Etnomusicologia - Revista Música

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Etnomusicologia 1

Jean-Jacques Nattiez
Université de Montréal

Lucas de Lima Coelho (tradução)


417 Universidade Estadual Paulista
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-8129-2097

Marcos Branda Lacerda (tradução)


Universidade de São Paulo
[email protected]

Resumo: A etnomusicologia estuda a música de diversos grupos étnicos e comunidades culturais de todo o
mundo. Oscilando, ao longo de seu percurso histórico, entre a análise científica de sistemas musicais e a
descrição etnográfica de seus contextos socioculturais, a etnomusicologia é não só um ramo da musicologia,
como também um ramo da antropologia ou da etnologia. O presente texto apresenta um histórico da
etnomusicologia, seus métodos e objetos de pesquisa e descreve o trabalho desempenhado pelo
etnomusicólogo.

Palavras-chave: Etnomusicologia, História da etnomusicologia, Método da etnomusicologia, Musicologia


geral.

Ethnomusicology
Abstract: Ethnomusicology studies the music of different ethnic groups and cultural communities from all
over the world. Oscillant, over the course of its history, between the scientific analysis of musical systems
and ethnographical descriptions of sociocultural contexts, Ethnomusicology is not just a branch of
Musicology, but it is also a branch of Anthropology and Ethnology. This text presents a history of the
discipline, its methods and research objects and a description of the ethnomusicologist work.

Keywords: Ethnomusicology, History of Ethnomusicology, Ethnomusicological method, General


Musicology.

A etnomusicologia estuda a música de diversos grupos étnicos e comunidades


culturais de todo o mundo. Oscilando, ao longo de seu percurso histórico, entre a análise
científica de sistemas musicais e a descrição etnográfica de seus contextos socioculturais,
a etnomusicologia é não só um ramo da musicologia, como também um ramo da
antropologia ou da etnologia.

1
“Ethnomusicologie”. Texto publicado em Dictionnaire des Musiciens. [S. l.]: Encyclopaedia Universalis
France, 2016. e-book. ISBN: 9782852291393. Agradecemos ao autor e à editora Encyclopædia Universalis
pela autorização da tradução do texto para utilização no meio acadêmico.
RevistaMúsica, v. 20 n. 2 – Dossiê Música em Quarentena
Universidade de São Paulo, dezembro de 2020
ISSN 2238-7625

Pelas questões que suscita, a etnomusicologia desempenha um papel absolutamente


peculiar em face à musicologia tradicional, pois obriga a relativizar — destacando a
especificidade de nossa cultura — as obras e as práticas musicais ocidentais. Desta
maneira, a etnomusicologia contribui para a construção progressiva de uma musicologia
geral. 418

1. Histórico da disciplina

Podemos dizer que a etnomusicologia possui um pouco mais de um século de


existência, apesar das observações e dos trabalhos de Jean-Jacques Rousseau (1768), do
padre Amiot (1779), de William Jones (1784) e Guillaume Villoteau (1816). É possível
considerar que o primeiro trabalho etnomusicológico foi o artigo de Alexander John Ellis
(1885) dedicado à análise de escalas não harmônicas, ou seja, estranhas à nossa cultura
ocidental. Em 1882, o Theodore Baker publica sua tese na Alemanha sobre “Os Selvagens
da América do Norte”, uma monografia inteiramente dedicada à música do grupo
indígena Seneca (do estado de Nova York), na qual é possível encontrar tanto observações
etnográficas quanto transcrições musicais diretamente realizadas em campo.

O trabalho daqueles que chamaremos mais tarde de etnomusicólogos é


substancialmente simplificado com o surgimento de meios mecânicos de registro sonoro.
Em 1889, o antropólogo Walter Fewkes realiza as primeiras gravações com o grupo
indígena Zuni de Passamaquoddy e, em 1902, Carl Stumpf cria o primeiro arquivo sonoro
de música não ocidental no Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim. A
existência dos arquivos e das gravações sonoras estimulou um certo número de
etnomusicólogos, principalmente na Europa, a realizar trabalhos primeiramente a partir
de músicas coletadas por outros pesquisadores. Em 1891, por exemplo, Benjamin Ives
Gilman transcreve e analisa as gravações realizadas por Fewkes.

A escola de Berlim

No fim do século XIX e começo do século XX, com Carl Stumpf, Otto Abraham e
Erich M. von Hornbostel, forma-se a primeira escola etnomusicológica: a escola de
Berlim. Estes pesquisadores se interessam pelos processos mentais ligados à música (a
NATTIEZ, Jean-Jacques; COELHO, Lucas de Lima (trad.);
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Recebido em 20/10/2020; aprovado em 03/12/2020

psicologia é, neste período, a rainha das ciências humanas), baseando-se na análise de


