EBOOK - Meu Vo e Mesmo Um Grande Sabio Prosa Poetica

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MEU VÔ É MESMO

UM GRANDE SÁBIO
Prosa poética

1
2
VICENTE DE PAULA DA SILVA MARTINS

MEU VÔ É MESMO
UM GRANDE SÁBIO
Prosa poética

3
Copyright © Vicente de Paula da Silva Martins

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser


reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os
direitos da autora.

Vicente de Paula da Silva Martins

Meu vô é mesmo um grande sábio: prosa poética. São Carlos:


Pedro & João Editores, 2023. 179p. 14 x 21 cm.

ISBN: 978-65-265-0393-5 [Impresso]


978-65-265-0414-7 [Digital]

1. Prosa poética. 2. Literatura brasileira. 3. Crônicas. I. Título.

CDD – 800

Capa: Petricor Design


Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil);
Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/
Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir
Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil);
Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/
Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma
(UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2023

4
PREFÁCIO

Uma palavra de abraço desde o Sítio.


Vendo um livro nascendo. Vi esse livro nascendo. Gosto
muito de publicar livros... Pela Editora acabo me
envolvendo na publicação de dezenas, centenas, de fato
milhares de livros nesses anos de trabalho. Vi esse livro
nascendo...
Conheci Vicente não sei quando... também não sei por
quê. Sei lá. Tinha um destino nos colocando em contato...
acho que por conta do trabalho acadêmico. Mas logo
caímos fora desse espaço, e andamos por outra estradas...
acabamos escrevendo ainda um artigo em conjunto, e
publicamos em um dos livros do meu grupo de estudos e
pesquisas. Falamos bem mal do Bozogântua e sua turma
cavernosa. E depois fomos trocando conversas, prosas
soltas, cumprimentos de bom dia, fotos de coisas, e fomos
conversando mais e mais.
E foi assim que vi os escritos nascentes desse livro. Dia
sim e outro dia também lá eu recebia e lia com rapidez as
histórias do Vô Ciriaco, quase meu vô postiço, nas lonjuras
do Sítio das Telhas. Ria quase sempre... me emocionava
demais... parava em alguma expressão bem construída,
com as palavras provocantes e adequadas, e fui
compreendendo como a literatura tem força pra deslocar e
alterar o coração da gente.
Te agradeço e te cumprimento, Vicente. Já nos
consideramos os amigos mais antigos um do outro. E os
mais íntimos. Ver um livro ir nascendo não é vivência que se
divide com qualquer um. Ainda bem que me tiraste desse
lugar do qualquer um e agora posso te dar um abraço forte,
e esperar que me convides pra ir sempre que quiser ao Sítio
do Vô, onde nos contaremos prosas da vida, tentando

5
entender sobre a amizade, o amor... e entender por que
coube a nós dois essa relação tão profunda e tão
necessária.

Um abraço forte, amoroso,


do Miotello.

6
SUMÁRIO

1ª PARTE - Os sacrossantos preceitos do vô 13


Abaruna 14
Caramujo 15
Mal-caduco 16
Mistura 17
Pés inchados 18
Voengo 19
Carvoeiro 20
Chapéu 21
Cusparada 22
Desarrimo 23
Foice 24
Silva 25
Dente queiro 26
Homizo 27
Espirro 28
Deosa caipora 29
Cabra 30
Em boa hora 31
Incêndio 31
Cárcere 33
Grisalhos 34
Quiquiqui 35
Redonda 36
Sumiço 37
Zoar 38
Filho único 39
Telheiro 40
Sinhazinha 41
Amor 42
Beijo 43
Bicho do mato 44

7
Estruição 45
Geometria 46
Hebetude 47
Mágoa 48
Saudade 49
Silêncio 50
Solitário 51
Verruga 52
Abecê 53
Batatinha 54
Bumba-meu boi 55
Carochinha 56
Catecismo 57
Cruzeiros 58
Kichute 59
Leitura 60
Menineiro 61
Padre-nosso 62
Pecado 63
Rebojo 64

2ª PARTE - Saudades do sítio aˈsẽnʊ 65


Aceno 66
Urtigas-bravas 67
Açuda 68
Minhas vacas 69
Baladeira 70
Brejo 71
Cafarnaú 72
Carnaúba 73
Carrapichos 74
Carvão 75
Cedrinho de açúcar 76
Chuva 77
Cinzento 78
Cordão 79

8
Demolição 80
Flores 81
Lodo 82
Dilúvio 83
O sítio 84
Goteira 85
Descertidão 86
Abscesso 88
Anacoreta 89
Antes da morte 90
Desvario 91
Enviesado 92
Imbróglio 93
Dissabor 94
Poça 95
Saudade 96
Lápide 97
Ubiraquá 98
Espigas 99
Melancia 100
Sabugos 101
Toucinho 102
Descomer 103
Pôr do sol 104
Pureza 105
Quartinhas 106
Riacho carnaúba 106
Riacho do mosquito 108
Sertão 109

3ª PARTE - As grasnadas dos bichos 111


A festa 112
Argueiro 113
Caiporas 114
Caiporice 115
Ciriaco 116

9
Esconderijo 116
Filho de caipora 118
Inominados 119
Telha de aranha 120
Incredibile dictu 121
Urubus 122
Acasalamento 123
Coaxo 124
De cócoras 125
Golias 126
Rãs, sapos e pererecas 127
Sim-senhor 128
Titãs 129
Parição 130
Estio 131
Cascáveis 132
Moscas 133
Alazão 134
Besouro 135
Curimatãs 136
Papa-arroz 137
Canguçu 138
Tatupeba 139
Olvido 140

4ª PARTE – Os dias passam.... 141


Ignomínia 142
Semimorto 143
Em brancas nuvens 144
Ave de rapina 145
Totem 146
Amor sem tempo 147
Jejum 148
De tua imagem 149
Dentro de mim 150
Banzo 151

10
Olvidar 152
Lástima 153
Ausência 154
Urano 155
Neblina 156
Silêncio 157
Confissão de vô 158
Queda 159
Retirante 160
Desorgulho 161
Ignominioso 162
Alagado 163
Corpo nu 164
Antônimos 165
Feridas 166
Calhau 167
Lagartixa 168
Lavradio 169
Esmeril 170
Cabisbaixo 171
Soçobro 172
Quase 173
Afogado 174
Choro 175
Sangue escuro 176
Sombras 177

SOBRE O AUTOR 179

11
12
1ª PARTE

Os sacrossantos preceitos do vô

“De que serviram — dizia eu — os sacrosantos


preceitos de austeridade moral infundidos no
meu espirito pela paterna educação,
alimentados pela indole atávica do meu
caracter, e desenvolvidos pelo constante
exemplo dos meus consaguineos, aos quaes
sempre entoei na sinceridade da consciência os
mais solemnes cânticos de gratidão? De que
me serviram as idealisações com as quaes
durante horas, dias e mezes envolvi, como em
um perfumoso e infallivel preservador,
aquellas ti es creaturas mortaes illuminadas
pelo meu intellecte, e transfiguradas na
exaltação dos meus sonhos? Lançando o gelo
da meditação no brazeiro da volúpia ateada á
minha substancia pela mão provocadora da
belleza, eu desertei o templo da vida e corri
atraz de um phantasma que teria gerado o riso
nos lábios de qualquer outro homem.” (Pedro
Américo, Na cidade eterna ,1901, p.243)

13
ABARUNA

Sou neto de siɾiˈakʊ, carvoeiro e telheiro. Vô koˈpiɲa


era homem preto, baixo, valente, forte, homem de creẽças
e prymçipyos, um verdadeiro abaruna, que servia ao Deos
dos brancos. Um grito do vô siɾiˈakʊ era um bramido de
animal feroz, de gamo de coração negro; uma trovoada
advinda de sua cólera era carregada de negros trovões, e
acenava privativamente ao Deos Poderoso. Um dia meu vô
siɾiˈakʊ gritou com minha mãe peˈdɾĩna e a lenha branca de
cuja espécie não me alembro, em sua mão preta, foi um
açoite que perdeu a cor nas costas de minha mãe, e,
naquela tarde de dor, eu quis apenas ser carvão. Naquela
tarde de tresteza, pedi ao Deos do vô siɾiˈakʊ que
arrancasse o riacho do sítio aˈsẽnʊ! Com o passar dos anos,
fiz-me lenha resinosa, daquela que dá um negro pálido na
terra apurada. Minha alma, hoje, é a mesma da minha mãe
peˈdɾĩna: um álamo negro, com sementes diminutas, uma
madrepérola.

14
CARAMUJO

Vô siˈɾiakʊ era um caramujo. Sim, caramujo. Difícil


explicar, mas vô siˈɾiakʊ era mesmo um caramujo. Foi um
aruá-do-mato que me revelou tudo. Vô siˈɾiakʊ tinha feições
grosseiras, próprias dos caramujos africanos. Seu nome era
o mesmo do siˈɾiakʊ de Roma, perseguido e morto por
ʤioklesiˈɐ͂nʊ, mas sua sãtidade era a mesma dos caramujos
ferozes. Impressionavam-me suas rugas da frente e seu
rosto respirava a melancholía feroz de um temibilíssimo
caramujo. Tinha, ao lado de minha vó bɾaziˈliña, sussurro
dos caramujos. Seu coração era uma concha enorme, cheia
de sombra e silencio. Os olhos do vô siˈɾiakʊ eram os de
uma giboya, digo, jiboia, mas com a contração de caramujo.
À noite, bem antes de dormir como uma pedra, vô siˈɾiakʊ
ronquejava como os caramujos. Assim, passei minha
infância aprendendo muito sobre lombrigas, lesmas,
minhocas, aranhas, escorpyoms, mosquas, uma zoologia
infernal de neto de caramujo.

15
MAL-CADUCO

A vida dura no sítio aˈsẽno calejou o coração do meu vô


sɨɾiˈaku. Um dia, no final da tarde, depois de sua lida,
canssado, vô sɨɾiˈaku puxou uma cadeeira e se sentou bem
na frente da casa. Começou a se maldizer: minha vida é
muito sofrida, trabalho muito, sol a pino, e os poucos
ganhos não dão para comprar alparcata, alpargata,
alpergata, apragata, paragata, parcata, pracata, pragata e
repetia sua privação ad infinitum. Maldizia os políticos,
maldizia da sorte, e dizia que seria melhor ser logo
cangaceiro, malfeitor do bando de ɫɐ̃piˈɐw ̃ e fazer justyça.
Nunca, porém, havia falado de morte e naquela tarde
começou a prequejar contra o mundo e anunciou como
deveria ser seus funerais: quando eu morrer, deixa meu
coorpo caído no quintays de casa para atrair os orubùs,
deixem meu coorpo apodrecer o ar e deixa meu pasamento
ser o dia do aballo do aˈsẽno. Ouvia tudo isso e imaginava,
como numa grande tela de cinematographo, grandes larvas
de insetos, formigas e mosquas, devorando vorazmente o
corpo cãsado do meu vô sɨɾiˈaku. De repente, meu vô
sɨɾiˈaku olhava fixo para o lado, depois para cima, suas
pálpebras ficavam puxadas para trás e suas pupilas ficavam
dilatadas. Desmaiava. Segurava suas mãos, tão calejadas, e
dizia assim: “Calma, vô sɨɾiˈaku, que é isso, o sẽhor é meu
auolo, auóó, auoo, avoo, abõo, auuo...” Ouvia-se um grito
de dor da minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ, ao qual se seguia a lei do
silençio, çellençio, silentio, sillencio...

16
MISTURA

Na capella da Telha, ninguém na casa do vô era


famulento, todo mundo tinha o de-comer. Meu vô siɾiˈakʊ
era homem respeitado, temido por tudo que era capitão do
mato, exímio lavrador e o maior carvoeiro e telheiro da
redondeza. Meu vô, de sobrenome ˈsiʊva, era da raça
afuleimada dos “koˈpĩɲa”, e tinha a missão na Terra de ser
missionário d’As Missões, sabia pregar 1º Pedro do capítulo
5 em diante, sabia como admoestar as almas, era homem
para prover o de-comer da família grande com ar-ruzz,
banana-timbó, feijão verde, millo, e só, nada de mistura;
assim, comer bicho do mato, não senhor, comer isso não,
meu vô siɾiˈakʊ dizia que comer bicho do mato era pra
capitão do mato esfomeado. Então, minha vó bɾaziˈlĩna e
minha mãe peˈdɾĩna caçavam, no mato, prehá. Meu vô
siɾiˈakʊ não comia roedor mesmo que fosse do mato, e
andava com peixeira de umas oito polegadas nos quartos
pra tratar piháus e kurima'taS, mas eu só via o vô siɾiˈakʊ
triturar tambaqui com os dentes afiados e depois lançava
no ar o cuspo esfumado, em volumosa cusparada, no rumo
da venta, a uns dois metros da cozinha para o terreyro.
Minhas tias, a pobre e a rica, não comiam carnes, só ar-ruzz
escoteiro. Eu, sempre enfastiado, aqui e acolá, comia ar-
ruzz, feijão e farynna e minha vó bɾaziˈlĩna, temendo que eu
amofinasse, me alimentava com as histórias de Trancoso,
enchia meu bucho da alma com as mais deliciosas e
horripilantes histórias de bicho de sete cabeças, curupira e
caipora.

17
PÉS INCHADOS

Vô siˈɾiakʊ não sabia ler nem escrever sem psellismo, cõ


tudo, desde cedo, descobriu o instinto de olhar para os pés.
Com o passar dos anos, com os pés inchados, não podia
quase andar, se arrastava, e gemia. Não demorou a ter
frequentes vômitos, a sentir cada vez mais os pés inchados,
e passou a vociferar com ciúmes de minha vó bɾaziˈliña,
dirigindo-lhe ofensas graves aos gritos. Ofendida, pesava
em minha vó bɾaziˈliña uma tristeza calma. Antes de
morrer, vô siˈɾiakʊ já não falava com minha vó bɾaziˈliña,
ficou um tanto mal disposto para olhar o mundo ao seu
redor e com os pés ainda mais inchados, com a barriga
também inchada, já não ia mais para a roçado, perdeu a
graça de contar causos com caiporas e como católico
praticante perdeu inteiramente o fervor para a conversão
dos gentios. Vô siˈɾiakʊ mudou munto. Bastava observar-
lhe os pés inchados e os olhos rouxos. Da minha parte, já
não lhe beijava as mãos moluscas e sujas.

18
VOENGO

Vô siɾiˈakʊ além de carvoeiro e telheiro, fazia as vezes


de tropeiro, sabia como ninguém conduzir as bestas de
carga do Sítio aˈsẽno para a sede da Telha. O nome siɾiˈakʊ
era de santo. O nome do vô siɾiˈakʊ encerrava nosso
destino, morte e vida ciriacana. No alvorecer, vô siɾiˈakʊ ia
para o roçado cantando; mas, ao entardecer, voltava
estranhamente silencioso, e o pouco que balbuciava era a
de uma voz áspera e forte, a voz da cantiga rude, a voz que
quebrava o silencio da noite. A voz grossa do vô siɾiˈakʊ
assustava rãs, cobras e lagartos do Sitio aˈsẽnʊ, me fazia
fechar os olhos e seus commandos eram respondidos
subservientemente por todos da casa. A voz quigilenta do
vô siɾiˈakʊ rebentava o centro da terra, e a mãe peˈdɾĩna
tremia muito e a nẽbrãça de sua aflição, o sobressalto da
minha mãe peˈdɾĩna, é-me agora o indizível. A voz do vô
sufocava o peito da menina da vazante, tropel de angústias,
sempre com lábios trêmulos, voz fraca e balbuciante. Será
que a voz do vô siɾiˈakʊ era asse mẽesmo tão forte, tão
cruevil, assim como a voz de Josué que fez parar o sol sobre
Gibeão e a lua sobre o valle d'Avalon?

19
CARVOEIRO

Meus avós, por parte da minha mãe peˈdɾĩna, nasceram


com as artes: minha vó bɾaziˈliña era uma admirável
parteira e me abraçou desde cedo. Meu vó siˈɾiakʊ,
carvoeiro e, nunca me abraçou, mas se dedicou a arte de
fazer carvon de madeira. Minha mãe peˈdɾĩna, desde
criança, uma respeitada lavadeira e, tã bẽ, roceira por
stipulaçon do meu vó siˈɾiakʊ. Meu tio ˈnɛʊ, borboró, dizia-
se boieiro (ora deixa de estucia, ˈnɛʊ!) e meu tio viˈsenʧɪ,
no sítio aˈsẽnʊ, um bem-afamado toureiro. A arte de fazer
carvon, desde cedo, fascinou-me: um pedaço de madeira
abrasada, e logo, em seguida, abafada pelas mãos
esquálidas do meu vô. Mas era muita lenha para pouco
carvon. Era muito calor e tãobem muito vapor. E, no final
do trebelho, meu vó siˈɾiakʊ, tão cansado, praticamente
ficava reduzido a cinzas. Vez por outra surgia o bom carvon,
mas aumentavam, outrrosy, as tosses do vô siˈɾiakʊ. Era
tanto vapor pernicioso espalhado no sítio que sufocava
todos caaporas e animais roceiros. Apesar da fumaça
maligna, encantava-me o sõõs das madeiras secas e saber,
no final do dija, que não éramos lenhas, não éramos
prantas, estávamos, no sítio aˈsẽnʊ, separados da queima
das madeyras, pelo ar, pela água e pelo lar.

20
CHAPÉU

Vô sɨɾiˈaku tinha um chapéu de palla. Grande e


impalpável. Avarícia ciríaca, ao certo. Foi minha vó
bɾɐzɨˈɫinɐ quem trançou as pallas. O chapéu de palla do vô
sɨɾiˈaku ficava ssẽpre sobre o banco de madeira sem
encosto. O chapéu de palla tapava a cabeça miúda do vô
sɨɾiˈaku. A barba do vô sɨɾiˈaku era rala e o chapéu de palha
na sua cabeça miúda lhe ocultava parte dela. Às vezes, o
chapéu de palha do vô sɨɾiˈaku era puxado para cima dos
olhos miúdos para resguardar-lhe do sol escaldante do Sítio
aˈsẽno. Um dia, tardezinha, zéfiro chegou e no rebojo
devastador, assim como num rremuno endemoniado, sim,
um rremuño endemoninhado, um remuinho zangadiço,
carregou o chapéu de palla do vô sɨɾiˈaku para as serras da
quimera. Vô sɨɾiˈaku ficou desesperado.Tadinho do vô
sɨɾiˈaku. Não alcançou o afobado zéfiro. Foi um corre- corre.
Até que zéfiro cansou, ou teve dó do vô sɨɾiˈaku, e rebolou
o chapéu de palla do vô sɨɾiˈaku no chequeiro e, o que antes
era chapeeos, parecia haguora mais um sino. Vô sɨɾiˈaku
esputou. Puteou. Desconjurou. Mijou em cima do sino.
Barafustou com o zéfiro. Desbadalou. E se deschapelou
daquele dia em diante.

21
CUSPARADA

Meu vô siɾiˈakʊ era o melhor lavrador, telheiro e


carvoeiro da Telha. Homem respeitador e themydo. Meu vô
siɾiˈakʊ não precisava de sabẽeça dos instrutos. A ssabença
do vô siɾiˈakʊ estava escancarada entre seus incisivos. Sua
cusparada sarrenta de tabaco deixava a marca dos koˈpiɲ̃a
por onde passava. Depois que chegava do roçado, final de
tarde, na piquena casa, reinava um silêncio solitário e no
recinto (ou sanctuario?), quase sempre sem luz, pairava o
nevoeiro e um cheiro de sarro detestabele. As paredes da
peq̃na casa eram emplastradas de cusparadas do vô
siɾiˈakʊ. No silêncio do sítio aˈsẽnʊ, o crepúsculo era
também a hora do de-comer e vindas de outros tugúrios,
nos arredores da pecena casa, ouvíamos gargalhadas e
tagarelices de vizinhos quizilentos. Na pequenha casa dos
koˈpiɲ̃a, pelo contrário, reinava o çellençio, ninguém tinha
sorriso frouxo não, ninguém era desdenhoso de lábios.
Tínhamos tanto medo do vô siɾiˈakʊ que mal podíamos
engolir (ou desengolir?) o cuspo da boquua.

22
DESARRIMO

O desarrimo ssẽpre morou dentro de mim. O desarrimo


ssẽpre provocou desordem fora de mim. O desarrimo
ssẽpre me fez prostrar junto ao trono do Deos de Jó (e
mesmo assim, até hoje só vi Deos pelos pés). O desarrimo,
em mim, nada tem de conversa de chacha : é a lúgubre
saudade sem fim. O desarrimo ssẽpre foi, dentro de mim,
um estranho abandono do branco de jasmins. O desarrimo
ssẽpre me chegou em momentos sombrios de melanconia.
O desarrimo ssẽpre me povoou a mentre de incertezas e
devaneios. Em MCMLXVIII, ouvi todo esse desabafamento
do meu vô siɾiˈakʊ, na capella do sítio aˈsẽnʊ,
completamente bêbedo, com falto de juízo, e
amargamente aflito de desarrimo. Depois, berrou,
esbravejou e se desarrimou de Deos para ssẽpre.

23
FOICE

Meu vô siɾiˈakʊ sabia foiçar ar-ruzz e afoiçoar


maˈkakʊs. Se não fosse o medoõs, tenho certeza que hoje
seria foiceiro como meu vô. Aprendi muito sobre foices:
sempre curvas, férreas, afiadas e roazes. Toda foice tem
poder de prostrar maˈkakʊs pelo chão. Conheci, de perto,
as armas primitivas dos koˈpiɲ̃a contra os maˈkakʊs: foices,
facões, até ferrão de vaqueiro. Meu vô siɾiˈakʊ, com uma
foice, sabia rachar lenha para cozinhado. Sabia depor uma
foice no chão. Um dia, uma das três foices luziu, digo, seu
fino aço reluziu, mais do que os outros dias, e não sei como
(nem vi), cortou a mão esquerda do meu vô. Golpe feito e
feio. A partir daquele dia, a foice ficou abandonada, num
canto da sala, no chão, deitada, misturada com feijão, milho
e arroz. A mão esquerda do vô siɾiˈakʊ ficou edemaciada,
depois crispada e permanentemente trêmula. Meu vô
olhava para a foice com cólera e os olhos avermelhados.
Cheguei a flagrar meu vô, num átimo, com uma foice,
dando golpes contra as paredes, as redes, as portas e
cortando o vento forte que bramia em seu redor. Naqueles
tempos, diziam-me que meu vô siɾiˈakʊ chegou a degolar
dois maˈkakʊs lá de miˈsɐ̃w du miˈɾɐ̃dɐ. Diziam-me que a
morte afia a foice.

24
SILVA

Meu ˈsiʊva proveio do sibilo das matas do sítio aˈsẽnʊ,


das senzalas da Telha, da vasa do Açuda do goˈveɣnʊ,
construído com a força servil dos meus ancestrais. Vi e cozi
muitas seriemas fartamente alimentadas de roedores e
cobras. Vi e descomi muitas iraúnas-grandes com seus bicos
negros escancarados. Vi e deslambi garrinchões-de-barriga-
vermelha com suas asas e caudas estriadas de negro. Vi e
entranquesci tiês-sangue, tão pitorescos, com suas asas e
caudas negras. Vi e desverdeci rapazinhos-dos-velhos de
barriga branca manchada de preto. Vi e contemplei
golinhas com seus colares peitorais negros. Do sítio, vi e
senti o cheiro nauseabundo das degolas e do bodum de
caiporas pretos. Ouvi a voz conselheira do meu vô preto.
Ouvi a voz inconformada do vô siɾiˈakʊ tal e qual sopro
sacudindo a letargia de joões-balões derradeiros do sítio
aˈsẽno. Vô siɾiˈakʊ era da raça dos koˈpiɲ̃a, corrupião, e
sabia imitar reisados. Naqueles dias, os koˈpiɲ̃a tinham as
fisionomias de jacupemas.

25
DENTE QUEIRO

Um dia, no sítio aˈsẽnʊ, bem cedo, ouvi gemidos de


minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ: ay que door, guay que door, ay, meu
Dios, guay que door de dente queiro! Era a door dos seus
queixeiros. Meu vô sɨɾiˈaku, desesperado, corria de um lado
para o outro, e fazia remedyo para a door de dente queiro
da minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ. Meu vô sɨɾiˈaku corria para a cozĩna
e fazia chà das folhas da goiabeira-branca, fazia chà das
folhas da goiabeira-vermelha. Vó bɾɐzɨˈɫinɐ bebia o chà do
vô sɨɾiˈaku, bochechava e gargarejava o chà, mas a door não
passava. À tarde, a door de dente queiro de minha vó
bɾɐzɨˈɫinɐ só aumentava, e minha mãe pɨˈdɾinɐ fez, entom,
chà das folhas da batata-da-terra. A door não passava. Uma
velha amiga de minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ, de nome giʎɨɾˈminɐ, fez
chà de alho e mesmo assim a door não passava. Foi um dia
de martyrio. Rezei. Rezamos. Minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ chorava
mũito, minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ naquele dia perdeu a razão de
tanta door; até que, enfim, adormeceu no chaão de tanto
tormẽto. Minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ, filha da montanha, um dia
ensurdeceu o sítio aˈsẽno com seus gemidos de door de
dente queiro.

26
HOMIZIO

Aconteceu num sábado de setembro de MCMLXIX.


Dois homẽes bebiam juntos na bodega do ʃikomoˈɾẽnʊ. De
repente, um dos homens puxou uma navalha e desfechou
golpes profundos no pescoço do outro, e retalhou: “Verme
é para rastejar no chão”. Esfaqueada, a vítima, rapaz novo,
não gemia nem rastejava. O navalhista pediu sangue. Nunca
soube o motivo da brigua. Criança, naturalmente, me
assustei com aquela cena, mas no fundo dos olhos, meus
olhos ficaram enxutos e sem medo. Então, de repente, veio
um sem-número de golpes: a vítima finalmente rastejou no
chãa, o sangue se alastrou no chãão, os dedos do morto
furaram o chaans, enroscado de tanta dor. O flagicioso se
aprouve ao crime, riu-se, e folgou. Ouvi risada de rasga-
mortalha. Me amedrontei com a sombra do sega-vidas. O
crime aconteceu na beirada do sítio aˈsẽnʊ. — Acuda, sinhá
bɾaziˈliña, que teu filios me matou — gritou o rapaz das
alturas dos cééos aonde subiu e nunca mais voltou.

