Coelho MJB Me Assis
Coelho MJB Me Assis
Coelho MJB Me Assis
MALANDRO
ASSIS – SP
2006
2
MALANDRO
ASSIS - SP
2006
3
Eduardo Galeano
4
Agradeço...
COELHO, Maria Josele Bucco. Meu tio Atahualpa de Paulo de Carvalho Neto: o
enigma mulher no universo feminino do romance malandro. Assis, 2006.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, campus de
Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
RESUMO
Ao delinear a posição e o espaço ocupado pela mulher na picaresca clássica, este trabalho busca
estabelecer uma contraposição desta com a representação do feminino no romance malandro Meu
tio Atahualpa de Paulo de Carvalho Neto, publicado pela primeira vez no Brasil em 1978.
Portanto, tendo como referencial teórico a crítica feminista, procura-se desvelar, através da
análise textual, a construção das imagens referentes ao feminino, tracejando assim, o espaço que
a mulher passa a incorporar dentro dessa narrativa contemporânea e seu significado para a
compreensão das novas relações estabelecidas a partir da estruturação dos estudos de gênero.
Palavras-chave: Paulo de Carvalho Neto, Meu tio Atahualpa, romance malandro, representação
do feminino.
7
COELHO, Maria Josele Bucco. Meu tio Atahualpa de Paulo de Carvalho Neto: o
enigma mulher no universo feminino do romance malandro. Assis, 2006.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras, campus de
Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
ABSTRACT
When delineating the position and the space occupied by the woman in the picaresque classic,
this work search to establish an opposition of this with the women’s representation in the rogue
novel Meu tio Atahualpa by Paulo de Carvalho Neto, published for the first time in Brazil on
1978. Therefore, having the feminist criticism as theoretical referential, it tries to watch, through the
textual analysis, the construction of the referring images to the feminine, like this, the space that
the woman passes to incorporate inside of that contemporary narrative and its meaning for the
understanding of the new relationships established starting from the structuring of the gender
studies.
Key words: Paulo de Carvalho Neto, Meu tio Atahualpa, rogue romance, women’s
representation.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................................09
MALANDROS...............................................................................................................................18
expansão.............................................................................................................................34
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................118
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................................122
9
INTRODUÇÃO
Fruto de uma inquietação frente à posição ocupada pelo feminino nas narrativas, esse
trabalho assume o caráter ideológico inerente aos estudos de gênero e à própria crítica feminista.
malandros, busca-se a compreensão das relações estabelecidas nas narrativas entre homens e
mulheres em contextos históricos diferenciados. Dessa forma, se fará o estudo de algumas obras
de autoria masculina, privilegiando o romance de Paulo de Carvalho Neto, Meu tio Atahualpa1.
Embora não seja tão conhecido no Brasil, pois são poucos os estudos críticos sobre
sua produção literária que aqui foram realizados, na complexidade de Meu tio Atahualpa pode-se
verificar e se desvelar a situação de opressão da América Latina, num período em que o processo
marginalização a que estes estão relegados na sociedade e os mecanismos utilizados como forma
análise dessa narrativa que pode-se aproximar-se de uma compreensão da posição da mulher a
partir da década de 1970 no Brasil, época em que os movimentos de emancipação feminina estão
1
Para fins de citação, se utilizará a sigla M.T.A. para referir-se ao romance. Segue a edição utilizada neste estudo:
NETO, Paulo de Carvalho. Meu tio Atahualpa. (Trad. Remy Gorga Filho). Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
10
Carvalho Neto licenciou-se em 1947 em ciências sociais pela Universidade do Brasil e, em 1971,
doutorou-se em Letras pela Universidade de São Paulo. Antropólogo e tradutor, desde muito
produzindo vasta obra de pesquisa folclórica e antropológica sobre o Brasil, Paraguai, Venezuela
e Equador. Sua obra não se restringe somente ao Brasil porque sendo embaixador brasileiro em
vários países da América Latina pôde conhecer e pesquisar sobre a cultura desses países.
O golpe militar de 1964 traz conseqüências para a vida de Paulo de Carvalho Neto
que, dispensado de suas funções diplomáticas, resolve mudar-se para os Estados Unidos onde
como professor de Folclore na Universidade de Indiana (1974). Ainda foi professor de Português
Uruguai.
do Folclore e montou, no Rio de Janeiro, um escritório para escrever sua literatura. Ao regressar
dos Estados Unidos já colhia o sucesso dos seus livros de ficção, que foram traduzidos para o
português. Ingressou no Pen Clube, foi premiado pela União Brasileira de Escritores, entrou no
2
Encontro criado em 1976 pelo governador José Rollenberg Leite com o objetivo de recuperar o prestígio intelectual
da cidade que já foi conhecida como “Atenas Sergipense”, devido ao grande número de políticos e intelectuais
ilustres. Esses encontros ainda são realizados anualmente na cidade de Laranjeiras, no Sergipe.
11
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e ganhou vários prêmios. Um dos mais importantes
prêmios europeus foi o Siglo D’Oro de Palermo (Itália) que é considerado o Nobel da
Universidade de Chicago e o prêmio Internacional de folclore Giuseppe Pitré. Seu romance Meu
tio Atahualpa foi escolhido como uma das cem grandes obras do século XX.
Sua obra de ficção mais conhecida é Meu tio Atahualpa (1972), seguida por Suomi.
Além desses dois se acrescem vários livros, sendo a maioria deles, elaborados e publicados fora
do Brasil: Praça Mauá, Los ilustres maestros, Pau de arara, Morrer pelo Brasil. Paulo de
Carvalho Neto morreu em 2003, aos 80 anos num hospital do Rio de Janeiro, em decorrência do
mal de Alzheimer. Sua obra ainda permanece pouco conhecida no Brasil e praticamente não foi
estudada.
12
O romance Meu tio Atahualpa foi publicado pela primeira vez no México em 1972,
pela editora Siglo XXI e premiado pela Seix Barral, Barcelona. Foi traduzido para diversos
idiomas: inglês, holandês, alemão, finlandês. Em 1978, a obra que foi escrita originalmente em
espanhol, é traduzida para o português por Remy Gorga Filho e publicada pela editora
Salamandra.
Trata-se de um romance que faz uma caricatura dos modos e meios de vida da elite
submetidos dentro da sociedade. Embora a população do Equador seja constituída por uma
maioria mestiça, estes se vêem à margem do processo de ascensão social. Servindo a uma
estrutura social que, não tendo acesso ao sistema de educação formal, servem apenas como mão-
de-obra barata. Ora, o romance tem como mote as desventuras e malandragens de um índio e seu
tio, que por meio da trapaça e da astúcia, tentam infiltrar-se entre os brancos da embaixada onde
trabalham. Neste ínterim, satirizam e criticam de forma ferrenha, a sociedade que os marginaliza.
DTVM, o filme leva o mesmo título do romance e foi lançado pela produtora Filmes do Equador
Ltda.
Quanto aos estudos críticos realizados sobre a obra Meu tio Atahualpa, ainda que
sejam em número significativo em outros países, são limitados na crítica brasileira. O trabalho
mais extenso foi a dissertação de Maria Teresa Cristófani de Souza Barreto em 1987, ainda
inédito, Mi tío Atahualpa: a sagração do herói na terra do carnaval. Nesse, a autora faz a análise
13
retomado mais minuciosamente no corpo deste trabalho, outros artigos foram publicados
gradativamente, revelando o interesse da crítica que, sem deixar de apontar certo diálogo com a
González publica um artigo chamado Por los nuevos caminos de la picaresca: Mi tío Atahualpa.
Neste, propõe a leitura da obra sob a égide da neopicaresca, isto é, da retomada voluntária ou não
da tradição espanhola por escritores da América Latina e concomitantemente, sua superação, pois
a narrativa, nega seu projeto de ascensão social para assumir um outro mais político e
comprometido com a situação de opressão a que estão submetidos os índios. Para González
(1989) se estabelece uma “contraposición del Quijote al pícaro” (1989, p. 672), realizando uma
síntese das paródias do herói clássico, pois o que se observa é a presença de um quixote
revolucionário com a esperteza de um pícaro que renuncia a sua condição homem de bem para
fazer-se revolucionário (1989, p. 673). Essa transgressão e modificação são entendidas por
tradições literárias de Meu tio Atahualpa realiza um breve apanhado das tradições literárias em
que a obra de Paulo de Carvalho Neto pode inserir-se. Dessa forma, a primeira relação
estabelecida é com a preocupação sempre presente nos escritores da América latina em descrever
a situação dos pobres, que segundo a autora, iniciou ainda no período da conquista. O gênio do
autor no que se refere ao domínio de vários métodos explica a associação com o romance
14
Periquillo sarniento de Fernández de Lizardi e Pito Pérez de José Rubén Darío, bem como sua
adesão ao romance indigenista que floresceu nas décadas de 1930 e 1940. Entretanto, a
multiplicidade ainda segue. Rabassa chama a atenção para o caráter épico que domina a narrativa,
mesmo que de maneira fantasiosa, pois a presença de uma guerra imaginária e de um herói às
avessas permite essa associação. Apesar dessa variedade de tradições presentes, a configuração
do romance como obra de denúncia e crítica social suplanta a todas. A autora entende que essa
Em 1995, Silvia Nagy realiza outro ensaio sobre o romance, Del indio pendejo al
narrativa, enquanto recurso de subversão do poder instituído. Para Nagy, Paulo de Carvalho Neto
toma como modelo as novelas de cavalaria, porém realiza uma paródia destas, pois ao incorporar
elementos da narrativa contemporânea, sintetiza uma crítica social ferrenha ao sistema capitalista.
Sobre a obra Meu tio Atahualpa ainda se destaca o artigo publicado por Robert Fiore
comparado entre a trajetória dos protagonistas, Lázaro e Atahualpa, em que o autor procura
Paulo de Carvalho Neto, assim como Barreto (1989), realiza uma leitura tendo a malandragem
narrativa de autoria masculina, tracejando o espaço ocupado pelos personagens femininos, pois
para Antonio Candido (1969), as manifestações artísticas são espelhos que refletem, mesmo que
de maneira turva, o processo histórico-cultural em que são concebidas pressupondo que elas
“articulam-se no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinação na maneira como
são produzidas e incorporadas as patrimônio de uma civilização” (1969, p.32). Neste processo, o
autor (a) até meados de 1970, era visto como “um ser assexuado, quando muito andrógino. A
(FUNCK, 1994, p.18). Além disso, é só com o surgimento dos estudos de gênero a partir de
Assim, no primeiro capítulo que se intitula Para um entendimento das relações entre
ocupado pelos personagens femininos nestas narrativas. Para tal, se analisará brevemente como
estudos feitos e as diferentes abordagens sobre esse tema, segue-se com o desvelar da posição do
feminino já no século XVIII com a publicação de Moll Flanders (1722) em Londres. Num
terceiro momento, estabelecida a expansão da picaresca para além das terras espanholas,
elucidam-se os estudos críticos que conjeturam a presença do pícaro nas letras brasileiras
contrapondo-o à uma nova categoria literária, a do malandro. Assim, tendo como referencial o
16
estudo realizado por Barreto (1989), estabelece-se a filiação do romance Meu tio Atahualpa à
experiência social e a literatura, possibilitando a conjunção do sujeito e sua história como parte
dos estudos de gênero e da crítica feminista nas universidades brasileiras. A seguir, ao refletir
enquanto detentor do processo de criação ficcional apresenta a mulher, neste caso, constituída
seu ventríloquo.
Meu tio Atahualpa traça a implicância deste para um entendimento da condição da mulher
brasileira, condição esta, que pode estender-se a toda a América Latina. Para acercar-se das
principio, seguindo o raciocínio de Magali Engel (2003) para quem as abordagens da condição
feminina acabam de certa forma centradas em uma “natureza universal da mulher, ou seja, para
além de tempos e lugares, e contraditoriamente, para além da própria história” (ENGEL, 2003, p.
08), pretende-se descrever a representação física do corpo feminino, seus silêncios e suas falas.
A importância dessa abordagem se justifica mediante a afirmação de Engel (2003, p. 09), para
quem o estudo do corpo se constituiu gueto dentro do próprio processo investigativo na crítica
sujeito histórico feminino dentro da narrativa malandra de Meu tio Atahualpa e sua implicância
Brasil, ou seja, 1972-1978, pois segundo Romero existe uma “construção cultural do corpo
sexuado” (1995, p.13) e a “leitura” dessa arquitetura revela o momento histórico da produção
deste. Assim, através da compreensão das imagens relativas aos corpos de Terrèze e sua sogra,
Seguindo com esse delineamento, também se faz imperativo um olhar sobre como a
momento onde a mulher estabelece seu espaço e reafirma seu papel na sociedade. Percebe-se que
o caráter sádico incorporado pelo personagem Terrèze, só pode ser explicado ou entendido ao
adentrar-se o universo mítico. Assim, num terceiro momento, ao resgatar a lenda do nascimento
de certa forma a das mulheres em franco processo de emancipação. Neste ínterim, o romance
Meu tio Atahualpa se converte numa atualização do mito lilithano e confirma a nova postura do
La pícara Justina
séculos XIII e XIV, em plena Reconquista. Este período foi marcado pelas lutas entre cristãos
desenvolvimento econômico dos judeus. Essa divisão entre cristãos aconteceu em 1391 quando
reinava Henrique II. Este, com o intuito de eliminar das terras espanholas aqueles que não
os cristãos novos, tendo como aliada a igreja. Em 1492 é conquistada Granada, último foco de
de sangre” persiste durante longo período. Neste mesmo ano, os espanhóis chegam na América e,
preocupados com a salvação dos habitantes da nova terra, transferem para o Novo Mundo o
movimento da Reconquista. Enquanto convertem os infiéis, saqueiam e transferem para seu país
as riquezas aqui encontradas. A Espanha passa a contar com o imenso fluxo de minerais vindos
da América.
Tanto ouro permitia ao rei movimentar-se em meio aos gastos exorbitantes com luxo e
ostentação. No entanto, de acordo com Carrillo (1982, p.110) o ouro não foi utilizado na
financiamentos exteriores para as guerras dirigidas pelos Áustrias na Europa. Assim, pode-se
afirmar que o fluxo do ouro advindo da América proporcionou prosperidade apenas para uma
minoria e tudo acabou diluído em luxo. Não ocorreram investimentos. Quem sofria as
conseqüências era o povo. Primeiro porque eram os únicos a pagarem impostos e segundo porque
estavam excluídos dos benefícios do colonialismo europeu. González (1994, p.35) afirma que os
salários não acompanhavam a subida de preços que chegaram a variar em até 400% a mais que o
clero.
Carrillo (1982, p.111) aponta que muitas camadas da nobreza também sofreram com
as dificuldades financeiras. Tal situação levou à venda de títulos e é a partir de então que os
cristãos novos puderam visualizar a chance de se integrarem a uma sociedade que sempre se
mostrou hostil aos judeus. E então, “el dinero se convertió en un modo de aparentar nobleza,
ascender a ella u ostentar” (CARRILLO, 1982, p.111). Foi assim que muitos daqueles que eram
considerados como “sangre infesta” superaram fidalgos empobrecidos. Muitos nobres passaram a
assumir cargos administrativos e burocráticos para garantir a sobrevivência. Isso abriu arestas
por interesses próprios. A convivência de religiões variadas foi a causa de lutas e conflitos sociais
e acabou por dar origem a uma visão de homem diferenciada que Castro (1967) sintetiza quase
poeticamente: “una cierta visión del hombre, en la cual se entretejían, como un ideal y precioso
tapiz, las concepciones islámica, cristiana y judaica del hombre”. Trata-se da percepção de que o
21
pluralismo religioso, anterior ao século XV, possibilitou a formação de uma identidade nacional,
concepção dos Reis Católicos, garantiria a unidade nacional. A Espanha aparentava ser uma
nação unificada e aparentar parecia palavra de ordem nessa sociedade. A idéia de honra, que é
algo individual, para os espanhóis passou a ter uma conotação social muito próxima da fama.
Trata-se de uma situação paradoxal que acaba por fazer com que “el hidalgo dé la vida por su
honra. Por ella corra toda clase de riesgo y privaciones. Acepta vivir como parásito y morirse de
O padrão de vida tão invejado da nobreza exigia muito dinheiro para ser sustentado.
Segundo Carrillo (1982, p.115), os nobres não trabalhavam porque acreditavam que o trabalho
significava desonra e vergonha e se constituíam como uma classe poderosa que, unida ao rei e ao
clero, formavam uma tríade que se ajudava mutuamente e que fortalecia o absolutismo.
número de criados de uma pessoa, maior o prestígio. Dessa forma, havia uma leva de criadagem
em todos os lugares. A figura do criado era quase decorativa. Trabalhava como pajem, lacaio,
escudeiro. O problema é que os criados tinham seus próprios criados formando assim, um ciclo
propício para a ociosidade, prostituição e fome. Havia um clima ocioso em toda Espanha; a
Maravall (1986, p.22) afirma que o estudo da situação dos pobres desvela um dos
importantes traços que compõem o panorama que favoreceu o surgimento da literatura picaresca.
Esse período corresponde à transição do medievo ao barroco espanhol. A idade média trazia
consigo a idéia de que a dicotomia pobres/ricos era natural e necessária para o bom andamento da
estrutura social. Esta ordem, estabelecida segundo princípios divinos, justificava as desigualdades
22
necessária e legítima na sociedade. E muito embora o pobre fosse a princípio um fenômeno rural,
com o desenvolvimento das cidades passou a ser um problema urbano. A falta do mínimo
traz consigo a semente da desmistificação dessa relação considerada divina: a divisão entre
pobres e ricos. A percepção de que ambos possuíam uma mesma natureza e podiam pensar, sentir
e desejar em um mesmo plano instigou nos menos favorecidos o anseio de participar dos bens
mobilidade social. Isso acarretou ódio e repulsa entre as classes sociais. Mesmo o ouro e a prata
É nesse contexto que surge o gênero picaresco: a visualização dos bens que todos
poderiam usufruir e a imobilidade causada pelo abismo entre as classes. Para Milton (1998), a
Espanha no século XVI havia se configurado como um grande império incapaz de administrar
sua economia, tornando-se uma “nação auto-heroicizada”, afidalgada, com um conceito de honra
distinto, muito próximo e confundido com o processo de limpeza de sangue, e inábil na condução
de uma política interna equilibrada. Essa situação produziu no ambiente espanhol a percepção da
fragilidade dos feitos heróicos na edificação de uma nação forte. As péssimas condições sociais
dos meios de sobrevivência. O pícaro é o sujeito que percebeu que trabalhar é sinônimo de
permanência na pobreza. Assim, se configura como alguém que busca ascender socialmente e
23
que tem consciência da impossibilidade deste feito pelas vias normais do trabalho. Neste
processo, o pícaro se converte em um individualista, pois “no tiene medios, que ni aún reunido
con un gran grupo tiene posibilidades de triunfar cambiando el orden social”, então “ante tales
circunstancias el pícaro aspira tan solo a su ganancia personal” (MARAVALL, 1986, p.75).
advindos da província francesa chamada Picardia. Os mendigos que lá habitavam, tinham fama
de covardes, ladrões de estradas e eram comumente associados a hereges (MOLHO, 1972, p. 13).