alturas e de melodias, nos sistemas de afinação e no temperamento de escalas e
instrumentos. Os objetivos são essencialmente comparativos, e, assim denominamos a
disciplina como musicologia comparada [vergleichende Musikwissenchaft]. Hornbostel e
419 Curt Sachs estabelecem a primeira grande classificação de todos os instrumentos
conhecidos no mundo, lançando os fundamentos de um dos eixos da etnomusicologia, a
organologia, que divide os instrumentos até os dias atuais em idiofones, membranofones,
cordofones e aerofones. Os pesquisadores inspiraram-se na teoria dos círculos culturais
[Kulturkreislehre] dos antropólogos Fritz Groebner e Wilhelm Schmidt para estudar a
difusão dos instrumentos e de características culturais musicais através do mundo. Curt
Sachs desenvolveu um tipo de abordagem muito em voga no início do século: ele isola
um aspecto específico, estudando-o pela sua manifestação ao redor do mundo. Com base
nestas comparações, ele propõe uma teoria da evolução musical. Tais propostas de
especulações históricas perduraram até a década de 1960, especialmente na análise de
escalas (como nos trabalhos de Walter Wiora e Marius Schneider em La Résonance des
Échelles Musicales, de 1963). A escola de Berlim gerou diversos discípulos, sendo
possível destacar Mieczyslaw Kolinski, que dedica suas pesquisas ao desenvolvimento
de métodos de análises comparativas de características melódicas, com o objetivo de
apontar atributos musicais universais. Convencido de que todos os sistemas de escala
observáveis no mundo são derivados do círculo das quintas, Kolinski apresenta trezentos
e quarenta e oito tipos de estruturas melódicas, observando a sua presença ou ausência
em cada uma das culturas estudadas.

A etnomusicologia americana: descrição estilística e áreas culturais

A aparência da etnomusicologia altera-se completamente à medida que a disciplina


se desenvolve nos Estados Unidos, com o estudo das músicas de grupos indígenas em seu
meio natural, próximo de grandes cidades e em reservas.

A etnomusicologia americana do período entre guerras não possui viés histórico.


Ela é principalmente descritiva e monográfica, na qual a observação etnográfica ganha
cada vez mais importância. É fato que os objetivos comparativos não são deixados de
lado, porém eles não possuem as ambições grandiosas e universais da primeira geração
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da escola de Berlim. Assim, George Herzog confronta em sua tese o estilo de duas
culturas musicais indígenas: a dos Pima e a dos Papago (1928). Herzog apoia-se
principalmente em esquemas rítmicos, tempo, acompanhamento, movimento do âmbito
melódico, maneira de cantar, equilíbrio da estrutura formal e modo de emissão [débit] de
uma melodia. Helen H. Roberts sistematiza o uso de listas de características musicais: ela 420

utiliza um conjunto de trinta e seis variáveis para classificar as maneiras de cantar de três
grupos indígenas da Califórnia (1933). A abrangência de seu método a conduz à proposta
de divisão de todas as músicas indígenas da América do Norte de acordo com zonas
culturais (1936). Assim, Roberts segue um direcionamento de pesquisa de uma
antropologia definida por Kroeber, que Bruno Nettl retomará e desenvolverá em seus
primeiros trabalhos (1954).

Paralelamente, Frances Densmore desenvolve o gênero monográfico. Preocupada


com a preservação de músicas que ela, como uma série de outros etnomusicólogos, teme
desaparecer pelo contato com a civilização ocidental, Densmore registra, transcreve e
descreve a música de treze etnias indígenas no decorrer de cinquenta anos, deixando uma
obra considerável (em cerca de quinze volumes). Densmore procura essencialmente o
que, em uma música é próprio de uma etnia, o que permite a sua identificação em um
determinado gênero. Densmore apresenta também uma grande quantidade de
informações etnográficas. Mesmo que hoje os atributos utilizados em suas pesquisas
possam ser considerados triviais, as questões formuladas e seu estilo de trabalho
antecipam consideravelmente tendências da etnomusicologia moderna. Ela é, de certa
forma, a precursora de uma tradição que se consolidará com David McAllester, que em
seu estudo “Enemy Way Music” (1954) reúne em uma mesma monografia uma seção
dedicada à etnografia dos eventos musicais e outra dedicada à transcrição e análise do
repertório musical. Pela primeira vez, um trabalho norte-americano aborda tanto o
material antropológico quanto o estudo musicológico.

As pesquisas de Alan Lomax (1968) marcam definitivamente o reencontro entre as


duas abordagens, ao mesmo tempo que sintetizam as correntes etnomusicológicas
precedentes: a que possui objetivos comparativos e universais: o mundo é dividido em
seis grandes regiões e cinquenta e seis áreas culturais representadas por duzentas e trinta
e três culturas específicas; a que possui objetivos estilísticos e descritivos: a cantometria
descreve o estilo de execução dos cantos a partir de trinta e sete atributos, admitindo treze
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variáveis; a que possui objetivos etnográficos: a imagem obtida de cada região cultural é
avaliada através da relação análoga a atributos culturais característicos de cada região,
definidos a partir do trabalho de Robert Murdock. A metodologia de Lomax levanta
diversos problemas: a amostragem de cada região é pertinente? A avaliação dos atributos
421 é adequada? A avaliação conjunta de características musicais e etnográficas é
convincente? De qualquer modo, certamente o trabalho de Lomax é uma das primeiras
tentativas de responder a questões musicológicas na etnografia e questões etnográficas na
musicologia, como aponta Charles Boilès.

