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Gayeté
(Montaigne, D es livres)

Ex Libris
José M i n d l i n

mm
DO MESMO AÜCTOR :

UM ESTADISTA DO IMPÉRIO, Nabaco de Araújo, Sua Vida,


Suas Opiniões, Sua Epocha.

3 vol. in-4 , ene, 45$ooo; — br., 3o$ooo.


0

4
MINHA

FORMAÇÃO
POR,

JOAQUIM NABUCO
DA ACADEMIA BRASILEIRA

E DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPIIICO

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71-73, RUA MOREIRA CEZAR, 71-73 I 6, RUE DES SAINTS-PÈRES
RIO DE JANEIRO I PARIZ

1900
Foram tirados d'esta edição 5o exemplares numerados
em papel de Hollanda, os quaes levam a rubrica do
auctor.

N° 11
A

MEUS FILHOS
PREFACIO

A m a i o r parte de Minha Formação appareceu


p r i m e i r o no Commercio de S. Paulo, e m 1895;
depois f o i recolhida pela Revista Brazileira,
cujo agasalho n u n c a m e faltou... Os capítulos que
hoje accresceni são t o m a d o s a u m manuscripto
m a i s antigo. Só a conclusão é nova. N a revisão,
entretanto, dos diversos a r t i g o s foram feitas
emendas e variantes. A data do l i v r o para a l e i -
t u r a deve assim ser 1893-99, h a v e n d o nelle idéas,
m o d o s de ver, estados de e s p i r i t o , de cada um
d'esses annos. T u d o o que se d i z sobre os Esta-
dos-Unidos e a I n g l a t e r r a f o i escripto antes das
guerras de C u b a e do T r a n s v a a l , que m a r c a m
u m a n o v a éra p a r a os dois paizes. A l g u m a s das
allusões a amigos, c o m o a T a u n a y e a Rebouças,
hoje fallecidos, f o r a m feitas q u a n d o elles ainda
v i v i a m . F o i para m i m uma s i m p l e s distracção
r e u n i r agora estas paginas ; seria, porém, m a i s
VIII PREFACIO

do que isso u n i f o r m a l - a s e q u e r e r e l i m i n a r o q u e
não corresponde i n t e i r a m e n t e ás modificações
que solTri desde que ellas p r i m e i r o f o r a m e s c r i -
ptas.
A g o r a que ellas estão deante de m i m em
fôrma de l i v r o , e que as releio, p e r g u n t o a m i m
m e s m o q u a l será a impressão d'ellas... Está a h i
m u i t o da m i n h a vida... Será u m a impressão de
v o l u b i l i d a d e , de fluctuação, de d i l e t t a n t i s m o , se-
g u i d a de desalento, que ellas communicarão? O u
antes de consagração, p o r u m v o t o perpetuo, a
u m a tarefa capaz de saciar a sede de t r a b a l h o , de
esforço e de dedicação da m o c i d a d e , e s o m e n t e
realisada a tarefa d a v i d a , saciada a q u e l l a sede,
— ainda mais, t r a n s f o r m a d a p o r u m terremoto
a face da epocha, creado u m n o v o m e i o social,
e m que se t o r n a m necessárias o u t r a s qualidades
de acção, o u t r a s faculdades de calculo p a r a l u c t a s
de d i v e r s o caracter, — a r e n u n c i a á política,
depois de dez annos de r e t r a h i m e n t o forçado, e
deante de u m a seducção i n t e l l e c t u a l m a i s f o r t e ,
de u m a p e r s p e c t i v a final do m u n d o m a i s b e l l a e
m a i s r a d i a n t e ?... Sed magis gratiarum actio...
N o t o d o a impressão, eu receio, será m i s t u r a d a ;
as deficiências da n a t u r e z a apparecerão, cober-
tas pela clemência d a sorte-, vêr-se-ha o e p h e m e r o
e o fundamental... E m t o d o o caso não precisarei
de pleitear m i n h a própria causa, p o r q u e ella será
PREFACIO IX

sempre j u l g a d a pela raça m a i s generosa entre


todas... Si a l g u m a cousa o b s e r v e i no estudo do
nosso passado, é q u a n t o são futeis as nossas ten-
tativas p a r a d e p r i m i r , e c o m o s e m p r e v i n g a a
generosidade I n f e l i z de q u e m entre nós não
t e m o u t r o t a l e n t o o u o u t r o gosto sinão o de aba-
ter ! A nossa n a t u r e z a está v o t a d a á indulgência,
,á doçura, ao enthusiasmo, á s y m p a t h i a , e cada
u m pôde c o n t a r c o m a benevolência i l l i m i t a d a de
todos... E m nossa h i s t o r i a não haverá n u n c a
I n f e r n o , n e m siquer Purgatório.

Não dou, entretanto, o bon à tirer a este livro,


sinão p o r q u e estou c o n v e n c i d o de que elle não
enfraquecerá e m ninguém o espirito de acção e
de lucta, a coragem e a resolução de c o m b a t e r
p o r idéas que repute essenciaes, mas somente
indicará a l g u m a s das condições p a r a que o t r i u m -
p h o possa ser considerado u m a v i c t o r i a n a c i o n a l ,
o u u m a v i c t o r i a h u m a n a , e p a r a que a v i d a , sem
ser u m a o b r a d'arte, o que é dado a m u i t o p o u -
cas, realise ao menos u m a parcella de belleza, e
quando não t e n h a o o r g u l h o de t e r reflectido
b r i l h a n t e sobre o paiz, tenha o consolo de l h e
haver sido carinhosamente inoííensiva.
A política, entretanto, não f o i a m i n h a i m -
pressão d o m i n a n t e ao traçar estas r e m i n i s c e n -
cias... E u já me achava então fóra d'ella.
X PREFACIO

« E s t a m a n h ã , casaes de b o r b o l e t a s brancas,
douradas, azues, passam innumeras contra o
f u n d o de b a m b u s e s a m a m b a i a s da m o n t a n h a .
E u m prazer p a r a m i m vêl-as v o a r , não o seria,
porém, apanhal-as, pregal-as e m um quadro...
E u não q u i z e r a g u a r d a r d'ellas sinão a i m p r e s -
são v i v a , o frêmito de alegria d a n a t u r e z a , q u a n -
do ellas c r u z a m o ar, a g i t a n d o as flores. E m uma
collecção, é certo, eu as t e r i a s e m p r e deante da
v i s t a , m o r t a s , porém, c o m o uma poeira con-
servada j u n t a pelas cores sem vida... O modo
único para m i m de g u a r d a r essas b o r b o l e t a s eter-
n a m e n t e as mesmas, seria fixar o seu vôo i n s t a n -
tâneo pela m i n h a n o t a i n t i m a equivalente... C o m o
com as b o r b o l e t a s , a s s i m c o m todos os o u t r o s
d e s l u m b r a m e n t o s d a vida... De n a d a nos serve
r e c o l h e r o despojo; o q u e i m p o r t a , é só o r a i o
i n t e r i o r que nos f e r i u , o nosso contacto c o m elles...
e este c o m o que elles t a m b é m o l e v a m e m b o r a
comsigo. »
Este traço indecifrável, c o m que, em Petro-
p o l i s , t e n t e i h a annos m a r c a r u m a impressão de
que me f u g i a o c o n t o r n o a n i m a d o , explicará as
lacunas d'este l i v r o e m u i t a s de suas paginas...
J. N .

San-Sebastian (Guipúzcoa), 8 de Abril de 1900.'


MINHA FORMAÇÃO

COLLEGIO E ACADEMIA

Não preciso remontar ao collegio, ainda que


a l l i , p r o v a v e l m e n t e , tenha sido lançada n o s u b -
solo da m i n h a razão a camada que l h e serviu
de alicerce : o f u n d o hereditário d o m e u l i b e r a -
l i s m o . M e u pae nessa epocha (1864-1865) t i n h a
t e r m i n a d o a sua passagem do c a m p o conser-
v a d o r p a r a o l i b e r a l , m a r c h a inconscientemente
começada desde a Conciliação (i853—57), con-
sciente, pensada desde o discurso que ficou cha-
m a d o d o uti possidetis (1862). H o u v e diversas
migrações e m nossa h i s t o r i a política do lado
l i b e r a l p a r a o conservador. Os h o m e n s da Re-
gência, que e n t r a r a m na v i d a p u b l i c a o u s u b i r a m
ao p o d e r representando a idéa de revolução,
f o r a m c o m a m a d u r e z a dos annos r e s t r i n g i n d o
as suas aspirações, a p r o v e i t a n d o a experiência,
1
2 MINHA F O R M A Ç Ã O

estreitanclo-se no c i r c u l o de pequenas ambições


e n o desejo de simples aperfeiçoamento r e l a t i v o ,
que constitue o e s p i r i t o conservador. O senador
N a b u c o , porém, f o i q u e m i n i c i o u , g u i o u , a r r a s -
t o u u m g r a n d e m o v i m e n t o e m sentido con-
t r a r i o , do c a m p o conservador para o l i b e r a l , da
velha experiência para a n o v a experimentação,
das regras hieraticas de g o v e r n o p a r a as aspira-
ções ainda i n f o r m e s d a democracia. E l l e é q u e m
encarnará e m nossa h i s t o r i a , — entre a a n t i g a
« o l i g a r c h i a » e a R e p u b l i c a , que deve s a h i r delia
no d i a e m que a escravidão se esboroar, — o
espirito de r e f o r m a . E l l e é o nosso v e r d a d e i r o
L u i h e r o político, o f u n d a d o r d o livre-exame n o
seio dos p a r t i d o s , o r e f o r m a d o r da v e l h a egreja
saquaretna, que, c o m os T o r r e s , os P a u l i n o s , os
Eusebios, d o m i n a v a tudo n o paiz. Zacharias,
Saraiva, Sinimbú, c o m os seus g r a n d e s e peque-
nos satellites, O l i n d a mesmo, e m sua o r b i t a
independente, não f a z e m sinão escapar-se pela
tangente que elle traçou c o m a sua i n i c i a t i v a i n -
t e l l e c t u a l , a q u a l parece u m p h e n o m e n o da m e s m a
o r d e m que o p r o p h e t i s m o e que, p o r isso m e s m o ,
só lhe consentia t e r e m política u m papel q u a s i
i m p a r c i a l : o de oráculo.
N o collegio eu ainda não c o m p r e h e n d i a nada
d'isto, m a s sabia o l i b e r a l i s m o de m e u pae, e
nesse t e m p o o que elle dissesse o u pensasse e r a
u m d o g m a para m i m : eu não t i n h a sido a i n d a
i n v a d i d o pelo e s p i r i t o de r e b e l d i a e i n d e p e n d e n -
MINHA F O R M A Ç Ã O 3

cia, p o r essa petulância da mocidade que me


fará mais tarde, na Academia, contràpôr ás
vezes o meu modo de pensar ao delle, em logar
de apanhar religiosamente, como eu faria hoje,
cada palavra sua.
Era natural que eu seguisse aos quinze e deze-
seis annos a política de meu pae, mesmo porque
essa devoção era acompanhada de u m certo
prazer, de uma satisfação de orgulho. Entre as
sensações da infância que se me gravaram no
espirito, lembra-me u m dia em que, depois de ler
o seu Jornal, o inspector do nosso anno me cha-
m o u á mesa, — era u m velho actor do theatro
S. Pedro, que vivia da lembrança dos seus pe-
quenos papeis e do culto de João Caetano, —
para dizer-me com grande mysterio que meu
pae tinha sido chamado a S. Christovão para
organizar o gabinete. F i l h o de Presidente do
Conselho foi para m i m uma vibração de amor-
próprio mais forte do que teria sido, imagino, a
do primeiro prêmio que o nosso camarada Rodri-
gues Alves tirava todos os annos. E u sentia cahir
sobre m i m u m reflexo do nome paterno e ele-
vava-me nesse raio : era u m começo de ambição
politica que se insinuava em m i m . A atmosphera
que eu respirava em casa, desenvolvia n a t u r a l -
mente as minhas primeiras fidelidades á causa
liberal. Recordo-me de que nesse tempo tive uma
fascinação por Pedro L u i z , cuja ode á Polônia,
Os Voluntários da Morte, eu sabia de cór. De-
4 MINHA FORMAÇÃO

pois, a questão dos escravos, e m 1871, nos se-


p a r o u ; mais t a r d e a nossa c a m a r a d a g e m n a
G a m a r a nos t o r n o u a u n i r . E m casa eu v i a m u i t o
a T a v a r e s Bastos, que m e m o s t r a v a s y m p a t h i a ,
t o d o o g r u p o político da e p o c h a ; era p a r a m i m
estudante u m desvanecimento descer e s u b i r a
rua do O u v i d o r de braço c o m T h e o p h i l o O t -
t o n i ; u m prazer i r conversar n o Diário do Rio
com Saldanha M a r i n h o e ouvir Quintino Bo-
cayuva, que me parecia o j o v e n H e r c u l e s da
i m p r e n s a , e c u j o ataque c o n t r a M o n t e z u m a , a
propósito da capitulação de U r u g u a y a n a , m e
deu a p r i m e i r a idéa de um p o l e m i s t a deste-
mido.
N a situação e m que f u i p a r a S. P a u l o c u r s a r
o p r i m e i r o a n n o da A c a d e m i a , eu não p o d i a
d e i x a r de ser u m estudante l i b e r a l . Desde o p r i -
m e i r o anno f u n d e i u m pequeno j o r n a l p a r a atacar
o ministério Zacharias. M e u pae, que a p o i a v a
esse ministério, escrevia-me. que estudasse, m e
deixasse de jornaes e s o b r e t u d o de a t t i t u d e s polí-
ticas e m que se p o d i a ver, sinão u m a i n s p i r a -
ção, pelo m e n o s u m a tolerância da p a r t e delle.
E u , porém, prezava m u i t o a m i n h a independên-
cia de jornalista, a m i n h a emancipação de espi-
rito; q u e r i a sentir-me l i v r e , julgava-me c o m p r o -
m e t t i d o perante a m i n h a classe, a acadêmica, e
assim i l l u d i a , sem pensar desobedecer, o desejo
de meu pae, que, p r o v a v e l m e n t e , não ligava
grande importância á m i n h a opposição ao m i -
MINHA F O R M A Ç Ã O O

nisterio amigo. Nesse tempo as Cartas de


Erasmo, que p r o d u z i a m no paiz uma revivis-
cencia conservadora, me pareciam a obra p r i m a
da litteratura política.
A s minhas idéas eram, entretanto, uma mis-
tura e u m a confusão-, havia de tudo em meu
espirito. Ávido de impressões novas, fazendo os
meus primeiros conhecimentos com os grandes
auctores, c o m os livros de prestigio, com as idéas
livres, tudo o que era brilhante, original, harmo-
nioso, me seduzia e arrebatava por egual. E r a o
deslumbramento das descobertas continuas, a
efflorescencia do espirito : todos os seus galhos
cobriam-se espontaneamente de rosas ephemeras.
As Palavras de um Crente de Lamennais, a
Historia dos Girondinos de L a m a r t i n e , o Mundo
caminha de Pelletan, os Martyres da Liber-
dade de Esquiros eram os quatro Evangelhos
da nossa geração, e o Ashaverus de Quinet
o seu Apocalypse. V i c t o r H u g o e Henrique
Heine creio que seriam os poetas favoritos. Eu,
porém, não tinha, (nem tenho), systematisado,
unificado siquer o meu lyrismo. L i a de tudo
egualmente. O anno de 1866 f o i para m i m o
anno da Revolução Franceza : L a m a r t i n e ,
Thiers, Mignet, L o u i s Blanc, Quinet, Mirabeau,
Vergniaud e os Girondinos, tudo passa successi-
vamente pelo meu espirito-, a Convenção está
n'elle em sessão permanente. Apezar disso, eu
lia t a m b é m Donoso Cortez e Joseph de Mais-
C MINHA FORMAÇÃO

t r e , e até escrevi u m pequeno ensaio, c o m a


i n f a l l i b i l i d a d e dos dezesete annos, sobre a I n f a l -
l i b i l i d a d e do Papa.
Posso dizer que não t i n h a idéa a l g u m a , p o r -
que t i n h a todas. Q u a n d o entrei para a A c a d e m i a ,
levava a m i n h a fé c a t h o l i c a v i r g e m ; sempre m e
recordarei do espanto, do desprezo, da c o m -
m o ç ã o c o m que o u v i pela p r i m e i r a vez t r a t a r a
V i r g e m M a r i a em t o m l i b e r t i n o ; e m p o u c o
t e m p o , porém, não m e restava d a q u e l l a i m a -
gem sinão o pó d o u r a d o da saudade... A o ca-
t h o l i c i s m o só v i n t e e t a n t o s annos m a i s t a r d e
m e será dado v o l t a r p o r largos c i r c u i t o s de q u e
ainda u m d i a , si Deus me dér v i d a , t e n t a r e i re-
c o n s t r u i r o c o m p l i c a d o r o t e i r o . Basta-me dizer,
p o r e m q u a n t o , que a g r a n d e i n f l u e n c i a l i t t e r a r i a
que e x p e r i m e n t e i na v i d a , a e m b r i a g u e z de espi-
r i t o m a i s perfeita que se p o d i a dar, pelo nar-
cótico de u m estylo de t i m b r e sem egual e m
n e n h u m a l i t t e r a t u r a , o m e u coup de foudre i n t e l -
l e c t u a l , f o i a i n f l u e n c i a de Renan.
Politicamente o fundo liberal ficou intacto,
sem m i s t u r a siquer de t r a d i c i o n a l i s m o . Seria dif-
ficil colher-se e m t o d o o m e u p e n s a m e n t o u m
resquício de tendência conservadora. L i b e r a l , eu
o era de u m a só peça; o m e u peso, a m i n h a d e n -
sidade democrática era m á x i m a . Nesse tempo
d o m i n a v a a A c a d e m i a , c o m a seducção d a sua
p a l a v r a e de sua figura, o segundo José B o n i -
fácio. Os icaders da A c a d e m i a , F e r r e i r a de M e -
7
MINHA FORMAÇÃO 1

nezes, que, apezar de f o r m a d o , c o n t i n u a v a aca-


dêmico e chefe l i t t e r a r i o da m o c i d a d e , Castro
A l v e s , o poeta r e p u b l i c a n o de Gonzaga, bebiam-
lhe as palavras, absorviam-se nelle e m extasis.
R u y B a r b o s a era dessa geração-, mas R u y Bar-
bosa, hoje a m a i s poderosa m a c h i n a cerebral do
nosso paiz, que pelo n u m e r o das rotações e força
de vibração faz l e m b r a r os m a c h i n i s m o s que
i m p e l l e m através das ondas os grandes « t r a n -
satlânticos », l e v o u v i n t e annos a t i r a r do m i -
nério do seu talento, a endurecer e t e m p e r a r ,
o aço admirável que é agora o seu estylo.
A s m i n h a s idéas, porém, f l u c t u a v a m , no meio
das attracções differentes desse p e r i o d o , entre a
m o n a r c h i a e a r e p u b l i c a , sem preferencia repu-
blicana, talvez somente p o r causa do f u n d o here-
ditário de que fallei e da fácil c a r r e i r a política
que t u d o me augurava. U m l i v r o seductor e
interessante, — é a m i n h a impressão da epocha,
— o 19 de Janeiro, de E m i l i o O U i v i e r , tinha-
me deixado nesse estado de hesitação e de ín-
differença entre as duas fôrmas de governo, e
a France Nouvelle, de Prévost-Paradol, que eu
l i c o m v e r d a d e i r o encanto, não conseguiu, ape-
zar de t o d o o seu arrastamento, f i x a r a m i n h a
inclinação do lado da m o n a r c h i a p a r l a m e n t a r . O
que me d e c i d i u f o i a Constituição Ingleza de
Bagehot. D e v o a esse pequeno v o l u m e , que hoje
não será talvez l i d o p o r ninguém e m nosso paiz,
a m i n h a fixação monarchicâ inalterável; t i r e i
° MINHA FORMAÇÃO

delle, t r a n s f o r m a n d o - a a m e u modo, a ferra-


m e n t a toda c o m que t r a b a l h e i e m política,
e x c l u i n d o somente a o b r a d a abolição, c u j o
stock de idéas teve para m i m o u t r a procedência.
II

BAGEHOT

N ã o sei a q u e m devo a f o r t u n a de t e r conhe-


cido a o b r a de Bagehot, o u si a encontrei p o r
acaso entre as novidades da l i v r a r i a L a i l h a c a r ,
n o Recife. Si soubesse q u e m me poz em- com-
municação c o m aquelle g r a n d e pensador inglez,
eu l h e agradeceria as relações que f i z c o m elle
e m 1869. E desse anno a a m i z a d e l i t t e r a r i a i n t i m a
que t r a v e i c o m Jules Sandeau; a este q u e m m e
apresentou f o i , recordo-me bem, o actual conse-
l h e i r o Lafayette, da antiga f i r m a da Actnalidade,
Farnese, L a f a y e t t e e P e d r o L u i z , que eram,
c o m T a v a r e s Bastos, os directores da m o c i d a d e
l i b e r a l . A Actualidade fora talvez o p r i m e i r o
j o r n a l nosso de inspiração p u r a m e n t e r e p u b l i -
cana. A semente que g e r m i n o u depois, e m m e u
tempo, f o i t o d a espalhada p o r ella.
Antes de l e r Bagehot, eu t i n h a l i d o m u i t o
sobre a Constituição Ingleza. T e n h o deante de
m i m u m caderno de 1869, em que copiava as
1.
10 MINHA FORMAÇÃO

paginas que em minhas leituras mais me feriam


a imaginação, methodo de educar o espirito, de
adquirir a forma do estylo, que eu recommen-
daria, si tivesse auctoridade, aos que se destinam
a escrever, porque, é preciso fazer esta observa-
ção, ninguém escreve nunca sinão c o m o seu
período, a sua medida, Renan diria a sua eury-
thmia, dos vinte e u m annos. O que se faz mais
tarde na madureza é t o m a r somente o melhor
do que se produz, desprezar o restante, cortar
as porções fracas, as repetições, tudo o que desa-
fina ou que sobra : a cadência do período, a
fôrma da phrase ficará, porém, sempre a mesma.
O período de Lafayette ou de Ferreira Vianna,
de Q u i n t i n o ou de Machado de Assis, é hoje,
com as modificações da edade, que são inevitá-
veis em tudo, o mesmo c o m que elles come-
çaram. Está visto que eu não incluo nos começos
de u m escriptor as tentativas que cada u m faz
para chegar á sua forma própria; o que digo é
que o compasso se fixa logo m u i t o cedo, e de vez,
como a physionomia. Nesse l i v r o de minhas l e i -
turas de 1869, quarto anno da Academia, en-
contro no indice, c o m m u i t a Escravidão e m u i t o
Christianismo, m u i t a Eloqüência ingleza, m u i t o
F o x e Pitt.
Nesse tempo a Gamara dos C o m m u n s já tinha
para m i m o prestigio de p r i m e i r a Assembléa do
mundo, mas a realeza ingleza era ainda a dos
quatro Jorges, principalmente a de Jorge I I I , a
MINHA FORMAÇÃO H

bete noire de M a r t i n h o de Campos, ao passo que


a C â m a r a dos L o r d s , essa, c o m todo o c o r t e j o das
antigualhas dos T u d o r s , era p a r a m e u libera-
l i s m o , americanisado p o r L a b o u l a y e , sob o d i s -
farce de c a r n a v a l histórico, u m a odiosa procissão
aristocrática e m pleno i n u n d o m o d e r n o . D o s
dois governos, o inglez e o norte-americano, o
ultimo parecia-me mais livre, mais popular.
Por m o t i v o s differentes a m o n a r c h i a constitu-
cional, democratisada p o r instituições raüieaes,
seria ainda para o B r a s i l u m g o v e r n o preferível
á r e p u b l i c a , m e s m o pelo facto de já e x i s t i r ; mas,
e m these, entre essa m o n a r c h i a e a r e p u b l i c a , a
superioridade, si h a v i a , estava d o lado desta. A
France Nouvelle, — a u l t i m a p a r t e delia foi ver-
dadeiramente p r o p h e t i c a , — c o m toda a sua pre-
ferencia r a c i o c i n a d a pela m o n a r c h i a c o n s t i t u -
c i o n a l , deixou-me, c o m o já disse, suspenso,
porque t o d o o seu delicado apparelho t i n h a c o m o
peça p r i n c i p a l , o u pelo menos c o m o peça de
aperfeiçoamento, a dissolução regia, d i r e i t o pró-
p r i o d o m o n a r c h a , e exactamente essa espécie de
dissolução é que era para a nossa escola a m a n i -
vella do governo pessoal.
A Constituição Inglesa de Bagehot é o l i v r o
de u m pensador político, não de u m h i s t o r i a d o r ,
n e m de u m j u r i s t a . Q u e m lê a massa i n e x t r i c a v e l
de factos que se contêm, p o r exemplo, na His-
toria Constitucional do dr. Stubbs, o u u m desses
rápidos p a n o r a m a s de u m a epocha inteira, que de
12 MINHA FORMAÇÃO

repente Freeman nos desvenda em uma de suas


paginas, não encontra em Bagehot nada, histo-
ricamente faliando, que não lhe pareça, por
assim dizer, de segunda mão. O que, porém,
nem Freeman, nem Stubbs, nem Gneist, nem
Erskine May, nem Green, nem Macaulay con-
seguiu nos dar tão perfeitamente como Bagehot,
aliás u m leigo em historia e política, u m simples
amador, f o i o segredo, as molas occultas da
Constituição.
Freeman mostrára no seu pequeno l i v r o O
Crescimento da Constituição Ingleza que essa
Constituição nunca foi feita; que nunca nas
grandes luctas políticas da Inglaterra a voz da
nação reclamou novas leis, mas só o melhor cum-
primento das leis existentes; que a vida, a alma
da lei Ingleza foi sempre o precedente; que as
medidas para fortalecer a coroa alargaram os d i -
reitos do povo e vice-versa. T o d o elle é cheio de
idéas suggestivas que i l i u m i n a m , para o espirito,
u m grande campo de visão. De repente encon-
tra-se u m quasi paradoxo, desses que põem em
confusão todas as idéas moraes em nome da
experiência histórica. S. L u i z , dirá elle, com as
suas virtudes e prestigio, preparou o caminho
para o despotismo dos seus suecessores. N ã o
será o mesmo o effeito do reinado de Pedro I I ?
« Para conquistar a liberdade como u m a herança
perpetua ha epochas em que se precisa mais dós
vicios dos reis do que das suas virtudes. A
MINHA FORMAÇÃO 13

t y r a n n i a dos nossos senhores A n g e v i n o s a c c o r d o u


a l i b e r d a d e ingleza do seu túmulo momentâneo.
Si R i c a r d o , João e H e n r i q u e tivessem sido reis
c o m o A l f r e d o e S. L u i z , o b a c u l o de Estevão
L a n g t o n , a espada de R o b e r t o F i t z w a l t e r , n u n c a
t e r i a m r e l u z i d o á testa dos Barões e do p o v o de
Inglaterra. »
B a g e h o t não t e m dessas intuições r e t r o s p e -
ctivas, dessas vistas geraes locaes; o que t e m ,
é a comprehensão, a adivinhação do m a c h i -
n i s m o que vê f u n c c i o n a r . T o m a n d o a C o n s t i t u i -
ção ingleza c o m o si fosse u m relógio de cathe-
d r a l , o u t r o s saberão m e l h o r a h i s t o r i a desse
relógio, o m o d o da sua construcção, as alterações
p o r que passou, as vezes que esteve parado, o u
explicarão o s y m b o l i s m o das figuras que elle põe
e m m o v i m e n t o , q u a n d o o seu poderoso m a r t e l l o
bate as h o r a s do d i a ; elle, porém, conhece
m e l h o r o m e c h a n i s m o actual, que s i m p l i f i c a
explicando-o.
Bagehot, póde-se ver, era u m espirito de a f f i -
nidades e s y m p a t h i a s quasi republicanas, c o m o
Grote, Stuart M i l l , John Morley, e todo o r a -
d i c a l i s m o p o s i t i v i s t a inglez. B a n q u e i r o de n a s -
cença, elle é u m e x e m p l o m a i s dessa s i n g u l a r
attracção p a r a os estudos especulativos o u de
p o l i t i c a pura, que p o r vezes se n o t o u n a alta
finança ingleza, c o m o próprio Grote, M r . Gos-
chen, o u Gladstone. O seu gênio era desses que
r e n o v a m todos os assumptos que t r a t a m . N ã o
14 MINHA F O R M A Ç Ã O

não sei si me engano, mas acredito q u e a Cons-


tituição ingleza é u m a esphinge, da q u a l f o i elle
q u e m decifrou o enigma.
A s idéas que devo a B a g e h o t são poucas, mas
são todas ellas, p o r assim dizer, chaves de sys-
temas e concepções políticas, de v e r d a d e i r o s
estados do espirito m o d e r n o . F o i elle, p o r exem-
plo, q u e m m e deu a idéa do que elle c h a m o u
governo de gabinete, c o m o sendo a alma da
m o d e r n a Constituição ingleza. « N o g o v e r n o de
gabinete, d i z elle, o poder l e g i s l a t i v o escolhe o
executivo, espécie de commissão, que elle encar-
rega do que respeita á parte p r a t i c a dos negócios
e assim os dois poderes se h a r m o n i s a m , p o r q u e
o poder legislativo pôde m u d a r a sua c o m m i s -
são, si não está satisfeito c o m ellá o u si l h e pre-
fere o u t r a . E, no e m t a n t o , — t a l é a delicadeza
do mechanismo, — o p o d e r e x e c u t i v o não fica
a b s o r v i d o a p o n t o de obedecer s e r v i l m e n t e , por-
q u a n t o t e m o d i r e i t o de fazer a legislatura com-
parecer perante os eleitores, p a r a que estes l h e
componham uma Câmara mais favorável ás
suas idéas. »
Essa é a p r i m e i r a idéa, o u g r u p o de idéas,
que d e v i a B a g e h o t : o g o v e r n o de gabinete, o
gabinete commissão da Câmara, o gabinete
sahido da C â m a r a t e n d o o d i r e i t o de d i s s o l v e r a
C â m a r a , dissolução ministerial (não a C o r o a só,
nem a Coroa com um gabinete contrario á
C â m a r a ) : t u d o , e m s u m m a , que depois daqueíle
MINHA F O R M A Ç Ã O 15

pequeno l i v r o se t o r n o u o u t r o s t a n t o s logares
c o m m u n s , m a s que elle f o i o p r i m e i r o a revelar,
a fixar.
E elle q u e m destróe os dois m o d o s clássicos
de e x p l i c a r a Constituição ingleza : o p r i m e i r o ,
que o systema inglez consiste na separação dos
tres poderes; o segundo, que consiste n o e q u i -
líbrio delles. Sua idéa é que os dois poderes, o
executivo e o legislativo, se u n e m p o r u m laço
que é o Gabinete e que, de facto, assim só ha u m
poder, que é a C â m a r a dos C o m m u n s , de que o
gabinete é a principal commissão. « O systema
inglez, d i z elle, não consiste na absorpção do
poder e x e c u t i v o pelo l e g i s l a t i v o ; consiste n a
fusão delles. » O r i v a l desse systema é o que elle
c h a m o u systema presidencial. Essas designações
são hoje usadas p o r todos, mas são todas delle.
« A qualidade d i s t i n c t i v a d o g o v e r n o p r e s i d e n c i a l
é a independência m u t u a do legislativo e do exe-
c u t i v o , ao passo que a fusão e a combinação
desses poderes serve de p r i n c i p i o ao g o v e r n o de
gabinete. »
Cada u m a das suas palavras, c o m p a r a n d o os
dois systemas de g o v e r n o , merece ser pesada.
R e s u m i n d o essas paginas, eu c o n t r i b u o de certo
m e l h o r p a r a a educação dos jovens políticos,
c h a m o a sua attenção p a r a p r o b l e m a s m a i s de-
licados, do que se lhes désse idéas' m i n h a s .
« C o m p a r e m o s p r i m e i r o , d i z elle, esses dois go-
vernos e m t e m p o s calmos. E m u m a epocha c i v i -
16 MINHA F O R M A Ç Ã O

lisada, as necessidades da administração e x i g e m


que se façam constantemente leis. U m dos p r i n -
cipaes objectos da legislação é o lançamento dos
i m p o s t o s . A s despesas de u m g o v e r n o c i v i l i s a d o
v a r i a m sem cessar e d e v e m v a r i a r , si o g o v e r n o
faz o seu dever... Si as pessoas encarregadas de
prevêr todas essas necessidades da administração
não são as que f a z e m as leis, haverá a n t a g o -
nismo entre ellas e as o u t r a s . Os que d e v e m
m a r c a r a importância dos i m p o s t o s entrarão se-
g u r a m e n t e e m c o n f l i c t o c o m os que t i v e r e m re-
c l a m a d o o seu lançamento. Haverá p a r a l y s i a n a
acção do p o d e r e x e c u t i v o , p o r falta de leis neces-
sárias, e e r r o n a da l e g i s l a t u r a , p o r f a l t a de res-
ponsabilidade : o executivo não é m a i s d i g n o
desse nome, desde que não pode e x e c u t a r o q u e
elle decide; a l e g i s l a t u r a , p o r seu lado, desmo-
ralisà-se pela sua independência m e s m a , q u e l h e
p e r m i t r e t o m a r certas decisões capazes de neu-
t r a l i s a r as do p o d e r r i v a l . »
D a desordem f i n a n c e i r a q u e resulte dessa f a l t a
de i n t e l i i g e n c i a entre e x e c u t i v o e l e g i s l a t i v o e
dessa fabricação de orçamentos sem o g o v e r n o
q u e m é o p r i n c i p a l interessado n a perfeição d a l e i
de meios, q u e m é o responsável ? A q u e m se p o d e
responsabilisar o u afastar da gestão dos negó-
cios públicos? « N ã o h a ninguém a c e n s u r a r
sinão u m a legislatura, reunião n u m e r o s a de pes-
soas diversas, que é difíicil p u n i r e q u e estão a r -
madas, ellas mesmas, do d i r e i t o de p u n i r . »
MINHA FORMAÇÃO 17

N a I n g l a t e r r a , o systema é dilíerente. E m um
m o m e n t o grave, o gabinete p o d e r e c o r r e r á dis-
solução: n a A m e r i c a , é p r e c i s o esperar c o m pa-
ciência, p a r a se resolver q u a l q u e r c o n f l i c r o de
opinião entre o e x e c u t i v o e o l e g i s l a t i v o , que
expire o p r a z o de u m delles. Até lá elles guer-
reiam-se i m p l a c a v e l m e n t e , c o m o dois p a r t i d o s
rivaes.
Supponha-se que não h a m o t i v o possível de
c o n f l i c t o : « O s governos de gabinete são os edu-
cadores dos povos, os governos presidenciaes
não o são: pelo c o n t r a r i o , p o d e m corrompel-os.
Diz-se que a I n g l a t e r r a i n v e n t o u esta f o r m u l a :
a opposição de Sua Magestade : que, p r i m e i r o ,
dentre todos os Estados, ella reconheceu que o
d i r e i t o de c r i t i c a r a administração é u m d i r e i t o
>

tão necessário na organização política c o m o a


própria administração. Essa opposição que se
encarrega da c r i t i c a , a c o m p a n h a necessariamente
o g o v e r n o de gabinete. Q u e magnífico t h e a t r o
para os debates, que m a r a v i l h o s a escola de i n s -
trucção p o p u l a r e controvérsia p o l i t i c a oíferece
a todos u m a Assembléa L e g i s l a t i v a ! U m dis-
curso que é a h i p r o n u n c i a d o p o r u m estadista
eminente, u m m o v i m e n t o de p a r t i d o p r o d u z i d o
por u m a grande combinação p o l i t i c a , eis os me-
lhores m o d o s conhecidos até hoje de despertar,
a n i m a r e i n s t r u i r u m povo... O s viajantes que
na A m e r i c a p e r c o r r e r a m m e s m o os Estados do
N o r t e , isto é, o grande paiz onde se mostra p o r
I

18 MINHA F O R M A Ç Ã O

excellencia o g o v e r n o p r e s i d e n c i a l , o b s e r v a r a m
que a nação não t e m gosto p r o n u n c i a d o pela p o -
l i t i c a e que não se e n c o n t r a u m a opinião t r a b a -
l h a d a c o m t o d o o acabado e t o d a a perfeição que
se nota na I n g l a t e r r a . . . Sob u m g o v e r n o p r e s i -
dencial, o p o v o não t e m sinão no m o m e n t o das
eleições a sua parte de influencia... N a d a excita
t a l povo a f o r m a r para si u m a opinião o u u m a
educação, c o m o o faria sob u m g o v e r n o de g a -
binete. Sem d u v i d a a sua l e g i s l a t u r a é u m thea-
t r o p a r a os debates, mas esses debates são c o m o
que prólogos não seguidos de peças ; não t r a z e m
n e n h u m desfecho, p o r q u e não se pode m u d a r a
administração ; não estando o p o d e r á disposição
da l e g i s l a t u r a , ninguém presta attenção aos de-
bates legislativos. O executivo, esse g r a n d e c e n t r o
do p o d e r e dos empregos, fica inabalável. N ã o se
pôde m u d a l - o . O m o d o de ensino que, pela edu-
cação do nosso e s p i r i t o p u b l i c o , p r e p a r a as nos-
sas resoluções e esclarece os nossos juízos, não
existe sob este systema. U m paiz presidencial
não t e m necessidade de f o r m a r cada d i a opiniões
estudadas e não t e m m e i o a l g u m de as f o r m a r . »
O m e s m o se dá c o m a acção da i m p r e n s a , que
t a m b é m não pôde deslocar a administração. N a
I n g l a t e r r a , o Times t e m feito m u i t o s ministérios:
nada de semelhante se p o d i a d a r n a A m e r i c a
N i n g u é m se p r e o c c u p a dos debates do C o n -
gresso, elles não dão r e s u l t a d o a l g u m , e n i n -
guém lê os longos artigos de f u n d o , porque
MINHA F O R M A Ç Ã O 19

não tèm i n f l u e n c i a sobre os acontecimentos.


M a s não é só o poder l e g i s l a t i v o que é fraco
p o r essa divisão, é t a m b é m o e x e c u t i v o . « N a
I n g l a t e r r a , u m gabinete solido obtém o concurso
da l e g i s l a t u r a e m todos os actos que t e m p o r fim
f a c i l i t a r a acção a d m i n i s t r a t i v a : elle é, p o r assim
dizer, elle próprio, a l e g i s l a t u r a . M a s u m Presi-
dente pôde ser embaraçado pelo poder legisla-
t i v o e o é q u a s i i n e v i t a v e l m e n t e . A tendência na-
t u r a l dos m e m b r o s de t o d a a l e g i s l a t u r a é i m p o r
a sua personalidade. Elles q u e r e m satisfazer u m a
ambição louvável o u censurável; q u e r e m , sobre-
t u d o , deixar vestígios d a sua a c t i v i d a d e própria
nos negócios públicos. »
A l é m do e n f r a q u e c i m e n t o causado p o r esse
a n t a g o n i s m o do l e g i s l a t i v o , o systema p r e s i d e n -
cial enfraquece o poder executivo, diminuindo-Uic
o seu valor intrínseco. « O s h o m e n s cie Estado
entre q u e m a nação t e m o d i r e i t o de escolher sob
o g o v e r n o presidencial são de q u a l i d a d e m u i t o
i n f e r i o r aos que l h e offerece o g o v e r n o de g a b i -
nete, e o c o r p o eleitoral encarregado de escolher
a administração é t a m b é m m u i t o menos p e r s -
picaz. »
T o d a s essas vantagens, porém, são ainda mais
preciosas e m t e m p o s difficeis, do que nos t e m p o s
c a l m o s : « U m a opinião p u b l i c a b e m f o r m a d a ,
u m a l e g i s l a t u r a que i n f u n d a respeito, hábil e
d i s c i p l i n a d a , u m executivo convenientemente
escolhido, u m p a r l a m e n t o e u m a administração
20 MINHA FORMAÇÃO

que não se e m b a r a ç a m r e c i p r o c a m e n t e , mas que


c o o p e r a m j u n t o s , são vantagens c u j a i m p o r -
tância é m a i o r q u a n d o se está a braços c o m
grandes questões, do que q u a n d o se t r a t a de ne-
gócios i n s i g n i f i c a n t e s ; maior, quando se t e m
m u i t o que fazer, do que u m t r a b a l h o fácil. A c -
crescentemos, porém, que o g o v e r n o p a r l a m e n -
t a r , e m que existe u m gabinete, possúe, além
disso, u m mérito p a r t i c u l a r m e n t e u t i l nos t e m p o s
t o r m e n t o s o s : o de t e r s e m p r e á sua disposição
u m a reserva de p o d e r p r o m p t a p a r a operar,
q u a n d o c i r c u m s t a n c i a s e x t r e m a s o exijam... »
« Sob u m g o v e r n o p r e s i d e n c i a l , nada seme-
l h a n t e é possível. O g o v e r n o a m e r i c a n o gaba-se
de ser o g o v e r n o do p o v o soberano; mas, q u a n d o
apparece uma crise súbita, c i r c u m s t a n c i a n a
q u a l o uso da s o b e r a n i a se t o r n a s o b r e t u d o ne-
cessário, não se sabe onde e n c o n t r a r o p o v o so-
berano. H a um Congresso eleito por u m pe-
ríodo f i x o , q u e pode ser d i v i d i d o e m fracções
d e t e r m i n a d a s , de q u e se não pôde apressar n e m
r e t a r d a r a duração : h a u m P r e s i d e n t e e s c o l h i d o
também por um lapso de t e m p o f i x o e i n a m o -
v i v e l d u r a n t e t o d o e l l e ; todos os a r r a n j o s estão
previstos de m o d o determinado. N ã o ha em
t u d o isso nada de elástico; t u d o , p e l o c o n t r a r i o ,
é r i g o r o s a m e n t e especificado e d a t a d o . Aconteça
o q u e acontecer, não se pôde p r e c i p i t a r , n e m
adiar. E u m governo encommendado de ante-
m ã o , e, c o n v e n h a o u não, ande b e m ou mal,

V
MINHA F O R M A Ç Ã O 21

preencha o u não as condições desejadas, a lei


o b r i g a a conserval-o. »
E m t e m p o de g u e r r a o u de relações d i p l o -
máticas c o m p l i c a d a s , é q u e se vê o defeito desse
svstema e m t o d a a l u z . Esse systema, d i z Ba-
gehot, póde-se r e s u m i r e m u m a p a l a v r a : — « go-
vernar pelo desconhecido ». « N i n g u é m n a A m e -
rica t i n h a a m e n o r idéa d o que podia ser M. L i n -
c o l n n e m d o q u e elle p o d e r i a fazer. S o b o go-
v e r n o de gabinete, pelo c o n t r a r i o , os h o m e n s de
Estado p r i n c i p a e s são f a m i l i a r m e n t e conhecidos
de todos, não somente pelos seus nomes, m a s
pelas suas idéas. N ó s n e m m e s m o imaginamos
que se possa c o n f i a r o exercício da soberania a
u m desconhecido. »
D e v o outras idéas a B a g e h o t . A n t e s de o l e r ,
eu t i n h a o p r e c o n c e i t o democrático c o n t r a a he-
reditariedade, o p r i n c i p i o d y n a s t i c o e a j n f i u e n c i a
aristocrática. F o i esse democrata q u e m e fez
c o m p r e h e n d e r c o m o o q u e elle c h a m o u as partes
imponentes da Constituição ingleza, « as que p r o
d u z e m e c o n s e r v a m o respeito das populações ».
são tão i m p o r t a n t e s c o m o as efficicntes, « as q u e
dão á o b r a o m o v i m e n t o e a direcção ». Phrases
como. estas gravam-se n o p e n s a m e n t o : « U m a
segunda e r a r i s s i m a condição de g o v e r n o effe-
c t i v o é a calma d o e s p i r i t o n a c i o n a l , isto é, essa
disposição de e s p i r i t o que p e r m i t t e atravessar,
sem perder o equilíbrio, todas as agitações neces-
sárias que as peripécias dos acontecimentos en-
"1'1 MINHA F O R M A Ç Ã O

c e r r a m . N u n c a n o estado de b a r b a r i a ou de m e i a
civilização u m p o v o p o s s u i u essa q u a l i d a d e . A
massa da gente sem instrucção na I n g l a t e r r a não
p o d e r i a o u v i r hoje t r a n q u i l l a m e n t e estas s i m p l e s
palavras : Ide escolher o vosso governo; seme-
l h a n t e idéa lhes p e r t u r b a r i a a razão e lhes f a r i a
receiar u m p e r i g o c h i m e r i c o . A vantagem incal-
culável (o itálico é m e u ) das instituições impo-
nentes em um paiz livre é que cilas impedem essa
catastrophe. Si a nomeação dos governantes se
faz sem abalo, é graças á existência apparente
de um governo não sujeito d eleição. A s classes
pobres e i g n o r a n t e s i m a g i n a m ser g o v e r n a d a s
p o r u m a r a i n h a hereditária e que g o v e r n a pela
graça de Deus, q u a n d o n a r e a l i d a d e são gover-
nadas p o r u m gabinete e u m p a r l a m e n t o com-
posto de h o m e n s escolhidos p o r ellas m e s m a s e
que sáem das suas i i l e i r a s . »
A p o m p a , a magestade, o a p p a r a t o t o d o da
realeza e n t r a v a a s s i m para m i m nos artifícios
necessários p a r a g o v e r n a r e satisfazer a i m a g i -
nação das massas, q u a l q u e r que seja a c u l t u r a
da sociedade; a realeza passava n a t u r a l m e n t e
p a r a a classe das instituições a q u e H e r b e r t Spen-
cer c h a m o u ecrimoniaes, c o m o os trophéos, os
presentes, as visitas, as prosternações, os títu-
los, etc. « N a d a m a i s p u e r i l na a p p a r e n c i a do
que o e n t h u s i a s m o dos Inglezes pelo c a s a m e n t o
do príncipe de Galles. M a s n e n h u m s e n t i m e n t o
está m a i s e m h a r m o n i a c o m a n a t u r e z a h u -
MINHA FORMAÇÃO 23

mana. A s m u l h e r e s , que c o m p õ e m ao menos


m e t a d e d a raça h u m a n a , preoccupam-se cem
vezes m a i s da u m casamento do que de u m m i -
nistério. » E além : « E m q u a n t o a espécie h u -
m a n a t i v e r m u i t o coração e pouca razão, a rea-
leza será u m g o v e r n o forte, p o r q u e se h a r m o n i s a
c o m os s e n t i m e n t o s espalhados p o r t o d a parte, e
a Republica u m g o v e r n o fraco, p o r q u e se d i r i g e
á razão. »
A idéa principal que recebi de B a g e h o t f o i
essa da s u p e r i o r i d a d e .pratica do g o v e r n o de ga-
binete inglez sobre o systema presidencial ame-
r i c a n o : p o r o u t r a , que u m a m o n a r c h i a secular,
de origens feudaes, cercada de tradições e fôr-
mas aristocráticas, c o m o é a ingleza, p o d i a ser
u m g o v e r n o m a i s directa e i m m e d i a t a m e n t e do
p o v o do que a r e p u b l i c a . « U m a vez que o p o v o
a m e r i c a n o escolheu o seu Presidente, elle não
pôde m a i s nada, e o m e s m o se dá c o m o c o l -
legio eleitoral que lhe s e r v i u de intermediário. »
A C â m a r a dos C o m m u n s , essa, porém, faz e
desfaz o gabinete, de m o d o que o g o v e r n o está
sempre nas m ã o s da representação nacional. Si
se dá u m desaccordo entre elles, e m q u e o m i n i s -
tério s u p p o n h a ter de seu lado a opinião, d i s -
solve a câmara, e, dentro de dias, a nação se
p r o n u n c i a . C o m p a r a d o s os dois governos, o
norte-americano íicou-me parecendo u m relógio
que m a r c a as horas da opinião, o inglez, u m
relógio que m a r c a até os segundos.
Ul

1871-1873. A Reforma.

Sahi assim da A c a d e m i a , tendo v e n c i d o o p r e -


conceito que t o r n a r e l u c t a n t e p a r a certos espí-
r i t o s a fôrma m o n a r c h i c a , isto é, o p r e c o n c e i t o
c o n t r a a não-electividade do chefe do Estado.
E u v i a c l a r a m e n t e nessa não-electividade o se-
gredo d a s u p e r i o r i d a d e do m e c h a n i s m o m o n a r -
c h i c o sobre o r e p u b l i c a n o , c o n d e m n a d o a i n t e r -
rupções periódicas, q u e são p a r a certos paizes
revoluções certas. P a r a não s a h i r d a r e l o j o a r i a , a
r e p u b l i c a era, p a r a m i m , u m relógio de que fosse
preciso r e n o v a r a m o l a no fim de p o u c o t e m p o 5
a monarchia, um relógio p o r assim d i z e r per-
petuo. N ã o f o i pequena acquisição esta que d e v i
a B a g e h o t ; sem ella, sem t e r d a m o n a r c h i a par-
l a m e n t a r u m a concepção que m e fizesse acceital-a
como um apparelho mais sensível á opinião,
mais rápido e m a i s d e l i c a d o e m a p a n h a r - l h e as
nuanças f u g i t i v a s , g u a r d a n d o ao m e s m o t e m p o
inalterável a tradição de g o v e r n o e a aspiração
MINHA F O R M A Ç Ã O 25

p e r m a n e n t e d o destino n a c i o n a l , eu teria sido


arrastado irresistivelmente para o movimento
republicano que começava. A i n d a assim, não
f o i logo, de u m a vez, que cheguei a d o m i n a r as
m i n h a s fascinações.
E m 1871 estava n o p o d e r o ministério R i o -
B r a n c o . Nesses tres annos de 7 1 , 72 e 73 escrevi
na Reforma, p o r vezes, a r t i g o s políticos. O u t r a s
coisas, e n t r e t a n t o , m e occupavam então m a i s
do que a p o l i t i c a . A v i d a , a sociedade, o m u n d o ,
as lettras, a arte, a p h i l o s o p h i a m e s m o , t i n h a m
p a r a m i m m a i o r encanto d o que ella. Desde
m u i t o m o ç o h a v i a u m a preoccupação e m m e u
espirito que ao m e s m o t e m p o m e a t t r a h i a p a r a
a p o l i t i c a e e m certo sentido era u m a espécie de
a m u l e t o c o n t r a ella : a escravidão. Posso dizer
que desde 186S v i t u d o e m nosso paiz através
desse p r i s m a . N a s tres defesas de j u r y q u e fiz na
A c a d e m i a , — o m e u a m i g o A l b e r t o de C a r v a l h o
ha de r i r , — alcancei tres galés perpétuas. E r a m
todos c r i m e s de escravos, o u antes i m p u t a d o s a
escravos, — devo ser coherente hoje c o m o que
p r o v a v e l m e n t e disse no j u r y . N o m e u 5 anno n o
o

Recife levei a p r e p a r a r u m l i v r o que ainda g u a r d o ,


u m a espécie de Perdigão M a l h e i r o inédito, sobre
a escravidão entre nós. E u t r a d u z i a d o c u m e n t o s
do Anti-Slavery Repórter para m e u pae que, de
1868 a 1871, f o i q u e m m a i s i n f l u i u p a r a fazer
a m a d u r e c e r a idéa da emancipação, f o r m u l a d a
e m 1866 e m projecto de lei p o r S. V i c e n t e ( P i -
2
26 MINHA F O R M A Ç Ã O

menta Bueno). A iniciativa, o desejo de que se


ovasse a questão ao Parlamento, estou conven-
cido, partiu do Imperador, que não descançou
emquanto o não conseguiu, a p r i m e i r a vez de
Zacharias, a segunda de Rio-Branco. E u já disse
uma vez que possuo o autographo, por lettra
delle, da carta em resposta aos abolicionistas
francezes, carta que f o i o ponto de partida de
tudo. E u tomava o maior interesse na attitude
de meu pae nessa questão; desejava para elle a
gloria de ser pelo menos o S u m n e r brasileiro.
Recordo-me do prazer que tive quando, em
1869, ^e e
referiu que se tinha posto de ac-
m e

cordo com Salles Torres-Homem para m o v e r e m


a idéa no Senado,- e que Salles estava escrevendo
sobre a escravidão u m dialogo na fôrma de
Platão.
E u disse ha pouco que não me t i n h a sido fácil
desprender-me da m i n h a attracção para tudo que
era democracia ultra. O I m p e r a d o r estava em
1871 a emprehender a sua p r i m e i r a visita á
Europa. U m artigo que então escrevi na Re-
forma, com o t i t u l o Viagem do Imperador, dá
bem idéa de quanto era pequeno nesse tempo o
meu angulo de inclinação monarchica. É ainda
u m escriptò de mocidade, não ha nelle sinão mo-
cidade, mas o traço i n d i v i d u a l que t e m cada es-
criptor já está fixo, não mudará mais 5 — não só
não mudará mais, como, vinte annos depois,
quandò eu pensarem voltar, no escrever, á fôrma
MINHA F O R N A Ç Ã O ^/

l i t t e r a r i a , é ás m e d i d a s da m i n h a phrase dos v i n t e
e u m annos q u e h e i de t o r n a r . Esse a r t i g o é quasi
republicano. As m i n h a s novas idéas inglezas
não e s t a v a m a i n d a senhoras da casa, não t i n h a m
força p a r a eclipsar as projecções, e m p a r t e p h a n -
tasticas, que nesse t e m p o , c o m a sua l a n t e r n a
mágica, L a b o u l a y e acabava de fazer do m u n d o
americano. P o r isso eu aconselhava ao I m p e -
r a d o r que, em vez de i r á velha E u r o p a , fosse á
joven A m e r i c a :
« S o b r e t u d o elle c o m p r e h e n d e r i a u m a coisa.
A o v e r os E s t a d o s - U n i d o s á frente do progresso
i n d u s t r i a l e m o r a l , c o m p r e h e n d e r i a q u e os reis
p o d e m b e m ser u m a hypothese, u m l u x o , u m a
superfetação. A o v e r u m a sociedade a m p l a m e n t e
l i b e r a l e l i v r e , governando-se sem r e i , elle c o m -
p r e h e n d e r i a que, e m certas epochas, os povos po-
d e m dispensar q u a l q u e r t u t e l a . A o v e r a família
h o n r a d a e respeitada », — eu referia-me á p u r e z a
do l a r e ao respeito dos A m e r i c a n o s pela m u l h e r ,
— « t o r n a d a u m a religião; ao vêr a religião feita
o laço m o r a l das a l m a s e a trituração dos c u l t o s
chegando q u a s i ao n u m e r o dos indivíduos sem
p r o d u z i r o u t r o effeito sinão o de u m a m a i o r
tolerância e m a i o r f r a t e r n i d a d e , ao vêr a c i v i l i -
sação crescendo ». — e m t e r r a v i r g e m , — « c o m o
u m a a r v o r e de enormes raízes e de grande som-
bra • ao vêr a v a n g u a r d a do progresso occupada
p o r u m a r e p u b l i c a », — não m e r e c i a eu u m p r i -
meiro premio-Laboulaye? — « o Imperador
28 MINHA F O R M A Ç Ã O

perderia o c u l t o m o n a r c h i c o em que commun-


g a m os reis. A o ver, p o r o u t r o l a d o , esse poder
que passa de u m soldado p a r a u m l e n h a d o r ,
p a r a u m alfaiate, sempre o m e s m o , i n t e g r o e
perfeito, elle, g u a r d a n d o o a m o r da família, q u e
cresceria, p o r q u e já não era a d y n a s t i a , p e r d e r i a
o c u l t o da hereditariedade. »
Essa era a m i n h a l i n g u a g e m dos v i n t e e u m
annos; nella encontra-se u m m i n i m u m de mo-
n a r c h i s m o e u m m a x i m u m de r e p u b l i c a n i s m o , o
que p r o d u z esta preferencia p o r u m a monarchia
sem hereditariedade, sem c e r i m o n i a l , sem vene-
ração, t o d a ao n i v e l c o m m u m , c o m o a m a g i s t r a -
t u r a p o p u l a r da Casa B r a n c a . E só g r a d u a l m e n t e
que a i n f l u e n c i a do systema m o n a r c h i c o vae cres-
cendo e prevalecendo sobre esse r a d i c a l i s m o es-
pontâneo, esse e g u a l i t a r i s m o inflexível. A o s v i n t e
e u m annos de certo eu não teria c o m p r e h e n d i d o
esta m á x i m a p o l i t i c a de m e u pae no Senado :
« A u t i l i d a d e r e l a t i v a das leis prefere á u t i l i d a d e
absoluta » ; o r e l a t i v o não existia p a r a m i m .
Nesses annos o p a r t i d o l i b e r a l leva o ministé-
r i o R i o - B r a n c o p a r a onde quer. S e g u r a m e n t e a
opinião l i b e r a l teve m u i t o m a i s p o d e r sobre
aquelle ministério do que sobre o ministério S i -
n i m b ú o u q u a l q u e r o u t r o do seu próprio p a r t i d o ,
— excepto o ministério D a n t a s , p o r q u e neste o
Presidente do Conselho era impressionável á me-
n o r censura do l i b e r a l i s m o . A v e r d a d e é que o m i -
nistério R i o - B r a n c o foi u m ministério r e f o r m i s t a
MINHA F O R M A Ç Ã O -V

c o m o desde o gabinete Paraná não se t i n h a v i s t o


o u t r o e não se v i u n e n h u m depois. O governo
t i n h a o p r u r i d o das r e f o r m a s , não talvez p o r i n -
clinação própria, mas p a r a d e s a r m a r a o p p o s i -
ção l i b e r a l . E m dois p o n t o s somente elle mos-
trou-se conservador, á m o d a a n t i g a : n a sua pre-
venção c o n t r a a eleição d i r e c t a , que p r o v a v e l -
m e n t e era t a m b é m do I m p e r a d o r , e e m relação
ao equilíbrio do P r a t a . E m sua p o l i t i c a externa
manteve firme a tradição conservadora, ou
m e l h o r , a p o l i t i c a t r a d i c i o n a l de antes da Tríplice
Alliança, e a m a i o r p r o b a b i l i d a d e é que a p o l i
tica l i b e r a l da Alliança, c o n t i n u a n d o , depois da
g u e r r a , nos t r a t a d o s de paz, teria creado u m a
situação no P r a t a m u i t o diversa da situação está-
vel e pacifica que r e s u l t o u dessa m u d a n ç a de
a t t i t u d e dos conservadores. E m t u d o m a i s f o i
u m ministério i n n o v a d o r c o m o o p a r t i d o l i b e r a l
não t e r i a dado egual. 0 p a n n o das r e f o r m a s era
f o r n e c i d o pelos l i b e r a e s ; era t o d o de padrão
l i b e r a l ; m a s o mestre conservador t a l h a v a nelle
c o m u m a largueza de tesoura que faria c h o r a r
no poder toda a alfaiataria c o n t r a r i a . N a questão
religiosa, p r i n c i p a l m e n t e , á a t t i t u d e de R i o -
B r a n c o só se p o d e r i a c h a m a r conservadora p o r
ser P o m b a l i n a , u l t r a regalista. O p a r t i d o l i b e r a l ,
e m vez de e x u l t a r , dizia-se roubado, pleiteava as
suas patentes de invenção, sua m a r c a s de fabrica.
Nesse t e m p o , e d u r a n t e alguns annos, o radica-
l i s m o me arrasta-, eu sou, p o r e x e m p l o , dos que
30 MINHA FOMAÇÃO

t o m a m parte mais a c t i v a na c a m p a n h a maçonica


de 1873 c o n t r a os bispos e c o n t r a a Egreja. E n t r o
até nas idéas de Feijó, de u m a E g r e j a N a c i o n a l ,
independente da d i s c i p l i n a r o m a n a : faco confe-
rências, escrevo artigos, p u b l i c o f o l h e t o s . N ã o
quizera m e s m o hoje r e t i r a r u m a só p a l a v r a d o
que disse então, a d v o g a n d o a l i b e r d a d e religiosa
m a i s p e r f e i t a ; entendo ainda, hoje m a i s d o q u e
nunca, depois d a esplendida experiência d o p o n -
t i f i c a d o de Leão X I I I , que a E g r e j a tem tudo
a g a n h a r c o m a l i b e r d a d e e que o f u t u r o do
m u n d o pôde pertencer á alliança, já sellada n o
actual p o n t i f i c a d o , da E g r e j a C a t h o l i c a c o m a
democracia. N ã o é sob Leão X I I I que o l i b e r a -
l i s m o ha de m a i s ser suspeito, e p r o v a v e l m e n t e
este p o n t i f i c a d o não será u m acàdente feliz, m a s
sim um p o n t o de p a r t i d a d e f i n i t i v o , a d a t a de
uma nova éra na h i s t o r i a do C a t h o l i c i s m o . Do
que preciso fazer r e n u n c i a , e m fav<*r das traças
que os c o n s u m i r a m , é de t u d o o que nesses opus-
culos escrevi e m e s p i r i t o de a n t a g o n i s m o á r e l i -
gião, c o m a m a i s soberba incomprehensão de
seu papel e da necessidade, s u p e r i o r a qualquer
o u t r a , de a u g m e n t a r a s u a i n f l u e n c i a , a sua acção
f o r m a t i v a , reparadora, e m t o d o o caso consola-
dora, em nossa vida publica e em nossos
costumes nacionaes, n o f u n d o transmissível da
sociedade. N a q u e l l e t e m p o , porém, c o m o teria
eu a c o l h i d o u m a manifestação c o m o esta, cada
vez m a i s v e r d a d e i r a , m a s de que só hoje s i n t o a
MINHA F O R M A Ç Ã O 31

p r o f u n d e z a e o alcance, — do senador N a b u c o ,
e m 1860, no Senado : « H a duas necessidades, a
m e u vêr, m u i t o i m p o r t a n t e s na situação m o r a l
do nosso paiz : — a primeira è a diffusão do
p r i n c i p i o r e l i g i o s o n o interesse da família e da
sociedade... » ? Posso dizer, fallando a nova
g i r i a s c i e n t i f i c a , que eu não t i n h a então nada
de estático, era t o d o dynamico.
Um ministério c o n s e r v a d o r que se encarrega
de realisar as r e f o r m a s liberaes, p r o d u z , forçosa-
m e n t e , no c a m p o l i b e r a l , u m a grande confusão.
P a r a c u e m começava, c o m o eu, a v i d a p o l i t i c a
automática na i m p r e n s a e no c l u b do p a r t i d o , a
p o l i t i c a do ministério pouco i m p o r t a v a , o alvo
c o n t i n u a v a o m e s m o : não obstante, i n s t i n t i v a -
mente, pela voz do sangue, a d i s c u t i r c o m o g o v e r n o
conservador que fazia as r e f o r m a s liberaes, eu
preferia d i s c u t i r c o m a fracção que se separara do
nosso p a r t i d o ^ ) a r a f o r m a r o p a r t i d o r e p u b l i c a n o .
Já nesse t e m p o a questão da f o r m a de g o v e r n o
começa a d o m i n a r e m m i m todas as o u t r a s ; eu
só e x c e p t u a r i a a dos escravos, mas a lei de 28 de
setembro estava v o t a d a e a ella se t i n h a seguido
u m a espécie de trégua dada á escravidão. T r a v o ,
então, na Reforma, u m c o m b a t e c o m a Repu-
blica, do p o n t o de vista m o n a r c h i c o . Si, e m 1871,
eu p o d i a pretender, c o m o disse, o prêmio ame-
r i c a n o L a b o u l a y e , e m 1873, no m e u anno de
fixação m o n a r c h i c a , eu e n t r a r i a e m concurso
p a r a o prêmio inglez Bagehot, c o m esses artigos
32 MINHA FORMAÇÃO

t a m b é m da Reforma. O seguinte t r e c h o basta


p a r a m o s t r a r , c o m p a r a d o ao da Viagem do Im-
perador, a m u d a n ç a que eu t i n h a s o f f r i d o e m
dois annos :
« É preciso r e a l m e n t e ser i l l u d i d o , o u pelas
palavras o u pelos s y m b o l o s , p a r a c h a m a r ao r e i
do systema parlamentar u m tyranno. Nem
m e s m o pode comparar-se u m L i n c o l n c o m u m a
V i c t o r i a : o Presidente a m e r i c a n o g o v e r n a , a d m i -
n i s t r a , t e m á sua disposição m i l h a r e s de e m p r e g o s
públicos, é o chefe de seu p a r t i d o , t e m uma
responsabilidade i n t e i r a n o g o v e r n o e u m a ini-
ciativa poderosa ; pode ser u m Washington
ou, s i quizer, u m Johnson. O soberano inglez
não t e m p o d e r a l g u m 5 o p a r l a m e n t o i n d i c a - l h e
o m i n i s t r o que elle c h a m a , não p o d e n d o c h a m a r
o u t r o ; esse m i n i s t r o i m p o s t o torna-se o chefe do
E s t a d o , apresenta as leis a que o soberano não
pode negar sancção, e dissolve a câmara si ella
lhe r e t i r a a confiança-, e e m q u a n t o o m i n i s t r o
governa, o r e i somente reina. N ã o terá esse
tyranno inglez m u i t o m e n o s p o d e r do que o
primeiro magistrado a m e r i c a n o ? »
Dessas idéas eu não devia s a h i r m a i s , c o m o se
verá-, não são c o m o as de 1871, a r r a s t a m e n t o ,
e n t h u s i a s m o , paixão-, são dessas f o r m a s do espi-
r i t o que não d e i x a m m a i s a i n t e l l i g e n c i a tomar
o u t r a fôrma; têm p a r a ella a transparência, a
clareza da evidencia, c o m o si fossem, e r e a l m e n t e
são, p r i m e i r o s t h e o r e m a s de g e o m e t r i a p o l i t i c a .