Outra referência vem do gascão antigo, no século XII, onde pícaro era sinônimo de fanfarrão,
indivíduo velhaco ou criminoso. Na Espanha, a palavra aparece por volta do século XVI para
impossibilidade de ascender socialmente gera “el fruto anormal del proceder desviado de los
pícaros” (MARAVALL, 1986, p.85) compondo mais um traços que influenciaram no surgimento
do gênero na Espanha. Sobre essa questão, Milton afirma que a Espanha é solo fértil para o
romance picaresco porque este capta “habilmente as contradições sociais”, tornando-se o “espaço
inversão paródica, em um patamar semelhante àquele ocupado pelo herói” (1998, p.170). E
assim, a partir dessa configuração histórica que surge e se estabelece a tradição do pícaro na
religião era vigente, foi publicado um livro anônimo intitulado Lazarillo de Tormes. Foi
passar pela censura e obviamente, por cortes. A inovação presente na obra gera certo desconforto
e a necessidade da filiação a algum estilo leva alguns críticos a considerá-la como uma epístola.
Para Guillén, trata-se de uma “epístola hablada, con términos algo contradictorios, porque
parece que escuchamos, de hurtadillas, la confesión dirigida por Lázaro a su amigo protector”
(1966, p.268). Este “algo contradictorio” a que se refere Guillén pode ser entendido como a
versão do romance.
causado pela sua condição de anti-herói. Lázaro é entregue como criado a um cego e precisa
enfrentar inúmeras adversidades para driblar sua condição permanente de fome. Na seqüência de
aventuras vivenciadas, vai desmascarando as grandes feridas sociais dos séculos XV e XVI na
Espanha e satiriza nesse processo, a nobreza e o clero. Ardiloso, tem na esperteza sua única arma
para concretizar seu processo de ascensão social e atingir um certo bem-estar, que aos olhos
Alemán, um pícaro real, escreve a história de Guzmán de Alfarache, o pícaro fictício. A obra está
dividida em duas partes, a primeira conta a história de um rapaz que, após ter sido um ótimo
estudante, viaja à Itália ingressando no mundo do vício. Ao retornar para a Espanha, tem o intuito
de entrar na carreira eclesiástica, mas se entrega às picardias e termina por escrever sua história
na galera a que foi condenado por sua condição de ladrão famoso. Sua pseudoconversão ao findar
25
a narrativa revela mais uma astúcia picaresca, pois entrega os próprios companheiros em troca de
volta de 1596-1597. A Espanha parecia estar repleta de pícaros, pois segundo González (1994,
p.130) tão logo o sucesso da obra foi evidenciado, alguém, percebendo a popularidade de
Guzmán, publica em 1603 sob o pseudônimo de Mateo Luján de Sayavedra, a segunda parte do
A terceira obra que compõem o eixo clássico da picaresca espanhola foi publicada
com o título de Historia de la vida del Buscón don Pablos, ejemplo de vagabundos y espejo de
tacaños em 1626, porém, logo ficou conhecida como El Buscón. Seu autor, Francisco de
Quevedo y Villegas era de origem nobre e foi educado como tal. Seguiu a princípio a carreira
eclesiástica, contudo fez a opção pela política e pela literatura. Sempre às voltas com denúncias,
contou com sua posição favorável até que, com a morte de Felipe II e a decadência de seu
protetor, o Duque de Osuna, acabou preso e enfermo na cadeia. Foi liberto depois de quatro anos
e falece em 1645.
as injustiças sociais, todavia primam pelo riso e deleite do leitor, sem chegar ao cerne destas. Tal
qual Lazarillo, Pablos também passa por um choque de realidade e decide, depois de levar uma
surra de seus colegas, ser esperto e tornar-se um velhaco. Potencializa na narrativa as picardias de
seus antecessores e não se redime destas, uma vez que ao mudar para a América mantém seus
costumes.
nesta vertente literária, a misoginia é latente. No discurso narrativo, a mulher não encontra,
26
apagamento da condição feminina, dado que, em várias obras, a mulher não possuía nem espaço
para ser personagem. É, apenas, uma presença turva e borrada que só pode “flutuar” no texto,
Muito embora a maioria dos críticos estabeleça como eixo do romance picaresco o
significativas, isto é, o caráter protagônico da mulher só é possível fora do cânone. Além disso, a
presença feminina se delimita sempre pela própria condição de “ser mulher” numa sociedade
patriarcal. Tal situação engendrará nas pícaras um comportamento marcado pela submissão, pois
moldes rígidos da sociedade em que foi gerado. Tal proposição pode ser observada no trato dado
ao feminino, sempre associado à prostituição e aos engodos que são considerados próprios do
gênero. Se num primeiro momento o meretrício garante à pícara um movimento mais tranqüilo na
subjacente ao processo da escritura, deixa clara a misoginia que norteia o discurso picaresco.
primeira pícara da literatura e “mãe” desta manifestação literária é Celestina. Outros críticos
compartilham dessa percepção, como Lope Blanch, Gili Gaya e Castro. Dessa forma, elucida que
consolidam a presença feminina, desde então, marcada pela prostituição e pela incapacidade de
feminino.
iniciado a partir de 1200. Para ele, toda a aversão frente aos instintos sexuais será projetada sobre
[...] nunca antes, como após o ano mil, o homem lutou tanto contra os componentes
erótico-sexuais que quer reprimir confinando-os ao sabá das manifestações satânicas.
Nunca, como nesta época, a mulher teve que pagar um preço tão trágico pelo ódio
masculino à força instintiva (SICUTERI, 1998, p. 111)
(1998) aponta para a influência do cristianismo que, ao impelir o homem para a transcendência e
para uma vida metafísica, imposição esta própria da idade média, onde a bipolarização entre
corpo e alma se estabeleceu com veemência e é ampliada pelo predomínio do macho e a crença
Formicarius, publicada em 1430 e o Malleus Maleficarum, escrito por Heinrich Institoris e Jakob
ganhar seu próprio dinheiro a partir de suas atividades como bruxa e alcoviteira, Celestina e
também suas mulheres parecem subverter a ordem econômica, social e sexual. Segundo
Montauban (2003), ao garantir sua subsistência, através do meretrício, estas mulheres passam a
28
exigida dentro da sociedade maniqueísta espanhola, haja vista que “una puta puede sangrar
problemática da fome, as protagonistas dos romances picarescos não são movidas por tal
situação. Elas, enquanto prostitutas, garantem com o próprio corpo, a fuga da miséria. Suas
preocupações são outras. Conseguem ascender para classes mais elevadas, mas se deparam com
exemplo de tal situação: uma jovem que se torna famosa em Roma, ganhando dinheiro como
prostituta, mas que adquire uma doença venérea (sífilis). Astuta, mantém o engodo de uma
aparente saúde, mesmo já sofrendo as conseqüências da doença. Assim como Celestina, não
pícara Justina (1605), considerada como marco para a entrada da mulher como protagonista no
romance picaresco que é seguida por outras publicações como La hija de Celestina (1612), de
Salas Barbadillo, La niña de los embustes, Teresa de Manzanares (1632) e La garduña de Sevilla
(1642) publicadas por Alonso Castillo Solórzano. Assim como os pícaros, as protagonistas destes
romances são de origem humilde, sem escrúpulos e têm no engenho, na trapaça e na astúcia a
sexuais e, com belos vestidos disfarçam a baixa extração social donde provêm.
decorrem do próprio processo histórico em que a obra foi concebida. Segundo Montauban
(2003), a busca de provar uma ascendência nobre, visualizada na compra de títulos tão recorrente
no século XVII, se evidencia na vontade que o personagem demonstra em provar sua linhagem.
29
Neste caso, o desejo é fazer-se reconhecida entre seus páreos, Lazarillo, Guzmán y Pablos. Para
tal, utilizando um artifício ardiloso, nega sua filiação celestinesca, vinculando-se às obras ditas
clássicas do gênero. Como suas antecessoras, busca espaço, mas sua estratégia é diferenciada. Ao
negar sua adesão ao meretrício, que só é desvelado quando ela narra sua doença, descrita como
“pelona francesa”, termo corrente na época para designar a sífilis, aparece sua engenhosidade,
quer distanciar-se do feminino. Depois, ao aderir somente à linhagem paterna, Justina, em mais
um melindre, se diz herdeira do corpo de Eva, mas faz questão de especificar sua estirpe,
masculina. Tal manobra ocorre em uma tentativa de garantia de espaço, pois para críticos como
protagonista (apud MONTAUBAN, 2003, p.72), dessa forma, ao priorizar sua ascendência
masculina, tenta num esforço sobrenatural, fazer-se igual entre os seus, o que resulta ineficaz,
haja vista que o núcleo clássico da picaresca espanhola é composto somente por Lazarillo,
Guzmán e Pablos.
Ademais disso, Justina apresenta um claro processo de alçar outros níveis sociais. Sua
ambição se desvela quando ao regressar de Mansilla afirma “[...] se me puso en la cabeza salir
de aldeana y montañesa y dar de súbito en ciudadana porque yo ya era una dama, ya las cosas
ÚBEDA, 1981, p. 132). O desejo de ascender e ocupar um status que comporte honra, riqueza e
comodidade passa a ser o eixo norteador de sua vida. Assim fica estabelecida a única brecha para
as mulheres no mundo picaresco, a prostituição. Mesmo que norteado por um tom moralizante, o
meretrício traz, aparentemente, algumas vantagens para a pícara frente às jovens “virtuosas”.
sempre escolhido pela própria família e constituindo-se na maioria das vezes em uma relação
comercial, haja vista que sempre estavam permeados por interesses econômicos, a pícara
30
transitava com mais liberdade dentro desse ambiente patriarcal. Podia escolher seu parceiro e não
Assim, para a mulher do barroco estavam reservadas duas esferas para alcançar uma
posição mais elevada, o casamento ou o convento. Nestes termos, cabia a ela ser apenas donzela,
esposa, viúva ou monja. Com muita sorte poderia casar-se com um homem de melhor posição
social, caso contrário, sem um possível matrimonio à vista, tinha como única opção o convento e,
com ele, o silêncio e a resignação. Fora dessas possibilidades “honradas” vigorava o meretrício.
Porém, Julio Rodriguez Luiz adverte àquelas que por ventura quisessem embrenhar-se em tal
aventura, pois
[…] una mujer pobre tenía, por supuesto, muchas menos oportunidades de éxito en una
carrera picaresca que un varón debido a factores tales como su menor educación, su
absoluta dependencia de los hombres y la desconfianza de la ley hacia a ella. Hablando
desde un punto de vista realista, la única puerta abierta a una mujer cuyo origen social y
ambición eran similares a de los pícaros era la prostituición y esta no podía elevarla a la
posición disfrutada por las pícaras literarias en la cúspide de sus carreras (apud SÁINZ
GONZÁLEZ, 1999, p. 39)
prostituta barroca. A impossibilidade desta última em conseguir realizar um bom casamento era
evidente. Ora, a honra de uma mulher era, naquele período, fácil de ser borrada. O demorar-se na
igreja ou manter-se por um tempo demasiado longo pelas ruas era motivo de desconfiança e
símbolo de libertinagem. Dessa forma, uma mulher como Justina, charlatã, sensual e
independente, seria condenada muito rapidamente e jamais poderia ensejar um bom casamento.
Um refrão popular ilustra bem a advertência dada ao público masculino: “no compres asno ni
recuero, ni te cases com hija de mesonero”. Por isso, os possíveis candidatos ao matrimônio que
Justina dispensa, seriam inverossímeis na sociedade em que a obra foi escrita e representam
somente o engenho de López de Úbeda e sua visão sobre a mulher, instaurando um falso
realismo.
31
masculinos se vêem às voltas com aventuras cômicas, as mulheres estão longe da ingenuidade de
jarros de vinho ou pequenas trapaças para driblar a fome. O universo delas, povoado de vingança
sempre atribuído ao feminino. Isso ocorre porque tais obras estavam destinadas a um público
masculino. Dessa forma, o narrador contava com a cumplicidade do leitor que, solidário com a
feminino.
Essa pretensão didática servia como alerta aos homens, para que não se convertessem
em títeres nas mãos de uma Justina. Esse medo frente a um domínio feminino não se justificava,
pois eram escassas as donzelas barrocas que sabiam ler e escrever “y éstas recebían una
educación fuertemente ideologizada: libros de moralidad y poesía cortés, novela rosa del XVII
que narcotizaba las almas femeninas con engañosos ensueños de amor y falsas promesas
Neste ínterim, se a pícara triunfa é para servir de admoestação aos homens incautos. O
nas mãos do autor que avisa, previne e aconselha a seus leitores sobre os perigos da inversão dos
uma pena masculina. Muito embora o processo autobiográfico que compõe a estrutura narrativa
picaresca garanta à mulher, enquanto protagonista, certo direito a expressar-se se faz necessária a
percepção de que tal discurso é construído por um autor que compartilha da mentalidade
misógina da época. É assim que na fala de Justina se desvela o ideário da sociedade patriarcal:
“somos las mujeres como mosquitos, que se van con más deseo al vino más fuerte, en que presto
32
se ahogan. Somos como rabos de pulpo, que quién más le azota, más le come sazonado” (LÓPEZ
DE ÚBEDA, 1981, p. 225). Embora as protagonistas sejam escassas, nos romances onde o
masculino norteia a narrativa, pode-se visualizar que a presença da mulher na picaresca também
Partindo do pressuposto de que para o pícaro a busca pela ascensão social se dá pela
trapaça, sendo seu objetivo maior driblar uma estrutura social pouco ou nada favorável e que
neste percurso satiriza essa mesma sociedade que lhe é intransponível; pode-se afirmar que a
exclusão se constitui na mola propulsora que orienta suas aventuras. Ora, não é somente a
exclusão, mas a percepção e a tomada de consciência desta é que admite o discurso satírico
inerente ao romance picaresco. Sendo assim, surge o questionamento: se este gênero permite o
aparecimento do excluído, pode-se pensar que também opera uma outra exclusão? Afinal, o que
se observa é que há espaço para o pícaro homem, e nem sempre para a mulher.
Como exemplo dessa situação pode-se tomar a obra Lazarillo de Tormes. Nela, há
referencias a duas mulheres: sua mãe (citada no início da narração) e sua esposa (citada no final).
Privadas do ato da fala pelo discurso indireto, não têm direito à argumentação. Suas possíveis
experiências, idéias ou posições são relatadas pelo narrador masculino, que lhes nega o direito a
O nascimento de Lázaro no rio Tormes, fato que justifica seu próprio nome, elucida
como se estabelece na narrativa o espaço ocupado por homens e mulheres e, ao mesmo tempo,
A água, em especial as águas que fluem em corrente como os mares, rios, etc
curso da existência humana e as flutuações dos desejos e sentimentos [...] das motivações secretas
GHEERBRANT, 1982, p.21). Em decorrência disso, o fato de Lázaro “ser de Tormes” demonstra
toda a vontade de transformação e melhoria de vida que ele busca no decorrer da narrativa, algo
que não acontece com sua mãe. Esta, ainda mais excluída que o filho, terá no corpo a única
margem. Na picaresca, há espaço para Lázaro, Guzmán e Pablos buscarem ascender, mas não há
registros nestes romances de personagens femininos que o façam. Ao homem é permitido o lutar
pelo acesso a condições de vida melhoradas. Quanto à mulher, mesmo que haja a consciência da
opressão, lhe são negados quaisquer ensejos de mudança. Há de se ressaltar ainda que não
existem manifestações eróticas nestes romances. Para González (1999), isso se explica devido ao
maniqueísmo do catolicismo espanhol no século XVI que leva a uma repressão sexual e ao
silêncio ou uma pseudo fala, fica o feminino submetido, resignado e submisso ao esquema
imposto pela sociedade do século XVII e, se existe um triunfo da pícara, este serve ao propósito
34
Assim, a perspectiva ideológica dos autores enquanto sujeitos sociais e históricos, que
associam a mulher à bruxaria e a vêem como fonte de perdição do homem, põe em relevo o
antifeminismo destes que imprimem o medo das mudanças na ordem social. Porém, o processo
de consolidação e expansão da picaresca enquanto gênero literário apresenta ainda outras pícaras.
é possível a verificação de certas mudanças no trato com o feminino. Muito embora ainda
estabelecidas entre homens e mulheres na sociedade e suas trajetórias nestas narrativas permitem
várias reflexões sobre as imagens do feminino e revelam como a mulher é representada pelo
imaginário masculino.
temporal e temática, dado que não se tratou apenas de uma manifestação específica de uma
época, e o passar dos séculos revelou que as características dos romances picarescos se fizeram
manifestações desse gênero é bastante recente. Até o século XIX, a crítica, em sua maioria,
percebia a picaresca como fenômeno espanhol. De acordo com González (1994, p.206-209), são
Américo Castro (1925), o primeiro limita essa manifestação literária na Espanha e o segundo,
considera como romance picaresco aquele realizado essencialmente por Mateo Alemán
(CASTRO, 1967, p.231). Poucos admitiam que pudesse existir o romance picaresco fora da
Espanha. A evidencia da extensão da picaresca dificultou sua própria definição como gênero. A
determinadas características tornou-se um empecilho, haja visto o próprio receio dos críticos em
Guillén (1966, p.71) afirma que a primeira pessoa a perceber a existência de um novo
gênero literário foi Luiz Sánchez, pois reedita Lazarillo de Tormes logo após a publicação de
picaresco stricto sensu e lato sensu e mito picaresco. Nesta perspectiva, o gênero se constitui em
uma fórmula que pode variar segundo a época, a nação e estilo do escritor. O romance stricto
sensu se caracterizaria pela sucessão de aventuras protagonizadas pelo pícaro que se movimenta
biográfico e a visão reflexiva do pícaro na narrativa. Os romances lato sensu são entendidos pelo
fenômeno picaresco acabaram por buscar nas condições sociais a explicação para o surgimento
do gênero. Nesta perspectiva, o século XIX trouxe as contribuições de hispanistas como Ticknor
(1849), Morel-Fatio (1893), Wilhem Lauser (1889) e Albert Schultheiss (1893). Trata-se de uma
crítica sociológica e positivista, que postula que as condições sociais existentes na Espanha
reflexo destas condições. Essa leitura limitada começa a ser superada por Frank Chandler3 em
1899. É ele o primeiro a introduzir a idéia do pícaro como anti-herói, além de perceber o caráter
satírico que se faz presente no romance picaresco, apresenta ainda a obra La Celestina (1499), de
Fernando de Rojas, como um precursor desta vertente literária. Isso se deve ao fato de que, ao
introduzir personagens dos extratos baixos da sociedade, entre eles as prostitutas, alcoviteiras e
concebe ainda a picaresca como fenômeno espanhol e as aventuras do pícaro como um pretexto
para descrição da sociedade. Em 1957, Alberto del Monte publica o Itinerário del romanzo
a picaresca e La Celestina.
