 1958, p. 248)

Depois de apresentar um panorama do início das atividades da Companhia de Jesus


em Portugal, destacando aquelas relativas à educação, às missões e ao encargo de confessar os
soberanos, ver-se-á, a seguir, especificamente as que se relacionam com o Padroado português
sob a bandeira jesuítica. Como o objetivo precípuo deste trabalho é apresentar um
entendimento da racionalidade jesuítica que contribua com o desvelamento da formação da
cultura e educação brasileiras, a partir deste momento ocupar-se-á do tema das missões, às
quais atendem, genericamente, pelo nome de Padroado.

16
As províncias no século XVI eram: Portugal (1546), Goa (1549) e Brasil (1553). No século XVIII
acrescentam-se: Alentejo (de 1654 a 1665), Malabar (1605), Japão (1611) e Maranhão (1727).
17
No livro citado encontram-se as relações de todos os colégios e seminários, com os respectivos nomes e datas
de fundação.
18
É difícil precisar em alguns momentos a quem se refere, no interior da organização jesuítica, quando se fala de
jesuíta. Na grande maioria das vezes é sobre os padres, mas em outras vezes engloba as outras funções
exercidas, principalmente, a de irmãos, os quais não eram padres, e exerciam trabalhos mais braçais dentro das
casas jesuíticas. Sobre estas funções específicas ver Constituições da Companhia de Jesus.
39

Capítulo 1

O Padroado Português:

a Companhia de Jesus a serviço da Coroa Portuguesa

Na concepção tanto teológico-política quanto cultural quinhentista do Ocidente,


particularmente dos chamados reinos cristãos, competia ao Soberano ser o grande líder e
incentivador da expansão da religião cristã – a verdadeira religião – pelo mundo,
especialmente nos lugares onde haviam gentios e infiéis, ou seja, desconhecedores ou
inimigos do cristianismo. Remetendo uma vez mais à carta de D. João III a D. Pedro de
Mascarenhas, de 04 de agosto de 1539, fica claro que a missão da Coroa portuguesa era “na
impresa da India e em todas as outras conquistas que eu tenho, e se sempre mateveram com
tantos perigos e trabalhos e despesas, foy sempre o acrecentamento de nossa santa fé
catholica” (In: Leite, 1956, p. 102). A necessária e essencial aliança entre a empresa
comercial/colonial e a empresa religiosa definia o Padroado.

O Padroado existiu, no século XVI, como instituição praticamente peculiar aos reinos
ibéricos. Charles Boxer, estudioso erudito da história dos países ibéricos, em A Igreja e a
Expansão Ibérica (1440-1770), mostra o Padroado como uma espécie de privilégio de
suserania da corte papal ao conceder direitos e privilégios, ao mesmo tempo em que
estabelecia deveres para as ações dos soberanos, os quais passavam a ser patronos da
expansão religiosa.

Durante séculos, a união da Cruz com a Coroa foi exemplificada pela peculiar
instituição (...) do padroado real da Igreja do ultramar exercido pela Coroas
ibéricas: Padroado Real em português e Patronato (ou Patronazgo) em espanhol.
O Padroado Real Português pode ser vagamente definido como uma combinação
de direitos, privilégios e deveres, concedidos pelo papado à Coroa portuguesa,
como patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e
Brasil. (Boxer, 1978, p. 99)
40

Oliveira (1958) mostra que o direito do Padroado português era extensivo também
para os lugares, como Japão e China, pois mesmo não havendo possessões portuguesas, os
padres missionários nestas regiões representavam além do Papa, a coroa lusitana.

O principal privilégio real no instituto do Padroado dizia respeito à subordinação do


clero diretamente ao Soberano, estabelecendo uma espécie de delegação de poderes do Papa
para o rei. Como afirma, ainda, Boxer, estes “privilégios significavam, na prática, que todo o
sacerdote, da mais alta à mais baixa categoria, só poderia exercer o cargo com a aprovação
da respectiva Coroa e que dependia dessa Coroa para o apoio financeiro” (1978, p. 100). Já
os deveres e direitos dos soberanos no Padroado diziam respeito à criação e manutenção dos
aspectos mais físicos da evangelização, da presença religiosa, incluindo aí, o envio e sustento
dos padres. Como afirma Oliveira:

O Padroado português compreendia os seguintes direitos e obrigações:


apresentação para os benefícios eclesiásticos, incluindo os episcopais;
conservação e reparação das igrejas, mosteiros e lugares pios das dioceses;
dotação de todos os templos e mosteiros e lugares pios das dioceses; dotação de
todos os templos e mosteiros com os objectos necessários para o culto;
sustentação dos eclesiásticos e seculares adstritos ao serviço religioso;
construção dos edifícios necessários; deputação dos clérigos suficientes para o
culto e cura das almas. (Oliveira, 1958, p. 201)

O direito de Padroado, exercido de forma corrente no século XVI, não foi concedido
de uma só vez, e teve seu início no século XV. As sucessivas concessões papais, formalizadas
através de bulas, ocorreram de 145219 a 1534. Oliveira apresenta as principais bulas papais
que documentam o Padroado português:

● Bula Dum diversas, de Nicolau V, em 18 de junho de 1452;


● Bula Romanus Pontifex, de Nicolau V, em 08 de janeiro de 1455;
● Bula Inter caetera, de Calisto III, de 13 de março de 1456 – concede à Ordem de Cristo a
jurisdição espiritual em terras portuguesas, mas os privilégios são do rei;
● Bula Dum fidei constantiam, de Leão X, de 07 de junho de 1514;
● Bula Pro excellenti praeminentia, de Leão X, de 12 de junho de 1514;

19
A emissão das bulas coincide com a chamada expansão marítima portuguesa, que teve início com a tomada de
Ceuta (1415), cujo objetivo principal era posse de áreas agrícolas produtoras de cereais, das quais Portugal era
deficitário. Com essa conquista consagrou-se o desenvolvimento dos trabalhos náuticos. A idéia fundamental
era difundir o cristianismo e retomar a tradição de defesa do mesmo contra o islamismo. A expansão
continuou com algumas conquistas marítimas: em 1419 a Madeira; em 1432 Açores; em 1436 Rio do Ouro;
em 1436 a Serra Leoa, e em 1434, Gil Eanes dobrou o cabo Bojador. Depois de uma interrupção, outras
conquistas se seguiram: em 1441, Nuno Lisboa alcançou o cabo Branco e, em 1460, foi descoberto o
arquipélago de Cabo Verde. Já a chamada expansão comercial portuguesa, na qual se inicia o chamado
Império Lusitano, tem passo fundamental dado com a dobra do Cabo da Boa Esperança em 1497/1498, com
Vasco da Gama.
41

● Breve Dudum pro parte, de Leão X, de 31 de março de 1516 – conferindo ao reis de


Portugal o direito universal de Padroado em todas as igrejas de territórios sujeitos ao seu
domínio;
● Bula Aequum reputamus, de Paulo III, de 03 de novembro de 1534 – erigindo a diocese de
Goa, que ia do Cabo da Boa Esperança até a China, passando pela Índia, descrevendo,
minunciosamente, os direitos e deveres inerentes ao Padroado; considerada “com razão o
principal fundamento do padroado português” (Oliveira, 1958, p. 201)
● Bula de ereção de outras dioceses reproduzindo a forma da Aequun reputamus.

As bulas relacionadas ao Padroado português expressam, na esfera da legalidade


religiosa, tanto um tipo de tarefa que fazia parte da essência do Rei cristão, como o espírito da
época da expansão marítima e comercial portuguesa. Independentemente de bulas e outros
documentos jurídicos, cabia à Coroa cristã, como autoridade máxima em seu território, ser
também defensora dos interesses religiosos e, por conseqüência, também da expansão do
cristianismo. As bulas legitimavam e delimitavam a ação dos diferentes reinos. Já na
consideração das bulas como expressão da expansão marítima, veja-se o raciocínio de Boxer,
em seu O Império Colonial Português (1415-1825):

(...) estas bulas reflectem claramente o espírito da época dos Descobrimentos e


estabelecem as linhas mestras do comportamento (ou do mau comportamento)
europeu posterior no mundo tropical (...) O efeito cumulativo destas bulas papais
foi o de dar aos Portugueses – e, na devida altura, aos outros europeus que os
seguiram – um beneplácito religioso à atitude de domínio idêntico para todas as
raças que estivessem fora do seio da cristandade. (...) As bulas reflectem,
também, a iniciativa tomada pela Coroa portuguesa, pelo infante D. Henrique e por
outros príncipes da Casa de Avis, de dirigirem e organizarem obra de
descobrimento, conquista, colonização e exploração. (...)”. (Boxer, 1969, p. 46)

Mais a frente apresenta-se com mais detalhes o processo de expansão comercial


português, do qual as missões jesuíticas são devedoras. Por enquanto se faz necessário, ainda,
ver mais sobre o Padroado em si e os seus mecanismo de atuação, principalmente quando se
trata dos jesuítas.

Antes, porém, para não correr o risco de passar uma idéia errada, é preciso esclarecer,
apoiado em Oliveira, que os jesuítas não foram os primeiros e nem os únicos padres a irem
para as missões em terra de além-mar (e nem poderiam ser os primeiros, pois o
empreendimento comercial português teve início antes mesmo da fundação da Companhia de
Jesus). Em Calecute, na Índia, por exemplo, os franciscanos foram os primeiros a chegar em
1500; e quando da chegada dos jesuítas, eram eles que dominavam as missões. Mesmo em
1540, continua informando Oliveira, não só os jesuítas foram para a Índia, mas também, os
franciscanos continuaram indo, como também os dominicanos, os oratorianos, os agostinhos,
42

os teatinos e os carmelitas; todos fundando casas e colégios e realizando as catequeses. Os


jesuítas não estavam sós, mas foram, aos poucos, se tornando os principais agentes religiosos
nas terras das missões.

Em sua tese de doutorado intitulada A Cristandade Insular: Jesuítas e Inquisidores


em Goa (1540-1682), Célia C. da S. Tavares apresenta uma síntese do estado da Igreja em
Goa, sede ou capital do Estado da Índia, antes da chegada dos jesuítas:

(...) A estrutura eclesiástica no Oriente inaugurou-se com a criação da diocese de


Goa em 1534, que possuía a jurisdição sobre todas as comunidades cristãs entre
o Cabo da Boa Esperança e a China. O primeiro bispo só chegou em 1538 e a
Catedral Metropolitana de Goa foi inaugurada em 1539. Em 1540, havia cerca de
100 padres, muitos dos quais não cumpriam com muita rigidez e atenção os
dogmas da Igreja católica.
Apesar da contínua presença de religiosos nas viagens e na fixação dos
portugueses no Oriente (ou seja, nas fortalezas, feitorias e cidades conquistadas);
da instalação em 1518 da ordem dos franciscanos em Goa; e do batismo de
milhares de hindus na costa da Pescaria, através da ação do vigário-geral padre
Miguel Vaz nos anos de 1535 a 1537, costuma-se afirmar que a atividade
missionária só ganhou real impulso com a chegada dos jesuítas, em 1542.
(Tavares, 2002, p. 79)

O próprio José de Anchieta (1988), na Informação do Brasil e de suas Capitanias, de


1584, informa que os primeiros frades que vieram para o Brasil foram os franciscanos, mas
não se espalharam pela costa ficando mais na Bahia, e depois dos franciscanos vieram os
jesuítas. Neste caso, é importante salientar que quando a Coroa portuguesa decide fazer a
empresa colonial, de fato, os jesuítas já se encontravam em Portugal e foram os escolhidos
para virem para a Colônia.

Retomando a informação de Boxer acerca dos privilégios reais inerentes ao direito do


Padroado, se faz importante verificar como os jesuítas tinham plena consciência dessa
realidade. Eles sabiam que mais do que ser gratos pela boa relação do Rei D. João III, por
exemplo, com a Companhia, a obediência ao Soberano se fazia necessária principalmente
pelo fato de que era ele quem, em última instância, chefiava as missões, até porque ele era o
agente financiador de tudo.

Francisco Xavier, em 20 de janeiro de 1548, de Coxim, já em pleno vigor e


experiência missionários adquiridos, escreve a D. João III, como o fez várias vezes no tempo
em que esteve como Provincial, reclamando muito dos portugueses e de seu comportamento
pouco condizente com a religião que o próprio Rei e toda nação portuguesa professava20. No

20
É interessante a apresentação que Hugues Didier faz desta carta de Xavier, onde a aparente contradição é
resultado de uma soma: “Como das outras cartas enviadas ao Rei de Portugal, esta aqui ainda deixa
43

entanto, mais do que mostrar revolta, Xavier tem clareza que o chefe da missão a quem ele
deve se reportar é o próprio Rei, o qual sendo o patrono da evangelização nas Índias, era o
protetor da Companhia de Jesus: o Rei “é o principal e verdadeiro protetor de toda a
Companhia de Jesus, tanto por seu amor como por suas obras” (Xavier, 1987, p. 213)21.

Ainda em 1548, só que em outra carta dirigida aos jesuítas da Costa da Pescaria e de
Travancore, carta esta apresentada por Didier como de instrução, Xavier faz uma série de
recomendações aos irmãos jesuítas, já preparando sua partida para o Japão, o que ocorrerá no
ano seguinte. Além das práticas correntes do missionário, como catequizar, dizer missas,
batizar etc., também é alvo das preocupações a relação com os capitães portugueses. Mesmo
sabendo que a maioria dos capitães não eram confiáveis do ponto de vista da religião, Xavier
ordena aos seus subordinados “de sob nenhum pretexto estar em más relações com o capitão”
(p. 228)22. Há a consciência do Provincial jesuíta aqui de três aspectos relacionados entre si e
que estão sempre presentes no epistolário jesuítico: primeiro, o jesuíta não deve imiscuir-se
nos assuntos civis; segundo, a consciência de que o capitão é o representante legal do Rei
naquelas terras; e terceiro, se fosse para fazer alguma reclamação mais insistente e séria
deveria reportar-se diretamente ao Rei, como o próprio Xavier o fez.

Muitas vezes o sucesso das missões do Padroado era devido à interferência direta dos
agentes do Rei nas terras de além-mar, como também o contrário, como se verá mais à frente.
No Brasil, as cartas dos jesuítas revelam esse aspecto da relação do sucesso das missões com
o comportamento dos Governadores-gerais, por exemplo, e um deles destacado positivamente
foi Mem de Sá, que governou o Brasil de 1557 a 1572.

Em carta de António Pires para os irmãos de Portugal, escrita em 1558, é apontado


que os gentios da terra temiam – “tremem de medo” – o governador Mem de Sá, ressaltando
que esse temor ajudava e muito a erradicação dos maus costumes e facilitava,
conseqüentemente, a doutrinação:

manifestar as contradições entre a obra missionária e a empresa colonial realizadas, uma e outra, em nome
do Padroado. São Francisco Xavier não se encontraria na Ásia se os portugueses não o tivessem precedido, e
ele sempre precisa deles. Mas, com os portugueses Xavier não pode cumprir seu objetivo” (Xavier, 1987,
213). (“Comme bien d’autres lettres envoyées au Roi du Portugal, celle-ci laisse encore se manifester les
contradictions entre l‘ouvre missisonaire et l’entreprise coloniale accomplies l’une et l’autre au nom du
Patronat. Saint François Xavier ne se trouverait pas en Asie si les Portugais ne l’avaient précédé, et il a
toujours besoin d’eux. Mais, avec eux, il ne peut parvenir à son but”).
21
“est le principal et véritable protecteur de toute da Compagnie de Jésus, aussi bien pou son amour que pour
ses ouvres”.
22
“de n’être sous aucun pretexte en mauvais termes avec le Capitaine”.
44

(...) Este temor os faz habeis para poderem ouvir a palavra de Deus; ensinam-se
seus filhos; os innocentes que morrem são todos bautizados; seus costumes se
vão esquecendo e mudando-se em outros bons, e, procedendo desta maneira, ao
menos a gente mais nova que agora ha e delles proceder, ficará uma boa
christandade. (Navarro, 1988, p. 230)

Noutra carta, agora de Ruy Pereira, escrita em 1560, nota-se que os jesuítas tinham
muito claro que o seu trabalho dependia do poder temporal, e a presença de Mem de Sá era a
segurança que eles tinham, pois “(...) finalmente, enquanto durar nesta terra o Senhor
Governador, ou quem conserve seus meios com tanto zelo como elle faz, irá a conversão
vento á popa. (...)” (Navarro, 1988, p. 287).

Quem oferece uma síntese do trabalho desenvolvido por Mem de Sá no progresso da


catequese dos índios no Brasil é Anchieta, na Informação do Brasil e de suas Capitanias, de
1584. Note-se a sujeição como um caminho abreviado para a conversão:

Na éra de 1557 veiu o terceiro governador Mem de Sá. Êste sujeitou quasi todo o
Brasil, teve guerra com os Indios do Paraguaçú fronteiros da Baía e muito
poderosos, em que lhes queimou 160 aldeias, matando muitos e os mais sujeitou.
Amansou os dos Ilhéus que estavam levantados e tinham destruidas muitas
fazendas e posta a capitania em grande apêrto. Dêstes houve muitas insignes
vitórias até que ficaram sujeitos todos os Indios comarcãos da Baía, desde
Camamú até o Itapucurú, que são 40 leguas. Sujeitou á lei de Deus e os fez
ajuntar e fazer egrejas e desta maneira foi em grandissimo aumento a conversão
que foi começada em tempo de dom Duarte da Costa. (Anchieta, 1988, p. 311)

Comentários como estes, louváveis à atuação das autoridades civis nas terras em
missão, eram menos freqüentes que as críticas, como ver-se-á mais adiante; no entanto,
evidenciam que uma das razões para que a empresa religiosa tivesse mais ou menos sucesso
era o comportamento das empresas comercial e colonial.

Loyola também tem plena consciência da relação de autoridade que a Companhia


estava subordinada por conta do Padroado. Em carta ao próprio Xavier, de 28 de junho de
1553, em que ordenava sua volta para Portugal e Roma23, provavelmente chamando a atenção
dele por conta de alguma reclamação que aquele havia feito da morosidade e beneplácito do
Rei D. João para com os portugueses desregrados nas Índias, deixa claro que a empreitada
missionária era devedora, sim, da comercial e política:

Em primeiro lugar, já sabeis quanto importa para a conservação e aumento da


cristandade nessas partes, na Guiné e no Brasil, a boa ordem que o rei de
Portugal, quando informado de quem sabe, por experiência, os negócios de lá, tão

23
Pela demora e extravio de muitas cartas, Inácio de Loyola só ficou sabendo da morte de Xavier praticamente
três anos após. Por isso que essa carta é datada de 1553 sendo que Xavier já havia morrido nas portas da
China em dezembro de 1552.
45

bem como vós, podeis pensar que se moverá a realizar muitas propostas vossas
para o serviço de Deus N. Senhor e auxílio dessas regiões. (Cardoso, 1993, p. 82)

O auxílio que o Rei prestava às missões era, ou deveria ser, principalmente financeiro
para dar conta de todos os gastos que não eram poucos, relativos à edificação igrejas, de casas
e de colégios e ao sustento material de cada padre em particular. Não resolvia somente a
proteção política, que era sem sobra de dúvida importantíssima, se não houvesse o dinheiro
para o desenvolvimento das missões.

Na longa carta escrita por Francisco Xavier, em 29 de janeiro de 1552, na qual relata
toda a viagem de dois anos e meio pelo Japão, mostra, entre outras coisas, aos companheiros
da Europa, que durante todo o tempo da viagem, a única esmola – leia-se ajuda financeira -
que ele e os seus receberam foi do “cristianíssimo Rei de Portugal”, afirmando, na
continuidade que “não se pode crer quão favorecidos somos de Sua Alteza, e o muito que
conosco gasta em dar tão largas esmolas para Colégios, casas e as outras necessidades” (In:
Cardoso, 1996, p. 96).

Um relato claro e evidente de um jesuíta acerca da ajuda financeira que a Coroa


portuguesa dava à Companhia é fornecido pelo padre Cipriano Suárez24, em carta a Inácio de
Loyola, provavelmente de 25 de abril de 1553. O dinheiro gasto pela corte real era feito, a
julgar pela carta, de forma liberal:

Falta falar agora da clementíssima liberalidade do nosso Rei para connosco. Ele
não só provê os Nossos de viático [provisão de dinheiro e/ou de gêneros para
viagem], mas dá também dinheiro muito liberalmente para que aos Nossos se
enviem bibliotecas e outras coisas que faltam naquelas regiões até agora pouco
povoadas. Não lhe ficou por menos de oitocentos cruzados, só este ano, a
navegação dos Nossos; e, usando há dez anos de semelhante liberalidade, não
só não se cansa, mas cada dia acrescenta alguma coisa à soma da beneficência
anterior. Os seus dois irmãos, o Eminentíssimo Cardeal D. Henrique e o Infante D.
Luís procuram igualar o próprio Rei na caridade que a nós todos nos mostram. (In:
Leite, 1956, p. 467

Pelo que se pode perceber através da documentação consultada a respeito do Padroado


português sob a bandeira jesuítica, havia uma via de mão dupla, no que se refere a um
sustentar financeiramente a missão e garantir politicamente a existência dela – o Rei – e, ao
outro – o jesuíta – de reconhecer e agradecer o beneplácito real e procurar não comprometer o
Rei através de atitudes rebeldes.

24
O padre jesuíta Cipriano Suárez era natural de Toledo, tendo entrado na Companhia em 1549, faleceu em
1593. Foi professor e Reitor do Colégio de Braga (Leite, 1956, p. 464).
46

A outra obrigação do Rei para com as missões era a garantia de sempre enviar mais
missionários, não esquecendo que do ponto de vista do empreendimento como um todo, ao
Rei competia todo o aporte financeiro do envio deles. Nesse sentido, a tarefa de pedir mais
trabalhadores para a messe é dos missionários que já estão nas missões, particularmente dos
provinciais que pedem não só ao Geral ou ao Provincial de Portugal, mas também diretamente
ao Rei, como é o caso, por exemplo, de Xavier. Numa outra parte da carta já citada, de 20 de
janeiro de 1548, o jesuíta alerta D. João III para a necessidade de mais padres, pois sem eles
não haveria conversão espontânea dos gentios:

Eu presto contas de tudo isto a Vossa Alteza para que não se esqueça de enviar
os padres, pois com a falta deles na Índia, nem os portugueses e nem aqueles
que são convertidos a nossa fé são cristãos. Além disso, eu não tenho mais
esperança que tal bem espiritual [a cristianização] possa acontecer aqui nestes
territórios; pois a Índia possui esta particularidade: ela não suporta que se faça tão
25
grande bem espiritual. (Xavier, 1987, p. 216)

Se Xavier demonstra ter a exata noção de que a empresa religiosa é devedora do apoio
do Soberano e dos seus representantes civis e políticos nas Índias, revela, outrossim a
concepção de que se deixar por conta apenas dos colonos e comerciantes portugueses, a
empresa religiosa tendia para a falência; daí a advertência, feita várias vezes – aliás também
pelos padres jesuítas no Brasil –, de que os padres eram ali necessários. Xavier vai mais longe
ainda nesta concepção – como igualmente os do Brasil –, na medida em que não existe
confiança mesmo nos cleros seculares ou mesmo de outras ordens religiosas, como veremos
mais adiante.

Antes de mostrar mais detidamente como se dava o Padroado nas Índias e no Extremo
Oriente e no Brasil, ainda uma questão geral aparece e é reveladora da intrínseca união entre
Estado, no caso a Coroa26, e a Igreja. Em última instância, o chefe dos dois empreendimentos,
o comercial/colonial e o religioso, é o mesmo, pois a Igreja nacional é, às vezes de direito, às

25
“Je rends compte de tout cela à Votre Altesse pour n’oublie pas d’envoyer des prédicateurs, car par manque
de ces derniers en Inde, ni les Portugais ni ceux qui sont convertis à notre Foi se sont chrétiens. Par alleurs,
je n’ai point l’espoir qu’un tel bien spirituel puísse advenir en ces contrées-ici, car l’Inde possède cette
particularité: elle ne supporte pas qu’on y fasse un si grand bien spirituel.”
26
Ernest H. Kantorowicz, em Os dois corpos do Rei, mostra que a definição da Coroa, como um símbolo duplo
– por um lado, a coroa material, “visível”, símbolo do Rei e, de outro, a Coroa Imaterial, “invisível”, símbolo
da dinastia, símbolo da corte e do próprio reino – passou a ser mais utilizada na modernidade e expressa a
concepção absolutista de sociedade. A idéia que começou a tomar corpo no século XIII é a de que Coroa
representava o próprio reino, os direitos e aspirações fundamentais de um país. A Coroa e o reino eram
distintos, porém inseparáveis. Por isso se poderia julgar um príncipe por não atender às necessidades da Coroa,
mas não se poderia pensar na Coroa sem a existência de um príncipe (1998, capítulo VII). Aliás este livro de
Kantorowicz é muito interessante para quem quer conhecer um pouco mais ou mesmo se aprofundar em
questões relativa à teologia política medieval.
47

vezes de fato, subordinada ao Rei. Tal qual o Leviatã de Hobbes, os dois poderes, o temporal
e o espiritual estão sob sua autoridade.

Um dos desdobramentos desta realidade encontra-se na concepção de Francisco


Xavier acerca do trabalho dos missionários como extensão da consciência real. Na carta ao
Rei de 26 de janeiro de 1549, o jesuíta se mostra bastante desanimado com relação tanto ao
comportamento dos portugueses como pela fragilidade da prática cristã dos gentios conversos
ao cristianismo, vislumbrando, na eminente viagem ao Japão, uma oportunidade de travar
contato com gente mais culta e sem a presença massiva de portugueses. No entanto, a certa
altura da missiva, Xavier mostra para o Rei que o trabalho dos padres junto aos gentios é
pleno de sofrimento e que tais aflições servem para “desencarregar a consciência de Vossa
Alteza”27, porque a atuação dos padres é em serviço de Deus. Isto remete à concepção de que
todas as atitudes dos súditos eram, de certa forma e em certo grau, atitudes do Rei. A labuta
dos padres jesuítas em terras inóspitas servia para desencarregar a consciência real que um dia
teria que prestar contas a Deus de suas atitudes enquanto Rei, o que era diferente das atitudes
enquanto pessoa. Talvez seja essa a razão pela qual Xavier fique tão irritado com os colonos e
comerciantes portugueses que tratam mal os gentios convertidos. Para ele não deveria haver
conflito entre as duas empresas – a colonial e a espiritual -, mas há, tanto que ele afirma: “a
experiência me ensinou que Vossa Alteza não exerce seu domínio na Índia unicamente para
aumentar a fé em Cristo: exerce seu domínio também para tomar e possuir as riquezas
temporais da Índia” (Xavier, 1987, p. 268)28. Ver-se-á mais a frente que estas concepções não
são xaverianas apenas, mas representam uma forma de pensar e agir presente em inúmeras
cartas jesuítas, especialmente no Brasil.

Na medida que esta parte do trabalho se apóia principalmente em documentos dos


próprios jesuítas, optou-se, para fluir melhor o conteúdo, por tratar o Padroado nas Índias e no
Extremo Oriente de forma conjunta, principalmente porque as referências partem
praticamente de Xavier, e, também porque se tratava da mesma província até início do século
XVII e, em separado, tratar do Padroado no Brasil, onde as referências são mais diluídas em
vários jesuítas. Apesar de algumas questões se repetirem, tanto nas Índias como no Brasil,
entende-se que metodologicamente fica mais clara a exposição da forma que segue.

27
“décharger la conscience de Votre Altesse”.
28
“l’expérience m’a enseigné que Votre Altesse n’exerce pas uniquement sa puissance dans l’Inde pour
accroître la foi du Christ: elle exerce aussi sa puissance pour saisir et pour posséder les richesses
temporalles de l’Inde”.
48

O Padroado português nas Índias e no Oriente

A diocese de Goa foi fundada em 1533, abrangendo todos os territórios desde o Cabo
da Boa Esperança até a China, passando pela Índia, e foi entregue ao Rei de Portugal, como
parte dos direitos do Padroado. Em 1557 a diocese de Goa foi desmembrada criando-se duas
outras: a de Cochim e a de Malaca, ficando a de Goa como Arquidiocese. Em 1576 foi criada
a diocese de Macau; em 1588 a de Funay; e em 1594 a de Angamale.

Os jesuítas que iam para as missões sempre desembarcavam em Goa, capital política e
religiosa do Estado da Índia. Eles não eram somente portugueses, mas sim de várias
nacionalidades; no entanto, como se tratava de uma empresa religiosa ligada ao direito de
Padroado da Coroa portuguesa, durante algum tempo todos os que iam para as Índias – e
igualmente para a África e Brasil – passavam por Portugal, estudando no Colégio das Artes e
na Universidade de Coimbra. Nesse sentido, mesmo sendo de países diferentes, é da cultura
de corte portuguesa que se tornavam arautos e divulgadores, a começar pelo esforço em
escrever as cartas em português.

A língua oficial da Igreja, bem como da intelectualidade e da diplomacia continuava


sendo do latim, que foi reavivado no processo de reforma da Igreja, dada a necessidade da
unificação litúrgica e de formação do clero, além do que serviu de base para o classicismo
moderno, meio de difusão do humanismo na educação, inclusive jesuítica. No entanto, a
língua usada nas cartas de Xavier era o português. Didier, na introdução às cartas e escritos do
jesuíta, apresenta essa interessante informação:

(...) Ele praticamente adotou o português, como todos os europeus residentes na


Ásia no século XVI. (...) Xavier usa muito pouco o latim, nunca o francês que muito
tempo falou em Paris, jamais o basco apesar de ser sua língua materna. Ele
aprendeu muitas línguas asiáticas de que se serviu para ditar ou redigir
29
documentos: não se conservam nenhum. (...) (Xavier, 1987, pp. 08-09)

29
“(...) Il a pratiquement adopté le portuguais, comme tous les Européens résidant au XVIe siècle em Asie. (...)
Xavier se sert très peu du latin, jamais du français qu’il a longtemps parlé à Paris, jamais du basque non plus
qui est as langue maternelle. Il a apris plusiers langues asiatiques dont il s’est servi pour dicter ou rédiger
des documents: nous n’en conservons aucun. (...)”.
49

A língua oficial é a língua do império lusitano. Caso fosse necessário utilizar-se de


outras línguas, eram elas as nativas, aquelas que eram aprendidas para melhor poder traduzir a
mensagem cristã e melhor introduzir a cultura portuguesa na mentalidade e no cotidiano dos
gentios. Não se pode esquecer, no entanto, que o português é uma língua historicamente nova
que foi gramaticamente se desenvolvendo da modernidade até a atualidade. A língua
portuguesa do século XVI é muito parecida com o espanhol moderno, como já tivemos a
oportunidade de ver anteriormente quando de citações da Monumenta Brasiliae. É muito
significativo, portanto, o uso de uma língua que estava em construção, identificando e
homogeneizando a cultura do poderoso império lusitano.

Quanto ao cotidiano das missões, com o acúmulo da experiência tanto nos aspectos
mais propriamente religiosos quanto nos sociais e políticos, pode-se estabelecer quatro
aspectos a serem destacados: as críticas ao comportamento pouco cristão dos comerciantes e
colonos portugueses, bem como ao clero secular; o poder do clero nativo; o batismo e a
catequese das crianças; e, as qualificações necessárias dos futuros missionários.

Para esta parte do trabalho utilizar-se-á, como já informado antes, basicamente do


epistolário xaveriano.

Logo que chegou em Goa, Xavier foi surpreendido pelo fato de que aos portugueses os
interesses comerciais eram prioritários em relação aos religiosos. Ele escreve para Loyola, em
20 de setembro de 1542, mostrando sua indignação pelo fato de os cristãos daquelas terras
não cumprirem todos os ritos da quaresma.

(...) Ele [o Vice-rei] pede ainda isto [indulgências por ocasião da quaresma], pois,
durante a Quaresma, aqui é verão: todas as pessoas vão ao mar a bordo da frota
– pois aqui os Portugueses são mestres dos mares e os Infiéis da terra –; todos
vão, então, à guerra durante a Quaresma e é tempo também em que os
mercadores navegam. Eles não se confessam e nem comungam porque não se
30
encontram em terra. (...) (Idem, ibidem, p. 94)

A quaresma para a Igreja é um momento muito especial de devoção pois é o período


de quarenta dias que antecede as celebrações da paixão, morte e ressurreição de Cristo;
portanto, trata-se de um período de sofrimento dos cristãos acompanhando todo o calvário do
filho de Deus até a vitória contra a morte. Como no século XVI a cultura era essencialmente

30
“(...) Il demande encore ceci, car pendant le Câreme, c’est ici l’été: tous le gens prennent la mer à bord de la
flotte – car ici les Portugais sont maîtres des mers, et les Infidèles de la terre –; tous les gens vont donc a la
guerre pendant le Carême et c’est alors que les marchands naviguent. Ils ne se confessent pas ni ne
communient parce qu’ils ne se trouvent pas à terre. (...)”.
50

religiosa31 e a religião era a cristã, na época da quaresma várias atividades normais eram
reguladas ou mesmo suspensas, principalmente as relativas às guerras. A quaresma também
era um tempo especial em que os cristãos deveriam confessar os seus pecados e comungar.
Pela documentação consultada, esta foi a primeira grande decepção do missionário jesuíta. No
entanto, com o passar do tempo e a experiência adquirida, principalmente com o inverno
rigoroso daquelas terras, Xavier chega a propor ao Geral Loyola uma consulta ao Papa para
autorizar um ano litúrgico especial nas terras de além-mar, para que a quaresma não
coincidisse com o verão, pois chegou à conclusão de que se não se poderia ir de encontro aos
interesses comerciais, havia a necessidade de ajustar os momentos especiais de prática
religiosa.

Em certa altura da vida do missionário ele chega mesmo a desanimar do


comportamento de alguns portugueses. Em 11 de setembro de 1544, numa carta a Francisco
Mansilhas, outro missionário jesuíta residente em Goa, Xavier reclama de soldados e capitães
portugueses que, na cidade de Manappad, ao escravizarem um doméstico da terra, colocaram
em risco os contínuos esforços dos jesuítas em estabelecer a paz naquelas cidades que não
eram possessões fortificadas como Goa, Málaca ou Ormuz. O que entristece Xavier é o fato
de que o ambiente de paz era propício à catequese e conversão dos gentios, sendo o contrário
também verdadeiro. A decepção do jesuíta é tão evidente que ele começa a carta se
lamentando: “Eu jamais terminaria a obra se eu quisesse vos escrever sobre o desejo que eu
tenho de me encontrar na costa. Eu vos asseguro e esta é a verdade, que se hoje eu tivesse um
navio para me embarcar, eu iria agora mesmo” (Idem, ibidem, p. 137).32

As queixas de Xavier continuam por várias cartas e, talvez o momento em que ele se
encontre mais exaltado se revela numa carta ao Rei D. João III, escrita de Coxim, em 20 de
janeiro de 1545. Nesta missiva, onde começa citando conquistas cristãs do império lusitano e
da necessidade de gente virtuosa para fazer o trabalho de cristianização dos gentios, ele
endereça palavras duras ao Soberano português. Na condição de Superior das Índias e de
embaixador da coroa portuguesa, reclama de forma franca e direta – como faz em outras
cartas – sobre o relaxamento dos colonizadores, comerciantes e soldados portugueses a
respeito das coisas cristãs. A chamada de atenção é feita com a simulação do julgamento do
Rei no dia do juízo final, no qual a permissividade real seria duramente cobrada por Deus:

31
Lucién Febvre adjetiva o século XVI como “um século de vida religiosa” (apud, Barreto, 1983, p. 101).
32
“Je n’en aurais jamais fini si je voulais vous écrire le désir que j’ai de me rendre sur la Côte. Je vous l‘assure
et c’est la verité, que si je trouvais aujourd’hui un bateau pour m’embarquer, je m’en irais tout de suite”.
51

(...) De fato existe este perigo, a saber, que uma vez convocado por Nosso Senhor
diante de seu tribunal (e isto deve acontecer quando menos se espera; e não há
nem esperança nem meio de se evitar) Vossa Majestade não queira ouvir da parte
do Deus encolerizado o que eu ousaria dizer: “Porque não prestaste atenção
àqueles que, se apoiando sobre tua autoridade e estando sujeitos a ti, se
opuseram a mim na Índia? Enquanto puniste severamente, se eles foram
surpreendidos ao serem negligentes no zelo de tuas rendas e no cálculo de teus
impostos(...)” Eu ignoro Senhor qual será sua resposta para que Vossa Majestade
seja perdoada: “Em verdade, cada vez que eu escrevia de lá, cada ano, era para
recomendar as coisas do serviço divino”. Imediatamente seria respondido:
“Entretanto tu permitiste àqueles que recebiam tão santas ordens de agir
impunemente, quando ao mesmo tempo, tu fazias aplicar penas merecidas
àqueles que tinhas descoberto que haviam sido pouco fiéis ou pouco zelosos da
33
administração de teus negócios”. (Idem, ibidem, pp. 147-148)

Xavier pretende colocar D. João III em uma situação religiosa bastante incômoda, para
ver se dessa forma o Rei usava de sua autoridade para reprimir os portugueses pecadores.
Assim como o trabalho dos missionários aliviava a consciência do Rei, o comportamento dos
portugueses dava peso a ela. A saída para tal situação embaraçosa para o Rei é, do ponto de
vista do jesuíta, o envio de pessoa com autoridade e virtudes cristãs – um capitão, um
governador –, pois dessa forma, “no futuro serão evitados prejuízos e escândalos, que até o
presente momento foram numerosos e graves à causa cristã” (Idem, ibidem, p. 148).34

Pelos documentos consultados, pode-se concluir que o comprometimento do Rei


tentado por Xavier parece não ter surtido efeito, pois no ano seguinte, quando, em nova carta
a D. João III, datada de 16 de maio de 1546, afirma que o “comércio que temos com os infiéis
é tão intenso, e nossa devoção tão pequena, que bem mais rápido se negocia os proveitos
materiais que os mistérios de Cristo nosso Redentor e Senhor”35. Na continuidade, após
novamente denunciar a prática dos comerciantes e colonos, principalmente os cristãos-novos,

33
“(...) De fait il existe ce danger, à savoir qu’une fois convoquée par Dieu notre Seigneur devant son tribunal
(et cela doit arriver quand on s’y attend le moins; et il n’y a ni espoir ni moyen de l’eviter) Votre Majesté
n’ait à s’entendre dire de la part de Dieu courroucé, oserai-je le dire: ‘Pourquoi n’as-tu pas fait attention a
ceux qui, s’appuyant sur ton autorité en étant tes sujets, se sont opposés à moi dans l’Inde? Alors que tu as
sévèrement punis, s’ils ont été surpris à être négligents dans le soin de tes revenus et dans de calcul de ton
fisc(...)’ J’ignore, Seigneur, de quelle importance sera pour excuser alors Votre Majesté la réponse qu’elle
fera: ‘En verité, chaque fois que j’écrivais lá-bas, chaque année, c’était pour recommander les choses du
service divin.’ Il serait immédiatement répondu: ‘Et pourtant tu as permis à ceux qui accueillaient de si
saintes ordonnances d’agir impunément, alors que, pendant ce temps, tu faisais appliquer des peines méritées
à ceux dont tu avais découvert qu’ils avaient été peu fidèles ou peu empressés dans l’administration de tes
affaires’.”.
34
“on évitera à l’avenir les prejudices et les scandales, qui ont été jusqu’à présent nombreux et graves pour la
cause chrétienne”.
35
“commerce que nous avons avec les infidèlesest si intense, et notre dévotion si peu de chose, que l’on a bien
plus vite fait de négocier des profits matériels que des mystères du Christ notre Rédempteur et Seigneur”.
52

o jesuíta pede ao Rei que “envie a Santa Inquisição”36 (Idem, ibidem, 1987, p. 186) como um
remédio amargo, mas necessário, para coibir os escândalos realizados naquelas terras.

Xavier tem clareza de que somente a atividade dos padres não é suficiente para
converter todos os gentios e muito menos mantê-los convertidos e praticantes da religião
cristã; a ajuda e o exemplo dos outros portugueses era deveras importante, por isso a decepção
que ele mostra em várias cartas. Em 12 de janeiro de 1549, próximo de partir para o Japão,
escreve a Inácio de Loyola, mostrando que as conversões ao cristianismo eram diretamente
proporcionais ao tratamento dado pelos portugueses aos gentios:

(...) Dessa maneira, se os infiéis destes territórios fossem bem tratados pelos
portugueses, numerosos seriam aqueles que se tornariam cristãos; mas os gentios
viam que aqueles que são cristãos são tão maltratados e tão perseguidos que, por
37
esta razão, eles não querem se converter. (Idem, Ibidem, p. 248)

Enfim, as críticas do Apóstolo do Japão38 ao comportamento dos portugueses, tido


como escandaloso do ponto de vista cristão, são freqüentes em seu epistolário. Como afirma
Didier, do ponto de vista do missionário parece existir uma verdadeira contradição entre a
empresa mercantil/colonial e a religiosa, não necessariamente atribuída ao Soberano, chefe
das duas empresas, mas aos portugueses que, longe dos olhos do reino, dos olhos da corte, se
sentiam com mais liberdade para rapinar, matar, aprisionar, corromper, ou seja, com mais
liberdade para pecar. Do ponto de vista estritamente religioso, os comerciantes, colonos e
soldados portugueses eram mais pecadores do que os gentios e infiéis, pois, conhecedores da
verdadeira religião, não a praticavam, e faziam isto em nome do lucro, do dinheiro e do poder.

Outra característica da prática do Padroado português sob a bandeira jesuítica nas


Índias é relatada, nos documentos consultados, como mais um obstáculo para o bom termo
das missões: o problema dos sacerdotes das religiões nativas.

Xavier se mostra particularmente intransigente com a atuação dos sacerdotes


brâmanes, pois eles conseguiam reverter muitas conversões, atrasando o processo de
catequese. Em carta aos companheiros de Roma, escrita de Cochim em 15 de janeiro de 1544,

36
A Inquisição em Goa só vai ser edificada em 1560 e se tornou o mais ativo tribunal do império português,
sendo que os julgamentos mais numerosos foram relativos ao hinduísmo. (Bethencourt, 2000, capítulos VII e
VIII; e Tavares, 2002, capítulo III)
37
“(...) Toutefois, si les infidèles de ces contrées-ci étaient très bien traités par les Portugais, nombreux seraient
ceux que deviendraient chrétiens; mais les Gentils voient que ceux qui sont chrétiens sont si maltraités et si
persécutés que, pour cette raison, ils ne veulent point devenir tels.”
53

relata o encontro dele com os cristãos de Malabar, os quais, aliás, de cristãos tinham apenas a
roupagem, adjetiva a “casta” dos brâmanes, leia-se os sacerdotes e intermediários, de “a gente
mais perversa do mundo” (Idem, Ibidem, p. 108)39. Os sacerdotes brâmanes eram perversos,
pois ao pregarem àqueles que já haviam se convertido ao cristianismo, praguejavam que
iriam sofrer muito, os quais acreditavam, impedindo o progresso da missão. Para Xavier,
se “não existissem os Brâmanes, todos os gentios se converteriam à nossa fé” (p. 109)40.

Os problemas relacionados ao desenvolvimento das missões nas Índias eram


basicamente dois na visão do Superior dos jesuítas para a grande diocese de Goa e primeiro
Provincial, Xavier: o comportamento dos portugueses e a ação dos sacerdotes nativos. Esses
dois empecilhos, aliado à natural pouca disposição dos gentios em se manter conversos,
atrapalhavam o sucesso da missão do Padroado e gerava, não poucas vezes, desânimo no
jesuíta. No entanto, é interessante relatar que nas cartas de edificação41, aquelas endereçadas
sempre para um conjunto de irmãos jesuítas, seja em Portugal, seja em Roma, ou mesmo
genericamente para os da Europa, o desânimo nunca transparece, e se é mostrado, o é apenas
como mais um obstáculo a vencer para ser merecedor de todas as provas divinas a que eles
eram sujeitos.

As missões iam se desenvolvendo e, mesmo com os problemas apresentados, tinham


os seus momentos de crescimento das conversões. Entre as estratégias de evangelização que
aparecem nas cartas, para além dos relatos das viagens para vários lugares diferentes e
distantes entre si e de recursos materiais utilizados42, o batismo e a catequese das crianças são
merecedores de uma atenção especial.

O batismo das crianças ia ao encontro de uma estratégia, aos poucos percebida e


burilada pelos jesuítas, de catequizar as crianças, pois elas ainda não tinham outra religião
arraigada em suas vidas, como era o caso dos adultos, os quais se convertiam e muitas vezes
voltavam atrás devido à pregação dos sacerdotes nativos. Outro motivo que levou os jesuítas a

38
Título religioso pelo qual Francisco Xavier teve reconhecido seus trabalhos de missionário em terras
japonesas.
39
“c’est la plus perverse gent du monde”.
40
“n’y avait pas les Bramanes, tous les Gentils se convertiraient à notre foi”.
41
Na última parte deste trabalho apresento uma definição das Cartas de Edificação, que eram diferentes das
Cartas de Negócios.
42
Alguns destes recursos serão apresentados na última parte da tese ligados mais diretamente à estratégia de
adaptação para facilitar as conversões.
54

optar pelo batismo em massa das crianças era o fato de que a mortalidade infantil parecia ser
muito intensa naquela época e território, pois acreditavam que as crianças eram inocentes e,
nesses casos, sem pecados e passíveis de serem batizadas.

Em cartas dirigidas a Francisco Masilhas, escritas em 1544 – a primeira em 14 de


março e a segunda em 11 de junho – o tema do batismo das crianças aparece como imperativo
nas instruções do Superior Xavier: “faça muita diligência em batizar todas as crianças que
nascem e lhes instrua da forma que eu tenho dito” (Idem, ibidem, p. 116)43; e, “os adultos
não querem ir ao paraíso nem por bons nem por maus procedimentos, que ao menos as
crianças que morrem depois de serem batizadas possam ir para lá” (p. 123)44. Encontram-se
aqui dois aspectos das missões que são dignos de interesse, um mais geral e outro mais
particular. O primeiro é a inferência que se pode fazer de quão poderosa era a presença
portuguesa naquela região a ponto de todas as crianças nascidas serem batizadas
imediatamente, aparentemente sem a possibilidade de interferência dos aborígines gentios e
infiéis. Este fato não vai acontecer, por exemplo, no Japão e na China, pois nestes lugares o
poderio militar de Portugal era praticamente inexistente. Outro aspecto é a crença dos
missionários que se não era possível aumentar o número das almas adultas que iam para o céu
depois da morte, como objetivavam eles, pelo menos estavam salvando inúmeras almas
inocentes que, mesmo sem pecados, caso não recebessem o batismo, não iriam para o céu.

Na carta aos companheiros da Costa da Pescaria e de Travancore, de fevereiro de


1548, São Francisco Xavier, antes de sua partida para o Japão, transmite instruções aos irmãos
jesuítas que ficam nas Índias para que as missões não deixem de cumprir o seu papel. Para
isso, primeiro, se deve sempre batizar crianças recém-nascidas e crianças pequenas que não
tenham sido ainda batizadas; depois, se deve reunir as crianças nas cidades e vilas para os
ensinar e cobrar o que já sabiam das coisas da religião.

Para dar conta de tanto trabalho de catequese, especialmente das crianças, mas
também dos outros, se fazia necessário mais missionários, afinal, como escrito em muitas
cartas de missionários, a messe é grande e os operários são poucos, parafraseando o
evangelista Mateus. O aspecto a se ressaltar aqui com relação ao freqüente pedido de mais
padres diz respeito ao rol de características necessárias para o futuro missionário.

43
“mettrez beaucoup de diligence à baptizer tous les enfants qui naissent e vous les instruirez de la façon que je
vous ai dite”.
55

Xavier, como uma espécie de desbravador nesse campo de atuação da Companhia de


Jesus, indica, com autoridade, que tipo de padres eram importantes e, de certa forma, já
apresentava a preparação que eles teriam que ter; ou seja, só vontade de embarcar num navio,
viajar por meses a fio e chegar nas terras de além-mar para missionar, não era suficiente. Em
carta ao Geral Loyola, de 27 de janeiro de 1545, Xavier adverte que não é necessário um rigor
muito grande no que dizia respeito aos dotes intelectuais do futuro missionário, pois mesmo
aqueles que não possuíssem tanto talento para confessar ou fazer belos sermões seriam bem
utilizados:

(...) Com efeito, nestes lugares de infiéis, a ciência não é necessária; é suficiente
ensinar as preces e visitar as vilas para batizar as crianças; muitas dentre elas,
com efeito, morrem sem ter sido batizadas porque lá não há ninguém por batizá-
45
las e nós não podemos ir a todos os lugares. (...) (Idem, ibidem, p. 151)

E na mesma carta, Xavier mostra que não só virtudes cristãs, mas, virtudes físicas
eram pré-requisitos para as missões, pois a pouca comida, o muito calor, a falta de boa água,
eram problemas quase que cotidianos enfrentados pelos padres; por isso, os que fossem
enviados teriam que ser “bem jovens, sadios e não envelhecidos, afim de poder suportar as
fadigas contínuas para batizar, para ensinar, para ir de vila em vila” (p. 151)46.

Com relação ao primeiro aspecto das virtudes dos missionários, numa outra carta a
Loyola, já citada, escrita em 12 de janeiro de 1549, Xavier se mostra realista ao extremo para
com o Geral, na medida em que tem convicção de que para as missões entre os malabares
(tamouls) não era necessário que a pessoa fosse dotada de inteligência para pregar ou estudar,
recomendando que as pessoas da Companhia que “não possuam talentos nem para o estudo
nem para a pregação e que não sejam necessários onde moram ou em Roma ou em outras
localidades, serviriam a Deus com vantagem se eles estivessem aqui” (Idem, ibidem, p.
250)47, sendo que deveriam, ao menos, ser castos e com forças corporais necessárias para
enfrentar todos os problemas e rudezas daquelas terras.

44
“les adultes ne veulent aller au paradis ni par de bons ni par de mauvais procédés, qu’au moins puissent y
aller les petits enfants qui meurent après avoir été baptisés”.
45
“(...) En effet, dans ces contrées d’infidèles, la sciense n’est pas nécessaire; il suffit d’enseigner les prières et
de visiter les villages pour y baptiser les enfants; beaucoup d’entre eux, en effet, meurent sans avoir été
baptisés parce qu’il n’y a personne pour les baptiser et que nous ne pouvons pas aller partout. (...).”.
46
“jeunes et bien portants, et non pas malades ou âgés, a fin de pouvoir supporter les fatigues continuelles qu’il
y à baptiser, à enseigner, à aller de village en village.”.
47
“ne possédent de talent ni pour l’étude ni pour la prédication et dont on n’besoin chez vous ni à Rome ni
ailleurs, serviraient Dieu davantage s’ils étaient ici”.
56

Depois da sua estada no Japão48, São Francisco Xavier muda as características


necessárias para se escolher os missionários que forem trabalhar com os japoneses. Com uma
sociedade hierarquicamente mais forte e organizada e com uma religião mais complexa e
intelectualizada, se faz importante, agora, que os padres passem por uma formação mais
rigorosa antes de partir em missão. No entanto, não é isso que se quer destacar no momento,
pois na última parte deste trabalho, quando se apresentará a adaptação como estratégia para a
missão jesuítica, essas novas virtudes dos missionários serão detidamente analisadas. O que se
quer destacar, ainda uma vez, são as exigências para a evangelização no Japão não devendo
mandar nem velhos, pela exaustão do trabalho e nem jovens, pela falta de experiência. Esta
questão aparece em carta para Simão Rodrigues, escrita em 30 de janeiro de 1552:

Esta será a situação em que eles não terão mais tempo nem para comer nem para
dormir. O demônio utiliza então muitas maneiras para tentar, igualmente nestes
casos: quando um homem é privado do exercício espiritual, da meditação, da
contemplação mental, da oração e, a mais forte razão, quando ele é impedido de
tomar o Corpo do Senhor da mesma forma que de dizer a missa, e ao mesmo
tempo, quando se é perseguido pelos bonzos e também pelos grandes frios e pela
falta de provisões, quando se está longe de todo apoio e de toda ajuda humana,
49
se sentirá, creia-me, muito provado. (Idem, ibidem, p. 389)

Estas são as questões relativas ao Padroado português nas Índias e no Extremo Oriente
que julgou-se mais oportunas de serem apresentadas. São Francisco Xavier foi o grande
arauto das missões naquelas terras, tendo morrido justamente quando se preparava para levar
a religião cristã para mais uma região, a China. Apenas como mostra do trabalho realizado por
ele, Daniel-Rops (1969) afirma que Xavier teria percorrido, nos dez anos de missão, mais de
cem mil quilômetros, e isso levando-se em conta toda a dificuldade e morosidade dos
deslocamentos naquela época. E, como resultado da investida do jesuíta em terras japonesas,
informa que na última década de 1500, havia já 134 jesuítas no Japão, para uma população
católica estimada em 300 mil; trinta igrejas haviam sido construídas e em 1592, um bispo
havia sido nomeado.

48
São Francisco Xavier chegou em terras japonesas em 15 de agosto de 1549.
49
“Ce sera au point qu’ils n’auront plus de temps ni pour manger ni pour dormir. Le démon utilize alors de
grands procédés pour tenter, dans de pareils cas: lorsqu’un homme est privé d’exercice spirituel, de
méditation, de contemplation mentale, d’oraison et, à plus forte raison, quand il est empêché de prendre de
Corps du Seigneur aussi bien que de dire le messe, et en même temps, quand on est très persécuté par les
bonzes aussi bien que par les grands froids et par le manque de ravitaillement, quand on est loin de tout
appui et de tout aide humaine, on sera, croyez-moi, très éprouvé”.
57

Encontrar-se-á novamente com Xavier no capítulo 4, na terceira parte deste trabalho,


quando se apresentará a adaptação como estratégia para as missões como fazendo parte da
racionalidade institucionalizada da Companhia de Jesus.

O direito de Padroado nas Índias e Oriente teve seu momento de expansão na mesma
medida da expansão comercial portuguesa, ou seja, enquanto o poderio português era grande e
respeitado naquelas terras, o Padroado se desenvolvia; no entanto, como assevera Oliveira
(1958), a decadência do Padroado português seguiu, como não poderia deixar de ser, a
decadência do império português no Oriente.

O Padroado no Brasil

O direito de Padroado exercido em terras brasileiras sob a bandeira jesuíta, não diferiu
em muito do relatado por Francisco Xavier, havendo, porém, especificidades que não podem
ser ignoradas, como, por exemplo, a imensa diferença de poderio social, político e militar que
existia aqui entre os portugueses e os índios e os costumes dos aborígines daqui que eram
considerados bárbaros pela cultura européia, o que facilitava, de certa forma, o trabalho de
catequização. No entanto, como já informado anteriormente, algumas dessas especificidades
serão apresentadas na última parte deste trabalho, quando se discute a adaptação dos jesuítas.

Assim, neste item, seguir-se-á basicamente o mesmo esquema do anterior,


ressalvando, de início, a apresentação de uma documentação encontrada na série Monumenta
Brasiliae, acerca da oficialidade do direito do Padroado nestas terras brasílicas.

O Padroado português no Brasil começou, de fato, quando os primeiros jesuítas


chefiados por Manuel da Nóbrega desembarcaram no Brasil em 29 de março de 1549,
juntamente com Tomé de Souza, o primeiro Governador-geral. Na documentação consultada,
porém, a primeira carta onde aparece a relação do Rei como benemérito dos missionários
jesuítas foi escrita pelo Rei D. João III para Tomé de Souza, em 01 de janeiro de 1551. Nessa
carta está presente a obrigação do Rei no aprovisionamento material dos responsáveis pela
empresa religiosa:
58

Nessa Capitania do Brasil andam alguns Padres e Irmãos da Companhia de


Jesus, os quaes folgarei, que sejam providos do que lhes for necessario, assim
para o seu mantimento, como para o seu vestido; encommendo-vos, e mando-vos,
que lhe façaes dar tudo o que para as ditas cousas houverem mister; pelo traslado
desta, e vossos Mandados, e assento do Escrivão do Official, que lhe as ditas
cousas der, mando aos Contadores, que lhe levem em conta o que nisso
dispender. Antonio de Mello a fez em Almeirim ao primeiro dia de Janeiro de 1551.
André Soares a fez escrever, a qual vinha assignada por Sua Alteza”. (In: Leite,
1956, p. 211)

Em mais uma carta, D. João III, agora em 1557, provavelmente a pedido dos próprios
jesuítas portugueses, escreve a Francisco Fernandes, que era vigário geral da Bahia,
encomendando àquela autoridade religiosa que “em tudo o que os Padres da Companhia de
Jesus vos pedirem os ajudeis, e favoreçaes no intento que tem do Serviço de Nosso Senhor, a
Salvação das Almas” (Idem, 1957, p. 357).

No reinado de D. Sebastião, quando D. Henrique era regente, há um momento no qual


se reafirma o direito do Padroado administrado pela Companhia de Jesus, através do
documento de Fundação do Colégio da Baía, datado de 07 de novembro de 1564. O Colégio
Real da Bahia foi criado 1556 e os “padrões” de sua fundação eram reafirmados pelos reis
para garantir os privilégios e esmolas reais;

1. Dom Sebastião per graça de Deos, Rei de Portugal e dos Algarves d’aquem e
d’alem mar em Africa, senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comercio
d’Ethiopia, Arábia, Persia e da India, etc., como governador e perpetuo
administrador que são da Ordem e Cavalaria do Mestrado de Nosso Senhor Jesu
Chisto, faço saber a quantos esta minha carta de doação virem, que considerando
eu a obrigação que a Coroa de meus Reinos e Senhorios tem à conversão da
gentilidade das partes do Brasil e instrução e doutrina dos novamente convertidos,
assi por as ditas partes serem da conquista destes Reinos e Senhorios, como por
estarem os dizimos e fruitos ecclesiasticos delas, por Bullas dos Santos Padres,
aplicados à Ordem e Cavalaria do dito Mestrado de Nosso Senhor Jesu Christo,
de que eu e os Reis destes Reinos meus subcessores somos governadores e
perpetuos administradores.” (Idem, 1960, pp. 95-96)

Mais a frente no mesmo documento, há a referência ao Colégio como morada,


também, dos padres e irmãos jesuítas. É interessante notar que o colégio não era apenas um
espaço físico com dimensões locais, mas representativo de toda a Companhia no Brasil:

4. O qual collegio fosse tal que nelle podessem residir e estar até sessenta pesoas
50
da dita Companhia , que parece que por agora deve aver nele, pellos diversos
lugares e muitas partes, em que os ditos Padres residem e a que do dito collegio
são emviados pera bem da conversão e outras obras de serviço de Nosso Senhor.
(Idem, ibidem, p. 97)

50
Em nota de rodapé, Serafim Leite ajuda a entender o motivo de se citar o número de jesuítas que existiam no
Brasil naquele momento: Os Padres e Irmãos residentes nos diversos lugares do Brasil, eram exactamente 61
em 1568. Donde se segue que nesta primeira dotação régia, o Colégio da Baía não se apresentava como
entidade local, mas representativa de toda a Companhia de Jesus no Brasil. (...)” (p. 97)
59

As atividades da Companhia de Jesus no Brasil desenvolveram-se rapidamente e,


devido às grandes dimensões da costa onde estavam as casas, colégios e reduções indígenas,
os superiores jesuítas resolveram criar a Província do Brasil, a primeira do Novo Mundo. Em
carta de 09 de julho de 1553, o Geral Inácio de Loyola informa da criação da nova Província e
designa Manuel da Nóbrega como o primeiro Provincial. É interessante a reprodução total da
carta, dado o seu valor histórico e aos aspectos da Companhia no Brasil que aparecem nela,
como, por exemplo, o papel do Provincial e a clareza que a província recém-criada estava sob
a autoridade do Rei de Portugal.

Inácio de Loyola, Prepósito Geral da Companhia de Jesus:


Ao dilecto em Cristo Irmão P. Manuel da Nóbrega, presbítero da mesma
Companhia, saúde sempiterna no Senhor.
1. Crescendo cada vez mais o número dos que em diversas regiões pela graça de
N. S. Jesus Cristo seguem o nosso Instituto, cresce também a necessidade de
prover a muitas coisas e portanto de dividir com outros este cargo; e pareceu no
Senhor convir que, pondo em nosso lugar algum dos nossos Irmãos e
constituindo-o Prepósito de todos os que vivem sob a obediência da nossa
Companhia da Índia do Brasil, sujeita ao sereníssimo Rei de Portugal, e outras
regiões mais além, ao mesmo confiássemos tudo o mais que pertence ao nosso
ofício.
Nós, portanto, da vossa piedade e prudência, que está em Cristo Jesus, confiando
muito no mesmo Jesus, vos criamos e constituimos, com toda a autoridade, que a
Sé Apostólica nos concedeu e as Constituições da nossa Companhia nos
conferem, e em virtude da santa obediência, Prepósito Provincial de todos os
Nossos, que se encontram nas regiões indicadas; para que, tomando essa parte
do nosso cuidado e autoridade, useis da mesma plenìssimamente, para inquirir,
ordenar, reformar, inibir, proibir, admitir na Companhia para a provação, e afastar
da mesma os que parecer bem, prover em qualquer ofício e depor dele, e, numa
palavra, para dispor de tudo, como se nós estivéssemos presente, poderíamos
dispor, quanto a lugares, coisas e pessoas, e como julgardes convir para a glória
de Deus. Contando com a graça de Deus, esperamos no Senhor que isto há-de
ser para a sua honra, proveito espiritual dos que dependem de nosso cuidado, a
salvação das almas em geral.
Dado em Roma, aos 9 de Julho de 1553. (Idem, 1956, p. 508)

O aspecto ressaltado de a província do Brasil continuar sob a autoridade do Rei


português será objeto de uma análise mais específica e detalhada no próximo item deste
trabalho. Por enquanto, o importante foi acompanhar, através das falas dos próprios atores à
época, a oficialidade da Companhia como administradora da empresa religiosa, ou a garante
do direito de Padroado da Coroa portuguesa.

Quanto ao desenrolar do cotidiano das missões no Brasil, com o acúmulo da


experiência tanto nos aspectos mais propriamente religiosos quanto nos sociais e políticos,
pode-se estabelecer, da mesma forma que o Padroado no Oriente, quatro aspectos a serem
destacados: as críticas ao comportamento pouco cristão dos comerciantes e colonos
60

portugueses, bem como ao clero secular; o poder dos sacerdotes nativos; o batismo e a
catequese das crianças; e, as qualificações necessárias dos futuros missionários.

Assim como nas cartas de Xavier, não é difícil encontrar críticas ao comportamento
dos portugueses, pois a impressão que passa das cartas dos jesuítas no Brasil é que eles
também consideravam que havia uma contradição entre a empresa colonial e a empresa
religiosa. E essa apreensão não demorou a acontecer. Nas três primeiras cartas de Nóbrega a
Simão Rodrigues, Provincial de Portugal e seu Superior imediato, as críticas já existem.

Na primeira que escreve em 1549, a qual deve ter sido escrita entre 31 de março e 15
de abril, Nóbrega informa ao seu Superior imediato que uma das primeiras tarefas deles
consistiu em encontrar bons cristãos, tanto leigos como clérigos, que colaborassem com o
projeto religioso. No entanto, a decepção do jesuíta é evidente:

(...) Sómente temo o mau exemplo que o nosso Christianismo lhe dá, porque ha
homens que ha sete e dez annos que se não confessam e parece-me que põem a
felicidade em ter muitas mulheres. Dos sacerdotes ouço cousas feias. Parece-me
que devia Vossa Reverendissima de lembrar a Sua Alteza um Vigario Geral,
porque sei que mais moverá o temor da Justiça que o amor do Senhor. (...).
(Nóbrega, 1988, p. 75)

Na segunda carta de 1549, escrita provavelmente em 15 de abril, Nóbrega chega à


conclusão de que a culpa da existência de um clero tão pouco cristão em terras brasileiras era
da corte que não enviava gente séria para cá, “é a escória que de lá vem”, reclamava ele,
sendo necessário escolher melhor os sacerdotes para a missão, pois aqueles que não tem uma
vida digna “destruem quando se edifica” (Idem, ibidem, p. 77).

Na terceira carta de 1549 que escreve para Simão Rodrigues, datada de 09 de agosto,
Nóbrega faz um balanço das atividades na Bahia e, uma vez mais, faz questão de mostrar que
não é possível confiar nem nos colonos e comerciantes e nem no clero. Por exemplo, com
relação aos futuros bispos que deveriam vir para cá, assevera que viessem “para trabalhar e
não para ganhar” (Idem, ibidem, p. 83), pois se o objetivo era ganhar dinheiro, lucrar com a
prelazia, não havia diferença entre eles e os leigos que freqüentemente escandalizavam os
gentios da terra. Aliás, esse é um dos motivos alegados para a estratégia que vai ser comum
no Brasil, de juntar os índios, para melhor reduzi-los à fé cristã. Note-se, na passagem que
segue, que Nóbrega chega a considerar o gentio da terra moralmente melhor do que os
próprios cristãos:
61

De maneira que os primeiros escandalos são por causa dos Christãos, e certo
que, deixando os maus costumes que eram de seus avós, em muitas cousas
fazem vantagem aos Christãos, porque melhor moralmente vivem, e guardam
melhor a lei da natureza. Alguns destes escravos me parece que seria bom juntal-
os e tornal-os á sua terra e ficar lá um dos nossos para os ensinar, porque por
aqui se ordenaria grande entrada em todo este Gentio. (Idem, ibidem, p. 81)

Das críticas de Nóbrega, que são numerosas, mais alguns exemplos merecem menção.
No primeiro, escolhido de carta de 1551, escrita de Pernambuco para os irmãos de Portugal, o
Superior jesuíta no Brasil é radical em sua apreciação crítica dos sacerdotes, afirmando que
eles têm ofício mais de demônios do que de clérigos, acrescentando que se os jesuítas não
tivessem a proteção de el rey possivelmente já teriam sido mortos a mando dos clérigos
corruptos. Percebe-se que o embate dos jesuítas, particularmente de Nóbrega, com o clero,
principalmente o secular, era intenso. No próximo item deste trabalho, ter-se-á a oportunidade
de ver que as atitudes tidas como radicais de Nóbrega nem sempre eram vistas com bons
olhos pelos superiores de Portugal.

Um dos membros do alto clero que é criticado por Nóbrega é o bispo Pedro Fernandes.
Numa carta ácida a Simão Rodrigues, de 12 de fevereiro de 1553, o bispo é apresentado como
venal e corrupto, sendo odiado pelo povo. O interessante nesta crítica é que os escândalos que
o bispo e seus visitadores provocavam só faziam aumentar o crédito da Companhia de Jesus
entre as pessoas em geral:

El Obispo en el principio desacreditónos mucho y [se] puso muy bravo, pero luego
vino a caer algo, tanto que tenía sido los de la Compañía. El pueblo así de la
ciudad del Salvador como de las Capitanías, de ver que les llevan su dinero, de an
ganado grande odio al Obispo y a sus visitadores, y todo redunda en crédito de la
Compañía, aunque muchos a que no absolvemos y hallan quien los absuelva nos
quieren poco bien, quia testimonium perhibemus quod opera eorum mala sunt, et
ideo non possunt non odisse nos [Joao 7,7: “O mundo não vos pode odiar, mas
ele me odeia a mim, porquanto dele testifico que as suas obras são más”]. (In:
Leite, 1956, p. 422).