27
ESPIRRO

Atchim! Atxim! Do quarto da casa, no Sítio aˈsẽnʊ, vô


siɾiˈakʊ ouvia meus espirros e via meu costumeiro
estalicídio e dizia saudi, soude, ssahude. Minha vó bɾaziˈlĩna
ẽtreuia: corre, ˈʃikʊ, acuda o menino, mas vô siɾiˈakʊ
sempre ficava imobil na rede de dormir. Perdia o ar.
Convulsionava. Toma cuidado, Visẽˈtiɲu, meu filios, dizia a
vó bɾaziˈlĩna, e enfiava uma trocida no meu nariz, e, em
segundos, voltava a abrir os olhos, bebia augua, respirava o
silêncio do vô siɾiˈakʊ e voltava a viver. Vó bɾaziˈlĩna era
além da mellor parteira da Capella da Telha, a melhur
benzendeira da rredondeça e sabia curar os calefrios, as
tosses, os espirros, as ínguas, os soluços, as hemorrhagías,
as hemorroidas e quando eu espirrava mouito me mandava
cheirar o suˈvaku. Entom, cheirava o suˈvaku esquerdo,
depost cheirava o direito, aí passava o espirradeira. Meu vô
siɾiˈakʊ nunca espirrava, tinha perfume de homem, cheiro
provocante, silente, aciumava em tudo minha vó bɾaziˈlĩna
e trazia nos seus sovacos grandes manchas de suor.

28
DEOSA CAIPORA

Na Telha, durante minha infância, vi bastante jurema-


preta, aroeira, angico, marmelleiro e emburana. Pois bem,
um dia, debaixo de uma emburana, lá no sítio aˈsẽnʊ, o do
meu vô siɾiˈakʊ, vi um caipora. Era um homẽes montado
num taitetu do mato. Meu Deos, tinha tanto medo de
caiporas! Só em ouvir a palavra kaɪˈpɔɾa, escondia-me
dentro de mim mesmo e minha vó bɾaziˈliña tentava me
aliviar o medoõs com ave-marias. Minha vó bɾaziˈliña, esta
sim, era mulher munto corajosa, uma dia – contou-me – viu
um caipora percorrendo as solidões do sítio, montado em
um taitetu, e não deu tempo fugir, e a solução foi partir pra
cima: “Te arrenego, brenunça!” Minha vó conta que nesse
dia agarrou os braços e as pernas do azarento e se
encaiporou com muito avorreçimento. Acho que minha vô
bɾaziˈliña era uma deosa caipora.

29
CABRA

Minha família koˈpĩɲa, a do Sítio aˈsẽnʊ, na Capella da


Telha, era afamada por sua valentia, por suas facas e
punhais, mas nenhum dos seus esfollacaras teve vocação
para vaqueyro. Meu vô siɾiˈakʊ era carvoeiro. Meus tios
ˈnɛʊ e viˈsenʧɪ eram lavoureiros. Um dia, perguntei ao meu
tio ˈnɛʊ, negro forte, encorpado, por que não era vaqueiro.
Reagiu. De pronto, disse-me, em tom de espanta-lobos, sou
vaqueiro, cabra da moléstia, cabra-topetudo. Não duvidei.
Meu vô siɾiˈakʊ ouviu tudo caladão e ficou quietarrão. Não
me pergunte como, mays num átimo, tio ˈnɛʊ apareceu
vestido com um enorme calção de couro. No peito havia
uma pele de cabrito e na cabeza colocou um chapéu, de, ao
menos, uns 24 centímetros, bem pesado mesmo e com as
abas bem curtas. Calçou os chiˈnɛʊos da cor de ferrugem e
pôs as esporas de ferro em seus pés nus. Tudo estava
realmente bem amarrado. Pegou um longo ˈʃikʊte. Pegou
uma faca. Meu vô siɾiˈakʊ estranhou toda aquela
arumaçom, mas silenciou. Como puxei ao meu vô, fiquei
também caladão. Minha vó bɾaziˈlĩna começou a rezar
“Creio em Deos Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da
Terra; e em Jesus Cristo, Seu único Filho, Nosso Senhor”.
Tio ˈnɛʊ tinha coração de couro, mas era também couro-
n'água, então pegou uma jumentinho brabo, colocou a cela
e desembestou. Não se soube mais do seu paradeiro
durante a tarde. No noutecer, tio ˈnɛʊ apareceu toda
arranhado, acabrunhado, cheio de carrapichos e espinhos
no seu calção de couro. Acho que ouvi meu vô dizer bem
baixinho: “Cabra de peia, tu é um cururu dos infernos!”.
Desembestei a rir que não queria mais. Depois dessa
peripécia, tio ˈnɛʊ escafedeu-se e por muito tempo não foi
mãys visto na Capella da Telha.

30
EM BOA HORA

Faz parte da vida ir embora. Tio ˈnɛʊ, gago e zangado


com meu vô siɾiˈakʊ, em MCMLXVII, foi em boa ora do sítio
aˈsẽnʊ. Depois minha mãe peˈdɾĩna, em MCMLXVIII, triste e
magoada com meu vô siɾiˈakʊ, foi emboora também. E
assim o sítio aˈsẽno foi ficando sem jente, sem gentios ou
hereges, asi, hermos, e a família dos koˈpiɲ̃ a foi ficando
menor e ainda mais hermas; e cedo, também, soube o
sentido de ficar hermo. Numa terça-feira, no ano MCMLXX,
meu vô siɾiˈakʊ foi em boora. Chorei muito e minha vó
bɾaziˈliña me disse assim: visenˈʧĩɲʊ, seu vô siɾiˈakʊ, disse
adeus ao mundo, entregou a alma ao Criador, rendeu a
alma ao Criador; ouvia minha vó bɾaziˈliña com munta
desattenção, e nunca, é certo, entendi bem essas
fraseologias de morẽ, moira, moreo, moryam, moyrades,
moreeo, morrẽdo, morriria, mouram...

31
INCÊNDIO

Tio ˈnɛʊ era extremamente gago. Sou capaz de


enredar cada uma de suas contorsões quando falava. Tinha
trejeitos excêntricos na boquua e sua voz me lembrava a
torcedura dos galhos de cipoaba. Tio ˈnɛʊ tinha folhas
membranosas no mofumbo do cérebro. Tio ˈnɛʊ tinha
flores vermelhas no mofumo da alma. A voz de tio ˈnɛʊ
tinha sâmaras aveludadas no mufumbo do olhar. Um dia
revoltou-se com as caçoadas das gentes. Tacou fogo no
roçado do vô siɾiˈakʊ. O sítio aˈsẽno ouviu os sibilos da
labareda enroscada no ar. Ouviam-se os silvos das cascavéis
e jararacas que se arremessavam contra o fogo. Foi uma
catarata de fogo. Foi um corre-corre. Foi um Deos nos
acuda. O incêndio foi um “grande incêndio de Roma”.
Submergia o sítio em um pelago de chamas. Tio ˈnɛʊ estava
completamente bêbedo. Meu vô siɾiˈakʊ pegou meu tio
ˈnɛʊ pelas bitacas e gritou: “pro mode de que, ˈnɛʊ?” Aí, o
tio ˈnɛʊ naturalmente gaguejou: “Dioses assim me fez
assim, eu não tenho culpa de ser quiquiqui”. E prom-pto.

32
CÁRCERE

Tia ˈʁitɐ notou a solidão, o abytymento, o carçele de tio


ˈnɛʊ. Meu irmão, segure minha mão, saia desse carcer
maldito. Tio ˈnɛʊ não cedeu e lly disse entom: obrigado,
minha irmaans, não quero tua mão, recuso tua
benefficençia. Estou cansado, indigno, mas me deixa só,
preso nesse entullo, assim demolido, com minhas quatro
pedras no çapato. Deixa-me aqui, assj como estou, bischo,
em pé, maltratado, com meus olhos doẽtes, com meus pés
chatos de dores e com meu budũ. Obrigado, minha jrmaa,
não quero augua, não tenho sede, my deixa aqui, assim,
invertebrado, mollusca, dentro dessa concha escura, sem
resperacam, afogado em poucas auguas.

33
GRISALHOS

Meu vô siɾiˈakʊ se agrisalhou ainda rrapaz. Suas


alvíssimas cãs, certa mẽte, vieram do roçado, do trabalho
penoso e másculo de carvoeiro. Meus tios ˈnɛʊ e viˈsenʧɪ
tiveram a mesma sorte: a fronte coroada de cabelos
grisalhos e desgrenhados, com rugas profundas, nódoas de
trabalho penoso e másculo de carvoeiros. Meu vô siɾiˈakʊ,
toda via, nunca perdeu o tino, enquanto meus tios viviam
embriagados e ensandecidos. Os homens do sítio aˈsẽnʊ
tinham sobrancelhas espessas, cabelos fartos e grisalhos, e
isso me encantava (ou me intrigava?) durante a infância. O
céu do sítio aˈsẽnʊ era grisalho. As minhas tias ˈxita e
fɾɐ͂ˈkĩɲa tinham tãobem cabelos grisalhos. Naquele tempo,
via homens e mulheres de cabelos grisalhos que
estrebuchavam, sem virtualhas, no chão sáfaro do aˈsẽnʊ,
como cães famintos e grisalhos.

34
QUIQUIQUI

Tio ˈnɛʊ era quiquiqui. Talvez, por sua gaguice, era


também um homem munto solitário. Sabia ler e escrever, e
munto tar-ta-mu-de-ar. Um dia, num átimo, foi ao quarto e
tirou do alforja um papel de emburulho e entregou ao vô
sɨɾiˈaku, que logo se pôs a ler em voz alta o bolodório. No
papel, tio ˈnɛʊ tar-ta-mu-de-a-va assim: meu pai, tenho um
defeyto da natureza, uma infelicidade. Então, cá estou no
canto onde sobrevivo, mas até onde vai esta sobrevida sem
payxõoes eu não sei. Aqui, meu paay, dentro de mim, há
uma chama, ao que me parece uma chama de lenha do
mato que se faz caruõ, mas uma vida sem payxõ, uma vida
sem mistério, sem emoção. Teu filho, meu pay, tem um
corpo de homẽes, mas um homẽes sem fala, sem pele da
senhora. Aqui, há fogo, mas sem arrebol em pleno céu do
poẽte. Vejo de onde estou muitos e estranhos raios
quebrados, um divino arco de ˈdewʃ, mas não há sóis nem
os olhos de uma señora para spyar. Aqui, no sitio ɐˈsenu, o
que tenho é só solidã.

35
REDONDA

Desde que o mundo é mundo, o homem quer juizios e


repostas para suas jnquyetações. Assim, filosofava meu tio
ˈnɛʊ. Tio ˈnɛʊ era homem forte, musculoso, com veias
saltadas no biscoço e não tomava na cuia dos quiabos. Tio
ˈnɛʊ tinha uma cabeça pequena, mas tinha sabedoríía e sua
cabeça era redõda como a esfera que circula ao redor de si
mesma. A primeira vez que ouvi alguém dizer que a ˈteʁɐ é
redonda foi com o tio ˈnɛʊ. Tio ˈnɛʊ chegava a fazer gestos
da aparemçia da vagina para mostrar o aparença da ˈteʁɐ e
tudo isso me parecia munto obsceno. Todauja, meu tio
sempre aguardava ansioso o momento de um eclipse lunar
para mostrar a todos a sombra circular da ˈteʁɐ, para todo
mundo ver com os próprios olhos a ˈteʁɐ rredonda. No
eclipse, eu sempre via a sombra circular da teʁɐ, mas meu
vô siɾiˈakʊ tinhas suas dovidas e superstiçam. Vô siɾiˈakʊ
temia os eclipses, mas acreditava em seres ultramundànos.
Disse que uma vez, na roça, tinha sido arredado do mundo
por seres ultramundànos e viu lá de riba, ainda em riba, que
a ˈteʁɐ era como a cabeça da vó bɾɐzɨˈɫinɐ, bem achatada,
mas não era redõda. Era uma polêmica interminável essa
história da redondez da ˈteʁɐ, aí, eu ficava no mundo da
lua, digo, de olho na lua.

36
SUMIÇO

Em MCMLXVII, meu tio ˈnɛʊ sumiu do sítio aˈsẽnʊ. Tio


ˈnɛʊ era conhecido, no sítio, como o revolucionariamente.
Quiquiqui, cedo desaprendeu a ler, mas recitava, de cor,
ˈmaxkʊs14:48: "Estou eu chefiando alguma rebelião, para
que vocês venham me prender com espadas e varas?”. Vez
por outra, por iniciativa própria, tio ˈnɛʊ juntava gravetos
de lenha seca e fazia fogo de chão. No sangue vermelhas
do tio ˈnɛʊ crepitavam fogos de gravetos de comuna, sua
felonia se estilhaçava em clarões, e, com seu repentino
sumiço do sítio aˈsẽnʊ, muitos foram os pesadelos
luctíferos da gente de casa. Vô siˈɾiakʊ nunca o repreendeu,
mas cochichava para minha vó bɾaziˈliña assim: “Isso é falta
de joyzo”. Quando ouviu no rádio, em MCMLXVII, a notícia
da morte de ˈʃɪ geˈvaɾa, na boˈlivia, tio ˈnɛʊ entristeceu,
reallmente mudou as feições, deixou de ter a barba e
perdeu parte do cabelo: de um dia para o outro, ficou ímpio,
indecente, vituperioso e blasfemo.

37
ZOAR

Tio ˈnew tinha a velha mania, desde cryamça, de sair de


casa sem avisar a nẽguẽ e nymgem sabia mesmo de seu
paradouro. Vô sɨɾiˈaku silenciava, mas vó bɾɐzɨˈɫinɐ chorava
munto com a desappariçaõ do tio ˈnew. Certa vez, dez dias
depois de sumido, já dado como morto, vô siɾiˈakʊ recebeu,
em pretuguês, esta messiva de tio ˈnew: “Há dias estou
aqui, gasalhado em Zoar. Aqui, nunca há, no ar, ruído de
insectos, especialmente abelia, abesouro, mosqua e rrããs.
Aqui não há zorra. Aqui não há trovões nem rrelanpagos
inesperados. Aqui Deos escuta minhas subpricaçoões. Aqui
o amor entre homens é celebrado. Aqui não se caçam os
descreẽtes nem se perseguem os diferentes (tio ˈnew era
quiquiqui). Aqui não há pena de morte. Busco, aqui,
aseseguo, o sono de pedra. Aqui, em Zoar, convivem as
diferentes espécies. Em Zoar, posso andar de cá para lá sem
precisar a lugar nenhum lhegar e daí para cá posso vir sem
nunca mais precisar retornãdo.”

38
FILHO ÚNICO

Criança, aprendi a perceber as caussas do mundo. Por


isso, hoje sei quando as coisas do amor vão malles.
Descobri, em MCMLXVII, que meu pere ʒuaˈɾes não amava
mais minha mãy peˈdɾĩna. Dormiam em redes separadas
para não correrem o risco de ter mais filios. Meu pay
ʒuaˈɾes não queria mais ser meu paay. Minha mãi peˈdɾĩna
queria ser minha maỹ, todauia, para ela, ser maj já lhe era
história de Trancoso. Não veio assim meu irmãozinho nem
irmãzinha, todauya minha maỹ me disse que seria sempre
minha maj e, de um dia para o outro, meu pay foi emboora
e não voltou mais. Naquele ano, ouvia, no sítio aˈsẽnʊ, meu
vô siɾiˈakʊ recitar Gênesis 1:28: “Então Deos os abençoou e
lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do
céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a
terra.” O Deos do vô siɾiˈakʊ, pella vẽtura, não era um Deos
procriador? Por que meu paay ʒuaˈɾes fez da minha mae
peˈdɾĩna uma madrinha defunta? Na fronte rugosa de
minha mae peˈdɾĩna via dores e no seu rosto encovado via
sofrença, como a de ter um filho único, e sem paay, luto
d'alma.

39
TELHEIRO

Se me faltar a palavra, escrita ou falada, e o gesto me


negarem, restar-me-á o ofício dos meus ancestrais, os
ancestrais da Missão da Telha, o de ser telheiro. Sim, serei
fazedor de telhas.Telheiro com fama de fazedor de telhado
de vidro. Erguerei fazendas suntuosas, fazendas com
pastos do gado, fazendas com paredes rosas, fazendas
com pilares maravilhosos, fazendas com as telhas de fibras
de vidro, fazendas cercadas de alfazemas, e translúcidas. Se
me faltarem as palavras, serei telheiro, fazedor de telhas, as
onduladas, as telhas que lembram as ondas do mar, as
telhas que se agitam com o sopro de Zéfiro, as telhas que já
não cobrem meu telhado de vidro, o mesmo telhado que
me abre agora o peito.

40
SINHAZINHA

A uma das portas que dão para o quintays da casa da


tia ˈkikɐ apareceu inesperadamente siá mɐˈɾiɐ, a mais bela
moça branca do sítio ɐˈsenu. Meu coração palpitou. Siá
mɐˈɾiɐ sempre tão gentil, vivaz, com a mais generosa
amostra das suas coyxas brancas e volumosas. Siá mɐˈɾiɐ
era tão cheia de travessuras, tinha a mesma guarrideçe do
periquito-da-catinga, que arrasa a água e se espaneja.
Entom, me declarei: teu rosto inebriante, sinhazinha
mɐˈɾiɐ, me embaraça e me encanta. Assim, não sei, siá
mɐˈɾiɐ, se estou diante de um mito, mulher ou santa. Deves
ser mesmo mito, mya mãe-d'água, mỹa cobra-maˈɾia, mhas
mãe-do-rio, mha cobra-grande, mhas mãe da mata, mĩa
sereia do mar, mias senhora-das-águas, ma cobra-norato.
Rendo-me, então, à tua beleza, faço-me servo de ti, minha
senhorya, servo com a mesma servidume de um senhor
feudal diante de sua bela sá, siá, sinhá, com o mesmo
arrebatamento de um beato no altar da ˈviɾʒɐ̃j mɐˈɾiɐ.

41
AMOR

Há de sobrevir porque, na vida, o amor é fogo sagrado,


é tempo tolerante de espera, uma aventura fagueira do
bem que nos chegará na hora certa. Então, quando esse
amor chegar, laço-lo-ei na mais obsequiosa reverência de
um cortesão. Até lá, o amor será a doce espera, e não
descruzarei os braços enquanto meu amor não chegar,
atravessarei destemidamente o dia prantivo como animal
ferido, solitário e resiliente. Penso assim sobre o amor que
a mim chegará: o amor que busco em sonho desde a tenra
idade e que me alcançará em boa hora. Enquanto meu amor
não chegar, restar-me-ão os braços em torno do altar, a
explosão de aleluias, a cabeça sobre o peito da virgem
vestal, siá maˈɾia alembrada.

42
BEIJO

A moça branca, no Sítio aˈsẽnʊ, era a mais bela e


cheirosa da Capella da Telha. De sorriso rechonchudo me
encantou à primeira vista. Siá maˈɾia. Uma vez na cozynna
da casa da tia fɾɐ͂sˈkĩɲa fiquei bem pertinho dela, bem
apertadinho, e seu cheiro de moça branca me evocou o de
milho verde, milho em flor, virginal. Tão branca siá maˈɾia,
tão opulenta, com suas coixas tão brancas, suas coyxas
atan volumosas, tan misteriosas e tã apetitosas como a
carne das rrããs. Siá maˈɾia era tã faceira e tã dócil. Então,
combinei o encontro apassionado ao entardecer, no riacho
kaɣnaˈuba. Bem antes, no começo da tarde, tomei um
longo banho, na barragem, e fiquei com cheiro de palha de
milho viçoso. Depois, longamente escovei os dentes com
juá. Pronto. Estava preparado para meu primeiro beyjo na
moça branca. Montei as stratagemas, uma a uma: beijaria,
primeiramente, o nariz; depois, o pescoço; depost, o rosto
e, adeãte, a pele. E, assim aconteceu o comteçido, no
Riacho kaɣnaˈuba, beijei demoradamente a moça branca,
uma aragem aprazível e incenso de caiena, e de sua boquua
exalou o cheiro bom de almecegueira-cheirosa. Meu
primeiro beijo na moça branca foi um beijo medroso e leve,
mas siá maˈɾia foi realmente minha primeira rosa de amor.

43
BICHO DO MATO

Aos sete anos, na aridez do Sítio aˈsẽnʊ, tera de gente


abrutalhada, terro de tantos pedregulhos, enchi meu
coraçom de 1.029 km² de vazios e morri, por dentro, à guisa
de um mártir cristiãu. Antes dos meus dez anos,
esquartejei-me na terra sáfara e tive minhas pernas
abandonadas em baˈxeɪɾas e alẽɪ̃ˈkax e meus braaços
foram brutalmente arrancados por feras invisíveis do Sítio
aˈsẽnʊ. Fui crescendo assim, esquartejado, com partes de
mim jogadas em baˈu, gaˈdeʎa, Rxiaʃoveɣˈmeʎʊ,
baxʊˈaʊtʊ e suasuˈɾɐ͂na. O sítio aˈsẽnʊ me castigou desde
cedo e sentia a morte exalar pela minha boquua. Para não
perder o juízo, falava com rrããs e ouvia queixas de insetos.
Para não perder a esperança, estridulei como os grilos e
modifiquei as nervuras dos insetos cobertos de espinhos.
Por isso, passados tantos anos, ainda sou tão despedaçado,
estraçalhado, e o que me restou de vida me levou
impetuosamente a copular os bichos mansos, a criar asas e
a deixar unicamente mɐˈɾiɐ, minha mɐˈɾiɐ do sítio aˈsẽnʊ,
para sempre, no meu dorso de menino caipora, bicho do
mato, grosseirão.

44
ESTRUIÇÃO

Quando soube, ela tinha quymze; eu, apenas septe


anos. Era tarde. O tempo impiedosamente havia passado.
MCMLXXII. maˈɾia foi para a sede da Capella de Telha e se
casou. maˈɾia tão branca, tão bela, tão donsela. Vi as
mudanças no corpo de mɐˈɾiɐ na minha primeira infância:
vi seus seios ganharem volume, lambi vorazmente suas
partes, decantei seu perfil gracioso de dõnzella. Minha
mɐˈɾiɐ tão branca, de rosto tão formoso, tão corada; sua
voz, a mesma doçura do clarim. De longe, sentia o cheiro
virginal de mɐˈɾiɐ, sempre de sorriso tão generoso; devo
ter me ocupado de contar cada um dos seus pelos pubianos
e suas axilas traziam uma doce relva com aroma próprio. Vi
a grandeza de seus quadris brancos e suas imperiosas
coyxas brancas. Sempre que possível fiz as devidas
reverências de cavalheiro diante da donçela. Toquei,
onrrado, a vagina de mɐˈɾiɐ tão espessa e vi o milagre do
seu briguigão.Chorei tanto com o casamẽto de mɐˈɾiɐ. Sofri
tanto com seu hymeneo que quis voltar à matriz de minha
mãe pɨˈdɾinɐ. Gritei em vão: vó bɾɐzɨˈɫinɐ, mɐˈɾiɐ se casou!
Vô sɨɾiˈaku, me acuda, mɐˈɾiɐ se casou! Minha mɐˈɾiɐ,
minha iɾaˈsẽma, minha corsa selvagem. Naquele ano, de
çerto, aquele cassamento estruiu meu coraçom.

45
GEOMETRIA

Traço com régua e compasso minha fala carregada de


enjoo sem nenhuma causa aparente, exceto a dor da alma:
o que tenho a dizer já não me é objetivo, exterior; o que
tenho a dizer não tem destinatário certo; O destino? Ao
certo, o interior, o subjetivo e o inútil. Nada mais me é
natural; tudo em mim se deplora e me incomoda, um furor
que me diz sobre o inumano, o antagônico e o derradeiro.
Assim como no passado, criança, acorrentado (sim, feito
bicho, fui acorrentado!), continuo a traçar curvas
descontínuas ao compasso do coração devastado, pêndulo
que hoje, sei, segura os desolados. Minha emenda, então, é
negar: nego, pois, a rotação da Terra, ainda que não negue
sua redondez. Não me apego mais à geometria, seja
analítica, diferencial ou euclidiana, nego-a veementemente
com o mesmo destempero feroz dos que esperam pelo
pior. Nego a geometria e os geômetras. Nego todos os
quadriláteros. Digo não aos lados e ângulos retos do
quadrado. Recuso a existência dos polígonos. Refuto a
matemática. As diagonais do quadrado não são
perpendiculares nem seus ângulos internos se interceptam
no centro. Minha ilação do inútil agora é minha afirmação:
meu mundo, minha épura; esta, a planta baixa dos desvario;
eis-me, aqui, habitador da mouraria dos semimortos. Eis-me
bipolarizado de aˈsẽnʊ.

46
HEBETUDE

O clima do sítio aˈsẽnʊ era árido. Agora, sei porque


abria tanto a boquua e meus braços se espreguiçavam.
Vivia ensonado e meu sono era lento. Meu peito ardia
repleto de torpor. À noite, grasnava como as rrããs e o
torpor me trazia uma correntia sonolência. Passados tantos
anos, relendo, agora, luˈsiola, de alẽɪ̃ˈkax, interpreto
melhor o torpor do sẽhor xoˈʃĩɲa, aquele homem com a
cabeça pesada de sono e um cálice de cognac na mão. Foi
no sítio que aprendi a lição do langor de xoˈʃĩɲa: inquieto-
me com a aridez da terra batida e arremesso de mim o
torpor dos meus ancestrais.

47
MÁGOA

Nunca acreditei em quebrantos ou sortilégios. Risquei


do meu dicionário vital a palavra feitiço. Eis o que me
compraz: saber que, em matéria de amor, o que há de
encanto é, na verdade, o desencanto, a mágoa, a que mata
mais, a mágoa que flagela, que fragiliza, que confrange e
impõe em nós um medo devastador, o medo dos alonsos,
o medo desinteligente, o medo irracional e que nos anuncia
joio no malhar do trigo. A mágoa nos atormenta e, aqui, me
apraz dizer: sou um contumaz semimorto, em coma cárus.
A magoa me interrompeu o viver, me embaraçou, me
aborreceu e, agora, padeço de anojo. Pois é: realmente, o
poder do beijo do príncipe na Branca de Neve passou. Siá
mɐˈɾiɐ, õde?