3
Tese defendida em Columbia em 1899com o título de Romances of Roguery: an episody in the history of the novel
e publicada em Nova York.
37
picaresco. Nestes termos, Lazarillo de Tormes se configura como uma prévia do gênero, que se
manifesta no texto de Mateo Alemán, entendido como protótipo da novela picaresca. Ainda
seguindo uma abordagem sociológica está o trabalho de Oldrich Belic, publicado em 1961. De
acordo com o autor, o pícaro é reflexo das condições sociais e a crítica social é uma tentativa
deste, visto como um burguês frustrado, de inserir-se e ascender socialmente. O crítico admite o
pseudopicaresca e antipicaresca.
etimologia da palavra que deu origem ao gênero a possibilidade de uma definição. Sebastian
Covarrubias4 traz considerações sobre os termos: “el sustantivo pica, lanza donde se clavaba a
los prisioneros de guerra; el adjetivo picaño que vale por andrajoso y despedazado, y el
picaresco. Neste, filia-se de certa forma a Covarrubias ao buscar elucidar o histórico do termo
heterogeneidade no que se refere à etimologia do termo “pícaro”, todavia, ressalta que este foi
espanholas: Lazarillo, Guzmán e El Buscón. A única extensão do gênero fora da Espanha seria
Moll Flanders de Daniel Defoe. Ainda acentua o problema do honor x antihonor que perpassa as
obras e o fato de que estas possibilitam uma continuidade, não apresentando um final fechado. A
4
COVARRUBIAS OROZCO, S. de. Tesoro de la lengua castellana o española. Madrid: Castalia, 1995.
38
narrativa em primeira pessoa, a baixa linhagem do pícaro que poderia explicar sua conduta e a
crítica social presente nas obras, constituem os eixos do pensamento do autor. Em 1983 o crítico
sistematiza estas idéias elencando três características básicas da picaresca: o discurso em primeira
gênero com Lazarillo de Tormes e assinala o caráter heterogêneo que domina essa obra,
entretanto, não acredita na possibilidade de uma continuação do gênero. A sátira social e o pícaro
como anti-herói são retomados por Castro. Para ele, a picaresca apareceu como uma forma de
reação contra as manifestações literárias que descreviam somente a vida nobre e ascendente.
Lázaro Carreter no artigo Para una revisión del concepto de la picaresca5 admite o aparecimento
de romances picarescos fora de Espanha. Para o crítico, não é possível partir de uma única obra e
delimitar o que seja o gênero, pois a dinâmica de representação assume feições diversas nas obras
Francisco Rico com seu estudo La novela picaresca y el punto de vista, de 1970, traz
literária. Admite outras manifestações do gênero, mas crê que depois de Estebanillo González se
5
Artigo apresentado no III Congresso da Asociación Internacional de los Hispanistas, em 1968.
39
fecham as representações. Outro crítico espanhol que deve ser considerado é Jenaro Taléns e sua
obra Novela picaresca y práctica de la transgresión, publicada em 1975. Para o autor, a luta de
ascensão social pela classe oprimida funciona como gesto semântico. Assim, não poderia existir
romance picaresco fora do contexto espanhol. As outras manifestações são classificadas por ele
1967 um livro intitulado Los pícaros en la literatura, onde assinala a da falta de contato entre as
Europa. Parker arrola quatro hipóteses que dificultaram a atenção merecida pelas obras
importante que o do próprio protagonista e, por fim, o interesse ético que devem despertar.
estética da recepção as ferramentas para uma interpretação renovada. Alerta que o que se
considerou como digressões narrativas, sermões e meditações “fueran las delicias de los lectores,
primeiramente as abordagens estritamente sociológicas, permeadas por estudos que fizeram uma
conciliação com outras conteudísticas e, finalmente, os enfoques mais atuais que se centram no
discurso e na linguagem.
40
territórios e restringi-la como um fenômeno espanhol é imprudente, pois “cada acto humano es
resultado de las circunstancias entre las que el hombre se mueve” (TALÉNS, 1975, p.12). É
coragem” (GONZÁLEZ, 1994, p.227). Essa é a razão pela qual pode-se encontrar a presença do
Courasche (1670), ambos de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen. Na França, René
Lesage publica em 1715 a obra Histoire de Gil Blas de Santillane, continuando a tradição
iniciada na Espanha.
a publicação de Daniel Defoe, Moll Flanders (1722), em Londres. Embora a época da publicação
se distancie do barroco, o processo histórico em que a obra foi concebida não sofre tantas
ao processo misógino presente nas narrativas de autoria masculina. A mulher segue como
representada como fonte da perdição do homem. Por trás do discurso direto do personagem
Ese botín me había hecho considerablemente más rica que antes, la resolución que
había tomado algún tiempo atrás de abandonar aquel horrible oficio cuando hubiese
hecho más dinero, no volvió a ocurrírseme, sino que cada vez, quería ganar más y más:
y así la avaricia colaboró de tal modo con mis éxitos que no volví a pensar en cambiar
de vida (DEFOE, 1981, p. 280).
do século XVIII trazem algumas contribuições para a posição da mulher. Defoe, diferentemente
de López de Úbeda, é um pouco mais condescendente com Moll. Mesmo que o personagem não
tenha um fim muito animador, durante a narrativa, abre-se espaço para reflexões sobre a posição
da mulher, quase em tom de denuncia. Assim, Moll, com franqueza e até comoção, aponta a
[...] y en cuanto a las mujeres que, impacientes por llegar a un estado más perfecto,
deciden, como ellas mismo dicen, aceptar el primer llegado, van al matrimonio igual
que un caballo se precipita en medio del fragor de la batalla, a éstas sólo puedo decir
una cosa: que son mujeres que necesitan que se ruegue por ellas como se hace por las
demás personas perturbadas. [...] Yo desearía que las de mi sexose condujeran com um
poço más de sensatez en estas cosas, ya que en mi entender éste es un problema que en
nuestro tiempo nos afecta más que ningún otro (DEFOE, 1981, p. 85-86).
maior. Embora se faça porta-voz do ideário masculino, Moll parece apresentar outras
características que não se fazem presentes na manifestação espanhola. Enquanto no século XVII
não havia distinção entre sexo e prostituição e a pícara se constituía num personagem alheio a
¡Oh Jemmy! – decía - ¡vuelve! ¡vuelve! Te daré todo lo que tengo; mendigaré, pasaré
hambre a tu lado. Y así iba de un lado a otro de la estancia, como loca, luego me
sentaba, y volvía a andar por la habitación, llamándole y diciéndole que volviera, y
luego echándome a llorar de nuevo; y así pasé toda la tarde… (DEFOE, 1981, p. 172).
Além disso, existe outra diferença marcante entre a manifestação espanhola do século
XVII e a inglesa do XVIII: a capacidade de Moll em arrepender-se. Para Justina, López de Úbeda
42
não reserva qualquer tipo de remorsos por suas artimanhas e vícios. Sua trajetória na narrativa se
vê marcada pela desfaçatez que gera no leitor uma aversão frente ao feminino, constituindo
personagem marca um traço de sua personalidade e revela um certo progresso no trato com o
feminino: “Yo me volví de espaldas, porque en mis ojos también habían lágrimas, y le pedí
licencia para retirarme un poco a mi alcoba. Si alguna vez he sentido algo de verdadero
remordimiento por mi vida viciosa y abominable de mis últimos veinticuatro años, fue entonces”
(DEFOE, 1981, p.202). Percebe-se que a extensão da picaresca no século XVIII torna-se um
pouco mais verossímil e um pouco menos antifeminista, porém, isso se deve à marcha do próprio
juntamente com ele, a percepção da importância da razão para que haja entendimento e
compreensão da realidade. Dessa forma, Moll Flanders traz diferenças no trato com o feminino
porque as relações entre homem-mulher estão passando pelo crivo da razão e devem sofrer,
portanto, modificações. Assim, o narrador se esforça para dar a Moll voz própria, distanciando-se
Lizardi, no México, dá início a manifestação do gênero que é seguida por outros tantos romances
hispano-americanos, entre eles, Goldoni (1987, p.50) elenca El cristiano errante (1846) de
Antonio José Irisarri; El casamiento de Laucha (1906) e El falso inca (1905) publicados na
Argentina por Roberto Payró; Divertidas aventuras del nieto de Juan Moreira (1910); Oficio de
vivir (1958) de Manoel Castro e Aventuras de perico Majada (1962) de Ildefonso Pereda Valdés.
43
picaresca também se apresenta na literatura brasileira. González (1994, p.279) aponta para outros
romances publicados entre 1971 e 1984 no Brasil, no período do chamado “milagre brasileiro”,
ascensão social que procura ser alcançado por meio de trapaças, satirizando, neste processo, a
sociedade em que está inserido. No entanto, Candido em seu já mencionado ensaio, “A dialética
Brasileiros da Universidade de São Paulo, desvia da idéia desta expansão da picaresca no Brasil e
milícias de 1941, estabelece certa correspondência deste com os já tão conhecidos pícaros da
literatura, entre eles, Lazarillo de Tormes. Andrade (1941), embora não se refira especificamente
ao gênero picaresco, arrola em seu estudo algumas das características que podem ser
consideradas próprias do gênero, das quais se ressalta o falso realismo visto como conseqüência
6
Essa obra foi publicada no suplemento dominical do Diário Mercantil, no Rio de Janeiro de 27/06/1852 a
31/07/1853. Sem identificação, seu autor se intitulava “um brasileiro”. Em 1854 é publicada a primeira parte do texto
e em 1855 a segunda.
44
cânone literário e antecipa uma reflexão instigante de Montauban (2003), para quem o gênero
picaresco também esteve à margem do cânone, representado naquele período, pelos livros de
cavalaria. O interesse despertado pelo personagem pícaro, pelo quadro de costumes, a sátira,
tornou-se um chamariz que se mostrou eficaz. Esse chamariz, para Mário de Andrade é a “graça”
francês, associa Leonardo ao personagem da obra Histoire de Gil Blas de Santillane, publicado
reflexão que contribui para o entendimento das manifestações contemporâneas da picaresca. Para
o crítico, é importante perceber que “cada contexto possui um modo de apresentar o pícaro”
(1970, p.146). Assim, existe um modelo que é constantemente transgredido conforme o contexto
social.
retoma e explica essa questão. Para abordá-la, inicia com alguns estudos já realizados sobre o
assunto. Primeiro, de José Veríssimo, para quem Memórias de um sargento de milícias pode ser
8 RÓNAI, Paulo. “Préface”. In: Memoires d’un sargent de la milice. Rio de Janeiro: Atlântica, 1944.
45
Andrade e Josué Montello8 conclui que estes, ao realizar as analogias, deixaram de provar a real
filiação da obra ao romance picaresco. Seu referencial teórico para a análise da picaresca é a obra
de Chandler, um dos precursores dos estudos sobre o assunto e a de Valbuena Prat, o primeiro já
citado neste trabalho. Baseado nas idéias dos dois críticos, Antonio Candido constrói um conceito
de pícaro, entendido por ele como um indivíduo de origem humilde, às vezes irregular, largado
ou abandonado no mundo, que se choca com a realidade e, por isso, inicia suas picardias. A
percepção do pícaro como um ser ingênuo que ao deparar-se com a brutalidade da vida, precisa
aprender a defender-se, aproxima-se da teoria de Peter Dunn, que via no romance picaresco a
estes romances. As aventuras do personagem permitem uma visualização da sociedade, por isso,
tornam-se obras dominadas pelo senso espacial e físico. Ao buscar essas características em
Leonardo. No entanto, isso não impossibilita a filiação de Leonardo a uma “tradição” picaresca.
Candido percebe que não sendo um pícaro espanhol, ele é o “primeiro grande malandro que entra
na novelística brasileira [...] correspondendo a uma certa atmosfera cômica e popularesca do seu
tempo, no Brasil” (CANDIDO, 1970). Ainda segundo o autor, o malandro vive na fronteira entre
Pode-se pensar num primeiro momento na mesma conciliação proposta por Bosi, isto
é, a percepção de que cada momento histórico possui uma representação diferenciada do pícaro.
No entanto, o malandro é uma categoria que embora apresente características do pícaro clássico,
8
Josué Montello publicou um artigo em 1955 onde pressupunha que as bases da obra de Manuel Antonio de
Almeida estavam em Lazarillo de Tormes e Estebanillo González.
46
imagem de um tronco genuinamente espanhol a partir do qual nascem frutos diversos que
refletem novas épocas, novos homens e novos espaços. Nessa perspectiva, a autora segue
original, inédita em seus resultados estéticos, que é, ao mesmo tempo, a leitura crítica de obras do
passado” (1986, p.63). Assim, assegura um possível parentesco e aproximações com obras
de tais proposições e utiliza uma terminologia diferenciada. Para ele, não se trata de
malandragem, mas de neopicaresca. Assim, entende que tais manifestações na literatura são uma
da situação política, social e econômica que engendraram sua criação, abrindo espaço para outras
projeto de ascensão social, distinção esta que marca e separa pícaros de malandros. Muito embora
estes possuam táticas semelhantes para driblar a ordem da estrutura social, constituindo-se em
seres de fronteira que transitam entre a ordem e a desordem, a principal diferenciação entre os
dois está na definição do projeto de ascensão social, pois enquanto o pícaro aspira o centro, o
malandro deseja manter-se à margem para escapar à hierarquização. Essa definição estratégica
verifica-se, sobretudo, no nível discursivo. Enquanto o discurso malandro “se constrói sobre essa
linha fronteiriça entre afirmação e negação, realidade e fantasia, pois a poética da malandragem é,
GOLDONI, 1989, p. 73) o discurso picaresco tem um caráter monológico, fechado, onde os
malandro.
no ideário nacional e nas letras, Oliveira (2006) afirma que se trata de um processo iniciado há
coletivo e é vista por muitos como “algo elogioso, vantajoso, resultante da ginga, da malícia, da
social e que tem no exercício da malandragem a única forma de garantir seu bem-estar.
48
Roberto Schwarz (1977, p.14) em seu ensaio “As idéias fora do lugar” discute essa
mesma percepção e mostra que a incorporação da ideologia liberal européia pela sociedade
escravocrata brasileira gestou o clientelismo, a prática dos favores, enfim, o que se entende por
malandragem.
malandragem foi engendrada a partir da adoção do “credo liberal pela nação, que não penetrou
Brasil-nação” (DAMATTA, 2001, p.171). Isso gerou, segundo o autor, a adoção formal da lei e
sua rejeição na prática, ou seja, a incorporação de “meios” alternativos para driblar as leis,
afrontando-as.
Em sua obra Carnavais, malandros e heróis (1997), Roberto Damatta propõe uma
síntese do dilema brasileiro e aponta para o malandro como uma das figuras essenciais para
brasileira (DAMATTA, 1997, p. 262). Segundo o autor, o caxias é o sujeito submetido à ordem
que busca mantê-la e pode vir a ser vítima do malandro, convertendo-se num “otário”. O
renunciador, diferentemente do caxias, deseja a criação de uma nova ordem social. Trata-se do
herói, daquele que renuncia sua vida pessoal em favor da renovação da estrutura vigente, sua
forma de agir remete a dos santos. Quanto ao malandro, terceira categoria desta tríade, é, nas
palavras de Damatta “um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de
trabalho, aliás definido como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de
flutua entre o caxias e o renunciador. Seu poder é o dos fracos, isto é, o da obediência, porém
Damatta (1997, p. 264) explica que se trata de uma obediência oportuna, sagaz e malandra. Para
exemplificar essa conjectura, retoma o mito de Pedro Malasartes, o malandro por excelência no
ideário nacional brasileiro, que é seguido por tantos outros. Oliveira (2006, p. 111-112) descreve
a existência de uma verdadeira cultura da malandragem brasileira e aponta para a famosa lei de
Gerson, caracterizada pela intenção de levar-se vantagem em tudo, surgida com uma propaganda
principalmente pelas artes. Assim que, em 1933, Silvio Caldas grava um samba escrito por
brasileira
páginas da literatura brasileira. Jorge Amado na obra Pastores da noite, escrita entre 1963 e
1964, descreve a vida baiana e apresenta personagens saídos do povo, que vivendo na miséria,
arruaceiros têm bom coração. Nelson Rodrigues, na peça de teatro Boca de ouro (1959), traz um
perfil mais realista do malandro, descrito como orgulhoso, vaidoso e psicótico. Oliveira (2006)
índio Atahualpa e de outros personagens da narrativa é desvelada por Barreto, em sua dissertação
de mestrado defendida em 1987, pela Universidade de São Paulo: Mi tío Atahualpa, a sagração
do herói na terra do carnaval. Nesta, retoma o esquema proposto por Damatta (1997), ou seja, o
como que por vaidade, deixa-se desvelar de variadas formas e, sempre à espreita, parece estar à
espera de mais uma leitura possível, como num jogo de espelhos, onde as representações são
infinitas, revelando sua função heurística, de descoberta. Dessa forma, a variação das percepções
a respeito da obra estudada só serve para reafirmar esse caráter protéico e múltiplo que domina
tais representações.
51
A obra que foi publicada originalmente no México, chega ao Brasil pela tradução de
Remy Gorga Filho, em 1978. Este período, conhecido como o “milagre brasileiro”, corresponde a
um momento de aparente avanço econômico. Segundo Habert (1992, p.22), os números exibidos
médica e social à população do interior (projeto Rondon). O PIB (produto interno bruto) apontava
um crescimento de 11,3% e ainda a presença de grandes obras, como a construção da ponte Rio-
Niterói, a criação da Embratel, da Telebrás, do Ministério das Comunicações. Tudo isto regado a
Entretanto, Habert (1992, p.23) aponta que a tríade em que estava fundamentado o
milagre brasileiro não dava margem para tanta animação, isto porque o aparente progresso se
estabelecia a partir:
Dessa forma é possível entender que a população arcou com as custas deste aparente
progresso, pois 52,2 % dos assalariados ganhavam menos que um salário mínimo; havia no Brasil
32,8 milhões de analfabetos e a concentração de renda era uma das maiores do mundo, em 1980,
em alavanca para melhorar a vida de uma minoria que detinha os meios de produção e o capital.
Por conta das garantias proporcionadas pelo regime político e pela certeza de lucros
fabulosos, os bancos internacionais tinham dado ‘sinal verde’ à liberação de créditos ao
país do milagre. [...] no final da década (a dívida) estava em torno de 60 bilhões de
dólares, saltando para 100 milhões em 1984, uma das maiores dívidas externas do mundo
(HABERT, 1992, p. 17).