O outro exemplo referente às críticas do primeiro superior dos jesuítas no Brasil diz
respeito, uma vez mais, ao comportamento lascivo e escandaloso dos colonos portugueses. No
entanto, na carta de 1550, escrita em Porto Seguro, Nóbrega chega à conclusão de que tal
comportamento era devido, também, ao modo de vida dos colonos que, com a prática da
escravidão dos índios, deixam de ser trabalhadores, sendo invadidos pela preguiça e pela
sensualidade. E conclui ainda o jesuíta, de forma realista, que seria muito difícil tirar o
homem branco de uma vida de prazeres e comodidade, “porque os homens que aqui vêm não
acham outro modo sinão viver do trabalho dos escravos, que pescam e vão buscar-lhes o
62

alimento, tanto os domina a preguiça e são dados a cousas sensuaes e vicios diversos e nem
curam de estar excommungados, possuindo os ditos escravos” (Anchieta, 1988, p. 110).

Na carta escrita em 1559 da Bahia a Tomé de Souza, quando este já não era mais
governador do Brasil, encontra-se talvez o mais enfurecido desabafo de Nóbrega quanto aos
pecados dos capitães e prelados, ecclesiasticos e seculares. Nesta carta, o jesuíta lembra que
os dois chefes locais dos dois empreendimentos da Coroa portuguesa no Brasil, ele e Tomé de
Souza, tinham a esperança comum da vinda de um bispo para reformar os cristãos e a
conversão total e pacífica dos índios. Como nenhum dos dois objetivos foi conseguido, e
muito por culpa dos brancos portugueses, Nóbrega faz um dasabafo digno de nota:

(...) Ó cruel costume! Ó deshumana abominação! Ó Christãos tão cegos! que, em


vez de ajudarem ao Cordeiro, cujo ofício foi (diz s. João Baptista) tirar os pecados
do mundo, elles, por todos os modos que podem, os mettem na terra, seguindo a
bandeira de Lucifer homicida e mentiroso desde o principio do mundo! E não é
muito que sigam a seu Capitão gente, que não sei si alguma hora do anno está
sem pecado mortal! (...). (Nóbrega, 1988, p. 196)

José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil51, também encontra motivos para censurar o


comportamento dos portugueses. Do relatório quadrimestral, de maio a setembro de 1584,

51
Assim como Xavier é o Apóstolo do Japão, Anchieta recebeu o título religioso de Apóstolo do Brasil, por ser
considerado como o mais importante missionário jesuíta nestas terras.
63

escrito ao Provincial de Portugal e ao Geral em Roma, destaca-se a crítica aos brancos, os


quais além de não contribuir para a conversão dos índios, os pervertiam, escravizando-os e
colocando-os aos seus serviços de comércio. Na carta, Anchieta questiona se se pode chamar
tal gente de cristãos, pois “são cristãos, nascidos de cristãos! Quem na verdade é espinho,
não pode produzir uvas” (Anchieta, 1988, p. 57).

Já na qualidade de Provincial do Brasil, Anchieta escreve ao Geral Aquaviva em


setembro de 1594, onde faz um relatório de como estava organizada a Companhia de Jesus até
aquele momento, ressaltando um ponto comum nas missões brasílicas desde o seu início: o
conflito dos jesuítas com os brancos portugueses, os quais, ao escravizar os índios, acabavam
por obstaculizar, seriamente, o trabalho catequético.

Nesta do Espirito Santo encontro agora muita perturbação entre os Portugueses,


uns com os outros, sôbre pretenções de ofícios e honras, e, com os nossos,
porque não lhes concedemos que façam dos Indios Cristãos á sua vontade,
querendo servir-se deles a torto e a direito. Mas como esta é guerra antiga, e no
Brasil não se acabará senão com os mesmos Indios, trabalha-se todo o possivel
pela sua defensão, pera que com isto se salvem os predestinados, que, se não se
tivesse respeito a isto, era quase insofrivel a vida dos Padres nas aldeias, sed
omnia sustinemus propter electos [e tudo suportamos por causa dos escolhidos]
(Anchieta, 1988, p. 301)

Mesmo com costumes considerados bárbaros, como da antropofagia ritual e de


andarem sem roupas, a mansidão dos índios – daquelas tribos que não faziam guerras
constantes contra os portugueses – era usada como contraponto moral mais elevado para o
comportamento dos brancos portugueses. Se não fosse a sede insaciável dos brancos de ter
índios escravos como serviçais e como mercadoria de troca, diziam os jesuítas, dentre eles
Anchieta, o trabalho dos missionários nestas terras seria bem mais tranqüilo.

Esta questão aparece com muita clareza em uma carta de outro missionário jesuíta no
Brasil, Antonio Blasquez que, em 1584, escrevendo ao Provincial de Portugal apresenta uma
síntese das agruras nas missões, destacando principalmente que o maior problema não era a
inconstância dos gentios, mas o enfrentamento com os portugueses que viam nos padres
jesuítas empecilhos às suas aspirações materiais. É muito interessante a passagem transcrita e
serve, também, como fecho deste tópico:

Posto que a Divina Providencia o anno proximo passado nos haja querido visitar
com alguns trabalhos, não foram todavia tão secos e duros, que não usasse
connosco da sua costumada misericordia e clemencia, fazendo o que em si era
aspero mui saboroso pelo seu divino amor; porque, fallando verdade, são tantos
os estorvos e impedimentos que ás vezes cá sobrevêm, não só da parte desta
Gentilidade por sua inconstancia e mutabilidade, como por parte dos Christãos
com seu pouco favor e auxilio, por lhes parecer que embaraçamos os seus
64

proprios interesses e proveitos que têm com os Indios, que se faria mui pesado o
seu suavissimo jugo aos homens fracos e debeis, si elle não misturasse e
temperasse essas continuas afflicções e ancias com as consolações que sentimos
em a conversão de muitas almas ao seu Creador”. (Navarro, 1988, p. 430)

Um outro aspecto a ser destacado do cotidiano das missões jesuítas no Brasil diz
respeito ao problema dos sacerdotes nativos ou, como são conhecidos aqui, os pajés.

Por mais que o processo de conversão e de doutrinação dos jesuítas para com os índios
não se revestisse de violência física, para os índios era muito difícil separar, pelo que aparece
nas cartas, a mensagem dos padres da força dos brancos portugueses. Os pajés incitavam
sempre os seus pares para compreenderem que a conversão à religião dos padres brancos era
sinônimo de subjugação aos interesses dos outros brancos. A tarefa do pajés era de resistência
de uma religião e de uma cultura; e era, também, a resistência de um poder que, com a nova
religião, deixava de ter status.

A vitória sobre os pajés era motivo de júbilo entre os jesuítas, pois representava
sempre a vitória sobre a maior resistência à conversão ao cristianismo. Nóbrega, em carta ao
Dr. Navarro, escrita ainda em 1549, narra, com nuances de disputa entre a Verdade e o Erro,
seu primeiro embate com um pajé:

(...) Procurei encontrar-me com um feiticeiro, o maior desta terra, ao qual


chamavam todos para os curar em suas enfermidades; e lhe perguntei em virtude
de quem fazia elle estas cousas e se tinha comunicação com o Deus que creou o
Ceu e a Terra e reinava nos Ceus ou acaso se comunicava com o Demonio que
estava no Inferno? Respondeu-me com pouca vergonha que ele era Deus e tinha
nascido de Deus e apresentou-me um a quem havia dado a saude, e que aquelle
Deus dos ceus era seu amigo e lhe apparecia frequentes vezes nas nuvens, nos
trovões e raios; e assim dizia muitas outras cousas. Esforcei-me vendo tanta
blasphemia em reunir toda a gente, gritando em altas vozes, mostrando-lhe o erro
e contradizendo por grande espaço de tempo aquillo que elle tinha dito: e isto,
com a ajuda de um lingua, que eu tinha muito bom, o qual fallava quanto eu dizia
em alta voz e com os signaes do grande sentimento que eu mostrava. Finalmente
ficou elle confuso, e fiz que se desdissesse de quanto havia dito e emendasse a
sua vida, e que eu pediria por elle a Deus que lhe perdoasse: e depois elle mesmo
pediu que o baptisasse, pois queria ser christão, e é agora um dos cathecumenos.
(...). (Nóbrega, 1988, p. 95)

É um embate desigual, entre duas formas religiosas completamente diferentes, com


duas racionalidades e complexidades diferentes. A força da persuasão da religião cristã,
descrita como grande vitória por Nóbrega, também só foi possível graças à força da persuasão
da espada do reino português. No entanto, a par desta constatação, é muito interessante
acompanhar este tipo de relato nas cartas dos jesuítas, pois tem-se a certeza de que para eles
era algo a ser muito louvado na medida em que mais criaturas de Deus estavam tendo a
preciosa oportunidade de receber a verdadeira religião. Não há discussão sobre qual cultura é
65

melhor; não há espaço de divergência sobre a verdadeira religião; pode-se até polemizar se
era legítimo ou não escravizar os gentios da terra, ou se era viável ou não reduzi-los para
melhor evangelizá-los; o que não se discutia, tal qual um dogma, é que a cultura portuguesa
era a melhor pois a religião cristã, que era sua base, era a verdadeira. Por isso a vitória sobre
os pajés era importante.

Noutras cartas de Nóbrega aparece novamente a referência aos pajés como aqueles que
obstaculizavam, por dentro, ou seja, entre os próprios índios, o processo de conversão cristã.
Quando escreve para os irmãos de Portugal em 1551, por exemplo, o Superior do Brasil ao
fazer um resumo do comportamento dos gentios até aquele momento, mostra que os pajés
continuavam atuantes:

Em estas partes depois que cá estamos, charissimos Padres e Irmãos, se fez


muito fructo. Os Gentios, que parece que punham sua bemaventurança em matar
os contrarios e comer carne humana e ter muitas mulheres, se vão muito
emendando, e todo o nosso trabalho consiste em os apartar disto; porque todo o
demais é facil, pois não têm idolos, ainda que ha entre elles alguns que se fazem
santos, e lhes promettem saude, e Victoria contra seus inimigos. (Idem, ibidem, p.
114)

Em alguns momentos nas missões, quando os pajés se mostravam muito importunos,


os jesuítas solicitavam ao governador, ou outra autoridade delegada, que mandasse prendê-
los. Foi isso o que informou Nóbrega ao Geral Loyola, em 1557; e, pelo motivo da prisão de
um feiticeiro, leia-se pajé, os índios ficaram mais temerosos e voltaram às missas, a ouvir as
doutrinas e a liberar seus filhos para o catecumenato.

Depois da missa, o momento mais importante no processo de evangelização dos índios


no Brasil era o catecumenato, ou seja, a catequese específica das crianças e jovens, os
indiosinhos. Como pode-se ver em Xavier, aqui no Brasil os jesuítas também perceberam que
a educação das crianças se tornava um caminho muito frutífero para desenvolver as missões.

Na carta já citada de Nóbrega para o Dr. Navarro, de 1549, o jesuíta se ocupa também
de mostrar o sucesso das conversões entre os índios. É uma carta edificante para os jesuítas,
pois além de mostrar a vitória sobre o pajé, mostra que haviam conseguido inúmeras almas
para Deus, informando que era pelas crianças que se iniciava a conversão, as quais
convertiam, por sua vez, seus pais. Nesse primeiro momento o que se percebe, e que aparece
nesta mesma carta, é que as crianças e os chefes das tribos eram os alvos preferidos das
primeiras conversões, pois através deles toda a tribo seria convertida.
66

Um dos relatos mais interessantes a respeito do batismo é fornecido pelo jesuíta João
de Azpilcueta Navarro, através de uma carta para os companheiros de Portugal, escrita em 28
de março de 1550. Na epístola, o jesuíta discute a quem deveria e a quem não deveria deferir
o batismo, ou seja, no estado em que se encontravam os gentios, seus pecados, seus costumes,
suas relações etc., a quem era permitido ou não entrar para as hostes da religião cristã.
Observe-se que às crianças é permitido o batismo, pois são de boa inclinação ao contrário dos
adultos.

(...) Mas por duas cousas principalmente entendo que se lhes não deve
administrar o Baptismo. Uma, é não terem Rei a quem obedeçam, nem moradia
certa, mudando-se de aldêa todos os annos, e ás vezes mais frequentemente
quando succede algum d’elles embriagar-se e encolerisar-se, pois em taes
circumstancias nada menos fazem do que pegarem em um tição e tocarem fogo á
propria casa, donde o fogo pega nas outras por serem de palmas e d’esta arte
fica em cinzas toda a aldêa. (...) Não sei si dá por obra dos feiticeiros, os quaes
dizem que os vou ensinando para ter menos trabalho em fazer-lhes soffrer quando
forem feitos escravos nossos, tanto que asseveram que os fossos da cidade e
mais uma fonte que por necessidade se abriu, foram feitos para os pôr ali dentro e
os affogar, e os mais velhos são tão maliciosos, em grande parte, que todo o bem
que lhes diga convertem, como a aranha, em veneno; só aos pequenos acho com
boa inclinação, si os tirássemos de casa de seus Paes, o que não se poderá fazer
sem que Sua Alteza faça edificar um collegio nesta cidade com destino a essas
crianças para as educar, de maneira que com os maus costumes e malicia dos
Paes se não perca o ensino que se ministra aos filhos. (Navarro, 1988, pp. 76-77)

Vários são os relatos encontrados no interior das cartas dos padres jesuítas no Brasil
sobre o batismo das crianças, principalmente as doentes, e a catequese para elas. No entanto,
acredita-se que os exemplos aqui fornecidos são suficientes para mostrar esse aspecto do
cotidiano das missões.

Antes porém, de apresentar outro aspecto das missões, não se pode furtar, pelo menos,
a dar um destaque maior a uma questão presente nas duas últimas cartas citadas: a concepção
dos jesuítas de que, estrategicamente, a conversão dos chefes das tribos era de suma
importância. Esta crença, na verdade, expressava uma concepção e uma prática de sociedade
corrente no século XVI, quer seja, os povos com uma estrutura altamente centralizada e com
um governo de vastos poderes.

A prática da Companhia de Jesus vai mostrar, tanto em Portugal, quanto no Oriente e


no Brasil, que a aproximação com o poder central era de suma importância. Xavier, por
exemplo, fica visivelmente desapontado quando descobre que o imperador japonês não
passava, em meados daquele século, de um fantoche nas mãos dos seus ministros e daimios;
pois, pensava Xavier, se o imperador se convertesse à verdadeira religião, toda a sociedade
67

japonesa se converteria, ou pelo menos, uma grande parte, além de contar com o apoio do
principal mandatário do país. Aliás, um dos motivos da decepção de Xavier com as missões
entre os malabares, brâmanes e outros povos indianos, era o fato de entre eles inexistir um
poder central fortalecido e respeitado.

No Brasil, outrossim, se procurou sempre conseguir primeiro os beneplácitos dos


chefes indígenas, convertendo-os, pois, dessa forma geralmente estava aplainado o caminho
da conversão dos demais. No entanto, o que realmente os jesuítas sonhavam, como vimos na
carta acima de Navarro, era com um Rei que congregasse todas as tribos e, conseqüentemente,
converter esse utópico Rei e seu igualmente utópico reino.

O outro aspecto das missões do Brasil, sobre o qual já se comentou nas missões nas
Índias, é referente ao contínuo pedido de mais padres para trabalharem na conversão dos
gentios, junto às cidades e também com os escravos negros das fazendas. Em praticamente
todas as cartas enviadas para os companheiros em Portugal, na Europa, para o Provincial
português, para o Geral em Roma, ou mesmo para o Soberano português, se pede
insistentemente mais trabalhadores para a messe. De todas as possíveis referências, ver-se-á
apenas duas que fogem um pouco do lugar-comum destes pedidos.

A primeira encontra-se numa carta já citada de Navarro, de março de 1550, na qual o


jesuíta levanta algumas características que o futuro missionário deve ter e merece destaque a
coincidência com as cartas de Xavier nesse sentido, escritas antes de sua ida ao Japão, quer
seja, a minimização da necessidade de padres letrados:

Approuve a Deus Nosso Senhor que chegassem os Padres mandados dahi, e


esperamos que façam grande fructo com os selvagens como fariam outros si
tivessem muita caridade e castidade de par com as forças corporaes para supprir
ás necessidades de tantos. As letras [sic] são o menos necessario, bem que entre
os Christãos e entre os mesmos gentios conversos, sejam as lettras [sic] precisas
para a solução de casos diversos que entre elles se dão”. (Navarro, 1988, p. 79)

O fato de se defrontar com expressões religiosas relativamente simples, no sentido de


não serem intelectualizadas, com teologias, doutrinas e filosofias, como era o caso das
religiões dos indígenas aqui no Brasil, acarretava o esvaziamento de exigências intelectuais
como critérios para se escolherem os missionários. Somente quando se tratou de enfrentar os
bonzos japoneses e, principalmente os mandarins chineses, é que o critério de intelectualidade
e ciência passou a ser definidor. Para o Japão e para a China vários são os padres
matemáticos, físicos, astrônomos, biólogos etc. que foram enviados.
68

Outro aspecto que merece destaque e, de certa forma, é coerente com o anterior está
presente na carta de Inácio de Azevedo, o primeiro jesuíta Visitador da Província do Brasil52,
para o Geral Francisco de Borja, em 23 de agosto de 1566. A carta é um relatório acerca das
questões pendentes da decisão do Visitador e, a certa altura, indica que como o trabalho era
muito grande, era necessário o envio de muitos padres e irmãos para darem conta dele,
principalmente pelo fato de que não era possível contar, pelo menos ainda, com a
possibilidade de vocações próprias no Brasil:

4. Ay mucha falta de subieitos [sujeitos] en esta tierra, porque los naturales Indios,
por averiaguado se tiene acá que no son para ser admitidos a la Compañía ni los
mistizos. Los otros, que an venido del Reino, son todos ocupados en nuevas
haziendas y sus hijos lo mismo, de manera que no los poden en studios”. (In:
Leite, 1960, p. 368)

Já fazia dezessete anos que os jesuítas estavam no Brasil e não havia, ainda, como
contar com padres formados aqui mesmo. Essa constatação vai ao encontro do conceito que
os jesuítas tinham da própria religião gentílica e de como era difícil fazer com que eles, os
índios, permanecessem convertidos e praticantes da religião. Também contribuía o fato de a
racionalidade religiosa dos gentios da terra não ser preparada para dar conta de outra
racionalidade bem mais complexa, pois uma coisa era, por exemplo, ouvir missa e, outra,
dizer missa53.

Além destes aspectos das missões, comuns nas Índias e Oriente, existem alguns relatos
no Brasil que revelam outras facetas de como os jesuítas encaravam suas missões, do que era
importante informar aos outros irmãos, e de como, com o decorrer do tempo, apareceram as
dificuldades de manter casas e colégios.

No epistolário jesuítico era comum, até porque ordenado pelos superiores, a


informação não somente referente aos sucessos e intempéries nas missões, mas do
comportamento das autoridades e dos portugueses em geral e, também, da cultura dos povos a

52
Inácio de Azevedo foi escolhido primeiro Visitador da Província de Brasil, tendo chegado aqui em 23 de
agosto de 1566. Na viagem de retorno ao Brasil, em 1570, o navio onde ele e mais 39 jovens jesuítas ainda em
formação estavam, foi atacado por corsários hunguenotes de origem francesa e todos morreram no dia 15 de
julho.
53
Em sua tese de doutorado, Tavares faz uma interessante citação de uma determinação do padre jesuíta
Alexandre Valignano, como Visitador da província de Goa em 1588, proibindo que se aceitasse nativos
indianos entre os futuros jesuítas, “excetuando-se os japões” (p. 112, nota de rodapé 78). Ao que parece,
tanto entre os nativos do Brasil como entre os hindus não havia, na visão das autoridades
jesuíticas, preparo intelectual ou mesmo racionalidade própria para conseguir entender a complexidade
da religião cristã na condição de sacerdote. A exceção feita aos japoneses e, futuramente, aos chineses,
indica que para as mesmas autoridades, estes tinham uma religião intelectualizada, avançada mesmo, que os
capacitava a serem padres jesuítas.
69

serem conquistados para a fé cristã. Numa carta de Loyola, por exemplo, de 1553, para o já
Provincial Manuel da Nóbrega, são indicados os principais temas que deveriam fazer parte
das cartas, agora endereçadas diretamente ao Geral em Roma; nas cartas, além de informar
sobre os da Companhia, deveriam noticiar “quanto à região onde moram, qual o clima e
graus geográficos, quais os vizinhos, como andam vestidos, que comem, como são suas casas
e quantas, segundo se diz, e que costumes têm; quantos cristãos pode haver, quantos gentios
ou mouros (Cardoso, 1993, p. 89).

Quanto ao clima, fauna, flora do Brasil, bem como dos usos e costumes dos indígenas,
o documento talvez mais importante produzido pelos jesuítas é a famosa carta de Anchieta
para o Geral Laiñez, escrita em São Vicente, no mês de maio de 1560 (Anchieta, 1988). A
descrição que o Apóstolo do Brasil faz é deveras interessante e pode ser considerado um dos
primeiros documentos etnográficos e antropológicos do Brasil, o qual possibilitou, com
certeza, que inúmeros jesuítas espalhados pelo mundo e inúmeros fiéis que ouviram o relato
nas missas em que os padres liam cartas nos sermões, tivessem um conhecimento mais
pormenorizado destas terras. É claro que alguns nomes não coincidem com os conceitos; que
alguns erros foram cometidos, se se fizer a ingrata comparação com os avanços superiores da
biologia, da botânica e da antropologia; é claro, também, que a descrição é feita por um padre
do século XVI e, portanto, crivada pelo conteúdo religioso que ele carregava; no entanto, não
se pode simplesmente desconsiderar a importância e a sensibilidade de Anchieta ao elaborar
tal relatório.

Na longa carta estão presentes informações sobre as fortes tempestades de verão


freqüentes aqui e a tranqüilidade com que os índios se relacionavam com elas; explicações
acerca de palavras indígenas; apresenta-se um rol de animais silvestres, mamíferos, feras,
insetos e aves; descreve-se plantas como a mandioca, base alimentar indígena, e outras plantas
medicinais e várias árvores; se faz o relato das lendas indígenas, como o curupira , a iara e o
boitatá54; mostra, finalmente, que era muito raro encontrar nestas terras gentios que fossem
deficientes.

54
O interessante, nesta parte do relato, e através do qual se pode perceber claramente a pena do homem religioso
que está a escrevê-lo, é o fato de Anchieta parecer crer realmente na existência desses seres fantásticos,
abribuindo sua existência ao fato de que os gentios não conheciam Deus e, portanto, eram vulneráveis a
demônios: “Ha tambem outros espectros do mesmo modo pavorosos, que não só assaltam os Indios, como
lhes causam dano; o que não admira, quando por êstes e outros meios semelhantes, que longo fôra enumerar,
quer o demonio tornar-se formidavel a êstes Brasis, que não conhecem a Deus, e exercer contra eles tão
cruel tirania” (p. 139).
70

Enfim, o objetivo de trazer o relato de Anchieta é mostrar, tão somente, um aspecto


que perpassa a documentação jesuíta produzida nas missões, pois em outras cartas os usos e
costumes dos indígenas e a fauna e a flora também são relatados – mas nenhum com a riqueza
dos detalhes constante na de Anchieta –, indicando uma preocupação de toda a Companhia
em procurar conhecer profundamente o terreno da missão para melhor poder reduzi-lo às
hostes do cristianismo.

Outro aspecto que perpassa muitas cartas dos missionários jesuítas e fazia parte da
preparação mística dos futuros agentes nas missões, diz respeito a como encarar a morte, algo
tão próximo deles devido às condições nem sempre satisfatórias de trabalho e às lutas e
desentendimentos com os inimigos. O martírio, ou seja, a morte violenta pelos inimigos da fé
cristã no pleno exercício das atividades de missionário, era algo com que se deveria conviver,
aceitar e até desejar como a forma mais digna, mais apostólica, de ter servido a Deus.

Mais uma vez se fará uso de uma carta de Anchieta para servir como um exemplo de
como um determinado aspecto das missões no Brasil é concebido pelos jesuítas, no caso, o
martírio. Em 15 de março 1555 escreve para os irmãos de Portugal relatando, entre outras
coisas, a morte de dois jesuítas pelas mãos dos índios ubirajaras:

Bemaventurados esses que mereceram lavar a estola no sangue do cordeiro


imaculado, dando-lhe a ele e ao proximo a vida, que maior caridade não podiam
exercer.
Procuraremos haver os corpos deles ou parte. Não foi pequena consolação essa
que nos causou tão gloriosa morte, porque semelhante morte queremos todos e
continuamente pedimos ao Senhor. (Anchieta, 1988, p. 92).

A morte pelo martírio não deveria ser lamentada, mas edificada, glorificada, desejada
mesmo como a melhor forma de se dar a vida pela causa pela qual trabalhavam. Os relatos de
martírio não só edificavam aqueles próximos dos fatos mas, também, todos os jesuítas em
todo o mundo, através das cartas e, principalmente, tais relatos serviam, ou deveriam servir,
como incentivo para a continuidade das missões.

Outro aspecto das missões no Brasil que se quer evidenciar relaciona-se com a
situação financeira das casas e colégios. Os dotes reais dos colégios nem sempre eram pagos
com pontualidade e na totalidade a que haviam sido acordados e decididos pelo Rei. Esse fato
é usado como justificativa, em alguns momentos, de atividades produtivas próprias da
Companhia, como criação de gado, plantação de cana e comércio de produtos locais para a
manutenção das casas, as quais não abrigavam apenas os padres.
71

Já em 1553, em carta já citada de 12 de fevereiro, Nóbrega escreve a Simão Rodrigues


reclamando que “acá nos pagan muy mal el mantenimento y vestiaría que El Rey mandar
dar”, atribuindo a culpa não ao Rei propriamente dito, mas às autoridades reais da Colônia
que exerciam esse tipo de função. Como esse aspecto em particular não é tema da pesquisa,
não foi possível alongar-se na investigação da relação entre a escassez dos recursos reais e o
desenvolvimento de atividades lucrativas por parte da Companhia e, principalmente, se essa
atividade já consta a partir de 1553, data da primeira reclamação do primeiro Superior jesuíta
do Brasil. No entanto, mais tarde, na década de 60, essa questão assume ares de oficialidade
dentro da Companhia fazendo parte das questões a que o futuro Visitador da província
brasileira deveria investigar.

O Geral Francisco de Borja, escrevendo a Inácio de Azevedo em 22 de setembro de


1567, para dar algumas instruções quando ele já se encontrava em terras brasileiras, toca no
assunto relativo à certa polêmica existente entre os jesuítas do Brasil e os de Portugal: se era
lícito ou não a Companhia de Jesus ter fazendas, animais e escravos, para o sustento e
conforto dos padres e irmãos. Borja é da opinião que em se tratando de necessidade
ocasionada pela falta ou escassez das esmolas reais, tais atividades não só eram lícitas, mas
recomendadas.

A recomendação do Prepósito Geral em Roma parece ter sido seguida pelo Visitador
Inácio de Azevedo, o qual em seu relatório final da visita, escrito ao que parece em julho de
1568 (Leite, 1960), definiu que prioritariamente se deveriam esperar as esmolas reais, mas, no
caso da falta ou insuficiência delas, poder-se-ia aceitar outros tipos de esmolas ou mesmo ter
fazendas, escravos etc. – “como de fazer roças, criar gado e ter pescador e escravos” (p. 484)
–, com a devida autorização e coordenação do Provincial.

Em outros relatos pode-se encontrar novamente reclamações quanto ao atraso ou


mesmo dificuldades com relação às esmolas reais, mais propriamente relacionados aos dotes
reais dos colégios55, como nos escritos anchietanos; bem como, encontram-se informações
acerca do número de pessoas que residiam nos colégios e do que eles viviam (Anchieta,
1988). O fato é que as atividades desenvolvidas pelos jesuítas no Brasil ultrapassaram o que
se poderia chamar, grosso modo, o campo específico da religião, como a catequese dos

55
Cada colégio que era fundado por ordem do Rei era dotado de uma renda anual – esmola real – para seu
sustento e desenvolvimento. O Real Colégio da Bahia, por exemplo, tinha um dote de três mil ducados. É
conveniente lembrar que no caso dos colégios dos jesuítas, a esmola real deveria suprir as necessidades
materiais de toda uma comunidade de pessoas e não apenas as atividades relacionadas à educação.
72

brancos, índios e negros escravos, as missas, as confissões, o trabalho nas reduções indígenas,
a educação nas escolas e colégios. No decorrer no século XVI a Companhia de Jesus possuía
fazendas, escravos, gado, fazendo uso tanto interno como externo deles, principalmente
comercializando o açúcar e o gado.

A realização de atividades “extra-religiosas” não deve ser analisada como rebeldia da


Companhia em relação à Coroa portuguesa, no sentido de se mostrar mal agradecida com as
esmolas. Em nenhum momento dos relatos dos jesuítas se encontra uma crítica direta e
ostensiva à pessoa do Rei; em nenhum momento há qualquer manifestação de insubordinação
dos súditos reais; a relação de respeito e de obediência continuou e, nos momentos em que foi
necessário, os jesuítas de Portugal fizeram da diplomacia uma arma para chamar a atenção
dos daqui. É importante ressaltar que sem o beneplácito real a Companhia de Jesus
dificilmente poderia exercer todas as atividades que acabou por realizar em terras brasileiras.

O último aspecto presente nas Cartas Jesuítas do Brasil que se quer dar destaque
refere-se a uma racionalidade comercial de um tipo contábil, a qual se manifesta na
necessidade que os padres jesuítas demonstravam de numerar a quantidade de sacramentos
distribuídos, principalmente para os gentios da terra.

Nas passagens a seguir verifica-se que já a partir de 1550 há a quantificação dos


sacramentos distribuídos, mas tal contabilidade se intensifica mesmo a partir de 1558.

Na carta de Leonardo Nunes, escrita de São Vicente a 24 de agosto de 1550, aos


companheiros de Portugal:

Nesta capitania a mor parte da gente estava em peccado, e quis Nosso Senhor
que com minha chegada se começassem a mover de maneira que em pouco
tempo obrou o Senhor muito em muitas almas, (...) me detive com eles um mez e
fiz nove ou dez sermões e ouvi quase quarenta confissões e se apartaram muitos
do peccado mortal, e dous homens se casaram com Indias que tinham em casa.
(Navarro, 1988, p. 84)

Na carta de Antonio Pires, escrita da Bahia a 19 de julho de 1558, aos de Portugal:

(...) Começam a solemnidade nos novos catechumenos, porque na entrada da


missa, revestido do Padre com as vestiduras sacerdotaes, benzeu a egreja e
acabada a bençam começou o bautismo solemne, em o qual baptisou 84
innocentes. (...)
Logo o dia da Visitação se bautisaram trinta e tantos; ao domingo, dahi a oito dias,
se bautisaram vinte e tantos, que são por todos 144 (...) (Idem, ibidem, p. 227)

Em 1556, o irmão Antonio Rodrigues escreve da Bahia para Nóbrega:


73

Logo que chegamos a esta Itapuan, logo fiz assentar o numero de Indiozinhos
innocentes, os quaes me deram de mui boa vontade, e os baptizámos todos para
a glória do Senhor. Eram ao todo 31 (...)(Idem, ibidem, p. 258)

Em 22 de outubro de 1560, Antonio Pires escreve da Bahia para os de Portugal:

(...) logo ao domingo bautisou alguns, sessenta ou mais antre grandes e pequenos
e fez 8 ou 9 casamentos (...) (Idem, ibidem, p. 302)

(...) e com sua ida se bautisaram (...) 260 pouco mais ou menos, dos quaes fez
logo 43 casamentos da lei da graça (...) (Id., ibid., p. 304)

Fez também nesta povoação 11 casamentos de lei de naturaleza (...) (Id., ibid., p.
305).

De Antonio Rodrigues para os irmãos de Portugal, de 1560, escrita na Bahia:

(...) Para quando o padre Luiz da Grã vier, temos um solemnissimo baptismo
apparelhado: poderá ser que chegue e ainda que passe de quatrocentos e
cincoenta (...) (Idem, ibidem, p. 323).

Em carta quadrimestral, na qual se apresenta como relatório das missões na Bahia, o


padre Antonio Blasquez escreve, em 23 de setembro de 1561:

Os meninos que continuam a doutrina nesta povoação e andam na escola são


100, e mais seriam (...) (Idem, Ibidem, p. 327)

(...) Assim que, apparelhados e feitos os catechismos com a solemnidade e


cerimonias costumadas, baptisou o Padre Provincial desta primeira vez a cento e
setenta e tres almas e casou em lei da graça a doze casaes (...) (Id., ibid., p. 331)

(...) e no primeiro baptismo solemne que fez baptisou cento e setenta e tres e
casou doze casaes em lei da graça (...) (Id., ibid., p. 332)

(...) Haverá quinze dias que foi a S. Paulo e baptisou a cento e vinte e cinco Indios
e casou vinte e nove casaes em lei de graça (...) (Id., ibid., p. 333)

Daqui se partiu para S. João, onde lhe fizeram os Indios aquelle recebimento tão
solemne que acima disse, e baptisou a cento e tantos com grande alvoroço e
alegria de todos (...) (Id., ibid., p. 337)

(...) Finalmente, em um domingo, com muita solemnidade o Padre Provincial


baptisou a 47 e casou em lei da graça a 19 casaes (...) (Id., ibid., p. 341)

“(...) Feito isto, Sua Senhoria baptisou a 120 e ao offertorio casou em lei da graça
a 20 casaes (...) (Id., ibid., p. 344).

Na carta de Leonardo do Valle, de 1561, que na verdade é continuação da carta de


Antonio Blasquez, por encomenda do Provincial Luiz da Grã:

Acabado tudo isto e despedidos os novos christãos com a benção que o bispo
lhes lançou solemnemente, a estas horas da noite que digo, se foi elle com os
Padres e mais gente branca a ceiar o jantar que houvera se ser, assás de
cansados todos corporalmente, mas mui alegres e contentes em o Senhor, por
74

verem a somma dos que se haviam regenerado, que foram passante de 530.
(Idem, Ibidem, p. 357)

Ao outro dia se ajuntou grande numero de gente pera verem os casamentos que,
por o dia d’antes não haver tempo pêra elles, (...) Foram os casados 80 menos
um, quero dizer, casaes (...) (Id., ibid., pp. 357-358)

Na carta relatório que o padre Leonardo escreveu da Bahia, em 26 de junho de 1562,


para os jesuítas da casa de S. Roque em Portugal:

(...) pera offerta da qual o Padre Provincial apparelhou muita riqueza de almas que
se haviam de bautisar, que foram 174, e casaes em lei da graça 86, (...) (Idem,
ibidem, p. 371)

(...) O número dos que se então bautisaram foi novecentos menos oito e casaes
em lei da graça 70, sendo que o primeiro bautismo solemne que naquella aldeia
se fizera e foi a 12 de Outubro de 1561(...) (Id., ibid., p. 373)

Os christãos que então se fizeram 130 pouco mais ou menos e 50 casaes em lei
das graças(...) (Id., ibid., p. 379)

(...) como foram 549 almas que se então bautisaram, de que elles foram
padrinhos, e 94 casaes em lei de graça(...) (Id., ibid., p. 379)

(...) e ali se fez outro bautismo de 400 e tantos christãos e 110 casaes em lei da
graça, e adiante, no Bom Jesus, foi de 242 christãos e (...) casaes em lei de graça,
e adeante, em São Pedro onde ainda não bautisara, fez um mui avantejado de
todolos outros de 1152 christãos e 150 e tantos casaes em lei da graça(...) (Id.,
ibid., p. 379)

As novas que temos do Padre Provincial são haver feito em S. Miguel um


bautismo em que se bautisaram 897 almas e se fizeram 106 casaes em lei de
graça e muitos em lei de natureza(...) (Id., ibid., p. 393)

(...) direi o de mais importância, que é o bautismo que se fez em Nossa Senhora
de Assumpção, o qual foi a 14 de junho de 1562, e bautisaram-se nelle 1015
almas e fizeram-se 123 casaes em lei de graça e dali um dia ou dous fez outro em
que se bautisaram 40 e fez 14 casaes em lei de graça, e depois fez outro
bautismo, em que se bautisaram 33 almas(...) (Id., ibid., p. 394)

Em carta escrita em 13 de setembro de 1564, Antonio Blasquez escreve da Bahia para


Portugal:

(...) Ditas as missas, nas quaes commungaram algumas 120 pessoas das que
vieram ganhar o jubileu, (...) (Idem, ibidem, p. 446)

(...) Assim, em breve se confessaram muitos e por este jubileu tomaram o


Santissimo Sacramento algumas 150 pessoas, das que vieram ganhar o
jubileu. (Id., ibid., p. 451)

Na carta anual para a Provincia Toletana e Aragoneza, de 1567, escrita por Francisco
Gonçalves:
75

Em nossa egreja se confessam e commungam cada oito dias algumas trinta


pessoas e em os domingos do Santíssimo Sacramento e dias de festa chegam a
60 (...) (Idem, ibidem, p. 518)

(...) commungaram mais de 200 pessoas, houve sermão e a egreja estava fresca e
ricamente ornada (...) (Id., ibid., p. 518)

Neste anno se baptizaram 283 innocentes, entre os quaes foram alguns adultos
(...) (Id., ibid., p. 522).

E, finalmente, na Breve Narração das coisas relativas aos Colégios e Residencias da


Companhia nesta Provincia Brasilica, datada de 28 de dezembro de 1584, o padre José de
Anchieta apresenta os seguintes números:

[No colégio da Bahia] Por tanto, unicamente aqueles que, arrependidos, se aliviam
do pêso de seus pecados, neste Colegio, e se confortam com o pão eucaristico,
se elevam ao número de 5742.
Nos dias, porém, de festa, nos quais pelo Sumo Pontifice se concede o santo
jubileu aos assistentes, contamos quatrocentos e quinhentos que se aproximam
da sagrada mesa. (Anchieta, 1988, p. 405)

[nas missões da província da Bahia] Assim os penitentes que ouviram as missões,


não foram menos de 5.402, purificaram-se nas águas do batismo 1359 entre
inocentes e adultos, de conformidade com as leis cristãs 459 casamentos
celebrados; todos êstes se reuniram áqueles que estão aptos a receber êstes
sacramentos. (Idem, ibidem, pp. 407-408)

[nas aldeias da Bahia] As confissões que neste ano computamos nestas aldeias
atingem a 1287: as comunhões chegam a 1.000, finalmente os batismos a 114.
(Id., ibid., p. 408)

[nas missões da província de Pernambuco] Nestas missões os nossos tinham


batizado 190. Uniram em legítimo matrimonio 166, purificaram pela confissão a
5.307. (Id., ibid., p. 410)

[no colégio do Rio de Janeiro] Passam de 2.000 aqueles que, êste ano, foram
pelos nossos arrancados á impiedade e purificados pelo batismo, em toda a
provincia, se a eles se juntarem os trezentos que foram batizados no Colegio do
Rio de Janeiro (como é grande a bondade divina!), não contando os que foram
batizados em casas particulares e não puderam ser registrados. (Id., ibid., p. 413)

Essa necessidade recorrente de quantificar os sacramentos administrados não me


parece que seja exclusivo dos jesuítas no Brasil, se bem que nas cartas de Francisco Xavier,
pelo menos, não aparece essa quantificação. Como não se fez uma larga pesquisa em cartas
dos jesuítas em outras missões, como na América Espanhola, por exemplo, não se pode
afirmar ou negar se havia uma diretriz do generalato contemplando tal quantificação. No
entanto, é possível estabelecer algumas hipóteses.

Em primeiro lugar poder-se-ia supor tratar-se de algo normal, natural mesmo em se


tratando de padres que, por obra de ofício, distribuem os sacramentos para os cristãos.
Também se poderia supor que seria apenas um exercício de controle e domínio próprios da
76

religião em guardar e vigiar seu rebanho. Uma outra possibilidade seria a economia de tempo
e de material para os sacramentos, dada as dificuldades de locomoção e mesmo financeiras
para se fazer as hóstias, os óleos e as roupas. E, uma última hipótese que se poderia levantar
iria na direção de entender que a quantificação dos sacramentos administrados expressaria, de
certa forma, uma racionalidade mercantil própria da vida da Colônia, onde os bens preciosos
eram contados e, de certa forma, evidenciavam se a riqueza, material ou espiritual, estava
crescendo a contento.

A três últimas hipóteses parecem se sustentar mais do que a primeira, pois numa
sociedade em que todos são cristãos não carece a quantificação dos sacramentos, pois a
própria sociedade estabelece um controle e, espontaneamente ou não, a freqüência aos
sacramentos é obrigatória e geral; e, como os relatos das cartas sempre se referem aos gentios,
ou seja, aos não cristãos ou aos neo-cristãos, o argumento da naturalidade não tem base, pelo
menos no Brasil-colônia.

Dos outros três argumentos, os dois primeiros poderiam explicar apenas parcialmente,
na medida em que realmente os sacramentos possibilitam um controle por parte da Igreja e,
ainda mais no caso do Brasil, um controle sobre os índios reduzidos; e ainda, a escassez de
matérias primas para a confecção e administração dos sacramentos resultava numa
valorização de tais produtos.

No entanto, a contabilização da administração dos sacramentos é própria de uma


racionalidade mercantil, na medida em que a necessidade de se saber e divulgar números era
uma forma de se avaliar o sucesso e os percalços das missões, avaliação exatamente da
riqueza que os jesuítas aqui vinham plantar e colher: a conversão dos índios ao cristianismo.
Então, ao contabilizar a administração dos sacramentos se contabilizava também a própria
atuação daqueles padres.

Ao quantificar os sacramentos se exaltava o trabalho das missões aqui no Brasil e,


presentes nas cartas de edificação, os números que mediam as conversões incitavam outros
jesuítas a virem para o Brasil também.

Dando continuidade à apresentação do Padroado Português sob a bandeira jesuítica,


aponta-se que das questões tratadas neste item do trabalho algumas remetem para uma
discussão acerca da relação entre as províncias jesuíticas do Brasil e de Portugal.
77

A relação entre as províncias de Portugal e do Brasil faz também parte desse item do
trabalho relacionado ao Padroado português sob a bandeira jesuítica, na medida em que
muitas questões e problemas acontecidos aqui tinham como primeira instância de resolução
ou debate a província portuguesa e, então, só depois, dependendo da gravidade e da
pertinência do assunto era levado à instância decisiva do generalato em Roma. Antes, porém
de adentrar nessa questão, que me parece de muita relevância, veja-se alguns números
relativos às missões no Brasil e no mundo como um todo.

O trabalho dos padres jesuítas foi fecundo, e isso pode ser medido, dentre outras
formas, pelo número das expedições, as quais sempre eram trabalhosas em sua organização e
custosas em sua execução. Só no Brasil, de 1549 a 1598, foram feitas 25 expedições; e de
1549 a 1568 em torno de 40 jesuítas, entre padres e irmãos, vieram para terras brasílicas,
sendo que alguns irmãos se tornaram padres aqui, como, por exemplo, José de Anchieta.

No mundo todo, durante o primeiro período de existência formal da Companhia, até


sua expulsão de vários países da Europa e divulgação da bula papal de sua extinção da Igreja,
foram 361 missões ao todo, a maioria, 190, se concentrando no século XVII, sendo que a
média anual foi de 16 missionários jesuítas para as missões56.

As Províncias Jesuíticas de Portugal e do Brasil na lógica do


Padroado português

Inácio de Loyola, como primeiro Geral da Companhia de Jesus, concluiu sobre a


necessidade de se elaborar leis e regras escritas e de conhecimento amplo e geral para que a
condução da vida dos jesuítas fosse o mais uniforme possível, dadas as diferenças de vida em
todas as províncias. Assim, veio à luz em 1559 a primeira edição das Constituições da
Companhia de Jesus57. É deste livro de leis e normas internas da Companhia que se extrai

56
Estes e outros dados estão disponíveis no site www.companhia-jesus.pt.
57
As Constituições foram elaboradas pelo próprio Loyola em 1550, e, como passou a ser costume com todos os
documentos mais relevantes na Companhia, elas passaram por experiências concretas antes da sua redação
final. No prefácio escrito por Pedro Ribadaneira conta-se brevemente a história das Constituições, bem como
os objetivos de Loyola: “(...) Assim, com grande esforço, elaborou [Inácio de Loyola] as Constituições em
todas as suas partes, até completá-las totalmente. Mas, com a admirável prudência e a singular humildade
que o caracterizavam, o Padre compreendeu que, dada a diversidade dos costumes das diversas regiões, nem
tudo seria conveniente para todos. Por outro lado, para que a feição e a imagem da Companhia fossem a
mesma em toda a parte e as Constituições fossem aceitas e respeitadas permanentemente, era necessário que
78

um pequeno trecho mostrando que na escala da hierarquia rígida com a qual ela se estruturou,
onde a obediência é extremamente necessária, o Provincial estava sujeito apenas ao Geral, ou
a alguma função delegada, não regular, por ele, como, por exemplo, um Visitador. Depois do
prepósito geral, vem o prepósito provincial:

A mesma virtude da obediência está ligada a subordinação bem guardada dos


Superiores, uns com relação aos outros, e dos súditos com relação aos
Superiores. Assim, os que vivem numa casa ou colégio recorram ao Superior local
ou Reitor, e deixem-se em tudo dirigir por ele; e os que vivem dispersos pela
Província recorram ao Provincial, ou a algum Superior mais próximo, conforme as
ordens recebidas. E todos os Superiores locais ou Reitores estejam em
comunicação estreita com o Provincial, e deixem-se guiar em tudo por ele.
Procedam da mesma forma os Provinciais com relação ao Geral. Assim, guardada
esta subordinação, manter-se-á a união que por ela em primeiro lugar se realiza,
58
com a graça de Deus Nosso Senhor. (Constituições, 1997, p. 208 [662] )

Na organização da Societas Iesu as províncias são criadas para dar uma maior
organicidade aos trabalhos, e para que problemas e questões menos graves sejam resolvidos
mais rapidamente pelas atribuições do Provincial. Quando uma província é criada, portanto,
mais um braço especial do geral é criado com a nomeação do Provincial.

Esta pequena introdução, resgatando o aspecto mais legal, mais formal e funcional da
organização dos jesuítas é trazida aqui para iniciar a discussão acerca da relação entre as
províncias de Portugal e do Brasil, não deixando de refletir, também, a relação da província
de Goa, ou do Malabar, ou, ainda do Japão, no início do século XVII, com a província de
Portugal. Porém, restringir-se-á ao Brasil pela razão de se encontrar documentação para o
argumento.

De início, pode-se afirmar que a relação entre as duas províncias é mais de


subordinação do que de igualdade perante o Geral, ou seja, não existe uma relação de
igualdade entre o Provincial do Brasil e o Provincial de Portugal. Por mais que os dois
provinciais devam obediência somente ao Geral na estrutura da Companhia, essa mesma

se ajustassem, quanto possível, aos costumes de todas as Províncias. Por isso, não superestimando o seu
próprio juízo, de modo que um assunto de tanta importância dependesse só de seu critério e maneira de ser,
no ano jubilar de 1550 apresentou o texto das Constituições a quase todos os padres professos, ainda vivos,
que tinham vindo a Roma, para que as discutissem. Tendo levado em conta as observações deles e muitas
outras sugestões hauridas da experiência cotidiana, entregou, finalmente, no ano de 1553, as Constituições
para sua promulgação na Espanha. O mesmo aconteceu em outras regiões, mas não em todas. Assim se iria
verificando pouco a pouco a sua aplicabilidade às situações de cada Província, de modo que a prática
confirmasse o que tinha sido estabelecido em teoria” (1997, p. 14).
58
Optou-se por trabalhar ao longo da tese com as Constituições originais, quer seja, aquelas que foram
aprovadas em 1559 e não as Normas Complementares que se constituem numa atualização e complementação
das primeiras. É interessante que mesmo a Companhia de Jesus até hoje valoriza muito seu aspecto histórico,
79

estrutura não reflete, na realidade do século XVI, a relação de subordinação da empresa


religiosa à empresa comercial e colonial. O Provincial português exerce uma espécie de
superintendência da província brasileira e do seu Provincial, pois ambos são súditos da Coroa
portuguesa. Na prática, isto quer dizer que o Provincial brasileiro não tinha tanta autonomia
como se poderia imaginar, levando-se em conta apenas as normas e leis internas da
Companhia. Mesmo o Provincial português não tem a liberdade que se vislumbra tomando-se
apenas o aspecto legal. Ambos devem obediência ao Geral e, principalmente, ao Rei. Numa
hipotética escala hierárquica de poderes relativos à empresa colonial brasileira, o Provincial
português vinha antes do seu par no Brasil, pois o primeiro fazia parte da corte e, portanto,
mais próximo ao centro do poder e das decisões.

Este tipo de relação não parece ser estranha aos olhos de Loyola, a julgar pelo que
consta nos documentos analisados. Loyola tem dois pontos claros quanto aos trabalhos de sua
Companhia: um é a organicidade dela dado à sua expansão pelo mundo, e o outro, é que o
crescimento da Companhia era devido, em grande parte, aos soberanos, dentre eles, em
especial, ao Rei português. Numa carta ao Rei D. João III, de 15 de março de 1545, depois de
explicar as perseguições que já havia sofrido pela inquisição e que nenhum dos oito processos
movidos contra ele resultou em alguma condenação, indica que o Provincial português era,
acima de tudo, súdito do Rei e, como tal, lhe devia obrigações, dentre elas, solicitar-lhe
licença para se afastar do reino:

Notamos o desejo grande que os nossos daqui têm de ver a Mestre Simão e a
necessidade de provar em assuntos grandemente referentes à Companhia. Por
isso, humildemente suplicamos a V.S. para a glória divina, lhe queira dar grata e
amorosa licença, como a deu S.S. o Papa. Da vinda aqui de Mestre Simão e de
alguns outros que esperamos reunir, confio seja servida a divina Majestade e V.A.,
de quem esta Companhia é mais própria do que nossa. (Cardoso, 1993, p. 37)

É claro que não se pode esquecer que Loyola usava astuciosamente da diplomacia,
mas, também, não se pode olvidar que ele não poderia deixar de saber que ao se colocar a
serviço de um Soberano, a este passaria a dever obediência. A proteção dos soberanos era
importante, inclusive, na rede de comunicações e de poder que se estabelecia em torno do
trono papal; não se pode esquecer outrossim, o quarto voto de todo padre jesuíta de se colocar
diretamente sob a autoridade do Papa.

ao editar as normas originais seguidas das complementares e atuais, o que pode render um estudo sobre as
mudanças que ocorreram, perquirindo os aspectos culturais e históricos de tais mudanças.
80

Como súditos do Rei os jesuítas organizados nas casas e colégios estavam, em última
instância, sob a autoridade real, e os provinciais eram, para os efeitos da empresa religiosa,
representantes do Rei. Na relação que se estabelece, no entanto, entre dois destes
representantes, o Provincial de Portugal e o Provincial do Brasil, as questões às vezes são
claras e às vezes nem tanto.

Pelo lado da clareza, novamente Loyola é invocado, só que desta vez pela carta que
escreveu para Nóbrega, em 09 de julho de 1553, na mesma data daquela que o dava posse
como Provincial, para dar conselhos de como deveria agir, agora, na condição de Superior de
todos os padres e irmãos jesuítas do Brasil. Dentre as recomendações – ordens – está a de se
colocar, da mesma forma que o Provincial de Goa, “immediatamente debaxo del Prepósito
General”, mesmo tendo “communicatión mucha y intelligentia com Portugal” (In: Leite,
1956, p. 510). Loyola parece querer juntar duas coisas numa só: a valorização do neo-
Provincial estando ligado diretamente ao Geral e a subordinação contínua e necessária à
província de Portugal.

A relação dúbia, do ponto de vista da organização da Companhia, entre as províncias,


é ressaltada uma vez mais por Loyola, quando escreve para Diogo Mirão, então Provincial de
Portugal, em 17 de janeiro de 1554. Nesta carta se informa, oficialmente, da elevação do
Brasil à província e da eleição de Nóbrega para primeiro Provincial. O relevante na carta é
que mesmo com a criação das províncias de Goa e do Brasil, o próprio Geral Loyola pede que
o Provincial português envie para Goa e Brasil algumas comunicações relativas a dois
jubileus da Igreja Católica. A província portuguesa permanece como elo de ligação entre as
províncias de além-mar e o generalato em Roma.

A relação praticamente de subordinação das províncias de Goa e do Brasil é sentida,


também, no fato de que os novos missionários, tanto para uma como para outra província,
eram enviados de Portugal e eram preparados intelectualmente no Colégio das Artes e na
Universidade de Coimbra.

Em alguns momentos da história das missões no Brasil, houve polêmicas que só foram
solucionadas ou por Portugal ou por Roma, ouvido Portugal. No entanto, em pelo menos uma
destas polêmicas, a força da província de Portugal prevaleceu, inclusive, sobre a pretensão do
generalato. Trata-se da discussão se os padres, particularmente Nóbrega, deveriam ou não
adentrar mais ainda no sertão brasileiro para conquistarem mais gentios para a religião cristã.
81

A opinião dos portugueses, incluindo aí os soberanos, era de que enquanto não se dispusesse
de padres em número suficiente, se deveria ater aos trabalhos já começados, ainda mais se
pensando na edificação de um colégio real em Salvador. Por outro lado, de Roma, do
generalato, parece vir uma opinião diferente, autorizando a ida aos sertões, em busca de novas
fronteiras missionárias entre os gentios.

Esta polêmica encontra-se na carta que Diogo de Mirão escreve para Loyola, no dia 17
de setembro de 1554, na qual ele mostra claramente que a deliberação do Geral ia de encontro
à vontade real, o que se tornava um grande inconveniente:

Maestro Polanco me escrive aora que sería bueno entrassen por la tierra dentro si
pudiessen cumpliendo co lo demás. Pero ellos allá son muy pocos y están
repartidos en muchos lugares, y aora haziéndose el collegio está claro que no
podrán suplir a todo. Y a querer hazer otra cosa, es repugnar a la voluntad del Rey
y del Cardenal, y de los Gobernadores, que es muy grande inconveniente, ni tengo
yo razón que darles para que lo tengan por bien, por ser nosotros tan pocos y no
poder cumplir con todo. (In: Leite, 1957, p. 126)

O objetivo aqui não é julgar a honestidade ou não de uma ou de outra opinião. O que
transparece, pelo menos dos documentos, é que tanto o Geral como o Provincial português
estavam querendo resolver um problema da melhor forma possível. No entanto, em outros
enfrentamentos, particularmente quando se tratar da figura polêmica de Nóbrega, os
portugueses farão de tudo para impor sua opinião, utilizando-se da pressão da corte.

A primeira vez que Nóbrega encontra-se como centro e alvo das discussões está
registrado em três cartas de Miguel de Torres para o próprio Nóbrega, todas escritas no dia 12
de maio de 1559. Na verdade foram quatro escritas no mesmo dia para o mesmo destinatário,
e as três últimas – na ordem em que aparecem publicadas no volume III da Monumenta
Brasiliae – são reprimendas.

Na primeira das cartas, Torres dá conselhos a Nóbrega como se seu Superior fosse
mostrando, no entanto, que estava fazendo aquele papel não por vontade própria mas por
delegação do Geral:

a
De Roma se escrive y responde tan particularmente a V. R. que si nuestro Padre
[o geral] no me encargara que yo lo hiziesse también en lo que me pariciesse, casi
a
solo quedava consolarme com V. R. , dexando todo lo más a la experiencia que
tiene y spíritu que el Señor le há communicado, mas pues no me sacan desta
obligación, conforme a ella me pareció in Domino apuntar algunas cosas, parte por
occasión de sus cartas, parte de lo que acá se usa, y tiengo por cierto que de todo
se consolará en el Señor, pues es para mayor gloria de sua divina magestad.
(Idem, 1958, pp. 24-25)
82

Na continuidade da carta verifica-se que algunas cosas apontadas por Torres se


referem à chamar a atenção sobre a conduta de Nóbrega, e o faz como homem da corte,
legítimo representante, nesta altura, dos interesses de quem paga a conta das missões. Por
exemplo, aconselha Nóbrega a que não se indisponha ou tome partido contra as pessoas que
“tanto más quanto más principales ellas son o por sangre y poder o por dignidades y
officios”, pois “destos pende en gran parte el fructo que deseamos hazer en la viña del Señor”
(p. 25). Também recomenda – ordena? – que Nóbrega não tome partido em casos particulares,
pois deve “suave y benignamente trabajar de escusar y concordar a todos como ángel de
paz”, pois é este o “officio de la Compañia, en cosas públicas ni secretas no darse por parte
ni dar consejos a la partes contra otras, máxime si los casos pertenecen al foro exterior” (p.
26). Convém acrescentar que tais conselhos de Torres tomam por base as cartas do próprio
Nóbrega ou escritas por comissão dele.

Na breve carta que segue, o assunto continua sendo os destemperos de Nóbrega, agora
relacionados com um frade, que esteve no convento jesuíta de S. Roque, em Portugal, para
reclamar de um libelo que o jesuíta teria escrito contra ele. Torres adverte Nóbrega uma vez
mais, agora no sentido de que “tenga V.R.a cuenta, por amor de Dios, que no use de sus letras
sino en el foro interior, que lo exterior no es nuestro” (idem, ibidem, p. 29). Ao final da carta,
numa espécie de “P.S.”, o Provincial português lembra as lições que o mestre Inácio de
Loyola deixou quanto aos temperamentos e a necessidade de se buscar, à moda aristotélica, o
meio termo entre a personalidade colérica, como a de Nóbrega, e a fleumática:

3. Es Bueno, Padre Charíssimo, conocer cada uno de su complexión colérica o


flemática y procurar de inclinar más a la parte contraria para que quede en el
medio, y esto exercitó tanto nuestro Padre Maestro Ignacio, de buena memoria,
que siendo muy colérico de su naturaleza parecía en el tratar muy flemático.
(idem, ibidem, p. 30)

Na última carta dessa série, Torres ordena que Nóbrega vá para a capitania de S.
Vicente para tratar da saúde, deixando o cargo de Provincial para Luis da Grã, o qual deveria
permanecer na Bahia, pois “la más común residencia del Provincial deve ser en la Bahia”
(idem, ibidem, p. 31). Esse fato não teria muita importância se não fosse a informação de
Serafim Leite acerca de ordens que Nóbrega teria recebido do Geral Laiñez de permanecer no
cargo de Provincial, mesmo tendo que viajar para o sul59. Não se pretende discutir aqui se

59
A nota de rodapé escrita por Leite é a seguinte: “Carta do P. Geral a Nóbrega (que Torres leu), em que lhe
mandava que continuasse no ofício de Provincial e que o P. Nóbrega agradece na sua carta de 30 de Julho
de 1559; pela qual se verá também o modo, verdadeiramente santo, como Nóbrega recebeu esta ordem do P.
Torres, oposta à do P. Geral” (p. 31).
83

Nóbrega foi mais ou menos santo ao acatar as ordens de Torres e não as do Geral. O que se
quer apresentar é uma discussão política que perpassou a Companhia logo no início do
generalato de Laiñez, tendo como pano de fundo a autoridade do Provincial de Portugal com
uma base sólida, que eram os interesses da corte portuguesa. E esse embate fica bem claro
quando se lê a carta de Torres para Laiñez, escrita em 16 de maio de 1559, logo após a série
de cartas para Nóbrega, na qual esclarece quais as verdadeiras razões de suas ordens para que
Luis da Grã assumisse o provincialato no Brasil:

e
2. Y pareciónos importante que el P. Manuel da Nóbrega se pasase de la Bahía
e
para la Capitania de San Vicente y que el P. Luís da Grã estuviesse en la Bahía
con el cargo de Provincial. Las razones son que en la Bahía estan todos muy
e
escandalizados del P. Manuel da Nóbrega, ansí las personas eclesiásticas como
seculares. (Idem, ibidem, pp. 33-34)

Nóbrega não era tolerante. Ele tomava partido em casos públicos e particulares, era
muito colérico, falava demais e tinha uma língua muito afiada. Eram estes os “defeitos” na
conduta do jesuíta que desagradava as autoridades na Colônia e ressoava negativamente na
Metrópole, ainda mais em se tratando de uma autoridade religiosa. Para dar mais credibilidade
ainda às suas ordens, Torres argumenta, ainda na carta a Laiñez, que havia recebido cartas
inclusive de outros padres jesuítas pedindo a substituição de Nóbrega no comando da
Companhia de Jesus no Brasil. Leite informa que se estas cartas existiram realmente, foram
perdidas.

O comportamento do Provincial português, pelo menos Miguel Torres personifica bem


este tipo, é o do cortesão, pois sua fala é a fala da corte que tem ouvidos aguçados aos
detentores do poder na sociedade e ouvidos moucos às vozes que de certa forma
questionavam algum tipo de comportamento ou relação que ia de encontro ao poder
estabelecido ou delegado. Em 1559 Luis da Grã realmente assume o cargo de Provincial dos
jesuítas no Brasil e Nóbrega viaja para o sul.

A relação entre as províncias de Portugal e do Brasil, relação organizacionalmente


dúbia e politicamente limitadora, porém perfeitamente de acordo com a cultura de corte do
século XVI, pode ser também mostrada através de outros documentos cronologicamente
posteriores.

É o caso da carta do Provincial português Leão Henriques para o Geral Francisco de


Borja, escrita em tom lamurioso, em 04 de fevereiro de 1566. O assunto principal da carta é a
definição quanto ao futuro de Inácio de Azevedo depois de voltar do encargo de Visitador da
84

província do Brasil ou seja, se deveria ficar em Portugal ou retornar para o Brasil, sendo esta
última opção, ao que parece, o desejo do próprio Inácio. De qualquer forma, o relevante aqui
não é o destino em si do Visitador no Brasil, mas o argumento utilizado por Henriques
advogando seu retorno para Portugal, o qual vai na direção de facilitar as coisas para os
próprios jesuítas no Brasil quanto ao que depende do Rei:

Lo primero nos parece [o retorno de Inácio de Azevedo a Portugal depois do cargo


no Brasil], porque el dicho Padre será aca muy más útil que allá; y para el bien de
aquella tierra, aún de aqui, después de verla, la podrá ayudar más en algunas
cosas que dependen d’El Rei, que concernen a la conversión e al bien universal,
que estando allá, porque se le dará crédito; también para lo que toca a la
Compañía conviene mucho tener V.P. [Vossa Paternidade, o Geral] información
e
por una persona inteligente y tanto de fiar como el P. Ignacio. (Idem, 1960, p.
304)

A carta é lamuriosa, como se afirmou, pois Henriques se queixa com o Geral que se
pede muito da sua província e se esquece que ela também é carente. No próprio caso de Inácio
de Azevedo, Henriques procura convencer o Geral que é melhor reter um homem tão sábio
junto da corte portuguesa para melhor influenciá-la no que for possível e para o bem da
Companhia.

Outra queixa apresentada é com relação à obrigação da província portuguesa de


escolher um novo Provincial para o Brasil, pois Luis da Grã já o pedia a tempos, mas
Henriques não dispunha de gente apta para o serviço. O fato praticamente fala por si, ou seja,
o mais alto cargo da Companhia no Brasil não era escolhido pelo Geral, mas pelo Provincial
português, sendo, no entanto, que a nomeação oficial era atribuição somente do Geral. Para
resolver o impasse, sugere ao Geral que ordenasse que Inácio de Azevedo escolhesse o
Provincial dentre os próprios jesuítas no Brasil “después que él visitasse la Provincia toda,
scogiesse para el cárrego qual le pareciesse más conveniente” (idem, ibidem, p. 304).

A última queixa de Henriques era relacionada ao fato de as províncias de Brasil e de


Goa sempre pedirem mais e mais padres e irmãos para ajudar no trabalho missionário, pois
era de Portugal que saíam, sempre, os futuros missionários. O Provincial português pede
ajuda ao Geral, pois tinha as suas necessidades, não dispondo de tanta gente assim.

Do relatório da visita ao Brasil feito pelo padre Inácio de Azevedo, já citado, também
se colhem algumas informações sobre este assunto. Por exemplo, nele é informado que havia
um único procurador dos interesses econômicos da Companhia para as províncias de Portugal,
de Goa e do Brasil, sendo que tal pessoa residia no reino e deveria ser um leigo. Os interesses
85

econômicos eram os relacionados às casas, aos colégios, às doações recebidas em forma de


terras, imóveis, dinheiro, enfim, a tudo o que se relacionava com o patrimônio da Societas
Iesu. Apesar de serem três províncias, o patrimônio era tratado como sendo único, sujeito à
fiscalização real.

Ainda no relatório aparece a decisão sobre uma aspiração encabeçada por Nóbrega e
Anchieta, que se transformou numa questão polêmica na Companhia: adentrar no sertão e ir
até a região do Paragay para converter e catequizar os gentios de lá. A decisão do Provincial
é taxativa no sentido de não permitir tal investida, a não ser por ordem expressa do Geral, o
qual, com certeza, consultaria o Rei lusitano. A principal justificativa para tal decisão foi o
fato de que aquelas terras não pertenciam ao domínio lusitano:

E o Provincial, sem ordem de Nosso Padre Geral, não entre nem permitta
entrarem para aver de passar ao Paragay, o qualquer outra parte que não seja
senhorio de Portugal, nem ainda póla mesma terra, se for pera laa fazer residencia
perpetua; ainda que si, ad tempus, quando julgasse com seus consultores que
assi convinha. (Idem, 1960, p. 488)

Uma questão assemelhada a esta se encontra na Informação do Brasil de 1584, escrito


de Anchieta, já citado, onde informa-se que o católico francês Villegaignon, quando estava de
volta a França, pediu para a Companhia de Jesus de lá enviar padres e irmãos para o Brasil,
dada a carência de trabalhadores para a grande messe. O Geral foi consultado e não autorizou
tal iniciativa, imperando a concepção e prática usual de que para o Brasil, sendo terra
portuguesa, os jesuítas deveriam partir de Portugal, sob a autorização da Coroa lusitana. A
idéia da vinda de padres da província francesa iria gerar uma concorrência de poderes
instituídos, idéia praticamente impossível de ter realidade à época.