Não é de se espantar, portanto, que nos anos 1950 a disciplina foi rebatizada como
“etnomusicologia” (escrita inicialmente como “etno-musicologia”) por Jaap Kunst ou
André Schaeffner (a autoria do termo ainda é muito discutida) 2. Nos dois lados do
Atlântico, a dimensão antropológica dos estudos musicais adquire cada vez mais
importância.

Os etnomusicólogos também foram a campo na Europa Central. Há uma intensa


atividade de coleta e transcrição de um corpus próprio à cultura desta região, porém por
motivos substancialmente distintos. Desde o surgimento do grupo dos Cinco,
principalmente com Mili Balakirev, há preocupação em preservar as fontes musicais
nacionais. Estes pesquisadores, conhecidos como folcloristas, recolhiam música
camponesa e popular de seus países, contrastando-a com a música “erudita”. Dois nomes
se destacam: Bartók e Kodály. Poderíamos suspeitar que o trabalho etnomusicológico do
compositor Bartók possuía um interesse particular na obtenção de material musical
sobretudo para inspiração composicional, porém, mesmo que Bartók tenha se inspirado
em estilos ou escalas camponesas, podemos dizer que ele nunca citou textualmente
melodias ou temas em suas obras. Bartók, na verdade, reforça claramente sua visão e
interesse por uma etnomusicologia de caráter científico, demandando aos musicais

2
N. T.: A discussão se concentra em torno da publicação, em 1950, do livro Musicologica: a Study of the
Nature of Ethno-Musicology, its Problems, Methods and Representative Personalities (Amsterdam: Indisch
Institut, 1950), de Jaap Kunst e a renomeação no início da década de 1950 do Departamento de Etnologia
Musical do Museu do Homem de Paris para Departamento de Etnomusicologia sob direção de André
Schaeffner.
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quando demanda aos pesquisadores de campo de superar objetivos puramente estéticos


em prol de uma pesquisa com viés científico.

O trabalho de Bartók e de seus colaboradores é imenso. Eles transcreveram 3700


melodias húngaras, 3500 romenas, 3223 eslovacas, 89 turcas e mais de 200 servo-croatas,
ucranianas e búlgaras. Se, por um lado, os objetivos de Bartók eram históricos e 422

comparativos — “é preciso distinguir os vínculos e interdependências, trazer à tona todas


as músicas da terra em suas mais diversas formas, tipos e estilos primitivos” —, seu
trabalho analítico empírico é, sobretudo, de cunho classificatório, com uma atenção
particular ao inventário de motivos e de suas variantes, trabalho a partir do qual ele se
esforçava para elaboração de redes de influências.

etnomusicologia francófona. Um árduo pesquisador de campo (entre 1929 e 1932), criou


o Arquivo Romeno de Folclore em 1929. Prosseguiu sua carreira em Genebra, onde criou
o Arquivo Internacional de Música Popular, e, em seguida, em Paris, trabalhando no
Centro Nacional de Pesquisa Científica (C.N.R.S.) de 1948 até sua morte prematura em
1958. Além de algumas monografias (Note sur la plainte funèbre de Dragus, 1932; Les
Plaintes funèbres de l’Oas, 1938; La vie musicale d’un village
uma série de importantes ensaios que concentram-se em quatro ideias-chave: os estudos
do folclore musical se situam entre a musicologia e a sociologia; dada a impossibilidade
de registro de todos os membros de uma comunidade, é preciso definir com critérios
precisos quais são os informantes-tipo [informateurs types]; é supérflua a pesquisa que
busca a origem e a difusão de um determinado canto; o que se pode estudar e o que, de
fato, caracteriza a transmissão oral na música popular, é a “tendência à variação”, de onde
resulta a necessidade de registrar diferentes versões de uma mesma peça. Para detalhar

reescreve-se os elementos novos para cada versão em comparação com a primeira


transcrição. Através do estudo das variações, procura-se compreender o funcionamento
da tradição oral: o conjunto de sua obra é constituído pela pesquisa de sistemas que lhe
são subjacentes. Nesta perspectiva, seus trabalhos mais detalhados abordam o ritmo (a
rítmica infantil, o ritmo aksak, o giusto silábico) e as escalas, principalmente a
p
francesa, porém seu alcance internacional foi tardio. (Seus trabalhos, compilados na
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França em 1973 por Gilbert Rouget, foram traduzidos para o inglês somente em 1984,
concomitante ao lançamento de uma reedição suíça bilíngue da Collection universelle des
musiques populaires enregistrées, realizada nos anos 1950).