Toda essa situação era camuflada pela propaganda do “Brasil Grande”, do “milagre
brasileiro”, marcada pelo autoritarismo, pela censura, pela repressão que levava à tortura, ao
exílio ou a morte. Como afirma Habert (1992), a crise explodiu em 1973, quando o General
Ernesto Geisel sucedeu Médice. A conjuntura não pôde mais ser disfarçada. O petróleo
encareceu muito devido à suspensão das exportações pela OPEP (Organização dos Países
EUA detinham em seu território cinco das sete empresas que monopolizavam a extração e
externa subindo e começaram os escândalos financeiros. O salário mínimo atingiu o nível mais
configurando a crise.
vida. Ainda a presença dos aparelhos repressivos do Estado que mantêm a todos subjugados
9
O Ato Institucional n°05 outorgava poderes ilimitados ao executivo, permitindo a este fechar o congresso, cassar
mandatos, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão e estender a censura à imprensa.
53
potencializa. A obra Meu tio Atahualpa é concebida neste momento, onde o jeitinho e manha se
O romance que tem como tema as aventuras de dois índios, tio e sobrinho, numa
embaixada em Quito, no Peru. Dividida em dois momentos distintos, a narração principia pelos
desventuras posteriores do sobrinho ao ocupar seu lugar como mordomo na embaixada. Segundo
Barreto (1989, p.02), a narrativa tem como tema a tomada de consciência vivida pelo narrador-
ao europeu culto e, portanto, considerado como civilizado, gera a necessidade do disfarce. Nesse
consolidação da identidade que segundo Pesavento, “consiste num processo pessoal e coletivo no
qual o indivíduo se define com relação a um ‘nós’, diferenciando-se do outro” (1998, p.19).
de terceiro mundo leva a incorporação de atitudes, costumes e práticas “copiadas” de nações mais
pela língua materna, símbolo maior da condição a que todos estão sujeitados, reflete a ânsia de
“encobrir sua origem hispânica e travestir-se com a tradução de seus nomes para o inglês e o
francês, num arroubo de cosmopolitismo e nobreza” (BARRETO, 1987, p. 19). Isso determina
54
fingimento é uma das artimanhas utilizadas pelo malandro para atingir seus objetivos, e esta é
O embaixador finge estar preocupado com a morte da esposa: “O que mais me dói é
que foi tudo tão de repente, morrer assim tão de repente” (M.T.A. p.29). Finge Terrèze ao dizer-
se preocupada com o futuro de seu esposo Píter quando mata a própria sogra: “Se não a tivesse
matado, você não teria melhorado de posição” (M.T.A. p.20). E numa escala muito maior, fingem
nos “excluídos da exclusão”. Precisam fingir duplamente, pois renegam sua ascendência e
tradição em favor da cópia dos valores já copiados por seus patrões. Essa é a razão pela qual
Atahualpa insiste em manter todos os dentes, pois “queria morrer com todos, como os brancos.
Não s’imaginando, ora, que são desses dentes postiços que os branco têm” (M.T.A.p. 38) e a lista
segue com a incorporação do uso de roupas e sapatos, o pentear dos cabelos, a repetição de
expressões utilizadas pelos brancos, como por exemplo o “deleicioso” (M.T.A. p.38) repetido
Pedro, Terrèze, possui o claro desejo de incorporar-se ao meio. Extremamente ambiciosa, mata a
sogra com o auxílio do próprio filho desta. Depois, pensando em matar o sogro, acaba com a vida
Depois da alteração da estratégia, acusa o marido de ser fraco demais. Píter para
escapar da morte, finge estar em estado catatônico para depois fugir de casa, aliando-se a um
pelo sobrinho, também chamado Atahualpa. O pobre índio acreditava nas histórias contadas pelo
tio para demonstrar-se superior. Dessa forma, acaba sendo protagonista de aventuras cômicas e
hilárias na embaixada, que por fim resultam em sua prisão. Dessa forma, fica evidenciado o
Esse fingimento tão caro aos malandros se potencializa nos desfechos duvidosos a que
os protagonistas se submetem. Para Milton (1986) isso se constitui numa das máscaras utilizadas
pelo narrador para estabelecer a relação entre emissor-texto-leitor. Na obra Meu tio Atahualpa,
conscientização da situação que ele próprio e toda sua gente vivencia e, ajudado por Pedro, foge
da cadeia onde se encontra. A fuga do índio, uma das últimas aventuras por ele protagonizadas,
serve de marco para sua possível redenção. A presumível aceitação de sua condição de índio no
sistema capitalista é representado por um dragão formado por todos os representantes da classe
dominante. A derrota acontece com a volta do dragão para as entranhas da terra (M.T.A. p. 258).
plena fuga. Seu fim é manter-se numa situação razoavelmente confortável, longe dos problemas
vivenciados pela sua gente, num quase estado idílico em Cuba onde aprende a escrever,
tornando-se “conversador dos legítimo” (M.T.A. p.261). Seu intento é fazer-se de homem de
bem, alçando em seu meio uma posição privilegiada representada por ele na intenção voltar um
dia ao Equador “pra juntar esses Puetas que andam sorto pelas mata conversando seus causos.
Que também vão gostar de aprender como conversar nas folhas de papel” (M.T.A. p.262).
das aventuras de Atahualpa-Gregory, narradas por seu sobrinho e as aventuras vivenciadas pelo
56
sobrinho na embaixada, depois da morte do tio. Os personagens são divididos em quatro grupos
distintos:
1- O índio sacana
3- O povo
4- O conversador
Cada grupo descrito exerce funções diferenciadas e essa divisão é proposta pelo
narrativa. Assim, se apresenta como o conversador, aquele que contará os fatos e se denomina
Eu quase fui um índio sacana, como meu tio. Perdoando a palavra, o Senhor sim, meu
bom Amigo, sabe o que é um índio sacana? Um índio bunda suja. Desses que são índio
pela metade. Nem branco, nem cholo, nem serrano, nem costeiro, nem camponês, nem
equatoriano, nem estrangeiro, nem nada. Índio sacana”( M.T.A. p.13).
sozinho na narrativa, compondo um grupo isolado que representa uma classe distinta na estrutura
social: não faz parte do povo e não pertence à burguesia ascendente, detentora do poder.
Atahualpa-Gregory está em meio a esses grupos, sem identidade própria e definida. Não é índio,
pois luta para incorporar os costumes dos brancos em seu cotidiano. Não pertence à casta de seus
patrões, pois não detêm os meios e as formas para tal. Atahualpa-Gregory é um malandro.Trata-
se do indivíduo que sendo pobre e privado dos meios de sobrevivência, percebeu que o trabalho
meio. Mente, burla, engana e utiliza os mais variados métodos de malandragem para manipular
os moradores da embaixada.
57
Quanto aos doze pares, os chamados iguais, pertencem à classe dominante. Podem
ser ricos ou não, o fato é que se constituem como detentores de algum tipo de poder e exercem
- o embaixador, o “rei”;
- O padre curinha;
- O General, “Abderramán”;
- Os ajudantes do general: sordados (sic), guarda da esquina, tenente político, Benhur, Abul-
emir;
- O doutor deputado;
- Deputado Zaguala;
- O porteiro da clínica;
- Juacinto Jardineiro;
- A indiada do povoado;
- Os estudantes;
- O sordado irmão;
- Camponeses;
[...] a obra é regida pelo embate entre forças que representam somatórias de várias
categorias. Do lado negativo, perfilam-se muitos brancos (mas não todos), o grupo
econômico do explorador capitalista, a ordem e a sacanagem. Do lado positivo, ficam
muitos índios (mas não todos), o explorado e a revolução (1987, p. 50).
Dessa forma fica evidente que a tipificação dos personagens embora se configure
como redutora, pois não existe profundidade em sua constituição, serve ao intento de manter a
destes propostas por Forster, a divisão entre personagens planos e esféricos. Os primeiros ainda
poderiam ser caracterizados como tipos ou caricaturas. Seguindo esta terminologia, a maioria
dos personagens que compõem a obra é tipificada, com exceção de alguns que serão agora
analisados com maior precisão. Os índios podem ser vistos como caricaturas, já o personagem
satírica com que são narradas, provocando o riso e a chacota, características próprias das
caricaturas, assim que a tentativa de incorporar os costumes dos brancos, como, por exemplo,
tomar banho, provoca no leitor certo estranhamento, mas atende ao propósito de desmascarar a
59
situação do índio, sem acesso às condições básicas de higiene: “Me pus a lavar um negro, pra ver
que cor pegava, quanto mais sabão lhe passava, mais sujo ele ficava. Porra! Duas horas debaixo
meu assunto. Um assunto de dois parmo” ( M.T.A. p.153). Atahualpa-sobrinho pode ainda ser
evidencia o caráter de segregação que configura a sociedade. A luta pela inserção acontece de
duas formas: pela malandragem ou pela revolução. É na constituição dos personagens Atahualpa-
sobrinho e Píter-Pedro que se percebe a efetivação desses dois modelos, enquanto Atahualpa –
ainda uma índia, tia de Atahualpa, conhecida na aldeia como tia chorona e uma cadela, noiva de
Volterr. Todos estes se constituem em tipos. Apesar das descrições físicas feitas da embaixatriz e
corpo, a segunda pelo vigor do corpo e pelo projeto de inserção social que se estabelece através
do erotismo e da sensualidade.
questão da construção da identidade nacional, e reflete sobre a problemática racial, que “traz de
demanda tal incorporação. Seguindo uma trilha antropológica, tendo como referencial Damatta
Caxias, isto é, são os dominadores, fazedores e mantenedores das leis. No segundo vértice estão
assim que entende o mando de Terrèze sobre seu esposo Píter e relata a subversão da ordem
moral na relação incestuosa com o embaixador como uma processo de inversão carnavalesca
(1987, p. 30). Ainda nesta perspectiva, aponta que o próprio processo de ascensão de Terrèze é
carnavalizado, pois ela anseia por ser embaixatriz, um título esvaziado de soberania.
Damatta (Barreto, 1987 p. 49). Ele passa de uma condição de alienado, condizente com a
ideologia colonialista donde deriva seu nome para o único personagem que é sujeito de seu
próprio destino. Tal metamorfose se dá primeiro por sua relação com os livros que é seguida pela
renuncia de suas aspirações pessoais em nome do bem comum. Píter encarna e reconstitui a
eu-narrador e seu tio Atahualpa. Para tal, discute sobre a presença do índio na narrativa,
processo de usurpação de identidade sofrido pelos índios, Barreto relata as alterações de nome,
pois o desejo de ser outro se efetiva através de um “parecer ser” que leva à alienação (1987, p.
59). Define a malandragem como eixo constituinte de Atahualpa-tio, pois além de sua astúcia e
autêntico malandro. Não deseja mudar a ordem estabelecida, ao contrário, busca mantê-la, mas é
condenado por isso à morte. Seu sobrinho reconhece a esperteza que lhe é inerente e o identifica
com um personagem folclórico, o Pedro Urdemales (Barreto, 1987, p. 67), ambos com a
capacidade de domínio da palavra, do ato verbal. Entretanto, ao contrário do tio, é ainda ingênuo
e mal leitor das histórias contadas pelo tio. Passa por um processo de purificação e depuração até
autora afirma que tanto um quanto outro mediatizam as relações com a realidade através da
palavra, que possui um estatuto de verdade. Ambos desejam ser um outro, mas Atahualpa-
sobrinho em seu ensejo de ser o tio, que a sua vez desejava ser o branco, fez uma leitura turva da
realidade, pois decifra o mundo da embaixada através do relato do tio, um malandro convicto. No
processo da escritura, passa de narrador enganado pelas artimanhas do tio a narrador enganador,
pois conscientemente apresenta a realidade distorcida que lhe foi transmitida num tempo anterior.
Neste processo, aproxima o enunciado da enunciação, pois inicia a narrativa num tempo distante,
mas a aproxima pouco a pouco e encaixa o personagem no narrador, assinando e datando a obra
ao findá-la.
62
a superação acontece porque enquanto o pícaro aprende as fórmulas para tentar driblar a estrutura
social em que se insere, depois de determinado período, está fixado nesta mesma ordem,
compactuando com aquilo que pretendia negar. Já o malandro, em oposição, tem como
característica básica a hipertrofia de sua personalidade quixotesca. Isto é, deseja um mundo novo,
mas o Quixote morre para dar vazão ao revolucionário, configurando o futuro do ex-pícaro, o
malandro. Por isso, “pode-se ler o romance picaresco como o passado, e o Meu tio Atahualpa
p. 124). Nesse novo desenho, o personagem conhece os trâmites próprios da trapaça, mas já não
necessita deles para seguir, é o que a autora distingue na narrativa como a busca da tentativa de
plasmação de um herói, alcançada somente por Píter, já convertido em Pedro, por meio do
fugindo da noção do real para configurar a luta entre o bem e o mal. Há de se ressaltar que essa
luta não é definitiva, pois os personagens têm na revolução o mecanismo de instaurar uma nova
primordial, mas o autor que domina o logos, dá lógica à narrativa, possibilitando-a. Os conflitos
apresentados e a crítica ao domínio do branco é criticada na narrativa por meio do logos, porém
não se pode esquecer que é também do branco que este provém, provando que tais conflitos são
de ordem ideológica.
Conclui apontando para a constituição do romance como obra que não pode ser lida
força latente que “determina cada detalhe do texto” (BARRETO, 1987, p. 156), pois tornou
afirmação.
Assim, para Barreto (1987), embora os protagonistas dessas novas aventuras possam
ter como antepassado o pícaro espanhol, incorporaram um outro, o cavaleiro andante e suas
fantasias e assim como Atahualpa sobrinho, “Dom Quixote não dimensiona a verdade segundo a
relação das palavras com as coisas, mas na intricada relação das palavras entre si [...] por isso se
enterrava no labirinto de suas próprias representações” (BARRETO, 1987, p. 92). Apesar disso,
próprio passado, Mi tío Atahualpa instaura o futuro do ex-pícaro” (BARRETO, 1987, p.123).
Nestes termos, cabe agora analisar a posição ocupada pela mulher na narrativa
modificação nas relações entre homens e mulheres. O advento dos estudos de gênero e a
constituição da crítica feminista abriram espaço para reflexões mais apuradas sobre a presença e
o universo dessa nova perspectiva crítica, que, segundo Eagleton (2001) converte-se em uma
O crítico feminista não estuda as representações de gênero simplesmente por acreditar que
isso sirva aos seus propósitos políticos. Ele também acredita que o gênero e a sexualidade
são temas centrais na literatura e em outros tipos de discurso, e que qualquer exposição
crítica que não os considere terá sérias deficiências [...] Ele dirá que tais questões são a
matéria da própria história e que na medida em que a literatura é um fenômeno histórico,
são a matéria mesma também da literatura [...] Estranho seria se o crítico feminista ou
64
socialista visse a análise das questões de gênero ou classe meramente como sendo de
interesse acadêmico (EAGLETON, 2001, p. 225).
A MULHER...
A mulher que foi a perdição para o pai Adão, para
Sansão a morte, e para Salomão uma vingança é,
para o médico um corpo; para o juiz uma ré; para o
pintor, um modelo; para o poeta, uma flor; para o
militar, uma camarada; para o padre, uma tentação;
para o são, uma enfermidade; para o republicano,
uma cidadã; para o romântico, uma diva; para o
versátil um joguete; para o gastrônomo, uma
cozinheira; para o menino, um consolo; para o
noivo, um desejo; para o marido, uma carga; para o
viúvo, um descanso; para o pobre, uma calamidade;
para o rico, uma ameaça; para o jovem, um
pesadelo; para o velho, um inimigo; para o homem,
um estorvo; para o diabo, um agente; para o mundo,
uma força; e para o tipógrafo...Uma página.
(Jornal do Comércio, Desterro,1881)
assumidos e impostos pela sociedade desde os tempos mais remotos e revela uma historia que
não é somente a do gênero feminino, mas “também é a historia da família, da criança, do trabalho
de opressão a que o gênero feminino foi e ainda está sendo submetido, bem como as artimanhas
Nesse ínterim, analisar a imagem da mulher no romance Meu tio Atahualpa significa
buscar a reconstrução do papel feminino tal qual foi idealizado pelo homem enquanto criador do
feminino e o que este representa para uma sociedade em que a emancipação da mulher já é
evidente.
forma que na França, Inglaterra e Estados Unidos, pois no Brasil a preocupação se voltou para os
direitos trabalhistas e a mulher se via mais preocupada com estes do que com as reivindicações
outros países latino-americanos se deve ao forte arraigamento dos movimentos de esquerda com a
igreja católica, o que gerou certo direcionamento na luta feminina, reprimindo determinados
Para entender essa dinâmica, se faz necessário o delinear de um breve histórico das
como nova modalidade de análise literária, quebraram com a visão falogocêntrica até então
vigente.
O termo falogocentrismo foi criado por Jacques Derrida através da combinação das
masculina, evidente no fato de o falo ser sempre aceito como o único ponto de referência, o único
sempre a mulher com base na sua relação com o homem, deixando prevalecer os aspectos que lhe
Albornoz e Carrión
estudo do processo de opressão a que estas foram relegadas, não se pode deixar de afirmar que
dessa forma, a história será bastante longa. Mesmo com a consciência da impossibilidade de tal
feito neste estudo, ocorre a necessidade de desvelar pelo menos em partes, a história do universo
Bastante antiga, essa história tem início há cerca de dez mil anos atrás, quando a
mulher ocupava uma posição bastante diferenciada. Segundo Celaya (1999, p. 09-10) tal
afirmação só pode ser feita com base em vestígios arqueológicos, no entanto, devem ser
entendidas como especulações realizadas a partir de figuras encontradas e que parecem apontar
para a presença das primeiras divindades como femininas, seria o chamado matriarcado. Surgido
antes da agricultura, este seria um momento em que o gênero feminino ocupava uma posição
mais elevada na organização social. Somente com a divisão de tribos e a substituição da enxada
69
pelo arado é que o homem passa, segundo Leite (1994), a ser agente de produção. A partir daí,
Há de se lembrar que, antes disso, a descendência era marcada pela linha materna e
posição da mulher. Com o surgimento das cidades e da propriedade privada é que a mulher, na
verdade seu útero, passa a ser propriedade masculina, garantindo a perpetuação dos bens
materiais na família. Simone de Beauvoir em sua obra O segundo sexo, publicada em 1949,
fronteiras do econômico, pois a mulher converteu o homem em seu destino e necessita do amor e
para a classe feminina. Para os romanos a mulher pertencia ao homem; para os gregos tratava-se
de um ser inferior. Mesmo o cristianismo que afirmou a igualdade entre os homens por meio do
Renascença embora tenha se mostrado favorável à figura feminina, não eliminou o processo de
exclusão.
foi inserida no mercado de trabalho, não no mesmo patamar que o homem. Segundo Leite (1994),
as jornadas de trabalho eram muito extensas, os salários eram baixos. A mulher não competia
com o homem, pois sua atuação no mercado de trabalho estava restrita aos setores de menor
métodos anticoncepcionais. No entanto, isso não significa que a situação atualmente se configura
de maneira igualitária. As mulheres trabalham muito, ganham pouco, não são as detentoras dos
meios de produção, têm pouco acesso ao poder, são as mais pobres e constituem a maioria
situação da mulher nos primeiros anos de colonização é um legado dos viajantes que, segundo
Raminelli (2004), pouco se preocupavam com os nativos. Tudo era julgado segundo a perspectiva
cristã e européia. As mulheres nativas eram tidas como seres cruéis, demoníacos: “Bry traduziu o
prazer das mulheres diante da morte e do esquartejamento do inimigo por meio dos gestos e dos
movimentos das índias e da postura contida dos guerreiros” (apud RAMINELLI, 2004, p.30).