O direito de Padroado, enfim, era restrito a uma configuração de poder localizado, não
existindo a possibilidade de se pensar em um Padroado universal para além das fronteiras
comerciais e coloniais próprios da expansão ultramarina do século XVI. As atividades
missionárias que a Companhia empregou nas Índias, no Oriente e no Brasil – é claro que não
se pode esquecer da África também –, se desenvolvia par a par com a expansão comercial e
colonial, sendo mesmo subordinada a ela, no sentido da sua garantia social e política. A razão
comercial daquele século imperava e determinava a forma das existências dos poderes
constituídos. A mentalidade mercantil era a ordem do dia, era a motivadora de se arriscar na
grande aventura por mares nunca d’antes navegados. A racionalidade mercantil movia o
mundo, arredondando-o e descobrindo novas terras, novos homens, novos mercados e novos
produtos. As novas terras, terras comerciais e terras coloniais, eram terreno também da
86

evangelização. A expansão comercial acarretou a expansão religiosa cristã católica, num


primeiro momento e cristã protestante num segundo momento. O Padroado português sob a
bandeira jesuítica também se desenvolveu com uma racionalidade própria, inspirada e
devedora da racionalidade mercantil. Essa categoria, concreta e histórica, própria do século
XVI, gestada e nascida ainda nos séculos XII e XIII, possibilita compreender tanto a expansão
ultramarina do quinhentos como religiosa e como própria de um mundo que criou o poder
absoluto das Coroas, como de um mundo que valorizou mais a medida humana em tudo na
contraposição à medida divina, e, ainda, como construtor de uma sociedade baseada na
circulação e na produção da mercadoria.

Como o Padroado, portanto, não pode ser entendido fora da expansão comercial do
século XVI, apresentar-se-á, na continuidade, um esboço sobre o domínio português nos
oceanos e os problemas acarretados, bem como o lugar do nascimento do Brasil nesse
contexto.

Capítulo 2

O contexto português do sé culo XVI:

a construção do Império

Nesta parte do trabalho, objetiva-se apresentar, mesmo que sucintamente, a expansão


marítimo-comercial-colonial portuguesa do século XVI, especialmente na segunda metade, se
fará uso da historiografia consultada sobre o assunto.

O contexto português desta expansão obedece, de certa forma, a uma racionalidade


mercantil, inclusive nos delineamentos que a própria sociedade toma, como, por exemplo,
suas crises. Quando se utiliza uma categoria como a racionalidade mercantil não se quer
passar a impressão de positividade da sociedade e da cultura portuguesas do século XVI em
relação aos rumos que as sociedades européias como um todo estão passando. Como entender
87

uma sociedade ponta de lança do mercado mundial que, no mesmo período, se torna uma
coluna avançada do catolicismo reformado no mundo, formando uma cultura baseada nos
valores do reformismo católico? Se pretende mostrar que a expansão comercial obedeceu a
uma lógica social e a uma opção política próprias do seu período e espaços, e que tal contexto
também produziu crises e uma cultura considerada, pela maioria da historiografia consultada,
atrasada em relação aos outros países da Europa.

A incursão por esse tema começa pela sua base: a mercadoria. A busca do produto que
podia ser comercializado, produzindo dividendos ao comerciante, faz com que homens se
aventurem por mares desconhecidos, vençam muitos obstáculos e “arredondem” o mundo, ou
seja, tornem conhecidos para o mundo terras e povos que eram até então desconhecidos.

A mercadoria e a expansão portuguesa

A mercadoria seria pré-existente aos homens do final do século XV e primeiras


décadas do século XVI? Ela estaria esperando ser “descoberta” pelos ocidentais para, a partir
daí, se tornar a base da sociedade capitalista que irá se formar? A resposta é não! Pois a
mercadoria, como todas as outras produções humanas, é histórica e só adquire significado
social a partir da relação social na qual está inserida. A mercadoria nunca foi uma entidade
religiosa que por vontade própria se inseriu na vida dos homens. Foram os homens que, a
partir de determinado momento, valorizaram a contínua troca de coisas e depois a produção
em escala regular de produtos que se tornaram mercadorias.

A sociedade eminentemente produtora de mercadorias é a sociedade capitalista. Essa


sociedade teve nas grandes navegações um primeiro grande impulso com o comércio em nível
mundial. As grandes navegações do final do século XV e início do século XVI aconteceram
em resposta à necessidade de novas rotas comerciais para garantir e incrementar as trocas
comerciais. Nesse sentido assume-se, neste trabalho, o entendimento de que a esfericidade do
mundo se tornou conhecida a partir da necessidade da mercadoria, ou, o que dá no mesmo, o
mundo se arredondou a partir da busca das mercadorias.
88

As grandes navegações, com tudo o que representaram, impulsionaram o surgimento e


a formação de uma nova sociedade, diferente, essencialmente, da feudal. Como afirmam
Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista,

A descoberta da América, a circunavegação da África ofereceram à burguesia em


ascenso um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a
colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e,
em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao
comércio, à navegação, e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o
elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição. (...) (Marx e
Engels, 1968, p.23)

ou, mais adiante,

Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o


globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar
vínculos em toda parte. (Idem, ibidem, p.25)

No entanto, é preciso salientar que os mercadores e aventureiros do século XVI, ao


descobrirem novas terras, novos povos, novas rotas comerciais, novos produtos para
comerciar, não tinham em mente que estavam colaborando, e muito, com a construção de uma
nova sociedade e a conseqüente destruição de outra. Nas grandes viagens de navegação,
cantadas como epopéia por Camões, os homens apreenderam, a muito custo, o conhecimento
de que o mundo era redondo, conhecendo, por conseguinte, todo o mundo da época.

O século XVI é o palco por excelência da inserção definitiva da mercadoria no


Ocidente. As trocas em grande escala, os lucros advindos das trocas, a descoberta das novas
praças comerciais reorientam a vida das pessoas, ao redefinirem os Estados e a relação de
forças entre eles. As grandes navegações são instigadas, são impulsionadas e se tornam
regulares graças ao comércio que gera a possibilidade do enriquecimento dos reis e das suas
cortes.

Para além das grandes viagens que redundaram por exemplo, na travessia do Cabo das
Tormentas e a chegada às Índias e na descoberta do Brasil e da América, talvez a grande
viagem do século XVI tenha sido a expedição de Fernão de Magalhães entre 1519 e 1522. A
viagem liderada por Magalhães foi a primeira, pelo menos registrada, que realmente deu a
volta ao mundo.
89

O relato de Pigafetta60, A Primeira Viagem ao Redor do Mundo: o diário da


expedição de Fernão de Magalhães, mostra detalhadamente todas as etapas da viagem,
desde a preparação para a partida, as agruras e os desastres no mar e em terra, o conhecimento
travado com culturas diferentes, o comércio com o Oriente e o regresso. No início, a alegria, a
esperança e a destemidez para a grande viagem:

Betis. O capitão-geral Fernão de Magalhães havia resolvido empreender uma


longa viagem pelo oceano, onde os ventos sopram com furor e as tempestades
são muito freqüentes. Havia resolvido também abrir um caminho que nenhum
navegante conhecia até então. (...)
A 10 de agosto de 1519, uma segunda feira pela manhã, a esquadra, levando a
bordo todo o necessário, assim como sua tripulação, composta por duzentos e
trinta e sete homens, anunciou sua saída com uma descarga de artilharia. Soltou-
se a vela do traquete e descemos pelo rio até a ponte de Guadalquivir (...).
(Pigafetta, 1985, p. 50)

Depois as agruras, as enormes dificuldades que poderiam, perfeitamente, fazer com


que aqueles homens desistissem da viagem...

Na quarta feira, dia 28 de novembro de 1520, saímos do estreito para entrar no


grande mar, ao qual em seguida chamamos de pacífico, e onde navegamos
durante três meses e vinte dias sem provar nenhum alimento fresco. Má
alimentação no Oceano Pacífico ─ já não tínhamos mais nem pão para comer,
mas apenas polvo impregnado de morcegos, que tinham lhe devorado toda a
substância, e que tinha um fedor insuportável por estar empapado em urina de
rato. A água que nos víamos forçados a tomar era igualmente pútrida e fedorenta.
Para não morrer de fome, chegamos ao ponto crítico de comer pedaços do couro
com que se havia coberto o mastro maior, para impedir que a madeira roçasse as
cordas. (...) Freqüentemente nossa alimentação ficou reduzida à serragem de
madeira como única comida, posto que até os ratos, tão repugnantes ao homem,
chegaram a ser um manjar tão caro, que se pagava meio ducado por cada um.
61
(Idem, ibidem, p. 82)

Quando chegam nas Molucas, o grande objetivo da viagem é relatado e detalhado: o


comércio, a troca dos produtos com os lucros da ocasião...

60
“A ‘Primeira Viagem ao Redor do Mundo’, livro que Gabriel García Márquez constantemente cita entre os
mais importantes de sua vida, foi escrito pelo nobre e aventureiro italiano Antonio Pigafetta, que
acompanhou a expedição comandada por Fernão de Magalhães. Narrador sóbrio e comedido, Pigafetta
obteve sucesso com seu livro ao contar com vigor e precisão as terríveis privações e trágicas desventuras nas
quais a expedição se viu envolvida. Depois de três anos de viagem por rotas marítimas até então
desconhecidas, dos cinco navios e duzentos e trinta e sete homens que compunham a esquadra, não
retornaram a Sevilha, de onde haviam saído, mais do que um navio arruinado e dezoito homens fatigados.
Entre eles, estava o cavalheiro Pigafetta. Fernão de Magalhães fora morto pelos indígenas das Filipinas.
Tendo cruzado o estreito que mais tarde receberia o nome do audaz capitão e batizado de Pacífico o maior
oceano do planeta, a expedição de Magalhães tornou obsoletos todos os mapas existentes até então. Os
cartógrafos do mundo inteiro tiveram que refazer seus trabalhos e, se ainda havia alguma dúvida, ficava
agora definitivamente provado que a Terra era de fato redonda.” (http://www.lpm.com.br/c210_009.htm)
61
Fani Goldfarb Figueira, no capítulo 2 da parte II – Quanto custa um rato? – de sua tese de doutorado –
Diálogos de um novo tempo –, faz uma análise muito interessante e convidativa acerca da dramaticidade das
viagens de descoberta e, também, sobre o que significou, historicamente, a época dos Descobrimentos,
destacando a idéia de que os navegadores do século XVI fizeram a opção pela história ao aceitar os desafios
colocados diante deles.
90

Na terça feira, 12 de novembro de 1521, o rei [de Tadore, uma das ilhas do
arquipélago das Molucas] mandou construir uma cobertura, que acabaram em um
dia, para nossas mercadorias. Levamos para lá tudo o que tínhamos para cambiar
e deixamos sob a guarda de três dos nossos homens. O valor das mercadorias
que iríamos dar em troca dos cravos foi fixado da seguinte maneira: por dez
braças de tecido vermelho de boa qualidade deveriam dar-nos um bahar de
cravos; por quinze braças de pano de mediana qualidade, pediríamos um bahar
de cravos; por quinze machados, um bahar; por trinta e cinco taças de vidro, um
bahar (todas as taças de vidros foram trocadas nessa base com o rei); por cento e
cinqüenta facas, um bahar; por cinqüenta tesouras ou quarenta gorros, um bahar;
por dez braças de tecido de Guzzerate, um bahar; por um quintal de cobre, um
bahar(...) Fizemos, como se vê, um negócio muito vantajoso, não tirando maior
proveito, contudo, porque tínhamos pressa em retornar para a Espanha. Além dos
cravos, fizemos uma boa provisão de víveres(...) (Id., ibid., p. 150)

Finalmente, o regresso a Espanha, aonde, apesar das inúmeras perdas, o dever e os


objetivos foram cumpridos. O mundo estava, definitivamente, arredondado!

6 de setembro de 1522 ─ Chegamos com dezoito homens a Sanlúcar ─ Graças à


providência, entramos no sábado, 6 de setembro, na baía Sanlúcar e de sessenta
homens que compunham a tripulação quando saímos das Ilhas Molucas, não
restávamos mais que dezoito, a maior parte doente. Os demais, uns escaparam
na Ilha de Timor, outros foram condenados à morte por crimes que cometeram e
outros, enfim, morreram de fome.
Desde nossa saída da baía de Sanlúcar até o regresso, calculamos que
percorremos mais de quatorze mil quatrocentas e sessenta léguas, dando a volta
completa ao mundo, navegando sempre do Leste para Oeste.
Na segunda feira, 8 de setembro, ancoramos junto aos molhes de Sevilha e
disparamos toda a artilharia. (Id., ibid., p.185-186)

Paul Teyssier, no artigo O Século Glorioso, resume a dramaticidade dos


descobrimentos e ao resgatá-los mostra a importância de torná-los presente; foram homens
concretos que empreenderam uma aventura concreta que exigiu, acima de tudo, muito
denodo:

Mas a navegação e os descobrimentos também foram uma aventura muito


concreta, vivida por seres de carne e osso, que em sua maioria certamente não
eram santos. Há todo um desencadear de paixões, brutalidades e violências. Mas
essa aventura exigiu igualmente uma coragem singular, e seus heróis envolvem-
se com o mistério, o medo, o sofrimento e a morte. Como todos os grandes
progressos da história, este custou muito suor, lágrimas e sangue. E é bom, após
quinhentos anos, reavivar-lhe a lembrança. (Teyssier, 1992, p. 46)

As grandes viagens da era dos Descobrimentos impulsionaram uma nova forma dos
homens viverem em sociedade, com novos valores tanto sociais como individuais. O século
XVI expressa um momento da história moderna em que se convive com velhos valores
aristocráticos ao lado de novos valores burgueses. A riqueza não é mais imóvel somente,
baseada na quantidade das terras; agora ela é móvel, ela é o dinheiro, o metal que é
conseguido via o comércio de mercadorias e vice-versa. Os deuses da história forjam um novo
91

homem, que é decorrente de uma nova sociedade e de novas necessidades que não são nunca
pessoais somente, mas, essencialmente, sociais.

O comércio ao longo do século XVI passou a fazer parte da vida cotidiana tanto das
pessoas como das nações européias. Os mercados que, durante a Idade Média, praticamente se
resumiam às grandes feiras, como a de Flandres, por exemplo, e que eram sazonais, passaram
a existir em todas as grandes cidades e entre elas. O mercado que era praticamente local,
passou, aos poucos, a se universalizar. Quando se afirma que o mundo se arredondou pela
mercadoria, não se quer apenas conceber que os homens passaram a dominar o conhecimento
de que o mundo não era mais uma porção de terras circundada de águas por todos os lados,
mas, principalmente, que o mundo começou a falar uma mesma “língua”, passou a se
relacionar internacionalmente através da troca de mercadorias e da compra e venda de
produtos. O mercado foi, aos poucos, se tornando mundial num mundo que agora era
redondo.

Com o mercado mundial, as crises também se tornam mundiais. É o que afirma


Magalhães no artigo Num mercado à dimensão do mundo, ao mostrar que as conquistas e as
crises não são mais “propriedades” locais, mas têm a sua dimensão aumentada inúmeras
vezes.

Império e impérios, cujas configurações e espaços sofrem modificações estruturais


e conjunturais a uma escala agora mundial. A economia-mundo é um conjunto de
actividades convergentes e conflituais que sofrem modificações e conhecem
crises. Algumas tão profundas que só se resolvem na busca e assentamento de
diferentes espaços, resultantes de expansões e contracções. De dominações
econômicas e políticas, que mudam de sentido e de mãos. Que afectam os preços
correntes como a vida das pessoas. Que abrem para profundas perturbações
como para enquistamentos sociais. Não há um factor ou factores previamente
determinados que permitam a arrumação e predeterminação da conjuntura. Nem a
regularidade das crises cíclicas vai além de uma tendência. Mas a economia-
mundo vai-se construindo sempre através de crises, que, uma vez resolvidas,
geram as seguintes, numa periodicidade tendencial. O capitalismo mercantil, ao
articular realidades e espaços económicos diversos, faz com que se repercutam a
uma escala antes impossível as alterações e flutuações que antes apenas
afectavam confinadas economias e sociedades relativamente estáveis. O mundo,
porque agora há mais mundo, mudou. Lançam-se os primeiros e ainda imprecisos
delineamentos da modernidade. À escala do espaço Planeta que entretanto se
fora descobrindo e construindo. (Magalhães, 1993, D, p. 353)

Os grandes países europeus participaram efetivamente do chamado período


mercantilista. A Península Ibérica teve, por longos lustros, as cortes mais ricas da Europa. No
entanto, foi Portugal uma espécie de ponta de lança neste processo, pois foi o primeiro a se
aventurar nas grandes viagens de navegação.
92

Paul Teyssier afirma que a política portuguesa do século XV ainda, é impulsionadora


também de toda a expansão européia, na medida em que descortinou um mundo desconhecido
e pleno de riquezas:

Ao longo de pelo menos cem anos, a política portuguesa será a ponta-de-lança de


toda a expansão européia. No século XV, os navegadores, depois do
reconhecimento do continente africano, se disseminarão ao quatro ventos de um
globo ainda por descobrir. Comerciantes, missionários e aventureiros os
acompanharão, realizando um conjunto de proezas individuais e de aventuras
coletivas únicas na história da humanidade. Revelarão assim, do Brasil ao Japão,
outros mundos e outra humanidade inconcebíveis até então. (Teyssier, 1992, p.
11)

São muito comuns as análises que de certa forma ufanam o prodigioso acontecimento
das grandes navegações. De fato, para o mundo da época, como já visto em Pigafetta, tal
empreendimento não foi fácil nem tranqüilo, com inúmeras perdas humanas e materiais. Mas,
os grandes obstáculos não impediram os navegadores e comerciantes portugueses de
continuar e, aos poucos, desvelar, revelar para o mundo coisas somente imagináveis à época
como utopias.

São comuns também as referências de uma vocação portuguesa para as navegações.


Oliveira Martins, por exemplo, explica que tal vocação surge pela própria política européia
que relegou Portugal para o oceano atlântico:

Portugal é um anfiteatro levantado em frente do Atlântico, que é uma arena. A


vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores, arrastando-os
afinal à laboriosa empresa das navegações, que era para eles um destino desde
que a política os destacara do corpo da Península. (Martins, 1972, p. 37)

João Lúcio de Azevedo, também na busca de causas que expliquem a “vocação”


portuguesa pelas viagens marítimas, informa que já no século XIII havia o comércio marítimo
português, quando navios iam para a Inglaterra levar produtos. No entanto, o marco
encontrado por ele para que as grandes viagens se tornassem um objetivo nacional, acontece
quando da conquista de Ceuta, em 141562. Após isto, Portugal passou a ser um povo de

62
“A 25 de Julho de 1415, sob o comando do Rei D. João I, largaram de Lisboa, em direcção ao Norte de
África, 242 navios, alguns armados de guerra e galés, nos quais seguiam D. Henrique, D. Pedro e D. Duarte.
A 21 de Agosto de 1415, os botes dos navios do Infante D. Henrique começaram a despejar gente na praia.
Depois de um pequeno ataque, cheios de pânico, os Mouros recolheram-se espavoridos às portas da cidade,
e 500 dos Portugueses, que correram logo sobre eles, entraram também de roldão, sendo depois auxiliados
pelos infantes D. Henrique e D. Duarte com mais forças. Também o Rei ao tomar conhecimento da situação,
foi em auxílio com as suas tropas. Ao anoitecer, os Mouros, sem comando, batidos por toda a parte,
abandonaram a luta, sem tentar sequer defender a cidade, que não tardou em cair nas mãos dos
Portugueses. A manhã de 22 veio encontrar os vencedores ainda no auge da colheita e na surpresa
de uma fácil vitória. Depois procedeu-se solenemente à sagração da mesquita e à cerimónia de
armar cavaleiros os três infantes e muitos fidalgos moços que valorosamente haviam recebido o baptismo
dos combates”. (http://www.terravista.pt/ancora/1627/ceuta.htm#Ceuta_Inicio)
93

marinheiros, desarraigado do solo; a transformação do objetivo nacional se refletiu no


sentimento individual das pessoas, pois, a partir de então, o povo “desviado dos hábitos
hereditários, que o prendiam à terra, adquiriu uma índole aventureira, cosmopolita, disposta
aos riscos pelo imediato lucro, de preferência à obstinação no trabalho, de lento mas seguro
resultado” (Lúcio de Azevedo, 1978, p. 63).

Antonio Sérgio, historiador de Portugal, refere-se a políticas fracassadas da época do


último Rei da dinastia dos Borgonha, D. Fernando (1367-1383)63, como responsáveis pela
“vocação” marítima dos portugueses. Para ele, as grandes viagens de descobrimentos não

63
Durante o reinado de D. Fernando se tentou, em Portugal, fixar o homem no campo através de leis de fixação,
mas, segundo Sérgio, o fracasso dessa empresa impulsionou a política do Transporte: “Se as leis agrárias de
D. Fernando não deram resultados apreciáveis [leis das sesmarias, objetivando fixar o homem no campo e
aumentar a produção], porque muitas causas as contrariavam (entre as quais o caráter da fidalguia, cuja
triste situação econômica, e conseqüente dependência em relação aos monarcas, já encontramos
documentada nas canções de escárnio dos cancioneiros), as do comércio marítimo, pelo contrário, garantem
a vitória do Transporte [sobre a política de Fixação] que deu em resultado a descoberta do globo, a moderna
sociedade capitalista, a realização do mercado mundial.” (Sérgio, 1972, p. 30)
94

foram aventuras mal planejadas e inconscientes, ao contrário:

Os descobrimentos do século XV foram uma façanha de gente metódica, dotada


de clara inteligência política, de visão lúcida, muito precisa, dos escopos práticos a
que tendia, e do estudo minucioso dos meios adequados a tais escopos: em
suma, um vasto plano de conjunto, capacidades raras de organização: nada que
se assemelhe ao aventurismo inconsciente com que a pintaram, depois, os
românticos celticistas do século XIX. (Sérgio, 1972, p. 44)

De todas as conquistas portuguesas nos oceanos, a mais importante em termos


comerciais foi, sem dúvida, a passagem do Cabo da Boa Esperança em 1497/98. Dali abriu-se
o caminho para o domínio português nas Índias, através do monopólio real das trocas e
mercadorias e da construção das feitorias. Carlos Alexandre Morais, em sua Cronologia
Geral da Índia Portuguesa, define com precisão a chamada Índia Portuguesa do século XVI:

A designação “Índia Portuguesa” tinha, durante os séculos XVI, XVII e XVIII, um


sentido mais amplo, e englobava não só os territórios de Goa, Damão e Diu mas
igualmente as cidades, feitorias e fortalezas instaladas desde a costa oriental de
África ao Médio Oriente e também no continente indiano, Ceilão, Malásia, Molucas
e as várias missões religiosas, incluindo as do Japão, e ainda outros postos
comerciais ao longo da vasta trajectória marítima traçada pelos portugueses. Com
a capital em Goa, os vice-reis e governadores tinham jurisdição sobre todos esses
territórios, que incluíram Moçambique até 1752 e Macau, Solor e Timor até 1844.
(Morais, 1997, p. 09)

Com o domínio português naquelas terras e o vasto comércio que daí se produziu com
a Europa, o porto da cidade de Lisboa passou a ser, como informa Magalhães no artigo Num
Mercado à Dimensão do Mundo, ponto de partida e chegada de barcos dos vários cantos do
mundo, como da Galiza, da Biscaia, de França, Flandres, Inglaterra, Dinamarca, Polônia,
Alemanha, Mediterrâneo, Andaluzia, Itália e Grécia. Em outro artigo do mesmo livro
organizado por José Mattoso, Magalhães mostra como Lisboa foi se impondo naturalmente
como capital “burguesa” do reino português:

Lisboa não foi reconhecida capital por qualquer dispositivo da lei, nem escolhida,
num repente, para sede burocrática do poder real. A capitalidade tem a ver com a
situação relativamente ao reino, as facilidades de comunicação pelas vias
marítimas e fluvial, a fertilidade dos campos que lhe servem de imediato suporte e
a bondade do porto para importação e exportação. Natural foi que aí começassem
a estabelecer-se e estabilizar-se mercadores nacionais e estrangeiros(...)
(Magalhães, 1993, A, p. 55)

As novas conquistas, as novas rotas comerciais, as novas possessões e, principalmente,


as novas riquezas acarretam no Portugal do quatrocentos e do quinhentos configurações
sociais e relações de poder novas e, por conseguinte, exigências novas também, como, por
exemplo, o direito de Padroado.
95

No momento, porém, passemos mais especificamente à expansão ultramarina de


Portugal e a aspectos a serem ressaltados. O objetivo, reafirmando uma vez mais, é apresentar
aqui uma visão geral da expansão portuguesa como um empreendimento comercial e colonial,
se pautando, para isto, na historiografia portuguesa e sobre Portugal.

A empresa das grandes viagens, que tinha um alto custo tanto material como humano,
nas condições da época deve ser analisado como algo admirável, principalmente se se for
comparar o pequeno reino português com sua vizinha Espanha. É esse o conceito que Charles
Boxer emite em seu livro O Império Colonial Português. Nem o tamanho da população e
nem a escassez de navios foram empecilhos para a expansão tornando ainda mais relevante
uma comparação com o vizinho reino ibérico:

(...) Talvez fosse ainda mais notável [o empreendimento português comparado


com o espanhol na América] se nos lembrarmos de que a população de Portugal,
no século XVI, nunca excedeu, provavelmente, o milhão e um quarto, que havia
uma escassez de navios constante, que Goa era o único porto português na Ásia
como adequadas facilidades no que diz respeito a estaleiros, e que os
portugueses estavam empenhados em muitas outras realizações em Marrocos e
na África Ocidental, para não falar dos seus esforços de colonização da costa
portuguesa, de 1539 em diante. (...)(Boxer, 1969, p. 68)

Insistindo na comparação que, para ele parece suficientemente ilustrativa, Boxer


fornece mais dados sobre o processo de alargamento comercial português comparado com o
espanhol. Tal empreendimento provocou uma enorme sangria de homens das terras lusitanas:

(...) Pode calcular-se com razoável precisão que, durante o século XVI, saíam de
Portugal anualmente cerca de 2400 pessoas, sendo, na grande maioria, homens
válidos, jovens e solteiros, com destino a Goa ‘dourada’ e ao Extremo Oriente, de
onde apenas regressavam relativamente poucos. A sangria anual de número de
homens adultos portugueses foi, portanto, considerável e, de longe, muito maior
do que na vizinha Espanha, onde, de uma população avaliada em sete ou oito
milhões, apenas 60 000 pessoas tinham emigrado para a América até 1570 –
numa média inferior a 1000 pessoas por ano. (...) (Idem, ibidem, p. 70)

E apesar de todos os reveses por que passou o empreendimento português no Oriente,


como lutas contra os muçulmanos, enfrentamento de pirataria, naufrágios, doenças etc.,
afirma Boxer que os portugueses, em termos gerais, dominaram o comércio marítimo no
oceano Índico, durante a maior parte do século XVI.

O domínio português nas Índias foi rápido e eficiente. De 1508 a 1515 as principais
praças comerciais – Suez, Ormuz, Malaca, Macau e Goa, que foi a sede principal de Portugal
– já estavam conquistadas para a Coroa lusitana. A partir daí foi bastante efetivo o domínio e
o monopólio comercial naquelas terras, apesar de revoltas populares e derrotas ocasionais do
96

poderio militar português. Oliveira Martins, retomando Manuel Godinho, estabelece uma
periodização do domínio português no Oriente, divindo-o em quatro fases: a primeira
corresponde aos 24 anos do reinado de D. Manuel (1495-1521); a segunda aos 35 anos do
reinado de D. João III (1521-1557); a terceira de 1557 a 1600; e a última depois de 1600 até a
perda do domínio. No século XVI, ou seja, na terceira fase o domínio atingiu o seu apogeu.
No entanto, atingir o apogeu significa, também, o início do declínio. Esta periodização
proposta por Martins não é consensual na historiografia portuguesa, porém, ela não deixa
também de ser aceita, pelo menos implicitamente, na medida que o século XVI, em sua
segunda metade mais precisamente, é o palco do apogeu e do início da queda do
empreendimento comercial/colonial português no Oriente.

O ano da fundação do chamado Estado da Índia, como entidade política e


administrativamente organizada, pode ser considerado quando da nomeação de D. Francisco
de Almeida, em 1505, para Vice-rei. No entanto, no governo de Afonso de Albuquerque é que
se estabeleceu a efetiva conquista portuguesa na Índia, pelo domínio de cidades e edificação
de fortalezas e feitorias.

Num interessante artigo intitulado Uma História Trágico-Marítima, Giulia Lanciani,


ao apresentar o lado trágico das viagens dos portugueses como uma literatura que, já à época,
tinha um público grande e cativo, mostra que apesar das inúmeras perdas – de vidas humanas,
de navios, de víveres, de mercadorias etc. –, na chamada rota das Índias, o comércio sempre
foi mais lucrativo valendo a pena o risco, que era certo. A autora mostra que diante “da
perspectiva desses lucros gigantescos, nenhum perigo, nenhuma incerteza, nenhuma
prudência poderiam frear a cupidez dos governantes e a cobiça dos mercadores e
marinheiros” (Lanciani, 1992, p. 73). Realmente os lucros eram grandes, tanto que a
possibilidade de uma riqueza rápida e sólida levou, como vimos em Boxer (1969), milhares
de pessoas a se aventurar naquela empresa.

O empreendimento comercial no Oriente se tratou de uma política coordenada e


monopolizada pela Coroa portuguesa. Através de acordos que previam o rateio dos lucros de
acordo com o investimento que cada um fez – o governo, o capitão, o patrocinador –, a Coroa
detinha o monopólio daquelas rotas e em alguns casos, como especificamente o da pimenta,
detinha também a exclusividade de seu comércio. Lúcio de Azevedo informa que o
monopólio do comércio pela Coroa não se dava apenas com os produtos orientais, mas dentro
do reino também. Esta prática dos soberanos portugueses, que se inicia com D. Manuel ainda
97

no século XV se efetiva, segundo Lúcio de Azevedo e Sérgio, no reinado de D. João III. Esse
fato permite a esses autores conceberem Portugal, nesse momento, como um verdadeiro
Estado moderno, pautado no absolutismo. Tanto que o comércio dos produtos orientais era
organizado a partir de três órgãos criados e dirigidos direta ou indiretamente pela Coroa:
Feitoria do Oriente, para as compras; Casa da Índia, em Lisboa, para a recepção e pagamento
das partes; e a Feitoria de Flandres, para a distribuição.

A política real da expansão comercial é objeto de discussão e julgamento na


historiografia portuguesa. São muitos autores que encontram exatamente naquela política a
razão do atraso social e político que Portugal se encontrou nos séculos XVIII e XIX; existem
autores, no entanto, que a concebem positivamente, no sentido de um grande passo para o
progresso, que não foi realizado mais por razões internas do que externas. Nesta esteira,
Oliveira Martins e Lúcio de Azevedo servem como exemplo de duas visões antagônicas.

Para Martins a conquista portuguesa do Oriente pode ser resumida na prática da


pirataria e do saque, ou seja, não havia, de fato, no seu entender, uma política diretiva e
positiva que se impusesse sobre a cupidez dos aventureiros, o que acarretou um relaxamento
moral danoso para o espírito português na história. Tal relaxamento acontecia sob os olhos da
corte portuguesa, a qual, indiretamente, patrocinou as atrocidades cometidas contra os
aborígines daquelas terras. Martins é enfático:

O domínio português adquiria logo de começo o caráter duplo que jamais perdeu,
apesar de todas as tentativas posteriores de regularização e de ordem. Era no mar
uma anarquia de roubos, na terra uma série de depredações sanguinárias. Vasco
da Gama ensinara o modo de imperar com o fogo e o sangue; Sodré [sobrinho de
Vasco da Gama] indicava o modo de ceifar o mar, pela abordagem, as naus de
Meca. A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do domínio português,
cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a pimenta. (Martins, 1972, p. 224)

Por outro lado, Lúcio de Azevedo não nega que existiu a pirataria, o saque e a
violência por parte de muitos capitães portugueses, mas procura atenuar um julgamento
maniqueísta acerca do domínio português nas Índias. “Não estranhemos os factos nem nos
indignemos”, adverte ele, pois ao recorrer à história, assenta que “em todos os tempos e em
toda a parte, as empresas marítimas, como diz no Fausto o Mefistófeles, consistem na junção
de comércio, guerra e pirataria” (1978, p. 117). Não há expansão, ainda mais comercial, que
não aconteça em meio à luta, à cobiça, ao saque, enfim, ao domínio de uma parte por outra.

A Coroa portuguesa ao patrocinar a pirataria na Índias, nunca agiu como um


verdadeiro Estado moderno, afirma Martins, ainda mais liderado por D. João III, o qual era,
98

em sua avaliação, no mínimo um fanático religioso que deu guarida à mais perniciosa
instituição religiosa, a Companhia de Jesus. A Coroa portuguesa, para Lúcio de Azevedo, ao
contrário, independente do maior ou menor grau de fervor religioso, construiu um Estado que
foi moderno não no sentido de preparação para revoluções, mas no sentido do poder absoluto
e ao evitar derramamento de sangue e, também ao realizar, na prática, uma conciliação dos
interesses de classe. Para Lúcio de Azevedo, não foi a política marítimo-comercial que, em
princípio, emperrou o desenvolvimento do capitalismo em Portugal:

Se a política das conquistas, desconjuntando o organismo económico da nação,


baseado na agricultura, lhe estorvou a passagem, em condições normais, para a
idade do capitalismo e da indústria, certo é haver tido certas vantagens, de que
aproveitaram as classes inferiores, mais independentes desde então, e a realeza
na sua evolução para o absolutismo integral. A paz interna, desde a entrada da
dinastia de Avis, é provável dever-se a essa política, que deu emprego às
tendências belicosas da fidalguia, e proporcionava à penúria dos humildes o
refrigério da emigração. Não tivemos assim as revoltas populares, que
ensanguentaram a França, a Grã-Bretanha, o centro da Europa; nem guerras civis
como as das Duas Rosas, das Comunidades e da Santa Liga. Entretidos os
nobres nas aventuras distantes, não cuidavam, para compensar os excessos de
gastos ou diminuição de rendimentos, de reaver direitos antigos, renunciados,
dando ocasião, como em outros países, ao levante dos povos, ameaçados de
perderem regalias conquistadas. Nem foram pela ociosidade levados a dirimir, em
campos de batalha, as tendas pela supremacia do paço. Ideando as empresas,
distribuindo postos e prémios, o rei submetia as vontades, fortalecendo cada vez
mais a sua autoridade. Muitos anos antes de Luís XIV poderia ter dito D. Manuel
[1495–1521] que o Estado era ele. E do seu povo, todos que se descontentavam
na terra natal tinham além dos mares um império imenso, aberto às actividades e
compassivo às ambições. (Lúcio de Azevedo, 1978, pp. 291-292)

Apesar de não ser objeto específico de interesse nesta pesquisa, não é possível
simplesmente desconsiderar esse aspecto muito saliente na historiografia portuguesa. No
entanto, da mesma forma que com os jesuítas, também aqui não se fará qualquer julgamento a
posteriori condenando ou absolvendo a prática dos portugueses no domínio das Índias. Mas,
entre as duas posturas, exemplificadas por Martins de um lado e, de outro, Lúcio de Azevedo,
este trabalho se aproxima mais da direção do último, ou seja, em evitar qualquer julgamento
de fundo maniqueísta da política expansionista da Coroa portuguesa, aceitando,
historicamente, os fatos como se deram.

O que importa aqui é destacar que a expansão portuguesa pelo Oriente e pelo Ocidente
faz parte de uma lógica mercantil, mas que nem sempre é linear. O tempo do mercador e o
olhar do mercador são os sinais a indicar o que é e o que não é importante na empresa
expansionista. A mercadoria regula a vida dos homens; em função dela se constroem homens
e nações fortes; em razão dela, se destroem povos e se subjugam culturas.
99

Em síntese, o mundo que conhecemos, em termos sociais e culturais e sua base


econômica, é resultado direto daquelas mudanças. Mas qual foi o motivo gerador para o
homem se aventurar em mares nunca d’antes navegados? Terá sido a simples curiosidade
própria do homem em conhecer novas rotas marítimas, novos povos, em ir ao encontro de
lendas e mitos tidos como possivelmente verdadeiros? Terá sido uma motivação
essencialmente religiosa de levar a verdadeira religião para aqueles que não a tinham e lutar
contra aqueles que tinham uma religião propriamente anticristã? Terá sido resultado da
capacidade humana de procurar conhecer coisas novas, estendendo seu saber e domínio sobre
as coisas? Em realidade, para além destas causas que são verdadeiras, o caráter motivador
essencial foi o desejo ou a necessidade colocada de estabelecer e dominar outras praças
comerciais que fez de Portugal ponta de lança de uma nova era: o mundo se “arredondou”
social, econômica e culturalmente, como resultado do comércio ou, o que dá no mesmo,
resultado da mercadoria.

Em artigo intitulado O Vento, o Ferro e a Muralha – a Construção do Império


Asiático no Século XVI (1498-1548), João Rocha Pinto mostra que a era dos descobrimentos é
uma era renascentista na medida que incorpora novos valores, ou, no caso, novos “tempos”,
entre os quais o tempo como sinônimo de dinheiro.

Por seu turno, as concepções temporais também foram apanhadas por esse
tornado renascentista. Já não é só o tempo privilegiado da Igreja e dos intervalos
das preces que pauta o cotidiano, nem tão pouco é só o tempo de longa duração,
espesso e monótono, das lides rurais, marcados pelas noites e pelos dias, por sua
vez enquadrados nas estações do ano, que regula a cadência da vida humana.
Outros tempos vieram se juntar e, por vezes, se sobrepor àqueles: o tempo do
mercador e das comunas burguesas, com o relógio vigilante da torre sineira da
igreja do burgo, tempo este do mercador em regra sob o signo da permanência
imposta pelo pulsar frenético dos negócios (eis o ‘time is money’), ou ainda o
tempo repousado do descobridor de terras ignotas. (...) Em resumo e repetindo, o
Renascimento abriu uma nova era, onde coexistirão os mais diversos ritmos de
tempo. (Pinto, 1992, p. 199)

Se tempo e dinheiro se equivalem, continua Pinto, o olhar do português do século XVI


é o do mercador. O olhar de mercador é o filtro que o português utiliza para ler as coisas, pois
é o olhar de sua herança cultural. Voltando ao argumento de Lúcio de Azevedo, Pinto afirma
que os lusitanos queriam mercadejar e não guerrear, mas só guerreando se garantia o
comércio. A Coroa portuguesa, encabeçada por D. Manuel I com seus regimentos, era como
um grande banqueiro a dirigir os negócios da Índia.

O “olhar” de mercador é também responsável pela “língua” que batiza os lugares que
vão sendo descobertos e/ou conquistados, informa Lúcio de Azevedo. Não é sem razão que
100

uma determinada região tomou o nome de Costa do Marfim, por exemplo, ou mesmo
naqueles lugares onde o nome era uma homenagem religiosa, “não duvidou a cobiça de
trocar a invocação” (Azevedo, 1978, p. 77), referindo-se, à troca de Vera Cruz para Brasil.

Ao mesmo tempo, porém, que a lógica mercantil segue como referência da expansão
comercial, não se pode deixar de lado o fato de que cultural e religiosamente, o Portugal
quinhentista é uma coluna avançada do cristianismo no mundo, desenvolvendo,
principalmente na segunda metade, uma cultura coadunada com a reformista católica. Em
termos históricos, no sentido de se pensar em que resultou a sociedade que fez da mercadoria
a razão de ser da sociedade, existe uma contradição na sociedade portuguesa do século XVI,
na medida em que colocou um pé na história e outro fora dela, ou seja, foi capitalista como
impulsionador do mercantilismo e medieval como bastião da contra-reforma. Em termos
culturais, no entanto, essa contradição pode ser mais aparente do que real, na medida que para
os homens daquele período, principalmente os comandantes e soberanos, não eram
dicotômicos o agir mercantil e o agir religioso, ou seja, a empresa comercial/colonial era
plenamente compatível com a empresa religiosa, ou melhor ainda, a lógica mercantil não era
necessariamente uma lógica renascentista ou revolucionária que implodiria a cultura religiosa
escolástica. A racionalidade comercial também fez parte da empresa religiosa que, grosso
modo, tinha os mesmos inimigos da empresa mercantil: os gentios e os infiéis.

Nesse sentido, a apresentação de um panorama geral da cultura religiosa de Portugal,


no período de abrangência deste trabalho, se faz necessária, e é o que se fará adiante, para
depois retomar, uma vez mais, essa difícil questão da sociedade portuguesa como falsa ou
verdadeiramente contraditória.

A cultura e a religiosidade em Portugal

Em linhas gerais a cultura religiosa em Portugal no século XVI pode ser dividida em
dois momentos: o primeiro onde coexistiram um ambiente de reforma da vida do clero por um
lado e, por outro, um lastro de humanismo crítico da escolástica, principalmente com a
101

entrada do erasmismo64 e da recriação da Universidade de Coimbra dirigida e composta de


professores antenados com o humanismo francês; e o segundo onde predominou a cultura
reformista católica com forte tom contra-reformista65. De uma cultura mais aberta às
novidades próprias do humanismo renascentista, Portugal passou a ser expressão forte e sólida
da reforma católica no mundo. Muito das reflexões apresentadas aqui tomam por base as
concepções do professor José Sebastião da Silva Dias, retiradas de Correntes de Sentimento
Religioso em Portugal (1960) e A Política Cultural da Época de D. João III (1969).

Uma das marcas dos reis portugueses desde fins do século XV até D. João III, é a
reforma do clero, pois o estado moral deste era deveras dissoluto, aponta Dias (1960), o qual
apresenta uma amostragem da vida venal desregrada e simoníaca66 dos padres e prelados
portugueses nos séculos XV e XVI, indicando que a reforma da Igreja foi uma necessidade.
As razões de tal situação seriam: a estreita ligação do clero, principalmente o alto clero, com o
senhorio; a copiosa ganância por reditos etc; o fato de os prelados não residirem em suas
dioceses; as várias possessões de alguns prelados; a não exigência de requisitos intelectuais
para o exercício da função de clero; a lassidão dos costumes.

Como um exemplo do estado dissoluto do clero e das críticas que recebia da


população, especialmente o clero diocesano secular, Dias cita um trecho das Cortes ainda do
século XV:

Nas Cortes de 1481-1482, os representantes dos concelhos puzeram o problema


com inteira franqueza. “Senhor – disseram eles – muito dissolutos são os clérigos,
frades e pessoas religiosas em vossos reinos, assim em vida como nos trajos e
suas obras, dando mal exemplo aos leigos que deles devem haver doutrina e boa
edificação pelo exemplo da boa vida. Andam como rufiões e cometem outros

64
Como ficou conhecida a filosofia e o humanismo provindo de Erasmo de Roterdã.
65
Contra-reformista no sentido de se tornar refratária à onda protestante que entrava em vários países da Europa.
Neste trabalho se utiliza esparçamente o termo Contra-reforma e apenas num sentido mais didático, porque
partilho da concepção de não houve uma Contra-reforma católica em oposição à Reforma protestante; o que
houve, de fato, foi uma Reforma da Igreja Católica que já vinha se gestando a muito tempo e que o
movimento protestante se tornou um ingrediente a mais. Michel Mullett (1985), por exemplo, mostra que há
divergências entre os autores no que diz respeito aos termos “Reforma” e “Contra-Reforma”, mostrando que
para alguns a reforma da Igreja é resultado direto da reforma protestante e, para outros, a reforma era um
movimento que se aligeirou em função do protestantismo. O autor entende que as três reformas – protestante,
radical e católica – foram “subdivisões de uma experiência comum e que, efectivamente, constituíram uma
Reforma” (p. 14), que pode ser entendida, segundo Mullett, como a reanimação cristã do final da Idade
Média; “a Reforma Católica do Sul não foi provocada pela Reforma Protestante do Norte” (p. 36). Vitalino
Cesca (1996) informa que o termo Contra-reforma, no qual incluem-se os jesuítas, foi criado no século XIX
por historiadores alemães protestantes, reduzindo, ideologicamente, a ação dos jesuítas (p. 148). Outro autor
que defende a idéia da Reforma da Igreja ao invés de Contra-reforma é Daniel-Rops (1969, p. 09).
66
Simoníaco é adjetivo de simonia, que significa a venda, o tráfico de coisas sagradas, como, por exemplo,
relíquias de santos e, também, de coisas espirituais como sacramentos, dignidades e benefícios eclesiásticos.
102

muito malefícios sem receio, porque sabem que não hão-de haver penas por seus
males. Seja vossa mercê encomendar a seus Prelados que lhes ponham regra no
seu viver e nos trajos e hábitos; tragam suas coroas grandes e o cabelo [de modo]
que lhes apareçam as orelhas, segundo a disposição do direito canónico; os seus
vestidos [sejam honestos]; não tenham mancebas; suas armas sejam lágrimas e
orações; tragam o breviário sob o braço [=sempre consigo]; em rezar e dizer suas
missas sejam mui honestos e em seu viver limpos, e não ponham escândalo no
povo, como fazem muitos, pelo exemplo do seu mal e desonesto viver. Assim, dão
mal exemplo ao povo; por sua má vida, os leigos não têm devoção de lhes
pagarem os dízimos como devem; e são causa de pecado. Mas vivendo segundo
a
devem, muito edificarão nos leigos” (Santarém, Memórias das Cortes, p. te 2 ,
Provas, pp. 219-20). (Dias, 1960, p. 44)

A reforma do clero, tanto regular como secular, foi empreendida durante todo o século
XVI, especialmente no período de D. João III, mas já iniciado nos reinados anteriores. Dias
mostra que a reforma do clero diocesano, clero secular, se faz sentir já no segundo quartel do
século XVI, a ponto de desaparecerem, praticamente, as notícias de bispos concubinários.

Assim como preconizavam as decisões do Concílio de Trento, a reforma da Igreja


passava, necessariamente, pela mudança da atuação dos bispos, dos prelados, pois eles eram,
na estrutura da Igreja, os responsáveis diretos pela implantação de todos os pontos da reforma
tridentina, especialmente deveriam agir como verdadeiros guardiões da fé e da ortodoxia
católica. Em Portugal, a segunda metade do século XVI assiste realmente a uma mudança no
comportamento dos prelados e de suas dioceses. Essa mudança ocorreu, anota Dias, graças
tanto aos pastores – bispos e prelados – como às próprias Cortes portugueses:

Os esforços conjuntos dos Bispos e das Cortes tiraram a igreja lusitana do atoleiro
moral em que se encontrava. As irregularidades de vida, a inópia de cultura, a falta
de sentido evangélico e espírito apostólico, sofreram um duro golpe. Ao mesmo
tempo, reduziram-se os escândalos e limaram-se as arestas mais agudas do viver
eclesiástico, e fez-se aparecer um grupo relativamente numeroso de sacerdotes,
apostólicos, austeros, piedosos, que deram à reforma católica um elã e um
conteúdo religioso. A sua ação é palpável no movimento da piedade popular e no
esforço para a elevação do nível intelectual e moral dos pastores de almas. Sem
eles, teria sido mais difícil à reforma ultrapassar as simples proporções de uma
nova forma; e as aparências, que são a delícia dos políticos, andariam menos
juntas às realidades, que são o empenho dos apóstolos. (Idem, ibidem, p. 90)

No reinado de D. João III é que se deu o movimento reformador da vida monástica em


Portugal, informa Dias. Na época joanina houve um esforço muito grande de reavivamento da
vida religiosa cristã mais austera e íntima e menos pomposa e ritualística, devido, também, a
duas novidades institucionalmente criadas e amparadas: a fundação dos tribunais da Santa
Inquisição e a atuação dos padres da Companhia de Jesus. A intenção de se chamar os padres
reformados para o trabalho missionário nas Índias pode ter sido conseqüência, também, de
103

inúmeras denúncias dirigidas ao Rei, feitas por vigários-gerais, legados reais e governadores,
do estado de lassidão moral de muitos padres residentes em Goa67.

A reforma do clero regular e das ordens religiosas, também intensificada no período


joanino, acarretaram uma nova piedade bem antenada com o espírito de Trento, na medida em
que se valorizaram as práticas contemplativas em detrimento de um ritualismo exterior,
aparente e estéril. Dias resume a reforma do clero regular em Portugal dessa forma:

A análise empreendida neste capítulo e no que imediatamente o precede, permite


concluir, se não nos enganamos, que a reforma congreganista da época joanina
se caracterizou pela austeridade, o rigorismo e o sentido interiorista de suas
linhas. A valorização ampla das práticas contemplativas como eixo da vida de
piedade e da vida de acção – é, contudo, a dominante ideológica e, por assim
dizer, a sua nota revolucionária. (Idem, ibidem, p. 176)

A nova piedade é, na concepção de Dias, uma nota revolucionária, na medida que se


caracterizou diferentemente da piedade medieval, não renunciando à ação como elemento
essencial da atuação religiosas, e ultrapassando um ritualismo exterior desprovido de qualquer
sentido realmente contemplativo. Dias não cita, mas poder-se-ia arriscar o sentido dinâmico e
novo da nova piedade com a célebre frase atribuída a Inácio de Loyola para seus irmãos
jesuítas: “trabalhe como se tudo dependesse de ti; reze como se tudo dependesse de Deus”.

Dias mostra que a nova piedade desenvolvida em Portugal a partir do processo de


reforma do clero é um fenômeno urbano que, com um novo laicato, tecia críticas à Igreja e
propugnava o irenismo – ecumenismo – como uma saída para os conflitos religiosos que
existiam tanto na Igreja de Roma como na de Portugal. Tal movimento, se por um lado
contribuiu para a reforma do clero, por outro chamou a atenção das autoridades como algo
possivelmente nocivo e perigoso:

Do fim da época fernandina ao fim do reinado de D. João III, processou-se na


sociedade portuguesa uma evolução que obrigava a reconsiderar o seu
enquadramento religioso e sua prática cristã. Os processos do urbanismo, com
efeito, modificaram sensìvelmente a estrutura demográfica e a perspectiva agrária
da vida económica e social do país. A tutela do braço eclesiástico sobre a vida
temporal afrouxou também grandemente. O laicado apercebeu-se, pouco a pouco,
de que ele próprio era Igreja – e uma Igreja que não podia viver nos conventos e
mosteiros e à qual a piedade monástica, com a sua cadeia de observâncias e
regulamentos, se adaptava mal. Uma sociedade nova requeria, portanto, uma
piedade nova. E os espíritos avisados sentiram tanto mais a necessidade, quanto
é certo que viam no laicado urbano uma presa fácil do evangelismo de inspiração
erasmiana, luterana ou calvinista. Com uma forma de espiritualidade, podia pôr-se
em causa uma teologia e, o que mais importa, uma Igreja e uma Fé. (Idem,
ibidem, p. 296)

67
Para ver mais detalhes com relação a esse aspecto, ver Tavares (2002), no capítulo segundo, no item A Igreja
no Oriente: ambição de um projeto.
104

O movimento pietista não tinha ligação política ou mesmo ideológica com o


protestantismo, alerta Dias, pois não se tratava de fazer oposição radical à Igreja Católica, mas
não podia fechar “os olhos a realidades por demais evidentes”; era a crítica necessária, mas
sem rompimento, caracterizando o pietismo como “a expressão mais intelectual e mais
dinâmica da corrente de sentimento religioso gerada em Portugal pela ânsia de reforma
aliada à firmeza de adesão à Igreja Católica” (Idem , ibidem, p. 362). Foi um movimento de
intelectuais, pois nasceu e foi cultivado tanto pelo laicato como por uma parcela da Igreja que
estava ligada, de certa forma, a uma prática humanista, encontrada na Universidade de
Coimbra e ao Real Colégio das Artes.

O movimento chamado por Dias de pietista acabou sendo avaliado pela Coroa na
mesma esteira que o erasmismo e o protestantismo. Quando o Concílio de Trento chegou em
sua fase mais crítica e importante de definição das necessidades reais da Igreja, durante o
governo de Paulo IV (1555-1559), a convicção de um “esforço geral para uma reforma das
coisas eclesiásticas e para o estabelecimento de um ideal de vida assente em exigências
morais fortes e numa prática que, sem deixar de ser comunitária e fiel às tradições católicas,
fosse mais interior e mais intensa, atesta também que a falta de directrizes e de acção de
1520 estava ultrapassada” (Idem, ibidem, p. 418), ficando sem sustentação práticas e
propostas como o irenismo, o erasmismo e mesmo o pietismo, pois, por mais bem
intencionados que pudessem ser, poderiam abrigar, tal qual um moderno Cavalo de Tróia, as
hostes do inimigo protestante.

Com relação ainda à reforma do clero, particularmente do regular, Dias informa que
ela não se deu de forma tranqüila, pois enfrentou-se muita resistência de algumas ordens, as
quais, inclusive, enxergaram na morte de D. João III a possibilidade de voltar ao estado de
vida anterior. É preciso salientar, também, que todas as resoluções do Concílio de Trento não
foram implementadas de imediato em todos os Estados cristãos e aliados de Roma,
demorando algumas determinações até o século XVIII para serem efetivadas.

A mentalidade religiosa em Portugal se radicalizou de tal forma de meados do século


XVI em diante que o erasmismo foi confundido com o luteranismo, apesar da enorme
distância teológica e ideológica existente entre Erasmo e Lutero. Essa confusão, feita “quase
sempre por militantes católicos” (Idem, ibidem, p. 211), foi resultado da desordem ideológica
e da crise política estabelecidos em Portugal, principalmente a partir da morte de D. João III.
Erasmo chegou a ser convidado pelo Rei Piedoso para dar aulas em Coimbra e teria dedicado
105

um dos seus livros a este Soberano, no entanto, o processo de reforma interno do clero regular
e secular, a inauguração de uma nova forma de piedade, a fundação do Tribunal da Santa
Inquisição e a instalação da Companhia de Jesus em terras lusitanas, contribuíram para
identificar qualquer forma de crítica mais contundente à Igreja, como no caso de Erasmo,
como expressão do protestantismo. Em vista disso Portugal se tornou praticamente refratário à
cristandade protestante.

Dias (1969) mostra que em Portugal não havia somente inviabilidade teológica, mas
também social para implantar o protestantismo, apresentando como razões pelas quais nem o
luteranismo e nem o calvinismo fincaram os pés em terras lusitanas: a falta de uma burguesia
mercantil forte, como classe com interesses políticos e ideológicos próprios; a falta da
tradição de uma discussão teológica mais aberta como na universidade de Paris; a inquisição e
a perseguição aos cristãos-novos; o envolvimento direto da coroa com os princípios e decisões
do Concílio de Trento.

A cultura católica reformista em Portugal pode ser medida também pela relação com
as decisões tridentinas. Joaquim Ramos de Carvalho, no artigo A jurisdição episcopal sobre
leigos em matéria de pecados públicos: as visitas pastorais e o comportamento moral das
populações portuguesas do Antigo Regime, publicado na Revista Portuguesa de História,
afirma que Portugal foi o único país da cristandade que recebeu sem reservas e publicou, na
íntegra, todas as conclusões do Concílio de Trento. Não tenho condições de avaliar se esta
informação tão categórica é verídica ou não, mas, o que coincide com a verdade é que as
terras lusitanas foram um importante eco das reformas da Igreja definidas em Trento.

Dias (1969) ao fazer uma relação entre a contra-reforma, a Inquisição, o


protestantismo e o humanismo em Portugal à época joaninha, resume o papel fundamental da
fé católica naquela sociedade, mostrando que a “ordem tridentina, na conjuntura ibérica e
ultramarina do povo português daquela época, tornou-se uma ordem política nacional. A Fé
constituía, no fim de tudo, a abóbada do Império” (Dias, 1969, pp. 949-950).

Encerremos essa breve apresentação da cultura reformista de Portugal com uma


reflexão deveras interessante de Dias, que diz respeito a se entender a contradição como “um
dos estímulos mais poderosos da história”, reflexão esta que não pode ser relegada pelo
historiador. Ele resume o quinhentos português como sendo exatamente contraditório, pois de
um estado de corrupção moral da vida passou-se para um estado reformado, no qual, de
106

possível terra de protestantes, Portugal fincou pé no catolicismo e se tornou terra da reforma


católica tridentina.

Se a Coroa portuguesa adotou o reformismo católico como objetivo a ser alcançado


também em terras lusitanas, não poderia ser diferente sua atuação no Império,
particularmente, na construção e manutenção do Estado da Índia. Portugal se tornou, dessa
forma, uma coluna avançada do cristianismo no mundo. Junto com a espada do soldado ia a
cruz do padre; junto com o poderio militar iam as levas dos soldados de cristo; junto, enfim,
com a cultura ocidental de corte ia a religião cristã.

Quando se apresentou o Padroado português, se tocou, obviamente, neste mesmo


assunto, na medida em que o Padroado era uma espécie de autorização papal para que a Coroa
fizesse o papel da Igreja nas terras desconhecidas a serem evangelizadas. No entanto, apenas
para concluir esta parte sobre a cultura religiosa em Portugal, é relevante apresentar
sucintamente mais essa faceta da mentalidade lusitana no período em questão.

Francisco Xavier quando chegou em Goa teve a convicção de que estava a serviço de
uma nação realmente cristã. Em carta de 20 de setembro de 154268, ele escreve para o
Geral Loyola mostrando que o Governador-geral em Goa fez muitos elogios à atuação da

68
Não é a mesma carta citada anteriormente. Esta é mais cordial com os portugueses.
107

Companhia de Jesus, colocando-se a disposição para construção de colégio e casa e


solicitando sempre que mais padres jesuítas também fossem para lá. Já quase ao final da carta
ele evidencia a boa relação de Portugal com Roma para justificar que Loyola conseguisse
bulas papais com indulgências para os portugueses nas Índias:

Entre todas as nações por mim vistas, creio que a portuguesa se avantaja a todas
na estima das graças e indulgências de Roma. A concessão destas graças será
causa de muitos mais se achegarem aos sacramentos, e assim por serem os
portugueses muito obedientes, aceitará conceder-lhes as indulgências esperadas.
Todas as graças que de lá trouxeram os de nossa Companhia, devem trazê-las
muito autorizadas por bulas de Sua Santidade, para maior autoridade e para maior
aumento da devoção. (in: Cardoso, 1996, p. 45)

As indulgências plenárias eram uma espécie de recompensa a que os soldados,


capitães, comerciantes e padres tinham direito pelos trabalhos desenvolvidos naquela região
inóspita, além de se tornarem, mais tarde, chamariz para que portugueses voltassem a praticar
uma religião mais condizente com a do reino. As indulgências eram conseguidas não
diretamente pela Companhia de Jesus, mas pelo Império português que tinha como missão a
cristianização daquela parte do mundo.

Nesse sentido é que Boxer (1969) afirma que o império marítimo português na Ásia
pode ser “descrito como uma empresa militar e marítima moldada numa forma eclesiástica”
(p. 89); ou seja, não era possível separar o projeto de expansão comercial e consolidação das
praças dominadas, com o projeto de conversão dos gentios e de combate aos infiéis no
Oriente. A Companhia de Jesus, enquanto ordem religiosa que se transformou em missionária
também, não destoa do projeto político, social e econômico do Estado da Índia, ao contrário, é
o corolário necessariamente cristão que justificava, em muitos casos, a violência empregada
para conquistas comerciais e monopólio das rotas. A riqueza conseguida no Oriente era, de
certa forma, abençoada, na medida em que através dela, populações enormes de gentios
tinham acesso à verdadeira religião. Em outro texto, Boxer (1978) define como sendo uma
quinta-coluna cristã a união univitelina da cruz e da espada, na medida em que a
cristianização aplainava o caminho da dominação cultural e econômica da Coroa portuguesa.
Se a cruz dependia da espada, a cruz também predispunha a espada.

Luis Felipe Barreto, em Descobrimentos e Renascimento, mostra que não é possível


separar o cristianismo da expansão comercial, na medida que o primeiro afirma-se como
verdadeira consciência nacional dos séculos XVI e XVII, tornando-se a ideologia de uma
“uma sociedade em expansão imperial” (1983, p. 116).
108

Após apresentar, mesmo que sumariamente, aspectos da cultura religiosa portuguesa


no período em questão, ver-se-á, a seguir, e assim se encerra esta primeira parte do trabalho,
três conseqüências da expansão comercial portuguesa: o afidalgamento da sociedade, o início
da decadência do Estado da Índia e as crises em Portugal, e o projeto de colonização do
Brasil.

Conseqüências da Expansão Portuguesa

A riqueza gerada com a expansão comercial portuguesa e o monopólio real de rotas


comerciais e de mercadorias criou no reino português uma mentalidade de ostentação do luxo,
de possibilidade de se conseguir dinheiro fácil, de desvalorização do chamado trabalho
produtivo, enfim, uma mentalidade à fidalga. Entende-se por afidalgamento da sociedade,
uma valorização e conseqüente extensão da forma de ser da fidalguia, ou seja, da nobreza
portuguesa, a qual ligada cada vez mais a corte do Rei, vivia da ostentação da riqueza e
considerava o trabalho produtivo, especialmente o manual, coisa desprezível, próprio das
classes baixas. Quando essa mentalidade se espraia pela sociedade como um todo, cria-se uma
mentalidade de que a riqueza conseguida de além-mar é suficiente para enriquecer toda a
sociedade, gerando hábitos fidalgais mesmo em parcelas da população que não o eram por
nascimento. A possibilidade de ficar rico nas Índias criava uma mentalidade de que a
ascensão social passava por aquele tipo de comércio.

Este aspecto da sociedade portuguesa quinhentista foi um dos responsáveis, segundo


alguns autores, pelo atraso português no sentido de não acompanhar economicamente as
nações que se tornaram ricas nos séculos seguintes, bem como pela própria cultura religiosa
reformista. Oliveira Martins é, com certeza, dos autores críticos do processo de expansão
portuguesa o mais ácido nas reservas à ostentação do luxo e, também, à contradição que o
apego ao luxo formou na sociedade portuguesa.

Com relação ao luxo, ao apego demasiado à riqueza, Martins afirma que esse aspecto
obliterava a visão das pessoas em geral para os verdadeiros problemas da sociedade:
109

Na embriaguez de tamanhas riquezas, quem poderia ouvir o grito lancinante do


judeu queimado? quem se atreveria a afirmar que a nação se arruinava? que os
se despovoavam? que a miséria crescia? e que o rei de Portugal, tão opulento,
era de facto um pobre pedinte? (Martins, 1972, p. 321)

Martins continua mostrando que o estado real da sociedade portuguesa era


flagrantemente contraditório com o luxo que era ostentado e buscado a todo o custo. As
características da sociedade lusitana apresentadas por Martins confirmam o seu julgamento
condenatório de tudo o que foi produzido na época joanina: Portugal se endividou demasiado;
a fome era grande; os preços tornaram-se altos; os serviços de criadagem eram caros; os
escravos cada vez mais numerosos; o luxo e a indolência eram pares da miséria; os plebeus,
afidalgando-se, olhavam com desdém para os trabalhos manuais; as terras deixavam de ser
cultivadas; e, entre o clero, o estado de lassidão e luxúria imperava (pp. 320-326). É preciso
entender que a análise que Martins faz do século XVI, principalmente do período joanino em
diante, é extremamente negativa, julgando de forma ácida os acontecimentos e instituições –
principalmente a Inquisição e a Companhia de Jesus – de forma a confirmar o seu juízo.
Portanto, creio que se deve descontar muito das críticas de Martins, mas, não se pode negar
que realmente a sociedade portuguesa do século XVI sofreu um processo de afidalgamento
que contribuiu para uma determinada direção social.

O título de fidalgo se tornou praticamente um adjetivo qualificativo, é o que afirma


Mafalda Soares da Cunha. Em A Casa de Bragança (2000), esta autora faz um breve
histórico do titulo nobiliárquico de fidalgo mostrando que de terceiro grau passou para o
primeiro, fazendo parte sempre dos títulos, como, por exemplo, escudeiro-fidalgo, cavaleiro-
fidalgo, ou na ordem invertida. Cunha ressalta que fidalgo não era, necessariamente, o mesmo
que nobre, mas era uma casta social que pertencia à aristocracia de linhagem e, portanto,
ligada diretamente às casas senhoriais e à Casa Real.

Ao analisar detida e detalhadamente toda a rede de comunicações senhoriais e


clientelares da Casa de Bragança, Cunha mostra, por exemplo, que o fluxo de capital entre os
comendadores e fidalgos não era expressivo, demonstrando a possibilidade de muitas famílias
que pertenciam à Casa de Bragança terem mais dívidas que receitas. Esse aspecto pode estar
ligado ao processo de afidalgamento da sociedade gerando um tipo de pessoa rica, porém
endividada. O dinheiro gasto na ostentação do luxo nem sempre tinha um lastro suficiente
compatível com as aparências que se queria dar.
110

António Sérgio é outro autor que vê o processo de afidalgamento da sociedade como


uma consequência da expansão comercial portuguesa. A vitória da política do Transporte
sobre a da Fixação em Portugal trouxe um “fenômeno profundamente maléfico para o país”,
que foi o gosto do luxo e do pomposo em detrimento do produtivo, estendendo-se esse
comportamento até aos lavradores. Sérgio também enxerga na mentalidade à fidalga um
componente do atraso econômico e cultural de seu país.

O afidalgamento da sociedade portuguesa não foi o responsável pela sua decadência,


mas sim um sinal claro de que a política do Transporte, tal qual foi conduzida, é que causou o
atraso português, na medida em que destruiu a indústria de Portugal, é o que assevera Sérgio;
principalmente depois que o poderio português no Oriente começou a diminuir e as riquezas,
que já não eram bem utilizadas, começaram a rarear.

A decadência do poderio português no Oriente não ocorreu de um momento para outro


e nem tem uma data para começar69, pois se trata de um processo longo, não retilíneo, mas
que se mostrou, com o tempo, um processo irreversível. A crise da empresa comercial afetou
sobremaneira o reino como um todo, pois quando a riqueza que era certa começou a faltar, o
reino, acostumado a ela, passa por crises.

Lúcio de Azevedo é outro autor que analisa o processo de decadência do Estado da


Índia de forma próxima a de Sérgio, mostrando que “o estado convulsivo da sociedade, as
guerras intestinas e de fronteira, por fim, a epopéia marítima” (1978, p. 19) afastaram os
homens do trabalho produtivo, engrossando a ociosidade no país. Em sua obra, apresenta um
estudo minucioso a respeito do estado de endividamento que tomou conta da Coroa
portuguesa já nas primeiras décadas do século XVI. Basicamente o problema era o déficit na
balança de receitas e despesas, e os gastos, que mesmo sendo grandes, não eram realizados
em coisas produtivas para o reino e sim na ostentação do luxo e no sustento da ociosidade.
Lúcio de Azevedo afirma ainda que o declínio da riqueza do reino português no período é
proporcional ao declínio do poder financeiro da Casa da Índia.

