Etnomusicologia - Revista Música
Etnomusicologia - Revista Música
Etnomusicologia - Revista Música
Jean-Jacques Nattiez
Université de Montréal
Resumo: A etnomusicologia estuda a música de diversos grupos étnicos e comunidades culturais de todo o
mundo. Oscilando, ao longo de seu percurso histórico, entre a análise científica de sistemas musicais e a
descrição etnográfica de seus contextos socioculturais, a etnomusicologia é não só um ramo da musicologia,
como também um ramo da antropologia ou da etnologia. O presente texto apresenta um histórico da
etnomusicologia, seus métodos e objetos de pesquisa e descreve o trabalho desempenhado pelo
etnomusicólogo.
Ethnomusicology
Abstract: Ethnomusicology studies the music of different ethnic groups and cultural communities from all
over the world. Oscillant, over the course of its history, between the scientific analysis of musical systems
and ethnographical descriptions of sociocultural contexts, Ethnomusicology is not just a branch of
Musicology, but it is also a branch of Anthropology and Ethnology. This text presents a history of the
discipline, its methods and research objects and a description of the ethnomusicologist work.
1
“Ethnomusicologie”. Texto publicado em Dictionnaire des Musiciens. [S. l.]: Encyclopaedia Universalis
France, 2016. e-book. ISBN: 9782852291393. Agradecemos ao autor e à editora Encyclopædia Universalis
pela autorização da tradução do texto para utilização no meio acadêmico.
RevistaMúsica, v. 20 n. 2 – Dossiê Música em Quarentena
Universidade de São Paulo, dezembro de 2020
ISSN 2238-7625
1. Histórico da disciplina
A escola de Berlim
No fim do século XIX e começo do século XX, com Carl Stumpf, Otto Abraham e
Erich M. von Hornbostel, forma-se a primeira escola etnomusicológica: a escola de
Berlim. Estes pesquisadores se interessam pelos processos mentais ligados à música (a
NATTIEZ, Jean-Jacques; COELHO, Lucas de Lima (trad.);
LACERDA, Marcos Branda (trad.). Etnomusicologia, p. 417-434.
Recebido em 20/10/2020; aprovado em 03/12/2020
da escola de Berlim. Assim, George Herzog confronta em sua tese o estilo de duas
culturas musicais indígenas: a dos Pima e a dos Papago (1928). Herzog apoia-se
principalmente em esquemas rítmicos, tempo, acompanhamento, movimento do âmbito
melódico, maneira de cantar, equilíbrio da estrutura formal e modo de emissão [débit] de
uma melodia. Helen H. Roberts sistematiza o uso de listas de características musicais: ela 420
utiliza um conjunto de trinta e seis variáveis para classificar as maneiras de cantar de três
grupos indígenas da Califórnia (1933). A abrangência de seu método a conduz à proposta
de divisão de todas as músicas indígenas da América do Norte de acordo com zonas
culturais (1936). Assim, Roberts segue um direcionamento de pesquisa de uma
antropologia definida por Kroeber, que Bruno Nettl retomará e desenvolverá em seus
primeiros trabalhos (1954).
variáveis; a que possui objetivos etnográficos: a imagem obtida de cada região cultural é
avaliada através da relação análoga a atributos culturais característicos de cada região,
definidos a partir do trabalho de Robert Murdock. A metodologia de Lomax levanta
diversos problemas: a amostragem de cada região é pertinente? A avaliação dos atributos
421 é adequada? A avaliação conjunta de características musicais e etnográficas é
convincente? De qualquer modo, certamente o trabalho de Lomax é uma das primeiras
tentativas de responder a questões musicológicas na etnografia e questões etnográficas na
musicologia, como aponta Charles Boilès.
Não é de se espantar, portanto, que nos anos 1950 a disciplina foi rebatizada como
“etnomusicologia” (escrita inicialmente como “etno-musicologia”) por Jaap Kunst ou
André Schaeffner (a autoria do termo ainda é muito discutida) 2. Nos dois lados do
Atlântico, a dimensão antropológica dos estudos musicais adquire cada vez mais
importância.
2
N. T.: A discussão se concentra em torno da publicação, em 1950, do livro Musicologica: a Study of the
Nature of Ethno-Musicology, its Problems, Methods and Representative Personalities (Amsterdam: Indisch
Institut, 1950), de Jaap Kunst e a renomeação no início da década de 1950 do Departamento de Etnologia
Musical do Museu do Homem de Paris para Departamento de Etnomusicologia sob direção de André
Schaeffner.
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Universidade de São Paulo, dezembro de 2020
ISSN 2238-7625
França em 1973 por Gilbert Rouget, foram traduzidos para o inglês somente em 1984,
concomitante ao lançamento de uma reedição suíça bilíngue da Collection universelle des
musiques populaires enregistrées, realizada nos anos 1950).
423
A antropologia na música
descrevem estilos musicais específicos, como, por exemplo, a de Judith e Alton Becker
(1979) sobre o srepegan javanês. A técnica de análise paradigmática, derivada das
proposições de Nicolas Ruwet, é a base do monumental trabalho de Simha Arom sobre
polifonias e polirritmias da África Central (1985).