No Brasil colônia, a mulher, e mais especificamente seu corpo, eram concebidos como
“um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam” (DEL PRIORE, 2004,
crenças populares. A mulher era reprimida, pois representava o desconhecido, e como tal, era a
fonte de inúmeros males, enfermidades e, segundo Del Priore (2004, p.109), feitiços e maldições.
É só a partir do século XIX que a população feminina brasileira é educada, pois logo
evidenciado na imagem de país atrasado, inculto e primitivo. Para isso, a educação do povo se
71
desenvolvimento educacional. Nas palavras de Louro (2004, p.447), não era possível modernizar
sem educar. Embora houvesse um discurso corrente sobre a importância da educação, nessa
analfabeta e a educação das mulheres, como estabelece Várzea, era diferenciada daquela recebida
pelos homens:
Dessa forma, estava implantada uma divisão sexista na educação brasileira do século
XIX. Para servir à ordem e ao progresso do país, as mulheres recebiam uma formação duvidosa,
voltada para a orientação dos filhos e a preservação da tranqüilidade no lar. Deveriam ser
“escolas de primeiras letras, as chamadas pedagogias, em todas as vilas, cidades e lugarejos mais
populosos do império” (LOURO, 2004, p.443). Havia escolas fundadas por congregações
religiosas, outras mantidas por leigos. Os meninos tinham o maior acesso à instrução. Cabia às
meninas somente o ensino das já citadas pedagogias, que eram ministradas por aquelas senhoras
que por “sua honestidade, prudência e conhecimentos se mostrarem dignas de tal ensino, devendo
saber coser e bordar” (SAFIOTTI apud LOURO, 2004, p.444). Percebe-se que a diferença
curricular a que eram submetidas as meninas era gritante. Ressalta-se que havia ainda as
diferenças provindas de classe social, raça e etnia. Eram estes quesitos que levavam a uma
Louro (2004) é possível homogeneizar alguns aspectos que compõem a educação feminina, tal
como se constata:
As mulheres devem ser mais educadas que instruídas, ou seja, para elas, a ênfase deve
recair sobre a formação moral, sobre a constituição do caráter, sendo suficientes,
provavelmente, doses pequenas ou menores de instrução. Na opinião de muitos, não
havia porque mobilizar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que
seu destino primordial – como esposa e mãe - exigiria, acima de tudo, uma moral e bons
princípios. Ela precisaria ser, em primeiro lugar, a mãe virtuosa, o pilar da sustentação do
lar. A educadora das gerações futuras. A educação da mulher seria feita para além dela, já
que sua justificativa não se encontrava em seus próprios anseios ou necessidades, mas em
sua função social de educadora” ( LOURO, 2004, p. 447).
É interessante ressaltar que essa intenção de realizar uma educação feminina para o
lar é fruto de um processo histórico. Ainda no século XVIII, a educação das crianças era de
construção da imagem da mulher-mãe. Neste propósito, pode-se citar Rosseau, um dos primeiros
a problematizar essa questão e a afirmar que a mulher deveria ocupar-se da educação dos filhos
família nuclear adotado por esta, reafirmam a posição da mulher como a principal responsável
pelos cuidados da casa e educação dos filhos, mantendo-se submissa é claro, ao esposo.
Muito embora não se possa negar que ter acesso ao sistema educacional representasse
um avanço para a condição feminina, havia ainda a imposição religiosa. No contexto republicano,
a mulher vivia sob um duplo estigma católico, o de ser Eva ou Maria. Essa dicotomia não
permitia opções. A pureza da virgem se impunha como única alternativa de prestígio que se
Segundo Rago (2004, p.578), nas primeiras décadas do século XX, grande parte do
proletariado é constituído por mulheres e crianças. Existia uma classe trabalhadora feminina que
sofre com a exploração demasiada, os baixos salários e o assédio sexual. A maioria destas
73
essa busca se constitui como uma característica marcante do movimento feminista no Brasil cuja
origem se dá a partir de 1970, pela luta em defesa dos direitos civis, pela liberdade política e pela
melhoria da qualidade de vida. Segundo Buarque de Hollanda (2003, p.19), isso se deve ao fato
de que, aliadas aos partidos de esquerda e a movimentos progressistas dentro da igreja católica, as
feministas relegaram para segundo plano a liberdade sexual, o direito ao aborto e os debates
É assim que, a partir de 1980, fica evidenciado esse processo através da vontade, por
parte das mulheres, de articular e incorporar uma visão mais ampla da cidadania, discutindo
trabalhadoras” expressam essa intenção. Muito embora se pudesse evidenciar desde o Brasil
colônia uma presença feminina na luta pela abolição da escravatura, e que o direito ao voto tenha
sido conquistado ainda em 1932, antes mesmo que em outros países europeus como a França e a
Itália; Giulani (2004) aponta que é entre 1979 e 1985 que se estabelece a preocupação com o
mundo do trabalho e a busca por uma cidadania e igualdade no setor laboral. Nessa perspectiva, é
que surgem os movimentos de mulheres trabalhadoras no Brasil. Como exemplo, pode-se citar a
luta das mulheres do campo, organizadas em pequenos grupos, a maioria de matriz religiosa,
ligadas à Pastoral da Terra e aos chamados clubes de mães. Tais organizações assumem uma
Das longas e animadas reuniões –ensino e saúde estão no centro dos debates – saem
abaixo-assinados, manifestações, organização de encontros municipais, estaduais e
74
desviando das questões ligadas à sexualidade, ao erotismo, fruto da aproximação dos movimentos
feministas com a militância religiosa, e que denota o quanto a mulher brasileira ainda se vê presa
quebra de estigmas, buscando compreender como é que se torna mulher, para utilizar a expressão
Tabela 1:
1934 Campanha eleitoral para a Assembléia Constituinte, com intensa participação feminina
Estatuto da Mulher, elaborado por Bertha Lutz e pela deputada Carlota Pereira de Queiroz.
Bertha Lutz foi uma das principais pioneiras do movimento organizado de mulheres,
1936
trazendo para o cenário político as campanhas pelo voto feminino, por mudanças na
Conquista dos direitos das mulheres como cidadãs e trabalhadoras, assegurados pela
1988
Constituição Federal. É criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
principalmente. A percepção das situações de opressão e repressão levou aos chamados estudos
de gênero.
10
Esta tabela resume as informações publicadas por Delaine Martins Costa em seu estudo, Introdução ao
planejamento para o gênero: um guia prático, publicado pela Fundação Ford em 1997, no Rio de Janeiro.
76
centros de pesquisa no Brasil, pois, segundo Buarque de Hollanda (2003), estes se desenvolveram
literária sobre a mulher no Brasil assume atualmente dimensões significativas, mesmo que
Segundo Funck (1994), o gênero assume várias conotações, dentre as quais ressalta
que se trata de uma categoria gramatical inerente a qualquer língua e que tem o masculino como
social, cultural e psicológico que se impõe sobre a identidade biológica, fazendo com que se
e o segundo entendido como o comportamento sexual de uma pessoa. Tal categoria de estudo já
está arraigada à prática acadêmica e se configura nos estudos literários pelo interesse no desvelar
subordinação das mulheres", e analisaram como as pessoas são formadas para ter
77
comportamentos diferenciados pelo fato de terem nascido macho ou fêmea da espécie humana.
Neste período se destaca a primeira obra de crítica feminista Política sexual, publicada em 1970,
possibilidades de reflexão sobre as posições ocupadas por homens e mulheres no âmbito social,
termos feminist, female e feminine. O termo feminista pode ser entendido como uma postura
política, quanto ao feminino, isto é, da mulher, remete à condição biológica de ser fêmea. Por fim
feminilidade é uma característica cultural e, portanto, construída. Kristeva é ainda mais radical ao
pensar a feminilidade, pois para a autora, “trata-se de um conceito elaborado pelo patriarcalismo
que visa e leva à marginalidade das mulheres” (apud MAGALHÃES, 1999, p.650). A
incorporação de tais conceitos e idéias acontece na estrutura social através das chamadas
tecnologias de gênero. Estas são entendidas como “as normas discriminatórias em relação ao
sexo feminino que mantêm a distinção sexista, legando ao homem os domínios da razão, da
partir dos sistemas de gênero. Esse termo, utilizado pelos cientistas sociais feministas designa
relações sociais preexistentes ao indivíduo. Esses sistemas estão sempre ligados a fatores
Nessa perspectiva, o escritor sempre foi visto como um ser assexuado e as poucas
manipulação realizada através dos sistemas de gênero, o grupo liderado por Kate Millet passou a
masculina e sua exclusão da história e dos cânones literários. Foi assim que se instituiu uma
características
“Que é mais radical, o corte da tesoura ou o traço do lápis? Um e outro engendram uma
superfície”.
Lucia Castelo Branco
leitura de mundo e até mesmo a aceitação dentro da academia como tal, não se estabelecem sem
79
dificuldades. A percepção do autor como um ser sexuado traz implicações significativas. Schmidt
(1994, p.28) reflete sobre estas dentro dos estudos literários e afirma que, ao se estabelecer, a
crítica feminista, de certa forma, rompe com o paradigma masculino vigente, traçando e
raciocínio, distinguindo entre sistemas (autor + texto + gênero literário + períodos/escolas, etc.) e
entendido como uma prática ideológica ou política conforme afirma Eagleton (2001).
interpretação onde o sujeito, inserido num dado momento histórico, interage e produz sob
determinada égide.
estabelece no nível do sujeito e no nível do objeto, pode-se ainda elencar como princípios
de estudo.
80
permeada pela consciência histórica. Nesse ínterim, o interesse é entendido como a ideologia que
estudo, efetiva-se a partir do momento que este aproxima os aspectos literários aos elementos da
cognescente, isto é, “a consciência que conhece, cujo fim último é a libertação, como
autoconsciência, da aparência objetiva” (apud SHMIDT, 1994, p.29), abrindo-se espaço uma
primeira e mais gritante é o fato de que, ao criticar o patriarcado, utiliza os próprios conceitos e
teorias deste, confinando e atrelando o arcabouço conceitual da crítica feminista a tudo o que essa
mesma crítica se propõe a desconstruir, ou nos termos do autor, esse pensamento “acomoda,
assim, o potencial epistemológico radical do pensamento feminista, sem sair dos limites da casa
patriarcal” (1987, p.208), gerando um paradoxo, uma prisão domiciliar da linguagem, como
define Nietzsche.
A crítica feminista passou por duas fases distintas e atualmente uma terceira se
configura. Num primeiro momento, iniciado por volta de 1970, com a já mencionada publicação
de Kate Millet, a crítica se detém na preocupação com os estereótipos de mulher, que entre anjo e
monstro, buscava os erros do passado. Tratava-se de uma crítica androcêntrica que se contrapôs a
81
uma segunda manifestação, classificada por Showalter (1994, p.27) como ginocrítica. Esta
procurava desvelar uma literatura feita por mulheres, elucidando como estas se comportavam em
questões como a estrutura textual, os temas recorrentes, o estilo, a história, até a própria
principiou um mapeamento da estética feminina. Como representantes desta fase, Funck (1994)
correntes distintas, por um lado oriunda do movimento de libertação feminina e por outro da
patriarcal teoria e crítica literária, evidencia-se a terceira fase; caracterizada por uma busca de
revisão dos “conceitos básicos do estudo literário e teorias formadas a partir da experiência
2) crítica inglesa: aliada ao marxismo, busca elucidar a opressão que se estabelece via gênero e
classe social.
Brasil, segundo Buarque de Hollanda (2003, p.18) é possível estabelecer-se uma panorâmica da
82
produção crítica literária sobre a mulher no Brasil e salienta que os estudos críticos foram
iniciados em 1985, na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) com uma mobilização de
crítica literária sobre a mulher no Brasil está vinculada à corrente francesa, primando pelo viés
psicanalítico; 52% ainda segue a crítica literária tradicional e tem a mulher somente como tema;
os 31% restantes possuem um caráter mais político. Destes, Buarque de Hollanda classifica 70%
demonstrar a função exercida por estes na atual crítica literária. Trata-se de evidenciar a produção
“A linguagem é o lugar do encobrimento, da trapaça, pois o desejo nunca se mostra abertamente, mas
através da via do engano e do engodo”.
Ruth Silviano Brandão
83
ideologia que se reflete na própria criação. Nesse processo, o discurso se converte na malha que
dá forma, delineia e efetiva os desejos confessos ou não do autor. O texto passa a ser o veículo
através do qual é possível engendrar uma máscara, um disfarce e uma oportunidade para que, na
autor, detentor do processo de criação, expõe sua experiência de mundo, como numa confissão,
mas dizendo-a de um outro, assim a ficção é o “fascinante equívoco, lido como realidade [...] o
(CASTELO BRANCO; BRANDÃO, 1989, p.17). Nesse sentido, toda escritura pode ser pensada
sociedade.
significa:
Dentre os sentidos inerentes ao termo representação, vale destacar o que diz respeito à
reprodução daquilo que se pensa e que foi assimilado pelos sentidos, pelo pensamento ou pela
imaginação. No âmbito dos estudos de gênero, essas representações assumem proporções outras,
elucidação daquilo que é concreto, que diz respeito a uma percepção própria dos sentidos e
manifesta, neste caso, no texto literário. Showalter (1994), reflete sobre como o mecanismo da
converte, dessa forma, em mais uma das maneiras de reconhecimento das relações que se
estabelecem na sociedade no que se refere ao espaço ocupado por homens e mulheres, mas
também de violentação e de repressão do feminino, é, como afirma De Lauretis (1987), uma das
tecnologias de gênero. Segundo Perez, pode-se entender essas tecnologias “como normas
(1999, p.757).
das ferramentas para se entender como a mulher se transforma em ventríloquo da fala, revelando
desconhecidos. Trata-se de uma relação de poder onde o homem é o dominador, já que enquanto
autor, detém o processo de criação em suas mãos e o efetiva tal qual lhe apetece. Dessa forma, a
análise que agora segue dos personagens femininos do romance malandro Meu tio Atahualpa
servirá ao intuito de perceber o espaço ocupado pela mulher nessa narrativa contrapondo-a à
ATAHUALPA
86
A influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte ou o processo inverso,
como propõe Candido (2002, p.18) para estabelecer uma interpretação dialética, converge para o
principalmente, apontam para o momento de repercussão desta, quando finalmente o estudo dos
produzindo sentido.
romance Meu tio Atahualpa é fruto do estabelecimento e consolidação dos estudos de gênero,
mulher dentro das narrativas e por conseguinte, dentro da própria sociedade que possibilitou o
processo de criação.
mercado de trabalho, assumindo outras funções além da economia do lar e da educação dos
filhos. Engajadas nos movimentos religiosos e de esquerda começaram a luta pela cidadania e a
partir destas, surgem modificações na estrutura familiar e no mercado laboral. A obra Meu tio
deliberadamente crítico frente a estas, o romance torna-se um instrumento para discutir como se
Embaixatriz e Terrèze, sua nora. Da primeira se têm notícia já no início da narrativa, quando se
descrevem os acontecidos em seu velório. Somente no capítulo IV, que leva o título de “Dia de
enxaqueca”, é que o narrador fornece outros, porém poucos detalhes sobre sua trajetória na
comportamento promíscuo no decorrer de toda a narrativa. Para ela, não está reservada a morte,
pois ao enfrentar o meio que lhe é hostil convertida no protótipo de mulher fatal, se efetiva como
sujeito de sua própria história. Sem uma estruturação psicológica bem definida, ambas são
apresentadas num primeiro momento ao leitor através da descrição de seus corpos. É por meio
deles que as ações se mediatizam e pode-se assim, perceber as primeiras imagens da mulher no
romance.
modernas é uma tarefa cuidadosa. Isso porque Focault (1988, p. 12) em sua obra História da
sexualidade – a vontade de saber, afirma que não é possível pensar o corpo sem o
dos corpos encerra mais do que um arcabouço biológico, pois nela está imbuída e
“simbolicamente impressa a estrutura social; e a atividade corporal – andar, lavar, morrer – não
faz mais do que torná-la expressa” (RODRIGUES, 1979, p.125). Dessa forma, percebe-se que os
Daolio (1995), Marcel Mauss foi um dos primeiros antropólogos a considerar o corpo como
passível de análise cultural, já que os usos deste são diferenciados em cada sociedade. Nestes
88
termos, é possível expandir tal proposição e pressupor uma construção diferenciada para os
aproximação do indivíduo com a realidade, uma forma de localizar-se no mundo. Surgem novas
teorias que, segundo Guerra (1995, p. 150), determinaram que mais que uma representação
cultural, o corpo se constituiria num instrumento que afetaria sistemas diversos, como a
linguagem, a filosofia e a economia. Como exemplo de tal percepção, podem ser citadas as
feministas francesas que defendem uma corporalidade da palavra e da linguagem. Fora dessa
última proposição, o que se pretende aludir nesse momento é a própria representação física dos
corpos dos personagens femininos observando que tipo de imagens daí decorrem. Nesse ínterim,
mulher
“Parece innegable que ésa es la franja nebulosa en la cual el hombre ha situado a la mujer: entre la
aspiración a un paradigma y el temor a una realidad imprecisa”
cosmos, Eros e Tánatos, o primeiro entendido como o amor sexual, a vontade de viver, donde
derivam todas as formas de amor e prazer. Em oposição a Eros, o instinto de morte Tánatos
89
garantia o equilíbrio. Platão retoma em sua obra O Banquete (1987) essa temática e através dos
discursos apresentados, aponta formas diferenciadas de conceber a esses dois impulsos. Assim,
para Fedro, Eros é o causador de todos os bens, para Pausânias existe um Eros mais popular que
ama mais o corpo que a alma e outro mais celestial e perene. Talvez o mito mais conhecido a esse
respeito seja o proposto por Aristófanes, o mito do andrógino. Segundo essa concepção, o ser
humano seria um todo harmônico e forte que ao rebelar-se contra os deuses recebeu como castigo
a separação. Nesse ínterim, Eros representa a busca pela metade perdida, é erótico e confere
amizade, uma baseada na utilidade, outra na busca do prazer e uma terceira na qual existe um
compartilhar de idéias sobre o bem. Diferente de Platão, Aristóteles prevê que o corpo pode ser
erotizado pela capacidade intelectual do individuo, não só por seus atributos físicos. Nesse
discussões sobre a pólis e da vida política, perdiam espaço para tantos rapazinhos que, devido à
Nesse período, conforme afirma Siebert (1995), o corpo é visto como um elemento de
glorificação e de interesse do Estado. Assim, de um lado o ideal de homem ateniense belo e bom
corrupção da alma, idéias estas criadas pelo cristianismo. Como afirma Couto, “foi, sem dúvida,
uma grande jogada a fim de dominar o cidadão e aniquilar seus instintos agressivos e
partir daí surge a culpa gerada pelo corpo e pelo prazer que dele poderia advir. Os jogos
90
olímpicos foram extinguidos, pois os preceitos religiosos se contrapunham a uma cultura corporal
e nessa perspectiva, o corpo deixa de ser erótico para se constituir como perverso e culpado.