Para os autores consultados, o problema da decadência e do conseqüente atraso


econômico de Portugal não estava ligado necessariamente à empresa expansionista em si; o
problema é que toda a sociedade, a começar pela corte real, passou a viver quase que

69
Se fosse para definir uma data como causa externa da decadência do Império português no Oriente, poder-se-ia
arriscar o ano de 1595, pois, informa Morais (1997), naquele ano termina o monopólio de navegação
portuguesa para as Índias, após a travessia do Cabo da Boa Esperança pelos holandeses.
111

exclusivamente da riqueza produzida por aquele comércio e por aquele domínio. Joaquim
Romero Magalhães, no artigo As Fronteiras, mostra, por exemplo, que Portugal ficou refém
do que criou, pois “Portugal criou e desenvolveu um império ultramarino que se apossou de
tudo e de todos. E que ficou pendurado no que de lá vinha.” (Magalhães, 1993, A, p. 47).

Em artigo intitulado Grandeza e Decadência da Índia Portuguesa, Guillaume-Thomas


Raynal70, também atribui à falta de uma riqueza produtiva a decadência portuguesa. Ele
especula que nem se Portugal não tivesse ficado submetido à Espanha, “não teria conservado
nem sua riqueza real nem seu poderio”, pois não se tornou uma nação verdadeiramente rica,
além do mais, se não fossem os espanhóis, logo seriam os holandeses a dominar Portugal.
Raynal procura mostrar que a empresa comercial no Oriente desmantelou qualquer
fundamento de uma verdadeira potência:

Encontrando-se essa pequena nação subitamente dona do comércio mais rico e


extenso da Terra, logo se tornou composta apenas de mercadores, corretores e
marinheiros esgotados pelas longas navegações. Assim, perdeu o fundamento de
toda potência real, a agricultura, a indústria nacional e a população. Não houve
proporção entre o seu comércio e os meios de continuá-lo. (Raynal, 1992, p. 192)

Dias (1969) procura minimizar o real volume da riqueza do Oriente que realmente
chegava até a Coroa e nobreza em Portugal, afirmando que mesmo com a empresa nas Índias,
a nobreza continuou com os mesmo problemas – oriundos da falta crônica de dinheiro – pois
a maior parte da riqueza não ia para ela e sim para os mercadores. Dias procura mostrar que
não demorou muito para que a corte se apercebesse que o Estado da Índia não produzia tanta
riqueza quanto o que seria o necessário, no entanto, a rota não mudou:

Mas a dura realidade, apesar da enchente de sonhos fagueiros trazida pela maré
dos Descobrimentos, não deixou esquecer aos interessados a dor dos seus
apuros domésticos. E o sentido de desconforto social agravou-se à medida que as
relações de comércio e de domínio com os novos continentes se foram
desenvolvendo. Tornou-se cada vez mais claro que a aquisição de fortunas no
Oriente não era fácil e que as riquezas desembarcadas na Europa iam parar, em
grande parte, à mão do mercador, especialmente do judeu e do estrangeiro.
Mantiveram-se, por conseguinte, em aberto, senão mesmo aprofundados, os
velhos problemas da nobreza. (Dias, 1969, p. 743)

É interessante não perder de vista que o objeto de análise de Dias neste livro é a
política cultural à época de D. João III, meados do século XVI, portanto. Ele mostra, ainda,
que houve no período uma situação social de empobrecimento da sociedade portuguesa,

70
Raynal nasceu em 1713 e morreu em 1796. O artigo citado é, na verdade, uma compilação de alguns trechos
da obra História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio dos europeus nas duas Índias,
publicada pela primeira vez em 1770, colocada no Index em 1774 e proibida em 1779. Para se ter uma idéia
da oposição da Igreja, o colaborador de Raynal na composição final da obra foi Diderot.
112

principalmente da fidalguia que, naquelas alturas, já tinha o luxo como uma necessidade e não
uma superfluidade. Essa situação praticamente obrigou a proteção real aos nobres, através de
cargos públicos na administração direta, ocasionando uma mudança de comportamento da
fidalguia, a qual, contraditoriamente, teve que buscar competência técnica para, inclusive,
merecer os altos cargos:

(...) A idéia de descer ao nível do letrado para adquirir uma competência técnica,
pelo menos cultural, como requisito indispensável ao exercício de um múnus
qualificado na sociedade, e de lhe sofrer a concorrência na luta pela ascensão
política e administrativa, repugnava-lhe instintivamente. E repugnava-lhe tanto
mais, quanto mais notória a subida do letrado na escala social e mais freqüente a
subalternidade funcional do fidalgo em face dele no Estado. (Idem, ibidem, p. 730)

A idéia de ser um letrado era, para a fidalguia na época manuelina, repugnante, anota
Dias, e o fato de ela ter que descer a esse nível revela uma crise na sociedade, crise que é
sempre de fundo econômico, mas que não deve passar a idéia equivocada de que toda a
sociedade estava com problemas e que todos na sociedade tinham a exata noção do que estava
acontecendo. A riqueza vinda do Estado da Índia continuava existindo, alimentando o sonho
de riqueza fácil e acalentando o sono indolente de boa parcela da população, particularmente
da fidalguia.

O processo de crise teve momentos mais e menos acentuados, mais e menos graves
durante o decorrer do século XVI. O reinado de D. Henrique parece ter sido um desses
momentos de crise mais aguda, tanto que o seu final coincide com o início da chamada União
Ibérica, quando Portugal ficou sob o domínio da Espanha. Francisco Bethencourt, no artigo D.
Henrique, mostra que naquele curto período de tempo, Portugal passava por momentos
críticos, tanto em nível social e econômico, como moral e político:

O reinado do cardeal D. Henrique durou apenas um ano e cinco meses, desde 28


de Agosto de 1578, data em que foi aclamado rei, depois do desastre de Alcácer
Quibir, até 31 de Janeiro de 1580, data da sua morte. D. Henrique ascende ao
trono já com 66 anos e numa conjuntura francamente desfavorável: a coroa tinha-
se endividado para financiar a expedição de D. Sebastião ao norte da África; uma
boa parte da nobreza tinha morrido em Alcácer Quibir ou ficara cativa; todo o reino
fora atingido pela derrota, contando-se em muitos milhares os mortos e os
113

prisioneiros. Trata-se de um período excepcional de crise, tanto ao nível


econômico e financeiro, como ao nível político e moral, que é geralmente
‘avaliado’ como uma espécie de interregno que precede a perda da
independência. (Bethencourt, 1993, p. 546)

Nas duas últimas décadas do século XVI em Portugal se cultuou de forma patética a
figura do Rei “Esperado” D. Sebastião71. Quando ele nasceu criou-se já toda uma atmosfera
heróica em torno dele, pois não se esperava mais descendentes do Rei D. João. No entanto,
ainda sem deixar herdeiro, D. Sebastião teve uma morte trágica na famosa batalha de Alcácer-
Quibir e, por não acharem seu corpo, imaginou-se que poderia ter sobrevivido à tão
desastrada empresa de conquista e que voltaria para reinar. Com a União Ibérica, a esperança
da volta do Rei transformou-se num mito, o Mito do Sebastianismo, que passou a fazer parte,
com o tempo, da cultura popular de Portugal. D. Sebastião seria o grande libertador
messiânico de Portugal do domínio espanhol72.

Manteve-se o caráter realista da lenda. D. Sebastião conservou-se um herói, e o


cristo nacional não atingiu a categoria de deus. Os sucessivos desenganos,
porém, e o tempo que, no seu decorrer, tirava a possibilidade à existência real do
homem, não podendo transferir a lenda para a região do dogma, levaram-na para
a região do mito; não podendo transcendentalizá-la, naturalizaram-na; não
podendo transfigurar o rei em Deus, fizeram dele um herói: Heracles e não Zeus, o
Arcanjo e não o Verbo. (Martins, 1972, p. 371)

Oliveira Martins, na mesma toada de crítico severo do quinhentos português, concebe


a criação do mito como uma fuga da realidade ao transferir para a esfera de um milagre a
esperança de libertação do domínio espanhol; a criação e o cultivo do sebastianismo era
“sintoma superior de caquexia nacional” (p. 369). Martins liga a criação e o cultivo do mito à
Companhia de Jesus, aliás, como não poderia ser diferente, em se tratando deste autor. O fato
é que Martins é liricamente trágico ao asseverar que o sebastianismo representou, para
Portugal, a morte para a história. O atraso econômico e cultural de Portugal, cultivado durante
todo o século XVI, principalmente por D. João III, teve um coroamento apoteótico e patético
com o Mito de D. Sebastião:

O Sebastianismo era pois uma explosão simples de desesperança, uma


manifestação do génio natural íntimo da raça, e uma abdicação da história.
Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a história, desfeito num
sonho; envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança
messiânica. (Idem, ibidem, pp. 374-375)

71
D. Sebastião era o Esperado porque todos os filhos de D. João III morreram antes do pai. Quando o Rei João
morreu seu neto Sebastião tinha apenas três anos e ficou sendo a garantia da continuidade da dinastia de Avis.
72
Este mito político ficou tão arraigado na cultura portuguesa que mais de uma vez foi utilizado como
argumento para determinadas questões. Por exemplo, o padre jesuíta António Vieira utilizou em alguns
sermões dirigidos à Coroa portuguesa o mito do sebastianismo como motivador para ações de soberania do
governo português.
114

O mesmo que se ponderou acima sobre as concepções de Martins valem para cá, ou
seja, ao citá-lo não se está necessariamente concordando com sua concepção de história e
particularmente com sua apreciação da história portuguesa do século XVI; no entanto, é
inegável que a criação do Sebastianismo expressou uma sociedade sem rumo, sem líderes
fortes e, naquele momento, em grave crise econômica e financeira. O Mito de D. Sebastião
ficou arraigado na cultura portuguesa e foi utilizado em momentos posteriores mais como
incentivo, como argumento dentro de uma intencionalidade própria, do que quando de sua
criação. Não poderia arriscar a afirmação de que toda vez que o mito foi lembrado e utilizado
também expressa uma determinada crise, mas pode-se afirmar que, em sua origem, o
Sebastianismo evidenciou ou fez parte da decadência portuguesa.

O último aspecto a ser trabalhado neste capítulo diz respeito ao projeto colonial
brasileiro como uma das conseqüências da expansão comercial e política portuguesa no
Oriente.

No contexto do século XVI português, qual o papel atribuído à empresa colonial do


Brasil? Antes de indicar, sumariamente, um caminho para se responder a esta questão, é
importante salientar que considero essa questão de suma importância, e, por isso, o que consta
neste trabalho é tão-somente um indicativo com o objetivo de mostrar que a colonização do
Brasil foi um projeto político antenado com a situação do Estado da Índia e, para mostrar
também, mesmo que indiretamente, que o trabalho dos jesuítas aqui no Brasil obedecia, com
algumas diferenças, à mesma mentalidade mercantil do trabalho no Oriente.

João Lúcio de Azevedo (1978), ao contrário de outros autores, como António Sérgio,
por exemplo, minimiza a importância da descoberta do Brasil para a Coroa portuguesa,
afirmando que é muito provável que realmente não se conhecesse de antemão as rotas
marítimas para o Brasil, até porque, nas primeiras décadas o Brasil não teve muita
importância para Portugal.

O sistema inicial das Sesmarias, que consistia em entregar a particulares donatários


grandes partes de terras no Brasil representa, para Azevedo, uma prova cabal de que o reino
se desinteressava do empreendimento colonial, ao deixar “aos donatários os encargos todos
da colonização” (1978, p. 239). É prova cabal na medida em que era completamente diferente
da empresa mercantil no Oriente, na qual a presença da Coroa se fazia sentir nas pessoas dos
governadores, capitães etc., e, também, no patrocínio direto de encargos em troca do
115

monopólio de mercadorias. O empreendimento colonial brasileiro, no seu início, desanimou


vários donatários, dentre eles Martim Afonso de Souza, o qual nunca mais regressou à
Colônia, preferindo se aventurar no Oriente.

Lúcio de Azevedo assevera, aqui concordando com António Sérgio, que a história do
Brasil realmente começa somente a partir da vinda de Tomé de Souza, em 1549, investido
como primeiro Governador-geral do Brasil, com um projeto político de colonização e
ocupação do solo e com a centralização do poder. Essa decisão política da Coroa portuguesa é
tomada e efetivada concomitantemente e como resultado das primeiras crises do
empreendimento comercial nas Índias. Se se pensar que na metade do século XVI já aparecem
os problemas em manter o domínio português no Indico, a opção por estabelecer uma empresa
verdadeiramente colonial no Brasil ganha força e motivação.

Sem adentrar no debate em torno desta questão, que remete para polêmicas em torno
do próprio Estado da Índia, o que importa aqui é a concepção de que o Brasil entrou
efetivamente no mapa político do Império português a partir de 1549 como uma colônia que
deveria produzir mercadorias para serem consumidas em Portugal e comercializadas pela
Coroa. Prova disso é a informação de Lúcio de Azevedo de que em 1583, quando o jesuíta
Fernão Cardim chegou ao Brasil, existiam 118 engenhos e, em 1710, quando outro jesuíta,
André João Antonil, escreve, já são 528 os engenhos de açúcar no Brasil Colônia.

A mesma racionalidade que caracterizou a empresa expansionista mercantil no


Oriente, também foi a lógica da empresa expansionista colonial no Brasil e, caracterizou
igualmente a atuação dos padres da Companhia de Jesus tanto lá como cá. Esta racionalidade
é mercantil, mas não sinônimo, no período e instituições em questão, de racionalidade
burguesa, mas uma racionalidade própria de um período renascentista que coloca o homem
como centro das preocupações e principal agente da busca da riqueza e da conquista cristã em
terras de além-mar.
PARTE II A

RACIONALIDADE NA FORMAÇÃO DO

FUTURO JESUÍTA
117

Capítulo 3

A formação do Jesuíta:

a intelectualidade e a espiritualidade

A Companhia de Jesus é uma ordem religiosa que nasceu sob os auspícios da Reforma
da Igreja Católica e com um grande objetivo: reconquistar a cidade de Jerusalém para os
cristãos. Deste ideal francamente cruzadístico até os trabalhos ligados às cortes, à educação e
às missões, através dos quais a Companhia tomou sua forma definitiva, vários anos se
passaram. O caráter educativo e, principalmente missionário dos padres jesuítas, não nasceu
pronto e longe estava de ser um objetivo quando da fundação da nova ordem em 1534. Como
verdadeiro instrumento reformador, a Societas Iesu, organização especifica com Constituições
próprias, se construiu historicamente ao assumir determinadas atividades avaliadas como
importantes; avaliação feita a partir da experiência de outras ordens religiosas e da
necessidade da Igreja e das Coroas cristãs.

Dois aspectos inseparáveis explicam, genericamente, a atuação histórica da


Companhia de Jesus, pelo menos nas primeiras décadas de sua existência: o fundamento
teológico e filosófico da escolástica como o elemento conservador, e o enfrentamento de
inéditas experiências ligadas ao processo de expansão da sociedade ocidental como o
elemento novo, como o desconhecido e moderno de sua atuação. Os jesuítas assumiram, com
o tempo, esses dois fundamentos como essenciais para a atuação em seus diversos meios,
principalmente os relacionados ao Império português do século XVI.

A formação do jesuíta passava pela tradição e pela novidade, e pela capacitação


competente tanto no fundamento escolástico e místico como nas novas necessidades técnico-
intelectuais. Referir-se à formação do padre jesuíta é compreendê-la, assim como a
Companhia como um todo, como algo que se desenvolveu historicamente, não nascendo
118

pronta e acabada. Exemplo disto são os dois documentos fundamentais que a Companhia
produziu no século XVI: as Constituições e o Ratio Studiorum, os quais ficaram
prontas.depois de vários anos entre a primeira redação e a formatação final e isso após
experiências práticas e avaliações teóricas

O estudo da formação do jesuíta não pode prescindir, portanto, de três aspectos


interligados, porém independentes: o jesuíta como instrumento particular da Reforma da
Igreja; o jesuíta como aquele que tem uma rigorosa formação tanto escolástica como prática
para as missões; e o jesuíta com uma sólida formação espiritual, que não prescindia de uma
ação comprometida.

O Jesuíta como instrumento da Reforma Católica

Um dos riscos de estudar um determinado tema é absolutizá-lo em seus aspectos


históricos e políticos, e para não correr este risco é sempre necessário entender, mesmo que
minimamente, o contexto histórico no qual o objeto de estudo está inserido para apreendê-lo
na sua totalidade. É o caso da Companhia de Jesus no presente estudo, pois apesar de sua
destacada atuação nos campos educacional e missionário, ela não foi a única ordem religiosa
criada no período e não foi a única a se tornar importante no contexto do quinhentos europeu.
A criação de outras ordens religiosas também expressa o ambiente da reforma católica no seu
aspecto mais institucional, como se deu, por exemplo, quando da fundação das ordens dos
mendicantes e dos pregadores no século XII1, período em que houve tentativas de reforma da
Igreja. Assim, mutatis mutandis, a Companhia de Jesus e outras ordens são criadas no século
XVI como instrumentos, conscientes ou não do ponto de vista de seus fundadores, da reforma
da Igreja e dos novos desafios de expansão do cristianismo católico.

1
Georges Duby, em Europa em la Edad Media (1986), mostra que S. Francisco de Assis (1181-1226) e S.
Domingos de Gusmão (1171-1221) fundaram a ordem dos franciscanos e a dos dominicanos em 1209 e 1217
respectivamente, como conseqüência da reforma da Igreja objetivada já desde o Papa S. Gregório VII (1073-
1085 – para ver mais sobre a atuação deste Papa ver François Guizot, 1907). O franciscanismo denunciava o
luxo exagerado dos príncipes e também dos clérigos, e os dominicanos, por sua vez, tornaram-se os grandes
intelectuais da reforma (Tomás de Aquino era dominicano) e perseguidores das heresias. Não se pode deixar
de atentar para o fato de que ambas as ordens surgem, também, como reação da Igreja à riqueza comercial que
começa a ser movimentada nos burgos e comunas medievais.
119

Daniel-Rops, no volume sobre a Reforma da Igreja de sua História da Igreja de


Cristo (1969), informa que a primeira metade do século do Concílio de Trento assistiu a
fundação de algumas ordens religiosas masculinas que se tornaram importantes. Inicia
mostrando que em 1528 foi criada a Ordem dos Capuchinhos, ou dos eremitas franciscanos,
que nasceu como uma espécie de dissidência da Ordem dos Frades Menores da Observância2.
Os capuchinhos nasceram com o propósito de uma vida austera e de prática da caridade cristã
em oposição e mesmo denúncia de um estado de lassidão e de luxúria do clero. Esta ordem,
continua Daniel-Rops, cem anos depois contava já com 14 mil casas e 30 mil religiosos
espalhados pelo mundo.

Outra ordem religiosa regular que nasceu no mesmo período foi a dos Teatinos, frades
regulares que, como os jesuítas mais tarde, se colocaram sujeitos a Santa Sé, diferentemente
das ordens monásticas3. A ordem dos teatinos foi fundada por S. Caetano de Thiene em 1524.
Daniel-Rops informa que esta ordem cresceu rapidamente em importância na Igreja,
fornecendo mais de 200 bispos, mas que no século XX perdeu muito de sua importância
inicial.

Também outras duas ordens são criadas na primeira metade do século XVI: a dos
Barnabitas4, fundada por S. Antonio Maria Zacarias, e a Ordem dos Somascos5, fundada por
Jerônimo Emiliano.

2
“Os Irmãos Menores Capuchinhos constituem uma das três grandes famílias da Primeira Ordem Franciscana. Os
Capuchinhos são uma Reforma, dentro da Ordem Franciscana, que nasceu com o propósito de voltar ao genuíno
espírito de São Francisco e dos seus primeiros companheiros. (...) Uma Reforma provoca sempre um certo mal-
estar e algumas lutas internas entre os diversos grupos que manifestam diferentes tendências. Isto também
aconteceu na Ordem Franciscana com o aparecimento das diversas reformas e concretamente com a Reforma dos
Capuchinhos. (...) Os primeiros Franciscanos Observantes que se lançaram na aventura da Reforma foram,
depois de Frei Mateus de Báscio, os irmãos de sangue Frei Luís e Frei Rafael de Fossombrone. Começaram por
se chamar Irmãos Menores de vida eremítica, como consta das suas primeiras Constituições de Albacina, que
datam de 1529. O povo, devido à forma do capuz do hábito, passou a chamá-los Capuchinhos. (...) Foram
oficialmente reconhecidos pelo Papa Clemente VII com a bula Religionis Zelus de 3 de Julho de 1528”.
(http://www.capuchinhos.org/principal.htm - com grifos no original)
3
“Clérigo Regular, é o nome oficial da Ordem dos Clérigos Regulares –Teatinos –, que teve seu início na Igreja
no dia 14 de setembro de 1524, através de São Caetano de Thiene (1480-1547) fundador e Pai. Junto com
seus co-fundadores Bonifácio de Colli, Paulo Consiglieri e João Pedro Carafa, bisco de Chiete (Teati), da
qual o nome provêm: Teatino, e depois mais tarde se tornara Papa com o nome de Paulo IV (1555-1559). Os
Clérigos Regulares é a Primeira Ordem Religiosa da Reforma Católica”.
(http://www.teatinos.com.br/historia1.htm)
4
“Santo Antônio Maria Zaccaria nasceu em Cremona, norte da Itália em 1502. Morreu aos 5 de julho de 1539
(...) Aos 18 anos, renunciou aos seus bens, em favor da mãe. Estudou Medicina em duas Faculdades italianas
(Pádua e Pavia). Queria fazer muito mais do que ser médico! Criou um grupo de reflexão bíblica em
Cremona, chamado de "Confraria da Amizade". Ensinou Catecismo e a doutrina cristã. (...) Tornou-se padre
em 1528, independente de qualquer Diocese. Já em Milão, criou, com mais dois companheiros, três grupos de
vida cristã, orientados para a missão junto ao povo e para a reforma dos conventos: os Padres Barnabitas, as
Irmãs Angélicas e o Grupo dos Casais (...). Sua espiritualidade é bíblica, marcada, principalmente, pelo
120

Todas estas ordens religiosas precederam a fundação da Companhia de Jesus e,


igualmente a ela, foram criadas no espírito reformador do período, denunciando, em geral, o
estado tido como pouco cristão que as ordens religiosas tradicionais se encontravam. Como
exemplo disto, as Constituições da Companhia de Jesus, já com a experiência de outras
ordens religiosas, criticando-as sem nomeá-las, prescreve que todo professo fará uma
promessa de nunca alterar as regras da Companhia no que se refere à pobreza, e se mesmo
assim o fizer, será somente para ser mais rigorosa.

O Papa Paulo III (1534-1549) é tido como o grande arauto da reforma moderna da
Igreja, não só por ter convocado pela primeira vez o Concílio de Trento, mas por ter tido
iniciativas reformistas de peso antes mesmo do Concílio. Foi ele quem fundou a Inquisição
moderna nos estados pontifícios através da instituição da Sacra Congregazione ou Sagrada
Congregação do Santo Ofício, em 1542, através da bula Licet ab Initio; criou também a
Sagrada Congregação do Index, em 1543, instituindo a censura oficial da Igreja
principalmente aos livros e, conseqüentemente, aos seus respectivos autores. Essas duas
instâncias formais instituídas com muitos poderes, visavam, além de censurar e perseguir as
modernas heresias, dentre elas o luteranismo e o calvinismo, rever os costumes das igrejas
e de seus prelados e

Apóstolo São Paulo: os dois eixos principais são o Cristo Crucificado e a Eucaristia. (...)”.
(http://www.barnabitas.org.br/cronologia.htm - com grifos no original)
5
“Jerônimo Emiliani, de nobre família, nasceu em Veneza (Itália) em 1486 (...) A experiência espiritual do
nosso Santo brotou e desenvolveu-se na irmandade do ‘Divino Amor’, importante movimento da Reforma
Católica, em unidade com pessoas de grande relevo, como Caetano Thiene, fundador dos Teatinos e João
Pedro Carafa, o futuro Paulo IV. Na irmandade do Divino Amor Jerônimo destaca-se pela habilidade na
organização das obras de caridade de Veneza (o hospital dos Incuráveis e são Roque, a casa de aprendizagem
para órfãos). Esta qualidade de Jerônimo fez com que os bispos das Regiões de Lombardia e Vêneto (norte da
Itália) o convidassem para organizar as obras de caridade das suas dioceses. Dos muitos colaboradores que
se aproximaram dele, alguns tomaram a decisão de seguir o seu estilo de vida. Originou-se então a
Companhia dos servos dos pobres, os atuais Religiosos Somascos Jerônimo faleceu em Somasca -Lecco, norte
da Itália- no dia 8 de fevereiro de 1537 (...)”. (http://www.somascos.org/portugues/portug.htm)
121

recuperar os fundamentos teológicos e rigorosos da Igreja Católica.

Michel Mullett, em seu texto A Contra-reforma e a Reforma Católica nos


princípios da Idade Moderna Européia (1985), ao mostrar que em sua concepção a
chamada Contra-reforma ou Reforma da Igreja não foi motivada simplesmente pela reação à
reforma dos protestantes, afirma que a mentalidade reformadora, que era típica do início do
século XVI, tomou conta tanto dos clérigos que fundaram o protestantismo como daqueles
que propuseram o Concílio de Trento. Millett informa que no Relatório de uma Comissão
Selecta de Cardeais sobre a Reforma da Igreja, de 1539, encomendado por Paulo III, os
próprios signatários descrevem o estado lamentável da moralidade em que se encontrava a
Igreja e a necessidade de se reformar alguns pontos essenciais.

Neste sentido, a reforma da Igreja já era uma necessidade que foi tomando corpo aos
poucos nas décadas iniciais do século XVI e que se concretizou no Concílio de Trento (1545-
1563), pelo menos enquanto deliberação oficial da Igreja. Daniel-Rops, ao fazer uma
apresentação da Reforma Católica, afirma que ela já estava no espírito de muitos cristãos, de
muitos clérigos e de muitos papas, mas que só se realizou por iniciativa da reforma do próprio
Papa que resolveu convocar uma assembléia de seus prelados, um concílio, para proceder a
uma avaliação e reforma de pontos importantes da Igreja. O Concílio de Trento foi, portanto,
um dos momentos oficiais mais significativos da Igreja Católica no século XVI, e é tido como
o mais profundo até o Concílio Vaticano II - ocorrido na década de 60 do século XX –, por
tratar de tantas questões fundamentais para a existência do catolicismo naquele momento.

Assim sendo, optou-se por apresentar, mesmo que brevemente, o Concílio de Trento,
sua história, suas resoluções mais pertinentes para o presente caso e, a atuação dos papas
durante esse processo. É preciso que se atente, de início, que o Concílio demorou 18 anos e
não foi realizado apenas na pequena cidade italiana de Trento, e o foi muito mais por motivos
políticos do que estratégia de ação, pois sua realização nunca foi unânime nem dentro da
Igreja e nem entre os soberanos católicos e expressou, por conseguinte, a vitória do Papa e da
corrente reformista, que havia ganhado força com o crescimento do protestantismo na Europa.

Daniel-Rops informa que a primeira convocação para um Concílio não foi em 1545,
mas anos antes em 02 de julho de 1536 e para a cidade italiana de Mântua. Durante oito anos
outras convocatórias foram expedidas para outras diferentes cidades. Finalmente, suavizando
muitos obstáculos políticos e mesmos religiosos, o Concílio teve início, em Trento, no dia 13
122

de dezembro de 1545. Mesmo assim a freqüência foi mínima, possibilitando a existência de


dúvidas quanto à sua efetividade:

(...) Estavam presentes quatro cardeais, incluídos os legados, quatro arcebispos,


vinte e um bispos, cinco gerais de Ordens religiosas e uns cinquenta teólogos e
canonistas. Era pouco. Mas pelo menos acabara de se conseguir um resultado de
princípio. Quanto aos resultados práticos, seria necessário esperar por eles
dezoito anos(...). (Daniel-Rops, 1969, p. 106)

Quando da morte de Paulo III, em 1549, o Concílio de Trento havia sido suspenso por
questões políticas, principalmente devido à interferência de Carlos V6 nas resoluções
conciliares. Mesmo assim, consoante Daniel-Rops, durante seis meses, houve oito sessões de
debates e avaliações. O período que sucedeu à morte de Paulo III foi bastante conturbado na
corte papal, onde os conchavos, os acordos, as influências, as disputas nos bastidores, fizeram
com que o conclave que escolheu Júlio III (1550-1555) se tornasse um dos mais longos da
história – incluindo aí os posteriores –, indo de novembro de 1549 a fevereiro de 1550.

O Concílio voltou a reunir-se em Trento em maio de 1550, realizando quatro sessões,


mas novamente questões políticas, envolvendo desta vez Carlos V e Henrique II7, fizeram
com que em 1552 fosse suspenso uma vez mais. Os trabalhos foram retomados em janeiro de
1562 e durante vinte e três meses aconteceram nove sessões onde compareceram mais de 250
votantes, principalmente às últimas. Daniel-Rops informa que mesmo havendo alguns
problemas políticos, essa fase do Concílio correu de forma tranqüila, e utilizando-se de uma
frase atribuída ao cardeal Hergenröter sintetiza a importância daquele momento: “nenhum
concílio na história da Igreja, definiu tantas questões, fixou tantos pontos de doutrina e fez
tantas leis” (Idem, ibidem, p. 123) como o Concílio de Trento.

O Concílio de Trento foi, na verdade, uma construção, no sentido de que com o tempo
ele se fortaleceu e assumiu o poder que lhe foi conferido depois, tendo que vencer muitas

6
“Carlos V (Gante, 1500 – Yuste, 1558) Imperador da Alemanha e Rei de Aragão e Castela. Primogénito de
Filipe, o Formoso, de Áustria, é, por parte do pai, neto do imperador Maximiliano I. Por parte da mãe, Joana,
a Louca, é neto dos Reis Católicos. Do pai herda os Países Baixos e o Franco Condado. Em 1516, por morte
de seu avô, Fernando, herda as coroas de Aragão e Castela. Em 1519 é eleito imperador da Alemanha como
sucessor de seu avô, Maximiliano, tornando-se, com vinte anos, Soberano de um império mais vasto do que
qualquer outro desde os tempos de Carlos Magno (...) Em 1555, o imperador, minado pela doença e pelo
desânimo, abdica dos tronos de Castela, Aragão e Países Baixos a favor de seu filho Filipe, entregando a
coroa imperial a seu irmão Fernando. Retira-se para o Mosteiro de Yuste (Cáceres), onde vem a morrer três
anos depois”. (http://www.vidaslusofonas.pt/carlos_v.htm)
7
“Henrique II da França (1519-1559), Rei da França (1547-1559), filho de Francisco I. Casou-se com Catarina
de Medici em 1533. Perseguiu os huguenotes nos últimos anos de seu reinado. Continuou a guerra
empreendida por seu pai contra o imperador Carlos V. Mediante o Tratado de Cateau-Cambrésis (1559)
aceitou entregar a Felipe II as possessões da França na Itália”. (Enciclopédia Microsoft Encarta)
123

resistências e muitos problemas políticos e diplomáticos entre as coroas católicas.


Expressando bem a importância que a reunião conciliar teve em seu final, veja-se a
participação massiva na sessão final de 04 de dezembro de 1563 em comparação com a
primeira de 1545:

(...) Quatro legados, três patriarcas, vinte e cinco arcebispos, cento e sessenta e
nove bispos, sete abades, sete gerais de Ordens, dez procuradores de bispos, e
os embaixadores de todas as potências católicas assinaram os decretos
solenemente. (...) (Idem, ibidem, 1969, p. 124)

Todas as resoluções tridentinas foram ratificadas pelo Papa Pio IV (1559-1565) em 26


de janeiro de 1564 e, mostrando a intenção de as colocar em prática, foi criada a Congregação
do Concílio. Como já mostrado na primeira parte deste trabalho, a maioria das resoluções
conciliares não foram efetivadas de imediato, sendo que algumas só foram concretizadas no
século XVIII.

Durante os anos em que ocorreu o Concílio tridentino cinco papas ocuparam o trono
de S. Pedro: Paulo III, Julio III, Marcelo II (1555), Paulo IV (1555-1559) e Pio IV. Destes
soberanos romanos, Paulo III, Paulo IV e Pio IV podem ser considerados papas fortes, com
convicções reformistas, contribuindo muito para o desenrolar do Concílio, mesmo no caso de
Paulo IV que não convocou uma segunda reunião, mas por conduta própria, procurou realizar
reformas em Roma e nas dioceses próximas da corte papal. Os outros papas foram, ainda na
avaliação de Daniel-Rops, fracos do ponto de vista da necessidade da reforma, pois eram
corruptos, mundanos e políticos inábeis.

É importante que se avalie a condução da Igreja no período pela atuação dos seus
mandantes no que se refere às causas e conseqüências do Concílio de Trento, pois aquelas
reuniões foram, acima de tudo, um Concílio dos bispos, como afirma Mullett (1985). A
reforma da Igreja deveria começar pelas dioceses8, ou seja, pelos bispos, na medida em que
muitas causas do estado de lassidão e corrupção moral em que se encontrava a Igreja
localizavam-se na esfera da ação dos prelados, fossem nas paróquias, na atuação dos padres
etc., e muitas das resoluções tinham seu âmbito de aplicação prática igualmente na esfera
administrativa das dioceses, como, por exemplo, a criação de seminários para preparar melhor
os futuros padres.

8
No Código de Direito Canônico, mesmo hoje em dia, não há qualquer instância de ação pastoral e decisão no
sentido jurídico entre a Cúria Romana e as dioceses, por isso a importância das dioceses e, conseqüentemente,
dos bispos, os quais, na hierarquia católica, só estão abaixo do Papa.
124

Nesse sentido, Mullett afirma que os “bispos foram agentes indispensáveis da Contra-
Reforma” (p. 17). O “coração pulsante” do Concílio de Trento foi, continua Millett, a reforma
sistemática dos bispados, paróquia por paróquia, implicando a inspeção dos padres, o
estabelecimento de escolas e seminários e a pregação e administração dos sacramentos. Como
se tratou de um Concílio que objetivava, desde o seu início, a avaliação e a reforma da Igreja,
dificilmente se poderia imaginar que as suas resoluções não apontassem, em sua grande
maioria, para uma ação diferente nas dioceses e seus chefes, até porque a diocese é o espaço
que reúne as paróquias, os padres seculares e regulares, os mosteiros e, enfim, o povo
católico.

No período pós-conciliar a prioridade de muitos prelados e papas foi dar substância


real ao espírito reformista, seja concretizando as resoluções tridentinas, seja estabelecendo
novas formas de atuação da Igreja. Nesse campo destacou-se o Papa S. Pio V (1566-1572).
Bastante austero, ele procurou, através do que Daniel-Rops chama de verdadeira política
pontifícia, depurar os maus costumes dentro do clero e especialmente no Vaticano. Nesse
sentido, uma de suas obras mais construtivas foi a publicação de quatro livros fundamentais
para Igreja: o Catecismo, o Breviário, o Missal e a Suma Teológica de S. Tomás de Aquino.
O intuito dessa publicação oficial foi o de dar unidade na forma e no conteúdo de toda Igreja,
unidade essa cimentada pelo uso obrigatório do latim.

São três os traços mais importantes da Igreja pós-Trento que representam a evolução
da tradição, avalia Daniel-Rops: os dogmas, perfeitamente formulados, parecem mais sólidos
e intangíveis; o sentido agudo da unidade; e o revigoramento da disciplina.

Outro aspecto fundamental agora na organização da Igreja definido no Concílio


tridentino e tido, por Rops9, como uma de suas grandes inovações, foi a afirmação do Papa
como chefe, como verdadeiro imperador da Igreja Católica, asseverando que o sentido de
unidade eclesial passava, necessariamente, pelos poderes praticamente absolutos do papado, e
isto em franca oposição e combate ao movimento que tendia a nacionalizar de vez as Igrejas.
A Igreja não poderia ficar alheia ao processo de centralização do poder, definido mais tarde

9
É preciso esclarecer que Daniel-Rops é um autor cristão, um clérigo que procura contar, de uma forma mais
liberal que a usual, a história da Igreja, procurando não esconder as mazelas que o papado e o alto clero
produziu ao longo de dois mil anos de história. No entanto, como homem de Igreja, mesmo crítico, sua
apreensão e avaliação do Concílio tridentino e do processo de reforma da Igreja no século XVI é positivo,
enaltecendo o trabalho dos arautos daquele processo. A opção por utilizar o livro de Rops nesta parte do
trabalho é por conta das ricas e isentas informações que ele apresenta, e não uma aproximação, mesmo que
teórica, de suas concepções religiosas.
125

como absolutismo, que tomou conta de toda a Europa a partir do século XVI. Em resposta ao
fortalecimento e centralização dos chamados Estados nacionais, a Igreja também se define
como uma instituição forte e com um poder centralizado, mas com uma diferença, ela era e
procurava se manter supranacional.

Outra conseqüência direta do Concílio de Trento foi a renovação da teologia que, ao


aperfeiçoar os métodos de estudo, criou a exegese bíblica, a patrologia, a história da Igreja, a
história dos dogmas e a teologia moral, agora mais prática, como a casuística. Renovação não
significa rompimento; muito pelo contrário neste caso: o fundamento da teologia católica
continuava sendo o tomismo, mesmo a escolástica sendo esgarçada através da especialização
da teologia e da filosofia, nunca foi negada, nem sequer houve qualquer movimento no
sentido de ultrapassá-la. A renovação, aparentemente contraditória, foi a reafirmação da
tradição intelectual, incorporando à escolástica aristotélico-tomista temas que a modernidade
produziu, exigindo respostas da Igreja, como, o foram o direito positivo e o direito
internacional10.

A renovação da teologia foi, na avaliação de Daniel-Rops, um dos grandes benefícios


que as críticas protestantes trouxeram para a Igreja, pois passou a ser positiva e apologética e
não mais apenas especulativa, participando “na defesa da Igreja e na empresa da reconquista
e apostolado” (1969, p. 435). A renovação da teologia passou até por uma certa liberdade de
expressão dentro da própria Igreja, liberdade traduzida pelos embates e debates entre os
dominicanos e os jesuítas: pelos primeiros Melchior Cano, Domingos Scoto, Bartolomeu de
Medina e Domingos Bañez (1528-1604), na famosa Escola de Salamanca, na Espanha; e
pelos segundos, Luiz de Molina (1536-1600) e Francisco Suarez (1548-1617) nas
universidades de Coimbra e Évora, em Portugal. No lugar de liberdade de expressão,
entretanto, se poderia utilizar polêmica escolástica em torno de questões novas.

A história missionária que começa no século XVI é, na avaliação de Rops, inseparável


da reforma católica, mostrando que se não é conseqüência direta da reforma, é, acima de tudo,
a consagração da Igreja reformada. Quando se refere à Igreja missionária, Rops pensa
principalmente na Companhia de Jesus, enquanto o instituto religioso mais bem sucedido no
expansionismo cristão, principalmente nas terras e domínios ibéricos. Nesse sentido, a
Companhia de Jesus já se liga à reforma da Igreja pela sua atividade missionária.

10
A esse respeito ver o interessante artigo Direito Natural e Direito das Gentes – a refundação moderna, de
Vitória a Suárez, de Jean-François Courtine (1998).
126

Terminando essa breve apresentação da reforma da Igreja através do Concílio de


Trento, mais uma vez apóia-se em Rops uma reflexão muito interessante quando ele ainda
está introduzindo o assunto em seu texto: a reforma da Igreja nada mais foi que uma tentativa
de volta ao espírito que a criou e, citanto o romano Salústio (86-35 a. C.) sobre os impérios
antigos coevos dele, afirma que um “império conserva-se pelos meios por que foi criado”.
Jacques Barzun (2002) encontra no tema do primitivismo, ou seja, o retorno às origens de
uma verdadeira religião apostólica, o conceito que sintetiza tanto a reforma protestante como
a católica no século XVI. E, de certa forma, a reforma da Igreja foi uma tentativa de, ao
mudar, não transformar nada, ou no dizer de Tomasi de Lampeduza, através do seu
personagem aristocrático Dom Fabrizio diante do Risorgimento italiano no século XIX, no
romance histórico O Leopardo, “é preciso que tudo mude para que permaneça como está”. E
não vai aqui nenhum julgamento a posteriori cobrando da Igreja uma verdadeira e autêntica
reforma, pois do ponto de vista deste trabalho a reforma católica do quinhentos, que teve em
Trento seu momento institucional mais importante, foi uma verdadeira e autêntica reforma,
realizada pelos homens que a dirigiam no espírito de sua época.

Ao falar do tema das reformas religiosas do século XVI não se pode esquecer que as
suas verdadeiras causas não se encontram dentro da própria Igreja, mas sim no movimento
social da modernidade que produziu condições materiais e espirituais suficientes para se
questionar o poder da Igreja Católica na sociedade, bem como dos seus mandantes,
especialmente do Papa. As reações protestantes eram, também, reações dos poderes locais e
nacionais ao domínio romano, reações estas que se tornaram, especialmente na segunda
metade do século, verdadeiras guerras de religião. O que importa anotar é que não se
compreende, num sentido mais amplo, a reforma da Igreja – que inclui a chamada Contra-
reforma – sem entender o contexto histórico do período.

Neste trabalho a apresentação do movimento de reforma da Igreja tem o objetivo


específico de mostrar que a formação do padre jesuíta se dava nesse ambiente e mais
especificamente, como partidário e instrumento dessa reforma. Antes de adentrar em aspectos
mais particulares da formação do espírito do futuro discípulo de Loyola, foi preciso mostrar
que a Companhia de Jesus foi criada no clima reformista e, assim como as outras ordens
criadas, os futuros padres tinham como pano de fundo de sua formação a instrumentalidade
reformista.
127

Nas Constituições da Companhia de Jesus percebe-se claramente o espírito da


reforma que se costurava em Trento quando se encontra naquelas regras e normas a
valorização da formação intelectual dos futuros padres. Na quarta parte, quando o assunto é a
Instrução, nas letras e outros meios de ajudar o próximo, daqueles que tiverem progredido
em espírito e virtude11, se mostra que o aluno ao estudar Teologia nas faculdades sob o
encargo da Companhia, teria que ter um conhecimento prévio da literatura, ou seja, da
gramática, da retórica, da poesia e da história. É a preparação mais rigorosa que se estabelece
como norma.

Na sexta parte das Constituições, que trata de O que devem observar com respeito a si
mesmos os que foram incorporados, se estabelece que o fim da Companhia é percorrer as
diversas partes do mundo onde o Papa ou os superiores os enviarem, evitando, para isso, a
recitação em coro das horas canônicas, ou o cantar missas ou ofícios, bem como o encargo de
paróquias ou mosteiros masculinos ou femininos. O intuito para o qual a Societas Iesu foi
criada é o de missionar pelo mundo evangelizando os gentios e lutando contra os infiéis e,
desta forma, como ordem moderna e instrumento da reforma, não poderia dispor de tempo
para atividades próprias de monges regulares ou de padres seculares.

José Sebastião da Silva Dias (1960) quando principia sua análise acerca dos jesuítas
mostra que, apesar de não ser uma ordem em reforma, pois nova, ela expressava bem os ideais
da Reforma Católica, entendendo que o loiolismo seria uma síntese entre o medieval e o
moderno, síntese característica das novas necessidades da Igreja:

O loiolismo é uma síntese maravilhosa das correntes tradicionais e das correntes


modernas de piedade. Valorizando extraordinariàmente as práticas interiores,
nomeadamente as práticas de sobrerrogação [sic], rompe ao mesmo tempo com a
directriz quinhentista e visionária dos círculos espirituais iluminados e não
subscreve o liberalismo cultual da Renascença. As suas estruturas assentam
numa base activista e positiva. É deliberadamente uma piedade para a acção,
uma piedade para a vida. (...) A profissão religiosa e a vida devota não são o fim,
mas o princípio de um contacto mais cristão com o mundo. (Dias, 1960, pp. 169-
170)

Como uma ordem imbuída de uma piedade positiva, piedade para a ação, os seus
padres não poderiam dedicar o tempo às horas em comum, como os monásticos, e nem perder
o tempo nas questões burocráticas da organização e administração de uma paróquia. Nesse
sentido, mais do que uma ordem religiosa que respirava os ares reformistas, ela se vai se

11
Como será mostrado no sexto e último capítulo deste trabalho esta parte das Constituições serviu como um dos
momentos para a elaboração do Ratio Studiorum.
128

tornando – e as Constituições são exemplo claro – um instrumento reformista, dirigindo suas


ações para os campos educacional e missionário, prioritariamente.

O objetivo de Loyola não era somente formar sábios e nem reduzir a educação na
companhia ao domínio do saber, é o que defende Francisco Rodrigues em seu A Formação
Intellectual do Jesuíta:

As suas aspirações eram mais elevadas e nobres. Inácio punha em mira


transformar o ensino e a sciencia num meio de regeneração e elevação da
humanidade. Pretendia reformar as ideias para melhorar os costumes, alumiar o
entendimento para dirigir a vontade e modelar o coração pela virtude, formar
sabios para os tornar homens de caracter e os affeiçoar pelo modelo que elle tinha
na mente e o arrebatava, o Homem-Deus, exemplar e ideal de toda a perfeição
humana. Tão alto subiam as ideias de S. Ignacio. (Rodrigues, 1917, pp. 10-11)

Rodrigues, padre jesuíta, é o maior historiador da Companhia de Jesus em Portugal12


e, nesse livro defende a idéia de que ao longo de sua história em terras lusitanas, vários são os
jesuítas que se destacaram nos diversos campos da arte e das ciências modernas, buscando se
contrapor à historiografia liberal da segunda metade do século XIX e da primeira do século
XX que atribuía aos jesuítas a formação de um obscurantismo intelectual em Portugal. A idéia
primeira do livro é mostrar que a formação do jesuíta não se dava apenas intelectualmente,
mas moralmente e para a vida, fazendo dele um instrumento a serviço da reforma da Igreja e,
para isso, era necessário, também, que fosse muito bem preparado intelectualmente.

O primeiro aspecto a se considerar quando o assunto é a formação do padre jesuíta é,


portanto, relacionado ao ambiente da reforma da Igreja e a caracterização dele como
instrumento dessa mesma reforma. O segundo é a formação em si, levando-se em conta o
rigor da tradição escolástica e a necessária preparação técnica dirigida principalmente para as
missões, o que se procurará expor a seguir. Esta divisão é acima de tudo formal e
metodológica, pois tanto a formação escolástica mais cuidadosa e rigorosa e mesmo a
formação específicamente missionária fazem parte do movimento da Reforma da Igreja
Católica, sendo mesmo determinações do Concílio de Trento.

12
Francisco Rodrigues é o equivalente português a Serafim Leite no Brasil.
129

A formação rigorosa, escolástica e técnica

Os futuros padres jesuítas eram forjados em casas específicas onde se privilegiava a


formação intelectual aliada ao aprimoramento da virtude: os seminários e os colégios. Tão
comuns a partir do século XVII os seminários eram novidade no quinhentos, pois não se
tratava, no caso dos jesuítas mais especificamente, da reunião de jovens segundo o modelo
monástico, não havendo mais as exigências de severos autocastigos ou mesmo as orações
entoadas em coro.

A criação e manutenção de seminários em todas as dioceses foi uma das principais


determinações tridentinas, informa Mullett13. Eles deveriam ser um espaço para uma
formação mais rígida em Teologia, História da Igreja e Latim para os futuros padres.

Entre os jesuítas essa preocupação conciliar foi elevada à máxima potência, na medida
em que a formação em Letras, em Filosofia e em Teologia abrangia todo um extenso e
rigoroso conteúdo escolástico aliado às mais recentes discussões teológicas, revelando a
prioridade de se fazer uma formação mais profissional dos futuros sacerdotes. Na formação
dos jesuítas, pela estrutura dos seminários, pelas classes, pela organização interna, pelas
inovações e pela busca de uniformidade, apontavam-se, assevera Mullett, três aspectos
importantes: a liturgia, a pregação e a confissão; que são três momentos privilegiados da
atuação dos padres, através dos quais, se dava prioritariamente a evangelização seja entre os
próprios cristãos, seja entre os gentios. Os jesuítas aprendiam tanto o conteúdo cristão como a
melhor forma de transmiti-lo.

A formação do futuro jesuíta era acima de tudo rigorosa. Apenas como um exemplo
inicial desse rigor, as Constituições previam, na sua quinta parte - Incorporação na
Companhia daqueles que assim foram formados – que para o estudante se tornar professo e

13
Millett informa que a instituição dos seminários é uma norma moderna dentro da Igreja, pois antes não havia
essa preocupação, não se sabendo ao certo onde e quando os seminários foram instituídos, se na Espanha ou
Granada ou mesmo com o bispo Giberti em Verona, ou “talvez derivasse de um plano reformador do cardeal
Pole, que imaginou uma ‘sementeira’ (seminarium) para a preparação dos sacerdotes” (p. 28).
130

entrar de vez para a Ordem, deveria ser examinado com muito rigor em lógica, filosofia e
teologia escolástica perante uma banca de quatro examinadores14. O futuro padre tinha que
mostrar domínio do conteúdo de toda uma vida de estudante, desde os estudos básicos em
Artes, até os relativos às faculdades menor e maior, ou seja, faculdades de filosofia e teologia.

Uma característica da educação dos jesuítas em geral e mais particularmente do futuro


membro da Companhia é a disciplina como meio de se obter o máximo de rendimento do
estudante. A disciplina aliada à punição dava o tom de seriedade necessário para a dedicação
aos estudos.

Francisco Rodrigues (1917) faz referência à disciplina como algo fundamental e não
meramente acessório na pedagogia jesuíta. Em seu livro, o historiador dos jesuítas em
Portugal procura evidenciar o lado positivo da disciplina nos colégios jesuíticos, apoiando-se
propositalmente em argumentos de um pedagogo protestante:

(...) “A disciplina, escreve o eminente pedagôgo já citado, é para a educação o


que a casca é para a arvore(...) A casca parece-nos apenas um involucro
grosseiro, mas conserva na arvore e em todas as suas partes a força e o viço.
Assim é a disciplina: parece-nos-há uma casca um tanto aspera e escabrosa da
educação, mas é ella que tudo conserva, educa e robustece” (Dupanloup, De
l’Éducation, I, p. 178). (Rodrigues, 1917, pp. 28-29)

Não se pode esquecer de que Rodrigues está escrevendo numa época em que a
Companhia de Jesus e especialmente sua pedagogia estão sendo novamente colocados em
xeque pelo pensamento liberal, o qual apregoava a necessidade da liberdade para os
estudantes e criticava a dura disciplina que invariavelmente vinha acompanhada de castigos.
O debate parece ser intenso nos anos iniciais do século XX e Rodrigues defende que a
disciplina era o molde pedagógico que acomodava e potencializava o conteúdo e que formou
grandes personalidades científicas entre os jesuítas. A metáfora emprestada da casca de árvore
como sendo a disciplina lembra uma outra utilizada por Kant em Sobre a Pedagogia: a
disciplina – leia-se o freio a uma liberdade excessiva - faria com que o estudante fosse como a
árvore robusta que cresce junto com outras árvores e a presença delas faz com que se cresça
de forma reta e frondosa.

14
Nas Normas Complementares a exigência diminui para um exame compreensivo de teologia diante de três
examinadores. É interessante como, com o passar do tempo, o rigor foi sendo diminuído.
131

A punição e o castigo eram utilizados na formação do jesuíta como meios


pedagógicos, ou seja, como estímulos externos para a manutenção da disciplina, pois o
homem é um ser débil por natureza e deixado a si mesmo dificilmente se mantém reto:

Mas a disciplina, ainda que vigilante não impede todas as faltas; tem que ser
também repressiva, corrigindo o culpado. É uma consequencia da debilidade do
homem, que não baste o sentimento do dever para lhe refrear os ímpetos da
paixão, mas seja necessária alguma vez a dureza do castigo para lhe robustecer a
fraqueza da vontade e lhe ter mão na inconstancia. Nem a punição moderada é
offensa á dignidade do homem, mas antes o ajuda a levantá-la, nem argúe
desaffeição em quem a dá, mas amor. A Escriptura deixou em provérbio: Qui
parcit virgae, odit Filium [Quem não faz uso da vara odeia seu filho] (Provérbios,
cap. 13, v. 24.). (Rodrigues, 1917, p. 31, com grifo no original)

Tais palavras, tão distantes e estranhas aos dias atuais, sintetiza, de certa forma, uma
prática pedagógica que não era apenas jesuítica, mas que se consagrou com a Companhia,
principalmente depois que veio à luz o Ratio Studiorum, pois tanto a disciplina com o castigo
em suas variadas espécies e graus de severidade são colocados como pedras angulares da
formação nos colégios da Societas, principalmente naqueles que se formavam futuros padres.

Nas Regras dos Escolásticos de nossa Companhia se apresentam alguns exemplos do


que consiste a disciplina a que os estudantes estavam submetidos:

3. Estudar de conformidade com a direção do Superior. - Siga cada um a


faculdade e ouça os professores que lhe assinar o superior; observem todos com
empenho o horário e método de estudos prescritos pelo Prefeito ou Professor e
não utilizem outros livros além dos que lhe forem dados pelo mesmo Prefeito.
4. Diligência. - Sejam assíduos em ouvir as aulas, diligentes em prepará-las e,
depois de ouvidas, em repeti-las; perguntem o que não entenderam; tomem nota
das cousas mais importantes para auxiliar as deficiências da memória. (Ratio,
1952, p. 215)

Quanto às punições, o Ratio prescreve desde repreensões verbais até o castigo físico
como corretivos de comportamentos indignos; no entanto, o castigo físico deveria ser aplicado
por alguém de fora da Companhia de Jesus, o qual exerceria esta função de forma contínua.
Não foi possível saber se esta norma era comum às demais ordens religiosas, mas na regra 38
do Prefeito de Estudos Inferiores (Letras) ela é clara:

Por causa dos que faltarem ou na aplicação ou em pontos relativos aos bons
costumes e aos quais não bastarem as boas palavras e exortações, nomeie-se um
Corretor, que não seja da Companhia. Onde não for possível, excogite-se um
modo que permita castiga-los por meio de algum estudante de maneira
conveniente. Por faltas, porém, cometidas em casa, não sejam punidos em aula a
não ser raras vezes e por motivo bem grave. 15.(Idem, ibidem, pp. 174-175)

15
É interessante esse aspecto na medida em que a Companhia não poderia ser acusada de usar de violência física
e que quando de tal necessidade, a sociedade em geral, na pessoa do Corretor, é que faria a repreensão ao mau
estudante. Poder-se-ia arriscar uma comparação deste aspecto da educação jesuítica com a Inquisição no que
132

A disciplina e a punição tinham por base uma concepção de homem por natureza fraco
e débil, que necessitava dos tais “estímulos externos” para conseguir realizar ou, numa
linguagem bem aristotélica, conseguir atualizar toda a potencialidade de que era dotado pelo
criador. O conteúdo a ser apreendido e aprendido era por si só muito exigente e, sem
disciplina dificilmente se conseguiria dar conta de todo ele. Existiram sim autodidatas na
Companhia de Jesus, mas a grande maioria dos seus eminentes quadros16 foram forjados na
forma da disciplina e da punição.

A emulação é outro aspecto presente e incentivado à larga na pedagogia jesuítica, que


denota a rigorosidade de tal formação. Como apenas um exemplo veja-se, novamente nas
Constituições, o grau de oficialidade e seriedade com que as disputas eram incentivadas
como meio para se aprender mais e demonstrar publicamente o que se aprendeu:

(...) É bom que haja no colégio cada domingo, ou em algum outro dia da semana,
depois da refeição, um estudante de cada classe das artes e de teologia,
designado pelo Reitor, para defender algumas teses, a não ser que se dêem
razões especiais em contrário. As teses serão afixadas na véspera à tarde, à porta
das aulas, a fim de que os que quiserem possam participar no debate ou assistir a
ele. Depois de provadas brevemente as teses, poderão argüir todos os que
quiserem, de casa ou de fora. Haverá um presidente para dirigir a discussão,
resolver as questões e deduzir com clareza a doutrina de que se trata, para
utilidade dos presentes. É ele que dará o sinal de acabar aos que tomem parte na
discussão, repartindo o tempo de modo que todos possam participar nela.
(Constituições, 1997, pp. 133-134, [378])

Um pouco mais à frente no texto das Constituições, novamente se volta ao assunto


dos estímulos aos estudantes indicando que “será bom juntar alguns de talentos iguais que
mutuamente se animem com santa emulação” (Idem, ibidem, p. 134, [383]).

A emulação também não é uma prática pedagógica exclusiva da Companhia, pois a


própria escolástica já previa as competições entre os estudantes, mas, entre os jesuítas ela
assumiu um caráter praticamente essencial na sua pedagogia, criando um incentivo, um
“estimulo externo” a mais, para que o estudante realmente aprendesse aquele conteúdo.

concerne ao fato de que quando o réu era julgado culpado e deveria ser queimado, não eram os inquisidores ou
qualquer outro eclesiástico que executava a sentença, pois o réu era relaxado para o braço secular e quem de
fato executava a sentença era algum oficial ou funcionário civil.
16
O termo “quadro” é utilizado aqui no sentido que os partidos de esquerda da atualidade lhe deram, ou seja, das
pessoas pertencentes a uma organização, no caso a Companhia de Jesus, mais destacados nas mais diversas
áreas da atuação social.
133

Incentivo que pode ser entendido também como uma forma de se obter resultados mais
rápidos, elevar o “padrão de qualidade” mínimo e criar um status dentro da própria
Companhia, o qual serviria, num futuro próximo, como um critério para se escolher os
melhores homens para os postos mais importantes.

Leonel Franca (1952) destaca a emulação em boa parte de sua apresentação da


metodologia do Ratio, afirmando a sua importância para a formação do futuro jesuíta. Ele
resume, já na organização da sala de aula, o processo intencional de se estabelecer a “sadia”
competição:

A aula era dividida em dois campos, romanos e cartaginenses, cada qual com o
seu estandarte; em cada campo dispunham-se por ordem de merecimento os
diferentes graus da hierarquia militar; todo aluno tinha no campo adverso um
êmulo, rival ou oponente sempre pronto a advertir-lhe os erros e contar, corrigindo-
os, uma vitória para sua bandeira. Emulação entre os dois partidos; emulação
dentro de cada partido onde os postos de honra e de comando só eram
conquistados e mantidos à custa de provas e merecimentos escolares. Não raro
ainda emulação e luta mais solene entre uma aula toda e imediatamente superior.
O desafio, concertatio, freqüente mantinha assim oficiais e soldados num estado
de alerta permanente. As regras do Ratio recomendavam-no em todas as escolas
inferiores, ut honesta aemulatio, quae magnum ad studia incitamentum est,
foveatur [que se favoreça a honesta emulação, que é grande estímulo aos
estudos]. J-31 : era uma adaptação feliz da disputatio tão freqüente nos grandes
torneios filosóficos e teológicos da Idade Média. (Franca, 1952, pp. 38-39)

No Ratio Studiorum há várias passagens em que o assunto principal é a emulação entre


os estudantes. Ora estabelecendo a sua necessidade através de instigações, ora definindo os
seus momentos mais importantes, o clima de competição perpassa praticamente todo o
documento, fazendo dela presença concreta e praticamente essencial à pedagogia jesuítica.
Como um exemplo, veja-se o que prescreve a regra 17 para o professor de Filosofia:

Cada mês haja uma disputa na qual arguam não menos de três, de manhã e
outros tantos, de tarde; o primeiro, durante uma hora, os outros, durante três
quartos de hora. Pela manhã, em primeiro lugar dispute um teólogo (se houver
teólogos em número suficiente) contra um metafísico, um metafísico contra um
físico, um físico contra um lógico; de tarde, porém, metafísico contra metafísico,
físico contra físico, lógico contra lógico. Assim também pela manhã um metafísico
e pela tarde um físico poderão demonstrar uma e outra tese breve e
filosoficamente. (Ratio, 1952, pp. 162-163)

É importante ter em conta que o Ratio Studiorum é um documento que se dirige à


educação nos colégios e faculdades jesuíticas de uma forma geral, englobando tanto os
chamados “escolásticos”, ou seja, os seminaristas ou aqueles que estavam estudando para se
tornar jesuítas, como os alunos de fora da Companhia. No entanto, numa leitura mais atenta
deste documento, pode-se afirmar que em sua grande maioria, as regras foram escritas
134

visando, primeiro, os futuros jesuítas, pois ao estabelecer uma rigorosa educação para eles,
por derivação, os estudantes de fora da Companhia também seriam atingidos.

Outro aspecto relacionado à emulação é o incentivo final da instigada competição,


quer seja, a premiação. Franca procura evidenciar os prêmios com incentivo “poderoso à
emulação fecunda” (1952, p. 39), pois os momentos da entregas deles eram solenes, com a
presença de altas autoridades eclesiásticas e civis e dos familiares. Os prêmios, como
coroamento da emulação, não foram inventados pelos jesuítas, mostra Franca, mas à sua
importância e à sua distribuição, a Companhia de Jesus, através do Ratio, deu “tal realce e
esplendor que a elevaram à altura de um dos atos mais importantes e ansiosamente desejados
da vida escolar” (p. 39).

Para se ter uma idéia aproximada da importância dos prêmios como auge e alvo das
inúmeras formas de competição entre os estudantes, existe no Ratio uma sessão exclusiva
sobre Normas de distribuição de prêmios, cuja primeira regra prescreve a quantidade dos
prêmios no que toca apenas às classes inferiores, ou seja, do curso de Letras:

Para a classe de Retórica haverá oito prêmios: dois para prova latina, dois para
poesia; dois para prosa grega e outros tantos para poesia. Para a classe de
Humanidades e a primeira classe de Gramática haverá seis prêmios, na mesma
ordem, omitindo-se a poesia grega que, de regra, não ocorre abaixo da Retórica.
Para todas as outras classes inferiores, quatro prêmios, omitindo-se também a
poesia latina. Além disso, dê-se também, em todas as classes, um prêmio ao
aluno ou aos dois alunos que melhor houverem aprendido a doutrina cristã.
Conforme o número, grande ou pequeno dos estudantes, poderão distribuir-se
mais ou menos prêmios, contanto que se considere sempre mais importante o de
prosa latina. (Ratio, 1952, p. 178)

A competição entre os estudantes não era livre e sim dirigida, acompanhada e avaliada
pelos professores e reitores. A emulação era intencional e desta forma também fez parte da
forja que preparava os quadros jesuíticos.

A formação do futuro jesuíta era rigorosa, outrossim, pelo fato de que tanto a vontade
como a inteligência estavam sendo forjadas. A vontade de ser padre jesuíta, de se dedicar aos
colégios, de seguir em missões por terras inóspitas e repletas de gentios para serem
convertidos e evangelizados, aliada à sabedoria intelectual, à capacidade de compreender e
comunicar o conteúdo cristão, os seus fundamentos e seus dogmas, formava o padre jesuíta.
No prefácio de 1559 das Constituições, escrito por Pedro Ribadaneira, há uma síntese da
educação jesuítica no seu duplo caráter:
135

Os professores saberão que matérias ensinar e com que método, que exercícios
propor para que os alunos as assimilem, formando a sua consciência, não menos
que a sua inteligência. Os escolásticos compreenderão a finalidade dos seus
estudos e apreenderão a integrar oração e estudo, piedade e ciência, o
desenvolvimento da afetividade com a reflexão intelectual, evitando assim que as
suas ocupações apaguem ou entibiem o fervor do espírito. (...). (Constituições,
1997, pp. 16-17)

Como papel de destaque neste processo rigoroso de formação está a figura do


professor. Pode-se afirmar, com Rodrigues, que o sistema pedagógico jesuítico dependia do
professor para se realizar por completo. Era ele o responsável direto pelo conteúdo, por si só
bastante complexo; era ele quem garantia a disciplina e apontava a necessidade da punição;
era ele quem coordenava todo o processo de emulação entre os estudantes; principalmente, o
professor era a própria síntese da dupla formação do futuro jesuíta: era padre e intelectual.

O professor era o primeiro exemplo do estudante jesuíta e, por isso mesmo, teria que
ter uma vida exemplar, tanto no sentido de uma vida reta como no sentido de aliar a vontade e
a inteligência. Rodrigues mostra três qualidades necessárias aos professores: a ciência, a
prudência e a fidelidade:

(...) Benci, auctorizado pedagogo jesuita do século XVI, requeria no professor três
qualidades absolutamente necessarias: Scientia, Prudentia, Fides. Na sciencia
incluia os conhecimentos precisos das materias de ensino; pela prudencia
entendia o methodo e tino para o applicar e na lealdade comprehendia o conjunto
de dotes moraes que tornam um mestre perfeito. Todas estas qualidades
procurava, segundo suas leis, a Companhia de Jesus que as tivessem os
professores dos seus collegios e universidades. (Rodrigues, 1917, pp. 91-92)

O papel que o professor desempenha no processo educativo é tão importante no Ratio


que a formação específica dos mestres requereu preocupação dos jesuítas. Franca mostra que
o caminho para se tornar um professor dos colégios jesuíticos era longo e igualmente
rigoroso. Para ser professor no curso de Letras – cursos inferiores – eram necessários dois
anos de um estágio próprio para um aperfeiçoamento moral para só então começar a formação
intelectual, na qual:

Dois outros anos são ainda consagrados ao estudo mais profundo das letras
clássicas, latim, grego, hebreu. No esboço do Ratio de 1586 aventou-se a idéia de
encaminha-los então imediatamente ao magistério. Foram quase unânimes as
reclamações das províncias contra esta medida. Uma sólida formação filosófica
de, pelo menos, três anos, pareceu-lhes preparação indispensável ao exercício
fecundo do ensino. A filosofia dava aos futuros mestres uma visão orgânica da
vida, amadurecia-lhes o espírito, e, com mais três anos de estudo, também a
experiência da vida. (Franca, 1952, pp. 53-54)

O futuro professor do curso de filosofia ou de teologia, além de ter feito o curso de


teologia, faria mais dois anos de especialização, e “só depois dos trinta anos, por via de
136

regra, termina o professor jesuíta a sua formação intelectual” (Franca, 1952, p. 54). Além do
conteúdo formativo, havia uma formação mais técnica, didática, diríamos hoje, para o
exercício pleno do magistério.

No início do Ratio, na regra 22 do Provincial, há a prescrição de se formar bons


professores através de estudos específicos, denotando ser este um aspecto muito importante
para a organização escolar da Companhia:

Para conservar o conhecimento das letras clássicas e alimentar um seminário de


professores, procure ter na Província pelo menos, dois outros varões eminentes
em literatura e eloqüência. Para este fim entre os bem dotados e inclinados para
este gênero de estudos, designará, de quando em quando, alguns,
suficientemente formados em outras disciplinas, a fim de constituírem, com o seu
trabalho e esforço, um como viveiro ou seara que alimente e propague a raça dos
bons professores. (Ratio, 1952, p. 126).