48
SAUDADE

Quando soube do sim de mɐˈɾiɐ, de seu noivado


pagaãos, solucei de door e não dormi naquela noicte. No
outro dia, cedo, acordei aos plantos, plãtos, planctos. O
sítio aˈsẽnʊ ouviu meus gritos de door. Meu vô sɨɾiˈaku
ouviu meus gritos de ravia, rajua. Meu vô sɨɾiˈaku, estou
com soydade, soidade, soydade, ssuydade de minha
mɐˈɾiɐ. Quede minha mɐˈɾiɐ, meu vô sɨɾiˈaku? Vou smorẽ,
moira, moreo, moryam, moyrades, moreeo, morrẽdo,
morriria, mouram de saudade da minha mɐˈɾiɐ. Meu vô
sɨɾiˈaku, meus lábios ardem, estou com door, meu sentir é
profũdo, profundos, perfundo, prefundo, proffundo, é
door de perecimento. E asi, asse, ssi, rompi durante dias em
choros prolongados e sentidos depois do casamẽto de
mɐˈɾiɐ. Meu rosto trjste escondia nas minhas mãos
menineiras e o sítio aˈsẽnʊ ouviu os ecos do meu ay, guay,
ay. Nunca me esquecerei de minha amarga soydade de
mɐˈɾiɐ e a memória de minha emfancia há de ser sempre a
do martyrio horrendo de todas as noites sem mɐˈɾiɐ, um
derradeiro gemido de angústia; se hoje minha dor é
esthesia, outrora, sofrymẽto, sofrymento, suffrimento do
amor puro.

49
SILÊNCIO

Sítio aˈsẽnʊ. aˈsẽnʊ sem mɐˈɾiɐ foi meu desassomar.


aˈsẽnʊ sem mɐˈɾiɐ foi minha dessonra, dezomra,
desohonrra, desonhorra, desonrra e çancadilhas. Tinha
minha fee em Deos, tinha fee em Μαριας no cééo, a de
Nazaré, a Santíssima Virgem, mas não tocaria mais minha
mɐˈɾiɐ do sítio, a de carne e osso, a das coyxas grossas e
brancas. Minha mɐˈɾiɐ era dõnzella jngrata, engrata,
descomũal, casou-se só por interesse com um pagano, com
um demoneo, um demonyo. Sim, sim, mɐˈɾiɐ me
abandonou, abandonou o neto de sɨɾiˈaku, o neto de
bɾɐzɨˈɫinɐ, o filho de pɨˈdɾinɐ, o sobrinho de ˈkikɐ, um
menino santo, um santo homem. O casamẽto de mɐˈɾiɐ me
aborreceu muito e meus muxoxos tãobem entristeceram e
aborreceram meu vô sɨɾiˈaku. Meu olhar era choroso como
num rebanho de cândida ovellỹa. Sobre o chão de terra
batida do sítio aˈsẽnʊ pesava meu silêncio. Ninguém ouvia
a minha voz, só meu plãto, o silêncio agridulce do menino
sem mɐˈɾiɐ. Meu Silêncio, o silêncio sem mɐˈɾiɐ, era o
mẽesmo de um pássaro perdido, um pássaro que espaneja
suas asas no ar e sem forças. Naqueles dias tristes, a nuvem
do cééo, desprovida de minha mɐˈɾiɐ, ficou presa como
uma asa e tã bẽ não esvoaçava.

50
SOLITÁRIO

Meu vô sɨɾiˈaku era um homem ssollitario. Acho que era


aislhado e ligeiramente uesgo. Seu olhar sobre mim era
sempre enviesado e, se estava diante de bichos, árvores e
do Riacho da kaɣnaˈuba, tinha um olhar quebrado, que
lembrava o olhar de piau morto. Ouvia muitas vezes ele
conversando sozinho com os pássaros, as rrããs e as águas
do Riacho da kaɣnaˈuba. O que vô subvocalizava aos bichos
e às águas nada significava para mim, afinal, ainda não sabia
da sintaxe do silençio, mas sua entoação me encantava, a
palavra entoada, e sua solidã abria em mim a soledão
própria de menineiro. Puxei ao vô sɨɾiˈaku ser assim
também ayslado. Também aprendi a cair no çellençio e sou
ainda hoje capaz de cõuersar com os vertebrados, como
répteis, teleósteos, lagartos e rrããs, até aprendi com meu
vô a inverter os sexos dos bichos, transformar machos em
fêmeas. Dos bichos vertebrosos, conheço bem a “montaria
dorsal” das rrããs, das rrããs machos agarrando as axilas das
fêmeas por trás e derramando uma pituíta dentro delas. As
rrããs fêmeas nunca se importaram com o silentio do meu
vô sɨɾiˈaku e grasnavam alto quando se acasalavam com os
machos. Eu e o vô sɨɾiˈaku aprendemos a ser solitários,
solitários como são aqueles bichinhos levados pela chuva
ou pelo vento para o hermas, bem hermos, bem hermo
mẽesmo.

51
VERRUGA

Um ano depois de casada, inɨʃpɨɾɐdɐˈmẽtɨ, numa tarde


de MCMLXVIII, talvez, domijngo, mɐˈɾiɐ, sim, a do meu
primeiro amor, apareceu no sítio aˈsẽnʊ, em forma de
mulher champruda, rechonchuda, repolhuda, volumosa, de
cabelos pintados e com uma estranha verruga no queissu.
Fiquei desenfeitiçado. Eu, aos ssete anos, neto de sɨɾiˈaku,
agora bem mais tristis, um serzinho enfiuzado, magruço,
malcriado e rechupado. Também tinha uma verruga, mas
no dedo, porque apontei uma vez uma estrela com o dedo,
mas maˈɾia trazia uma verruga no queixoo, como? Achava
em MCMLXVIII que verruga no queixoo era excrescência de
bichos: só via verruga no queixoo de porco e em
porqueiros. mɐˈɾiɐ, agora, casada, falava tã alto, tã
obscena, tã licenciosa, com decote tã indecente, com sua
verruga tã vermelha, com sovacos tã cabeludos, com barba
tã cõpryda no queixo, sem a doce dignidade da minha
dõnzella, tã brejeira, despudorada, tan lasciva, tã perdida,
tã velhaca, tã voluptuosa, tã verruguenta, tã berruguenta,
tã verrugosa. Em MCMLXVIII, descomi mɐˈɾiɐ.

52
ABECÊ

Perguntei por preguntar: o abeçe, vô siɾiˈakʊ, o sẽho


sabe? Foi o suficiente para o vô siɾiˈakʊ, desabusado que
era, se avexar e começou a arriscar no chão da terra batida
ao menos umas dez e sete palavras todas com til. Repetiu
então o vô siɾiˈakʊ, de cor, a tauoadas e a carta de syllabas
e nomẽs. Vô siɾiˈakʊ quis logo me jnstruyr o nome de cada
lettra do abeçe e com a ponta do pé escrevia no chão da
terra batida cada segno e ia apagando depois, para
escrever outra letra e outra até o fim do abeçe, fazendo da
terra bárbara a ardosia. Vô siɾiˈakʊ sabia ler a Missão
Abreviada, a do padre Manuel José Gonçalves Couto, sabia
jnstruyr o povo da mesma forma que aprendeu a ferrar as
bestas. Vô encaixava o abecê na cachola do povo com a
mesma presura com que metia um cravo na ferradura. No
povo rudes, Vô siɾiˈakʊ dava gritos, safanões e cocorotes.
Do Sítio ɐˈsenu, vô siɾiˈakʊ tentou até ensinar o abecê às
rãs, mas não sabia como meter as letras nos cascos das
bichinhas. Com o vô siɾiˈakʊ, aprendi só fazer o til espiando
suas sobrancelhas negras, aprendi só a arriscar o ó
espiando a conchinha da orelha da vó bɾaziˈlĩna e quando
tentei aprender o á trinquei os dentes e me enfezei com o
vô, a vó e o mundo.

53
BATATINHA

Em MCMLXVI, aos cocorotes, na capital, aprendi a leer


com a tia aʊɾisˈtɛla. Quão desastroso foi leendo com
dolorosos cascudos. Nas férias de julho daquele mesmo
ano, quando retornei ao Sítio aˈsẽnʊ, na Telha, já sabia ler
as coisas do mundo e muito bem declamar, em voz alta, as
quadrinhas populares, dramatizando as trobas com gestos
na face, nos lábios, nos olhos, capaz mesmo de chorar ou
de me alegrar com o cântico dos repentistas. Uma noite,
com a fronte majestosa e solene, resolvi recitar diante do
meu vô siɾiˈakʊ. Ele me ouviu com atençõ, mas, no final da
declamação, silenciou. Depois de um quarto de hora, meu
vô siɾiˈakʊ quebrou o silencio: não se diz “Batatinha quando
nasce esparrama pelo chão”. E continuou: o certo é
“Batatinha quando nasce/ Deita rama pelo chão/; Mulatinha
quando deita/ Bota a mão no coração.” A correcam não foi
pacífica. Minha vó saiu em minha defesa: ˈʃikʊ, o certo é
“Batatinha quando nasce/ Deita rama pelo chão ;/
Sinh’Anninha quando deita/ Põe a mão no coração.”
Naquela noite, a palavra da vó bɾaziˈlĩna esparramou pelo
chão como quem espera que caia do céu uma estrela.

54
BUMBA-MEU-BOI

Em MCMLXVIII, praticamente não via nem havia


meninos da minha idade no sítio ɐˈsenu. Quatro gatos-
pingados. Quando juntos, gostávamos de quebrar a rutina,
fazíamos barulho com latas, andávamos em bando para
compartilharmos as “cõquistas”, e mijávamos,
naturalmente, em pé, em volume suficiente para
demarcação do nosso “tarrentorio” no chão de terra
batida, assim como faziam os cayeẽs, especialmente os
caãees do vô sɨɾiˈaku. Participávamos de grupos de caretas
para celebrarmos, no sítio, os bois-calumbas, ou melhor, os
bois-melões como dizia minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ. Não
participava dos bois-calumbas porque não via sentido njg̃ ũ
contar a morte e a ressurreição de um boy. Não posso
negar que, anos depois, a estorya dos bois-surubis, a
hestoria de que um dia voltaremos à vida após o
pericimento me impressionava; mesmo vestidos com
nossas caperuças, seremos, sim, resuçitados como aqueles
oméés vestidos de armação de madeira com pano e os
homẽes com uma cabeça do animal feita à mão também
serão resuçitados. Com o tempo, achei, todauya, mais
interessante amolar o boi. Assim, cedo desaprendi o ofício
de esmolar endulgençias aos hereges do ɐˈsenu e aprendi
a chocalhar, a mexericar, a achocalhar os crẽetes do lugar
com o despautério de que entre o omeem e nostro θεο
sempre há um boi na linha.

55
CAROCHINHA

Sou de uma época em que tocar as mãos de uma


donzela já era um ato de defloração. Assim, engravidei as
mãos das mais belas donzelas de minha rua. Nove meses
depois, via flores brotarem das mãos das donzelas de
minha rua. Na minha rua, cedo os meninos aprenderam a
deflorar a imaginação de meninos ingênuos e beijavam, em
insólitas histórias da carochinha, as mais belas donzelas de
minha rua, com o beijo sobrenatural e o sobrenatural beijar
das fadas era o desenlace imprevisível. Sabia também
contar meus contos maravilhosos. Minha mãe não ria, mas
também não me repreendia. Em todos meus contos,
minhas mãos, minha boquua e minhas partes eram
fabulosas e encantavam as mais belas donzelas de minha
rua.Tinha, em mim, a mais santa ingenuidade das coisas de
amor. Um dia, um amigo, mais velho, despudorado, disse-
me, com gestos obscenos, que deflorar era copular, fazer
amor, e com gestos perversos, ensinou-me a obscenidade
do real e devastador ato de deflorar: fiquei chocado; então,
também fiz amor, de frente, por trás, chupei, beijei tanto, e
me depravei; enfim, amei as mais belas donzelas de minha
rua, perdi também o decoro, e o que era virginal já não me
era tão sagrado e fétido; e fui, assim, fazendo amor e
fazendo versos para recuperar o fôlego para engravidar as
mãos das mais belas donzelas de minha rua.

56
CATECISMO

Tio ˈʒokɐ era irmão da minha mãy pɨˈdɾinɐ, irmão por


parte de maỹ, e o único que sabia de cor as paravõas de
ˈdewʃ. Era o único da família com sabida erudiçam. Tinha
mais intruição do que o vô sɨɾiˈaku. Foi tio ˈʒokɐ que me
iniciou no cathechismo. Dizia ele: aqui, no sitio ɐˈsenu,
todos dormimos cedo. Bebemos a mesma augua de pote.
Comemos, religiosamente no mesmo horário, e uma vez só
ao dia, o pão amanhecido. Nossa deliciosa ambrozia traz
ovos de jararaca-da-seca em leite amargo de abesouros
enormes com suas mandíbulas amolecidas com mamona e
tinhorão. Nossas peles são curtumes. Temos frieiras nos
péés e as unllas, sim, as unllas, ajnda que enormes, estão
sempre enfraquecidas. Nossas mentres, quando não estão
vazias, têm o alembrado do agreste e nossos corações,
sempre secos, como bem mandam a moral e os bons
coustumes. Nosso ar tem cheiro acre. Nossos beyjos são
desagradáveis e degradados. Nosso humor contraria çeytas
e incomoda também ímpios. Quando sorrimos, há irrisam
em todas as direções e por coisas por demais mesquinhas e
ainda que por motivos óbvios de castydade. Aqui todos os
violeyros são honrosamente maltrapilhos e seguem as
formas rígidas da canções tristes. Aqui, como de costume,
o ser é tão simplesmente despreçivel. Aqui, nem é ssertaão
nem ma. Aqui, nem há deluuyo nem apocalisse. Aqui, a laje
cobre nosso corpo nu de há muito dãpnificado.

57
CRUZEIROS

Em MCMLXVI, encasquetei a ideia de ficar rigo. Não


tinha visto ainda a cédula de cruzeiros, mas meus tijos ˈnɛʊ
e viˈsẽtɨ se entusiasmavam com a coleyta do ar-ruzz,
ficariam rigos e receberiam 10, 20, 50, 100, 200, 500, 1 000,
5 000 e 10 000 cruzeiros. Meu vô sɨɾiˈaku ouvia em completa
mudez os soños de progredimento dos meus tijos. Claro, tã
bẽ, queria ficar riquo e pedi ao vô sɨɾiˈaku 10 000 cruzeiros,
no que de pronto retrucou: “Não tenho deneyro, não tenho
cruzeiros, só tenho entullos, sobras e dejectos. Não tenho
cobiiça, visẽˈtiɲu. O que tenho a oferecer ao mũdo é o
desútil.” Vô sɨɾiˈaku cobiçava o nada.Vô sɨɾiˈaku se sentia
um quutiliquê. MCMLXVI foi o ano de sequas. Vô sɨɾiˈaku
não se amedrontava. As aruores e as rrããs não se
amedrontavam com a sequas. Sem progredimento, meus
tijos ˈnɛʊ e viˈsẽtɨ foram emboora para a Vila Real do Crato.
Minha mãe pɨˈdɾinɐ e eu fomos para Fortaleza de Nossa
Senhora da Assunção. A seca no ano de MCMLXVI expôs a
terra sequas, a roça do vô sɨɾiˈaku ficou reduzida a pó fino.
Vô sɨɾiˈaku e vó bɾɐzɨˈɫinɐ ficaram no sítio ɐˈsenu. Não
morreram. Mas o rosto do vô sɨɾiˈaku rachou, seu lábios
arroxearam, já não rixava como antes, seu coração
arrochou e, da minha parte, nunca vi os 10 000 cruzeiros, só
vi 10 000 lazeiras.

58
KICHUTE

No início dos anos setenta, tinha meus dez anos.


Morava em fuɾtɐˈɫezɐ, mas nas férias do collegyo
sɐɫɨziˈɐnu ia para o sítio ɐˈsenu, na Capella da Telha. Meu
vô sɨɾiˈaku era lavrador e carvoeiro. Um dia, depois de
vender seu carvão, conseguiu juntar uma manchêa de
cruzeiros, e apareceu em casa com emburulho diferente. Vi
o emvorjlho e quis saber: o que é isso, vô? Ele me
respondeu: comprei um kikˈʃutɨʃ. Tio ˈnɛʊ ouviu a conversa
e corrigiu: paay, a gente diz kɨˈʃutɨ. Vó bɾɐzɨˈɫinɐ emendou:
é ʃiˈkutɨ, meu povo! Vô sɨɾiˈaku silenciou. Pegou seu kikˈʃutɨʃ,
amarrou os cadarços por baixo do pé e, no cair da tarde,
estava todo faceyroos na frente de casa, contando apenas
com o séquito da família. No outro dia, calçou mais uma vez
seu kikˈʃutɨʃ e era flagrante seu desconforto pelo franzir da
testa. Estava sisudo. No terceiro dia, cortou os bicos do
kikˈʃutɨʃ e disse que estava com os dedos dos pés
inflamados e as unhas enclauadas. E agorra, vô sɨɾiˈaku?
Perguntei-lhe, pronto para consolá-lo, no que ele me
respondeu: só calço aguora alparca. Meu tio ˈnɛʊ ousou na
correção: pere, a gente diz alparcata. Vó bɾaziˈlĩna, por sua
vez, corrigiu assim, ˈʃiku, o certo é dizer alpargata. Vô
sɨɾiˈaku silenciou. Então, ousei entrar na conversa e disse:
vô, o certo é dizer pragata. O olhar de esguelha do vô me
silenciou.

59
LEITURA

Aprendi a ler em voz alta em MCMLXVI. A pedido do


meu vô siɾiˈakʊ, li primeiramente Mateus 5:16: “Assim
resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam
as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está
nos céus.” Acho que foi uma leitura lenta, chiante e
soluçante, mas consegui ler do começo ao fim, o que
mereceu elogio do meu vô pela boa silabação. Em meio à
tanta jgnorãcia do abeçe no sítio, o elogio do vô siɾiˈakʊ caiu
em mim como uma desonra. Afinal, dominar o abeçe e ver
meu povo mergulhado na escoridam, levou- me, de logo, à
ignomínia e por me afrontar o ἀναλφάβητος. A partir
daquele dia, não quis mais ler em voz alta, decidi
subvocalizar a leitura bíblica diária, articulava as palavras de
modo quase inaudível, e passei a preguntar mais ao meu vô
siɾiˈakʊ sobre as peçoas e a emtrepetação dos versículos
lidos: "Vô siɾiˈakʊ, os bɾiˈʎɐ͂ ʧɪs que são tão apresentados
aqui no sítio e só se importam com o que as peçoas pensam
deles, honram a Deos?” Meu vô nunca deu atenção ao meu
pregũto. Cedo, então, me heresiei: “Glorifico, ó São Ciríaco,
teu silêncio e por não ter ouvido de vostrum uma vez
sequer alusão ao Deos invisível dos analfabetos do sítio.
Gloria ao cééo, gloria à terro, gloria ao aˈsẽnʊ!”.

60
MENINEIRO

Lá na Povoação da Telha, todos tinham ofício: minha


vó, afamada parteira e também adivinhadeira temida por
toda peste de capitão do mato; das minhas tias mais
queridas, por parte de mãe, havia a rica, desafamada como
adeleira; a pobre, já remida, era altareira e me ensinou a
rezar o padre-nosso que aprendeu com o vigário
missionário; meus tios, os da parte da minha mãe, todos
bebiam água-benta e eram afamados como arruaceiros; eu,
assim como, digo, assim mesmo, puxei à minha vó e, desde
pequeno, era menineiro. Da minha família, por parte de
mãe, ninguém quis ser abelheiro. Eu queria ser só ser
menineiro, e nunca quis ser abelheiro: queria, sim, ser telha
e minha mãe, lavadeira, disse que se não aprendesse a
cantilena do á-bê-cê, aos cinco anos, e se não lesse em voz
alta a Missão Abreviada, a do Gonçalves Coutos, estaria
condenado, desde logo, a ser curupira, ou melhor, quis
dizer cupira, ou, talvez, minha mãe tenha dito que eu
poderia ser sucupira, só sei que terminava em ira, e não iria
para a aʊˈdeia, não iria pras bandas do Riacho paʒeˈu, iria,
sim, ficar no Riacho kaɣnaˈuba, os cupinzeiros da Telha.

61
PADRE-NOSSO

Aos cinco anos ouvi, pela primeira vez, a myssa em


Latim. O loiola, de nome ˈxoʃa, da Capella da Telha, recitou
assim: “Pater noster, qui es in cælis/Sanctificétur nomen
tuum/Advéniat regnum tuum/Fiat volúntas tua/Sicut in
cælo, et in terra”. Entendi que o pater nostres, que é de
todos, está no cééo, de todos, e guardei os versos do
paternostros de cor. Recitava e cantava o paternostros,
mas um dia, no altar da Capella da Telha, misturei os versos
assim: “Noster Pater, qui in cælis es”. Sofri a reprimeda do
loiola da Capella e profetizou que não teria mais meus
incisivos e da minha boquua brotariam as raízes das
balsfêmias do mundo. Vô siɾiˈakʊ também me repreendeu
com o açoite cirial e me asseverou que o Latim era a língua
só dos remidos. Daí por diante, minha oraçõis nunca mais
foi a mesma, meu latim foi o de cozĩna: não queria mais
saber de rezas, mas de benzeduras; não rezava, só soluçava
e descobri que o Latim dos padres tinha uma sintaxe
exclusiva dos padrres, a sintaxe do çellençio. Nos anos
ssesseenta, minha vó bɾaziˈlĩna era parteira, meu vó siɾiˈakʊ
era carvoeiro, minha mãe peˈdɾĩnaera lavadeira, eu era
menineiro, todos católicos, todos viviam as mesmas
prouuaçoões na Telha e a Igreja do latim, língua morta,
nunca ouviu nossas misericórdias; o latim que era escarrado
dos loiolas da Telha já nos chegava com os casos mortos; a
Igreja do latim nunca vivificou os mortiços da Telha; e os
loiolas da Telha quando não choravam só faziam misérias.

62
PECADO

Meu vô siɾiˈakʊ sabia de cor e salteado o lyvro “Missão


abreviada para despertar os descuidados, converter os
peccadores e sustentar o fructo das missões”, pelo paadre
Manoel José Gonçalves Couto. Vô siɾiˈakʊ exortava a todos
do Sítio ɐˈsenu: “Tudo recebemos de Deos, porque tudo
vem de Deos. Que somos nós? Quanto ao corpo somos pó,
cinza, podridão, bichos, nada. E quanto à alma que somos?
Fomos concebidos em peccado original, temos muitos
peccados actuaes. Todos somos grandes peccadores e
todos estamos em grande risco de sermos condemnados
ao inferno; se Deos nos tem perdoado, nós o ignoramos; o
que será de nós não o sabemos, porque ninguém tem
certeza de salvação. Que somos nós? somos nada, ou
peores que nada; porque somos peccadores, e é melhor
não existir, que peccar...”. Meus ouvidos aprenderam
muito com os sermões do vô siɾiˈakʊ, o vô siɾiˈakʊ me
ensinou sobre Deos, os bichos, as rrããs, σαλαμάνδρα, e
cecílias, digo, cobras-cegas. Assim, cedo descobri que as
rrããs no Sitio ɐˈsenu tinham mais utilidade do que os bois
dos violeyros que tanto escutávamos no entardecer.
Todauya, sem as rrããs, o mundo não teria jentes nem
gentios nem barbes nem pagaãos. O mundo sem as rrããs
seria um mundo dominado por insectos e o coraçõ do
homem seria dorsal, sem Deos, como o dos insectos
pecadores. Assim, cedo descobri que as cantigas dos
violeyros pecadores pesavam mais do que as das sãctas
rrããs.

63
REBOJO

O açuda ˈzɛameɾikʊ, no sítio aˈsẽnʊ, nunca teve rebojo


de águas ou rebojo galopante como confabulava meu vô
siɾiˈakʊ. Vô me dizia que aos vinte e doos annos era
cangaceiro temido no ʒagʊaˈɾibɪ e ia-se pelo ˈsedɾʊ com
suas bracamartes, lambedeiras e pistoletas, em busca de
avemtuiras, desfazendo os agravos e as injustiças sociais.
Pelo valor do seu braço, Vô siɾiˈakʊ venceu a oligarquia
aˈksioli. Meu vô siɾiˈakʊ confabulava com os Deoses e tinha
instinto devinatorio que o tornava, no sítio aˈse ʊ, um herói
cristão, lídimo representante de Deos na terra. Vô siɾiˈakʊ
pregava contra a perdição do homem, e, depois de
escaldado com os copinhos de cachassa, dizia-me que era
capaz de fazer de todos os homens seres transumanados.
Se a fala do vô siɾiˈakʊ não era hyperbole, desconfio que
sofria de alguma demência. Na verdade, o que se via,
naquela época, era um açuda em desmaios penosos e isso
me causava, ao adentrar em suas águas barrentas, um
imenso calafrio, uma estranha carícia que me agulhava a
carne do pé.

64
2ª PARTE

Saudades do sítio aˈsẽnʊ

“ — A senhora me fez saudades de minha


terra. Lembrei-me de minha casa, e das tardes
em que passeava assim por aquelles sitios com
minha mãi e minha irmã.” (José de Alencar,
Luciola,1862, p.19)

65
ACENO

Preciso voltar ao açuda aˈsẽnʊ, no distrito de alẽɪ̃ˈkax,


na zona rural da Telha. Preciso voltar ao sítio, sitiar-me e
peregrinar pelo vasto sertão, abrir o coração e ouvir os
causos do meu povo, os sermões das minhas tias que nunca
envelhecem e saber mais do meu créole de seneˈgɐ͂bia
(giˈnɛ). Preciso me rastelar nas ervas secas, preciso me
perder como outrora como um pedaço de pau arrastado
pela correnteza do Riacho kaɣnaˈuba. Preciso cair nas
barragens do açuda do goˈveɣnʊ, mergulhar nu nos rebojos
do açuda, o do goˈveɣnʊ, e deixar o remoinho levar meu
desassossego para o fundo e depois, com o mesmo fôlego
de outrora, me arrebatar inteiro e me cobrir de pau, ervas
secas, garranchos e lírios-do-brejo. Preciso voltar ao meu
sertão, assim como estou, de coração mole, tão só, tão
severo, tão sedento e mais vazio. Preciso esperar a
enchente e me afogar tragicamente na imensidão oceânica
do açuda do goˈveɣnʊ- diziam meus avós -, construído com
pedra e cal pelos meus ancestrais, escravos nos oitocentos.

66
URTIGAS-BRAVAS

Meu vô siɾiˈakʊ era um homem troncudo, de pele


rugosa e seca como as folhas das urtigas-bravas. Minha
mãe peˈdɾĩna, minhas tias ˈxita e fɾɐ͂sˈkiɲ̃ a, de pele lisa e
molhada, de dedos finos, sabiam dar alegres cabriolas. Não
eram urtigas-bravas. Tio viˈsenʧɪ tinha espinhas grandes e
feias no rosto, trazia no rosto as marcas definitivas de
unhas sujas, no seu rosto, intrigante e oval, trazia arranhões
de urtigas-bravas. Tio viˈsenʧɪ era uma urtiga de caatinga:
floresceu longe da igreja e da santa comunhão. Cedo,
casou-se com um punhal, e pedia sangue em qualquer
zanga. Tio viˈsenʧɪ era temido por todos do sítio aˈsẽnʊ. O
punhal de tio viˈsenʧɪ era de prata, tinha seu nome no cabo
e na bainha. A fama de valentia dos koˈpiɲas foi conquista
exclusiva do tio viˈsenʧɪ e não do vô siɾiˈakʊ, este, um
ministro d’aquele Deos pregado na cruz pelo ódio dos
fariseus. Com a mão feroz, tio viˈsenʧɪ impôs medo aos
homens do sitio aˈsẽnʊ. Cresci com muitos terrores e
tremores e um especial medo de urtigas-bravas, as inúteis
urtigas-bravas, que só me causavam coceiras quando
tocava, sem querer, suas minúsculas agulhas. Talvez, por
isso, passei minha infância com tanto medo do meu xará,
meu tio-urtiga, meu tio viˈsenʧɪ do sítio aˈsẽnʊ.