Genealogia da Moral. Para ele, foi domando os impulsos e instintos naturais que se chegou a
psique do homem, essa dominação aconteceu por meio de uma “camisa-de-força social”, isto é,
pela imposição de valores que regessem a vida. Para conseguir tal intento, nada como a marca
indelével da dor para forjar a memória e garantir a assimilação dos novos valores (FOCAULT,
2002, p.59). Isso explica o porquê da existência dos rituais antigos como a castração e o sacrifício
jejuns e abstinências. Essa visão só foi superada com o Renascimento com o interesse pelo corpo
A partir desse período, a preocupação com a liberdade do ser humano leva a uma
redescoberta do corpo, principalmente “no que se refere às artes em que o nu aparece com
destaque por muitos pintores famosos, como Michelangelo, Leonardo da Vinci, entre outros”
neste ínterim, surgem os hospitais. Estes se tornaram um espaço de disciplina e ordem, num
processo constante de vigilância do paciente com o objetivo de atingir a cura. Nesse processo,
afirma Couto que “ao corpo resta pouca espontaneidade e erotismo, pois foi disciplinado e
devidamente substituído por uma conduta prescrita pelos interesses de uma sociedade em pleno
controle maior sobre o corpo e surgem então, as verdades sobre este. Segundo Focault (1988),
91
são estabelecidas regras, normas, ou seja, verdadeiras políticas de saúde para evitar desvios de
(1995, p. 30), “o processo que engendra o capitalismo é o da separação entre o sujeito que
trabalha, da propriedade, das condições de seu trabalho e do seu lazer, convertendo, por um lado,
assalariados”. Nestes termos, faz-se necessária uma sujeição do indivíduo à produção para assim,
garantir o bom funcionamento do sistema. Em contrapartida, essa mesma produção em massa traz
mais mudanças, pois se estrutura uma sociedade de consumo em que os desejos de compra são
ilimitados. E assim, o homem alienado converte-se em máquina para a produção, pois no mundo
da mais-valia não há espaço para o prazer no sexo, nas relações sociais e no trabalho. O corpo
erótico cede lugar ao corpo que produz porque o tempo gasto com trabalho não permite espaço
para o prazer. Por isso, Couto (1995, p. 68) afirma que o corpo erótico é rompimento com tudo
Branco (1985, p. 132) quando afirma que este sempre se converte em uma pulsão angustiante e
corajosa em direção ao desconhecido. Talvez seja por isso que no romance Meu tio Atahualpa, a
falta de condições reais de ascensão social gesta em Terrèze, sua forma de luta, o erotismo. Na
verdade, para ela a melhoria de condição de vida passa pelo uso de seu corpo e com consciência
desta arma, ela segue com seu intuito: ser a rainha da embaixada (M. T. A. p. 20-21). Para seguir
no seu intento manipula os moradores, tendo consciência de que para isso, a melhor arma de que
dispõe é sua sensualidade: “aí tava a fêmea, peladinha esta mulher” (M.T.A. p. 27); “uma sereia,
ora, linda mulher! Se vestiu bem vestida, s’ensapatou os sapato e se aperfumou” (M. T. A. p. 53)
92
“Porra! Uma quantidade de safadeza. E esfregava as cadeiras nele” (M. T. A. p. 54); “Intão essa
mulher ganhou a doçura de uma gata. Veio s’encostando, suavezinha e fez carinho na cabeça do
que o lócus da representação é “a solução narrativa que recorta um conjunto de significações num
campo do regime social do signo e que referenda valores dominantes ou não [...] produzindo ou
recortando valores que vinculam os interesses da classe dominante” (1994, p.675), isto possibilita
obra, jogo este, em que o comportamento atribuído a Terrèze e sua determinação em conquistar
seus objetivos através da exacerbação da sexualidade é o esperado da mulher. Talvez sua única
alternativa. A ela ainda cabe a administração da cama, enquanto o homem figura como provedor
Conforme afirma Chagas, esse poder do gênero feminino que advém da sedução se converte no
lugar do esfacelamento do real, “uma preocupação que ronda as reflexões filosóficas e morais em
todos os tempos históricos” (1995, p.126) porque rompe e transgride a ordem e nesse processo,
ocorre uma inversão de papéis. Da aparente submissão, a mulher passa a subjugar o homem,
mantendo-o sob seu domínio, como uma marionete: “E o menino Píter acreditava nela. Como
será que acreditava nela?” (M.T.A p. 20). “Por favor, eu lhe imploro Terrèze” (M.T.A p. 57). “Aí
a senhorita Terrèze alevantou a mão. Que bastava alevantar a mão pra que o mundo parasse”
(M.T.A. p. 181).
A ela está negado o exercício da sexualidade devido a sua condição senil, ela tinha “tetonas
murchas e arrugadas e penduradas como bolas de touro” (M.T.A. p.111). Para Siebert (1995) esse
93
socioeconômico” (SIEBERT, 1995, p. 33). São criados estereótipos de beleza e o corpo precisa
adequar-se a estes. A juventude passa a ser um destes signos e aqueles a quem a passagem do
tempo já deixou marcas, está reservada a exclusão. Por isso, a pobre senhora já não servia para
seu cargo, pois “estava velhinha, bem velhinha. E as embaixatrizes são jovens e bonitas como...”
(M.T.A. p.57)
Assim, sendo ela uma mulher de idade avançada, tem como características centrais o
fato de estar casada e de ser mãe. A “rainha velha” (M.T.A. p.11), como é chamada, não possui
nem mesmo nome próprio na narrativa e sua vida se estabelece a partir da de seu esposo. Sua
condição de mulher idosa até traz algumas vantagens, pois Hall aponta que existe um processo
próprio da velhice que permite “uma certa maturidade de julgamento entre os homens, coisas,
causas e a vida, em geral, que nada no mundo senão a idade pode trazer, uma sabedoria real que
só a idade pode ensinar” (apud Hareven, 1995, p.14). Essa percepção da realidade é vivenciada
pela embaixatriz quando denuncia o despropósito do desejo que seu marido sente pela nora: “Ou
pensa que sou cega? Velha sim, cega não” (M.T.A. p.105). No entanto, a apreensão da situação
estabelecida na embaixada não lhe garante uma posição favorável. Desprezada pelo esposo, que
O desejo do Embaixador é justificado pela beleza e juventude da nora que “está cheia
de vida [...]cheíssima, se é pra comparar” (M.T.A. p.30). O embaixador não resiste aos encantos
da nora e chega a desejar a morte do próprio filho quando assume seu desejo ainda na noite
94
depois do enterro de sua esposa: “Tenho que conseguir outra mamãe para o Píter [...] se ele
morresse a menina Terrèze ficaria aí sozinha, abandonada e...” (M.T.A. p.30). O projeto de casar-
se com a própria nora, símbolo da mocidade, não pode ser entendido apenas como um processo
É por essa razão que o embaixador se preocupa apenas com sua satisfação pessoal e,
nesse processo, a nora se converte em objeto de desejo e serve somente ao seu contentamento. No
entanto, tudo isso tem um preço e Terrèze, habilmente sabe como cobrá-lo. Nesse ínterim,
estabelece-se a arquitetura dos corpos das duas personagens femininas que compõe a narrativa e
juntamente com elas se desvela o primeiro olhar sobre o feminino, definido pelo erotismo que a
juventude encerra e a debilidade e exclusão a que a velhice está confinada. Enquanto Terrèze
não sem antes tentar seduzir o mordomo que foge de suas insinuações: “A meu tio, ora, lhe dava
pena, muita pena. Mas com velhas não. Velhas não. Esse era serviço pro Bolinha, seu
representada como detentora de uma sensualidade diferente de sua nora, mas muito acentuada.
Atahualpa descreve seus longos cabelos brancos até a cintura que ele desembaraçava e penteava,
como se ela fosse uma sereia do mar. De como a vestia e a tocava “por todas partes” (M.T.A. p.
108) e o perfume que depois colocava nela. Existe nessa descrição uma aura de candura, quase de
veneração. Mesmo anciã, ela sabia das artes da manipulação tão bem utilizadas por Terrèze,
95
porém estas já estavam ineficazes em sua velhice. Seu corpo debilitado não despertava quaisquer
desejos e não havia como competir com a vivacidade de Terrèze, “naquele corpo de mulher tão
linda” (M.T.A. p. 57), “nua e bela com esses peitos soltos, linda mulher” (M.T.A. p. 99).
principio, a evidência de que na cultura falogocêntrica existe uma negação do prazer da mulher,
principalmente no climatério, onde embora possua alguma liberdade, está privada de fecundidade
para sua definição como ser subordinado ao homem e que exerce seu poder mediante um
movimento de rebaixamento do feminino à chamada esfera seja do lar. Barreto (1987, p. 15) ao
problemática da identidade feminina. Chauí (1985) explica que a mulher só constrói sua
identidade a partir de outras pessoas. Existe nas mulheres uma vinculação muito grande em
marcadas com os estereótipos de “mãe, esposa e filha, as mulheres se definem como seres para
os outros e não com os outros” (CHAUÍ, 1985, p.47). Tal proposição é muitas vezes imposta
como inerente ao feminino. Como se a condição natural do “ser mulher” só pudesse constituir-se
a partir de um outro e não fosse construído culturalmente. É interessante ressaltar que tal
imposição é internalizada pelas próprias mulheres através dos mecanismos que De Lauretis
(1987) chamou de tecnologias de gênero. Através do arcabouço de idéias que são introjetadas
pelo cinema, pela literatura, enfim pelos mais variados meios, as mulheres tornam-se cúmplices
do processo que as marginaliza. Muito embora a embaixatriz siga este modelo fielmente, sua
A partir da afirmação de Queiroz (1994, p.318), para quem o nome de uma pessoa
representa o conhecimento de si mesma e de sua relação com o mundo, pode-se inferir que, tanto
se a “rainha velha” não passava de simples atributo do embaixador, Terrèze se impõe e garante
uma posição privilegiada, delimitada e conquistada, como já foi citado, pela sua performance
sexual. Há de se ressaltar que Terrèze é apresentada na narrativa como uma mulher de origem
ignorada, pois é a Teresinha que deixou de ser Tereza, que se viu obrigada a mudar o próprio
nome para poder adentrar a classe dominante. De início, parece algo pouco significativo o fato
de um indivíduo que se nomeia de várias formas, todavia, tal fato se converte em mais uma
Terrèze também está em busca de construir-se como sujeito, porém acredita que para tal, precisa
principio, ela é duplamente descaracterizada, primeiro como mulher e depois como sujeito que
não detêm identidade definida, pois, pertence a uma cultura negada em favor novamente de
através do uso do próprio corpo reflete o que Celaya (1999) define como “la lucha por
subjetividade feminina incorporada por sua sogra, marcada a partir do outro, do homem. Na
narrativa, não é mencionada sua ascendência, por isso não pode ser designada como filha.
Apesar de estar casada com Píter durante um período, mantém intensas atividades sexuais com
seu médico, com o mordomo e outros tantos homens, inclusive seu próprio sogro. Dessa forma,
não pode ser considerada como esposa. Também não teve filhos, portanto não pode ser definida
como mãe.
nova mulher que não se resigna à esfera do lar nem se submete ao caráter prescritivo e
disciplinador da sociedade patriarcal. Segundo Guerra, existe uma divisão binária de figuras de
mulher que
Nessa perspectiva, Terrèze é o exemplo a não ser seguido, pois ela compõe dentro da
narrativa o lado negativo, o mal: “que era má esta mulher, bem má” (M.T.A. p. 16) e ajuda a
compor o dragão símbolo da exploração do povo indígena e que é derrotado numa mágica
batalha:
O diantre em suas mil formas, assassinando meu povo, oprimindo ele e enganando ele.
Porra! Era uma luta feroz. Logo começaram a correr com Lúcifer. Mas este disse’um
por todos e todos por um, salvemos a democracia’. Magine! E transformou todos os
seus filhos num dragão. O rei, o Núncio, a senhorita Terrèze, a Rainha Velha, o
Deputados...Agora todinhos eram uma só besta (M.T.A. p.258).
A adesão de Terrèze ao dragão, quando o narrador descreve que “o palácio do rei caiu
no poço e a senhorita Terrèze caiu pelada atrás do palácio” (M.T.A. p. 261), faz-se necessária
para reformular o contexto socioeconômico porque ela não é o bom exemplo a ser seguido. Ao
render-se ao gozo que seu corpo erotizado demanda, assume o domínio de si própria, porém
converte-se num monstro libidinoso e imagem negativa de mulher. Não existe para ela a
assumindo sua condição de mãe e esposa, sua nora afirma a autonomia e liberdade do exercício
pleno e ativo do desejo, desejo este, que assume proporções diferentes. No casamento
tradicional, existe uma canalização do desejo amoroso para a sexualidade normatizada, ou seja,
aquela que visa a procriação e o cuidado posterior com a prole. Na narrativa malandra de Meu tio
amoroso de Terrèze com o Embaixador é canalizado na busca de inserção social. Para ela, o
desejo amoroso é sempre secundário: “mas a senhorita Terrèze não queria gozar” (M.T.A. p.
99
190). Dessa forma, ela nega a ideologia dominante que prevê a relação entre casamento,
Diante disso, desvela-se que a arquitetura dos corpos na narrativa aponta para a
constituição das contraposições binárias, conforme a nomenclatura proposta por Guerra (1995).
De um lado o “dever ser” representado pela embaixatriz, sua abnegação como mãe e esposa e
seu anulamento enquanto sujeito. De outro, a dominadora Terrèze, embora ainda protótipo do
“não dever ser”, que se impõe com suas transgressões dentro da estrutura social, rompendo com
um lado, a negação da sexualidade e de outro sua exaltação como forma de rompimento com a
ordem.
malandra aponta para um possível progresso frente aos personagens femininos presentes na
picaresca espanhola, que, como foi visto anteriormente, se desenhava como misógina e avessa à
mulher, cabe agora o desvelamento de como essa sexualidade é agora representada e suas
Segundo Focault (1988, p. 13) falar de sexo é quebrar a ordem do poder. Para ele, a
partir do século XVIII se consolida uma ciência sexual que se constitui como um conjunto de
100
disciplinas técnicas relativas ao comportamento sexual que tem por objetivo adestrar o corpo
pela produção da subjetividade e o encadeamento dos desejos e incitamentos. Esse intento segue
até o século XIX, quando a biologia da reprodução e a higiene social, aliadas a outras estratégias,
instituíram as verdades sobre o sexo, ditando o que era certo ou errado, o que estava dentro dos
processo, se institui que há uma motivação sexual que permeia os atos humanos e se assegura a
que precisavam, portanto, ser medicalizados e é nesta perspectiva que o indivíduo passa a ser
Deste modo se delineia uma nova forma de visualizar as diferenças entre homens e
mulheres e se observa, como afirma Nunes (2000, p. 29), “um propósito de se atribuir a essa
diferença sexual o estatuto de condição fundante da diferença dos gêneros”. Durante todo o
rainha do lar apregoada por Rosseau, que sofria com o parto, se preocupava e vivia para os
filhos, aliada a um entendimento de uma possível debilidade física da mulher, sempre propensa
aos excessos, levou a uma associação do feminino ao sofrimento. Embora somente mais tarde
atrelamento do masoquismo como pertencente à essência do feminino. Para Nunes (2000, p. 97-
98) isso apenas expressa o pensamento psiquiátrico do final do século XIX que considerava
destinado a mulher um papel social e sexual passivo. Nessa perspectiva, a mulher teria uma
necessidade muito grande de ser amada e relegaria o sexo sempre a um segundo plano. A
condição de sujeito não evoluído também poderia conduzir a mulher ao perigo do degenerar-se e
isto é, a mulher seria capaz de abstrair prazer e alegria de uma situação desfavorável. É o que
Krafft-Ebing denomina como masoquismo feminino, isto é, “a uma hipertrofia patológica dos
que gera sofrimento e que é posteriormente transformado em alegria seria não uma expressão
sexual por meio da dor e do sofrimento físico ou moral. Esta categoria psiquiátrica tida como
donde vem o termo. Em seus textos, relatava algumas práticas sexuais que incluíam ser
patológico e pressupõe a presença de um outro na relação, o sádico, constituído como aquele que
obtém prazer pela forma inversa. Existe ainda um terceiro tipo de masoquista, aquele que se
submete incondicionalmente ao objeto de seu amor, uma espécie de servidão sexual que segundo
Krafft-Ebing leva o indivíduo a sucumbir e resignar-se, praticando ações que implicariam grande
demonstrar que o personagem Terrèze nada tem de masoquista. Sua posição soberana a
transforma na sádica que subjuga seu esposo e o mantêm sob seu domínio. Sua negação à
maternidade e à submissão imposta pelo matrimônio, indica um renegar destes princípios que
romance Meu tio Atahualpa o quadro desenhado é outro. É Píter quem assume as características
masoquistas.
Quando sob o mando de Terrèze ele participa do assassinato da própria mãe, se revela
sua servidão perante a esposa e seu caráter subjugado: “Píter, chegou o momento. / - Por favor!
Eu lhe imploro Terrèze!” (M.T.A. p. 57). “O menino Píter chorava. Que só quando o menino
Píter chorava é que ela se acalmava um pouco” (M.T.A. p. 17). “E o menino Píter... pobrezinho”
(M.T.A. p. 19). Embora a principio a narrativa não estabeleça qualquer tipo de reação contrária
aos excessos de Terrèze, Píter segue durante largo período se submetendo. O sadismo de sua
mulher se manifesta tanto na forma física quanto moral. As humilhações sofridas por seu esposo
são inúmeras: “Imbecil! Sou sua mulher! [...] Tarado, inútil, estúpido, fraco!” (M.T.A. p.19),
“Escute maricão, sou sua serpente, sua leoparda negra...” (M.T.A. p. 55). Além dos constantes
impropérios, Píter se vê obrigado a presenciar as relações sexuais de sua esposa com outros
homens, o que demonstra que as práticas “perversas” dela eram muitas. De tal modo, com o
médico da família: “E essa fêmea não lhe deu tempo de conversa. Abraçou ele de novo,
beijocando, ali mesmo, à frente do marido” (M.T.A. p.93) e com o próprio sogro: “Venha idiota.
Venha ver o que vai acontecer. Por idiota que é!” (M.T.A. p. 94).