423
A antropologia na música

Por outro lado, a etnomusicologia anglófona privilegiava o componente etnográfico


em suas pesquisas. Em 1964, Alan Merriam publica seu Anthropology of Music, obra
cujo ponto de partida não é mais a musicologia, mas a antropologia, pois, segundo
Merriam, os fenômenos musicais podem ser compreendidos apenas contextualizados em
suas culturas de origem: “Ethnomusicology is the study of music in culture." (“A
etnomusicologia é o estudo da música na cultura”). Merriam divide sua obra em seis eixos
essenciais de investigação: a cultura musical em seu aspecto material — os instrumentos,
seus significados para as pessoas que os utilizam e sua função econômica; os textos dos
cantos e sua relação com a música; os tipos de música tais quais definidos pela população
de uma determinada cultura; o músico (qual a sua função, seu status? Como é visto pela
comunidade? Como é a aprendizagem musical?); os usos e funções da música; a música
como atividade musical criativa.

A partir de então, a atenção volta-se para o contexto cultural. Nesta perspectiva,


Hugo Zemp, em sua bela monografia La musique Dan (1971), estuda a música implicada
no pensamento e vida social de uma sociedade africana, seguindo as orientações de
pesquisa de Merriam, não mencionando uma nota musical sequer ao longo do trabalho.
O pequeno livro de John Blacking, How musical is man? (1973), irá ainda mais longe
nessa direção. Através de um quadro que utiliza da concepção marxista de influência da
infraestrutura sobre a superestrutura, Blacking considera que a cultura determina
integralmente a música, e que, portanto, é através da etnografia que convém iniciar o
estudo de uma civilização musical.

É evidente que a vertente antropológica da etnomusicologia ampliou


consideravelmente o campo de investigação da disciplina. Podemos questionar se todos
os estudos empíricos que derivam desta vertente, atualmente dominante na área,
conseguiram provar o condicionamento total da música pelo seu contexto. Possuímos a
tendência de ficar satisfeitos apenas com a descrição do ambiente cultural para explicar
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o fenômeno musical. Atualmente evidencia-se a influência de certas características


culturais e sociais sobre a execução musical do que propriamente sobre seu estilo e sua
estrutura. Assim, partindo das tentativas programáticas de Bruno Nettl e George P.
Springer, Vida Chenoweth utilizou os modelos da fonologia para a reconstrução de
escalas musicais. Atualmente podemos encontrar diversas gramáticas generativas que 424

descrevem estilos musicais específicos, como, por exemplo, a de Judith e Alton Becker
(1979) sobre o srepegan javanês. A técnica de análise paradigmática, derivada das
proposições de Nicolas Ruwet, é a base do monumental trabalho de Simha Arom sobre
polifonias e polirritmias da África Central (1985).

Enfim, a antropologia da música gerou um novo importante eixo de pesquisa: o


estudo de etnoteorias. Acreditou-se por muito tempo que os “selvagens” não formulavam
conceitos sobre suas próprias músicas, porém pesquisadores como Hugo Zemp e Steven
Feld ressaltaram que talvez eles utilizassem metáforas para falar de fatos musicais,
possíveis de serem compreendidas se recolocadas no contexto de sua cultura, de seus
mitos e de seu pensamento religioso. Zemp foi responsável pela realização de um filme
excepcional sobre os ‘Are ‘are, no qual vemos um dos “sábios” da comunidade
explicando o sistema musical que utilizam. Feld publicou o livro Sound and Sentiment
(1982), dedicado aos Kaluli da Nova Guiné, obra que inaugura uma nova página da
etnomusicologia, elevando o seu nível de exigência.

A etnomusicologia francesa

Podemos ficar surpresos com o pouco espaço dado à etnomusicologia francesa. É

estabeleceram novos meios de pesquisa para a etnomusicologia. Uma das únicas exceções
é, talvez, a Origine des instruments de musique, de André Schaeffner (1936), que propõe
uma hipótese sinestésica sobre a origem da música: ela nasce do corpo e do gesto, e o
corpo, utilizando chocalhos, por exemplo, é literalmente cercado pela música. Ao lado de
uma abordagem histórica que talvez possua falta de provas arqueológicas, a obra de
Schaeffner abre grande espaço para a dimensão sociológica do problema. Em sua
proposta de classificação dos instrumentos, o autor não se atém somente à uma descrição
morfológica, mas foca em sua inserção no sistema de pensamento e no contexto étnico
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da cultura em que nasceram. Nesta perspectiva, os instrumentos são descritos como


signos.

Isso quer dizer que não se desenvolveu uma etnomusicologia francesa? Pelo
contrário, diversos trabalhos da maior qualidade foram realizados. Ela possui um grande
425 ecletismo na escolha de métodos de investigação e de análise, e uma grande diversidade
geográfica: folclore francês (Marcel-Dubois; M. Pichonnet-Andral), África Ocidental,
Ilhas Salomão e Suíça (H. Zemp), África Central (Simha Arom, Vincent Dehoux), Europa
Mediterrânea, Marrocos, Etiópia (B. Lortat-Jacob), Ásia, Tibet, Nepal (M. Helffer),
Chade, Líbia (M. Brandily), Vietnã (Tran Van Khe, Tran Quang Hai), Índia (A.
Daniélou), Afeganistão (P. Pitoeff), Rajastão (G. Dournon). Merece uma menção especial
o trabalho de Gilbert Rouget, diretor do Departamento de musicologia do Museu do
Homem entre 1964 e 1985, especialista na África negra. Em sua obra, fruto de longos
anos de reflexão e pesquisa, La musique et la transe (1980), o autor retoma uma tendência
rara na disciplina: o trabalho de síntese sobre um problema específico (como em La
Musique et la magie, de Combarieu, 1909, ou Rhythm and Tempo de Curt Sachs, 1953).