E na nona das Regras do Reitor a preparação técnica e prática dos futuros professores
fica ainda mais clara:

Para que os mestres dos cursos inferiores não comecem a sua tarefa sem
preparação prática, o Reitor do colégio donde costumam sair os professores de
humanidades e gramática escolha um homem de grande experiência de ensino.
Com ele, vão ter os futuros mestres, em se aproximando o fim dos seus estudos,
por espaço de uma hora, três vezes na semana, afim de que, alternando
preleções, ditados, escrita, correções e outros deveres de um bom professor, se
preparem para o seu novo oficio. (Idem, ibidem, pp. 134-135)

A preocupação com a formação adequada de professores para a Companhia se tornou


tão significativa que quando o Colégio Romano foi fundado em 1551 para servir de “centro
de modelo das instituições congêneres disseminadas pelo mundo”, estabeleceu-se pelo
próprio Loyola que esta nova instituição seria uma espécie de “Escola Superior de
Licenciatura” para toda a Companhia, ou seja, teria a tarefa de preparar, entre os estudantes
jesuítas, “os futuros professores, adestrando-os nos melhores métodos e pondo-os em contato
imediato com os educadores mais abalizados” (Franca, 1952, p. 04). Também em outros
lugares foram criados seminários pedagógicos, sendo um deles criado junto ao Colégio de
Coimbra, por Cipriano Soares, em 1569.

O professor personalizava, de certa forma, a rigorosidade como marca da formação do


futuro jesuíta. Personalizava, também, o outro aspecto a se destacar naquela formação:
tratava-se de uma formação escolástica, não no sentido ideológico usualmente utilizado, mas
no sentido de que o conteúdo principalmente da filosofia e da teologia tinha por base o que a
137

escolástica tomista produziu e que, em certa medida, ainda se mantinha atual do ponto de
vista da Igreja.

Na quarta parte das Constituições, a que trata da educação, o único autor cristão que é
citado como fonte de estudos tanto na universidade, no caso da teologia, como nas faculdades
menores, ou seja, a filosofia, é S. Tomás de Aquino. Os outros assuntos relativos à teologia e
filosofia são tratados de forma genérica, como, por exemplo, o de se assegurar ao estudante a
melhor doutrina através dos melhores autores. No caso específico da filosofia natural e moral
e na metafísica, as Constituições recomendam seguir a doutrina de Aristóteles, o que na
prática significa ratificar a teoria escolástica tomista. São estes dois autores apenas, S. Tomás
e Aristóteles, que são citados no livro das regras e normas da Companhia de Jesus, o que por
si só, poderia caracterizar como escolástica a formação do futuro jesuíta.

No Ratio são vários os momentos em que explicitamente se definem as autoridades de


S. Tomás de Aquino na teologia e a de Aristóteles na filosofia como inquestionáveis e
indispensáveis. Na trigésima das Regras do Prefeito de Estudos sobre quais e que tipos de
livros os estudantes deveriam ter em mãos, se lê:

Nas mãos dos estudantes de teologia e filosofia não se ponham todos os livros
mas somente alguns, aconselhados pelos professores com o conhecimento do
Reitor: a saber, além da Suma de Santo Tomás para os teólogos e de Aristóteles
para os filósofos um comentário para consulta particular. Todos os teólogos devem
ter o Concilio Tridentíno e um exemplar da Bíblia, cuja leitura lhes deve ser
familiar. Consulte o Reitor se convém se lhes dê algum Santo Padre. Além disto,
dê a todos os estudantes de teologia e filosofia algum livro de estudos clássicos e
advirta-lhes que lhe não descuidem a leitura, em hora fixa, que parecer mais
conveniente”. (Ratio, 1952, p. 143)

Especificamente sobre S. Tomás de Aquino, como o “doutor” adotado pela


Companhia, se prescreve nas regra 2 do Professor de Teologia, que o tomismo deve ser
seguido sempre em termos teológicos, mas não de modo tal que não se deva em algum
momento apartar-se dele:

Em teologia escolástica sigam os nossos religiosos a doutrina de Santo Tomás;


considerem-no como seu Doutor próprio, e concentrem todos os esforços para que
os alunos lhe cobrem a maior estima. Entendam, porém, que se não devem
adstringir de tal modo a Santo Tomás, que lhes não seja permitido em cousa
138

alguma apartar-se dele, uma vez que os que de modo especial se professam
tomistas por vezes dele se afastam e não seja justo se liguem os nossos religiosos
a Santo Tomás mais estreitamente do que os próprios tomistas17. (Idem, ibidem, p.
152)

Já na regra 2 do Professor de Filosofia praticamente as mesmas recomendações são


feitas, só que nesse caso, para com a leitura de Aristóteles:

Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se


trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda,
em contradição com a verdadeira fé. Semelhantes argumentos de Aristóteles ou
de outro filósofo, contra a fé, procure, de acordo com as prescrições do Concílio
de Latrão, refutar com todo vigor. (Idem, ibidem, p. 159).

A seguir, apresentar-se-á uma síntese dos cursos e matérias que compunham os graus
na educação jesuítica, destacando o seu conteúdo escolástico.

Toda a carreira dos estudos se divide em tres cursos parciaes, distinctos, mas
dependentes uns dos outros emquanto o inferior é degrau e preparação para os
superiores: o curso de letras ou linguas, o de philosophia ou de artes e o de
theologia. O curso de letras prepara para o de philosophia e este para o theologia,
á qual se entregava com particular empenho a Companhia como a estudo que
mais directamente aproveitava para realizar suas aspirações religiosas.
(Rodrigues, 1917, p. 41, com grifos no original)18

O latim era a língua oficial do colégio, que, aprendido no curso de letras, era
aperfeiçoado nos cursos de filosofia e de teologia. Existe uma tendência na historiografia que
ao conceber a pedagogia jesuítica como humanista credita ao ensino do latim e do grego
principalmente o papel de porta de entrada para uma espécie de renascimento por recuperar a
elegância dos escritos latinos e gregos. Seria o que Dias (1960) conceitua de humanismo
cristão.

No curso de Letras ou Humanidades se estudava gramática latina, humanidades e


retórica e se travava conhecimento com a língua grega. Neste curso se “olhava sobretudo pela
elegância, harmonia do estilo e abundância da linguagem” (Rodrigues, 1917, p. 51). A
preocupação não era tanto com o conteúdo propriamente dito, mas com a apreensão da forma
como pré-requisito para o conhecimento relativo aos outros cursos.

17
Não foi possível investigar a fundo esta consideração, mas creio que se pode inferir que no século XVI, com
Vitória, Suares e Molina, principalmente, algumas questões do tomismo foram revistas, principalmente as que
diziam respeito ao direito positivo e ao direito das gentes.
18
Francisco Rodrigues apresenta a organização de estudos da Companhia já definida na forma do documento
Ratio Studiorum. É importante lembar que tal documento teve sua redação final após pelo menos 50 anos de
experiência e de “rascunhos” (no último capítulo deste trabalho, é apresentado um histórico mas detalhado da
elaboração do Ratio).
139

O grande objetivo dos cursos inferiores era o de moldar a alma dos jovens e criar a
forma cristã necessária para o conteúdo igualmente religioso. Na primeira das Regras comuns
aos Professores das Classes Inferiores prescreve o Ratio:

Aos jovens confiados à educação da Companhia forme o Professor de modo que


aprendam, com as letras, também os costumes dignos de um cristão. Concentre
de modo especial a sua intenção, tanto nas aulas quando se oferecer o ensejo
como fora delas, em moldar a alma plástica da juventude no serviço e no amor de
Deus, bem como nas virtudes com que lhe devemos agradar (...) (Ratio, 1952, p.
181)

Na apreensão de Franca, o grande objetivo do curso de Letras assinalado no Ratio é


inculcar no aluno a forma elegante e clássica de se expressar, além de conhecimentos básicos
e gerais que vão enformando o aluno para o conteúdo escolástico que se seguirá:

Como se vê, o objetivo do curso humanista é a arte acabada da composição, oral


e escrita. O aluno deve desenvolver todas as suas faculdades, postas em
exercício pelo homem que se exprime e adquirir a arte de vazar esta manifestação
de si mesmo nos moldes de uma expressão perfeita. As classes de gramática
asseguram-lhe uma expressão clara e exata, a de humanidades, uma expressão
rica e elegante, a de retórica mestria perfeitamente na expressão poderosa ad
perfectam eloquentiam informat [que diz respeito à perfeita eloqüência]. (Franca,
1952, p. 29)

Para Franca, ainda, a pedagogia jesuítica propugna claramente por um aprendizado


mais leve no início e um conteúdo mais pesado depois, traduzindo essa relação pelos termos
arte e ciência. Numa discussão interessante, ele procura evidenciar que a formação clássico-
humanista é artística, ou seja, incita a imaginação, a liberdade e a expressão, ao passo que a
formação filosófico-teológica se pauta na ciência, no estudo profundo, nos axiomas, nas
demonstrações, nas leis. O que molda o espírito é a arte; portanto, o curso de Letras é, antes
de mais nada, fundamentado na arte:

Na concepção do Ratio, o curso secundário deve ser essencialmente humanista,


pendente mais para a arte do que para a ciência. Sua finalidade não é transformar
os adolescentes em pequeninas enciclopédias que depois de alguns anos já
precisam ser reeditadas. Todo o esforço do educador deve concentrar-se, nesta
fase da vida, em desenvolver as capacidades naturais do jovem, em ensinar-lhe a
servir-se da imaginação, da inteligência e da razão para todos os misteres da vida.
Os conhecimentos positivos de geografia ou de física poderão estar antiquados no
cabo de poucos lustros; o raciocínio seguro, o critério na apreciação dos homens,
a capacidade de expressão exata, bela e enérgica de uma alma harmoniosamente
desenvolvida representam aquisições humanas de valor perene. (Idem, ibidem, p.
50)

Na apreciação de Franca acerca da chamada pedagogia jesuítica é preciso alertar para


o fato de que se trata de um padre jesuíta que, ao escrever sobre este assunto, está também,
defendendo esta pedagogia dos ataques liberais escolanovistas em meados do século XX. No
140

entanto, assim como em outros autores jesuítas, não se pode desprezar as informações que
Franca apresenta, e, em alguns momentos, mesmo análises pontuais são verdadeiramente
interessantes e consequentes.

A marca registrada do curso de Humanidades, ou Letras é, portanto, a criação de uma


forma elegante, clássica e erudita de se expressar, forma, aliás, perfeitamente moldada para
que o conteúdo filosófico e teológico pudesse ser plenamente apreendido e desenvolvido. Os
cursos inferiores forneceriam a boa seara para as sementes dos cursos superiores,
principalmente da teologia. A forja que formava os futuros jesuítas principiava pela forma
aprimorada e depois pelo conteúdo escolástico.

Ao terminar o curso de Letras, o estudante jesuíta iniciava sua formação filosófica, na


qual se aprendia lógica, física, metafísica e ética:

(...) Sob roupagem transparente de uma linguagem castiça e adornada com as


galas encantadoras de um estilo apurado, haja substancia de bons pensamentos
dispostos em boa ordem e concatenados pelos liames do raciocinio legitimo. Este
é o empenho da philosophia, que se propõe ministrar, á nova intelligencia doutrina
sã e copiosa, não a pedaços soltos mas systematizada e unida segundo as leis da
boa logica. (Rodrigues, 1917, pp. 55-56)

Cabe à Filosofia fornecer a base lógica e científica da teologia, além se ser suporte
para as ciências físico-naturais, como, por exemplo, a matemática, a biologia e a física19.
António Rosa Mendes, em seu artigo A Vida Cultural, procura evidenciar o aspecto
escolástico da filosofia no conjunto dos cursos da educação jesuítica:

De acordo com a directrizes superiores da Companhia, a doutrina teológica


atravessava verticalmente os cursos. A ela se acomodavam as “humanidades” sob
a espécie de classicismo católico e dela dependiam ancilarmente os
complementares estudos “filosóficos”. Por “filosofia” entenda-se, no jargão tomado
do aristotelismo escolástico, um sistema de saberes de lato âmbito, que, em
escala ascendente de dignidade hierárquica, abarcava, precedido pela “dialéctica”
enquanto técnica de pensar e argumentar mediante o mecanismo silogístico, o
grupo das matérias físico-naturais, seguido, no topo, pelo das morais e metafísicas
– mas todas elas uma longa propedêutica para a teologia católica, ministrada na
universidade eclesiástica que os jesuítas mantinham desde 1559 em Évora, além
de na de Coimbra. Em qualquer circunstância, o ingresso nas outras faculdades
maiores desta última academia – Cânones, Leis e Medicina -, que é o mesmo que
dizer nas carreiras da Igreja e do Estado, passava pelos mesmos preparatórios da
“filosofia”. (Mendes, 1993, p. 407)

19
Uma das características da Companhia de Jesus foi a formação de matemáticos, físicos, astrônomos, ou seja,
formação de cientistas físico-naturais. Para um conhecimento mais pormenorizado sobre esse assunto, ver os
textos de Miller (1946) e Rodrigues (1917). Se pensarmos que à época não havia a especialização da ciência,
pode-se admitir que a formação filosófica contribuía para uma espécie de polimatia entre os jesuítas.
141

A formação escolástica do futuro jesuíta era terminada com o curso de teologia, que
segundo as Constituições é o meio mais apropriado para ajudar o próximo a amar e conhecer
a Deus e a salvar sua alma, ou seja, o meio mais adequado para realizar o fim da Companhia
de Jesus. As matérias que compunham este curso eram a teologia escolástica e positiva, a
Sagrada Escritura, a moral, a casuística, o hebreu e, dependendo do caso, as línguas orientais.

O curso de teologia era o ápice de toda a formação escolástica do futuro jesuíta,


devendo dominar perfeitamente os conteúdos, principalmente no seu aspecto mais prático, de
como, na condição de padre, doutrinar as pessoas através das pregações e das confissões.

Os cursos que compunham a formação escolástica do jesuíta tinham o objetivo de


despertar e estimular faculdades intelectuais. Rodrigues informa que com a gramática se
desenvolve a memória, com a literatura a imaginação e com as ciências – filosofia e teologia –
o entendimento.

(...) Não é que estas faculdades devam nunca separar-se no seu exercicio; a
intelligencia, a phantasia e a memoria hão de acompanhar-se sempre umas das
outras e dar-se mutuo auxilio na educação do homem; mas havemos de admitir
que obteem não simultaneo nem igual desenvolvimento, mas realmente
successivo. E com esta successão real conforma-se o plano do Ratio Studiorum.
Na grammatica domina a memoria, na literatura a imaginação, nas sciencias o
entendimento. (Rodrigues, 1917, p. 131)

A complexidade do conteúdo é crescente, respeitando-se, informa Rodrigues, as etapas


de amadurecimento do próprio estudante. A busca de uma unidade perfeita no processo de
formação é o objetivo do Ratio, e isso se dá pelo método da concentração, onde um
determinado eixo era o agrupador de todas as matérias: no curso de Letras o “latim era o
centro principal da instrução, em torno do qual se aggrupavam as outras materias”; no
segundo curso era a filosofia e no terceiro a teologia como “rainha à qual serviam á maneira
de ancillas as mais artes e sciencias” (Idem, ibidem, p. 132).

Enfim, muito se poderia apresentar e discutir acerca do fundamento escolástico da


formação do futuro jesuíta, porém, o que foi visto até aqui parece ser suficiente para se ter
idéia de que um dos aspectos mais essenciais da educação jesuíta, que é uma educação nos
ideais reformistas, é o assento na tradição escolástica.

A preocupação com aspectos mais práticos da atuação do futuro padre, seja como
professor ou missionário especialmente em terras de missões, é o último aspecto da formação
do jesuíta que se quer apresentar, como terminando de compor um quadro da educação jesuíta
142

que, ao mesmo tempo em que era rigorosa e fincava pé na tradição escolástica, assumia como
tarefa elementos novos trazidos com a expansão do cristianismo.

Bem ao gosto do movimento de reforma católica, os futuros padres da Companhia de


Jesus deveriam passar por um preparo técnico do ofício de dizer missa. Uma das principais
críticas que se faziam ao clero católico no período pré-reforma dizia respeito exatamente ao
despreparo de muitos deles no seu principal ofício que era a missa, sendo poucos, segundo
documentos da época e historiadores, os que sabiam latim com perfeição20. Por isso tal função
era reputada como importante.

A preocupação para que os jesuítas fossem, acima de tudo, bons no ofício de dizer
missa era tão grande no seio da Companhia que essa questão aparece até nas Constituições.
Na parte dedicada à educação do futuro padre há a prescrição de que eles deveriam seguir,
dentro das possibilidades, o mesmo rito, mesmo nas mais variadas regiões e situações havia a
preocupação com a unidade ritualística da missa, bem como com a postura do padre que
deveria ser edificadora da comunidade:

Primeiramente aqueles que o Superior julgar que devem ser promovidos às


sagradas Ordens aprendam a dizer missa, não somente como compreensão e
devoção interior, mas com compostura exterior que edifique os assistentes. Todos
na Companhia seguirão, quanto possível, as mesmas cerimônias, conformando-
se, tanto quanto permitir a diversidade das regiões, com o ritual romano, como o
mais universal, e especialmente adaptado pela Sé Apostólica. (Constituições,
1997, p. 138, [401])

Na continuidade há a indicação de se preparar tecnicamente para o exercício da


celebração da missa, incluindo os exercícios de impostação de voz:

C. Os meios próprios [para o exercício de dizer missa] são: ter lido os princípios
sobre a maneira de pregar, dados por aqueles que se distinguiram neste ofício, e
escutar os bons pregadores; exercitar-se a pregar em casa ou nos mosteiros; ter
um professor que note os defeitos quanto ao assunto da pregação, à voz, ao tom,
aos gestos e às atitudes. E refletindo em seguida dentro de si sobre o que fez,
pode ainda ajudar-se mais de tudo isto. (Idem, ibidem, p. 139, [405])

A preparação para ser um bom pregador era importante na medida da importância da


própria missa como espaço privilegiado tanto da atuação do sacerdote, como de conversão de
evangelização das pessoas e, ainda como espaço privilegiado de controle mesmo das ações da
comunidade dos cristãos. Os sermões eram tão importantes como momentos especiais de
exortação, de celebração, que era comum reuni-los e imprimi-los na forma de livro, como, por
143

exemplo, os Sermões de Antonio Vieira, que são vários volumes contendo a fala “viva”
daquele jesuíta em diferentes situações para distintas platéias.

No Ratio, na primeira das Regras do Professor de Casos de Consciência, há a


indicação de que tal disciplina escolar do curso de Teologia objetivava “formar bons párocos
ou administradores de Sacramentos” (1952, p. 156), pois se tratava de uma disciplina que
tinha um aspecto prático bem ressaltado, ao se discutir casos concretos de pecados e erros e os
graus de profundidade e comprometimento do cristão; portanto, era a seara prática do
sacerdote especialmente na administração do sacramento da confissão, tornando-se um espaço
privilegiado de ação sacerdotal.

Nesse sentido, Miller (1946) mostra que após a Igreja ter determinado, no século XI, a
obrigatoriedade da confissão ao menos uma vez ao ano, este espaço se tornou tão importante
que incrementou uma nova linha na Moral da Igreja responsável pelos casos de consciência.
Na modernidade, vários são os padres das inúmeras ordens religiosas que escreveram manuais
de casos de consciência, conhecidos como manuais moralistas casuísticos, procurando cercar
da forma mais detalhada possível, os pecados em seus mais diversos atenuantes ou
agravantes.

O casuísmo, ainda segundo Miller, apesar de ser objeto de preocupação de várias


congregações religiosas e da Igreja como um todo, atingiu uma grande importância somente
com os jesuítas, pois contando com vários teólogos moralistas escrevendo inúmeros manuais
de consciência, “em breve, já não devia existir nenhuma outra ordem religiosa que pudesse
exibir tantos autores moralistas como a dos jesuítas, e os teólogos mais famosos da
Companhia de Jesus redigiram grandes obras sôbre a casuística moral” (Miller, 1946, p.
198).

Assim, dois espaços privilegiados da atuação dos futuros padres jesuítas eram objeto
de preocupação já desde a formação deles: a missa e a confissão; dois espaços que deveriam
ser de edificação para os cristãos e que serviam de controle da comunidade por parte do padre.
Esses momentos especiais, no entanto, não sofriam mudanças em sua forma ou conteúdo,
fossem em Portugal, nas Índias ou no Brasil, ou a rigor, em qualquer lugar. A preparação
técnica poderia ser aperfeiçoada mas não mudava muito, diferentemente da formação prática

20
Apenas para lembrar, as missas naquela época eram rezadas em latim, fato esse que somente foi mudado na
Igreja Católica com o Concílio Vaticano II na década de 60 do século XX, pois, a partir de então, as missas
passaram a ser rezadas no vernáculo.
144

para os assuntos relativos às missões, os quais exigiam sempre novas coisas a serem
aprendidas.

A preparação para as missões começava cedo na Companhia de Jesus, pois, consoante


Rodrigues (1917) já no curso de Letras ou Humanidades havia espaço para se estudar
generalidades, com o título ilustrativo de erudição:

Para alargar mais a conveniente instrucção do alumno e dar como que um verniz
brilhante á formação literária, patenteia o Ratio um campo vastissimo que elle
distinguiu com o nome de erudição, na qual o professor experimentado e erudito,
sem desconcertar a unidade do plano, enriquecia o espirito com uma variedade
immensa de conhecimentos uteis e agradaveis. Neste campo entrava muito á
larga a chronologia, a historia, a geographia, os usos e costumes das gentes, a
noticia biographica e literaria dos auctores, noções de varia literatura, mythologia e
technologia e quanto pudesse concorrer para formar um espirito illustrado.
(Rodrigues, 1917, pp. 45-46)

Estes assuntos seriam vastamente encontrados nas terras das missões, existindo
sempre a preocupação em entender a história, a geografia, os usos e costumes das gentes, a
mitologia etc. dos gentios a serem catequizados. Lembremos da carta de Anchieta de 1560,
citada na primeira parte deste trabalho, em que são descritos a fauna e a flora do Brasil, bem
como os costumes dos índios e suas lendas. De certa forma, esses estudos que aguçavam a
imaginação dos estudantes jesuítas, já os preparava para atribuir importância a estes temas
quando missionários.

Os futuros missionários em terras lusitanas eram forjados, como já vimos, em


Coimbra, onde além de toda a formação rigorosa e escolástica também havia a preparação
específica para as missões. Numa carta para Loyola, já mencionada na primeira parte, datada
possivelmente de 25 de abril de 1553, Cipriano Suárez mostra a relevância dos estudos
conimbricenses para as missões:

Passo agora a referir-me à partida dos meus Caríssimos irmãos, para o Brasil e
para a Índia. São em tão grande número, tão exercitados não só no estudo das
letras, mas também na meditação das coisas divinas, e tão experimentados além
disso em ouvir confissões, administrar os sacramentos e aplicar-se a outras
ocupações salutares deste gênero, que há-de mitigar a nossa saudade o bem que
vão fazer a essas nações. (in: Leite, 1956, pp. 465-466)

Talvez o aspecto mais interessante do preparo intelectual e técnico do futuro


missionário jesuíta seja a imersão na história e cultura do povo a ser evangelizado, imersão
que principiava pelo domínio da língua nativa. O idioma aborígine era aprendido,
sistematizado e impresso pelos padres pioneiros nas missões e passava a servir como material
próprio de estudo nos colégios, dentre os quais o de Coimbra.
145

A quarta parte das Constituições, aquela que trata justamente da educação do futuro
jesuíta, mostra que já era fato na Companhia que algumas universidades e colégios teriam o
encargo de formar os agentes missionários, sendo previsto, para tanto, uma formação especial
inclusive no aprendizado das línguas nativas:

B. Quando em um colégio ou universidade se projetasse formar pessoas para


serem enviadas aos mouros, ou aos turcos, estariam indicados o árabe ou o
caldeu; como para ir aos hindus, o hindi. O mesmo se diga de outras línguas que,
por motivos análogos, poderiam ser mais úteis em outras regiões”.(Constituições,
1997, p. 148, [449])

O aprendizado da língua da região onde se está a missionar se tornou uma necessidade


prática tanto para os pioneiros como aos futuros missionários. Em carta de João de Melo para
Gonçalo Vaz, prepósito da casa de S. Roque da Companhia de Jesus em Lisboa, datada de 13
de setembro de 1560, é relatado que o padre Luis da Grã, Provincial do Brasil, obrigava a
todos os da casa a ler a Arte da Lingua Brasilica composta pelo padre José de Anchieta,
informando que “desta licção nem reitor, nem pregador, nem uma outra pessoa é isenta”,
pois vai “a cousa tão deveras que há quem diga que dentro de um anno se obriga,
desoccupado, falar a língua: nem eu com ser dos mais inhabeis perco a esperança de
sabel-o” (Navarro, 1988, p. 279).

A Arte da Língua Brasílica de Anchieta, depois de ser muito utilizada no Brasil como
manual para se aprender a língua dos gentios – daqueles mais próximos aos jesuítas –, foi
impresso em Portugal e passou a servir também como manual para preparar os futuros
missionários em terras brasílicas.

Em 14 de outubro de 1565 o secretário Polanco informa o Provincial português Leão


Henriques, que o Geral Francisco de Borja solicita que os provinciais do Brasil e da Índia
mandassem vocabulários das línguas locais para Coimbra para que

(...) los nuestros, que speran haý el tiempo en que han de passar par’aquellas
partes, se puedan començar exercitar en la lengua de aquella parte a donde han
de ser embiados, y nel tempo [sic] que se navega, y suele ser bien largo, también
se podrá ser sobrasse tiempo [sic] para esto. (in: Leite, 1960, p. 283)

Baptista (2003) informa que em 1593 o jesuíta Luís Fróis, missionário em terras
nipônicas, estava escrevendo uma História do Japão – a qual foi publicada poucos anos depois
– e sua finalização fora recomendada pelo Visitador Alexandre Valignano para que pudesse
ser útil aos futuros missionários. O livro de Fróis não era simplesmente uma obra individual,
146

mas uma obra que tinha de ser coletiva, pois tinha por objetivo exatamente facilitar as missões
naquelas terras.

Os colégios fundados nas terras de missões adquiriam a característica de preparar


tecnicamente o missionário através do estudo da cultura do povo a ser evangelizado,
principalmente através do conhecimento e domínio das línguas locais. Morais (1997) informa,
por exemplo, que o colégio de S. Paulo, em Goa, que foi entregue à Companhia de Jesus em
1541, passando a se chamar também de Seminário da Santa Fé, passou com o tempo a abrigar
estudantes hindus, japoneses, chineses etc., e neste colégio “os orientais são habilitados a
pregar o evangelho nas suas próprias línguas” (1997, p. 46). A Companhia de Jesus chegou à
conclusão, com o tempo, de que a pregação em língua vernácula abreviava muitas vezes o
caminho da conversão.

No colégio de Macau, fundado em 1594, também havia uma organização específica


que visava o preparo técnico do jesuíta para a missão em terras chinesas. A este respeito,
informa Miller:

(...) No colégio de Macau, os missionários jesuítas aprendiam, agora, tôdas as


sutilezas das expressões idiomáticas chinesas da classe culta, da mesma maneira
que o dialeto da gente simples; estudaram a complicada escrita ideográfica e
apropriaram-se, por meio de numerosos livros, de conhecimentos básicos da
história, dos costumes, das leis e da literatura da China”. (Miller, 1946, p. 271)

Aprender as línguas orientais e deixar os estudantes nativos pregarem em suas línguas-


mãe não significava, no entanto, que o conteúdo era também oriental, ou seja, que a cultura
oriental ou hindu, dependendo do caso, ia no esteio da língua, pois nestes mesmos colégios, a
cultura que se respirava e se aprendia era a cristã ocidental. É claro que o futuro padre jesuíta
que era nativo não perdia toda sua história e sua cultura como homem ligado às suas tradições
e a sua terra, porém, justamente para se tornar um padre era preciso que ele fosse “imerso” na
religião cristã e, por conseqüência, em todos os seus valores, próprios da cultura ocidental.
Aliás, é o colégio jesuíta nas terras em missão exatamente como um espaço desta “imersão”
para os estudantes nativos, é o que se pode ver na carta de Luís Fróis ao Geral Acquaviva,
escrita de Macau em 03 de janeiro de 1594:

Q.to a la fabrica del collegio para en el se criaren los hr.os japones como tanbien
el Pe. Visitador escrive a V. P. no fue sin grande consideration lo que en Japon en
la Congregation que se hizo se ha tratado desta materia porque ventilada con
mucha ponderation se no halló remedio mas eficaz que esto para reducir los
her.os japones al intento que la comp.ª dellos pretende que sacarlos de su R.no
custunbres y conversationes para se mejor domesticaren y uniren con los n.ros de
147

Europa. Y son tantas las utilidades que deste adventum se pueden seguir asi para
la solida direction de los hr.os japones en vertudes y letras y para el bien universal
de la christandad y aun tambien desta mission de la China quando N. S. fuere
servido de le abrir las puertas que no se ha visto medio mas eficaz y en todo
acomodado al intento de la comp.ª como la fundacion deste collegio. (...). (in:
Baptista, 2003, p. 03)21

O aprendizado das línguas nativas das terras em missão não era a única preocupação
que o jesuíta deveria ter em termos de dominar o vernáculo. Havia uma orientação do Geral
Loyola de que todos os jesuítas onde quer que se encontrassem se esforçassem para dominar o
vernáculo, aprendendo não só a falar, mas também a gramática da língua. Essa orientação está
numa carta de 01 de janeiro de 1556, de Polanco, a mando de Loyola, para os membros da
Companhia, que Leonel Franca transcreve como nota de rodapé:

“Y por eso ha mandado nuestro Padre que en todos los lugares dondes se halla
da Compañia hablen todos la lengua de la tierra; si en España, española; si en
Francia, francesa; si en Alemania, alemana; si en Italia, italiana, y asi de las
demas. Y aqui en Roma ha ordenado que hablen todos la lengua italiana; y a fin
de que la aprendan los que no la saben, todos los dias hay lección de gramatica
italiana (Cartas de San Ignacio de Loyola, Madrid, 1889, t. VI, p. 95)” (Franca,
1952, p. 62).

A Companhia de Jesus adquiriu com o tempo uma dupla caracterização no que


concerne à sua estrutura: ela era universal e nacional ao mesmo tempo. Universal no sentido
de ser um instituto religioso único, organizado verticalmente, e presidido em última instância
pelo próprio Papa, e sua universalidade era expressada pelo aprendizado e utilização corrente
do latim; nacional no sentido de se inserir no contexto local de sua atuação, sujeitando-se aos
ditames dos mandatários locais, e sua nacionalidade expressada pelo aprendizado e utilização
corrente do vernáculo.

Até aqui, o que se pretendeu expor foi a formação do futuro jesuíta fazendo parte da
formação da própria racionalidade da Companhia de Jesus, e ambas, educação e
racionalidade, forjadas no espírito da reforma Católica, de forma rigorosa, com conteúdo
escolástico e preparo técnico para o exercício das funções próprias do padre jesuíta.
A formação da espiritualidade e o livre - arbítrio

21
Esta questão do colégio como espaço de reprodução da cultura ocidental em terras de além mar vai ser
retomada na parte seguinte deste trabalho quando for apresentada a educação como uma das formas como
aparece a racionalidade jesuítica.
148

O futuro padre jesuíta tinha uma formação espiritual, além da formação propriamente
intelectual. Afinal o homem forjado pela rígida educação era um sacerdote, um homem de
religião e da religião católica reformada, devendo, portanto, ter e exercitar uma espiritualidade
própria de quem está a serviço aqui na terra de uma força que é divina. Ser e se sentir
instrumento de Deus na terra passava por uma busca de uma experiência íntima com ele, e
isso se dava através de uma espiritualidade própria.

Os Exercícios Espirituais, escritos por Loyola antes mesmo da fundação da


Companhia de Jesus, sempre foram o principal meio usado para a formação da espiritualidade
do futuro jesuíta. Assim como o corpo é exercitado para se manter sempre em boa forma, o
espírito deve, outrossim, ser exercitado:

Por esta expressão, Exercícios Espirituais, entende-se qualquer modo de


examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal e mentalmente, e outras
atividades espirituais, de que adiante falaremos. Porque, assim como passear,
caminhar e correr são exercícios corporais, também se chamam exercícios
espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si
todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a
vontade de Deus, na disposição da sua vida para o bem da mesma pessoa.
(Loyola, 2002, pp. 11-12)

Na introdução aos Exercícios Espirituais há um alerta que demonstra que tal livrinho
tem uma função bem específica na formação do jesuíta, diferentemente das Constituições ou
do Ratio, pois são para serem praticados e não lidos simplesmente:

O livro não se oferece, portanto, a “leitores”, mas a “exercitantes” que procuram a


Deus na oração. Ele se destina mais propriamente aos “diretores” que devem
acompanhar os “exercitantes” durante os dias de retiro, onde, no silêncio e através
de diversas mediações, prepara-se e se estabelece o encontro com Deus. O papel
do “diretor” é, com efeito, capital: no caminho espiritual que o exercitante deve
realizar, o “diretor” ajuda a discernir a presença e a ação do Espírito de Deus.
(Idem, ibidem, p. 05)

A busca de um contato íntimo com Deus através de meios próprios distribuídos


metodicamente ao longo de quatro semanas é o que propugna o livro de Loyola, objetivando
que o futuro jesuíta tenha a certeza que não é ele que age na terra, mas Deus através dele,
vivificando o ideal paulino de entrega a Deus22.

Miller (1946) inicia sua obra mostrando o espírito do jesuitismo identificando-o


praticamente com os Exercícios, ali encontrando uma mística, mas não no sentido medieval
de pura contemplação de um Cristo entronizado tranqüilamente em sua glória, mas como
149

contemplação ativa do Salvador como “rei militante, empenhado em luta pelo seu reino”
(1946, p. 30), solicitando ao homem sua ajuda na construção do reino de Deus na luta contra
as forças do mal. A espiritualidade do século XVI, particularmente dos jesuítas, é diferente da
mística medieval, ao instigar o homem, no caso o futuro padre, à ação, não esperando que
Deus escolhesse o eleito, pois, continua Miller, “foi atribuída à vontade humana essa mesma
força que, anteriormente, se buscara apenas na ação de uma transfiguração sobrenatural”
(p. 22). A novidade da espiritualidade jesuíta, traduzida nos Exercícios, foi a valorização da
vontade humana no processo de se tornar um ser perfeito da mesma forma da perfeição do
Criador, vontade humana que ao não ficar somente na dependência de uma visão, de um
arrebatamento, dado por Deus, provocou uma “revolução completa no pensamento católico”
(p. 23). Talvez Miller exagere na tinta revolucionária em sua avaliação da espiritualidade de
Loyola, no entanto, é inegável que não se tratava mais da mesma mística medieval, típica de
um estoicismo cristão. Em síntese, o novo contato místico com Deus se dava, à maneira de
um catolicismo expansionista, na ação, nas atividades práticas de evangelização:

Pois, segundo a doutrina jesuítica, Deus não é encontrado, de maneira nenhuma,


apenas no arrebatamento extático, inativo, mas, sobretudo, no reconhecimento
claro da vontade divina e em uma atitude guiada por êsse reconhecimento; o
homem se tornará perfeito, então, no instante em que todos os seus atos ou
omissões estiverem modelados de maneira a contribuírem sempre “para a maior
glória de Deus”. (Miller, 1946, p. 24)

Antes de continuar, é preciso ter em conta que da mesma forma que a educação e o
preparo para as missões vão se definindo historicamente na Companhia, pois não nasceram
prontos, também a espiritualidade dos jesuítas passou por mudanças ao longo dos primeiros
anos de vida oficial da Societas Iesu. Prova disto foram as discussões entre Mestre Simão
Rodrigues e Loyola – o Provincial português e o Geral –, acerca do comportamento radical23
de estudantes jesuítas portugueses, que era incentivado por Rodrigues e censurado por
Loyola. A discordância de ponto de vista levou ao afastamento do Provincial português de seu
cargo, até porque tais atos causavam estranheza na corte portuguesa. Loyola entendia que as
atitudes vividas e incentivas por Rodrigues foram próprias de um período no qual os
primeiros jesuítas estavam decidindo seu futuro na Igreja e provando ao extremo suas novas
vocações e que já não mais tinham razão de ser, excetuando-se no período do noviciado.
Poder-se-ia afirmar que o comportamento de Mestre Simão estava mais próximo de uma

22
Na carta aos Gálatas, São Paulo diz: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em
mim, e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si
mesmo por mim”.
150

mística ascético-emotiva e medieval e a proposição de Loyola expressava uma espiritualidade


menos ascética e mais racional, inerente à uma organização que ia além do assistencialismo
em hospitais, orfanatos etc..

Nos Exercícios Espirituais há o desenvolvimento e aperfeiçoamento de idéias e


conceitos utilizados à larga à época, como é o caso, por exemplo, da descrição do inferno que
era moda como forma de afugentar os homens do pecado. A descrição detalhada do inferno,
informa Miller, constava de vários exercícios espirituais daquele período, inclusive no de S.
Inácio, com a diferença de que nestes “essas idéias foram aproveitadas pela primeira vez, de
maneira sistemática, com o intuito de provocarem um determinado efeito psicológico, e desta
sorte, servirem a um processo de purificação interior” (1946, p. 27).

Outro autor estudado que talvez exagere também em sua avaliação dos Exercícios
Espirituais é Daniel-Rops, para o qual, tal livrinho é reputado como “o mais eficaz manual de
ação e de conquista que jamais possuiu a Igreja” (1969, p. 45). O elogio histórico que autores
fazem, Rops no caso, não se deve apenas ao conteúdo religioso e forma psicológica dos
Exercícios, mas também ao fato de que se tratava do primeiro documento da Companhia,
antes mesmo da bula de fundação, que ajudou a formar e provar a espiritualidade e a mística
dos primeiros jesuítas.

Trabalha como se tudo dependesse de ti; reza como se tudo dependesse de Deus! Esta
frase atribuída a Loyola sintetiza a formação espiritual do futuro jesuíta ao unir a ação e a
oração. Millett (1985) entende que esta frase também resume a atividade da Igreja, através das
atitudes reformistas dos papas do final do século XVI:

(...)Pio V (1565-72) movimentou ousada e constantemente a política da Europa e


tentou purificar a vida da cidade de Roma. Gregório XIII (1572-85) reformou as leis
da Igreja, corrigiu o calendário e dirigiu as escavações das catacumbas. Sisto V
(1585-90) transformou Roma, arquitecturalmente, numa capital. Esta atividade,
aliada à convicção de que Deus tudo faz é a chave da Contra-Reforma, foi
elevada à perfeição na frase do fundador da Companhia de Jesus, Inácio de
Loiola: “Trabalha como se tudo dependesse de ti; reza como se tudo dependesse
de Deus”. (Millett, 1985, p. 20)

A espiritualidade jesuíta, preconizada já nos Exercícios de Loyola, tinha como um de


seus fundamentos a convicção na liberdade e na vontade humanas como responsáveis diretos
no processo de aperfeiçoamento pessoal e religioso. Nesse sentido, existe uma estreita ligação

23
Tal comportamento radical se traduzia em severas autoglagelações, em dormir em hospitais junto a leprosos,
em andar nu pelas ruas em pleno inverno etc., como provas concretas de amor e experiência de Deus.
151

entre a formação espiritual do jesuíta e a doutrina teológica do livre-arbítrio humano, pois em


ambos há a valorização da medida humana no processo de salvação individual.

Assim, julgou-se oportuno apresentar, a seguir, em que consistia a doutrina do livre-


arbítrio na história do pensamento cristão e, particularmente, como esta teoria era entendida e
aplicada no quinhentos europeu.

O livre-arbítrio humano como fazendo parte da concepção cristã de homem sempre


foi, para os pensadores cristãos, objeto de reflexão e preocupação. Como conciliar, ou mesmo,
como contemporizar a liberdade humana, liberdade da criatura, com a vontade divina, vontade
do criador, sempre foi, para a teologia e filosofia cristãs, um ponto fundamental da doutrina
religiosa.

A rigor, existem duas posturas teóricas e doutrinárias que procuram dar conta da
relação criador e criatura: a doutrina do livre-arbítrio e a doutrina da predestinação ou da
graça. De modo distinto da teoria do livre-arbítrio, os adeptos da predestinação advogam, em
linhas gerais, que o futuro do homem já foi escrito e ele já está predestinado ou para a graça
ou desgraça eternas. Nessa doutrina, o plano sobrenatural é sobrevalorizado em detrimento do
plano natural, na medida em que não resta ao homem nada mais do que esperar seu destino e
privilegiar o contato mais íntimo com o criador através da oração, pois a ciência de quem são
os eleitos sempre será um mistério para os homens.

Já o livre-arbítrio sempre se constituiu numa preocupação para os teóricos do


Cristianismo desde os seus primórdios. O problema principal sempre foi conciliar a
concepção de Deus com a limitação do homem. Se Deus é o pai, o criador de todas as coisas,
o primeiro e único, Ele, necessariamente, tem que ter onisciência, ser onipotente e
onipresente; e se o homem, enquanto criatura, for dotado de liberdade e se o uso que se faz
dela é crivo para a sua salvação, então parece haver uma contradição entre a onisciência do
Criador e a liberdade da criatura. Não resolve, no entanto, abrir mão da onipresença de Deus,
pois se assim fosse, esse Deus não seria tão poderoso e, portanto, poderia ter falhado, o que
seria inconcebível para a religião. Não resolve, obstante, simplesmente abrir mão da liberdade
da criatura, senão não haveria diferença entre um homem e um autômato, por exemplo. Ou
seja, a questão do livre-arbítrio sempre foi uma questão árdua para a teologia e a filosofia
cristã.
152

Uma síntese do que se pode entender acerca do livre-arbítrio na doutrina da Igreja é


fornecida por Toledo, o qual toma o posicionamento de São Bernardo de Claraval (em 1128)
sobre a relação entre a liberdade humana e a graça divina:

Esta definição, por um lado afirma o poder da vontade livre mas também requer o
concurso da graça, pois “o livre-arbítrio é salvo e a graça salva”. Ambos são
necessários à obra da salvação e o livre-arbítrio coopera com a graça. São
fundamentais a esta definição os conceitos de vontade e razão. Vontade é
definida por ele como movimento racional que preside os sentidos e os apetites,
mesmo que às vezes se dirija contra a razão. A razão por sua vez, é dada à
vontade, para torná-la eficiente e não para destruí-la. Se assim o fizesse, imporia à
vontade uma necessidade, cerceando seu livre agir conforme seu próprio arbítrio e
ela não seria mais a vontade, mas sim a necessidade. Assim, o livre-arbítrio tem
duas referências fundamentais: livre se refere à vontade e arbítrio à razão. Sua
teologia acaba se referindo depois a três tipos de liberdade: da natureza, pela qual
a natureza é submetida; da graça pela qual a carne é submetida; e a da vida e a
da glória, pela qual a morte é submetida. Elas são fundamentais ao homem e à
sua salvação. Aqui está então, a doutrina clássica da Igreja sobre este tema.
(Toledo, 1996, pp. 33-34, com grifo no original)

Desde Santo Agostinho até São Tomás de Aquino, este tema freqüentou os escritos
teológicos e filosóficos dos intelectuais da Igreja. Vitalino Cesca, em sua tese de
doutoramento Fundamentos teológico-filosóficos da Ratio Studiorum, faz uma apresentação
bastante didática da doutrina da predestinação e a do livre-arbítrio, remetendo a Platão e
Aristóteles os fundamentos filosóficos de tais doutrinas. Cesca, na esteira de compêndios
sobre a história do cristianismo, divide a história do pensamento cristão, no tocante a esta
questão, em duas correntes: uma representada por Santo Agostinho – a Patrística – que tem
Platão como o fundamento filosófico, passando por Plotino, pelos maniqueístas, por Duns
Scotus, Guilherme de Occkam, chegando em Calvino e Lutero; e a outra representada por São
Tomás de Aquino – a Escolástica – que tem Aristóteles como fundamento filosófico,
passando por Pelágio, Cardeal Cayetano e Domingos Bañes.

A doutrina defendida por Agostinho, segundo a divisão feita por Cesca, traz como
conseqüência a maior valorização da dimensão divina, sobrenatural, da criação, dado que o
destino do homem já está, de certa forma, traçado por Deus. Santo Agostinho é exemplo da
doutrina da predestinação, ou da valorização da graça divina, no concurso da salvação ou
condenação do homem:

Para a predestinação o passo era muito pequeno. E Santo Agostinho deu-o.


Segundo ele, estava nos planos de Deus, desde toda a eternidade, escolher
alguns a quem Ele daria a sua graça; e predestinar os outros à morte eterna.
Como diz São Paulo, a graça é gratis data. Deus a dá unicamente a quem Ele
quer. Este é, aliás, o fundamento das duas civitates, a cidade de Deus e a cidade
do demônio.
153

Esta predestinação para a reprobação é da vontade positiva de Deus. A estes,


embora seja pelos seus méritos mesmos, Deus nega inclusive a possibilidade de
vir a conhecê-lo (Cf. Tractatus in Ioannis Evangelium, 111,5). (Cesca, 1996, pp.
29-30, com grifos no original)

Já na doutrina do livre-arbítrio, diferentemente do “servo-arbítrio” ou predestinação, é


valorizado mais o plano natural, o plano do homem material, na medida em que ele, o
homem, tem participação efetiva na construção do seu futuro, principalmente, na definição de
onde estará na vida pós-morte. Consoante isto, não basta ao homem, rigorosamente, ter um
contato íntimo com Deus através da oração, ele deve demonstrar, através das outras pessoas,
através de obras que ele fez, deliberadamente, a opção pela vida de acordo com os ditames do
criador. As obras podem ser de caridade, de serviço, de vigilância, de ensino, enfim, elas
devem demonstrar, exteriormente, que se é cristão:

É dentro do campo de criatura e de homem, que, com seu livre arbítrio, deverá
mover-se. Esta limitação não lhe tira a autonomia, mas o mantém e o conserva
dentro dos limites do humano. Proíbe-lhe negar-se a si mesmo, trair sua própria
natureza, conspirar contra sua identidade. Obriga-o a ser apenas humano. (Idem,
ibidem, p. 79)

A defesa da doutrina do livre-arbítrio só é possível, segundo Cesca, dado o “encontro”


do aristotelismo com o cristianismo, ou seja, somente na Escolástica foi possível estabelecer
com mais rigor a valorização da liberdade humana na dimensão não somente da vontade, mas,
também, da escolha pelo conhecimento:

Ao encontrar-se o Aristotelismo com o Cristianismo, mantém-se o otimismo diante


da ordem natural, agora porém com outros fundamentos. A ordem natural, criada
por Deus, é boa porque é uma irradiação, uma extensão, embora de natureza
diferente da essência divina, com a qual seu intelecto se identifica. A criação é
antes de tudo uma irradiação de seu intelecto e não um gesto de sua vontade. O
voluntarismo é substituído pelo intelectualismo. Com isto, há um ponto comum
entre ordem sobrenatural introduzida pelo Cristianismo e a ordem natural. Este
ponto comum é o ser. As duas ordens são: se Deus é, os seres criados também
são. (Idem, ibidem, p. 101)

Na história do pensamento cristão, pode-se sintetizar que a doutrina da predestinação


se fez mais presente à época da Patrística, com Santo Agostinho principalmente, e a doutrina
do livre-arbítrio foi hegemônica durante a chamada Escolástica, com Tomás de Aquino
especialmente. No entanto, não se pode afirmar que durante os primeiros séculos do
cristianismo o livre-arbítrio não foi defendido e nem que durante a Idade Média cristã não
houve quem defendesse a predestinação como dogma. Cada período tem a sua hegemonia
teórica e não a homogeneidade completa.
154

Na filosofia e teologia cristãs até a Escolástica, pelo menos, não parece cabível fazer
uma distinção tão clara e nítida da doutrina da graça divina por um lado e do livre-arbítrio de
outro, como fez Cesca. Até por que, quando se fala em liberdade humana na esfera da
religião, em hipótese alguma se pretende emancipar completamente o homem de uma visão
claramente teocêntrica. Na valorização do livre-arbítrio humano está presente a valorização da
dimensão humana no processo de salvação ou condenação eternas, cabendo ao homem mais
responsabilidade, inclusive, no seu destino.

Como exemplo de que essa questão não pode ser tratada como uma dicotomia, Miller
(1946) mostra que somente no Concílio de Trento (1545-1563) é que a Igreja reunida,
impulsionada pelo combate aos reformadores, recusou firmemente a doutrina da
predestinação, mas não fez credo firme, claro e inabalável da doutrina do livre-arbítrio.

O que parece preocupar sempre os pensadores cristãos é a difícil e temerária tarefa de


combinar a concepção do Deus onisciente com a liberdade humana. No entanto, é inegável
que uma opção pelo livre-arbítrio representa, de fato, a valorização maior da criatura, uma
valorização mais efetiva do homem enquanto agente principal de sua salvação ou condenação
eternos.

No século XVI, a história particular do cristianismo viu nascer a chamada Segunda


Escolástica. Hirscheberger, em sua História da Filosofia Moderna, chama a segunda
escolástica de renascença escolástica que “se manifesta no interêsse moderno pelas questões
filosófico-sociais, como as da ética econômica (CAJETANO), da soberania do povo, do direito
de resistência e do direito natural e internacional (MARIANA, VITÓRIA, SUÁREZ)” (1967, p. 88).

A segunda escolástica, ou escolástica avançada, ou mesmo neo-escolástica –variantes


do mesmo conceito – é resultado, ou expressão de um mundo que vai se constituindo de
forma diferente do mundo medieval. As descobertas de novos povos e o “arredondamento” do
mundo propiciados pela busca de novos mercados e mercadorias trouxeram, como
conseqüência, elementos novos para a reflexão filosófica e teológica. São exatamente essas
novidades sociais e culturais que, elevando-se ao nível de preocupações teóricas, resultam na
chamada segunda escolástica.

Jean-François Courtine, em interessante artigo sobre Vitória – dominicano – e Suárez


– jesuíta –, mostra exatamente que as novas descobertas do século XVI exigem novas
reflexões por parte da Igreja, reflexões estas que resultaram na separação entre teologia e
155

direito, ou seja, as teorias respeitantes ao direito natural e ao direito social à época ganharam
um status de ciência que, mesmo sob os olhares da autoridade eclesiástica e da teologia como
ciência mãe, abriram espaço próprio de reflexão.

Nossos autores vão tentar diversamente remover essas ambigüidades para


adaptar os considerandos ou as principais disposições da doutrina tomista a uma
situação histórica radicalmente modificada em suas dimensões políticas, culturais,
religiosas. Com a descoberta das Índias Ocidentais, a idéia da unidade cristã, com
efeito, estilhaçou-se e deve progressivamente dar lugar à de uma irredutível
diversidade plural de povos, de Estados, de religiões. Ao mesmo tempo, é também
o conjunto das relações conflituosas da cristandade com seus “outros” que vai
encontrar-se afetado, trate-se dos turcos, dos mouros ou dos judeus. O resultado
bastante paradoxal dessa necessária adaptação é que são teólogos-juristas que
vão contribuir para separar o direito da teologia: o direito torna-se objeto de uma
ciência autônoma na qual a própria noção de direito natural vai encontrar-se
radicalmente modificada. (Courtine, 1998, p. 300)

Ainda no mesmo artigo, avançando na demonstração da autonomização do direito,


baseado em Suárez, Courtine mostra que na segunda escolástica existe um processo de
laicização, mesmo que teórico, das reflexões de cunho político-jurídicas. Como a natureza em
si não tende nunca para um fim sobrenatural, o poder político é essencialmente natural e
positivo e não sobrenatural e eterno. Essa reflexão de Suárez é um passo a mais na
“laicização” da esfera política. O poder político não pode ser ordenado pela beatitude de uma
vida eterna ou pela felicidade espiritual individual da vida presente, pois

indiferente à felicidade dos indivíduos, seja sobrenatural ou natural, o poder


político não tem outro fim, próprio e intrínseco, que não a felicidade natural da
própria comunidade política e por isso dos indivíduos humanos, na medida em que
são membros dela. (Idem, ibidem, p. 314)

A preocupação com a felicidade humana, depreendida da concepção de comunidade


política, pode ser entendida, como conseqüência também, de uma predisposição teórica da
valorização da doutrina do livre-arbítrio; do contrário, o que importaria, a rigor, seria a
felicidade espiritual e pós-morte. Por valorização do livre-arbítrio entenda-se, portanto, a
própria autonomia que a reflexão sobre o direito natural/direito das gentes passa a ter, na
medida em que este objeto de reflexão é algo relativo ao plano natural, relativo ao plano onde
os homens se relacionam e constroem as leis que regulam as suas vidas.

No edifício escolástico, cuja base é o tomismo, as reflexões do século XVI


representam uma especialização maior do corpus teórico, especialização essa que começara, a
rigor, com a autonomia conseguida pela filosofia relativamente à teologia. Como afirma,
ainda, Courtine, as questões relativas aos homens passam em importância as coisas
propriamente divinas:
156

(...) Ora, a mais profunda linha de fratura ocorrida nesse edifício é, sem dúvida
nenhuma, (...), a disjunção, tornada patente no século XVI, entre uma ordem
doravante qualificada de “sobrenatural” e um estatuto hipoteticamente constituído,
o da pura natureza. Doravante, é nesse quadro, como se viu explicitamente com
Suárez, que são elaboradas as teses fundamentais relativas à lex naturalis. (...) O
direito natural torna-se assim, em seu princípio, um direito racional e, a partir daí,
importa muito pouco saber (Vásques versus Suárez) se essa racionalidade,
codificável, é a de uma ordem das essências que se impõe ao próprio Deus ou se
se reserva em Deus uma instância propriamente volitiva e posicional. (Idem,
ibidem, p. 322)

É preciso salientar que as questões teórico/religiosas do pensamento cristão no século


XVI continuam tendo como base comum o aristotelismo tomista. Por isto, consoante Saraiva
e Lopes, os pensadores jesuítas buscavam adaptar “a Escolástica e o Aristóteles dos
Escolásticos à problemática mais recente” (1979, p. 186) de sua época. A própria teologia,
ciência-mãe de todas, também sofre modificações e inovações, como resultado,
principalmente, dos debates e do ambiente reformista do Concílio de Trento. A teologia
aperfeiçoou, como já visto anteriormente, os métodos de estudo, criando a exegese, a
patrologia, a história da Igreja, a história dos dogmas e, também, a teologia moral, como
forma de defender com mais competência a doutrina da Igreja e, também, formar quadros
mais preparados para a atuação religiosa de forma geral.

As novas orientações teóricas e doutrinárias da Igreja, no decorrer do século XVI, não


podem, no entanto, dar a falsa impressão de que não havia, no seio da Igreja, dissensões
internas, partidos políticos intestinos, através, principalmente, das ordens religiosas e o seu
respectivo poder. A nova realidade que se apresentava perante a Igreja era enfrentada de
modos diferentes, às vezes diversos mesmos, como, por exemplo, a Inquisição moderna, que
era a “menina dos olhos” da ordem dos dominicanos e muitas vezes criticada pelos jesuítas.
Havia sim, porquanto, pontos de vistas discordantes entre os mandatários eclesiásticos, como
houve em toda a história do pensamento católico, mesmo na Escolástica, na qual não se pode
deixar de mencionar, por exemplo, a disputa entre os nominalistas e os universalistas. No
entanto, é naquilo que o pensamento da Igreja tem em comum é que se faz uso de termos
generalizantes como, no caso presente, a segunda escolástica.

A segunda escolástica representa um tipo de pensamento que procurou, sem romper


com o aristotelismo tomista, avançar em questões que antes eram impossíveis; portanto, muito
mais do que uma doutrina que se está elaborando e que com o tempo se torna hegemônica, é a
própria Igreja, através dos seus quadros mais preparados, que procura adaptar a doutrina à
157

própria realidade. Neste quadro, a doutrina do livre-arbítrio humano é atual, na medida em


que ela vai se tornar base de atuação e teoria oficial , por exemplo, da Companhia de Jesus.

O pensamento cristão quinhentista, no entanto, não é mais tão hegemônico como na


Idade Média, pois, grosso modo, o século XVI é século também do chamado humanismo,
onde se começou a “abrir as portas” para um pensamento mais laico, um pensamento que foi,
aos poucos, se tornando independente e crítico dos ditames religiosos. A realidade humana foi
humanamente assumindo novos e revolucionários contornos, abrindo espaços para novos e
revolucionários pensamentos. A doutrina do livre-arbítrio, no entanto, é atual também no
século XVI, inclusive como determinação de Trento. Daniel-Rops informa, de forma mais
enfática do que Miller, que uma das resoluções conciliares diz respeito ao livre-arbítrio –
sessão VI, com 16 capítulos e 33 cânones – como a verdadeira doutrina da Igreja, valorizando
o homem como sujeito de sua redenção e não como objeto de uma predestinação
incompreensível.

Febvre, como já anotado, adjetiva o século XVI como “um século de vida religiosa”
(in: Barreto, 1983, p. 101), mostrando que não se pode ignorar que naquele século a religião
ainda domina os destinos dos homens e, inclusive, as guerras também são de religião. A partir
dessas reflexões, pode-se ver que o quinhentos é tão contraditório quanto humanista de um
lado e religioso de outro. O século XVI, talvez justamente por ser contraditório, é, entre outras
adjetivações, o século da grande epopéia moderna que, como as antigas, a par dos deuses
estão os heróis, a par das espiritualidades estão as individualidades humanas.

Nesse fervilhar de idéias novas, a reflexão teológica e filosófica da Igreja, entretanto,


não rompe, na forma, com a Escolástica. Não é, portanto, ao acaso que a historiografia vai
conceituar aquele pensamento como neo-escolástico, pois, não há, de fato, uma inovação no
pensamento cristão como o foi quando da introdução de um Aristóteles como autoridade
filosófica e científica a ser seguida em substituição a Platão.

Os pensadores da segunda escolástica vão tentar incorporar as novas reflexões, as


novas teorias e a nova realidade que passa a existir a partir do final do século XV. As terras
descobertas, com seus povos selvagens; as terras do Oriente, descortinadas para o mundo com
suas ricas e complexas civilizações pagãs; o comércio em escala cada vez maior; a
conformação política das cortes fortalecidas etc., são assuntos que vão sendo incorporados ao
cabedal intelectual cristão. Assim como o nascimento da Escolástica expressou, em um nível
158

de elaboração teórica, as revoluções sociais do século XII, a neo-escolástica expressa, ao nível


da religião, o torvelinho social que foi o século XVI.

Na segunda escolástica, dominada praticamente por intelectuais dominicanos e


jesuítas, a noção de livre-arbítrio toma um novo fôlego, bem ao espírito do Concílio de
Trento, da reforma interna da Igreja e do embate teórico com os protestantes, tornando-se a
base filosófica e teológica da Companhia de Jesus.

Cesca mostra que a moral jesuítica, por exemplo, está assentada na doutrina do livre-
arbítrio, exigindo mais da inteligência e da vontade:

A moral jesuítica, no entanto, tem seus alicerces no livre arbítrio. É com ele que o
homem deve agir. Trata-se, para tanto, de buscar sempre os maiores
esclarecimentos por parte da inteligência e um fortalecimento da vontade para que
sua ação seja livre; e, pela formação de hábitos, que a vontade seja persistente.
(Cesca, 1996, p. 131)

O campo da moral, mais especificamente do casuísmo, é o campo prático onde atua a


concepção do livre-arbítrio, possibilitando adjetivar aqueles padres de paladinos da liberdade
humana de opção:

Foi de corpo e alma que os teólogos jesuítas dedicaram-se ao estudo dos casos.
Como paladinos do livre arbítrio, viram neste estudo a grande oportunidade de
reduzir a moralidade ao seu essencial, libertando-a de tudo o que viesse denegri-
la. Além da análise da matéria do ato, detiveram-se sobremaneira na análise das
condições subjetivas, isto é, o grau de conhecimento e de consentimento.
Qualquer limitação em um ou em ambos fazia com que o ato não tivesse sido
realizado com o exercício pleno do livre arbítrio e com isso a culpa também
diminuía. Tratava-se de desimpedir o caminho da moralidade, afastando
escrúpulos vãos, pruridos de consciência bem como a permissividade moral. Foi,
enfim, toda uma tentativa de definir objetiva e cientificamente a conduta moral, não
só através de princípios gerais, senão que aplicando estes a cada caso concreto.
(Idem, ibidem, p. 137)

Miller mostra igualmente que os jesuítas optaram pela valorização da liberdade


humana, adotando o livre-arbítrio:

Assim é que os jesuitismo aspirou pôr em relêvo, no seio da dogmática católica, a


doutrina do livre arbítrio: a liberdade contraditória da escolha entre duas
possibilidades opostas, entre o agir e o omitir, entre bem e mal, entre Cristo e
Lúcifer. Conforme a decisão que o homem toma livremente, irá êle ser chamado
para o Reino dos Céus, ou condenado ao Inferno. (Miller, 1946, pp. 115-116)

Inclusive, Miller aponta que um dos segredos do sucesso da Companhia de Jesus foi
exatamente valorizar a liberdade individual no seio da própria Ordem, pois, aliado à
obediência cega, obediência “como um cadáver”, os jesuítas souberam “desde o início,
utilizar de maneira proveitosíssima as qualidades pessoais dos seus membros, e, justamente,
159

essa aliagem de disciplina e individualismo reside tôda a originalidade da corporação criada


por Inácio” (1946, p. 46). É claro que se poderia colocar um senão nas palavras de Miller,
quanto conceituar de individualismo a liberdade individual dos jesuítas. No entanto, o que o
autor quer valorizar é a obediência para aquela Ordem como diferente das outras ordens, não
ficando fechado num convento a rezar, cantar e contemplar o tempo todo; diferentemente da
maioria das ordens religiosas à época, os jesuítas já nasceram para percorrer o mundo, sendo
que a ação exterior era a mira deles. Nesse caso, a liberdade individual realmente é uma
marca dos membros da Companhia, pois, na sua ação, eles tinham que estar preparados para
as mais diferentes circunstâncias.

Voltando a Cesca, ele mostra que para o jesuíta Luis de Molina, por exemplo, a
questão do livre-arbítrio não era apenas uma questão de opção, mas de reflexão, no sentido de
justificá-lo teologicamente, em oposição, àquela altura, ao pensamento protestante que tinha
por base a defesa, intransigente, da predestinação. Molina procura justificar teologicamente a
liberdade humana:

A existência do livre arbítrio criado prova-o pela experiência. Ele existe nos anjos,
nos homens e às vezes o apetite sensível de alguns animais também manifesta
sinais de sua existência. Além de comprovar sua existência pela experiência,
deveríamos ainda considerar que se não houvesse o livre arbítrio no homem, por
que Deus haveria de castigá-lo? Deveria castigar-se a si próprio já que foi Ele que
assim o fez e o fez de tal maneira que as coisas necessariamente acontecessem
assim como estão acontecendo, isto é, decididas pelo livre arbítrio do homem (CF.
Concórdia, 23, 1).
Assim que se a primeira raiz dos efeitos do livre arbítrio é a vontade de Deus, pois
foi ela que o criou; a raiz próxima é o livre arbítrio criado.
Assim entendido, como se salva o livre arbítrio criado diante da presciência e da
providência divinas? Pela ciência livre, Deus sabe apenas que o homem com seu
livre arbítrio, em meio a tais circunstâncias, poderá fazer tais e tais opções e que
160

as opções que ele fizer Deus as prevê, as antevê como já existentes e por isso
ontologicamente depois e porque o homem as fez. É por isso que o homem irá
fazer tal opção que Deus a conhece. Salva-se com isto a autonomia do livre
arbítrio criado. (Cesca, 1996, p. 114)

Cesca procura mostrar também, que a visão otimista da ordem natural da criação,
propiciada teologicamente pela doutrina do livre-arbítrio, foi impressa, no seio da Companhia
de Jesus, pelos teóricos Luis de Molina e Francisco Suárez. Ao realizar e justificar tal opção,
eles também definiram uma orientação prática e não só especulativa, para a ação da
Companhia.

Molina e Suárez foram os teólogos mais representativos da Companhia de Jesus


no século XVI. Mesmo que a ordem não os tenha seguido em toda a sua doutrina,
eles juntamente com o Fundador imprimiram uma visão otimista da ordem natural
e a consciência da importância de o homem explorar tudo o que a natureza
humana oferece no processo de aperfeiçoamento pessoal e santificação.
Definiram eles portanto toda uma orientação não só especulativa, senão que
prática para toda Companhia. E foi sobretudo esta última, a moral jesuítica, que
mais caracterizou a ação pastoral dos inacianos nos seus três primeiros séculos
de existência. (Idem, ibidem, p. 129)

A noção de indivíduo ganha mais força ainda e a valorização do plano natural passa a
ser palavra de ordem para os padres da Companhia de Jesus. A noção valorizada do indivíduo
e a conseqüente noção igualmente valorizada da dimensão das obras no processo de
evangelização se traduzem, na racionalidade jesuítica, através da necessidade do
planejamento dos e nos colégios, das e nas missões, através da capacidade de decisão perante
o novo e através das reflexões sobre o direito.

É importante anotar que o objetivo de apresentar a doutrina do livre-arbítrio se prende


ao fato de entender-se que a moral jesuítica e, especialmente a sua espiritualidade, têm por
base a concepção da liberdade humana. Não se fez nem se fará um balanço avaliativo e crítico
a respeito da predestinação ou do livre-arbítrio, pois seria uma discussão essencialmente
religiosa, desviando-se muito dos objetivos deste trabalho.

A formação do futuro jesuíta se baseava na valorização da dimensão humana no


processo espiritual de autoconversão e no processo pastoral de evangelização dos outros. A
proximidade com homens desconhecidos, o encontro com culturas diferentes, o embate com
religiões distintas do cristianismo fez com que aqueles verdadeiros “quadros” da Igreja
militante procurassem se adaptar e se organizar de forma as mais das vezes original. No
entanto, o que, na doutrina cristã, poderia justificar uma ação efetiva como a que realmente
tiveram? A crença de que ao homem, à criatura de Deus, não basta apenas fé, não basta
apenas rezar, e que é preciso mostrar pelos atos e obras que se é cristão, e que se é merecedor
161

da recompensa eterna; e isto acarreta, na prática jesuítica, não só ensinar a rezar o credo
cristão, mas procurar levar os homens a agir de acordo com o orbis christianus. A crença de
que o homem é co-participante do seu destino inspira e legitima a ênfase dada na Companhia
de Jesus aos processos de formação educativa e cultural dos futuros padres, a ênfase na
formas de organização, como os colégios, as reduções, as fazendas, as casas comerciais etc..

A Companhia de Jesus em sua organização interna dificilmente perdia o rigor em


qualquer de suas atividades, porém, é inegável que a preocupação com a formação dos futuros
padres jesuítas era corrente e tida como assunto de máxima importância – o Ratio Studiorum é
o exemplo perfeito – pois era o momento e o espaço próprio para garantir que a Societas Iesu
continuasse a ter em seus quadros padres acima de tudo competentes e moralmente ilibados,
como verdadeiros instrumentos de uma igreja que estava se reformando e para um catolicismo
que estava se expandindo. A formação era intelectual – rigorosa e escolástica – e espiritual,
tendo no livre-arbítrio humano um pressuposto para a própria ação.
PARTE III A

RACIONALIDADE INSTITUCIONALIZADA
163

Introdução:

a racionalidade vista como instrumento do agir jesuítico

Nesta última parte do trabalho, a racionalidade jesuítica é apresentada em dimensões


mais concretas, tal qual uma bússola, ou talvez mais propriamente como um instrumento, e
não com os fundamentos filosóficos, teológicos, ou mesmo religiosos ou até científicos da
Companhia de Jesus. Bem ou mal, uns com mais e outros com menos profundidade, são
vários os textos que trilharam esta última direção, esquadrinhando quais os pensadores,
autores e doutrinas que compõem o arcabouço intelectual e religioso daquela instituição.