Somada às agressões verbais, o prazer obtido por Terrèze ao causar sofrimento a Píter
se estabelece pelas agressões físicas: “A fêmea esbraveceu de novo. Pegou ele pelos cabelos e
deu um bofetão. Deixou o olho inchado e ele tonto [...] e aplica outros tapas sobre a cara dele e
um par de tabefes nos ouvidos. Chocolate pra fora do nariz. Esse sangue
vermelhíssimo.”(M.T.A. p.19). “Mas ela dava nele assim mesmo. Segurava forte, torcia o braço
É interessante que o narrador aponte para algumas situações em que Terrèze parece
desejar ser submetida, numa relação sadomasoquista. Pede a seu esposo Píter: “Bate em mim,
Píter, bate em mim. Então ele deu uma palmadinha no braço dela, dessas que não faria nem um
passarinho cair. Só pra fazer os gostos dela” (M.T.A. p.19). Depois quando o narrador conta as
façanhas sexuais de seu tio: “ primeiro lhe deu uma surra, ora. [...] e meu tio bate que bate.
Beliscava, mordia de sangue, beijava!” (M.T.A. p. 28). “Tinha sido meu tio, ora. Marcou ela
todinha essa noite. Porque já sabia os modos dela, foi perfeiçoando, não?” (M.T.A. p.53).
indivíduo obtém a excitação sexual por comportamentos tanto sádicos quanto masoquistas. É a
preferência que determinará a nomenclatura. Aquele que prefere causar o sofrimento será sádico
enquanto aquele que prefere ser objeto de tal estímulo será o masoquista. O termo sadismo
deriva do nome do escritor francês Donatien Alphonsie François, o marquês de Sade. Nascido
em 1740, passou alguns anos na cadeia, devido a seus excessos. Sade tinha uma filosofia de vida
segundo a qual o homem não deve negar-se nenhum prazer, nenhuma experiência, nenhuma
satisfação. Escreveu alguns romances que foram censurados durante um longo período e onde
Justine, o mais importante romance de Sade, a virtuosa heroína é violada, molestada, aviltada,
presa por falsas acusações e, por fim, maltratada por toda a sociedade. Trata-se da história de
duas irmãs, Justine e Juliette. As duas possuem um temperamento extremamente diverso. Justine
é a ingênua defensora do bem, todavia, sempre acaba sendo envolvida em crimes e depravações,
terminando seus dias fulminada por um raio que a rompe da boca ao ânus quando ia à missa. Já
sua irmã, Juliette, simboliza o triunfo do mal, uma mulher sem escrúpulos que busca sua própria
104
satisfação realizando uma sucessão de coisas abomináveis, como matar uma de suas melhores
defesa do crime para poder tê-la em sua cama. A partir desse romance, pode-se afirmar que Sade
inaugura um novo tipo de personagem que, isento de qualquer sentimento, preocupa-se somente
consigo próprio, buscando satisfazer seus desejos através de ações nem sempre consideradas
Ainda no que se refere ao sadismo, Nunes (2000, p. 106) afirma que a associação
atualidade. Ainda é catalogado como parafilia, ou seja, uma espécie de comportamento sexual
recorrente que se caracteriza por desejos e fantasias incomuns que causam sofrimento ou
prejuízo na vida social do indivíduo. Embora haja discussões a respeito do tema, pois
normalmente se estudam casos mais extremos, onde a violência é imposta sem o consentimento
do parceiro, podendo gerar danos físicos, Reirsol (2006) garante que as práticas sadomasoquistas
receberam maior atenção a partir de 1970, quando os cientistas sociais começaram a preocupar-
se mais com ditos “desvios sexuais”. Assim sendo, quando o narrador-personagem Atahualpa
advinda ainda do século XIX e reafirmada no começo do século XX, rompe com o estereótipo de
diferenciada.
105
Terrèze inverte o modelo. É ela quem subjuga. Tal qual Juliette, a personagem sadiana,
busca satisfazer suas vontades e não se preocupa com as convenções sociais. A narrativa
apresenta uma mudança do comportamento feminino e uma nova configuração dos papéis
exercidos por homens e mulheres na sociedade das décadas de 1970 e 1980, pois a passagem
para novas formas de interação entre homens e mulheres na organização social passa pela
cultural até então vigente e que ditava o comportamento de homens e mulheres passa a entrar em
uma crise. Píter assume determinadas características antes pressupostas como únicas do sexo
feminino. Além de masoquista, ele é passivo, impulsivo, guiado pela emoção, incapaz de, através
da razão, tomar as rédeas de sua própria vida. Mantêm-se à margem, tanto do masculino quanto
do feminino.
Já Terrèze, assim como Juliette, parece ter consciência de como deve agir para garantir
seu espaço. Além de não esconder suas práticas sádicas, ela se utiliza de uma outra estratégia
para manter o domínio em seu reino, a embaixada: “Terrèze, entrando e gritando, com aquela
voz de homem que todos tinham medo [...] tinha uma maneira de ofuscar com seus olhos, que
quando fazia assim, todos abaixavam a cabeça” (M.T.A. p.16). Fica clara uma outra inversão.
Terrèze incorpora do masculino o que pode lhe assegurar o respeito que almeja, enquanto isso,
Píter, ainda está aprendendo a “ser homem” na embaixada e, nesse processo, é títere nas mãos da
esposa. Assim, estabelece-se a sobreposição do feminino sobre o masculino. Entretanto, tal feito
precisa ser analisado com cautela, pois se constitui num processo ilusório.
para a dominação. No entanto, Terrèze é personagem polivalente, pois como já foi demonstrado,
Quanto ao papel assumido por seu esposo Píter, é circundado por duas mulheres: sua
mãe e sua esposa. É pelas mãos da segunda que se vê livre da primeira e busca delimitar seu
espaço na embaixada e na própria sociedade: “agora você começa a ser alguém” (M.T.A. p.20).
A partir desse episódio, podem-se inferir algumas idéias inerentes à condição do “ser homem e
ser mulher” na narrativa, pois parece não haver possibilidade de convivência entre o feminino e
masculino. A luta pelo espaço na sociedade se resolve através da eliminação do outro. A única
forma para que Píter possa assumir seu lugar na estrutura social só se efetiva se o feminino não
ocupar espaço algum. Neste ínterim, se evidencia a problemática da aceitação do espaço que a
Com uma reflexão perspicaz, De Lauretis (1987, p. 207) demonstra que esse medo do
homem frente ao feminino, faz com que ele ataque primeiro para garantir sua superioridade. Ora,
como exemplo dessa proposição, pode-se citar a concepção freudiana da eterna inveja do falo
sentida pelas mulheres e que é entendida por Castelo Branco e Brandão (1989) como um fugir da
inveja sentida pelos homens da própria categoria feminina que abrange condições que não
Nessa perspectiva, ao desejar, permitir e participar da morte de sua mãe, Píter revela
esse impulso de inferioridade frente ao feminino que pôde ser verificado em outros momentos da
O anseio de ocupar um espaço significativo faz com que Terrèze se utilize de outras
artimanhas. Ela converte seu esposo na figura importante para que assim, ela também possa
partilhar e usufruir do prestígio que ele possivelmente poderia alcançar: “sem o embaixador, sem
Voltérr, sem a embaixatriz, sem ninguém, você será o primeiro, o primeiro em tudo” (M.T.A. p.
22). Há de se ressaltar que essa transposição de desejo encerra uma estratégia de dominação,
trata-se do poder dos fracos, que ao mostrarem-se “obedientes”, invertem a ordem e convertem a
todos em “otários”, em marionetes. Assim, ao esconder seu verdadeiro intento, Terrèze revela
seus traços malandros. Mesmo ao subjugar aos homens da embaixada e conquistar o poder que
almeja, dispondo de seu corpo e de toda a sensualidade de que é dotada, ela sabe que precisará
além das artifícios eróticos, de persuadir pelo discurso. Assim, Terrèze não explicita seus anelos,
não se faz porta-voz de suas intenções, apresentando uma das facetas dessa “malandra literária”:
aproveita-se da falta de resolução de seu marido para incutir-lhe seus próprios anseios: “você
será o primeiro, o primeiro em tudo” (M.T.A. p.22). Isenta-se de culpa pelos atos ilícitos que
comete, afinal não é para si que o faz. É fazendo dos seus desejos os de Píter, que consegue
legitimá-los, mantendo uma fingida postura submissa. Essa mesma postura se converte em uma
dissimulação necessária onde o aspirar a melhores condições de vida, de certa forma, ainda se
constitui num desafio para as mulheres. Terrèze ao transferir para seu marido suas ambições,
declara a ineficácia do discurso feminino. Entretanto, não é só pelo discurso verbal que ela se
impõe.
108
Seu esquema de persuasão se estabelece efetivamente pela via erótica e para que a
embaixada se curve frente a sua sensualidade, dispõe de um arcabouço lascivo “e foi abrindo a
braguilha do marido e, tirando seu aparelhinho e chupando” (M.T.A p.22). É através dos favores
sexuais que consegue ganhar as jóias da sogra: “Intão ela caiu rendida na cama, assuspirando. E
já treparam, ora. À vista do menino Píter. Treparam. Dizer: gozaram”. (M.T.A. p. 97)
Ocorre então o desconcerto: como ser macho perante semelhante fêmea? E a estrutura
se verga, pois se vê diante do desconhecido e Píter sem outra alternativa, “chora nas mãos dessa
mulher” (M.T.A. p.17), pois o “menino Píter, pobrezinho, como podia ser macho com
semelhante fêmea. Era mais ou menos. Regular” (M.T.A. p.19). Sem saber como agir diante de
tanta argúcia, restava a ele render-se: “ o menino Píter se dobrou”(M.T.A. p.18), afinal Terrèze
não era uma mulher comum, ela era “o diantre” (M.T.A. p. 20).
“Inimiga da paz, fonte de impaciência, ocasião de brigas que destroem toda a tranqüilidade,
a mulher é mesmo o diabo”.
Petrarca
Consciente de sua condição de mulher e das prerrogativas que são impostas ao gênero
feminino, Terrèze, numa atitude bem malandra, finge. Sua condição de fingidora é necessária
para que ela seja aceita no meio: “Boazinha quando noiva, uma santinha. E, ‘paf’ o que era na
realidade. Porra!” (M.T.A. p.18). Ela parece assumir uma dupla personalidade. Enquanto no
meio público faz-se de dama caridosa e recebe todos os elogios devido ao seu comportamento
109
exemplar, “é uma santa...oh, uma santa” (M.T.A. p. 181); na embaixada revela seu eu
verdadeiro: “ela matou o meu tio. As-sa-si-na!” (M.T.A. p.180), “essa mulher bonita abraçou o
amante de novo” (M.T.A. p. 93),“ a fêmea esbraveceu de novo” (M.T.A. p. 19). O caráter
feminino. No entanto, essa ambigüidade é logo substituída por seu verdadeiro eu: sedutora,
manter as aparências de boa esposa, senhora respeitável, mantida por certo período por Terrèze,
imprime a dificuldade sofrida pelas mulheres a partir do processo de emancipação feminina que
se configurou no Brasil. Muito embora o espaço ocupado pela mulher na sociedade tenha sido
ampliado e ocorrido muitas mudanças na relação homem-mulher, o gênero feminino ainda está
submetido ao jugo prescritivo de “dever ser” e “não dever ser” proposto por Guerra. Essa
comportamento feminino: Eva e Maria. Para a autora, as primeiras divindades eram femininas e
denotavam a importância dada à procriação, pois o feminino era considerado como fonte de toda
a vida. No entanto, com o passar do tempo, a deusa e tudo o que ela simboliza é deposta,
suplantada pela presença de um deus masculino que se torna responsável pelo sopro de vida. É
assim que nas sociedades ocidentais impera com a tradição judaico-cristã a “posición del
masculino como poder organizador y con la capacidad de atribuir nombres al entorno cósmico,
en una relación que escinde a la realidad en un dualismo entre el Espíritu trascendente y una
Naturaleza de carácter inferior y dependiente” (GUERRA, 1995, p.36). O ato de nomear todas
Maria, mãe submissa e praticamente assexuada, pois concebe um filho e permanece virgem.
exemplo mariano e parece afrontar até mesmo a maldade atribuída a Eva. Ao ser a causa da
humanidade e fonte de todos os males. No entanto, paga um preço por sua desobediência. Sai do
paraíso e é condenada ao sofrimento. Para Terrèze, em contrapartida, não existe um preço a ser
pago. Ela não conduz o homem ao mal, ela é o próprio mal. Para ela não existe possibilidade de
redenção. Não porque essa possibilidade não lhe é oferecida, é simplesmente porque ela opta por
Resta saber de onde veio o impulso transgressor que orienta suas práticas sádicas, sua
nova mulher. Se Terrèze não é herdeira nem de Eva e muito menos de Maria, parece que o mito
sociedades, possui um caráter coletivo, sobrenatural, com uma função sócio-religiosa sagrada
da psicologia primitiva” (OLIVEIRA, 2006, p. 89). Nesta perspectiva, o mito projeta a palavra
de ordem, ou seja, os ideais de uma civilização cristalizando-a na memória coletiva. Para Barthes
111
(1970), o mito se constitui como uma mensagem que está presente no tempo e que aflora
para a história da mulher, pois o mito da criação do homem serviu a determinados interesses
patriarcais durante um longo período, mas começa a ser suplantado a partir de 1970, período em
mulher e se negam, tal qual Terrèze, a adestrar-se ao sistema falogocêntrico e seus ajustes
prescritivos sintetizados nas figuras de Maria ou Eva. E então se desvela uma outra mulher,
relegada a uma condição marginal por ser arquétipo do feminino demoníaco, é Lilith, a primeira
companheira de Adão que retorna ao imaginário coletivo e reclama seu lugar. Com ela, se
desvela a genealogia de Terrèze e a sua filiação ao signo da mulher demônio, porém constituída
Lilith, a lua negra (1995) um extenso rastreamento de uma instigante imagem do feminino que
remete à figura da Grande Mãe, trata-se de Lilith. Segundo consta, ela foi a primeira
companheira de Adão, criada antes de Eva, “cuja consciência coletiva apagou, distraidamente, no
Num propósito de resgate e reflexão sobre o feminino, o autor demonstra a presença de Lilith na
Bíblia, na tradição greco-romana, passando pela idade média até a cultura atual.
sofrendo, posteriormente, ainda outros cortes realizados pela igreja. As contradições frente ao
mito do nascimento da mulher são muitas. Neste ínterim, os textos hebraicos, suméricos e
acadianos é que podem fornecer informações sobre esse controvertido mito. No Beresit-Rabba se
encontra uma referência a essa primeira mulher de Adão, fonte de seu desgosto: “R. Jehudah em
nome de Rabi disse: No princípio a criou, mas quando o homem a viu cheia de saliva e sangue
afastou-se dela, tornou a criá-la uma segunda vez, como está escrito: Desta vez. Esta e aquela da
Estas são as duas primeiras características de Lilith, ela está coberta de sangue e
saliva. A referência que se faz ao sangue é metáfora do sangue menstrual e aponta para o caráter
instintivo e carnal da mulher, sua fisiologia, sua vitalidade. Ainda pode-se pensar na visão de
mulher lasciva, de uma vivência de uma sexualidade livre de tabus e proibições. Já a saliva é,
conforme determina a via psicanalítica, uma claro componente sexual que pode ser associado à
secreção erótica. Todavia, essa mulher não agradou Adão, que dela se afastou. Conta a lenda
hebraica que ao se findar o sexto dia da criação, Deus entregou a Adão sua primeira e intrigante
companheira, Lilith. E acontece a primeira relação sexual. Havia neste estado das coisas uma
grande perfeição. A mulher personificava o sentimento do homem para com Deus. No entanto,
logo o amor deles foi perturbado pelos questionamentos de Lilith: “Por que devo deitar-me
embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que devo ser dominada por você?
Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual” (SICUTERI, 1995, p. 35). Adão, não
admite tais proposições, se recusa a inverter as posições e se rompe o equilíbrio entre o casal.
Lilith segue para o mar vermelho e se junta aos demônios. Jeová- Deus até envia seus
anjos para fazê-la retornar junto de seu companheiro, mas ela se recusa a submeter-se. Ela
prefere ficar nas charnecas secas, local para onde são atraídos os demônios e espíritos malvados.
Malograda a tentativa de Jeová-Deus em trazê-la para perto de Adão, se revela o “ser” de Lilith,
ela é um demônio. Sob a ameaça de ser morta, Lilith se levanta contra o divino e blasfema,
de todas as crianças recém-nascidas homens, até o oitavo dia de vida, a data da circuncisão, e das
mulheres até seus vinte anos?” (SICUTERI, 1995, p. 39). Com sua astúcia demoníaca revelada,
os anjos retornam e ela permanece acasalando com os diabos e gerando cem demônios por dia
demônios e a vingança posterior de Lilith, que segue estrangulando de noite as crianças pequenas
nas casas ou surpreende os homens em seu sono noturno, estrangulando-os. Assim como Lilith,
“Ela botava chispas nos olhos. Era o diantre, não? Quando ficava assim era o diantre fazendo das
“E abriu os seus braços e dançou arrodopiando como um pião. Magine. Era o diantre outra vez
“E de seus olhos saía uma luz arrefretindo mais forte que o luzeiro da alba. E ela investiu no
contemporaneidade. Seu caráter diabólico resgata uma espécie de feminino que havia sido
que saía com seus demônios pela noite a matar crianças inocentes é reconstruída na narrativa
da família, Píter o chamava de “meu irmãozinho. Magine. Um cachorro por irmãozinho. Assim
equivalente na narrativa.
115
E arrancou Volterr de suas mãos. Os olhos dessa mulher eram puras chispas. O olhar
do diantre. Esse cachorrinho sentiu o que lhe ia acontecer. Entiu, coitadinho. Começou
a gemer, a gemer, como essa choradeira de cria nova, se adespedindo do irmãozinho
(de Píter), como que dizendo ‘Não me deixe, não me deixe’. E ali, adiante do menino
Píter, ali mesmo, ela apertou o pescocinho de Voltèrr. E apertou, apertou. Mais forte,
mais forte. E o Bolinha botou a lingüinha pra fora, estremeceu as patinhas como um
coelho e o outro olhinho saltou: plaf. Morreu assim, nas mãos do diantre. E ela botou
ele aí no chão devagarzinho (M.T.A. p. 99).
Lilith frente ao extermínio de seus pequenos demônios. Terrèze mata Voltèrr também para
vingar-se de Pìter, pois ele se recusa a seguir com os crimes planejados por ela. A morte do
cachorrinho é uma represália frente à desobediência a suas vontades. Sabendo de seu lugar e de
seu valor ela repreende aqueles que não lhe prestam obediência como uma forma de alerta.
livre. Muito embora esse tema já tenho sido tratado anteriormente, existe um episódio onde
aflora essa libertinagem sexual que foi negada a Lilith, satisfeita somente pelos demônios, mas
que Terrèze vive sem pudores. Trata-se de uma passagem acontecida em uma festa onde os
convidados deparam-se com a embriaguez do mordomo Atahualpa que causa grande confusão.