#
IV

ATTRACÇÃO DO 31UXDO

Nesses annos de m o c i d a d e a que me estou r e -


f e r i n d o , a p o l i t i c a era, de certo, p a r a m i m u m a
f o r t e excitação ; e m q u a l q u e r scena do m u n d o o
lance político interessava-me, prendia-me, agi-
t a v a - m e : p o r isso mesmo, eu não era, n u n c a f u i ,
o que se c h a m a v e r d a d e i r a m e n t e u m político, u m
e s p i r i t o c a p a ^ d e v i v e r na pequena p o l i t i c a e de
d a r a h i o que t e m de m e l h o r . E m m i n h a v i d a
v i v i m u i t o da P o l i t i c a , c o m P grande, isto é, da
p o l i t i c a que é h i s t o r i a , e a i n d a hoje v i v o , é certo
que m u i t o menos. M a s para a p o l i t i c a p r o p r i a -
m e n t e d i t a , que é a local, a do paiz, a dos p a r t i -
dos, t e n h o esta d u p l a incapacidade : não só u m
m u n d o de coisas me parece s u p e r i o r a ella, c o m o
t a m b é m m i n h a curiosidade, o m e u interesse,
vae sempre para o p o n t o onde a acção do d r a m a
contemporâneo u n i v e r s a l é m a i s c o m p l i c a d a o u
mais intensa.
Sou antes u m espectador do m e u século do que
3'l MINHA F O R M A Ç Ã O

do m e u p a i z ; a peça é p a r a m i m a civilisação, e
se está r e p r e s e n t a n d o e m todos os t h e a t r o s d a
h u m a n i d a d e , ligados h o j e pelo telegrapho. U m a
affeição m a i o r , u m interesse m a i s próximo, u m a
ligação m a i s i n t i m a , faz c o m que ascena, q u a n d o
se passa no B r a s i l , t e n h a p a r a m i m importância
especial, mas isto não se c o n f u n d e c o m a p u r a
emoção i n t e l l e c t u a l ; é u m prazer o u uma dôr.
p o r assim d i z e r domestica, que interessa o c o r a -
ção; não é u m g r a n d e espectaculo, que p r e n d e e
d o m i n a a i n t e l l i g e n c i a . A abolição n o B r a s i l m e
interessou m a i s do que todos os o u t r o s factos o u
séries de factos de que f u i contemporâneo; a
expulsão do I m p e r a d o r m e a b a l o u m a i s p r o f u n -
d a m e n t e do que todas as quedas de t h r o n o s o u
catastrophes nacionaes que a c o m p a n h e i de longe :
p o r u l t i m o , não e x p e r i m e n t e i n e n h u m a sensação
tão cheia, tão p r o l o n g a d a , tão v i v a , d u r a n t e
mezes i n i n t e r r o m p i d o s , c o m o d u r a n t e a u l t i m a
r e v o l t a , q u a n d o se o u v i a o canhão da g u e r r a
c i v i l no m a r e o silencio a i n d a p e i o r d o t e r r o r e m
terra. E m t u d o i s t o , porém, h a m u i t o pouca
p o l i t i c a 5 nesses tres q u a d r o s , p o r e x e m p l o , a
p o l i t i c a suspende-se ; o q u e h a é o d r a m a h u m a n o
u n i v e r s a l de que f a l l e i , t r a n s p o r t a d o p a r a nossa
t e r r a . N ã o se p o d e r i a d i z e r isto da l u c t a dos p a r -
t i d o s , n e m do que, e x c l u s i v a m e n t e , é c o n s i d e r a d o
politica pelos profissionaes. E s t a é u m a absor-
pção c o m o a de q u a l q u e r h a b i t o , c i r c u m s c r e v e a
curiosidade a u m campo visual restricto : é u m a
MINHA F O R M A Ç Ã O 35

espécie de occlusão das palpebras. Esse g o z o


especial do político na l u c t a dos p a r t i d o s não o
c o n h e c i ; p r o c u r e i n a p o l i t i c a o lado m o r a l , i m a -
ginei-a u m a espécie de c a v a l l a r i a m o d e r n a , a
c a v a l l a r i a andante dos princípios e das r e f o r m a s ;
t i v e nella emoções de t r i b u n a , p o r vezes de popu-
l a r i d a d e , mas não passei d'ahi : do l i m i a r ; n u n c a
o o f f i c i a l i s m o me t e n t o u , n u n c a a sua deleitação
m e foi r e v e l a d a ; n u n c a r e n u n c i e i a imaginação,
a curiosidade, o d i l e t t a n t i s m o , p a r a prestar siquer
os p r i m e i r o s votos de obediência ; só v i de m u i t o
longe o véo j a c i n t h o e p u r p u r a do S a n c t u m San-
c t o r u m , — (tão de longe, q u e me pareceu u m
v e l h o reposteiro verde e a m a r e l l o ) , — p o r t r a z
do q u a l o Presidente do C o n s e l h o c o n t e m p l a v a
sósinho face a face a majestade do poder m o d e -
rador.
I s t o q u e r dizer que a m i n h a ambição f o i todn
em politica de o r d e m puramente intellectual,
c o m o a do orador, do poeta, do escriplor, do
r e f o r m a d o r . N ã o ha, sem d u v i d a , ambição m a i s
alta do que a do estadista, e eu não pensaria e m
r e d u z i r os h o m e n s eminentes que m e r e c e m
aquelle n o m e e m nossa p o l i t i c a ao papel de polí-
ticos de profissão; mas p a r a ser u m h o m e m de
g o v e r n o é indispensável f i x a r , l i m i t a r , encerrar a
imaginação nas coisas do paiz e ser capaz de
p a r t i l h a r , si não das paixões, de certo dos precon-
ceitos dos p a r t i d o s , t e r c o m elles a mais perfeita
c o m m u n h ã o de v i d a , individual vita> consuctuoi-
30 MINHA F O R M A Ç Ã O

nem. Assim, quando eu tivesse, que não tive, as


qualidades precisas, estava impedido para a poli-
tica pela incompressibilidade do meu interesse
humano. Politicamente, receio ter nascido cos-
mopolita. N ã o me seria possivel reduzir as
minhas faculdades ao serviço de uma religião
local, renunciar a qualidade que ellas têm de
voltar-se espontaneamente para fófa.
Assim, por exemplo, desses annos de m i n h a
vida, a qüe me refiro : em 1870, o meu maior
interesse não está na politica do Brasil, está em
Sedan. N o começo de 1871, não está na formação
do gabinete Rio-Branco, está no incêndio de
Pariz. E m 1871, durante mezes, está na lucta
pela emancipação, — mas não será t a m b é m
nesse anno o Brasil o ponto da terra para o qual
está voltado o dedo de Deus? E m 1872, o que
me occupa o espirito é o centenário dos Luziadas:
estou então i m p r i m i n d o u m l i v r o sobre Camões,
e a quem trabalha em u m l i v r o , apezar do seu
nenhum valor litterario, como o mostrou Theo-
philo Braga, não sobra m u i t a attenção ou inte-
resse para dar ao que acontece em redor de si.
1873 é o meu anno, como disse, de fixação mo-
narchica, mas também, — o que mostra que a
razão amadurece por partes, — o anno em que
me atiro contra a Egreja com o furor iconoclasta
da mocidade, suppondo estar dizendo coisas
novas, nunca ouvidas p o r ella em 19 séculos de
lucta, pensando que ella vae gemer sob os golpes
MINHA F O R M A Ç Ã O 37

das terríveis h y p e r b o l e s que l h e a r r o j o e m p a m -


phletos e artigos da Reforma : theocracia, inva-
são nltramontana, conquista jesuíta !.... A p e z a r
disso, o anno de 1873 é n o m e u r e g i s t r o o a n n o
da p r i m e i r a v i a g e m á E u r o p a , facto de meta-
m o r p h o s e pessoal, que é e m m i n h a v i d a a passa-
g e m da c h r y s a l i d a para a b o r b o l e t a .
N ã o posso m a i s , — s i feliz, si i n f e l i z m e n t e , é
u m a questão que m e l e v a r i a m u i t o longe deslin-
dar, — não posso m a i s sentir o que sentia aos
24 annos, q u a n d o pela p r i m e i r a vez m e fiz de
v a p o r , hoje eu p r e f e r i r i a fazer-me de vela, p a r a a
E u r o p a . C o m o já v i Leão X I I I carregado n a
sedia gestatoria e t i v e a f o r t u n a de fallar l o n g a -
m e n t e a sós c o m u m Papa, creio q u e não faria
m a i s u m a v i a g e m p a r a conhecer n e n h u m g r a n d e
personagem, excepto, talvez, o i m p e r a d o r da
C h i n a . Já que não v i u m rei m o u r o e m Granada,
passo b e m s e m ter v i s t o A b d u l - H a m i d n o Bos-
p h o r o . M e s m o o i m p e r a d o r da C h i n a talvez eu
m e contentasse e m conhecel-o pela i m a g e m q u e
m e d a r i a m delle, si eu os avistasse, dois rising
men da a l t a d i p l o m a c i a européa, de q u e m sou
amigo, que t i v e r a m occasião de p e n e t r a r n o
r e c i n t o inviolável e de estudar a i n f a n t i l f i g u r a d o
I n c o g n o s c i v e l sob as afflições da g u e r r a japoneza.
O que me interessa nelle, b e m se o pôde i m a g i -
nar, não é o seu t h r o n o de almofadas de seda, o
seu porta-voz, os seus c a c h i m b o s , os seus p e r f u -
madores, os seus collares: é a o r i g i n a l i d a d e que o
3
38 MINHA F O R M A Ç Ã O

envolve, maravilhosa como o próprio sobrena-


t u r a l , é a psychologia accumulada de séculos.
E m 1873, porém, a m i n h a ambição de co-
nhecer homens celebres de toda ordem era sem
limites ; eu tel-os-ia ido procurar ao fim do
mundo. Do mesmo modo, com os logares. O
que eu queria, era vêr todas as vistas do globo,
tudo o que t e m arrancado u m grito de admiração
a u m viajante intelligente. Nessa qualidade de
câmara photographica só lastimava não ter o d o m
da ubiqüidade. Esta febre itinerante passou-me.
também. Posso ler, sem perigo, qualquer geo-
graphia nova, o Elisée Reclus i n t e i r o ; é só u m a
boa pagina de Pausanias ou de Strabão, c o m os
seus nomes antigos, que me perturba ainda. Os
mais preciosos livros da m i n h a estante i n t i m a
são os meus Baedekers; diversos logares a h i
estão marcados com u m signal, e si eu pudesse,
tomaria ainda, para visital-os,o bilhete (hoje não
se diz mais o bastão), do peregrino; mas são os
logares somente a que está associada, — ha
annos eu teria dito uma impressão de m i n h a
vida, — uma das grandes impressões da huma-
nidade, uma das suas revelações na arte, ou na
religião.
O que em matéria de viagem, de paizagens me
tentaria hoje, — quem sabe si não é uma pura
restituição de u m atavismo longínquo? o meu avô
materno, que se transplantou em i53o para Per-
nambuco e fundou o Morgado do Gabo, João Paes
MINHA. FORMAÇÃO 39

B a r e t t o , era de V i a n n a , — seria, talvez, o L i m a , si


eu tivesse certeza de ter deante delle a m e s m a i m -
pressão dos soldados r o m a n o s que c h a m a r a m ás
suas m a r g e n s Campos-Elyseos e l h e d e r a m o
bello n o m e de Lethes. A verdade é que sinto cada
dia m a i s forte o a r r o c h o d o berço : cada vez sou
m a i s servo da gleba b r a s i l e i r a , p o r essa l e i s i n -
g u l a r d o coração que prende o h o m e m á pátria
c o m t a n t o mais força q u a n t o m a i s i n f e l i z ella é
e q u a n t o maiores são os riscos e incertezas que
elle m e s m o corre.
N'esse t e m p o , porém, n a m i n h a éra antes de
C h r i s t o , e m p l e n o p o l y t h e i s m o da mocidade, o
m u n d o i n t e i r o me a t t r a h i a p o r e g u a l ; cada n o v a
fascinação da arte, d a natureza, da l i t t e r a t u r a e,
t a m b é m , da p o l i t i c a , era a mais f o r t e ; e u q u i z e r a
conhecer as celebridades de todos os p a r t i d o s .
Depois do Papa, a m a i s n o b r e figura da E u r o p a
era para m i m o conde d e C h a m b o r d , que acabava
de rejeitar a coroa de França p a r a não r e p u d i a r a
b a n d e i r a b r a n c a ; u m H e n r i q u e V, b e m p o u c o
parecido c o m H e n r i q u e I V , e, no emtanto, eu
contava c o m o u m a boa f o r t u n a a noite que passei
no salão de M o n s i e u r T h i e r s . 1

i. A respeito dessa visita, eis a nota que encontro no meu


j o r n a l de 1874 : « 10 de Janeiro. Á noite f u i com 0 Itajubá
(0 nosso a r b i t r o em Genebra) á casa de Monsieur Thiers, hotel
Bagration, f a u b o u r g Saint-Honoré. Apresentado a Monsieur
T h i e r s , a Madame T h i e r s , a Mlle Dosne. Apresentado a Jules
Simon. Itinerário quo este me deu : vêr Pierrefonds. Coucy,
Reims, Tarascon, A r i e s e a Grande Chartreuse. Conversei com
40 MINHA F O R M A Ç Ã O

A v i a g e m á E u r o p a e m taes condições não


p o d i a d e i x a r de ser para m i m , c o m o f o i , o eterno
i m p u l s o dado ao pêndulo i m a g i n a t i v o . P e l o sen-
t i m e n t o , pela a t t i t u d e , pelo e m p r e g o d a v i d a ,
acredito t e r sido, e m m e u p l a n o i n f e r i o r , u m a
das m a i s consistentes f i g u r a s de nossa politica*,
acredito m e s m o que passarei nella c o m o u m
h o m e m de u m a só idéa, persona unius dramatis,
p o r q u a n t o a m i n h a f i d e l i d a d e m o n a r c h i c a pôde
ser considerada, c o m o a de A n d r é Rebouças,
ainda u m u l t i m o c o m p r o m i s s o , u m a gratidão,
u m episódio da libertação dos escravos. Q u a n t o
ás affinidades espontâneas, porém, ás s y m p a t h i a s
naturaes, ao m o v i m e n t o i n t e r i o r d o e s p i r i t o , d i f f i -
c i l m e n t e se encontrará u m pêndulo que descreva
u m r a i o de oscillação m a i s l a r g o d o que a m i n h a
imaginação e a m i n h a curiosidade. O que é u m
h o m e m político assim d i l e t t a n t e , v i a j a n t e , a q u e m
t u d o attráe egualmente, que a d m i r a as g r a n d e s
construcçõessociaes, q u a l q u e r que seja o systema
da a r c h i t e c t u r a , c o n v e n c i d o de que e m t o d o s h a
o m e s m o e s p i r i t o , p o r q u e o e s p i r i t o creador é
u m só ?
N ó s , brasileiros, o m e s m o póde-se d i z e r dos
o u t r o s povos americanos, p e r t e n c e m o s á A m e r i c a
pelo s e d i m e n t o novo, fluctuante, d o nosso e s p i -

Monsieur Thiers sobre o brasil. Opinião delle sobre a des-


cgualdade da raça negra, de que provem o direito não de
£scravtsdha mas deforçal-a ao trabalho, como a Hollanda,
f

faz com os Javanezes. »

»
MINHA F O R M A Ç Ã O 41

r i t o , e á E u r o p a , p o r suas camadas estratificadas.


Desde que temos a m e n o r c u l t u r a , começa o
predomínio destas sobre aquelle. A nossa i m a g i -
nação não pôde d e i x a r de ser européa, isto é, de
ser humana; ella não pára na P r i m e i r a Missa no
B r a s i l , p a r a c o n t i n u a r d'ahi r e c o m p o n d o as t r a -
dições dos selvagens que g u a r n e c i a m as nossas
praias n o m o m e n t o da d e s c o b e r t a ; segue pelas
civilisações todas da h u m a n i d a d e , c o m o a dos
europeus, c o m q u e m temos o m e s m o f u n d o
c o m m u m de língua, religião, arte, d i r e i t o e poesia,
os m e s m o s séculos de civilisação a c c u m u l a d a , e,
p o r t a n t o , desde que haja u m raio de c u l t u r a , a
m e s m a imaginação histórica.
E s t a m o s assim c o n d e m n a d o s á m a i s terrível
das instabilidades, e é isto o que explica o facto
de tantos sul-americanos p r e f e r i r e m v i v e r na
Europa... N ã o são os prazeres do r a s t a q u e r i s m o ,
c o m o se c h r i s m o u e m P a r i z a v i d a elegante dos
m i l l i o n a r i o s da S u l - A m e r i c a ; a explicação é mais
delicada e m a i s p r o f u n d a : é a attracção de afíini-
dades esquecidas, m a s não apagadas, que estão
e m todos nós, da nossa c o m m u m o r i g e m européa.
A instabilidade a que m e r e f i r o , p r o v e m de que
na A m e r i c a falta á paizagem, á v i d a , ao h o r i z o n t e ,
á a r c h i t e c t u r a , a t u d o o que nos cerca, o f u n d o his-
tórico, a perspectiva h u m a n a ; e que n a E u r o p a
nos falta a pátria, isto é, a fôrma e m que cada
u m de nós f o i vasado ao nascer. De u m lado do
m a r sente-se a ausência do m u n d o ; do o u t r o , a
42 MINHA F O R M A Ç Ã O

ausência do paiz. O s e n t i m e n t o e m nós é b r a s i -


l e i r o , a imaginação européa. A s paizagens todas
do N o v o - M u n d o , a floresta amazônica o u os pam-
pas argentinos, não v a l e m p a r a m i m u m t r e c h o
da V i a A p p i a , u m a v o l t a da estrada de Salerno
a A m a l f i , u m pedaço do Caes do Sena á s o m b r a
do v e l h o L o u v r e . N o m e i o do l u x o dos t h e a t r o s ,
da moda, da p o l i t i c a , somos sempre squatters.
c o m o si estivéssemos ainda d e r r i b a n d o a m a t t a
virgem.
E u sei bem, para não sahir do R i o de J a n e i r o ,
que não ha nada m a i s e n c a n t a d o r d vista do que,
ao acaso, a escolha seria impossível, os p a r q u e s
de S. Clemente, o c a m i n h o que m a r g e i a o aque-
d u c t o d e P a i n e i r a s na direcção da T i j u c a , a p o n t a
de S. João, c o m o P ã o de Assucar, v i s t a do F l a -
mengo ao c a h i r do sol. M a s t u d o isto é a i n d a , p o r
assim dizer, u m t r e c h o do p l a n e t a de que a
h u m a n i d a d e não t o m o u posse; é c o m o u m Paraíso
Terrestre antes das p r i m e i r a s l a g r i m a s do h o m e m ,
u m a espécie de j a r d i m i n f a n t i l . N ã o q u e r o dizer
que haja duas h u m a n i d a d e s , a alta e a b a i x a , e
que nós sejamos desta u l t i m a : talvez a h u m a n i -
dade se renove u m dia pelos seus galhos a m e r i -
canos; mas, no século e m q u e v i v e m o s , o espi-
rito humano, que é u m só e t e r r i v e l m e n t e centra-
lista, esta do o u t r o lado do Atlântico: o N o v o -
M u n d o para t u d o o que é imaginação esthetica o u
histórica é u m a v e r d a d e i r a solidão! e m que aquelle
espirito se sente tão longe das suas r e m i n i s c e n -
MINHA F O R M A Ç Ã O ^3

cias das suas associações de idéas, c o m o si o


passado t o d o da raça h u m a n a se l h e tivesse apa-
gado da lembrança e elle devesse bulbüciar de
n o v o , s o l e t r a r o u t r a vez, c o m o çreança, t u d o o
q u e a p p r e n d e u sob o céo da Attica...
' E m u m soberbo l i v r o h e s p a n h o l , que faz h o n r a
á Sociedade de Jesus, Pequeneces, r o m a n c e de
u m p a d r e jesuíta, que é u m g r a n d e auctor, L .
C o l o m a , ha u m p e r s o n a g e m q u e d i z a cada i n s -
tante — Usted me entiende. T o d o s nós temos
a l g u m conhecido que p o n t u a as suas phrases c o m
esse fatigante entende? que os nervos do m a r q u e z
de Paraná não p o d i a m supportar. O entende? do
indivíduo que quer forçar o o u v i n t e a nada per-
der do que elle d i z , é m u i t o diverso da f o r m u l a
h a b i t u a l c o m que o i m b e c i l m a r q u e z de V i l l a -
m e l o n e x p r i m i a o que lhe faltava força para pen-
sar. H a t a m b é m pontos, idéas, m o d o s de sentir
que o e s c r i p t o r desejaria expressar p o r u m
o u t r o Usted me entiende, l e v a n t a n d o apenas a
p o n t a do véo ao seu pensamento, a l l u d i n d o a
elle v a g a m e n t e , sem nada precisar, de facto, sem
nada dizer. Cada u m de nós é só o raio esthetico
que ha n o i n t e r i o r do seu pensamento, e, em-
q u a n t o não se conhece a n a t u r e z a desse raio, não
se t e m idéa do que o h o m e m r e a l m e n t e é. Nesta
confissão da m i n h a formação p o l i t i c a , devo, para
não deixar v e r somente a mascara, o persona-
gem, d a r u m a espécie de p h o t o g r a p h i a dos s y m -
bolos que se i m p r i m i r a m e r e p r o d u z i r a m m a i s
44 MINHA F O R M A Ç Ã O

p r o f u n d a m e n t e no m e u cérebro. A s s i m se r e -
conhecerá que a p o l i t i c a não f o i sinão u m a refrac-
ção daquelle íilete l u m i n o s o que t o d o s t e m o s n o
espirito.
A i n s t a b i l i d a d e a que m e estou r e f e r i n d o , está
g r a n d e m e n t e m o d i f i c a d a : a d u a l i d a d e desappare-
ceu em parte, não tão perfeitamente como
em m e u a m i g o Taunay... Este, apezar do seu
sangue de C r u z a d o , apezar de t e r escripto o seu
l i v r o clássico e m francez, e apezar da sua b r i l h a n t e
propaganda c o n t r a o n a t i v i s m o , é o m a i s genuíno
nativista que eu conheço, p o r q u e não c o m p r e -
hende siquer a v i d a e m o u t r a t e r r a , e m o u t r a
natureza. B r a s i l e i r o de u m a só peça é aquelle
que não pôde v i v e r sinão n o B r a s i l . N a m o c i -
dade f u i u m errático, c o m o o próprio I m p e r a -
d o r acabou na velhice... Q u a n d o , porém, entre
a pátria, que é o s e n t i m e n t o , e o m u n d o , que é o
pensamento, v i que a imaginação p o d i a q u e b r a r
a estreita fôrma e m que e s t a v a m a cozer ao sol
t r o p i c a l os m e u s pequenos d e b u x o s d'almas, Us-
tedes me eniicnden, deixei i r a E u r o p a , a h i s t o r i a ,
a arte, g u a r d a n d o do que é u n i v e r s a l só a religião
e as lettras.
V

PRIMEIRA VIAGEM Á EUROPA

De diversos m o d o s a m i n h a p r i m e i r a i d a á
E u r o p a i n f l u i u p a r a enfraquecer as tendências
republicanas que eu p o r v e n t u r a tivesse, e f o r t i -
ficar as m o n a r c h i c a s . A n t e s de t u d o , o r e p u b l i c a -
n i s m o francez, que era e é o nosso, t e m u m fer-
m e n t o de odio, u m a predisposição e g u a l i t a r i a que
logicamente leva á demagogia, — a sua m a i o r
f i g u r a é D a n t o n , o h o m e m da Setembrisada, — ao
passo que o liberalismo', m e s m o r a d i c a l , não só
é compatível c o m a m o n a r c h i a , mas até parece
alliar-se c o m o t e m p e r a m e n t o aristocrático. S i
fosse preciso personificar o l i b e r a l i s m o , poder-se-
ia chamar-lhe L a f a y e t t i s m o , p o r ter sido Lafayette
o p r i n c i p a l representante dos gentilhommes libé-
raux de 1789. Esse estreito r e p u b l i c a n i s m o , que
confina nos dias de crise c o m a demagogia, e,
exasperado pelo perigo o u excitado pela posse
repentina, i m p r e v i s t a , do poder, chega á e p i -
d e m i a sanguinária do T e r r o r , é u m f a c t o , póde-se
3.
46 MINHA F O R M A Ç Ã O

dizer, de reclusão m e n t a l : dá-se somente q u a n d o


o espirito se encerra e m a l g u m systema philo-
sophico o u f a n a t i s m o religioso, e m u m a d o u t r i n a
ou e m u m a previsão social q u a l q u e r , e a h i se
isola i n t e i r a m e n t e do m u n d o e x t e r n o . A i n t o l e -
rância é, ou era, o característico do r e p u b l i c a -
n i s m o aggressivo francez, e a intolerância é u m a
phobia da l i b e r d a d e e do m u n d o ; é u m pheno-
m e n o de retracção i n t e l l e c t u a l , p r o d u z i n d o a hy-
p e r t r o p h i a ingênua da personalidade.
E provável que e m m i m t a m b é m existisse o
embryão r e p u b l i c a n o ; não d u v i d o que, nascido
em o u t r a condição, si não tivesse m e u pae na
m a i s alta h i e r a r c h i a da p o l i t i c a , si não descobrisse,
c o m o tantos o u t r o s que se r e v o l t a r a m , m o d o de
vencer o terrível multi sunt vocaii, pauci vero
elecii da a n t i g a oligarchia, eu t a m b é m tivesse
a c o m p a n h a d o o m o v i m e n t o r e p u b l i c a n o de 1870,
do q u a l f a z i a m parte alguns dos espíritos que m e
fascinavam. Si assim fosse, porém, estou certo
que o m o v i m e n t o a b o l i c i o n i s t a m e t e r i a , m a i s
tarde, destacado delle, e q u e o i 3 de m a i o me
i d e n t i f i c a r i a c o m a sorte da m o n a r c h i a l i b e r t a -
dora. S i , apezar de t u d o , eu me th^esse conser-
v a d o r e p u b l i c a n o até i 5 de n o v e m b r o , — nascesse
eu e m que condição nascesse, u m a vez que fosse
o m e s m o que sou, isto é, q u e tivesse r e c e b i d o
no berço os m e s m o s r u d i m e n t o s d'alma, — não
tenho a m e n o r d u v i d a de que o abalo, o choque
do desterro do I m p e r a d o r teria posto fim á m i n h a
MINHA F O R M A Ç Ã O 47

phantasia r e p u b l i c a n a e restabelecido a s i n c e r i -
dade e a l u c i d e z dos meus sentidos políticos. G o m o
q u e r que fosse, a v i a g e m de 1873 d e s t r u i u n o
g e r m e n t o d a e q u a l q u e r inclinação r e p u b l i c a n a ,
t o d o i n d i c i o de f a n a t i s m o que eu pudesse ter n o
segredo d a m i n h a natureza.
N ã o d u r o u m u i t o t e m p o essa v i a g e m • f o i apenas
de u m anno. A situação de espirito que ella creou
já t i n h a antecedentes nas m i n h a s relações c o m a
pequena r o d a e m que v i v i a então o corpo d i p l o -
mático e m P e t r o p o l i s e n a Corte, n a convivên-
cia c o m m i n i s t r o s e secretários estrangeiros,
alguns destes hoje m i n i s t r o s , e até embaixadores.
A situação de espirito cosmopolita ou, antes, mun-
dana, caracterisa-se pela comprehensão das solu-
ções oppostas dos m e s m o s p r o b l e m a s sociaes,
pela tolerância de todas as opiniões, pela egual
f a m i l i a r i d a d e c o m correligionários e adversários,
pela idéa, p a r a dizer t u d o , de que a c i m a de
quaesquer p a r t i d o s está a boa sociedade. Esse
m o d o de ser, e m p o l i t i c a , não é necessariamente
eclectico, nem, ainda menos, sceptico; é somente
incompatível c o m o f a n a t i s m o , isto é, c o m a
intolerância, qualquer que ella seja. F o i a v i a g e m
á E u r o p a a grande deslocação que c o n s o l i d o u a
tendência anti-systematica e m que eu já estava,
a m o r t e c e n d o e m m i m o predomínio da força
p o l i t i c a até 1879, q u a n d o pela p r i m e i r a vez e n t r o
para o Parlamento-, m e s m o no P a r l a m e n t o ,
porém, depois do anno de estréa, e m que as e m . 0
48 MIXIIA FORMAÇÃO

ções da t r i b u n a me f i z e r a m t o m a r calor e i n t e -
resse pela l u c t a dos p a r t i d o s , desde 1880 até 1889,
q u a n d o se fechou d e f i n i t i v a m e n t e p a r a m i m
aquella carreira, posso dizer que c o n t i n u o u o
eífeito da m i n h a deslocação, de 1873, da p o l i t i c a
partidária, p o r q u e t o d o o t e m p o que estive n a
C â m a r a m e a c o l h i sob u m a b a n d e i r a m a i s larga
e me colloquei e m u m t e r r e n o p o l i t i c a m e n t e neu-
t r o , c o m o era o da emancipação dos escravos.
Essa v i a g e m que assim i m p r i m e á m i n h a evo-
lução p o l i t i c a o seu caracter d e f i n i t i v o , d u r o u ,
c o m o eu disse, pouco tempo. P a r t i n d o e m agosto
de 1873, v o l t o ao R i o de J a n e i r o e m setembro
de 1874. E m e n o s de u m anno de E u r o p a que
tenho da p r i m e i r a v e z ; desses onze mezes, m a i s
ou menos, passo cinco e m P a r i z , tres na Itália,
u m mez no lago de Genebra, u m m e z e m L o n -
dres, u m mez e m F o n t a i n e b l e a u . A razão desse
mez de O u c h y e desse mez de F o n t a i n e b l e a u é
que, em v i a g e m , sempre que u m l o g a r m e f a l i a ,
eu m e deixo p r e n d e r p o r elle e m e esqueço de
v i a j a r . É assim que, m a i s t a r d e , p r e t e n d e n d o d a r
ao N i a g a r a a h o r a indispensável p a r a vêr as
quedas, me deixo f i c a r v i n t e e tantos dias, sem
p o d e r arrancar-me daquelle espectaculo até o t e r
i n t e i r a m e n t e absorvido.
O mez de O u c h y q u e r dizer, sem f a l l a r de
Lausanne, que os p r i m e i r o s passeios a pé, á b e i r a
do lago, de u m lado n a direcçâo de Coppet, d o
o u t r o , na direcção de Clarens, as v i s i t a s a Gene-
MINHA 1 O R M A Ç Ã O 4J

b r a c o m a r o m a n a o b r i g a d a a F e r n e y , me collo-
c a v a m n o t h e a t r o l i t t e r a r i o , talvez o m a i s interes-
sante da E u r o p a m o d e r n a , depois de W e i m a r ,
p o r q u e Clarens é o scenario da Nova Heloísa, e
está cheio da eloqüência de Pvousseau; F e r n e y , o
dos últimos annos de V o l t a i r e ; Coppet, o da
realeza de C o r i n n a c o m a sua corte v i n d a de
P a r i z , da A l l e m a n h a , da Itália, não esquecendo
L o r d B y r o n . M a i s do que t u d o , porém, nessa faixa
de t e r r a que l i g a i n t e l l e c t u a l m e n t e o século x v m
ao século x i x , o que me teria p r e n d i d o eterna-
m e n t e a O u c h y , si eu dispuzesse de a l g u m a s eter-
nidades nesta v i d a , é o lago, o seu corte, a sua
moldura.
O mez de F o n t a i n e b l e a u t e m o u t r a explicação :
não é o castello e a floresta só p o r si o que me
p r e n d e ; é que v o l t o da I n g l a t e r r a , tendo pela
p r i m e i r a vez fallado inglez c o m t o d o o m u n d o ,
fascinado p o r L o n d r e s , tocado de u m começo de
a n g l o m a n i a , que f o i a doença da sociedade e m
França, e, p o r t a n t o , até isso, accusa a construcção
jranceza do m e u espirito, e F o n t a i n e b l e a u , c o m
o repouso dos seus j a r d i n s symetricos, a frescura
das suas águas e das suas sombras, a t r a n q u i l l i -
dade do seu silencio, era o m a i s admirável r e t i r o
que eu p o d i a querer nesse mez da m i n h a v i d a ,
que posso c h a m a r o mez de T h a c k e r a y . F o i esse
o c l a u s t r o ideal e m que, fechado c o m VanityFair,
Pendennis, The Newcomes, não sei o que mais,
sem diccionarios, a d i v i n h a n d o o que não podia
50 MINHA F O R M A Ç Ã O

traduzir, comprehendendo tudo, exgottei em m i m


mesmo até ás lagrimas a impressão do grande
romancista inglez, — o que fiz depois com George
Eliot e TroJlope, mas nunca fiz, sinto dizel-o,
com Dickens, nem com Sir W a l t e r Scott.
De certo, em minutos pode abrir-se e fechar-se
deante dos nossos olhos u m espectaculo que não
esqueceremos nunca. P e r c o r r i em mezes a Itália,
as grandes capitães antigas somente, sinto t a m b é m
dizel-o; não fiz siquer a r o m a r i a de arte. pela
U m b r i a ; estive duas horas deante dos quatro
monumentos da velha Pisa, que i n s p i r a r a m a
Taine a sua pagina mais eloqüente : como esque-
cer, no emtanto, essa revelação i m m o r r e d o u r a ?
Keats não disse tudo com o seu verso :
.\ thing of beauty is a joy for ever?

Não só o que é verdadeiramente bello é « essa


alegria », de que elle falia, « para sempre », u m raio
interior que se incorpora á vida para nunca mais
se apagar, quaesquer que sejam as tempestades,
d'ella, como também uma só thing of beauty,
u m único fragmento da verdadeira belleza, basta
para i l l u m i n a r a existência h u m a n a inteira. Ne-
n h u m h o m e m terá comprehendido b e m duas
grandes obras d arte : a columna grega e a ogiva
gothica, u m Miguel Ângelo e u m Piero delia
Francesca, nem tão pouco duas vistas differentes
de natureza : o oceano e os lagos de montanha ;
as paizagens da neve e os céos do Oriente. E m
MINHA F O R M A Ç Ã O Ol

aso a l g u m , porém, póde-se sentir u m a obra d'arte


de passagem, isto é, sem que ella p r o d u z a e m
nós u m a vibração correspondente ao esforço, á
sensação do creador q u a n d o a compoz.
C o m o é que e m m i n u t o s nos p o d e r i a p e n e t r a r
a impressão d o a r t i s t a que l e v o u annos para rea-
l i s a r seu pensamento, e m o r r e u ainda a g i t a d o p o r
elle ? E u olhei, p o r exemplo, p a r a a c a t h e d r a l de
Reims, c o m R o d o l p h o Dantas, e m u m d i a que
roubámos a P a r i z , l i n g u a g e m do b o u l e v a r d 5
p a r e i p a r a vêr a c a t h e d r a l de A m i e n s ; roubei
o u t r o d i a a P a r i z para fazer a volta da cathedral
de R o u e n : f u i a S t r a s b u r g o avistar o grande
Münster de E r w i n v o n S t e i n b a c h ; c o m A r t h u r
de C a r v a l h o M o r e i r a , u m dos m a i s finos espíritos
da nossa geração acadêmica, fiz u m a vez a tour-
neeáos castellos históricos do L o i r e : Chenonceaux,
A m b o i s e , B l o i s , C h a m b o r d . H o r a s para t u d o
isso! P a r a F r a n c i s c o I , Diana de P o i t i e r s , a Re-
nascença F r a n c e z a ! M a i s tarde, p o r não q u e r e r
apressar-me assim, não liz c o m o m e s m o c o m -
p a n h e i r o , o q u a l d e u annos de sua v i d a i n t e l l e -
c t u a l exclusivamente aos goethekenners, a v i s i t a ás
cidades de Goethe : F r a n k f o r t , L e i p z i g , — Stras-
b u r g o , v i , mas sem pensar e m F r e d e r i c a , —
W e r z l a r e W e i m a r . P o r toda a parte, posso dizer,
passei, c o m o passei e m 1892, p o r C o i m b r a , Alco-
baça, M a f r a , a B a t a l h a , sem deixar siquer ás
impressões o t e m p o de se g r a v a r e m no espirito.
U m a hora para a cathedral de R e i m s ! só não
52 MIXIIA FORMAÇÃO

f o i u m u l t r a j e , u m a offensa áquella d i v i n a fachada,


p o r q u e lá estive e m v e r d a d e i r a humilhação, e não
lancei olhares críticos ao seu s u b l i m e p o r t a l , a
toda a sua i n c o m p a r a v e l legenda, c o m o o gamin
lhe atira pedras. U m a hora em A m i e n s ! n'esse
« Parthenon da architeetura gothica », c o m o lh
c h a m o u V i o l l e t - l e - D u c , e l e v a n d o na m ã o a Bí-
blia de Amiens de J o h n R u s k i n , o q u a l chega a
i n v e j a r o h u m i l d e g u a r d a , cuja funcção é espanar-
lhe as esculpturas de m a d e i r a , c o m o n u n c a o u t r a s
foram talhadas!
De passagem, póde-se v e r m u i t a coisa, mas
não se t e m a revelação de nada. A p r i m e i r a con-
dição p a r a o espirito receber a impressão de u m a
grande creação q u a l q u e r , seja ella de Deus, seja
das epochas, — nada é p u r a m e n t e i n d i v i d u a l , —
é o repouso, a occasião, a passividade, o a p a -
g a m e n t o do p e n s a m e n t o próprio; d a r á f o r m a
d i v i n a o t e m p o que ella q u i z e r p a r a reflectir-se
e m nós, p a r a deixar-nos comprehendel-a e a d -
m i r a l - a , para r e v e l a r - n o s o p e n s a m e n t o origi-
nário donde nasceu.
De todos esses logares da Suissa o u da Itália, de
F o n t a i n e b l e a u , de P a r i z , de L o n d r e s , não t r a g o
sinão impressões de arte, impressões literárias,
impressões de v i d a : o g r a n d e eífeito e m m i m dessa
v i a g e m é assim apagar a p o l i t i c a ; suspender d u -
r a n t e u m anno, i n t e i r a m e n t e , a f a c u l d a d e p o l i t i c a ,
que, u m a vez suspensa, parada, está q u e b r a d a e
não v o l t a m a i s a ser a m o l a p r i n c i p a l do e s p i r i t o .
MINHA F O R M A Ç Ã O 53

E u não p o d i a e n t r e t a n t o estar e m França, e m


u m a epocha de transformação, c o m o f o i essa de
1873-74, e ás vezes, e m c o n t a c t o c o m h o m e n s polí-
ticos, n e m p e n e t r a r na sociedade ingleza, sem que
a grande p o l i t i c a européa exercesse u m a i n f l u e n -
cia positiva sobre o m e u espirito, além da m o d i f i -
cação operada n e g a t i v a m e n t e , c o m o eu disse,
pelo m e u a f a s t a m e n t o do nosso scenario local e
pela sensação d'arte. A p e z a r de t u d o , eu t i n h a
affinidades políticas inapagaveis, que p o d e r i a m ,
q u a n d o m u i t o , ficar secundarias, s u b o r d i n a d a s á
attracção p u r a m e n t e i n t e l l e c t u a l . Dessa modifica-
ção positiva faliarei agora.
VI

A F R A N Ç A DE 1878-74

A epocha e m que eu pela p r i m e i r a vez t i n h a


P a r i z p o r m e n a g e m , era h i s t o r i c a m e n t e tão inte-
ressante que u m e s p i r i t o sujeito c o m o o m e u a
fortes tentações 'políticas não p o d e r i a d e i x a r de
voltar-se p a r a o espectaculo dos acontecimentos,
apezar dos meus d e s l u m b r a m e n t o s artísticos e
l i t t e r a r i o s . Comprehende-se, porém, que a attrac-
ção c o n t r a r i a á p o l i t i c a era ainda m a i s poderosa,
pela novidade, pelo esplendor das suas revelações
c o n t i n u a s , do que o próprio d r a m a contemporâ-
neo. N o R i o de J a n e i r o o u e m S. P a u l o , q u e m
se a l i m e n t e de p o l i t i c a , q u a n d o a sensação de u m
grande a c o n t e c i m e n t o se apossa delle, não encon-
tra nada e m redor de si que a c o r r i j a o u l h e
sirva de contrapeso-, f e l i z m e n t e , os a c o n t e c i m e n -
tos r a r o são grandes. P a r a u m j o v e n b r a s i l e i r o .
porém, que pela p r i m e i r a vez chega a P a r i z , é
quasi impossível imaginar acontecimento que
possa t o r n a l - o indiíferente ao m a r a v i l h o s o q u e o
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 55

s u r p r e h e n d e a cada passo, o u sensação p o l i t i c a


que não fosse a m o r t e c i d a , d o m i n a d a logo, pela
sensação de arte.
R e a l m e n t e , a l u c t a entre o d u q u e de B r o g l i e e
monsieur T h i e r s , o t h e a t r o do palácio de V e r -
salhes c o n v e r t i d o e m Assembléa N a c i o n a l , o
T r i a n o n d a n d o as suas salas para o conselho de
g u e r r a de Bazaine, a t t r a h i a m - m e , e f u i u m dos
m a i s anciosos espectadores que a s s i s t i r a m nessa
epocha aos debates daquella assembléa, o u que
p a r t i c i p a r a m da emoção daquelle grande processo
m i l i t a r , apezar de t u d o p o u c o generoso.
N u n c a h e i de esquecer as frias m a n h ã s de
n o v e m b r o c m que o m e u q u e r i d o a m i g o José
Caetano de A n d r a d e P i n t o , depois conselheiro de
Estado, e eu atravessávamos de carro aberto as
alamedas de Versalhes p a r a t o m a r os nossos l o -
gares na própria t r i b u n a do m a r e c h a l Bazaine,
p o r detraz delle, quasi os únicos que, talvez p o r
lhe sermos estranhos e sermos estrangeiros,
tínhamos a coragem de a c o m p a n h a r daquelle
logar os interrogatórios, a accusaçâo e a defesa.
N o u l t i m o m o m e n t o , q u a n d o se m a n d o u fechar a
t r i b u n a p a r t i c u l a r do marechal, passámos para o
pretoire. Que emoção a nossa q u a n d o o d u q u e
d'Aumale, de pé, c o m o t o d o o Conselho, que for-
m a v a semi-circulo em t o r n o delle, a fita v e r m e l h a
da Legião de H o n r a passada sobre o grande u n i -
f o r m e , o chapéo de p l u m a s na cabeça c o m o e m
u m c a m p o de batalha, na m ã o u m a grande f o l h a
50 MIXIIA FORMAÇÃO

de papel sobre a q u a l se p r o j e c t a v a o r e f l e c t o r
de u m a lâmpada sustentada p o r t r a z delle p o r
u m i m p o n e n t e v u l t o de huissier, c o m a s o l e m n i -
dade de q u e m depois de u m e x i l i o de v i n t e e c i n c o
annos representava o u t r a vez perante a França,
leu os tres Oui, à lunanimite', que s i b i l a r a m p e l a
sala toda c o m o as balas de u m pelotão!
T a m b é m m e h e i de l e m b r a r sempre d a ses-
são da Assembléa N a c i o n a l e m que se v o t o u o
septennato de M a c - M a h o n c o m o m e d i d a p r o v i -
sória, d i l a t o r i a , entre a restauração, t e m p o r a r i a -
m e n t e i m p o s s i b i l i t a d a p o r causa da b a n d e i r a
branca, e a r e p u b l i c a , que não q u e r i a m p r o c l a -
mar. S i nesses sete annos morresse o conde de
C h a m b o r d , regnante ainda o d u q u e de M a g e n t a ,
q u e m sabe si o conde de P a r i z não r e u n i r i a os
votos«*dos Chevaulégers e da alta finança d o
C e n t r o E s q u e r d o ! Afianço a q u e m me lê que,
depois de u m d i s c u r s o p r o n u n c i a d o pelo d u q u e
de B r o g l i e , c o m o seu accento nasal, a sua per-
feição acadêmica, sua m a n e i r a e suas ma-
neiras ancien regime, vêr s u b i r á t r i b u n a o v e l h o
D u f a u r e e de i m p r o v i s o , sem phrases cadenciadas,
sem períodos e m b u t i d o s uns nos o u t r o s c o m o
um mosaico l i t t e r a r i o , t o m a r entre as m ã o s o
discurso do neto de Mme. de Staèl, amassal-o,
dar-lhe as formas que q u e r i a , até ninguém
mais o poder reconhecer; assistir a u m d u e l l o
desses, da elegância c o m a eloqüência, é u m
prazer que não se esquece mais. E não o u v i
MINHA F O R M A Ç Ã O 57

FiBerryer! A l l i , em Versalhes, eu encontrava ainda


(os restos da grande geração parlamentar que
.começou na Restauração e que trouxe as suas
tradições, a sua escola de oratória, para as Câ-
maras de L u i z Felippe. T u d o isto, não é preciso
dizel-o, me interessava no mais i n t i m o de m i m
ttmesmo, intelectualmente fallando, mas um
simples relance sobre quaesquer paginas do meu
t diário nessa epocha basta para mostrar quanto
o meu interesse se dividia e o meu espirito era
solicitado em direcções contrarias por sensações
I quasi do mesmo valor..
Assim, por exemplo (o itálico é para mostrar
i a s opposições repentinas): « 19 de novembro.
A sessão do Septennato (em que f o i votada a
prorogação dos poderes do marechal). — 21 de
novembro — Começo a ir ao processo Bazaine.
— 22 de novembro. Visita a Ernesto Renan.
— 2 de janeiro (1874) Chateauroux. — 3 de
janeiro. De manhã. Route de la Chàtre. Bos-
1 ques de alamos batidos pela ventania. E m
1 N o h a n t ás 11 horas. Esperavam-me desde a ves-
q| pera, t i n h a m u m aposento para m i m . Maurjee
i Sand, a mulher filha de Calamatta. Fazem-me.
a almoçar. A o meio-dia, vem George Sand. Con-
v versámos até as 3 horas. Pediu-me para íicar
; algum tempo em Nohant. Fallámos de Renan,
b da Joconde, do theatro, de Bressant, do Impera-
h dor, que ella não viu. — 4 de janeiro. Orleans.

I Cathedral. Casas de Jeanne d'Are, Agnès Sorel,


58 MINHA F O R M A Ç Ã O

Diane de Poitiers. Noticia da queda de Gaste-


lar... — 3 de janeiro. F o m o s ao chàteau de
Chambord. Escadaria de pedra à double rampe.
Os F F e as Salamandras de Francisco I . O
Bourgeois Gentilhomme, 1670. Souvent femme
varie. Château de Blois. Q u a r t o de H e n r i q u e I I .
Escada exterior espiral. Renascença Franceza. —
10 de janeiro. Visita a monsieur Thiers ».
Talvez o dia em que v i r a m pela p r i m e i r a vez
a Venus de M i l o ou a Joconde tenha passado
indilTerente para, muitos que notaram as suas
menores impressões políticas. Eu, porém, não
poderia siquer lembrar-me de que fora político
deante do mármore dos mármores ou do colo-
rido que se esvae e de u m traço que se apaga de
Leonardo. N a própria politica eu achava-me d i v i -
dido pela mais positiva dualidade que se pudesse
dar. De sentimento, de temperamento, de razão,
eu era u m tão exaltado partidário de T h i e r s como
qualquer republicano francez ; pela imaginação
histórica e esthetica era porém legitimista ; isto
é, perante o artista imperfeito e incompleto que
ha em m i m , a figura do conde de C h a m b o r d re-
duzia a de T h i e r s a proporções m o r a l m e n t e i n s i -
gnificantes. Quando em u m mesmo h o m e m ha
u m l y n c o e u m político, a lenda t e m para elle
uma projecção duas vezes m a i o r que a da h i s -
toria.
Nesse espaço de tempo a que me refiro, a
Republica estava ainda em questão em Franca •
MINHA F O R M A Ç Ã O 59

Thiers havia sido forçado a demittir-se, e a sua


substituição, com. surpresa delle, recahira no seu
o n e r a i em chefe, que dispunha, absolutamente,
do exercito, o marechal de Mac-Mahon. A recon-
ciliação do conde de Pariz c o m o chefe da casa
de França tinha-se effectuado em Frohsdorf, em
5 de agosto-, os cavallos para a entrada solemne
do r e i em Pariz estavam sendo negociados,
quando o ministério recuou, sentindo-se sem for-
ças para i m p o r aos soldados a bandeira branca.
A Restauração, póde-dizer, tinha abortado-, mas,
de u m momento para outro, Henrique V podia
inspirar-se no precedente de Henrique I V e accei-
tar a bandeira da Revolução. A i n d a ha pouco,
o general d u B a r a i l , que era o ministro da guerra
do duque de Broglie, confessou que, si o conde
de C h a m b o r d tivesse querido, não era o septen-
nato, era sim, a monarchia que teria sido accla-
mada.
« O marechal, escreve elle, estava convencido
de que o Príncipe cedera a uma consideração
patriótica : ao receio de attrahir sobre o seu paiz
a animosidade e até as armas da Allemanha. »
O testemunho recente do duque de Broglie e do
embaixador em B e r l i m , o conde de Gontaut-
B i r o n , i n d i c a m isso mesmo, que o conde de
C h a m b o r d v i u que a Restauração seria a guerra
com a Allemanha e quiz poupar á França'uma
segunda e peior mutilação. Q u e m sabe, também,
á vista dessas revelações diplomáticas, si não foi
00 MINHA F O R M A Ç Ã O
esse m e s m o o m o t i v o secreto s u p e r i o r de T h i e r s
p a r a desertar a m o n a r c h i a ?
Q u e m v i u o v e l h o estadista empenhar-se na
consolidação da R e p u b l i c a c o m t o d o o seu pres-
t i g i o e o seu p o d e r de persuasão, desde q u e l e v a n -
tára a França dos c a m p o s de b a t a l h a onde jazia
ferida e retirára d o poder da C o m m u n a Pariz
ainda e m c h a m m a s , pode pensar q u e não se dá
t o d a essa dedicação a u m a causa que não se t e n h a
i n t i m a m e n t e a peito. A verdade é que, si T h i e r s
tivesse empregado e m r e s t a u r a r a m o n a r c h i a a
metade d o esforço e d o t r a b a l h o que e m p r e g o u
e m consolidar a R e p u b l i c a , a realeza p r o v a v e l -
m e n t e teria sido p r o c l a m a d a , t a l v e z a i n d a em
Bordéos. D u r a n t e m u i t o t e m p o elle manteve-se
c o m o o fiel da balança entre os p a r t i d o s . N ã o se
pode l e r sem emoção esses seus discursos de
1871, q u a n d o elle se vê entre os dois lados da
Assembléa e i n v e n t a distincções p a r a i m p e d i r
que elles se t r a t e m c o m o i n i m i g o s deante d o i n -
vasor estrangeiro, todas essas distincções s u b t i s ,
c o m o entre constituir e reorganizar, entre re-
nunciar e reservar o p o d e r c o n s t i t u i n t e .
E u era c o m o político f r a n c a m e n t e t h i e r i s t a ,
isto é, e m França, de facto r e p u b l i c a n o . I s t o não
•quer dizer, porém, q u e m e sentisse r e p u b l i c a n o
•de p r i n c i p i o ; pelo c o n t r a r i o . A t e r c e i r a R e p u -
blica e m França f o i f u n d a d a p o r m o n a r c h i s t a s ;
f o i u m a transacção de estadistas m o n a r c h i c o s ,
•como T h i e r s , D u f a u r e , Rémusat, Léon Say,
MINHA F O R M A Ç Ã O 61

Casimir Péfier, W a d d i n g t o n , e todo o Centro


Esquerdo.
c Sôa como u m paradoxo, escreveu, c o m ad-
mirável lucidez, u m dos hábeis redactores da
Quarterly Revieiv em 1890, mas nao é por isso
menos exacto, que a principal barreira deante de
uma restauração monarchica em França é o cres-
cente conservatismo que f o i sempre inherente
ao caracter francez no meio de todas as ebulh-
ções do sentimento excitado. O povo sabe que
uma mudança na f o r m a de governo só poderia
ser realisada por meio de uma revolução ou como
resultado de uma guerra, e recua deante da pers-
pectiva de uma e outra eventualidade, preferindo
acceitar o presente estado de coisas, ainda que
este não lhe desperte enthusiasmo. »

Esse espirito conservador da França, inimigo


das mudanças bruscas, mesmo para melhorar, é
bem caracterisado por esta anecdota, como a
contou ha annos u m correspondente do Times.
Durante as barricadas de junho, quando se ouvia
o canhão nas ruas de Pariz, mandaram uma
companhia guardar o Ministério de Estrangeiros.
O official que commandava, de espada desem-
bainhada, entrou na Secretaria, mas parou á
porta de uma das salas, vendo que os empre-
gados continuavam tranquillamente em suas
mesas de trabalho, como si nada estivesse
acontecendo. Vendo-o, o director levanta-se com
4
62 -MIXIIA FORMAÇÃO

u m a porção de papeis, p r o m p t o s para a assigna-


t u r a do m i n i s t r o , approxima-se d'elle e, i n c l i -
nando-se, pergunta-lhe c o m a m a i o r deferencia
e n a t u r a l i d a d e : « E' ao n o v o g o v e r n o que t e n h o
a h o n r a de d i r i g i r - m e ? »
E r a esse conservatismo que pelo órgão, p r i n -
cipalmente, de T h i e r s f u n d a v a então a terceira
R e p u b l i c a ; o m e s m o que não d e i x o u a i n d a d i -
vorciar-se delia o e s p i r i t o da b u r g u e z i a libe-
ral, — espirito a que se pode c h a m a r Centre
Gaúche, — e n e n h u m analysta negará q u e a
quinta-essencia desse c o n s e r v a t i s m o fosse mo-
narchica, m a i s sinceramente m o n a r c h i c a do q u e
o espirito de fronde das côteries r e s t a u r a -
doras.
Essa p r i m e i r a g r a n d e escola e s t r a n g e i r a e m
que a p p r e n d i , não me p o d i a fazer r e p u b l i c a n o de
sentimento, c o m o não fez r e p u b l i c a n o de senti-
m e n t o a n e n h u m dos seus fundadores, c o m o não
fez, n e m faz, r e p u b l i c a n o s aos liberaes e conser-
vadores inglezes, o u ás testas coroadas da E u -
ropa, que, sem m á vontade á França, p r e f e r e m
a Republica á Realeza o u ao Império; c o m o não
faz r e p u b l i c a n o ao Papa, que protege p o d e r o s a -
mente o actual systema francez. O g r a n d e effeito
sobre m i m daquellà a t t i t u d e de T h i e r s e dos par-
lamentares da M o n a r c h i a de J u l h o era d a r - m e
u m a grande p r o v a e x p e r i m e n t a l de que a fôrma
de g o v e r n o não é u m a questão t h e o r i c a , porém
p r a t i c a , r e l a t i v a , de t e m p o e de situação, o q u e
MINHA FORMAÇÃO .6-3

em relação ao B r a s i l era u m poderoso alento


para a m i n h a predilecção m o n a r c h i c a . O grande
efteito era este : d e s t r u i r o g e r m e n r e p u b l i c a n o
l a t e n t e , g e r m e n de intolerância e de f a n a t i s m o
E esse f o i o g r a n d e serviço de T h i e r s á França
m o d e r n a : o de acabar c o m o a n t i g o monopólio
j a c o b i n o sobre a idéa r e p u b l i c a n a .
É o m e s m o e s c r i p t o r da Quarterly q u e m fina-
m e n t e observa : « A i n d a que, p o r u m lado, o
g e n u i n o s e n t i m e n t o realista esteja quasi e x t i n c t o ,
por outro, o sentimento republicano t a m b é m p o r
sua vez esfriou. A n o v a geração é r e p u b l i c a n a no
sentido de não acreditar n a possibilidade de u m a
restauração m o n a r c h i c a ; o ardente r e p u b l i c a -
n i s m o dos velhos doutrinários, esse, porém, está
q u a s i tão m o r t o c o m o a advocacia do d i r e i t o
d i v i n o dos reis. » Essa modificação, que está hoje
t e r m i n a d a , começou e m 1871, e f o i o r e s u l t a d o
da adhesão, não f o i conversão, do C e n t r o Es-
q u e r d o á situação r e p u b l i c a n a creada para a
França n a E u r o p a pela d e r r o t a de Sedan. Esse
d u p l o e egual esfriamento do r e a l i s m o e do repu-
b l i c a n i s m o , póde-se dizer que f o r m a a a t m o s p h e r a
n a t u r a l do l i b e r a l i s m o contemporâneo e da c u l -
t u r a p o l i t i c a m o d e r n a , e, assim c o m o elle apro-
veitava em França á r e p u b l i c a , devia a p r o v e i t a r
no B r a s i l á m o n a r c h i a . F o i esta a grande i n -
fluencia p o l i t i c a que exerceu sobre m i m a m i n h a
estada e m França de 1873-74. A g o r a resta-me
precisar a i n f l u e n c i a r i v a l que soffYi, e a que cha-
04 MINHA FORMAÇÃO
#

marei influencia litteraria, graças á qual voltei da


Europa consideravelmente menos político do que
partira.
VII

ERNEST RENAN

Desde a Academia a litteratura e a política al-


t e r n a r a m u m a c o m outra, occupando a m i n h a
curiosidade e governando as minhas ambições.
Nos primeiros annos a politica teve o predomínio;
c o m a viagem á Europa e m i 8 3 passou este
7

para a litteratura, e esse meu período l u t e r a n o ,


começado então, dura até 1879, quando entro
para a Câmara...
E u tinha sempre lido m u i t o e de tudo na epocha
em que me sentia mais político do que h o m e m
de lettras. E m philosophia tinha assimilado u m
pouco de Spinosa, Plotino, K a n t e Hegel; a nota
mais sonora e mais sustentada de cada u m delles
vibra a mesma em meu espirito ainda hoje que
sinto a grandeza da Philosophia Cathohca e col-
,oco Santo T h o m a z de A q u i n o entre Ar.stoteks
c Platão. E m religião, eu estava sob a influencia
deStrauss, Renan, Havet, e formava também
eu, com os fragmentos de todos elle, a minha
06 MINHA F O R M A Ç Ã O

lenda pessoal de Jesus. Pelo e s p i r i t o , posso d i z e r


que h a b i t e i longos annos, d a p r a i a do F l a m e n g o ,
as bordas solitárias e silenciosas do lago de
Genezareth. Em critica litteraria, achava-me
t o d o imbuído de Sainte-Beuve, T a i n e , Scherer,
ainda que deste u l t i m o , de q u e m f a l l a r e i , não
t a n t o c o m o depois que o c o n h e c i . E m poesia,
t i n h a passado de L a m a r t i n e p a r a V i c t o r H u g o , o
de Hernani q u a s i e x c l u s i v a m e n t e , e de V. H u g o
para Musset, c o m o devia depois passar de
Musset p a r a Shelley, de S h e l l e y p a r a Goethe,
escala e m que p a r e i , m a s onde não espero
m o r r e r , p o r q u e t e n h o deante de m i m o Dante,...
o que não q u e r d i z e r que não t e n h a nos o u v i d o s
a resonancia das grandes r i m a s novas de um
B a n v i l l e , e não a d m i r e o c i n z e l a d o dos fortes
relevos de José-Maria H e r e d i a . E m prosa, Cha-
t e a u b r i a n d e R e n a n d i v i d i a m o império c o m Cí-
cero, cujas cartas são talvez o l i v r o m u n d a n o q u e
eu levaria c o m m i g o , si tivesse de ficar e n c e r r a d o
e m u m a i l h a deserta. A phrase, a eloqüência, o
r e t r a t o e a enscenaçâo histórica de M a c a u l a y f o i
t a m b é m u m a i n f l u e n c i a p e r m a n e n t e que se i m -
p r i m i u e m m e u e s p i r i t o ; hoje eu t e r i a de ac-
crescentar M o m m s e n , C u r t i u s , R a n k e , T a i n e ,
B u r c k h a r d t . Q u a n t o ao r o m a n c e , q u e é a i m a g i -
nação a b r a n g e n d o e m o d e l a n d o a v i d a , eu ficara
sob a impressão de J u l e s S a n d e a u ; v i v i a cá s o m -
bra dos seus castellos antigos reconstruídos pela
m o d e r n a b u r g u e z i a , entre as duas sociedades, a
MINHA FORMAÇÃO {
>7

velha e a nova, q u e elle q u e r i a f u n d i r pelo a m o r ,


e mais que a poesia d'alma de Sandeau, que foi
m u i t o g r a n d e e a que ainda u m d i a a França h a
de v o l t a r , era p a r a m i m i n d e f i n i v e l a impressão,
aristocrática e f e m i n i n a a u m t e m p o , dos últimos
encantadores estudos de C o u s i n sobre a socie-
dade d o século x v u .
T u d o isto f o r m a v a o f u n d o d o m e u e s p i r i t o ,
o h ú m u s da m i n h a i n t e l l i g e n c i a , q u a n d o começou
a phase l i t t e r a r i a , aquella e m que senti u m a i m -
pulsão i n t e r i o r irresistível para e n t r a r na l i t t e r a -
t u r a . O período a n t e r i o r era de receptividade, de
p l a n t i o , de assimilações: a impressão, o p r a z e r
m a i o r era o de l e r ; agora, v i n h a a necessidade
de p r o d u z i r , de crear, e dava-se u m facto s i n g u -
lar, resultado desses annos de leituras francezas :
— eu l i a m u i t o pouco o p o r t u g u e z , ainda não
começara a l e r o inglez e desapprendêra o alle-
mâo da Maria Stuart e de Wallenslein, c o m
v e r d a d e i r a m a g u a do m e u v e l h o mestre G o l d -
s c h m i d t . O resultado foi que me senti solicitado,
coagido pela espontaneidade própria do pensa-
m e n t o , a escrever e m francez.
U m b r i l h a n t e freqüentador da Revista Brasi-
leira, que possúe entre outras qualidades talvez a
m a i s preciosa de todas, u m a b o a q u a n t i d a d e do
f l u i d o s y m p a t h i c o , admira-se dessa m i n h a aífini-
dade franceza; c o m effeito, não revelo n e n h u m
segredo, d i z e n d o que i n s e n s i v e l m e n t e a m i n h a
phrase é u m a traducção l i v r e , c que nada seria
08 MINHA F O R M A Ç Ã O

mais fácil do que vertel-a o u t r a vez p a r a o francez


do q u a l ella procede. O que m e a d m i r a é que o
m e s m o não aconteça a todos os que t ê m l i d o t a n t o
e m francez c o m o eu, mais d o que eu, e c u j a v i d a
intellectual t e m sido assim e m sua p a r t e p r i n c i p a l ,
isto é, e m toda a sua funcção a c q u i s i t i v a , f r a n -
ceza. E talvez que elles têm u m a força de a s s i m i -
lação m a i o r d o que a m i n h a , — o u que eu t e n h o
m a i s desenvolvida d o que elles a f a c u l d a d e i m i t a -
tiva ? N ã o sei ; m a s essa s u s c e p t i b i l i d a d e á i n -
fluencia franceza parece n a t u r a l e m espíritos
que recebem quasi t u d o e m francez e que têm
h o r r o r * á traducção; o p u r i s m o p o r t u g u e z , esse,
s i m , é que, até tornar-se u m a segunda n a t u r e z a
l i t t e r a r i a , exige u m a constante vigilância, a r e -
ctificação exacta de t o d o o t r a b a l h o de acquisição
intellectual.
A verdade, para dizer t u d o , é esta : a d m i r a n d o
a força, o acabado, ás vezes a grandeza desse
estylo vernáculo, e m que ha u m a peneira de f u r o s
imperceptíveis para i m p e d i r q u a l q u e r imperfei-
ção estranha, e e m que a nossa língua m o d e r -
nisando-se parece conservar a t o n a l i d a d e a n t i g a ,
a m i n h a phonographia c e r e b r a l adaptou-se com-
t u d o ás leituras estrangeiras. Falta-me para r e -
p r o d u z i r a sonoridade da g r a n d e prosa p o r t u g u e z a
o m e s m o echo i n t e r i o r que repete e p r o l o n g a
d e n t r o e m m i m , e m gradações c u r i o s a m e n t e m a i s
i n t i m a s e p r o f u n d a s , á m e d i d a que se vão amor-
tecendo, o sussurro indeíinivel, p o r e x e m p l o , de
MINHA F O R M A Ç Ã O

uma pagina de Renan. T e m ahi o dr. Graça


A r a n h a a confissão da m i n h a deficiência em r e -
lação á nossa lingua, cuja f i b r a forte, resistente,
primitivamente áspera, lastimo não possuir. U-
mito-me, talvez por isso mesmo, a escrever, como
elle vê com aquelles dos seus fios e dos s e u ,
matizes que se ajustam ao meu tear francez
Q momento cm que me appareceu essa febre
do verso francez, - era em verso, ainda p o r
cima que eu me sentia forçado a compor, — toi
caprichosamente m a l escolhido, porquanto coin-
cidiu com a m i n h a primeira viagem a Europa.
N ã o ha duvida também que f o i u m resultado
delia Da impressão d'arte, da impressão histó-
rica, da impressão litteraria do Velho Mundo,
jorrava em m i m a fonte desconhecida das Musas,
que em outros têm jorrado do amor e da moci-
dade. E u trazia versos de tudo o que v i r a , como
outros viajantes trazem pedras ou folhas de hera
do Coliseu, do Fórum, de Posilippo, de Sorrento,
de Pompeia, do lago de Genebra, de Versalhes.
Esses versos, reuni-os em u m volume — Amorn-
ei Dieu. Deus no t i t u l o era tudo o que restava de
u m lonço poema da Eternidade que eu tinha
pensadcTem Ouchy, uma espécie de réplica theista
ao De Rerum Natura. Quando comecei a escrever
esses versos, eu ignorava regras fundamentaes
da prosódia franceza, como a da alternação das
rimas-, em pouco tempo tinha-me familiansado
com os segredos dos hiatos e hemistichios. Os
\

70 MINHA F O R M A Ç Ã O

m e u s versos de Amour et Dieu pareceram-me, — a


illusão do auetor é u m dos m a i s finos estratagemas
da Creação,— mão d i r e i cguaes, m a s semelhantes
aos melhores da decadência e m que a França já
t i n h a entrado. Esses versos v a l i a m m u i t o pouco.
N ã o que fossem todos elles m a u s , mas, p o r q u e
o que teria r e a l m e n t e v a l o r nelles, si fosse u m
n o v o c a m i n h o aberto p o r m i m á imaginação, era
de facto u m a estrada já m u i t o p e r c o r r i d a p o r
ella, u m a espécie de via sacra das procissões an-
tigas, na q u a l m u i t o m a i o r e s espíritos t i n h a m
l e v a n t a d o p o r toda a p a r t e c o l u m n a s v o t i v a s . I s s o
;por u m lado, e p o r o u t r o , p o r q u e o que nelles
(podia soar a g r a d a v e l m e n t e era declamação poé-
t i c a , e não poesia: p e r t e n c e r i a á r h e t o r i c a , o u á
eloqüência, e não á arte, que e m t u d o é creação.
Desde que t o q u e i na illusão do auetor, v o u a b r i r
u m p a r e n t h e s i s para u m a r e m i n i s c e n c i a , q u e t a l -
vez p r e v i n a os jovens poetas c o n t r a u m a das
ciladas m a i s freqüentes n o c a m i n h o da m o c i d a d e ,
e até da velhice, a do elogio que de q u a l q u e r
m o d o forçamos o u m e s m o somente desejamos.
E m 1872, q u a n d o A l e x a n d r e D u m a s F i l h o
escreveu a brochura IJHomme-Femme termi-
n a n d o pelo famoso Tue-la! y publiquei no R i o
de Janeiro u m a carta em francez a Ernesto
R e n a n c o m o t i t u l o Le droit au Meurtre. Um
a m i g o entregou de m i n h a p a r t e u m exemplar
dessa b r o c h u r a ao g r a n d e e s c r i p t o r , a q u e m só
me f a l t o u t r a t a r de divin maiire. H o j e descubro,
MINHA E O A M A Ç & O 71

m e s m o l i t t e r a r i a m e n t e f a l l a n d o , os lados fracos da
maneira r e n a n i a n a ; n a q u e l l e t e m p o eu era o m a i s
i n t e i r a m e n t e suggestionado dos nossos renanis-
tas O m e u emissário f o i A r t h u r de C a r v a l h o
M o r e i r a , de q u e m já f a l l e i , e a c a r t a que elle
me escreveu d a n d o conta da sua missão, p o d i a ter
a assignatura de C h a m f o r t . L Homme-Femme,
segundo Renan, não era sinão un méchant para-
doxe, que não v a l i a a pena r e f u t a r : une plaisan-
ierie] que não se d e v i a t o m a r ao sério. Q u a n d o
no anno seguinte f u i a P a r i z , u m a das m i n h a s
p r i m e i r a s visitas f o i a Renan. E l l e lembrava-se
do m e u n o m e e não se d e m o r o u e m responder ao
pedido que l h e f i z de alguns m o m e n t o s para
apresentar-lhe as m i n h a s homenagens. A i n d a
conservo esses c u r t o s pequenos a u t o g r a p h o s :
« C e s t m o i q u i serai enchanté de causer avec
vous. T o u s les j o u r s vers 10 heures 1/2 o u onze
heures, vous êtes sur de m e t r o u v e r . V o t r e três
affectueux et dévouç — E. Renan. R u e V a n n e a u ,
29. » T r e s dias depois, eu subia os q u a t r o anda-
res do n. 29 da r u a V a n n e a u e penetrava n o mes-
m i s s i m o modesto « a p a r t a m e n t o » que C a r v a l h o
M o r e i r a me h a v i a p h o t o g r a p h a d o e m sua carta.
Dentro de m i n u t o s m e apparecia Renan. Na
m i n h a v i d a t e n h o conversado c o m m u i t o h o m e m
de espirito e m u i t o h o m e m i l l u s t r e ; ainda não
se r e p e t i u , entretanto, para m i m , a impressão
dessa p r i m e i r a conversa de Renan. F o i u m a
impressão de e n c a n t a m e n t o : imagine-se u m es-
72 MINHA FORMAÇÃO

pectaculo i n c o m p a r a v e l de que eu fosse especta-


d o r único, eis a h i a impressão. E u m e sentia na
pequena b i b l i o t h e c a , deante dos d e s l u m b r a m e n -
tos daquelle espirito sem r i v a l , prodigahsando-se
deante de m i m , l i t t e r a l m e n t e c o m o L u i z I I d a |
B a v i e r a n a escuridão do camarote real, n o thea-
t r o vazio, vendo representar os Niebelungen em
u m a scena i l l u m i n a d a p a r a elle só.
Dessa entrevista não sahi só fascinado, sahi r e -
conhecido. R e n a n deu-me cartas p a r a os h o m e n s i
de lettras que eu desejava conhecer : p a r a T a i n e , 1
Scherer, Littré, L a b o u l a y e , Charles Edmond, I
que devia apresentar-me a George Sand, Barthé- 1
l e m y S a i n t - H i l a i r e , p o r intermédio de q u e m eu
conheceria M o n s i e u r T h i e r s . A s nossas relações I
tornaram-se desde o p r i m e i r o d i a affectuosas, e,
n a t u r a l m e n t e , q u a n d o i m p r i m i o m e u Amour et
Dieu, m a n d e i - l h e u m dos p r i m e i r o s exemplares. I
A q u i está a carta que elle me escreveu : I

« Sèvres, i5 aoüt 1874. Clier Monsieur, J ai


tarde p l u s que je n'aurais dü à v o u s dire t o u t ce
que je pense de vos excellents vers. Je v o u l a i s les
r e l i r e et, puis, j'espérais quelque v e n d r e d i v o u s |
v o i r à Paris. O u i , vous êtes v r a i m e n t poete.
V o u s avez l'harmonie, le s e n t i m e n t proíond, l a
facilité pleine de grâce. Si v o u s v o u l e z v e n i r après
d e m a i n , l u n d i , vers t r o i s o u q u a t r e heures, r u e
V a n n e a u , vous serez sür de me trouver; nous
causerons. Je suis prêt à faire t o u t ce que v o u s
MIXIIA FORMAÇÃO 73

y o u d r e z p o u r la Revue et les Débals. M a l h e u r e u -


sement ces recueils sont depuis l o n g t e m p s b r o u i l -
lés avec l a poésie. Ce sont des Vers c o m m e les
vòtres q u i p o u r r a i e n t les réconcilier. Croyez à
mes sentiments les p l u s afTectueux et les p l u s
dévoués. — E. Renan. »

Não é verdade que, para um joven brasileiro


que escrevia pela p r i m e i r a vez o francez, u m a
carta assim devia ser u m a sensação de fazer
epocha n a vida? L e i a m agora esta t r a i d o r a pagina
dos Souvenirs d Enj ance et de Jeunesse, que
seguramente não f u i o único a i n s p i r a r . V o u
c o m m e t t e r o c r i m e de t r a d u z i r Renan :
« Desde 1851 acredito não t e r p r a t i c a d o u m a
só m e n t i r a , excepto, n a t u r a l m e n t e , as m e n t i r a s
alegres de p u r a eutrapelia, as m e n t i r a s offíciosas
e de polidez, que todos os casuistas p e r m i t t e m ,
e t a m b é m os pequenos subterfúgios l i t t e r a r i o s
exigidos, e m vista de u m a verdade superior, pelas
necessidades de u m a phrase b e m e q u i l i b r a d a o u
para evitar u m m a l m a i o r , c o m o o de apunhalar
u m auetor. U m poeta, por exemplo, nos apresenta
os seus versos. E preciso dizer que são a d m i -
ráveis, p o r q u e sem isso seria dizer que elles não
t e m v a l o r e fazer u m a i n j u r i a m o r t a l a u m h o -
m e m que teve a intenção de nos fazer u m a c i v i -
lidade. »
A m e u respeito, si u m a vaga lembrança dos
m e u s versos lhe oceorreu t a n t o t e m p o depois ao
5
74 MINHA H Q R M A Ç Á O

escrever essa graciosa i r o n i a , o g r a n d e escriptor


enganou-se e m u m p o n t o : elle não me t e r i a apu-
n h a l a d o dizendo que os m e u s versos não v a l i a m
nada, e m vez de d i z e r - m e que e r a m admiráveis.
George S a n d escreveu-me t a m b é m a respeito do
m e u l i v r o : « I I est d'une r a r e d i s t i n e t i o n et les
nobles pensées y p a r l e n t une n o b l e l a n g u e », e,
curiosamente, M a d a m e C a r o egualmente se referia
a « Foeuvre q u i e x p r i m e dans u n n o b l e style l a
p l u s n o b l e s y m p a t h i e p o u r n o t r e malheureuse
patrie. » Todos esses c u m p r i m e n t o s , t o d a essa
nobreza, eu a r e c o l h i a e g u a r d a v a preciosamente
c o m o provas da generosa a m a b i l i d a d e e cortezia
do caracter francez. Q u a n t o ao v a l o r dos m e u s
versos, porém, a impressão que me ficou e apagou
todas as outras, f o i o silencio f r i o , impenetrável,
entretanto p o l i d o , attencioso, s y m p a t h i c o , de Ed-
m o n d Scherer. C o n t e i esse episódio p a r a a c a u -
telar o talento que se estréa c o n t r a a perigosa
seducção da eutrapelia l i t t e r a r i a . Conheço entre
nós u m mestre dessa arte do e s p i r i t o , M a c h a d o
de Assis, mas este, espero, não fará confissões.
« Q u e m se não pôde c o n f o r m a r á perda da pró-
p r i a h o n r a , d i z S. F e l i p p e N e r i , n u n c a avançará
na v i d a e s p i r i t u a l . » O e s c r i p t o r j u v e n i l que não
se resignar ao sacrifício da sua « h o n r a » l i t t e -
r a r i a , não fará progressos e m l i t t e r a t u r a .
VIII

A CRISE POÉTICA

A g o r a , as razões pelas quaes eu naufragaria


sempre no verso. S i o que estava nas paginas de
Atnour et Dicu fosse n o v o , eu poderia, de certo,
o r g u l h a r - m e do m e u p e n s a m e n t o ; ainda assim,
entretanto, não seria poeta. N ã o era n o v o , po-
rém. Tomem-se essas quadras :

La terre est une triste et bien sombre demeure :


P o u r que 1'homme s'attache à ce t e r r i b l e l i e u ,
I I f a u t que le poete avec l u i souffre et p l e u r e ,
E t l u i fasse espérer 1'adoption de D i c u .