A intenção é apresentar a racionalidade através de determinadas características da


atuação dos jesuítas e, não, fazer uma apreensão teórica e histórica do que se entende por
racionalidade. A definição do conceito de racionalidade segundo esta ou aquela teoria, esta ou
aquela definição semântica ou filológica, não se apresenta como ponto de partida. O que se
quer é entender a racionalidade como um outillage mental1, como a capacidade
empreendedora daquela jovem ordem religiosa.

1
Este termo foi cunhado por Lucien Febvre, o qual transformou-se num conceito historiográfico. Para Ronaldo
Vainfas (2002): “... Quanto a Lucien Febvre, que já havia enredado pela psicologia histórica em seu Un
destin, Martin Luther (1928), esboçou uma verdadeira teoria dos modos de pensar e de sentir no século XVI
europeu através do conceito de outillage mental – inspirado no conceito de mentalidade primitiva ou pré-
lógica de Lévy Bruhl –, o que fez na sua obra clássica Le problème de l’incroyance au XVIe siècle: la
religion de Rabelais (1942) – A época da descrença ...” (p. 18). Roger Chartier (1982) detalha um pouco mais
em que consiste tal conceito: “No seu Rabelais, publicado em 1942, Febvre não define a utensilagem mental,
mas caracteriza-a do seguinte modo: ‘A cada civilização, a sua utensilagem mental; mais ainda, a cada época
de uma mesma civilização, a cada progresso (quer das técnicas, quer das ciências) que a caracteriza – uma
utensilagem renovada, um pouco mais desenvolvida para certas utilizações, um pouco menos para outras.
Uma utensilagem mental que essa civilização, que essa época, não está segura da capacidade de transmitir,
integralmente, às civilizações, às épocas que lhe vão suceder, podendo conhecer mutilações, retrocessos,
deformações importantes. Ou, pelo contrário, progressos, enriquecimentos, novas complicações. A
164

Nesse sentido, a racionalidade aqui não deixa de ser um conceito abstrato, pois se trata
de uma síntese de alguns elementos ou mesmo características que perfazem um todo, sendo
isto o que permite se falar em racionalidade de algo ou de alguém. Portanto, como todo
conceito abstrato, a racionalidade é constituída por vários elementos, uns mais teóricos e
outros mais práticos. Na perspectiva aqui utilizada se quer destacar alguns desses elementos
constituintes da racionalidade jesuítica julgados importantes.

Os elementos que constituem a racionalidade formam uma espécie de instrumento,


como afirmado antes, que dá a direção para a ação que alimenta e retroalimenta a atuação e o
pensamento teórico no seio na Companhia. Assim, a racionalidade é entendida precisamente
como um instrumento do viver jesuítico, traduzindo esse viver como o agir, o compreender, o
ensinar, o aprender, em síntese, o evangelizar. Por evangelizar, por sua vez, entenda-se o
transmitir e/ou impor, através das missões, das pregações, das confissões e dos colégios, uma
determinada religião própria de uma determinada cultura tida como essencialmente
verdadeira.

A racionalidade como um instrumento do agir jesuítico é também uma forma de se


conhecer os próprios jesuítas para além de um julgamento a posteriori. Não interessa concluir
se eles foram benéficos ou maléficos para a história da humanidade; o que se quer é a
contextualização desse instrumento, ou melhor, é o entendimento de que o agir jesuítico, que
se deseja compreender, se deu num determinado período da história humana que tinha um
contexto determinado e determinante.

Assim, a racionalidade como instrumento se traduz em características que constituem


esse agir, ou nas formas específicas que esse agir assume. Neste trabalho, como já indicado,
apresentam-se três formas desse agir, três elementos que constroem o instrumento e, ao
mesmo tempo, balizam a atuação: o processo de adaptação do discurso e do comportamento
às diferentes circunstâncias para que os objetivos da missão sejam mais bem alcançados; a
organização interna da Companhia em seus diferentes afazeres; a educação, principalmente
através dos colégios, como meio privilegiado de preparação de novos jesuítas e de
transmissão da cultura e religião cristã romana.

utensilagem vale pela civilização que soube forjá-la; vale pela época que a utiliza; não vale pela eternidade,
nem pela humanidade: nem sequer pelo curso restrito de uma evolução interna de uma civilização’ (ed. Albin
Michel, 1968, pp. 141-142” (p. 36).
165

Estes três aspectos da racionalidade jesuítica estão presentes, uns mais outros menos,
em todas as diversas atividades que a Companhia empreendeu no período estudado, como no
cuidado de colégios e universidades entregues por soberanos; nas missões nas Índias, no
Oriente, na África e nas Américas; na construção de tipografias em praticamente todas as
regiões onde estiveram presentes; nas fazendas de criação de gado e plantação de mate; como
confessores de reis e príncipes; como donos de navios; como donos de casas de comércio.
Enfim, nas várias atividades que os padres jesuítas empreenderam, a adaptação, a organização
e a educação estiveram presentes como componentes essenciais.

Antes de passar aos capítulos correspondentes a essa parte do trabalho, é necessário


esclarecer que essas características da Companhia de Jesus não são restritas àqueles padres.
Estas mesmas características podem ser encontradas em outras ordens religiosas que
igualmente foram missionárias e educadoras, como os franciscanos e os dominicanos, por
exemplo. No entanto, presumimos que estas características foram potencializadas na
Companhia pela persistência da ação missionária, pela vastidão das atividades, e
principalmente, pela importância que ela teve no contexto social e político da época.

Finalmente, um alerta se faz necessário: é difícil fazer a distinção desses aspectos da


racionalidade jesuítica, pois quando se descreve e analisa especificamente a adaptação, por
exemplo, não se pode simplesmente abstrair que a própria necessidade dela é resultado,
também, de um preparo intelectual e de um mínimo de organização. Portanto, o que se
apresentará nos próximos capítulos é a maior especificidade de cada uma das características,
mesmo que, em alguns momentos, se faça uso das outras para tornar o texto mais claro.
166

Capítulo 4

A adaptação como estratégia para as missões

Inácio de Loyola, em carta de 1555, a João Nunes Barreto, padre jesuíta que iria
assumir a dignidade de Patriarca da Etiópia, a terra do lendário Preste João, faz uma série de
recomendações no tocante à evangelização e reconversão daquele povo que era cristão de
confissão oriental. Dentre as recomendações, uma é reveladora do que a prática dos primeiros
missionários ensinou à Companhia acerca da necessidade de que a doutrina cristã fosse
sempre adaptada às diferentes circunstâncias, no caso da Etiópia, ao povo que seguia dogmas
já admitidos como heresias em concílios do início da Idade Média:

Enquanto possível, levem preparadas as resoluções a respeito dos dogmas que


2
eles erram [principalmente o monifisismo ], com definição da Sé Apostólica ou
Concílios, quando houver. Porque, se se tornarem capazes de aceitar esta única
proposição, que em matéria de fé e costumes esta Sé não pode errar quando
define solenemente, depois no restante deixar-se-ão mais facilmente persuadir.
Por isso, vão bem prevenidos por aprovar esta proposição, de modo adaptado
àquela gente e a qualquer entendimento. (Cardoso, 1993, p. 113)

Quando Inácio escreve essa carta, a Companhia de Jesus já tem quinze anos de
existência oficial e vinte e um de criação, contando já com uma experiência acumulada de
pelo menos treze anos em missões. Essa experiência não é apenas em termos de quantidade,
mas de qualidade também, na medida em que era vasta a correspondência entre os jesuítas,
principalmente das províncias com o Geral em Roma. Esse volumoso epistolário3 era

2
Monofisismo: seita cristã dos séculos V e VI, considerada herética por afirmar que Cristo tinha uma única
natureza (divina), em oposição à doutrina ortodoxa que proclamava existirem duas, divina e humana. Foi
condenada no ano 680-681, no III Concilio de Constantinopla.
3
Cardoso e Gonzáles-Quevedo, na Introdução das Cartas de Santo Inácio de Loyola, vol. 3, informam que
somente do fundador, enquanto Geral, são conservadas 6.815 cartas, das quais 5.301 são para os próprios
jesuítas. O fato de um líder como S. Inácio escrever muitas cartas acompanhava, de certa forma, uma prática à
época, pois, como informa Fernando Londoño (2002) citando o estudo do padre jesuíta Dominique Bertrand,
Erasmo de Roterdã teria escrito 1.908 cartas, Lutero 3.141, Calvino 1.247 e Catarina de Médicis 6.381.
167

incentivado a todo o momento pelo primeiro Geral4 e acarretava, entre outras coisas, uma
avaliação contínua dos trabalhos empreendidos pelos padres da Companhia, principalmente os
relativos às missões.

A necessidade da adaptação tanto do discurso, como da metodologia empregada e até


do comportamento exterior dos padres jesuítas em missão foi resultado principalmente do
enfrentamento de culturas e religiões tão diferentes da cristã-ocidental. Quanto mais
complexas eram a vida e a religião dos outros povos, crescia a necessidade de adaptação,
aumentando a necessidade de avaliar profundamente quais as estratégias necessárias para
realizar a evangelização.

O trabalho nas missões exigia gente preparada para enfrentar muitas dificuldades,
como doenças próprias dos navios, doenças desconhecidas em regiões inóspitas, povos que
perseguiam os cristãos, viagens desconfortáveis por mar e por terra etc.. Esse tipo de trabalho
exigia pessoas preparadas para sofrer e, mais do que isso, para fazer do seu sofrimento uma
alegria própria de quem está levando a verdade para os ignorantes dela.

São Francisco Xavier reclama, numa carta de 1544, para os companheiros da Europa,
que os doutores da Universidade de Paris, ao se contentarem somente com as letras,
contribuem para que muitas almas se percam. Do ponto de vista do missionário e da
concepção cristã e cultural ocidental da época, tratava-se de levar a verdade para corrigir o
erro:

(...) Muitas vezes me movem pensamentos de ir aos estudos dessas partes,


gritando como homem de juízo perdido, principalmente à Universidade de Paris,
dizendo na Soborna aos que têm mais letras do que vontade, para dispor-se a
frutificar com elas: Quantas almas deixam de ir à glória e vão ao inferno pela
negligência deles!(...). (in: Cardoso, 1996, p. 37, nota de rodapé 24)

As missões eram, no entender de Xavier, expressando um modo de pensar da época,


uma luta da civilização contra a barbárie, que por ser desprovida da verdade, fazia da
evangelização a missão dos padres, pois “na verdade estes infiéis são gente ignorante, sem
civilização nenhuma” (Carta a Simão Rodrigues, de 1549, in: Cardoso, 1996, p. 78).
Escrevendo ao Rei D. João III, em 1552, Xavier, planejando a futura missão no Oriente,
resume em duas as principais tarefas deles no grande reino chinês para o seu Rei: “repreender
e falar a verdade”, ou seja, condenar a religião e o modo de vida deles e mostrar a verdadeira

4
No próximo capítulo esse assunto voltará com mais profundidade, como um dos aspectos da organização da
Companhia de Jesus.
168

religião; no entanto, ele sabia, e externava ao Rei, que eram duas coisas “que são perigosas no
nosso tempo (e) se entre os cristãos é tão perigoso repreender e falar a verdade, quanto mais
será entre os gentios!” (Idem, ibidem, p. 112)

Numa outra carta, de 1542, para os companheiros em Roma, Xavier resume quais as
características que deveria ter o verdadeiro missionário. Ele insiste que somente aqueles que
estivessem dispostos a enfrentar muitos sofrimentos deveriam se colocar à disposição para o
trabalho:

Os sofrimentos de tão longa navegação, cuidado de muitas enfermidades


espirituais (não lhe bastando as próprias suas), a morada em terra tão sujeita a
pecados de idolatria e tão difícil de habitar pelos grandes calores, se se tomarem
por amor de quem se devem tomar, tornam-se grandes alívios e matérias para
muitas e grandes consolações. Creio que os amantes da cruz de Cristo Nosso
Senhor descansam vindos para estes trabalhos, e morrem quando fogem deles ou
se acham fora deles. Que morte é tão grande viver, deixando a Cristo, depois de
tê-lo conhecido, para seguir suas próprias opiniões e afeições! Não há aflição igual
a esta. E pelo contrário, que descanso viver morrendo cada dia, por ir contra
nosso próprio querer, buscando não os próprios interesses mas os de Jesus
Cristo! (Idem, ibidem, pp. 36-37)

Em outras cartas, ele insiste no mesmo ponto, chegando a afirmar que para ser
missionário não era tão necessário ser letrado, mas acima de tudo ser virtuoso5.

As missões, no entender do Apóstolo do Japão, serviam para avaliar se os padres


estavam realmente dispostos a enfrentá-las, pois aquela terra “os provará para quanto valem”,
na medida em que lá não era local “senão para homens de grande compleixão [sic] e não
muito idosos, mas é para jovens e não para velhos, embora para velhos animados seja boa”
(Carta ao Geral Loyola, de Goa, 20 de setembro de 1542, in: Cardoso, 1996, p. 44).

Apenas para se ter uma idéia relativa dos problemas que os missionários enfrentavam
à época, veja-se a informação de Xavier, na carta de 1548, aos companheiros de Roma, de que
demorava em torno de “três anos e nove meses” entre mandarem as cartas de lá e receberem
as respostas, que era o tempo que demoravam os navios de Roma para Goa e de Goa para as
Molucas e o retorno. Xavier dá essa informação para “saberdes quão longe estamos,
corporalmente, uns dos outros” (Idem, ibidem, p. 74)

Os relatos pormenorizados das viagens e dos problemas enfrentados soavam, na


Europa, entre os padres novos da Companhia como um convite para as missões. Cardoso,

5
Como veremos adiante, no final da década de 40, quando o santo estiver no Japão, ele enviará nova carta
mostrando que as letras e a ciência agora eram necessárias ao missionário. Essa diferença é resultado do
enfrentamento de uma cultura mais complexa como a japonesa.
169

numa nota a respeito dos relatos detalhados que São Francisco Xavier fez dos problemas que
a população das ilhas de Rau ou Morotai, nas Molucas, enfrentava com o vulcão Monte Tolo,
afirma que o Geral Loyola “exortava aos epistológrafos jesuítas a narrarem tais novidades
para os amigos da Companhia que liam essas cartas e se edificavam com os trabalhos
difíceis dos missionários” (Idem, ibidem, p. 66, nota de rodapé 15).

As missões eram um convite para que o jesuíta pudesse colocar à prova sua vocação,
pois, pelos problemas enfrentados, se tornava um tipo de trabalho mais difícil do que os
outros desenvolvidos pela Companhia. Não tendo recolhido dados suficientes para afirmar se
na visão dos fundadores, pelos menos, as missões se caracterizavam como o trabalho mais
importante, pode-se julgar, porém não sem medo de errar, que, pelo menos, as missões eram
igualmente importantes como os outros trabalhos. No entanto, aquele tipo de função requeria,
quase a todo o momento, um processo de adaptação e de contínua avaliação.

Para dar conta desse aspecto da racionalidade jesuítica far-se-á a apresentação de três
momentos julgados importantes: a adaptação através do missionário Francisco Xavier,
principalmente no Japão, de 1549 a 1552; a adaptação através do missionário Mateus Ricci,
na última década do século XVI, na China; e, a adaptação através dos primeiros missionários
no Brasil.

São Francisco Xavier 6

Como já mostrado na primeira parte, Francisco Xavier foi, juntamente com Simão
Rodrigues, designado para ir até Portugal, em resposta a um pedido de D. João III a Inácio de
Loyola. Simão Rodrigues ficou em terras lusitanas e Xavier foi como Núncio Apostólico para
os domínios lusitanos na Índia. De início o futuro Apóstolo do Japão já mostra que é
necessário conhecer bem o terreno em que se está pisando, especialmente porque a grande
maioria da população não professa o cristianismo. Apesar do domínio português naquela

6
Francisco Xavier nasceu em Navarra em 1506. Em 1525 foi para Paris estudar na Universidade, onde obteve o
grau de mestre em 1530. Em 1534 funda a Companhia junto com os outros seis estudantes. Em 1537 vai para a
170

região ser, à época, bastante eficiente, a religião e a cultura daqueles povos resistiam, sendo
que, no máximo, havia um sincretismo ritualista.

Era necessário se fazer presente em todos os lugares, conversar e conseguir intimidade


com todas as classes de pessoas, asseverava o missionário, para aí sim iniciar o catecismo.
René Füllöp Miller (1946), citando o relato de Barzeu, ajudante do santo, resume bem uma
das primeiras diretrizes do núncio das Índias:

(...) “Se os argentários [muito ricos] percebem que a gente é experimentada nas
cousas da vida diária, como êles mesmos, sentem admiração e confiança; de
outra maneira as advertências do sacerdote só serão ridicularizadas”.
“Esforce-se, desde o primeiro dia”, continua Xavier, “por saber que espécie de
negócios são praticados nos diferentes lugares, quais os usos e costumes
adotados na região e nos arredores(...) Informe-se também dos pecados em que o
povo vive, e de como a prédica e a confissão deverão ser postos em prática(...)
Inteire-se, depois, dos casos judiciários mais freqüentes, dos embustes, perjúrios e
corrupções(...)”
“Fale a sós com os pecadores a respeito de suas faltas; e faça-o sempre com o
semblante risonho, sem violência, em tom amigável e carinhoso. De acôrdo com a
personalidade, abrace um e humilhe-se diante de outro(...) Se quiser colhêr bons
frutos em sua própria alma e na do próximo, então trate sempre os pecadores de
maneira que êles lhe abram o coração e depositem confiança em você. Êsses são
os livros vivos, mais eloqüentes do que todos os livros mortos, e nos quais você
deverá estudar(...)”(Miller, 1946, p. 239)

A tática resumia-se, praticamente, a se tornar íntimo das pessoas para conhecê-las


melhor, adquirindo a confiança delas. Esse contato próximo revelava a alma da pessoa ao
sábio jesuíta que, naquela altura, parecia encantado com os “livros vivos”, as pessoas,
principalmente os pecadores, em detrimento dos “livros mortos”, a ciência, as letras e a
sabedoria adquirida em Paris.

No entanto, os oito anos passados nas regiões de possessão da coroa portuguesa nas
Índias, de Goa até as ilhas Molucas, não foram muito fecundos para Xavier no que concerne a
uma efetiva catequese daqueles povos. Alguns autores apontam que Xavier se decepcionou
muito com a religião dos brâmanes e, principalmente, com o ritualismo sincrético que os ditos
cristãos praticavam. Lacouture, em seu livro Os Jesuítas, afirma que Xavier nutria um
verdadeiro preconceito para com aquela cultura e religião. Nada toca à inteligência do doutor
Xavier, pois somente as virtudes da pregação à exaustão, das confissões e das celebrações
eram necessárias para civilizar aquele povo bárbaro.

Itália. Chega em Lisboa em 1541. Em 1542 chega em Goa. Parte para o Japão em 1549. Morreu em 03 de
dezembro de 1552, em Sanchoão, a caminho da China.
171

Outra decepção de Xavier como missionário na Índia teria sido a constatação de que
os capitães, fidalgos, burgueses e comandantes portugueses não tratavam os gentios da forma
que ele considerava devidamente cristã. Como já foi mostrado na primeira parte deste
trabalho, muito dos “péssimos” costumes daqueles povos, como o concubinato, tinham sido
absorvidos pelos portugueses, além do mais, pela riqueza adquirida, muitos deles viviam com
todo o conforto, fazendo de muitos gentios escravos domésticos.

Xavier considerava, segundo Lacouture, que muitas das conquistas do Rei de Portugal
nas Índias eram indignas de receberem o selo de coisas cristãs. Numa carta7, por exemplo, de
1549, endereçada ao próprio D. João III, Xavier chama a atenção do monarca:

“... A experiência me ensinou que Vossa Alteza não exerce seu poder na Índia
unicamente para ali acrescer a fé em Cristo, mas também exerce seu poder para
assenhorear-se das riquezas temporais da Índia (...) Que Vossa Majestade faça
uma conta exata e bastante completa de todos os frutos e de todos os bens
temporais que colhe nas Índias mercê de Deus (...) Que Nosso Senhor faça
compreender a Vossa Alteza, no íntimo de sua alma, sua santíssima vontade e lhe
conceda sua graça a fim de cumpri-la, de modo que Vossa Alteza se regozije
disso, na hora da morte, quando V. A. prestar contas a Deus de toda a sua vida
passada; e essa hora virá mais depressa do que Vossa Alteza pensa. Seus reinos
e possessões têm um fim (...) Será coisa inaudita e nunca antes imaginada por
Vossa Alteza ver-se deles despossuído...”. (In: Lacouture, 1994, p. 138)

Em outra carta de 1549, para o mesmo destinatário, Xavier se mostra desesperançoso


quanto ao futuro religioso das regiões da Índia nas quais a coroa portuguesa já tinha pleno
domínio. No Japão, pelas informações que ele havia reunido, o trabalho missionário seria
frutuoso:

“... Senhor, eu sei o que ocorre aqui. Não tenho pois qualquer esperança de que
as ordens e prescrições que Vossa Alteza deve enviar em favor da cristandade
sejam obedecidas na Índia. É por isso que parto para o Japão, quase fugindo,
para não perder mais tempo do que já perdi...”. (Idem, ibidem, p. 140)

No Japão, São Francisco Xavier continuou tendo a incumbência de representar o Rei


português, sendo que as despesas todas corriam ainda pela fazenda real. Lacouture, como
jornalista que é8, preferiu destacar os últimos dois anos e pouco dos doze que Xavier
permaneceu como missionário, pois neste último período ele deixou de lado o espírito das
cruzadas contra os infiéis, próprio dos primeiros anos, para o enfrentamento de uma
humanidade cuja civilização se torna impossível negar e em cuja missão o intercâmbio e a
reciprocidade se imporão. A atividade missionária de Xavier no Japão será “o início da

7
Esta carta é a mesma que foi utilizada na primeira parte.
8
Ele afirma no prefácio que a “imensidão do tema e a fragilidade de suas qualificações para abordá-lo
impedem o autor de propor uma História dos Jesuítas”, mas apenas “histórias de jesuítas” (p. 07).
172

concepção antropológica que constituirá a verdadeira glória dos jesuítas” (Idem, ibidem, p.
141).

Sendo outro o objetivo deste trabalho, não se fará uma discussão com Lacouture a
respeito da definição, defesa ou crítica que ele faz da concepção antropológica dos jesuítas.
Lacouture, ao longo de seu livro, faz uma série de críticas e uma série de elogios à postura de
inúmeros jesuítas em diferentes ramos de suas atividades; no entanto, a grande maioria das
apreensões críticas é feita por um homem do final do século XX, que parece não levar em
conta, muitas vezes, uma situação social, política e religiosa que é própria do século XVI.
Portanto, quando se cita aqui este importante historiador da Companhia de Jesus, não se está
necessariamente concordando com ele; apenas que as informações constantes do seu livro são
bastante profícuas para o trabalho.

Diante disto, pode-se afirmar que as informações que Xavier recebeu a respeito do
Japão e dos japoneses despertaram nele uma euforia que não somente tocou sua alma de
missionário, mas também, e principalmente, sua inteligência. Os japoneses seriam pessoas
racionais, que julgariam com sabedoria qual religião seria a verdadeira – se a dos bonzos, que
eram os sacerdotes do budismo e do xintoísmo, ou a dos padres cristãos; teriam uma
universidade na qual os sacerdotes eram formados, mais ou menos à moda das universidades
ocidentais; teriam um Rei que mandava no país todo, tal qual os reis ocidentais. Tais
informações, do ponto de vista do missionário que planeja sua missão, teciam um panorama
merecedor de entusiasmo.

Em carta de 1548, aos companheiros de Roma, Xavier informa dos planos que
estavam sendo feitos para a evangelização dos “japões”. Ao falar de Anjirô, o primeiro
japonês que Xavier conheceu em Malaca e que depois de conhecer e conviver com o jesuíta
se converteu ao cristianismo, ele mostra que a adaptação era fundamental para se chegar ao
bom termo as missões. Anjirô, por exemplo, “irá aprendendo melhor a língua portuguesa,
verá a Índia e os portugueses seus habitantes, assim como nossa maneira religiosa de viver”,
com o objetivo também de fazer dele um instrumento atuante na viagem ao Japão, na medida
que ao ensinar-lhe o catecismo, já “transladaremos toda a doutrina cristã para a língua
japonesa, com uma explicação dos artigos da fé”, ou seja, se traduzirá para a língua japonesa
a “história da vinda de Jesus Cristo Nosso Senhor” (In: Cardoso, 1996, p. 72).
173

Em uma longa carta, de 1552, a todos os companheiros da Europa, Xavier relata a


grande aventura evangelizadora dos dois anos e pouco em que esteve no Japão, acompanhado
de alguns padres e irmãos jesuítas. As informações que tinha antes da chegada foram, aos
poucos, se desfazendo. A religião dos bonzos era muito forte, impregnada na vida do povo,
mas pouco racional; a universidade, tal qual imaginou, não existia, pois as verdadeiras e
ocultas bases racionais da religião e da cultura daquele povo vinha da China, um império
maior, mais forte, mais rico e mais fechado que o japonês; o Rei, à maneira clássica feudal
ocidental, não tinha poder nenhum, não havendo uma corte real sólida e centralizada. Na carta
percebe-se a decepção de Xavier por não encontrar o Rei que ele queria:

Faziam-se poucos cristãos [na cidade de Amanguche]. Determinamos, visto o


pouco fruto que se fazia, de ir a uma cidade mais principal de todo Japão, a qual
por nome se chama Miaco. Estivemos no caminho dois meses; passamos muitos
perigos no caminho, por causa das muitas guerras que havia pelos lugares por
onde íamos. Não falo nos grandes frios que naquelas partes de Miaco faz e dos
muitos ladrões que há pelo caminho. Chegados a Miaco, estivemos alguns dias.
Trabalhamos por falar com el-rei para pedir licença, para em seu reino pregar a lei
de Deus. Não pudemos falar com ele. E depois que tivemos informação que não é
obedecido pelos seus, deixamos de insistir em pedir-lhe a licença para pregar em
seu reino. Olhamos se havia disposição naquelas partes para manifestar a lei de
Deus. Achamos que se esperava muita guerra e que a terra não estava em
disposição. (In: Cardoso, 1996, p. 89)

É importante ter em conta a cultura ocidental da época, particularmente no que diz


respeito à configuração do poder político nas nações. Como já apresentado, no século XVI o
absolutismo se desenvolve, especialmente com o fortalecimento do poder centralizado na
corte e a noção de que o Rei também expressava, de certa forma, uma vontade coletiva,
apontando e direcionando ações, comportamentos e vontades. Nesse sentido, a estratégia
jesuítica se pautou, desde o início e nos diferentes tipos de trabalho, numa aproximação,
sempre a mais estreita possível, com os mandatários nacionais e locais. Não é sem razão que
inúmeros jesuítas se tornaram confessores de reis e de príncipes em vários países europeus. A
expectativa de Xavier era exatamente ter a autorização do Rei japonês para evangelizar
naquelas terras, pois, ao ter o dito aval, teria com certeza o trabalho abreviado, na medida em
que muitas pessoas se teriam convertido a partir da indicação real. Daí a decepção do
Apóstolo do Japão.

Com relação a este episódio, Lacouture afirma que Xavier teve que se aproximar mais
dos japoneses – chefes locais e pessoas em geral – e buscar o diálogo, sendo que a partir daí,
sim, a necessidade da adaptação vai ser mais acentuada, acarretando o que Lacouture
conceitua como “inculturação”:
174

A expressão não ocorre aleatoriamente [recomeçar a missão a partir do zero],


como veremos. Neste sentido, a segunda etapa de Francisco Xavier em
Yamaguchi é um episódio tão fundamental na história da propagação do
cristianismo na Ásia quanto sua descoberta da grandeza da civilização budista,
dita “de Tenjiku”, por meio de suas conversas com Anjiro em Goa. Então, ele
compreendera que converter é antes de tudo descobrir e respeitar o outro. Agora,
que converter é também se converter, ou em todo o caso adaptar-se, moldar-se,
acomodar-se às formas de uma outra cultura (...). (Lacouture, 1994, p. 165)

As novidades na continuidade da missão no Japão poderiam ser resumidas em duas:


uma valorização maior do saber científico, das letras, das explicações racionais a respeito de
temas especificamente cristãos ou não, mas todos religiosos; e a mudança no próprio
comportamento exterior dos missionários, particularmente de Xavier.

Xavier chegou a conclusão de que somente as explicações dos catecismos, a conversão


pela emoção, a retidão da vida, não impressionavam os japoneses a ponto de suscitar a
conversão em massa deles ao cristianismo. As explicações científicas mais modernas
descobertas no Ocidente – as quais os jesuítas aprendiam e alguns se tornavam verdadeiros
especialistas, dada a longa e rigorosa formação deles – se tornaram um verdadeiro
instrumento de conversão, adquirindo o respeito dos seus ouvintes, principalmente quando
disputavam com os sábios bonzos. Os relatos mostram que Xavier parece ter se encantado
com essa “alternativa” muito mais próxima dele do que quando missionava pelas Índias, pois
agora não é só a alma do missionário que é tocada, mas também e, principalmente, sua
inteligência.

Na mesma carta de 1552, Xavier se mostra discretamente entusiasmado com o desejo


dos japoneses de saber coisas novas e a consideração que eles passaram a ter pelos
missionários:

“São tão curiosos e importunos em perguntar, tão desejosos de saber, que nunca
acabam de perguntar e de falar aos outros as coisas que lhes respondemos às
suas perguntas. Não sabiam eles o mundo ser redondo, nem sabiam o curso do
sol; perguntando eles por estas coisas e por outras, como dos cometas,
relâmpagos, chuva e neve e outras semelhantes, a que nós respondendo e
declarando-lhas, ficavam muitos contentes e satisfeitos, tendo-nos por homens
doutos, o que ajudou não pouco pra darem crédito a nossas palavras”. (In:
Cardoso, 1996, p. 91)

A ciência e as letras aliadas à doutrina se tornam, no entendimento de Lacouture, o


cerne do sistema jesuítico, especialmente nas missões. A adaptação dos missionários e a
conversão dos gentios através do conhecimento são facilitados, bem diferente de quando
restava apenas a palavra do missionário.
175

Mais uma vez, somos transportados imediatamente ao cerne do sistema jesuíta, e


o cândido Francisco Xavier se afirma precursor de Clávio, Ricci e Schal: se suas
palavras obtêm “crédito”, é pelos caminhos muito humanos da ciência. Não é (não
é apenas) por acreditar mais (ou melhor) que ele convence seus interlocutores,
mas porque sabe mais (ou melhor). Não é a força de seus argumentos religiosos
ou metafísicos que faz com que ele se imponha, é a aliança com uma ciência que
seus companheiros e ele próprio reconheceram, saudaram, valorizaram. É o
antigo professor de Beauvais novamente desempenhando o papel de pioneiro.
(Lacouture, 1994, p. 169)

Com esse novo, importante e eficiente instrumento de evangelização, mudam também


as características necessárias aos novos missionários. Se antes Xavier pedia que os futuros
missionários fossem homens mais virtuosos do que letrados, no Japão ele vai pedir que o
Geral e o Provincial de Portugal mandem padres que tenham o domínio das ciências9.
Lacouture, citando um trecho de uma carta de Xavier para Inácio, em 1552, mostra as novas
exigências para as missões no Oriente:

“É necessário que eles possuam um certo conhecimento para responder às


numerosas perguntas feitas pelos japoneses. Seria bom que fossem bons mestres
em artes e não seria mau se fossem dialéticos (...) Que conhecessem algumas
coisas da esfera celeste pois os japoneses têm um anseio extremo por conhecer
os movimentos do céu, os eclipses do sol, as fases crescente e minguante da lua,
a neve e o granizo bem como os trovões, os relâmpagos, os cometas e outras
coisas da natureza. (...) É muito proveitoso explicar-lhes estas coisas para ganhar
a benevolência do povo...”. (Lacouture, 1994, p. 175)

Na mesma carta – na edição organizada por Cardoso – Xavier mostra que apesar dos
progressos na missão, a terra japonesa ainda é inóspita para os estrangeiros, requerendo muito
afinco e disposição para o trabalho. As perseguições continuam, as guerras idem, os caminhos
são difíceis, enfim, não era “terra para homens idosos, por causa dos muitos trabalhos, nem
para muito jovens, se não forem de grandes experiências, porque, fora disso, em lugar de
aproveitar a outros, perdem-se a si próprios” (in: Cardoso, 1996, p. 103).

A outra novidade na vida dos missionários após a constatação da inoperância do Rei


japonês foi uma mudança no comportamento exterior. Lacouture e Miller relatam que Xavier
e os seus companheiros chegaram à conclusão de que deveriam fazer algumas adaptações na
forma de comportamento e na forma de se vestir para ganhar mais respeito dos “japões”.

9
António Lopes, no artigo Os jesuítas pioneiros relativamente a Galileu?, ao considerar o estudo da matemática
entre os jesuítas portugueses e, baseado em cartas e textos de Francisco Rodrigues principalmente, mostra que
não havia muito interesse entre eles pelo estudo das matemáticas e que aqueles poucos que se aprofundavam
nesta direção não tinham o mesmo status dos filósofos, por exemplo. Isso fez com que os superiores da
Companhia de Jesus envidassem esforços para que em Portugal se fomentasse o estudo da matemática entre os
jesuítas, para que não se “importassem” mais professores de outros países e para que se formasse quadro para
as missões, principalmente na China.
176

O comportamento mais modesto, mais humilde, foi deixado de lado por uma postura
mais altiva, arrogante mesmo. Essa mudança ocorreu devido à constatação de que a postura
de humildade exagerada era própria dos pobres e daqueles que não mereciam o respeito da
sociedade. Aqueles que se julgavam importantes teriam que ter um comportamento
adequadamente destacado e deveriam mostrar orgulho desse comportamento, pois era
revelador de quem detinha status social, seja através da riqueza, seja pelo conhecimento etc..
Nesse sentido, a nova postura adotada é para mostrar ao povo em geral que aqueles
missionários eram pessoas notáveis. Na visão de Xavier e dos outros, essa postura,
aparentemente contraditória com a virtudes evangélicas, facilitava o caminho das conversões,
que era o objetivo deles.

Outra mudança no comportamento dos missionários foi quanto à roupa que eles
usavam. Depois de constatarem que o linhão preto de suas túnicas era também próprio dos
pobres e vagabundos, concluiram de que ao querer se manter humildes no trajar, mais
dificuldades criavam eles próprios na relação com aquela sociedade. Assim, instauraram uma
polêmica na Igreja em geral e no seio da Companhia em particular: adotaram a seda como
tecido de suas túnicas. A seda era o tecido dos ricos, era o tecido coerente com o status da
pessoa na sociedade.

Ao usarem os hábitos de seda e se comportarem com altivez, os jesuítas, liderados por


seu Provincial para toda o Oriente, notaram que adquiriram mais respeito das pessoas e
conseguiram abreviar a difícil tarefa das conversões.

A polêmica em torno dos hábitos de seda foi resolvida, internamente na Companhia,


após um parecer favorável dado pelo Visitador Alexandre Valignano em 1579, depois de sua
visita ao Oriente.10

O missionário jesuíta foi aprendendo a se adaptar às diferentes circunstâncias. As


lições do mestre navarro Xavier foi aprendida e apreendida por seus continuadores. Miller
anota que após a morte do Santo o projeto iria continuar, pois “dezenas e centenas de
missionários

10
A respeito da questão da troca dos hábitos ver Lacouture, op. cit., pp. 165-166, e Miller, op. cit., pp. 150-151.
177

jesuítas alimentavam o propósito de alcançar aquilo que Xavier não pudera completar”,
sendo que cada um e todos eles estavam prontos para a difícil missão, possuindo de maneira
igual a aptidão para ser “comerciante com o comerciante, soldado com o soldado, para
tornar-se conselheiro do príncipe, amigo e confidente do escravo, para defrontar os
orgulhosos japonêses com altivez e para vencer os eruditos bonzos em debates dialéticos”
(Miller, 1946, p. 259).

Mateus Ricci 11 .

Para chegar no império chinês, Mateus Ricci e seus companheiros se aproveitaram já


de pouco mais de trinta anos de experiência das missões no Oriente, desde a morte de Xavier.
No entanto, nenhum outro jesuíta antes de Ricci se tornou o equivalente chinês de Xavier no
Japão.

Os relatos mostram que na China se encontrou realmente o que Xavier procurou ou


imaginou encontrar no Japão, antes de sua “estada” lá. Em terras chinesas, portanto, existiam
universidades de diferentes tipos que formavam os sacerdotes e sábios nas principais cidades;
existia, de fato, um poder central no qual o Rei mandava realmente – se bem que, como era
concebido com um deus, muito poucas pessoas tinham contato com ele; e as pessoas, em
geral, eram ávidas por conhecimento. No entanto, os primeiros relatos mostram que os
chineses se consideravam o centro do mundo12, os únicos civilizados, sendo que o restante era
tido por bárbaro13.

11
Mateus Ricci, ou Li Mateo, como vai também se tornar conhecido mais tarde, nasceu em Macerata, na Itália,
em 1552, ano da morte de Francisco Xavier. Entrou para a Companhia de Jesus em 1571. Em 1577 foi
destinado para as Índias Orientais, tendo estudado em Coimbra para se preparar para a missão. Foi ordenado
sacerdote em 1580. Em 1582 foi destinado para a China. Em 1594 chega a Nanquim, uma importante cidade
chinesa e é reconhecido como sábio do Ocidente. Ricci morreu na Cidade Imperial no dia 11 de maio de 1610.
No artigo Mateus Ricci: um pioneiro da inculturação, Luis Gonzáles-Quevedo anota que Mateus Ricci foi “o
primeiro estrangeiro a ser enterrado, com todas as honras, na Cidade Imperial” (p. 81).
12
A China era concebida pela cultura sino como Império do Meio, existindo, inclusive, mapas que
representavam o mundo conhecido pelos mandarins chineses, com a China no meio dele.
13
É comum encontrarmos na história exemplos de grandes reinos e povos poderosos conceberem as suas
sociedades como civilizadas e as outras como bárbaras. Como exemplo, veja-se os gregos, os romanos, e o
próprio ocidente do século XVI.
178

Nessa realidade, culturalmente mais complexa que a encontrada pelo próprio Xavier,
pois se tratava de uma sociedade mais bem organizada, inclusive na sua religião, ciência e
política, Ricci teve que aprender e praticar a adaptação de forma até mais corrente que o
Apóstolo do Japão.

Antes mesmo da chegada de Ricci em território chinês, o Visitador Valignano


“compreendeu que a evangelização na China não poderia realizar-se a partir da
ocidentalização dos costumes”, pois a “fé cristã precisava adotar as formas culturais da
população chinesa” (Gonçalez-Quevedo, 2002, p. 78). Ao que parece, a polêmica das batinas
de seda serviu de base para esta apreciação de Valignano.

Ricci não só segue à risca a recomendação do Visitador do Oriente, como tornou-se


um arauto dela. Lacouture faz uma citação de uma carta de Ricci para o Geral Cláudio
Aquaviva, encontrada no livro Matteo Ricci et le société chinoise de son temps, de Henri
Bernard-Maitre14, na qual são relatadas sinteticamente as provações de doze anos de missão e
a necessária adaptação:

“É verdade que não é próprio de nossa profissão buscar honraria (mas) nesse país
em que a religião de Nosso Senhor é ignorada e onde a fama dessa santa lei
depende de tal forma do crédito e da reputação de seus pregadores, é necessário
adequar-se externamente aos costumes e à maneira de proceder dos chineses
(...) A honra e o crédito que começamos a gozar não prejudicarão nossa alma;
durante doze anos, Nosso Senhor nos fez passar primeiramente por tantas
humilhações, degradações, afrontas, e tão grandes perseguições que foi suficiente
para começar a estabelecer bons fundamentos de virtude; por todo o tempo,
fomos tratados como rebotalho do mundo. Por isso espero que, como Nosso
Senhor nos permitiu perseverar em meio a tantos sofrimentos, nos conceda
também a graça de não nos orgulharmos em meio a tais honrarias. Tanto mais
que, devendo ainda progredir, não nos faltarão ocasiões em que muito teremos
que sofrer por Nosso Senhor ...”. (In: Lacouture, 1994, p. 281)

Afinal, apesar de na China se encontrarem muitas coisas boas e interessantes, as


religiões que são professadas pelos chineses são, do ponto de vista cristão, obviamente falsas.
Se são erradas, uma característica permanece praticamente inalterada nas missões: levar a
verdadeira religião para os chineses. Ao levar a verdadeira religião, se está levando a
verdadeira felicidade humana que é a salvação oriunda da escolha reta de seu viver. Numa
carta escrita ao colega Duarte de Sanda, Ricci faz um balanço interessante das religiões
chinesas:

14
Quase todas as citações de trechos de cartas de Ricci que Lacouture traz em seu livro e que serão utilizadas
aqui, são oriundas do livro citado de Bernard-Maitre. Quando for outra a fonte utilizada por Lacouture, ela será
citada.
179

“O povo da China (...) embora sendo aliás bastante engenhoso, dotado de altas e
extraordinárias capacidades, sempre viveu na ignorância da fé, deixando-se levar
a erros variados, seguindo diversas seitas (...).
“A primeira é a de Confúcio, filósofo notável (...) homem dos mais eminentes e
incorruptíveis (...) Sua doutrina pretende que os homens sigam a luz da natureza
como guia, que se esforcem zelosamente em adquirir as virtudes e que se
apliquem a governar de maneira ordenada suas famílias e sua comunidade. Tudo
isto, certamente, mereceria ser elogiado, se Confúcio tivesse feito menção do
Deus todo-poderoso e da vida futura (...) Apesar disso, devemos reconhecer que
nenhuma outra doutrina, entre os chineses, se aproxima tanto da verdade quanto
a sua.
“A segunda seita é a de Saca [Buda] (...) Os “Seng”, que são nossos bonzos, têm
alguma suspeita quanto à vida futura, à recompensa para os homens de bem e à
punição dos maus; contudo, todas as suas afirmações são eivadas de erros.
“Em terceiro lugar imitam um certo homem [Lao Tse] que, segundo acreditam,
deve ser adorado por sua santidade. Os padres das duas últimas seitas levam
uma vida muito baixa e servil”. (Idem, ibidem, pp. 279-280)

No caminho percorrido até se tornar um mandarim chinês, Ricci encontrou inúmeras


dificuldades, relatadas em citação supra e, também, erros de estratégia exatamente no assunto
deste capítulo, ou seja, ao tentar uma adaptação aos costumes chineses quase coloca a perder
de vez a missão cristã jesuítica.

Com o desejo de adaptar-se aos usos locais, os missionários tinham rapado a


cabeça e a barba e trocado a batina pelo hábito dos monges budistas. O resultado
foi decepcionante. Durante doze anos, os jesuítas foram desprezados. Até que um
amigo chinês lhes fez cair na conta de que o hábito budista não tinha o menor
prestígio na sociedade chinesa, pois os monges eram pessoas sem instrução e de
duvidosa fama. (Gonzalez-Quevedo, 2002, p. 79)

Depois de perceber o erro de estratégia, ao simplesmente tentar imitar os primeiros


sacerdotes chineses que encontraram, Mateus Ricci e companheiros conheceram os sacerdotes
do confucionismo, os mandarins chineses, que, estes sim, gozavam do respeito da população
em geral e, à moda dos bonzos japoneses, vestiam-se de modo a se destacar do povo e dos
outros religiosos. Os relatos mostram que os mandarins eram os verdadeiros sábios da China,
os responsáveis diretos pela construção e pelo zelo da sua civilização que tanto orgulho
proporcionava àquele povo.

Lacouture cita relato do livro de Bernard-Maitre sobre a roupa e o modo de vestir-se


que Mateus Ricci adotou para facilitar os caminhos da evangelização cristã no reino dos
mandarins:

“... uma roupa de seda vermelha escura com bordados de seda azul muito claro
no avesso, nos galões da fímbria, nos punhos e gola de pouco mais de meio
palmo de largura. As mangas são muito largas e muito abertas, mais ou menos à
maneira de Veneza. O cinto é da mesma cor vermelha, também bordado de azul,
costurado na veste e dividido em duas tiras, como usam as viúvas na Itália. Os
calçados são de seda bordada; o toucado tem uma forma extraordinária, não
muito diferente daquele dos padres espanhóis mas um pouco mais alto, pontudo
180

como a mitra dos bispos e provido de duas espécies de asas equilibradas que
caem no chão quando fazemos movimentos imoderados, é recoberto de seda
negra e se chama sutumpo. Quando sai para alguma visita, é carregado num
palanquim, acompanhado por um escrivão e dois ou três servos (...).
Usa os cabelos puxados até as orelhas, não soltos como antigamente os
franceses, mas à guisa das mulheres torcidos em coifas de filé, na ponta das quais
sai por um orifício um chumaço de cabelos, tudo coberto por um chapéu (...). No
fim de um ano, a barba chegou-lhe à cintura, o que causa grande maravilha aos
chineses que jamais têm mais de quatro, oito ou dez pêlos no queixo...”. (In:
15
Lacouture, 1994, pp. 280-281)

A partir de então, Ricci e os seus tentarão viver imersos na cultura chinesa,


modificando radicalmente as primeiras perspectivas, os primeiros métodos e as primeiras
estratégias. Na China “torna-se chinês”; depois de ser “vítima de todas as ofensas, quando
não perseguições, iria viver de agora em diante entre os detentores do poder” (Lacouture,
1994, p. 282).

Uma aproximação necessária e inevitável se faz entre as missões jesuíticas do Japão e


da China, no que se refere ao fundamento do respeito que tanto Xavier quanto Ricci
adquiriram dos japoneses e chineses, principalmente de mandatários locais, menos
importantes no Japão e mais na China: o domínio das ciências por parte dos jesuítas.

Em 1594, os jesuítas adotam a roupa dos mandarins chineses, que eram letrados.
No ano seguinte, chegam à capital do sul da China, Nanquim (Nanjing), que tinha
fama de ser “a maior e a mais bela cidade do mundo”. Foi em Nanquim que os
letrados chineses começaram a respeitar a Mateus Ricci, chamando-o de “o sábio
do Ocidente”. Um sábio humilde, capaz de dialogar com os sábios do Oriente: “Ele
fala nossa língua com elegância, escreve nossos caracteres e conhece os Quatro
Livros fundamentais do confucionismo”. (González-Quevedo, 2002, p. 79)

Em um relato do próprio Ricci, citado por Lacouture, a ciência como “porta de


entrada” para a sociedade chinesa é mostrada quando da sua visita ao palácio do Vice-rei de
Nanquim:

“Nisto, chegou o médico para a visita cotidiana: ele falou dos meus quadrantes
solares, da mnemotecnia, do prisma triangular, etc. O Vice-Rei quis ver o prisma e,
depois de contemplar os jogos irisados da luz, mandou que fosse mostrado a suas
mulheres. Ele desejou ter um quadrante solar e um astrolábio. Quis também que
eu redigisse uma nota sobre mnemotecnia visual para seus três filhos os quais as
conveniências impediam de sair do palácio. Finalmente, ele disse à guisa de
conclusão: ‘Por que, então, não permaneceis em nossa muito nobre cidade?’.” (In:
Lacouture, 1994, p. 289)

No mesmo relato, um pouco mais adiante, Ricci mostra claramente que a fama de
sábios e letrados foi obtida graças aos instrumentos e tratados científicos novos que eram
desconhecidos dos sábios e nobres chineses:
181

“granjeou a mim e à nossa Europa mais crédito do que tudo o que realizáramos
até então, pois os outros objetos nos proporcionaram a reputação de peritos na
fabricação de instrumentos e utensílios mecânicos, mas graças a esse tratado
conquistamos a fama de letrado, amigo do espírito e da virtude”. (Idem, ibidem, p.
290)

No entanto, na pátria do confucionismo16 não somente o conhecimento científico era o


cabedal do letrado, mas ele também teria de ser um moralista, ou um perito em virtudes
humanas. Havia, na China, ensina Lacouture, inúmeros cenáculos onde se realizavam disputas
e ensinamentos geralmente a respeito de assuntos relacionados às virtudes humanas. Sendo o
confucionismo mais uma atitude religiosa e social de vida do que propriamente uma religião
institucionalizada, as discussões em torno da virtude e em torno do bem viver eram
abundantes.17

Nesse aspecto, Ricci e os seus companheiros também não decepcionaram os sábios


chineses, pois se havia um assunto no qual os jesuítas eram peritos, era o da moral. Ricci,
como os jesuítas em geral, tinha uma formação sólida em moral. Nas técnicas de confissão, no
molinismo, na casuística, no probabilismo etc.,18 os jesuítas desenvolveram uma série de
reflexões e técnicas relacionados à moral e ao conhecimento do homem. Mas, apesar disso, é
inegável que o conhecimento das técnicas de fabricar instrumentos científicos era, como já
afirmado, uma porta de entrada para a sociedade letrada chinesa.

15
Novamente se estabelece uma polêmica em torno da mudança das túnicas jesuíticas. Novamente o Visitador
Valignano resolve a questão autorizando, em 1595, tal mudança.
16
“Confucionismo é principal sistema de pensamento da China. Desenvolveu-se a partir dos ensinamentos de
Confúcio e seus discípulos e tratava da prática do bem, da sabedoria empírica e das relações sociais.
Influenciou a atitude chinesa diante da existência, fixando os modelos de vida e os princípios relativos aos
valores sociais e proporcionando a base das teorias políticas e das instituições do país. Da China, estendeu-se
à Coréia, ao Japão e ao Vietnã e, nas últimas décadas, tem despertado interesse entre os eruditos do
Ocidente. Embora o confucionismo tenha chegado a ser a ideologia oficial do Estado chinês, nunca existiu
como uma religião institucionalizada, com uma igreja e um clero. Confúcio tampouco se autoproclamou uma
divindade. Seus princípios estão reunidos nos nove livros antigos chineses deixados pelo mestre e por seus
seguidores: os Wu Ching (Cinco clássicos), que já existiam antes da época de Confúcio, e os Shih Shu (Quatro
livros), coletâneas dos ditos de Confúcio e Mencio, com os comentários de seguidores. O ponto chave da ética
confuciana é o jen, virtude suprema que representa as qualidades humanas” (Enciclopédia Microsoft
Encarta).
17
É interessante como o confucionismo predispôs, de certa forma, o cristianismo na China. Para entender esse
fato, poder-se-ia voltar à Grécia antiga, mais propriamente no período da chamada filosofia no helenismo,
período em que os gregos passaram a ser dominados pelos macedônios, a partir do final do século IV a.C.. Os
grandes sistemas filosóficos, como o aristotelismo e o platonismo foram deixados de lado, sendo substituídos
por filosofias que centravam sua discussão mais numa ética individual do que na política, como por exemplo,
o estoicismo e o epicurismo. Essas filosofias acabaram, de certa forma, por predispor a religião cristã,
principalmente na sua moral, quando o helenismo chegou em Roma.
18
Acerca da questão da moral entre os jesuítas, ver a quarta parte do livro de Miller, na qual o autor faz uma
apresentação bastante interessante desse tema que, pelos recortes do presente trabalho, não será analisado aqui.
Apenas para fazer uma ligação entre a moral dos jesuítas e a ciência deles, Miller aponta que a moral jesuítica
se tornou científica graças à opção feita pelo aristotelismo – “... de fato, em tôda a teoria moral jesuítica não
182

Diferentemente do encontrado por Xavier no Japão, Ricci se deparou na China com


um verdadeiro poder centralizado com uma corte de políticos, intelectuais, assessores etc.
Conhecer o imperador da China e pedir a sua autorização para divulgar a religião cristã, foi se
tornando uma fixação para o jesuíta. Como foi referido anteriormente, uma das marcas do
jesuitismo foi se aproximar do poder centralizado de uma nação para ganhar a atenção e a
amabilidade dos reis, colocando-se a seu serviço, para conseguir abreviar o caminho das
conversões.

Numa carta de Ricci para o imperador da China19, se pode perceber tanto a


necessidade de o jesuíta conhecer o Rei pessoalmente como são apresentadas as credenciais
julgadas importantes para a sua aceitação, podendo-se perceber, claramente, que Ricci tinha
noção da necessidade de sua adaptação à cultura sino.

“Vosso servidor vindo do Ocidente dirige-se a vós com respeito para vos oferecer
alguns objetos de seu país (...) Apesar da distância, a fama me fez conhecer as
belas instituições de que a corte imperial dotou todos os seus povos. Eu desejei
participar de todas essas vantagens, e ser por toda a vida um de vossos súditos:
esperando, aliás, não ser totalmente inútil (...) Adquiri um conhecimento bastante
amplo da doutrina e dos antigos sábios da China, li e aprendi de cor algumas
partes dos livros clássicos e de outras obras, e compreendi em parte seu sentido
(...) A extrema benevolência com a qual a gloriosa dinastia convida e trata todos
os estrangeiros inspirou-me a confiança de vir diretamente ao palácio imperial.
Trago objetos que vieram comigo de meu país (...) Não são de grande valor mas,
vindo do Extremo Ocidente, parecerão raros e curiosos (...)
“Desde a infância, aspirei ao cultivo da virtude. Nunca tendo casado, estou livre de
qualquer embaraço e não espero favor algum. Ao vos oferecer imagens sagradas,
o meu desejo é que elas sirvam para pedir por vós uma vida longa, uma
prosperidade sem sombras, a proteção do Céu sobre o reino e a tranqüilidade do
povo. Suplico humildemente ao Imperador que tenha compaixão de quem veio se
colocar sinceramente sob sua lei.
“Outrora, em sua pátria, vosso servo foi promovido a um alto grau e já obteve
estipêndios e títulos. Ele conhece perfeitamente a esfera celeste, a geografia, a
geometria e o cálculo. Com a ajuda de instrumentos, observa os astros e usa o
gnomon; seus cálculos são inteiramente conformes aos dos antigos chineses. Se
o imperador não repelir um homem ignorante e incapaz, se ele me permitir exercer
meu fraco talento, meu mais vivo desejo será empregá-lo ao serviço de tão grande
príncipe. Todavia, nada ousaria prometer, considerando minha pouca capacidade.
“Vosso servo aguarda vossas ordens”. (Idem, ibidem, pp. 300-301)

A missão jesuítica em terras chinesas era “observada” com “olhos atentos” tanto pelos
companheiros de Roma, quanto pelos altos clérigos romanos e pela corte portuguesa – que,
àquela altura, já era dominada pelos Felipes espanhóis. Elogios eram feitos mas também
críticas eram desferidas ao trabalho daqueles missionários. Se haviam pessoas no seio da

há quase nenhuma concepção que não houvesse sido prefigurada na ‘Ética a Nicômaco’ do estagirita” (p.
189) – como corpo doutrinário sólido e estável.
19
Esta carta é citada por Lacouture a partir do livro de Ricci & Trigault, intitulado Histoire de l’expédition
chrétienne au royaume de la Chine, reed., Paris, Desclée de Brouwer, 1978.
183

Companhia e da Igreja que elogiavam a capacidade de adaptação dos missionários – como,


por exemplo, o Visitador Valignano – outras desconfiavam da eficácia desse método de
trabalho.

Em carta ao padre Costa, em 1599, Mateus Ricci responde às críticas que lhe foram
comunicadas à respeito do pouco número de conversões realizadas na China. Ricci é
informado que havia grande decepção em Roma pela pouca efetividade em aumentar o
número de cristãos no Oriente. A resposta do Sábio do Ocidente é merecedora de atenção na
medida em que ele, ao defender o trabalho missionário no Oriente, parece querer dar uma
lição de estratégia missionária àqueles que não conheciam de perto a realidade chinesa:

“Pensamos nisto dia e noite. É com esse propósito que estamos aqui, tendo
deixado nossa pátria e nossos amigos caríssimos, vestindo e calçando à moda
chinesa, falando, comendo, bebendo, morando à moda chinesa, mas Deus não
quis ainda que obtivéssemos grandes frutos dos nossos trabalhos. E no entanto,
acredito que o resultado de nossas obras resiste à comparação com o das outras
missões que, aparentemente, realizam maravilhas, e pode até lhes ser preferido:
pois, nesse momento, não estamos na China para colher nem para semear, mas
unicamente para desbravar a selva (...) A tática mais suspeita que se pode praticar
na China é reunir ao nosso redor um grande número de cristãos. Desde que a
China é a China, não há lembrança de que um estrangeiro tenha adquirido aqui
uma situação comparável à nossa (...) Nós residimos aqui e nossa religião é tida
em grande estima por todos, e alguns nos consideram os maiores santos que
jamais viveram na China, vindos milagrosamente das extremidades do mundo. Os
chineses não são tão desprovidos de inteligência que ninguém dentre eles
compreenda perfeitamente nossa intenção última...”. (Idem, ibidem, pp. 305-306)

Assim como ocorreu depois da morte de Xavier com a missão no Japão, na China a
missão também teve continuidade após da morte de Ricci. A adaptação inaugurada pelo
jesuíta-mandarim teve continuidade com seus sucessores. No entanto, a estratégia de
permanecer, praticamente a qualquer custo, próximo ao imperador, teve seu preço, na medida
em que os padres jesuítas se tornaram praticamente funcionários especializados das vontades
do Soberano.

Miller traz informação interessante a respeito da relação dos jesuítas com o monarca
chinês, destacando a atuação deles e a contínua adaptação a que se submetiam, inclusive na
tarefa de decoradores dos imensos palácios internos na Cidade Proibida:

Quando os jesuítas se inteiraram dessa paixão do Imperador, não se passou


muito tempo e, de repente, pareceu que a Companhia de Jesus não era mais do
que um grêmio de pintores e arquitetos, e que o cristianismo nada fôsse senão
uma doutrina esotérica de jardinagem. Como o Imperador estivesse descontente
com os parques existentes até então, como os seus ministros esquadrinhassem
tôda Pequim em busca dos melhores artistas em jardinagem, os jesuítas
alardearam, imediatamente, que não havia segrêdo dessa arte que êles não
dominassem de maneira completíssima. Quando Kien-long [o imperador, quarto
184

da dinastia Manchú], depois, procurava outra vez alguém que pudesse embelezar
os açudes e arroios, os jesuítas mandaram que se comunicasse que ninguém
melhor do que êles sabia trabalhar com essas obras hidráulicas. Eram retratistas,
quando o Imperador estava em busca de algum, e quando êle queria enfeitar as
paredes com pássaros e flores, logo se encontrava um padre que entendia
20
justamente dessas cousas e de maneira excelente. (Miller, 1946, p. 295)

Francisco Xavier e Mateus Ricci são apenas dois exemplos de missionários jesuítas
que, em suas respectivas missões, perceberam, na prática, a necessidade de mudar de
comportamento exterior objetivando abreviar o caminho das conversões. Tiveram que se
tornar conhecedores da vida, da religião e da cultura diferentes e complexas, onde deveriam
semear a sua religião e a sua cultura. Como foram dois missionários que se destacaram,
mostraram qualidades e virtudes necessárias para o enfrentamento do movediço terreno das
missões, se tornaram os mais célebres de todos dentre aqueles que missionaram no Japão e na
China no século XVI.

Outros jesuítas também se tornaram importantes graças a comportamentos parecidos


com os do Apóstolo do Japão e do Sábio do Ocidente. Miller relata, por exemplo, casos de
missionários na Índia, como Roberto Nobili, Da Costa e Calmette, que, no século XVII, se
travestiram de brâmanes ou de iogue para converter os membros das castas superiores do
hinduísmo. Esses jesuítas, continua Miller, se prepararam de tal forma, que eles se tornaram
verdadeiros sábios na religião dos pagãos, conhecedores da língua, da cultura e da religião.

20
Em seu livro, entre as páginas 270 e 300, Miller informa acerca das inúmeras, diversificadas e curiosas
atividades que os padres jesuítas tiveram que desenvolver no reino chinês no período após a morte de Ricci.
185

Antes de passar para o processo de adaptação nas missões em terras brasílicas, vejam-
se, ainda, algumas questões relacionadas à presença jesuítica no Oriente.

Na carta do jesuíta Luis de Fróis para o Geral Cláudio Acquaviva, já citada


anteriormente, aparece uma preocupação reveladora de que os jesuítas tinham convicção de
que para se fazer crescer o cristianismo no Japão, era necessário a compreensão daquela
cultura e sociedade, para não causar escândalo nas pessoas. A preocupação de Fróis fica
evidente pela sua decepção com D. Pedro Martins, o novo bispo designado para as terras
japonesas, o qual se encontrava em Macau esperando uma oportunidade propícia para ir ao
seu destino – o que ocorreu em 1596 mesmo -, pois o prelado não demonstrou vontade de
querer ouvir os seus relatos, mesmo tendo Fróis passado trinta anos de sua vida entre os
japoneses. O jesuíta escreve para o Geral no sentido de mostrar que o sucesso da
evangelização dependia do respeito e, em certo sentido, da adequação aos padrões de vida
japoneses num primeiro momento. Como o bispo não queria ouvi-lo, ele temia pelo futuro:

(...) Y tan lexos está y remoto de se aplicar a querer vir y saber algo de las cosas
de Japon y de sus oviejas que con aver yo estado 30 años en Japon que le podria
en algo dar relation de lo que le nel tanto importa saber ni una sola palavra me
habla en esto ni quasi en ninguna otra cosa. Y se Diós n.ro S.or con extraordinario
concurso de gratia le no muda el coracón y desta manera que agora proçede
llegare a Japon eximindosse totalme[n]te de la cumonication y consolo de los
n.ros, temo que aya allá notables scandalos y mui grandes perturbationes en los
christianos, porque como los japones tienen brio y grande openion de su buen
juizio, viendo que los despreçian y que se tiene dellos mala satisfaçion y flaco
concepto y mas las personas constituidas en tan eminente grado no se ade
desfacer la saña y alteration que desto se ade seguir. Plega a Dios por su eterna
bondad dar a todas estas cosas mas acomodado & expedito exitu, de lo que
amenaza el prezente modo de proçeder. Y sobre todo lo que mas nos admira es
ver que ninguna cosa le ablanda ni haze enterneçer su coraçon, el amor servicios
benignidad, respecto y acatame[n]to que cada dia mas y mas le vá mustrando el
Pe. Visitador cõ su mucha prudentia y grande charidad. (In: Baptista, 2003, p. 03)

Outro aspecto das missões no Oriente é relatado por Francisco Rodrigues (1917);
relaciona-se com a produção de vocabulários, gramáticas, histórias nacionais, catecismo etc.
em línguas nativas, objetivando abreviar os caminhos da evangelização, através do
conhecimento da cultura e da sociedade dos povos e territórios em missão, incluindo aí as
estratégias de adaptação. Eis alguns exemplos: a arte e o vocabulário da língua tamulica, de
Henrique Henriques; a arte da língua da terra, além de obras de catecismo de Francisco
Henriques; obras em talmude do catecismo cristão, de Pedro do Valle; obras de gramáticas e
obras literárias em talmude, em concani, em canarês, em sânscrito e em bengali, na Índia,
além de obras em anamítico e siamês, na Índia Oriental, escritos por vários jesuítas no
186

decorrer dos séculos XVI e XVII; também obras na língua sinica, particularmente na área de
lingüística, e também na língua japonesa21.

Finalmente, é necessário considerar que, pelos documentos e historiografia consultada,


em se tratando do enfrentamento de culturas mais complexas e política e militarmente
dominantes como a japonesa e a chinesa, se pode afirmar que a estratégia de adaptação foi
peculiar aos jesuítas, não se encontrando a mesma disposição em outras ordens religiosas que
também missionavam por aquelas regiões. Miller (1946), por exemplo, relata que os
dominicanos e os franciscanos, disputando espaços com os jesuítas, iniciaram missão na
China, mas como não foram tolerantes e não admitiam a hipótese de ter que se adaptar à
cultura chinesa, como bem fizeram os filhos de Inácio, foram perseguidos pelas autoridades
chinesas. Após isso, os mendicantes e os pregadores denunciaram a prática dos jesuítas como
sendo profanação da religião e, segundo Miller, houve uma luta que envolveu até a Coroa
portuguesa e Roma. Em meio a muita discussão, denúncias e defesas, a Companhia enviou
uma segunda vez ao Oriente o Visitador Alexandre Valiagnano que fez um relatório
absolvendo seus companheiros. Na esfera jurídica de Roma, após anos de embates, houve um
decisão igualmente favorável aos jesuítas e favorável aos chamados ritos orientais do
catolicismo.

Diante de culturas mais complexas e milenares, a tônica dos missionários jesuítas foi,
regra geral, procurar se adaptar – doutrinariamente menos e comportamentalmente mais –
objetivando o sucesso da empresa missionária. Onde o poderio português era militar e
comercialmente mais forte, os direitos de padroado possibilitavam uma imposição religiosa e
cultural mais contundente; onde, no entanto, esse poderio era bem mais restrito ou quase
inexistente, a imposição praticamente não era viável, ocorrendo aí uma maior adaptação.
“Repreender e falar a verdade” – o resumo da atividade do missionário, segundo Xavier –
nem sempre foi possível, pelo menos num primeiro momento.

21
Para um detalhamento das obras, seus autores e as línguas em que foram escritas, consultar o capítulo III do
livro II de Rodrigues (1917).
187

Os Jesuítas no Brasil

A leitura e o estudo das cartas dos padres jesuítas no Brasil confirmam a tese
apresentada supra de que a necessidade de uma maior adaptação é diretamente proporcional
ao poderio militar e político português, ou seja, em regiões onde a presença da Coroa
portuguesa é mais efetiva, a imposição cultural e religiosa é maior e a necessidade de
adaptação é menor. Esta questão fica bem clara se se fizer uma comparação entre as missões
no Extremo Oriente, principalmente na China, com as missões em terras brasileiras.

No Brasil, como nos domínios portugueses na Índia, a máxima de Xavier adquiria


concretude, pois “repreender e falar a verdade” pertencia ao rol das atividades possibilitadas
pelo domínio econômico e militar. Nas missões brasileiras os jesuítas não precisaram mudar
de aparência, tornar-se serviçais de algum Rei nativo, ou mesmo se tornar sábios em religiões
diferentes do cristianismo. Nem por isso, a imposição pura e simples foi a opção adotada para
a conversão dos gentios, pois, em alguns momentos, a realidade lhes impôs fazerem
concessões e adequações para conseguir converter ou manter os gentios convertidos.