A etnomusicologia francesa
estabeleceram novos meios de pesquisa para a etnomusicologia. Uma das únicas exceções
é, talvez, a Origine des instruments de musique, de André Schaeffner (1936), que propõe
uma hipótese sinestésica sobre a origem da música: ela nasce do corpo e do gesto, e o
corpo, utilizando chocalhos, por exemplo, é literalmente cercado pela música. Ao lado de
uma abordagem histórica que talvez possua falta de provas arqueológicas, a obra de
Schaeffner abre grande espaço para a dimensão sociológica do problema. Em sua
proposta de classificação dos instrumentos, o autor não se atém somente à uma descrição
morfológica, mas foca em sua inserção no sistema de pensamento e no contexto étnico
NATTIEZ, Jean-Jacques; COELHO, Lucas de Lima (trad.);
LACERDA, Marcos Branda (trad.). Etnomusicologia, p. 417-434.
Recebido em 20/10/2020; aprovado em 03/12/2020
Isso quer dizer que não se desenvolveu uma etnomusicologia francesa? Pelo
contrário, diversos trabalhos da maior qualidade foram realizados. Ela possui um grande
425 ecletismo na escolha de métodos de investigação e de análise, e uma grande diversidade
geográfica: folclore francês (Marcel-Dubois; M. Pichonnet-Andral), África Ocidental,
Ilhas Salomão e Suíça (H. Zemp), África Central (Simha Arom, Vincent Dehoux), Europa
Mediterrânea, Marrocos, Etiópia (B. Lortat-Jacob), Ásia, Tibet, Nepal (M. Helffer),
Chade, Líbia (M. Brandily), Vietnã (Tran Van Khe, Tran Quang Hai), Índia (A.
Daniélou), Afeganistão (P. Pitoeff), Rajastão (G. Dournon). Merece uma menção especial
o trabalho de Gilbert Rouget, diretor do Departamento de musicologia do Museu do
Homem entre 1964 e 1985, especialista na África negra. Em sua obra, fruto de longos
anos de reflexão e pesquisa, La musique et la transe (1980), o autor retoma uma tendência
rara na disciplina: o trabalho de síntese sobre um problema específico (como em La
Musique et la magie, de Combarieu, 1909, ou Rhythm and Tempo de Curt Sachs, 1953).
posição mais radical, a análise deve ser realizada por algum membro da própria
comunidade e não pelo pesquisador. É possível realizar paralelismos entre duas posições:
do ponto de vista “ético” formulamos julgamentos de valor, afirmando, por exemplo, que
a música de Bali ou de Java é mais bonita que a música monótona de grupos indígenas
americanos. Do ponto de vista “êmico” tomamos a posição de desconfiar de todo e
qualquer julgamento estético etnocêntrico adotando os critérios das próprias culturas
estudadas, admitindo que nossos valores não são universais pois também são
consequência de nossa história cultural.
comunidade utilize uma única palavra para se referir a estes gêneros, tal palavra,
considerando fronteiras semânticas, não corresponderá necessariamente àquilo que nós
definimos como música e não-música (fala, ruído), admitindo que esta distinção é clara
em nossa cultura. Assim, em algumas situações, a etnomusicologia questiona os critérios
427 que distinguem a fala do canto. O contínuo “fala-dança-música” também é evocado, pois
é difícil dissociar o gesto coreográfico da execução musical em algumas culturas.
O conceito de obra musical também não é tão simples. Qual o critério para se
identificar uma peça, um canto? Seria seu título? O primeiro verso ou a primeira frase? E
o que dizer de manifestações musicais que não possuem título, que consistem em
processos determinados por escalas, esquemas de improvisação ou motivos?
quanto acreditávamos
resposta padrão sobre o elo entre música e cultura: a música pode ter como função o
reforço da coesão de uma sociedade, mas poderíamos questionar como e, principalmente,
por quê. Este determinismo cultura-música frequentemente se esquece da possibilidade
de uma origem histórica das linguagens musicais, como oportunamente demonstrou
429 Herzog nos anos 1930. Os funcionalistas dificilmente admitem que as populações
tradicionais podem atribuir valores estéticos às próprias produções musicais, mesmo que
existam alguns tímidos ensaios publicados sobre a “etnoestética”. Ora, considerando que
o amor seja um comportamento humano universal, seria estranho acreditar que a beleza
também não o seja, sendo difícil de acreditar que a música não se inclua nestes termos.
De toda maneira, este problema, que lida com valores extremamente delicados,
deixa uma questão aberta na etnomusicologia. O etnomusicólogo deve ter interesse em
todas as formas musicais de uma cultura e em todas as culturas do mundo. “Para ele, todas
as músicas são iguais”, escreve Nettl.
3. O trabalho do etnomusicólogo
O trabalho de campo
Transcrição e análise
431
realizar a cópia das gravações para preservação, depositar em arquivo, reenviar o material
para a comunidade visitada.
Atualmente observamos uma queda de interesse pela análise enquanto tal. Os 432
As publicações
Referências
BLACKING, John. How Musical is Man?. Seattle: Univ. Of Washington Press, 1973.
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