Car D i e u t o u j o u r s est l o i n , et n o t r e h u m b l e prière


N e le f a i t p o i n t descendre à ce séjour d u m a l ;
E n v a i n nous 1'appelons et c r i o n s : N o t r e Pòre!
I I n e s t encore p o u r nous qu'un s o u p i r , 1'idéal.

Si ninguém tivesse dito o mesmo antes, essa


humanidade esperando a adopção de Deus, que é
ainda, p o r e m q u a n t o , um suspiro do seu coração,
seria o g e r m e n de u m a seduetora p h i l o s o p h i a ;
7G MINHA F O R M A Ç Ã O

aquelle trecho, porém, é a traducção, e m verso


fraco e m a l t r a b a l h a d o , do que R e n a n m e s m o
t o m a r a aos allemães e t i n h a expressado de m o d o
perfeito na m a i s elegante das prosas. O que me
enganava nos m e u s versos, parecendo-me sonoro
e elevado, não pertencia á poesia, pertenceria á
eloqüência. A q u i está u m a ode á França; é a
Alsacia-Lorena que falia á A l l e m a n h a :

Tu penses arrêter le sang de notre vie,


E n t'emparant des rails de nos c h e m i n s de f e r ;
N o u s avons c i n q u a n t e ans p o u r c h a n g e r de p a t r i e ,
P o u r nous enrôler, tous, c o n t e n t s , dans l a l a n d w e h r ?

Ah! la force t'inspire autant de confiance


Que nous e n puiserons dans le d r o i t éternel?
N o u s s o m m e s l e s deux bras mutilés de la F r a n c e ,
Q u ^ l l e t e n d t o u j o u r s vers le c i e i !

Mme. Caro, no agradecimento que me m a n d a ,


escreve : « Os dois braços m u t i l a d o s levantados
para os Céos, acabarão, tenho confiança, p o r
vencer o destino. » Os dois braços mutilados po-
d i a m ser os dois joelhos dobrados e m oração, os
dois pés acorrentados, o u o fígado d o P r o m e t h e u
dos y o s g e s d e v o r a d o pela águia negra da Prús-
sia e renascendo sempre. T u d o isto é do domínio
da r h e t o r i c a e do p a m p h l e t o p o l i t i c o : é u m l i b e l l o
e m h e m i s t i c h i o s c o m o a Nemcsis de Barthélemv.
N a d a é mais c o n t r a r i o á poesia d o que a em-
phase, o l o g a r - c o m m u m e o p a t h e t i c o da oratória.
MINHA F O R M A Ç Ã O 77

O n d e começa o advogado o u o t r i b u n o , acaba o


poeta.
O facto é que não possuo a f o r m a do verso, na
q u a l a idéa se m o d e l a p o r si m e s m a e donde sáe
c o m o t i m b r e próprio da v e r d a d e i r a r i m a , que
n e n h u m a r t i f i c i o n e m esforço pode i m i t a r . I s t o ,
por u m lado, q u a n t o á pequena poesia, á poesia
solta, ao que se pode c h a m a r a m u s i c a da poesia.
Q u a n t o á grande poesia, á poesia de imaginação
e creação, poema, r o m a n c e , b a i l a d a que fosse,
para essa eu seria incapaz, além da insufficiencia
do talento, pela falta de c o r a g e m para h a b i t a r a
região solitária dos espíritos creadores, os quaes
v i v e m n a t u r a l m e n t e entre figuras tiradas de si
mesmos, sem v i d a própria, autômatos da sua i n -
teligência e da sua vontade, como e m u m sonho
accordado. Nessa a l t u r a , onde t u d o é fictício, t u d o
i r r e a l , t u d o phantastico, a poesia t e m para m i m o
t e r r o r do adytum da P y t h i a . M e s m o q u a n d o as
figuras sejam meigas, suaves, humanas, a creação
envolve sempre a l g u m a coisa de m y s t e r i o s o e
terrível: a completa abstracção, que ella suppõe,
da realidade exterior, do m u n d o dos sentidos, m e
daria vertigem.
H a , além da poesia de sentimento e da poesia
de creação, o u t r a poesia. O verso é a mais nobre
f o r m a do pensamento, a m a i s p u r a crystallisaçâo
da idéa, e, c o m o se t e m d i t o , o que não se pode
expressar e m verso não vale quasi a pena ser con-
servado. Essa poesia, porém, que engasta as bellas
78 MINHA F O R M A Ç Ã O

idéas n a m a i s durável e perfeita da Gravações,


pertence quasi á espécie dos provérbios, e m que
se condensa e perpetua a sabedoria h u m a n a . E m
H o m e r o ella confunde-se c o m a h i s t o r i a ; e m
Dante c o m o c a t h o l i c i s m o : e m Gcethe c o m a
arte e c o m a sciencia. Essa é do domínio dos
m a i s altos gênios.
A poesia ao m e u alcance só podia ser a h u -
m i l d e nota i n d i v i d u a l : mas, c o m o eu disse, não
encontrei e m m i m a tecla do verso, c u j a r e s o -
nancia i n t e r i o r não se c o n f u n d e c o m a de-nenhum
t i m b r e a r t i f i c i a l . Q u a n d o mesmo, porém, eu t i -
vesse recebido o d o m do verso, t e r i a naufragado,
p o r q u e não nasci artista. A c r e d i t o t e r recebido
c o m o escriptor, t u d o é r e l a t i v o , u m pouco de
sentimento, u m pouco de pensamento, u m p o u c o
de poesia, o que t u d o j u n t o pôde dar, e m q u e m
não teve o verso, u m a certa m e d i d a de prosa
r h y t h m i c a : mas da arte não recebi sinão a aspi-
ração p o r ella, a sensação do órgão i n c o m p l e t o e
não f o r m a d o , o pezar de que a natureza me es-
quecesse no seu coro, o vácuo da inspiração que
me falta... Ustedes me entienden. « O artista, disse
N o v a l i s , deve querer e poder representar t u d o . »
Dessa faculdade de representar, de crear a me-
n o r representação das coisas, — quanto mais
u m a realidade m a i s alta do que a realidade, c o m o
q u e r i a Goethe, — f u i i n t e i r a m e n t e p r i v a d o . N e m
todos os que têm o d o m do verso são p o r n a t u -
reza artistas, e n e m todos os artistas têm o d o m
MINHA FORMAÇÃO 79

d o verso; a prosa os possúe c o m o a poesia-, a


m i m , porém, não coube e m p a r t i l h a n e m o verso
n e m a arte.
É s i n g u l a r c o m o entre nós se d i s t r i b u e o t i t u l o
de artista. M u i t a s vezes tenho l i d o e o u v i d o fallar
de R u y B a r b o s a c o m o de u m artista, pelo m o d o
p o r que escreve a prosa. N o m e s m o sentido po-
der-se-ia c h a m a r a K r u p p artista : a fundição é
de a l g u m a fôrma u m a arte, u m a arte cyclopica,
e de R u y B a r b o s a não é exaggerado dizer, pelos
blocos de idéas que l e v a n t a uns sobre o u t r o s e
pelos raios que funde, que é verdadeiramente u m
cyclope i n t e l l e c t u a l . M a s o artista? Existirá nelle
a camada da arte ? S i existe, e é b e m n a t u r a l ,
a i n d a jaz desconhecida delle m e s m o p o r b a i x o
das superposições da erudição e das leituras. E u
m e s m o já i n s i n u e i u m a vez : ninguém sabe o dia-
m a n t e que elle nos revelaria, si tivesse a c o r a g e m
de c o r t a r sem piedade a montanha de luz, c u j a
grandeza t e m offuscado a Republica, e de reduzil-a
a u m a pequena pedra. A q u i está o u t r o , José d o
Patrocínio, que não é t a m b é m u m artista, ainda
que em sua prosa se encontre o veio de o u r o da
poesia,filão,é certo, f u g i t i v o , e que se perde a
cada instante n a r o c h a p o l i t i c a . D e l i a poder-se-ia
e x t r a h i r verdadeira poesia;fazer c o m as palhetas
da sua phrase pelo menos u m a i m a g e m , a da loura
mãe dos captivos, assim c o m o c o m o sopro da
sua eloqüência de combate se faria u m baixo-
relevo para u m arco de t r i u m p h o : o Chant du
80 MINHA F O R M A Ç Ã O

Depart da abolição. T a m b é m elle não t e m a


faculdade do verso, no q u a l n a u f r a g a r i a c o m o
n a u f r a g o u no r o m a n c e , p o r q u e o seu reflexo i n -
tellectual t e m a vibração e a r a p i d e z do relâm-
pago, e o verso é p o r natureza d i a m a n t i n o . P o r
isso m e s m o t a m b é m sua prosa, e m que p o r vezes
ha o toque da poesia, e quasi o calor do senti-
m e n t o creador, ainda não pertence á arte, c o m o
pertence a de C h a t e a u b r i a n d , a de R e n a n , p o r
exemplo, p o r q u e não é u m estylo. N ã o t e m go-
verno, t e m apeeas m e d i d a ; reflecte a acção con-
fusa, a agitação perpetua de u m a epocha desequi-
l i b r a d a , sem u m instante de calma, de eternidade,
e m sua obra, no todo, genial. A g o r a o u t r o m u i t o
diverso. Haverá q u e m não sinta a m u s i c a i n n a t a
de Constancio A l v e s ? Este é b e m da o r d e m dos
pássaros, t e m o c a n t o : a prosa d e l l e g o r g e i a , sobe,
t r i n a ; no emtanto, si quizesse r e d u z i r a u m a o b r a
d a r t e a i r o n i a melodiosa que t e m e m s i , que res-
t a r i a delia ?
E u disse que me faltava o d o m do verso. O
t i m b r e do verso reconhece-se e m q u a l q u e r qua-
dra.Tome-se O l a v o B i l a c , p o r exemplo. N ã o posso
f a l l a r de L u i z M u r a t , que t e m m a i o r v o a d u r a de
imaginação, p o r q u e tenho até hoje respeitado
i n s t i n c t i v a m e n t e o cháos da sua a r t e ; s i n t o q u e
ha no seu t a l e n t o os elementos da poesia, m e n o s
a o r d e m , o p r i n c i p a l de todos, m a s q u e f e l i z -
m e n t e para elle, se a d q u i r e , ao passo q u e os o u -
tros são de herança. Suas fôrmas confusas e i n -
MINHA F O R M A Ç Ã O SI

tricadas parecem-me de m u d a , e eu o aguardo


na epocha e m que a m o c i d a d e t i v e r gastado a sua
violência e elle e n t r a r no bosque das M u s a s l e -
v a n d o o silencio e a t r a n q u i l l i d a d e na alma.
« E l l e ensinou-me, disse Gcethe f a l l a n d o d e Oeser,
que a belleza é s i m p l i c i d a d e e repouso, do que se
segue que n e n h u m joven pôde tornar-se u n mes-
t r e . » De M u r a t esperarei p a r a f a l l a r que p r i m e i r o
elle encontre o seu Oeser. Tome-se B i l a c , porém.
Basta ler a Profissão de Fe e m Panoplias, para
vêr que o verso nasceu c o m elle, que não é u m
esforço, u m t r a b a l h o , mas a expressão l i v r e ,
franca, n a t u r a l do pensamento :

Invejo o ourives quando escrevo ;


Imito o amor
C o m que elle e m o u r o o alto relevo
Faz de u m a flôr.

Não me cabe inquirir si o artífice se cingiu


sempre em sua o b r a ás regras do officio, que tão
perfeitamente e s c u l p i u : o b u r i l da r i m a , porém.
está em sua m ã o e ninguém se pôde enganar
sobre a espécie de m e t a l que elle é d i g n o de
lavrar.
O facto que eu queria assignalar, é somente que
c o n t r a h i em França neste anno de 1873-74 a aspi-
ração de auetor, a q u a l se desenvolveu ao con-
tacto de grandes espíritos da epocha, que me
acolheram c o m o eu podia desejar, especialmente
Renan, Scherer, George Sand.
>2 MINHA F O R M A Ç Ã O

R e n a n me dera o conselho, que t r a n s m i t t o á


n o v a geração de l i t t e r a t o s , de entregar-me a estu-
dos históricos. N ã o ha e m regra nada mais
ingrato, mais f u t i l , do que a producção que o i n -
divíduo t i r a toda de s i , e é o que acontece q u a n d o
o talento não t e m u m a profissão l i t t e r a r i a séria.
H a estudos, c o m o as h u m a n i d a d e s , que são ape-
nas a habilitação do espirito para a carreira das
l e t t r a s : q u e m os t e m pode d i z e r que possúe a
f e r r a m e n t a do seu o f f i c i o ; além d a f e r r a m e n t a ,
ha, porém, que escolher o m a t e r i a l . O m a t e r i a l
em que t r a b a l h a m os nossos h o m e n s de lettras,
são os costumes, a sociedade, q u a n d o são r o -
mancistas o u d r a m a t u r g o s : as leituras, q u a n d o
são críticos, a própria v i d a o u impressões, q u a n d o
são poetas.
O m a t e r i a l p r e f e r i d o é, c o m o se vê, t o d o elle
pouco consistente, ephemero, e m parte grosseiro,
em parte imprestável o u insufíiciente, e assim a
producção é quasi toda fácil, i m p r o v i s a d a , sem
t r a b a l h o a n t e r i o r , sem investigações, sem esforço,
sem t e m p o , sem n e n h u m elemento que revele
c o n t i n u i d a d e , ambição. F a l t a n d o a d i s c i p l i n a e a
emulação de u m a especialidade, que acontece?
A intelligencia contráe o h a b i t o da dissipação, da
indolência, do p a r a s i t i s m o ; o t a l e n t o relaxa-se,
perde t o d o o peso especifico. T e m o s p o r isso u m a
l i t t e r a t u r a desoccupada ; o nosso c a m p o litterariò
é c o m p o s t o àzflaneurs. A verdade é que vae au-
g m e n t a n d o consideravelmente e m nosso t e m p o o
MINHA F O R M A Ç Ã O 83

que M a t t h e w A r n o l d t r a d u z i u p o r inaccessibili-
dade ds idéas, e que esse n o v o P h i l i s t i n i s m o re-
duzirá a arte dos nossos banquetes l i t t e r a r i o s a
u m só gênero de i g u a r i a s , o gênero nature. O
p u b l i c o , o p r o t e c t o r m o d e r n o das lettras, cuja ge-
nerosidade t e m sido tão decantada, não passa de
u m Mecenas de m e i a - c u l t u r a , m e s m o e m França
e na I n g l a t e r r a . A c o n s e l h a r a jovens brasileiros
que se d e d i q u e m a estudos históricos desinteres-
sados, é aconselhar-lhes a' miséria ; mas as leis
da i n t e l l i g e n c i a são inflexíveis e a producção d o
espirito que não se a l i m e n t a sinão de sua própria
imaginação, t e m que ser cada d i a mais f r i v o l a e
sem v a l o r .
N ã o me aproveitei do conselho de Renan sinão
t a r d e de m a i s na v i d a , q u a n d o comecei a prepa-
r a r a b i o g r a p h i a de m e u pae, que é u m a perspe-
c t i v a da epocha toda de D. P e d r o I I . O aviso, po-
rém, a h i fica p a r a os que q u i z e r e m desenvolver e
aperfeiçoar o talento l i t t e r a r i o que possuem, e m
vez de dispersal-o e nada a p u r a r delle. O con-
selho não d e i x o u , entretanto, de i n f l u i r no m e u
e s p i r i t o , si não para me d i s c i p l i n a r a m i m mesmo,
ao menos para me fazer a q u i l a t a r o v a l o r do t r a -
b a l h o e da indagação e sentir a i n u t i l i d a d e , a v a -
cuidade do que é p u r a m e n t e pessoal e espontâ-
neo, desde que não seja característico.
Das m i n h a s conversas c o m Scherer, o que m e
contagiou f o i a sua admiração pelo romance i n -
glez, que parecia ser a l i t t e r a t u r a da casa. —Adam
84 MINHA F O R M A Ç Ã O

Bede, Jane Eyre, etc. E m m i m a c o n q u i s t a an-


glo-saxonia começou p o r T h a c k e r a y , que l i então,
c o m o já disse, n o r e t i r o de F o n t a i n e b l e a u . A
respeito dos m e u s versos, o g r a n d o c r i t i c o man-
teve esse silencio d e s a n i m a d o r dos médicos q u e
não sabem enganar, q u a n d o os doentes ingênuos
que se fizeram auscultar, q u e r e m s u r p r e h e n d e r e
penetrar c o m p e r g u n t a s insidiosas a realidade do
seu estado.
A febre poética que se t i n h a apossado de m i m
c o m esse p r i m e i r o ensaio de Amour et Dieu, não
devia ceder f a c i l m e n t e ; eu q u e r i a resgatar esse
esboço, q u e m e parecia i n f e r i o r e i m p e r f e i t o ,
substituil-o, e u m a idéa, q u e estava e m g e r m e n
e m u m a de suas poesias, desprendeu-se delle e
t o m o u e m m e u espirito as proporções e x t r a v a -
gantes de u m grande d r a m a e m verso. Deste f a l -
l a r e i m a i s tarde. G o m o se vê, b e m p o u c o d o po-
lítico m i l i t a n t e restava depois dessa p r i m e i r a via-
g e m á E u r o p a ; eu trocára e m P a r i z e n a Itália
a ambição p o l i t i c a pela l i t t e r a r i a : v o l t a v a cheio
de idéas de poesia, arte, h i s t o r i a , l i t t e r a t u r a , c r i -
tica, i s t o é, c o m u m a espessa c a m a d a européa n a
imaginação, c a m a d a impermeável á p o l i t i c a l o -
cal, a idéas, preconceitos e paixões de p a r t i d o , iso-
l a d o r a de t u d o o que e m p o l i t i c a não pertencesse
á esthetica, p o r t a n t o t a m b é m do r e p u b l i c a n i s m o ,
— p o r q u e a m i n h a esthetica p o l i t i c a t i n h a come-
çado a tornar-se e x c l u s i v a m e n t e m o n a r c h i c a .
IX

ADDIDO DE LEGAÇAO

D u r a n t e os cinco annos que seguem (1873-78),


a p o l i t i c a é p a r a m i m secundaria, quasi i n d i f f e -
rente, m a s esse m e s m o estado de espirito é, c o m
relação á m o n a r c h i a , u m processo de consolida-
ção, p o r q u a n t o , graças a todas essas fascinações
de arte e de poesia, a m i n h a esthetica p o l i t i c a , se-
g u n d o a expressão de que m e servi, e n c e r r a v a -
se, isolava-se, crystallisava-se na f o r m a m o n a r -
chica. Q u e m me a c o m p a n h a pôde estar certo de
que não existe n o que v o u d i z e n d o n e n h u m a som-
b r a dessa admiração pela própria i m a g e m , a que
Jules L e m a i t r e d e u o n o m e de narcisismo mo-
ral. A verdade é que, entre as molas d o m e u me-
chanismo, n e n h u m a teve a elasticidade e a força
da que eu c h a m a r i a a m o l a esthetica. O m e u juizo
esthetico f o i , e m t odas as epochas, ainda o é hoje,
i m p e r f e i t o , i n s t i n c t i v o , oscillante, c o m o u m a
agulha que girasse p o r todo o m o s t r a d o r : para
seguir algumas das suas indicações, faltou-me a
86 MINHA FORMAÇÃO

resolução, a força de caracter, a coragem e o es-


p i r i t o de sacrifício precisos : mas, e m compensa-
ção, posso dizer que, através da v i d a , aspirei ao
A b s o l u t o , n a u f r a g a n d o sempre, p o r q u e na v i d a da
i n l e l l i g e n c i a , ao c o n t r a r i o da v i d a e s p i r i t u a l , onde,
n o dizer de u m de seus grandes guias, não ha nada
que se pareça c o m a n c o r a d o u r o , ha u m . a n c o r a -
douro,masesseéareligião, eareligiãome pareceu,
até b e m pouco atraz, o r e m a n s o d a s m u l h e r e s e das
creancas. D u r a n t e toda a m i n h a carreira m o v i - m e
sempre p o r a l g u m magnete m o r a l ; m e u s erros
f o r a m desvios de idealisação; eu n u n c a teria po-
dido confessar u m a idéa, u m a crença, u m prin-
cipio, que não fosse p a r a m i m u m i m a n esthetico.
Sendo assim, si a m i n h a esthetica fosse r e p u b l i -
cana, isto é, atheniense, r o m a n a , florentina,
n u n c a a m o n a r c h i a me teria feito despregar a sua
b a n d e i r a n o c a m p o da imaginação, c o m o u m ca-
v a l l e i r o andante. P a r a sentir, sempre que a has-
teei, a m i n h a dignidade, a m i n h a altivez, o m e u
espirito expandir-se, era preciso que o signo mo-
n a r c h i c o actuasse e m m i m , c o m o u m a parcella
da arte que está m i s t u r a d a c o m a h i s t o r i a e que
de a l g u m m o d o a divinisa.
Ksse processo de idealisação, pelo q u a l a fôrma
m o n a r c h i c a se i n c o r p o r o u á m i n h a consciência
esthetica, se associou á m i n h a idéa de arte, é o
p r i n c i p a l t r a b a l h o político que se opera e m mim
desde o anno de 18-3 até o anno de 1879, e m

que t o m e i assento n a Câmara. Nesse i n t e r v a l l o ,


MIXIIA FORMAÇÃO 87

eu t i n h a v o l t a d o á E u r o p a e v i v i d o u m anno nos
Estados-Unidos. E n t r a m neste período as influen-
cias da I n g l a t e r r a e da sociedade ingleza, da Ame-
r i c a do N o r t e e da c a r r e i r a diplomática, além do
d e s e n v o l v i m e n t o da influencia l i t t e r a r i a , sob a
qual v o l t e i de P a r i z e m 1874.
Esta u l t i m a f o i tão forte que, nos dois annos
que passei n o v a m e n t e no R i o de Janeiro, não me
occupei de p o l i t i c a ; f i z , a pedido do I m p e r a d o r ,
a l g u m a s conferências na Escola da G l o r i a sobre
o que t i n h a visto de M i g u e l - A n g e l o , de Raphael
e dos grandes pintores v e n e z i a n o s ; f u i collabo-
r a d o r l i t t e r a r i o do Globo e t r a v e i c o m José de
A l e n c a r u m a polemica, em que receio ter tratado
c o m a presumpção e a injustiça da m o c i d a d e o
grande escriptor, — (digo receio, porque não t o r -
nei a lêr aquelles folhetins e não me recordo até
onde foi a m i n h a c r i t i c a , s i ella oíFendeu o que
ha p r o f u n d o , nacional, e m A l e n c a r : o seu brasi-
leirismo)-, escrevi n u m a revista que appareceu e
logo m o r r e u n o gênero da Vie Parisienne, a Epo-
cha, e, desde os fins de 1878, entreguei-me á com-
posição de u m d r a m a , e m verso francez, cuja
íactura me absorveu d u r a n t e mais de dois
annos.
A idéa do m e u d r a m a era o p r o b l e m a da A l -
sacia-Lorena. Isso revelava b e m o f u n d o político
da m i n h a imaginação. A p o l i t i c a , felizmente para
a intelligencia que nasceu c o m essa diathese, t e m
lados ainda indefinidos que c o n f i n a m c o m a arte,
88 MINHA F O R M A Ç Ã O

a religião e a p h i l o s o p h i a , istoé, p a r a f a l l a r a l i n -
g u a g e m hegeliana, c o m as tres espheras e m que
se m a n i f e s t a o espirito d o m u n d o . O m e u d r a m a
c o m ser írancez, de procedência, de m o t i v o sen-
t i m e n t a l , elevava-se, c o m o composição l i t t e r a r i a ,
a c i m a do espirito de nacionalidade, v i s a v a á u n i -
dade da justiça, do d i r e i t o , d o ideal entre as na-
ções, e baseava-se n o seu entrecho sobre as a f r i -
nidades e s y m p a t h i a s que l i g a r a m a França i n -
tellectual m o d e r n a á A l l e m a n h a de K l o p s t o c k ,
W i e l a n d , L e s s i n g , S c h i l l e r , Goethe e H e i n e , de
H e r d e r , W i n c k e l m a n n , Jean P a u l R i c h t e r , J o -
hannes M u l l e r , de N o v a l i s e dos Schlegel, de
K a n t , F i c h t e , H e g e l , S c h e l l i n g , de B a c h , G l u c k ,
H a y d n , M o z a r t , S c h u b e r t , S c h u m a n n e Beetho-
ven, em uma palavra, á alma parens d o sé-
culo X I X .
P o r u m a apparente a n o m a l i a , ao passo que eu
era p o l i t i c a m e n t e , c o m o disse, t h i e r i s t a o u r e p u -
b l i c a n o em França, o m e u d r a m a sahia t o d o legi-
t i m i s t a e c a t h o l i c o 5 os personagens e r a m t i r a d o s
p a r a m i m , não p o r m i m (a producção i n t e l l e -
c t u a l é involuntária), da velha rocha e m q u e se
e s t r a t i f i c a r a m as grandes tradições francezas. Isso
quer dizer que o inconsciente, que é e m q u a l q u e r
de nós o nosso único t a l e n t o , o nosso único p o -
der creador, era e m m i m , q u a l q u e r q u e fosse a
causa, fosse ella o i n s t i n c t o , fosse a c u l t u r a , d i s -
tinctamente monarchico.
Uma composição l i t t e r a r i a assim caracterisada
MIXIIA FORMAÇÃO 89

não podia d e i x a r de ser para o m e u espirito u m a


forte modelação p o l i t i c a . P a r a não v o l t a r a fallar
desse d r a m a , cuja única q u a l i d a d e é, talvez, ser
ineditò, c o n t a r e i desde já que, depois de o fazer
e refazer, copial-o e t o r n a r a copial-o, acabei-o em
1877, e
N o v a - Y o r k . T e n h o no m e u Diário desse
m

anno a data e m que, depois de u m j a n t a r , c o m


egoísmo inflexível de auetor, i n f l i g i a l e i t u r a desses
cinco actos a u m pequeno comitê de a m i g o s de
que fazia parte o barão B l a n c , então m i n i s t r o da
Itália e m W a s h i n g t o n , u l t i m a m e n t e m i n i s t r o de
Estrangeiros. E l l e m e terá perdoado esse sacrifí-
ficio, ao qual elle m e s m o se offereceu. O e n i g m a
europeu da A l s a c i a - L o r e n a , que é o f u n d o da
tríplice alliança, l h e terá i m p o s t o na C o n s u l t a
serões mais penosos e fatigantes do que aquella
assentada do B u c k i n g h a m H o t e l .
A indifferença p o l i t i c a e m que me achava, a
predisposição l i t t e r a r i a que acabo de descrever,
fez-me e n t r a r p a r a a d i p l o m a c i a e m 1876. E u
t i n h a p e r d i d o cinco annos desde a f o r m a t u r a , mas
nesses cinco annos não me teria o c e o r r i d o accei-
tar q u a l q u e r posto das m ã o s de u m m i n i s t r o con-
servador, eu l i b e r a l . O preconceito, o e x t r e m o
partidário, i m p e d i a m essa apostasia. Nesse inter-
v a l l o , porém, a intransigência se t i n h a gastado
toda e agora me parecia plausível a idéa, que
n u n c a antes me viera, de que os cargos públicos
não são monopólio do p a r t i d o que está no poder e
d e v e m ser confiados a q u e m m e l h o r os pode de-
00 MINHA FORMAÇÃO

sempenhar. N e m era preterição d a m i n h a parte


pensar que u m logar de a d d i d o de legação estava
ao n i v e l da m i n h a capacidade e situação social.
E r a , pelo c o n t r a r i o , u m a sensível reducção de pre-
tençõesanteriores, porque, ao sahir da A c a d e m i a ,
creio que só o l o g a r de m i n i s t r o me teria c o n t e n -
tado. A ambição e m m i m foi-se p r o g r e s s i v a m e n t e
r e s t r i n g i n d o á m e d i d a que f u i v i v e n d o . N ã o q u e r o
dizer que se t e n h a deslocado d o pessoal p a r a o
real, do ephemero p a r a o d u r a d o u r o , isto é, q u e
se tenha g r a d u a l m e n t e e l e v a d o ; graças a Deus,
porém, na esphera das competições que f o r m a m
a l u c t a pela v i d a ella n u n c a d e u c o m b a t e a n i n -
guém.
T a l v e z eu t e n h a sentido u m pouco a desde-
nhosa v o l u p t u o s i d a d e d o provérbio : « as g l o r i a s
que v ê m tarde já v ê m frias C o m o a ambição
foi e m m i m toda de imaginação e d e s p o n t o u pe-
los meus dezoito o u v i n t e annos, nada p o d i a t e r
v i n d o para m i m que não chegasse tarde. D o p o n t o
de v i s t a e m que m e colloco hoje, s i n t o b e m q u e
o p o u c o q u e m e t o c o u , v e i u a t e m p o , no m o m e n t o
em que eu estava apto p a r a o receber, e que o q u e
não v e i u , d e i x o u de v i r p o r q u e não m e c o n v i n h a
ainda, e eu teria n a u f r a g a d o . A impaciência da
mocidade, porém, não m e d e i x a v a apreciar en-
tão a generosidade do veto d a F o r t u n a , q u e m e
excluía d o que eu não estava i n t e r i o r m e n t e p r e -
p a r a d o para a p r o v e i t a r . Nesse t e m p o , eu não
t i n h a a m e n o r idéa de que u m a g r a n d e v i d a pu-
MINHA FORMAÇÃO 91

b l i c a p r e c i s a ser a l l u m i a d a , c o m o a a r c h i t e c t u r a
de R u s k i n , e n t r e o u t r a s p e l a s l â m p a d a s d o sa-
crifício, d a v e r d a d e , d a imaginação, d a b e l l e z a , e
d a obediência. O t a l e n t o , a fôrma, a eloqüência,
o que tinha b r i l h o exterior, tinha para m i m maior
v a l o r d o q u e o e s p i r i t o i n t e r i o r de fé, c o n t i n u i d a d e
e submissão, q u e , único, i n s p i r a e f o r m a os ver-
d a d e i r o s padrões h u m a n o s .
C o m o q u e r q u e seja, t e n h o d a q u e l l e c a r g o de
a d d i d o de legação, único q u e e x e r c i , a m a i s r e -
c o n h e c i d a e a f f e c t u o s a lembrança. N u n c a mais
t e r i a eu p o d i d o a c c e i t a r o u t r o ; c o m e f f e i t o , p o u c o
d e p o i s e n t r a v a p a r a a C â m a r a , e dava-se a m i n h a
i n c o m p a t i b i l i d a d e de a b o l i c i o n i s t a m i l i t a n t e c o m
o s y s t e m a político d a escravidão, e, a c a b a d a esta,
logo e m seguida, s u r g i a p a r a m i m outra ab-
stenção forçada : a d a defesa d a m o n a r c h i a c o n -
t r a os p a r l i d o s . O signatário d a q u e l l e d e c r e t o f o i
o barão de C o t e g i p e . A nomeação não e r a de
c e r t o escandalosa : e m q u a l q u e r ministério de Es-
t r a n g e i r o s o n d e não existisse p a t r o n a t o , eu t i r a -
ria o meu l o g a r de a d d i d o em c o n c u r s o : não
t e n h o , p o r é m , e m m i m essa m e d i d a d a gratidão
c o m que outros a p u r a m p o r m i l l i m e t r o s o favor
o u o serviço q u e r e c e b e m ; não conheço a a r t e
de a n a l y s a r , de d e c o m p o r , pelas intenções secre-
t a s e c i r c u m s t a n c i a s f o r t u i t a s , o obséquio, a d i s -
tineção, o benefício q u e n o s é f e i t o , de m o d o a
ser o a c c e i t a n t e ás vezes q u e m g e n e r o s a m e n t e ca-
p t i v a e o b r i g a o d o a d o r . S i o barão de C o t e g i p e m e
92 MIXIIA FORMAÇÃO

tivesse n o m e a d o de vez m i n i s t r o p l e n i p o t e n c i a -
r i o , o seu credito contra m i m não teria sido m a i o r
do que f o i c o m essa designação p a r a o p r i m e i r o
degráu da c a r r e i r a diplomática.
X

LONDRES

T a l v e z eu pudesse r e s u m i r o processo da m i - '


n h a solidificação p o l i t i c a , dizendo somente que
a m o n a r c h i a faz parte da a t m o s p h e r a m o r a l da
I n g l a t e r r a e que a influencia ingleza f o i a mais
forte e m a i s d u r a d o u r a que recebi.
Q u a n d o pela p r i m e i r a vez desembarquei e m
Folkestone, entrando na I n g l a t e r r a , eu t i n h a
passado mezes e m P a r i z , t i n h a atravessado a
Itália, de Gênova a Nápoles, t i n h a parado longa-
m e n t e á m a r g e m do lago de Genebra, e não me
p o d i a esquecer da suave perspectiva, á beira do
T e j o , de Oeiras a Belém, cuja t o n a l i d a d e doce
erisonha n u n c a o u t r o h o r i z o n t e me r e p e t i u . P o r
toda a parte eu t i n h a passado c o m o viajante,
d e m o r a n d o - m e ás vezes o t e m p o preciso para
receber a impressão dos logares e dos m o n u -
mentos, o m o l d e i n t i m o da p a i z a g e m e das obras
de arte, mas desprendido de t u d o , na i n c o n s -
tância c o n t i n u a da imaginação. Q u a n d o avistei,
f

94 MINHA. FORMAÇÃO

porém, da janeila do w a g o n , p o r u m a t a r d e de
verão, o tapete de r e l v a que cobre o chão l i m p o e
as collinas macias de K e n t , e no d i a seguinte,
p a r t i n d o do pequeno apparHment que me t i n h a m
guardado perto de G r o s v e n o r Gardens, f u i descor-
tinando u m a a u m a as fileiras de palácios do
W e s t E n d , atravessando os grandes parques,
encontrando em St. James's Street, P a l l M a l l ,
P i c c a d i l l y , a m a r é cheia da season, essa multidão
aristocrática que a pé, a cavallo, e m c a r r u a g e m
descoberta, se d i r i g e duas vezes p o r d i a p a r a o
rendez-vous de H y d e P a r k , e, dias seguidos, pene-
t r e i e m outras regiões da cidade sem f i m , conhe-
cendo a população, a p h y s i o n o m i a i n g l e z a toda,
raça, caracter, costumes, maneiras, — posso
dizer que senti m i n h a imaginação excedida e
vencida. A curiosidade de p e r e g r i n a r estava satis-
feita, t r o c a d a e m desejo de p a r a r a l l i p a r a sempre.
A s vezes me d i s t r a i o a pensar que p o v o eu sal-
v a r i a , podendo, si a h u m a n i d a d e se devesse r e -
duzir a um só. M i n h a hesitação seria entre a
França e a I n g l a t e r r a , — aliás, sei b e m que no
começo do século q u e m eliminasse a A l l e m a n h a
do m o v i m e n t o das idéas, da poesia, d a arte, e l i -
m i n a r i a o que elle teve de m e l h o r . E n t r e a França
e a I n g l a t e r r a , porém, fico sempre i n c e r t o . O
m e u dever seria, talvez, soccorrer a França. « S i
M . Récamier e eu estivéssemos a nos afobar,
me

q u a l de nós duas o senhor salvaria ? » p e r g u n t o u


u m a vez M a d a m e de Staèl ao seu a m i g o T a l l e y -
MINHA FORMAÇÃO 95

r a n d . « Oh! madame, vous savez nager. » A


I n g l a t e r r a , t a m b é m , sabe nadar.
O gênio francez t e m todos os raios do espirito
h u m a n o , p r i n c i p a l m e n t e os raios estheticos; o
gênio inglez não os t e m todos, t e m até u m a
opacidade s i n g u l a r nos focos do e s p i r i t o , que me-
r e c e m o n o m e de francezes, e m quasi todos os
que m e r e c e m o n o m e de athenienses. A I n g l a -
t e r r a — a associação de idéas t e m sido m u i t a s
vezes feita, — é a C h i n a da E u r o p a ; isto é, t e m
u m a i n d i v i d u a l i d a d e i n a m o l g a v e l , incapaz de
tomar a physionomia c o m m u m . Latinos, A l l e -
mães, Slavos formarão u m a só família, p o r m u i -
tíssimos traços c o m m u n s , antes que o Inglez
deixe de ser u m typo sui generis, á parte do t y p o
collectivo europeu. P o r esse m o t i v o , a França,
só, representaria m e l h o r a h u m a n i d a d e do que a
I n g l a t e r r a ; ha n'ella m a i s a t t r i b u t o s universaes,
m a i o r n u m e r o de faculdades creadoras, de q u a l i -
dades de t r o n c o , m a i o r s o m m a de hereditariedade
h u m a n a , de possibilidades evolutivas p o r t a n t o ,
do que no p a r t i c u l a r i s m o e no exclusivismo inglez.
E m compensação, a raça ingleza parece ser m a i s
sã, mais elástica; t e r m a i o r v i g o r m e s m o de
gênio e de creação; m a i o r provisão de v i d a e de
força, — ainda que a força sem a imaginação e a
c u l t u r a , (que na I n g l a t e r r a t e m sido, e m g i a n d e
parte pelo menos, estrangeira), possa degenerar
e m b r u t a l i d a d e e egoísmo. Estão a h i as razões da
m i n h a hesitação, q u a n d o i m a g i n o u m n o v o dilúvio
96 MINHA FORMAÇÃO

u n i v e r s a l e m e p e r g u n t o que paiz, nos m a i s altos


interesses da i n t e l l i g e n c i a h u m a n a , mereceria o
p r i v i l e g i o de c o n s t r u i r a arca.
Q u a l q u e r que seja a explicação, o facto é que
n u n c a e x p e r i m e n t e i esse prazer de v i v e r e m P a r i z ,
que f o i e é a paixão c o s m o p o l i t a d o m i n a n t e e m
redor de nós. A g r a n d e impressão que recebi
não foi P a r i z , f o i L o n d r e s . L o n d r e s f o i para m i m
o que teria sido Roma, si eu vivesse entre o
século n e o século i v , e u m d i a , t r a n s p o r t a d o d a
m i n h a aldeia t r a n s a l p i n a o u do f u n d o da África
R o m a n a para o alto do P a l a t i n o , visse desenro-
lar-se aos m e u s pés o m a r de o u r o e b r o n z e dos
telhados das basílicas, circos, t h e a t r o s , t h e r m a s
e palácios ; isto é, para m i m , p r o v i n c i a n o d o
século x i x , f o i , c o m o R o m a para os p r o v i n c i a n o s
do t e m p o de A d r i a n o o u de Severo : a Cidade.
Essa impressão universal, da cidade que c a m p e i a
a c i m a de todas, senhora do m u n d o pelo millia-
rium aureufh, o q u a l no século x i x t i n h a que ser
marítimo; essa impressão soberana, tive-a tão
distineta c o m o si a h u m a n i d a d e estivesse a i n d a
toda centralisada. O effeito dessa impressão de
domínio f o i u m a sensação definalidade,que so-
m e n t e L o n d r e s m e d e u : — não de f i n a l i d a d e i n -
t e l l e c t u a l , c o m o dá a A t h e n a s de Pericles, a F l o -
rença dos M e d i c i s , a R o m a de Leão X, ao h o m e m
de arte, a Versalhes do século x v n ao h o m e m
de côrte, a R o m a das C a t a c u m b a s ao h o m e m de
fé, a R o m a a n t i g a ao h o m e m d o passado, N i e -
MINHA F O R M A Ç Ã O 97

b u h r , C h a t e a u b r i a n d , A m p è r e , a pequena W e i -
m a r d o f i m do século x v n i ao h o m e m de letras,
ou P a r i z , ainda neste século, até R e n a n e T a i n e ,
ao h o m e m de c u l t u r a ; f i n a l i d a d e m a t e r i a l , si
m e posso expressar assim, de grandeza esmaga-
d o r a e império i l l i m i t a d o .
D o n d e procede essa impressão universal de
L o n d r e s , seguida dessa sensação de f i n a l i d a d e ,
que talvez seja toda subjectiva ? (Não m e parece
entretanto.)
O que dá á « Metrópole » esse ascendente
imperial, quero crer, é a sua massa gigan-
tesca, as suas perspectivas i n f i n d a s , a solidez
eterna, egypciaca, das construcções, as i m m e n s a s
praças, e os parques que se a b r e m de repente n a
e m b o c c a d u r a das ruas, c o m o planícies onde pode-
r i a m e r r a r grandes rebanhos, á s o m b r a de velhas
arvores, á beira de lagos que m e r e c e m pertencer
ao relevo n a t u r a l da T e r r a . Este u l t i m o é, para
m i m , o traço d o m i n a n t e de L o n d r e s :"o estran-
geiro s u p p o r i a ter entrado n o campo, nos subúr-
bios, q u a n d o está no coração da cidade; é a
mesma impressão, porém, incalculavelmente m a i s
vasta, que dava a Casa de O u r o : « O o u r o e
as pedras preciosas não causavam tanta m a r a -
v i l h a , p o r serem já m u i t o vulgares, e u m a osten-
tação ordinária do l u x o , c o m o os campos e os
lagos, e p o r u m a parte as artiíiciaes solidões e
desertos, f o r m a d o s p o r bosques espessos, e p o r
o u t r a , as largas planícies e longas perspectivas,
G
98 MINHA F O R M A Ç Ã O

que d e n t r o d o seu í m m e n s o c i r c u l o se v i a m . »
N e m pára a h i o assombro. E a larga faixa do
Tâmisa, c o m as pontes colossaes que o atraves-
sam e os m o n u m e n t o s assentados á sua m a r g e m
desde Ghelsea até á P o n t e de L o n d r e s , p r i n c i -
p a l m e n t e o massiço dos edifícios de W e s t m i n s t e r ,
a extensa l i n h a das Casas do P a r l a m e n t o , a m a i s
grandiosa s o m b r a que construcção c i v i l p r o j e c t a
sobre a t e r r a . E, p o r o u t r o lado, a C i t y , e m r o d a
do B a n c o de I n g l a t e r r a , c o m o R o y a l E x c h a n g e
ao lado, e L o m b a r d Street defronte, o m e r c a d o
monetário, o v e r d a d e i r o comptoir do m u n d o .
A q u i , nas ruas calçadas a m a d e i r a , p a r a a i n d a
m a i s a m o r t e c e r o ruído, causa u m a impressão
s i n g u l a r a multidão que não perde u m m i n u t o ,
indifferente a si mesma, á q u a l nada d i s t r a h i r i a o
o l h a r n e m a r r a n c a r i a u m a s y l l a b a , e que trans-
p o r t a debaixo do braço, e m suas carteiras, massas
de c a p i t a l que s e r i a m precisos w a g o n s p a r a car-
regar e m d i n h e i r o , os cheques que vão p a r a a
C l e a r i n g - H o u s e , os bilhões esterlinos, que p o r
ella passam, t r a n s f e r i d o s de banco a banco, i m -
p o r t a d o s , reexportados, pelo t e l e g r a p h o p a r a os
confins do m u n d o d o n d e v i e r a m . O t r a n s e u n t e
pára no m e i o de t o d o esse fluxo e r e f l u x o d o
o u r o , s e n t i n d o não o u v i r o t i n i d o das l i b r a s ; as
oscillações c o n t i n u a s , subterrâneas, dessas cor-
rentes c o n t r a r i a s de m e t a l elle só as conhecerá

1
TÁCITO, Trad.-Freire de Carvalho.
MIXIIA FORMAÇÃO 09

pelo seu effeito sensível : a taxa do desconto.


O que dá t a m b é m a L o n d r e s o seu t o m de
majestade e soberania é a d i g n i d a d e , o silencio
que a e n v o l v e : a c a l m a , a tranqüilidade, o re-
pouso, a confiança que ella r e s p i r a ; é o a r con-
centrado, r e c o l h i d o , severo p o r vezes, da sua
p h y s i o n o m i a , e, ao m e s m o t e m p o , a u r b a n i d a d e
das suas m a n e i r a s ; é o r e t i r o em que se v i v e no
seio delia, no centro das suas ruas mais p o p u -
losas; o i s o l a m e n t o e m que se está nas suas
cathedraes, c o m o no B r i t i s h A l u s e u m , nos seus
parques, c o m o nos seus theatros o u nos seus clubs.
Esse traço de seriedade e de reserva define, a
m e u vêr, u m a raça i m p e r i a l , enérgica e r e s p o n -
sável, conscia da sua força, v i r i l e magnânima.
A l é m disso, ha uma feição notável, caracterís-
tica, expressão suprema de força e de domínio :
não é u m a cidade c o s m o p o l i t a essa metrópole do
m u n d o : é u m a cidade ingleza.
P a r i z ao lado de L o n d r e s é u m a obra d'arte,
i m m o r t a l m e n t e bella, ao lado de u m a m u r a l h a
pelasgica; é u m E r e c h t e i o n , em frente ao Mem-
n o n i u m de Thebas. De certo não ha no m u n d o
u m a perspectiva a r c h i t e c t u r a l egual á que se
extende do A r c o do T r i u m p h o pelos C a m p o s
Elyseos até o L o u v r e e do L o u v r e pelo cáes do
Sena até a p a n h a r Notre-Dame. E m L o n d r e s não
se t e m essa impressão de arte que corre p o r
c i m a da velha P a r i z toda c o m o u m friso grego.
Para o artista que precisa inspirar-se exterior-
100 MINHA F O R M A Ç Ã O

mente nas fôrmas da edificação, v i v e r n o m e i o


do bello realisado pelo gênio h u m a n o , L o n d r e s
.está para P a r i z c o m o K h o r s a b a d p a r a A t h e n a s .
O gênio francez alegre e festivo é e m t u d o d i f t e -
rente da grande apathia ingleza, e e m P a r i z se
está defronte d a o b r a p r i m a da arte franceza.
Por abi não ha que c o m p a r a r . P a r a o i n t e l l e c t u a l
que precise d i a r i a m e n t e de u m passeio artístico
para vitalisar-se, assim c o m o p a r a o h o m e m de
espirito e de salão, Pariz é a p r i m e i r a das r e s i -
dências, porque é a que reúne á arte o prazer de
viver e m suas fôrmas m a i s delicadas e elegantes.
N ã o ha nada e m L o n d r e s que corresponda á
aspiração franceza, hoje decadente e m u i t o es-
vaecida, de fazer da v i d a toda u m a arte, a s p i r a -
ção cuja o b r a p r i m a foi a polidez d o século x v n
e o e s p i r i t o do século x v m . D e i x a n d o a grande
arte que t e m c o m m e t t i d o iníidelidades ao gênio
francez, c o m o a de p r o d u z i r fóra de França
Goethe, B e e t h o v e n e M o z a r t , as pequenas artes,
— e não c h a m o pequena arte á o b r a dos grandes
ebanistas, incrustadores, cinzeladores d o m o v e i ,
de Riesener, B o u l l e , B e n e m a n , Gouthière, — as
pequenas artes são ainda e x c l u s i v a m e n t e f r a n -
cezas, c o m o na R o m a de Cícero e r a m gregas. O
que ha e m L o n d r e s c o m o prazer da v i d a , não é
a arte, é o c o n f o r t o ; não é a regra, a m e d i d a , o
t o m das maneiras, é a l i b e r d a d e , a i n d i v i d u a l i -
dade; não é a decoração, é o espaço, a solidez.
P a r i z é u m t h e a t r o em q u e todos, de todas as
MINHA FORMAÇÃO 101

profissões, de todas as edades, de todos os paizes,


v i v e m representando p a r a a multidão de curiosos
que os c e r c a m ; L o n d r e s é u m convento, em
fôrma de C l u b , em que os que se e n c o n t r a m no
silencio da grande b i b l i o t h e c a o u das salas de
j a n t a r não dão fé uns dos o u t r o s , e cada u m se
sente indifferente a todos. E m P a r i z a v i d a é u m a
limitação ; e m L o n d r e s u m a expansão ; e m P a r i z
u m c a p t i v e i r o , c a p t i v e i r o da arte, do espirito, da
etiqueta, da sociedade, c a p t i v e i r o agradável c o m o
seja, mas sempre u m captiveiro, e x i g i n d o u m a
vigilância constante d o a c t o r sobre si m e s m o
deante d o p u b l i c o , que repara e m t u d o , que nota
t u d o ; e m L o n d r e s é a independência, a n a t u r a -
lidade, a despreoccupaçâo. Ceei tuera cela.
F o i , talvez, este lado da v i d a ingleza o que me
seduziu. A impressão artística é, p o r sua natureza,
fatígante, exclusiva, e, além de certo diapasão,
i n c o n f o r t a v e l , c o m o toda vibração demasiado
forte. E u não q u i z e r a ser c o n d e m n a d o a passar
u m a h o r a p o r d i a deante da Joconde, n e m
m e s m o deante da V e n u s de M i l o . P a r a r e n o v a r
a m i n h a c u r t a faculdade de a d m i r a r e de gozar
da o b r a d'arte, preciso de longos intervallos de
repouso, para dizer a verdade, de obtusão. L o n -
dres era essa p e n u m b r a que quadra a d m i r a v e l -
m e n t e á m i n h a fraca p u p i l l a esthetica ; a!li t i n h a
á m i n h a disposição, excusez du peu, os már-
mores de P h i d i a s ; não havia epocha artística o u
l i t t e r a r i a que, querendo v i v e r nella meia h o r a , —
G.
102 MINHA F O R M A Ç Ã O

de m a i s não me sentiria capaz, — eu não achasse


representada no B r i t i s h M u s e u m , na N a t i o n a l
G a l l e r y , em S o u t h K e n s i n g t o n , e nas o u t r a s
grandes collecções nacionaes. Essa p r o x i m i d a d e
bastava-me; q u a n t o a t u d o m a i s que faz o prazer
da v i d a , eu preferia, c o m o disse, a n a t u r a l i d a d e ,
a calma, o descanço, as grandes perspectivas, o
isolamento, o esquecimento de L o n d r e s á c o n -
stante vibração de P a r i z , vibração c o s m o p o l i t a
de espirito, de prazer, de arte, através de u m a
atmosphera de l u x o , de c o m b a t e e de theatro.
E u sei b e m que ha alli o u t r a v i d a ; que ha indif-
ferentes, solitários, reclusos na grande c a p i t a l ,
pequenos claustros de silencio e de meditação,
onde não chegam até ao pensador e ao artista os
ruídos de fóra. Sem isso, P a r i z não p r o d u z i r i a o
grande pensamento; mas a v i v e r isolado do mo-
v i m e n t o de P a r i z , antes estar separado delle pela
M a n c h a do que pelo Sena, c o m o o m e u a m i g o
Rio-Branco, que se fechava na M a r g e m Es-
querda, c o m a sua b i b l i o t h e c a b r a s i l e i r a , as suas
p r o v a s à c o r r i g i r , e os seus Íntimos do I n s t i t u t o .
O facto é que a m e i L o n d r e s a c i m a de todas as
outras cidades e logares que p e r c o r r i . T u d o e m
L o n d r e s me feria u m a nota i n t i m a de l o n g a reso-
n a n q a : as suas extensas c a m p i n a s e os seus
bosques, c o m o o t i j o l o ennegrecido das suas
construcções ; o m o v i m e n t o a t o r d o a d o r de Re-
g e n t C i r c u s o u L u d g a t e H i l l , c o m o os recessos de
K e n s i n g t o n P a r k , á s o m b r a do a r v o r e d o s e c u l a r ;
MINHA FORMAÇÃO 103

os seus dias quentes de verão, q u a n d o o asphalto


amollece d e b a i x o dos pés, a f o l h a g e m se cobre
de poeira, e o a r t e m o c a l o r secco das thermas,
c o m o os seus deliciosos dias de m a i o e j u n h o ,
q u a n d o as m a i s altas janellas se t r a n s f o r m a m e m
j a r d i n s suspensos, e as grandes cestas dos p a r q u t s
se e n c h e m de t u l i p a s e j a c i n t h o s ; as suas noites
de l u a r , que f a z i a m P a r k L a n e parecer-me ás
vezes n a nevoa, c o m a sua r u a de palácios, u m
t r e c h o de Veneza, e que de P i c c a d i l l y , o l h a n d o
p o r c i m a da b r u m a de Green-Park para a i l l u m i -
nação e m r o d a de B u c k i n g h a m Palace, me d a v a m
sempre a illusão do o u t r o lado da bahia do R i o ,
v i s t o da esplanada da G l o r i a , c o m o os seus dias
escuros e tristes de nevoeiro, que eu não teria
então trocado pelo azul do Mediterrâneo n e m pela
pureza do céo da A t t i c a : os seus traços de m a i o r
cidade do m u n d o , a esplendida belleza da sua
raça, e os m e n o r e s detalhes de sua p h y s i o n o m i a
própria ; os mostradores das lojas de l u x o de
P i c c a d i l l y e New-Bond-Street, c o m o os hansoms
que p a r a v a m e m f r e n t e : o Times, a Pall Ma 11
Gazette, o Spcctafor, c o m o o papel avelludado,
o t y p o , g r a n d e e claro, o couro liso, macio, dou-
rado dos l i v r o s : a t r a n q u i l l i d a d e dos clubs, o re-
c o l h i m e n t o das egrejas, o silencio dos domingos,
c o m o a confusão, o m o v i m e n t o , o atropelo em
Charing-Cross e V i c t o r i a Station, da onda i m -
mensa de todas as classes e de todas as edades,
que se espalha de Londres, á tarde dos sabbados,
104 MINHA FORMAÇÃO

p a r a as p r a i a s de m a r , para as casas de campo,


para as m a r g e n s do Tâmisa.
T u d o isso, eu vejo bem, não era sinão a m i n h a
própria mocidade... c o m a differença talvez de
que os o u t r o s logares, era ella que os coloria, os
a n i m a v a , os a s s i m i l a v a a s i , ao passo que e m
L o n d r e s ella t r a n s b o r d a v a n a t u r a l m e n t e pelo
j o r r a r de todas as suas fontes.
Esse s e n t i m e n t o paguei-o caro depois, p o r q u e
foi em L o n d r e s que senti d e f i n h a r m o r t a l m e n t e
a p l a n t a h u m a n a que ha e m cada u m de nós e
sobre a q u a l o nosso espirito apenas pousa, c o m o
o. pássaro no mais alto da r a m a g e m : as suas
raizes physicas e m o r a e s p r e c i s a v a m do solo
e m que ella se t i n h a f o r m a d o : as suas folhas.
do nosso sol. AindS. assim, f o i a L o n d r e s que
v i m a dever, annos m a i s tarde, u m a restituição
que b e m c o m p e n s o u aquelle deperecimento. F o i
e m L o n d r e s , graças a u m a concentração for-
çada, a q u a l não t e r i a sido possível p a r a m i m
sinão e m sua b r u m a , que a m i n h a i n t e l l i g e n c i a
p r i m e i r o se f i x o u sobre o e n i g m a do destino hu-
m a n o e das soluções até hoje achadas p a r a elle,
e, i n s e n s i v e l m e n t e , na escondida egreja dos Je-
suítas, e m F a r m Street, onde os v i b r a n t e s açoites
do padre G a l l w a y me f i z e r a m sentir que a m i n h a
anesthesia religiosa não era completa, depois no
Oratório de B r o m p t o n , r e s p i r a n d o aquella p u r a
e c i a p h a n a a t m o s p h e r a e s p i r i t u a l i m p r e g n a d a do
hálito de F a b e r e de N e w m a n , p u d e r e u n i r no
MINHA F O R M A Ç Ã O 105

m e u coração os f r a g m e n t o s quebrados da c r u z e
c e m eíia r e c o m p o r os s e n t i m e n t o s esquecidos
da infância.
XI

32, GROSVENOR GARDENS

F a l l e i de L o n d r e s c o m o si fosse para m i m a
cidade única, p o r q u e L o n d r e s r e u n i u e m u m a só
impressão as sensações differentes q u e m e c a u -
saram, o u v i e r a m a causar, P a r i z , R o m a , Pisa,
Veneza, N o v a - Y o r k , B o s t o n , W a s h i n g t o n . É
preciso, p a r a cada u m desses nomes, fazer um
transporte, de raça, c l i m a , arte, passado, para se
ter a impressão ingleza e q u i v a l e n t e ; m a s eu pre-
tendo t e r t i d o e m L o n d r e s a sensação : de v i d a
s u p r e m a q u e se t e m e m P a r i z , de e n c a n t a m e n t o
que se t e m em R o m a o u Florença, de m o r t e
radiante que se t e m e m Pisa, de p o d e r marítimo
e solidez aristocrática que se t e m e m Veneza, de
opulencia, mocidade, e belleza h u m a n a q u e se
t e m e m Nova-York, de silencio, distincção i n t e l -
lectual que se t e m e m B o s t o n , de instituições
civis i n d e s t r u c t i v e i s e gigantescas q u e se t e m ' e m
Washington deante d o Capitólio. T u d o isso
t r a n s p o r t a d o , eu já disse, fazendo-se, p o r exem-
MINHA F O R M A Ç Ã O 107

p i o , a reducção da impressão do F ó r u m para a


da T o r r e de L o n d r e s , o u do c a t h o l i c i s m o para
o p r o t e s t a n t i s m o , c o m o q u e m dissesse do P a p a
p a r a o arcebispo de C a n t u a r i a , o u do V a t i c a n o
para L a m b e t h Palace.
N ã o pertenço ao n u m e r o dos solitários, dos
fortes, que b a s t a m a si m e s m o s e p o d e m v i v e r
c o m s i g o só de arte, de h i s t o r i a , de paizagem, de
pensamento. L o n d r e s c o m a sua grandeza, o seu
império, os seus vastos h o r i z o n t e s interiores, as
suas estatuas, o seu friso do P a r t h e n o n , os seus
t o u r o s alados da A s s y r i a , os seus Cartões de Ra-
phael, teria sido p a r a m i m u m a solidão asphy-
xiante, si eu não tivesse encontrado no m e i o
delia u m c i r c u l o i n t i m o onde descançar a i m a -
ginação da acuidade, da p l e n i t u d e de todas
aquellas impressões. Sem u m m e d i a d o r plástico,
eu não teria ficado a l l i , apezar de todas as m i -
nhas affinidades. S i eu tivesse que d e f i n i r a f e l i -
cidade, d i r i a que é a admiração, o sentimento
do que é bello e m conta de participação c o m os
que nos são harmônicos. O elo de união foi para
m i m 32, Grosvenor Gardens.
N ã o t e n h o espaço nestas paginas p a r a collocar
os retratos do dono e da dona da casa. Só d i r e i
do p r i m e i r o , nas suas roupas de d o u t o r de
O x f o r d , que o seu m o l d e diplomático está para
o B r a s i l tão i r r e p a r a v e l m e n t e p e r d i d o c o m o para
Veneza o dos seus embaixadores dos séculos X V I
e X V I i . Da baroneza de Penedo basta-me d a r
Í08 MINHA F O R M A Ç Ã O

este traço : v i v e n d o p o r m a i s de t r i n t a annos


c o m a corte e a sociedade ingleza, ella não p o z
n u n c a no segundo plano as suas amizades a i n d a
as m a i s h u m i l d e s e exerceu sempre a h o s p i t a l i -
dade da sua mansão de L o n d r e s á boa m o d a d o
nosso paiz, c o m a m a i s egual affabilidade p a r a
todos, o que b e m m o s t r a a altivez de raça de
uma A n d r a d a .
E n t r e os íntimos de G r o s v e n o r G a r d e n s e u
•vinha e n c o n t r a r Rances, m a r q u e z de Casa l a
Iglesia, o m a i s bello h o m e m do seu t e m p o , q u e
não sei s i não terá f u n d a d o , e m expiação do seu
perfil, alguma T r a p p a na A n d a l u z i a ; o mar-
quez F o r t u n a t o , que representava a realeza
e x t i n c t a de Nápoles tão f i e l m e n t e c o m o si F r a n -
cisco I I a i n d a habitasse C a p o d i m o n t e ; o v e l h o
J o h n Samuel, que nos c o n t a v a historias do v e l h o
B r a s i l , t e n d o v i v i d o e d i r i g i d o a m o d a no R i o
de Janeiro no t e m p o de P e d r o I - outro velho,
Saraiva, o d i c c i o n a r i o p o r t u g u e z de Londres,
verão e i n v e r n o e m um casacão q u e l h e descia
até os pés, a l o n g a b a r b a i n c u l t a , a pelle e n t a -
lhada c o m o u m retábulo h e s p a n h o l , c o m u m
montão de l i v r o s d e b a i x o do braço e e m cada
bolso, p r i m e i r o e u l t i m o a m i g o de D o m Miguel
na I n g l a t e r r a , e que desde 1834 se consolava d o
desterro, da pobreza, do f r i o de L o n d r e s c o m os
seus alfarrábios e os seus ouvintes.
E n c o n t r e i a i l i ainda M r . C l a r k , o f a m o s o cor-
respondente do Jornal do Commercio, a q u e m
MINHA FORMAÇÃO 109

depois succedi, a bete noire de Zacharias, u m


desses old gentlemen que a I n g l a t e r r a pôde man-
dar ao estrangeiro, c o m certificado, c o m o spe-
c i m e n nacional, porque nada do que é essencial-
m e n t e inglez, p e r f i l , caracter, tradição, m a n e i r a ,
preconceito, humour, o r g u l h o i n s u l a r , d e i x a -
r i a de estar representado nelles; P e l l e g r i n i , o
c a r i c a t u r i s t a de Vanity Fair, u m dos artistas
napolitanos que i n v a d i r a m c o m a sua l o q u a c i -
dade alegre, o seu riso c o m m u n i c a t i v o , a sua
m i m i c a irresistível, a f r i a e reservada sociedade
ingleza e t o m a r a m conta delia.
Devo t a m b é m citar M r . Y o u l e . Este h a c i n -
coenta annos serve e m L o n d r e s de c o r r e s p o n -
dente aos seus amigos do B r a s i l e de P o r t u g a l ;
a todos hospeda, agasalha, enche de obséquios,
dando-se o i n c o m m o d o de i r até á A l l e m a n h a
p o r u m rapaz que o pae quer collocar e m u m a
casa de H a m b u r g o ; t o m a n d o o t r e m de Calais,
m a l acaba de chegar da Escossia o u de M a n -
chester, para deixar no Sacré Coeur de P a r i z u m a
m e n i n a que não quer c o n t i n u a r e m R o h a m p t o n ;
i n d o a L i s b o a , e, si preciso for, á M a d e i r a para
a c o m p a n h a r u m doente que foge do i n v e r n o i n -
glez; p r o m p t o sempre, incançavel nas suas func-
ções de p r o v e d o r de Brasileiros e Portuguezes
na I n g l a t e r r a , ha m e i o século, e além d'isso o
oráculo na C i t y , nos grandes Bancos, q u a n d o se
t r a t a de interesses c o m m e r c i a e s dos dois paizes.
Esses e r a m alguns dos Íntimos de 1874-76,
7
110 MINHA F O R M A Ç Ã O

período a que me r e f i r o , sem c o n t a r os B r a s i -


leiros que alli se a c h a v a m no B r a s i l . E m períodos
anteriores sei que o f o r a m entre o u t r o s M u s u r u s
Pachá e o infante D o n J u a n , pae de D. C a r l o s
de H e s p a n h a ; o D r . Gueneau de M u s s y , m e d i c o
fiel da família de Orléans d e s t e r r a d a , e o r e p u -
blicano D u p o n t , p r o s c r i p t o do Império, c o m p a -
n h e i r o de L e d r u - R o l l i n e de L o u i s B l a n c , o v e l h o
barão L e o n e l de R o t h s c h i l d , o m a r q u e z do L a -
v r a d i o , m o d e l o dessa distincção e u r b a n i d a d e
portugueza que parece r e q u i n t a r sobre todas as
outras aristocracias.
A Legação do B r a s i l estava naquelle t e m p o n o
seu m a i o r b r i l h o : pertencia ao n u m e r o das casas
que t i n h a m o p r i v i l e g i o de receber a realeza, isto
é, o príncipe e a p r i n c e z a de Galles. M u i t o s a r -
g u m e n t o s me f o r a m apresentados n a m o c i d a d e
e m f a v o r da monarchia-, n e n h u m , porém, teve
para m i m a força persuasiva, a evidencia, destes
dois, u m q u e m e f o i f o r m u l a d o no P i n c i o , o u t r o
que me f o i f o r m u l a d o e m H y d e P a r k : a p r i n -
ceza M a r g a r i d a de Saboia e a p r i n c e z a de Galles.
A r e p u b l i c a n o s de b o a fé esthetica, — ponhamos
t a n t o os bárbaros c o m o os anachoretas de parte,
— eu não q u i z e r a apresentar o u t r o s . A m o n a r -
chia m o d e r n a f a r i a b e m p a r a sustentar-se e m
p r o m u l g a r a lei salica e m sentido c o n t r a r i o , isto
é, e m n e u t r a l i s a r a i n d a m a i s o poder n e u t r o , es-
tabelecendo a realeza exclusiva das m u l h e r e s .
Seria isso fazer p o l i t i c a e x p e r i m e n t a l , que não s e
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 111

basearia somente no esplendido e pacifico j u b i i e u


da r a i n h a V i c t o r i a e na c a l m a r e l a t i v a e m tempos
cruéis para a H e s p a n h a da regência de D. M a r i a
C h r i s t i n a , mas n o p r o f u n d o interesse das massas
pelos d r a m a s de que a p r i m e i r a figura é u m a
m u l h e r . À entrada t r i u m p h a l e m P a r i z dos restos
de Napoleão n u n c a fará u m q u a d r o c o m o o que
Tácito nos d e i x o u d o C a m p o de M a r t e , n o « dia
maravilhoso » e m que f o r a m depositadas n o tú-
m u l o de A u g u s t o as cinzas de Germânico trazidas
p o r A g r i p p i n a . S i ao prestigio da posição se
allia na m u l h e r a irradiação da m o c i d a d e e da
belleza, póde-se dizer que ella t e m no sceptro u m
condão de fada. A f o r m o s u r a das rainhas t e m ,
q u a n d o é perfeita, u m reflexo seu exclusivo, com-
binação de bondade e soberania, de encanto pes-
soal e grandeza nacional, de dependência, t r e m o r
mesmo, do Destino, e protecçâo e a m p a r o para
os que se a c o l h e m ao seu m a n t o , que f o r m a a
dupla projecção, ascendente e descendente, do
p o v o para o t h r o n o e do t h r o n o para o povo, que
na o r d e m e s p i r i t u a l fez a R a i n h a dos A n j o s com-
parar-se a si m e s m a c o m o arco-iris. A l é m da
família real de I n g l a t e r r a e da alta sociedade de
Belgravia e M a y f a i r que a cerca, v i n h a m á L e -
gação príncipes estrangeiros reinantes o u des-
thronados, c o m o esse joven príncipe i m p e r i a l ,
azagaiado na Cafraria, e cuja m o r t e , tão inglória
que parece predestinada, me faz sempre l e m b r a r
a de Saldanha e m C a m p o Osório.
1J2 MINHA FORMAÇÃO

E r a para t a l sociedade que o famoso C o r t a i s ,


inspirando-se nas glorias dos grandes cozinheiros,
f o r m a v a o cortejo dos seus pratos a r c h i t e c t o -
micos, verdadeiras obras-primas c o m que depois
pretendeu, segundo me disseram, a r r u i n a r a
coroa de Itália. O u v i t a m b é m que elle, seguindo
a i n d a nisso as tradições dos mestres da arte,
m o s t r a r a u m a vez o seu r e c o n h e c i m e n t o s e r v i n d o
em u m dos banquetes do Q u i r i n a l u m a compo-
sição sua i n s c r i p t a no cartão r e a l — à la Penedo.
N a q u e l l e d i a o d i p l o m a t a b r a s i l e i r o h a de t e r
d i t o , c o m o C h a t e a u b r i a n d , q u a n d o d e r a m o seu
n o m e a u m beefsteak : « Agora, sim, não posso
mais morrer. »
U m a dessas representações de M o n s i e u r Cor-
tais deante de testas coroadas c o m t o d a a ensce-
nação que r e c l a m a v a , i n c l u s i v e o g r u p o de bel-
lezasprqfissionaes da alta sociedade ingleza, não
podia d e i x a r de apagar de t o d o no e s p i r i t o de
um joven a d d i d o de Legação b r a s i l e i r o o pres-
t i g i o , si o conservavam, das decapitações reaes da
Convenção o u de W i t e h a l l .
N ã o me t o m e m p o r u m s y b a r i t a , p o r q u e me
i n c l i n e i deante de u m de u m g r a n d e chefe c o m o
deante de u m a r t i s t a . « // en faudraitau moins
un à rInstitui », d i z i a T a l l e y r a n d . E n t r e o f e s t i m
de Trimalcião e u m menu c o m p o s t o p o r u m
estylista francez, ha, c o m o entre a dansa das
alméas e o m i n u e t e , a l o n g a distancia de c i v i l i -
sação que separa a sensualidade da elegância.
MINHA F O R M A Ç Ã O 113

De todos os sentidos é realmente o p a l a d a r o


menos intellectualisavel, o que a d m i t t e m e n o r
gráu de ascetismo. M e s m o a taça de b o u i l l c n
servida a M a d a m e de M a i n t e n o n e m S a i n t - C y r
ou a taça de chá p r e t o que c o n f o r t a a r a i n h a
V i c t o r i a no terraço de O s b o r n e é sempre u m
gozo m a t e r i a l ; não pode soffrer a transformação
p o r que passa até tornar-se u m a p u r a saudade
o a r o m a das rosas e das violetas. 0 i d e a l i s m o
de que é susceptível a cozinha artística revela-se
e m não ser p r i n c i p a l m e n t e ao sabor que ella visa:
a sua ambição seria deixar ao paladar u m a sensa-
ção vaga, leve, i m m a t e r i a l , quasi apenas de u m
p e r f u m e , c o m o a do b o u q u e t no v i n h o , á vista,
porém, a impressão durável de u m quadro, de
u m a natureza m o r t a p i n t a d a p o r u m mestre. Que
i n g r a t o c o l o r i d o , porém, o dos seus m o l h o s , dos
seus cremes nevados, das suas gelatinas e pri-
meurs \
H a , entretanto, poesia real, verdadeira, no a l i -
m e n t o são, n a t u r a l , pátrio ; ha s e n t i m e n t o , t r a -
dição, c u l t o de família, religião, no p r a t o domés-
t i c o , na f r u c t a o u no v i n h o do paiz. A nós, do
n o r t e do B r a s i l , creados e m engenhos de canna,
o a r o m a que rescende das grandes caldeiras de
m e l nos e m b r i a g a toda a v i d a c o m a atmos-
phera da infância. E assim c o m o ha poesia na
cozinha de cada paiz, h a u m quid de arte na
cozinha o r n a m e n t a l , cozinha de refinamento, que
se p r o c u r a elevar pelo desenho e pela fôrma
I 1 \ MINHA FORMAÇÃO

até o m o t i v o do banquete, — e fazer h i s t o r i a ,


fazer p o l i t i c a . . .