67
AÇUDA

Foram meus ancestrais pretos que construíram, em


MDCCCLXXXVIII, na Telha, o açuda do goˈveɣnʊ. Grande,
profundo, com margens desabridas e assesseguadas. No
começo, o açuda só servia de aguada dos animais, depois
virou bevedoiro para gentes e a regar plantaçõões. Cedo
me enfeiticei pelas agas assesseguadas do açuda e me fiz
pedra para tã bẽ represar e prender agas. Minha vó
bɾaziˈliña me ensinou a nadar da barragem ao açuda e
desde cedo aprendi a boiar, nadar com as pernas
espichadas, boiar com a barriga para o cééo, até aprendi a
nadar por baixo das agas. Mas, um dia, minha vó, uma
contadora de histórias, me desenfeitiçou do açuda, contou-
me de um estrondo, aos borbotões, com agas caindo,
descendo e galopando pelo sítio aˈsẽnʊ, espumando e
roncando, com munta força, torcendo gentes e arrancando
plantaçõões. Desde aquele dia, desapreendi a nadar, meu
nadar ficou sombrio, fiquei assustado com as agas do açuda
que já não me eram mais assesseguadas.

68
MINHAS VACAS

No sitio aˈsẽnʊ, adorava a hora do banho do açuda.


Descia correndo para o açuda, mas nunca descia só e minha
vó bɾɐzɨˈɫinɐ não me deixava entrar só naquela acequia em
cuias águas via upiabas grandes, alimentadas por mim com
farynna e larvas de bizouro. O açuda aˈsẽnʊ marcou minha
emfancia, contemplava suas águas límpidas e minha mãe
pɨˈdɾinɐ gostava de ser chamada a “menina da vazante”. Às
margens do açuda, vi meu vô sɨɾiˈaku plantando batatas-
doces, abóboras, belancia, melões, mansises e vajas. Me
encantava como meus tios e ninhas tias se referiam a
gerumú; uns diziam, jurumú; houtros, girimú; obtros,
jurumú; meu vó dizia, com empostação, jirimum e minha vó
bɾɐzɨˈɫinɐ falava, com um especial arrendondamento dos
lábios, jurumum. Antes do jantar, somente meu vô sɨɾiˈaku
descia para o banho no açuda: era um horário sagrado.
Nunca vi meu vô sɨɾiˈaku nu. Acho que no seu corpo nu se
escondia a alma de um bom vaqueyro. Nunca vi o corpo nu
do meu vô, e, assim, também nunca vi também sua alma de
uaqueyro. Via-o de longe, tão longe como as águas límpidas
do açuda, e o hábito de tomar banho sempre no mesmo
horário me levava a crer que iria a lĩphẽ-se as doenças do
corpo.Quando ô sɨɾiˈaku voltava do açuda, banhado,
parecia-me um outro homem, jeito de rapax, todo lilĩpho,
cheirando a sabão de coco; entom, ligava o rádio para ouvir
os violeyros e iniciava sempre a mesma ledaĩa: um dia vou
ter um casário, um dia vou ter duzentos léguas de campos
para criar duzentos toros. Eu o admirava: ige, vô sɨɾiˈaku,
dozẽtos tourros? E com a mesma mania de grandeza,
curiava ainda: vô siɾiˈakʊ, o sẽhor deixa eu criar minhas
duacentas vaquas?

69
BALADEIRA

No princípio, o mundo era redondo. O mundo era


povoado de borboletas, rãs e gentios, mas criaturas
ferocíssimas e redondas. O mundo era uma esfera que a
gente via dentro de uma cumbuca; menĩhos, mijávamos em
círculos ao redor da capella, no sitio aˈsẽnʊ. As casas eram
ovoides. Os piaus do açuda tinham olhos arredondados e se
distinguiam, assim, das achatadas curimatãs. As mulheres
eram opulentas. Meu vô siɾiˈakʊ só falava por circunlóquios
ou redundâncias. Nossa paz era redonda. Um dia,
estranhamente, chegou ao sítio aˈsẽnʊ um gordalhudo se
dizendo octoridade, com a missão de demarcar as nossas
terras; falou alto e bom som de metros quadrados da área,
mas ninguém na Capella da Telha sabia calcular as eiras do
seu habitat e muito menos volume dos corpos redondos. O
gordalhudo calculou o Sitio aˈsẽnʊ e finalmente apresentou
os números redondos em cruzeiros para cada família. Alto
lá! De repente, ouvi um balido. Atingiram o gorducho em
cheio. O agrimensor morreu. Dizem que foi um tiro de
boleadeira, digo, baladeira.

70
BREJO

A Capella localizava-se bem no seio da Tella, para ser


mais preciso, a poucas leguoas do sítio aˈsẽnʊ, porẽ o
terreno, o da Capella, era exata e estranhamente um
triângulo aequilaterus perfeito que me inspirava o á-bê-cê;
o terreno da Capella tinha dono, era arrendado por 300
moedas (presumo cruzeiros), todauja o terreno era brejado
e sáfaro, e a Capella da Tellha sempre cercada de árvores-
tristes, igualmente brejadas e abaçanadas. Minha boquua
de menineiro, ainda na segunda infância, era também
brejada e meu oolio direito sempre remelento e lembrava o
olho-branco. Telha era a moradia predileta de jurema-preta,
pau- branco, carrasco, mofumbo e pereiro, que
estranhamente se cruzavam em acasalamentos
incestuosos e repugnantes. Os animais do mato eram
poucos, os que vi, peguei e comi foram poucos, apenas vi,
peguei e comi a cobra jiboia, o preá e a galinha-d'água,
misturas saborosas, disputadíssimas, capturados no quintal
da casa do meu vô siɾiˈakʊ , capturados vivos com suas
vísceras brejosas e deliciosas. Todos nós tínhamos cheiro
forte e adocicado de pântano e do nosso cérebro escorria
uma nauseabunda água esverdeada com gosto herbáceo,
perem apetitoso. Nossos pés e mãos eram brejosos e nosso
suor tinha cheiro fedorēto de piau-da- lagoa. Ninguém era
privado de sexo ou de saudade, pelo contrário; todauya as
sementes e os choros dos varões eram desperdiçados no
lodaçal. Todos nós éramos unidos e tínhamos o dom de
umidade e vegetávamos, felizes e hermafroditas, nos
terrenos das várzeas inundadas.

71
CAFARNAÚ

O Sítio aˈsẽnʊ fica nos confins da soledão. Terra


bárbara. No início dos anos MDCCCXXV, eram praticamente
seres inexistentes os conversantes no aˈsẽnʊ. Assim como
as rrããs, éramos abandonados de todos. Os telheiros e
carvoeiros eram, desde as priscas épocas, naturalmente
rudes. Desconfio que meu vó sɨɾiˈaku, telheiro por vocaçon
e carvoeiro por miserê, e minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ, telhadora por
afouto e cozinheira por satisfaçom, foram os primeiros
soliloquistas do sítio aˈsẽnʊ e, na falta de conversantes,
falavam unicamente com Deos. O Altíssimo, sempre
silencioso e sentado no curul, onde só se assentavam os
telheiros. Em busca de mantemẽtos, meus abõos iam
quinzenalmente à sede da capella da Telha, vindiços que
logo despertavam a curiosidade dos çibdadanos: “Sẽhor
sɨɾiˈaku como estão as cousas, como estão os “koˈpiɲ̃a”,
onde vossemecês moram mesmo?”. Sempre as mesmas
interrogaçãs. Vô sɨɾiˈaku virava a cabeça para cima e para
baixo e fazia um barulho com a boquua. Claro, se fazia de
lelé. Falava, então, coisas illogicas: “Moro lá no infinito,
Dioses está na ssoonbra entre meu coraçom e o cééo!”. Os
cidadããos continuavam coriossos. Em seguida, meu vô
sɨɾiˈaku virava a cabeça para os lados e dormia em qualquer
ssoonbra de pé de pau, digo, pé-de-pau. Minha vó
bɾɐzɨˈɫinɐ sempre via a aflicçom do vô sɨɾiˈaku nessas horas
de colloquio com çiobdadããos da capella da Telha, e,
desabusada que era, respondia em tom ríspido: ˈnɔʒ ˈmoɾɐ
no calcanhar de judas, ˈnɔʒ ˈmoɾɐ no cornimboque de
judas, ˈnɔʒ ˈmoɾɐ no cornimboque do diabo, ˈnɔʒ ˈmoɾɐ no
cu de judas, ˈnɔʒ ˈmoɾɐ no cu onde o diabo perdeu as botas.
E encerrava a prosa.

72
CARNAÚBA

Se soubesse arremedar Pessoa, diria, em quadrinhas,


que kaɣnaˈuba é o riacho mais belo que o açuda que
sangrou no Sitio aˈsẽnʊ. kaɣnaˈuba é meu Tejo. Todauia,
kaɣnaˈuba me estreitou por dentro e embocou meu
coração desde mynyno. Abri fendas em mim, mas aprendi
também e sozinho a cãtar doilos. O leito seco do kaɣnaˈuba
me secou por dentro. Por dentro, sou como as águas
represadas do kaɣnaˈuba. Minha aligrya nunca transbordou
ou sangrou como a de outrem, e enfrenta as barras do
córrego na Capella da Tella. E assim, tem sido meu declive,
o declive de sempre, o que faz ladeira para o kaɣnaˈuba.
Será que a sequidão do kaɣnaˈuba tãobem enfezou e
retorceu a caatinga na Capella da Telha?

73
CARRAPICHOS

No sítio aˈsẽnʊ, passei a infância lucubrando sobre


tudo. Passava as manhãs lucubrando. Um dia, ouvi mistério
na mata, calculei mesterios de corupîras, me vi, assim,
digamos, um naão, de cabelos vermelhos, um ouão de pés
ao inverso, e quando reparei, comecei a falar de mesteryo
de curypyrans, e fiz do meu dia um misteirio de curupiras.
Descalço, bem cedo, saí pela mata procurando sombras de
jetatura, cismando curupiraas. No final da manhã, nada
encontrei de curupiras e retornei para casa do meu vô
sɨɾiˈaku sem curipiras, chorando muito, com meu pés
inflamados de carrapichos, carrapichos espalhados no meu
corpo esguio e meu choro era o de menino manhoso. Meu
vô sɨɾiˈaku, pacientemente, tirou cada um dos carrapitos.
Um a um, vô sɨɾiˈaku foi tirando com suas mãos habilidosas,
cada um dos carrapichos agarrados no meu corpo.
Carrapicho era fruito espinhento, prendia-se em animais e
roupas de lavoureiros e infestava a lavoura do meu vo
ɨɾiˈaku. Pois sim. Vô sɨɾiˈaku, de cócoras, puxava cada um
dos carrapichos agarrados na minha cabeça. Vô dizia assim:
visẽˈtiɲu, você é temoso, visẽˈtiɲu, você é munto
desobedeẽte. Eu morria de rijr: meu auolo, meu auóó, meu
auoo, meu avoo, meu abõo, meu auuo e ele me repreendia
assim: você é menino maluvido. Aí, eu ria e respingava
assim: avoo, abõo, quero ser carrapicho. Vô esquelhava e
fingia que puxava com força os carrapichos grudados no
meu juízo. Eu morria de rriyr.

74
CARVÃO

No início, havia o mato e o fogo. Surgiram, então, as


primeiras profissões do mundo: a de mateiro, oje, chamado
simplesmente de caipora; depois, vieram os fogueiros, oje
conhecidos por malcomidos (não sei os porquês). Depois,
bem depost, surgiu o carvon, sim, o caruõ de quozer,
caruam para as lareiras e no sítio aˈsẽnʊ meu vô sɨɾiˈaku era
o único com a arte de fazer carvon de madeira. Meu vô
sɨɾiˈaku era carvoeiro. Abria, com sua enxada larga, as covas
para receber os pedaços de madeira e só ele sabia entreter
o fogo. Apagado o fogo, surgiam no ar faíscas negras que,
com o passar dos anos, adoeceram os olhos do vô siɾiˈakʊ .
Com o melhur carvon, minha vó bɾɐzɨˈɫinɐv fazia, no fogão
a lenha, apetitosos guizados de xárque e deliciosas boroas.
O carvão do vô me sufocava munto e espantava também as
rolinhas do sítio. Algo sempre me chamou a atençõ: os
insectos se nutriam da madeira, mas nunca vi os insectos
comerem o carvon do vô sɨɾiˈaku (não sei os porquês).

75
CEDRINHO DE AÇÚCAR

Nenhum dos koˈpiɲ̃a nasceu no monte Ολυμπος. Vô


siɾiˈakʊ, vó bɾaziˈliña e minha mãe peˈdɾĩna nasceram no
Cedrinho de Açúcar, hoje, ˈsedɾʊ. Nasci na ˈteʎa, a 58 km de
ˈsedɾʊ, corri entre roçado, e só depois descobri as flores;
corri entre brejo e só conheci cedros quando já sabia o sinal
da cruz. Meus avós tinham uma majestosa cruz de cedro.
Diante da cruz de cedro, vi uma vez meu vô siɾiˈakʊ chorar
por não ter o de-comer; de feição triste, parecia-me,
naquela noite, um fantasma negro gemendo ao lado da
cruz de cedro. Vi outra vez meu vô siɾiˈakʊ derramar
lágrimas sobre a terra bárbara do sítio aˈsẽnʊ. Acho que
meu vô siɾiˈakʊ ouvia gemidos do fantasma da cruz, rezava
o indizível e seus lábios se moviam sem sorriso. Um dia,
ainda menino, cortei um dos braços do aroeira-do-sertão e
improvisei uma cruz tosca, sem apuro, ajoelhei-me e rezei
assim: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco,
bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do
vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deos, rogai por
nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.”
Depois da prece, tremi nos lábios. Não vi mais nada nem
fantasmas. Disseram-me, depois, que isso eram as
convulsões do desespero.

76
CHUVA

No sítio ɐˈsenu, tempo chuiuoso era tempo feio, noite


chuiuosa era noite téébrosa. Quantas vezes, em noites
chuiuosas, me atordoei com o barulho da chuiva fina, mas
perenal, sufocando meus medos, rente à rede de dormir. Se
chovia muito, o frio era emportuno e fazia do meu peito
uma troada incomum de soledão e adjacente a quê, não sei.
Se chovia ao longo do dia, manhã ou tarde, era tempo de
menino ssolto, e corria no sítio ɐˈsenu como se meu mundo
fosse aquabar, como a chuva fosse o desvario da
humanidade. No sítio ɐˈsenu, os barulhinhos da chuva eram
differentes, lembravam os estalos dos dedos do vô sɨɾiˈaku
e as trovoadas eram estampidos do desconhecido, o
estardalhaço de ˈdewʃ. Noite de chuvha era noite de lõguos
soluços de minha mãe pɨˈdɾinɐ, com suas inconfessáveis
dores da alma, com estrondos de plãtos da menina da
uarzea, fragor dos dias lõguos e das noites llongas, rumbo
ao passado trjste, rumbo ao chão sem frêmito, rumbo ao
chão sem infância, rumbo ao chão com a mesma infâmia do
ribombo do meu coraçom.

77
CINZENTO

A Capella da Telha tinha o ritmo mazorral da caâtĩga. O


mato do sítio aˈsẽnʊ, sempre cinzento, tinha sede de água,
mas havia aparição de curupiras ou caiporas. O gado
esfomeado nunca parava de mastigar, engolir e ruminar
cactáceas. As árvores eram baixas e sem pássaros. No
alvorecer, o mundo não branquejava, o mundo ardia e se
acinzentava na décima segunda hora, e meu vô siɾiˈakʊ
pegava sua eixada para lavrar a terra no roçado cinzento,
mas, na maior parte de sua faina, cochilava e ronquejava
debaixo de um pé-de-pau carcomido. As rãs também
cabeceavam com sono o dia inteiro. Minha distração era
utopiar o mũdo, com minha mãe peˈdɾĩna, pensar meu
aˈsẽnʊ, a qualquer aˈsẽnʊ de Promessa. As apregatas do vô
siɾiˈakʊ eram apertadas nos seus pés, mas não chiavam,
porque não era permitido o desassossego no Sítio aˈsẽnʊ.
O cachimbo grudava na boquua do vô siɾiˈakʊ para as
nauseabundas cusparadas que oxidavam o terreiro sem
galinha crioula. Meu vô tinha uma faca esbranquiçada nos
quartos. Havia muita seca e vivíamos como mareantes no
deserto de águas e minha vô bɾaziˈlĩna rezava tão baixo
credo in unum deum patrem que nem sei se era transladado
nos ceẽos.

78
CORDÃO

Vô sɨɾiˈaku cortava moytas, cortava fardo de algodam


mocó, catava o alguodom mocó, suava mouito e cansava.
Vó bɾɐzɨˈɫinɐ descaroçava o algodã mocó e fazia
coordõees. Vó bɾɐzɨˈɫinɐ era mulher opulenta, branca,
conversadeira, e munto pelejadora. Era a vó bɾɐzɨˈɫinɐ
quem ia para cozinha e botava a água da vageẽs, depois
moía o mylho, cantarolava e barria a casa, e aynda tinha
tempo de pilar os arrozes. Vô sɨɾiˈaku, na maior parte do
tempo, ficava sentado e olhando para o cééo. Eu, todo
abestalhado, também ficava olhando para o çeeo como
meu vô sɨɾiˈaku. Um dia, vô sɨɾiˈaku pegou um rãzinha e me
disse com o anuro suspenso no ar: “visẽˈtiɲu, entre esta
rãzinha e os homens há um cordão de algodam mocó que
nos faz carecer um do outro”. Era a terceira vez que ouvia
este bolodório do vô sɨɾiˈaku e nunca entendia nada do que
o vô sɨɾiˈaku tentava me dizer. Pois bem. No outro dia,
peguei um cordão de algodam, capturei uma rãzinha,
amarrei-a bem pelas perninhas e saí puxando a coitada pelo
quintal. Vô sɨɾiˈaku logo viu minha estrepolia e livrou a
rãzinha já nas últimas. Explicou-me que seu dito não era o
que eu tinha entendido, que a rãzinha não era rãzinha, que
os homens não eram os rosseyros, que o cordão era apenas
um noos para amarrar os homens pelo coração a Deos. Cri.
Entom, desdo esse dia amarrei-me a Deos com um cordão
de algodão crioulo.

79
DEMOLIÇÃO

Demoliram a carvoaria. Demoliram meu vô siɾiˈakʊ.


Demoliram tudo. Todos os koˈpiɲas foram demolidos. Vô
siɾiˈakʊ se destruiu por dentro. Dias difíceis no sítio aˈsẽnʊ.
Vi tudo. A felonia cresceu dentro de mim, mas exasperou-
me em vã, vãã, vaao, vãão... Dizem que foram os
inominados que moravam por deetras da parede do açuda
do Sitio aˈsẽnʊ (teriam sido menesmo os bɾiˈʎɐ͂ʧɪ?). Vô
nunca descobriu os maos feytores. Vô siɾiˈakʊ teve muito
prejoyzo e acho que perdeu também o joyzo. Ficou mais
abusado. Bebia muito. Dormia mais e, deitado, anulava-se
por completo. Vó bɾaziˈliña rezava muito, mas sua fé virou
também fel. Diante das águas barrentas do açuda, descobri,
em MCMLXVII, a cor da affogadura: hoje, a pele não faz
diferença.

80
FLORES

No sítio aˈsẽnʊ, via, ameudi, minha avoaa bɾɐzɨˈɫinɐ


regando seu jardinet nas primeiras horas da manhã ou no
final da tarde. Minha avoaa bɾɐzɨˈɫinɐ usava as mãos
generosas para regar seu jardinet. Era sempre a mesma
rutina: a cabaacha na mão rumo ao açuda e a avoaa
bɾɐzɨˈɫinɐ retornando com a cabaacha cheia d'água na
cabeça para regar sua plãtas. A cabaacha era a mesma de
guardar água, farynna e seemẽtes. Avoaa bɾɐzɨˈɫinɐ
cultivava as flores mais bellas da caâtĩga. Um dia me
ensinou a nomear cada uma das flores do seu jardinet:
visẽˈtiɲu, alhy são as rossas vermelhas; ally, são as
gerbérias; alla, são os lílios, os liros, os lis; alilaa, são as
orchídeas. Contemplava a beleza das flores, aprendia seus
nõmes, mas, de verdade, me fixava mais nos abesouros, os
bizouros que se alimentavam de partes das flores,
degradando o florilégio da minha avoaa bɾɐzɨˈɫinɐ.

81
LODO

Antes da força criadora do universo fazer existir o sítio


aˈsẽnʊ, criaram-se, a partir do nada, peixes com gosto forte
de barro e lodo. Depois, muitos bichos (especialmente,
répteis) foram surgindo com “odor de lodo”. Meus
ancestrais chegaram ao sítio com a mesma respiração e
hálito dos curimatãs. Quando os bichos-homens povoaram
o sítio aˈsẽnʊ, Telha de há muito era habitada por mouros,
mas nós, os koˈpiɲ̃a, vivíamos isolados do mũdo. Nascemos
velhos como as serpes da Bíblia, e chegamos ao sítio aˈsẽnʊ
tristes, com as dores da morte de Abel, com os gemidos
lancinantes de Jó, e pisando na lama do sítio aˈsẽnʊ.
Chegamos ao mundo completamente lodosos, tão
encarcerados, tão emporcalhados de felonia, tão sem asas.
O que tínhamos unicamente no sítio aˈsẽnʊ era a Igreja
Santa Rita de Cássia: “Bendito sejas tu, ó Lodo, que trazes
a mais profunda amargura do sítio aˈsẽnʊ!” Naquela época,
no sítio aˈsẽnʊ não desciam dos céus as lágrimas de Deos.
No sítio nunca houve lírios nem águas das bênçãos de Deos.
A filogenia lodosa de vida do sítio aˈsẽnʊ marcou minha
infância da mesma forma que a mim me anojava a baba
embranquecida e crua do vô siɾiˈakʊ, cristchãa que
zombava da pureza da Lua. O chão do sítio aˈsẽnʊ era
lodoso, cheio de poças negras, éramos todos mutilados
desumanalmente pelo escorbuto da servidão.

82
DILÚVIO

Chuva demorada. Torrencial. Quintal encharcado. A


manhã está competente para ingás e figueiras brancas.
Onde os lavradores? Surgem, então, no quintal, sapos
comilões que comem o amanhecer com os olhos e engolem
imoderadamente outros sapos gulosos. Sapos não sabem
mastigar auroras. O sítio diluviou.

83
O SÍTIO

O sítio aˈsẽnʊ era encantado, mas nunca vi sapos


enfeitiçados que viraram príncipes. Ou vice- versa. Os
arbustos eram floridos, mas sem perfume, e os bichos que
os cercavam ssẽpre em movimentos vagarosos,
fadigados... No sítio, ssẽpre me incomodou o olhar triste da
minha mãe peˈdɾĩna, mas também nunca soube de sua dor
da alma. Minha mãe peˈdɾĩna tinha ssẽpre um olhar choroso
sob as negras sobrancelhas. Acho que minha mãe peˈdɾĩna
tinha o mesmo olhar triste de beija-flor triste, sem aquela
frescura do voo. Já o sorriso de minha vó bɾaziˈliña , mãe da
minha mãe, era místico, mas estranhamente sem fulgor. O
sítio era, enfim, um lugar de paz: nenhum peito arfava de
raiva nem havia pensamentos de vingança. O sítio
silencioso do vô siɾiˈakʊ só era quebrado com as grasnadas
de sapos e rãs. No açuda do sítio havia muitos piaus. Éramos
capazes de, na hora do banho, sentirmos o respirar dos
peixes por suas guelras fétidas; piaus ssẽpre com suas
boquuas pequenas e com seus fortes dentes e afiados,
cobertos de escamas fétidas.

84
GOTEIRA

Nasci numa certa povoação da Telha. E só isso. Apraz-


me ser telhense de nascença, mas não tenho o sossego
nem a utilidade das telhas. No sítio em que nasci, sitiado de
jgnorãcias, as telhas, logo que deixam o telhal e se tornam
telhado, aprendem a lidar com as cóleras de Zeus, Deos do
trovão, mas nunca se privam, as telhas, do sono. Vago às
noites. É verdade, fiz-me telheiro por múltipla escolha, por
noites em branco, mas sou telheiro que nada sabe da teoria
do caimento, o pouco que sei de caimento é o da queda dos
anjos, o que não tem nada a ver com o caimento do telhado;
então, o resto que sei de não ser telha tem pouca serventia
(por exemplo, na arquitetura bakhtiniana), o que causo é só
goteira no coco de gente-cocô.Telhadura, sei lá o que é isso,
isso não tenho mesmo nem cimento que me ajude a escoar
os versos da minha estância. Não sou telha e minha vó
bɾaziˈlĩna me disse que nasci destelhado, nasci goteira, o
que, claro, sempre me foi a gota d’água para minhas
cóleras, as histéricas; ah, minha vó bɾaziˈlĩna, tão brasileira,
ria e, com sua sabẽeça, me dizia que eu era goteira do bem,
uma gota d’agua no oceano dos destelhados. Se não tenho
telhadura, o que me sobra não é o desmastreio? Se sou
apenas goteira, minha serventia não há ser infiltração que
escoa para dentro das almas penadas? A piora desse quid
de ser ou não ser, ao certo, é a condição de ser além de um
destelhado, também ser carcunda e ter o pensamento todo
corcovado. Ser telheiro e não ser telha é ruim: me sinto
galho, quebro galho aqui e acolá, empurro telha, causo
empoçamento; sou, em substância, um goteirador. Minha
palavra é sempre a instável, a que vem de rachaduras.