2. Métodos e objetos da etnomusicologia: entre o universal e o cultural

Se hoje não estamos no ponto de apresentar uma definição suficientemente estável


do que é etnomusicologia, é devido à dificuldade de caracterização de seus métodos e de
seu objeto de estudo. Até mesmo sua definição atual, que possui pouco menos de quarenta
anos, indica bem esta relativa instabilidade.

Os dois polos da etnomusicologia

Do ponto de vista metodológico, podemos dizer que a etnomusicologia oscila entre


dois polos.

De um lado, possui sua vocação comparativa e universal. Estuda o conjunto de


músicas do mundo, como Nettl afirma com humor: “o etnomusicólogo é guloso”. Essa
orientação manifesta um caráter ético da pesquisa, ou seja, parte da percepção própria do
pesquisador e dos valores de sua própria cultura, uma distinção que ocorre na
antropologia e na linguística.
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De outro lado, a etnomusicologia, em sua versão mais etnológica do que


musicológica possui a tendência de privilegiar a especificidade cultural de uma
civilização musical. As investigações comparativas e as generalizações são deixadas de
lado para valorizar a abordagem específica e monográfica. A abordagem deve ser êmica,
isto é, baseada no sistema de pensamento das próprias culturas para as pesquisas. Em uma 426

posição mais radical, a análise deve ser realizada por algum membro da própria
comunidade e não pelo pesquisador. É possível realizar paralelismos entre duas posições:
do ponto de vista “ético” formulamos julgamentos de valor, afirmando, por exemplo, que
a música de Bali ou de Java é mais bonita que a música monótona de grupos indígenas
americanos. Do ponto de vista “êmico” tomamos a posição de desconfiar de todo e
qualquer julgamento estético etnocêntrico adotando os critérios das próprias culturas
estudadas, admitindo que nossos valores não são universais pois também são
consequência de nossa história cultural.

Assim, percebemos os dilemas que a etnomusicologia deve enfrentar. Em sua


vertente comparativa pesquisa-se sobre aspectos universais da música, o que é uma
questão legítima do ponto de vista antropológico, como bem apontado no título do livro
de John Blacking How musical is man?. Na vertente culturalista a pesquisa tende a
abordar especificamente cada cultura, colocando a personalidade do pesquisador de lado.
Tal posição leva indiscutivelmente a um paradoxo pois, por definição, a disciplina
etnomusicológica, como instituição, é um produto da civilização ocidental, e interessa-se
pelo que nós consideramos como fato musical, a partir de categorias de pensamento e
ferramentas metodológicas elaboradas pela nossa história científica.

As grandes questões da etnomusicologia

Para além de sua diversidade de escolas e tendências, não é de se espantar que a


etnomusicologia também seja constantemente discutida e confrontada pelas mesmas
questões recorrentes, inventariadas por Bruno Nettl em The Study of Ethnomusicology
(1983). Atualmente, opõe-se a especificidade das culturas musicais à concepção
etnocêntrica de uma “música como linguagem universal”. Além disso, observamos que
se a maioria das sociedades utiliza diferentes termos para diferentes gêneros musicais,
elas estão longe de possuir o equivalente à palavra “música”. Mesmo que uma
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comunidade utilize uma única palavra para se referir a estes gêneros, tal palavra,
considerando fronteiras semânticas, não corresponderá necessariamente àquilo que nós
definimos como música e não-música (fala, ruído), admitindo que esta distinção é clara
em nossa cultura. Assim, em algumas situações, a etnomusicologia questiona os critérios
427 que distinguem a fala do canto. O contínuo “fala-dança-música” também é evocado, pois
é difícil dissociar o gesto coreográfico da execução musical em algumas culturas.

O conceito de obra musical também não é tão simples. Qual o critério para se
identificar uma peça, um canto? Seria seu título? O primeiro verso ou a primeira frase? E
o que dizer de manifestações musicais que não possuem título, que consistem em
processos determinados por escalas, esquemas de improvisação ou motivos?