O leitor me perdoará a confissão, mas eu não


devia calar e m m i n h a formação p o l i t i c a a i n -
fluencia m u n d a n a estrangeira, a i n f l u e n c i a aristo-
crática, artística, s u m p t u a r i a que descrevi. A s s i m
c o m o a notei em u m banquete real e m G r o s v e n o r
Gardens, poderia notal-a em. u m baile dos A s t o r s
e m N o v a - Y o r k ; é a m e s m a impressão de u m a
tarde de corso na Villa-Borghese, de u m a m a n h ã
de drawing room em L o n d r e s , d o grande dia de
corridas e m A s c o t ; a m e s m a d o j u b i l e u da r a i n h a
e m W e s t m i n s t e r e do j u b i l e u de Leão X I I I no
V a t i c a n o . N ã o posso negar que soífri o magne-
t i s m o da realeza, da a r i s t o c r a c i a , da f o r t u n a , d a
belleza, c o m o senti o da intelligencia e o da
g l o r i a ; felizmente, porém, n u n c a os senti sem a
reacção correspondente; não os senti mesmo,
perdendo de t o d o a consciência de a l g u m a coisa
superior, o s o f t r i m e n t o h u m a n o , e f o i graças a
isso que não fiz m a i s do que passar pela socie-
dade que m e fascinava e t r o q u e i a v i d a diplomá-
tica pela advocacia dos escravos.
O facto, entretanto, é este : si eu fosse somente
capaz da impressão p o l i t i c a , social, a escravidão,
a o l i g a r c h i a dos p a r t i d o s , e m i n h a falsa c o m -
prehensão do papel do I m p e r a d o r e da funcção
m o n a r c h i c a , ter-me-iam t a l v e z , depois da m o r t e
de m e u pae, feito q u e i m a r o m e u B a g e h o t e alistar-
MINHA F O R M A Ç Ã O Hp

me sob a bandeira norte-americana. Si, p o r o u t r o


lado, no m o m e n t o de que dependia a m i n h a car-
r e i r a , eu tivesse t i d o e x c l u s i v a m e n t e a impressão
de arte, teria, q u e m sabe, egualmente i n c l i n a d o
em p o l i t i c a p a r a a r e p u b l i c a . E c o m o explico em
P o r t u g a l o r e p u b l i c a n i s m o de R a m a l h o Ortigão,
Bordallo Pinheiro, Oliveira Martins, em suas
estréas : c o m o uma r e v o l t a c o n t r a o caracter
inesthetico da instituição, do reinado e m que
d e s a b r o c h a r a m 5 é assim que explico entre nós o
r e p u b l i c a n i s m o de Castro Alves, de F e r r e i r a de
Menezes, do m e u P e d r o de Meirelles, de Salva-
dor de Mendonça, de Q u i n t i n o B o c a y u v a , de La-
fayette Rodrigues Pereira, de P e d r o L u i z , e ou-
tros. O que me i m p e d i u de ser r e p u b l i c a n o na
mocidade, f o i m u i t o p r o v a v e l m e n t e o t e r sido
sensível á impressão aristocrática da v i d a .
XII

A INFLUENCIA INGLEZA

A impressão m u n d a n a , aristocrática, era para


m i m u m a influencia p o l i t i c a p u r a m e n t e negativa,
c o m o o t i n h a sido a impressão artística da Itália
ou a impressão l i t t e r a r i a de P a r i z . O effeito da
sociedade, c o m o o das artes e das lettras, não era
o u t r o sinão o de i m p e d i r o d e s e n v o l v i m e n t o do
g e r m e n revolucionário que as leituras francezas
dos v i n t e annos t i n h a m deixado em m e u espirito.
Sem aquellas influencias, entregue a m e u s pró-
p r i o s i m p u l s o s , do m e s m o m o d o que o m e u l i b e -
r a l i s m o i n n a t o degenerou e m r a d i c a l i s m o , — o
qual foi em m i m u m p u r o p h e n o m e n o de esta-
gnação em u m espaço político fechado, — o radi-
c a l i s m o teria degenerado e m r e p u b l i c a n i s m o .
Um d i s t i n c t o escriptor, que c o s t u m o e n c o n t r a r
na Revista Brasileira, o d r . P e d r o Tavares,
dessa o r d e m de r e p u b l i c a n o s a que c h a m a r e i pre-
maturos, mais de u m a vez m e t e m estranhado o
que c h a m a o desvio de m i n h a evolução p o l i t i c a .
MINHA F O R M A Ç Ã O 117

P a r a elle o l i b e r a l i s m o desenvolve-se, completa-


se, t e r m i n a , n a t u r a l m e n t e , "pelo r e p u b l i c a n i s m o .
Terá elle, porém, certeza de que M i r a b e a u , si
vivesse, havia de figurar na Convenção ? A critica
é egual á que se fizesse, p o r exemplo, a L a f a y e t t e ,
p o r não t e r abraçado a Republica em França
depois de t e r ajudado a fundal-a na A m e r i c a . O
facto é que no r e p u b l i c a n i s m o , fallp do sincero,
do verdadeiro, h a u m ideal, mas ha t a m b é m u m
r e s e n t i m e n t o das posições alheias, c o m o no so-
c i a l i s m o , n o c o m m u n i s m o , no a n a r c h i s m o h a
ideal, mas h a t a m b é m inveja, e desta é que parte,
quasi sempre, o i m p u l s o revolucionário.
Sem as influencias negativas da imaginação,
eu teria s i d o talvez levado até á r e p u b l i c a , c o m o
tantos que depois se arrependeram-, aquellas i n -
fluencias me c o n t i v e r a m somente p o r q u e me
desviaram, o u me d i s t r a h i r a m da politica. E u era,
porém, p o r natureza, u m t e m p e r a m e n t o político.
Cedo o u tarde, a p o l i t i c a t o r n a r i a a seduzir-me,
e só u m a influencia positiva, que creasse em m i m
u m a segunda natureza e modificasse o m e u tem-
peramento em suas tendências absolutas, r a d i -
caes, podia t o r n a r - m e m o n a r c h i c o de razão e de
sentimento, c o m o fiquei. Essa influencia f o i o
contagio do espirito inglez, o que pude apro-
priar-me delle.
A m i n h a passagem pela I n g l a t e r r a deixou-me
a convicção, que depois se c o n f i r m o u nos Estados-
U n i d o s , de que só ha, inabalável e permanente,
118 MINHA FORMAÇÃO

u m grande paiz l i v r e no m u n d o . A Suissa é u m


paiz l i v r e , mas é u m pequeno p a i z ; os E s t a d o s -
U n i d o s são u m grande paiz, m a s h a nelle, sem
fallar da sua justiça, da l e i de L y n c h , que l h e
está no sangue, das abstenções e m massa da
m e l h o r gente, do desconceito e m que c a h i u a po-
litica, u m a população de sete milhões, toda a
raça de cor, para a q u a l a egualdade c i v i l , a pro-
tecção da l e i , os direitos constitucionaes, são con-
tinuas e perigosas ciladas. A França é u m grande
paiz e u m paiz l i v r e , m a s sem espirito de l i b e r -
dade arraigado, sujeito^sempre ás crises das revo-
luções e da g l o r i a .
O que deixa tão f u n d a impressão na I n g l a t e r r a
é, antes de t u d o , o g o v e r n o da C â m a r a dos Com-
m u n s : a susceptibilidade daquelle a p p a r e l h o ,
ainda perante as m a i s ligeiras oscillações do sen-
t i m e n t o p u b l i c o , a rapidez dos seus m o v i m e n t o s
e a força, e m repouso, de reserva, que elle c o n -
centra. M a i s ainda, porém, d o que a C â m a r a dos
C o m m u n s , é a a u c t o r i d a d e dos Juizes. S o m e n t e
na I n g l a t e r r a , póde-se dizer, ha juizes. N o s Es-
tados-Unidos a lei pode ser m a i s forte d o q u e o
poder: é isto que dá á C o r t e S u p r e m a de W a s h -
ington o prestigio de p r i m e i r o tribunal do
m u n d o , mas só h a u m paiz n o m u n d o e m que o
j u i z é m a i s forte do que os poderosos : é a I n g l a -
terra. O j u i z sobreleva á família real, á a r i s t o -
cracia, ao d i n h e i r o , e, o que é m a i s d o que t u d o ,
aos p a r t i d o s , á i m p r e n s a , á opinião; não t e m o
MINHA F O R M A Ç Ã O 119

p r i m e i r o l o g a r no Estado, mas tem-no na socie-


dade. O cocheiro e o groom sabem que são
criados de servir, mas não receiam abusos n e m
violência da parte de q u e m os emprega. A p e z a r
dos seus séculos de nobreza, das suas residên-
cias históricas, da sua riqueza e posição social, o
m a r q u e z de S a l i s b u r y e o d u q u e de W e s t m i n s t e r
estão certos de que deante do j u i z são eguaes ao
m a i s h u m i l d e de sua criadagem. Esta é, a m e u
vêr, a m a i o r impressão de liberdade que fica da
I n g l a t e r r a . O sentimento de egualdade de direitos,
ou de pessoa, na mais e x t r e m a desegualdade de
f o r t u n a e condição, é o f u n d o da dignidade anglo-
saxonia.
E x c e p t o essa idéa da justiça, que se f o i f o r -
m a n d o e crescendo e m m i m , á m e d i d a que l i a
no Times a secção dos t r i b u n a e s , curso p r a t i c o
de liberdade que a n e n h u m o u t r o se compara,
posso d i z e r que não fiz na I n g l a t e r r a sinão v e r i -
ficar p o r m i m m e s m o a precisão, a penetração,
a agudeza de espirito de Bagehot. O seu pe-
queno l i v r o , cotejado c o m o que eu v i a , o u v i a e
sabia, explicava-se, tornava-se c l a r o , sensivel,
palpitante no que antes era obscuro, indifferente:
fazia-me c o m p r e h e n d e r o m e c h a n i s m o de que elle
formulára a t h e o r i a : passava a ser para m i m ,
e m d i r e i t o c o n s t i t u c i o n a l , u m verdadeiro evan-
gelho. U m a coisa era t e r assimilado aquellas
idéas logo ao sahir da A c a d e m i a e o u t r a vêr func-
cionar o próprio systema, receber a impressão
120 MINHA FORMAÇÃO

v i v a do que apenas eu apprendêra o u decorara.


Essa d u p l a i n f l u e n c i a do g o v e r n o inglez e da
liberdade ingleza era, p o r sua n a t u r e z a , monar-
chica. N ã o p o d i a deixar de i n c l i n a r - m e i n t e r i o r -
m e n t e á m o n a r c h i a a idéa de que o g o v e r n o m a i s
l i v r e do m u n d o era u m g o v e r n o m o n a r c h i c o .
A i n d a assim u m estrangeiro i n t e l l i g e n t e não seria
no seu paiz i n a b a l a v e l m e n t e m o n a r c h i s t a so-
mente p o r q u e o g o v e r n o chegou na I n g l a t e r r a a
u m gráu m a i o r de perfeição do que nos Estados-
U n i d o s , que tomaram a forma republicana.
Desde que não tínhamos no B r a s i l os elementos
históricos que a liberdade ingleza suppõe, a não
querer eu c o m m e t t e r o m a i o r erro que se pode
c o m m e t t e r e m p o l i t i c a , — o de c o p i a r de socie-
dades diíferentes instituições que cresceram, —
eu não p o d i a r e p e l l i r a r e p u b l i c a no B r a s i l s o -
m e n t e p o r a d m i r a r a m o n a r c h i a ingleza de pre-
ferencia á Constituição A m e r i c a n a . E r a preciso
a l g u m a coisa mais, no que respeita á fôrma de
g o v e r n o , p a r a eu não m e d e i x a r arrastar.
A transformação, ou, m e l h o r , a modificação
de ideal político que soíFri na I n g l a t e r r a era,
todavia, a p r e l i m i n a r , o p r e p a r o para a impene-
t r a b i l i d a d e que offereci depois á aspiração r e p u -
blicana. Até então, a f o r m a r e p u b l i c a n a me pare-
cera s u p e r i o r á m o n a r c h i c a pelo l a d o da d i g n i -
dade h u m a n a . F o i na I n g l a t e r r a q u e senti que
n u n c a a nossa raça a t t i n g i u ao m e s m o p o n t o de
altivez m o r a i que e m u m a monarchia. Com o
MINHA F O R M A Ç Ã A 121

p r i v i l e g i o dynastico, que t a m b é m o m e u radica-


l i s m o rejeitava, eu agora o v i a bem, não se fazia
no século x i x sinão aproveitar a tradição nacional
mais antiga e mais gloriosa p a r a n e u t r a l i s a r
a primeira posição do Estado. A concepção
m o n a r c h i c a ficava sendo esta : a do g o v e r n o e m
que o posto m a i s elevado da h i e r a r c h i a fica fora
de competição. E r a u m a concepção simples c o m o
a da balança, c o m o a do eixo. N e n h u m d i r e i t o
se t r a n s f o r m o u t a n t o no decurso deste século no
Occidente c o m o o d i r e i t o real, que de d i v i n o
passou a ser p u r a m e n t e histórico, de activo pas-
sou a ser passivo. O rei da I n g l a t e r r a , si quizer
i n f l u i r na politica c o m as suas idéas próprias e
a sua i n i c i a t i v a , t e m p r i m e i r o que abdicar e, —
si a hypothese é admissível, — fazer-se eleger á
C â m a r a dos C o m m u n s o u t o m a r a direcção da
casa dos L o r d s . E n t r e o C z a r e a r a i n h a V i c t o r i a
a differença de auctoridade é i n f i n i t a m e n t e m a i o r
do que entre a r a i n h a V i c t o r i a e o Presidente dos
Estados-Unidos. O g o v e r n o pessoal é possível na
Casa B r a n c a ; é impossível e m W i n d s o r Castle.
O c h a m a d o p r i v i l e g i o é assim u m cargo hono-
rífico, u m a tradição nacional, u m a conveniência
p u b l i c a , quasi u m a fórmula algebrica de equi-
líbrio de forças, de conservação de energia, de
m o t o continuo. E tão absurdo resentir-se alguém
e m sua dignidade da existência desse p o n t o fixo
no svstema político, c o m o seria o resentir-se da
existência do eixo da terra ou da estrella poiar.
122 MINHA FORMAÇÃO

A m u i t o s é impossível d e i x a r de vêr no occu-


pante do t h r o n o o h o m e m o u a m u l h e r , o acci-
dente, a pessoa, para vêr a funcção, a existência
t r a d i c i o n a l , a lei do m o v i m e n t o político. Desses
póde-se dizer que são deficientes e m imaginação
s y m b o l i c a ; mas, desapparecendo o s y m b o l i s m o ,
podemos estar certos de que desapparecerá t a m -
b é m o ideal na religião, na poesia, na arte, na
sociedade, no Estado.
A m o n a r c h i a c o n s t i t u c i o n a l ficava sendo para
m i m a m a i s elevada das fôrmas de g o v e r n o : a
ausência de unidade, de permanência, de c o n t i -
n u i d a d e no governo, que é a s u p e r i o r i d a d e p a r a
m u i t o s da fôrma r e p u b l i c a n a , convertia-se e m
signal de i n f e r i o r i d a d e . Esse ideal r e p u b l i c a n o ,
de u m Estado e m que todos pudessem c o m p e t i r
desde o collegio para a p r i m e i r a d i g n i d a d e , pas-
sava a ser a meus o l h o s u m a u t o p i a sem a t t r a c t i v o ,
o paraíso dos a m b i c i o s o s , espécie de hospício e m
que só se conhecesse a l o u c u r a das grandezas.
N ã o era este, de c e r t o , o t e r m o da evolução
h u m a n a , pelo q u a l rezamos todos os dias, q u a n d o
repetimos o adveniat regnum tuum. D e s i s t i r da
idéa m o n a r c h i c a não é tão fácil c o m o parece.
Mesmo o systemo planetário é monarchico, d i z
Schopenhauer. 0 U n i v e r s o é a m o n a r c h i a p o r
excellencia. E m vez de Cosmos, H u m b o l d t p o d i a
ter dado ao seu l i v r o o t i t u l o De monarchia. A
idéa c e n t r a l d o I n f i n i t o , isto é, Deus, não p o d i a
d e i x a r de ser e m toda a esphera da i n t e l l i g e n c i a


MINHA FORMAÇÃO 123

e da actividade h u m a n a o v e r d a d e i r o ideal. Até


hoje a força, t r a n s f o r m a d a e m d i r e i t o e e m t r a -
dição, terá sido a gênese do ideal m o n a r c h i c o ;
u m d i a elle sahirá da sciencia, da i n t e l l i g e n c i a ,
da v i r t u d e , da santidade. O ideal h u m a n o , t o d o
elle, t o d a a esthetica religiosa, social, artística,
podemos ficar certos, está i n t e i r o n a l i n h a : « E
creou Deus o h o m e m á sua i m a g e m . »
E u encontrava r e p u b l i c a n i s m o n a I n g l a t e r r a
e m espíritos de p r i m e i r a o r d e m ; havia r e p u b l i -
canismo, m a i s o u menos consciente, e m Spencer,
e m M i l l , e m Bagehot, e m B r i g h t , e m M o r l e y ,
e m George E l i o t , e m G. H e n r y Lewes, mas era
r e p u b l i c a n i s m o sinc die, conservado no senti-
m e n t o m o n a r c h i c o , para impedil-o de c o r r o m -
per-se. A I n g l a t e r r a não seria a nação l i v r e que
é si não houvesse no seu caracter u m a fibra que
impede a veneração dynastica de degenerar e m
superstição, a « l o y a l t y » de t o r n a r - s e s e r v i -
lismo... N o coração inglez a fidelidade á C â m a r a
dos C o m m u n s precede a fidelidade á Realeza, e
dessa regra não faz excepção a própria dynastia,
que sente c o m o a nação. Esse f u n d o de r e p u b l i -
canismo, latente, esquecido até, mas que a m e n o r
provocação faria resuscitar o m e s m o que sob os
Stuarts, longe de ser incompatível c o m o monar-
chismo, é que o t e m conservado, r e s t r i n g i n d o ,
reduzindo o poder real á funcção que é hoje,
puramente m o d e r a d o r a e, só raras vezes, p r o -
visoriamente a r b i t r a i . Esse r e p u b l i c a n i s m o não
12 i
r
MINHA FORMAÇÃO

impedirá, — pelo c o n t r a r i o , — os que o têm e m


reserva, de inclinar-se deante da r a i n h a e defen-
der a i n t e g r i d a d e da sua p r e r o g a t i v a esvaecente.
C o m o eu disse, porém, não m e bastaria m e s m o
essa p r o f u n d a modificação de ideal político para
i m p e d i r - m e de a c o m p a n h a r o m o v i m e n t o r e p u -
b l i c a n o entre nós, dadas certas contingências.
E u podia ser m o n a r c h i s t a de ideal e j u l g a r a
r e p u b l i c a , e m u m m o m e n t o dado, o m e l h o r
governo p r a t i c a v e l , c o m o se pôde ser r e p u b l i c a n o
de ideal, — e m u i t o s o são na própria I n g l a -
terra, — e fazer da m o n a r c h i a o seu noll me tan-
gere. A l é m disso, eu p o d i a deixar arrastar-me
p o r u m a corrente de e n t h u s i a s m o , p o r u m a s o l i -
dariedade de p a r t i d o , p o r amizades políticas, o u ,
mesmo, p o r a l g u m interesse que soubesse dis-
farçar-se e insinuar-se-me n o espirito, — sob
a fôrma de u m sacrifício á causa p u b l i c a . A s
idéas para espíritos que v ê m os lados o p p o s -
tos das coisas, o que t u d o t e m de b o m e de
mau, são pobres, frágeis, antemuraes. É preciso,
para sustentar a fé p o l i t i c a , m a i s do que a lucidez
da i n t e l l i g e n c i a ; a não haver u m s e n t i m e n t o que
interesse o coração, o u u m a espécie de p o n t o de
h o n r a que se i m p o n h a ao caracter, é i n d i s p e n -
sável u m espirito u n i f o r m e de conducta, u m a
regra certa de direcção. N o m e u caso p a r t i c u l a r ,
o que m e p o u p o u da illusão r e p u b l i c a n a foi um
toque apenas do espirito inglez.
XIÍI

O ESPIRITO INGLEZ

Sem elle a convicção da superioridade do typo


político da I n g l a t e r r a não teria bastado. Q u a n t o
á sensação aristocrática da v i d a , de que t a m b é m
fallei, essa, no c o m b a t e dos p a r t i d o s , não teria
resistido ao p r i m e i r o choque. O que entendo
p o r espirito inglez neste caso é a n o r m a tácita de
conducta a que a I n g l a t e r r a toda parece obe-
decer, o centro de inspiração m o r a l que governa
todos os seus m o v i m e n t o s . V i quasi nada da
I n g l a t e r r a , sinto dizel-o, mas v i pedaços que me
i m p e d e m quasi de querer vêr o resto, excepto
O x f o r d , cujo logar tenho vago em m i n h a galeria
i n t e r i o r , á espera do seu pequeno q u a d r o . V i ,
por exemplo, Cantuaria, e tenho no pensamento
a calma, o silencio, a grandeza daquella i m p o -
nente massa recolhida em si mesma. V i , na
semana de Cowes, S o u t h a m p t o n e a ilha de
W i g h t , pequena s o m b r a da I n g l a t e r r a no mar,
sombra c o l o r i d a , movente e alegre. F u i em car-
1.26 MINHA FORMAÇÃO

r u a g e m , — poderá haver u m d i a m a i s c o m p l e t o de
r o m a n c e ? — de S t r a f o r d - o n - A v o n , atravessando
W a r w i c k , a K e n i h v o r t h . Passei dias á m a r g e m
do Tâmisa, entre W i n d s o r e H e n l e y , e creio que
tive reminiscencias do paraíso terrestre. E r e a l -
mente a v i n h e t a m a i s perfeita que se p o d i a
i m p r i m i r á m a r g e m d o c a p i t u l o I I , v. 10 d o
Gênesis : « Deste l o g a r de delicias sahia u m r i o
que regava o paraíso. » E m toda parte a impres-
são que tive da I n g l a t e r r a f o i a m e s m a : ruínas
cobertas de hera, antigas g r a v u r a s expostas e m
P a l l M a l l , m o n t e s de t r i g o nos c a m p o s ceifados,
castellos recortados n o m e i o de parques flores-
taes, velhas estalagens á beira da estrada, botes
encostados ao a r v o r e d o de C l i v e d e n , grandes
transatlânticos nas docas de S o u t h a m p t o n , sem-
pre a m e s m a impressão, o c u n h o inglez estam-
pado e m t u d o . A sensação f o i a m e s m a para
m i m da I n g l a t e r r a , v i s t a de d e n t r o , na segurança
de seus recursos, e v i s t a de f o r a , inatacável nos
seus altos cliffs brancos, a cujos pés o m a r se
abre c o m o u m a t r i n c h e i r a .
E, porém, na sua feição p o l i t i c a somente q u e
considero neste m o m e n t o o e s p i r i t o inglez, e,
ainda m a i s r e s t r i c t a m e n t e , o m o d o p o r que elle
se manifesta nos m o v i m e n t o s r e f o r m i s t a s , a
i n f l u e n c i a que t e m sobre os espíritos i n n o v a -
dores. P o l i t i c a m e e t e , o e s p i r i t o inglez pode
decompôr-se e m espirito de tradição, e m espi-
r i t o de realidade, e m e s p i r i t o de g a n h o , e m e s p i -
MINHA F O R M A Ç Ã O 1*27

r i t o de força e generosidade, e m e s p i r i t o de pro-


gresso e m e l h o r a m e n t o , em e s p i r i t o de ideal :
supremacia anglo-saxonia e s u p r e m a c i a christã
no m u n d o .
A veneração i m p r i m e na I n g l a t e r r a aos prece-
dentes u m a auctoridade quasi sagrada, e t i r a a
t u d o que t e m caracter histórico o u funcçâo
nacional, a feição i n d i v i d u a l e m que se f i x a a vista
de o u t r o s povos. A r a i n h a V i c t o r i a é mais do
que a augusta, cuja i m a g e m cada família venera
no seu lararium i n t e r i o r ; é a realeza N o r -
manda, Plantagenet, T u d o r . C o m o a R a i n h a , a
Constituição. E s t a não é m a i s do que u m a p r o -
curação e m causa própria, dada pela nação
ingleza á C â m a r a dos C o m m u n s , e mesmo,
assim, u m m a n d a t o de que n u n c a se v i u o i n -
s t r u m e n t o . N e n h u m grande legista a r e d i g i u ,
n e n h u m h o m e m de Estado a ideou : formou-se
espontaneamente, inconscientemente, c o m o a
língua ingleza, a a r c h i t e c t u r a p e r p e n d i c u l a r , os
contos da nursery. A tradição, c o m o base do
t e m p e r a m e n t o nacional, p r o d u z no I n g l e z a
faculdade de a d m i r a r a massa histórica de u m a
instituição, c o m o o architecto a d m i r a a grandeza
e o detalhe de u m a cathedral gothica. Para o
Inglez, si a liberdade é o grande a t t r i b u t o do
h o m e m , si elle a sente c o m o o d e s e n v o l v i m e n t o
da personalidade, a o r d e m é a verdadeira a r c h i -
tectura social. E l l e comprehende e penetra a
grandeza do svstema que se perpetua mais do
128 MINHA FORMAÇÃO

que a das revoluções, ao c o n t r a r i o d o l a t i n o , que


pôde v i v e r e ser feliz e m u m solo político o s c i l -
lante, sujeito a t e r r e m o t o s contínuos. D'ahi,
para elle o a m o r da lei e a s y m p a t h i a , interesse,
c a r i n h o mesmo, pela a u c t o r i d a d e encarregada
de executal-a; d'ahi, t a m b é m , o prestigio do
j u i z , a p o p u l a r i d a d e das sentenças q u e a t e r r o r i -
sam o c r i m i n o s o , ao c o n t r a r i o das facilidades
que este encontra nos paizes onde decáe o i n -
stincto de conservação.
>

Si n'uma organização assim f o r m a d a existe, ao


lado dessa quasi superstição do costume, o espi-
r i t o de aperfeiçoamento e de progresso, o q u e
resulta é que as r e f o r m a s , as modificações serão
governadas p o r algumas regras elementares.
U m a destas será conservar do existente t u d o o que
não seja obstáculo invencível ao m e l h o r a m e n t o
indispensável-, o u t r a , que o m e l h o r a m e n t o j u s t i -
fique, — e para j u s t i f i c a r não-basta só c o m p e n -
sar, — o sacrifício da tradição, o u m e s m o d o pre-
conceito que o e m b a r g a ; o u t r a regra é respeitar
o inútil que tenha o c u n h o de u m a epocha, só de-
molir o prejudicial; outra, substituir tanto quanto
possível p r o v i s o r i a m e n t e , d e i x a n d o ao t e m p o a
incumbência de e x p e r i m e n t a r o novo material
ou a n o v a fôrma, para consagral-o o u rejeital-o ;
u m a u l t i m a , esta r a r a e e x t r e m a , será r e f o r m a r ,
no sentido originário d a instituição, o m a i s a n t i g o ,
p r o c u r a n d o o traçado p r i m i t i v o . Dessas regras
resulta o dever de d e m o l i r c o m o m e s m o a m o r e
MINHA F O R M A Ç Ã O 129

c u i d a d o c o m que outras epochas e d i f i c a r a m . Ne-


nhum e x p l o s i v o é l e g i t i m o , p o r q u e a acção não
p o d e ser de a n t e m ã o c o n h e c i d a ; é p r e c i s o d e m o l i r
a nivel e compasso, r e t i r a n d o p e d r a p o r pedra,
c o m o f o r a m collocadas.
O q u e , p o r é m , d i r i g e o e s p i r i t o de p r o g r e s s o é
o e s p i r i t o de r e a l i d a d e , e s p i r i t o p r a t i c o , positivo,
que se m a n i f e s t a pela rejeição de t u d o que é
t h e o r i c o , a priori, t e n t a t i v o , lógico, o u q u e p r e -
t e n d a á perfeição, á f i n a l i d a d e , á u n i f o r m i d a d e , á
s y m e t r i a . A esse e s p i r i t o c o r r e s p o n d e , n a o r d e m
p o l i t i c a , a idéa de c r e s c i m e n t o : as instituições
t ê m o seu liabitat c o m o as p l a n t a s , as suas l a t i -
t u d e s e t e r r e n o próprios, condições especiaes de
acclimação, obstáculos e p e r i g o s de t r a n s p l a n t a -
ção. N ã o basta que a r e f o r m a seja i n d i c a d a pela
experiência, baseada e m uma forte verosimi-
lhança; é p r e c i s o q u e t e n h a afíinidade c o m as
outras instituições. Esse e s p i r i t o p r a t i c o , posi-
t i v o , é a experiência d o u t i l i t a r i s m o , d o e s p i r i t o
de c r e a r e a c c u m u l a r r i q u e z a , característico d a
raça. O utilitarismo manifesta-se em q u e as
reformas devem ter u m a vantagem econômica,
pelo m e n o s indirecta, e justificar-se por alga-
rismos. A o l a d o , p o r é m , d a c o r r e n t e utilitária,
ha a c o r r e n t e i m a g i n a t i v a o u de i d e a l , moral,
nacional, religiosa.
A v a r o n i l i d a d e i m p õ e ao r e f o r m a d o r não f a z e r
victimas emissárias, r e s p o n s a b i l i s a n d o indiví-
d u o s o u instituições pelos erros communs da
130 MINHA F O R M A Ç Ã O

sociedade, não lavar as m ã o s c o m o P i l a t o s das


injustiças da multidão, não p r e f e r i r o fraco para
sobre elle descarregar o golpe, e m u m a p a l a v r a ,
o fair-play. O p a t r i o t i s m o m a n d a não consentir
que o espirito de p a r t i d o s u p p l a n t e o de r e s p o n -
sabilidade para c o m o paiz. O que, e n t r e t a n t o ,
na I n g l a t e r r a a l i m e n t a , renova e p u r i f i c a o pa-
t r i o t i s m o , é o u t r a espécie de responsabilidade : a
do h o m e m para c o m Deus. Só q u a n d o o o r g u l h o
b r i t a n n i c o e a consciência christã e s t r e m e c e m
juntos e se u n e m e m u m a m e s m a causa, é q u e
o sentimento inglez desenvolve a sua energia
m á x i m a . A inspiração da v i d a p u b l i c a na I n g l a -
terra v e m e m grande parte da B i b l i a . A p o l i t i c a
e a religião sentem que terão sempre m u i t o que
fazer e m c o m m u m , que u m a e o u t r a t e m o
m e s m o objectivo p r a t i c o — elevar a condição
m o r a l do h o m e m , e o efFeito desse u l t i m o e,
talvez p r i n c i p a l elemento d o espirito inglez, e m
relação ás r e f o r m a s , é fazer o a r g u m e n t o m o r a l
presalecer sobre o a r g u m e n t o utilitário.
Tomando-se o e s p i r i t o inglez, c o m o acabo de
delinear, que é que elle inspirará n a I n g l a t e r r a
a r e p u b l i c a n o s de ideal, que se s u b o r d i n e m ,
entretanto, c o m o indivíduos, á consciência c o l -
lectiva, ao i n s t i n c t o n a c i o n a l ? H a u m a pagina
interessante e m On Compromise, l i v r o t y p i c o de
casuística i n t e l l e c t u a l ingleza, escripto p o r J o h n
M o r l e y . Essa pagina é a m e l h o r illustração d o
que eu disse antes sobre o r e p u b l i c a n i s m o que
MINHA FORMAÇÃO 131

pôde existir p o r b a i x o d o s e n t i m e n t o m o n a r -
chico, até p a r a dar-lhe v i d a e calor. E l l e f i g u r a
u m i n g l e z convencido de que a m o n a r c h i a ,
m e s m o m e r a m e n t e decorativa, tende a engen-
d r a r hábitos sociaes degradantes. O dever desse
r e p u b l i c a n o será deixar a m o n a r c h i a de lado
e abster-se de todos os actos, e m p u b l i c o
e e m p a r t i c u l a r , que possam, m e s m o r e m o t a -
mente, a l i m e n t a r o espirito de s e r v i l i s m o . « T a l
p o l i t i c a não interfere, diz-nos M r . M o r l e y , c o m
as vantagens que se d i z t e r a m o n a r c h i a , e t e m
o effeito de t o r n a r as suas suppostas desvanta-
gens tão pouco prejudiciaes quanto possível... »
Desse espirito inglez eu disse que tive apenas
u m toque. N a questão da abolição, entretanto,
não me desviei delle. A abolição era u m a r e -
f o r m a que o espirito inglez anteporia a todas as
outras p o r toda o r d e m de sentimento. S i a abo-
lição se fez entre nós sem indemnisação, a res-
ponsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas
ao p a r t i d o da resistência. O m e u projecto p r i -
m i t i v o , e m 1880, era a abolição para 1890 c o m
indemnisação. Si e m qualquer tempo u m m i n i s -
t r o da corôa chegasse ás Câmaras e dissesse :
« A escravidão não pôde m a i s ser tolerada n o
B r a s i l , o nosso gráu de civilisação repelle-a, e
eu venho pedir que decreteis a liberdade imme-
diata dos escravos existentes, v o t a n d o os precisos
recursos para a respectiva desapropriação »,
poderia haver a b o l i c i o n i s t a que quizesse p r o -
132 MINHA FORMAÇÃO

l o n g a r a escravidão? N e n h u m de nós a s s u m i r i a
a odiosa responsabilidade. Esse h o m e m , porém,
não s u r g i u d'entre os estadistas do Império;
todos pensavam, o u que a abolição a r r u i n a r i a a
l a v o u r a e o credito do paiz, o u que o B r a s i l não
era r i c o bastante para pagar a libertação m o r a l
do seu território. P o d i a haver abolicionistas con-
trários á indemnisação; de facto, os h o u v e ; m a s
p o d i a m elles, acaso, v o t a r n u n c a c o n t r a u m a l e i
de abolição i m m c d i a t a ? A r e s p o n s a b i l i d a d e f o i
assim dos p a r t i d o s , que se c o m p r o m e t t e r a m pe-
rante a l a v o u r a a resistir ao m o v i m e n t o , e que
t e r i a m , d o seu p o n t o de v i s t a , feito m e l h o r sa-
cando sobre o f u t u r o e d e s a p r o p r i a n d o os escra-
vos, q u a n d o o p r i n c i p i o da não-indemnisação
ainda não t i n h a t r i u m p h a d o n o p r o j e c t o D a n t a s e
na segunda lei de 28 de setembro. Essa intuição
só a teve o m e u q u e r i d o a m i g o José Caetano de
A n d r a d e P i n t o no Conselho de Estado ; não lhe
d e r a m , porém, v a l o r . C o m relação á lei de i 3 de
m a i o devo dizer que e m 1888 era tarde p a r a se
pleitear a equidade da desapropriação deante de
u m m o v i m e n t o t r i u m p h a n t e , q u a n d o já a m a i o r
parte dos escravos tinham sido liberalmente
alforriados pelos senhores e o resto da escrava-
t u r a estava e m fuga, depois, s o b r e t u d o , de estar
por lei consagrado o p r i n c i p i o de que a escravidão
era u m a p r o p r i e d a d e anômala, a que o legislador
m a r c a v a sem ônus p a r a o E s t a d o o p r a z o de d u -
ração que queria.
MINHA FORMAÇÃO 133

Em relação á m o n a r c h i a do B r a z i l aquelle
toque d o espirito inglez bastou p a r a traçar-me
u m a l i n h a de que eu não poderia afastar-me,
m e s m o querendo. E r a u m p o n t o de h o n r a intel-
lectual, u m caso de consciência patriótico d e f i n i -
t i v a m e n t e r e s o l v i d o e m m e u e s p i r i t o , aos v i n t e
e tres annos. S u p p r i m i r a m o n a r c h i a que t i n h a -
mos, f i c o u c l a r o para m i m desde então, era u m a
p o l i t i c a a que eu não p o d e r i a n u n c a associar-me;
eu poderia t a n t o b a n i r , d e p o r t a r o I m p e r a d o r ,
c o m o a t i r a r ao m a r u m a creança o u deitar fogo
á Santa Casa. Q u e b r a r o laço, talvez p r o v i d e n -
cial, que ligava a h i s t o r i a do B r a s i l á m o n a r c h i a ,
cra-me m o r a l m e n t e tão impossível, c o m o m e seria
no caso de Calabar entregar P e r n a m b u c o p o r m i -
nhas próprias m ã o s ao estrangeiro. F a l t a r - m e -
i a m forças para u m a intervenção dessas no des-
t i n o do m e u paiz. Seria a t t r a h i r sobre m i m u m
golpe de paralysia, ferir-me eu m e s m o de m o r t e
m o r a l . M i n h a coragem recuava deante da l i n h a
m y s t e r i o s a do Inconsciente N a c i o n a l . O B r a s i l
t i n h a t o m a d o a f o r m a m o n a r c h i c a , eu não a
alteraria.
O que v i dos Estados-Unidos não fez sinão
calcar mais p r o f u n d a m e n t e a impressão monar-
chica que eu levava da I n g l a t e r r a . F o i u m a se-
g u n d a chave, de segurança, que fechou e m m e u
pensamento a p o r t a que n u n c a mais se devia
a b r i r . O espirito político americano, c o m certas
modalidades que não quero amesquinhar, mas
8
134 MINHA FORMAÇÃO

que me parecem secundarias, é uma variedade


do espirito inglez, o qual merece antes ser cha-
mado espirito anglo-saxonio, porque é um espirito
commum de raça, de grande família humana,
superior a fôrmas e accidentes de instituições.
XIV

NOVA-YORK (1876-77)

T a l v e z o m e l h o r m o d o de m o s t r a r o que devo
aos Estados-Unidos seja r e p r o d u z i r paginas do
meu diário de 1876-77. Cheguei pouco t e m p o
depois da visita do I m p e r a d o r ; pude assim r e -
colher o echo da impressão deixada p o r elle. O
anno que passei na grande R e p u b l i c a f o i u m dos
seus m o m e n t o s políticos mais interessantes, por-
que f o i o da eleição de T i l d e n . C o m o se sabe, os
democratas g a n h a r a m as eleições de 1876, m a s
as Juntas A p u r a d o r a s Republicanas de alguns
Estados do S u l m a n i p u l a r a m as actas de f o r m a
a dar m a i o r i a aos eleitores do seu p a r t i d o . A m b o s
os lados r e c l a m a v a m a v i c t o r i a , e, c o m o a C â -
m a r a dos Representantes era D e m o c r a t a e o
Senado Republicano, a perspectiva era que o
Congresso não chegaria a accordo até março, e
que os Estados-Unidos t e r i a m dois Presidentes
c o m todas as p r o b a b i l i d a d e s de u m a guerra
c i v i l . O espirito p r a t i c o , o espirito de transacção
130 MINHA F O R M A Ç Ã O

da raça anglo-saxonia i n t e r v e i u , e as duas Casas


do Congresso c o n c o r d a r a m e m entregar o julga-
m e n t o a u m a C o m m i s s ã o especial, t i r a d a de cada
u m a dellas e do S u p r e m o T r i b u n a l . AdifTerença
entre a I n g l a t e r r a e os E s t a d o s - U n i d o s não
pode ser m e l h o r apresentada do que nesse caso:
a resolução a m e r i c a n a f o i c o m o a ingleza, o ac-
cordo e m vez da g u e r r a c i v i l dos paizes latinos,
mas nos Estados-Unidos, ao c o n t r a r i o do que
aconteceria na I n g l a t e r r a , a C o m m i s s ã o não se
elevou a c i m a do espirito de facção, as votações
f o r a m todas e s t r i c t a m e n t e partidárias, o que quer
dizer, f i g u r a n d o nella cinco m e m b r o s da Côrte
S u p r e m a , que o m a i s alto t r i b u n a l da União era
c o m p o s t o de politicians. C o m juizes inglezes a
decisão t e r i a , talvez, sido i n j u s t a , mas não seria
n u n c a p a r c i a l , dada p o r m o t i v o político 5 não se
c o n t a r i a m de antemão os votos dos juizes c o m o
os dos Congressistas. E m tão p o u c o t e m p o c o m o
t i v e , n e n h u m estudo c o m p a r a t i v o da educação,
da seriedade e dos c o s t u m e s políticos dos dois
paizes p o d i a ser m a i s p r o v e i t o s o para m i m do
que foi essa c a m p a n h a eleitoral de 1876-1877 e
o desenlace que ella teve. A s q u a l i d a d e s e as de-
ficiências da p o l i t i c a a m e r i c a n a estavam todas
visíveis e patentes nessa lição de coisas. E u t i n h a
a c o m p a n h a d o a l u c t a dos p a r t i d o s p a r a a c a p t u r a
da cadeira presidencial c o m o m a i o r interesse,
cada boss me era conhecido, c o m o o era cada
f i g u r a de senador, a opinião de cada j o r n a l i n -
MINHA FORMAÇÃO 137

fluente, cada nuança das duas Convenções.


É r e a l m e n t e o m o m e n t o p a r a o estrangeiro
abranger n u m relance a v i d a p o l i t i c a dos Es-
tados-Unidos, esse anno eleitoral. E u t i n h a che-
gado a N o v a - Y o r k a t e m p o de f a m i l i a r i s a r - m e
c o m as questões, as allusões, a g i r i a politica do
formidável canvass que se ia t r a v a r e do q u a l a
p o l i t i c a da reconstrucção no Sul devia ser o eixo.
Interessava-me o T a m m a n y R i n g , o W h i s k e y
R i n g , o schisma dos Independentes, o Civil-Ser-
vice R e f o r m , o R a i l r o a d Land-Grants, c o m o me
interessava o e n c o n t r o de Gladstone c o m D i s -
raeli na questão do O r i e n t e , o u a lucta de T h i e r s
c o m o duque de B r o g l i e D u r a n t e m a i s de u m
anno f u i u m v e r d a d e i r o americano nos Estados-
U n i d o s , c o m o o provérbio m a n d a ser r o m a n o
e m Roma. Era o m e i o de penetrar, de com-
prehender, de sentir a v i d a p o l i t i c a do paiz, si
eu o queria, e este fôra o m e u m o t i v o ao desejar
i r para os Estados-Unidos.
O meu diário desse anno é antes u m registro
de pensamentos do que de impressões america-
nas. H a m u i t o pouca p o l i t i c a nelle, o que m o s t r a
que eu v i v i a em u m a atmosphera diversa da que
os h o m e n s de p a r t i d o r e s p i r a m , m e s m o no es-
trangeiro. R e p r o d u z o algumas dessas notas para
m o s t r a r isto mesmo, que o m e i o norte-ameri-
cano teve sobre m i m o effeito que m u i t a vez t e m
sobre os próprios americanos, de desinteressal-
os da p o l i t i c a , excepto c o m o espectadores. Posso
8.
138 MINHA FORMAÇÃO

dizer que v i v i esses dois annos, de 1876 e 1867,


na sociedade de N o v a - Y o r k , onde se está tão
longe da p o l i t i c a a m e r i c a n a c o m o em L o n d r e s
o u e m P a r i z : mas o m u n d o exterior, que m e
cercava p o r toda parte, a rua, a praça p u b l i c a
c o m os seus cartazes e procissões eleitoraes, os
jornaes c o m as scenas do Congresso e as torrentes
de eloqüência dos mectings, não podia d e i x a r de
a t t r a h i r - m e c o m o t o d o espectaculo n a c i o n a l c u -
rioso e único, além, está v i s t o , do interesse i n t e l -
l e c t u a l que eu t i n h a em saber c o m o u m tão
g r a n d e paiz era g o v e r n a d o e d i r i g i d o , as forças
sociaes e influencias m o r a e s que p r e s i d i a m ao
seu colossal d e s e n v o l v i m e n t o . A q u i estão ao
acaso a l g u m a s das notas.
« 2 2 de o u t u b r o . O d i s c u r s o de C a r l Schurz,
p r o n u n c i a d o h o n t e m no Union League Club,
expõe o s e n t i m e n t o republicano na m e l h o r l u z .
O p r i n c i p a l elemento da presente c a m p a n h a co-
meça a ser a Questão do S u l . C o m a a p p r o x i m a -
ção do d i a 7 de n o v e m b r o esse p o n t o de vista
tornar-se-á m a i s i m p o r t a n t e do que todos os
outros. A camisa ensangüentada ( b l o o d y - s h i r t )
c a h i u e m c o m p l e t o d e s c r e d i t o , mas é preciso con-
t a r c o m o receio de que o S u l , u n i d o , c o m p o s t o
dos antigos Estados rebeldes e onde os candida-
tos são todos soldados da Confederação, possa
d o m i n a r o N o r t e tão cedo, depois da g u e r r a , pas-
sando o g o v e r n o a m e r i c a n o a ser representado
p o r antigos Separatistas. Esta idéa assusta os
MIXIIA FORMAÇÃO 139
que p õ e m ácida de t u d o a União, m e s m o q u a n d o
seja preciso r e d u z i r os Estados i m p e n i t e n t e s a
territórios sujeitos ao despotismo m i l i t a r e en-
tregues p o l i t i c a m e n t e ao domínio c o n j u n t o dos
carpet-bag gers e dos negros. Este elemento de-
cidirá, p r o v a v e l m e n t e , e m f a v o r de H a y e s a lucta
que de o u t r a f o r m a seria fácil de g a n h a r para
T i l d e n , porque a situação do S u l nos últimos an-
nos deshonra a politica americana. »
« i de janeiro. Cheguei a W a s h i n g t o n , e m
Riggs House. Pela p r i m e i r a vez p o n h o o u n i -
forme. A Casa Branca. Apresentação ao P r e s i -
dente, depois á casa do Secretario de Estado,
M r . F i s h . A chamada d y n a s t i a G r a n t , a f i l h a de
Mrs. S a r t o r i s ; a n e t i n h a recebendo os c u m p r i -
m e n t o s pelo avô. V o u c o m o capitão-tenente Sal-
danha de G a m a v i s i t a r os m e m b r o s da C o r t e Su-
p r e m a : através da terrapine e das baked oysters
todo o dia, até que e m casa d o secretario da Ma-
r i n h a u m solemne the reception is over! põe t e r m o
á nossa peregrinação de New-Year' s day. »
E u t i n h a conhecido Saldanha na Exposição de
P h i l a d e l p h i a , depois ligámo-nos m u i t o e m Nova-
Y o r k , onde m o r á v a m o s no m e s m o hotel, o B u c k -
i n g h a m . E l l e ria-se sempre m u i t o daquelle : the
reception is over! P o b r e Saldanha! nascido para
o m u n d o , para o amor, para a g l o r i a , q u e m ima-
g i n a r i a , ao vêl-o naquêlle t e m p o e m N o v a - Y o r k ,
que o seu destino seria o que foi ? A esphinge da
vida que l h e déra, ainda adolescente, u m dos

I
1 /§O MINHA F O R M A Ç Ã O

seus enigmas indecifráveis p a r a resolver, des-


t r u i n d o nelle a aspiração de ser feliz, reappareceu
de n o v o a embargar-lhe o passo no m o m e n t o e m
que podia d i s p u t a r a p r i m e i r a posição do paiz.
« 11 de janeiro. Á casa de M r . J o h n H a m i l t o n ,
filho de A l e x a n d r e H a m i l t o n . U n h o m e m do
passado, v o l t a d o t o d o para elle. Diz-me que o
B r a s i l deve conservar o mais t e m p o possível a
sua fôrma m o n a r c h i c a . Este Whig não acredita
que paizes c o m o os nossos possam d u r a r u n i d o s
sob o u t r a fôrma de governo. E m o ç ã o ao mos-
t r a r - m e o r e t r a t o de L u i z X V I , presente feito
ao pae...
« 22 de fevereiro. A l m o c e i c o m M r . M a r s h a l l
no K n i c k e r b o c k e r C l u b , hoje a n n i v e r s a r i o de
W a s h i n g t o n ; almoçavam M r . M a n t o n M a r b l e ,
ex-redactor do World, M r . A p p l e t o n , o grande
editor, M r . Stout, M r . R o b i n s o n , M r . P e l l , e
outros. A o toast feito ao I m p e r a d o r r e s p o n d i ,
c o m o todas as saúdes e r a m humorísticas, c o m
u m ensaio de hutnòur. Disse que nós tínhamos
t i d o receio de que os A m e r i c a n o s o guardassem,
lembrando-se de que u m a grande a u c t o r i d a d e
para elles, o general L a f a y e t t e , dissera da mo-
n a r c h i a c o n s t i t u c i o n a l : « A q u i está a m e l h o r
das r e p u b l i c a s ». Mas, desde que elles t i n h a m
deixado o I m p e r a d o r p a r t i r , eu fazia v o t o s para
que os dois paizes conservassem suas instituições
c o m o u m a aposta de liberdade perpetua entre a
monarchia e a republica. Q u a n t o a W a s h i n g t o n ,
MINHA FORMAÇÃO 141

fiz u m a reserva á sua grande o b r a : a de t e r f u n -


dado a capital e m u m a cidade, sem d u v i d a , m u i t o
agradável, mas para a q u a l sempre se vae a
custo, q u a n d o se t e m que d e i x a r N o v a - Y o r k . »
c Março, 2. H o j e f u i ao Congresso vêr os des-
troços da véspera. ( H a y e s fora p r o c l a m a d o Presi-
dente p o r u m voto.) N ã o h a alegria no lado re-
p u b l i c a n o : no d e m o c r a t a a decepção é g r a n d e ;
mas, e m pouco t e m p o , q u a n d o a f e r i d a t i v e r
cicatrizado e se pensar no f u t u r o , esse p a r t i d o
ficará contente de se t e r e m passado as coisas
c o m o v i m o s h o n t e m . O general Banks, a n t i g o
Speaker da Câmara, cedeu-me a sua cadeira n o
próprio recinto do Congresso ( e m sessão), depois
v e i u sentar-se nella o m e u m i n i s t r o , e f o m o s
apresentados a diversos deputados, notáveis,
entre elles L a m a r e Garfield. »
« 8 de março. O Presidente propõe uma
emenda c o n s t i t u t i o n a l , t o r n a n d o o prazo da pre-
sidência de seis annos, sem reeleição. Essa
emenda p r o v e m do m e d o que se t e m de que as
eleições presidenciaes sejam tão disputadas pelos
dois partidos, que d i v i d e m e m duas metades o
paiz, c o m o f o r a m as do o u t o n o passado, e que os
negócios de tres e m tres annos t e n h a m um
q u a r t o anno de interrupção e de paralysia, c o m o
si t u d o perigasse e a anarchia o u a g u e r r a c i v i l ,
talvez a separação, pudesse seguir-se a u m a elei-
ção duvidosa. Os interesses do c o m m e r c i o e os
>

da propriedade conseguirão u m dia alongar o


142 MIXIIA FORMAÇÃO

p r a z o até seis annos, e c o m o c o m a m a i o r escas-


sez de eleições ellas t e n d e m a tornar-se m a i s r e -
nhidas, não ha razão p a r a o paiz c o r r e r todos os
seis annos u m risco que não quer c o r r e r todos os
q u a t r o . A s s i m , a eleição c r i t i c a do chefe do E s -
tado irá sendo o m a i s possível espaçada, e não é
impossível que a R e p u b l i c a americana se ap-
p r o x i m e tão de perto das m o n a r c h i a s electivas,
que, v e n d o o perigo desta f o r m a , ella p r e f i r a a
t r a i i q u i l l i d a d e das longas d y n a s t i a s . . .
« É curioso que o que h a de m a i s p e r f e i t o
nesta d e m o c r a c i a seja a m u l h e r , que é a q u i o
ente m a i s aristocrático cio m u n d o . »
« 2 de a b r i l . A idéa de g o v e r n o hoje é inteira-
m e n t e diversa da idéa de g o v e r n o a n t i g a m e n t e ; I
t o m e m o s , p o r exemplo, a l i b e r d a d e de i m p r e n s a i
nos Estados-Unidos, que r e p r e s e n t a m a nova edu- -
cação p o l i t i c a , e a censura na Rússia. H a m u i t o
que dizer e m f a v o r de se deixar o p e n s a m e n t o
i n t e i r a m e n t e l i v r e e sobre os i n c o n v e n i e n t e s da
repressão 5 mas o certo é que se f o r m a m duas
sociedades diversas pelo respeito forçado á aucto-
r i d a d e e pelo desprestigio delia. A d i f f i c u l d a d e
que ha no c a m i n h o da tradição é que a d i g n i d a d e ,
ou a altivez pessoal, não quer sacrificar-se aos
grandes resultados m o r a e s e que os h o m e n s se
c o n s i d e r a m todos eguaes p o r u m s e n t i m e n t o que
já é i n d e s t r u c t i v e l . E u sou seguramente egual a
u m r e i , c o m o i n d i v i d u o , mas, c o m o do p r i n c i p i o
da m o n a r c h i a v e m m u i t o s bens para a sociedade.
MINHA F O R M A Ç Ã O 1 ío

colloco-me em p l a n o i n f e r i o r . Isso não é quebra


da dignidade humana, ainda que a altivez pessoal
tenha que se curvar. »
« i 3 de maio. Diz-se que T i l d e n não reconhece
Hayes c o m o presidente. E o caso de a l g u m
a m i g o lêr-lhe o Kriton. Q u a n d o K r i t o n quer
convencer a Sócrates de que deve f u g i r p a r a evi-
tar u m a m o r t e i n j u s t a , Sócrates nega-se c o m o
f u n d a m e n t o de que a sentença, i n j u s t a c o m o é,
é todavia i n t e i r a m e n t e legal. Si os juizes fize-
r a m m a l em p r o n u n c i a l - a , elle faria peior e m
não se sujeitar ás leis de A t h e n a s , porque o cida-
dão que goza da protecção e dos direitos que
u m a cidade l h e offerece, t e m c o m ella o pacto
tácito de respeitar as suas leis. Sócrates recusava
a v i d a p o r ser illegal, ainda que soubesse que ad-
v i r i a da sua fuga mais b e m do que m a l á demo-
cracia atheniense. N ã o devia T i l d e n relêr esse
dialogo ? I n j u s t a c o m o f o i a decisão c o n t r a elle,
foi estrictamente legal, não no sentido de estar
de accordo c o m o d i r e i t o , mas por ser dada pelos
interpretes competentes da l e i . E l l e só pode cha-
m a r para si e o seu p a r i t d o as s y m p a t h i a s de todos,
sujeitando-se á decisão p r o f e r i d a , salvo o seu d i -
reito de b r a n d i r c o n t r a o n o v o Presidente as
fraudes pelas quaes chegou ao poder. »
« J u n h o . i 3 . H o n t e m realisou-se no M a n h a t -
tan C l u b a recepção dos swallow-tails aos can-
didatos democráticos eleitos e countedout. T i l d e n
fali ou pela p r i m e i r a vez depois da inauguração
144 MINHA F O R M A Ç Ã O

de Hayes, á qual chamou « o mais portentoso


acontecimento na historia da America ». America
quer dizer os Estados-Unidos, porque no México
e no Perú ha, cada dia, acontecimentos d'esses
m u i t o mais portentosos. « Os males no governo
crescem com o êxito e com a impunidade. Não se
restringem a si mesmos voluntariamente. Não
podem ser nunca limitados sinão por forças ex-
ternas. Uma grande e nobre nação não separa a
sua vida politica da sua vida moral. » T u d o isto
é m u i t o exacto. O Brasil é a prova. Deve o povo,
ou não, fazer politica ? O adeantamento de u m
paiz prova-se pela extensão da idéa de que a po-
litica é inseparável dos mais vitaes interesses da
sociedade, e por ahi, dos de cada um. N o Brasil,
essa idéa não se derramou, pelas condições es-
peciaes em que nos achamos, de território, popu-
lação, trabalho escravo, etc. A q u i ella está em
cada cabeça. O que mais me surprehendeu nessa
reunião de Manhattan, foi o Governador de Nova-
York, este de jure e de facto, Mr. Robinson,
chamar em publico ao Presidente dos Estados-
Unidos um Presidente fraudulento. Depois de
ter dito que não teriam que esperar até 1880
para pôl-o fora da Casa Branca, t e r m i n o u assim,
referindo-se a T i l d e n e a Hendricks : « Felloiv
citizens, ti vestes a primeira opportun idade de
saudar o Presidente e o Vice-Presidente dos
Estados-Unidos depois da sua eleição. E u vos
felicito e acredito que este é apenas u m presagio
MINHA F O R M A Ç Ã O 14§

de factos que se hão de succeder. » A allocução


do G o v e r n a d o r do p r i n c i p a l E s t a d o da União
p r o c l a m a n d o a rebellião, legal o u i l l e g a l , é ca-
racterístico do r e g i m e n político americano, e do
laissez-faire, laissez-passer de que goza neste
paiz a p a l a v r a . A s revoluções de língua e'penna
não são n u n c a u m delicto ; são u m desabafo. A
bocca do politician é a válvula de segurança das
instituições. E o paiz das válvulas automá-
ticas. »
« 19 de j u n h o . Os jornaes fêm hoje u m facto
interessante : a v i s i t a feita p o r F r e d e r i c D o u -
glass ao seu v e l h o senhor, que deixou na adoles-
cência, para começar a v i d a de aventuras que o
levou até ser marshall e m W a s h i n g t o n e o grande
orador da abolição que f o i . « Vim antes de tudo,
disse Douglass, vêr meu velho senhor, de quem
estive separado 41 annos, apertar-lhe a mão,
contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando
com o reflexo da outra vida. »
« Esta scena dá u m a idéa m a i s tocante da
escravidão no Sul do que a Cabana do Pae Tho-
maz. O l o g a r é St. M i c h a e l , T a l b o t , C o u n t y ,
M d . O n o m e do senhor Capt. T h o m a s A o u l d .
M a r s h a l l Douglass o u v i u a sua verdadeira edade
da bocca do seu senhor, em cujos l i v r o s elle figuro
assim : « F r e d e r i c B a l l e y , fevereiro 1818. » P r o -
vavelmente, o senhor não r e g i s t r o u m a i s a car-
reira agitada de F r e d e r i c o desde a edade de 18 an-
nos (1836). Esse facto é, do que tenho l i d o , umj?
9
146 MINHA F O R M A Ç Ã O

das mais p r o f u n d a s e penetrantes apresentações


do facto m o r a l c o m p l e x o da escravidão, o laço
entre escravo e senhor. »

4
XV

O MEU DIÁRIO DE 187 7

D a r e i ainda alguns trechos do m e u diário dos


Estados-Unidos-, não são t a n t o impressões ame-
ricanas que pretendo r e p r o d u z i r , já antes o disse,
c o m o o m e u m o d o de sentir naquella epocha :
« 20 de j u n h o . H o j e f o r a m enforcados 11 c r i -
minosos de u m a associação da P e n s y l v a n i a , os
M o l l y Naguires. Onze pessoas enforcadas em u m
dia no B r a s i l ! Q u a n t o s discursos isso não daria
na C â m a r a dos Deputados ? A q u i só faz v e n d e r
m a i o r n u m e r o de extras dos jornaes. »
« J u n h o , 8. H a duas espécies de m o v i m e n t o
em politica : um, de que fazemos parte s u p p o n d o
estar parados, c o m o é m o v i m e n t o da t e r r a que
não s e n t i m o s ; o u t r o , o m o v i m e n t o que parte de
nós mesmos. N a p o l i t i c a são poucos os que têm
consciência do p r i m e i r o , no e m t a n t o esse é, t a l -
vez, o único que não é u m a p u r a agitação. »
« J u l h o , 8. A t e m p e r a t u r a m o r a l do f u t u r o , a
julgar pela americana, deve ser m u i t o baixa. O
148 MINHA FORMAÇÃO

s e n t i m e n t a l i s m o resfria a q u i d i a r i a m e n t e . A I n -
glaterra é u m f o r n o e m comparação. »
« J u n h o , 26. A França parece-me a casa de
Ulysses cheia de pretendentes a c o n s u m i r e m
entre si a f o r t u n a de T e l e m a c o , á espera que
Penelope se decida p o r u m delles. Cada u m está
certo de ser o p r e f e r i d o e, e m q u a n t o ella pede a
M i n e r v a que acabe c o m os seus i n s u p p o r t a v e i s
perseguidores, elles c o n t i n u a m a d e v o r a r os bois
e os carneiros, r e p e t i n d o : « A ão ha duvida que
7

ella se está preparando para o casamento. » I n -


felizmente não parece provável que Ulysses v o l t e
para exterminal-os e t o m a r conta da casa. »
Essa nota é, quasi, p u r a m e n t e l i t t e r a r i a . Ulysses
ahi era o conde de C h a m b o r d , e os pretendentes
os p a r t i d o s que a r r a s t a v a m a França, depois da
d e r r o t a n a c i o n a l , talvez para a g u e r r a c i v i l . E u
pensava escrever u m acto, i n t i t u l a d o Os Preten-
dentes, c o m a idéa do arco de Ulysses. E r a ,
c o m o o d r a m a de que fallei, u m caso da falta de
coincidência que se dava e m m i m , entre a i m a -
ginação l i t t e r a r i a e a s y m p a t h i a p o l i t i c a .
H a outras notas, c o m relação aos Pretendentes.
E m 16 de j u l h o :
« O conde de C h a m b o r d representa a t h e o r i a
de que a p o l i t i c a é u m a arte religiosa, e u m rei-
n a d o u m a espécie de m o n u m e n t o das crenças
de u m a epocha. A concepção de que g o v e r n a r é
u m acto religioso, c o m o o confessar, e t e m u m
fim religioso, desíróe t o d a l i b e r d a d e de pensa-
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 149

mento. U m h o m e m pode fazer da sua v i d a u m a


f o r m a de arte, m a s não da v i d a de t o d o o m u n d o ,
que quer v i v e r a seu modo. A p o l i t i c a , si é u m a
arte, não é arte ascética, religiosa, — n e m m e s m o
no seu período hieratico. A p o l i t i c a , arte r e l i -
giosa, converte e m c r i m e de sacrilégio o m e n o r
acto de l i b e r d a d e i n d i v i d u a l . »
E m 3o de j u l h o : « E s t i v e a pensar nos Pre-
tendentes. O appel au peuple é feito pelo c a n d i -
dato respectivo ás rans, e a p r o v a real é t i r a d a
por o u t r o , que appella t a m b é m para ellas. A t u d o
ellas r e s p o n d e m : couac. »
« J u l h o , 5. A posição do Presidente H a y e s é a
m a i s singular que já se v i u neste paiz. E l l e che-
gou ao poder p o r fraudes eleitoraes sem exemplo,
e m p u r r a d o até a Casa B r a n c a pelos carpet-
baggers d o s u l e wire-pullers d o Senado, depois
de u m a c a m p a n h a de que os empregados públi-
cos fizéramos gastos : deve, assim, a sua eleição,
ou, m e l h o r , o seu posto, a u m sem n u m e r o de
politicians de todos os matizes, desde os fabrica-
dores de actas falsas até os juizes da Côrte Su-
prema, que as a p u r a r a m . Chegando ao poder,
porém, t e m v e r g o n h a de t u d o isso e torna-se elle
o representante da pureza a d m i n i s t r a t i v a e elei-
toral. O s últimos carpet-baggers do S u l , c o m a
amputação da m e m b r a n a que os ligava ao Presi-
dente eleito c o m elles e p o r elles, desapparecem
para sempre da scena p o l i t i c a . Os p o l i t i q u i s t a s
são enxotados, os senadores snubbed; os empre-
150 MINHA F O R M A Ç Ã O

gados públicos, senhores da m a c h i n a eleitoral e


que se c o t i s a v a m para a eleição solidaria, i n t i -
mados a m u d a r de v i d a e a não subscrever m a i s
u m cent. De t u d o isso se conclue que Hayes,
assim c o m o não q u e r o u t r a vez ser eleito, entende
que ninguém m a i s deve ser eleito P r e s i d e n t e
c o m o elle f o i . P o u c o s h o m e n s t e r i a m feito tão
b o m uso de u m poder tão m a l a d q u i r i d o . I s t o
resgata, quasi, a falta de c o r a g e m cívica que o
l e v o u a acceital-o. »
« J u l h o , 19 e A g o s t o 9. Não'se pôde d i z e r
deste p a i z que t e n h a ideal. E o paiz p r a t i c o p o r
excellencia, e que t e m a admirável qualidade, de
b e m o u m a l , governar-se a si mesmo. N ã o l h e
falta manhood, mas t u d o nelle preenche u m f i m
m a t e r i a l . O a m e r i c a n o é, a c i m a de t u d o , u m ho-
m e m p o s i t i v o , em cuja v i d a a m e t a p h y s i c a t e m
pequena p a r t e ; reconhece a cada instante q u e a
v i d a é u m basiness, que é preciso u m l a s t r o
para não a f u n d a r n e l l a ; põe a arte, a sciencia, a
c u l t u r a , a polity, depois do que é essencial, isto
é, do dollar, i n d o sempre ahead c o m o a loco-
m o t i v a , t r a t a n d o a m u l h e r c o m o m a i o r respeito,
mas na v i d a p r a t i c a c o m o u m a obstruction, p o r
isso entregando-a a ella m e s m a , a m b i c i o n a n d o ,
acima de t u d o , a r i q u e z a de u m g r a n d e operator
de W a l l Street, depois a i n f l u e n c i a de u m boss,
insensível á i n v e j a , á m á v o n t a d e , ao c o m m e n -
t a r i o , a t u d o o que e m o u t r o s paizes e m m a r a n h a ,
c o m p l i c a e, ás vezes, i n u t i l i s a grandes c a r r e i r a s ;
MINHA F O R M A Ç Ã O lOI

n u n c a p r o c u r a n d o o prazer p a r a si, dando-o aos


hospedes em sua casa, c o m o se dão b r i n q u e d o s
ás creanças, s u p e r i o r ás contrariedades, sóbrio de
dôr, c a l m o na m o r t e dos seus, e t r a t a n d o a
própria apenas c o m o u m a questão de seguro...
« A vida privada \ a q u i é apenas u m a expressão
conservada do inglez. T o d o o h o m e m é um
h o m e m p u b l i c o , e elle t o d o . »
São impressões de simples transeunte. E u h o j e
não escreveria dos E s t a d o s - U n i d o s que é u m a
nação sem ideal; d i r i a que é u m a nação cujo
ideal se está f o r m a n d o . A s s i m c o m o o I n g l e z t r a t a
de a d q u i r i r f o r t u n a e independência antes de
entrar para a C â m a r a dos C o m m u n s , dir-se-ia
que a nação americana t r a t a de crescer, de povoar
o seu i m m e n s o território, de chegar ao seu com-
pleto desenvolvimento, her full size, para depois
fazer fallar de si e pensar no n o m e que deve
deixar. Até hoje os Estados-Unidos têm feito
v i d a á parte e se têm occupado de si só; mas u m
paiz que c a m i n h a para ser, si já não é, o mais
r i c o , o mais forte, o mais b e m apparelhado do
m u n d o , t e m , pela força das coisas, que ligar a
sua historia c o m a das outras nações, que se as-
sociar e l u c t a r c o m ellas.
« Agosto, 18. Gladstone, p o r ter attendido ás
reclamações da g u e r r a c i v i l , é ainda mais i m p o -
p u l a r no S u l do que na I n g l a t e r r a entre os con-
servadores. O t e m p o e m que se assignou o t r a -
tado de W a s h i n g t o n , era entretanto para o
152 MINHA F O R M A Ç Ã O

estrangeiro, de perfeita unificação americana. H a


entre o N o r t e e o S u l m a i s que u m a d e s i n t e l l i -
gencia p o l i t i c a , ha reserva tácita de u m a m á v o n -
tade hereditária, u m estado de g u e r r a latente.
« O que t o r n a os dois grandes p a r t i d o s nacio-
naes colligações accidentaes e i m p o s s i b i l i t a a
unidade de vistas e m cada u m delles, é a d i v e r -
gência dos interesses dos Estados. O p a r t i d o De-
m o c r a t a , p o r exemplo, t e m que c o n c i l i a r e m
u m a f o r m u l a n e g a t i v a a p o l i t i c a dos Estados de
Leste, dos pagamentos e m o u r o e do resgate do
papel, c o m a p o l i t i c a dos Estados do Oeste, dos
grcen-backs; e o p a r t i d o R e p u b l i c a n o t e m que
h a r m o n i s a r a p o l i t i c a de intervenção de G r a n t
c o m a p o l i t i c a de H a y e s de c o m p l e t o self-go-
vernment p a r a os Estados do Sul. »
« J u l h o , 25. A s scenas destes últimos dias (a
parede das estradas de f e r r o ) dão m u i t o que pen-
sar... V i c t o r H u g o d i z que o c u l p a d o de t e r e m
os c o m m u n i s t a s pegado fogo a P a r i z é q u e m
não lhes e n s i n o u a ler. Cada u m dos i n c e n d i a -
d o s , porém, era p r o v a v e l m e n t e assignante d o
Rappel. Q u e p o v o calmo, o a m e r i c a n o ! A g r a n d e
excitação de que se falia, não passa de u m a con-
versa p a r t i c u l a r no bar-room de u m h o t e l . N o v a -
Y o r k está, talvez, a p o n t o de se t o r n a r o t h e a t r o
de u m riot a m a n h ã , e as a u c t o r i d a d e s c o n c e d e m
u m p a r q u e aos c o m m u n i s t a s p a r a o seu meeting.'
T u d o f r a t e r n i s a : a t r o p a c o m os strikers, g r e -
vistas, os citizens c o m a mol\ e ninguém perde
MINHA F O R M A Ç Ã O 153

a calma. O pessimista francez não existe neste


paiz de o p t i m i s t a s que d i z e m sempre : « Não
haverá nada e si ha : « I s t o passa logo », e
si d u r a : « P o d i a ser peior. » A b a r b a do v i z i n h o ,
de que falia o d i c t a d o , não se entende a q u i de
cidade a cidade, n e m de b a i r r o a b a i r r o , mas q u a s i
de casa a casa. Os próprios que p e r d e m t u d o não
a c h a m m e i o de queixar-se sinão de si mesmos. »
« i.° de setembro. H a poucos h o m e n s em p o l i -
tica que p r e f i r a m c a h i r p o r seus princípios a
sophismal-os para ficar de pé. O m i n i s t r o que
sustenta a preeminencia da C â m a r a dos D e p u -
tados, procurará, si a C â m a r a lhe fôr c o n t r a r i a ,
p r o v a r que ella não representa o paiz e apoiar-
se na C â m a r a alta. D u r a n t e o Império, Gam-
betta não fallaria do suffragio u n i v e r s a l c o m o
e n t h u s i a s m o de hoje, e n e n h u m b o n a p a r t i s t a se
s u b m e t t e r i a agora, c o m o sob os Napoleões, a u m
appello ao povo. N o f u n d o só h a duas políticas :
a p o l i t i c a de governo e a p o l i t i c a de opposição. »
« Setembro,* 8. B r a d l e y , o j u i z da Corte Su-
prema, que de facto fez a H a y e s Presidente, tendo
sido atacado pelos jornaes democratas e accusado
de ter m u d a d o de opinião depois de o u v i r os
directores do c a m i n h o de ferro do Pacifico, en-
tendeu dever justificar-se* pela imprensa. Nessa
justificação, a d m i t t i n d o a possibilidade de ter ex-
pressado a seus collegas durante o processo u m a
opinião diversa da que deu, elle conta que es-
crevia razões o r a em u m sentido, ora em o u t r o ,
154 MIXIIA FORMAÇÃO

sobre o v o t o da F l o r i d a , tendo chegado ao v o t o


que deu, depois de m u i t a d u v i d a . Esta carta a
u m j o r n a l de N o v a - Y o r k é c u r i o s a e m m u i t o s
pontos de vista. U m j u i z que v a c i i l a , que chega
a conclusões differentes d u r a n t e m u i t o s dias,
deveria considerar d e f i n i t i v a a opinião que occa-
s i o n a l m e n t e p r e d o m i n a e m seu espirito no mo-
m e n t o de ser t o m a d o o voto? N ã o será provável,
pelo menos possível, que elle m u d e a i n d a de
j u i z o , depois de e m i t t i d o o seu v o t o , isto é, de
irreparável? P o r o u t r o l a d o , essas d u v i d a s não
provarão a sinceridade do processo lógico de i n -
vestigação, e poder-se-á e x i g i r do j u i z que t e n h a ,
desde o começo de u m a causa, opinião f o r m a d a ?
A vacillação q u a d r a m e n o s c o m a distribuição
da justiça, a q u a l deve s e m p r e proceder de u m a
convicção inabalável e i n a b a l a d a , do que a o b -
stinação, que m u i t a s vezes é f a l t a de percepção e
e x c l u s i v i s m o de j u i z o . Q u a n t o á força que a r e -
flexão posterior t e m dado e m seu e s p i r i t o ao v o t o
que e m i t t i u , é esse u m p h e n o m e n o de assenti-
m e n t o da consciência, m u i t o c o m m u m na magis-
tratura. Commettido o erro, a intelligencia o
t o m a c o m o verdade, p o r q u e é o interesse do b o m
n o m e do j u i z . »
« S e t e m b r o 4. T h i e r s m o r r e u h o n t e m . P o r
t o d a a p a r t e a n o t i c i a vae p r o d u z i n d o a m e s m a
impressão. P o b r e França! é o que se exclama. A
p e r d a é irreparável. O leme fica sem h o m e m . A
confiança q u e a E u r o p a t o d a t i n h a no v e l h o c o n -
I
MINHA F O R M A Ç Ã O 155

selheiro da França não acha a q u e m se entre-


gar... O u l t i m o e m França dos grandes homens
do passado não n o m e o u successor... »
« Setembro, u . M u i t o se t e m d i t o sobre as
mudanças de T h i e r s . Q u a n d o se p r o c u r a saber
porque esse pequeno marselhez, nascido pobre,
sem família, exposto ao ridículo e ao desdém dos
seus competidores aristocratas, atravessou tantos
governos diversos, sem n u n c a perder a sua i m -
portância p o l i t i c a , até v i r a ser, na e x t r e m a
velhice, o « L i b e r t a d o r do Território », encontra-
se a explicação dessas mudanças. Q u a n d o tantos
h o m e n s de talento, caracter, f o r t u n a e prestigio
social r e p r e s e n t a v a m o seu papel e m u m regi-
m e m e desappareciam, T h i e r s era sempre contado
c o m o u m poder político. F o i seu destino f u n d a r
e d e s t r u i r governos, mas não se pôde accusal-o
de se t e r d i v o r c i a d o da França e m n e n h u m desses
m o m e n t o s . M u d o u sempre c o m o paiz. A sua
grande m u d a n ç a final de m o n a r c h i s t a para repu-
blicano c o n c i d i u c o m o seu interesse pessoal
c o m o p r i m e i r o Presidente da Republica, mas
c o i n c i d i u t a m b é m c o m a conversão das classes
médias, não ao p r i n c i p i o republicano, mas á idéa
de que só a R e p u b l i c a era possível. Sempre a
França, nos seus m o v i m e n t o s liberaes, o encon-
t r o u ao seu lado. D u r a n t e o Império, elle fez
u m a opposição patriótica, que teria, talvez, e v i -
tado Sedan e conservado a dynastia, si o não con-
siderassem orleanista. Q u a n d o concorreu para
j'56 MINHA F O R M A Ç Ã O

collocar L u i z F e l i p p e n o t h r o n o , o p e n s a m e n t o
era que u m a m o n a r c h i a r e p u b l i c a n a dispensava
a r e p u b l i c a . A fraqueza d a m o n a r c h i a de i 8 3 o
foi que o p r i n c i p i o da hereditariedade a m i n o u
desde o começo. L u i z F e l i p p e d e s t r u i u o d i r e i t o
d i v i n o para s u b i r e, depois, q u i z servir-se delle
para d u r a r , t r a n s f o r m a n d o - o e m b o m senso, p r i n -
c i p i o de auctoridade, etc. O que faz a u n i d a d e d a
carreira de T h i e r s , é que elle f o i sempre pelo go-
v e r n o p a r l e m e n t a r , pelo d i r e i t o p o p u l a r r e p r e -
sentado nas assembléas legislativas. P o r esse
p r i n c i p i o r e n u n c i o u a presidência da R e p u b l i c a
e m m ã o s suspeitas. O segredo da sua f o r t u n a
p o l i t i c a consistiu e m g u a r d a r fidelidade á França.
« M u i t a s vezes u m paiz p e r c o r r e um longo
c a m i n h o p a r a v o l t a r , cançado e f e r i d o , ao p o n t o
donde p a r t i u . E possível que a França v o l t e
ainda á m o n a r c h i a l e g i t i m a , e si T h i e r s tivesse
v i v i d o mais t e m p o e a R e p u b l i c a trouxesse novas
desgraças para a França, c o m o a C o m m u n a ,
talvez fosse o m e s m o T h i e r s q u e m entregasse a
F r a n c a ao h e r d e i r o dos seus reis. M e s m o assim,
q u a n d o a França c o m p a r a r os dois t y p o s de
estadistas : B e r r y e r , que não m u d o u n u n c a , fosse
p o r u m a convicção m o n a r c h i c a sempre renovada,
fosse p o r u m c a v a i h e i r i s m o d i g n o d o seu caracter,
e ficou sempre n o m e s m o logar á espera de que
a França voltasse a h i , e T h i e r s , que a acompa-
n h o u nas suas vicissitudes, eu a c r e d i t o que ella
se reconhecerá a si m e s m a n o h o m e m que en-
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 10'

c o n t r o u sempre c o m o seu conselheiro, que p o r


vezes m u d o u para ficar ao lado delia e poder
valer-lhe c o m a sua c o n s u m m a d a experiência nos
dias e m que viesse a' precisar de u m a palavra
amiga. »
A o r e l e r hoje esta pagina do m e u diário de
1871, vejo que a m i n h a explicação da unidade
da carreira p o l i t i c a de T h i e r s se parece m u i t o
c o m a que, ha alguns annos, f o i p u b l i c a d a de
T a l l e y r a n d , justificando-se e m suas Memórias de
só t e r m u d a d o c o m a França e p o r causa da
França.
Esses trechos m o s t r a m que em N o v a - Y o r k eu
não me achava sob a influencia americana, mas
que c o n t i n u a v a e m m i m a i n f l u e n c i a européa e
eu era o espectador, que t i n h a sido e m L o n d r e s ,
quasi desinteressado da p o l i t i c a , desinteressado
pelo menos de toda a p o l i t i c a que não pudesse
converter e m assumpto l i t t e r a r i o , o u e m nota c r i -
tica e observação. A g o r a d i r e i a m i n h a impressão
geral dos Estados-Unidos, o que é hoje a m i n h a
idéa da democracia na America.
XV i