85
DESCERTIDÃO

Desnasci no Sítio aˈsẽnʊ. Não nasci aˈsẽnʊ, nasci adeus,


desnatural, invisível, e o batistério da Capella da Telha
prova minha desistência, a retratação do contrassenso dito
ao Santo Deos, sozinho e Deos. Meu pai não foi ao meu
batismo (nem irá ao meu desterro), mas são muitas as
testemunhas do desviveiro do meu não ser. Minha vó
bɾaziˈlĩna, que descanse em paz, parteira, minhã mãe
Peˈdɾĩna, lavadeira, que Deos a tenha em bom lugar, já
falecidas, atestam, no céu, minha desistência. Da minha
desistência estou bem documentado, tudo devidamente
desguardado na Capella dos destelhados, no fundo enxuto
de uma botija, lá estão minha certidão de desnascimento,
minha certidão de descasamento, carteira de desalentado,
meu descertificado militar, descertificação de contribuinte
e minha futurosa certidão de óbito. A Capella da Tella,
construída em alvenaria de pedra por frades
demissionários, esconde a botija e hoje, na Telha, atende
unicamente aos reclames dos ofícios divinos dos
desistentes. Meu vô siɾiˈakʊ sempre me disse que a capella
foi feita para bafuntar as almas dos desistentes, para os
sẽhores desassenhorearem os currais, as fazendas e os
sítios. Não desnasci em curral ou fazenda, foi no sítio aˈsẽnʊ
em que desnasci desfiliado da vida. Minha vó bɾaziˈlĩna foi a
parteira, descusturou minha mãe aos nove meses
incompletos e eu desnasci sem grito. Minha mãe Peˈdɾĩna
possuía o Rh negativo e desnasci, também com Rh
negativo, e negativado de pai. Minha descertidão, a de
desnascimento, hoje uma folha jogada ao chão, traz minha
desfiliação natural, sem fé publica. Minha descertidão, hoje,

86
uma lâmina, tão verde e tão rígida. Por isso, hic et nunc,
nego a existência da botânica e a argila da terra pisada,
nego os ofícios divinos nas folhas sagradas, nego o branco
quadrangular e pesado da liturgia das horas. Nego a
matéria branca. Minha descertidão é assim mesmo:
aquarela sem leveza, sem frescor, sem cor, sem os versos
distintivos do nascedouro.

87
ABSCESSO

Já adulto, voltei, por diversas vezes, por vontade


própria, à Capella da Telha. Verdade é que nunca estava só,
mas sempre mal acompanhado. Também não sou telheiro
de faltar à verdade ou de meia verdade. Um dia, com muito
arrojo, arrojo do tipo que explode abscesso, tomei coragem
e disse à moça branca, assim, bem desse jeito, abro aspas:
não, não estou triste, apenas minha pele está rugosa e seca.
Já disse que não estou triste, apenas o que para ti é
conveniência,a mim não atende ao meu gosto. Não, não
estou triste, mulher, apenas te pergunto a utilidade deste
teu dissabor diante de minha dor. Não, não estou triste ou
doente, apenas te inquiro, nesse alfobre, por que me abalas
tanto nesse duro golpe de desprezo. Qual o porquê deste
deste teu pesar se tu sabes que a mágoa mata mais. Por
isso, mulher, o que para ti é simplesmente mal-estar, a mim
é a derradeira amofinação, o exício da humanidade que
habita em mim. Fecho as aspas. Acho que a vida inteira
sempre falei para dentro e o Deos da Capella da Telha nunca
me ouviu.

88
ANACORETA

Ajoelhado no altar da Capella da Telha, juro que ouvia


sons maravilhosos de clarinetes, oboés, trombetas e
atabalaques. Na segunda infância, talvez, aos sete anos,
diante do altar, fui à capella pedir ajuda aos frades que
ainda restavam do longo estio na Telha, pedi ajuda aos
frades que usavam longas barbas, que me acudissem em
nome de todos os santos. Sofria de ecolalia. Supliquei ajuda
às benzedeiras, implorei, em vão, o socorro às mães
piedosas da Telha, pedi socorro a mulheres generosas da
Telha, que retirassem do meu peito, rosto e dos meus
ouvidos as lâminas penetrantes. Insistia aos sete anos em
dizer da gravidade dos meus ferimentos. Difícil descrever,
mas sentia algias terríveis nos ouvidos e escancarava aos
servos de Deos as lesões lancinantes na minha língua.
Padecia do mais estranho aniquilamento da minha face de
ébano. Supliquei que me levassem a um dos conventos
desabitados no Cedrinho de Açúcar ou na Missão dos Cariris
Novos, e pedi aos frades que me fizessem a barba e a coroa,
e cortassem os enormes cabelos nos meus ouvidos. Assim
foi feito, deixaram-me, ainda na segunda infância, aos sete
anos, no mosteiro da Missão dos Cariris Novos, em oração,
austero, eremita, definitivamente anacoreta.

89
ANTES DA MORTE

Aqui no aˈsẽnʊ todos dormimos cedo. Bebemos a


mesma água de pote. Comemos ritualmente no mesmo
horário, e uma vez só ao dia, o pão dormido. A deliciosa
ambrosia traz ovos de cobras chinesas em leite amargo de
besouros de enormes mandíbulas liquidificados com
mamona e tinhorão. Nossas peles são curtumes. Temos
frieiras nos pés e as unhas, ainda que enormes, estão
sempre enfraquecidas. As mentes, quando não estão
vazias, recuperam apenas a memória do agreste e os
corações, sempre secos, como bem mandam a moral e os
bons costumes. Nosso ar tem cheiro acre. Nossos beijos são
desagradáveis e degradados. Nosso humor contraria seitas
e incomoda também ímpios. Quando sorrimos, há
sarcasmo em todas as direções e por coisas por demais
mesquinhas ainda que por motivos óbvios de castidade.
Aqui todos os poetas são honrosamente maltrapilhos e
simbolistas e a arte-maior segue as formas rígidas da poesia
triste. Aqui, como de costume, o ser é tão simplesmente
desprezível. Aqui, nem é sertão nem mar. Aqui, nem há
dilúvio nem apocalipse. Aqui, a laje cobre nosso corpo nu
de há muito decomposto.

90
DESVARIO

aˈsẽnʊ, zona ruralis de Iguatu, chão de terra batida.


Conheci caminhos de cabras e da roça. Um dia minha vó
bɾaziˈlĩna me ensinou o caminho da capella, na verdade, o
caminho das pedras. De primeiro, memorizei o caminho da
capella, no outro dia já sabia tudo de cor. Então, voltei
sozinho à capella, a do aˈsẽnʊ, e vi uma folha branca, tão
alvíssima como a cor dos santos, ali solitária, jogada no chão
de terra batida. Nela, refiro-me à folha branca, algo muito
me impressionou, sei lá, talvez, fosse mesmo hieroglypho ;
não quero tirar a palavra da boquua, mas achei que, na
folha branca, em branco, havia uma voz enigmática de
repentista. Certo é que não sabia nada de notas musicais, e
o que havia de aparente escrito, para mim, ainda criança,
eram versos brancos, versos chãs de repentista, mas nada
que alcançasse a compreensão. O que me importava, em si,
era aquela folha branca emborcada, pisada, sem que
ninguém a pegasse sem sofrer risco de corte profundo e
mortal, tal qual talho na carne de gado no matadouro.
Durante dias, via e entrevia a folha branca de boquua para
baixo, no chão de terra batida da capella, sem que ninguém
ousasse seu desemborcar, sem que aparecesse um só
cristão que desemborcasse a folha branca, em branco, sem
que ninguém ousasse cometer a transgressão do desvario.

91
ENVIESADO

O que há de mim na Capella da Telha? Não sei, mas a


pergunta me ajuda a me distrair. E se penso enviesado
sobre o que há da Capella da Telha em mim, isso me
desalinha e me desvia ainda mais de Deos e me deixa
strabique. Se não fosse a obediência à amoestaçõ paulina
de minha mãe Peˈdɾĩna, que nasceu no Cedrinho de Açúcar,
hoje, decerto, seria frei, frei da Capella da Telha, claro. E
sendo frei, muita coisa poderia ter feito a favor de sorores
e hoje também saberia louvarom, supricar, e até cultivar
unicamente as coisas do Espírito. Minha fé, porém, não foi
a de um carvoeiro, a mesma fé do vô siɾiˈakʊ, minha fé
retangulou a capella, adiou a sacristia, me encheu a alma de
arzila, me secou a alma e me deixou desamparado ao sol,
abobadado, digo, abobado. Hoje, minha fé, diante da
Capella da Telha dos oitocentos, é a má-fé, e me faz agora,
anos 2000, vaguear ao redor da Telha, botar a alma pela
boquua, a alma de alma perdida, a maldiçõ dos perdidos.

92
IMBRÓGLIO

Minha voz agora adstritivamente embargada nem


sempre foi tão assim embaraçada; ao contrário, já me foi
um dia, a minha voz, a voz genuína de natural da Capella da
Telha, tão somente incontida, solta, álacre (quão
murmurante esta palavra em Os Sertões de Euclides da
Cunha!), libertaire. Compreenda, então, señora, estar assim
só e sofrido me interdita todos os sons de minha fala agora
lastimavelmente inaudita. Compreenda do meu dito no não
dito, do amor interdito que denuncio ausente, tão ausente
em mim, neste enredo confuso, neste teatro do mal-
entendido. Minha solidão tem sido assim infelizmente
silenciária, sentencialmente dano imoral e inconfesso e ao
mesmo tempo imbróglio nesta teia de estorvo de dores dos
homens mudos, tristes e aflitos do mundo inteiro.

93
DISSABOR

Sol a pino. Na Capella da Telha, o silêncio da tarde tinha


cheiro de kaa'tinga. O silêncio da tarde silenciava as vozes
dos bichos e lavoureiros. Num ai crepuscular, ouvi gritos de
horrores, ouvi clamores e roguos vindos do roçado, ai,
guay, ay. Era minha mãe Peˈdɾĩna Maria da Silva, lavandeira,
natural de Fazenda Cedro, aos gritos pedindo ao vô siɾiˈakʊ
para não castigá-la. Naquela tarde, houve ataque de papa-
arrozes, digo, pássaros-pretos, digo, vira-bostas, na lavoura
de ar-ruzz do vô siɾiˈakʊ. Ouvi as chicotadas plaft! pleft!
Meu vô rumorejava como Ares com seu chicote de couro
para açoytar minha mãe Peˈdɾĩna. Desesperado, corri rumo
ao roçado, um imenso vazio de door. Passamentei de dor,
aflicçom e enojo. Minha vó bɾaziˈlĩna Maria da Conceição,
tão resignada, apenas rezava o credo em cruz. Ares era meu
vô siɾiˈakʊ, digo, meu auolo era arruá, meu auóó era
cabeleira, meu auoo era carrasco, meu avoo era lobal, meu
abõo era escalfúrnio, meu auuo era imisericordioso. siɾiˈakʊ
é nome de santo, São Ciríaco foi perseguido e decapitado
no ano de 303, Francisco siɾiˈakʊ da Silva é meu desauóó,
meu desauoo, meu desavoo, meu desabõo e meu desauuo.

94
POÇA

Minha hestoria pode ser inventariada, digo, inventada,


mas a da Capella da Tella não é estorya da carochinha ou
para boy dormir. Nunca inventariei rrããs nem árvores-
tristes nem desestoriei minha palaurra nem arquitetei a
poça dos entristecimentos do sítio aˈsẽnʊ; todauja, é
verdade, a azedia da Capella tem muito das minhas
alembranças, verbi gratia, das pueris lambeduras que fiz
nas escoras rochosas do mũdo, especialmente as do
estuque que reveste as almas penadas do aˈsẽnʊ
desaˈsẽnʊso, meu mũdo. Ao redor de mim, derredor à
Capella, cresceram epífitas e cipós mais fortes que minhas
estrias e pregas , cresceram urtigas e carrapichos mais
fortes que meus versos e metáforas de hoje em dia, e minha
veleidade de há muito encravou- se no arco-cruzeiro, sim, lá
no arco da Capella, coberto de mágoas e dores da infância
perdida. Assim, é bem certo que, com o passar dos anos,
naturalmente refugiei minha afronésia mórbida, a que me
acomete desde cryamça, na cúpula da Capella e, se me
faltam hoje em dia as forças da logicidade, digo, a
dialogicidade humana, comumente me refugio nas
cavidades mais nauseabundas e toucinhentas do riacho da
Carnaúba. Em mim, tem sido assim: à medida que o tempo
passa, telho minha palavra, meu direy, centellho minha
vyda e, como posso, deixo o tempo levar a sujeira para bem
longe de mim e da Capella. Ocorre que o tempo não se
encarrega de levar a água parada que me reveste a alma
perdida, e o que há em mim já me empoçou de vez os
aboquejos do que aprendi e desaprendi com minha vó
bɾaziˈlĩna, minha mãe Peˈdɾĩna e com minha tia rica fɾɐ͂sˈkĩɲa
(ó xentes, isso é a cara dela!).

95
SAUDADE

A saudade me telha. Sei, porém, que toda saudade de


gente não prospera por muito tempo, logo volta a ser barro
argiloso e malcozido. Bom é cozer saudades. Ah, se eu
fosse telheiro de saudades seria tão prazenteiro. Bom, isso
eu sei, é deixar na saudade o sujeito agente, e a gente já
nascer telha, terroso, amundiçado com a cor da capella da
Telha, a que foi erguida nos oitocentos com argila bem
amassada e água benta. Saudade que telha gente é, na
certa, malfazeja, bom é nascer telha e ser gente, gente com
humanidade, quis dizer, umidade, ou melhor, estou
tentando prosificar unidade, assim, digamos, com o
quengo sem fendo, que cumpra a Palavra da Capella:
“Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”
(“Lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás”). Telha, a
que vem de saudade, é só ancoradouro, não tem guarda fiel
das moradas, não tem Deoses Lares que enfrentam, por
nós, o contradançar do vento sobre nosso telhal. Se eu não
tivesse a vocação para ser telha, contentar-me-ia em ser
pedra ou estaca, queria, sim, ter o poder de me destelhar,
de me quebrar, mas não me desfazer; me despedaçar, nem
por isso, mas jamais poetar para não me delinquir.

96
LÁPIDE

Aqui no sítio aˈsẽnʊ todos dormimos cedo. Bebemos a


mesma água de pote. Comemos ritualmente no mesmo
horário, e uma vez só ao dia, o pão dormido. A deliciosa
ambrosia traz ovos de cobras chinesas em leite amargo de
besouros de enormes mandíbulas liquidificados com
mamona e tinhorão.Nossas peles são curtumes. Temos
frieiras nos pés e as unhas, ainda que enormes, estão
sempre enfraquecidas. As mentes, quando não estão
vazias, recuperam apenas a memória do agreste e os
corações, sempre secos, como bem mandam a moral e os
bons costumes. Nosso ar tem cheiro acre. Nossos beijos são
desagradáveis e degradados. Nosso humor contraria seitas
e incomoda também ímpios. Quando sorrimos, há
sarcasmo em todas as direções e por coisas por demais
mesquinhas ainda que por motivos óbvios de castidade.
Aqui todos os poetas são honrosamente maltrapilhos e
simbolistas e a arte-maior segue as formas rígidas da poesia
triste. Aqui, como de costume, o ser é tão simplesmente
desprezível. Aqui, nem é sertão nem mar. Aqui, nem há
dilúvio nem apocalipse. Aqui, a laje cobre nosso corpo nu
de há muito decomposto.

97
UBIRAQUÁ

Ao longe, vi meu vô siɾiˈakʊ debaixo de uma árvore.


Dormia como uma pedra, uma pedra presa ao tronco de
uma frondosa e anosa oiticica, a verdadeira. O sol sumia, e
vô siɾiˈakʊ arranchado ao pé da oiticica ramalhuda, num
crespúsculo sem queixumes. Vô siɾiˈakʊ dormia muito, com
cabeça pendida para direita, como se estivesse olhando os
pés calosos e chatos, com boquua entreaberta, debaixo da
prócera oiticica. Vô siɾiˈakʊ, ali dormindo, vegetava como a
oiticica; ao longe, parecia-me uma ubiraquá, com suas
escamas negras, escondida no roçado sombrio, onde a
oiticica trescalava um estranho cheiro de flor-cadáver,
coberta de insetos, mosquas e besouros, que me
entristecia de enojo, medo e saudade.

98
ESPIGAS

Vô sɨɾiˈaku tentou me ensinar a arte de desbullar millo.


Desbullar mesmo nunca aprendi, mas esbagoei munto
mylho. Estruí sim, deixava cair, propositadamente, os millos
no baixio para ver floreçer novas spigas. Quão difícil é
desbullar, o aislhado dos grãos do mjlho. Fascinante era ver,
seis meses após a plantaçom, as spigas de millo florescerem
no lavradio do vô sɨɾiˈaku. Que fascinante, que magia, como
as espigas cresciam, como se amarelavam e cam curiosos
eram seus grãos dentados amarelos! O sabugo branco
munto nos servia na higiena anal. Tempo bom era o da
colheita de millo verde, o do milho sem pudreduum, sem
mofo do olho azul. Acho que era o zênite que amarelecia as
spigas de mylho. Via, na minha emfancia, no lavradio do vô
sɨɾiˈaku, o mylho espigar; via, tã bẽ, no lavradio do vô
sɨɾiˈaku, os botõões de mɐˈɾiɐ, via mɐˈɾiɐ agitar seus
cabelos negros da mesma forma como as spigas agitavam
seus louros cabelhos.

99
MELANCIA

Bẽ que tentei comeer, mas nunca provei balancia. No


lavradio do vô sɨɾiˈaku, balancia tinha aos montes. De
montão, via, mas não provava, tã bẽ, jenipapo, maracujá e
caju. Em montão, via e já comia com os olhos manguas,
guoajabas, azarolas, e as esbranquiçadas bananas-maçãs,
sempre tão cheirosas. O que me impressionava mesmo
eram as mosquas contaminando as guayabas: via os
himenópteros, especialmente as formigas, devorando as
gaiabas do vô sɨɾiˈaku. Das frutas que encontrava no
lavradio do vô sɨɾiˈaku, logo repugnei, mesmo sem provar,
as rechonchudas melancias: para mim, só em serem
rasteiras já perdiam o sabor; suas folhas ssẽpre presas a
outras prantas, ssẽpre tão carnosas, com seus ovários
avermelhados e doces, realmente, tudo isso me causava
um emjoamemto, meu Deos, que fastyo, que ffastio...
Todauya, meu vô sɨɾiˈaku ssẽpre insistia: coma, visẽˈtiɲu,
belancia é boo para matar os vermẽes, búú pra vermen,
boons pra uermees. Da minha parte, reagia ssẽpre assim:
eca, vô sɨɾiˈaku, tenho nogos, noio, noyo, noja de balancia!
No lavradio, vô sɨɾiˈaku só me falava de boquua cheia, com
grandes pedaços de belancia na bocha. Assim, criado no
Sítio aˈsẽnʊ sem comeer balancia, logo fiquei com cara de
vellos, magre, desidratado, sem vitaminas, sem musclos e
com muita dificuldade para durmyr e aprender o abeçe.

100
SABUGOS

Até meus cinco anos, não conhecia um rolo de papel


hygienico. Aliás, o asseo das partes era feito nas águas
abundantes do riacho kaɾnɐˈubɐ. Folha de papel só vi a da
certidõye de nascimento do vô sɨɾiˈaku, tã bẽ a çertidõõe da
vó bɾɐzɨˈɫinɐ, a certedũe de minha mãe pɨˈdɾinɐ, a certidões
do tio ˈnɛʊ, a certidioen do tio viˈsẽtɨ, mas nunca vi certidão
de terra feita por tabeliães. Não havia banheiro no Síto
ɐˈsenu, só mato. Desde cedo, aprendi a obrar no mato, a
comer milho e a fazer bom uso dos sabugos. Passei minha
infância comendo millo cozido, minlho assado, fubá de
mylho e vi palha de mjlho para enrolar fumo do vô sɨɾiˈaku.
Minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ fazia boneca de sabugo de milho para
minhas primas. Para mim, partia o sabugo ao meio.
Mandava eu correr atrás das galinhas e trazer duas penas
para botar bem no centro do sabugo. Era uma peteca e eu
a jogava pro cééo e parecia mais uma libélula no ar. Na sala
grande da casa dos meus abõos, sempre vi muito milho
verde no canto e via tãobem uma grande panela de barro
sempre cheia de spigas de milho sem casca para limpar as
nalgas, digo, as nadigas, as nadeguas dos que evacuavam.
Todos nós descomíamos muito.

101
TOUCINHO

Aqui na Telha tudo era pé no chão. Só da capital para


Telha, era de trem, com maria-fumaça tocada a fogo. No
comércio da Telha, predominavam os armazéns de carne
seca e toucinhos. Ninguém do sítio aˈsẽnʊ sabia de
brilhantes, ouro, sedas, berloques ou perfumarias.
Sabíamos unicamente sobre o de-comer: carne seca, lombo
de porco, toucinhos, curimatãs e piaus. Sofríamos dores
terríveis no estamaguo. No meu caso, franzino, pouco
comia e descomia o bom cozido, couves e nabos, toucinho
e abóbora vermelha quase não provava nem saboreava
torresmo, sarrabulho, e sempre fui assim, uma criança
magra, ruim de comer. O Sol a pino cintilava raios de fogo
sobre o chão do sítio aˈsẽnʊ. maˈɾia, meu primeiro amor,
era meu sol, tão roliça, risonha, corada, dentes claros, e
olhos castanhos, com roscas no cangote de tanto comer
toucinhos. O cangote de maˈɾia tinha odor de toucinho. A
boquua de maˈɾia tinha cheiro de couve com toucinho. A
vida no sítio aˈsẽnʊ tinha gosto de chouriço de quarta e não
precisava de sal. A vida no sítio aˈsẽnʊ era, todauya,
insossa. Nosso suor era nosso de-comer, nossa salmoura.

102
DESCOMER

É de mim. Desde criança, fazia força e nada vinha. Uma


vez tentei cagar na posição deitada como as vacas leiteiras,
mas fui imediatamente repreendido pelo vô sɨɾiˈaku:
visẽˈtiɲu, visẽˈtiɲu, ô menino maluvido! Finalmẽte, não
aprendi a me aliviar. Desistir era meu calvário. Quando
atacado de alguma dor de barriga, corria para o mato e
sempre em compannia do meu vô sɨɾiˈaku ou da minha vó
bɾɐzɨˈɫinɐ porque temia, ao sujar, aparecer coobras e me
stripar. Quando demorava a descomer, meu vô dizia assim:
visẽˈtiɲu tem stentinos preguiçoso, tem bosta dura e seca,
como pode fazer a expulsão? Todauya, não tinha perda de
apetite, dor ou cãibras, o que tinha mesmo era falta de
anymo e nunca entendi porque minhas fezes tinham
fedença. Todos falavam mal dos meus stentinos, mas eram
meus stentinos que me comunicavam com o húmus do sítio.
Não me importava com burburinhos maldizẽtes, pegava
meu curuzu e adubava o sítio e, assim, vi as queridinhas
orquídeas crescerem vibrantes, frondosas e belas. Vi
borboletas de asas coloridas cintilando cóóres, com suas
asas para cima, depois que degustavam minhas fezes. Não
tinha nenhum asco em ver monturo de fezes putrefactas.
Admirava minhas boletas duras. Lembravam nozes.
Quando descomia no terreiro, emporcalhava a terra de
fezes fedorētas. Nunca caguei em forma de coovra.
Enquanto cagava, me deslumbrava com os voos dos
besouros e imaginava fazer também meus voos planados.

103
PÔR DO SOL

Na Terra, o pôr do sol existe. Na lua, também, há o pôr


do sol. O pôr do sol brilha tanto no sertão. O vermelho e o
laranja são as cores do entardecer no sertão. O pôr do sol
só é ocaso no sertão. Por acaso, nos anos sessenta, do
quintal da fazenda, lá no Sitio Telha, eu via quando o sol
desaparecia completamente no horizonte, quando todos
chegavam ao acaso à fazenda e se abancavam com seus
arroubos: os lavradores, os vaqueiros, os violeiros, as
crianças, e todos chegavam à fazenda para saborear
tapioca com café, e comiam tanto e se comiam no
entrecruzar dos olhares, e na hora do jantar, comiam carne
de vaca gorda, e entrecruzavam os olhares, e comiam pirão
escaldado e alguns, ali na varanda, me pareciam tão
saciados, e tão lânguidos, armavam as redes grandes e
roncavam nos alpendres da fazenda. Eu e minha tia ˈxita
olhávamos para o céu, e o céu era liso como um espelho.
Sempre fazia às vezes de astronauta, e todos riam, e eu
sabia, como ninguém, contar todas as estrelas do céu, uma
a uma, as do céu limpo como um espelho, e com as minhas
mãos quase cerradas, fazia uma espetacular luneta para
desvelar o rosto poderosíssimo de Deos no céu de safira, o
rosto de um homem velhusco, o rosto de homem com uma
longa barba, o rosto do todo-poderoso, segurando o livro
sagrado e revelando unicamente a mim, a sete chaves, o
Espelho de Próspero.

104
PUREZA

O que há de mais puro no sítio aˈsẽnʊ aqui te ofereço:


as coisas que meus olhos não viram, os meus pés descalços
e tropeçados de cansaço e os meus cabelos pueris, fartos,
pretos e cheirosos. O sítio aˈsẽnʊ foi mundiado de rãs,
caiporas e koˈpiɲ̃a. Sou koˈpiɲ̃a por parte do meu vô
siɾiˈakʊ. Os que nasceram no sítio aˈsẽnʊ logo foram
empurrados pelos braços do Destino. Muitos não
arredaram o pé do sítio. Aqui, estão os doces olhos da vó
bɾaziˈliña e o rosto infinitamente belo de maˈɾia. Aqui, há
uma vereda feita pelo vô siɾiˈakʊ com a força robusta de
carvoeiro contra muitas e estranhas forças malignas, as
forças horrorosas dos caiporas e das rãs enraivecidas. Aqui,
no sítio, quando o sol nasce, os bicos de tico-ticos, sempre
forasteiros, abrem-se em duetos intermináveis. A pureza do
sítio vem do grasnido das rãs, a pureza vem do guizalhar
das jararacas-da-mata rastejando sobre as folhas da
caatinga, a pureza vem do primeiro beijo que dei em
maˈɾia... Quanto a mim? Búú, boom, não haveria aqui de
falar de mim mesmo. Sei que um dia minha alma se
encontrou com a de maˈɾia. Fora daquele instante, trastejei
pelo sítio aˈsẽnʊ, à força de mexidos e saudades de maˈɾia.

105
QUARTINHAS

No sítio aˈsẽnʊ, encantavam-me as quartinhas d’água.