De uma forma geral, as primeiras impressões dos jesuítas no Brasil acerca dos
aborígines da terra foram boas. Como conceitua Alcir Pécora, no artigo Cartas à Segunda
Escolástica (1999), a primeira via adotada para a conversão dos índios foi a amorosa, ou seja,
a catequização pela palavra e não pela força. Para tanto, os relatos acerca dos gentios são bem
diferentes daqueles que caracterizavam os portugueses cristãos que viviam na Colônia. Se os
segundos pecavam sendo já cristãos, demonstrando uma índole má e corrompida, os gentios
da terra erravam por desconhecimento, sendo que, por natureza, eram bons.

Nas primeiras cartas se percebe a falta que os padres sentiam de alguns aspectos entre
os gentios, os quais facilitariam o processo de conversão. O primeiro deles era a inexistência
de uma sociedade organizada que tivesse na figura do Rei o poder centralizado. Inclusive a
falta de um Rei era agravante para não dar o batismo a esmo para aqueles gentios; é o que
assevera Navarro, em carta já citada no primeiro capítulo, datada de 28 de março de 1550:

(...) Mas por duas cousas principalmente entendo que se lhes não deve
administrar o Baptismo. Uma, é não terem Rei a quem obedeçam, nem moradia
certa, mudando-se de aldêa todos os annos, e ás vezes mais frequentemente
quando succede algum d’elles embriagar-se e encolerisar-se, pois em taes
circumstancias nada menos fazem do que pegarem em um tição e tocarem fogo á
188

propria casa, donde o fogo pega nas outras por serem de palmas e d’esta arte
fica em cinzas toda a aldêa. (...) (Navarro, 1988, p. 76)

É difícil não ver a semelhança dessa reclamação com a desilusão de Xavier depois de
chegar à capital do Japão e perceber que o Rei não tinha poder algum. A figura do Rei
pressupunha uma sociedade organizada e mais estável, além do mais, a figura do Rei era
importante, como apresentado em Xavier, pois na hipótese da sua conversão, muitos poderiam
seguir o mesmo caminho, abreviando o trabalho dos missionários e aumentando a quantidade
dos novos cristãos. Na carta do irmão Pero Correia, a inexistência de um Rei acarretava a
necessidade de mais missionários, pois “si tivessem um Rei, convertido este, converter-se-iam
todos” (Navarro, 1988, p. 121).

A falta de poder centralizado unindo todas as tribos indígenas era atenuada, no esboço
da estratégia de conversão, pela existência dos chefes das tribos, ou, na linguagem da época,
dos principais dos gentios. Nesse sentido, permanecia a máxima de converter o chefe para, em
decorrência, converter toda a tribo. Na carta de Nóbrega para o doutor Navarro, de 1549, a
estratégia já está definida, ao informar que os “Principaes da terra baptisaremos em breve”
(Nóbrega, 1988, p. 93). Entretanto, a experiência mostrou a Nóbrega e aos outros jesuítas que
nem sempre a conversão do chefe representou a conversão da tribo toda, ou seja, a realidade
mostrou que a teoria nem sempre tinha aplicação prática, uma vez que ser chefe não
representava necessariamente ser líder inconteste dessa mesma tribo.

O trabalho dos missionários jesuítas consistia, basicamente, em retirar dos gentios os


maus hábitos a que se entregavam. Os costumes de comer carne humana, de ter várias
mulheres e de andar nus, aliados a uma boa predisposição em ouvir as “boas novas” do
cristianismo e se converter, gerou, num primeiro momento, uma dupla qualificação dos
índios: costume ruim e virtualidade boa. Esta perspectiva de análise, encontrada em Pécora
(1999), mostra que o trabalho dos jesuítas, na verdade, consistia na conversão dos gentios
que, num primeiro momento pelo menos, significou “conversão do índio a si mesmo, a sua
própria natureza original, adiada pelo longo hábito de seus pecados” (Pécora, 1999. p. 395).

Fazer os gentios se emendarem dos seus pecados – maus costumes – representava


convertê-los, e nisto consistiu a primeira apreensão da cultura autóctone e a ação decorrente.
Na carta a Portugal, de 1551, Nóbrega resume os primeiros sucessos da empreitada religiosa:

Em estas partes depois que cá estamos, charissimos Padres e Irmãos, se fez


muito fructo. Os Gentios, que parece que punham sua bemaventurança em matar
os contrarios e comer carne humana e ter muitas mulheres, se vão muito
189

emendando, e todo o nosso trabalho consiste em os apartar disto; porque todo o


demais é facil, pois não têm idolos, ainda que ha entre elles alguns que se fazem
santos, e lhes promettem saude, e victoria contra seus inimigos. (Nóbrega, 1988,
p. 114)

Nas cartas jesuíticas do Brasil não raro encontra-se a alusão à alma dos índios como
sendo papel em branco (Nóbrega, carta de 1551 a D. João III) ou cera branca (Ruy Pereira,
carta de 1560). Evangelizar os gentios da terra não era difícil, pois eles não tinham, de fato,
nenhuma religião estruturada ou complexa, como era o caso, por exemplo, dos hindus, dos
japoneses e dos chineses. Como a natureza do gentio é boa, apesar de seus maus costumes, a
sua alma é como uma folha em branco em que se pode escrever o que se quiser.

Num segundo momento no processo de evangelização dos gentios, após a realidade ter
mostrado a dificuldade de mantê-los convertidos, os jesuítas mudaram a estratégia de atuação,
mesmo continuando a considerar que a natureza dos índios era boa. A outra via de conversão
foi a submissão pela força. A expressão maior dessa estratégia foram as guerras aos índios
empreendidas por Mem de Sá.

O uso da coerção pela força das armas foi uma necessidade imposta objetivando
devolver aos gentios sua verdadeira natureza. Na carta de Antonio Pires, já citada no primeiro
capítulo, de 12 de setembro de 1558, por exemplo, há o enaltecimento da figura de Mem de
Sá, do qual os índios “tremem de medo”, e tal temor ajudava a erradicar os maus costumes e
facilitava a doutrinação:

(...) Este temor os faz habeis para poderem ouvir a palavra de Deus; ensinam-se
seus filhos; os innocentes que morrem são todos bautizados; seus costumes se
vão esquecendo e mudando-se em outros bons, e, procedendo desta maneira, ao
menos a gente mais nova que agora ha e delles proceder, ficará uma boa
christandade. (Navarro, 1988, p. 230)

Também em 1560, através da carta de Ruy Pereira, citada supra, se rende


agradecimentos ao governador Mem de Sá, demonstrando que os jesuítas tinham claro que o
seu trabalho era devedor do poder temporal, pois o temor da espada da autoridade abreviava a
aceitação da cruz: “finalmente, enquanto durar nesta terra o Senhor Governador, ou quem
conserve seus meios com tanto zelo como elle faz, irá a conversão vento á popa.” (Idem,
ibidem, p. 287).

Como síntese do que se mostrou até aqui, pode-se concluir que não houve
necessidade, por parte dos jesuítas, de buscar alternativas estratégicas de adaptação para
facilitar o processo de conversão, pois, quando a via amorosa não foi suficiente, a via da
190

submissão pela força foi a opção adotada, diversamente do ocorrido nas missões no Oriente.
Entretanto, mesmo nestas condições amplamente favoráveis a um domínio efetivo da cultura
aborígine, houve necessidade de se proceder a adaptação de normas que levassem em conta as
especificidades locais, bem como de incorporação de características dos próprios índios para
uso na evangelização.

Os “filhos” de Loyola presentes aqui no Brasil, observando atentamente a vida nas


tribos, as quais visitavam constantemente na Bahia, logo verificaram alguns costumes,
diferentes dos ocidentais, usados para o convencimento de alguém ou de uma platéia a
respeito de algo importante naquelas pequenas sociedades. Em carta a Mestre Simão
Rodrigues, escrita em 1552 na Bahia, Manuel da Nóbrega, então Superior do Brasil, solicita
parecer dos doutores do Colégio de Coimbra acerca do uso de alguns costumes indígenas por
parte dos padres, para facilitar a conversão dos gentios:

Item: si nos abraçarmos com alguns costumes deste Gentio, os quaes não são
contra a nossa Fé Catholica, nem são ritos dedicados a idolos, como é cantar
cantigas de Nosso Senhor em sua lingua pelo seu tom e tanger seus instrumentos
de musica, que elles em suas festas, quando matam contrarios, e quando andam
bebados, e isto para os attrahir a deixarem os outros costumes essenciaes, e,
permittindo-lhes e approvando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros, e
assim o prégar-lhes a seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo
nos peitos, como elles fazem, quando querem persuadir alguma cousa, e dizel-a
com muita efficacia, e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa
temos, a seu modo, porque a similhança é causa de amor, e outros costumes
similhantes a estes? (Nóbrega, 1988, p. 142)

Quando Nóbrega procede a uma consulta formal a respeito do uso de costumes dos
gentios, significa que ele e seus companheiros já estão utilizando-se destas vias e, questionado
sobre a coerência dessas atitudes com a religião cristã, empreende-se a consulta às autoridades
competentes. Da leitura das cartas dos jesuítas, seja no Brasil ou no Oriente, percebe-se que
os missionários encontravam-se, não raro, em condições que exigiam respostas e atitudes
rápidas e que só depois seriam objeto de consultas ou mesmo de discussões teológico-
jurídicas. A adaptação, seja mais profunda ou mais superficial, é uma necessidade constante
para quem tinha a pesada e essencial tarefa de levar a verdadeira religião àqueles que não as
tinham.

Assim, o uso de costumes indígenas se incorporou nas estratégias dos jesuítas no


Brasil, a ponto de não se discutir mais, apenas informar; é o que faz Antonio Blasquez, em
carta de 1561, da Bahia, ao padre Geral, em Roma: “o padre Gaspar Lourenço entrou (como
é costume) com voz alta na aldeia, pregando-lhes e declarando-lhes a causa de sua vinda.”
191

(Navarro, 1988, p. 326). O padre Gaspar Loureiro já incorporara o costume próprio dos chefes
da tribos quando doutrinavam seu povo em voz alta e de madrugada.

Adaptar as normas e leis positivas à realidade da Colônia também foi uma


preocupação dos jesuítas daqui. A organização dos gentios, basicamente no que se refere aos
casamentos, era por demais diferente do que determinava a Igreja através do Código do
Direito Canônico; por exemplo, os casamentos entre primos e entre tios e sobrinhas, não
encontrava amparo legal na cultura ocidental. E, como se tratava de um obstáculo ao processo
de evangelização, e, como se constatou a dificuldade em quebrar esse costume entre os índios,
os padres jesuítas pediram à autoridades competentes em Portugal e em Roma parecer sobre a
possibilidade de afrouxar as leis para facilitar seu trabalho.

Anchieta, em carta quadrimestral de 1554, relatório escrito ao Geral por encomenda do


Provincial Nóbrega, depois de apresentar os costumes dos gentios, sua organização e,
principalmente, aquilo que atrapalhava a catequese, mostra que seria necessário fazer aqui
algumas adaptações, a começar pelo direito positivo:

(...) Por isso, parece grandemente necessário que o direito positivo se afrouxe
nestas paragens, de modo que, a não ser o parentesco de irmão com irmã,
possam em todos os graus contrair casamento, o que é preciso que se faça em
outras leis da Santa Madre Igreja, ás quais, se os quizermos presentemente
obrigar, é fóra de dúvida que não quererão chegar-se ao culto da fé cristã; pois
são de tal fórma barbaros e indomitos, que, parecem aproximar-se mais á
natureza das feras do que á dos homens. (Anchieta, 1988, p. 56)

Em carta de 1556, escrita em São Vicente para o padre Visitador Inácio de Azevedo,
Nóbrega novamente fala da necessidade de se adaptar as leis positivas, dentre elas as do
Direito Canônico, para que se aceite os casamentos entre os índios de parentesco próximo:

(...) e este nos é o maior estorvo que temos não os poder pôr em estado de graça
[casar os gentios], e por isso não lhe ousamos a dar o Sacramento do Batismo,
pois é forçado a ficarem ainda servos do peccado. Será necessario haver de Sua
Santidade nisto largueza destes direitos positivos, e, si parecer ser muito duro ser
de todo o positivo, ao menos seja de toda affinidade e seja tio com sobrinha, que é
segundo grau de consanguinidade, e é cá o seu verdadeiro casamento, a
sobrinha, digo, da parte da irmã, porque a filha do irmão é entre elles como filha, e
não se casam com as taes; e, posto que tenhamos poder de dispensar no
parentesco de direito positivo com aquelles que, antes de se converterem, já eram
casados, conforme as nossas bulas, e ao direito canonico, isto não póde cá haver
lograr; porque não se casam para sempre viverem juntos, como outros Infieis, e si
disto usamos alguma hora é fazendo-os primeiro casar, in lege naturae, e depois
se baptisam. (Nóbrega, 1988, p. 148)

Como último ponto a ser destacado, relacionado com a estratégia de adaptação de


costumes e de normas entre os missionários jesuítas visando facilitar o processo de
192

evangelização dos gentios, faz-se necessário citar que também no Brasil houve a preocupação
em aprender a língua nativa bem como de produzir material para ensinar outros jesuítas,
preparando-os melhor para as missões.

O padre José de Anchieta compôs, por volta de 1560, a Gramática da Língua Tupi,
que passou a ser utilizada nos colégios do Brasil, e teve sua primeira publicação oficial da
Companhia de Jesus, em Portugal, no ano de 1595. Como já era costume na Societas Iesu, os
documentos eram aferidos pela experiência, por décadas, antes de serem impressos. O livro de
Anchieta, da mesma forma que os semelhantes produzidos nas Índias e no Extremo Oriente,
tinha o objetivo de compreender melhor a cultura nativa e, com isso, facilitar a sua
compreensão para os futuros missionários.

A adaptação realmente foi uma estratégia desenvolvida pelos missionários jesuítas em


todos os domínios portugueses em que se encontraram, pois para cumprir o objetivo final de
sua ação que era levar a verdadeira religião a todos aqueles que a desconheciam, fizeram uso
de meios julgados necessários. O que se conclui desse aspecto do trabalho deles é que quanto
mais forte a presença política e militar da Coroa portuguesa, a adaptação se fazia em menor
grau e nos lugares onde a presença portuguesa era mínima ou praticamente nominal, a
adaptação de normas, comportamentos e mesmo conteúdo cristão era mais necessária.
193

Capítulo 5
A organização interna

A Companhia de Jesus foi criada como uma ordem que queria ser, de certa forma,
diferente das muitas outras. O mundo não era para ser hostilizado, mas encarado; a fé cristã
não era para ficar encerrada dentro de muros, mas deveria ser propagandeada, levada para
todos os cantos do mundo. No entender de Romano & Tenenti, o jesuíta se

convertía no en un monje más o menos extraño, al menos teóricamente, a los


negocios de este mundo, y tampoco sólo en un sacerdote dedicado al cuidado de
los fieles, sino en un sacerdote político; un religioso, en suma, completamente
entregado a la causa pontificia y paladín de ella, tanto en el plano del dogma como
en el de la propaganda o en el de los asuntos más terrenales. (Romano & Tenenti,
1972, p. 255)

Uma das principais características da Companhia de Jesus, praticamente desde o seu


nascimento, é a forma como ela se organiza e se organizou no período de sua consolidação
enquanto jovem ordem religiosa.

A união interna

Essencialmente a organização jesuíta não divergia da forma como estavam


organizadas as outras ordens religiosas, principalmente as mais antigas, como a dos frades
mendicantes. No entanto, o fato primeiro de se colocar diretamente sob a obediência do Papa
e, por decorrência, dos monarcas cristãos que a requisitassem, e logo depois a diversidade dos
194

trabalhos empreendidos, fizeram da Companhia de Jesus um instituto religioso que encontrou


na sólida verticalização o fundamento de sua organização.

O Geral da Companhia, juntamente com os provinciais, colaterais e visitadores,


encaminhavam o direcionamento das atividades da Companhia, solidificando a sua
organização. Para isso, as inúmeras experiências novas, inúmeras atividades novas foram
sendo avaliadas constantemente até se tornarem parte da “essência” daquela ordem. Para além
das questões nacionais que muitos jesuítas assumiram22, a internacionalização era, sem
dúvida, uma marca da Companhia, na medida em que a organização era centralizada em
Roma, na casa principal, onde residia o Geral.

Nessa organização, era essencial a boa ordem interna, a união de todos os padres e
irmãos jesuítas. Numa carta de Santo Inácio, primeiro Geral, de 1556 seis meses antes de
morrer, ao padre Luis Gonçalves da Câmara, o qual foi investido na função de Colateral23
para as províncias de Portugal, Índias e Brasil, afirma a necessidade do respeito interno na
Companhia:

1. O benefício feito à Companhia, como se disse acima, redunda no bem comum.


Por isso poderia V. Revma. ajudá-la sob o aspecto material, se lhe firmassem as
fundações existentes e outras que, com o tempo, parecessem convenientes ao
divino serviço, especialmente nas Índias. Essas ajudas de custo para a existência
humana, enquanto promovem mais a obra do Senhor, parece que se deixam tratar
diretamente com SS. SS. e pessoas do poder.
2. Em todo o corpo da Companhia destes reinos se deve procurar a união e
conformidade dos membros entre si e com os da nação, e destes principalmente
os que mais importam para a cabeça de todos nós, o Padre Geral, em favor do
qual se deve procurar tenham o conceito, amor e reverência convenientes. Para
essa união parece ajudaria o trato contínuo e outros meios que V. Revma. mais
saberá usar que escrever.
3. Para a união de todo o corpo da Companhia poderá ser útil procurar se
compreendam e observem as Constituições e Regras de modo que sabe ser a
intenção de nosso Padre; procedam todos como um só espírito, isto é, “saibamos
todos o mesmo, digamos todos o mesmo” etc.. Procurem cessar, se houver,
qualquer distinção de nações e outros afetos mais humanos do que espirituais. (In:
Cardoso, 1993, pp. 125-126).

Se nos primeiros anos da existência da Companhia a organização sólida já era tida


como necessidade, tanto que Loyola praticamente não se ausentou da casa central em Roma,
em 1556, último ano do primeiro Geral, a admoestação para que cada jesuíta procurasse
manter unida a ordem era uma realidade praticamente cotidiana, pois, àquela altura, havia

22
Por exemplo, o pe. Antonio Vieira, no século XVII, aqui no Brasil.
23
Cardoso informa que o ofício de Colateral na Companhia de Jesus, pela inerente dificuldade de sua natureza,
pois acabava se chocando com a do Provincial, foi caindo em desuso com o tempo.
195

uma legião de jesuítas espalhados por várias partes do mundo e desenvolvendo atividades
diferentes daquela para a qual a ordem teria sido criada: uma cruzada religiosa pelas terras
sagradas ao cristianismo.

A preocupação com a união interna da Companhia sempre atingiu os superiores gerais,


como pode-se perceber na carta de Francisco Borja, terceiro Geral, a Inácio de Azevedo,
datada de 24 de fevereiro de 1566, na qual ao dar as instruções para o futuro Visitador da
província do Brasil, pede que ele não descuidasse da “unión de los nuestros entre si y con sus
Superiores”, pois, continua, “la uniformidad en lo que se puede y deve pedir, presupuesta la
dispusición de a tierra” (in: Leite, 1960, p. 326).

Nas Constituições da Companhia de Jesus, como não poderia deixar de ser, também
é prescrita, em muitos momentos, a necessidade que os jesuítas permanecessem unidos, aliás,
poder-se-ia afirmar que a própria elaboração das Constituições já seria resultado da
preocupação com a união interna. Na terceira parte, que trata da Conservação e progresso no
espírito e na virtude dos que nele permanecerem, há a determinação de que não se admita no
seio da Companhia posturas divergentes, mesmo que elas existam no seio da Igreja mãe,
devendo-se sempre procurar a “conformidade na Companhia”, pois, a “diversidade é a mãe
da discórdia e inimiga da união das vontades” (Constituições, 1997, p. 108, [274]).

A obediência

Um ingrediente absolutamente necessário para garantir a organicidade daquele


instituto religioso era a obediência irrestrita de todos os jesuítas aos seus superiores e,
principalmente, ao Superior geral.

Anchieta, o Apóstolo do Brasil, em carta ao irmão Antonio Ribeiro, escrita em junho


de 1587, em meio a recomendações para alguém que parecia estar muito atribulado e não
cumprindo com suas obrigações, mostra que a obediência era essencial à vida na Companhia e
que, sem ela, não se poderia nem cumprir a vontade de Deus:
196

(...) Se um dia queremos fazer nossa vontade em cousa alguma, por pequena que
seja, outro dia faz que a procuremos de a fazer em outra, e outras, até que
perdemos a obediencia que consiste em não fazermos nossa vontade, se não a
de Deus, que é interpretada pelos Superiores. (...) (Anchieta, 1988, p. 282)

Miller (1946) reserva um capítulo inteiro para apresentar o que considera um dos
segredos do poder dos jesuítas: a obediência como base de sustentação da organização
jesuítica. Ele afirma que eram três os tipos de obediência a que os jesuítas estavam sujeitos: a
obediência do ato, que se restringia a cumprir as ordens simplesmente; a obediência da
vontade, não apenas cumprir a ordem dada, mas cumpri-la como se fosse vontade própria;
obediência da inteligência, onde ocorre a imolação, o aniquilamento da vontade e inteligência
próprias para que se consiga a sintonia perfeita. A última forma de obediência é mais
importante, pois é a busca de um pensamento único, de um desejo único, de uma única forma
de agir. É a utopia no reino de qualquer organização.

O cumprimento das ordens, a vontade de cumpri-las e o conhecimento da necessidade


que elas sejam de fato cumpridas, podem gerar um conflito com a própria defesa que os
jesuítas fazem, por exemplo, da doutrina do livre arbítrio. Apressadamente se poderia
questionar os jesuítas de defenderem a liberdade humana para os outros e a aniquilarem para
os internos dela. Miller observa que a contradição é apenas aparente, pois “somente quem
possuir uma vontade livre, poderá abrir mão dela por sua própria iniciativa, a fim de pô-la
ao serviço de uma idéia elevada” (Miller, 1946, p. 39). O devido entendimento de que tal
ordem é um bem em si requer, necessariamente, a compreensão racional, motivadora da
vontade, para não só se resignar a cumprir tal ordem como fazer da obediência uma virtude
organizacional da Companhia.

Nesse sentido, a obediência na Companhia de Jesus é diferente da obediência nas


outras ordens religiosas, pois, na apreensão de Miller, os jesuítas não praticam a obediência
para ficarem trancados num convento longe do mundo. Para eles a obediência

(...) tem em mira, agora, a atividade exterior, ação una e consciente em prol do
seu objetivo; ela desempenha, nessas condições, um papel semelhante ao que
lhe cabe no serviço militar: os membros dessa Ordem, que se espalharam pelo
mundo afora, a fim de pregar e lutar nos países mais remotos, deveriam
permanecer ligados uns aos outros e à administração central da Ordem por uma
disciplina de ferro (Miller, 1946, p. 42).

É a obediência perinde ac cadaver (do mesmo modo como um cadáver), bem como o
lema ad majorem Dei gloriam (para a maior glória de Deus) eram duas máximas marcantes da
Companhia, que sempre deveriam acompanhar aqueles padres onde eles estivessem. Estes são
197

os lemas, opina Miller, de uma ordem religiosa orgânica, tal qual um exército com grande
força combativa.

Obedecer entre os jesuítas, entretanto, não era o mesmo que obedecer entre militares,
assevera José Sebastião da Silva Dias (1960). A obediência é a mortificação da vontade
própria e individual para que o bem maior aconteça na figura das ordenações dos superiores.
É, segundo Dias, uma característica ascética própria de um rigoroso e tradicional
monaquismo, meio religiosamente adequado para manter a unidade interna da Companhia.

Num instituto ordenado à acção, a obediência e a plenitude do espírito têm uma


função primordial. Ora a obediência inaciana não se inspira em paradigmas
militaristas, como tantas vezes se tem dito, mas sim num princípio ascético,
tradicional no monaquismo, a eficácia da obediência como meio de perfeição
pessoal, e num princípio orgânico, íamos a dizer místico, que é a preservação da
unidade da Companhia e a adequação desta à finalidade apostólica de que tira a
razão de ser. (...) O duplo fundamento espiritual da obediência supõe uma
mortificação, tão completa quanto possível, das paixões, pois sem a perfeita
abnegação do espírito, cuja raiz é a abnegação exacta da vontade, será difícil ver
em cada momento do superior, não o homem, mas o representante de Deus, e
estar disponível para obedecer sem ira, nem reserva, nem ressentimento, como
tantas vezes o inculcou o Santo Patriarca [Inácio] aos de Portugal. (...). (Dias,
1960, p. 648)

A Companhia de Jesus produziu a obediência e a disciplina de ferro por um lado e, por


outro, incentivou a liberdade individual dos futuros padres, liberdade necessária para o
desenvolvimento dos trabalhos no mundo e não fora dele. Miller destaca que a aliança entre
esses dois aspectos, aparentemente antagônicos, é o segredo do poder daquele instituto
religioso. Ambas as características eram garantidas pela longa e sólida formação moral e
intelectual do futuro jesuíta. A Sociedade de Jesus, afirma Miller, como já anotado no capítulo
terceiro, “soube, desde o início, utilizar de maneira proveitosíssima as qualidades pessoais
dos seus membros, e, justamente, nessa aliagem de disciplina e individualismo reside tôda a
originalidade da corporação criada por Inácio” (Miller, 1946, p. 46).

As formulações de Miller e de Dias levam em conta o contido nas cartas jesuíticas e


nos documentos oficiais da Companhia, especialmente nas Constituições. De fato, o livro de
regras da organização jesuítica prescreve, em muitos momentos, a obediência como algo
fundamental à existência da Companhia. Antes mesmo de adentrar na primeira de dez partes
em que estão divididas as normas, quando o assunto é O Primeiro Exame Geral, quer seja, as
normas relacionadas a tudo o que diz respeito ao ingresso das pessoas na Companhia de Jesus,
se prescreve que o futuro jesuíta deve passar por seis experiências novas, através do exercício
de atividades humildes, e numa delas, que diz respeito ao serviço de ajudante na cozinha, a
198

obediência ao chefe, no caso o cozinheiro, deve ser igual à obediência ao Superior da casa,
pois se “bem entendemos as coisas não é a eles nem por eles que se obedece, mas só a Deus e
só por Deus Criador e Senhor” (Constituições, 1997, p. 57, [84]).

Na sexta parte das Constituições, sobre O que devem observar com respeito a si
mesmos os que foram incorporados, no capítulo que trata exatamente da obediência como um
dos três votos que todos os membros de ordens religiosas fazem, aparece a determinação, que
Miller destacou, de se obedecer tal qual um cadáver:

Persuada-se cada um que os que vivem em obediência devem deixar-se guiar e


dirigir pela divina Providência, por meio do Superior como se fossem um cadáver
que se deixa levar seja para onde for, e tratar à vontade; ou como um bordão de
um velho que serve a quem o tem à mão, em qualquer parte, e para qualquer
coisa em que o quiser usar. Assim o obediente deve fazer com alegria tudo aquilo
em que o Superior o quiser ocupar para ajudar todo o corpo da Ordem. E pode
estar certo de que nisso se conforma com a vontade divina, mais do que em
qualquer outra coisa que poderia fazer, se seguisse a sua própria vontade e juízo
diferente. (Constituições, 1997, p. 174, [547])

Como Miller destaca, a obediência entre os jesuítas é mais do que a simples ordenação
e respeito por uma hierarquia previamente definida, pois, como se trata de um instituto
religioso que nasce e se desenvolve sob os auspícios da reforma católica, a obediência se dá,
na verdade, ao plano e vontade divinos. Em última instância, obedecer o superior era obedecer
ao próprio Deus; e se deixar levar, como um cajado, pelas mãos dos superiores, equivale a se
deixar levar por Deus.

Na oitava parte das Constituições - O que diz respeito à união, entre si e com a
cabeça, dos que foram assim distribuídos – fica claro que a obediência é a base da
organização jesuítica, pois ela assegura sua verticalidade:

A mesma virtude da obediência está ligada a subordinação bem guardada dos


Superiores, uns com relação aos outros, e dos súditos com relação aos
Superiores. Assim, os que vivem numa casa ou colégio recorram ao Superior local
ou Reitor, e deixem-se em tudo dirigir por ele; e os que vivem dispersos pela
Província recorram ao Provincial, ou a algum Superior mais próximo, conforme as
ordens recebidas. E todos os Superiores locais ou Reitores estejam em
comunicação estreita com o Provincial, e deixem-se guiar em tudo por ele.
Procedam da mesma forma os Provinciais com relação ao Geral. Assim, guardada
esta subordinação, manter-se-á a união que por ela em primeiro lugar se realiza,
com a graça de Deus Nosso Senhor. (Idem, ibidem, p. 208, [662])

A estrutura jesuítica, verticalmente organizada, era conforme a todas as organizações


religiosas, políticas ou sociais à época, principalmente a Igreja Romana. É impensável a
estrutura da Companhia de Jesus de forma diferenciada desta, pois mesmo se se pensar que a
199

relação entre algumas províncias não era de igualdade, como apresentado na primeira parte
deste trabalho, o princípio da hierarquia permanece.

A organização daquela corporação expressava a organização social e política própria


do absolutismo que estava nascendo e se fortalecendo. A corte centralizada em torno do Rei
fortalecido também caracterizava o estado romano da Igreja. O absolutismo foi uma forma
política que expressou o capitalismo em sua fase mercantil e, como tal, se fortaleceu com o
tempo, tendo como expressão mais acabada a corte do Roi Soleil Luis XIV (1643-1715). O
século XVI viu se desenvolver e se fortalecer essa forma política da sociedade. Assim, a
organização solidamente centralizada como a dos jesuítas, expressava a acomodação política
geral e, ao se colocar sob às ordens diretas do Papa, participava de uma forma de governo
absolutista que era a Igreja, além de se colocar sob as ordens diretas dos soberanos nos reinos
cristãos.

Entretanto, é possível supor, como afirmou Miller, que a sólida organização, baseada
numa radical obediência, é uma das características que fez da Companhia de Jesus uma das
ordens religiosas mais atuantes, sólidas e extensas nos séculos XVI, XVII e XVIII, pelo
menos. Na sexta parte das Constituições se encontra a definição das três formas de
obediência e da melhor e mais desejável delas:

C. Há obediência de execução, quando se cumpre a ordem dada; obediência de


vontade, quando aquele que obedece quer a mesma coisa que aquele que
manda; obediência de entendimento, quando sente como ele, e acha estar bem
mandado aquilo que se manda. A obediência é imperfeita quando há execução,
mas não há conformidade de querer e sentir entre quem manda e quem obedece.
(Idem, ibidem, pp. 174-175 [550])

No prefácio de Ribadaneira, encontra-se uma explicação a respeito dessas três formas


de se obedecer, demonstrando que o assunto era muito caro à Companhia, sendo necessário
reafirmá-lo sempre. A obediência de entendimento ou obediência da inteligência é o objetivo
final da Companhia com relação a esse assunto, pois se for atingido, a sua organicidade estará
assegurada.
200

(...) Com efeito, não só a nossa ação deverá corresponder ao que foi mandado, e
a nossa vontade ao que foi querido pelo Superior, mas também, o que é mais
difícil, a nossa própria inteligência deverá conformar-se com o seu pensamento no
que diz respeito à obediência. (Idem, ibidem, p. 17)

A obediência como norma de vida de todos os jesuítas era geral e atingia praticamente
todas as esferas da vida. Ela está presente na pedagogia jesuítica, de forma vasta através do
Ratio Studiorum; está presente na relação de subordinação nas casas e colégios; está presente
nas visitações oficiais e suas deliberações; está presente até na determinação para a contínua
correspondência interna. Na carta escrita da Bahia em 1565, para o Provincial de Portugal, o
padre Antonio Blasquez mostra a necessidade da correspondência, mesmo que aparentemente
não se tenha novidades a contar, pois “a obediência assim o ordena e o contentamento dos
Padres” (Navarro, 1988, p. 460), ao ler as cartas, o justificam.

No mesmo ano de 1565, o padre Pedro da Costa escreve, do Espírito Santo, aos irmãos
de Portugal, sobre a missão naquelas terras, deixando claro que a obediência foi a motivação
para escrevê-la:

A obediencia me encarregou deste cuidado de lhes dar conta do que o Senhor ha


obrado nesta capitania do Espirito Santo, por haver Deus tirado delle pera os
descansos de sua gloria ao padre Diogo Jacome, que o tinha. (...) (Navarro, 1988,
p. 482)

Na última parte das Constituições - O que no plano universal diz respeito à


conservação e desenvolvimento do bom estado de todo o corpo desta Companhia – quando
algumas determinações importantes são retomadas e ratificadas, aparecem juntos a
correspondência e a obediência como meios fundamentais de se manter a união interna da
Companhia:

O que ajuda para a união dos membros desta Companhia, entre si e com a
cabeça, ajudará também muito para a manter em seu bom estado. Em especial o
vínculo das vontades, ou seja, da caridade e do amor mútuo. Para isto concorrerá
que todos comuniquem freqüentemente uns com os outros, e recebam notícias
uns dos outros, professem a mesma doutrina, e guardem, tanto quanto possível, a
uniformidade em tudo. Todavia, o fator mais forte de união, será o vínculo da
obediência a unir os súditos com os Superiores, e os Superiores locais entre si e
com o Provincial, e uns e outros com o Geral, de forma que seja cuidadosamente
respeitada a subordinação de uns com relação aos outros. (Constituições, 1997, p.
250, [821])

Um aspecto importante a se destacar ainda com relação à obediência como atitude


essencial para a organização da Companhia, é entendê-la como uma instituição humana
idealizada e organizada religiosamente por homens. Quando algo insistentemente é objeto de
qualquer tipo de legislação pode sinalizar exatamente que aquele algo ou não está sendo
201

cumprido, ou está havendo muitas dificuldades em seu comprimento, ou ainda, é tão


necessário que é referido mais de uma vez. Pode-se afirmar que no caso da obediência como
norma legal da Companhia, as três alternativas estavam presentes, e pode-se supor, portanto,
que não se tratava de um conceito que imediatamente era entendido e praticado por todos.
Como em qualquer organização que se propõe verticalmente ordenada, a obediência deve ser
regra e não exceção e, por isso mesmo, obedecer é algo que se aprende e desobedecer é algo a
ser castigado.

A Companhia de Jesus, como se vem insistindo ao longo do trabalho, não nasceu


pronta, pois as características que fizeram dela uma instituição tão presente em todo o mundo
foram sendo incorporadas com o tempo, através de opções tomadas e de oportunidades
aproveitadas. No caso da obediência, percebeu-se com o tempo, que a Companhia só
conseguiria manter sua organicidade de ordem nacional e universal ao mesmo tempo, se todos
objetivassem obedecer a hierarquia e os comandos em perfeita sintonia, através da educação
da inteligência. A experiência ocorrida em Portugal, da dissonância de métodos entre Simão
Rodrigues e Loyola, com certeza serviu de exemplo para que se prescrevesse como norma
constitucional da Companhia, a obediência perinde ac cadaver.

O outro aspecto igualmente presente nas Constituições e outros documentos e cartas


da Companhia é a correspondência jesuítica, a qual também teve a tarefa de ajudar na
organicidade da Societas Iesu.

O epistolário

A união interna da Companhia e a obediência como regra a ser cumprida encontraram


no vasto epistolário jesuítico um instrumento devidamente eficaz.

Para se ter idéia da importância da correspondência interna na Companhia, apresenta-


se a seguir uma carta de Inácio a Pedro Fabro – também fundador da Ordem -, de 1542, na
qual se faz uma série de apontamentos a respeito de como e o que o padre jesuíta deveria
202

escrever24. Apesar de ser uma longa citação, fez-se a opção por transcrevê-la integralmente
para mostrar como até detalhes – ad majorem Dei gloriam – eram importantes. Na carta é
possível verificar, com extrema clareza, que Inácio prezava muito a organização da
Sociedade, mostrando a necessidade da obediência e da disciplina.

Eu me lembro de ter falado aqui muitas vezes aos presentes, e outras vezes de ter
escrito aos ausentes, que cada membro da Companhia, quando quisesse escrever
para cá, escrevesse uma carta principal, a que se pudesse mostrar a qualquer
pessoa. Mas não ousamos mostrar a muitos que nos são afeiçoados e desejam ler
nossas cartas, porque elas não têm nem guardam ordem alguma. Falam nelas de
assuntos que não vêm ao caso. Sabendo esses amigos que temos cartas de um
ou de outro, passamos vergonha e damos mais desedificação do que edificação.
Mesmo nesses dias me sucedeu ser necessário mostrar umas cartas de sujeitos
da Companhia a dois Cardeais que deviam cuidar do assunto das próprias cartas
e, por elas virem escritas com fatos alheios dispostos sem ordem, não as pude
mostrar e me vi em apuros para declará-las em parte e em parte as encobrir.
Portanto, agora de novo repetirei o já recomendado, para nos entendermos todos
e em tudo. Assim, por amor e reverência de Deus N. S., peço que em nossa
correspondência procedamos para o maior serviço de sua divina bondade e maior
proveito do próximo. Escreva-se na carta principal o que cada um faz em sermões,
25
confissões, Exercícios e outras obras espirituais conforme Deus N. S. o executa
através de cada um, quanto possa servir para maior edificação dos ouvintes ou
leitores.
Se a terra fosse estéril e não houvesse assunto para carta, declare-se em poucas
palavras sua saúde corporal, alguma conversa com alguém ou fatos semelhantes.
Mas não se misture matéria que não vem ao caso. Deixem-na para folhas
separadas, nas quais podem vir as datas das cartas recebidas e o gozo espiritual
e sentimentos experimentados ao lê-las; enfermidades, notícias, negócios,
podendo até alargar-se em palavras de exortação.
Neste ponto, para ajudar-me a não errar, direi o que faço e espero fazer ao diante,
no Senhor, ao escrever aos membros da Companhia. A carta principal, eu a
escrevo uma vez, narrando fatos edificantes. Depois, olhando e corrigindo e ainda
considerando todos os leitores dela, torno a escrever, atendendo melhor ao que se
declara. Porque a escrita fica e dá testemunho, sem se poder corrigir e explicar
facilmente como quando se fala.
Com tudo isso, penso ainda faltar muito e temo faltar mais adiante. Deixo para
folhas separadas as outras particularidades impróprias da carta principal e não
aptas para edificação. Nessas folhas pode alguém escrever às pressas, da
abundância do coração, ordenada ou desordenadamente. Mas na principal não se
admite a falta de cuidado particular e edificação que não permita mostrar-se e
edificar os leitores.
Neste ponto vejo faltas em todos e por isto escrevo esta carta e mando em cópias,
pedindo instantemente, no Senhor nosso, que ao escrever a carta principal, como
se disse acima, a torneis a olhar, e escrevais de novo ou a façais escrever. Assim,
escrevendo-a duas vezes, como eu o faço, me persuado que vossas cartas virão
mais ordenadas e claras. Se eu vir que não fazeis assim, daqui em diante, para
maior união, caridade e edificação de todos e para Deus não pedir contas de
minha negligência em assunto tão importante, serei forçado a escrever-vos e
ordenar-vos em obediência que olheis cada carta principal, torneis a escreve-la ou
a façais escrever depois de corrigida. Com isso e com o cumprimento do meu
24
Cardoso (1993) informa que a carta foi escrita quando Pedro Fabro se encontrava na Alemanha, na corte do
Imperador Carlos V a pedido do Papa Paulo III. Informa também que os conselhos contidos na carta foram
copiados e mandados a todas as casas jesuíticas.
25
Trata-se dos Exercícios Espirituais, redigidos por Inácio de Loyola já em 1522, bem antes da fundação da
própria Companhia de Jesus. Os Exercícios eram - e penso que ainda são - uma espécie de “porta de entrada”
para o espírito jesuítico, pois todos os noviços, irmãos e padres deveriam e devem fazê-los.
203

dever, ficarei contente, embora muito mais desejo que não me deis motivo para
assim escrever.
Portanto, eu vos exorto, como estou obrigado, para a maior glória de Deus, e vos
rogo somente por seu amor e reverência, que em vossa correspondência vos
emendeis, prezando-vos disso e desejando edificar vossos irmãos e outros
próximos com vossas cartas. O tempo gasto nisso, ponde-o na minha conta, pois
será bem gasto no senhor.
Eu me esforço para escrever duas vezes uma carta principal para que leve alguma
ordem, além de muitas outras de assunto particular. Até esta, eu a escrevi duas
vezes por minha própria mão: quanto mais o que deve fazer cada um da
Companhia. Porque vós deveis escrever a um só, e eu devo escrevera todos.
Posso dizer com verdade que nesta noite contamos as cartas que mandamos a
todas as partes e somaram duzentas e cinqüenta. E se alguns estão ocupados na
Companhia, quero crer que, se não estou muito, não estou menos do que
26
ninguém, e com menos saúde corporal .
Até agora, neste ponto, não podendo louvar ninguém, embora diga isto não para
pôr culpa a ninguém, mas para avisar a todos. Se as cópias que vos envio sobre
notícias de outros vos pareceram ordenadas e não supérfluas, isso é devido a
muita, muita perda de tempo para separar os fatos edificantes, em pôr e pospor as
mesmas expressões cortando e omitindo o que não vem ao caso, para dar a todos
prazer, no Senhor nosso, e edificação dos que a ouvirem de novo.
Portanto, torno a pedir-vos por amor e reverência de sua divina Majestade que,
com a boa vontade e inteira inteligência, trabalheis neste ponto que importa não
pouco ao proveito espiritual e consolação das almas. Podeis escrever de quinze
em quinze dias uma carta principal, revista e emendada, que equivale ao trabalho
de duas cartas, deixando para folhas separadas e alargando como quiserdes o
assunto destinado para quem somente tender a escrever.
Eu, com a ajuda de Deus N. S., vos escreverei a todos uma vez a cada mês sem
falta, embora brevemente; e de três em três meses mais longamente, enviando-
vos todas as notícias e cópias de todos os da Companhia. Assim, por amor de
Deus N. S., nos ajudemos todos e me favoreçais em levar e aliviar, de algum
27
modo, tanta carga como me pusestes às costas e a outras que ainda não faltam,
de obras pias e ganhos espirituais. Se eu valesse por dez ou estivéssemos todos
juntos em Roma, ainda nos sobraria o que fazer. Se vos falhar a memória, como a
mim sucede muitas vezes, ponde esta diante dos olhos ou um sinal em lugar
equivalente, quando escreverdes cartas principais.
De Roma, 10 de dezembro de 1542. (In: Cardoso, 1993, pp. 28-33)

As recomendações de Inácio praticamente “falam” por si. Em um mundo vasto, com


enormes distâncias que demoravam meses e até anos para serem percorridas; em um mundo
que estava mudando, que estava se “arredondando” e que exigia dos padres da Companhia
atitudes, muitas vezes, inusitadas, e comportamentos inimagináveis até então; um mundo cuja
complexidade fez com que a Companhia diversificasse as suas atividades, os seus trabalhos;
enfim, num contexto bastante favorável à dispersão, o Geral da Companhia tratou de
fortalecer, com uma riqueza de detalhes que impressiona, um instrumento que contribuía, e
muito, para a manutenção e organicidade da rígida hierarquia. Afinal, “a escrita fica e dá
testemunho, sem se poder corrigir e explicar facilmente como quando se fala”, fazendo, desse
modo, com que os próprios jesuítas tomassem cuidado e se esmerassem, todos, no
estabelecimento de uma verdadeira rede competente de comunicação.

26
Cardoso informa que naquela época Inácio sofria de freqüentes dores de estômago.
204

Numa outra carta, agora de 1553, para Manuel da Nóbrega, quando da nomeação dele
como primeiro Provincial do Brasil, Inácio de Loyola lembra que depois que o Brasil passou a
ser província independente da de Portugal, as cartas deveriam ser destinadas diretamente para
o Geral, em Roma, não necessitando mais passar pelo Provincial português. E, como agora se
tratava de um ligação mais direta do Superior brasileiro com o Geral, são apresentados,
inclusive, quais assuntos que deveriam ser, preferencialmente, tratados nas futuras cartas:

Nas cartas que se podem mostrar a outros, informar-se-á em quantos lugares há


residência da Companhia, quantas pessoas em cada casa e em que se ocupam,
tudo em vista da edificação. Igualmente, como andam vestidos, qual é o seu
comer e beber, em que camas dormem e o que gasta cada um deles. Também,
quanto à região onde moram, qual o clima e graus geográficos, quais os vizinhos,
como andam vestidos, que comem, como são suas casas e quantas, segundo se
diz, e que costumes têm; quantos cristãos pode haver, quantos gentios ou
mouros. (In: Cardoso, 1993, p. 89)

Interessante que os assuntos das cartas não se restringem somente às especificidades


da vida dos padres em seus labores, mas também são relatos da vida, da cultura, da religião,
da geografia, do clima das regiões onde se encontravam, principalmente os territórios novos e
desconhecidos como o Oriente e o Brasil. Os relatos são pormenorizados, pois deveriam
permitir que todos os membros da Companhia e todos os que mais interessavam a ela
conhecessem o mais fiel possível a realidade que era enfrentada por eles.

No seu trabalho de primeiro Superior dos jesuítas em terras de missão, Francisco


Xavier também recomenda, sempre que necessário, que a correspondência seja corrente e o
que deve ou não se deve informar. Na instrução de fevereiro de 1548, aos companheiros da
Costa da Pescaria e de Travancore, por exemplo, Xavier (1987) recomenda que, ao
escreverem cartas, contem especialmente os bons frutos do trabalho, para que elas sirvam
como instrumentos de incentivo para futuros missionários e de edificação para todos. Já nas
instruções de 15 de fevereiro de 1549, ao mestre Paulo que estava em Goa substituindo, de
certa forma, ao próprio Xavier, pede que não relate “coisas que mostrem falta de amor ou
coisas que possam servir de ocasião para ser tentado” (Xavier, 1987, p. 294)28.

Mas é em outra correspondência xaveriana que se encontra uma metaepístola29, no


sentido de se instruir a forma, conteúdo e distribuição das cartas. Trata-se da quarta instrução

27
Segundo Cardoso, essa é uma alusão à eleição de Loyola como Geral da Companhia, ocorrida em 1541.
28
“choses qui montrent un manque d’amour ou des choses qui puissent donner une occasion d’être tenté”.
29
Metaepístola é um termo que se encontra em Pécora (1999), utilizado para referir-se às cartas de Loyola que
foram escritas para se analisar e se ensinar como deveriam ser escritas e que conteúdo teriam as cartas em
205

(de cinco ao todo) ao padre Gaspar Barzeu, escrita entre 06 e 14 de abril de 1552, quando
esteve em Goa pela última vez e se preparava para ir para a China:

Escrevais a todos os lugares onde há padres da Companhia que tenham em seus


encargos o próximo ou que estejam trabalhando em seus afazeres: dizeis a eles
que façam particular atenção em escrever a cada ano ao nosso bem-amado Padre
Inácio para que ele saiba qual fruto Deus faz por intermédio deles nestas terras
onde vivem. Que eles tenham em conta de jamais escrever coisas que possam ser
desedificantes àqueles que lerão as cartas e que não escrevam nada além do
fruto que se produz ou que se espera produzir.
Igualmente que, um por um, todos aqueles que estão dispersos e estão em seus
encargos escrevam uma carta geral endereçada aos padres da Europa, para lhes
fazer saber o fruto que eles produzem nos países onde se encontram. Que as
cartas sejam bem redigidas e que não se encontrem nelas coisas que possam
escandalizar, que não se diga mal de quem quer que seja. As cartas devem ser
endereçadas: “Para os Padres e Irmãos da Companhia que vivem em Roma e na
Europa”.
Quanto a vós, escrevais ao reitor de Coimbra para lhe dizer do fruto que Deus
produz aqui por meio daqueles que vivem nesta casa, bem detalhada, e que seja
muito edificante. E preste atenção no que escrever, pois esta carta vai ser lida e
30
julgada por muitos. (Xavier, 1987, p. 445)

(...) Ainda uma vez mais eu vos lembro; vigiais para ser muito prudente em vossa
maneira de escrever, pois as vossas cartas vão ser lidas e julgadas por muitos. (p.
31
452)

A correspondência jesuítica foi, desde o começo, um meio eficaz de estabelecer uma


rede de comunicação necessária à organicidade da Companhia, a ponto de fazer parte de suas
normas constitucionais. Na parte oitava das Constituições há a prescrição detalhada a respeito
do epistolário jesuítico. A citação é longa mas necessária, para verificar como o assunto foi
tratado com esmero por Loyola e por aqueles que ratificaram as regras da Companhia:

Concorrerá também de maneira muito especial para esta união a correspondência


epistolar entre súditos e Superiores (L), com o intercâmbio freqüente de
informações entre uns e outros, e o conhecimento das notícias (M) e
comunicações vindas das diversas partes (N). Este encargo pertence aos
Superiores e aos Provinciais. Estes providenciarão para que em cada lugar se

Geral na Companhia. A carta transcrita acima na totalidade, de Loyola para Fabro, é o exemplo perfeito de
metaepístola.
30
“Vouz écrirez à tous les endroits où il y a des Frères de la Compagnie ayant la charge d’autrui ou étant en
train du fruit: vous leur direz de mettre un soin particulier à écrire chaque année à notre bienheureux Père
Ignace pour qu’il sache quel fruit Dieu fait par eux dans ces contrées où ils vivent. Qu’ils prennent bien garde
de ne jamais écrire des choses dont pourraient être désédifiés ceux que verront ces lettres et qu’ils n’écrivent
rien d’autre que le fruit qu’on produit ou qu’on espère produire. / Egalement, qu’un par un tous ceux qui sont
dispersés et ont la charge d’autrui écrivent une autre lettre générale adressée à tous les Pères vivant en
Europe, pour leur faire savoir quel fruit ils produisent dans les pays où ils se trouvent. Que ces lettres soient
bien redigées et que n’y figurent point de choses scandaleuses, qu’on n’y dise pas du mal de qui que ce soit.
Les adresses des lettres qu’ils écriront diront: ‘Pour les Pères et les Frères de Coïmbre et pour les autres
Pères de la Compagnie vivant à Rome et en Europe’. / Quant à vous, vous écrirez au recteur de Coïmbre pour
lui dire le fruit que Dieu produit ici par ceux que vivent dans cette maison, très en détail, et que ce soit très
edifiant. Et faite bien attention à ce que vous écrivez, car cette lettre va être vue et jugée par beaucoup”.
31
“... Encore une fois, je vous le rapelle, veillez à être très prudent dans votre façon d’ecrire, parce que vos
lettres vont être vues et jugées par beaucoup”.
206

possa saber o que se faz nas outras partes, para consolação e edificação mútuas
em Nosso Senhor.
L. Os Superiores locais e os Reitores que residem na Província, assim como os
enviados a produzir fruto no campo do Senhor, devem escrever cada semana ao
seu Superior Provincial, se tiverem possibilidade. O Provincial e os outros
Superiores devem igualmente escrever todas as semanas ao Geral, se ele estiver
perto. Se, residindo no estrangeiro, não houver facilidade de comunicação, tanto
os enviados a ministérios apostólicos como os Superiores locais e Reitores, assim
como os Provinciais, escreverão ao Provincial uma vez por mês. Por seu lado, o
Geral terá cuidado de que se escreva habitualmente uma vez ao mês, pelo
menos, aos Provinciais, e estes aos Superiores locais, aos Reitores, e em caso de
necessidade, aos particulares. Enfim, uns e outros hão de fazê-lo mesmo mais
vezes consoante as circunstâncias o exigirem em Nosso Senhor.
M. Para que as notícias da Companhia possam comunicar-se a todos, proceder-
se-á da seguinte maneira: os que em diversas casas ou colégios dependem do
Provincial escreverão todos os quatro meses uma carta em língua vernácula, que
contenha só notícias de edificação, e outra em latim do mesmo teor. Enviarão uma
e outra em duplicado ao Provincial. Este mandará ao Geral um dos exemplares
em latim e outro em vernáculo, ajuntando uma carta sua a contar os fatos
importantes ou edificantes omitidos nas primeiras. Do mesmo exemplar tirará
tantas cópias quantas forem necessárias para dar conhecimento delas aos outros
membros da Província.
No caso de se perder muito tempo em enviar estas cartas ao Provincial, poderão
os Superiores locais e os Reitores despachar as suas cartas em latim e língua
vernácula diretamente ao Geral, mandando ao Provincial uma cópia delas.
Também o provincial poderá, quando lhe parecer bem, encarregar alguns
Superiores locais de informar os membros da própria província enviando-lhes
cópias das cartas a ele dirigidas.
Mas para que as notícias de uma província cheguem ao conhecimento das outras,
procurará o geral que, das cartas recebidas, se tirem exemplares bastantes para
fornecer a todos os outros Provinciais. Estes por sua vez mandarão tirar cópias
para os da sua Província.
Quando houver intercâmbio freqüente entre duas Províncias, como entre Portugal
e Castela, entre Sicilia e Nápoles, o Provincial de uma poderá mandar ao da outra
um exemplar da que enviou ao Geral.
N. Para melhor informação de todos, cada casa e cada colégio enviarão todos os
quatro meses ao Provincial uma breve lista, em duplicado, de todos os que vivem
na casa, e dos que morreram, ou dos que por qualquer motivo estão ausentes,
desde a última lista enviada até o presente, com breve menção das qualidades de
cada um. O Provincial, por sua vez, enviará todos os quatro meses ao Geral uma
cópia das listas de cada casa e de cada colégio. Assim será possível ter maior
conhecimento das pessoas, e dirigir melhor todo o corpo da Companhia para a
glória de Deus Nosso Senhor”. (Constituições, 1997, pp. 211-212 [673, 674, 675 e
32
676] )

As cartas tinham um valor estimulante, consolador dos trabalhos, principalmente dos


missionários, além do valor de agregar as pessoas. As cartas edificantes eram distribuídas
pelas casas e colégios e lidas como verdadeiras fontes de inspiração, consolação e estímulo
dos ouvintes. Na terceira parte das Constituições, que trata da conservação dos que estão em
provação, por exemplo, há a recomendação que durante a alimentação, para a refeição do
espírito, se lesse algum livro, partes da Sagrada Escritura, alguém fizesse algum sermão, ou, o

32
Apenas como referência da mudança que o tempo provoca nas constituições em geral, nas Normas
Complementares das Constituições da Companhia de Jesus, todos esses parágrafos sobre a
correspondência são reduzidos para apenas dois pequenos parágrafos. As Normas Complementares, que
atualizaram as regras de 1556, foram aprovadas pela Congregação Geral XXXIV, em 1995.
207

que interessa aqui, que fossem lidas cartas edificantes, que eram geralmente aquelas escritas
pelos missionários.

A carta de Antonio Blasquez, da Bahia em 1564, escrita para o Provincial de Portugal,


é um exemplo de como a correspondência era redistribuída pelas províncias para que todos
soubessem o que todos faziam; é exemplo também do efeito edificador das mesmas em seus
ouvintes:

(...)Consolou-nos tambem o Espirito Santo em sua casa e em sua mesma vespera


com as cartas que recebemos aquella noite de Portugal; porque, segundo minha
estimativa, seriam duas horas depois da meia noite quando por casa entrou quem
as trazia, não sabiam [sic] os Irmãos de contentamento e prazer, vendo o muito
que o Senhor se dignava de obrar em suas creaturas, por intermedio dos da
Companhia, em tantas e tão diversas partes do mundo. Dahi até de manhã não
havia quem pudesse dormir, porque logo o Padre Provincial começou a ler as
cartas e o que restou depois de ler-se algumas e gastou-se e empregou-se todo
em ouvir-se confissões de gente de fóra, para que pudesse melhor ganhar o
jubileu. (Navarro, 1988, pp. 436-437)

Serafim Leite mostra que as cartas não demoravam a ser redistribuídas e usa como
exemplo as primeiras cartas que Nóbrega escreveu no Brasil em 1549. Depois de lidas em
Portugal no fim do mesmo ano já se encontravam em Roma, no generalado, e logo elas
estavam nas casas e colégios da Europa. De lá as cartas iam para Goa e chegavam ao “confins
do mundo oriental, que os navios portugueses acabavam de pôr em contacto directo com
Lisboa e o Ocidente” (Leite, 1956, p. 53 da Introdução). A única dúvida que se pode apor à
informação de Leite é se as cartas antes de irem para Goa passavam realmente por Roma. No
entanto, passando antes ou depois pelo Geral, as cartas acabavam rodando o mundo.

Um outro dado interessante a respeito do epistolário jesuítico apresentado por Leite


diz respeito à repercussão e publicidade que aquelas cartas adquiriam. Lembre-se que a
literatura correspondente às terras desconhecidas dos europeus era consumida avidamente por
um grande público; veja-se, por exemplo, os relatos trágico-marítimos. Tal literatura ia ao
encontro da cultura religiosa católica reformada na medida em que eram relatos da expansão
do cristianismo; e tal leitura ia ao encontro também do espírito de aventura, da curiosidade e
da imaginação das pessoas, ávidas por informações sobre, por exemplo, as riquezas
encontradas. No que tange às cartas jesuíticas, o sucesso editorial era praticamente garantido:

O efeito e estima geral destas cartas di-lo Luís Frois, e o contentamento que
experimentavam não apenas os da Companhia, mas também o “povo”. O mesmo,
e mais talvez na Europa, onde as Cartas “del’India di Portogallo” entravam nas
casas da gente culta como novela ou jornal. Elas informavam sobre as novas
terras, seus usos e costumes e mais particularidades, e orientavam ou, como se
dizia, edificavam e influiam até em vocações como a de S. Luís Gonzaga. Tal
208

procura e repercussão explica a publicidade que tiveram, na verdade


extraordinária no terceiro quartel do século XVI. Quando Nóbrega faleceu em 1570
a sua “Informação das Terras do Brasil” tinha nada menos que seis edições,
traduzida em espanhol, italiano e latim. E em 1586 também se imprimiu em
alemão. (Leite, 1956, p. 60 da Introdução, com grifos no original)

A expansão da Companhia de Jesus acarretou também mudanças no conteúdo e


principalmente na forma das cartas, para facilitar sua movimentação e sua leitura em seus
diferentes níveis. Na segunda Congregação Geral, que se reuniu principalmente para eleger o
terceiro Geral, Francisco de Borja, o assunto da correspondência foi objeto de mudanças,
assim resumidas por Leite:

O constante aumento da Companhia de Jesus na Europa e no Ultramar impôs a


necessidade de disciplinar a redacção das cartas, de elaborar catálogos
sistemáticos, e de proceder à conservação dos documentos autênticos sobre bens
materiais. Estudou-se o assunto e deram-se as seguintes normas:
Cartas. O Padre Geral distingue entre cartas de governo ou negócios internos e
cartas de edificação ou de notícias. Quanto às primeiras, com seu âmbito certo,
nada havia que inovar. Mas das de notícias deveriam fazer-se oito cópias para se
enviarem a outras Províncias da Europa e das Missões ultramarinas. O nímio
[excessivo] trabalho de tantas cópias, que Roma não podia assumir e Portugal
a
também não, ocasionou um debate entre Lisboa e Roma. A 2. Congregação geral
(1565) examinou o ponto das cartas de notícias ou edificação e, pelo Decreto 37
(post electionem), determinou que para o futuro em vez de “Quadrimestres” se
escrevessem “Ânuas”. Já obedece a esta norma a “Carta Anua” de 16 de Janeiro
de 1568, do P. Amaro Gonçalves. (Leite, 1960, pp.51-52 da Introdução)

As cartas ânuas se tornaram muito importantes para a Companhia, pois eram relatórios
mais extensos do que as quadrimestrais, encerrando, às vezes, verdadeiros tratados. António
Baptista relata, por exemplo, que Luis de Fróis havia se queixado de que sua História da
Japão teria que ser reduzida de três para um volume, por recomendação do Visitador
Valignano. O interessante nesta queixa é a informação contida na carta de 1593 ao Geral, de
que “todavía para se inbiar a Roma y ser vista por todo el mundo, que era necessario
abreviarla y resumirla en hun conpendio más breve, de manera que todo lo essencial della se
comprehendesse en hun volume poco maior que una annua de las que vienen impresas de
Roma” (Baptista, 2003, p. 01).

O tamanho e a quantidade das cartas que teriam que ser reproduzidas para serem
distribuídas pelos quatro cantos do mundo, acarretavam, não raro, queixas por parte de alguns
padres, pois, o serviço era deveras trabalhoso e exaustivo, além de requerer recurso humano
para este fim. Em carta escrita em 30 de julho de 1566 para Borja, por exemplo, o Provincial
português Leão Henriques faz um desabafo das dificuldades que encontra para mandar
missionários tanto para o Brasil como para as Índias, e, em meio às queixas, mostra que entre
as ocupações que demandavam tempo estava a cópia das cartas, “pues copiarlas aquí es cosa
209

que parece impossible por la muchedumbre de copias que se scriven” (in: Leite, 1960, p.
353); sendo que somente para as Índias, devido às inúmeras intempéries, se faziam quatro
cópias das cartas.

Outro padre jesuíta que igualmente reclama da quantidade de cartas que se tem de
copiar é Luis Fróis, consoante a informação de Baptista. As queixas de Fróis revelam por um
lado a quantidade de trabalho e de outro a seriedade com que a Companhia tratava a
correspondência interna.

(...) Em seguida, refere o historiador [Luís Fróis] que, após trinta anos de ausência,
regressara a Macau na companhia do Pe. Visitador [Alexandre Valignano], para o
ajudar na correspondência para a Índia e para a Europa. (Recordemos que o
padre Valignano trouxera do Japão para Macau mais de um milhar de cartas para
escrever. Escrever, ou melhor, para ditar, quem as escrevia era o padre Fróis). Por
isso, Luís Fróis diante desta tarefa ciclópica, queixar-se-á de modo especial do
clima, dos ares e da alimentação. (...) Apesar disso, confessa que continuava a
escrever 7 y 8 oras por dia, aquilo que o Pe. Visitador lhe ditava. (Baptista, 2003,
p. 01, com grifo no original)

A forma como o epistolário jesuíta foi tratado em documentos e nas próprias cartas,
revela a existência de uma verdadeira rede de comunicação, ao mesmo tempo vertical e
horizontal, e é resultado da intencionalidade de Inácio de Loiola. Nesta perspectiva, Londoño
concebe que o sistema de informações estava ligado ao sistema de decisões e que tal relação
era nitidamente de inspiração inaciana:

Acredito que este sistema de informações atuava como um suporte para um


sistema de decisões nitidamente inaciano: hierárquico e vertical. Informar a partir
da base nas cartas periódicas. Reunir registros e intercambiar opiniões à procura
de uma decisão. Comunicar por escrito a decisão a partir do governo geral. Acatar
e executar a decisão nas instâncias. Embora fosse possível representar, em várias
ocasiões, a obediência, particularmente o entendimento desta se deveria impor.
Tal sistema de informações permitiu pelo menos a procura de alguma
uniformidade das políticas numa infinidade de ações às vezes discordantes. (...)
(Londoño, 2002, p. 15)

A outra característica trabalhada por Londoño aponta a rede de comunicação jesuítica,


pelo menos nos primeiros tempos, como resultado também da necessidade de se estabelecer
um verdadeiro método missionário que objetivasse a redução dos infiéis e gentios à
cristandade católica:

No caso das missões, na cópia e envio de cartas com diversos destinos, foi
construído e definido o projeto jesuítico missionário numa troca de informações
que se realizava no eixo Roma, Lisboa, Índia, Brasil. Tal projeto foi examinado
aqui a partir da procura de um método para levar a boa nova entre infiéis. Nessa
procura por um método no tempo de Loyola, Laynes e Borja, teria havido um
recurso contínuo à matriz inaciana no seu entendimento do bem universal e da
210

redução espiritual e o reordenamento de fins e meios, que se materializou na


produção de instruções missionárias que terminaram definindo os rumos da
atuação da Companhia fora da Europa. (Idem, ibidem, p. 30)

Pécora, analisando as cartas de um ponto de vista mais formal, da estrutura delas33,


observa que a “presença ostensiva da carta no corpo da Companhia” possibilita pensá-la ao
menos em três aspectos importantes: o da informação, o da reunião de todos em um só corpo
e, enfim, o mais importante, o da experiência mística ou devocional de atualizar a experiência
divina no sentido particular e coletivo ao mesmo tempo. Nesse sentido, afirma Pécora, as
epístolas “cumprem aqui a função de atualizar a missão apostólica e a palavra de Deus, e
tanto melhor o fazem quando mais escritor e leitor numa mesma febre de fé, que os irmana
em tremendas experiências devocionais.” (Pécora, 1999, p. 382).

A vasta correspondência entre os jesuítas não se restringia, enfim, a informações, a


troca de novidades, ou mesmo a simples relatos de subordinados para os chefes. A
correspondência encerrava, em muitas ocasiões, verdadeiros tratados culturais, religiosos ou,
para usar um termo mais atual, etnográficos34. Não se discutirá aqui se as apreensões culturais
dos jesuítas correspondiam ou não à verdade, pois primeiramente o único “olhar” que eles
tinham era o eurocêntrico, ou seja, o da cultura cristã-ocidental e nenhum outro; segundo,
porque em história, a verdade parece ser sempre relativa. O que importa destacar é que todo o
terreno no qual eram desenvolvidos os trabalhos daqueles padres deveria ser descrito, da
forma mais detalhada e circunstanciada possível.

O contínuo incentivo à troca regular de cartas, a indicação do conteúdo das cartas


formais e das informais, a quantidade das cartas, a recomendação legal da continuidade da
correspondência, fazem, sem dúvida alguma, do epistolário jesuíta uma das principais
características da organização deles. A carta é a liga, material e espiritual ao mesmo tempo, da

33
Pécora analisa mais detidamente somente as cartas de Nóbrega, no período de 1549 a 1560 – período coberto
pela edição da Edusp/Itatiaia –, aplicando a divisão das partes segundo o modelo histórico da ars dictaminis:
salutatio (expressão de cortesia, manifestação de um sentimento amistoso em relação ao destinatário,
independente do nível social), captatio benevolentiae (uma certa ordenação de palavras para influir com
eficácia na mente do receptor), narratio (o informe da matéria em discussão), petitio (o discurso pelo qual
tratamos de pedir algo) e conclusio (a parte em que se resumem as vantagens e desvantagens dos temas
tratados, para que fiquem impresso na memória do destinatário). Nesta divisão a parte do narratio é a parte
mais importante pois, em linhas gerais é a descrição de tudo o que envolve a missão e como estão atuando
nesse contexto para transforma-lo: “... Nesse sentido, a narração é sobretudo uma descrição ou composição de
um quadro temático em que os acontecimentos selecionados atuam no conjunto como exemplos de situações
repetidas, que referem menos ocorrências verdadeiramente únicas do que cenas exemplares, típicas, capazes
de evidenciar determinada prática ou costume longamente estabelecido” (p. 390).
34
É interessante atentar para a importância das cartas na história da humanidade, pelo menos até o início do
século XX. Muitos autores deixaram em cartas preciosos tratados teóricos, pois se tratava, praticamente, do
211

organização, pois não apenas incentiva a sistematização das ações, mas também obriga a que
se pense, cotidianamente, em toda a corporação.