TRAÇOS AMERICANOS

Dos E s t a d o s - U n i d o s não v i sinão. m u i t o pouco,


c o m o da I n g l a t e r r a , p o r isso as impressões que
r e p r o d u z o d e v e m ser entendidas c o m o i m p r e s -
sões de N o v a - Y o r k e W a s h i n g t o n , q u a s i e x c l u -
sivamente. P o r u m a c i r c u m s t a n c i a f o r t u i t a p u d e
ficar e m N o v a - Y o r k quasi t o d o o t e m p o q u e
passei na legação do B r a s i l . O m e u m i n i s t r o , o
barão de C a r v a l h o Borges, de q u e m conservo a
m a i s grata recordação, estava de l u t o , p o r isso
ausentára-se de W a s h i n g t o n e v i v i a e m Nova-
Y o r k , incógnito, ao c o n t r a r i o de o u t r o s collegas
seus, c o n t r a c u j o realce aos bailes e recepções da
Quinta Avenida os jornaes de W a s h i n g t o n em
vão r e c l a m a v a m . A l é m das duas grandes capitães
da União, a p o l i t i c a e a c o s m o p o l i t a , conheci
somente Phiíadelphia, d u r a n t e o centenário,
Saratoga, d u r a n t e u m a Convenção N a c i o n a l , e
N i a g a r a e B o s t o n , que m e fizeram p e r d e r N e w -
p o r t . A idéa, porém, q u e t e n h o é que q u e m v i u
MINHA F O R M A Ç Ã O 10\J

N o v a - Y o r k e W a s h i n g t o n v i u t u d o que ha que
vêr nos Estados-Unidos, exceptuando somente as
poucas cidades a que se p o d e m c h a m a r cidades
históricas, que têm o c u n h o das suas tradições
próprias. Q u e m v i u B u i f a l o , St. L o u i s , S. F r a n -
cisco, Chicago, não v i u porém N o v a Y o r k ,
c o m o q u e m v i u Saratoga não v i u N e w p o r t , ao
passo que B o s t o n , Nova-Orleans, não têm seme-
lhantes.
P a r a o engenheiro, p a r a o i n v e n t o r , para o
architecto, p a r a t o d o economisador de t e m p o e
t r a b a l h o , para q u e m a d m i r a a c i m a de todos o
gênio i n d u s t r i a l deste século, os m e l h o r a m e n t o s
que elle t e m i n t r o d u z i d o na f e r r a m e n t a h u m a n a ,
os E s t a d o s - U n i d o s são de u m a e x t r e m i d a d e a
o u t r a u m paiz para se v i s i t a r e conhecer. E elle,
talvez, o paiz onde m e l h o r se pode estudar a
civilisação m a t e r i a l , onde o poder d y n a m i c o ao
serviço do h o m e m parece m a i o r e ao alcance de
cada um. E m certo sentido, póde-se dizer delle
que é uma t o r r e de B a b e l b e m succedida. N a
o r d e m intellectual e m o r a l , porém, c o m p r e h e n -
dendo a arte, os Estados-Unidos não têm o que
m o s t r a r , e certa o r d e m de c u l t u r a , toda c u l t u r a
superior quasi, não precisa p a r a ser perfeita e
c o m p l e t a de a d q u i r i r n e n h u m c o n t i n g e n t e ame-
ricano.
D a p o l i t i c a , a impressão geral que tive e con-
servo é a de u m a l u c t a sem o desinteresse, a ele-
vação de p a t r i o t i s m o , a delicadeza de maneiras
160 MINHA FORMAÇÃO

e a honestidade de processos que t o r n a m na


I n g l a t e r r a , p o r exemplo, a c a r r e i r a p o l i t i c a accei-
t a v e l e m e s m o s y m p a t h i c a aos espíritos m a i s
distinctos. O que caracterisa essa l u c t a é a crueza
da p u b l i c i d a d e a q u e todos q u e e n t r a m nella
estão expostos. C o m o antes eu disse, não h a v i d a
p a r t i c u l a r nos E s t a d o s - U n i d o s . P a r a a r e p o r t a -
g e m não existe l i n h a divisória entre a v i d a
p u b l i c a e a p r i v a d a . O adversário está sujeito a
u m a investigação s e m l i m i t e s e s e m escrúpulos,
e não elle, somente, — todos que l h e d i z e m res-
peito. S i u m c a n d i d a t o á Presidência t i v e r t i d o
na m o c i d a d e a m e n o r aventura, terá o desgosto
de vêl-a p h o t o g r a p h a d a , apregoada nas ruas,
c o l o r i d a e m cartazes, cantada nos music-halls,
p o r todos os m o d o s e invenções que o ridículo
suggerir e parecerem m a i s próprios p a r a captar
o eleitorado. A c a m p a n h a c o n t r a T i l d e n f o i feita
c o m u m a revelação de q u e elle t i n h a u m a vez
i l l u d i d o o fisco, a respeito do seu r e n d i m e n t o
profissional. O político é entregue sem piedade
aos repórters; a obrigação destes é rasgar-lhes,
seja c o m o f o r , a reputação, reduzil-a a u m
ancjrajo, r o l a r c o m elle na lama. P a r a isso não
ha a r t i f i c i o q u e não pareça l e g i t i m o á i m p r e n s a
partidária; não ha espionagem, corrupção, f u r t o
de documentos, intercepção de correspondência
o u de confidencia, que não fosse j u s t i f i c a d a pelo
successo.
O effeito de t a l systema pode ser m o r a l i s a r a
MINHA F O R M A Ç Ã O 101

v i d a p r i v a d a , pelo menos a dos que p r e t e n d e m


entrar para a p o l i t i c a , si ha m o r a l i d a d e no t e r r o r
causado p o r u m desses formidáveis exposures
eleitoraes, os Francezes diriam chantage. A
v i d a p o l i t i c a , porém, elle não t e m m o r a l i s a d o . A
consciência p u b l i c a americana é m u i t o i n f e r i o r á
privada, a m o r a l do E s t a d o á m o r a l de família.
De certo, nos Estados-Unidos, os c h a m a d o s
rings, nós diríamos q u a d r i l h a s , os r o u b o s públi-
cos, os syndicatos a d m i n i s t r a t i v o s , são d e n u n -
ciados e investigados c o m o não o s e r i a m talvez
em n e n h u m paiz, o a m e r i c a n o não tendo pena
dos adversários, julgando-se o b r i g a d o para c o m
o seu p a r t i d o a reduzil-os á condição mais h u -
m i l h a n t e , a expellil-os u m p o r u m , sendo pos-
sível, da v i d a p u b l i c a . Mas, desde que a c o r r u -
pção reina nos dois p a r t i d o s , que a m b o s têm as
suas chagas conhecidas, as suas ligações com-
promettedoras, todas as c a m p a n h a s a f a v o r da
pureza a d m i n i s t r a t i v a têm m u i t o de insincero,
de s i m u l a d o , de c o n v e n c i o n a l , o que não acon-
tece c o m as investigações da v i d a p r i v a d a . Es-
tas, s i m , e n c o n t r a m e m t o d a a parte a u n i -
dade do s e n t i m e n t o e da educação religiosa do
paiz para echoal-as. A consciência em v o g a entre
os politicians t e m a sua casuística especial.
Ist® não quer dizer que na p o l i t i c a americana
não haja u m t y p o m u i t o diflerente do d o p o l i t i -
cian, ou, c o m o os antigos lhe c h a m a r i a m , do de-
magogo ; que, ao lado da consciência elástica,
162 MINHA F O R M A Ç Ã O

insensibilisada para todas as espécies de fraude,


de corrupção, de chicana, c o m o males inevitáveis
da democracia, não exista a honra, o decoro, a
i m m a c u l a b i l i d a d e . H a h o m e n s na p o l i t i c a respei-
tados em todo o paiz, e que a m b o s os p a r t i d o s
r e p u t a m incapazes da m e n o r indelicadeza n o que
toca á honestidade pessoal. N ã o ha u m só, na
actividade e na l u c t a partidária porém, a q u e m
se attribúa o caracter preciso para r e p u d i a r e
c o n d e m n a r os seus correligionários a i n d a nos
peiores recursos que t i v e r e m empregado. O h o -
mem da mais p u r a reputação n o Senado a m e r i -
cano votará solido, sempre que se t r a t a r do inte-
resse geral do p a r t i d o .
N ã o h a v i a nada que me désse na A m e r i c a d o
N o r t e idéa da s u p e r i o r i d a d e de suas instituições
sobre as inglezas. A a t m o s p h e r a m o r a l em r o d a
da p o l i t i c a era seguramente m u i t o m a i s v i c i a d a ;
a classe de h o m e n s a q u e m a p o l i t i c a a t t r a h i a ,
i n f e r i o r , isto é, não era a m e l h o r classe d a socie-
dade, c o m o na I n g l a t e r r a ; pelo c o n t r a r i o , o que
a sociedade t e m de m a i s escrupuloso afasta-se
n a t u r a l m e n t e da p o l i t i c a . A l u c t a não se t r a v a n o
terreno das idéas, mas no das reputações pes-
soaés; discutem-se os indivíduos; combate-se,
póde-se dizer, c o m raios Roentgen ; escancaram-se
as portas dos c a n d i d a t o s ; expõe-se-lhes a casa
t o d a c o m o em u m d i a de leilão. C o m semelhante
r e g i m e n , sujeitos ás execuções s u m m a r i a s da
c a l u m n i a e aos l y n c h a m e n t o s n o alto das co-
MIXIIA FORMAÇÃO 163

l u m n a s dos jornaes, é n a t u r a l que e v i t e m a p o l i -


tica todos os que se sentem impróprios para o
p u g i l a t o na praça p u b l i c a , o u para figurar em
u m big show.
A grandeza do espectaculo que dão os Estados-
U n i d o s é t a n t o m a i o r , eu sei bem, q u a n t o mais
m a i s b a i x o o n i v e l do político de profissão. A
degradação dos costumes públicos do paiz, coin-
c i d i n d o c o m o seu d e s e n v o l v i m e n t o e c u l t u r a ,
c o m a sua accumulação de riqueza e de energia,
c o m os seus recursos i l l i m i t a d o s , não quer dizer
o u t r a coisa sinão que a nação americana não se
i m p o r t a que a d m i n i s t r e m m a l os seus negócios,
p o r q u e não t e m t e m p o para t o m a r contas. E
c o m o u m a fazenda de i m m e n s a safra, em que o
proprietário ausente fechasse os olhos ás d i l a p i -
dações do a d m i n i s t r a d o r , levando-as á conta de
lucros e perdas, inevitável em todo gênero de
negócios. O s A m e r i c a n o s deixam-se t r a t a r pelos
seus politicians do m e s m o m o d o que os reis de
França pelos seus fermiers-géneraux. Sejam
causados pela ignorância e incapacidade, o u pela
corrupção e venalidade, prejuízos ha de sempre
haver em toda administração; para impedij-os
seria preciso m o n t a r u m systema de fiscalisação
r u i n o s o para o paiz, não só pelo seu custo, c o m o
p o r q u e seria preciso d i s t r a h i r para elle dos negó-
cios e de outras profissões o que o paiz tivesse de
melhor.
Que pôde acontecer de peior entregando-se o
164 MINHA F O R M A Ç Ã O

paiz á direcção de p a r t i d o s organizados c o m o


associações de seguro m u t u o e que para isso reco-
l h e m u m a p o r c e n t a g e m do r e n d i m e n t o nacional?
U m a aggravação de i m p o s t o s ? Q u e i m p o r t a ao
A m e r i c a n o pagar m a i s alguns cents no d o l l a r e
não se i n c o m m o d a r c o m a p o l i t i c a ? E n v o l v e r e m
os politicians a nação e m u m a g u e r r a estrangeira ?
O perigo é m u i t o problemático e a v a r o n i l i d a d e
do paiz não teme que o e n v o l v a m e m u m a g u e r r a
sem elle a querer e a achar l e g i t i m a o u v a n t a -
josa. O A m e r i c a n o sabe que h a no seu paiz u m a
opinião p u b l i c a , desde que cada A m e r i c a n o t e m
u m a opinião sua. E u m a força latente, esquecida,
e m repouso, que não se levanta sem causa suffi-
ciente, e esta r a r o se p r o d u z ; mas é u m a força
de u m a energia incalculável, que a t i r a r i a pelos
ares t u d o o que lhe resistisse, p a r t i d o s , l e g i s l a t u -
ras, Congresso, Presidente.
E nesse sentido u m g r a n d e espectaculo. O
g o v e r n o t e m u m a capacidade l i m i t a d a de fazer
m a l ; a parte de influencia e de l u c r o s que a nação
abandona á classe p o l i t i c a , está c i r c u m s c r i p t a a
u m a escala m o v e i , isto é, p r o p o r c i o n a l ao r e n d i -
m e n t o p u b l i c o , o que p e r m i t t e á profissão vanta-
gens crescentes e progressivas, mas, c o m o q u e r
que seja, está c i r c u m s c r i p t a ; a nação deixa-se
d i v i d i r em p a r t i d o s , f o r m a e m a n o b r a e m c a m p o s
eleitoraes, e, apezar da massa das abstenções,
a c o m p a n h a os m a u s a d m i n i s t r a d o r e s dos seus
interesses; mas todos sentem que de repente a
MINHA FORMAÇÃO 165

opinião pode m u d a r , tornar-se u n a n i m e , a d q u i r i r


a força de u m i m p u l s o irresistível, d e s t r u i r tudo.
N o s E s t a d o s - U n i d o s o g o v e r n o não t e m assim a
importância que t e m nos paizes onde elle go-
v e r n a ; o g o v e r n o n a A m e r i c a é u m a p u r a gestão
de negócios, que se faz, m a l o u bem, honesta o u
deshonestamente, c o m a tolerância e o conheci-
m e n t o do g r a n d e capitalista que a delega. A cor-
rupção p o l i t i c a é, p o r isso, n a A m e r i c a do N o r t e ,
já u m a vez citei esta i m a g e m de B o u t m y , u m a
simples erupção na pelle, e m q u a n t o e m o u t r o s
paizes ella é u m m a l p r o f u n d o , visceral.
O facto é que n e n h u m a impressão g u a r d e i dos
Estados-Unidos de o r d e m equivalente á impres-
são ingleza, n e m m e s m o a de liberdade i n d i -
v i d u a l . E certo que o A m e r i c a n o , c o m p a r a d o
c o m o I n g l e z , t e m o s e n t i m e n t o da altivez i n d i -
v i d u a l m a i s forte, p o r q u e não h a classe, n e m
h i e r a r c h i a a que elle se curve. O I n g l e z t e m reve-
rencia pela posição, pela classe, pelo n a s c i m e n t o ;
o A m e r i c a n o não t e m , e isto faz n a t u r a l m e n t e
que este se considere m a i s independente no seu
m o d o de sentir do que o I n g l e z . E incontestável
que a democracia, i n t r o d u z i n d o na educação a
idéa da m a i s perfeita egualdade, levanta no
h o m e m o sentimento do o r g u l h o próprio. A
questão é saber, t o m a n d o o conjuneto dos resul-
tados, si as sociedades antigas onde as i n f l u e n -
cias tradicionaes não se a p a g a r a m de todo, c o m o
a ingleza, antes são p o r assim dizer a r t i f i c i a l -
166 MINHA FORMAÇÃO

m e n t e m a n t i d a s , não p r o d u z e m c o m as l i m i -
tações de classe u m a d i g n i d a d e pessoal m o r a l -
mente s u p e r i o r a essa altivez da egualdade. E
preciso não esquecer, tratando-se do N o r t e - A m e -
ricano, que a egualdade h u m a n a para elle íica
d e n t r o dos l i m i t e s da raça-, já não f a l l a n d o do
C h i m ou do negro, — que seria classificado, s i
vencesse o i n s t i n c t o a m e r i c a n o , e m u m a o r d e m
differente da do h o m e m , — n u n c a ninguém con-
venceria o l i v r e cidadão dos E s t a d o s - U n i d o s ,
c o m o elle se chama, de que o seu v i z i n h o do
México o u de C u b a , o u os e m i g r a n t e s analpha-
betos e indigentes que elle repelle dos seus portos,
são seus eguaes. P a r a c o m estes o seu s e n t i m e n t o
de altivez converte-se no m a i s f u n d o desdém q u e
ente h u m a n o possa sentir p o r o u t r o .
N ã o quizera eu negar a inspiração s u p e r i o r que
ha no s e n t i m e n t o da egualdade na A m e r i c a , c o m o
no antigo Israel e na a n t i g a Grécia, onde elle f o i
u m sopro de liberdade, de heroísmo, de i n d e -
pendência, de que p r o c e d e r a m os m a i s perfeitos
typos na arte e na religião. É evidente que nesse
c a m i n h o é a I n g l a t e r r a que avança na direcção
dos Estados-Unidos e não os Estados-Unidos que
retrocedem a encontrar a Inglaterra. Ninguém
que conheça o t y p o americano, desde o ncws-bov t

que g r i t a os jornaes na r u a , até o king, o r e i j


de a l g u m i m m e n s o monopólio o u especulação^
estradas de ferro, m i n a s de carvão o u de prata,'
m e r c a d o de algodão o u de f a r i n h a de t r i g o , des-
MINHA F O R M A Ç Ã O 107

conhecerá que a característica, p o r excellencia,


do A m e r i c a n o é a convicção de que melhor do
que elle não existe ninguém no m u n d o . A ma-
téria p r i m a dos discursos feitos ás multidões, o u
dos a r t i g o s de p r o p a g a n d a eleitoral, posso dizer
que se c o n t e m toda nesta phrase, que o u v i a u m
dos oradores de u m monster-meeting: « N o s Es-
tados-Unidos (elle disse, c o m o sempre, in Ame-
rica) cada h o m e m é u m r e i , e cada m u l h e r u m a
r a i n h a ». T a l v e z fosse p a r a d o x o d i z e r eu que o
efFeito de t a l s e n t i m e n t o não pode ser sinão gerar
u m i f l i m i t a d o o r g u l h o , e que do o r g u l h o renas-
cerá sinão a desegualdade, p o r q u a n t o a egual-
dade pode ficar entranhada no sangue da raça, o
s e r v i l i s m o . N ã o f o i assim sempre c o m as m a i s
livres de todas as raças e as mais soberbas de
todas as democracias ? O s e n t i m e n t o , entre-
t a n t o , da egualdade perante a l e i e perante a
justiça, q u a l q u e r que possa ser o sentimento da
egualdade de condição, é m a i o r , é m a i s seguro
na I n g l a t e r r a do que nos Estados-Unidos. E m a i s
provável que o groom do m a r q u e z de S a l i s b u r y
obtenha justiça contra seu amo do que o caixeiro
de u m grande estabelecimento de N o v a - Y o r k
c o n t r a o patrão, si este t i v e r q u a l q u e r i n f l u e n c i a
na C i t y - H a l l .
N o s E s t a d o s - U n i d o s não seria necessário
a n n u n c i a r hoje : « Precisa-se de u m a aristo-
cracia ». Essa aristocracia já existe, o u , pelo
menos, se está f o r m a n d o r a p i d a m e n t e , c o m o
168 MINHA F O R M A Ç Ã O

t u d o se fôrma a l l i : aristocracia de n a s c i m e n t o ,
aristocracia de f o r t u n a , aristocracia de i n t e l l i -
gencia, aristocracia de belleza. O que d i s t i n g u e
essa aristocracia sem títulos n e m p e r g a m i n h o s de
nobreza, t o d a de convenção, mas, apezar disso,
u m a aristocracia, o que a d i s t i n g u e das o u t r a s
aristocracias do m u n d o é não ser p o l i t i c a ^ ser
m e s m o o resultado da abstenção p o l i t i c a . E e m
segundo logar, — e este é o p o n t o m a i s delicado
da « sociedade » americana, — a idéa que se
i n s i n u o u entre as m u l h e r e s desse c i r c u l o estreitís-
s i m o , de que o gentleman inglez é u m typo supe-
r i o r ao dos seus patrícios de m a i o r c u l t u r a e d i s -
tineção. E certo que as A m e r i c a n a s que p r e f e r e m
casar c o m estrangeiro p a r a p e r t e n c e r e m ás rodas
mais exclusivas da aristocracia européa são poucas
e m relação ás que casam c o m c o m p a t r i o t a s seus,
mas a aristocracia é, e m si m e s m a , u m a m i n o r i a ,
e são as suas m i n o r i a s que m e l h o r lhes represen-
t a m o espirito. Essa preferencia pelo estrangeiro,
por parte da m u l h e r americana, q u e r me parecer
u m desastre sensível p a r a o s e n t i m e n t o da egual-
dade dos A m e r i c a n o s . S i o resultado desse senti-
m e n t o , e é claro que o effeito não é de o u t r a
causa, é crear u m a aristocracia e m que o h o m e m
é considerado abaixo do n i v e l da m u l h e r , e m e n o s
próprio para i n s p i r a r - l h e a m o r e desposal-a do
que o lord o u o honorable inglez, póde-se d i z e r
que, na m a i s alta esphera da sociedade, aquelle
s e n t i m e n t o f a l l i u desastrosamente.
MINHA FORMAÇÃO 169

Nesse p o n t o , n e n h u m a alta sociedade sofire de


u m m a l tão d e p r i m e n t e , c o m o é a consciência
que o h o m e m d o m u n d o a m e r i c a n o t e m de que
a sua j o v e n patrícia, bella e m u i t a s vezes m i l l i o -
n a r i a , r e p u t a o d u q u e inglez o u o conde francez
u m ente superior a elle. N ã o é o t i t u l o necessa-
r i a m e n t e o que constitue a v a n t a g e m do estran-
geiro que telegrapha p a r a L o n d r e s o u P a r i z o seu
veniy vidi, vici, dias depois de t e r desembarcado 5
é e m parte o prestigio, a seducção do m u n d o eu-
ropeu e a idéa de que só excepcionalmente o
A m e r i c a n o chegaria a afinar-se c o m a sociedade
ingleza, franceza o u r o m a n a , c o m o ella, a m e r i -
cana, se afina-, mas é p r i n c i p a l m e n t e o t y p o a r i s -
tocrático de h o m e m que exerce sobre ella essa
fascinação desoladora para os seus c o m p a t r i o t a s .
H a famílias, e as haverá cada dia m a i s nos Esta-
dos-Unidos, que são famílias patrícias, seja pela
i m m e n s a riqueza, c o m o os A s t o r s e os Vander-
b i l t s , pela m a g i s t r a t u r a c o n s u l a r que exerceram,
c o m o os A d a m s , os H a m i l t o n s , o s Ja3 s, pelas
r

gerações que representam de nomes conhecidos


e de p r o e m i n e n c i a social, e é evidente que nessa
aristocracia, que tende a t e r o seu espirito de
classe, a idéa de casamento c o m estrangeiro, o u
de s u p e r i o r i d a d e do estrangeiro, não pôde ser
sinão a excepção. Alas e m u m a sociedade é pre-
ciso levar e m conta o s e n t i m e n t o do g r u p o que
attráe nella a m a i o r s o m m a de interesse p u b l i c o ,
(não ha d u v i d a que, no u l t i m o degráu da so-
10
170 MINHA FORMAÇÃO

ciedade americana, o prestigio do n o b r e inglez,


dos bons títulos francezes, dos príncipes r o m a -
nos, vence toda a competição n a c i o n a l . Está a h i
u m a terrível concurrencia, c o n t r a a q u a l é i m p o -
tente o gênio p r o t e c c i o n i s t a do paiz. Apenas,
c o m o compensação, póder-se-ia i m a g i n a r u m
drawback e m favor dos A m e r i c a n o s que ca-
sassem na alta sociedade o u finança européas.
U m a aristocracia, onde as m u l h e r e s mais am-
bicionadas, as que têm a p r i m a z i a da belleza,
da f o r t u n a , da seducção, j u l g a m o estrangeiro,
q u a n d o se t r a t a de a m o r o u de união, mais ao
seu n i v e l do que o seu c o m p a t r i o t a , soffre de u m
desequilíbrio de ideal entre os dois sexos. N ã o é
sinão justo apreciar as sociedades pela sua fíôr,
pela sua elite, isto é, pelo que ellas m a i s p r o f u n -
damente a d m i r a m e m si m e s m a s e o m u n d o m a i s
a d m i r a nellas.
XVII

INFLUENCIA DOS ESTADOS-UNIDOS

E u não podia, entretanto, t e r v i v i d o quasi dois


annos nos E s t a d o s - U n i d o s sem e m a l g u m p o n t o
ser modiíicado pela influencia norte-americana.
U m a coisa é a E u r o p a , o u t r a a A m e r i c a d o
N o r t e . E n t r e os A m e r i c a n o s , o m e t a l do c a r a -
cter, o f u n d o de experiência h u m a n a , o tacto da
vida é, fallando do paiz c o m o u m a só pessoa mo-
r a l , anglo-saxonio. Os Estados-Unidos, c o m o a
Austrália e o Canadá, não p ó d e m esconder a sua
procedência. O f u n d o anglo-saxonio revela-se,
a u g m e n t a d o ou diminuído, na coragem e tenaci-
dade, na dureza e i m p e n e t r a b i l i d a d e , n o espirito
de empreza e de independência da raça, t a m b é m
na b r u t a l i d a d e e crueldade d o i n s t i n c t o p o p u l a r ,
nas rixas de sangue, na bebida, nos l y n c h a m e n -
tos, na sede insaciável de d i n h e i r o , e t a m b é m ,
outros traços, na necessidade de l i m p e z a physica
e m o r a l , no espirito de conservação, na emulação
e a m o r - p r o p r i o nacionaes, na religião, no res-
172 MINHA FORMAÇÃO

peito á m u l h e r , na capacidade para o g o v e r n o


livre.
Q u e h o m e m differente, porém, é o A m e r i c a n o
do I n g l e z ! Os moldes são tão diversos que, p a r a
explicar a differença, é preciso a d m i t t i r u m a i n -
fluencia modifícadora m a i s f o r t e d o que a de i n -
stituições sociaes, u m a i n f l u e n c i a de região, —
cada grande região do g l o b o p r o d u z i n d o c o m o
o t e m p o u m a raça sua, differente das outras. A s
instituições m o d i f i c a m o caracter de u m p o v o ,
mas não se p r o v o u ainda que l h e m o d i f i c a s s e m
o t y p o e o t e m p e r a m e n t o p h y s i c o . Q u a l seria a
differença entre o Grego d o t e m p o de M i l c i a d e s
e do t e m p o de A l e x a n d r e o u de T r a j a n o ? Q u a l a
differença do N a p o l i t a n o d o t e m p o de A f f o n s o o
Grande para o do r e i U m b e r t o , ou do Portu-
guez m a n o e l i n o para o de hoje ?
A comparação do m a c h i n i s m o político-social
entre a A m e r i c a do N o r t e e a I n g l a t e r r a é, e m
quasi t u d o , favorável a esta. A s instituições i n -
glezas, t a n t o as políticas c o m o as j u d i c i a r i a s ,
t a n t o as p u b l i c a s c o m o as p r i v a d a s , têm m a i s
d i g n i d a d e , m a i s seriedade, m a i s respeitabilidade.
N a C â m a r a dos C o m m u n s não se i m a g i n a o p r o -
cesso do lobbying, não h a na administração i n -
gleza o spoils sysiem, ninguém pensaria emsqua-
ring u m t r i b u n a l inglez, não h a n a I n g l a t e r r a
u m t r e c h o de território e m que os cidadãos só
t e n h a m confiança na justiça que f a z e m p o r suas
mãos, c o m o nos lynchirigs americanos. A todos
MINHA FORMAÇÃO 173

os que têm que t r a t a r c o m a administração, que


estão na dependência da justiça, a organização
a m e r i c a n a olferece m u i t o menos garantias de
equidade e m e n o r protecção do que a ingleza.
I s t o , p o r u m l a d o ; p o r o u t r o , q u e m entra na
v i d a p u b l i c a t e m que p r o c u r a r nos Estados-
U n i d o s as boas graças de indivíduos m u i t o d i f -
ferentes dos que na I n g l a t e r r a a b r e m aos p r i n c i -
piantes as portas da p o l i t i c a ; além disso, t e m
que a p p r e n d e r p o r u m catecismo m u i t o m a i s
relaxado. A intervenção do grande pensador, do
grande escriptor, do h o m e m competente, faz-se
sentir na I n g l a t e r r a mais do que nos Estados-
U n i d o s , onde as massas obedecem a influencias
que não têm nada de i n t e l l e c t u a l c não têm
apreço p o r n e n h u m a espécie de elaboração men-
t a l . T u d o o que é superior tem, c o m effeito, o
c u n h o da i n d i v i d u a l i d a d e , envolve, p o r t a n t o ,
desdém pela sabedoria das massas. O gênio polí-
tico, q u a l q u e r que seja, está para ellas eivado de
rebeldia. S i n g u l a r m e n t e , o cidadão vale menos
nos Estados-Unidos do que na I n g l a t e r r a . P a r a
ser u m a unidade na p o l i t i c a americana, é preciso
que o indivíduo se m a t r i c u l e e m u m p a r t i d o , e,
desde esse dia, renuncie á sua personalidade,
N a I n g l a t e r r a não ha semelhante escravidão do
p a r t i d o . O paiz é governado, c o m o os Estados-
U n i d o s , p o r dois p a r t i d o s que se a l t e r n a m e se
e q u i l i b r a m , mas os p a r t i d o s inglezes são par-
tidos de opinião, não são Machines, c o m o os ame-
10.
' ' '' MIXIIA FORMAÇÃO

ricanos, das quaes certo numero de bosses gover-


nam e dirigem os movimentos.
Tomando-se, porém, o indivíduo sem relação
ao machinismo político, o h o m e m que não t e m
dependências da administração nem da justiça e
que renuncia o direito de desgovernar elle t a m -
b é m os seus concidadãos, os Estados-Unidos são
o paiz livre por excellencia. Os Americanos são
uma nação que quizera viver sem governo e agra-
dece aos seus governantes suspeitarem-lhe a i n -
tenção. D a h i , a popularidade de seus Presi-
dentes : elles não fazem sombra ao paiz, não
pesam sobre a nação. A pressão de cima para
baixo, do governo sobre a-sociedade, a que a hu-
manidade se habituou de tempos immemoriaes,
de forma a não poder viver sem ella, faz-se sentir
nos Estados-Unidos menos do que em outra
qualquer parte, menos do que na Inglaterra, onde
a protecção governamental está sempre presente.
A columna da autoridade é menor sobre os hom-
bros do Americano do que sobre os de qualquer
outro povo: a sua respiração é a mais franca, a
mais larga, a mais profunda de todas. O governo
pode ser melhor, mais perfeito na Inglaterra :
que lhe importa isso, si o que elle quer é mesmo
que a acção do governo se vá cada dia r e s t r i n -
gindo e elle a sinta menos e tenha menos que vêr
com ella? A questão é saber si a columna de au-
ctoridade, que é hoje tão leve nos Estados-Unidos,
não virá u m dia a ser a mais pesada de todas. O
MINHA F O R M A Ç Ã O 175

systema a m e r i c a n o pôde b e m corresponder, dada


a differença de epocha e adeantamento, á liberdade
pessoal de que g o z a r a m sempre m a i s o u menos
as raças que t i n h a m espaço i l l i m i t a d o para se es-
t e n d e r e m e escassa vizinhança e m paiz novo. N o
f u n d o , essa e x t r e m a liberdade é u m a fôrma de
i n d i v i d u a l i s m o , de isolamento, de v i d a á parte,
de reponsabilidade ainda não f o r m a d a , do h o m e m
na sociedade. I s o l a d a m e n t e , o A m e r i c a n o será,
c o m o eu disse, o m a i s l i v r e de todos os h o -
mens •, c o m o cidadão, porém, não se pôde dizer
que o seu c o n t r a c t o de sociedade esteja revestido
das mesmas garantias que o do Inglez, p o r
exemplo. A auctoridade é m e n o r sobre os seus
h o m b r o s , mas a solidariedade h u m a n a é t a m b é m
m a i s f r o u x a e m sua consciência.
U m a coisa o governo a m e r i c a n o não é : não
é o governo do m e l h o r h o m e m , c o m o p r e t e n d i a m
ser as democracias antigas. G o v e r n o pessoal, as
presidências p ó d e m ser, pelo menos f o r a m a l -
gumas accusadas"de o s e r ; não se pôde, porém,
apontar neste século o homem'de influencia nos
Estados-Unidos, o Gladstone o u o G a m b e t a ame-
ricano. A nação dispensa tutores, directores, con-
selheiros, rejeita .tudo o que pareça paíronizing,
ares de protecção e condescendência para c o m
ella. A o s seus olhos, o que faz u m estadista con-
siderável e i m p o r t a n t e é a s o m m a de confiança
que elle lhe merece, é o reflexo da satisfação que
causa a U n c l e Sam.
176 MINHA F O R M A Ç Ã O

A idéa de que o seu g o v e r n o é o m a i s forte do


m u n d o e o que m a i s economisa e o c c u l t a a sua
força, é o o r g u l h o p o r excellencia do A m e r i c a n o .
E n t r e o m i l i t a r i s m o e u r o p e u e a d e m o c r a c i a de-
sarmada dos E s t a d o s - U n i d o s pode u m d i a r e -
b e n t a r u m conflicto que hoje parece quasi u m
p a r a d o x o figurar, mas, até se e x p e r i m e n t a r e m
u m a grande g u e r r a estrangeira, c o m o se p r o v o u
e m u m a grande rebellião, a solidez e a elastici-
dade da americana, não se a pode considerar
superior á velha t e x t u r a européa.
O que se pode dizer é que os E s t a d o s - U n i d o s
não t i v e r a m ainda os m e s m o s perigos de que se
acautelar que a E u r o p a . Esse g o v e r n o que m u d a
todos os q u a t r o annos, pôde ser o mais f o r t e do
m u n d o , mas não foi e x p e r i m e n t a d o nas m e s m a s
condições que os outros, e está p a r a estes, q u e
são governos a r m a d o s e e m constante v i g i a pelo
risco das coalições estrangeiras, c o m o os magní-
ficos transatlânticos, de vastos salões i l l u m i -
nados, cobertas altas, camarotes espaçosos e are-
jados, verdadeiras cidades fluctuantes, estão c o m o
habitação para os navios de combate.
A União, c o m p a r a d a á I n g l a t e r r a , é c o m o a
prairie a m e r i c a n a c o m p a r a d a ao pateo i n t e r i o r de
u m casteilo n o r m a n d o . E m u m a , h a de todos os
lados o espaço descortinado, a planície sem fim;
e m o u t r o , o espectador está fechado p o r altas pa-
redes, que lhe c o n t a m sempre a h i s t o r i a de ou-
tras epochas. O passado pesa sobre o presente na
MINHA F O R M A Ç Ã O 177

I n g l a t e r r a e o l i m i t a ; na A m e r i c a , não ha v i s t a
retrospectiva. De t u d o isto resulta para o A m e -
r i c a n o u m s e n t i m e n t o de independência, que o
f a r i a , c o m o fazia o Grego, sentir-se metade es-
cravo, si l h e dessem u m r e i , m e s m o q u a n d o o
effeito da realeza fosse a u g m e n t a r a sua parte ef-
f e c t i v a d e direitos e de influencia na c o m m u n h ã o .
E nisto que consiste a m a i o r c l i b e r d a d e » ame-
r i c a n a : no s e n t i m e n t o da egualdade h i e r a r c h i c a
entre governantes e governados.
N ã o h a v i a p e r i g o de q u e eu adquirisse essa
idiosyncrasia a m e r i c a n a : era evidente para m i m
que ella era o resultado das condições e m que o
paiz crescera e que, si a independência tivesse
sido feita c o m u m príncipe inglez, c o m o a nossa
f o i feita c o m o h e r d e i r o do t h r o n o , os Estados-
U n i d o s , e m u m século de progresso e de adean-
t a m e n t o , t e r i a m desenvolvido p a r a c o m a sua
casa r e i n a n t e o m e s m o s e n t i m e n t o de loyalty
dos Inglezes. S i a realeza, na I n g l a t e r r a , passou,
no nosso t e m p o , pela m e t a m o r p h o s e que se ob-
serva d o reinado de Jorge I V para o reinado de
V i c t o r i a , teria passado na A m e r i c a do N o r t e p o r
u m a transformação ainda m a i o r . M r . K i n g o u
M r s . Queen seria u m a pessoa m u i t o mais p o -
p u l a r do que M r . President, e d i a r i a m e n t e rece-
beria m a i s esmagadores shake-hands o u mais f a -
m i l i a r e s cartões-postaes. N o B r a s i l a m o n a r c h i a
foi o que v i m o s , u m a p u r a m a g i s t r a t u r a p o p u l a r ;
c o m o não seria nos Estados-Unidos, onde o
178 MIXIIA FORMAÇÃO

p r i n c i p i o activo, a força c o r r o s i v a da democracia é


a i n d a m a i s enérgica? A m o n a r c h i a n a N o v a - I n -
glaterra, teria, p r o v a v e l m e n t e , exercido m a i o r
influencia sobre as velhas m o n a r c h i a s europeus
do que exerceu a grande R e p u b l i c a , e o u t r a es-
pécie de influencia sobre o resto da A m e r i c a .
Depois da recepção e do a c o l h i m e n t o que D o m
P e d r o I I teve nos E s t a d o s - U n i d o s e m 1876, não
era mais l i c i t o d u v i d a r de que para a i n t e l l i g e n c i a
culta do paiz a m o n a r c h i a c o n s t i t u c i o n a l , r e p r e -
sentada p o r u m a d y n a s t i a c o m o a b r a s i l e i r a , era
u m g o v e r n o m u i t o s u p e r i o r ás c h a m a d a s r e p u -
blicas da A m e r i c a L a t i n a . P e r a n t e multidões
americanas n e m sempre c o n v i r i a , talvez, ao
o r a d o r dizer isso 5 elle p o d e r i a ás vezes d e c l a m a r
que a p e i o r das r e p u b l i c a s é u m progresso sobre
a m e l h o r das m o n a r c h i a s , mias eu sentia que f a l l a r
assim era o p r i v i l e g i o do d e m a g o g o irresponsá-
v e l , e que esse não f o r a o s e n t i m e n t o dos W a s h -
i n g t o n s , dos H a m i l t o n s , dos JefTersons, n e m é o
dos que p r o c u r a m seguir-lhes as tradições. O
eífeito do r e p u b l i c a n i s m o n o r t e - a m e r i c a n o só
p o d i a ser para m i m o de c o r r i g i r o que houvesse
de supersticioso no m e u m o n a r c h i s m o , t i r a r - l h e
t u d o o que parecesse d i r e i t o d i v i n o , consagração
super-humana. E n t r e os dois espíritos, o inglez
e o norte-americano, eu não v i a opposição, c o m o
não h a opposição entre as duas raças e as duas
sociedades-, não h a v i a nada m a i s fácil de com-
prehender e c o n c i l i a r do que a admiração c o m
MIXIIA FORMAÇÃO 170

que Gladstone falia dos E s t a d o s - U n i d o s e a


admiração dos escriptores m a i s respeitáveis da
Ameriça pela Constituição ingleza.
N e n h u m a das m i n h a s idéas políticas se a l t e r o u
nos E s t a d o s - U n i d o s , mas ninguém aspira o a r
a m e r i c a n o sem achal-o mais v i v o , mais leve,
mais elástico do que os outros saturados de
tradição e auctoridade, de c o n v e n c i o n a n i s m o e
c e r i m o n i a l . Essa impressão não se apaga na
vida. A q u e l l e ar, q u e m o a s p i r o u u m a vez, p r o -
longadamente, não o confundirá c o m o de ne-
n h u m a o u t r a p a r t e ; sua composição é differente
da de todos.
Q u a n t o a m i m , f u i t r a t a d o c o m tanta bene-
volência, encontrei tão generoso a c o l h i m e n t o nos
E s t a d o s - U n i d o s , que ainda hoje me r e c o n f o r t o
nessas doces recordações. A impressão geral que
m e d e i x o u o que v i na A m e r i c a do N o r t e , é u m a
impressão de n i t i d e z ; t u d o é nítido, de c o n t o r n o
perfeito e incisivo, c o m o u m a m e d a l h a antiga. O
Inglez fará t u d o s o l i d o ; o Francez, elegante: o
A m e r i c a n o p r o c u r a fazer n i t i d o , clear cut. Isso
reconhece-se logo e m q u a l q u e r estampa ame-
ricana. H a u m a perfeição á parte, que é a
perfeição americana, distincta do u l t i m o toque
que o Inglez o u o Francez dá ás coisas, perfeição
real, incontestável, c o m o é a japoneza. Póde-se
preferir o m o d o de vêr, ou, antes, o m o d o de
olhar, — a arte não é no f u n d o sinão u m m o d o
de olhar, u m a questão de angulo v i s u a l , — do
180 MINHA FORMAÇÃO

Europeu ao do Americano, é t a m b é m isso em


grande parte uma questão de raça, mas não ha
duvida que o traço americano é u m traço que
alcançou, por sua vez, a perfeição. T u d o o que v i
me pareceu feito, desenhado com esse traço, que
eu não confundiria com outro. O que o distingue
é que elle não exprime, como os outros, u m
estado de espirito ou aspiração de ordem p u -
ramente esthetica; que não exprime uma reso-
lução, uma vontade, u m caracter. Si não fosse
a imaginação histórica, de que eu não poderia,
nem quizera, desfazer-me, nenhuma residência,
nenhuma vida, n e n h u m espectaculo me teria
nunca parecido tão encantador como o de Nova-
York. N ã o sei si o céo de Nova-York não me
pareceu o mais bello do m u n d o ; o que sei é que
elle derrama em ondas de luz aalegria, a vida,
a coragem, sobre a mais admirável procissão
de mocidade e de belleza humana que jámais
passou deante dos meus olhos, a que ffue e reflue
todas as tardes e manhãs da Q u i n t a Avenida
para o Central Park.
A o Americano, ao homem, não á mulher, e ao
h o m e m que não pertence á elite do paiz, faltará
o que se tem convencionado chamar maneiras,
os toques ou signaes, desconhecidos dos profa-
nos, pelos quaes os iniciados nos segredos mun-
danos se reconhecem entre si 5 isto quer dizer
somente que a americana é uma raça que ainda
está crescendo na mais perfeita egualdade e ga-
MINHA FORMAÇÃO 181

n h a n d o a v i d a e m desenfreada competição. N ã o
ha, porém, n o m u n d o u m a escola egual a essa
para se aprender o que, d'ora e m deante pelo me-
nos, é o m a i s i m p o r t a n t e dos preparatórios da
v i d a , — a arte de c o n t a r c o m s i g o só. O m e n i n o
americano, e q u a n d o se d i z o m e n i n o nos Esta-
dos-Unidos entende-se a m e n i n a t a m b é m , é
m e t t i d o desde quasi a p r i m e i r a infância e m u m
b a n h o c h i m i c o q u e lhe dá a cada f i b r a da von-
tade a rijeza e a elasticidade d o aço. Q u a l q u e r
que seja o v a l o r da c u l t u r a , n e n h u m pae preferirá
deixar ao filho mais u m sentido intellectual a
deixar-lhe o poderoso pick-me-up americano, o
c o r d i a l que impede a enervação nos grandes
transes moraes. E que o jogo da v i d a nos t e m p o s
modernos, — m u i t o m a i s nos séculos que vão
v i r , e m que a concurrencia será ainda m a i s nu-
merosa e implacável, — não se parece c o m
figuras de m i n u e t e o u c o m d i v e r t i m e n t o s c a m -
pestres do século passado, c o m o os vemos e m u m
Boucher o u e m u m G o y a ; parece-se c o m as cha-
madas montanhas russas : é u m incessante des-
penhar a toda a velocidade, m o n t a n h a abaixo, de
trens q u e c o m o i m p u l s o da descida transpõem
as escarpas fronteiras para se p r e c i p i t a r e m de
n o v o e de n o v o reapparecerem m a i s longe, e para
essa c o n t i n u a sensação de v e r t i g e m é p r i n c i p a l -
mente o coração que precisa ser robustecido.
Segundo toda p r o b a b i l i d a d e , os E s t a d o s - U n i d o s
hão de u m dia parar, e então terão t e m p o para
11
182 MIXIIA FORMAÇÃO

p r o d u z i r a sua sociedade culta, c o m o os v e l h o s


paizes da Europa. Já h a nos E s t a d o s - U n i d o s
porções da sociedade que p a r a r a m e q u e r e m
permanecer e m repouso 5 essas f o r m a m o p r i -
m e i r o i n d i c i o de u m a aristocracia, que u m d i a
será u m grande podei' n a União, u m a grande i n -
fluencia o u c o n s e r v a d o r a o u artística.
E m u m a entrevista que concedeu h a annos a
u m repórter americano, H e r b e r t Spencer c o n -
c l u i u c o m esta previsão sobre o f u t u r o dos Esta-
d o s - U n i d o s : c D e verdades biológicas deve-se
i n f e r i r que a m i s t u r a eventual das variedades allia-
das d a raça A r y a n a que f o r m a m a população hão
de p r o d u z i r u m m a i s poderoso t y p o de h o m e m do
que t e m existido até hoje, e u m typo de h o m e m
mais plástico, m a i s adaptável, m a i s capaz de sup-
p o r t a r as modificações necessárias p a r a a c o m -
pleta v i d a social. P o r m a i o r e s que sejam as dií-
ficuldades que os A m e r i c a n o s t e n h a m que vencer
e as tribulações p o r que t e n h a m que passar, elles
podem razoavelmente contar c o m u m a epocha
e m que hão de p r o d u z i r u m a civilisação m a i s g r a n -
diosa do que q u a l q u e r que o m u n d o t e n h a visto.»
E possível que seja aquella a lei biológica da
m i s t u r a aryana, m a s até hoje ainda n e n h u m g a l h o
a m e r i c a n o de t r o n c o e u r o p e u m o s t r o u p o d e r d a r
a m e s m a f l o r de civilisação que a da v e l h a es-
t i r p e . E possível que a civilisação a m e r i c a n a v e n h a
u m d i a a ser m a i s g r a n d i o s a d o que q u a l q u e r q u e
o mundo conheceu, m a s eu c o n s i d e r a r i a peri-
MINHA F O R M A Ç Ã O 183

goso, p o r e m q u a n t o , r e n u n c i a r a E u r o p a nos Es-


t a d o s - U n i d o s a tarefa de levar a cabo a o b r a da
h u m a n i d a d e . R e d u z i d a esta aos actuaes elemen-
tos americanos, m u i t a nobre inspiração talvez
n unca m a i s se pudesse r e n o v a r e o gênio da raça hu-
m a n a não viesse n u n c a a refíorir. A educação ame-
r i c a n a parece a única que não é c o n v e n c i o n a l ,
que não é u m a p u r a galvanisação de estados de
espirito de outras epochas, de ideaes clássicos e
íitterarios, que h o m e n s que v i v e m entre l i v r o s
i n s i n u a m aos que não t e m tempo* para ler. A idéa
t e m n a A m e r i c a do N o r t e m u i t o m e n o r papel na
v i d a do que nos o u t r o s paizes, onde t u d o está
escripto e c o n v e r t i d o e m regra, e dos quaes se
pode dizer, i n v e r t e n d o a celebre phrase, que nada
lhes cáe sob os sentidos que não tenha estado
p r i m e i r o na intelligencia. O s A m e r i c a n o s , e m
grande escala, estão i n v e n t a n d o a v i d a , c o m o
si nada existisse feito até hoje. T u d o isto sug-
gere grandes innovações f u t u r a s , mas não existe
ainda o m e n o r signal de que a elaboração do
destino h u m a n o o u a revelação superior feita ao
h o m e m tenha u m d i a que passar para os E s t a -
dos-Unidos. A sua missão n a h i s t o r i a é ainda a
mais absoluta incógnita. Si elle desapparecesse
de repente, não se pôde dizer o que é que a -hu-
m a n i d a d e perderia de essencial, que raio se apa-
garia do espirito h u m a n o ; não é ainda c o m o s i
tivesse desapparecido a França, a A l l e m a n h a , a
I n g l a t e r r a , a Itália, a Hespanha.
XVIII

.MEU PAI

Por onde quer, entretanto, que eu andasse e


quaesquer que fossem as influencias de paiz, so-
ciedade, arte, auctores, exercidas sobre m i m , eu
f u i sempre i n t e r i o r m e n t e t r a b a l h a d o p o r o u t r a
acção m a i s poderosa, que apezar, e m certo sen-
t i d o , de estranha, parecia o p e r a r sobre m i m de
dentro, do f u n d o hereditário, e p o r m e i o dos me-
lhores i m p u l s o s do coração. Essa influencia, sem-
pre presente p o r m a i s longe que eu me achasse
d'ella, d o m i n a e m o d i f i c a todas as outras, que
i n v a r i a v e l m e n t e l h e ficam subordinadas. E a q u i
o m o m e n t o de f a l l a r d'ella, porque não f o i u m a
influencia p r o p r i a m e n t e da infância n e m do p r i -
m e i r o v e r d o r da mocidade, mas do c r e s c i m e n t o
e a m a d u r e c i m e n t o do e s p i r i t o , e destinada a
a u g m e n t a r cada vez m a i s c o m o t e m p o e a não
a t t i n g i r todo o seu d e s e n v o l v i m e n t o sinão q u a n d o
p o s t h u m a . Essa i n f l u e n c i a f o i a que exerceu m e u
pae
Mi MIA FORMAÇÃO 185

Q u a n d o eu o v i pela p r i m e i r a vez, e m 18Õ7,


elle t i n h a q u a r e n t a e q u a t r o annos e acabava
de d e i x a r o ministério da Justiça. O gabinete
Parana-Caxias (1853-57) f o r a o m a i s l o n g o que o
Império até então t i n h a t i d o e ficou sendo a m a i s
b r i l h a n t e escola de estadistas do reinado. 0 g r u p o
dos « moços » que o m a r q u e z de Paraná r e u n i u
em t o r n o de si, m o s t r a de que m a n e i r a elle lia
os h o m e n s e o f u t u r o . Paranhos, W a n d e r l e y , Pe-
d r e i r a , N a b u c o estavam todos destinados a r e -
presentar p r i m e i r o s papeis e m p o l i t i c a . Esse
gabinete f o i conhecido c o m o o ministério da
Conciliação. E l l e correspondia ao pensamento,
acccito pelo I m p e r a d o r depois do choque da
u l t i m a g u e r r a c i v i l do Império, de a b r i r a polí-
tica aos elementos liberaes proscriptos, sem t i r a r
a direcção d'ella ao espirito conservador. Antes
de entrar para o ministério, fòra N a b u c o q u e m
m e l h o r definira o alcance e os l i m i t e s d'essa nova
p o l i t i c a , da q u a l devia ficar depois da m o r t e de
Paraná, e p o r m u i t o tempo, quasi que o solitário
c o n t i n u a d o r . C i t a r e i u m trecho d'esse seu dis-
curso de 1853 c o m o simples deputado, discurso-
p r o g r a m m a , póde-se dizer, pelo m u i t o que será
i n t e r p r e t a d o e invocado depois que p o r elle é
feito m i n i s t r o , porque basta esse trecho para d a r
idéa do seu m o d o de i n s i n u a r nos espíritos u m a
direcção nova, u m r u m o diverso do que se ia
levando.
E dos seus discursos o c h a m a d o a ponte de
186 MIXIIA FORMAÇÃO

ouro. Os discursos de N a b u c o t i n h a m entre os


contemporâneos cada u m o seu nome, ou, c o m o
esse, t i r a d o pelos adversários d o alcance, d a i n -
tenção que lhe a t t r i b u i a m , o u dado pela i m a g e m
ou phrase mais expressiva, o u comprehensiva,
de que elle se servira para caracterisar a situação.
« E u entendo, d i z i a elle f a l l a n d o da idéa de con-
ciliação, a q u a l estava n o ar, que é preciso fazer
a l g u m a concessão n o sentido que o progresso e
a experiência r e c l a m a m , p a r a q u e m e s m o o or-
g u l h o e o a m o r próprio não se e m b a r a c e m ante
a idéa da apostasia; p a r a que a transformação
seja explicada pelo n o v o p r i n c i p i o , pela m o d i f i -
cação das idéas. A conciliação c o m o coalisão e
fusão dos p a r t i d o s , para que se c o n f u n d a m os
princípios, para que se o b l i t e r e m as tradições, é
impraticável, e m e s m o perigosa, e p o r todos os
princípios inadmissível-, porque, destruídas as
barreiras do a n t a g o n i s m o p o l i tico que as opi-
niões se o p p õ e m r e c i p r o c a m e n t e , postas e m com-
m u m as idéas conservadoras e as exaggeradas,
estas hão de absorver aquellas: as idéas exagge-
radas hão de t r i u m n h a r sobre as idéas conser-
v a d o r a s ; as idéas exaggeradas têm p o r si o
enthusiasmo, as idéas conservadoras somente a
reflexão : o e n t h u s i a s m o é d o m a i o r n u m e r o , a
reflexão é de poucos; aquellas seduzem e coagem,
estas somente convencem... A h i s t o r i a nos d i z
que n'estas coalisões a opinião exaggerada ganha
m a i s que a opinião conservadora... » E e m se-
MINHA F O R M A Ç Ã O 187

guiíiiento : « O u v i c o m repugnância u m a idéa


proferida n e s t a casa, que os p a r t i d o s p o r si é
que se d e v i a m conciliar. E n t e n d o ao c o n t r a r i o
que a conciliação deve ser a o b r a do governo e
não dos p a r t i d o s , p o r q u e no estado actual, si os
p a r t i d o s p o r si m e s m o s se c o n c i l i a r e m , será em
o d i o e despeito ao governo, e a transacção, v e r -
sando sobre o p r i n c i p i o da auctoridade, não pode
deixar de ser f u n e s t i s s i m a á o r d e m p u b l i c a e ao
f u t u r o do paiz... »
Esses q u a t r o annos de ministério f o r a m para
elle e x t r e m a m e n t e trabalhosos, mas p o r egual
fecundos. M e u pae v i n h a da m a g i s t r a t u r a e da
C â m a r a c o m u m a reputação feita de j u r i s c o n -
sulto. N o ministério da Justiça elle a consolidou.
N ã o tento agora u m r e s u m o de sua obra, que
extensamente r e c o m p u z e m Um Estadista do
Império. Escolho alguns traços somente para
definir a sua i n d i v i d u a l i d a d e e a sua i n f l u e n -
cia. Coube-lhe e m p r i m e i r o logar acabar i n t e i -
ramente c o m o trafico de A f r i c a n o s que Eusebio
de Queiroz, seu antecessor, f e r i r a de m o r t e ,
mas que não q u e r i a desapparecer sinão m u i
l e n t a m e n t e ; a m e n o r fraqueza da parte de u m a
f u t u r a administração fal-o-hia renascer c o m d o -
brada anciã de aproveitar a monção, porque
seus quadros e m a t e r i a l conservavam-se intactos
no B r a s i l e em África. N a b u c o propõe c o m o
recurso e x t r e m o tirar-se o j u l g a m e n t o do c r i m e
aos jurados. Esse golpe na « instituição p o p u -
188 MINHA F O R M A Ç Ã O

l a r » parecia u m a e n o r m i d a d e aos i d o l a t r a s do
preconceito l i b e r a l : elle, porém, s u s t e n t o u - o
c o m razões de u m a coerção m o r a l e social
absoluta. « E m i 8 5 p , vós o sabeis, disse elle
á C a m a a, o grande m e r c a d o dos escravos era
nas costas; é a h i que h a v i a grandes a r m a -
zéns de deposito onde todos i a m c o m p r a r :
m e d i a n t e essa lei de 4 de S e t e m b r o de i 8 5 o »,
— a lei de Eusebio de Queiroz, — « essas c i r -
cumstancias se t o r n a r a m outras, os traficantes
m u d a r a m de p l a n o . A p e n a s desembarcados os
A f r i c a n o s são para logo, p o r c a m i n h o s i m p e r v i o s
e p o r atalhos desconhecidos, levados ao i n t e r i o r
do paiz. A face d'estas novas c i r c u m s t a n c i a s q u e
pode o g o v e r n o fazer c o m a l e i de 4 de S e t e m b r o
de i 8 5 o , cuja acção é somente restricta ao l i t -
t o r a l ? Si desejamos sinceramente a repressão,
si não q u e r e m o s sophismal-a, devemos seguir os
africanistas e m seus novos planos... N ã o é p a r a
abusar que o g o v e r n o q u e r estas disposições,
p o r q u e para abusar e r a m bastantes e poderosos
os meios que estão hoje á sua disposição... U m
governo, a menos que desconheça a sua missão,
não pode p o r a m o r de u m interesse c o m p r o -
m e t t e r os o u t r o s interesses da sociedade : é na
combinação de todos elles que consiste o g r a n d e
p r o b l e m a da administração publica... E u vos
disse que o g o v e r n o t i n h a o desejo sincero de
r e p r i m i r o trafico e não q u e r i a s o p h i s m a r a re-
pressão : não será s o p h i s m a r a repressão o en-
MIXIIA FORMAÇÃO 180

carregar ao j u r y o j u l g a m e n t o d'este c r i m e ?... Os


africanistas não hão de d e i x a r de p r o c u r a r para
o desembarque aquelles sitios e m que a opinião
for favorável ao t r a f i c o : não hão de i n t e r n a r os
1
africanos sinão para os logares e m que a c h a m
protecção, e o j u r y d'esses logares, os cúmplices,
os interessados, os conniventes n o c r i m e , p o d e m
julgal-o?... » O g o v e r n o t r i u m p h o u , a l e i pro-
posta f o i votada pelas Câmaras... T e r ousado
propôr a derogação da competência do j u r v
q u a n d o o trafico estava expirante, era a coragem
do v e r d a d e i r o h o m e m de Estado, cuja divisa deve
ser o nil actum reputam de César. A g l o r i a não
seria m a i s da repressão depois do golpe de Eu-
sebio 5 este a t i n h a t i r a d o toda a antecessores e
successores e g u a l m e n t e ; o que restava a q u e m
viesse depois d'elle era somente o dever. M a i s de
u m a vez m e u pae teve que fazer frente aos defen-
sores theoricos da i n t a n g i b i l i d a d e do j u r y para
fazer t r i u m p h a r o p r i n c i p i o s u p e r i o r da defesa
social. Assustava-o a estatística da i m p u n i d a d e ,
e entre as causas d'esse estado de coisas elle
contava o poderio das influencias do i n t e r i o r que
d o m i n a v a m o j u r y e p o r esse m e i o augmenta-
v a m e m a n t i n h a m e m obediência a sua vassal-
lagem. C o m o remédio p r o p u n h a a concentração
do j u r y nos logares povoados bastante para
t e r e m u m a opinião independente.
Essa era a sua qualidade p r i n c i p a l de político :
adaptar os meios aos fins e não deixar p e r i c l i t a r
1 11.
190 MINHA FORMAÇÃO

o interesse social m a i o r p o r causa de u m a dou-


t r i n a o u de u m a aspiração. C o m o se m o s t r o u
c o m o j u r y , mostrou-se, elle, m a g i s t r a d o , c o m
a m a g i s t r a t u r a . A distribuição da justiça f o i u m
de seus maiores empenhos na o r d e m a d m i n i s -
t r a t i v a ; u m a boa m a g i s t r a t u r a , efficiente, i n s -
truída, prestigiada, era para elle a solução de
metade dos nossos p r o b l e m a s ; l e v a n t a r a vocação
de j u i z p o r todos os meios ao alcance d o Estado
seria o c o m p l e m e n t o do seu o u t r o d e s i d e r a t u m :
l e v a n t a r a vocação religiosa, f o r m a r u m clero a
cuja m ã o s se pudesse entregar a g u a r d a dos dez
m a n d a m e n t o s , o deposito da m o r a l e das cos-
tumes. N o e m t a n t o será elle o p r i n c i p a l sus-
t e n t a d o r das aposentadorias forçadas de m a -
gistrados vitalícios ; elle q u e m transformará e m
m á x i m a do governo, e m inspiração para os ho-
m e n s de Estado, as p a l a v r a s de u m a n t i g o chan-
celler francez, q u a n d o disse : « P r e f i r o m i l vezes
ser j u l g a d o p o r u m m a g i s t r a d o venal, porém,
capaz, a sel-o p o r u m m a g i s t r a d o honesto, p o -
rém, i g n o r a n t e , p o r q u e o m a g i s t r a d o v e n a l não
faltará á justiça sinão nas causas e m que t i v e r
interesse e m fazel-o, e m q u a n t o que o m a g i s t r a d o
ignorante só p o r u m m e r o acaso pronunciará
u m a b o a sentença. »
Da m e s m a fôrma c o m o clero. C o m o m i n i s t r o
da Justiça, elle dá u m forte i m p u l s o á educação
do clero, propõe a creação de faculdades theolo-
gicas: é d'elle o decreto que confere aos bispos o
MIXIIA FORMAÇÃO 191

poder ex-informata consáentia sobre os seus sa-


cerdotes, sem o q u a l não seria p r a t i c a v e l a arre-
gimentação passiva da milícia ecclesiastica; e n o
e m t a n t o é elle q u e m i n t e r r o m p e no B r a s i l o
n o v i c i a d o monastico. Seu pensamento, longe
de ser s u p p r i m i r as ordens religiosas, era rege-
neral-as, restituil-as á desejada pureza, ou, c o m o
elle disse e m u m a phrase que se g r a v o u na
m e m ó r i a de P i o I X , « l e v a n t a r u m m u r o de
b r o n z e entre o n o v o e o v e l h o clero. » A s s i m tam-
b é m serviu a m o n a r c h i a c o m lealdade e desinte-
resse; j o v e n ainda, acadêmico de O l i n d a , p a r t i u
d'elle o p r i m e i r o g r i t o o u v i d o e r e p e r c u t i d o no
N o r t e contra as tendências republicanas de 7 de
A b r i l , mas a p r e r o g a t i v a m o n a r c h i c a não encon-
t r o u entre nós m a i s forte b a r r e i r a do que fosse o
seu espirito l i b e r a l f o r t e m e n t e imbuído do p r e -
conceito constitucional. É característico do seu
m o d o de comprehender a posição de Conselheiro
de Estado a franqueza c o m que perante o pró-
p r i o I m p e r a d o r elle sustenta a m á x i m a , — o rei
reina e não governa.
De 1868 a 1871, e m que a idéa f o i abraçada
pelo V i s c o n d e do R i o - B r a n c o que a converteu
e m l e i , m e u pae foi o p r i n c i p a l agitador da liber-
tação das gerações futuras. E m 18(56 elle votára
p o r essa r e f o r m a e m despacho de m i n i s t r o s e e m
1867 fôra o seu mais estrenuo defensor no Con-
selho de Estado, c o m o relator do projecto que
depois se converteu na lei de 28 de Setembro.
192 MIMIA FORMAÇÃO