Em todos os casebres dos koˈpĩɲa, havia quartinhas, de
barro bojudo e vermelho, de gargalo estreito, e com água
fresca de beber. Na fazenda da tia fɾɐ͂ sˈkiɲa, filha mais
velha do vô siɾiˈakʊ e da vó bɾaziˈlĩna, havia uma fila de
quartinhas d’água sempre tampadas. Era uma tia riqua.
Aquela fila de quartinhas d’água combinava bem com os
almaryos, archas, pirins, taalhas, rripias e telladas da
fazenda. De fora da fazenda, havia um vasto terreiro de cor
escura, turueís mansos e tristes próximos a chiqueiros
lamacentos onde refocilavam porcos, espojados na terra e
na lama, bezerus, cabras e galinnas que se engordavam na
terra batida. O sítio era tão seco. Acho que as quartinhas da
tia fɾɐ͂ sˈkiɲa serviam para prender as águas fugitivas e
ligeiras do sítio. Vez poroutra, de um quartinho da fazenda,
tia fɾɐ͂ sˈkiɲa me dava uma ordem: visenˈʧi, corre ally e pega
ly uma quartinha d’água, estou em brasas. De logo, eu
pegava a quartinha, colocava água no copo e colocava-a em
seguida na mesma fila, com o mais lídimo orgulho de ser
sangui dos koˈpĩɲa.

106
RIACHO CARNAÚBA

Nome de santa eu não digo. Fica então o dito pelo não


dito, o interdito. Certo é dizer, para não dizer ditos, que
precisava atravessar o Riacho kaɣnaˈuba, no Distrito de
alẽɪ̃ˈkax, sim, o nome do escritor, ádito dos “koˈpiɲ̃a” (meu
vô era pescador e andava com peixeira e tudo!) na capella
da Telha. Precisava ir da casa-grande da minha tia rica, a da
barragem, a das reses, para o casebre da tia pobre, a do
açuda, a do piau, a do pirão escaldado. O Riacho kaɣnaˈuba,
tão perturbador, tão sedutor, tão caudaloso, mas eu não
tinha idade nem força para vencer a correnteza. Além de
não saber nadar contra a correnteza, tinha medo de
caiporas e curupiras e tinha medo de arranhar a testa para
sempre com os galhos secos de jurema e mofumbo, que
escorriam na água doce do kaɣnaˈuba. Minha tia, a rica,
pediu a moça branca, a do nome de santa, para me levar,
aos seus cuidados, para a tia pobre, e atravessar a nado de
uma margem para a outra. Ela, a moça, sempre tão branca,
antes, e com tal zelo, segurou-me firmemente as mãos e
levou-me ao seu colo; depois, num átimo, aproximou-me de
seus botões e dela exalou o cheiro bom vaginal e,
encantado, sei lá, estranhamente tão feliz, livre e vivo,
segurei-me em seus braços fortes e olorosos, segurei-me
nos seus braços brancos com todas as forças do mundo (e
de olhos fechados),e com meus lábios de menino sabido
me agarrei avassaladoramente nos botões da moça branca.
O riacho ganhou volume, vi caiporas e curupiras, e, no
entardecer, adormeci nas margens do kaɣnaˈuba e a moça
branca, a moça com nome de santa que eu não digo,
dormiu nua sobre palmas verdejantes das kaɣnaˈubas
frondosas e meu coração, ali, bem no fundo do riacho.

107
RIACHO DO MOSQUITO

Ouvi um dia, de çerto, no ano de MCMLXVII, meu vô


siɾiˈakʊ sussurrar suas confidenças para minha vó bɾaziˈliña
igual ao murmuramdo do Riacho do mosˈkitʊ. Não me
alembro as confidenças do vô siɾiˈakʊ, mas me alembro do
murmurãdo do riacho entre pedras lodosas. No ano de
MCMLXVII, tinha os olhos quietos de uma criança tristis e
sem pai. Pois bem: diante do riacho, meditava mais sobre
as noites do que os dias, via nuvens sem sol e ouvia o
murmulho triste do riacho do mosˈkitʊ. O riacho me
inspirava e paradoxalmente me extinguia como ser. O
riacho me arrebatava e me enchia de tresteza, digo, tristiza,
e melancholía. Minh'alma de menino tristis era a de uma
fror suspensa à beira do riacho caudaloso e ingrato, ao
mesmo tempo gracioso, de água doce, um espetáculo
crepuscular.

108
SERTÃO

Sou filho do sertão. Sou filho da terra estorricada. Vi


cães morrerem famintos no sítio aˈsẽnʊ (meu Deos, tã bẽ a
fome nos apertava o estomago!), mas vi tempos de fartura
na tia fɾɐ͂sˈkiɲ̃ a, casada com homem rico da ˈxffsa, lá, sim,
comia douçes, bolos, beyjùs, pamònhas, leite quallado e
queygios do sertão. Quanto ao meu nacimẽto, vim ao
mundo pelas mãos de sinhá bɾaziˈliña , minha vó. Vim ao
mundo com as costelas quebradas sem poder remediar. Né
verdade, vô siɾiˈakʊ? Naqueles tempos, estrelas cintilavan
no puro campo do cééo, o ceẽo tinha uma claridade mística
e suave. Os homens escondiam as mulheres bonitas. Os
homens tinham ideias estéreis e viviam em completa
solidão. Éramos seres brutos. O sertão era bruto. Mesmo
assim, o sítio aˈsẽnʊ era minha aˈsẽnʊlândia, meu Sertão,
mesmo estagnado pela fome e miséria.

109
110
3ª PARTE

As grasnadas dos bichos

“Immediatamente ao grasnido do amphibio,


appareceu no buraco a enorme cabeça de uma
cascavel, que fitou no sapo a pupilla
scintillante. Desde muito tempo cevava aquella
serpente, que entrava no seu plano. Com uma
forquilha, da posição em que estava,
facilmente conseguiu prender a cabeça da
vipera e agarrando-a pelo collo sem importar-
lhe a sanha com que ella silvava, estorcendo a
cauda e açoutando-lhe o rosto, deitou a correr
por dentro do cannavial.” (José de Alencar, Til,
1872, p.177-178)

111
A FESTA

No anoytecer, meu vô siɾiˈakʊ rompeu um grande


bráádo. Tão dócil, minha vó bɾaziˈliña o acompanhou na
pocema e minha mãe peˈdɾĩna chorou. Ouvi o bimbalhar do
sinos da capella do sítio aˈsẽnʊ. Os patos e as rrããs
granavam tautocronicamente. O gado mugia. As ovelhas
baliam. Meu vô siɾiˈakʊ estava de roupa agaloada e nossa
casa nadava em luz de lampeão. Eram tantos os fogareeos.
Viva Senhora Sant’Ana! Em MCMLXVIII, bem longe da
Missão da Telha, lá no Recife, a casa de Dom Hélder Câmara
era metralhada. Meu vô siɾiˈakʊ, tão alheio ao horror do AI-
5, de braços soltos, iniciava a recitação de 1 Coríntios 13:2 e
todos nós simplesmente fazíamos coro no refrão: “A fé
move montanhas”

112
ARGUEIRO

No ano consagrado à Senhora Sant'Ana, antes do


alvorejar, minha vó sá bɾaziˈlĩna acendeu o lampião e
soltou, horripiláda, um grito primal: acuda aqui, siɾiˈakʊ,
nosso neto visẽˈtĩ, filho de peˈdɾĩna, está com cara de
mamão-macho, retangulou a caraça e está com a capella
dentro do oulhos. Foi um Deos nos acuda, e minha mãe
peˈdɾĩna, que nasceu na Fazenda Cedro, começou a rezar o
creio em Deos Pai, meu vô siɾiˈakʊ também disse, em voz
alta, frases estranhas como “kredo kwia absurdum” e
“kredo ut intellìgam”, e ninguém conseguiu tirar a capella
dentro do meu oolio. Nunca ninguém quis saber meu ponto
de vista, e no ano de MCMLXXI já tinha a presumida idade
menineira do abusus, pois teria detalhado o acontecido
com todos os pontos e vírgulas, pois ninguém tem ideia do
que é ter no olho uma capella, digo, crucifixo, cálice com
tampa, castiçal e muro de pedras dentro do holhos. Depois
desse acaso, por obra e graça do meu vô siɾiˈakʊ, fui
arredado da Telha para entender bem longe, lá pras bandas
da Aldeia do Brejo Grande, a revelação de minha vó
bɾaziˈlĩna: “E por que vês o argueiro no olho do teu irmão,
e não reparas na trave que está no teu olho?” (Mateus 7:3).

113
CAIPORAS

Lagartos, rrããs, cobras e caaporas, sim, me metem


medo. Falo deles como se fossem meus inimigos, por isso
nunca os toquei nem os enfezei nas noites de gaiatadas.
Sofro, desde cedo, das irracionais phobías, sofro, segundo
os psychiatros, de herpetofobia, batracofobia, ofidiofobia
e espectrofobia, em seus estágios avançados de insônia.
Tenho medo, sim, dos répteis peçonhentos e das chamas
de fogo dos caaporas, e não ouso encarar os bichos-
papões. Minha vó bɾaziˈlĩna me abarbarizou cedo, me
encheu de medos e credos, por isso vejo lagartos, rrããs e
cobras gigantes, escuto grunhidos de bruxas e me apavoro
com os gritos histéricos de papões de meninos. Minha vó
bɾaziˈlĩna dançava chulas, sabia dançar kururua'pe, minha
vó bɾaziˈlĩna contava e recontava em voz alta as estoryas de
Trancoso. Vô siɾiˈakʊ sabia, sim, tocar gaita, mas me parecia
tão desafinado, e não deixava lagartos, rrããs e cobras
dormirem. O vô siɾiˈakʊ me estourava de rriyr. Na Capella
da Telha, passei a infância vendo muitos caaporas que me
deixavam arrepiado e sem vontade mais de pregar os
holhos.

114
CAIPORICE

ˈbɛɪsʊ, ˈvo siɾiakʊ? Um maldito caipora, menỹo!


Caipora era uma luminância incerta que surgia
inesperadamente na mata do sítio aˈsẽnʊ, e como dizia
meu vô siɾiakʊ, uma craridade feita por gabiroto. Vô me
dizia que o sopro de Caipora era mortífero, destruía roçado,
assombrava vaqueiros e jagunços. Caipora ensurdecia o
sítio aˈsẽnʊ. Com caipora por perto, vô siɾiˈakʊ se recusava
a falar, alegando ronquem. Quando resolvia enfrentar
caipora, pegava seu bracamarte, atirava pro alto (alto lá!),
metia medo nos bichos do mato e encovava o capiroto.
Caipora, todauya, é uma entidade que aparece e
desaparece quando quer, e se desencova, piora o terror
entre os lavroeiros do sítio. Ocorre que o guerreiro siɾiˈakʊ
tinha um bracamarte que protegia do caipora do sítio, que
se apartava do nosso caminho. Diziam que vô fora caipora
antes de conhecer minha vó bɾaziˈliñ a, mãi d'agua. Era um
caipora-trovão. Mas cansada de caiporice do vô siɾiˈakʊ, vó
bɾaziˈliña , desabusada que era, um dia bateu o martelo:
Basta, ˈʃikʊ! Aí, a caiporice acabou.

115
CIRIACO

Meus vós maternos eram católicos. Católicos


apostólicos romanos. Na capella da Telha, havia uma
capella de palha onde minha vó bɾaziˈlĩna rezeva todos dias
o terço da Misericórdia, um terço de Ave Maria e o Oficio de
Nossa Senhora. O nome completo da minha vó era
bɾaziˈlĩna maˈɾia da kõʊ̃seɪˈsɐ͂ʊ̃. Meu vô tinha nome de
santo também: siɾiˈakʊ, o mesmo de são Ciríaco de Roma,
bispo e mártir cristão, no século IV. Meu vô de nome
fɾɐ͂ˈsiskʊ siɾiˈakʊ da ˈsiʊva sempre tinha o dom da palavra e
dizia aos ouvintes da Palavra de Deos, na capella de palha,
que na Bíblia não havia folhas em branco. As folhas da Bíblia
eram verdes e de oliveira. Na Bíblia, segundo meu vô
siɾiˈakʊ, nome de santo, as folhas da bíblia naturalmente se
agitavam; outras folhas eram arrebatadas pelo vento;
outras folhas, então, não caíam de árvores; e outras jamais
murchavam. Na Bíblia, segundo meu vô siɾiˈakʊ, os anciãos
septuagenários tinham cabelos brancos. Na Bíblia, as
vestes dos sacerdotes eram brancas. Na Bíblia, somente o
trono do Senhor era branco; lá, naquele Lugar, somente o
Senhor, a autor da vida, ressuscitou dentre os mortos.
Nunca tive outra sabẽça senão a da sabedoríía da Biblia.

116
ESCONDERIJO

Vô siˈɾiakʊ foi meu Ἡρόδοτος do Sítio aˈsẽnʊ. Contava-


me dos animais fabulosos e dos nossos ancestres, os que
construíram o açuda do goˈveɣnʊ. À tardinha, contava-me
sobre caiporas e ficava aterrorizado. Depois, num átimo,
levava-me ao último quartel do século XIX, e historiava
sobre os ancestres dos koˈpĩɲa, todos pretos, sob açoites
terríveis sofridos, durante a construção do açuda do
goˈveɣnʊ. Na versão do vô siˈɾiakʊ, nossos ancestres,
quando retornavam da lida, dormiam próximo ao Riacho
dos mosˈkitʊs, um flagelo de esclavos, um flagelo dos
mosquitos. Os causos do vô siˈɾiakʊ sempre com a mesma
moral da história: “Contudo, muitos primeiros serão
últimos, e muitos últimos serão primeiros.” (Mateus 19:30).
Ali, no Sítio aˈsẽnʊ, depois de tantos anos, bem na mata da
Telha, vivíamos aynda entre apertadas casas de taipa,
cheias de medos, gritos, choros, dores, inquietações,
mosquitos, cobras e lagartixas. Credo! O sítio Aceno não
tinha nada de paraiisso: era nosso esconderijo!

117
FILHO DE CAIPORA

Em MCMLVI, o judeu teria completado seu centésimo


aniversário de vida. Naquele ano eu não era nascido, mas o
estema dos “koˈpĩɲas” dominava o sítio aˈsẽnʊ na Telha.
Minha vó bɾaziˈliña tentava esquecer os dias difíceis de seus
pais na construção do açuda do goˈveɣnʊ. Meu vô siˈɾiakʊ
se recusava a esquecer os tempos da espravaria. Com medo
dos caiporas, minha mãe peˈdɾĩna se escondia nas caieiras
do vô siˈɾiakʊ. Os caiporas se disfarçavam em cobra-verde
e jararaca-da-seca. Vô siˈɾiakʊ judiava minha mãe com
castyguo sem ver pra quê. Minha minha mãe peˈdɾĩna
enterrava a judiaria do vô siˈɾiakʊ nas caieiras, mas logo
voltou a encontrá-la, em MCMLXI, quando nasci, filho sem
pai. Minha mãe peˈdɾĩna nunca pegou os caiporas. Será por
isso que cresci sem meu pai kaa'pora, uma divindade
suprema do sítio aˈsẽnʊ?

118
INOMINADOS

No começo da Capella da Telha tudo era mato. Da parte


do meu vô, mato bom; da parte de minha vó, mato mau,
porẽ tudo mata inominada. Afora Deos, afinal, Jeová já era
Deos, bem antes do desenlace da Capella da Telha, Jeová
era o Deos Todo-Poderoso, adorado por todos como o
Deos de Abraão, o Deos de Isaque, o Deos de Jacó. Havia
Deos, mas não havia religião, cõ tudo não havia nenhuma
heresia, todos eram tementes a Deos. As gentes não
tinham nome de batismo, todauya todos eram exodiários
da terra chã. Meu vô siɾiˈakʊ era conhecido por guaiaco,
mays dada a difícil pronúncia do seu inominado, desde
pequeno era mais conhecido por pau-santo. Minha vó
bɾaziˈlĩna era a belíssima abrina, majs todos a conheciam,
jocosamente, por olho-de-cabra. Minha vó era muito
engraçada. Minha mãe peˈdɾĩna era bonina,
carinhosamente chamada por todos de bela-margarida.
Minha tia fɾɐ͂sˈkĩɲa era chamada abutinha, poren, não sei o
porquê, talvez, por seu jeito faceiro de tentar dar nome às
coisas, era chamada simplesmente cipó-abacate. Minha tia
Rita era chamada amódita e não havia nenhuma motivação
para esse alcunho, a não ser o engraçado do zigue-zague de
suas conversas moles. Meu tio viˈsenʧɪ era antófito,
todauia em respeito à esdruxularia do seu inominado ficou
sendo antófito para sempre. Tio ˈnɛʊ, conhecido por bétel
ou Betel, também chamado pelos mais próximos de noz-de-
areca. Mesmo tementes a Deos, o entusiasmo era pouco,
vegetávamos, mas não éramos vegetarianos. Eu, claro, não
havia nascido, mas já era um sobrinho antófito.

119
TELHA DE ARANHA

Ninguém na capella da Telha, quer dizer, nenhum filho


de Deos, ainda que nascido feito, ou tendo já morrido, por
algo dito ou amaldiçoado, sabia plenamente o abeçe.
Malgrado minha assertiva, sendo natural da Telha, o cristão
já vinha ao mundo com estirpe, digo, estipe, enfim, com a
sabẽeça de filho do sol e neto da lua; por isso, não há lugar
aqui, nesse entrevero, para dar ocasião aos adversativos
majs, cõ tudo, os adversativos com tantum, porẽ, todauia,
porque na Telha todos tinham a sabẽeça telúrica, digo,
telhúrica, de natural da Telha. Para não prosificar muito
com versos brancos ou soltos, posso lhes contar que meu
vô siɾiˈakʊ, da temida tribo dos “ koˈpiɲ̃a”, reverenciado
pelos mestres de capella, sabia de tudo um pouco, até falar
das teas de arãhas. Ultracorreto no seu português
medieval, meu vô siɾiˈakʊ, de sobrenome ˈsiʊva, falava com
e em aranha-das-telhas e os mais sabidos do sertaão
emendavam assim, seu siɾiˈakʊ, o certo é sua senhoria dizer
aranha-das-casas; aí, com sua sabẽeça desabusada, meu vô
dizia que sabia como ninguém de todas as species de
artrópodes aracnídeos, das suas glandes, digo, glândulas,
dos buchos envenenados dos bichos, revelava ter sedas no
coração e dizia ainda que aprendera tudo das arãhas
ouvindo as palavras de Jó e as pproffeçias de Isaías, as
pproffeçias do soffrer da humanidade. Desde cedo,
descobri que as arãhas do sertaão tinham suas sedas, seus
peligros.

120
INCREDIBILE DICTU

O que tenho a dizer só pode ser dito em latim ou grego


antigo: “incredibile dictu “, assim em latim, porque é
derradeiramente incrível ter que dizer que, depois de Deos,
o Deos que sopra no meu nariz e nos narizes da
Humanidade, quem manda e desmanda no mundo agora é
Δέλτα, irmã letal de Άλφα, Βῆτα, Γάμμα. Por isso, assim
que der, assim que o mundo se descovidar e não correr
mais risco de me resfriar, voltarei à capella da Telha. Lá, vou
ser benzedor e telheiro, vou me persignar e retelhar a
capella com telhado vermelho e reerguer a torre da capella,
deixá-la a mais alta de Telha, e de tão alta, com obelisco e
tudo, há de ser a mais alta do Alto Jaguaribe. Lá do alto da
capella, a da Telha, abrirei fendas para espiar, de dia, o quid
do tânatos; à noite, acenderei velas e queimarei o id inato
do nosso irracionalismo adnato. Na capella da Telha, é
assim mesmo: o benzedor, se telheiro, também há de ser
decuriato.

121
URUBUS

Primeiro nome de ave que aprendi a soletrar foi ˈɔɾubʊ.


Trissílabo de agoiro. Argh! Se eu soltava gritos primais de
menỹo travesso, meu vô siɾiˈakʊ logo me esculachava e me
dizia que eu piava como ˈɔɾubʊ quando está devorando
carne podre. Mas admirava ver ˈɔɾubʊ devorando carniça,
esvoaçando em círculos, subindo ao ceẽo e procurando
carniça por toda parte do sítio aˈsẽnʊ. Minha vó bɾaziˈlĩna
me contou, um dia, que em MCMLVIII, ano de seca braba na
Telha, todos do aˈsẽnʊ passaram fome, foram dias
horríveis, sem o de-comer, sem água para beber, e viu os
ˈɔɾubʊs bicando mortualha. Na grande seca de MCMLVIII,
os ˈɔɾubʊs eram vorazes e quando piavam, no crepúsculo e
ao alvorecer, era sinal de que todos ficariam varados de
fome.

122
ACASALAMENTO

No Sítio aˈsẽnʊ, sempre gostei de spyar o


acasalamento das rrããs. O aˈsẽnʊ era o sanctuario para as
rrããs perpetuaram outras rrããs. Cria que as rrããs eram as
criaturinhas mais sensuais no reino animal. As rrãã-machos
se escanchavam dulcifluamente nas rrãã-fêmeas. As rrãã-
machos, no Riacho kaɣnaˈuba, grasnavam kré-kré para
athraer dulcifluamente as rrããs-fêmeas. No leito do Riacho
kaɣnaˈuba, as rrããs se acariciavam. No Riacho kaɣnaˈuba,
as rrããs-machos ficavam em posições do pé, faziam
estranhos empurrões com as patinhas e serpenteavam a
cabeça. Ah, as patas das rrããs-machos! Ah, a cabeça das
rrããs-machos! As rrããs-fêmeas tocavam dulcifluamente o
dorso das rrããs-machos. As rrããs-fêmeas tocavam
dulcifluamente a cabeça das rrããs-machos. As rrããs-
fêmeas, tão deleitosas, depositavam os ovinhos nas poças
escavadas dulcifluamente pelas rrããs-machos no leito do
kaɣnaˈuba. Todos nós protegíamos os ovinhos das rrãã. Dia
triste para todos nós do Sítio aˈsẽnʊ eram quando rrããs
serviam de inguaria para coobras ou lagartos. No Sítio
aˈsẽnʊ, no céu à noite ouviam-se os grasnidos das rrããs, os
grasnidos despumavam nosso passado, o passado, digo, o
amor das rrããs também desovava em espuma.

123
COAXO

Enrredor da Capella da Telha, sempre vi, nas poças


d’água, rrããs grasnando, umas trepadas nas outras, num
total ousio e a mais escancarada escandilice no mundo dos
anfíbios. Vi rrrããã macho abraçando jeitosamente a rrãã
fêmea, a rrãã macho encaixando bem sua protuberância
(ou pernas, não sei ao certo!) na rrãã fêmea, eliminando
seus gametas num átimo, germinando
desproporcionalmente outras rrãã para viver nesse mundo
tão epiceno. Mais tarde, aos sete anos, quando trepei pela
primeira vez em cima da moça-branca, reproduzi
diligentemente o que aprendi com a sem-vergonhice das
rrãães, também coaxei, digo, subvocalizei meus fonemas
de prazer, e assim como fazem as rrããs, digo, também
soltei gritos primais e desconhecidos até então no Sítio
aˈsẽnʊ e, assim, minhas sementes saíram de mim
enlouquecidas e saltaram ao menos seis metros de
distância da minha protuberância e ficaram grudadas nas
pedras da Capella. Copulei. Aprendi a fecundar como as
rrããs. Aprendi a acasalar como as rrãsã. Aprendi com as
rrããs o ofício de abraçar manhosamente o dorso da moça-
branca e liberar minhas sementes leitosas. Desde criança,
descobri o mistério da desova das rrãã. Desde criança,
sempre acreditei que a população do Sítio cresceu como
cresciam as rrããs, espiando a espurcícia das rrããs, ora
fazendo gentes assim como as rrããs fazem girinos, ora
criando gentes assim como as rrããs protegem seus imagos,
e assim, pensei, o mundo deve ter sido do mesmo jeito
habitado, assim foi colonizada a Capella da Telha, e, assim,
desde cedo, encavalamos gentes.

124
DE CÓCORAS

O homem descendeu das rrããs. As rrããs são nosso


ancestral comum. É o que penso desde que me redescobri
rrãã nos ssesseenta à beira do riacho da kaɣnaˈuba. Creio
em Deos Pai, mas sou rrãã, sim. Meu vô siɾiˈakʊ ouvia meu
arguymẽto sobre as origens do bescho-homẽes, mas em
silêncio me fuzilava com o olhar enqueredor. Minha vó
bɾaziˈlĩna me ouvia pacientemente, e apenas me corrigia:
“visenˈʧĩɲʊ, não é rrãã, é ʒˈiɐ. O homem veio da ʒˈiɐ”. Vi
sempre simildõos entre rrãã e as peçoas do Sitio aˈsẽnʊ.
Todas as peçoas eram capas-bodes e descansavam de
cocras. Minha vó bɾaziˈlĩna para evitar o precoce
passamento, pulava de corda por passatempo, e, depois
descansava de cocras. As rrããs do Sitio aˈsẽnʊ também
pulavam alto e, depois, cansadas, se agachavam com os
olhos fechados. As peçoas cochilavam e depois faziam as
necessidades longe de casa. E de cocras. As rrãã coaxavam,
depois excretavam repunancias ao redor da casa. E de
cocras. As peçoas obravam e limpavam a região com
sabugos de milho ou pedras lisas. E de cocras. As rrããs
mesmo com suas espichadas patas traseiras e dianteiras
nunca se limpavam depois que excretavam sobras de
besouros, aranhas, grilos, mosquas, pernilongos e vermes.
O mundo sempre foi povoado de peçoas acocoradas,
igualmente como as rrããs. Éramos na Capella de Telha
capas-bodes de cara lisa e as rrããs asquerosas e com seus
corpos lisos. Nunca entendi bem como evoluímos para
termos olhos tão pequenos e remelentos e as rrããs
permaneceram com seus olhos tão grandes e
esbugalhados.

125
GOLIAS

Meu vô siɾiˈakʊ era um homem allto para os padrões da


animaria.Só não era mais allto que as rrãã-golias. Disse-me
nos anos ssesseenta, talvez nos idos de MCMLXVI, que as
rrããs do sítio aˈsẽnʊ eram trres mil vezes maiores que as
baleias-corcundas que viu, quando cryamça, entre os
ezpiˈgõɪ̃s da praia Iracema. V ô siɾiˈakʊ nunca me mentiu.
Um dia, realmente vi uma rrãã-golias, maior que o vô
siɾiˈakʊ , que me assustou, mas a filisteia tinha o único
propósito de arrastar a capella do sítio aˈsẽnʊ de um canto
para um recanto e formar uma pyrame. Não deu certo,
nada de pyrame, mas a rrãã-golias moveu a capella. Da
história das rrããs-golias nada sabia, só conhecia mesmo a
de Golias, de Gate, que tinha a altura de seis côvados e um
palmo, na versão contada pela minha vó bɾaziˈlĩna, segundo
Samuel, dos dezessete em diante. Meu vô siɾiˈakʊ sabia se
comonjcar com as rrãã-golias, só ele sabia conuersar com as
rrããs-golias no dialécto até hoje por mim ainda não sabido,
através de estranhas carícias. Tentei uma vez também
demonstrar carinho anfíbio, mas a rrããã-golias escabujou e
se grudou em mim, ahy respeitei o instinto raníneo da
affromta. As rrããs-golias tinham atemção ao meu vô
siɾiˈakʊ. Afinal, meu vô era mais alto que as rrãã-Golias, de
çerto, tinha bem mais do que seis côvados e um palmo de
altura.