A comparação entre as diferentes informações levantadas ao redor do mundo


permitiu perceber a espantosa diversidade das estruturas e processos composicionais
existentes. Assim, distingue-se com frequência as músicas de origem não-europeia que
são consideradas artísticas (como a música da Índia, de Bali ou de Java) e as músicas
tradicionais populares (como as dos Esquimós, dos Pigmeus ou de grupos indígenas da
América do Norte). Uma divisão análoga ocorre em países da Europa, quando
diferenciam a música erudita (Bach, Beethoven, Schoenberg...) da música popular
camponesa. Acreditou-se por muito tempo na oposição entre as duas, chegando ao ponto
de se definir a etnomusicologia como o estudo das músicas que não possuíam teoria. Não
se dava importância a músicas asiáticas e árabes, porém era difícil negar a existência de
etnoteorias após os trabalhos de Hugo Zemp e Steven Feld, sem falar do reconhecimento
do
relação com as estratégias criativas desconhecemos. Com absoluta certeza podemos
apontar a diferenciação entre as etnoteorias e as teorias ocidentais, porém é impossível
negar o status de teoria a elas, considerando que estas teorias se mostram determinantes
para a prática musical.

Do ponto de vista composicional, os objetos abordados são infinitos: desde peças


compostas que podem ser repetidas com certa estabilidade até músicas de maneira
processual continuamente renovadas. Investigações contemporâneas sobre os sistemas
musicais e os modelos que os sustentam, como as de Simha Arom, impõem sérios limites
ao conceito de improvisação. E tal questionamento não se aplica apenas naquilo que se
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considera “música de tradição oral”. Em algumas culturas musicais da Ásia existe a


notação musical stricto sensu. A música de cantos esquimós, composta e ensinada através
da memória, é efetivamente transmitida oralmente, porém os Inuit podem utilizar como
apoio a escritura dos textos de seus cantos em alfabeto silábico, que aprenderam com
missionários no início do século. Há casos, portanto, onde a oralidade não é tão pura 428

quanto acreditávamos

Da mesma maneira que a antropologia se definiu por muito tempo como a


disciplina que estuda as sociedades “frias”, concepção que foi completamente alterada
pela etnohistória, a etnomusicologia foi considerada por muito tempo como uma
disciplina puramente sincrônica. Desde os princípios da etnomusicologia havia
especulações sobre a origem da música em si, principalmente pela influência de teorias
difusionistas. Tais especulações desapareceram no momento em que a comunidade
científica se recusou a utilizar conceitos de “primitividade” ou antiguidade. Isto quer dizer
que a perspectiva histórica havia desaparecido da etnomusicologia? Não saberíamos
afirmar. Descobertas e pesquisas recentes sobre o funcionamento do cérebro estão
trazendo de volta a discussão sobre a origem da música em relação à linguagem, porém
através de uma base biológica, como sugerido no ensaio de Blacking. Além disso,
questões de ordem histórica ressurgem no âmbito de estudos sobre mudança musical. A
mundialização da cultura euro-americana pelas mídias audiovisuais, a proximidade entre
as nossas culturas e as culturas caçadoras-coletoras, o surgimento de um “quarto mundo”
em países industrializados, a presença de povos tradicionais e aborígenes nas cidades e o
desenvolvimento da etnomusicologia urbana transformam o estudo das práticas musicais,

Berlim, mas aborda nosso ambiente contemporâneo.

Ainda podemos dizer que a etnomusicologia se dedica principalmente ao estudo


das músicas funcionais. A inclusão de observações etnográficas na disciplina permitirá a
inventariar as “circunstâncias musicais” sob as quais são praticadas as músicas estudadas:
músicas relacionadas com trabalho, músicas religiosas, músicas ligadas ao teatro (C.
Boilès, 1978) e, de modo mais amplo, músicas de comemorações festivas (B. Lortat-
Jacob, 1980). Tal constatação, porém, leva a questionamentos teóricos complexos: a
estrutura dessas músicas é moldada pelo seu contexto? Os funcionalistas afirmam que
sim, mas o demonstram de fato? A recente corrente culturalista parece-nos trazer uma
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resposta padrão sobre o elo entre música e cultura: a música pode ter como função o
reforço da coesão de uma sociedade, mas poderíamos questionar como e, principalmente,
por quê. Este determinismo cultura-música frequentemente se esquece da possibilidade
de uma origem histórica das linguagens musicais, como oportunamente demonstrou
429 Herzog nos anos 1930. Os funcionalistas dificilmente admitem que as populações
tradicionais podem atribuir valores estéticos às próprias produções musicais, mesmo que
existam alguns tímidos ensaios publicados sobre a “etnoestética”. Ora, considerando que
o amor seja um comportamento humano universal, seria estranho acreditar que a beleza
também não o seja, sendo difícil de acreditar que a música não se inclua nestes termos.

De toda maneira, este problema, que lida com valores extremamente delicados,
deixa uma questão aberta na etnomusicologia. O etnomusicólogo deve ter interesse em
todas as formas musicais de uma cultura e em todas as culturas do mundo. “Para ele, todas
as músicas são iguais”, escreve Nettl.