D i s t r i b u i n d o no d i a da v i c t o r i a os l o u r o s do
t r i u m p h o , F r a n c i s c o Octaviano render-lhe-á este
t r i b u t o : « A o seu nobre collega o sr. N a b u c o de
Araújo t a m b é m é indisputável a g l o r i a pelo zelo
c o m que no Conselho de Estado, na correspon-
dência c o m os fazendeiros e na t r i b u n a p o r m e i o
de eloqüentes discursos, fez a m a d u r e c e r a idéa
e t o m a r proporções de vontade nacional. »
Essa f o i a r e f o r m a a que elle se d e d i c o u c o m
m a i o r interesse e amor... T a m b é m desde 1866 o
m e u sonho, m i n h a ambição para elle era que o
seu n o m e ficasse associado ao p r i m e i r o A c t o de
emancipação do reinado... Q u a n t a s cartas m i -
nhas escriptas da A c a d e m i a , e conservadas, c o m o
elle fazia c o m todos os papeis que recebia, encon-
trei depois e x p r i m i n d o aquella esperança i n t i m a
de que elle viesse a ser o L i n c o l n b r a s i l e i r o ! E
de certo de sua c a r r e i r a n e n h u m traço m e é m a i s
precioso do que esse que r e c o n s t r u i c o m fideli-
dade e m sua Vida e que faz d'elle, a s s i m como
Rio-Branco foi o R o b e r t Peel, o C o b d e n d'aquelle
p r i m e i r o m o v i m e n t o a b o l i c i o n i s t a . A s s i m , si ao
entrar eu p a r a a C â m a r a e m 1879 vivesse
e l l e

ainda, ao passo q u e sua presença no Senado,


m o d i f i c a r i a e m m u i t a coisa a m i n h a l i b e r d a d e
de acção, em u m p o n t o , t e n h o a m a i s c o m p l e t a
certeza, o m e u papel teria sido o mesmo, a i n d a
mais accentuado : na questão dos escravos.
N'essa elle não me c o r r i g i r i a n e m m e conteria.
A sua a t t i t u d e seria, c o m o h a v i a de ser a de
MINHA F O R M A Ç Ã O 193

R i o - B r a n c o si assistisse a mais u m a Sessão


L e g i s l a t i v a , f r a n c a m e n t e favorável á abolição.
Si u m e o u t r o vivessem, o caracter r e v o l u c i o -
nário do m o v i m e n t o teria talvez sido evitado,
porque e m a m b o s os p a r t i d o s haveria n o m o -
m e n t o decisivo, — depois f o i tarde, — q u e m
se identificasse c o m a propaganda, i m p e d i n d o
assim no f u t u r o a aspiração l i b e r a l h u m a n a de
tornar-se e m f e r m e n t o político... E u não tenho,
graças a Deus, d u v i d a que esta seria a sua a t t i -
tude, e posso assim dizer que e m 1879 não f i z
c o m o deputado sinão c o n t i n u a r do p o n t o e m que
elleficára,s u b s t i t u i r - m e a elle, c o m a differença
n a t u r a l entre m i n h a m o c i d a d e e sua velhice,
desenvolvendo e m f a v o r dos escravos existentes
o pensamento que elle assignalára c o m o u m
dever nacional, t a n t o no preparo c o m o na d i s -
cussão da lei que l i b e r t o u as gerações f u t u r a s .
P a r a o fim da v i d a seu l i b e r a l i s m o t i n h a to-
m a d o u m t o m m u i t o accentuado, mas era sempre
sob f o r m a s concretas que elle encarava a l i b e r -
dade. A s s i m occupava-se sobretudo das garan-
tias judiciaes da liberdade i n d i v i d u a l . Elle t i n h a
u m certo n u m e r o de f o r m u l a s constitucionaes,
de m á x i m a s políticas, que f a z i a m parte de sua
lealdade t a n t o á causa m o n a r c h i c a c o m o á causa
liberal. Conservador na mocidade e em toda a
parte da c a r r e i r a e m que a vida se expandia e a
emulação o inspirava, f o i na edade do r e t r a h i -
m e n t o que elle r o m p e u c o m o p a r t i d o da t r a -
194 MINHA FORMAÇÃO

diçào, que a seu vêr se tornára u m a o l i g a r c h i a ,


t o m a n d o a f o r m a de u m t r i u m v i r a t o ; chefe
l i b e r a l , porém, m o s t r o u sempre p r e f e r i r a ma-
neira, o compasso, a c o m p o s t u r a da v e l h a escola
á lufa-lufa, p r o m i s c u i d a d e e i n d i s c i p l i n a do seu
n o v o campo.
Estes traços b a s t a r i a m p a r a desenhar o ho-
m e m de Estado : era u m a n a t u r e z a l i b e r a l , c o m
um impulso imaginativo muito pronunciado,
vendo d i s t i n c t a m e n t e o ideal político, mas que-
rendo realidades e não phantasmas, p r e f e r i n d o u m
pouco de l i b e r d a d e que se pudesse d e i x a r c o m o
a herança aosfilhos, u m bem-estar r e l a t i v o , a g r a n -
des d i r e i t o s i l l u s o r i o s , e m cuja posse não se p u -
desse entrar, o u a grandes r e f o r m a s do mecha-
n i s m o político que e m nada m e l h o r a s s e m a
condição do paiz. T i n h a u m f u n d o de i d e a l i s m o ,
f o r m a d o de princípios inflexíveis, mas c o r r i g i d o
sempre pela intuição nítida dos effeitos práticos
da l e i . E r a u m chefe de p a r t i d o alheio á pequena
p o l i t i c a , o que quer dizer que exercia u m a espé-
cie de a u c t o r i d a d e m o r a l que os a m i g o s e adver-
sários c o m p a r a r a m p o r vezes ao poder e s p i r i t u a l
dos antigos mikados.
V i v e n d o no m e i o de u m a elite v e r d a d e i r a -
m e n t e notável de h o m e n s de Estado, oradores,
legisladores, a m a i s r i c a dos dois reinados em
t a l e n t o p a r l a m e n t a r , tradições políticas e conhe-
c i m e n t o s a d m i n i s t r a t i v o s , elle teve l o n g o t e m p o
entre elles p o r admissão geral o papel de oráculo.
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 195

P a r a o f i m faliava r a r a m e n t e e u m a tristeza i n -
vencível misturava-se ás suas adivinhações pa-
trióticas. H o j e d i r - s e - i a , lendo-o, que a u m a
distancia de doze o u q u i n z e annos o f i m das ins-
tituições liberaes projectava na frente a sua som-
bra e que elle a v i a avançar sobre a t r i b u n a do
Senado.
F o i m u i t o s annos depois da sua m o r t e , e s t u -
dando-lhe a v i d a , m e d i t a n d o sobre o que elle
d e i x o u do seu pensamento, c o m p u l s a n d o o vasto
a r c h i v o p o r elle accumulado, a sua correspon-
dência p o l i t i c a , os testemunhos, as controvérsias,
suscitadas pela sua acção i n d i v i d u a l e as conse-
qüências a ella a t t r i b u i d a s p o r amigos e adver-
sários, que a b r a n g i a personalidade p o l i t i c a de
m e u pae. N a mocidade ser-me-ia impossível t e r
d'elle a comprehensão que depois f o r m e i ; eu não
teria as faculdades para isso, a calma necessária
para a d m i r a r o que só falia á razão, o espirito de
systema, o gênio c o n s t r u c t o r . M a s si o estadista
só podia ser m e d i d o e a v a l i a d o p o r m i m e m
o u t r a phase do m e u desenvolvimento, nãosoffri,
toda a v i d a , influencia directa e positiva c o m o
a admiração que tive pelo h o m e m . Sua grande
sciencia eu sabia bem, eu v i a , estar n'elle e não
nos l i v r o s , que l i t t e r a l m e n t e não e r a m sinão
auctoridades de que elle se servia para o pu-
blico, juizes, collegas... Mais, porém, do que sua
sciencia, o que me d o m i n a v a n'elle era a h a r m o -
nia visível da sua estructura m e n t a l e m o r a l , ma-
196 MINHA F O R M A Ç Ã O

nifestada p o r u m a serenidade e u m a doçura sem


egual.
E m 1860 m e u pae mudou-se do Cattete para a
praia do F l a m e n g o , onde r e s i d i u até á m o r t e . A
casa era u m a d'essas construcções massiças a i n d a
do b o m t e m p o da edificação p o r t u g u e z a no R i o de
Janeiro, c o m proporções no i n t e r i o r de u m t r e c h o
de palácio o u de convento. A l l i , n'aquelles salões,
e quartos que e r a m salas, elle estava á vontade,
t i n h a o espaço, e, c o m o m a r e m frente de suas
janellas, a variedade e o m o v i m e n t o exterior, pre-
cisos a u m recluso dos l i v r o s . A sociedade do R i o
de J a n e i r o v i n h a ás suas p a r t i d a s e recepções;
vizinhos, nos d o m i n g o s , á m i s s a rezada e m seu
oratório; d u r a n t e a sessão das Câmaras, deputa-
dos P e r n a m b u c a n o s , e sempre os íntimos, c o m o
o M a r q u e z de A b r a n t e s , Q u a r a h i m , os antigos
collegas. I s t o , além das vezes que ia de c a r r u a -
g e m ao Senado o u ao e s c r i p t o r i o , constituía toda
a distracção que elle t i n h a f o r a do seu gabinete.
Sua v i d a , póde-se dizer, era exclusivamente cere-
b r a l , e n u n c a teve t e m p o , ( n e m u m d i a , talvez,
e m toda ella), de i n t e r r o m p e r , de suspender,
esse l a b o r c o n t i n u o , que era t o d o elle u m serviço
forçado, n e n h u m a parte, n e m a m a i s i n s i g n i f i -
cante siquer, sendo de sua própria escolha o u
inclinação D'esse m o d o de v i v e r , encerrado
entre altas m u r a l h a s de l i v r o s , s a h i n d o d a sua
cella somente pára se e n c o n t r a r e m presença da
família c o m os que a s y m p a t h i a o u a fidelidade
MIMIA F O R M A Ç Ã O 107

reunia e m t o r n o cTelle, r e s u l t o u aquella bondade


captivante, que foi o seu p r i n c i p a l traço.
E para m i m hoje u m a causa de a r r e p e n d i -
m e n t o e compuncção o não ter t i d o c o m o p r i n -
c i p a l aspiração saciar-me, saturar-me d'elle, fazer
do m e u espirito u m a copia, u m borrão mesmo,
do que h a v i a impresso e gravado no d'elle, quando
m a i s não fosse, das notações que u m instante re-
t i v e , mas deixei apagar... íía lacunas que não
me seria possível reparar... Estou-me l e m b r a n d o
agora dos grandes v o l u m e s encadernados que
f a z i a m c o m p a n h i a no degredo do e s c r i p t o r i o á
d u p l i c a t a dos velhos praxistas... E r a a collecção
dos periódicos e m que collaborára o u que redi-
g i r a no Recife... E s t a v a m alli v i n t e annos de sua
vida... T o d a essa serie dispersou-se, desappare-
ceu... P o r q u e não c o i n c i d i u o interesse p r o f u n d o .
i n c o m p a r a v e l , que t u d o isso depois me i n s p i r o u
c o m o t e m p o e m que v i v i ao lado d'elle ? Este de-
sejo de recolher os menores vestígios do seu pen-
samento, os traços m a i s f u g i t i v o s da sua reflexão,
que sempre era, na esphera em que elle pro-
duzia, pessoal, creadora, t r a n s f o r m a d o r a do as-
s u m p t o que t r a t a v a , só me veiu q u a n d o já não
podia recorrer a elle, pedir-lhe esclarecimentos,
fazel-o a n i m a r para m i m aquella poeira c o m a
v i d a que estava só n'elle, dar-me a chave, o
espirito da epocha, o caracter, o alcance, a v e r -
dade real do que alli se representava, e de que
só elle possuía as limitações, a escala, o padrão
J98 MI\ HÁ FORMAÇÃO
T

d e f i n i t i v o e m que t u d o devia ser tomado... E e m


relação aos personagens que conhecera, c o m
q u e m v i v e r a ! P o r q u e não fiz passar deanted'elle,
sem cançal-o n e m forçal-o, a galeria dos seus
contemporâneos para a p a n h a r o vestígio que' l h e
ficára de cada um?... N o e m t a n t o , q u a n t o não
conversei c o m e l l e ! A n n o s i n t e i r o s m e u m a i o r
prazer e r a m as horas que elle nos dava cada d i a
e em que me e m b e b i a e m ouvil-o e, ainda m a i s ,
em vêl-o H o j e sinto não t e r t i d o a ambição
de não ser sinão o apparelho que recebesse para
conservar o m a i s que fosse possível d'elle, e cuja
presença c o n t i n u a ao seu lado l h e fosse reco-
lhendo as reminiscencias, os p o n t o s de v i s t a , as
imagens representativas, que cincoenta annos de
actividade cerebral traçaram em seu pensa-
mento.
F e i t o este acto de contricção pelo que deixei
de a p r o v e i t a r d'elle para m i n h a própria formação
e pelo que deixei perder ao seu espolio i n t e l l e -
c t u a l , a verdade é que n e n h u m a sancção m o r a l
f o i p o r m u i t o t e m p o tão forte para m i m c o m o a
consciência da relação que m e p r e n d i a a elle e
que em todo o t e m p o estive sempre p r o m p t o
a r e n u n c i a r a u m a p a l a v r a d'elle, — que a não
disse, — a m i n h a inspiração pela sua, o
papel que eu ambicionasse pelo que elle m e
desse. C o m o eu disse, só m u i t o m a i s t a r d e , v i n t e
annos depois de o t e r v i s t o pela u l t i m a vez,
pude avaliar o que c h a m o hoje o seu gênio p o -
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 109

l i t i c o e sentir p o r elle toda a admiração cons-


ciente, o b j e c t i v a , de que sou capaz. M a s ainda
assim o s e n t i m e n t o da sua superioridade no seu
t e m p o f o i para m i m i n s t i n e t i v o . L o n g e d'elle,
na m i n h a esphera i n t e l l e c t u a l independente, eu
e x p r i m i r i a m u i t a s opiniões, diversas das suas,
teria m u i t o exaggero da l i n h a que elle l e v a v a : não
haveria hypóthese, porém, de não ceder eu á
m e n o r pressão que elle julgasse preciso exercer
sobre a m i m , a u m a persuasão que me quizesse
i n c u t i r . A prefençao da mocidade, que se inspira
e m s i m e s m a e decreta a sua i n f a l l i b i l i d a d e ,
p o r q u e só vê o lado das coisas ao seu alcance,
desapparecia sem hesitação a u m appello da sua
t e r n u r a , a u m toque da sua razão superior.
Próüvéra a Deus tivesse sido assim nos p r i m e i -
ros annos da curiosidade intellectual insaciável,
q u a n d o p r i m e i r o travei conhecimento com a
terra incógnita assignalada no m a p p a da fé c o m o
o l i m i t e da própria imaginação.
O espectaculo da sua devoção concorreu m a i s
do que n e n h u m a o u t r a influencia para conser-
var durante annos intacta a m i n h a crença; de-
pois esta passou p o r grandes abalos, mas aquella
impressão p r e d o m i n a n t e fez-me sempre t r a t a r o
que me parecia essencial n a religião c o m o a es-
phera superior o u a fonte mais elevada da inspi-
ração humana... A l g u m a vez, entretanto, pen-
sando n'elle e na sua grande auetoridade sobre
m i m , não deixei de sentir a v a n t a g e m que os
200 MINHA F O R M A Ç Ã O

espíritos emancipados se a t t r i b u e m em relação


aos que n u n c a s a h i r a m da fé. E r a n o t e m p o e m
que eu perguntava a m i m m e s m o si um- h o m e m ,
m e s m o tendo o gênio de u m Santo T h o m a z de
A q u i n o , podia ser c h a m a d o superior, si não
t i n h a , e m nosso século, o u t r o h o r i z o n t e i n t e l l e -
ctual sinão o da revelação... T a l v e z pensasse eu
então c o m o consolo que m e u pae t a m b é m t i v e r a
d u v i d a s que não deixava perceber, o u que t i n h a
voltado á fé c o m o a u m a synthese já p r o m p t a
da v i d a h u m a n a e m todas as suas relações depois
de ter debalde p r o c u r a d o c o n s t r u i r o u t r a p o r s i
mesmo. Só m a i s tarde alcancei c o m p r e h e n d e r
que a i n t e l l i g e n c i a pôde t r a b a l h a r até ao fim
i n t e i r a m e n t e alheia aos graves p r o b l e m a s r e -
ligiosos que c o n f u n d e m o pensador que os q u e r
resolver segundo a razão, si n e n h u m choque
e x t e r i o r v e i u p e r t u r b a r para ella a solução r e -
cebida na infância. A d u v i d a não é signal de
que o espirito a d q u i r i u m a i o r perspicuidade, é
ás vezes u m simples mal-estar da v i d a . Uma
existência oecupada p o r grandes t r a b a l h o s pôde
não ter u m m o m e n t o p a r a d a r á d u v i d a religiosa.
Si não é exacto dizer que a d u v i d a n u n c a a j u d o u
n e n h u m dos grandes gênios da h u m a n i d a d e no
traço ou no aperfeiçoamento de sua obra, o n u m e r o
dos que ella assistiu é seguramente pequeno com-
parado ao dos que não p r e c i s a r a m de u m sopro
de negação para os i n s p i r a r e s o u b e r a m crear,
crendo. U m a coisa pelo menos é certa, a saber,
MINHA F O R M A Ç Ã O 201

que as faculdades creadoras d e v e m estar solida-


mente construídas para que a d u v i d a não as faça
p r o d u z i r u m a obra menos considerável o u me-
nos bella do que o f a r i a a fé. A d u v i d a pôde ser
o i n d i c i o de u m n o v o destino h u m a n o , o esboço
de u m a intelligencia a i n d a p o r v i r , mas ella l e -
vará m u i t o t e m p o para chegar a f o r m a r u m
sentido superior á religião. A s m i n h a s idéas
sobre o que constitue a superioridade intellectual
m u d a r a m felizmente m u i t o desde esse t e m p o em
que eu p r o c u r a v a pretextos para a t t r i b u i l - a a
espíritos destituídos da faculdade da d u v i d a , mas
que em t u d o mais me i m p u n h a m admiração,
c o m o m e u pae. E u t o m a r i a p o r vezes então u m
l i t t e r a t o , u m escriptor, c o m o superior a u m
d'esses pensadores ásperos,'cuja idéa só se pôde
colher depois de q u e b r a r o invólucro resistente
que a protege. E c o m o si a flor que d u r a u m a
m a n h ã devesse ser a u l t i m a expressão do m u n d o
vegetal de preferencia ao cedro m i l l e n a r i o , pae
da floresta.
XIX

ELEIÇÃO DE DEPUTADO

A t e 1878 f o i p r o p r i a m e n t e o período da m i n h a
formação p o l i t i c a ; o que se segue, de 1879 a 1S89,
é o do papel que me t o c o u r e p r e s e n t a r ; o f i n a l ,
— já agora devo esperar t o d o elle assim, — será
o do a m o r t e c i m e n t o do interesse político e de
sua substituição p o r o u t r o s , talvez a i n d a m a i s
irreaes e c h i m e r i c o s , porém, que de a l g u m m o d o
q u a d r a m m e l h o r c o m o crepúsculo da v i d a ,
q u a n d o o espirito começa a o u v i r ao longe o
toque de recolher. D u r a n t e aquelles dez annos
a que me tenho referido, não f u i sinão u m cu-
r i o s o , a t t r a h i d o pelas viagens, pelo caracter dos
diíferentes paizes, pelos l i v r o s novos, pelo thea-
t r o , pela sociedade. Uma v i d a invejável p a r a
m i m teria sido então o assistir dos bastidores aos
grandes factos contemporâneos, c o n v i v e r c o m
os personagens, e, c o m o distracção do presente,
ter d i r e i t o de e n t r a d a nas excavações de A t h e n a s
ou de Roma. N o fim desta phase de lazzaro-
MINHA FORMAÇÃO 203

n i s m o i n t e l l e c t u a l , q u a n d o sou pela p r i m e i r a vez


eleito p a r a o P a r l a m e n t o , eu t i n h a necessidade
de o u t r a provisão de sol i n t e r i o r ; era-me preciso,
não m a i s o d i l e t t a n t i s m o , mas a paixão h u -
mana, o interesse v i v o , p a l p i t a n t e , absorvente,
no destino e na condição alheia, na sorte dos
infelizes; aproveitar a m i n h a vida em qualquer
o b r a de misericórdia n a c i o n a l ; a j u d a r o m e u
paiz, prestar os h o m b r o s á m i n h a epocha, para
a l g u m nobre c m p r e h e n d i m e n t o . N e n h u m a causa
p o l i t i c a , dados os elementos que descrevi, po-
deria causar-me esse enthusiasmo, i n s p i r a r - m e
esses a r r o u b o s ; a p o l i t i c a seria sempre a emoção
partidária, incerta, negativa, o t e m o r de ediíicar
desconfiado da solidez dos materiaes e do t e r -
reno. E r a preciso que o interesse fosse h u m a n o ,
u n i v e r s a l ; que a o b r a tivesse o caracter de íina-
lidade, a certeza, a i n e r r a n c i a do absoluto, do
d i v i n o , c o m o têm as grandes redempções, as re-
voluções da caridade o u da justiça, as auroras
da verdade e da consciência sobre o m u n d o . N o
B r a s i l havia ainda no anno e m que comecei m i -
nha v i d a p u b l i c a u m interesse d'aquella o r d e m ,
c o m todo esse poder de fascinação sobre o sen-
t i m e n t o e o dever, egualmente i m p u l s i v o e i I l i m i -
tado, capaz dofiat,quer se tratasse da sorte de
creaturas isoladas, quer do caracter da nação... T a l
interesse só podia ser o da emancipação, e p o r
felicidade da m i n h a hora, eu trazia da infância
e da adolescência o interesse, a compaixão, o
204 MINHA FORMAÇÃO

s e n t i m e n t o pelo escravo, — b o l b o que devia d a r


a única f l o r da m i n h a c a r r e i r a ..
O facto que me lançou n a p o l i t i c a f o i a m o r t e
de m e u pae, e m março de 1878, a n n o e m que se-
rei eleito pela p r i m e i r a vez deputado... E l l e m o r -
r e u a t e m p o ainda de assegurar a m i n h a elei-
ção que t i n h a ficado resolvida entre elle e o barão
de V i l l a - B e l l a , chefe p o l i t i c o de P e r n a m b u c o .
Souza C a r v a l h o , que m u i t o i m p u g n o u , depois
de m o r t o m e u pae, a m i n h a c a n d i d a t u r a , f o i a
V i l l a - B e l l a e referindo-se áquella m o r t e , disse-lhe:
— « sublata causa, tolliíur cffectus ». D o m i n g o s de
Souza Leão, porém, t i n h a a religião da a m i z a d e
e da lealdade, e a m o r t e de N a b u c o , e m vez de
delir o seu c o m p r o m i s s o , tornára-o de honra...
M e u desejo i n t i m o era então c o n t i n u a r na d i p l o -
macia... M i n h a m ã e , porém, conservava a a m b i -
ção de m e u pae, de m e vèr e n t r a r n a p o l i t i c a ,
para u m d i a s u b s t i t u i l - o , sentar-me n a sua ca-
deira de senador, c o m o elle se sentára na de m e u
avô, que já não f o r a o p r i m e i r o senador N a b u c o ,
porque encontrára no Senado seu t i o José Joa-
q u i m N a b u c o de Araújo, o p r i m e i r o barão de
I t a p o a n . E u representaria a s s i m n o P a r l a m e n t o
a q u a r t a geração da m e s m a família, o que não
aconteceu, s u p p o n h o , a n e n h u m o u t r o . Com
Martim F r a n c i s c o Júnior, f i l h o , neto, e b i s n e t o
de parlamentares, as gerações políticas f o r a m
tres, p o r serem irmãos o avô e o bisavô, M a r t i m
F r a n c i s c o e José Bonifácio.
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 205

N ã o me custou nada essa eleição... C u s t o u s i m


a V i l l a - B e l l a na corte e na província a A d o l p h o
de B a r r o s , que passou pela p o l i t i c a c o m o u m
perfeito gentleman, seu presidente, incluírem-
me na lista... M e u n o m e afastava os de outros
que e r a m antigos luctadores, c o m o o d r . A p r i g i o
Guimarães, p o p u l a r na A c a d e m i a pelo seu l i b e -
r a l i s m o r e p u b l i c a n o e sua eloqüência t r i b u n i c i a .
E u não t i n h a que ter r e m o r s o disso, fala viam
invenient... N ã o era só m e u n o m e que poster-
gava o d i r e i t o de antigüidade ; a chapa estava
cheia de nomes n o v o s ; eu representava u m a tra-
dição de serviços ao p a r t i d o , os de m e u pae, que
v a l i a m b e m os de q u a l q u e r o u t r o , e t i n h a con-
fiança de que j u s t i f i c a r i a na C â m a r a a m i n h a pro-
m o ç ã o rápida. Si não me deu t r a b a l h o a l g u m
essa eleição, que f o i feita pelo p a r t i d o , d i s p o n d o
de todos os elementos ofíiciaes, não d e i x o u de ter
para m i m o seu episódio... N u m a sessão acadê-
m i c a de 1 1 de agosto, no t h e a t r o Santa Isabel,
quando eu proferia, do camarote do Presidente,
as p r i m e i r a s palavras, f u i a c o l h i d o pelos protes-
tos e v o z e r i a de u m g r u p o numeroso, que se t o r -
nou d o m i n a n t e , e que depois transferia para u m a
praça da cidade o seu meeting de indignação
contra mim... O t h e m a do meu i m p r o v i s o , e m
resposta aos e p i g r a m m a s e diatribes c o n t r a
S. Christovão que t i n h a m soado no palco, fòra
este : a grande questão para a democracia b r a s i -
leira, não é a m o n a r c h i a , é a escravidão. Posso
12

<
206 MIMIA FORMAÇÃO

dizer que e x p e r i m e n t e i p o r vezes a doçura da


p o p u l a r i d a d e ; nada, porém, eguala o p r a z e r de
u m a dessas tempestades levantadas c o n t r a si pelo
o r a d o r que se sente de posse da v e r d a d e e ao
serviço da justiça, q u a n d o antevê que esses que
o i n j u r i a m naquelle m o m e n t o , estarão c o m elle
no d i a seguinte... E u deixava passar aquella o n d a
raivosa e espumante, que a i n t r i g a , e x p l o r a n d o a
susceptibiiidade própria d a d e m o c r a c i a p e r n a m -
bucana, as r e m i n i s c e n c i a s praeiras, e c o m i m p e r -
feito c o n h e c i m e n t o do indivíduo, d o papel que
elle i a representar, i m p e l l i a m c o n t r a a m i n h a
candidatura... E u sabia que a p a l i n o d i a h a v i a de
ser completa, que se desfaria o mal-entendu
ereado entre m i m e o p o v o d o Recife, desde que
elle visse o f i m p a r a o q u a l eu aspirava ao seu
mandato... N a verdade, a opinião do p a r t i d o po-
p u l a r , c i u m e n t o dos seus foros e tradições, m u -
dou a m e u respeito l o g o na p r i m e i r a sessão e m
que t o m e i a p a l a v r a n a Câmara... Desde esse d i a
estabeleceu-se entre m i m e o Recife u m a a f f i n i -
dade que n u n c a se i n t e r r o m p e u e que ainda hoje,
e m que estou q u a n t o á p o l i t i c a r e t i r a d o de t u d o ,
estou certo, será a mesma, p o r q u e f o i c o m o
que o encontro de duas opiniões que se m i r a -
r a m u m a na o u t r a até ás fontes do s e n t i m e n t o e
r e c o n h e c e r a m n a transparência do seu f u n d o a
sinceridade de cada uma.
F o i u m anno de a c t i v i d a d e e de expansão
único e m m i n h a v i d a , esse de 1879, e m que fiz a
r

MINHA FORMAÇÃO 207

m i n h a estréa p a r l a m e n t a r . Posso dizer que occu-


pei a t r i b u n a todos os dias, t o m a n d o parte e m
todos os debates, e m todas as questões... O f a v o r
c o m que era acolhido, os applausos da C â m a r a
e das galerias, a attenção que me p r e s t a v a m , e r a m
p a r a e m b r i a g a r f a c i l m e n t e u m estreante... C o m o
hoje seria diverso, e q u a n t o t u d o a q u i l l o está
desvalorisado para m i m c o m o p r a z e r do e s p i r i t o !
H o j e é a gotta c r y s t a l l i n a que m a n a da r o c h a
do ideal, — fonte occulta que todos t e m o s e m
n o S j— não os grandes chafarizes e aqueductos
e

da praça p u b l i c a , que única me desaltera. Então


t u d o me servia para assumpto de d i s c u r s o ; eu
fallava sobre m a r i n h a e immigração, c o m o sobre
a illuminação o u o i m p o s t o de renda, sobre o
a r r e n d a m e n t o do valle do X i n g u o u a eleição
directa... T i n h a o calor, o m o v i m e n t o , o i m p u l s o
do o r a d o r ; não conhecia o valerá a pena? do
observador que se restringe cada vez mais... O
p u b l i c o , os grandes auditórios e r a m para m i m o
que é hoje a m i n h a cesta de papel, ou a labareda
que dá conta da exuberância supérflua do p e n -
samento. Só m u i t o tarde c o m p r e h e n d i porque os
que v i e r a m antes de m i m se r e t r a h i a m , q u a n d o
eu me expandia : e m m u i t o s era a saciedade, o
enojo que começava: em alguns a troca da aspi-
ração p o r o u t r a o r d e m de interesses mais u t i l i -
tária-, em outros, porém, era a consciência que
chegava á madureza, o a m o r da perfeição... Des-
ses discursos sem excepção que f i g u r a m e m
2D8 MIXIIA FORMAÇÃO

m e u n o m e nos A n n a e s de 1879 e 1880 eu não


q u i z e r a salvar nada sinão a n o t a i n t i m a , pessoal,
a parte de m i m m e s m o que se encontre e m a l -
g u m . N ã o assim c o m os que p r o f e r i na C â m a r a
na semana de m a i o de 1888, n e m c o m os do
Recife em 1884-1885, p r o n u n c i a d o s no t h e a t r p
Santa Isabel. Esses são o m e l h o r da m i n h a v i d a .
Q u a n d o disse que o período que vae até 1879
é o de m i n h a formação p o l i t i c a , q u i z somente
dizer que é o período e m que a d q u i r o a ferra-
m e n t a c o m que h e i de t r a b a l h a r em p o l i t i c a ;
ainda assim a limitação do t e m p o não é precisa-
m e n t e exacta, p o r q u e é na própria p o l i t i c a , na
Câmara, sob o i n f l u x o e d e t e r m i n i s m o do papel
que escolho, que a v e r d a d e i r a formação se opera.
isto é, que as contradicçòes se c o n c i l i a m , a s u -
bordinação dos i m p u l s o s e das tendências se dá.
as afíinidades essenciaes se p r o n u n c i a m , os a t t r i -
tos interiores, as vacillacões. as attraccões o u
repulsões prejudiciaes se e l i m i n a m , e o destino
u m a vez conhecido crea a vocação, a tarefa
m e s m a perfaz o i n s t r u m e n t o .
C o m effeito, q u a n d o e n t r o para a C â m a r a , es-
t o u tão i n t e i r a m e n t e sob a i n f l u e n c i a do libera-
l i s m o inglez, c o m o si m i l i t a s s e ás ordens de
G l a d s t o n e ; esse é e m substancia o resultado de
m i n h a educação p o l i t i c a : sou u m l i b e r a l inglez.
— c o m affinidades radicaes, mas c o m adherencias
whigs, — no P a r l a m e n t o b r a s i l e i r o ; esse m o d o
de definir-me será exacto até o fim, p o r q u e o l i b e -
MIXIIA F O R M A Ç Ã O , 200

r a l i s m o inglez. G l a d s t o n i a n o . M a c a u l a y i a n o , per-
durará sempre, será a v a s a l l a g e m irresgatavel do
m e u t e m p e r a m e n t o o u sensibilidade p o l i t i c a ; no
e m t a n t o , depois do p r i m e i r o ensaio, a feição po-
l i t i c a tornar-se-á secundaria, subalterna, será
substituída pela identificação h u m a n a c o m os
escravos e esta é que ficará sendo a caracterís-
tica pessoal, t u d o se fundirá n'ella e p o r ella.
N'esse sentido é a emancipação a v e r d a d e i r a
acção f o r m a d o r a para m i m , a que t o m a os ele-
m e n t o s isolados o u divergentes da imaginação,
os e x t r e m o s da curiosidade o u da s y m p a t h i a i n -
tellectual, os contrastes, os antagonismos, as va-
riações de faculdades sensíveis á verdade, á bel-
leza, que os systemas mais oppostos refiectem
uns c o n t r a os outros, e constróe o m o l d e em que
a aspiração p o l i t i c a é vasada, e não ella somente.
a intelligencia, a imaginação, os próprios sonhos
e chimeras do h o m e m .
C o m o eu disse, porém, ha pouco, eu trazia da
infância o interesse pelo escravo Esse episó-
dio não será talvez descabido n'estas recordações.

12.
XX

MASSANGANA 1

O traço t o d o da v i d a é para m u i t o s u m dese-


n h o da creança esquecido pelo h o m e m , e ao
q u a l este terá sempre que se c i n g i r s e m o saber...
Pela m i n h a p a r t e acredito não t e r n u n c a trans-
posto o l i m i t e das m i n h a s q u a t r o o u c i n c o p r i -
meiras impressões... O s p r i m e i r o s o i t o annos da
v i d a f o r a m assim, e m certo sentido, os de m i n h a
i . A razão que me fez não começar pelos annos da i n -
fância f o i que estas paginas t i v e r a m , ao serem p r i m e i r o
publicadas, feição p o l i t i c a q u e f o r a m g r a d u a l m e n t e p e r -
dendo, p o r q u e já ao cscrevel-as diminuía p a r a m i m o
interesse, a seducção p o l i t i c a . A p r i m e i r a idéa fôra
c o n t a r m i n h a formação m o n a r c h i c a ; depois, a l a r g a n d o
v assumpto, m i n h a formação p o l i t i c o - l i t t e r a r i a o u l i t -
t e r a r i o - p o l i t i c a ; p o r u l t i m o , desenvolvendo-o sempre,
m i n h a formação h u m a n a , de m o d o q u e o l i v r o c o n f i -
nasse c o m o u t r o , q u e e u h a v i a e s c r i p t o antes sobre
m i n h a reversão religiosa. É d'este l i v r o , de caracter
m a i s i n t i m o , c o m p o s t o e m f r a n c e z h a sete annos, que
t r a d u z o este c a p i t u l o p a r a e x p l i c a r a r e f e r e n c i a feita
ás m i n h a s p r i m e i r a s relações c o m os escravos.
MINHA F O R M A Ç Ã O -11

formaçãoinstinctiva, o u moral,definitiva...Passei
esse p e r i o d o i n i c i a l , tão r e m o t o e tão presente, e m
u m engenho de P e r n a m b u c o , m i n h a província na-
t a l . A t e r r a era u m a das m a i s vastas e pittorescas
da zona do Cabo... N u n c a se me r e t i r a da vista
esse p a n n o de f u n d o da m i n h a p r i m e i r a existên-
cia... A população do pequeno domínio, inteira-
m e n t e fechado a q u a l q u e r ingerência de fora,
c o m o todos os outros feudos da escravidão, com-
punha-se de escravos, distribuídos pelos c o m -
p a r t i m e n t o s da senzala, o grande p o m b a l negro
ao l a d o da casa de m o r a d a , e de rendeiros, liga-
dos ao proprietário pelo beneficio da casa de b a r r o
que os agasalhava o u da pequena c u l t u r a que
elle lhes consentia e m suas terras. N o centro do
pequeno cantão de escravos levantava-se a resi-
dência do senhor, o l h a n d o para os edifícios da
m o a g e m , e tendo por traz, e m u m a ondulação do
terreno, a capella sob a invocação de S. M a -
theus. P e l o declive do pasto arvores isoladas
a b r i g a v a m sob sua u m b e l l a impenetrável g r u p o s
de gado somnolento. N a planície extendiam-se
os cannaviaes cortados pela alameda tortuosa de
antigos ingás carregados de musgos e cipós, que
s o m b r e a v a m de lado a lado o pequeno r i o I p o -
juca. E r a p o r essa agua quasi d o r m e n t e sobre os
seus largos bancos de areia que se embarcava o
assucar para o Recife ; ella a l i m e n t a v a perto da
casa u m grande v i v e i r o , r o n d a d o pelos jacarés, a
que os negros d a v a m caça, e nomeado pelas suas
212 MINHA. F O R M A Ç Ã O

pescarias. M a i s longe c o m e ç a v a m os mangues


que chegavam até á costa de Nazareth... D u -
rante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a
sesta, r e s p i r a n d o o aroma, espalhado p o r t o d a a
parte, das grandes t a i x a s e m que cozia o m e l . O
declinar do sol era d e s l u m b r a n t e , pedaços i n t e i -
ros da planície transformavam-se e m u m a poeira
c f o u r o ; a bocca da noite, h o r a das boninas e dos
bacuraus, era agradável e balsamica, depois o
silencio dos céos estrellados majestoso e p r o -
fundo. De todas essas impressões n e n h u m a m o r -
rerá e m m i m . Os f i l h o s de pescadores sentirão
sempre debaixo dos pés o roçar das areias da
praia e ouvirão o r u i d o da vaga. E u p o r vezes
acredito pisar a espessa c a m a d a de cannas que
cercava o engenho e escuto o r a n g i d o longínquo
dos grandes carros de bois...
E m e r s o n quizera que a educação da creança
começasse c e m annos antes d'ella nascer. A m i -
nha educação religiosa obedeceu certamente a
essa regra. E u sinto a idéa de Deus no m a i s afas-
tado de m i m mesmo, c o m o o signal a m a n t e e
q u e r i d o de diversas gerações. N'essa parte a serie
não foi i n t e r r o m p i d a . H a espíritos que g o s t a m de
quebrar todas as suas cadeias, e de preferencia as
que outros t i v e s s e m creado para elles; eu, porém,
seria incapaz de q u e b r a r i n t e i r a m e n t e a m e n o r
das correntes que a l g u m a vez me prendeu, o que
faz que s u p p o r t o captiveiros contrários, e m e n o s
do que as outras u m a que me tivesse sido d e i x a d o
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 213

c o m o herança. F o i na pequena capella de Mas-


sangana que f i q u e i u n i d o á m i n h a .
A s impressões que conservo efessa edade mos-
t r a m b e m e m que profundezas os nossos p r i m e i -
ros alicerces são lançados. R u s k i n escreveu esta
v a r i a n t e do p e n s a m e n t o de C h r i s t o sobre a infân-
cia : « A creança sustenta m u i t a s vezes entre os
seus fracos dedos u m a verdade que a edade ma-
d u r a c o m toda sua fortaleza não poderia suspender
e que só a velhice tera n o v a m e n t e o p r i v i l e g i o de
carregar. » E u tive em m i n h a s m ã o s c o m o b r i n -
quedos de m e n i n o toda a s y m b o l i c a do sonho
religioso. A cada instante encontro entre m i n h a s
reminiscencias m i n i a t u r a s que por sua frescura de
provas avant la lettre devem datar d'essas p r i -
meiras tiragens da alma. Pela perfeição d'essas
imagens inapagaveis pódc-se e s t i m a r a i m p r e s -
são causada. A s s i m eu v i a Creação de M i g u e l -
A n g e l o n a S i x t i n a e a de Raphael nas Loggie, e,
a p j z a r de toda a m i n h a reflexão, não posso d a r
a n e n h u m a o relevo i n t e r i o r do p r i m e i r o paraíso
que f i z e r a m passar deante dos meus olhos em
u m vest igi o d e antigo M y s t e r i o popu 1 ar. O u v i n otas
perdidas do A n g e l u s na C a m p a n h a Romana, m a s
o m u e z z i n i n t i m o , o t i m b r e que sôa aos meus ou-
vidos á h o r a da oração, é o do pequeno sino que
os escravos escutavam c o m a cabeça baixa, m u r -
m u r a n d o o Louvado seja Nosso Senhor Jesus -
Christo. Este é o M i l l e t inalterável que se g r a v o u
c m m i m . M u i t a s vezes tenho atravessado o ocea-
214 MINHA F O R M A Ç Ã O

no, mas si quero l e m b r a r - m e d-ejle, t e n h o sem-


pre deante dos olhos, parada i n s t a n t a n e a m e n t e ,
a p r i m e i r a vaga que se l e v a n t o u deante de m i m ,
verde e transparente c o m o u m b i o m b o de es-
meralda, u m d i a em que, atravessando p o r u m
extenso coqueiral atraz das palhoças dos jangadei-
ros, me achei á beira da praia e t i v e a revelação
súbita, f u l m i n a n t e , da t e r r a l i q u i d a e movente...
F o i essa onda, l i x a d a na placa m a i s sensível
do m e u kòdak i n f a n t i l , que ficou sendo para
m i m o eterno clichê d o mar. S o m e n t e p o r baixo
d'ella poderia eu escrever: Thalassa \ Thalassa !
M e u s moldes de idéas e de s e n t i m e n t o s d a t a m
quasi todos d'essa epocha. A s grandes impressões
da m a d u r e z a não têm o condão de me fazer re-
v i v e r que t e m o pequeno c a d e r n o de cinco a
seis folhas apenas e m que as p r i m e i r a s hastes
da a l m a apparecem tão frescas Como si tivessem
sido calcadas rVesta m e s m a manhã... O encanto
que se e n c o n t r a n'esses eidoli grosseiros e ingê-
nuos da infância não é sinão o s e n t i m e n t o de
que só elles c o n s e r v a m a nossa p r i m e i r a sensibi-
lidade apagada... E l l e s são, p o r assim dizer, as
cordas soltas, mas a i n d a v i b r a n t e s , de u m ins-
t r u m e n t o que não existe m a i s e m nós...
Do m e s m o m o d o que c o m a religião e a na-
tureza, assim c o m os grandes factos moraes e m
redor de m i m . E s t i v e e n v o l v i d o na c a m p a n h a
da abolição e d u r a n t e dez annos p r o c u r e i ex-
t r a h i r de t u d o , da h i s t o r i a , da sciencia, da r e l i -
MINHA F O R M A Ç Ã O 215

gião, da v i d a , u m f i l t r o que seduzisse a dvnas-


tia : v i os escravos e m todas as condições i m a -
gináveis; m i l vezes l i a Cabana do Pae Thomaz,
no o r i g i n a l da dòr v i v i d a e sangrando ; no em-
t a n t o a escravidão para m i m cabe t o d a e m um
q u a d r o inesquecido da infância, e m u m a pri-
meira impressão, que d e c i d i u , estou certo, do
emprego u l t e r i o r de m i n h a vida. E u estava u m a
tarde sentado no p a t a m a r da escada e x t e r i o r da
casa, q u a n d o vejo precipitar-se para m i m u m
j o v e n negro desconhecido, de cerca de dezoito
annos, o q u a l se abraça aos meus pés supplican-
do-me pelo a m o r de Deus que o fizesse c o m p r a r
por m i n h a m a d r i n h a para me servir. E l l e v i n h a
das vizinhanças, p r o c u r a n d o m u d a r de senhor,
p o r q u e o d ^ l l e , dizia-me, o castigava, e elle t i n h a
f u s i d o c o m risco de vida... F o i este o traço ines-
perado que me descobriu a n a t u r e z a da i n s t i t u i -
ção c o m a q u a l eu v i v e r a até então f a m i l i a r -
mente, sem suspeitar a dòr que ella occultava.
N a d a m o s t r a m e l h o r do que a própria escravi-
dão o poder das p r i m e i r a s vibrações do s e n t i -
mento... Elle é t a l , que a vontade e a reflexão não
p o d e r i a m mais t a r d e subtrahir-se á sua acção e
não e n c o n t r a m verdadeiro prazer, sinão e m se con-
formar... A s s i m eu c o m b a t i a escravidão c o m
todas as m i n h a s forças, repelli-a c o m toda a m i n h a
consciência, c o m o a deformação utilitária dacrea-
t u r a , e na h o r a e m que a v i acabar, pensei poder
pedir t a m b é m m i n h a a l f o r r i a , dizer o m e u
l!i6 MINHA FORMAÇÃO

nunc dimittis, p o r ter o u v i d o a m a i s bella n o v a


que e m meus dias Deus pudesse m a n d a r ao
m u n d o ; e, no e m t a n t o , hoje que ella está e x t i n c t a ,
e x p e r i m e n t o u m a s i n g u l a r nostalgia, que m u i t o
espantaria u m G a r r i s o n o u u m John B r o w n : a
saudade do escravo.
E que t a n t o a parte do senhor era insciente-
mente egoísta, t a n t o a do escravo era insciente-
m e n t e generosa. A escravidão permanecerá p o r
m u i t o t e m p o c o m o a característica n a c i o n a l do
B r a s i l . E l l a e s p a l h o u p o r nossas vastas solidões
u m a grande suavidade ; seu contacto f o i a p r i -
m e i r a f o r m a que recebeu a natureza v i r g e m d o
paiz, e foi a que elle g u a r d o u : ella povoou-o, c o m o
si fosse u m a religião n a t u r a l e v i v a , c o m os
seus m y t h o s , suas legendas, seus e n c a n t a m e n t o s ;
insufíiou-lhe sua a l m a i n f a n t i l , suas tristezas
sem pezar, suas l a g r i m a s sem a m a r g o r , seu s i -
lencio sem concentração, suas alegrias sem causa,
sua felicidade sem d i a seguinte... E ella o sus-
p i r o indeíinivel que e x h a l a m ao l u a r as nossas
noites do N o r t e . Q u a n t o a m i m , absorvi-a n o
leite preto que me a m a m e n t o u ; ella envolveu-
me como u m a caricia m u d a t o d a a m i n h a i n -
fância 5 aspirei-a na dedicação de v e l h o s servi-
dares que me r e p u t a v a m o h e r d e i r o p r e s u m -
p t i v o do pequeno domínio de que f a z i a m parte...
Entre m i m e elles deve ter-se d a d o u m a troca
c o n t i n u a de s y m p a t h i a , de que r e s u l t o u a t e r n a
e reconhecida admiração que v i m m a i s t a r d e
MINHA F O R M A Ç Ã O 217

a sentir pelo seu papel. Este pareceu-me, p o r


contraste c o m o i n s t i n c t o mercenário da nossa
epocha, s o b r e n a t u r a l á força de n a t u r a l i d a d e hu-
m a n a , e no d i a e m que a escravidão f o i a b o l i d a ,
senti d i s t i n c t a m e n t e que u m dos m a i s absolutos
desinteresses de que o coração h u m a n o se tenha
m o s t r a d o capaz não e n c o n t r a r i a m a i s as c o n d i -
ções que o t o r n a r a m possível.
Nessa escravidão da infância não posso pen-
sar sem u m pezar involuntário... T a l q u a l o
presenti e m t o r n o de m i m , ella conserva-se e m
m i n h a recordação c o m o u m j u g o suave, o r g u l h o
exterior do senhor, mas t a m b é m o r g u l h o i n t i m o
do escravo, a l g u m a coisa parecida c o m a dedica-
ção do a n i m a l que n u n c a se altera, p o r q u e o f e r -
m e n t o da desegualdade não pode penetrar n'ella.
T a m b é m eu receio que essa espécie p a r t i c u l a r de
escravidão tenha existido somente e m proprieda-
des m u i t o antigas, a d m i n i s t r a d a s d u r a n t e gera
ções seguidas c o m o m e s m o espirito de h u m a -
nidade, e onde u m a longa hereditariedade de
relações fixas entre o senhor e os escravos tives-
sem feito de u m e o u t r o s u m a espécie de t r i b u
patriarchal isolada do m u n d o . T a l a p p r o
ximação entre situações tão deseguaes perante a
lei seria impossível nas novas e ricas fazendas do
Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietá-
r i o , era somente u m i n s t r u m e n t o de colheita.
Os engenhos do N o r t e e r a m pela m a i o r parte
pobres explorações industriaes, e x i s t i a m apenas
13
218 MINHA F O R M A Ç Ã O

para a conservação do estado do senhor, cuja


importância e posição avaliava-se pelo n u m e r o
de seus escravos. Á s s i m também encontrava-se
alli com uma aristocracia de maneiras que o
tempo apagou, u m pudor, u m resguardo em
questões de lucro, próprio das classes que não
traficam.
Fiz ha pouco menção de m i n h a madrinha...
Das recordações da infância a que eclipsa todas
as outras e a mais cara de todas é o amor que
tive por aquella que me criou até aos meus oito
annos como seu filho... Sua imagem, ou sua
sombra, desenhou-se por tal modo em m i n h a me-
mória, que eu a poderia fixar si tivesse o menor
talento de pintor... E l l a era de grande c o r p u -
lencia, invalida, caminhando com difficuldade,
constantemente assentada, — em u m largo banco
de coiro que transportavam de peça em peça da
_ lado da janella que deitava para a praça
c a s £ V i a o

do engenho, e onde ficava a estribaria, o curral,


e a pequena casa edificada para o meu mestre e
que me servia de escola... E l l a não largava
nunca suas roupas de viuva. M e u p a d r i n h o ,
Joaquim Aurélio de Carvalho, fòra conhecido n a
provincia pelo seu luxo e liberalidade, de que
ainda hoje se contam diversos rasgos. Estou ven-
do, através de tantos annos, a m o b i l i a da
entrada, onde ella costumava passar o d i a .
Nas paredes algumas gravuras coloridas repre-
sentando o episódio de Ignez de Castro, entre as
MIXIIA FORMAÇÃO 219

gaiolas dos curiós afamados, pelos quaes seu


marido costumava dar o preço que lhe pedissem...
ao lado em u m armário envidraçado as pequenas
edições portuguezas dos livros de devoção e das no-
vellas do tempo. M i n h a madrinha occupava sem-
pre a cabeceira de uma grande mesa de trabalho,
onde jogava cartas, dava a tarefa para a costura e
para as rendas a u m numeroso pessoal, provava o
ponto dos doces, examinava as tisanas para a en-
fermaria defronte, distribuía as peças de prata a
seus afilhados e protegidos, recebia os amigos
que v i n h a m todas as semanas attrahidos pelos re-
galos de sua mesa e de sua hospitalidade, sempre
rodeiada, adorada por toda sua gente, íingindo
u m ar severo que não enganava a ninguém quan-
do era preciso reprehender alguma mucama que
deixava a miúdo os bilros e a almofada para
chalrear no gyneceu, ou algum morador perdulá-
rio que recorria demasiado á sua bolsa. Parece
que seu maior prazer era trocar uma parte das
suas sobras em moedas de ouro que ella guardava
sem que ninguém o soubesse sinão o seu liberto
confidente para me entregar quando eu tivesse
edade. Era a isso que ella chamava o seu invisí-
vel. Por occasião da morte do servo de sua maior
confiança, ella escrevia á minha mãe pela m ã o de
outros : « D o u parte a V. Ex. e ao meu compadre
que morreu o meu Elias, fazendo-me uma falta
excessiva aos meus negócios. De tudo tomou con-
ta, e sempre com aquella bondade e humildade
220 MIXIIA F O R M A Ç Ã O

sem parelha, e ficou a m i n h a casa c o m elle n o


m e s m o pé e m que era no t e m p o d o m e u m a r i d o .
N e m só fez falta a m i m c o m o a nosso f i l h i n h o que
t i n h a u m cuidado n'elle n u n c a visto. A p e z a r d'eu
ter parentes a elle era a q u e m eu o entregava,
p o r q u e si eu morresse para t o m a r conta do que
eu l h e deixava para entregar a VV. EEx...
M a s que h e i de fazer, si Deus q u i z ? ^ E m o u t r a
carta, mais tarde, a u l t i m a que possuo, ella v o l t a
á m o r t e de E l i a s : — « ... o m e u E l i a s , o qual
fez-me u m a falta sensivel, t a n t o a m i m c o m o ao
m e u f i l h i n h o , p o r q u e t i n h a u m c u i d a d o n'elle
m a i o r possivel, c o m o pelas festas que elle gosta
de passear ia sempre entregue a elle... Deus me
dê v i d a e saúde até o vêr m a i s crescido para l h e
dar a l g u m a coisa invisível, c o m o d i z i a o d e f u n t o
seu c o m p a d r e , pois só fiava isso d o E l i a s , apezar
de ter ficado o Y i c t o r , m a n o d'elle, que faço t a m -
b é m toda a fiança n'elle... » A h ! q u e r i d a e aben-
çoada memória, o t h e s o u r o a c c u m u l a d o parcella
p o r parcella não v e i u a m i n h a s m ã o s , n e m t e r i a
p o d i d o v i r p o r u m a transmissão destituída das
fôrmas legaes, c o m o talvez tenhas pensado... m a s
imaginar-te, d u r a n t e annos, nessa tarefa agradá-
vel aos teus velhos dias de a j u n t a r para t e u
afilhado que chamavas t e u f i l h o u m pecúlio q u e
lhe entregarias q u a n d o h o m e m , o u o u t r e m p o r
t i a m e u pae, si morresses deixando-me m e n o r ;
acompanhar-te e m tuas conversas com o teu
servo fiel, n'essa preoccupação de a m o r de teus
MINHA FORMAÇÃO 221

derradeiros annos, será sempre u m a sensação


tão i n e x p r i m i v e l m e n t e doce que só ella bas-
taria para d e s t r u i r para m i m qualquer a m a r g o r
da vida...
A noite da m o r t e de m i n h a m a d r i n h a é a cor-
t i n a preta que separa do resto de m i n h a v i d a a
scena de m i n h a infância. E u não i m a g i n a v a na-
da, d o r m i a no m e u q u a r t o c o m a m i n h a velha
ama, q u a n d o ladainhas entrecortadas de soluços
me a c c o r d a r a m e me c o m m u n i c a r a m o t e r r o r de
t o d a a casa. N o corredor, moradores, libertos, os
escravos, ajoelhados, rezavam, c h o r a v a m , l a s t i -
mavam-se e m gritos-, era a consternação mais
sincera que se pudesse vêr, u m a scena de naufrá-
g i o ; t o d o esse pequeno m u n d o , t a l q u a l se h a v i a
f o r m a d o d u r a n t e duas o u tres gerações em t o r n o
d'aquelle centro, não existia m a i s depois d'ella:
seu u l t i m o suspiro o t i n h a feito quebrar-se em
pedaços. A m u d a n ç a de senhor era o que h a v i a
mais terrível na escravidão, sobretudo si se de-
v i a passar do poder n o m i n a l de u m a velha santa,
que não era m a i s sinão a e n f e r m e i r a dos seus es-
cravos, para as m ã o s de u m a família até então
estranha. E c o m o para os escravos, para os r e n -
deiros, os empregados, os pobres, toda a gens que
ella sustentava, a que fazia a distribuição diária
de rações, de soccorros, de remédios... E u t a m -
b e m t i n h a que p a r t i r de Massangana, deixado p o r
m i n h a m a d r i n h a a o u t r o h e r d e i r o , seu sobrinho
e v i z i n h o : a m i m ella deixava u m o u t r o dos
222 MINHA FORMAÇÃO

seus engenhos, que estava de fogo m o r t o , isto é,


sem escravos para o trabalhar... A i n d a hoje vejo
chegar, quasi no d i a seguinte á m o r t e , os carros
de bois do n o v o proprietário... E r a a m i n h a de-
posição... E u t i n h a o i t o annos. M e u pae pouco
t e m p o depois me m a n d a v a buscar p o r u m v e l h o
a m i g o , v i n d o do R i o de Janeiro. D i s t r i -
b u i entre a gente da casatudo que possuía, m e u
cavallo, os animaes que me t i n h a m sido dados,
os objectos do m e u uso. « O m e n i n o está m a i s
satisfeito, escrevia a m e u pae o a m i g o que devia
levar-me, depois que eu l h e disse que a sua ama
o a c o m p a n h a r i a . » O que m a i s m e pesava era t e r
que me separar dos que t i n h a m p r o t e g i d o m i -
n h a infância, dos que me s e r v i r a m c o m a dedi-
cação que t i n h a m p o r m i n h a m a d r i n h a , e sobre-
t u d o entre elles os escravos q u e l i t t e r a l m e n t e
s o n h a v a m pertencer-me depois d'ella. E u b e m
senti o contragolpe da sua esperança desenganada,
no d i a e m que elles c h o r a v a m , vendo-me p a r t i r
espoliado, talvez o pensassem, da sua p r o p r i e -
dade... P e l a p r i m e i r a v ez s e n t i r a m elles, q u e m
sabe, t o d o o a m a r g o da sua condição e beberam-
lhe a l i a .
M e z e m e i o depois da m o r t e de m i n h a m a d r i -
nha, eu deixava a s s i m o m e u paraíso p e r d i d o ,
mas pertencendo-lhe para sempre... F o i a l l i q u e
eu cavei c o m as m i n h a s pequenas m ã o s i g n o r a n -
tes esse poço da infância, i n s o n d a v e l na sua p e -
quenez, q u e refresca o deserto d a v i d a e faz
MINHA FORMAÇÃO

d'elle para sempre em certas horas u m oásis se-


ductor. As partes adquiridas do meu ser, o que
devi a este ou áquelle, hão de dispersar-se em direc-
ções differentes ; o que, porém, recebi directa-
mente de Deus, o verdadeiro eu sahido das suas
mãos, este ficará preso ao canto de terra onde
repousa aquella que me iniciou na vida. F o i gra-
ças a ella que o mundo me recebeu com u m
sorriso de tal doçura que todas as lagrimas i m a -
gináveis não m'o fariam esquecer. Massangana
ficou sendo a sede do meu oráculo i n t i m o : para
impellir-me, para deter-me e, sendo preciso,
para resgatar-me, a voz, o frêmito sagrado, viria
sempre de lá. Mors omnia solvit... tudo, excepto
o amor, que ella liga definitivamente.
T o r n e i a visitar doze annos depois a capelli-
nha de S. Matheus onde minha madrinha, Dona
A n n a Rosa Falcão de Carvalho, jaz na parede
ao lado do altar, e pela pequena sacristia abando-
nada penetrei no cercado onde eram enterrados
os escravos... Cruzes, que talvez não existam
mais, sobre montes de pedras escondidas pelas
ortigas, era tudo quasi que restava da opu-
lenta fabrica, como se chamava o quadro da
escravatura... E m baixo, na planície, brilhavam
como outr'ora as manchas verdes dos grandes
cannaviaes, mas a usina agora fumegava e asso-
biava com u m vapor agudo, annunciando uma
vida nova. A almanjarra despparecera no pas-
sado. O trabalho livre tinha tomado o logar em
224 MINCA F O R M A Ç Ã O

grande parte do t r a b a l h o escravo. O engenho


apresentava do l a d o do « p o r t o » o aspecto de u m a
colônia; da casa v e l h a não fícára vestígio... O
sacrifício dos pobres negros que h a v i a m i n c o r p o -
rado as suas v i d a s ao f u t u r o d'aquella p r o p r i e -
dade, não existia m a i s talvez sinão na m i n h a
lembrança... D e b a i x o dos m e u s pés estava t u d o o
que restava d*elles, defronte dos columbaria onde
d o r m i a m na estreita capella aquelles que elles
haviam amado e l i v r e m e n t e servido. Sosinho
a l l i , i n v o q u e i todas as m i n h a s r e m i n i s c e n c i a s ,
chamei-os a m u i t o s pelos nomes, aspirei n o ar
carregado de a r o m a s agrestes, que e n t r e t e m a
vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes
d i l a t a v a o coração e lhes i n s p i r a v a a sua alegria
perpetua. F o i assim que o p r o b l e m a m o r a l da
escravidão se desenhou pela p r i m e i r a vez aos
m e u s olhos e m sua n i t i d e z perfeita e c o m sua
solução obrigatória. N ã o só esses escravos não
se t i n h a m q u e i x a d o de sua s e n h o r a , c o m o a
t i n h a m até o f i m abençoado... A gratidão e s -
t a v a do lado de q u e m dava. Elles morreram
acreditando-se os devedores... seu c a r i n h o não te-
r i a deixado g e r m i n a r a m a i s leve suspeita de que
o senhor pudesse t e r u m a obrigação p a r a c o m
elles, que lhe pertenciam... Deus conservára a l l i o
coração do escravo, c o m o o do a n i m a l fiel, longe
do contacto c o m t u d o que o pudesse revoltar
c o n t r a a sua dedicação. Esse perdão espontâneo
da d i v i d a do senhor pelos escravos figurou-se-me
MINHA FORMAÇÃO --•">

a amnistia p a r a os paizes que cresceram pela


escravidão, o m e i o de escaparem a u m dos peiores
taliões da historia... O h ! os Santos p r e t o s ! se-
r i a m elles os intercessores pela nossa infeliz
terra, que r e g a r a m c o m seu sangue, m a s aben
çoaram c o m seu a m o r ! E r a m essas as idéas
que m e v i n h a m entre aquelles túmulos, para
m i m , todos elles, sagrados, e então a l l i mesmo,
aos v i n t e annos, f o r m e i a resolução de v o t a r a
m i n h a v i d a , si assim me fosse dado, ao serviço
da raça generosa entre todas que a desegualdade
da sua condição enternecia e m vez de azedar e
que p o r sua doçura n o s o f f r i m e n t o emprestava
até m e s m o á oppressão de que era v i c t i m a u m
reflexo de bondade...