126
RÃS, SAPOS E PERERECAS

Meu vô siɾiˈakʊ , o mais velho morador do Sítio aˈsẽnʊ,


na Capella da Telha, me ensinou muito sobre rrããs e sapos,
e raramente falava de pererecas. Minha mãe peˈdɾĩna tinha
medo de sapos- cururus e de cobras-pretas. Meu vô siɾiˈakʊ
uma vez capturou uma rrãã e me fez pegar na sua pele fina
(meu Deos, tão úmida!) e me falou de suas perninhas
traseiras, o porquê dos seus longos saltos, e seus ovos, ah
seus ovos, tão espumantes. Tio ˈnɛʊ comia as rrããs verdes
e Tio viˈsenʧɪ comia as rrããs marrom-claras. Os sapos são
horripilantes, de pele sempre seca e rugosa como a velha
Filó, e de cor escurecida que nos confunde à noite. Sempre
tão inflamados e de saltos curtos, os sapos. Na Capella da
Telha, ninguém comia sapos nem os perseguia, aliás, havia
uma certa reverência bufonídea aos sapos. Quando o vô
siɾiˈakʊ tinha zanga e bufava, aí, sim, isso fazia todo mundo
se lembrar dos sapos. Minha vó bɾaziˈlĩna brincava de
engolir sapos (Eca, como alguém poderia comer um bicho
de olhos venenosos!). Das pererecas, aprendi muito pouco,
aliás, pouco se falava, uma espécie de tabu na família, tudo
porque meu tio viˈsenʧɪ havia comido uma perereca e não
se casou.

127
SIM-SENHOR

No Sitio aˈsẽnʊ, era mais fácil se defuntear paganos


metediços do que esfolar rrããs. As rrããs eram bichinhos
sagrados. Meu vô não deixava ninguém judiar bicho do
chão ou bichinhos que chegassem ao mundo de cócoras.
Uma vez um pagano, cujo nome era Íxion, nome de gentio
não nativo do Sítio aˈsẽnʊ, se exibindo para donzelas de
candeeiro, pegou uma faca e cortou a patinha de uma rrãã.
Vi tudo. Pura maldade. Fui testemunha de vista. O bichinho
fez um barulho estranho, ahy o bichinho ficou se
contorcendo, sangrou muito, grasnou um descõhocido
adjutório, e meu vô siɾiˈakʊ, que entendia a língua das rrãã,
encaçapou o pagano na mesma hora. O pagano morreu da
mesma forma: chorou, esperneou e levantou a perna em
direção à boquua. Ssi, quando mortas por morte morrida ou
sĩplezmente assassinadas, já sem jeito, da minha parte, me
encarregava dos funerais; mas, antes, claro, fazia às vezes
de zooïatra e examinava o corpo desbotado das pobles
rrãã, estudava seu cranho curto e me enfeitiçava com seus
olhos sobranceiros. Aprendi a arredondar o mundo
contemplando o corpo oval das rrããx. Meu olhar quebrado
também aprendi arremedando as papilas marginais das
rrãã. O que difere unicamente as rrãã dos paganos é o que
me segredou meu vô siɾiˈakʊ: o sim-senhor.

128
TITÃS

No Sitio aˈsẽnʊ, as rrããs coaxavam kré-kré, as rrããs


ralavam kré-kré, as raas relavam kré-kré. As as rrããs eram
meu clã. As rrããs só temiam os tiã-tiãs ou os apitãs. Ainda
cedo, menino, vocalizei minhas primeiras paravõas na
língua das rrãães: sabia que albarrãã curava, sabia construir
um alvarrrãã para todos meus soños, comia, com gosto, o
ferrrãã e, se me entristecia, me aterrava no sarrãã só meu.
Minha vó bɾaziˈlĩna entendia minha língua das rrãã e dizia
assim para o vô siɾiˈakʊ: “ˈʃikʊ, esse menino vai ser
cucoecamecrrãã, esse menino vai representar irrãã, esse
menino vai dilucidar pãi-taviterrãã.” Vó siɾiˈakʊ nunca me
entendeu. E assim, fui crescendo grrãã-rrãã, com sua
temível juruparrãã, comendo gulosamente o marrrãã (me
emnojando de curimatã!) e certo de que, um dia, pelo
Riacho kaɣnaˈuba, embarcaria no catamarrãã rumo a Milhã.
Minha vó bɾaziˈlĩna era cristã, ermitã e guardiã. Minha vó
bɾaziˈlĩna sabia tudo do reino das rrãã, me ensinava a
assarapantar o mundo, me falava de Deos e satã, foi minha
vó bɾaziˈlĩna que me falou do meu sangue de negro e tupã.
Pelas mãos da vó bɾaziˈlĩna, que era sacritã, aprendi a
pastorear o Sítio aˈsẽnʊ como antigamẽte fez tupã,
também grão-rrãã, rei dos Titãs.

129
PARIÇÃO

As rrããs não têm cauda, mas têm pai e mãe. Não tive
pai, mas tive mãe. Nasci no brejo, no Sítio aˈsẽnʊ, na manhã
chuvosa, no ano de todos os perijgóós, com o grasnido da
fêmea, mas sem a cantoria do macho. Nasci, então, rrãã
despaternada, mas não chorei, porque rrãã sem ai, digo,
sem pai, muge; não chorei, porque rrãã nascida sem pai
assovia e minha vó, parteira, fez a cantoria porque minha
mãe peˈdɾĩna coaxava de dor de partho. Minha vó
bɾaziˈlĩna, tão brasileira, tão católica, rezava para minha
parição assim: “Ó Maria Santíssima, olhai para mim, dai-me
a graça de ter um parto feliz! Fazei que meu bebê nasça com
saúde, forte e perfeito. Eu vos prometo orientar meu filho
sempre pelo caminho certo, o caminho que o vosso Filho
Jesus traçou para toda a humanidade, o caminho do bem.
Nossa Senhora do Bom Parto, rogai por mim!”. As mãos e
os braços da vó bɾaziˈlĩna foram o fˈɔʁsepʃ da minha
parição. Meu pai ʒuaɾˈɛʃ peɾˈejɾɐ maʁtʃˈĩʃ não deu abraço
bem apertado na mãe peˈdɾĩna pelas costas, e os dois não
me desovaram juntos. Meu pai, de çerto, não era
sapiencialmente uma rrãã macho, era um purgatório. Meu
vô, sim, foi meu pay eloquente. Minha vó bɾaziˈlĩna, sim, foi
meu paay amoroso. Minha mãe peˈdɾĩna, sim, foi meu pere
extremoso. Pois bem: as rrããzitas que nascem sem pai-rrãã
misturam, desde cedo, sciẽcias, digo, ssapiemçias e
jgnorãcias, sobre o amor e o casamento, nada sabem da
força d'alma na luta dos sentimentos.

130
ESTIO

Na Capella da Telha, do chão de terra sempre escapam


jararacas gigantes e peçonhentas e o chão é sempre
impiedosamente quẽete e fétido, ludreiro. O H2O tem cor
de rrãã, gosto de rrãã e cheiro de rrãã. A estação seca
escalda a alma dos lavoureiros, a estação seca apodrece a
boquua das rrããs, ataca os pulmões dos cochichadores e os
ventos fortes inflamam o céu da boquua dos violeiros. O
chão quente machuca as perninhas dos répteis, mas os
fungos adoram. Bem ali, ali onde é a parte mais desértica,
onde a erosão parece serpẽte, uma folha (presumo de
πάπυρος), em branco, ao chão, há de denunciar o estio dos
poetas da Telha, por condição, tão suados ou úmidos. Os
poetas de Capella da Telha sofrem também com a erosão e
têm seu período de estio. Os poetas da Telha têm febre,
dores e incertezas, garatujas em tempo de calor. Há dias há
uma folha jogada ao chão quente da Telha e isso provoca
na humanidade a desnecessária frieza e desprezo de todos
os homens. Folha ao chão para os poetas da Telha sempre
quebranta o corpo por meio de seus penosos jejuns.
Éramos, eu e o tio ˈnɛʊ os poetas do sítio.

131
CASCÁVEIS

Vi mouitos bichos sendo devorados por cascavees e


insetos venenosos. E vi moitas cauãs devorando cascavees.
Não tenho medo de cauãs, mas tenho munto mais medo de
cascavees. Munto medo de serpẽtes. Tenho medo do seu
sibilar. Tenho medo quando a cascavees alça a cabeça.
Tenho medo do seu bote. Tenho medo da chocalhada
sinistra de cascavees. Tenho medo do seu faro no ninho.
Tenho medo de pisar o chão seco. Tenho medo de pisar em
galhos mortos. Tenho medo de pegar em folhas caídas.
Tenho medo de ramos secos de arruda e mestruço. Tenho
medo de dentes de cascavees. Tenho mũito medo de
cascavees de quatro ventas. Tenho mũito medo de
cascavees de rabo fino. Tenho mũito medo de cascavees de
vereda. Já vi uma cascavees enroscada em um touro forte,
formando o colar da morte. Vi a morte de perto.

132
MOSCAS

Sou eixcelente fisgador de peyxes e mosquas (estas, só


com os olhos!). Mas devo-lhe confessar que sofro de
entomofobia desde a morte do meu vô siɾiˈakʊ. Hoje,
apavoro-me com um enxame de mosquas sussurrantes e,
se espanejam suas asas faiscantes, isso definitivamente me
aterroriza. Nem sempre foi assim. Passei minha infância
vendo e me divertindo com nosso alazãao, com sua cauda
avermelhada, matando mosquas bravas que o mordiam. No
dia morte do vô siɾiˈakʊ, o sítio aˈsẽnʊ ficou coberto de
luto. Formigas e mosquas cobriam seu cadáver. Com a
morte do vô siɾiˈakʊ, o sítio aˈsẽnʊ ficou entregue às
mosquas.

133
ALAZÃO

Iiirrrrí! hiin in in! Em MCMLXVIII, minha tia


fɾɐ͂sˈkĩɲa(chamada carinhosamente por mim de faˈkĩɲa) me
deu de presẽte um cavalo alazãao. Era valente, alaranjado
e fogoso. O alazãao era meu, mas não podia montá-lo.
Ficaria sempre na sua estribaria. Claro, a ordim valeu por
pouco tempo. Não só desobedeci à minha tia como aprendi
a montar o alazãao para do alto de uma pedra contemplar
o sítio, agarrado ao cabresto do árdego cavalo. Montado
em meu alazão me arrastava nas campinas do sítio aˈsẽnʊ.
Depois, aprendi a soltar rinchos como o alazãao, tocar-lhe
as sedosas crinas e a contemplar sua longa cauda, até
aprendi a cuidar de seus cascos altos. Era bom montar o
alazãao, mas meu vô siɾiˈakʊ tinha medo que eu caísse
debaixo dos pés do animal, o que nunca aconteceu. Eu vivia
às upas com meu alazãao. Em pouco tempo, aprendi a
andar em raleiro de mato e a fazer caminhos abertos. Com
o tempo, aprendi a me escarranchar como um alazãao na
poeira do sítio e a desembestar pasto afora.

134
BESOURO

O sítio aˈsẽnʊ tinha um zum-zum de regozijos e


allegrias de insectos. Era povoado de bizouros, mosquas,
maribondas, abelias e bespas. Eram tantos insectos que
cintilavam no cééo. Um dia cheguei ao vô siɾiˈakʊ e lho
confessei: abõo, quando eu crescer, quero ser um bizouro
ssi parecido com uma abelia para chupar o favo de mel alilaa
na boquua de maˈɾia. Vô, se eu fosse um bizouro, voaria
mais alto que as berbeletas e pularia feito gafanhotos de
asas verde- pardacentas sobre o coraçom de maˈɾia. Vô se
eu fosse um bizouro bem grande adormeceria nos braços
brancos de maˈɾia. Vô se eu fosse um bizouro teria dentes
para morder os lábios de maˈɾia. Vô se eu fosse um bizouro
faria zumbidos nos ouvidos de maˈɾia. Vô siɾiˈakʊ, quando
eu for um bizouro, e maˈɾia se achegar a mim, eu não fujirei
feito bizouro com medo de untanha.

135
CURIMATÃS

Passei minha infância comendo curimatãs. Eram peixes


amarelados e cascudos, com cheiro fétido de fundo de
açuda. De sabor ruim, meu Deos, comi tantas curimatãs!
Eram tantas e pontiagudas as espinhas e sua carne trazia
um gosto nauseabundo de barro. Ainda assim, gostava dos
meses de arribação de curimatãs. Nas tardes quentes do
sítio aˈsẽnʊ, na terra vazante, via as águas escuras do açuda
fervilhando e não pensava duas vezes em, fazendo as vezes
de pescador, fisgar curimatãs e piaus. Tia ˈxita, irmã mais
nova de minha mãe peˈdɾĩna, era a única que sabia tratar as
curimatãs. Tinha a precisão com a faca e sabia chegar às
guelras dos peixes. Todos comíamos vorazmente as
curimatãs, da cabeça ao rabo, mas minha vó bɾaziˈlĩna me
dava o melhor boquuado. Com o passar dos anos, olhando
o lodo do açuda, decidi que não queria mais comer ou ser
curimatã, também não queria ser comensal.

136
PAPA-ARROZ

... entom vô Sɨɾiˈaku, batizado asi no nome do Senhor


Jesus Cristo, com seu jeito perversso de castyguar o mũdo,
o mũdo da Missão Abreviada, o mũdo do padre Mɐnuˈɛɫ
Ʒuˈzɛ Gõˈsaɫvɨʃ ˈKotu, brigou com minha mãe Pedɾˈinɐ
Mɐˈɾiɐ dɐ ˈSiɫvɐ por causa dos anuns, digo, gaudérios, digo,
parasitos, digo, papa-arrozes, digo, vira-bostas, que
devastaram o arrozaes. Minha mãe Pedɾˈinɐ disse entom
para sua amijga Mɐɾiˈɐnɐ não vou mais pastorar ar-ruzz,
vou s’imbora, e minha vó de nome bɾɐzɨˈɫinɐ mɐˈɾiɐ dɐ
kõsɐjˈsɐ̃w disse ssi que dê lo motivo e minha mãe peˈdɾĩna
disse não mato mais marias-pretas, digo, negrinhos, digo,
pássaros-pretos, hei de agora lhegar jun-da minha tia riga
da Aɫdiˈɔtɐ na Capital. Minha mãe pedɾˈinɐ disse em
murmulho vou s’imbora do Sítio aˈsẽnʊ e assim foi em
boora sem mais preambos. Minha mãe pedɾˈinɐ disse vou
ensinar meu filho visẽˈtiɲu o abeçe para não pastorar
corixos, digo, curixos, digo, corrixos no arrozaes. Assi,
minha mãe pedɾˈinɐ foi para Fortaleza de Nossa Senhora da
Assunção, à margem do riacho Pajeú, lá no mõte
Marajaitiba. E asi, caligrafei ˈaɫfɐ, ˈbetɐ, ˈgɐmɐ e ˈdɛɫtɐ e
aprendi o abeçe.

137
CANGUÇU

Meu vô siɾiˈakʊ era um homem raramente alegre, tinha


um riso espontâneo que refletia uma inspiratória
melancolia. Para facécias, aí sim, vô siɾiˈakʊ era um
destaboquuado. Acho que Rabelais quando imaginou
Gargântua, Pantagruel, Panúrgio, também inventou o vô
siɾiˈakʊ, com sua elevada ssapiemçia – desculpem-me o
pretuguês rroym! Pois sim. Certo é que o vô siɾiˈakʊ era um
misantropo, sempre abatido, realmente, uma criatura de
Rabelais. Mas sabia dedar o mundo, com suas facécias, com
seu denso humor, por vezes, macabro. Vô siɾiˈakʊ era
Gargântua, filho de Pantagruel, só não furtava os sinos das
igrejas nem lapidava os campanários do sítio aˈsẽnʊ. Com
as facécias do Vô siɾiˈakʊ, ouvi muito as histórias de Manoel
da Bengala e os Três Comedores. Ouvi histórias de porcos
raivosos, onças-pintadas rabiosas, e das temidas jararacas-
da-seca, com suas manchas escuras, com seus sibilos
hipnotizantes e poderes sobrenaturais. Acho que vô
siɾiˈakʊ era um canguçu encantado.

138
TATUPEBA

Passei minha infância, no sítio aˈsẽnʊ, ouvindo adoletá:


“Adoleta, le peti petecolá, les café com chocolá. Adoletá.
Puxa o rabo do tatu, quem saiu foi tu, puxa o rabo da
paˈnɛʊa, quem saiu foi ela, puxa o rabo do pneu, quem saiu
foi eu.” E vó bɾaziˈlĩna, a gente come peba? Não, visenˈʧĩ,
peba é bicho que vive do lodo como as formigas de roça. Vô
siɾiˈakʊ não pensava assim: os pebas eram uma spiraçõ
divina pois cavavam o chão com o focinho melhor do que
ele armado de eixada. Com o tempo, os tatupebas foram
ficando raros no sítio aˈsẽnʊ. Vô siɾiˈakʊ, no entardecer,
costumava acender fogueiras e isso afugentava meruçocas
e tatupebas. Um dia capturaram uma tatu-fêmea, tipo bem
amarronzada, carapaça que lembrava uma tartaruga, e de
cabeça bem achatada. A tatu-fêmea tinha cheiro forte de
cova e lodo. Tia ˈxita foi avexadamente para a cozynna
preparar o guisado, acompanhado de pirrãão. Fiquei
enojado.Não quis provar. Vô siɾiˈakʊ comeu tanto que
lambeu os beiços. Juro que tentei comer a tatu- fêmea, mas
empalideci, vomitei tudo, vomitei até as tripas (irra! credo!
ih!). Passados tantos anos, ainda vomito com a nẽbrrããça
da fedorēta tatu-fêmea de fulvos olhos.

139
OLVIDO

O lenbrãdo da Capella da Telha requer muito de mim e


além da conta. O lenbrãdo da Capella da Telha me telha, me
deixa barro cozido, igualmente como faz com a rrãã. Se
fecho os olhos, assim como as corujas, eis minha catástase:
chegam-me os lapsos, as perdas da memória de capim-
gordura. Claro, bem sei, as deslembranças são o melhor da
catarse antes do espetáculo trágico, ainda a se definir por
aqui. Aliás, por este fato, agora, sinto-me totalmente
descarregado de mim, abandonando o barro cozido que
sou; por isso, insisto em fechar os olhos e observar que
quanto mais fecho os olhos na hora de lembrar mais vejo a
imagem da venerável Senhora Sant’Ana e um túˈnɛʊ de luz
que me aproxima de Deos. Ao mesmo tempo, estar vivo, ter
a capacidade de abrir e fechar os olhos, tudo isso me causa
uma estranha disforia como a de uma batalha final entre a
vida e a morte. Se volto a insistir em fechar os olhos sem a
sonolência do morrer, surge diante de mim uma floresta de
plantas espinhosas, uma floresta povoada de anjinhos em
procissão e eu sempre cavalgando uma ave fabulosa.
Quando mais abro os olhos, deixo-os abertos como o Mar
Cáspio, e minhas lembranças naturalmente se evaporam de
mim e desumanamente me desseco, encostado no
retábulo de colunas torsas da Capella da Telha.

140
4ª PARTE

Os dias passam....

“Tenho vaga idéia que meu avô morreu num auto de


fé.” (Afonso de E. Taunay, In Chronica do tempo dos
Philippes (1910), p. 300)

141
IGNOMÍNIA

Poeta é assim mesmo: anuncia a palavra, mas não


insulta, jamais, as divindades e as religiões. Os poetas têm
atitudes, mas seu gestos jamais alcançam as honras de
sicranos ou beltranos, ainda que troianos. Os poetas
insultam homens, os joões-fernandes, mas à semelhança
dos mortais, morrerão de acometimentos súbitos como
morrem os joões-ninguém. É assim mesmo o contrassenso
dos que poetam, a poesia sem-razão.

142
SEMIMORTO

Em meio a grande azáfama, teu corpo jaz no


vazadouro. Parece morto. Teus olhos, esbugalhados, estão
atemorizados de angústia e freima. Teu corpo semimorto
expõe as sobras de vísceras do útero e dos intestinos. Tudo
destroçado. Aguardamos o pronto-socorro dos fantasmas.
Enquanto o socorro não chega, teu corpo semimorto
gruda-se ao meu seminu, e expele fungos e bactérias, que
infectam nossas semialmas semicarbonizadas de versos de
pé quebrado.

143
EM BRANCAS NUVENS

Às vezes, acima de nós, formam-se as brancas nuvens,


aparentemente duradouras, mas, ao menor aumento da
temperatura, dissipam-se, tornam-se tão perecedouras e
fugazes como os trovões no céu e só empulham mesmo os
nefelibatas. Outras vezes, estamos imersos em negras
nuvens, repletas de fumaças e poeiras, tão turbulentas
como as nuvens ardentes do vulcão. Vida, amor, paixão e
sexo, por vezes, passam assim, em brancas nuvens, fiéis à
trágica solidão da condição humana. Deveríamos aprender
mais sobre a luz, o sol, a lua, os raios e o efeito estufa para
entender o litígio como expressão máxima do mútuo e
derradeiro consentimento.

144
AVE DE RAPINA

Escuto papocos. São tiros ao alvo. Rumores de morte.


Estardalhaços incomuns. Tiros de misericórdia.Tudo ocorre
num átimo dentro do meu peito carregado de sibilos de
gaviões, águias, falcões e corujas. É assim que me sinto: ave
de rapina, mas bem instintivo e com as vergonhas
superdotadas dos homens. Carnívoro, tenho preferência
por carnes brancas e por mulheres devotas. Com meus
bicos recurvados e pontiagudos inclino-me a sugar os seios
de sórores enclausuradas. Com minhas garras fortes sou
capaz de segurar as ancas dos animais selvagens em
Galápagos, no Equador. Minha visão de longo alcance já me
permite dizer que meu purgatório de há muito começou
com meus grandiloquentes e perversos delírios.

145
TOTEM

Siá mɐˈɾiɐ: quanto mais penso em ti, mas tenho medo


de Deus. Tenho medo da minha avareza, gula, inveja, ira,
luxúria, orgulho, preguiça e de seus totens. Tenho medo
sobremodo de seus braços onipotentes de Deus, de suas
mãos indefinidas, de seus dedos misteriosos e de suas
lanças apocalípticas. Não sei quem mais me apavora,
quando penso em teu corpo a animar meus instintos mais
primitivos.

146
AMOR SEM TEMPO

São muitas vozes. São muitos os gritos. Ouço a um só


tempo o teu nome e isso me desconserta profundamente.
Ouço-o e me sinto presa acuada que escuta a voz iminente
do caçador. Ouço-o e me alegro feito criança livre à beira-
mar. Mas tu sabes: nem és minha caça nem meu caçador.
Tu és ou foste apenas meu amor. Amor que me dá ou deu o
gládio em tempo de guerra, que me enche ou me encheu
de vida em tempo de paz. Curioso é ouvir de outrem o teu
nome que, ao nosso tempo, é tempo nenhum: siá mɐˈɾiɐ.

147
JEJUM

Uma folha em branco ao chão há de ser, por condição,


úmida. Os poetas também têm seu período de estio. Os
poetas têm febre, dores e incertezas, suas garatujas. Há
dias esta folha ao chão e a denúncia provoca na
humanidade a desnecessária frieza e desprezo de todos os
homens. Folha ao chão para os poetas sempre quebranta o
corpo por meio de seus penosos jejuns.

148
DE TUA IMAGEM

De tua imagem, fixo-me nos teus olhos. Eles me dizem


muito do teu silêncio, de como atravessará a janela para o
erudito ou o popular. Eles me dizem do teu ouvir e a
polifonia dos nossos ancestrais. Eles me dizem dos teus
segredos inconfessáveis e do que não podes traduzir em
palavras. Teus olhos bem abertos, tua boca cerrada, mas sei
de um coração que se dilata e se contrai no mesmo ritmo
dos mais remotos e insípidos avoengos: mɐˈɾiɐ, mɐˈɾiɐ,
mɐˈɾiɐ...

149
DENTRO DE MIM

A tua língua dentro de mim me eleva ao misterioso


reino do prazer. Por isso, segurei as tuas mãos e me fechei
em misterioso sabor de te ter dentro de mim. Mas, sabes, é
embaraçoso amar e ser amado assim com a tua língua
dentro de mim. Por isso, fechei os olhos, abri a boca e tive,
em sonho, esse misterioso calor de ti dentro de mim. Mas,
Siá mɐˈɾiɐ, me diz, o que buscavas com tua língua dentro de
mim?

150
BANZO

Sim, voltei a poetar com a mesma recaída dos


beberrões que se embriagam por hábito, sem febre e sem
dor. Voltei a poetar mas estou zonzo, atarantado de sono,
cheio de contradições traiçoeiras. Agora pouco, por
exemplo, voltei a engolir sapos como tira-gosto, ou, como
aprendi em bom crioulo, voltei a engolir peixe pelo rabo por
lídimo desgosto. Assim, os que me curtem, abram alas,
porque esta tarde voltei a ter aqueles mesmos espasmos
de desencantos da humanidade, com a mesmo banzo que
nego, com a mesma dor dos meus ancestrais negros. Eis-
me, cabalmente, sɨɾiˈaku.

151
OLVIDAR

Aqui no sítio aˈsẽnʊ, há dias vejo a mesma folha branca


no chão. Não é por descaso, ao certo. Nela, ao que tudo
indica, há antigos versos brancos, mas vistos a olho nu.
Durante dias, por várias vezes, calquei-a com pés exaustos
e repetidamente passei por cima dos seus quatro cantos
como um paquiderme faminto e cambeleante na busca de
sua última ração. O que sei: nada se desenhou na folha além
do vestígio de fantasma. Há de se tratar esta folha do mapa-
múndi do meu olvidar chamado intransitivo amar?

152
LÁSTIMA

Não estou magro. Estou triste. Não estou gordo. Estou


muito triste. Não estou magoado. Sou a mágoa. Minhas
dores são o meu traspasse. Não estou aflito. Sou a aflição.
Minhas angústias são meu refúgio. Não estou apenas triste.
Não sou sempre tristinho. Não nasci morto. Nasci
semimorto. Nada qualifica ou define minha lástima. É
deplorável a inutilidade que sou. O que sobra é a escassez
da euforia. O que me nutrem são sobras de uma disforia
lastimável. Estou sem meu vô siɾiˈakʊ.