Aproveitando-se da balburdia, Terrèze encontra-se num canto escuro da casa com um general
onde se efetiva o intercurso sexual. O que esse episódio traz de novo é que são descritas as
vontades de Terrèze. Ela se entrega, porém como ela própria deseja: “Ela se entregou, mas não
no chão, foi contra a parede. [...] Levantou a saia e já. A senhorita Terrèze levantou ele” (M.T.A.
p.190). Se Adão renegou-se a obedecer a Lilith, considerando-a como sua igual, Terrèze investe
Lilith assume mais firmemente suas feições demoníacas e libertinas. Também nessa tradição são
116
espectros:
Esconjuro. Nusku, rei da noite que clareia as trevas, avanças na noite e escutas os
homens;
Sem ti não se prepara mesa no Ekur. Sedu, o espião, armadilha que captura o Demônio
mau,
Gallú, Rabisu, deus mau, espectro (Utukku), Lilu
Lilitu se esconde em lugar secreto
Diante de tua luz que saia o portador da desgraça,
Enxota o espectro, atinja o mal.
(TESTI SUMERICI E ACCADICI apud SICUTERI, 1995, p. 54).
Os rituais e fórmulas acadianas para garantir a expulsão de Lilith são muitos, pois a
ação dos demônios era repentina e, por isso, ainda mais temida. No entanto, as orações seguem
demônio, a doença, a sujeira, a dor, o mau-olhado. Tais fórmulas ritualísticas são encontradas em
630 a.C e a partir de então, Lilith passa a ser associada a imagem astral da Lua Negra e
ao demônio. Conforme relata a Píter, jamais se poderia proferir tal nome, pois isto implicaria na
vinda do próprio diabo pra junto de quem o pronunciasse. Deste modo, sempre que deseja avisar
- E o diantre, o que é?
- O diantre, ora. Que não vai saber que é o diantre. O diantre é o diantre.
-Fale sem rodeios homem.
-Ninguém na terra sabe/ a origem do meu ser/ não nasci de mulher/ nem tive pai/ vivo a
seduzir os homens/ adivinha adivinhador/ cinco letras tem meu nome.
- Já o pressentia, é o diabo.
- Pssiuuuu! Não diga essa palavra Don Pedrinho. Diga ‘diantre’. Assim o chamamo se
queremo fala nele sem que ele venha. (M. T. A. p. 173)
117
Quanto aos rituais de esconjuração a que Lilith era submetida, também se fazem
presentes para afastar a maldade que de Terrèze advinha. Assim, aparece uma oração proferida
Senti como se eu fosse a senhorita Terrèze e tivesse enforcado o Bolinha, com sua
lingüinha pra fora. E Dom Simón olhou pra meus olhos que fuzilavam, e disse, com
uma voz rouca:
- O diantre! Carihuairazo, cotopaxi, Chimborazo, Tungurahua...anchi espanto... hú, hú,
ahá, ahá...(M.T.A. p. 232)
Outra forma encontrada por Atahualpa para sossegar o diantre em Terrèze seria
através de uma relação sexual forçada. Assim ele descreve a Píter um episódio em que se viu
“com essa enguia prendida na minha garganta, lhe dei uma surra e meti minha coisa nela. Não
sabe que é assim que carma o diantre?” (M.T.A. p. 172). Nesta ocasião, está fixada outra imagem
Surgida no medievo, trata-se de outro espectro de Lilith, a bruxa. Para Sicuteri, neste
período, existe uma exteriorização da aversão aos instintos que será observada em certas
coercitivas, que se manifestavam no mundo objetivo” (1995, p. 111). A bruxa servia para
demonstrar o perigo da queda e do pecado. Essa afirmação de Sicuteri certifica aquilo que já foi
relatado neste trabalho com respeito ao feminino na idade média. A feiticeira que precisava ser
combatida, para reafirmar o bem. A admoestação constante frente aos perigos da feminilidade
voar sobre vassouras ou bodes elas faziam pactos com o diabo, com quem mantinham relações
118
sexuais em encontros transformados em verdadeiras orgias. Era o chamado sabá, uma reunião
anual precedida pelo demônio. Na ocasião, mesmo suplantadas pelas dores provenientes de ditas
relações sexuais, as bruxas seguiam com o ritual imposto, uma missa negra.
coletivo Lilith e aquilo que ela representa. Entretanto, ela é resgatada a partir do século XIX e
Neumann e Hillman ela é “parte integrante do arquetípico da alma dividida e reflete a repressão
parcial dos instintos e a censura das pulsões sexuais” (SICUTERI, 1995, p. 140) e segue
aparecendo como símbolo mítico nas fábulas e contos populares. Com o advento da emancipação
da mulher, Lilith passa a ser considerada como símbolo de resgate de um feminino relegado e
marginalizado.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A elucidação das imagens construídas pelo homem sobre a mulher dentro de uma
narrativa como a de Meu tio Atahualpa é tarefa por demais árdua. Primeiro porque o narrador é
malandro e o leitor precisa de uma postura desconfiada constantemente para não ser ludibriado
por suas artimanhas. Depois, a própria construção psicológica precária inerente ao caráter
tipificado dos personagens femininos rareia ainda mais informações que poderiam ser caras para
um entendimento maior destes. No entanto e apesar disso, o romance apresenta uma imagem do
feminino surpreendente.
um segundo plano, tratadas como seres inferiores e perigosos para a continuidade da ordem e da
estrutura social vigente. Não havia espaço nem sequer para ser ventríloquo do masculino, pois a
mulher, em muitos casos, era privada até mesmo do discurso direto. O que se apresenta são os
por personagens femininos a presença do erotismo e o triunfo da mulher só serve para admoestar
o homem da periculosidade que envolve a esfera feminina e se todo o caráter de movimento que
domina o projeto picaresco é restrito aos homens, fica evidente a exclusão da mulher. O medo
que assolava a sociedade espanhola do século XVII frente a uma possível mudança nos padrões
vigentes levou a uma repressão da condição feminina e a configuração das obras picarescas como
sempre se define pela castidade, quanto às pícaras, a condição de “putas” parece ser atribuída
120
como inerente à própria condição de ser mulher. Assim, se a esposa de Lázaro não tinha sequer
direito à fala e se a pícara Justina só triunfou para censurar aos homens, na narrativa malandra, o
personagem de Defoe, Moll, embora mantenha os mesmos vícios de suas antecessoras, é descrito
com mais condescendência, marcando uma suavização da misoginia barroca e prevendo uma
Quanto aos dois personagens femininos do romance estudado, Meu tio Atahualpa, a
símbolo do velho e do ultrapassado, é a mulher que, enquanto apêndice do homem, não encontra
lugar para efetivar-se como sujeito. Só pode ser considerada como atributo do masculino. A
princípio é a esposa de alguém, depois, é a mãe de alguém. Excluída pela decrepitude do corpo,
isenta de fertilidade, seu único atributo enquanto jovem, a Embaixatriz não pode ocupar espaço
na narrativa e, por conseguinte, na própria sociedade. Seu destino? Morrer pelas mãos da nova
mulher, representada por Terrèze: “- Não posso esquecer a morte de mamãe. Foi horrível./ -
Como horrível?/ Você com o travesseiro, tapando-lhe o rosto e ela se retorcendo” (M.T.A. p. 57).
Terrèze mata a Embaixatriz e com ela morre a mulher submissa, recatada e desprovida de
ambição para dar espaço para uma outra mulher, desta vez não mais voltada para o lar e para a
criação dos filhos, figuras típicas do “universo feminino”. Trata-se de uma mulher que começa a
Terrèze não quer redimir-se porque entende que não precisa submeter-se ao jugo
prescritivo do patriarcado. Seu corpo erotizado não se curva, ela é um ser que deseja assumir seu
lugar na estrutura social e não relega a segundo plano sua sexualidade, muito pelo contrário,
aproveita-se dela para exercer seu domínio. Ambiciosa, maquiavélica e sedutora, Terrèze
assume seu espaço na narrativa e através de suas estratégias malandras manipula os moradores da
romper com a ordem estabelecida opondo-se ao mundo e suas instituições. (apud CASTELO
ascensão social, aparentemente impraticável num país de terceiro mundo ainda mais para o sexo
feminino, ela o efetiva através de seu corpo, convertido em arma para driblar os mecanismos de
exclusão. É a (in)quietude do feminino que cobiça uma parte mais significativa na organização
social.
seja a do mito da criação da primeira mulher. Terrèze ao matar a imagem da mulher antiga e
feminina rompe com tais barreiras, restaurando a dignidade da mulher e denunciando, através das
ferramentas surgidas a partir dos estudos de gênero, as brutalidades sofridas durante todo o
122
processo histórico. Nesse ínterim, Meu tio Atahualpa reapresenta e recupera muito da essência
feminina, constituindo-se num alento para a composição de novas relações entre homens e
mulheres.
123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Corpus
NETO, Paulo de Carvalho. Meu tio Atahualpa (trad. de Remy Gorga Filho). Rio de Janeiro:
Rocco, 1985.
ANDRADE, Mário. Introdução. In: Memórias de um sargento de milícias. Ed. Crítica de Cecília
ANÔNIMO. Lazarillo de Tormes. Trad. Pedro Câncio da Silva. São Paulo: Página Aberta:
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORE,
Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
124
BARRETO, Teresa Cristófani. A sagração do herói no país do carnaval. São Paulo, 1987. 209f.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Riva Buongermino e Pedro de Souza. 4 ed. São Paulo:
Difel, 1970.
BASSANEZI, Carla. Mulheres nos anos dourados. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das
BELIC, Oldrich. Analisis estructural de textos hispanos. Madrid: Prensa Española, 1969.
1979.
BOLSTANSKI, Luc. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1975.
BRUN, Felix. Hacia una interpretación sociológica de la novela picaresca. In: Literatura y
BRUNO, Damián. El disfraz en la Pícara Justina. In: Actas del VI Congreso de la Asociación
AZEVEDO, Carlito; DIAS, Tânia; SUSSEKIND, Flora (orgs.). Vozes femininas: gênero,
mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003.
Perspectiva, 2002.
1982.
CASTELO BRANCO, Lucia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
LCT/Casa-Maria, 1989.
CASTRO, Américo. El Lazarillo de Tormes. In: Hacia Cervantes. Madrid: Taurus, 1967.
CASTRO, Américo. Perspectiva de la novela picaresca. In: Hacia Cervantes. Madrid: Taurus,
1967.
territórios para a subjetividade feminina. In: ROMERO, Elaine (org). Corpo, mulher e
COSTA, Delaine Martins. Introdução ao planejamento para o gênero: um guia prático. Rio de
Elaine (org). Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus Editora, 1995. p.55-70.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org). História
meninas em “antas”. In: ROMERO, Elaine (org). Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus
DAVID, Sérgio Nazar (org). As mulheres são o diabo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004.
DAVID, Sérgio Nazar (org). O diabo é o sexo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003.
DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE, Mary
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo:
ENGEL, Magali. Prefácio. In: MATOS, Maria Izilda; SOIHET, Rachel (orgs). O corpo feminino
ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das
1968.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2.ed.
FIORE, Robert. Lazarillo de Tormes y Mí tio Atahualpa de Paulo de Carvalho Neto: la justicia
irónica en la picaresca. In: Actas del Congresso Brasileiro de Hispanistas. São Paulo, 2002. [on
line].Disponível em:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000001200200020
Graal, 1988.
FOCAULT, Michel. A mulher/Os rapazes da história da sexualidade. São Paulo: Paz e Terra,
2002.
FOCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres.Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1994.
FOCAULT, Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1985.
FONSECA, Cláudia. Ser mãe, mulher e pobre. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das
FRIEIRO, Eduardo. Do Lazarillo de Tormes ao filho de Leonardo pataca. In: O alegre arcipreste
FUNCK, Suzana Bornéo. Da questão da mulher à questão do gênero. In: FUNCK, Suzana
Bornéo (org). Trocando idéias sobre mulher e Literatura. Florianópolis: UFSC, 1994.
FURLANETO, Maria Marta. Para uma abordagem do gênero: animus e anima. In: FUNCK,
Suzana Bornéo (org). Trocando idéias sobre mulher e Literatura. Florianópolis: UFSC, 1994.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
PRIORE, Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2004. p. 640-
668.
GOLDONI. Rubia Prates. Galvez, o pícaro nos trópicos. São Paulo, 1989. 159 f. Dissertação
GONZÁLEZ, Mario. Por los nuevos caminos de la picaresca: Mí tio Atahualpa. In: Actas del X
673.
130
ficção de Ângela Carter. In: REIS, Livia; VIANNA, Lucia Helena; PORTO, Maria Bernadete.
Propio, 1995.
GUILLÉN. Cláudio. Luis Sánchez, Gines de Pasamonte y los inventores del género picaresco.
HABERT, Nadine. A década de 70 – Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo:
Ática, 1992.
HANSEN, João Adolfo. Um nome por fazer. In: A sátira e o engenho – Gregório de Matos e a
Bahia do século XVII. São Paulo: Cia. Das Letras: Secretaria do Estado da Cultura, 1989.
HODGART, Mathew. Las técnicas de la sátira. In: La sátira [Satire]. Trad. de Angel Guillen.
HODGART, Mathew. Orígenes y Princípios. In: La sátira [Satire]. Trad. de Angel Guillen.
HUMM, M. Introducción: Feminist criticism: the 1960 to the 1990s. In: A reader’s guide to
LEITE, Christina Larroudè de Paula. Mulheres: muito além do teto de vidro. São Paulo: Atlas,
1994.
131
LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das
ensaios sobre Lukács e Benjamin (tradução de Myrian V. Baptista e Magdalena P. Batista). São
MAGALHÃES, Pedro Armando. Uma análise da figura feminina em Grande Sertão Veredas de
Guimarães Rosa. In: REIS, Livia; VIANNA, Lucia Helena; PORTO, Maria Bernadete. Mulher e
MALUF, Sônia Weidner, MELLO, Cecilia Antakly de e PEDRO, Vanessa. Políticas do olhar:
feminismo e cinema em Laura Mulvey. Rev. Estudos. Feministas maio/ago. 2005, vol.13, no.2,
p.343-350.
MARAVALL, José Antonio . La Literatura picaresca desde la historia social. Madrid: Taurus,
1986.
MILTON, Heloísa Costa. A picaresca espanhola e Macunaíma de Mário de Andrade. São Paulo,
MILTON, Heloísa Costa. Romance picaresco e consagração do espaço anti-heróico. In: ZINI,
Letícia (org). Estudos de Literatura e Linguística. São Paulo: UNESP, 1998. p. 161-177.
MONTE, Alberto del. Itinerario de la novela picaresca española. Barcelona: Lumen, 1971.
MONTELLO, Josué. Um precursor: Manoel Antonio de Almeida. In: A literatura no Brasil (Dir.
MURARO, Rose Marie. Libertação sexual da mulher. Petrópolis: Editora Vozes, 1970.
NAGY, Silvia. Del “indio pendejo” al “indio legítimo”: la subversión del poder mediante la
parodia en Mi Tío Atahualpa de Paulo de Carvalho Neto. Washington: The Catholic University
junho de 2005.
NUNES, Silvia Alexim. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: um estudo sobre a
OLIVEIRA, Marilu Martens. Da rua para a ribalta: a malandragem em diálogo com Chico
Buarque de Hollanda. Assis, 2006. 337 f. Tese (doutorado em Letras). UNESP/ Faculdade de
PADILHA, Laura Cavalcante. Mulher de demoníaco em duas novelas camilianas. In: FUNCK, S.
abortivas e no infanticídio – século XX. In: FUNCK, S. (Org.). Trocando idéias sobre a mulher e
PEREZ, Tania Maria de Matos. Lucíola e a dupla repressão da mulher cortesã. In: REIS, Livia;
VIANNA, Lucia Helena; PORTO, Maria Bernadete. Mulher e Literatura. Niteroi: EDUFF,
1999.
PERROT, Michelle. Os silêncios no corpo da mulher. In: SANTOS, M.I.; SOIHET, R. (org). O
EDUFF, 2000.
QUEIROZ, Vera. Feminino e crítica. In: FUNCK, S. (Org.). Trocando idéias sobre a mulher e a
RABASSA, Clementine. Posfácio. In: NETO, Paulo de Carvalho. Meu tio Atahualpa (trad. de
RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das
RAMINELLI, Ronald. Eva tupinambá. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das mulheres no
REIRSOL, Odd. SM: causas e diagnósticos. Revista revise F65. [online]. Disponível em:
RICO, Francisco. La novela picaresca y el punto de vista. Barcelona: Editora Seix Barral, 1982.
ROMERO, Elaine (org). Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus Editora, 1995.
RÓNAI, Paulo. Préface. In: Memoires d’ún sargent de la milice. Rio de Janeiro: Atlântica, 1944.
ROSADO-NUNES, Maria José. Gênero e religião. In: Rev. Estudos Feministas, maio/ago. 2005,
Perspectiva, 2002.
www.ucm.es/BUCM/revistas/fll/02122952/articulos/DICE9797110289A.PDF -. Acesso em 20
SCHIMITT-PANTEL, Pauline. A criação da mulher: um ardil para a história das mulheres? In:
FUNCK, S. (Org.). Trocando idéias sobre a mulher e a Literatura. Florianópolis: UFSC, 1994.
135
SCHMIDT, Rita Teresina. Da ginolatria à genologia: sobre a função teórica e a prática feminista.
In: FUNCK, S. (Org.). Trocando idéias sobre a mulher e a Literatura. Florianópolis: UFSC,
1994.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 3 ed. São Paulo: Duas cidades, 1988.
SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, da Dialética da malandragem. In: Que horas
SCHWARZ, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
HOLLANDA (org). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.
SICUTERI, Roberto. Lilith: a lua negra. Trad. Norma Telles, Adolfo Gordo. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1985.
SIEBERT, Raquel Stela de Sá. As relações de saber-poder sobre o corpo. In: ROMERO, Elaine
SILVA, Mariza Maffei. Mulher, Identidade fragmentada. In: ROMERO, Elaine (org). Corpo,
SILVA, Suzana Veleda. Os estudos de gênero no Brasil: algumas considerações. In: Revista
SIMONNET, Dominique [et al.]. A mais bela história do amor: do primeiro casamento na pré-
história à revolução sexual no século XXI. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2003.
136
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (org).
SOLER, Colete. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
SOUZA, Maria h. Sanazo. Hay que tener cujones, amigo… In: DEL PRIORE, Mary (org).
TALENS, Jenaro. Novela Picaresca y práctica de la trasgresión. Madrid: Ediciones Jucar, 1975.
TARDUCCI, Mónica. Catholic church and the "encuentros nacionales de mujeres. In: Rev.
TELLES, Ligia Fagundes. Mulher, mulheres. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das
VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino no Santo Ofício. In: DEL PRIORE, Mary (org).
Acesso em 24/11/2004.
língua francesa: uma leitura das seduções no feminino. In: FUNCK, S. (Org.). Trocando idéias
VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. In: DEL PRIORE, Mary (org). História das