13.
XXI

A ABOLIÇÃO

Q u a n d o a c a m p a n h a da abolição f o i i n i c i a d a ,
r e s t a v a m ainda q u a s i dois milhões de escravos,
e m q u a n t o que os seus filhos de menos de o i t o
annos e todos os que viessem a nascer, apezar
de ingênuos, e s t a v a m sujeitos até aos v i n t e e
u m annos a u m r e g i m e n p r a t i c a m e n t e egual ao
c a p t i v e i r o . F o i esse i m m e n s o b l o c o que atacá-
mos e m 1879, a c r e d i t a n d o gastar a nossa v i d a
sem chegar a entalhal-o. N o f i m de dez annos
não restava delle sinão o pó. T a l r e s u l t a d o f o i
d e v i d o a m u i t a s causas... E m p r i m e i r o logar, á
epocha e m que f o i lançada a idéa. A h u m a n i d a d e
estava p o r demais adeantada p a r a que se pudesse
ainda defender e m p r i n c i p i o a escravidão, c o m o
o h a v i a m feito nos Estados-Unidos. A raça l a -
t i n a não t e m dessas coragens. O s e n t i m e n t o de
ser a u l t i m a nação de escravos h u m i l h a v a a nossa
altivez e emulação de p a i z novo. Depois, á f r a -
queza e á doçura do caracter n a c i o n a l , ao q u a l o
MINHA F O R M A Ç Ã O 227

escravo t i n h a c o m m u n i c a d o sua bondade e a es-


cravidão o seu r e l a x a m e n t o . Compare-se nesse
p o n t o o que ella f o i n o B r a s i l c o m o que f o i n a
A m e r i c a do N o r t e . N o B r a s i l , a escravidão é
u m a fusão de raças; nos Estados-Unidos, é a
g u e r r a entre ellas. Nossos proprietários e m a n c i -
p a v a m aos centos os seus escravos, e m vez de se
u n i r e m p a r a l y n c h a r os abolicionistas, c o m o f a -
r i a m os criadores do K e n t u c k y o u os p l a n t a d o r e s
da L u i s i a n a . A causa abolicionista exercia sua
seducção sobre a mocidade, a i m p r e n s a , a demo-
cracia ; era u m imperativo categórico para os
m a g i s t r a d o s e os padres; t i n h a affinidades p r o -
fundas c o m o m u n d o operário e c o m o exercito,
r e c r u t a d o de preferencia entre os h o m e n s de cor ;
operava c o m o u m dissolvente sobre a massa dos
p a r t i d o s políticos, cujas rivalidades i n c i t a v a c o m
a h o n r a que p o d i a c o n f e r i r aos estadistas que a
emprehendessem, e á própria d y n a s t i a i n s p i r a v a
de m o d o espontâneo o sacrifício indispensável
para o successo.
Cinco acções o u concursos difPerentes coope-
r a r a m p a r a o resultado f i n a l : i.° a acção m o t o r a
dos espíritos que c r e a v a m a opinião pela idéa,
pela palavra, pelo sentimento, e que a f a z i a m
valer p o r m e i o do P a r l a m e n t o , dos meetings, da
i m p r e n s a , do ensino superior, do púlpito, dos
t r i b u n a e s ; 2.° a acção coerciva dos que se p r o p u -
n h a m a d e s t r u i r m a t e r i a l m e n t e o formidável ap-
parelho da escravidão, arrebatando os escravos
228 MIMIA FORMAÇÃO

ao poder dos senhores; 3.° a acção c o m p l e m e n -


tar dos próprios proprietários, que, á m e d i d a q u e
o m o v i m e n t o se p r e c i p i t a v a , diminuíam diante
delle as resistências, l i b e r t a n d o e m massa as suas
« fabricas »; 4. a acção p o l i t i c a dos estadistas,
0

representando as concessões do g o v e r n o ; 5.° a


acção dynastica.
A s duas p r i m e i r a s categorias f o r m a v a m cír-
culos concentricos, c o m p o s t o s c o m o e r a m e m
grande parte dos m e s m o s elementos. E a ellas
que pertence o grosso do p a r t i d o a b o l i c i o n i s t a ,
os leaders do m o v i m e n t o . P a r a c o l l o c a r cada f i -
g u r a no p l a n o que l h e c o n v é m c o m seu t a m a n h o
r e l a t i v o seria preciso o u t r o j u i z . T e n d o v i s t o n a
l u c t a e no esforço cada u m dos veteranos dessa
c a m p a n h a , eu não m e p e r d o a r i a a m i m mesmo
a m e n o r injustiça involuntária que fizesse a q u a l -
quer delles. D i s s e n t i m e n t o s p r o f u n d o s m e separa-
r a m de m u i t o s depois da v i c t o r i a , mas o espirito
de i m p a r c i a l i d a d e que m e a n i m a a respeito de
cada u m faz a i n d a parte da lealdade que a c r e d i t o
ter m a n t i d o perfeita d u r a n t e a abolição para c o m
todos os a u x i l i a r e s d'ella, os da p r i m e i r a c o m o
os da u n d e c i m a h o r a . N ã o farei tão p o u c o o l i v r o
d'ouro da g r a n d e p r o p r i e d a d e b r a s i l e i r a nessa
quadra. N a categoria dos chefes políticos posso
destacar, porém, tres estadistas que p r e s t a r a m ao
m o v i m e n t o e m epochas differentes u m c o n c u r s o
decisivo : D a n t a s , que p r i m e i r o c o l l o c o u ao ser-
viço delia u m dos p a r t i d o s constitucionaes do

mm
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 229

paiz, o l i b e r a l , serviço da o r d e m d o que G l a d -


stone p r e s t o u á causa i r l a n d e z a ; Antônio P r a d o ,
que r e t i r o u o veto de S. P a u l o á abolição, que-
b r a n d o assim a resistência até então c o m p a c t a d o
Sul, a porção m a i s r i c a d o paiz, e João A l f r e d o ,
que l e v o u o p a r t i d o conservador a apresentar a l e i
da extincção i m m e d i a t a , acto que m e s m o nessa
epocha f o i u m a grande audácia, e que pelo estado
e disposição g e r a l da p o l i t i c a só podia ter sido
o b r a delle m e s m o . José Bonifácio, cuja adhesão
á idéa f o i u m contingente egual á libertação do
Ceará, C h r i s t i a n o O t t o n i , Silveira da M o t t a , e
outros, eu os c o n t a r i a na p r i m e i r a classe, a dos
propagandistas.
E-me quasi impossível f a l l a r hoje da abolição
sinão p o r incidentes e figuras destacadas... T u d o
o que digo é sob a resalva de que teria m u i t o mais
que d i z e r ; q u a n d o p r o n u n c i o u m n o m e está
subentendido que é apenas u m de u m extenso
calendário, e que os d i p t y c o s de u m e o u t r o
lado estão cheios... Q u e m fará d'entre os con-
temporâneos essa h i s t o r i a c o m i m p a r c i a l i d a d e ,
justeza e penetração, sem deixar e n t r a r nella a
paixão política, o preconceito sectário, a f a s c i -
nação o u sujeição pessoal ? N i n g u é m , de certo, o
que quer dizer que haverá no f u t u r o diversas his-
t o r i a s . A m i n h a contribuição para o assumpto
ha de u m d i a ser o m e u a r c h i v o , e alguns f r a -
gmentos a respeito de diversos factos e m que es-
t i v e e n v o l v i d o o u de que t i v e conhecimento d i -
230 MINHA F O R M A Ç Ã O

recto... Esse trabalho, essa desobriga, ao mesmo


tempo que depoimento pessoal, espero que Deus
me dará tempo e modo de o fazer como planejo.
Seria uma espécie de chave para o período que
encerra a era monarchica.
Dentre aquelles c o m quem mais intimamente
lidei em 1879 e 1880 e que f o r m a v a m c o m m i g o
u m grupo homogêneo, a nossa pequena egreja,
as principaes figuras eram André Rebouças, Gus-
m ã o L o b o e Joaquim Serra... A egreja fronteira
era a de José do Patrocínio, Ferreira de Menezes,
Vicente de Souza, N i c o l a u Moreira, depois João
Glapp c o m a Confederação Abolicionista. Si eu
estivesse escrevendo neste momento u m escorço
do movimento abolicionista"de 1879-1888, já teria
citado Jeronymo Sodré, que foi quem pronunciou
o fiat,Q passaria a citar os meus companheiros de
Câmara Manoel Pedro, Corrêa Rabeílo, S. de Bar-
ros Pimentel, e outros, porque o m o v i m e n t o come-
çou na Câmara em 1879, e não, como se t e m dito,
na Gazeta da Tarde de Ferreira de Menezes, que
é de 1880, n e m na Gazeta de Noticias, onde então
José do Patrocínio, escrevendo a « Semana P o l i -
tica », não fazia sinão nos apoiar e ainda não adi-
vinhava a sua missão. De certo pelos escravos já
v i n h a m trabalhando L u i z Gama e outros, mesmo
antes da lei de 1871, como trabalharam todos os
collaboradores dessa l e i ; mas o m o v i m e n t o abo-
licionista de 1879 *888 é u m movimento que
a

tem o seu eixo próprio, sua formação distincta,


MINHA F O R M A Ç Ã O 231

e cujo p r i n c i p i o , m a r c h a , velocidade, são fáceis


de v e r i f i c a r ; é u m systema f l u v i a l do q u a l se co-
nhecem as nascentes, o v o l u m e d'agua e v a l o r de
cada tributário, as quedas, os rápidos, o estuá-
r i o , e esse m o v i m e n t o começa, fóra de toda du-
v i d a , c o m o p r o n u n c i a m e n t o de J e r o n y m o Sodré
e m 1879 n a Câmara... Esse p r o n u n c i a m e n t o v e m
r e s o l v i d o da B a h i a e rebenta na C â m a r a c o m o
u m a m a n g a d'agua, r e p e n t i n a m e n t e . N a d a abso-
l u t a m e n t e o fazia suspeitar... A o acto de J e r o -
r o n y m o Sodré filia-se c h r o n o l o g i c a m e n t e a m i n h a
a t t i t u d e dias depois... M a i s tarde é que e n t r a m
Rebouças, Patrocínio, G u s m ã o L o b o , Menezes,
J o a q u i m Serra... I s t o não é a p u r a r a data dos p r i -
m e i r o s escriptos abolicionistas de cada u m ; os
meus, p o r exemplo, d a t a v a m da Academia... E
r e i v i n d i c a r para a G a m a r a , para o P a r l a m e n t o , a
i n i c i a t i v a que se lhe t e m q u e r i d o t i r a r nesta ques-
tão, dando-se-a ao elemento p o p u l a r , r e p u b l i -
cano... E u m a p u r a questão de datas ; desde que
se dér a data certa a cada facto allegado, v e r i f i -
car-se-á o autem genuit acima... Reconheço que
a m i n h a inscripção v e m na o r d e m do t e m p o de-
pois da de J e r o n y m o Sodré... A s outras, porém,
v i e r a m depois da minha... F o i o m o v i m e n t o po-
p u l a r talvez que m a i s tarde i n c u b o u o g e r m e n
p a r l a m e n t a r , não o deixando m o r r e r nas Sessões
seguintes, mas que o g e r m e n f o i p a r l a m e n t a r ,
que o liber generationis começou em 1879 c o m

J e r o n y m o Sodré, é o que se pode demonstrar


232 MINHA FORMAÇÃO

c o m os próprios d o c u m e n t o s , m e s m o c o m aquel-
les e m que se pretenda o c o n t r a r i o , u m a vez que
sejam authenticos... A questão de i n i c i a t i v a aliás
t e m u m interesse t o d o secundário, s o b r e t u d o
q u a n d o a idéa está-no ar e o e s p i r i t o do t e m p o
a agita p o r toda a parte. N ã o ha nada m a i s d i f -
ficil do que avaliar a importância r e l a t i v a dos
diversos factores de u m m o v i m e n t o que se t o r n a
nacional. O u l t i m o dos apóstolos pode v i r a ser
o p r i m e i r o de todos, c o m o S. P a u l o , e m serviços
e e m p r o s e l y t i s m o . T u d o n a abolição prende-se,
não se pode escrever-lhe a h i s t o r i a s u p p r i m i n d o
q u a l q u e r dos seus élos... E u m facto a reter :
a compensação vae sempre além, m u i t o além,
dos prejuízos que ella sofTre, e, d'esse m o d o ,
até elles a favorecem A s s i m m o r r e F e r r e i r a de
Menezes, mas Patrocínio t o m a a Gazeta da
Tarde; a m i n o r i a a b o l i c i o n i s t a de 1879 não é
reeleita, surge a Confederação A b o l i c i o n i s t a ;
q u a n d o o Ceará conclue a sua obra, o A m a z o n a s
começa a d'elle ; d e m i t t i d o u m presidente de p r o -
víncia ( T h e o d u r e t o Souto), é n o m e a d o u m Pre-
sidente do Conselho ( D a n t a s ) ; o r g a n i z a d a a acção
da p o l i c i a , apparece a agitação no exercito ; ás
sevicias da P a r a h y b a do S u l e de C a n t a g a l l o
succede o c o m b a t e do Cubatão ; m o r t o José Bo-
nifácio, t o m a o seu l o g a r e m S. P a u l o Antônio
P r a d o ; r e p e l l i d o pela C â m a r a José M a r i a n n o , o
Recife d e r r o t a o m i n i s t r o do Império ; v a c i l l a n d o
o p a r t i d o l i b e r a l , move-se o p a r t i d o conservador;
MINHA FORMAÇÃO 233

parte o I m p e r a d o r , fica a Princeza... N i n g u é m


a f i n a l sabe q u e m fez m a i s pela abolição: si a p r o -
paganda, si a resistência: si os que q u e r i a m t u d o ,
si os que não q u e r i a m nada... N a d a h a m a i s
i l l u s o r i o que as distribuições de gloria... A s len-
das hão de sempre -viver, c o m o raios de l u z
na treva a m o n t o a d a do passado, mas a belleza
d'ellas não está e m sua verdade, que é sempre
pequena ; está n o esforço que a h u m a n i d a d e faz
para a s s i m reter alguns episódios de u m a v i d a
tão extensa que p a r a abrangel-a não h a memória
possível...
N ã o posso sinão d a r ao acaso a l g u m a s i m -
pressões p o r isso deixo, não sem c o n s t r a n g i -
m e n t o , de r e f e r i r - m e a nomes que e n t r a r i a m
e m q u a l q u e r r e s u m o , p o r m a i s c u r t o que fosse,
note-se bem, do começo da propaganda... Os
dois g r u p o s de que fallei, encontravam-se, t r a -
b a l h a v a m j u n t o s , m i s t u r a v a m - s e , mas a l i n h a
divisória era sensível : u m representava a acção
p o l i t i c a , o o u t r o a r e v o l u c i o n a r i a , ainda que cada
u m refiectisse p o r vezes a influencia do o u t r o .
Isso no t e m p o e m que a idéa está sendo l a n -
çada, pois d e n t r o de pouco o m o v i m e n t o torna-se
geral, e então h a o i n f l u x o das províncias, h a o
Ceará, o A m a z o n a s , o R i o Grande do Sul, Per-
n a m b u c o , a Bahia, S. P a u l o , que s u r g e m c o m o
grandes focos de propaganda... O m o v i m e n t o
a b o l i c i o n i s t a teve c o m effeito duas phases bem
accentuadamente d i v i d i d a s : a p r i m e i r a , de 1879
234 MINHA F O R M A Ç Ã O

a 1884, e m que os abolicionistas c o m b a t e r a m sós,


entregues aos seus próprios recursos, e a segunda,
de 1884 a 1888, e m que elles v i r a m sua causa
adoptada successivamente pelos dois grandes par-
tidos do paiz. E m 1884 deu-se a conversão do
p a r t i d o l i b e r a l e em 1888 a do p a r t i d o conserva-
dor. A phase p u r a m e n t e a b o l i c i o n i s t a da campa-
nha^ — p o r opposição á phase p o l i t i c a , que po-
deria e n t r a r na h i s t o r i a dos dois p a r t i d o s rivaes,
— foi a p r i m e i r a .
De todos, aquelle c o m q u e m m a i s intimamente
v i v i , c o m q u e m estabeleci u m a v e r d a d e i r a c o m -
m u n h ã o de s e n t i m e n t o , f o i André Rebouças...
Nossa amizade f o i p o r m u i t o t e m p o a fusão de
duas vidas e m u m só p e n s a m e n t o : a e m a n c i p a -
ção. Rebouças encarnou, c o m o n e n h u m o u t r o de
nós, o espirito anti-esclavagista : o e s p i r i t o
i n t e i r o , systematico, absoluto, s a c r i f i c a n d o t u d o ,
sem excepção, que l h e fosse c o n t r a r i o o u sus-
peito, não se contentando de t o m a r a questão
por u m só lado, olhando-a p o r todos, t r i a n g u -
lando-a, p o r a s s i m dizer, — era u m a de suas ex-
pressões f a v o r i t a s , — socialmente, m o r a l m e n t e ,
economicamente. E l l e não t i n h a , p a r a o p u b l i c o ,
n e m a p a l a v r a , n e m o estylo, n e m a acção 5 d i r -
se-ia assim que e m u m m o v i m e n t o d i r i g i d o p o r
oradores, j o r n a l i s t a s , agitadores populares, não
l h e p o d i a caber papel a l g u m saliente, n o em-
t a n t o elle teve o m a i s b e l l o de todos, e calcu-
l a d o p o r m e d i d a s e s t r i c t a m e n t e i n t e r i o r e s , psy-
MINHA F O R M A Ç Ã O 235

chologicas, o m a i o r , o papel primário, ainda q u e


occulto, do m o t o r , da inspiração que se r e p a r t i a
p o r todos,... não se o v i a quasi, de f o r a , mas cada
u m dos que e r a m vistos estava o l h a n d o para
elle, sentia-o comsigo, e m si, regulava-se pelo seu
gesto invisível á multidão,... sabia que a con-
sciência capaz de resolver todos os p r o b l e m a s da
causa só elle a t i n h a , que só elle entrava na sarça
ardente e v i a o E t e r n o face a face... E-me tão
impossível resumil-o a elle e m u m traço c o m o
m e seria impossível f i g u r a r u m a trajectoria i n f i -
n i t a . .. Depois da abolição elle sempre teve o
p r e s e n t i m e n t o de que a escravidão causaria u m a
grande desgraça á d y n a s t i a , c o m o assassinára a
L i n c o l n . Seu m a i o r a m o r talvez tenha sido pelos
seus a l u m n o s da P o l y t e c h n i c a , m a s c o m o todas
as suas recordações d' « a Escola » t r a n s f o r m a -
ram-se e m o u t r o s tantos t o r m e n t o s , q u a n d o os
v i u g l o r i f i c a n d o o i 5 de N o v e m b r o , que para
elle era a desforra de i 3 de M a i o !
D o seu q u a r t o n o H o t e l Bragança, e m P e t r o
polis, onde d u r a n t e annos n o t a r a n o seu diário
a nossa pulsação c o m m u m , até o despenha-
deiro do F u n c h a l , que l i n h a a q u e descreveu
André Rebouças ! E l l e f o i o cortezão do Ala-
>

gôas... U m r e p u b l i c a n o , a q u e m v e i u a tocar na
hora da a m a r g u r a o papel de discípulo amado
do velho I m p e r a d o r banido... F o i u m i n d u s t r i a l ,
u m engenheiro ousado e t r i u m p h a n t e , que aca-
bou p r a t i c a n d o o tolstoismo... F o i u m gênio
23G MINHA F O R M A Ç Ã O

mathematico, um sábio, que reduziu sua scien-


cia a u m a serpentina e m que de t u d o d i s t i l l a v a
a abolição... Seu c e n t r o de g r a v i d a d e f o i v e r d a -
d e i r a m e n t e o sublime... N ã o posso ainda f a l l a r
d'elle e m relação a m i m , p o r q u e não o q u i z e r a
fazer de m o d o incompleto... P r e f i r o m o s t r a l - o
e m relação ao I m p e r a d o r . A q u i está u m a dessas
provas rápidas, photogenicas, que elle sabia t i r a r
de si, e nas quaes os que v i v e r a m c o m elle
reconhecem-lhe a p h y s i o n o m i a , a p a n h a d a c o m
toda a m o b i l i d a d e da sua expressão e c o m a
i n a l t e r a b i l i d a d e do seu affecto h u m a n o . E p o r
acaso que e n c o n t r o esta carta d'elle :

« Cannes, 13 de maio de 1892.


«Meu Mestre e meu Imperador, — Não passará o 3 o

a n n i v e r s a r i o da Libertação d a Raça A f r i c a n a n o B r a z i l
sem que André Rebouças dê n o v o t e s t e m u n h o de filia!
gratidão ao M a r t y r s u b l i m e da Abolição.
f S i n t o - m e feliz p o r t e r sido e s c o l h i d o pelo B o m Deus
p a r a r e p r e s e n t a r a devotação da Raça A f r i c a n a a V. M.
I m p e r i a l e á P r i n c e z a R e d e m p t o r a , e alegro-me r e p e t i n -
do-o incessantemente.
« É h o j e g r a t o r e l e m b r a r a synthese da nossa v i d a , c o m o
m e u B o m Mestre disse n o Alagoas q u a n d o c o m m e m o r á -
mos seu 64 a n n i v e r s a r i o .
o

«Principiou e m P e t r o p o l i s , e m i85o, h a q u a r e n t a e u m
annos, examinando-me e m a r i t h m e t i c a , a i n d a m e n i n o de
c o l l e g i o , e c o n t i n u o u , quasi q u o t i d i a n a m e n t e , nas lições
e nos exames das Escolas M i l i t a r , C e n t r a l e de A p p l i c a -
ção n a fortaleza d a P r a i a V e r m e l h a até d e z e m b r o
de 1860.
Os annos de 18G1 e 1862 f o r a m de estudos práticos de
c a m i n h o de f e r r o e de p o r t o s de m a r n a E u r o p a . A p r i -
m e i r a Memória, escripta c o m o Antônio, datada de Mar-
MIXIIA FORMAÇÃO 2'37

selha, c m 9 de j u n h o de 1861, f o i dedicada, c o m o de jus-


tiça, ao nosso B o m M e s t r e e Imperador... Q u a n d o Vossa
Magcstade e n c o n t r a v a m e u Pai, suas palavras p r i m e i r a s
e r a m : — Como vão os meninos'.- — Onde estão agora ? —
Recommende-lhes sempre que estudem e que trabalhem.
«Voltámos ao B r a z i l e m fins de 1862, e encetámos a
v i d a p r a t i c a nos t r a b a l h o s m i l i t a r e s de Santa G a t h a r i n a ,
m o t i v a d o s pelo c o n f l i c t o C h r i s t i e .
« A 28 de dezembro de i863 separei-me, pela p r i m e i r a
vez, do m e u irmão Antônio... C o m e ç a d*ahi e m diante o
período i n d u s t r i a l da m i n h a vida...
«Vossa Magestede e m e u P a i não q u e r i a m q u e eu t i -
vesse u m a orientação além da v i d a t r a n q u i l l a da S c i e n -
cia e do Professorado; mas o V i s c o n d e de I t a b o r a h y , que
t a m b é m me devotava atfeição p a t e r n a l , dizia:—André.'...
Quero que você sueceda ao Mauá
« Sabe Vossa Magestade q u a n t o s o f f r i da o l i g a r e h i a po-
l i t i c a n t e e da p l u t o c r a c i a escravocrata nesses afanosos
tempos... Só t e n h o hoje delles u m a consolação: — P r o j e -
ctei e c o n s t r u i as Docas de P e d r o I I ; c o n c e b i e d i r i g i o
c a m i n h o de f e r r o C o n d e d'Eu e sua bella estação marí-
t i m a d o Cabedello.
« Vossa Magestade gosta de r e c o r d a r que, e m U r u g u a -
yana, salvámos juntos, pelo nosso h o r r o r ao sangue,
7000 Paraguayos e centenas de Brazileiros... N a actual
a n t i p a t h i a ao M i l i t a r i s m o , apenas lembro-me dos t r a b a -
lhos de Itapirú e T u y u t y .
« E m 1880 começa a P r o p a g a n d a A b o l i c i o n i s t a . Nós,
t r i b u n o s ardentes, só tínhamos u m a certeza e u m a espe-
rança: — o I m p e r a d o r . E m 1871 havia Vossa Magestade
c o n c e d i d o á F i l h a P r e d i l e c t a l i b e r t a r o berço dos c a p t i -
vos c o m Paranhos, V i s c o n d e d o R i o B r a n c o .
« E m 1888 a i n i c i a t i v a p a r t i u d W q u e l l a que não pôde
ver l a g r i m a s n e m o u v i r soluços de pobres, de infelizes e
de escravos, n o a m o r santo de M a r t y r d o C h r i s t i a n i s m o
I n i c i a l , aspirando menos á g l o r i a na T e r r a d o que anhe-
l a n d o a b e n e m e r e n c i a no Ceu, j u n t o a Jesus, o Redem-
p t o r dos Redemptores.
« Emfim... Creio que podemos esperar t r a n q u i l l o s o
238 MINHA FORMAÇÃO

juizo de Deus; porque havemos cumprido sua grande


L e i trabalhando pelo Progresso da Humanidade.
«Agora, só tenho a dizer-lhe que desde i5 de novembro
de 1889 perdi a l i n h a divisória entre meu Pai e meu Mes-
tre e Imperador, e que é na maior effusão de amor que
me assigno, — Com todo o Coração — André Rebouças.

Ou este itinerário, que elle traçára para a fuga


de escravos de S. P a u l o p a r a o N o r t e , p u r a phanta-
sia, mas tão cheio p a r a todos nós de vestígios de
sua o r i g i n a l i d a d e , de toques da sua generosa sen-
s i b i l i d a d e , quasi impessoal :

C A M I N H O DE FERRO SUBTERRÂNEO

do
ALTO S. FRAKCISCO AO CEARA LIVRE

ESTAÇÃO INICIAL... S. Paulo; junto ao


túmulo de Lui/. Gama.
SEGUNDA ESTAÇÃO... Pirassinunga.
TERCEIRA ESTAÇÃO... Cachoeira de Mogy-
Guassú.
QUARTA ESTAÇÃO ... Em pleno sertão, com
rumo de Nordeste; o Sol deve amanhecerá
direita e cair, á tarde, á esquerda.
QUINTA ESTAÇÃO. .. Piumhy, nascente do
Rio S. Francisco, acompanhando sempre o
bello r i o , abundante de peixes e de fructos
deliciosos.
SEXTA ESTAÇÃO. .. De um lado Goyaz livre ;
do outro o sertão da Bahia, onde não ha
capitães do mato.
SÉTIMA ESTAÇÃO... Na V i l l a da Barra, onde
começam as grandes cachoeiras do S. Fran-
cisco .
OITAVA ESTAÇÃO... No varadouro das
águas do S. Francisco para as do Parnahyba.
NONA ESTAÇÃO... No Paraiso, — no Ceará
Livre. »
MINSA F O R M A Ç Ã O 239

M a t h e m a t i c o e astrônomo, botânico e geólogo,


industrial e moralista, hygienista e philanthropo,
poeta e p h i l o s o p h o , Rebouças f o i talvez dos h o -
m e n s nascidos n o B r a s i l o único universal pelo
espirito e pelo coração... Pelo e s p i r i t o t e r e m o s
t i d o alguns, pelo coração o u t r o s ; mas somente
elle f o i capaz de reflectir e m si ao m e s m o t e m p o
a u n i v e r s a l i d a d e dos c o n h e c i m e n t o s e a dos sen-
t i m e n t o s h u m a n o s . Q u e m sabe si não f o i a
i m a g e m que p a r t i u o espelho ! « D e l i r a n t e ova-
ção dos m e u s a l u m n o s , escrevia elle e m i 5 de
m a i o de 1888 n o seu diário. A n n u n c i o - l h e s o
projecto de Triangulação M o r a l e C a d a s t r a l d o
B r a s i l . V o t o de l o u v o r pela Congregação. N o v a
ovação. Carregado pelos a l u m n o s p o r t o d o o p e -
r i s t y l o . » D a abolição elle f o i o m a i o r , não pela
accão exterior, o u i n f l u e n c i a directa sobre o mo-
v i m e n t o , m a s pela força e a l t u r a da projecção
cerebral, pela rotação v e r t i g i n o s a de idéas e
sensações e m t o r n o do eixo c o n s u m i d o r e can-
dente, que era para elle o soífrimento do escravo.
E r a u m a f o r n a l h a cósmica a que ardia nelle.
Si Rebouças i n d a é v i s t o n o seu t e m p o c o m o u m a
estrella de segunda grandeza, é porque estava
mais longe d o que todas D o s Evangelistas da
nossa b o a n o v a elle é que teria p o r a t t r i b u t o a
águia... H a n o seu estylo e nos seus m o l d e s
m u i t a coisa que l e m b r a S. João... Idealista t o d o
elle, é quasi só p o r s y m b o l o s que escreve... A i l h a
da M a d e i r a f o i a P a t h m o s de u m apocalypse
240 MINHA FORMAÇÃO

i n f e l i z m e n t e perdido, p o r q u e suas u l t i m a s p a g i -
nas, v o l t a d o para o S u l , elle as escrevia, t o -
m a n d o p o r lettras as estreitas e as
Sua lenda, porém, estcí feita, não ha p e r i g o p a r a
elle de esquecimento : a lenda d o seu desterro
e de sua amizade a D. P e d r o I I .

Outro com quem vivi até sua morte em grande


approximação de idéas, f o i J o a q u i m Serra. Desde
1880 até a abolição elle não d e i x o u passar u m d i a
sem a sua linha... M i n a d o p o r u m a doença que
não perdoa, salvava cada m a n h ã o que bastasse
de alegria para s o r r i r á esperança dos escravos, a
q u a l v i u crescer d i a p o r d i a d u r a n t e esses dez an-
nos c o m o u m a p l a n t a delicada que elle m e s m o
tivesse feito nascer... F e i t a a abolição, desabro-
chada a flòr, m o r r i a elle... E que m o r t e ! que sau-
dade da m u l h e r e dos filhos, da f i l h i n h a adorada,
que não se queria afastar u m instante d'elle ! Serra
c u m p r i u a sua tarefa c o m u m a constância e assi-
duidade a toda p r o v a , s e m d a r u m a f a l t a , e c o m
o m a i s perfeito espirito de abnegação e de l e a l -
dade... R e n u n c i a n d o os p r i m e i r o s logares, elle
mostrava, entretanto, de m a i s e m m a i s u m a agu-
deza de v i s t a e u m a clareza de expressão dignas
de u m v e r d a d e i r o leader. E u mesmo, que acre-
d i t a v a conhecel-o, f u i s u r p r e h e n d i d o pela ousadia
d a sua m a n o b r a , q u a n d o u m a vez elle p r o m e t t e u
ao barão de Cotegipe todo o nosso apoio, — nós
respondíamos uns pelos outros, — si fizesse c o n -
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 2Í1

cessões ao m o v i m e n t o . A o c o n t r a r i o de R e b o u -
ças, Serra era u m e s p i r i t o político, mas a c i m a
do seu p a r t i d o , do q u a l fora d u r a n t e a opposição
o m a i s serviçal dos auxiliares, collocava a nossa
causa c o m m u m c o m u m a sinceridade i n t i m a que
nunca f o i suspeitada... « Passamento do grande
J o a q u i m Serra, escreve Rebouças no seu Diário
em 29 de o u t u b r o de 1888, c o m p a n h e i r o de Aca-
d e m i a em 1854 e de lucta a b o l i c i o n i s t a de 1880-
1888, o p u b l i c i s t a que mais escreveu c o n t r a os
escravocratas. » « N i n g u é m fez mais do que elle,
escrevia G u s m ã o L o b o p o r sua morte... e q u e m
fez tanto...} »

Gusmão Lobo... E outro nome do nosso cir-


culo interior... A l g u n s dos que c o m b a t e r a m jun-
tos sem descanço, d u r a n t e os p r i m e i r o s cinco
annos da propaganda, os quaes f o r a m os annos
do ostracismo político e social da idéa, a c r e d i t a -
r a m sua tarefa, si não acabada, pelo menos gran-
demente a l l i v i a d a no d i a e m que u m grande par-
t i d o no governo, c o m os seus quadros, sua i n -
fluencia, seu eleitorado, sua i m p r e n s a , a d o p t o u
a causa de que elles e r a m até então os únicos
arrimos... E n t r e esses está G u s m ã o L o b o , que
não teria deixado a penna de combate, si não t i -
vesse visto a bandeira que ella protegia, passar
t r i u m p h a n t e das m ã o s dos agitadores para as m ã o s
de Presidentes do Conselho. N a epocha decisiva
do m o v i m e n t o , aquella e m que se teve de crear o
14
242 MINHA F O R M A Ç Ã O

i m p u l s o e de t o r n a l - o mais forte do que a resis-


tência, isto é, e m que se venceu v i r t u a l m e n t e a
campanha, os seus serviços f o r a m inapreciaveis...
E l l e sósinho enchia c o m a emancipação o Jornal
do Çommcrcio desde a c o l u m n a e d i t o r i a l , onde p o r
toda a espécie de h a b i l i d a d e s , artifícios e s u b t i -
lezas, graças á boa vontade do dr. L u i z de Castro,
conseguia t e r a questão sempre e m evidencia...
Seu talento, seu estylo de escriptor, airoso, per-
feito, prismático, u m dos m a i s bellos e m a i s
espontâneos do nosso t e m p o , era v e r d a d e i r a -
mente inexhaLrivel... E l l e achava solução p a r a
t u d o , t i n h a os expedientes e as f i n u r a s , c o m o
t i n h a a plástica da expressão... T o d o o seu t r a -
balho f o i a n o n y m o e poderia assim passar des-
percebido de o u t r a geração, si não restasse o tes-
t e m u n h o u n a n i m e dos que t r a b a l h a r a m c o m
elle... E r a u m assombro a variedade dos papeis
que elle desempenhava n a i m p r e n s a , incalculável
o v a l o r da sua presença e conselho e m nossas
reuniões, e depois no i n t i m o do gabinete D a n t a s .
Seu n o m e está escripto, p o r toda a parte, nas pa-
redes das C a t a c u m b a s e m que o a b o l i c i o n i s m o
nascente v i v e u os p r i m e i r o s cinco annos como
u m a pequena egreja perseguida, m a s apparece
cada vez m a i s r a r o á m e d i d a que a n o v a fé se
vae t o r n a n d o religião ofíicial. E u m dos e n i g m a s
do nosso tempo, — enigma nacional, porque
se prende á questão do e m m u r c h e c i m e n t o rápido
de toda a flor do paiz, — como semelhante
MINHA FORMAÇÃO 243

talento r e n u n c i o u m a i s tarde de repente a toda


a ambição...

Não quero fazer a galeria da abolição, mas,


c o m o dei, v e n c i d o pela saudade, dois o u tres per-
fis, tão i m p e r f e i t o s , de amigos, pagarei t a m b é m
o m e u t r i b u t o a José do Patrocínio... Este é o
representante do espirito revolucionário que c o m
o espirito l i b e r a l e o espirito de g o v e r n o fez a
abolição, mas que f o i m a i s forte do que elles, e
acabou p o r os absorver e dominar... Sem o es-
p i r i t o g o v e r n a m e n t a l de h o m e n s c o m o Dantas,
Antônio P r a d o e João A l f r e d o , não se teria che-
gado p a c i f i c a m e n t e ao fim, n e m tão cedo; sem o
espirito humanitário, e x t r e m e de ódios e tendên-
cias politicas, a abolição teria degenerado e m u m a
g u e r r a de raças o u e m u m e n c o n t r o de facções ;
sem o t r a b a l h o v a r i o , inapreciavel, de cada u m
dos grandes factores provinciaes, que conservarão
sua a u t o n o m i a na h i s t o r i a , c o m o o do Ceará, c o m
João Cordeiro, o de S. P a u l o c o m Antônio B e n t o ,
o de P e r n a m b u c o c o m João Ramos, t o m a n d o
esses nomes c o m o collectivos, o resultado teria
sido differente e talvez funesto. O que Patrocínio,
porém, representa é o fatum, é o irresistível do
movimento... E l l e é u m a m i s t u r a de Spartaco e de
C a m i l l e Desmoulins... Os que l u c t a v a m somente
c o n t r a a escravidão, e r a m c o m o os liberaes de
1789, da raça dos cegos de boa vontade, sinão
voluntários, que as revoluções e m p r e g a m para
244 MINHA FORMAÇÃO

lhes a b r i r e m a p r i m e i r a brecha... Patrocínio é a


própria revolução. S i o a b o l i c i o n i s m o no d i a
seguinte ao seu t r i u m p h o dispersou-se e logo
depois u m a parte delle alliou-se á grande p r o -
priedade c o n t r a a d y n a s t i a que elle t i n h a i n d u -
zido ao sacrifício, é que o espirito que mais p r o -
f u n d a m e n t e o a g i t o u e r e v o l v e u , f o i o espirito
revolucionário que a sociedade abalada t i n h a
d e i x a d o escapar pela p r i m e i r a fenda dos seus
alicerces... P a t r o c i n i o f o i a expressão da sua
e p o c h a ; em certo sentido, a figura representativa
delia...
XXII

CARACTER DO MOVIMENTO. — A PARTE DA DYNASTIÂ.

A abolição teria sido u m a obra de o u t r o alcance


m o r a l , si tivesse sido feita do altar, pregada do
púlpito, proseguida de geração e m geração pelo
clero e pelos educadores da consciência. I n f e -
l i z m e n t e , o espirito revolucionário teve que exe-
c u t a r e m poucos annos u m a tarefa que havia
sido desprezada d u r a n t e u m século. U m a grande
r e f o r m a social, para ser agradável a Deus, exige
que a a l m a do próprio operário seja purificada.
e m p r i m e i r o logar. São essas as p r i m i c i a s que
elle d i s p u t a e que lhe pertencem. A differença
é grande, m e s m o para as emprezas m a i s justas
e mais bellas, si as levamos p o r deante c o m espi-
r i t o de verdadeira caridade christã, o u si não em-
pregamos nellas sinão essa espécie de e s t i m u l o
pessoal a que e m m o r a l leiga se chama a m o r da
h u m a n i d a d e . O r e f o r m a d o r não vencerá comple-
tamente pela copia de justiça que a sua idéa con-
tenha-, o resultado da v i c t o r i a depende do gráiz
14.
246 MINHA F O R M A Ç Ã O

de caridade que i n s p i r a r a germinação. A p o l i t i c a


é a arte de escolher as sementes-, a religião, a de
lhes p r e p a r a r o terreno.
O m o v i m e n t o c o n t r a a escravidão n o B r a s i l
foi u m m o v i m e n t o de caracter humanitário e so-
cial antes que religioso 5 não teve p o r isso a p r o -
fundeza m o r a l da corrente que se f o r m o u , p o r
exemplo, entre os a b o l i c i o n i s t a s da N o v a - I n g l a -
terra. E r a u m p a r t i d o c o m p o s t o de elementos he-
terogêneos, capazes de d e s t r u i r u m estado social
levantado sobre o p r i v i l e g i o e a injustiça, mas
não de projectar sobre o u t r a s bases o f u t u r o
edifício. A realisação da sua o b r a p a r a v a assim
n a t u r a l m e n t e n a suppressão do c a p t i v e i r o ; seu
t r i u m p h o p o d i a ser seguido, e o f o i , de accidentes
políticos, até de revoluções, mas não de m e d i d a s
sociaes complementares e m beneficio dos l i b e r t a -
dos, n e m de u m grande i m p u l s o i n t e r i o r , de reno-
vação da consciência p u b l i c a , da expansão dos
nobres instinctos sopitados. A liberdade p o r s i
só é fecunda, e sobre os destroços d a escravi-
dão refar-se-ha c o m o t e m p o u m a sociedade m a i s
u n i d a , de idéas m a i s largas, e é possível que esta
p r o c l a m e seus creadores aquelles que não fizeram
m a i s do que i n t e r r o m p e r a oppressão que presidia
aos antigos nascimentos, os g e m i d o s que assigna-
l a v a m no B r a s i l o apparecerde m a i s u m a camada
social. A verdade porém, é que a corrente aboli-
cionista p a r o u no d i a m e s m o da abolição e n o d i a
seguinte refluía.
MINHA FORMAÇÃO 247

D u r a n t e a c a m p a n h a abolicionista,em u m a das
eleições e m que f u i candidato, u m escravo, que
parecia feliz, suicidou-se e m u m a fazenda de Can-
tagallo. Contou-me u m a senhora da família, an-
nos depois, que p e r g u n t a d o no m o m e n t o da m o r t e
por que attentára c o n t r a s i , si t i n h a a l g u m a
queixa, elle respondera ao senhor que não, que
pensou e m matar-se somente p o r q u e eu não t i n h a
sido eleito deputado...Tenho convicção de que a
raça negra p o r u m plebiscito sincero e verdadeiro
teria desistido de sua liberdade para p o u p a r o me-
n o r desgosto aos que se interessavam p o r ella, e
que no f u n d o , q u a n d o ella pensa na m a d r u g a d a de
i 5 de n o v e m b r o , l a m e n t a ainda u m pouco o seu
i 3 de m a i o . N ã o se poderia estar e m contacto
c o m t a n t a generosidade e dedicação sem lhe t e r
u m pouco a d q u i r i d o a marca. Desde a d y n a s t i a ,
que t i n h a u m t h r o n o a ofTerecer, ninguém que
tenha t o m a d o parte e m sua libertação, o lastimará
nunca. N ã o se l a s t i m a a emancipação de u m a
raça, a transformação i m m e d i a t a do destino de
u m milhão e m e i o de vidas h u m a n a s c o m todas
as perspectivas que a liberdade abre deante das
f u t u r a s gerações. N ã o ha raças ingratas. « Senhor
Rebouças, dizia a Princeza I m p e r i a l a b o r d o do
Alagoas, que os levava j u n t o s para o exilio, si
houvesse ainda escravos no B r a s i l , nós v o l t a r i a -
mos para libertal-os. »
A h ! de certo o t h r o n o c a h i u e m u i t a coisa se-
guiu-se que me podia fazer pensar hoje c o m a l -
248 MINHA FORMAÇÃO

g u m t r a v o nesses annos de perfeita illusão... mas


não, devia ser assim mesmo... A s conseqüências,
os desvios, as aberrações, estranhas e alheias, não
p o d e m alterar a perfeita belleza de u m a o b r a com-
pleta, não destróem m a i s o r h y t h m o de u m cyclo
encerrado... N o dia e m q u e a P r i n c e z a I m p e r i a l
se d e c i d i u ao seu grande golpe de h u m a n i d a d e ,
sabia t u d o o que arriscava. A raça que i a l i b e r t a r
não t i n h a para lhe d a r sinão o seu sangue, e ella
não o q u e r e r i a n u n c a para c i m e n t a r o t h r o n o de
seu filho... A classe proprietária ameaçava pas-
sar-se toda para a Republica, seu pae parecia estar
m o r i b u n d o e m Milão, era provável a m u d a n ç a
de r e i n a d o d u r a n t e a crise, e ella não h e s i t o u 5
u m a v o z i n t e r i o r disse-lhe q u e desempenhasse sua
missão, a v o z d i v i n a que se faz o u v i r sempre que
u m grande dever t e m que ser c u m p r i d o o u u m
grande sacrifício que ser acceito. S i a m o n a r c h i a
pudesse sobreviver á abolição, esta seria o seu
apanágio 5 si suecumbisse, seria o seu testamento.
Q u a n d o se tem, sobretudo u m a m u l h e r , a f a c u l -
dade de fazer u m grande b e m u n i v e r s a l , c o m o
era a emancipação, não se deve p a r a r deante de
presagios; o dever é entregar-se i n t e i r a m e n t e nas
m ã o s de Deus. E quem sabe... A impressão
q u a n d o se o l h a da a l t u r a da posteridade, da h i s -
t o r i a , é que o papel n a c i o n a l da d y n a s t i a t i n h a
sido bello d e m a i s p a r a d u r a r i n i n t e r r u p t a -
mente... N ã o ha tão extensos espaços de f e l i c i -
dade nas coisas h u m a n a s 5 o s u r t o p r o l o n g a n d o -
MINHA FORMAÇÃO 249
se t r a r i a a queda desastrosa. Essa d y n a s t i a teve
só tres nomes. O f u n d a d o r íez a independência
do joven paiz americano, desintegrando a velha
m o n a r c h i a européa de que era h e r d e i r o ; seu
filho encontra aos q u i n z e annos o Império enfra-
quecido pela a n a r c h i a , rasgando-se pela ponta
do R i o Grande, e f u n d a a unidade n a c i o n a l so-
b r e tão fortes bases que a g u e r r a do Paragua}^,
experimentando-a, deixou-a á p r o v a de q u a l q u e r
pressão i n t e r n a o u externa, e faz t u d o isso sem
tocar nas liberdades políticas do paiz que d u -
rante cincoenta annos são para elle u m noli me
tangere... P o r u l t i m o , sua filha r e n u n c i a v i r t u a l -
m e n t e o t h r o n o para apressar a libertação dos
últimos escravos... Cada reinado, contando a u l -
t i m a regência da Princeza c o m o u m embryão de
reinado, é u m a nova coroação n a c i o n a l : o p r i -
m e i r o , a do Estado; o segundo, a da nação: ©
terceiro, a do povo... A c o l u m n a assim está per-
feita e egual : a base, o fuste, o capitei. A ten-
dência do m e u espirito é collocar-se no ponto de
vista definitivo... Deste o i5 de n o v e m b r o não é
u m a queda, é u m a assumpção... E a o r d e m do
destino para que a d y n a s t i a brasileira fosse arre-
batada, antes de começar o seu declínio, antes de
correr o risco de esquecer a sua tradição.
D J certo o e x i l i o de I m p e r a d o r foi triste, mas
t a m b é m f o i o que deu á sua figura a majestade
que hoje a reveste... N ã o , não h a assim nada que
me faça o l h a r para a phase em que m i i i t e i na poli-
MIMIA FORMAÇÃO

tica c o m o u t r o s e n t i m e n t o que não seja o de u m a


perfeita gratidão... N ã o devo á d y n a s t i a n e n h u m a
reparação; não lhe a r m e i u m a c i l a d a ; na h u -
m i l d e parte que me coube, o que fiz f o i acenar-
lhe c o m a g l o r i a , c o m a i m m o r t a l i d a d e , c o m a
perfeição do seu traço na historia... N i n g u é m
pode a f f i r m a r que desprezando a abolição ella se
teria m a n t i d o , o u que não teria degenerado .. A
abolição e m todo o caso era o seu dever, e ella
recolheu a g l o r i a do a c t o ; deu-nos quitação...
Q u e seria feito n a h i s t o r i a da lenda m o n a r c h i c a
brasileira si no m e s m o d i a se tivesse p r o c l a m a d o
a R e p u b l i c a e a Abolição ? Gratidão i n f i n i t a pelo
5 3 de m a i o , isso, s i m , l h e devo e deverei sem-
pre; nunca, porém reparação de u m d a m n o q u e
não causei...
XXÍII

PASSAGEM PELA POLÍTICA

A h ! o que não recebi nesses annos de lucta pelos


escravos! C o m o os sacrifícios que p o r vezes ins-
p i r e i , e r a m maiores que os meus ! E u t i n h a a
fama, a palavra, a carreira politica... E certo que
não t i v e outras recompensas, m a s essas e r a m as
m a i s bellas para u m m o ç o , nesse t e m p o ávido
de n o m e a d a e das sensações do t r i u m p h o . E r a o
m e u n o m e que sahia v i c t o r i o s o das urnas n u m a
dessas eleições que e l e c t r i s a v a m os espíritos li-
beraes de todo o paiz, que m e t r a z i a m de longe
as bênçãos dos velhos quakers da Anti-Slavery
Society, e até u m a vez os votos de Gladstone...
Aquelles, porém, que c o n c o r r i a m para a v i c t o r i a
desappareciam na lista a n o n y m a dos esquecidos...
Seus nomes, m e s m o os principaes, nãoechoavam
fora da província... Só, dentre elles, José M a -
r i a n o era conhecido de todo o paiz e reputado o
a r b i t r o eleitoral do Recife. Q u e m conhecia, po-
rém, a Antônio Carlos F e r r e i r a da Silva, então
252 MINHA F O R M A Ç Ã O

simples guarda-livros e m u m a casa do Recife, que


no e m t a n t o fez todas as m i n h a s eleições a b o l i c i o -
nistas ? A verdade é que era elle o e s p i r i t o que
m o v i a t u d o e m m e u f a v o r ; sem elle t u d o t e r i a
c o r r i d o e m o u t r a direcção... Essa é a m e l h o r
prova do caracter espontâneo, n a t u r a l , p o p u l a r ,
das m i n h a s eleições do Recife, o t e r bastado para
fazel-as u m h o m e m c o m o elle, sincero, dedicado,
intelligente, leal, hábil, todo coração e e n t h u -
siasmo sob u m a mascara de frieza e m i s a n -
íhropia, m a s s e m posição, sem f o r t u n a , s e m
stalus político, sem ligação de p a r t i d o , simples
abolicionista, n u n c a apparecendo e m p u b l i c o , e,
além do mais, r e p u b l i c a n o confesso... Essa c i r -
cumstancia só p o r si m o s t r a b e m a sinceridade, a
h u m i l d a d e , a ingenuidade de todo esse m o v i m e n t o
de 1884-1888. Esse f o i o m e u paranympho... Os
m u i t o s que t r o u x e r a m o seu valioso concurso
para o successo da causa c o m m u m , o u para m e u
t r i u m p h o pessoal, c o m o aconteceu c o m tantos,
comprehenderão o m e u s e n t i m e n t o q u a n d o a i n d a
uma vez revelo o segredo da m i n h a relação c o m
o Recife, dizendo que Antônio Carlos, que nada
era e nada q u i z ser, foi o v e r d a d e i r o auetor delia...
N ã o esqueço ninguém, a começar p o r Dantas,
que m e fez quasi forçadamente seguir para o
N o r t e a pleitear u m dos d i s t r i c t o s da província ;
não esqueço de certo o d r . E r m i r i o C o u t i n h o e
o d r . J o a q u i m F r a n c i s c o C a v a l c a n t i , de c u j a
d u p l a r e n u n c i a resultou a m i n h a inesperada elei-
MIXIIA FORMAÇÃO 25o

cão pelo Q u i n t o d i s t r i c t o , u m a semana depois de


a n n u l l a r e m o m e u d i p l o m a pelo P r i m e i r o , passe
eleitoral que s u r p r e h e n d e u a todos na C â m a r a
e e m que Antônio C a r l o s f o i g r a n d e m e n t e aju-
dado pelo seu a m i g o d r . C o i m b r a . T a m b é m
não esqueço José M a r i a n o , cuja lealdade para
c o m m i g o f o i perfeita e m c i r c u m s t a n c i a s que po-
r i a m á p r o v a a emulação e a susceptibilidade de
o u t r o espirito, capaz de inveja o u de ciúmes:
n e m a suave p h y s i o n o m i a , u m p u r o C a r i o Dolce,
da sua m e i g a e a m o r o s a D. O l e g a r i n h a , táo
cedo esvaecida, a q u a l nas vésperas da m i n h a
eleição, que José M a r i a n o fizera delle, c o n t r a o
M i n i s t r o do Império, fez e m p e n h a r jóias suar
para o custeio da lucta, o que só v i m a sabes
no d i a seguinte, q u a n d o o p a r t i d o as resgatou e
hYas foi levar... N ã o esqueço ninguém, n e n h u m
dos chefes e centuriões liberaes, Costa R i b e i r o ,
João T e i x e i r a , Barros Rego, o S i l v a da M a g d a -
lena, F a u s t i n o de B r i t o , os Rochas do Peres :
seria preciso c i t a r cem, duzentos... N e n h u m
t a m b é m desse g r u p o de abolicionistas, que me
recebeu c o m Antônio Carlos : B a r r o s S o b r i n h o ,
João Ramos, Gomes de M a t t o s , João B a r b a l h o ,
N u m a P o m p i l i o , João de O l i v e i r a , M a r t i n s J ú -
n i o r , todos e l l e s ; não esqueço os brilhantes a r t i -
gos de tantos jornalistas distinctos, sobre todos
M a c i e l P i n h e i r o , o a m i g o de Castro Alves, a,us-*-
tero, r u t i l a n t e , genial, figura que l e m b r a o traço
velazquiano, ao m e s m o t e m p o s o m b r i o e l u m i >
15
254 MINHA F O R M A Ç Ã O

noso. E são esses somente os p r i m e i r o s n o m e s


que me v i e r a m á penna. Outros, m u i t o s outros,
estão egualmente presentes ao m e u espirito c o m o
A n n i b a l Falcão e Souza P i n t o , então os chefes
intellectuaes da mocidade.
D u v i d o t e r eu t i d o m a i o r revelação, o u i m -
pressão e x t e r i o r que ficasse a c t u a n d o sobre m i m
de m o d o m a i s p e r m a n e n t e , do que essas elei-
ções de 1884 a 1887, — a de 1889, posso dizer,
feita a abolição, não me interessava quasi. E l l a s
puzeram-me e m contacto d i r e c t o c o m a p a r t e
m a i s necessitada da .população e e m m a i s de
u m a m o r a d a de p o b r e t i v e u m a lição de coisas
tão pungente e tão suggestiva sobre o d e s i n t e -
resse dos que nada possuem, que a só lembrança
do que v i terá s e m p r e sobre m i m o poder o
effeito de u m exame de consciência Eu v i -
sitava os eleitores, de casa e m casa, b a t e n d o
e m algumas ruas a todas as portas... A pobreza
de alguns desses i n t e r i o r e s e a intensidade da
religião p o l i t i c a alimentada nelles fez-me p o r
vezes desistir de i r m a i s longe... D o i a v e r o
q u a n t o custava a essa gente crédula a sua de-
voção p o l i t i c a . D i v e r s o s desses episódios g r a -
varam-se-me no coração. U m a vez, p o r e x e m p l o ,
e n t r e i na casa de u m operário, e m p r e g a d o e m
um dos Arsenaes, p a r a pedir-lhe o v e t o . Cha-
mava-se Jararaca, mas só t i n h a de terrível o
nome. E s t a v a p r o m p t o a v o t a r p o r m i m , t i n h a
s y m p a t h i a pela causa, disse-me elle 5 mas v o -
MIXIIA FORMAÇÃO 255

t a n d o , era d e m i t t i d o , perdia o pão da família ;


t i n h a recebido a chapa de caixão ( u m a cédula
marcada com u m segundo nome, que servia
de signal), e si ella não apparecesse n a u r n a ,
sua sorte estava l i q u i d a d a no m e s m o instante.
« O l h e , sr. d o u t o r », disse-me elle, m o s t r a n d o -
me q u a t r o pequenos, que me o l h a v a m c o m indif-
ferença, na m a i s perfeita inconsciencia de que se
tratava delles mesmos, de q u e m n o dia seguinte
lhes d a r i a de comer... E depois, voltando-se para
u m a creancinha, deitada sobre os buracos de u m
antigo canapé desmantelado : « A i n d a c m c i m a ,
m i n h a m u l h e r h a dois mezes achou essa creança
deante da nossa p o r t a , quasi m o r r e n d o de fome,
r o i d a pelas f o r m i g a s , e hoje é m a i s u m filho que
t e m o s ! » « N o e m t a n t o , estou p r o m p t o a v o t a r
pelo senhor, recomeçava elle, cedendo á sua ten-
tação l i b e r a l , si o senhor me t r o u x e r u m pedido
do b r i g a d e i r o F l o r i a n o Peixoto. » Esse f o i t a l -
vez o p r i m e i r o florianista do paiz... « Pode v i r
por telegramma... E l l e está no engenho, nas
Alagoas... E o que elle me pedir, custe o que
custar, eu não deixo de fazer... T e l e g r a p h e a
elle... » « N ã o , não é preciso, respondi-lhe, vote
c o m o quer o Governo, não deixe de levar a sua
chapa de caixão... não arrisque á fome toda essa
g e n t i n h a que está me olhando... H a de v i r t e m p o
e m que o senhor poderá v o t a r p o r m i m l i v r e -
m e n t e ; até lá, é c o m o si o tivesse feito... N ã o
devo dar-lhe u m pretexto para fazer o que quer,
256 MINHA F O R M A Ç Ã O

i n v o c a n d o a intervenção do seu protector... » E


sahi, i n s t a n d o c o m a m u l h e r , s u p p l i c a n d o , c o m
m e d o q u e ellese arrependesse e fosse v o t a r e m m i m .
E m outras casas o chefe da família estava sem
emprego h a v i a annos p o r causa de u m v o t o dado
ao p a r t i d o da opposição ; a pobreza era c o m -
pleta, quasi a miséria, m a s todos a l l i t i n h a m o
o r g u l h o de soíírer p o r sua lealdade ao partido...
E c o m o entre os liberaes, entre os conservadores.
E r a m coherentes na miséria, na privação de
tudo... Esse espectaculo seria de certo a n i m a d o r
no m a i s alto gráu para o o p t i m i s t a d e s i n t e r e s -
sado ; este j u l g a r i a ter descoberto o r e f u g i o d a
v e r d a d e i r a n a t u r e z a h u m a n a e s c o n d i d a ; para
o candidato, porém, de c u j a causa se t r a t a v a ,
era t e r r i v e l m e n t e pungente s u r p r e h e n d e r assim
a agonia da dignidade... Posso dizer, q u a n t o a
m i m , eu não teria ousado ser m a i s u m d i a pre-
tendente a u m posto que custava t a n t o s o f f r i -
m e n t o , si não fosse p a r a servir a causa de o u t r o s
ainda m a i s infelizes do que essas v i c t i m a s da
altivez do pobre, da paixão e illusão p o l i t i c a do
povo. H o j e , q u e m sabe, eu não teria talvez e m
n e n h u m caso a força, a c o r a g e m de i n s i n u a r aos
bons, aos crédulos, aos ingênuos, sacrifícios pes-
soaes dessa o r d e m e m f a v o r de u m a causa que
não fosse d i r e c t a m e n t e delles. F a r i a c o m todos
o que fiz c o m o b o m J a r a r a c a : aconselharia que
não sacrificassem os seus... M a s a l u c t a pela jus-
tiça é isso mesmo, é o sacrifício de gerações i n -
MINHA F O R M A Ç Ã O 257

teiras pelo d i r e i t o ás vezes de u m só, para res-


gatar a injustiça feita a u m o p p r i m i d o , talvez u m
estranho. De certo, não tenho remorsos n e m me
arrependo... Pessoalmente n e n h u m l u c r o t i r e i de
todas as abnegações que v i e r a m a m i m ; não ca-
pitalisei o s o f f r i m e n t o de tantos desinteressados...
Consola-me nada ter t i r a d o da abolição sinão o
gozo de a l g u m a s impressões de t r i b u n a e de no-
meada, que f o r a m apenas u m a expansão c o m o
q u a l q u e r o u t r a d a mocidade... Graças a Deus,
f a v o r este inestimável, n e n h u m l u c r o m a t e r i a l ,
d i r e c t o o u i n d i r e c t o , me resultou n u n c a das idéas
que m e seduziram e com as quaes seduzi a
outros...
Mas, ainda u m a vez, o que recebi f o i incalculá-
vel. Só Deus mesmo, que vê os sofTrimentos que
se escondem e cujo o r g u l h o é passarem invisíveis
no m e i o da multidão, pôde fazer t a l conta. S o u
u m c a p t i v o do Recife. N i n g u é m que não tenha
a c o m p a n h a d o u m dos candidatos, de casa e m
casa, das areias do B r u m aos canaes dos A f o -
gados, d u r a n t e a c a m p a n h a da abolição, pôde
avaliar o que custou áquelles b a i r r o s de popu-
lação densa, v i v e n d o na m a i s completa d e s t i t u i -
ção de t u d o , o a c o l h i m e n t o que me deram. P a r a
chegar á C â m a r a tive os h o m b r o s dos que não
t i n h a m de seu sinão o t r a b a l h o de suas m ã o s
e que se a r r i s c a v a m , carregados de íamilia, a vêr
fechar-se-lhes no d i a seguinte a o f f k i n a , a ser
despedidos, despejados, depois de me t e r e m dado
258 MIMIA FORMAÇÃO

o voto... 0 que me fica de t o d o esse episódio, o


único de m i n h a carreira p o l i t i c a , c u m s e n t i m e n t o
a c a b r u n h a d o r de fallencia... M e u único a c t i v o
é a gratidão. O passivo é i l l i r m t a d o . . . F o r a m m i -
lhares os que me offereceram t u d o o que t i n h a m ,
isto é, c o m o nada t i n h a m , o que e r a m , o que
p o d i a m ser, e posso dizer que o acceitei e m n o m e
dos escravos. M u i t o s ter-se-ão levantado o u t r a
vez e seguido seu c a m i n h o pelas estradas aber-
tas desde então, m a s que todas parecem condu-
z i r á m e s m a m i r a g e m que abrasa o horizonte.
Terão i d o , o u irão i n d o , coitados, de illusão
e m illusão, de d e s p r e n d i m e n t o e m desprendi-
m e n t o , de lealdade e m lealdade... N ã o i m p o r t a .
0 facto para m i m d o m i n a n t e é que e m u m mo-
m e n t o da m i n h a v i d a pedi e acceitei o sacrifício
absoluto de m u i t o s pela causa q u e eu defendia...
De certo, f o i a m a i s nobre, a m a i s augusta das
causas ; mas o facto é que eu era a l l i o represen-
tante delia, que e m g r a n d e p a r t e a dedicação, o
sacrifício era p o r m i m , c o m o era m e u o t r i u m p h o ,
m i n h a a carreira, m e u o f u t u r o político...

A impressão que me ficou da politica, excepto


esse q u a d r o doloroso do sacrifício ingênuo dos
simples, dos bons, dos que sofTrem, pelos q u e
se elevam, posso dizer que m e lembra um
jardim encantado do O r i e n t e , onde t u d o eram
f o r m a s enganadoras de existências petrificadas,
i m m o b i l i s a d a s , á espera da p a l a v r a que as l i b e r -
MINHA F O R M A Ç Ã O ^

tasse; onde a rosa que n u n c a desbotava expri-


m i a a presença o c c u l t a de u m a paixão que não
q u e r i a perjurar-se ; onde o m á r m o r e a l a b a s t n n o
das fontes significava o corpo i m m a c u l a d o de
que v e r t i a c o n t i n u o o sangue p u r o dos m a r t y -
rios d o a m o r e da verdade ; onde os rouxinóes
que c a n t a v a m , e r a m pares de amantes a quem-
era defeso procurarem-se sob a fôrma humana...
T u d o alli estava suspenso, t r a n s p o r t a d o a o u t r a
escala d o ser, a o u t r a o r d e m de sensibilidade e
de affectos... E r a o m e s m o facto, mas c o m diffe-
rente aspiração, differente consciência, differente
vontade, e para o q u a l p o r isso m e s m o o tempo,
não corria, c o m o n o sonho... A scena p o l i t i c a f o i
t a m b é m para m i m u m p u r o encantamento... Sob
a apparencia de partidos, ministérios, Câmaras,
de todo o systema a que presidia c o m as suas
longas barbas níveas o v e l h o de S. C h r i s t o vão,
o gênio b r a s i l e i r o t i n h a encarnado e disfarçado o
d r a m a de l a g r i m a s e esperanças que se estava
representando no inconsciente nacional, e cá ge-
ração do m e u t e m p o coube penetrar n o vasto
s i m u l a c r o n o m o m e n t o e m que o signal, o toque
redemptor, i a ser dado, e todo elle desabar para
apparecer e m seu logar a realidade h u m a n a , de
repente chamada á vida, restituida á liberdade
e ao movimento... P o r isso não t r o u x e da polí-
tica n e n h u m a decepção, n e n h u m amargor, n e -
n h u m resentimento... Atravessei p o r ella d u r a n t e
a metamorphose.
XXIV

NO VATICANO

Um episódio da abolição, a m i n h a ida a R o m a


e m começo de 1888, contarei a q u i , p o r q u e será
u m elo e m m i n h a v i d a , u m toque insensível de
despertar para partes l o n g a m e n t e a d o r m e c i d a s de
m i n h a consciência.
E u t i n h a sempre l a s t i m a d o a n e u t r a l i d a d e do
clero perante a escravidão, o i n d i f f e r e n t i s m o do
seu contacto c o m ella... P a r a o f i m , porém, a
voz dos bispos se fez o u v i r e m u m m o m e n t o
de inspiração. P o r occasião do j u b i l e u sacer-
dotal de Leão X I I I , elles p u b l i c a r a m , quasi
todos, pastoraes c o n v i d a n d o os seus diocesanos
a offerecer c o m o dádiva ao Santo P a d r e cartas
de liberdade. Esse appello dos prelados offerecia
u m a o p p o r t u n i d a d e ao p a r t i d o a b o l i c i o n i s t a de
p e d i r ao Soberano Pontífice a sua intervenção e m
f a v o r dos escravos, e eu r e s o l v i aproveital-a.

Eu acabára de ser eleito deputado pelo Recife,


MINHA F O R M A Ç Ã O 2G1

batendo o m i n i s t r o do Império, e essa eleição


soou c o m o o dobre da resistência escravista. N o s
poucos dias que r e s t a v a m da sessão p a r l a m e n t a r
de 1887, v i m ao R i o de J a n e i r o t o m a r assento na
Câmara, m a s o objecto p r i n c i p a l da m i n h a v i n d a
ao R i o era conseguir, e consegui, o p r o n u n c i a -
m e n t o m o r a l do exercito c o n t r a a escravidão, a
dissociação absoluta entre a força p u b l i c a e as
funcções dos antigos capitães de m a t t o . P a r a
occupar as férias parlamentares hesitei entre essa
ida a R o m a e u m a v i a g e m aos Estados-Unidos,
onde o a c o l h i m e n t o que eu teria p o r intermédio
dos antigos abolicionistas p o d i a d a r grande r e -
percussão á nossa causa e m todo o c o n t i n e n t e
americano. P r e f e r i n d o i r a R o m a , f u i levado
sobretudo pela idéa de que u m a manifestação do
Santo Padre tocaria o s e n t i m e n t o religioso da
Regente.
Era-me, de certo, p e r m i t t i d o r e c o r r e r ao Papa,
c o m o a qualquer o u t r o oráculo m o r a l que p u -
desse i n s p i r a r a Princeza, fallar-lhe ao ideal e ao
dever. D u r a n t e dez annos não visei a o u t r a coisa
sinão a captar o interesse da d y n a s t i a , e a ac-
c o r d a r o sentimento do paiz. A opinião p u b l i c a
do m u n d o parecia-me u m a a r m a l e g i t i m a de
usar e m u m a questão que era da h u m a n i d a d e
t o d a e não somente nossa. Para a d q u i r i r aquella
arma fui a Lisboa, a Madrid, a Pariz, a Lon-
dres, a Milão, i a agora a Roma, e si a escravi-
dão tivesse tardado ainda a desapparecer, teria
15.
262 MINHA F O R M A Ç Ã O

ido a Washington, a Nova-York, a Buenos-


Aires, a Santiago, a toda parte onde u m a sym-
pathia nova por nossa causa pudesse apparecer,
trazendo-lhe o prestigio da civilisação. Si havia
falta de patriotismo em procurar crear no exte-
r i o r , — tomado não como poder material, mas
como o refiector moral universal, queé para nós,
— uma opinião que nos chegasse depois espon-
taneamente c o m a grande voz da humanidade,
não posso negar que f u i u m grande culpado...
T e r i a sido o mesmo crime que o d e W . L . G a r r i -
son desembarcando na Inglaterra para commovel-a
contra a escravidão nos Estados-Unidos ; o mesmo
erro que o dos delegados dos diversos congressos
internacionaes anti-esclavagistas. A consciência,
a sympathia humana é, porém, uma força que
nunca é prohibido procurar chamar a si e pôr
ao serviço do seu paiz ou da causa que se de-
fende.
Chegando a Londres em Dezembro, em Ja-
neiro parti para R o m a c o m cartas do cardeal
Manning, que a Anti-Slavery Society e Mr. L i l l y ,
da União Catholica ingleza, me t i n h a m obtido.
E m Roma encontrei u m apoio egualmente u t i l , o
do nosso ministro, o sr. Souza Corrêa, antigo col-
lega e amigo meu. Elle poz-me logo em conta-
cto c o m o Cardeal Secretario do Estado, que me
acolheu de modo supremamente benevolo. R o m a
estava repleta de peregrinos p o r causa do j u b i -
leu, no Vaticano o trabalho era enorme: apezar
MINHA F O R M A Ç Ã O 263

cttsso, consegui abrir caminho até o Santo Padre.


E m 16 de J a n e i r o eu apresentava o m e u me-
m o r i a l ao C a r d e a l R a m p o l l a . H o j e eu o teria
r e d i g i d o de o u t r o modo, mas hoje não tenho m a i s
o a r d o r do propagandista... A q u i estão alguns
trechos d'essa supplica-, p o r elles se verá que o
m e u appello não era somente pelos escravos do
B r a s i l , mas p o r toda a raça negra, pela África,
d"onde pouco t e m p o depois de^ia s u r g i r arreba-
t a d a m e n t e a grande f i g u r a do cardeal L a v i g e -
rie :

«Sem excepção quasi, os bispos brasileiros declararam


e m pastoraes, que o m o d o mais d i g n o e mais n o b r e de
celebrar o a n n i v e r s a r i o sacerdotal de Leão X I I I era para
os possuidores d a r e m l i b e r d a d e aos seus escravos e para
os o u t r o s m e m b r o s da c o m m u n h ã o e m p r e g a r e m em
cartas de a l f o r r i a os d o n a t i v o s que quizessem offerecer
ao Santo Padre.
« O appello m o r a l m e n t e u n a n i m e dos nossos prelados
não p o d i a deixar de exercer a m a i o r i n f l u e n c i a sobre o
m o v i m e n t o a b o l i c i o n i s t a , que já arrastava c o m s i g o a
opinião, e d'ahi seguiu-se u m a manifestação religiosa e
n a c i o n a l , que pela sua própria grandeza m o s t r a que a
abolição no B r a s i l não é mais u m a divergência entre
p a r t i d o s políticos... Pela manumissão de multidões de
escravos e m n o m e do Santo Padre, o seu j u b i l e u ficará
sendo a elevação á l i b e r d a d e de centenas de novas famí-
lias brasileiras.
« Dc todos os dons postos aos pés de Leão X I I I o t r i -
b u t o do B r a s i l sob a fôrma d'esses libertos christãos, que
t o m a m de longe parte e m sua glorificação universal,
é talvez a única offerta que terá f e i t o d e r r a m a r ao Santo
Padre l a g r i m a s de r e c o n h e c i m e n t o .
264 MINHA FORMAÇÃO

« E i s ahi, Eminência Reverendissima, a e s p l e n d i d a oc-


casião que se offerece ao S o b e r a n o Pontífice de interce-
der, de i n t e r v i r , de o r d e n a r e m f a v o r dos escravos bra-
sileiros. D'essas cartas de a l f o r r i a depositadas deante de
seu augusto t h o n o , Leão X I I I pôde fazer a semente d a
emancipação universal. U m a p a l a v r a de Sua S a n t i d a d e
aos senhores c a t h o l i c o s n o interesse dos seus escravos,
christãos c o m o elles, não ficaria e n c e r r a d a nos vastos
l i m i t e s do B r a s i l , teria a c i r c u m f e r e n c i a m e s m a da r e l i -
gião, p e n e t r a r i a c o m o u m a m e n s a g e m d i v i n a p o r t o d a a
parte o n d e a escravidão a i n d a existe n o m u n d o .
« O Papa acaba de c a n o n i s a r a P e d r o Claver, o Após-
t o l o dos Negros. N a epocha adeantada da civilisação e m
que vivemos, h a i n f e l i z m e n t e a i n d a escravidão bastante
no m u n d o p a r a que Leão X I I I possa accrescentar aos
seus o u t r o s títulos o de L i b e r t a d o r dos Escravos.
o A l g u n s dos seus illustres predecessores p r o c e d e r a m
p o r vezes c o n t r a a escravidão; t e n d o esta p o r única o r i g e m
o t r a f i c o , está de facto c o m p r e h e n d i d a nas bullas que o
c o n d e m n a r a m , mas os t e m p o s e m que esses i m m o r t a e s
Pontífices f a l l a r a m não são os nossos, a h u m a n i d a d e
então não h a v i a f e i t o esforços p a r a apagar o seu c r i m e
de tantos séculos c o n t r a a África, c u j a raça i n f e l i z parece
destinada a soffrer, sob fôrmas diversas d o m e s m o p r e -
conceito, a fatalidade da sua côr. U m acto de Leão X I I I ,
generoso, a r d e n t e , i n s p i r a d o na espontaneidade de sua
alma, c o n t r a a maldição que pesa sobre aquella raça,
seria u m b e n e f i c i o incalculável.

« N e n h u m p e n s a m e n t o político intervém n a s u p p l i c a
que d i r i j o ao Chefe do m u n d o c a t h o l i c o e m f a v o r d o s
mais infelizes dos seus filhos. N ã o q u e r o sinão pôr o seu
coração de pae e m communicação d i r e c t a c o m o d'elles.
D'esse c o n t a c t o da c a r i d a d e c o m o m a r t y r i o não pôde
j o r r a r sinão a o n d a de misericórdia que eu espero. P o r
cila o j u b i l e u de Leão X I I I será assignalado c o m o u m a
MINHA FORMAÇÃO 265

data da redempção humana em toda a parte onde a raça


negra se possa julgar a orphã de Deus ».

Em 10 de Fevereiro seguinte, Sua Santidade


concedia-me uma audiência particular. Dei conta
d'ella no mesmo dia, escrevendo para o Paiz...
D'entre os papeis velhos que f o r m a m as parcel-
las de minha vida, a expressão é de uma carta do
Imperador, — outro papel velho que é para m i m
uma relíquia, — este ha de ser sempre u m dos
mais preciosos-, a emoção que elle guarda não
poderia ser repetida, e é d'essas que augmentam
á medida que os annos se afastam... P o r isso o
reproduzo agora :

« O Papa e a Escravidão.