153
AUSÊNCIA

Meu vô siɾiˈakʊ: a tua ausência não é apenas o teu


corpo ausente. É minha alma sem mim, nada fazendo
significado, navio perdido a bravo mar, sensação de
tempestade, terremoto, fim de vida, enfim, se não
encontro tua vida dentro de mim.

154
URANO

Do ar, sei muito pouco: sei da aragem do sítio aˈsẽnʊ ,


terra sáfara, no sertão cearense onde nasci, mas nada sei
de química inorgânica, nitrogênio e oxigênio; dos não-
metais, também não sei e pouco sei do ar que respiro; sei
pouco e apenas sobre o sensório, o que vejo; vejo, daqui, os
pássaros que batem suas asas sem parar, gastam sua
energia, voam depressa e vão em direção ao infinito. Do ar,
sei da respiração ou dos pulmões nos resultados das
análises laboratoriais; da hemoglobina do oxigênio-limite
no sangue já sei um pouco mais, mas pouco sei do fôlego
dos que inspiram a poesia solta, dos que buscam a claridade
no crepúsculo; sei, sim, de espaço aberto, sem jurisdição;
refiro-me ao Sol que desaparece no horizonte, de onde se
vislumbra o azul celeste e οὐράνιος (Urano) dá o ar de sua
graça. Tudo isso de há muito eu sei.

155
NEBLINA

Abro em Tiago e redefino minha vida com a metáfora


da neblina: sou chuva miúda, névoa baixa, a librina breve e
à vista desarmada. Há dias tem sido assim sem meu vô
sɨɾiˈaku. É a mesma sensação sem objeto, um fantasma
indolente lá por dentro dos meus órgãos vitais,
convertendo meu orvalho matinal em meus versos miúdos
decantados, mas refrigério para a alma. Constato muitos
reverbérios em minha volta e suporto a asfixia derradeira
com a mais dura e tardia lição de que Deus é quem
exclusivamente nos dá o tempo de vida e nos diz quando
faremos isto ou aquilo. Sem Deus, realmente, a vida não
tem pausa, não há trégua, o texto não vírgula, ninguém
respira e ninguém conhecerá a espiritual autossuficiência
humana. A vida é, pois, um sopro, dom de Deus e seu reino,
sétimo céu, a eternidade ou rito de passagem. Por hora, o
que tenho é um lugar para deitar e dormir, descansar e
convalescer, mas sem a garantia do devir e tão fugaz é meu
tempo que evoca o tempo de criança, o tempo em que
ouvia, nos templos, a estranha ecolalia e o bolodório do
meu vô sɨɾiˈaku.

156
SILÊNCIO

Estou há dias em silêncio e solitário; mas, do meu


canto, vejo árvores que conversam entre si por uma rede
subterrânea das artérias da natureza. Eis-me fungo, com
meu lado mais obscuro, sabotando e sendo sabotado por
versos brancos, livres e soltos, desembaraçados das rimas,
com a mais desesperadora e indisfarçável intenção de
buscar o hálito da vida.

157
CONFISSÃO DE VÔ

O senhor não sabe da missa a metade. Sou templário e


me abstenho de carne às quartas-feiras, especialmente a
humana. Na minha cama de varas, posso lhe garantir que
minha posição sempre foi a de papai e mamãe. Saiba, meu
senhor, nunca sodomizei as servas de Deus e nunca jamais
as escandalizei com os bizarros beijos na boca. Sou um
eremita convicto desde que me desvelei cristão-velho, um
missionário a serviço das graças espirituais. Aqui, entre
quatro paredes, nunca permito ou permitirei a turgescência
e a efervescência mundanas. Minha mulher é beguina,
dedicada aos doentes e aos pobres e à clausura do lar.
Minha mulher é uma camponesa longe dos feitiços das
bruxas do excomungado. E assim, meu senhor, vejo o
mundo através dos meus olhos amundiçados com a
porcionária poeira dos meus ancestrais cavaleiros da
espora dourada.

158
QUEDA

Meus pés não eram tão pesados e encharcados. Não


sei bem o que pode ter me acontecido, assim, en passant.
Longe de vinho ou cerveja, o que tenho ingerido,
vorazmente, são romances de cavalaria, mas pouco aprendi
dos andantes. Lembro-me de que, por onde pisava,
outrora, ainda que em terreno baixo, brotava olho d’água e
alcançava, de um fôlego, o Cálice Sagrado. Sofro agora com
estranhos cambaluços de guerreiro em pedaços. Há dias
observo meus pés de lótus nesta terra chã. Onde estão
minhas cercas, meus muros, minha armadura, minhas
espadas, minhas estampas e minha fortificação? Onde?
Outrora, sobre esta terra chã, era guerreiro medieval à
guisa de um cavaleiro da triste figura.

159
RETIRANTE

Retirei-me de tua vida e, agora, retirante, confio apenas


nos meus sonhos dourados. Antes, tu eras parte do meu
viver; agora teu anúncio é apenas verso lento e cansado.
Retirei-me de ti, gente de coração tão pobre, e me joguei à
fieza das novenas - Santo Rosário, Terço da Divina
Misericórdia e Coroa de Nossa Senhora das Lágrimas. O que
penso de ti já me chega incandescido e me vejo, doravante,
santanário em uma longa estrada tormentosa, com peito
cheio de fé, saudades e angústias. Pois é assim que me sinto
retirante: altareiro com aperto de saudades. Aliás, alguém
da irmandade me responde: Por que toda saudade é
amarga? Por que a saudade trava a garganta da gente? Por
que as saudades deixam em nós, retirantes, os grandes nós
e com os olhos absortos?

160
DESORGULHO

Sou preto insolente (e daí!), mas tenho o desorgulho


de bicho do mato. Naturalmente, sei que o amor-próprio
existe e vem de Deus, mas a imodéstia me degenera desde
o ventre e meu primeiro grito primal é o do quilombo
fugido. Naturalmente, raras vezes consigo a estesia própria
dos poetas, mas despoeto os versos conforme as
conveniências e as aligeiranças libertárias. Naturalmente, o
insólito desdenha da minha fé (e a do prelado) e bons
costumes são minha costumeira dedignação.
Definitivamente, meu médico tem razão, meu problema
não é clínico, é o ilógico que já me absorveu as entranhas
ancestrais e me emburreceu a arte-maior. Eis-me, pois,
definitivamente, sem jeito, troncho, despalavreado, queira,
bicho de sete cabeças.

161
IGNOMINIOSO

Falam-me da minha tristeza. Só uma impressão. Não


sou triste, estou criança. Ao contrário, sou até ignominioso,
mas o que tenho mesmo está dentro do meu olho, a solidão
do Vô sɨɾiˈaku. Por isso, finjo (e tão também) que, com uma
folha em branco, posso compor poemas ou garatujas e
estar pueril ou frívolo à luz do dia; mas, no final, com a folha,
a branca, crio sempre o tosco, minha arte é tão grotesca
como o estudo do meu corpo nu na linha de terra. Isso não
é de hoje, minha imaturidade vem desde criança quando
vivia nas nuvens. Houve um tempo, talvez, aos seis, que,
conversando a fio, sozinho como um autista, ria com
cachorrinhos, coelhinhos, cavalinhos, dragõezinhos,
bruxinhas, e, juro, chegava a ver também rostos de homens
horrendos, imperadores perversos e ditadores sodômicos
e minha doce eureca da segunda infância foi a de poder
enxergar com a mente o infinito. Assim, fui crescendo, em
brancas nuvens, com mais poemas e menos sofrimento,
inesperadamente encantado com o poder da palavra.
Tenho agora muito a dizer de algumas das letícias desse
tempo de solidão. O solitudo, sola beatitudo! ("Ó solidão,
única felicidade").

162
ALAGADO

Aqui, no sítio aˈsẽnʊ, tem chovido tanto. Dilúvio - a


propósito, ainda não li, por completo, Gênesis. Mas, tanta
chuva... Tão logo, tão pouco, tão só, tão somente, tanta
chuva, meu Deus! Chuva de molhar sala, de encharcar
quarto de dormir e meu corpo nu agora já me é único e
úmido. Meu de-comer, o pão dormido, desde ontem, de
duro, agora, o que tenho é parte amolecida, e já me excede
em cuspe. Meus olhos também apanharam tanta chuva e
estão umedecidos como versos sem graça de Álvaro de
Campo. Claro, aqui, na rua, tudo está muito alagado; o que
tenho de potável, presentemente, virou água estagnada; e
pisar o piso não é o mesmo que pisar em terra firme, é pisar
chão inundado, navegar em bravo mar, sem farol, sem
porto aberto. É difícil descrever o que restou de mim,
náufrago: o que dizer dos meus destroços, a poesia da
ruinaria?

163
CORPO NU

Do teu corpo nu, há muito a descrever e pouco a


explicar. Teu corpo nu é ensaio de geometria, se assim
posso encurtar. A descritiva, sim, a de Hades, no horizonte;
a de Zeus, no vértice. Bem, antes, como um bom
observador, entrecruzo olhares; e, depois, assim, em
mútuo consenso, projetamos, juntos, utopias. Tenho
explorado teu corpo nu, teus ângulos, áreas e volumes (os
meus jamais serão explorados porque irremediavelmente
atrofiados). Eu, sempre, aqui, plano ἄλφα; tu, agora, aí,
βῆτα. Pois bem: tenho cautelosamente contemplado teu
corpo nu, cheirado as partes pudendas; e são tão cheirosos
teus pés nus!; sim, cheiro muito teu corpo nu e mudo, e
experimento todas as lascívias, o sugar dos teus dois
pontos, os impróprios, em busca do prazer infinito. Teu
corpo, assim como experimento, na linha de terra, é uma
concha com saborosos cortes e secções, a verriondez, a
própria dos lúbricos. Por isso, assim, coplanado, alfa sobre
beta, alfa sob beta, e buscando a precisão, a geometria da
epifania. Siá mɐˈɾiɐ, õde?

164
ANTÔNIMOS

Tenho uma estranho gosto por antônimos. Não é de


hoje, mas de trasanteontem, meu avesso, o gosto pelos
contrários. De há muito sou mesmo do contra, mas também
não sou exatamente o revezo nem o outro lado da moeda.
Explico: é que se me visto, e bem, ainda que seguindo os
medievais e seus mais rígidos padrões do induto, logo me
destrajo aos olhos de outrem, como se fosse realmente um
mal-apessoado; se me perfumo, exalo, sem desejar, o
almíscar, o mesmo cheiro das vergonhas fétidas dos bichos;
assim, estou sempre na retaguarda, desairoso,
malconformado, cheio de defeitos e inconfessáveis
malfeitos. Os gestos, os mais nobres ou acanhados, são
vistos por outrem, especialmente os de mau-olhado, como
mugangas de avarento, mesmo com a manifesta e a
inoficiosa doação humanitária, julgada como sonsice de
gente sovina por fulano, beltrano e sicrano. Claro, não
aceito que me julguem assim, do tipo nefando, sicário e
viperino; se eu fosse tudo isso, de verdade, se eu fosse
perpetuamente o avesso, não teria controle sobre meus
impulsos primais e meus versos livres não seriam
semelhantes aos do Poeta Negro, o quietarrão simbolista,
cheio de banzo, cheio de sinestesias e cumpridor das leis
alheias e não as suas, as próprias.

165
FERIDAS

Abro involuntariamente as mãos. Lembro-me então de


minha vó lendo meu futuro e me dizendo de que seria um
homem como os personagens da commedia dell'arte.
Acreditei. Talvez, por isso, desde criança, conto e reconto
os dedos, anotando tudo em algarismos arábicos e
romanos e acreditando que viver é mesmo um lastimável
algoritmo que nos quebra diariamente por dentro. Lembro-
me, ainda, a lição de ciências, a da tia nos anos iniciais do
ensino fundamental: polegar, indicador, dedo do meio,
anelar e mindinho. A escola nada me ensinou dos gestos,
mímicas primais, e me apavorou com interdições do corpo
e da alma. Com o passar dos anos, e com o Outro, descobri
o poder das mãos, dos dedos, da sua libidinosidade e o
nascedouro dos meus pecados mortais. A primeira
descoberta, na segunda infância, foi que, com os dedos da
mão direita, podia sozinho me tocar e dedar o mundo. Por
isso, estou farto de amor porque amar eu amei, com as
minhas sedutoras mãos; amei, enfim, todas as beldades de
Hollywood e, em genuflexão, supliquei imediatamente ao
Senhor o perdão pelo prazer desmedido pela luxúria,
pouca-vergonha e torpeza. Mais recentemente descobri
que com o polegar e o indicador poderia formar um
aguilhão para tanger os êmulos mais contumazes ou
poematizar versos de arte-menor. Com o mindinho, unido
ao anular, bem sei que posso pôr o dedo na ferida.

166
CALHAU

Sei lá, saudade é o pior exercício de cortar as amarras


com outrem, ainda que seu amor. Se fosse gaúcho, diria
que estou rebenqueado de saudade ou fastio. Me
dissimulo, então, todo calhau – fazendo as vezes de poeta -
mas deixar o coração assim, de pedra, alheio a ti, me
fragmenta por completo, me deixa à deriva, sem rumo. O
que me incomoda é a sintaxe do silêncio. A da tua mudez, a
mudez dos ventos. Ao contrário, quereria tua voz de
sempre, a da doida de jogar pedra na lua, a rouca a quatro
ventos. Tenho, sim, o pior da calmaria: o pouco-caso.
Dissimulo-me, então, agora, todo pronominal, o enclítico da
vez; talvez, penso, o oblíquo no seu devido lugar me
complete no que me falta; mas, assim, átono, do jeito que
estou (ou sou), sem ti, deixa-me também sem mim. Difícil
negar que sem ti, não sigo, não consigo seguir, sou pedra
lascada. Assim, como estou, rochedo de medo e saudade,
só calculo a piora: o exício de semimorto; porque morrer é,
sim, não definir nada; sei lá, morrer é esperar, esperar, e lá
vai pedra.

167
LAGARTIXA

Não sou poeta. Não sei a técnica de escandir. Sei sobre


enjambement, li alguns versos de Rimbaud, sei até
encavalar, mas não aprendi a recitar. Mas, realmente, hei
de confessar, meu estado é o da estesia. Tenho um
estranho faro para a descoberta do verso de pé quebrado.
Sinto, de longe, quando as sílabas dos versos estão fora do
lugar. Também não sou cronista. Não sou, assim, tão bom
de conversa como possa parecer a outrem. A propósito de
outrem, o homem não é minha medida, mas bem que
poderia ser encaixado, assim, digamos, lagartixa libertária.
Quando me dizem que sou poeta ou cronista, rio, a epiglote
explode, rio e me engasgo, soluço e me sinto engolindo
lagartixa. Aliás, me enquadro no gênero das lagartixas:
meus versos têm pálpebras caídas, sempre tristes, e minha
cauda curta é por justa causa, a causa do autotomia, para
que os críticos arbitrariamente não me enquadrem em
qualquer gênero (daquele tipo, assim, íntimo), não me
predem, não me prendam, não me emprenhem, não me
pré-datem. O que tenho (exclusivamente) e que, ao certo,
interessa aos críticos é o ânus: nele, está minha história de
vida, armazeno espermas e libero o que os críticos chamam
cruelmente de crônicas poéticas.

168
LAVRADIO

Há dias minha cabeça está no lavradio. Difícil de me


compreender? Também sei. E sei que assim como estou
também nada cultivo; mas, ao menos, nessa estação, é o
que há de melhor em mim, do mais brando dos desvarios e
das estâncias. Volto, involuntariamente, todavia, amiúde, à
erosão no semiárido que nasci, com o sangue A e o fator Rh
negativo. Em resumo: estou, há dias, assim, arredio,
periférico, deteriorado, fragilizado; sei lá, difícil explicar,
quando se está assim tão residual, tão vencido pelos
córregos que acumulam dentro de mim angútias e medos
que, a despeito do tempo, persistem dentro de mim, versos
soltos e lastimosos. Demando, pois, assim, o novo arado e
o novo amor, sei lá, disposto a escoar o melhor de mim em
outrem e certo de que as sementes nem sempre caem em
terra sáfara.

169
ESMERIL

Uma vez escutei do meu vô siɾiˈakʊ para minha minha


vó bɾaziˈlĩna: em mim, esta parte mais espessa e endurecida
nada tem a ver com a cor da minha pele. É calosidade
decorrente das dolorosas queixas por indiferenças e pouco-
caso. Só teu coração há de ser o abrasão dos meus pés e
das minhas mãos calejadas. Diz-me, então, meu amor, onde
escondeste o esmeril?

170
CABISBAIXO

Tenho andado, nos últimos dias, assim, tão cabisbaixo.


Olhar de coração aflito, sem grito; olhar, infesto, para baixo;
olhar, de ancião, para as coisas miúdas no chão; olhar,
amiúde, para as coisas miúdas, desprezando o graúdo. Sei
que esse amargor não é hoje: nasci baixo, no baixio e os
meus ancestrais, na pior desgraceira, com cara de baixaria; e,
assim, de tão faminto e magro fiz do meu tórax magro e
faminto o rochedo magro e faminto da resistência. Agora, é-
me insistente essa cabeça baixa, tão triste, tão
envergonhado, até mesmo me nego ao velho toque genital
e me recuso a sentir o velho orgasmo de velho; orgasmo
longe de mim, nem mental nem com esforço patriprotestal.
Assim, essa confissão assim não tem nada de poesia nem
estesia, é autobiografia, é evocação desoladora das minhas
vazantes, das angústias de infância que se empoçaram, com
precisão, dentro do miocárdio. Assim, insistentemente
cabisbaixo, olhando pro chão, pro papel em branco no chão,
o rodeio para dizer do abandono, aqui, no chão. Estou
cabisbaixo como os bichos rasteiros, rasteiro como
caramujo, com seu ascoroso corpo mole, concha dura
ascorosa; cabisbaixo como os cabiúnas. Estou, sim. Sim, eu
já disse, estou assim. Estou com saudade de mãe pɨˈdɾinɐ, vô
sɨɾiˈaku, vó bɾaziˈlĩna e siá mɐˈɾiɐ. Mas, õde?

171
SOÇOBRO

Dedei muita gente. Dedei o mundo. Dedei, mas nunca


dedurei ninguém. Dedei gente importante, hoje, fóssil,
corpus delicti, e gentio. Dedei gente telúrica, agora moura,
louca varrida; chuchei seios opulentos e aprendi, com a
seiva bruta dos seios chuchados, a separar os metais dos
minerais. Dedei corpos opulentos, mas corpos organizados,
fósseis (como tirar leite de vaca morta?); corpos lindos e
opulentos, mas corpos que me lesaram com seu habeas
corpus. Devorei sobremaneira corpos opulentos, ad
corpus, mas permanecem, hoje, primitivos, brutos,
obtusos. Há de ser por tudo isso meu corpus alienum, esse
jeito de ver a vida como soçobro?

172
QUASE

Cazy o quê, columi? Foi assim que vô sɨɾiˈaku reagiu


quando falei das hemorrhagias de sinhá ɫusiˈɐnɐ. Disse ao
vô sɨɾiˈaku que tinha visto sia ɫusiˈɐnɐ, amiga de minha mãe
pɨˈdɾinɐ, muito doente, cassy sem vida, cercada por beatas,
cazy na hora da morte. Sá ɫusiˈɐnɐ sofria de há muito com
dolorosas hemorrhagías. Falei tudo isso para meu vô
sɨɾiˈaku. Ele rugiu: cazy o quê, culumim? Insisti: vô, vi sinhara
ɫusiˈɐnɐ caje morta, vi os anjos do céu também em prantos,
a vida caisi fugindo de ɫusiˈɐnɐ. Caijo o quê, curumim? Não
insisti mais. Silenciei. Vô sɨɾiˈaku me olhou de soslaio e foi
me explicar o descaminho de palavra acaijo na vida e nos
sermões, me explicou que a palavra caise não existia na vida
e nos sermões porque não significava nada. Acaise,
colomim, admoestava meu vô sɨɾiˈaku, não diz nada, não
serve para nada, só serve para entoar ẽfamias e mintiras, e
esconder a desonhorra. Por causa de que, curumi? Por
causa de que, culumim? Tartamudeei, procurei ar e
respondi: meu vô, oontẽ, sonhei com sá ɫusiˈɐnɐ, sonhei
que ela ia morrer, sonhei que o céu ia desfolhar um rosal
sobre o túmulo de sá ɫusiˈɐnɐ, um rosal aquaijo fagueiro.
Vô sɨɾiˈaku chorou.

173
AFOGADO

Não havia ainda completado meus cinco anos de idade.


No final de tarde, fui espiar as cobras bebendo água à beira
do açuda, no sítio Aceno. Nunca vi o insólito, mas naquela
tarde ouvi uma estranha voz, a uozes de corupîra, a uox
ordenou que entrasse no açuda sozinho, entom obedeci e
a água deu no umbrigo. Caí num buraco, meu corpo
afundou e me afoguei nas águas doces do açuda. Vi como a
morte é silenciosa, estuosa e quente. Minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ,
por muitas vezes, me avisou do perijgóós do açuda:
visẽˈtiɲu, não entra sozinho nessas águas, tem burato, tem
lameyro, vossancé escorrega e morre. Teimei. Antes de me
afogar, ainda deu tempo ver uma fumaça tênue no céu e
ver a folhagẽ seca às margens do açuda; mas foi curypyrans
que me mandou nadar, sem saber, sobre as águas doces do
açuda, me puxou para baixo e me fez engolir água doce
sem parar. Não espirrei nem gritei. Fiquei em silêncio e sem
luta. De repente, caipora me resgatou do fundo do açuda e
falou em tom grosseirão: eu nõ disse, visẽˈtiɲu! Vossancê é
muito desobedeẽte! Era minha vó bɾɐzɨˈɫinɐ, minha
salvavida. Fora d’água, sorri, mas minha vó me chacoalhou,
apertou as minhas bochechas, me abraçou e me deu o mais
blãdo puxão de orelha da vida.

174
CHORO

Depois de uma semana de febre e de combate com a


morte, minha vó entregou a alma ao Criador. Notícia tão
tristis. Minha mãe gritou de tristiza e disse non, nõ, nã, nam
e naõ e chorou moito. A morte da minha vó fechou minha
mãe por dentro, e piorou seu çellençio, ficou ainda mais
calada e só nos falava da saudade pungintes. Também
nunca, ãte, vi minha mãe desensimesmada. Minha mãe
ficou ainda mais sisuda. Durante dias, ouvi gritos abafados,
ouvi gritos de desespero e suffrimento da minha mãe.
Minha mãe não quis mais o de-comer e não dormiu direito.
Três noites, e dois dias.... e só ouvi minha mãe churar
munto. Atirei-me, trjste, no canto da sala e chorei mouito
também. No terceiro dia do passamento da minha vó, fiquei
no canto da sala como folha seca. Também sequei. Minha
mãe chorou tanto, amgostiada, e seu choro me encheu de
desuaro. Minha mãe chorou muyto, e cansou e as lágrimas
da minha mãe umedeceram a terra sáfara do sítio ɐˈsenu.

175
SANGUE ESCURO

Estou só e com um grande corte no rosto. Sofri duro


golpe e minhas boas lembranças daquela paixão irracional,
de tão sombrias, já me são todas esquecíveis. Insisto: estou
só, triste e garanto que não estou magérrimo. Estou só,
mas embuchado de saudades. Insisto: minha solidão é a de
quem sofre uma canivetada. Escorre, intermitente, do meu
rosto, sangue escuro e a saliva da boca acre tem o mesmo
sabor do sangue escuro. Minha solidão é a mesma do banzo
do negro perdido em bravo mar e o sangue que escorre,
intermitente, do meu rosto, sempre escuro, expõe minhas
cicatrizes e me deixa, no amor à primeira vista, em
suspeição desigual entre os genuinamente iguais.

176
SOMBRAS

Não vi meu vô siɾiˈakʊ morto. As notícias me chegaram


bem depois do transpasse; por muitos meses, senti o cheiro
do vô siɾiˈakʊ e vi sua sombra esparzida pela casa no sitio
aˈsẽnʊ. Anos depois de sua morte, continuei a ver a sombra
do vô siɾiˈakʊ presa aos troncos dos arvoredos carregados
por caiporas. Minha vô bɾaziˈlĩna me contou tudo: a
infartação chegou à tarde, o crepúsculo desceu sobre a
montanha do sítio e as rãs entoaram um estranho cântico
da noite. No dia da libitina, minha vó bɾaziˈlĩna rezou a ave-
maria. Agora, depois de tantos anos, a sombra do vô
siɾiˈakʊ me causa um profundo doilo e torna mais cristalino
meu pranto, minha soidade.

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SOBRE O AUTOR

Vicente de Paula da Silva Martins

Nascido, em 1961, no Sítio Aceno, distrito de Alencar, Iguatu,


Ceará. Filho de Pedrina Maria da Silva Martins, lavadeira, e de
Juarez Pereira Maria, militar, falecidos. Seus avós paternos:
João Pereira Martins, agricultor, e Francisca Silva Martins,
doméstica, falecidos. Seus avós maternos: Francisco Ciriaco
da Silva, telheiro, e Brasilina Maria da Conceição, parteira,
falecidos. Segundo Ciriaco, o avô mais próximo do autor,
foram os índios Quixelôs, da raça tapuia, que soldaram as
palavras indígenas ig ou i (água) e catu (bom, boa) e criaram
o topônimo Iguatu com significado rio bom ou água boa. Vó
Brasilina, por sua vez, ensinou-lhe tudo sobre a denominação
original do Iguatu: o primeiro topônimo foi Venda, depois
Sitio Telha, Capela da Telha, Matriz da Telha, Povoação da
Telha, Missão da Telha, até que, em 1883, passou a ser
denominado simplesmente de Iguatu. Sua prosa poética, de
sabor telúrico, traz pedaços da ortografia dos séculos XIV
para piorar a compreensão do texto e, para melhor
desconhecer o sermo ruralis, e causar, assim, intencionais
mal-entendidos no leitor. Sua prosa revela cantos furiosos de
rãs que lembram mais aos grasnidos de patos. Na sua fase
adulta, fica clara sua oposição ao racionalismo cartesiano
desde que se tornou leitor do poeta Manoel de Barros e do
contista José J. Veiga. De Barros, aprendeu que “Todas as
coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe a
distância servem para poesia.” De Veiga, aprendeu que
escrever por escrever é a mais eficente válvula de escape
emocional ou um caminho para se apoderar de um lugar de
abstração das questões que rodeiam os homens de carne e
osso, desde a tenra idade.

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