As bases de organização das missões

Outra característica relevante da organização da Companhia de Jesus diz respeito, uma


vez mais, às missões. Com o desenvolvimento dos trabalhos em terras com culturas diferentes
– culturas pecaminosas, segundo a concepção ocidental cristã da época – alguns preparativos
começaram a se tornar importantes para contribuir com o êxito da missão. Trata-se do preparo
material e intelectual que os jesuítas foram julgando necessários.

Livros escritos que relatavam a história de um povo; dicionários que objetivavam


tornar línguas desconhecidas ao alcance do Ocidente; livros ocidentais traduzidos para uma
determinada língua; preparação intelectual e material dos futuros missionários; edificação de
escolas com o objetivo de ocidentalizar os neófitos vindos de outras culturas; a edificação de
tipografias para facilitar a divulgação dos livros; eis algumas tarefas praticamente obrigatórias
em terras de missões, objetivando facilitar o empreendimento evangelizador.

A necessidade desse tipo de organização foi sentida com o decorrer do tempo,


obviamente. Nunca houve, pelos relatos estudados, uma preparação anterior, entre os jesuítas,
que previsse uma série de tarefas necessárias à organização das missões. A Companhia nasceu
com o objetivo primeiro de se tornar um pequeno exército para uma nova cruzada de
conversão dos infiéis e retomada de Jerusalém aos cristãos. Praticamente todas as atividades
desenvolvidas após a frustrada ida para as terras muçulmanas, foram novas, requerendo um
processo rápido de adaptação. No entanto, é preciso ter claro que todos os tipos de trabalhos
de que os jesuítas passaram a se ocupar eram realizados também por outras ordens religiosas
mais antigas, ou seja, não era novidade nenhuma que uma ordem religiosa destacasse seus
padres, por exemplo, para missionarem em terras de gentios e infiéis. A novidade talvez seja a

único meio de comunicação à distância entre as pessoas. Apenas como exemplos, como são preciosas, do
ponto de vista teórico, as cartas de Platão, de Descartes, de Marx...
212

rápida adaptação e a rápida organicidade que a Companhia foi imprimindo em seus trabalhos,
principalmente o das missões.

Quando as missões já haviam produzido seus primeiros frutos, a sua organização


passou a contar com o que poderia se chamar de base material de operações. Os livros, os
dicionários, as tipografias e as escolas compunham essa base material, cuja organização se
mostrou muito eficaz.

O caso da tipografia é bastante ilustrativo, pois através dela se poderia produzir


diversos materiais baratos para a propaganda da fé cristã. Miller mostra que a tipografia no
Japão foi levada já no século XVI e cumpriu, pelo relato a seguir, uma importante função:

Os círculos educados do país foram conquistados por meio do saber múltiplo dos
missionários. Os jesuítas edificaram escolas, mantiveram cursos de dialética e
fizeram vir da Europa uma tipografia, a qual, agora, editava livros japonêses:
gramáticas, dicionários, obras literárias, tratados teológicos, as fábulas de Esopo
em tradução japonêsa e também extratos dos livros clássicos chineses,
especialmente as obras de Confúcio. Impressos em muitos mil exemplares, êsses
livros baratos espalharam-se por todo o Japão. (Miller, 1946, p. 267)

A tipografia foi introduzida mais cedo nas regiões além-mar do que em Portugal, é o
que informa Rodrigues, justificando o fato pela necessidade de ela ser mais urgente naquelas
terras. A tipografia de Goa foi estabelecida em 1556, em Rachol, em 1616, na China e no
Japão, em 1590. Rodrigues conclui que foi “a imprensa nas mãos dos Jesuitas arma benefica
e poderosa, com que diffundiram as luzes da civilização, da fé e da sciencia” (Rodrigues,
1917, p. 514).

Os jesuítas levaram tipografias para praticamente todas as províncias. É importante


analisar que as tipografias, pelo material que era produzido não somente levava a doutrina
religiosa cristã, mas também e, principalmente, a cultura ocidental para as terras em missão.
Era a cultura de corte portuguesa – e, portanto, ocidental – que era levada junto com a
mensagem religiosa.

Outro aspecto dessa organização para as missões está relacionado à preparação


intelectual dos futuros missionários. Como este assunto já foi, de certa maneira, tratado na
segunda parte, aqui se fará apenas uma síntese.

A experiência dos primeiros missionários serviu de base para que os continuadores das
missões fossem mais bem preparados, como, por exemplo, a necessidade de padres
especialistas em ciências matemáticas e físicas, como foi o caso da missão na corte imperial
213

chinesa. As cartas e as visitações forneciam o material suficiente para que os colégios


preparassem os seus futuros padres com o cabedal intelectual específico necessário para o
aperfeiçoamento dos trabalhos.

Os colégios de Coimbra e Macau eram os centros formadores dos missionários para as


Índias e para o Oriente. Especificamente em Macau, padres vindos da Europa ensinavam e
aprendiam com os neófitos índios e orientais, os costumes, a religião e a cultura ocidental e os
correspondentes das novas terras.

Os colégios jesuíticos se tornaram, com o tempo, uma das principais expressões de


organização da Companhia. O número de colégios entregues à Companhia ou construídos por
ela, teve um aumento significativo já no século XVI35. Não se pode, a rigor, falar de
organização jesuítica sem entrar no assunto dos colégios; no entanto, como o capítulo
seguinte vai tratar da educação como instrumento da racionalidade jesuítica, pela economia
interna deste trabalho, optou-se por priorizar os colégios como meio de propagação da cultura
de corte ocidental cristã, mais do que privilegiar a sua organização. Os colégios jesuíticos,
centros fundamentais da organização interna, como centros promovedores e propagadores da
cultura correspondente e, como centros formadores do espírito jesuítico, serão apresentados e
analisados, portanto, no próximo capítulo.

Nas Constituições também se encontram prescrições acerca de como deveriam ser


preparados os futuros missionários, devendo-se levar em conta, inclusive, as chamadas
aptidões naturais de cada um.

A sétima parte – O que se deve observar para com o próximo na distribuição dos
operários e no seu emprego na vinha de Cristo Nosso Senhor – apresenta, de forma extensa,
as missões a que estão sujeitos todos os professos. Como a designação para as missões era
atributo dos superiores, existem recomendações detalhadas sobre a escolha do lugar para onde
se enviam os jesuítas, sobre a escolha dos fins das missões, a escolha do tipo de pessoas que
deverão ser enviadas de acordo com o tipo de missão e público-alvo a ser atingido, sobre as
diversas modalidades das missões e, também sobre a duração das missões. É interessante, por
exemplo, que de acordo com as exigências da missão e das pessoas com quem se relacionará,

35
Francisco Rodrigues, em a Companhia de Jesus em Portugal e nas missões, (no capítulo IV) informa que na
província de Portugal os jesuítas tiveram, de 1542 até 1599, 15 colégios; na província de Goa, no mesmo
período foram 05; na província de Malabar, de 1560 até o final do século XVI, foram 05 também; na província
do Japão, de 1580 a 1594, foram 02 colégios; e na província do Brasil, de 1556 a 1576 foram 03 colégios. E
isso sem contar os seminários e a universidade de Évora.
214

o jesuíta escolhido deve ter as qualidades e virtudes que mais se encaixam: os mais
experientes onde há mais perigos espirituais, os notáveis e discretos para tratar com aqueles
que têm encargos de governo; os mais dotados de inteligência para homens igualmente
inteligentes e instruídos, dentre outras recomendações.

Na organização das missões, o aprendizado da língua aborígine se tornou uma


necessidade para todas as ordens religiosas, como já apresentado supra. Não só os jesuítas,
mas outros institutos religiosos se preocuparam também em aprender a língua nativa das
missões. No entanto, pelas informações de Boxer, em A Igreja e a Expansão Ibérica (1978),
e de outros relatos, os jesuítas foram mestres nesse assunto e se destacaram nas missões. Os
jesuítas, por isso, receberam inúmeras críticas, informa ainda Boxer, das outras ordens
religiosas, principalmente das mendicantes, as quais viam seu poder de séculos diminuir com
o crescimento da “concorrente”. No entanto, o próprio autor em tela, muito crítico dos jesuítas
como instrumentos do eurocentrismo, é da opinião de que “pelos 50 anos de estudo de
documentos” (Boxer, 1978, p. 96), os jesuítas foram superiores aos padres das outras ordens,
tanto na prática missionária como na formação de seus padres.

As missões se revestiram, entre os jesuítas, de cuidados e de preparativos intensos e


sólidos para enfrentar, com mais experiência e mais instrumentos materiais e espirituais,
terras e povos às mais das vezes hostis e perigosos. Uma verdadeira organização foi criada,
mantida e aperfeiçoada para dar conta da atividade religiosa que, talvez, fosse aquela que
mais fazia brilhar os olhos do fundador e primeiro Geral da Companhia de Jesus.

O espírito missionário dos jesuítas e a organização correspondente que potencializava


esse espírito são enaltecidos por Boxer, o qual, mesmo procurando manter o espírito crítico
que perpassa quase todo o livro, afirma que a “mera sobrevivência destas minorias cristãs [no
Japão, China, Índia etc, de hoje] através das vicissitudes de mais de três séculos é um tributo
ao trabalho dos dedicados missionários da Igreja em tempos passados” (Boxer, 1978, p.
141). Não concordamos (ou discordamos) neste ponto; o que se quer mostrar, até pela ótica de
um autor que é crítico do chamado eurocentrismo jesuítico, é que as missões foram um dos
grandes empreendimentos – talvez o maior – dos jesuítas do no século XVI, o qual só foi
possível pelo investimento que a própria Companhia fez na organização delas com o
financiamento da Coroa portuguesa.
215

O esforço da contínua união interna da Companhia, a obediência como uma liga


interna, o epistolário como um instrumento de comunicação eficaz e contínuo, os preparativos
materiais e espirituais das missões são elementos da organização jesuítica que foram sendo
construídas com o tempo e possibilitaram, de fato, uma organicidade sólida e eficaz.

Antes de terminar este capítulo apresentam-se mais dois aspectos da organização da


Companhia, os quais, outrossim, possibilitam a compreensão da sólida organização da
Socetatis Iesu.

O primeiro é o destaque que deve ser dado para a existência dos irmãos coadjutores.
Eles não eram padres e não tinham a mesma preparação intelectual rigorosa e escolástica, pois
não teriam a tarefa de dizer missa, nem de dar os sacramentos, não exercendo, também,
cargos superiores nem em casas nem em colégios. A eles cabia a sorte de Marta36, ou seja,
responsabilizar-se para que as coisas materiais estivessem em ordem para que as espirituais se
fizessem sem demora e obstáculos.

A. Tais são de ordinário, nas casas grandes, as funções do cozinheiro, do


dispenseiro, do comprador, do porteiro, do enfermeiro, do lavadeiro, do hortelão,
do encarregado das esmolas (nas casas que vivem delas); e alguns outros mais
se poderiam acrescentar. Mas, segundo o maior ou menor número de membros de
uma casa ou colégio, e conforme as ocupações forem mais ou menos
absorventes, haverá ou não a necessidade de encarregar pessoas que desses
trabalhos se ocupem inteiramente. Deixe-se isto à discrição daquele que tem o
encargo dos outros. Que se lembre apenas o fim que justifica a admissão de tais
pessoas à Companhia, isto é, a necessidade que os que trabalham na vinha do
Senhor, ou os que estudam para nela trabalhar depois, sejam aliviados, a fim de
se darem a atividades de seu maior serviço. (Constituições, 1997, pp. 77-78, [149])

Os irmãos coadjutores pertenciam à família jesuítica, e suas tarefas eram tidas como
fundamentais para que o trabalho sacerdotal, missionário e evangelizador se fizesse. Os
irmãos liberavam os professos dos trabalhos manuais. É claro que isto em condições mais ou
menos ideais, já que em alguns casos, mais específicos das terras de além-mar nos primeiros
anos das missões, os padres acabavam fazendo o serviço manual37.

O outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à estrutura hierarquizada da Companhia


de Jesus, especificamente quanto à concepção de como deveria ser o generalato, ou seja,

36
Alusão à passagem do Novo Testamento da Bíblia em que Cristo visita a casa de Lázaro, seu amigo, e
enquanto Maria lavava os pés de Cristo secando-os com seus cabelos, a outra irmã de Lázaro, Marta, cuidava
da casa, sendo que Cristo defendeu as duas atitudes como dignas de servir a Deus.
37
Em carta escrita de Pernambuco em 1551, para os irmãos de Portugal, o padre Antonio Pires informa que,
devido às circunstâncias, ele teve que aprender vários ofícios: “Nesta terra, pela falta que há de officiaes, a
necessidade nos faz aprender todos os officios; porque de mim vos digo que pelos officios que nesta terra
tenho aprendido poderia já viver” (Navarro, 1988, p. 110).
216

quanto à sua forma de governo. Nas Costituições, na nona parte, que trata de O que diz
respeito à cabeça e ao governo que dela desce até o corpo, há a definição e a justificativa da
forma de governo vitalício como a mais adequada àquele instituto religioso:

A. Além das razões mencionadas nesta Constituição [evitando perder tempo em


assembléias gerais, por exemplo], outras há ainda para que o Geral seja vitalício.
A primeira é que os pensamentos e as ocasiões de ambição, que são a peste de
tais cargos, ficarão assim mais longe do que se tivesse de haver eleições
periodicamente.
Outra, que é mais fácil achar-se uma pessoa com aptidões para este ofício do que
muitas.
Temos enfim o exemplo da prática corrente nos governos mais importantes, que
são exercidos vitaliciamente, tanto eclesiásticos – o Papa e os bispos – como
seculares – os príncipes e senhores. Mais adiante, no capítulo IV, falaremos dos
remédios para certos inconvenientes que poderiam resultar de tal cargo ser
exercido por toda a vida. (Idem, ibidem, pp. 227-228)

Na estrutura altamente hierarquizada da Companhia de Jesus, espelhada nos modelos


religiosos e civis da sociedade quinhentista, não havia espaço para eventuais apelos
democráticos, até porque, em última instância, o poder temporal, mesmo entre os jesuítas, era
a emanação do poder divino e como este último não poderia nunca ser colocado em dúvida, as
decisões do Geral deveriam ser obedecidas perinde ac cadaver.

A forma como a Companhia se organizou, principalmente pela diversidade de


atividades que ela assumiu com o passar do tempo, expressa, sem dúvida alguma, a
necessidade de levar, a qualquer custo e para qualquer pessoa e em qualquer lugar, a
mensagem cristã como algo essencialmente verdadeiro e que todos os homens deveriam
conhecer. Para que os homens se salvem é necessário que conheçam a verdadeira religião, a
única capaz de libertá-los da ignorância e dos erros. Esta é a condição sine qua non para que
os homens exerçam sua liberdade de escolher, aí sim, livremente, o seu destino. O exercício
do livre-arbítrio, tão caro aos jesuítas, só é possível com a verdadeira religião. A organização
dos jesuítas, como um instrumento de sua racionalidade, constituiu-se, exatamente, para levar
esta liberdade aos homens: liberdade de escolher a verdadeira e única religião. Contradição?
Não no ambiente cultural e religioso ocidental do século XVI.

O conhecimento tanto dos assuntos relativos à fé como os relativos ao mundo, onde as


obras são realizadas, era trabalhado e difundido nos colégios jesuíticos. A educação jesuítica
era, portanto, a base primeira e mais sólida da formação dos futuros padres e irmãos e,
também, centros de formação e propagação da cultura de corte do século XVI. Se conhecer
era fundamental na atividade jesuítica, a educação era tão fundamental quanto. Conhecer a
217

racionalidade jesuítica pressupõe, portanto, conhecer também a educação na Companhia de


Jesus.
218

Capítulo 6

A educação jesuítica:

O colégio e o Ratio Studiorum

Neste último capítulo apresenta-se a educação como o terceiro momento da


racionalidade jesuítica. O intuito é demonstrar que nos colégios jesuíticos se formulou um
processo educativo que compõe a forma de ser e de pensar da Companhia de Jesus no período
quinhentista. Para tanto, alguns anteparos são necessários.

Primeiro, não se quer reproduzir neste capítulo o contido na segunda parte deste
trabalho, quando se apresentou em que consistia a formação do futuro jesuíta. Aqui o que se
propõe é mostrar a educação jesuíta de forma geral, através dos colégios e de documentos
oficiais.

Em segundo lugar, apresentar a educação jesuíta não significa, pelo menos aqui,
intencionar fazer qualquer discussão pedagógica, cotejando, por exemplo, o Ratio Studiorum
com qualquer outro plano pedagógico-escolar do período ou posterior a ele. Entende-se
educação aqui no sentido lato de produção e reprodução espiritual e cultural de uma
determinada sociedade geral ou particular. Portanto, a educação jesuítica concebida aqui não
se restringe à educação escolar, ou às relações didáticas entre professor e aluno mediadas por
disciplinas etc.. O colégio aqui adquire mais o sentido geral de espaço cultural, profissional,
religioso de formação de valores do que um conjunto de salas de aula.

Finalmente, é necessário ter em conta que a educação talvez seja a característica da


Companhia de Jesus que mais foi objeto de análises e discussões desde o século XVI até a
atualidade, particularmente na segunda metade do século XX, em que os ideais iluministas-
liberais da educação se realizam em termos institucionais. É exatamente por saber de tal
219

realidade que não se fará nenhum tipo de balanço pedagógico, ou historiográfico-educacional


da chamada pedagogia jesuítica, pois o objetivo deste trabalho está longe de se inserir em
qualquer julgamento condenatório ou laudatório desta faceta da vida jesuítica. O que se quer é
tão somente apresentar a educação em termos gerais como fazendo parte, compondo a
racionalidade jesuítica construída ao longo do século XVI.

Assim, esclarecidos estes pontos, a apresentação da educação jesuítica se dará a partir


de dois momentos: os colégios da Companhia e o Ratio Studiorum. Ambos momentos são
trabalhados, portanto, na perspectiva de entendê-los em sua função mais cultural e estrutural
do que pedagógica-escolar.

O colégio

A atividade educacional da Companhia de Jesus foi intensa em sua história, apesar de


não se configurar como um dos possíveis trabalhos quando da sua fundação. Quando Inácio
de Loyola morreu, em 1556, existiam 35 colégios em funcionamento dos 40 já aprovados;
neste mesmo ano a Companhia tinha cerca de 1000 membros, distribuídos em 110 Casas e 13
Províncias. Em 1615, quando o quinto Geral, Cláudio Acquaviva faleceu, depois de longos 34
anos à testa do instituto, os jesuítas eram mais de 13.000 e os colégios 372. Em 1773, quando
a Companhia foi extinta, contava com 23.000 membros e dirigia, na Europa, 546 Colégios e
148 Seminários e, fora da Europa, 123 Colégios e 48 Seminários, num total de 865
estabelecimentos de ensino38.

No proêmio da quarta parte das Constituições, a que trata da formação do futuro


jesuíta e da atividade educacional da Companhia, se encontra resumidamente os objetivos ao
se estabelecer colégios. É interessante notar que quando da promulgação das regras e leis da
Companhia ela já dispunha de uma certa experiência com colégios. A justificativa geral, como
não poderia ser diferente, é baseada na religião, que tinha os colégios e universidades como
espaço de doutrinação e salvação das almas:

38
Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesuitas/_private/hj.htm.
220

O fim que a Companhia tem diretamente em vista é ajudar as almas próprias e as


do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas. Este fim exige uma
vida exemplar, doutrina necessária, e maneira de a apresentar. Portanto, uma vez
que se reconhecer nos candidatos o requerido fundamento de abnegação de si
mesmos e o seu necessário progresso na virtude, devem-se procurar os graus de
instrução e o modo de utilizá-la para ajudar a melhor conhecer e servir a Deus
nosso Criador e Senhor.
Para isso a Companhia funda colégios e também algumas universidades, onde os
que deram boa conta de si nas casas e foram recebidos sem os conhecimentos
doutrinários necessários possam instruir-se neles e nos outros meios de ajudar as
almas. (...) (Constituições, 1997, p. 117, [307])

Ainda na introdução à quarta parte, o texto das Constituições mostra que a


Companhia fez uma aposta, uma opção em recrutar seus membros entre os jovens e não entre
os homens doutos, os quais justamente por serem já homens feitos estão mais propensos a
descansar do que a “arregaçar as mangas” para um árduo trabalho. A educação entre os
jesuítas era importante também porque dos seus efeitos a Companhia cresceria em quantidade
e qualidade. E é de fato o que ocorreu em larga escala:

(...) E, como homens bons e instruídos se encontram poucos, em comparação dos


outros, e mesmo desses a maior parte quer mais é descansar dos trabalhos
passados, achamos muito difícil que a Companhia possa desenvolver-se com
vocações de homens instruídos, bons e sábios, tanto por causa dos grandes
trabalhos, como da grande abnegação de si mesmos que o seu Instituto exige.
Por tal motivo pareceu-nos bem a todos, em nosso desejo de a conservar e
aumentar para a maior glória e maior serviço de Deus Nosso Senhor, tomar outro
caminho: admitir jovens que, pela sua vida edificante e pelos seus talentos, dêem
esperança de vir a ser homens ao mesmo tempo virtuosos e sábios, para cultivar a
vinha de Cristo nosso Senhor. (Idem, ibidem, pp. 117-118, [308])

Em 1556, quando o livro de regras e leis da Companhia vem à luz, ele já havia sido
experienciado na prática na província da Espanha e, portanto, no que toca aos colégios, já
carregava o sucesso deste empreendimento jesuítico em várias partes da Europa,
especialmente em Portugal. Nesse sentido, a confiança, expressa na letra da lei, é resultado já
da prática e não apenas de uma idealização, se bem que toda lei propositiva, em certo sentido,
não deixa de ter idealizações.

A década de 40 do século XVI é muito importante para a Companhia, pois é o palco


das primeiras experiências educacionais, principalmente através da fundação de colégios, em
princípio somente de formação, para futuros jesuítas e, depois, para alunos externos. As
experiências em Portugal e principalmente de Gandia e Messina, impulsionaram esta
atividade na Companhia, fazendo com que, a partir dali, muitos colégios fossem fundados.
Este sucesso refletiu-se na condução de Loyola à frente da Companhia, pois em muitas
ocasiões, através de cartas, pediu, sugeriu, aconselhou, argumentou, determinou a fundação de
colégios.
221

Em correspondência de 1551, Inácio escreve para os provinciais e os soberanos de


Portugal e Espanha mostrando a excepcional importância dos colégios como meios especiais
de transformação da sociedade. Lopes (1992, A) resume tal correspondência de Loyola,
ressaltando que, no caso de Portugal, o Geral recomenda “que se fundem colégios em Évora,
Lisboa e noutras cidades, enviando ao mesmo tempo as respectivas Instruções e Regras
relativas à fundação destes colégios” (1992, A, p. 74).

Na carta de recomendações, já referida, que escreve para João Nunes Barreto, futuro
Patriarca da Etiópia, Inácio de Loyola mostra a importância de criar casas de ler e escrever e
colégios para reduzir aquela população ao cristianismo, a começar pelas crianças e jovens:

Para a inteira redução daqueles reinos seria muito útil, tanto no início como em
todo tempo, que lá na Etiópia se fundassem muitas escolas de ler e escrever e
outras letras e Colégios para instruir a juventude e também aos mais que
precisarem, na língua latina, em costumes e doutrina cristã. Isto seria a salvação
para aquele povo. Porque, quando estes crescerem, ficariam afeiçoados ao que
tiverem aprendido no início e no qual pareceriam superar aos seus maiores. Desse
modo, em breve, cairiam e se extinguiriam seus antigos erros e abusos”. (in:
Cardoso, 1993, p. 115)

A convicção de Loyola ia além da confiança nos aspectos especificamente


educacionais proporcionados pelos colégios da ou administrados pela Companhia de Jesus.
Na verdade se tratava de uma nova cruzada, não para reconquistar a terra prometida aos
mouros, mas para levar a verdadeira salvação a todos os homens. Essa cruzada moderna
objetivava reduzir os gentios ou, no caso da citação acima, os meio-cristãos, à verdadeira
religião. A tarefa dos jesuítas era de imensa responsabilidade, pois eles se tornavam
instrumentos de Deus para a salvação de todos, principalmente dos que não conheciam o Deus
cristão ou o conheciam apenas parcialmente.

O colégio, nesse sentido, seria um instrumento eficaz da “nova cruzada”, pois através
do aprendizado de ler e escrever e dos assuntos mais complexos, a religião cristã, e
obviamente a cultura ocidental, era introjetada em meio ao ensino. O fato de o público dos
colégios se formar de crianças e jovens facilitava, na visão de Loyola, o aprendizado das
coisas cristãs e, com o tempo, os erros característicos daquela cultura seriam sanados. Essa
questão é tão significativa no ambiente cultural e religioso de Loyola que fica difícil querer
julgar tal concepção educacional como simplesmente de imposição, como se houvesse
possibilidade da existência de um padrão de comparação entre diferentes culturas e, após isso,
a mais forte seria imposta à mais fraca. Os valores iluministas que a sociedade atual tão bem
soube naturalizar, acarretam, às vezes, em julgamentos sem valor histórico algum. No caso,
222

não havia outra perspectiva para Loyola e seus comandados do que a de serem (verdadeiros)
instrumentos da verdadeira religião.

Na carta de Luís Fróis ao Geral Acquaviva se encontra talvez o exemplo mais bem
acabado da concepção dos jesuítas com relação ao papel dos colégios em terras de missões.
Apesar de ter citado anteriormente a parte da carta que vai adiante, cabe aqui novamente tal
informação pela riqueza do conteúdo e pela clareza da necessária ocidentalização dos futuros
jesuítas japoneses, pois sem ter acesso à “cultura mãe” da Companhia, eles não conseguiriam
realizar perfeitamente seus papéis, nem saberiam ponderar a necessidade e os limites da
adaptação. O colégio é aqui apresentado como espaço de reprodução da cultura ocidental
cristã e como o meio mais eficaz à consecução dos objetivos da Companhia de Jesus:

Q.to a la fabrica del collegio para en el se criaren los hr.os japones como tanbien
el Pe. Visitador escrive a V. P. no fue sin grande consideration lo que en Japon en
la Congregation que se hizo se ha tratado desta materia porque ventilada con
mucha ponderation se no halló remedio mas eficaz que esto para reducir los
her.os japones al intento que la comp.ª dellos pretende que sacarlos de su R.no
custunbres y conversationes para se mejor domesticaren y uniren con los n.ros de
Europa. Y son tantas las utilidades que deste adventum se pueden seguir asi para
la solida direction de los hr.os japones en vertudes y letras y para el bien universal
de la christandad y aun tambien desta mission de la China quando N. S. fuere
servido de le abrir las puertas que no se ha visto medio mas eficaz y en todo
acomodado al intento de la comp.ª como la fundacion deste collegio. (...) (in:
Baptista, 2003, p. 03)

Os colégios não se limitavam à função de serem estabelecimentos de ensino, pois


cabia aos padres professores doutrinar para além dos muros, indo ao encontro do público alvo
da evangelização. Beatriz Vasconcelos Franzen (2000), em artigo sobre Anchieta e os
colégios no Brasil, apresenta uma síntese interessante dessa característica dos colégios
jesuíticos:

O papel dos colégios não se limitou ao de estabelecimentos de ensino; eles foram,


também, centros de irradiação doutrinária, estendendo a ação missionária a toda a
região circunvizinha. Assim é que, dos colégios, fossem os Reais Colégios da
Bahia, do Rio de Janeiro, de Pernambuco ou os demais colégios jesuíticos, saíam
os padres da Companhia a pregar as missões. Nessa atividade missionária
atendiam aos engenhos, fazendas, pequenos povoados próximos e aldeias
indígenas, distantes, às vezes, mais de vinte léguas do colégio. (...) (Franzen,
2000, p. 227)

Além de não se restringirem ao papel de estabelecimentos de ensino, os colégios eram


os centros administrativos da organização jesuítica e, particularmente no Brasil, funcionavam
da mesma forma que as paróquias atuam hoje no seio da organização da Igreja Católica. Aos
colégios eram subordinadas as casas, as reduções, enfim, todas as atividades dos jesuítas. Não
223

é sem razão que na escala hierárquica da Companhia, o Reitor do colégio estava abaixo
apenas do Provincial na esfera da província.

Ainda com relação ao entendimento de que os colégios cumpriam, na organização da


Companhia, funções para além das especificamente escolares, lembre-se da citação feita na
parte primeira deste trabalho acerca do padrão de fundação da Colégio da Bahia por D.
Sebastião.

4. O qual collegio fosse tal que nelle podessem residir e estar até sessenta pesoas
da dita Companhia, que parece que por agora deve aver nele, pellos diversos
lugares e muitas partes, em que os ditos Padres residem e a que do dito collegio
são emviados pera bem da conversão e outras obras de serviço de Nosso Senhor.
(in: Leite, 1960, p. 97)

Os residentes do colégio não eram apenas os professores, irmãos, Reitor etc., mas
todos os padres que pertenciam à província e que estavam espalhados por ela toda; é essa a
informação prestada por Serafim Leite em nota de rodapé, de que os padres e irmãos eram
exatamente sessenta e um em toda província do Brasil, o que representa “que nesta primeira
doação régia, o Colégio da Baía não se apresentava como entidade local, mas representativa
de toda a Companhia de Jesus no Brasil.” (idem, ibidem, p. 97). E mesmo depois da fundação
dos outros colégios, eles não perderam a sua função de entidade representativa, mesmo que
local, da Companhia de Jesus.

Na Informação do Brasil e de suas Capitanias, de 1584, Anchieta fornece com


precisão a informação sobre o papel dos colégios na organização da Companhia, ao narrar
com detalhes a história dos colégios e o estado em que se encontravam. Ao referir-se às
demais casas dos jesuítas, depois de falar dos colégios, mostra que os últimos tinham por
função sustentar as primeiras:

As mais casas vivem de esmola que lhes dão os moradores, fracamente,


conforme a sua possibilidade, que é pouca; e porque eles não podem suprir a tudo
por serem pobres, os colégios provêm as casas que lhes são subordinadas de
vestido, vinho, azeite, farinha para ostias e outras cousas que não ha na terra e
hão de vir necessariamente de Portugal. Em todas estas casas ha sempre escola
de lêr, escrever e algarismo para moços de fóra”. (Anchieta, 1988, p. 334)

Ao referir-se ao Colégio de Piratininga, Anchieta informa que ele havia sido


transferido para a cidade do Rio de Janeiro e, como o colégio centralizava, portanto, a vida
dos padres, ao Colégio do Rio de Janeiro passaram a ser subordinadas as casas de S. Vicente
de Piratininga e do Espírito Santo, respeitando-se as divisões que foram feitas na província do
Brasil.
224

Os colégios jesuíticos não desempenhavam o único papel de centros de estudos, mas


não se pode deixar de considerar, entretanto, que o ensino e a formação dos jovens, tanto os
internos como os externos à Companhia, eram suas atividades principais. A necessidade de
estabelecer uma formação adequada aos futuros jesuítas e a experiência adquirida na
educação de jovens em geral, resultaram, inclusive, na formulação do Ratio Studiorum, como
um documento a ser aplicado exatamente nos colégios da Companhia da Jesus.

Assim, a Companhia de Jesus estabeleceu dois tipos diferentes de colégios: um


privado exclusivamente para a formação de futuros jesuítas e outro público, para a formação
dos jovens em geral. Esta divisão não era, porém, tão rigorosa que não permitisse a existência
de colégios onde estudassem tanto os seminaristas quanto os externos. Rodrigues (1917)
apresenta uma síntese dos dois tipos de colégio:

Duas ordens de collegios instituiu a Companhia de Jesus, segundo a qualidade


das pessoas que nelles haviam de receber formação. Uns eram destinados a
formar os membros dessa Corporação religiosa e outros abertos a toda a classe
de jovens que desejassem instruir-se nas letras e sciencias. Uns e outros porêm
se regulavam pelas regras exaradas no Ratio Studiorum, o espirito que animava o
ensino, era, em ambos os casos, o mesmo, e identicos os cursos pelos quaes os
alumnos percorriam o estádio das letras até o termo da carreira escholastica.
Antes não raras vezes os estudantes Jesuitas cursavam as mesmas aulas,
sentavam-se ao lado dos alumnos externos, estudavam as mesmas lições, como
succedia no Collegio das Artes de Coimbra e na Universidade de Evora. O Ratio
Studiorum o suppõe, quando ordena exercicios literarios especiaes para os
membros da Companhia, a fim de alargarem mais os conhecimentos alcançados
nas aulas publicas. (...) (Rodrigues, 1917, p. 391)

Os colégios destinados aos jovens em geral eram, comumente, públicos e gratuitos, a


crer nas informações de inúmeros historiadores dos jesuítas (Lopes, Rodrigues, Miller,
Lacouture etc.), pois o sustento material das casas era garantido junto aos soberanos e
mandatários locais, através de esmolas regulamentadas, mas nem sempre regulares.

A definição da forma que os colégios assumiram foi resultado de experiências, ou, na


concepção de Lopes (1992, A) de fórmulas assumidas ao longo do tempo. Os colégios
fundados na década de 40 do século XVI, tanto aqueles a pedido da Companhia, como os
pedidos pelos mandatários sociais, perfazem seis fórmulas diferentes.

A primeira fórmula, explica Lopes, consistiu nas primeiras experiências da Companhia


relativas à formação de futuros jesuítas, que se dava em casas alugadas ou emprestadas
geralmente junto a universidades para que os seminaristas pudessem continuar seus estudos.
Essa primeira fórmula era precária, pois o próprio Inácio de Loyola que tinha começado por
enviar alguns estudantes a Paris e depois para Lovaina, verifica que os estudantes “tiveram de
225

se confrontar com imensas dificuldades econômicas, chegando a ter de perder muito do


tempo que deveriam consagrar ao estudo, para pedir esmola de casa em casa” (Lopes, 1992,
A, p. 73).

A segunda fórmula representou um avanço muito grande para a Companhia e se deu


primeiramente em terras portuguesas: a doação de casas à Companhia por parte de soberanos
benevolentes. A terceira fórmula caracteriza-se pelo pleno funcionamento dos colégios, mas
somente para internos. No caso de Portugal, o exemplo é o colégio de Coimbra. Já na quarta
fórmula os colégios são abertos para os alunos externos, como os de Gândia (1546) e o de
Messina (1548). Neste tipo de colégio, onde os jesuítas se tornam docentes, há uma dupla
aspiração: por um lado para os fundadores “o objectivo principal é a formação dos alunos
externos (seminaristas ou não)”, enquanto que para os jesuítas “o objectivo principal é a
formação dos estudantes Jesuítas” (Lopes, A, p. 74).

A quinta fórmula consiste na coexistência de alunos externos e internos e na conclusão


de que a formação dos jovens em geral passa a ser finalidade principal dos colégios, pois
“aquilo que vai se tornando fundamental é o ensino público que os colégios vão oferecer às
populações” (Lopes, A, p. 74). Finalmente, a sexta fórmula é a admissão no seio da
Companhia da conveniência de se fundar colégios públicos somente para estudantes externos,
coexistindo as duas formas de colégios de que Rodrigues falara. A novidade trazida por
Lopes, nessa sexta fórmula, é a mudança da orientação do fundador da Companhia, o qual “de
princípio dava maior importância às Casas Professas, agora parece preferir-lhes os colégios
externos” (Lopes, A, p. 74).

Em se tratando ainda da definição dos colégios da Companhia de Jesus, há que se


atentar para a distinção feita entre os colégios que existiam próximos a e praticamente em
função de alguma universidade. Fernando Taveira da Fonseca (2000), em artigo sobre o Real
Colégio das Artes de Coimbra e a Universidade de Coimbra, procura mostrar que o colégio
cumpre o papel de uma faculdade menor, a de Letras, e à universidade cabia as faculdades
maiores, de Filosofia e Teologia. Por isso mesmo, os colégios de formação de futuros jesuítas
se encontravam, preferencialmente, próximos a universidades, dada a formação continuada,
isso nos locais aonde a Companhia não tinha o governo de universidades, ou de estudos
maiores equivalentes. No caso do Colégio das Artes, Fonseca informa que o ensino chamado
propedêutico ficou a seu cargo e, como já visto na parte segunda deste trabalho, toda estrutura
226

curricular deste nível de educação estava baseada no classicismo antigo, na gramática, nas
humanidades e na retórica, se tornando a porta de entrada do humanismo em Portugal:

Esta transferência de ensino que se opera progressivamente – e que tem como


conseqüência que, muitas vezes, a universidade seja apenas a sede da colação
dos graus e dos ritos cerimoniais – não abrange, contudo, toda a gama dos
estudos mas centra-se fundamentalmente naqueles que tradicionalmente
pertenciam à faculdade de Artes. Os colégios como que se especializam naquelas
disciplinas que designaríamos de propedêuticas – freqüentemente negligenciadas
pelas universidades – como era, por exemplo, a gramática. E foi por essa sua
característica que eles se tornaram a via de penetração do Humanismo nas
universidades. (Fonseca, 2000, p. 544)

O Colégio de Coimbra, mesmo antes de ser entregue em 1555 para a Companhia de


Jesus, teve uma inspiração humanista no que toca à valorização da forma antiga, que se
baseava no aprendizado clássico do latim e do grego. Aquele colégio, mesmo depois da
administração jesuítica teve uma forte inspiração no movimento chamado modus parisiensis,
ou seja, na forma como os colégios de Paris entendiam o estudo das chamadas Artes39. Este
método de estudo compôs, junto com outros estudados atentamente pelos padres da
Companhia de Jesus, os fundamentos teórico-pedagógicos do Ratio Studiorum, sendo, no
testemunho de historiadores dos jesuítas, o mais importante, principalmente pelas
coincidências existentes.

Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu

Em 1599 a Companhia de Jesus lançou oficialmente um documento pedagógico,


educacional, que se tornou um dos mais citados e conhecidos da história, objeto tanto de loas

39
“O modus parisiensis é o conjunto de normas pedagógicas que caracterizavam o ensino parisiense e lhe
conferiam uma personalidade única e original. Como mostra Joaquim Ferreira Gomes (1995: 30), de todos os
modelos universitários disponíveis, o modus parisiensis era o que apresentava maior coerência, rigor e eficácia
e aquele que mais valorizava a ordem, a rapidez e a disciplina da aprendizagem, leque de características que se
adaptavam perfeitamente aos intentos normativos da docência Jesuíta. O modus parisiensis caracteriza-se
por quatro tópicos fundamentais: a distribuição dos alunos em classes, uma actividade constante dos
alunos através de exercícios escolares, um regime de incentivos ao trabalho escolar, e a união da piedade e dos
bons costumes com as letras”. (www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/jesuitas/_private/mp.htm).
227

como de críticas ácidas, dependendo do contexto em que é analisado. O Ratio Studiorum,


como ficou mais conhecido, é um exemplo característico de expressão de como a Sociedade
de Jesus foi se construindo durante, principalmente, o século XVI. Da primeira tentativa de
esboçar um regulamento para os colégios jesuíticos até a publicação oficial do Ratio,
decorreram praticamente cinqüenta anos. E, mesmo numa perspectiva mais prática, da
redação inicial até a final deste documento passaram-se quinze anos. Em síntese, poder-se-ia
afirmar que o Ratio Studiorum, assim como a Companhia de Jesus, é filho da prática e da
experiência de assumir e avaliar as tarefas novas.

Com o objetivo de desmistificar a idéia de que o Ratio é um documento que veio à luz
como resultado simplesmente da cabeça de três ou quatro padres, os quais teriam elaborado
um tratado pedagógico com força de lei dentro da Companhia, obrigando de imediato que ele
fosse cumprido à risca em todos os colégios e universidades jesuíticas, apresenta-se a seguir
um pouco da história da construção das regras pedagógicas e educacionais dos jesuítas. Para
tanto, toma-se por base as obras de Leonel Franca (1952) e Francisco Rodrigues (1917), os
quais procuraram mostrar que o Ratio deve ser visto como um documento elaborado no
século XVI e fruto de muitas experiências e avaliações. Apesar de se pautar em dois autores
jesuítas, os quais obviamente defendem a Companhia e seus documentos dos ataques liberais
das primeiras décadas do século XX, não é objetivo do trabalho fazer coro a eles no que se
refere à defesa do Ratio, mas, tão somente, entendê-lo e apresentá-lo em sua historicidade, e,
nesse sentido, esses dois autores – como poderiam ser outros – contribuem com essa
perspectiva.

A primeira experiência em tentar estabelecer um regulamento pedagógico na


Companhia de Jesus se deu com a fundação do primeiro colégio clássico, plenamente
organizado, que foi o Colégio de Messina, na Sicília, em 1548. É a quarta fórmula dos
colégios jesuíticos, segundo a definição acima de Lopes. Neste colégio, segundo Franca, se
utilizou pela primeira vez o modus parisiensis, que foi seguido deliberadamente pelos
professores na organização dos estudos, em matéria de “repetições, disputas, interrogações e
declamações” (Franca, 1952, p. 03).

O próximo passo dado em direção à organização de um plano de estudos para os


colégios se deu em 1551, quando o jesuíta Jerônimo Nadal, a pedido do Geral Loyola, recolhe
informações a respeito dos colégios, principalmente o de Messina, por ocasião de viagens
realizadas como Visitador da Companhia, e, a partir das observações, elaborou o primeiro
228

regulamento, chamado De Studiis Societatis, o qual foi enviado, com o tempo, aos colégios
existentes e os que se iam fundando à época.

Em 1551 também foi fundado o que se tornou o principal colégio da Companhia em


todo o mundo: o Colégio Romano, de onde partiram inúmeros docentes da Companhia para
trabalhar nos outros colégios e aonde se fizeram algumas experiências importantes. Entre os
anos de 1557 e 1559 o Colégio Romano teve como seu Reitor o padre Nadal que, acumulando
essa experiência ao plano de estudos elaborado em 1551 e mais uma visita a vários colégios
da Companhia, elaborou, novamente a pedido do Geral, a nova Ordo Studiorum, que foi posta
em execução durante o seu reitorado.

Além do Jerônimo Nadal, outro padre jesuíta que individualmente foi importante para
o estabelecimento do plano de estudos foi Ledesma, o qual foi professor, tendo exercido,
também, várias funções no Colégio Romano de 1557 a 1575. Franca informa que dos 132
documentos publicados na série Monumenta Paedagogica, 59 foram tanscritos, anotados e
corrigidos pelo padre Ledesma. A principal contribuição dele foi ter escrito, em substituição
ao documento elaborado por Nadal, o De Ratione et Ordine Studiorum Colegii Romani,
apesar de ter ficado incompleto.

Outro momento importante que antecedeu o Ratio está presente nas Constituições da
Companhia. Rodrigues informa que as linhas gerais de um sistema de educação e de ensino,
criadas por Inácio, estão presentes na quarta parte que trata da Instrução, nas letras e outros
meios de ajudar o próximo, daqueles que tiverem progredido em espírito e virtude, e que tal
conteúdo serviu, também, para a elaboração do Ratio. Franca, citando Fouqueray (Histoire de
la Compagnie de Jesus em France), mostra que a parte das Constituições que trata da
educação dos futuros jesuítas animou toda a atividade pedagógica, sendo “um resumo da
doutrina pedagógica da Companhia” (Franca, 1952, p. 07)40.

Mas, é a partir de 1584 que definitivamente os dirigentes da Companhia, através de


seu Geral Cláudio Acquaviva, decidem realizar um plano de estudos para todos os colégios e
universidades, uniformizando, dentro das possibilidades, a educação tanto dos futuros jesuítas
como dos estudantes externos no mundo todo. Franca informa que entre 8 de dezembro de
1584 e agosto de 1585, uma comissão de seis padres das principais nações da Europa

40
“un abrégé de la doctrine pédagogique de la Compagnie”.
229

(Portugal, Espanha, França, Áustria, Alemanha e Itália) se reuniram em Roma para elaborar
um regulamento único e universal. A rotina de trabalho da comissão era austera:

(...) três horas no dia consagravam a consultas e discussões; o resto do tempo à


leitura e ao estudo do acervo vultuoso de documentos que lhes havia sido
submetido à apreciação: estatutos e regulamentos de universidades e colégios,
ordenações, usos e relatórios das diferentes províncias; costumes locais;
princípios disciplinares, numa palavra, todo o imenso material pedagógico que se
acumulara em mais de 40 anos de experiência e que agora entrava na fase da
codificação definitiva. (Idem, ibidem, p. 09)

O resultado do trabalho da comissão de notáveis veio à luz em 1586 e imediatamente


foi mandada para todas as províncias da Companhia para ser experienciada, na prática, nos
colégios e universidades. Em 1591 uma nova comissão, composta por três dos seis membros
da comissão de 1584/85, examinou as respostas vindas das províncias, agregando ao novo
documento as críticas e sugestões. Em 1592, o Geral Acquaviva enviou novamente às
províncias o regulamento com o título de Ratio atque Institutio Studiorum, Romae, un
Collegio Soc. Iesu, ano Dni, 1591. Este documento, informa Franca, teve um caráter legal
para ser utilizado imediatamente na prática, ainda que não de modo definitivo: o Geral
orientava para que “pusessem em execução o novo sistema de estudos, durante três anos, no
fim dos quais remetessem a Roma os resultados desta experiência decisiva para sua
promulgação final” (Idem, ibidem, p. 11).

Uma definitiva comissão se reuniu em 1598 em Roma para apreciar as novas críticas e
sugestões e, em 8 de janeiro de 1599, finalmente o Geral Acquaviva mandou uma circular
para todas as províncias acompanhada do Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu,
informando que já não se tratava de um projeto de estudos, mas de um plano de estudos
promulgado na forma de uma lei. Para mostrar que a síntese foi uma necessidade colocada
para os membros da última comissão, Franca informa que do documento de 1591 para o de
1599, reduziu-se de 400 para 208 páginas e o número total das regras baixou de 837 para 467.

A primeira conclusão a que se chega quando se acompanha, mesmo que de forma


sucinta, a história do plano oficial de estudos da Companhia de Jesus, é que se trata de um
documento filho da experiência. Talvez por ser fruto do tempo e da coletividade e do rigor, o
Ratio tenha tido uma importância tão grande; é essa também a opinião de Franca:

O Ratio, portanto, é filho da experiência, não da experiência de um homem ou de


um grupo fechado, mas de uma experiência comum, ampla de tal amplitude [sic],
no tempo e no espaço, que lhe assegura uma grandeza majestosa, talvez singular
na história da pedagogia”. (Idem, ibidem, p. 23)
230

No entanto, o próprio Franca adverte que os quase cinqüenta anos passados desde o
colégio de Messina até a publicação oficial do Ratio, e os vários padres que foram envolvidos
direta ou indiretamente nesse processo, não resultaram em nenhum tratado de pedagogia. O
Ratio não “expõe sistemas nem discute métodos” (Idem, ibidem, p. 24). A finalidade de tal
documento não é teórica, não é comparativa e nem discute princípios pedagógicos com outros
modelos; quem se propõe a estudá-lo não pode esquecer a sua “finalidade eminentemente
prática nem a moldura histórica que lhe enquadra as origens” (p. 25).

O documento que define o plano de estudos para os colégios da Companhia de Jesus é


normativa, prescrevendo regras para todos os envolvidos no processo educativo, desde o
Provincial, o Reitor e o prefeito de estudos, passando pelos professores dos vários cursos e
níveis e terminando com as regras para os estudantes e suas diferentes opções de organização.
O objetivo geral do Ratio é ser universal, mas, no próprio documento, na regra 39 do
Provincial, se prescreve a necessária e conveniente adaptação das regras escolares respeitando
a diversidade dos lugares aonde a Companhia tinha colégios. A busca da unidade possível em
meio à diversidade, é tarefa educativa do Provincial, como principal Prepósito da Província:

Como, porém, na variedade de lugares tempos e pessoas pode ser necessária


alguma diversidade na ordem e no tempo consagrado aos estudos, nas
repetições, disputas e outros exercícios e ainda nas férias, se julgar conveniente
na sua Província, alguma modificação para maior progresso das letras, informe o
Geral para que se tomem as determinações acomodadas a todas as
necessidades, de modo, porém, que se aproximem o mais possível da
organização geral dos nossos estudos. (Ratio, 1952, p. 132)

Quanto aos aspectos mais curriculares e didáticos do Ratio Studiorum, a segunda parte
deste trabalho parece ser suficiente para mostrar que pode-se resumir em três as grandes
preocupações contidas no documento: primeiro, educar o estudante na forma clássica antiga,
com o conteúdo escolástico e o preparo técnico para o exercício do sacerdócio; segundo,
como pano de fundo de toda esta educação estão o latim e o grego como as línguas mais
importantes para se aprender e se expressar; e, finalmente, como meios ideais para que a
educação aconteça da melhor forma possível, têm-se a emulação e a disciplina.

O Ratio expressa o modelo ideal de formação, de educação dos estudantes nos


colégios e universidades. Na prática, principalmente quando do período em que ainda se
estava a construí-lo, nem sempre era possível encontrar em todos os colégios a divisão ideal
dos níveis e a administração de todos os cursos prescritos. Por exemplo, na Informação do
231

Brasil e de suas capitanias, de 1584, Anchieta relata que no Colégio da Bahia, o currículo não
era cumprido na sua totalidade, faltando, principalmente, os cursos de filosofia:

(...) Nele ha de ordinario escola de lêr, escrever algarismo, duas classes de


humanidade, leram-se já dois cursos de artes em que se fizeram alguns mestres
de casa e de fóra, e agora se acaba terceiro. Ha lição ordinaria de casos de
consciência, e, às vezes, duas de teologia, donde saíram já alguns mancebos
prègadores, de que o Bispo se aproveita para sua Sé, e alguns curas para as
freguezias. A êste colegio estiveram subordinadas todas as casas das capitanias,
até que houve outros colegios, e agora não são mais a ele subordinadas que as
de Ilhéus e Porto Seguro. (Anchieta, 1988, p. 334)

Um derradeiro aspecto a ser ressaltado com relação à educação jesuítica, ao mesmo


tempo em que é retomado o início deste capítulo, é o destaque ao principal objetivo da
Companhia ao se propor a educar a juventude. Mais do que passar saber e ciência, o que se
queria inculcar nos alunos era um conteúdo religioso, entendendo aqui o religioso como uma
das formas de a cultura se manifestar; portanto, a grande meta da educação jesuítica é a
formação de uma cultura religiosa reformada.

(...) Este processo de pedagogia temos de olha-lo como conseqüência forçosa da


organização da Companhia de Jesus, que não é uma sociedade meramente
scientifica, nem tem por objetivo primario a propaganda da sciencia, mas é uma
sociedade estrictamente religiosa que utiliza a sciencia e o ensino como força
excepcionalmente poderosa a promover a verdadeira religião(...) (Rodrigues,
1917, p. 11)

Na tão citada quarta parte das Constituições também é deixado claro que o fim “dos
estudos na Companhia é ajudar, com o favor de Deus, as almas dos seus membros e as do
próximo” (p. 129, [351]). Os cursos, a disciplina, o conhecimento e a ciência só têm sentido se
forem pensadas como meios para que a religião se estabeleça e, como lembra Rodrigues
acima, não qualquer religião mas a verdadeira.

Na segunda das regras relativas aos estudantes da Companhia, no Ratio, o conceito


dos estudos é, em última instância, religioso:

Apliquem-se aos estudos com seriedade e constância; e como se devem acautelar


para que o fervor dos estudos não arrefeça o amor das virtudes sólidas e da vida
religiosa, assim também se devem persuadir que, nos colégios, não poderão fazer
cousa mais agradável a Deus do que, com a intenção que se disse acima, aplicar-
se diligentemente aos estudos; e ainda que não cheguem nunca a exercitar o que
aprenderam, tenham por certo que o trabalho de estudar, empreendido, como é de
razão, por obediência e caridade, é de grande merecimento na presença da divina
e soberana majestade. (Ratio, 1952, pp. 214-215)

A chamada educação jesuítica, enfim, não pode jamais ser descolada de uma
concepção religiosa, ou seja, os fins, o intuito, o objetivo final dos colégios e do Ratio
232

Studiorum é fornecer uma formação verdadeiramente religiosa e, para isso, se utiliza de uma
lógica educativa, que é distribuída pelos níveis, pelos cursos, pela didática, pelos valores,
enfim, pelo rigor, como meio, como instrumento para se formarem homens competentes e
padres responsáveis e corajosos para assumirem os mais diferentes serviços, especialmente os
concernentes às missões.

Os colégios jesuíticos, abertos aos jovens em geral, público e gratuito para os


estudantes, dispensava uma educação realmente séria e exigente. Nas terras em missão,
principalmente, o colégio além de desempenhar seu papel educativo, era o centro
administrativo, ao qual as casas, igrejas, fazendas, reduções estavam subordinadas. O colégio
era assim uma espécie de pólo irradiador de uma cultura, que se traduzia tanto na educação
escolar como na própria organização daquele instituto religioso. A cultura irradiada era a
cristã-ocidental, que por ser a única verdadeira, no contexto do século XVI, deveria ser
disposta e, se fosse o caso, imposta àqueles que não partilhavam dela. Os gentios e os infiéis
deveriam ser reduzidos à verdadeira fé; essa a síntese do trabalho dos missionários jesuítas;
esse o objetivo último da educação e dos colégios jesuíticos nas terras em missão.

Para a compreensão da racionalidade jesuítica no século XVI, em Portugal, poder-se-


ia ter escolhido vários caminhos. O trilhado aqui procurou entender a racionalidade de
maneira mais concreta, movendo-se para a forma como a Companhia foi se arrumando nestes
primeiros anos de sua existência em terras lusitanas. Como não nasceu pronta e definida, os
trabalhos exercidos por ela foram moldando seu modo de ser e, nesse sentido, a adaptação, a
organização e a educação são três momentos desse modo de ser, três características de um ser
coletivo. É claro que tais componentes da racionalidade jesuítica são encontrados, em
diferentes graus, na atuação da Companhia nos outros territórios e Coroas a que serviu;
acredito mesmo que poder-se-ia estender a toda ela esses modos de ser; entretanto, para o
caso da sua atuação no império português, particularmente no Brasil e no Oriente, tais
características possibilitam entendê-la na ótica particular da expansão comercial e imperial
própria do povo luso.

A expansão portuguesa teve como motivador principal o comércio de riquezas e o


monopólio das rotas comerciais e de alguns produtos. Como conseqüência praticamente
natural da expansão comercial e política, ocorreu a expansão do cristianismo. Junto com a
espada foi a cruz! A racionalidade mercantil explica a expansão política e também a expansão
religiosa, pois, de certa forma, a necessidade medida da adaptação, a organização complexa e
233

radicalmente verticalizada e a educação nos moldes clássicos e colégios como sedes


administrativas, fazem parte de uma forma de se pensar que tem no cálculo e na contabilidade
uma necessidade. A diferença entre as duas empresas, a expansionista e colonial e a religiosa,
é que a racionalidade mercantil da primeira empresa apontou para uma nova forma dos
homens se relacionarem, a forma burguesa; enquanto que a empresa religiosa, justamente por
ser religiosa, ficou presa, pelo menos num primeiro momento, a uma sociedade que tinha
ainda nos valores feudais e medievais formas ideais de vida.
Conclusão

A Companhia de Jesus, que ficou mais conhecida no Brasil por sua atuação nos
campos educacional e missionário, é uma construção histórica, e isso nos dois sentidos do
termo: o de ser uma instituição humana, criada numa determinada época para desenvolver
atividades com fins religiosos, e, portanto, fazendo parte de um contexto definido; e, no
sentido de que as atividades por ela assumidas, a sua organização, suas leis internas, suas
prioridades de ação e formação foram incorporadas, avaliadas, sistematizadas com o tempo.
Assim, a primeira conclusão a que se chega com este trabalho é que a racionalidade jesuítica
também é uma construção histórica.

Por ter se tornado uma instituição solidamente estabelecida em boa parte do mundo, é
comum tomar-se a Companhia por seus resultados, como se eles já estivessem na sua origem,
dando a impressão de que a atuação principalmente educacional e missionária, parece ter sido
sua vocação desde o começo. Entretanto, das duas atividades, a educacional, pelo menos,
parece não estar entre os trabalhos que os seus fundadores imaginaram ou vislumbraram. O
começo da Companhia de Jesus apontava um desejo de realizar uma espécie de nova cruzada
contra os infiéis, objetivando retomar Jerusalém aos domínios dos cristãos. A impossibilidade
de realizar a viagem ao Oriente e os trabalhos realizados sob as ordens do Papa e dos reis,
dentre eles o Soberano português, levou os dirigentes da Companhia a assumirem atividades
que praticamente se tornaram sinônimos da atuação jesuíta.

Os caminhos escolhidos aqui para compreender e expor a racionalidade jesuítica


mostraram que não se pode tratar o modo de ser e se compreender da Companhia como sendo
o mesmo desde a sua fundação até o final do século XVI. Particularmente no caso da presença
jesuítica no Império Português, atuando sob as determinações do Padroado, aqueles padres
empreenderam atividades que foram sendo incorporadas, avaliadas, definidas e assumidas
com o passar do tempo, sendo esse o caso exemplar do relatório final do Visitador Inácio de
Azevedo no Brasil, dirimindo dúvidas que existiam desde os primeiros passos das missões em
terras brasileiras.
235

Definir que a racionalidade jesuítica se fez historicamente pode acarretar alguns


questionamentos importantes, como, por exemplo, se realmente é possível trabalhar com a
hipótese de apenas uma racionalidade. Se se tomar o conceito de racionalidade de forma
estanque, como sinônimo de algo sem movimento e sem mudanças, realmente fica muito
difícil sustentar a existência de apenas uma racionalidade jesuítica. Entretanto, se o conceito
de racionalidade sustentar a mobilidade, a realização e também a vontade, a prática e as
expectativas, aí sim a existência de uma só racionalidade é possível. Assim é que no século
XVI, pelo menos, se pode falar em racionalidade da Companhia de Jesus, na medida em que
se trata exatamente do seu período de consolidação. Já no século XVII não arriscaria a afirmar
o mesmo ou o seu contrário, antes de um estudo semelhante ao que foi feito aqui. No entanto,
creio que um indicativo, uma hipótese pode ser levantada: no século XVI a racionalidade
expressa mais a realidade das coisas e menos os indicativos legais de como as coisas deveriam
ser, e, no século XVII, a racionalidade jesuítica expressaria mais o dever ser do que o ser. Isso
não significa necessariamente que a Companhia perde sua unidade e organicidade no século
XVII, pois ela continua sendo uma organização sólida e orgânica mesmo após a sua
restauração no século XIX.

Outra questão que pode ser levantada como decorrência da primeira conclusão
relaciona-se aos limites estabelecidos neste trabalho, quer seja, se a racionalidade expressa
uma organização em construção, é possível, então, estender as conclusões deste trabalho para
o restante da Companhia de Jesus, e não somente em Portugal? A maioria dos elementos que
compõem a racionalidade podem ser empregados, creio que com segurança, para toda a
Companhia, particularmente os relacionados à formação do futuro jesuíta, e os relacionados à
organização e à educação. A Companhia de Jesus é uma só, e mesmo atuando em inúmeros
lugares, sob o comando de diferentes soberanos, ela sempre buscou a unidade e organicidade
internas, ou seja, sempre procurou a unidade diante da universalidade de sua atuação.
Entretanto, um estudo mais aprofundado da atuação dos jesuítas em outros lugares que não
nos domínios portugueses, possivelmente traria aspectos particulares que fariam parte de uma
racionalidade própria e específica.

No que se refere à racionalidade jesuítica nos recortes cronológico e geográfico


definidos, pode-se afirmar que uma particularidade é a racionalidade mercantil que perpassa a
atuação dos jesuítas. É muito temerário afirmar que se trata de uma característica exclusiva da
atuação sob o Padroado português, mas, com certeza é uma marca registrada. Portugal foi
ponta de lança de uma nova forma de os homens se organizarem, forma essa diferente da
236

medieval-feudal, mas que só se poria em contraste, em contornos mais claros no século


XVIII. A vida baseada na produção e troca de mercadorias, a vida burguesa, teve no
movimento de expansão comercial, possibilitado pelas grandes navegações, um impulso
avassalador que contribuiu para uma passagem histórica sem precedentes. O mundo se
arredondou com a mercadoria. A racionalidade mercantil foi a grande motivadora e guia dos
homens novos em mares nunca d’antes navegados. Um mundo novo se descortinou e novas e
imensas fontes de riqueza foram descobertas e dominadas, aumentando o poder e o esplendor
de reinos inteiros. A par da expansão comercial e colonial veio, necessariamente, a expansão
religiosa, primeiro do catolicismo.

O Padroado, nome pelo qual ficou conhecida a atuação das Coroas católicas em prol
do desenvolvimento do cristianismo nas novas terras, sintetizou os trabalhos realizados pelos
jesuítas desde 1542 quando Xavier chegou em Goa. As duas faces de uma mesma moeda, a
comercial e a religiosa na expansão, nem sempre falaram a mesma linguagem, sendo mesmo
até discordantes segundo relatos dos próprios padres jesuítas seja no Oriente ou no Brasil.
Com o passar dos anos foi ficando claro que os novos interesses humanos apontavam em
direção diferente dos interesses religiosos. O tempo para os mercadores não significava mais
o tempo da religião. Lembremos que uma das primeiras constatações de Xavier na Índia foi
de que na quaresma, que é o principal tempo litúrgico na Igreja, os cristãos não se
encontravam em terra, pois era o tempo mais propício para as navegações comerciais e para
as guerras de conquista. A atuação dos portugueses indicou, dessa forma, a existência de, pelo
menos, dois projetos coloniais: o dos colonos e comerciantes e o dos religiosos; e os dois cada
vez mais em conflito. A expulsão dos jesuítas de Portugal e do Brasil em 1759 não foi tarefa
de uma individualidade raivosa chamada Marquês de Pombal; foi a história, de que Pombal
foi arauto, que tomou a decisão ao não tratar mais a religião da mesma forma que a tratava
nos séculos anteriores, uma vez que na sociedade burguesa que se consolidava, a Igreja não
tinha mais o mesmo poder de antes.

O século XVI, no entanto, ainda não permite tratar como sinônimos a racionalidade
mercantil e a razão burguesa, ou seja, a expansão comercial portuguesa aponta na direção de
uma sociedade diferente da feudal, mas que ainda não a realizou. Com isso, uma aparente
contradição poderia ser enunciada, e o foi no decorrer deste trabalho, a de que a racionalidade
jesuítica é, em certo sentido, mercantil. A intenção desta afirmação não é entrar na discussão
sobre a modernidade ou medievalidade da Companhia de Jesus, mas mostrar que a
237

racionalidade mercantil, própria do processo de expansão comercial, influenciou a maneira de


agir daquele instituto religioso.

A razão mercantil vislumbra e se realiza na riqueza móvel, nos lucros, no domínio de


rotas e produtos comerciais, no cálculo, no planejamento, na avaliação, na contabilidade, na
organização, na negociação, nos riscos, no arrojo, na cobiça, na ambição etc.. No período em
questão, a atuação dos jesuítas também se pautou por algumas das características de uma
racionalidade mercantil, sendo que dentre elas pode-se resumir: a organização interna,
planejada e verticalmente orientada, possibilitando o conhecimento e a avaliação contínua das
atividades; os trabalhos desenvolvidos para o sustento material das casas; a contabilidade dos
sacramentos como indicativo do sucesso ou fracasso e, portanto, como instrumento prático de
avaliação dos trabalhos de evangelização; e, principalmente, o fato de se colocaram sob as
ordens do Soberano português, pois, mesmo com as críticas feitas às atitudes pouco ou nada
cristãs dos comerciantes e colonizadores portugueses, os jesuítas contribuíram com o
nascimento de uma nova sociedade, particularmente no Brasil, quando, por exemplo,
ajudaram a fundar e organizar povoados e cidades.

É inegável a importância dos padres da Companhia de Jesus para a história moderna


portuguesa, incluindo nela a história brasileira, pois estiveram presentes, de forma sempre
atuante, incômoda muitas vezes, altamente subserviente em outras tantas, em todo a extensão
do território do Império Português a partir do século XVI. Com os jesuítas, por causa de sua
formação rigorosa, escolástica e técnica, além da religião propriamente dita, iam as letras, a
ilustração, tanto que praticamente monopolizaram o ensino, hoje chamado de fundamental,
em todo o Império, especialmente no reino e no Brasil. Aqueles padres partilharam, de forma
as mais das vezes crítica e conservadora, a organização de um mundo que se arredondava, de
uma sociedade que quanto mais se consolidava como reino da mercadoria, mais relegava a
religião e, por conseqüência os próprios jesuítas, para um passado cada vez menos querido e
mais distante.

Muito se estudou e se escreveu sobre os jesuítas e muita polêmica foi gerada e


alimentada. Depois de investigar apenas uma pequena parte de sua atuação, compreende-se
como é difícil ficar imune às paixões despertadas, sentindo próxima a tentação de tomar
partido nesta celeuma histórica em torno deles. Estudar a Companhia de Jesus é, sem dúvida,
apaixonante, pois se trata de uma organização religiosa criada e consolidada com muito zelo,
direcionamento e autoridade, cuja organicidade, às mais das vezes desejada do que realizada,
238

garantia que sempre contasse em suas fileiras com ávidos padres para enfrentar desafios
enormes nos trabalhos de missão, de diplomacia e de educação. Porém, como geralmente a
paixão entorpece a razão, procurei sempre manter um certo distanciamento que me
possibilitou não ser de todo frio ao assunto tratado e nem me tostar com o seu calor próprio.

O célebre português António Sérgio, em sua Breve Interpretação da História de


Portugal, se utiliza, logo na primeira página, de uma metáfora interessante sobre seu trabalho
de historiador, da qual, com um pouco de atrevimento, também me valho:

O que faz de um qualquer número de pérolas um colar é o fio invisível e interior


que as une – que as liga a todas numa certa ordem, segundo uma determinada
configuração. Neste livrinho, os factos históricos são como as pérolas para quem
se deu ao trabalho de as ensartar: tirei-os dos cronistas, dos historiadores, dos
documentos publicados, dos eruditos; o próprio da minha obra é o fio de idéias
que os selecionou, que os ligou, que os ordenou num determinado sistema(...)

Creio que posso afirmar que este trabalho de tese pode ser considerado com um fio
que procurou unir numa lógica determinada as pérolas da forma de ser e de agir da
Companhia de Jesus. A atuação dos jesuítas sob a bandeira do Padroado Português, a sua
formação como instrumentos da Reforma Católica, sua formação intelectual rigorosa,
escolástica e técnica, a formação da espiritualidade e a defesa do livre-arbítrio humano, a
adaptação como forma de agir nas terras em missão, a organização interna baseada na
autoridade e na unidade, e a educação como meio de divulgação e de formação da cultura
cristã-ocidental perfazem esse fio que, ao seu tempo e lugar, recolheu e uniu as pérolas
encontradas principalmente nos documentos, os quais, assim como as pérolas, são vivos e,
cada vez que são lidos nos ensinam que o passado também atualiza o presente.
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