« T i v e hoje a honra de ser recebido em audiên-


cia particular pelo Papa, e como essa audiência
me foi concedida com relação ao assumpto polí-
tico que me fez v i r a Roma, não devo demorar a
reconstrução da conversa que tive com Sua Santi-
dade e que eu trouxe do Vaticano tachygraphada,
photographada na memória, F o i uma insigne
benevolência de Sua Santidade conceder-me tal
audiência em u m tempo em que cada u m dos
seus momentos está de antemão empenhado aos
bispos, arcebispos, e catholicos proeminentes,
que lhe v ê m trazer algum d o m por occasiao de
seu jubileu.
« O Papa está constantemente a receber nume-
2£>6 MINHA FORMAÇÃO

rosas depurações influentes de todas as partes d o


m u n d o e dirige-se sempre a ellas c o m u m a allocu-
ção animada. Esse accrescimo de t r a b a l h o ás
suas constantes occupaçõesde cada dia não deixa
m u i t o t e m p o de descanço ao Santo Padre, sobre
q u e m os seus 78 annos, j u n t o s á majestade da
t i a r a , c o m e ç a m a pesar: no e m t a n t o é nessas
horas de repouso que Sua Santidade recebe i n -
d i v i d u a l m e n t e os h o m e n s notáveis do m u n d o ca-
t h o l i c o e conversa c o m elles l a r g a m e n t e sobre o
a s s u m p t o pelo q u a l cada u m se interessa.
« E u , porém, era u m desconhecido e não v i -
nha trazer nada ao Papa, v i n h a só pedir-lhe;
n e n h u m serviço t i n h a prestado n u n c a á E g r e j a ,
e a questão que me occupava, exigia que Sua
Santidade lesse antes u m a série de d o c u m e n t o s
e fizesse a l g u m a meditação sobre a grave r e s -
posta que me ia dar. I s t o era u m esforço, e, nas
c i r c u m s t a n c i a s especiaes do j u b i l e u , a attenção
a m i m prestada pela m a i s alta de todas as i n d i -
v i d u a l i d a d e s h u m a n a s é u m acto a que l i g o
ainda m a i o r apreço e r e c o n h e c i m e n t o p o r saber
que n a m i n h a h u m i l d e pessoa f o i aos escravos
do B r a s i l que Leão X I I I q u i z acolher p a t e r n a l -
m e n t e e fazel-os chegar até ao seu augusto
t h r o n o , como, s y m b o l i c a m e n t e , o m a i s elevado
de todos os logares d e refugio.
« O Papa recebe e m audiência p a r t i c u l a r , sem
t e s t e m u n h a a l g u m a . N i n g u é m está na sala sinão
elle e a pessoa a q u e m a audiência é concedida
MINHA F O R M A Ç Ã O 267

E m uma sala contígua está u m secretario e um


official da guarda, mas uma vez introduzido no
pequeno salão, o visitante acha-se a portas fe-
chadas em presença, somente de Leão X I I I . O
Papa, que lia u m livro de versos latinos quando
fui annunciado, mandou que me assentasse
numa cadeira ao lado da sua e perguntou-me em
que lingua devia faUar-me. E u preferi o francez.
« A impressão que senti todo o tempo da au-
diência, que não durou menos de tres quartos de
hora, não se parece com a sensação causada
pela presença de u m dos grandes soberanos do
mundo. O throno brasileiro é uma excepção.
Nunca no Brasil houve homem tão accessivel
como o Imperador, nem casa tão aberta como
S. Christovão. Mas os monarchas em geral são
educados e crescem, porque a sua condição é su-
perior á do resto dos homens, na crença de que
são melhores do que a humanidade. A todas as
vantagens do Papado como instituição monar-
chica, notavelmente a electividade, é preciso ac-
çrescentar essa superioridade do Papa sobre os
outros soberanos, que estes nascem, vivem c
m o r r e m no throno, e que os Papas só chegam á
realeza nos últimos annos da vida, isto é, que
vivem toda a vida como homens e no throno não
fazem quasi sinão coroar a s^ua carreira. Esse
caracter humano da realeza pontifícia é a condi-
ção principal de seu prestigio, assim como a
lectividade é a condição da sua duração i l l i m i -
-68 MINHA FORMAÇÃO

tada e o espirito religioso a d a sua sclecção mo-


ral. E u d i r i a m e s m o que a sós c o m o P a p a a
impressão é antes a do confessionário que a dos
degráus do t h r o n o , si ao m e s m o t e m p o não hou-
vesse na f r a n q u e z a e na reserva de Sua Santidade
a l g u m a coisa que exclue desde o p r i n c i p i o a idéa
de que alli esteja o confessor interessado e m des-
c o b r i r o f u n d o da a l m a do seu i n t e r l o c u t o r .
A impressão d o m i n a n t e é, e n t r e t a n t o , de c o n -
fiança absoluta, c o m o s i , entre aquellas q u a t r o
paredes, t u d o o que se pudesse d i z e r ao S u m m o
Pontífice tomasse caracter de u m a conversa i n -
t i m a c o m Deus, de q u e m estivesse a l l i o i n t e r -
prete e o m e d i a n e i r o .
« A s palavras que c a h i r a m dos lábios do Santo
Padre, gravaram-se-me na memória, e não creio
que se a p a g u e m mais, n e m creio que eu deixe
de o u v i r a v o z e o t o m f i r m e c o m que f o r a m
ditas. O Papa começou n o t a n d o que elle me ha-
v i a d e m o r a d o m u i t o t e m p o e m R o m a , mas que
e r a m n u m e r o s o s os seusdeveres nesse m o m e n t o ,
ao que respondi que o m e u t e m p o não p o d i a ser
m e l h o r e m p r e g a d o do que e m esperar a p a l a v r a
de Sua Santidade. — « E u ia aos Estados-Uni-
dos, disse eu a Leão X I I I , onde está a m a i o r
parte da raça negra da A m e r i c a ; m a s q u a n d o os
nossos bispos começaram a f a l l a r c o m d e l i b e r a -
ção e de c o m m u m accordo a propósito do j u b i -
leu de Vossa Santidade e a p e d i r a emancipação
dos escravos c o m o o m e l h o r e m a i s alto m o d o
MINHA F O R M A Ç Ã O 269

de o s o l e m n i s a r n o B r a s i l , pensei que devia an-


tes de t u d o v i r a R o m a p e d i r a Vossa Santidade
que completasse a o b r a daquelles prelados, con-
d e m n a n d o , e m n o m e da Egreja, a escravidão.
C o n s e g u i n d o isto de Vossa Santidade, nós, abo-
licionistas, teríamos conseguido u m p o n t o de
apoio n a consciência catholica do paiz, que seria
da m a i o r v a n t a g e m para a realisação completa
da nossa esperança.»
« Sua Santidade respondeu-me: — Ce que vous
avez à cozur, VEglise aussi Ta à caiur. A escra-
vidão está c o n d e m n a d a pela E g r e j a e já devia h a
m u i t o t e m p o t e r acabado. O h o m e m não pôde
ser escravo do h o m e m . T o d o s são egualmente
filhos de Deus, des enfanis de Dieu. Senti-me
v i v a m e n t e tocado pela acção dos bispos, queap-
p r o v o completamente, p o r t e r e m de accordo
c o m os catholicos d o B r a s i l escolhido o m e u j u -
b i l e u sacerdotal para essa grande iniciativa...
É preciso agora aproveitar a i n i c i a t i v a dos bis-
pos para apressar a emancipação. V o u f a l l a r
nesse sentido. S i a encyclica apparecerá n o mez
que v e m o u depois de Paschoa, não posso ainda
dizer...
« — O que nós quizeramos, observei, era que
Vossa Santidade fal lasse de m o d o que a sua v o z
chegasse ao B r a s i l antes da a b e r t u r a do P a r l a -
mento, que t e m logar e m M a i o . A p a l a v r a de
Vossa Santdiade exerceria a m a i o r influencia no
a n i m o do governo c da pequena parte do paiz
270 MIXIIA F O R M A Ç Ã O

que não quer ainda acompanhar o m o v i m e n t o


nacional. Nós esperamos que Vossa Santidade
diga uma palavra que prenda a consciência de
todos os verdadeiros catholicos.
« — Ce mot je le dirai, vous pouvez en êtrc sür,
respondeu-me o Papa, e quando o Papa tiver
fatiado, todos os catholicos terão que obede-
cer. »
« Estas ultimas palavras o Papa m'as repetiu
duas ou tres vezes, sempre na forma impessoal;
não: — quando eu tiver faliado, mas sempre: —
quando o Papa tiver faliado.
« Acredito ter sido absolutamente leal para
com os meus adversários na exposição que fiz
em seguida á Sua Santidade da marcha da
questão abolicionista no Brasil. O Papa fez-rme
diversas perguntas, a cada uma das quaes res-
pondi com a completa lealdade que devia p r i -
meiro ao Papa, .e depois aos meus compatrio-
tas. Descrevi o m o v i m e n t o abolicionista no Bra-
sil, como tendo-se tornado proeminentemente
u m m o v i m e n t o da própria classe dos proprietá-
rios, e dei, como devia, e é justo, aos operários
desinteressados da u l t i m a hora a maior parte
na solução definitiva do problema, que sem a
sua generosidade seria insoluvel.
« Referi-me a brilhante acção do Sr. Prado e
ao eífeito m o r a l do nobre pronunciamento do
Sr. Moreira de Barros como factos do maior al-
cance. Expuz como não havia na historia do
MINHA F O R M A Ç Ã O 27 í

m u n d o e x e m p l o de h u m a n i d a d e de u m a grande
classe egual á desistência feita pelos senhores
brasileiros dos seus títulos de propriedade es-
crava. Disse que essa era a p r o v a real de que a
escravidão no B r a s i l t i n h a sido sempre u m a i n -
stituição estrangeira, alheia ao espirito nacio-
nal, o que é ainda c o n f i r m a d o , (isto não disse ao
Papa), pelo facto de que os estrangeiros no Bra-
sil f o r a m , e são ainda hoje, de toda a c o m m u -
nhào, os que menos s y m p a t h i a m o s t r a r a m ao
m o v i m e n t o l i b e r t a d o r . Q u a n t o á Família Impe-
r i a l , repeti ao S u m m o Pontífice que o que h a
feito e m nossa lei a f a v o r dos escravos, é devido
á i n i c i a t i v a e imposição do I m p e r a d o r , ainda
que seja pouco. « — U m a dynastia, accrescen-
tei, tem interesses materiaes que dependem do
apoio de todas as classes e não pode affrontar a
m á vontade de n e n h u m a , m u i t o menos d a mais
poderosa de todas. O Papado, «porém, não de-
pende de n e n h u m a classe, p o r isso colloca-se no
p o n t o de v i s t a da m o r a l absoluta, que n e n h u m a
dvnastia pode t o m a r s e m destruir-se ». F a l l a n d o
do actual Presidente do Conselho, disse a Sua
Santidade que elle era u m h o m e m a q u e m a
Egreja no B r a s i l devia m u i t o p o r ter sido elle o
p r i n c i p a l auetor da a m n i s t i a , que poz t e r m o ao
confiicto de 1873, mas que, nessa questão, não
tínhamos m o t i v o para suppôr que elle quizesse i r
além d a lei actual, o que era p o s i t i v a m e n t e con-
t r a r i o ao desejo u n a n i m e da nação. — « E u , po-
272 MINHA F O R M A Ç Ã O

rém, accrescentei, não peço a Vossa Santidade u m


acto político, ainda que as conseqüências políticas
que a nação ha de s e m d u v i d a t i r a r do acto que
i m p l o r o , sejam incontestáveis. F e l i z m e n t e , Vossa
Santidade está e m u m a posição donde não vê os
partidos, mas só os princípios. O que nós que-
remos é u m m a n d a m e n t o m o r a l , é a lição d a
Egreja sobre a l i b e r d a d e do h o m e m . N ã o h a go-
v e r n o n o m u n d o que possa t e r a pretenção de
que o Papa, ao estabelecer u m p r i n c i p i o de mo-
r a l u n i v e r s a l , pare para c o n s i d e r a r si esse p r i n -
cipio está de accordo o u e m confücto c o m os
interesses políticos d'esse governo. A g o r a m e s m o
u m sacerdote b r a s i l e i r o f o i preso 'por açoitar
escravos. N ó s , a b o l i c i o n i s t a s , p o r t o d a p a r t e
açoitamos escravos. F a z e m o s o que f a z i a r l i os
bispos da média edade c o m os servos. O s e n t i -
m e n t o da nação, isto posso a f f i r m a r a Vossa
Santidade, é unanime, e a p a l a v r a do chefe da
E g r e j a não e n c o n t r a r i a ninguém p a r a d i s p u t a l - a . »
« O Papa então repetiu-me que a sua encyclica
a b u n d a r i a nos s e n t i m e n t o s d o E v a n g e l h o , que a
causa era tão sua c o m o nossa, e que o g o v e r n o
m e s m o v e r i a que era de b o a p o l i t i c a reconhecer
a liberdade a que t o d o o filho de Deus t e m d i -
reito pelo seu próprio nascimento, e que o P a p a
f a l l a r i a ao m e s m o t e m p o que da liberdade, da
necessidade de educar r e l i g i o s a m e n t e essa massa
de infelizes, p r i v a d o s até hoje de instrucção
moral.
MINHA F O R M A Ç Ã O "-73

e O cardeal C z a c k i m e t i n h a f a l l a d o egual-
mente n o dever de d a r educação m o r a l aos l i -
bertos, e n'esse sentido parece que na A m e r i c a
do N o r t e e nas A n t i l h a s o c a t h o l i c i s m o vae ten-
t a r u m g r a n d e esforço. S y m p a t h i s a n d o c o m o
p r i n c i p i o da nossa p r o p a g a n d a abolicionista e
p o n d o e m relevo a responsabilidade que nós,
abolicionistas, havíamos c o n t r a h i d o , o cardeal
C z a c k i p o z o dedo n o que é a ferida da raça ne-
gra, a i n d a m a i s degradada talvez do que o p p r i -
m i d a , e, do p o n t o de vista catholico, m e disse
que não h a v i a o u t r o m e i o para fazer d'esses es-
cravos de h o n t e m h o m e n s moralisados, sinao
espalhar l a r g a m e n t e entre elles a educação r e l i -
giosa que não t i v e r a m nunca. C o m o respondi
ao cardeal, assim respondi ao Papa. « — A n t e s
de começar o m o v i m e n t o abolicionista e m 1879,
disse eu ao S u m m o Pontífice, o p a r t i d o l i b e r a l
a que pertenço, e m conseqüência da lucta c o m os
bispos e m 1873, l u c t a sobre a qual os conserva-
dores h a v i a m p r o n u n c i a d o a a m n i s t i a , achava-
se p r i n c i p a l m e n t e v o l t a d o para medidas de secu-
larisação dos actos da v i d a civil,quasi todos ainda
confiados entre nós á Egreja. C o m essas m e d i -
das desenvolveu-se m e s m o u m estado de guerra
entre o l i b e r a l i s m o e a Egreja. Desde que come-
çou o m o v i m e n t o abolicionista, entretanto, mor-
r e r a m todas as outras questões, e l i t t e r a l m e n t e
ha nove annos não se t e m tratado de o u t r a coisa
no paiz. Estabeleceu-se então u m a verdadeira
274 MINHA FORMAÇÃO

trégua de Deus entre h o m e n s de todos os m o d o s


de sentir e pensar a respeito das outras ques-
tões. O p r i m e i r o que na C â m a r a elevou a v o z
para pedir a abolição i m m e d i a t a , o deputado Je-
r o n y m o Sodré, é u m catholico p r o e m i n e n t e . O
co-proprietario do j o r n a l a b o l i c i o n i s t a de Per-
n a m b u c o , que sustenta a m i n h a p o l i t i c a , é o
presidente de u m a sociedade cathòlica, o Sr. Go-
mes de M a t t o s . Os bispos e os a b o l i c i o n i s t a s
t r a b a l h a m agora de c o m m u m accordo. Essa tré-
gua t e m d u r a d o até hoje sem perturbação, e es-
pero que d u r e p o r m u i t o t e m p o ainda. A b o l i d a a
escravidão, resta p r o t e g e r o escravo l i v r e . Nesse
campo nada e m nossas leis i m p e d e que a E g r e j a
entre e m concurrenciá para obter a clientela d a
raça que t i v e r ajudado a resgastar. N ã o seremos
nós, a b o l i c i o n i s t a s , que h a v e m o s de i m p e d i r a
approximação entre os novos cidadãos e a única
religião capaz de os c o n q u i s t a r para a civilisação.
A s vistas do p a i z voltar-se-ão para as o u t r a s
questões do m e l h o r a m e n t o da condição do povo,
da creação da v i d a local, e m que pôde e deve con-
t i n u a r a trégua, o u m e l h o r , a alliança. S i a
E g r e j a conseguir recommendar-se ao r e c o n h e c i -
m e n t o da raça escrava, c o n c o r r e n d o p a r a o seu
resgate, os abolicionistas p o r certo não lhes hão
de aconselhar a ingratidão. »
« 0 Papa ouviu-me t o d o o t e m p o c o m a m a i o r
s y m p a t h i a e justificou-me de t e r pedido m a i s d o
que o cardeal M a n n i n g julgára razoável q u e eu
MIXIIA F O R M A Ç Ã O 275

pedisse. S u a Eminência, c o m effeito, aconselhou-


m e a p e d i r ao Papa a repromulgação das B u l l a s
de alguns dos seus antecessores e eu pedi u m acto
pessoal de Leão X I I I . — « A s c i r c u m s t a n c i a s
m u d a m , disse-me o Papa, os t e m p o s não são os
m e s m o s 5 q u a n d o essas B u l l a s f o r a m p u b l i c a d a s ,
a escravidão era forte no m u n d o , hoje ella está
f e l i z m e n t e acabada. »
« — O acto de Vossa Santidade, disse-lhe eu,
t e r m i n a n d o , será u m a pagina da h i s t o r i a da c i v i -
lisação christã que illustrará o seu pontificado...
Sua encvclica levantar-se-á tão alto aos olhos do
m u n d o , d o m i n a n d o o m o v i m e n t o da abolição
c o m o a cúpula de S. P e d r o sobre a C a m p a n h a
Romana. »
« A h i está m a i s ou menos r e p r o d u z i d a a longa
audiência p a r t i c u l a r que Leão X I I I m e fez a ex-
celsa h o n r a de conceder-me, e que Sua Santidade
t e r m i n o u c o m u m a benção especial para a causa
dos escravos. E u antes h a v i a enviado ao s u b -
secretário de Estado, m o n s e n h o r M o c e n n i , a re-
cente pastoral do bispo do Rio, sentindo não ter
p o d i d o e n c o n t r a r os números do Paiz e m que
appareceram as dos o u t r o s prelados. A s s i m
m e s m o tive a f o r t u n a de achar e m retalho as
pastoraes dos bispos de M a r i a n n a , do R i o Gran-
de do S u l e do arcebispo da Bahia, que todas
f o r a m enviadas ao cardeal R a m p o l l a . A admirá-
vel carta do bispo de D i a m a n t i n a , á qual espe-
cialmente me referi, quando fallei ao Papa, não
276 MINHA F O R M A Ç Ã O

a pude encontrar. C o m a encyclica p r o m e t t i d a e


}á annunciada p o r t o d a a E u r o p a , essas p a s t o -
raes f o r m a r i a m u m bello l i v r o de f r a t e r n i d a d e
humana.
« A d e m o r a que t i v e e m R o m a impede-me de
v o l t a r pelos Estados-Unidos, porque não teria
m a i s t e m p o de preencher qualquer dos fins c o m
que ia á grande R e p u b l i c a . M a s estou satisfeito,
contente. A p a l a v r a do P a p a terá para todos os
catholicos m a i o r influencia do que p o d e r i a t e r
qualquer o u t r a manifestação e m f a v o r dos escra-
vos. N e n h u m a consciência recusará ao chefe da
religião o d i r e i t o de pronunciar-se sobre u m facto
c o m o a escravidão, que estabelece u m v i n c u l o en-
tre o senhor e o escravo, equivalente a entrelaçar-
lhes para sempre as almas eas responsabilidades.
N a m a n e i r a de se e x p r i m i r de Leão X I I I não
vi a m i n i m a vacillação, a mais leve p r e o c c u p a -
ção de t o r c e r o ensinamento m o r a l para adaptal-
o ás c i r c u m s t a n c i a s políticas. V i tão somente a
consciência m o r a l b r i l h a n d o , c o m o u m p h a r o l ,
c o m u m a l u z indifferente aos naufrágios dos que
não se g u i a r e m p o r ella.
« Roma, 10 de Fevereiro de 1888. »

Como o cardeal Czaki tinha tido razão de di-


zer que eu ia levar ao Papa u m v e r d a d e i r o bon-
bonl... I n f e l i z m e n t e , a d i p l o m a c i a envolveu-se na
questão, o ministério conservador alarmou-se
com a intenção manifestada pelo Papa, e conse-
MINHA F O R M A Ç Ã O 277

g u i u d e m o r a r a Encydica... A c u r t a d e m o r a foi
bastante para ella só apparecer depois de abolida
a escravidão n o Brasil... E n t r e a queda de Cote-
gipe e a abolição o espaço f o i tão pequeno que a
b>ella o b r a de Leão X I I I só v e i u a ser p u b l i c a d a
q u a n d o não h a v i a m a i s escravos no B r a s i l . A
benção, porém, d o Santo P a d r e á nossa causa,
a p a l a v r a que elle i a p r o f e r i r , essas desde os fins
de F e v e r e i r o , a i n d a sob o gabinete Cotegipe, o
paiz as conheceu pelas m i n h a s revelações... A
surpreza da emancipação t o t a l foi tão agradável
a Leão X I I I que, c o m o p o s t - s c r i p i u m á sua carta
l a p i d a r i a sobre a escravidão, elle m a n d o u á P r i n -
ceza I m p e r i a l a Rosa de O u r o .
M e u papel f o i , c o m o se v i u , m u i t o h u m i l d e .
S i m p l e s p o r t a d o r p a r a o cardeal R a m p o l l a e
m o n s e n h o r M o c e n n i das cartas de apresentação
do cardeal M a n n i n g , eu nãofiz,apresentando a
Leão X I I I as pastoraes dos nossos bispos sobre
o seu j u b i l e u , sinão offerecer-lhe u m assumpto
a todos os respeitos d i g n o d'elle... A i m a g i -
nação do Papa abrangeu logo toda a grandeza
do serviço que elle podia prestar á h u m a n i d a d e ,
o t h e m a i n c o m p a r a v e l p r o p o r c i o n a d o ás suas
lettras... S i de a l g u m a coisa me posso lísonjear
é de t e r ligado como u m a aspiração c o m m u m á
causa dos escravos no B r a s i l a causa da África...
Poucos mezes depois do p r o n u n c i a m e n t o que
suppliquei ao Santo Padre, chegará a R o m a o
cardeal L a v i g e r i e e o Papa o investirá n a
16
278 MINHA F O R M A Ç Ã O

cruzada africana que foi a nobre coroação da


sua vida... E m uma carta da Anti-Slavery So-
cieíy Mr. Charles Allen fez-me a honra de dizer
que f u i eu que preparei junto ao Papa o cami-
nho para Mgr. Lavigerie... Nos discursos do
grande apóstolo d'África, no que elle disse tan-
tas vezes ex abundantia cordis, o que se vê é
que, quando elle chegou a Roma, Leão X I I I es-
tava possuído, dominado, inflammado do fervor
anti-esclavagista... A parte que me coube em tudo
isso foi apenas a de ser quem, — na occasião do
seu jubileu sacerdotal e da canonisação de São
Pedro Claver, occasião tão favorável para o de-
sabrochar d'essa e de outras generosas i n i c i a t i -
vas e aspirações de r e i n a d o , — t e v e a fortuna de
attrahir o grande espirito de Leão X I I I , dis-
putado por tantas solicitações, para o pro-
blema que mais o podia fascinar

Foi bem forte a impressão que eu trouxe


de Roma... Nos fins de A b r i l , não se sabendo
ainda até onde iria a reforma annunciada pelo
novo gabinete João Alfredo, assisto á festa da
libertação em massa de u m a fazenda do Para
hyba e a lembrança que me occorre é a das
maravilhas do Vaticano... Que emoções essas da
abolição! Como tudo se fundia em u m a mesma
nota, mysteriosa e i n t i m a , como si tivéssemos
em nós nesses momentos o coração dos escra-
vos em vez do nosso próprio! E este o trecho em
MINHA F O R M A Ç Ã O 279

que descrevi aquella emoção da B e l l a Alliança...


« H a tres mezes t i v e a f o r t u n a de assistir á
missa do Papa na Capella S i x t i n a . Nesse t e m p o
eu não esperava que a h o r a da abolição esti-
vesse tão prestes a soar, e t i n h a i d o pedir a
Leão X I I I , n a desconfiança de que a Regên-
cia era u m v i c e - r e i n a d o e o v i c e - r e i n a d o da
escravidão, u m a p a l a v r a que movesse o s e n t i -
m e n t o religioso da Princeza... C o m o eu estava
enganado e q u e m não estava a começar pelo
próprio Presidente do Conselho ! D u r a n t e
aquella missa, e m que t u d o para m i m era novo,
e q u a n d o o v u l t o do P a p a entre os cardeaes
p r e n d i a todas as attenções, p o r entre a m u s i c a
da S i x t i n a , o u v i n d o a q u a l sente-se que a v o z
v

h u m a n a é o único de todos os i n s t r u m e n t o s que


sobe além da t e r r a , eu pelo menos não podia
t i r a r os olhos d'esse tecto, que é a m a i o r pagina
do bello escripta pelo homem... Que o p p o r t u n i -
dade única a de t a l c e r i m o n i a e de t a l acompa-
n h a m e n t o para reler a b i b l i a de Miguel-Angelo
e decorar o seu poema d a creação!... Pois bem,
a missa da B e l l a Alliança renovou-me a emoção
i n f i n i t a da Sixtina... H a v i a n'ella outros tantos
elementos de grandeza combinados... N ã o h a v i a
o S u m m o Pontífice, n e m o coro angélico, n e m
os frescos de Miguel-Angelo... Estava a l l i , p o -
rém, o representante do P a p a abençoando e m
n o m e d'elle a reconciliação das duas raças; ha-
via l a g r i m a s em todos os olhos, a anciedade,
280 MINHA F O R M A Ç Ã O

egualmente apprehensiva para todos, os que i a m


dar e os que i a m receber a liberdade, e para nós
a mais suave de todas as sensações possíveis : a
de vêr recuar as trevas da escravidão do rosto
de uma raça, esse grande fiat lux, vêr o barro
hontem informe, o escravo, accordar homem,
como o Adão de Miguel-Angelo, na claridade
matinal da creação... O pensamento voltava
quasi quatro séculos atraz, á primeira missa
dita no Brazil, quando elle t o m o u o nome de
T e r r a de Santa-Cruz... Quatro séculos para a
cruz recuperar o seu erdadeiro sentido de sym-
bolo da redempção e para a missa significar o
sacrifício de Deus pelo homem!... Vendo deante
d'elles aquella a quem i a m dever a liberdade, e
olhando para a Senhora da Piedade no nicho
do altar, os escravos na confusão dos seus dois
grandes reconhecimentos deviam ter sentido os
rubis, como lagrimas de sangue, do resplendor
da m ã e de Deus, baixar u m momento sobre a
cabeça da sua redemptora ajoelhada ... » 1

i. A senhora a quem me referia era uma compatriota


nossa, que casara e m P a r i z c o m u m j o v e n e elegante
russo. H a delia u m admirável r e t r a t o e m t a m a n h o n a t u -
r a l , o b r a de R i c h t e r . A suavidade e doçura de M a d a m e
Haritoíf, a tão p o p u l a r D o n a N i c o t a , emprestavam-lhe u m a
belleza t o d a de expressão, q u e c o m seus l o n g o s cabellos
pretos, seus grandes o l h o s l u m i n o s o s , sua tez de u m mo-
reno mate, e a graça de seu c o r p o , t i n h a para os estran-
geiros u m caracter especial, d i s t i n e t a m e n t e b r a s i l e i r o .
MINHA F O R M A Ç Ã O 281

A h ! os tempos e m que se escrevia a s s i m ! e m


que o coração, e só o coração, era que fazia o
dictado, e tão rápido que a penna não o p o d i a
acompanhar. P a r a m i m teria sido u m a d i m i n u i -
ção sensível da emoção h u m a n a que a c a m p a n h a
a b o l i c i o n i s t a m e causou, si eu não tivesse essa
p a g i n a da m i n h a i d a a R o m a p a r a reler, esse en-
c o n t r o c o m n o s c o da s y m p a t h i a e do f e r v o r de
Leão X I I I . P o r q u e tão tarde t i v e eu a idéa
d'esse appello, que d e v e r a talvez l e r sido o p r i -
m e i r o ? Q u e r o crer que na abolição, tão súbita
f o i ella, t u d o v e i u a tempo... A lembrança
d'essa v i s i t a a R o m a seguida tão de perto d o
f i m da escravidão e da queda da m o n a r c h i a ,
que era o t e r m o forçado da m i n h a c a r r e i r a po-
l i t i c a , não p o d i a deixar de crescer no v a z i o da
m i n h a tarefa acabada e da i m p o s s i b i l i d a d e de
a s s u m i r o u t r a equivalente... U m a n o v a v i d a vae
d a t a r d'aquellas impressões religiosas assim assi-
m i l a d a s no a r d o r de u m c o m b a t e que devia en-
cerrar e r e s u m i r a m i n h a v i d a militante... U m a
n o v a camada de m i n h a formação desenha-se
insensivelmente desde esse m e u momentâneo
contacto c o m Leão X I I I , — o u p o r o u t r a a ca-
m a d a p r i m i t i v a começa a descobrir-se depois de
perdido p o r tão longos annos o veio de o u r o da
infância... Q u a l q u e r que seja a verdade theolo-
gica, acredito que Deus nos levará de a l g u m
m o d o e m conta a u t i l i d a d e p r a t i c a de nossa
existência, e e m q u a n t o o c a p t i v e i r o existisse, es-
16.
282 MIXIIA FORMAÇÃO

t o u c o n v e n c i d o de que não eu poderia d a r m e l h o r


emprego á m i n h a do que combatendo-o. Essa
v i d a exterior, eu sei b e m , não pode s u b s t i t u i r a
vida i n t e r i o r , m e s m o q u a n d o o e s p i r i t o de c a r i -
dade, o a m o r h u m a n o , nos animasse sempre em
nosso t r a b a l h o . A satisfação de realisar, p o r m a i s
humildequesejaaespheradecadaum, umaparcella
de b e m para o u t r e m , d e a j u d a r a i l l u m i n a r c o m u m
raio, q u a n d o não fosse sinão de esperança, v i d a s
escuras e subterrâneas c o m o e r a m as dos escra-
vos, é u m a alegria intensa que apaga p o r si só a
lembrança das privações pessoaes e preserva d a
inveja e da decepção. Essa alegria t o d o s que t o -
m a r a m parte n o m o v i m e n t o a b o l i c i o n i s t a elevem
tel-a sentido p o r egual. E m q u a n t o a l u c t a c o n t r a
a escravidão durasse, penso que a religião não
sahiria para m i m d o estado latente de acção h u -
manitária... M u i t a s vezes mesmo, a religião não
consegue desprender-se da tarefa ordinária da
v i d a , e é somente q u a n d o essa tarefa acaba o u se
i n t e r r o m p e que as perquisições i n t e r i o r e s come-
çam, que se q u e r penetrar o m y s t e r i o , que se sente
a necessidade de u m a crença que explique a v i d a .
Até lá basta o próprio papel que d e s e m p e n h a m o s ;
o c r i t i c o não apparece sob o a c t o r ; a d u v i d a não
distráe da acção e x t e r i o r c o n t i n u a . E m q u a n t o
se é u m simples i n s t r u m e n t o , p o r pequeno q u e
seja o c i r c u l o traçado e m t o r n o de nós, a i m a -
ginação se encerra nelle, e a v i d a i n t e r i o r não
se i n s i n u a siquer á consciência... A acção é u m a
MINHA FORMAÇÃO 283

distracção. E só acabada ella que e m certa or-


d e m de espíritos as affinidades superiores se p r o -
nunciam... Q u e r o crer, p a r a os que succum-
b e m nessa phase, que o beneficio que elles pos-
s a m fazer e l i m i n e parte da i m p u r e z a que carre-
g a m e m sua inconsciencia m o r a l , ou religiosa,
— o que é o mesmo, e aida peior... N ã o posso
hoje pensar na m i n h a i d a a R o m a e m 1888 sem
sentir que então g e r m e n s esquecidos nos p r i m e i -
ros sulcos da m e n i n i c e r e v i v e r a m , para g e r m i -
nar m a i s tarde ao calor de outras influencias...
N ã o f u i e m vão a R o m a , do p o n t o de v i s t a do
m e u s e n t i m e n t o religioso...
XXV

o BAR7VO D E TAUTPHCEUS

Nenhuma influencia singular actuou sobre


m i m m a i s d o que a de m e u mestre, o v e l h o ba-
rão de T a u t p h c e u s . C o m sua imaginação t o d a
t o m a d a pela h i s t o r i a , elle c o s t u m a v a nos annos
de m e u ardente l i b e r a l i s m o chamar-me A l c i -
biades. C e r t a m e n t e elle realisava para m i m o
t y p o de Sócrates. S i não trazia a mascara de S i -
leno emprestada ao grande atheniense, m e s m o
physicamente, sobretudo para a velhice, elle
t i n h a m u i t o s dos traços socraticos : a c o r a g e m
f r i a , a c a l m a imperturbável, a resistência á f a -
diga, o gosto da palestra, d a conversação i n t e l l e -
c t u a l , da c o m p a n h i a dos moços, a completa
abstracção de s i , a modéstia, a alegria de v i v e r
c o m o espectador d o U n i v e r s o , cedendo sempre
t o d a v i a aos o u t r o s o m e l h o r logar, o forte espi-
r i t u a l i s m o , a indiíferença pelo ridículo, o res-
peito da o r d e m social, q u e m quer que a en-
carnasse. Sua m o c i d a d e é u m t a n t o legendária
MINHA F O R M A Ç Ã O 285

ainda, e nada seria m a i s interessante do que


a p u r a r os factos a respeito d'ella. O que o u v i p o r
vezes a m e u irmão Sizenando, — esse t i n h a p o r
T a u t p h c e u s u m a admiração enthusiastica e con-
v i v e u c o m elle m u i t o m a i s i n t i m a m e n t e do que
eu, a q u e m e m compensação elle deu o m e l h o r
de seus últimos dias, suas derradeiras tardes, —
foi que, j o v e n , T a u t p h c e u s , antes forçado a expa-
triar-se da B a v i e r a p o r m o t i v o revolucionário,
acompanhára o r e i O t h o n á Grécia, depois viera
v i v e r e m P a r i z , nas vizinhanças do anno 30, e fre-
qüentava a pleiade l i b e r a l do Journal des Débats
até que e m i g r o u para o B r a z i l .
M u i t o myope, usava de u m v i d r o quadrado, que
pelo h a b i t o c o n t i n u o da l e i t u r a c o m o que se c o l -
locava automaticamente-, e a i n d a menos do que
o m o n o c u l o , deixava elle o charuto... Sempre c o m
ura grosso v o l u m e allemão debaixo do braço, ca-
m i n h a v a horas inteiras no m e s m o andar, alheio
ao m u n d o exterior... E r a u m h o m e m que sabia
t u d o . Sua conversação era inexgottavel, e r a r o elle
m e s m o a d i r i g i a . O a s s u m p i o l h e era i n d i f f e -
rente, e até o f i m , annos seguidos, d i a após dia,
nunca elle se e n c o n t r o u sinão c o m interlocutores
curiosos de ouvil-o sobre os pontos que mais
lhes interessavam. E r a l i t t e r a l m e n t e c o m o u m
d i c c i o n a r i o que a cada instante alguém m a n u -
seasse, o u u m a encyclopedia que u m abrisse no
a r t i g o B a b y l o n i a , logo o u t r o s nos artigos Invasão
dos Bárbaros, A d a m S m i t h , L u t h e r o , H i e r o g l y -
280 MIXIIA FORMAÇÃO

phos, L o g a r i t h m o s , A m a z o n a s , A r c h i t e c t u r a G o -
t h i c a , L i b e r d a d e de T e s t a r , Raizes Gregas, Papel-
Moeda, C u l t u r a s T r o p i c a e s , A l b e r t o Dürer, Divina
Comedia, ao acaso. E r a somente f e r i r a tecla,
pôr a p e r g u n t a n o apparelho, e esperar o desen-
r o l a r da resposta, c o m o a que daria o L e x i c o n
de Meyer, o u a H i s t o r i a Universal de César
C a n t u . E l l e fallava de u m m o d o u n i f o r m e , sem
emphase, sem c o l o r i d o , sem expressão m e s m o ,
mas era u m j o r r a r sem f i m de sciencia, de eru-
dição, c o m o si n'aquelle m e s m o d i a tivesse es-
tado a estudar o assumpto. Nada mais dif-
ferente da ostentação f r i v o l a de sciencia com
que t a n t a gente se apraz e m d e s l u m b r a r o ou-
v i n t e que lhe ofTerece i n a d v e r t i d a m e n t e u m as-
s u m p t o ao seu alcance, do que essas dissertações
scientificas, up to date, a que T a u t p h c e u s se
entregava perante os seus discípulos, que todos
o f i c a v a m sendo, para sempre, j o r n a l i s t a s , pro-
fessores, ministros de Estado que fossem...

A abundância de idéas geraes, de pontos de


vista suggestivos, de matéria p a r a reflexão e m
sua conversa, era notável. Póde-se dizer que esse
h o m e m que não escreveu n u n c a , pelo m e n o s
no B r a s i l , p u b l i c o u m a i o r n u m e r o de ensaios,
de theses históricas e outras, do que todos os nos-
sos escriptores j u n t o s : u n i c a m e n t e suas c o n t i n u a s
edições t i r a d a s a p e q u e n o n u m e r o de exemplares
dissipavam-se c o m o a palavra, q u a n d o não e r a m
.MIXIIA F O R M A Ç Ã O 287

c o n v e r t i d a s e m t r a b a l h o alheio. Q u e lhe i m p o r -
t a v a isto? Elle era destituído de ambição. Esse
respeitador p o r systema da o r d e m h i e r a r c f i i c a e
da pragmática social, que n u n c a levou a m a l que
os poderes de u m d i a se considerassem seus su-
periores, que os afidalgados da véspera olhassem
c o m desdém p a r a o seu t i t u l o hereditário, ven-
do-o mestre de meninos, era u m sábio da Gré-
cia, p r a t i c a n d o c o m o espirito e a inteireza paga
a p h i l o s o p h i a do Ecclesiaste: Vanitas vanita-
tum... Desde m u i t o cedo elle a d q u i r i u a esse res-
peito a perfeita i m m u n i d a d e . T e n d o que g a n h a r
a v i d a e m paiz estrangeiro p o r m e i o de lições, en-
t e r r o u t u d o que pudesse restar-lhe dos velhos
preconceitos aristocráticos de seu paiz, das aspi-
rações á elegância, á v i d a de prazer, ostentação,
e successos m u n d a n o s da sua mocidade e m P a -
r i z , e n t r o u no papel que lhe f o r a distribuído c o m
a m e s m a s i m p l i c i d a d e c o m o si o recebesse p o r
herança... e m u m a palavra, sem resentimento,
sem queixa, s e m murmúrio. B e b e u a agua da
Carioca c o m o m e s m o espirito de c o n f o r m a -
ção c o m que t e r i a bebido a agua do Lethes...
Esqueceu-se de si m e s m o para e n t r a r e m seu
n o v o destino... M a s t a m b é m desde logo como
elle penetrou os m a i s íntimos refolhos e singu-
laridades d o paiz que devia ser sua segunda pá-
t r i a , e que elle a m o u c o m o t a l ! Sua posição era
i n v o l u n t a r i a m e n t e considerada subalterna ainda
pelos mais capazes de comprehender, — o que não
288 MIXIIA FORMAÇÃO

é o mesmo que sentir, — a profissão do creador


intellectual como essencialmente nobre. Elle,
porém, movia-se indifferente no meio da arle-
quinada social, sabendo bem que no mundo, nin-
guém o disse melhor do que Calderon, todos so-
nham o que são.
Mas que profundeza no sentir! Si todo o
mundo estava fora do seu logar, — elle não
pretendia isso, pelo contrario, pensava que a dis-
tribuição era justa, que as posições e responsabi-
lidades eram dadas aos melhores, somente estes
não faziam o melhor, não procuravam dar o
mais que podiam, — quando todo o m u n d o esti-
vesse, elle ao menos queria estar no seu... Con-
servador e catholico, conheci-o m u i t o abalado
com o Kulturkampf, por sua idéa allemã de que
o maior político do mundo, — p a r a elle B i s m a r k
certamente o era, — não podia ser atraiçoado
n'aquella questão ao mesmo tempo pelo seu
faro nacional e pelo seu instincto conservador.
O seu conservatismo entranhado era também
parte da sua philosophia, por isso e!le tinha pe-
las nossas instituições u m sentimento de que nós
mesmos éramos incapazes: o de veneração idea-
lista. D'esse simples funccionario do Estado, que
não tinha de seu sinão seu modesto ordenado de
cada dia, e além d'isso, estrangeiro de origem,
partiu talvez o único grito de: Viva a Constitui-
ção do Império! que se ouviu, si alguém o o u v i u ,
— tão fraca era já a voz, — em i 5 de N o v e m b r o
MINHA F O R M A Ç Ã O 289

ao desfilar das tropas do general D e o d o r o pela


r u a do O u v i d o r . T a l v e z alguém o l h a n d o p a r a o
v e l h o que fazia sem m e d o t a l protesto, pen-
sasse que era u m p r o t e g i d o do I m p e r a d o r a l l u c i -
n a d o pela catastrophe que o t r a g a r i a t a m b é m .
N ã o o era porém*, favores, elle os não devia, n e m
gratidão; t u d o o q u e t i v e r a , f o r a e m concurso, do
q u a l os c o m p e t i d o r e s desistiam, louvando-se em
sua fama... N ã o era u m despeitado, era u m p h i -
losopho, era o h o m e m que m e l h o r estudara a
p s y c h o l o g i a do nosso paiz e que m a i s se confor-
m á r a a ella até áquelle acto, que l h e pareceu
n a c i o n a l m e n t e fatídico, c o m o p a r a os Judeus o
partir-se ao m e i o do véo do templo...
U m traço d'essa sua penetração já assignalei
u m a vez, l e m b r a n d o que f o i elle q u e m me fez
n o t a r que o nosso interesse pelas coisas publicas
é t a n t o m e n o r q u a n t o o a s s u m p t o m a i s de perto
nos co icerne. E assim, dizia-me elle, que os ne-
gócios do município nos interessarão sempre a
todos menos que os da província, os da província
menos que a p o l i t i c a geral. P a r a m o s t r a r q u a n t o
era precário o nosso self-governement, não bas-
tava essa indifferença que cresce na razão d i r e c t a
do interesse que devíamos s e n t i r ? O u t r a observa-
ção d'elle que revela a promptidão do seu espirito,
foi a nossa conversa sobre a i m p e r m e a b i l i d a d e
ingleza a idéas e concepções alheias. E u dava a
lentidão dos inglezes e m apanhar e c o m p r e h e n d e r
o p o n t o de vista, a novidade estrangeira, como
17 *
290 MINHA FORMAÇÃO

u m signal talvez de m e n o r vivacidade intellectual


do que a dos povos continentaes : « Pelo c o n t r a -
r i o , observou-me elle, as p a l a v r a s serão m i n h a s ,
a idéa é d'elle, essa repugnância ao que v e m de
fora do paiz, essa suspeita c o n t r a o que não é con-
f o r m e ao i n s t i n c t o da raça, p r o v a antes a o r i g i -
nalidade delia, a força de sua própria p r o d u t i -
vidade, o o r g u l h o das suas creações nacionaes...
Essa resistência f o i que p e r m i t t i u á I n g l a t e r r a
dar ao m u n d o u m Shakespeare. » F o i essa r e -
flexão talvez que me l e v o u a pensar que o c o s -
m o p o l i t i s m o , n a esphera da concepção i n t e l l e -
ctual, não é u m elemento creador, n e m uma
superioridade invejável: pelo c o n t r a r i o , a d i f f i -
culdade de a s s i m i l a r , de s e n t i r o que não t e m
affinidades c o m a nossa própria producção, é
antes u m a v i r t u d e do que u m d e f e i t o ; a permea-
b i l i d a d e p r e j u d i c a a solidez e conservação das
qualidades próprias, isto é, da própria natureza.
Si eu tivesse que precisar o que devo a
T a u t p h c e u s , assignalaria, entre tantos o u t r o s t r a -
balhos de lapidação que a c r e d i t o s e r e m d'elle,
duas acquisições, a que e m certo sentido, se po-
d e r i a m c h a m a r transformações i n t i m a s . A p r i -
m e i r a , sem que aliás a suggestão partisse d'elle,
n e m m e s m o que elle tivesse consciência d'este
p o n t o de v i s t a m e u , — q u e m sabe si elle o não
combateria? — é que deante d e l l e , pensando
nelle, me h a b i t u e i a considerar o j u i z o do h i s t o -
r i a d o r c o m o o j u i z o d e f i n i t i v o , o que importa,
#
MINHA F O R M A Ç Ã O 291

final, e p o r isso aquelle a que se deve desde logo


visar. N ã o pode haver m a i o r revolução p a r a o
e s p i r i t o do que essa, de collocar-nos espontanea-
m e n t e e m frente do solitário j u i z de b i b l i o t h e c a
do f u t u r o e não dos juizes sem n u m e r o de praça
p u b l i c a do m o m e n t o actual. Perante aquelle j u i z
o nosso n o m e pôde não ser citado, os testemunhos
i n c o m p l e t o s p ó d e m ser-nos i n j u s t a m e n t e favorá-
veis o u desfavoráveis, mas a sua opinião é a que
conta, é a que vale... O j u i z o da multidão que
hoje nos eleva o u nos d e p r i m e , esse representa
apenas a poeira da estrada. N ã o é preciso que
sejamos actores p a r a que essa concepção da ver-
dadeira instância que decide das reputações nos
affecte, p o r a s s i m dizer, e m cada u m dos nossos
m o v e i s de acção, estímulos e affinidades moraes:
o effeito é o m e s m o sobre o espectador, o curioso,
o transeunte, o indifferente. E, e m m e n o r escala,
está v i s t o , — p o r q u e esta é a m a i o r de todas as
possíveis differenças nos m o t i v o s de inspiração
e de conducta, — c o m o a m u d a n ç a da c o n -
cepção pagã, que o i m p o r t a n t e é a v i d a , p a r a
a concepção christã, que é a eternidade. F e i t a a
reducção das aspirações da própria a l m a para as
da intelligencia o u do espirito, a m e t a m o r p h o s e
é t a m b é m p r o f u n d a entre v i v e r , o u vêr v i v e r ,
tendo-se e m v i s t a os contemporâneos e tendo-se
e m vista a posteridade. Tratando-se da posteri-
dade, está claro que é sempre preciso i m a g i n a r o
espaço de a l g u m a s gerações, d a r t o d a a m a r g e m
292 MINHA F O R M A Ç Ã O

ao esquecimento... N o m o m e n t o actual são m i -


lhares, milhões que j u l g a m ; pouco a pouco o
t r i b u n a l se vae r e d u z i n d o , até que os grandes
personagens v ê m a depender da sentença de u m
j u i z singular, u m M o m m s e n , u m Ranke, u m
C u r t i u s , u m M a c a u l a y , encerrado e m sua l i v r a -
r i a , p r o c u r a n d o animar-se para c o m elles de u m a
paixão retrospectiva, t o d a ella p u r o e n t h u s i a s m o ,
illusão de auetor, n a q u a l não figura n e n h u m dos
sentimentos, u m único siquer, n e m das paixões
verdadeiras que elles inspiraram...
O u t r a transição que l h e devi... C o m o h e i de
explical-o que se entenda somente a nuança, e
não m a i s ? p o r q u e q u e r o crer que os g e r m e n s se
d e s e n v o l v e r i a m p o r si m e s m o s , m a s sinto que
o seu i n f l u x o benéfico p e n e t r o u até o t e r r e n o
onde elles se estavam talvez f o r m a n d o s e m eu o
sentir...
N ó s tínhamos nos últimos t e m p o s da v i d a de
T a u t p h c e u s u m a pequena solidão e m Paquetá,
para as vizinhanças d o c h a m a d o Castello, e m u m
r e m a n s o daquellas encantadoras paragens. E r a
u m a antiga casa térrea a que u m dos proprietá-
rios, u m inglez, juntára u m a v a r a n d a e m r o d a e
a m e i o u m pequeno sobrado c o m venezianas ver-
des e balcão p o r onde s u b i a u m a trepadeira,
dando-lhe u m aspecto ao m e s m o t e m p o singelo e
pittoresco de residência estrangeira. A frente dei-
tava para o m a r , e a parte b a i x a da costa d o
o u t r o lado f o r m a v a u m suave f u n d o de q u a d r o .
MINHA FORMAÇÃO 203

A casa estava sobre u m a pequena elevação, e o


declive p a r a a praia era t o m a d o p o r u m grande
t a b o l e i r o de g r a m m a , cuidadosamente t r a t a d o ,
c o m o e m u m parque. A i l h a de Paquetá é u m a
j o i a t r o p i c a l , sem v a l o r para os naturaes do paiz,
mas de u m a variedade quasi i n f i n i t a para o pin-
tor, o p h o t o g r a p h o , o n a t u r a l i s t a estrangeiro.
P a r a m i m ella t i n h a a seducção especial de
ser u m a p a i z a g e m do N o r t e do B r a z i l desenhada
n a b a h i a do R i o . E m q u a n t o p o r t o d a parte á
entrada do R i o de J a n e i r o o que se vê são gra-
n i t o s escuros cobertos de florestas c o n t i n u a s
g u a r d a n d o a costa, e m Paquetá o q u a d r o é o u t r o :
são praias de coqueiros, c a m p o s de cajueiros,
e á b e i r a - m a r as hastes flexíveis das cannas
selvagens a l t e r n a n d o c o m as velhas mangueiras
e os t a m a r i n d o s solitários. A o lado, entretanto,
d'essas m i n i a t u r a s do N o r t e encontram-se na i l h a
a cada canto do m a r rochas revestidas c o m a
m e s m a característica vegetação fluminense.
T a u t p h c e u s fòra sempre u m apaixonado da
nossa natureza. Desde que chegára ao B r a s i l t i -
nha sido u m e x p l o r a d o r de suas bellezas. A ma-
drugada, a alta noite, a distancia não e r a m i m -
p e d i m e n t o para elle, tratando-se de u m nascer de
sol, u m eífeito de l u a r , u m fio de agua descendo
pela pedra, u m jequitibá escondido na m a t t a v i r -
gem. T o d a a v i d a elle v i v e r a n'esse c o l l o q u i o i n -
t i m o de n a m o r a d o c o m a l u z e a t e r r a do B r a s i l ;
um raio de sol i l l u m i n a n d o o Gorcovado o u o
294 MINHA F O R M A Ç Ã O

Pão de A s s u c a r , era u m a saudação m v s t e r i o s a


do poder creador a que elle sempre respondia...
A o vêl-o sentado, a escutar os pássaros na m a t t a
ao lado, eu associava insensivelmente o mestre
c o m as m i n h a s p r i m e i r a s lições de inglez e l e m -
brava-me do v i z i r d o sultão M a h m u d . Os a r r e d o -
res d o R i o de J a n e i r o especialmente o seduziam.
E l l e era de todos os passeios a que o convidas-
sem para q u a l q u e r dos p o n t o s pittorescos, q u e
a h i são sem n u m e r o . Passar a t a r d e sob o a r v o -
redo secular que se e n c o n t r a e m tantas das
ilhas, observando o g l o r i o s o c o l o r i d o das m o n -
tanhas ao pôr d o s o l , era u m a v e r d a d e i r a v o -
lúpia para elle. A nossa v i v e n d a de Paquetá
agradava-lhe p o r lhe dar, c o m o silencio e isola-
m e n t o que cercava a b i b l i o t h e c a , a escolha, á
vontade, do m a r , d o c a m p o e da m o n t a n h a : as
praias extensas, a floresta accessivel, a planície
atapetada, si l h e agradava passear; a agua
serena, o m a r fechado á v i s t a , c o m o um lago
suisso, si q u e r i a t o m a r o nosso b a r c o e m a n d a r
o M u d o , o nosso saudoso r e m a d o r , a b r i r a vela
para os pequenos ilhotes de onde se a v i s t a m
em um e x t r e m o os Órgãos de T h e r e s o p o l i s , e
no o u t r o a serrania da cidade... E l l e v i n h a sem-
pre aos sabbados e ficava o d o m i n g o , e ás vezes,
nas curtas férias q u e t i n h a , dias seguidos... E r a
v i s i v e l m e n t e a despedida. Suas faculdades esta-
v a m intactas, elle era desses e m q u e m se sente
que o espirito não soíTrerá deperecimento, q u e se
MINHA FORMAÇÃO 295

apagará de repente n o m e i o de u m a contempla-


ção o u meditação m a i s intensa e prolongada-,
mas as forças physicas e s t a v a m e m declínio, via-
se o cançaço de t e r pensado t a n t o e o involuntá-
r i o t r i b u t o á d u v i d a : si teria b e m aproveitado o
t e m p o , o u s i t e r i a v i v i d o e m vão. E l l e tomára
m u i t o ao serio o gosto da obscuridade, a modés-
t i a , o r e t r a h i m e n t o ; cortejára de m a i s o esque-
c i m e n t o , e v i a talvez que este estava a p o n t o der
envolvel-o, excepto e m alguns raros espíritos,
onde sua lembrança d u r a r i a m a i s a l g u m tempo,
até elles m e s m o s serem p o r sua vez envolvidos...
C o m o f o r a m suaves esses dias finaes que elle
nos deu, tão penetrantes, tão p r o f u n d a m e n t e me-
lancólicos, da m e l a n c o l i a , porém, dos momen-
tos que q u i z e r a m o s t o r n a r eternos, o u que ou-
t r o s viessem gozar delles ao nosso lado para não
se esvaecerem de todo, c o m o u m meteoro des-
l u m b r a n t e ! . . O seu prazer, m u i t a s vezes, era
sentar-se e m u m banco á b e i r a d o mar, do lago,
eu devia dizer pela impressão que da^a, e d a l l i
assistir á tarde, cujas cambiantes n o ar, n o céo,
na agua, nas côres do h o r i z o n t e , n o murmúrio
e n o silencio da solidão, e r a m u m a g a m m a de
que elle não perdia a mais insignificante t r a n s i -
ção... Q u a n t a s outras vezes, de dia, ao passear-
m o s na m a t t a ao lado da casa, q u a n d o se i a
a b r i n d o c a m i n h o para passarmos, não me pedia
elle que não tocasse n a natureza, que respeitasse
o i n t r i c a d o , o selvático, o inesperado, de t u d o
296 MINHA F O R M A Ç Ã O

a q u i l l o , p o r q u e aquella desordem era i n f i n i t a -


m e n t e superior ao que a arte pudesse tentar...
E l l e achava a m a i s p o b r e e árida natureza m a i s
bella do que os j a r d i n s de Sallustio o u de
L u i z X I V . A h ! s i t e m sido elle o d e s c o b r i d o r
e possuidor da A m e r i c a , o m a c h a d o nunca te-
r i a entrado nella... E o tição ? U m a queimada
era para elle egual a u m auto de fé. O incêndio
ao l a m b e r essas resinas preciosas, essa seiva,
esses suecos de v i d a , esse sem n u m e r o de de-
senhos caprichosos de artistas inexcediveis cada
u m no seu gênero, modelos de c o r e de sensibi-
lidade, todos elles únicos, parecia c o n s u m i r c o m
u m a dòr c r u e l , v i b r a n t e , todas as suas ligações
sensíveis c o m a n a t u r e z a e a v i d a u n i v e r s a l , os
nervos todos de sua p e r i p h e r i a i n t e l l e c t u a l .
O seu a m o r pela nossa natureza f o i m u i t o
grande. Quantas vezes i n t r o d u z i e m nossas con-
versas a idéa de u m a v i a g e m á E u r o p a p a r a Vêr
si despertava n e l l e affinidades esquecidas, recor-
dações latentes. T o d a essa parte européa, porém,
estava m o r t a , a t r o p h i a d a ; e m vez delia o que
havia, esta, v i v a z e peregrina, era u m a sensibili-
dade nova, a a m e r i c a n a , a brasileira... E r a u m
eterno encantado da nossa t e r r a . E l l a lhe dizia o
que a nós não diz, e que talvez seja preciso t e r
t i d o e r e n u n c i a d o p o r ella u m a p r i m e i r a encar-
nação, u m o u t r o m u n d o , p a r a se poder sentir.
Si nós brasileiros pudéssemos ter aquelle a m o r !
Esse perenne e m b e v e c i m e n t o de T a u t p h o e u s f o i
MINHA F O R M A Ç Ã O 297

u m a das influencias que d e s e n v o l v e r a m e m mim


o gosto, o encanto, a i n d a que de m i n h a parte p u -
r a m e n t e s e n t i m e n t a l e ingênuo, que o contacto
de nosso paiz t e m hojé para mim... E m T a u t -
phceus aquelle a m o r era differente : era fino,
e s p i r i t u a l , i n t e l l e c t u a l , e s t h e t i c o e m m i m será
u m a simples affinidade do coração, u m a t e r n u r a ,
u m a saudade da v i d a , mas esta affinidade deverá
m u i t o ao espectaculo do carinhoso devaneio
d'aquelle sábio, d'aquelle grego antigo, d'aquelle
p h i l o s o p h o nascido e f o r m a d o e m outros c l i m a s ,
perante a amenidade, a doçura dos trópicos, o
pittoresco da nossa m o l d u r a agreste, os toques
de mutação de nossa scenographia n a t u r a l , a
modulação, o c o l o r i d o , a solidão i n t i m a de nossa
paizagem.
N o t e m p o da m i n h a v a n g l o r i a l i t t e r a r i a duas
cousas me f e r i a m nelle : que c o m toda sua
sciencia elle não escrevesse nada e que pudesse
ser tão s u b m i s s a m e n t e catholico. A g o r a em nos-
sos passeios pela floresta, em nossas « soirées »
á beira da m i n h a pequena enseada, d o u r a d a pelo
l u a r , era sobre a religião que v e r s a v a m nossas
conversas... O h ! que admiráveis monólogos os
delle! A u l t i m a vez que atravessou o nosso mare
clausum v o l t o u para casa para m o r r e r . O vestí-
gio do seu pensamento ficou p o r m u i t o t e m p o
c o m m i g o , e ainda p o r vezes l h e sinto a ondu-
lação fugidia. F o i p o r m i n h a s palestras c o m elle
que c o m p r e h e n d i p o r fim que u m grande espi-
17.
298 MIXIIA FORMAÇÃO

r i t o p o d i a ficar á vontade, l i v r e , e m u m religião


revelada, do m e s m o m o d o q u e f o i graças a elle
que c o m p r e h e n d i que os escriptores não f o r m a m
p o r si sós a elite dos pensadores, que h a ao l a d o
delles, talvez acima, u m a espécie de T r a p p a
i n t e l l e c t u a l v o t a d a ao silencio, e onde se r e f u -
g i a m os que e x p e r i m e n t a m o desdém da p u b l i -
cidade, de sua ostentação v u l g a r , de seu merce-
n a r i s m o m a l disfarçado, de 'seu m o d o f r i v o l o ,
de sua apropriação do b e m alheio, de sua falta
de sinceridade i n t e r i o r . O h o r r o r da scena, h o j e
do mercado, não pôde ser u m s i g n a l de i n f e r i o -
ridade i n t e l l e c t u a l .
0 r e s u m o d a impressão que eu g u a r d o delle
está feito p o r Goethe conversando c o m E c k e r -
m a n n sobre A l e x a n d r e de H u m b o l d t : « Q u e
h o m e m elle é ! H a t a n t o t e m p o , t a n t o , que o
conheço, e elle é sempre n o v o p a r a m i m . Póde-
se dizer que não t e m egual, n e m e m sciencia,
nem em experiência. A l é m d'isso, h a u m a va-
riedade de aspectos nelle c o m o não encontrei
e m ninguém. Q u a l q u e r q u e seja o a s s u m p t o de
conversa q u e se p r o c u r e , está sempre no seu pró-
p r i o terreno e despeja sobre nós t h e s o u r o s de
informações. E c o m o u m a fonte de v a r i a s bicas,
sob as quaes basta c o l l o c a r u m cântaro p a r a l o g o
o encher, e d o n d e estão sempre a c o r r e r j o r r o s
de agua fresca i n e x g o t t a v e l . E l l e passará a q u i
alguns dias, e já m e parece que h a de ser p a r a
mim como si tivesse v i v i d o m u i t o s annos. »
MINHA FORMAÇÃO

O u y i l - o , vêl-o, v i v e r c o m elle, era l i t t e r a l m e r t f e


esquecer o presente e reunir-se á c o m i t i v a de
Sócrates... E l l e era u m a d'essas copias, que n e m
por s e r e m copias, n e m p o r se r e p r o d u z i r e m segui-
d a m e n t e de epocha e m epocha entre differentes
nações, d e i x a m de conservar a superioridade, a
primazia do o r i g i n a l , o m a i s n o b r e dos mo-
delos h u m a n o s .
XXVI

OS ÚLTIMOS DEZ ANNOS ( 1889-1899)

A queda do Império puzera f i m á m i n h a car-


reira... A causa monarchica devia ser o meu u l -
t i m o contacto com a politica... De 1889 a 1890
estou todo sob a impressão do i 5 de N o v e m b r o
seguindo-se ao i 3 de Maio ; escrevo então os meus
soliloquios em uma Thebaida onde podia an-
dar centenas de milhas sem deparar com o r e -
fugio de outro praticante... E m 1891 m i n h a maior
impressão é a morte do Imperador. De 1892
a 1893 ha u m intervallo : a religião afasta tudo
mais, é o período da volta mysteriosa, indefini-
vel da fé, para m i m verdadeira pomba do dilúvio
universal, trazendo o ramo da vida renascente...
De 1893 a 1895 soífro o abalo da Revolta, da morte
de Saldanha, de que sáem meus dois livros Bal-
maceda e a Intervenção... Desde 1893, porém, o
assumpto que devia ser a grande devoção littera-
ria da m i n h a vida, a Vida de meu pae, tinha-se já
MINHA FORMAÇÃO 301

apossado de m i m e d e v i a seguidamente d u r a n t e
seis annos occupar-me até absorver-me...
C o m o escrevi a l g u m a s paginas atraz, o m e u
espirito a d q u i r i r a e m t u d o a aspiração da fôrma e
do repouso d e f i n i t i v o . A nossa d y n a s t i a tivera
e m i 5 de N o v e m b r o o que c h a m e i u m a assum-
pção : v i v e r a e acabára c o m o u m a encarnação
nacional. O condão deixado pela fada no berço
da nossa n a c i o n a l i d a d e f o i q u e b r a d o e lançado
f o r a ; q u e m nos d i z que o desfecho não estava pre-
v i s t o p o r ella ? A Independência, a U n i d a d e na-
c i o n a l , a Abolição : n e n h u m a d y n a s t i a j a m a i s
i n s c u l p i u na sua p y r a m i d e u m tão perfeito car-
touche... Q u a n d o eu pensava no papel represen-
t a d o pela casa r e i n a n t e brasileira, D o m P e d r o I ,
D o m P e d r o I I , D o n a Isabel, e nas condições de
u n a n i m i d a d e , espontaneidade, e finalidade na-
c i o n a l necessárias para ella o poder de n o v o de-
s e m p e n h a r de accordo c o m a sua lenda, o pro-
b l e m a excedia a m i n h a imaginação, e parecia-me
u m attentado c o n t r a a h i s t o r i a querer-se accres-
centar, a não ser p o r m ã o de mestre, de u m a se-
gurança, de u m a delicadeza, de u m a felicidade a
t o d a p r o v a , u m n o v o painel áquelle t r i p t y c o . . .
P o r o u t r o lado, d u r a n t e os annos que t r a b a l h e i
na Vida de m e u pae a m i n h a a t t i t u d e foi insensi-
v e l m e n t e sendo affectada pelo espirito das antigas
gerações que crearam e f u n d a r a m o r e g i m e n l i -
b e r a l que a nossa d e i x o u destruir... O que eu
respirava n'aquella vasta documentação, não era
302 MINHA FORMAÇÃO

u m e s p i r i t o m o n a r c h i c o inconciliável, bastando
c o m o u m a religião, c o m o u m a bemaventurança,
aos que p o r ella se destacavam do mundo... A
m o n a r c h i a para aquellas epochas de a r c h i t e c t o s ,
pedreiros e esculptores políticos i n c o m p a r a v e i s ,
era u m a bella e p u r a f o r m a , mas que não p o d i a
e x i s t i r p o r si só; o interesse, o a m o r , o zelo, o
f e r v o r patriótico delles d i r i g i a - s e á substancia
nacional, o paiz ; sua vassallagen ao p r i n c i p i o
m o n a r c h i c o era apenas u m p r e i t o r e n d i d o á p r i -
m e i r a das conveniências sociaes... P a r a taes ho-
mens, v e r d a d e i r a m e n t e fundadores, u m t e r r e -
moto p o d e r i a s u b v e r t e r as instituções, mas o
B r a s i l e x i s t i r i a sempre, e á sua v o z seria forçoso
acudir, q u a l q u e r que fosse o v e n d a v a l e m t o r n o ,
e q u a n t o m a i s f e r i d o , m a i s m u t i l a d o , m a i s ex-
hausto, m a i o r o dever de o não abandonar...
Elles não estabeleceriam n u n c a o d i l e m m a e n t r e
a m o n a r c h i a e a pátria, p o r q u e a pátria não p o d i a
ter r i v a l .
A impressão d'esses sentimentos varonis,
d'essa a n t i g a lealdade, f o i g r a n d e e m mim e á
m e d i d a que eu a i a r e s p i r a n d o , o desejo a u -
g m e n t a v a de não d e i x a r pelo m e n o s o m e u túmulo
m u r a d o do lado d o f u t u r o . . . C o m p r e h e n d o a
carta de B e r r y e r m o r i b u n d o a H e n r i q u e V, c o m o
c o m p r e h e n d o a carta d o conde de C h a m b o r d
sobre a bandeira b r a n c a ; a m o n a r c h i a franceza
gerára u m a c a v a l l a r i a , u m p o n t o de h o n r a
aristocrático, u m e s p i r i t o de classe á p a r t e , e
MINHA F O R M A Ç Ã O 303

m e s m o assim era c o m o o próprio B e r r y e r , c o m o


C h a t e a u b r i a n d , c o m o o d u q u e de A u m a l e , —
« La France était toujours là! » — que os nossos
antigos h o m e n s de E s t a d o desde os t e m p o s colo-
niaes, e o I m p e r a d o r lhes reflectia o sentimento
patriótico a b s o l u t o , c o l l o c a v a m a pátria f o r a de
competição c o m q u a l q u e r o u t r a idéa o u senti-
mento... E u , porém, não t i n h a u m a parcella de
l e g i t i m i s m o , de d i r e i t o divino-, m i n h a caracte-
risação, o accento tônico, era o u t r a : liberal, não
no sentido passageiro, político, da expressão,
mas n o seu sentido h u m a n o , eterno, e c o m o
l i b e r a l a aspiração synthetica de m i n h a v i d a
t i n h a que ser a de não me dissociar, qualquer
que fosse sua f o r m a de g o v e r n o , dos destinos
do m e u paiz.
Assim, mesmo como monarchista, me f u i
pouco a pouco distanciando da p o l i t i c a . Meu
espirito crystallisára sob faces que o f a r i a m sem-
pre rejeitar c o m o anti-politico... Q u e podia eu m a i s
tentar sósinho, por m i m mesmo? E m 1879 eu me
alistára para u m a c a m p a n h a que s u p p u n h a
h a v i a de d u r a r além de m i n h a v i d a ; fiz assim,
posso dizer, v o t o perpetuo de servir u m a grande
causa n a c i o n a l : o que de via d u r a r m a i s de t r i n t a
annos, d u r o u somente nove, mas n e m p o r isso
economisei forças, i n i c i a t i v a , imaginação para
o u t r o s emprehendimentos... A abolição, além
d'isso, pelo seu sopro u n i v e r s a l , isoLára-me dos
p a r t i d o s , afastára-me da sua esphera contencisa -
304 MINHA FORMAÇÃO

p o r h a b i t o eu agora aspirava a v i v e r e m regiões


de a r m a i s d i l a t a d o , onde se respirasse a u n a n i -
m i d a d e m o r a l , a fé, o o p t i m i s m o h u m a n o , o
oxygeneo das grandes correntes de ideal...
D e mais, eu m e c o n v e n c i de que os p a r t i d o s ,
os homens, as instituções rivaes e m u m a mes-
m a sociedade hão de t e r o m e s m o n i v e l , c o m o
líquidos e m vasos que se c o m m u n i c a m 5 de
que o pessoal político é u m só, os idealistas, os
ultra, de cada l a d o sendo imperceptíveis m i n o -
rias-, p o r u l t i m o , de m i n h a inaptidão p a r a l i d a r
c o m o elemento pesssal, de q u e d e p e n d e m e m
p o l i t i c a quasi todos os resultados... Era-me de
t o d o i m p o s i v e l e n c o n t r a r de n o v o e m m i m o i m -
pulso, o m o v i m e n t o , o i m p e t o das nossas a n t i g a s
cargas da abolição... L u c t a s de p a r t i d o s , meet-
ings populares, sessões agitadas da C â m a r a , t i r a -
das de oratória, t u d o isso m e parecia pertencerá
edade da cavallaria... A g o r a o m e n o r p r o b l e m a
político causava-me u m a t i m i d e z invencível, tor-
nava-se n a c i o n a l , i n t e r n a c i o n a l , e todos conver-
tiam-se e m casos de consciência. U m a serie de
reflexões, que t o m a v a m a fôrma de m á x i m a s polí-
ticas, e r a m o u t r o s t a n t o s avisos de p e r i g o sobre
q u a l q u e r superfície desconhecida que eu quizesse
pisar... E u desistia assim de l i d a r d'ora e m deante
c o m p a r t i d o s e c o m a c o n t e c i m e n t o s ; m i n h a es-
phera tornára-se toda subjectiva... « H a epochas
e m que o associar-se, a i n d a m e s m o c o m o u t r o s
melhores d o que nós, é t r a h i r o ideal próprio que
MINHA FORMAÇÃO 305

cada u m t e m e m si e que l h e c u m p r e a seu m o d o


l a p i d a r e p o l i r ao i n f i n i t o . » Esta m i n h a phrase
sobre o i s o l a m e n t o de André Rebouças, q u a n d o
não i m a g i n a v a o f i m melancólico que elle h a v i a
de ter, e x p r i m e m u i t o do m e u próprio sentimen-
to... E preciso r o u b a r ao m u n d o u m a parte da
v i d a , e é m e l h o r que seja a f i n a l , p a r a dal-a aos
pensamentos e ás aspirações que não queremos
que m o r r a m comnosco.
O s últimos dez annos são assim o período e m
que o interesse político cederá g r a d u a l m e n t e o
l o g a r ao interesse religioso e ao interesse l i t t e r a -
r i o até ficar r e d u z i d o quasi somente ao que t e m
de c o m m u m c o m elles... Q u a n d o d i g o interesse
político, quero dizer o espirito político, p o r q u a n t o
a emoção, a parte que t o m o na sorte do p a i z
a u g m e n t a c o m as peripécias, as contingências,
os vórtices dos novos dramas. O auetor e o
actor desapparecem 5 o espectador, esse, porém,
sente a sua anciedade crescer e tornar-se angus-
tiosa... Posso p o r t a n t o t e r m i n a r a q u i a h i s t o r i a
de m i n h a formação p o l i t i c a , e m e s m o de t o d a
a m i n h a formação, p o r q u e das novas influencias
que me vão d o m i n a r no resto da v i d a , a religiosa
já se a e n c o n t r o u n a infância e a das lettras na
mocidade. A s lettras l u c r a r a m e m m i m annos
seguidos, c o m o se v i u , c o n t r a a p o l i t i c a , sempre
c o m superioridade, até v i r a abolição, que d u -
rante os dez annos as relegou, c o m o t u d o mais,
a i m m e n s a distancia. E x t i n c t o este grande fóco
30G MINHA F O R M A Ç Ã O

de atracção, n e n h u m o u t r o teria o m e s m o p o d e r
contra ellas... A i n d a assim talvez tenha apenas
h a v i d o entre ellas e a p o l i t i c a u m a verdadeira
fusão... A h i s t o r i a é c o m effeito o único c a m p o
e m que me seria dado a i n d a c u l t i v a r a p o l i t i c a ,
p o r q u e nelle não terei perigo de f a l t a r á i n d u l -
gência, que é a caridade d o espirito, n e m á tole-
rância, que é a f o r m a de justiça a que eu posso
attingir... São essas duas das faces, a que h a p o u c o
a l l u d i , sob que m e u espirito c r y s t a l l i s o u .
D i z e n d o as lettras, quero apenas dizer o que
ellas p o d e m ser p a r a m i m : o l a d o b e l l o , sensível,
h u m a n o das coisas que está ao m e u alcance, a
resonancia, a admiração, o estado d'alma que
ellas m e deixam... F o i a necessidade de c u l t i v a r
i n t e r i o r m e n t e a benevolência o que, t a l v e z , m e
dispoz a t r o c a r d e f i n i t i v a m e n t e a p o l i t i c a pelas
lettras, a d a r a m i n h a v i d a activa p o r encerrada,
reservando, c o m o vocação i n t e l l e c t u a l , — a p o l i -
t i c a não fôra o u t r a coisa para m i m , — o saldo de
dias que me restasse p a r a p o l i r imagens, senti-
mentos, lembranças que eu quizera levar na
alma O l h e i a v i d a nas diversas epochas a t r a -
vés de v i d r o s difterentes : p r i m e i r o , no ardor
da mocidade, o prazer, a e m b r i a g u e z de v i v e r , a
curiosidade d o m u n d o : depois, a ambição, a p o p u -
laridade, a emoção da scena, o esforço e a r e -
c o m p e n s a d a l u c t a p a r a fazer h o m e n s l i v r e s ,
(todos esses e r a m v i d r o s de augmento)...; m a i s t a r -
de, c o m o contrastes, a n o s t a l g i a d o nosso passado
MINHA FORMAÇÃO 307

e a seducção crescente de nossa natureza, o r e -


t r a h i m e n t o do m u n d o e a doçura do l a r , os tú-
m u l o s dos amigos e os berços dos filhos, (todos
esses são a i n d a p r i s m a s ) ; mas e m despedida ao
Creador, espero a i n d a olhal-a através dos v i d r o s
de E p i c t e t o , d o p u r o c r y s t a l sem refracção : a
admiração e o reconhecimento...

FIM.
ÍNDICE

Prefacio . vir

Collegio e Academia , i

II

Bagehot 9

III

1871-1873. Na Reforma 52

IV

Attracção do M u n d o 33

Primeira viagem á Europa 45

VI

A França de 1873-74 54

VII
Ernest Renan 65

VIII

A crise poética 75
310 ÍNDICE

IX
Addido de Legação 85

X
Londres 9 2

IX
32, Grosvenor Gardens ioõ

XII
Influencia ingleza no

XIII
O espirito inglez 125

XIV
Nova-York (1876-77) i35

XV
O meu diário de 1877 147

XVI *
Traços Americanos i5g

XVII
Influencia dos Estados-Unidos 170

XVIII
Meu Pae 184

XIX
Eleição de deputado 202

XX
Masssangana 211
ÍNDICE 311

XXI
A abolição 2 2 6

XXII
Caracter do movimento. — A parte da dynastia.. 245

XXIII
Passagem pela politica

XXIV
No Vaticano

XXV
O barão de Tautphceus 284

XXVI
Os últimos dez annos 3oo

Paris. — G A R N I E R IRMÃOS, G, rue des Saints-Pèrcs. 429.5 1900.


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3

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