Assim, mesmo que a etnomusicologia se desvie das grandes comparações para


estudar culturas específicas, ela vai adquirindo aos poucos o status de uma vasta
musicologia geral que leva em consideração todo o conjunto de músicas. Podemos então
nos questionar legitimamente sobre as fronteiras da etnomusicologia: Ela é limitada por
músicas de tradição oral? Vimos que a oralidade não é um critério satisfatório. Ela é
limitada por músicas populares? Porém, como é possível definir o limite entre as músicas
camponesas de um lado, e o jazz e a música popular urbana [la variété] do outro?
Poderíamos tentar apresentar uma definição negativa: a etnomusicologia aborda tudo
aquilo que a musicologia clássica não estuda. Porém, novamente corre-se o risco de se
deparar com algumas surpresas. Com efeito, todas as questões de musicologia geral
levantadas pela etnomusicologia não compreendem também a música ocidental?
Considerando nossa própria cultura musical como uma entre outras, não haveria interesse
em realizar comparações entre culturas extra-ocidentais e nossos sistemas de ensino, de
composição, de interpretação e de avaliação, nosso ambiente de execução e todo o ritual
presente em um concerto? Alguns trechos do manual de Nettl, além de um belo capítulo
de La musique et la Transe de Rouget — que traz as observações de um músico africano
na perspectiva de uma Etnomusicologia apócrifa sobre um concerto na Ópera de Paris —
, deixam entrever o dia em que a “gulodice” do etnomusicólogo o levará a engolir também
a música ocidental. Desta forma teríamos uma reviravolta completa: a musicologia
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comparada, nascida com escola de Berlim, interessava-se principalmente por parâmetros


sonoros possíveis de serem analisados com ferramentas da musicologia clássica;
considerando um cenário de relativização cultural, a etnomusicologia do amanhã
absorverá a música de Mozart e de Wagner doravante no mesmo nível das músicas dos
Pigmeus e dos Papuásios. 430

3. O trabalho do etnomusicólogo

O trabalho de campo

Nossa época dificilmente admite a “etnomusicologia de gabinete” de outrora. A


etnomusicologia vai a campo, e o campo é exigente. Antes de tudo, ele demanda uma
séria preparação: leitura de toda literatura musicológica e etnográfica sobre a população
abordada, escuta de discos já produzidos, de gravações preservadas em arquivos,
entrevistas com antropólogos, linguistas e outros etnomusicólogos que já visitaram a
região e, por vezes, com pessoas da comunidade que vivem nas cidades. A preparação
técnica também não é pouca: compra ou aluguel de gravadores e câmeras
cinematográficas. Para o etnomusicólogo, o caminho inicia muito antes da investigação
propriamente dita.

O tempo de permanência em campo é variável: alguns preferem realizar visitas


repetidas de um ou dois meses por razões econômicas e familiares. Nos Estados Unidos,
dificilmente um doutorando da área é aprovado caso tenha passado menos de um ano em
campo. Mantle Hood (1971) fala de vários anos, dos quais o primeiro deve ser dedicado
unicamente a se impregnar dos usos e costumes da região e ser aceito no ambiente.
Problemas éticos podem surgir: até onde é possível adentrar na vida — política,
particularmente — de uma comunidade? Evidentemente, esta é uma questão de tato, de
personalidade e de objetivos. A tradicional técnica do questionário é substituída pela
vivência cultural e pela observação participante. Aprendemos sobre uma cultura musical
da mesma maneira que aprendemos um idioma, e, a esse respeito, Hood desenvolveu o
interessante conceito de bi-musicalidade, considerando que a aprendizagem musical é
uma das tarefas essenciais do etnomusicólogo, algo que é contestado por muitos.
NATTIEZ, Jean-Jacques; COELHO, Lucas de Lima (trad.);
LACERDA, Marcos Branda (trad.). Etnomusicologia, p. 417-434.
Recebido em 20/10/2020; aprovado em 03/12/2020

Transcrição e análise

No retorno, o pesquisador deve realizar um longo trabalho de refinamento: passar


a limpo as anotações e o diário de campo, elaborar um catálogo das peças registradas,

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realizar a cópia das gravações para preservação, depositar em arquivo, reenviar o material
para a comunidade visitada.

Assim, é possível iniciar a exploração do material. Há necessidade de transcrever


sistematicamente tudo o que foi registrado? Alguns consideram que é possível obter mais
informações de uma peça, de um estilo ou de todo um corpus destacando características
específicas após diversas escutas atentas. Tudo depende dos objetivos. Houve tempos em
que a transcrição possuía a função de preservação. Bartók, na elaboração de seu Corpus
Musicae hungaricae, fornece não apenas a base para um estudo científico como também
reúne e possibilita a difusão do conjunto de músicas populares húngaras. Neste ponto,
porém, o etnomusicólogo enfrenta dois dilemas particularmente bem destacados por
Charles Seeger. Em primeiro lugar, não é possível realizar uma transcrição que seja
simultaneamente prescritiva (destinada à execução) e descritiva (destinada à análise). E,
no caso da transcrição descritiva, até onde se pode ir naquilo que os americanos chamam
de minutiae? Em segundo lugar, deve-se realizar uma transcrição que valorize o aspecto
“ético”, procurando registrar tudo que é percebido pela audição (do pesquisador
ocidental) ou por uma máquina (Seeger foi responsável pela invenção do “melógrafo”,
altamente eficaz na transcrição automática e detalhada de monodias), ou uma transcrição
“êmica”, que tem seu fundamento em características pertinentes ao sistema estudado?
Mas, como mostram os trabalhos empíricos de V. Chenoweth (1979), é raro, em particular
para as alturas, a possibilidade de estabelecer uma transcrição êmica sem antes passar por
uma transcrição ética.

Em seguida vem a análise. Não existem muitos métodos de análise na


etnomusicologia. Aqui, novamente, não existem métodos que não se definam em função
dos objetivos: o de M. Kolinski possui objetivos universalizantes; o de A. Lomax insere-
se em seu projeto de cantometria; o de Béla Bartók (1936) visa classificações; os de G.
Herzog, B. Nettl ou H. Roberts descrevem as peças e o corpus segundo um conjunto de
características pertinentes, a fim de produzir uma caracterização estilística (porém esse
conjunto de características é suficientemente apurado e pertinente para permitir as
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necessárias diferenciações?); e, enfim, os métodos emprestados dos modelos da


linguística (fonologia, técnicas paradigmáticas, gramáticas generativas), que atraíram
muito o interesse dos etnomusicólogos, já que não dispunham, como seus colegas, de
uma ferramenta elaborada por vários séculos para a análise harmônica.

Atualmente observamos uma queda de interesse pela análise enquanto tal. Os 432

pesquisadores trabalham mais na descrição do contexto sociocultural do fato musical,


com uma insistência particular, nestes últimos anos, nas formas de execução. Porém, toda
disciplina científica é marcada pela oscilação entre diversos polos de preocupação, e seria
surpreendente se os problemas de análise não venham a retornar com força em um futuro
próximo.

As publicações

O etnomusicólogo pode atuar como arquivista, e realizar a gestão de coleções


fonográficas, como as da seção de etnomusicologia do Museu do Homem de Paris, do
Museu Nacional de Artes e Tradições Populares (renomeado como Departamento de
Música), do Museu Guimet, nos Estados Unidos, ou como as do importante Arquivo de
Música Tradicional de Bloomington ou da Biblioteca do Congresso de Washington. O
Museu de Etnografia de Genebra é responsável pelos Arquivo Internacional de Música
Popular. Ele também pode se especializar na conservação de instrumentos. A
organologia, como demonstrada por Sachs e Schaeffner, é uma das principais áreas da
pesquisa etnomusicológica.

Os principais periódicos da área são: Ethnomusicology, órgão da Society for


Ethnomusicology, que realiza congressos no continente Norte Americano; Yearbook for
Traditional Music, do Conselho Internacional para Música Tradicional, de alcance
mundial; e The World of Music, do Conselho Internacional de Música da UNESCO,
publicado em Berlim. Alguns periódicos são especializados por setores, como Asian
Music ou Yearbook for Interamerican Musical Research. Artigos de destaque também
são publicados em revistas de musicologia, como Analyse musicale. Podemos encontrar
uma lista de monografias sobre culturas musicais específicas em uma seleção
bibliográfica publicada na revista Musique en jeu, nº 28, de 1977.
NATTIEZ, Jean-Jacques; COELHO, Lucas de Lima (trad.);
LACERDA, Marcos Branda (trad.). Etnomusicologia, p. 417-434.
Recebido em 20/10/2020; aprovado em 03/12/2020

Enfim, o etnomusicólogo também pode publicar discos, atividade sobre a qual


alguns se mostram hesitantes talvez por difíceis problemas de direitos autorais e
comprometimentos comerciais, além da legitimidade científica de tal ação. É inegável a
contribuição à área proporcionada por coleções como as do Museu do Homem de Paris,
433 a coleção Musical Sources (da UNESCO), o selo OCORA (da Radio France), do
ORSTOM (França) ou do Folkways (Estados Unidos), que, transmitidas pelas rádios,
expandiram a consciência musical dos amantes da música ao mesmo tempo que serviram
como fontes documentais ao especialista, mais acessíveis que as coleções de arquivo.

Por fim, a etnomusicologia surge como um vasto cruzamento de disciplinas e exige


conhecimentos e qualidades múltiplas do etnomusicólogo. No plano humano: energia,
saúde, perseverança, ao mesmo tempo que exige sensibilidade, tato e diplomacia. No
plano científico: obviamente, competência musical, além de conhecimentos linguísticos
e antropológicos. Seria possível uma única pessoa acompanhar a evolução do
conhecimento de todas essas disciplinas ao mesmo tempo que desenvolve pesquisas sobre
uma ou mais culturas? Tudo depende de cada indivíduo, mas uma coisa é certa: não
conseguimos levar a sério os estudos e pesquisas etnomusicológicas se não possuirmos
uma curiosidade e sensibilidade que excedam o âmbito estritamente musical. O trabalho
do etnomusicólogo é talvez um dos mais difíceis dentre todas as ciências humanas.

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