Barroco Digital 2
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2022
©2022 Revista Barroco Digital
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste
livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Barroco ou do articulista.
Este número reúne textos de colaborações especiais, abordando temas específicos do estilo barroco,
como também de inovação e/ou atualização no campo da pesquisa. Conta, ainda, com uma homenagem
à Profa. Beatriz Coelho de Vasconcelos, entrevistada pelo Prof. Dr. José Antônio Orlando. Em respeito
aos autores, foram mantidas, sempre que possível, ortografia, pontuação, nomenclatura e peculiaridades
de estilo respectivas.
Os conceitos emitidos em artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores, estando
as normas técnicas de acordo com as referências de seus países.
Conselho Editorial Revista Barroco digital [recurso eletrônico] / CS Cultural Design Ltda. -
Ano 2, n.2 (nov. 2022) - . - Belo Horizonte : CS Cultural, 2022.
Amilcar Martins Filho 1 Recurso on-line
Carolina Tomasi
Carlos Alberto de Almeida Dias Anual
Cristina Ávila
Guilherme Paoliello Barroco digital.
Revista Barroco digital: revista de ensaio e pesquisa.
Josoel Kovalski
Marcos Hill Modo de acesso: https://www.revistabarroco.com.br
Rodrigo Duarte
ISSN 2764-1201
I. Título
CDD 709
Contato
CS Cultural
Rua Cordlheiras, 85 - CEP 30882-040 - Belo Horizonte/MG - Brasil
[email protected]
www.revistabarroco.com.br
2
SUMÁRIO
EDITORIAL 6
Cristina Ávila
NÓS-BARROCOS 163
Lucas Araújo de Almeida
ARANHAS E SUAS TEIAS: ALGUNS (DES)FIOS SOBRE ANA HATHERLY E SALETTE TAVARES 204
Alice da Palma
BARROCOLAGENS 305
Affonso Ávila
RESENHAS
PATRIMÔNIO CULTURAL E REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA:
OS MEIOS DIGITAIS PARA AMPLIAÇÃO DAS PRÁTICAS CULTURAIS 327
Gianno Nepomuceno
REGISTRO
MÚSICA E REMINISCÊNCIA: NOTAS PARA UM CONCERTO EM HOMENAGEM A RUFO HERRERA 336
Francisco Cesar Leandro Araújo
Guilherme Paoliello
Paulo Leminsky
E
m meu livro, Patrimônio cultural e imaterial, da coleção Imagens de Minas, elaborado em
colaboração com Miguel de Ávila Duarte, após estudarmos as mais diversas fontes, desde
a colônia, com textos portugueses sobre patrimônio, chegamos a um conceito simples e
propositalmente didático: “patrimônio cultural é o conjunto dos bens materiais e imateriais, que,
pelo seu valor próprio, deve ser considerado de interesse relevante à permanência e à identidade
da cultura de um povo (...)”.
Do patrimônio cultural fazem parte bens imóveis, tais como castelos, igrejas, casas, praças,
conjuntos urbanos, e ainda locais dotados de expressivo valor para a história: a arqueologia, a
paleontologia, a antropologia e as ciências em geral. Nos bens móveis incluem-se, por exemplo,
pinturas, esculturas, mobiliário, documentos, livros, artesanatos etc. Nos bens chamados imateriais
ou intangíveis, consideram-se a literatura, escrita e oral, a música, os ditos populares, a linguagem,
os costumes, a culinária, entre outros.
Dentro do espectro da cultura patrimonial, estão ainda os bens afetivos, sejam eles memórias,
escritas ou orais, sons, cheiros, alfaia familiar ou pessoal, fotografias de família, objetos e qualquer
bem que se concentre no âmbito da imaginação, da criação e da valorização do humanismo.
Testemunhar como foi, para mim, quarta filha do poeta Affonso Ávila, o convívio com ele e seu
acervo perpassa pelo conceito de memórias intangíveis e fragmentos de lembranças totalmente
pessoais. E pode diferir-se do que os outros membros da família possam guardar como outras
memórias também intangíveis.
Por isso quero frisar que os fragmentos de lembranças do bom tempo passado, desde criança até
a maturidade, na Rua Cristina, 1.300, em Belo Horizonte, não têm sentido como valor positivista
de documento. Mas posso dizer, com certeza, que a presença de meu pai em seu escritório e
minhas experiências de vida ao lado das coisas de afeto dele fazem parte da minha vocação como
historiadora da arte, da cultura e dos valores de preservação patrimonial em todos os seus aspectos.
Um dos principais e mais antigos formadores da vida psíquica de todos nós se ampara nos sentidos,
no sensorial – a visão, o tato, a audição e o olfato. Este último o mais poderoso a nos remeter a
situações cotidianas afetivas. Quem não se lembra de um cheiro de um bolo caseiro no forno? É
o nariz nosso amistoso companheiro sensorial responsável universal pelas informações de prazer
obtidas dos mais remotos tempos para o sistema nervoso central.
Já descer as escadas até o porão da casa e me ver frente a duas portas trancadas a chave, e o
interruptor de luz era um marco de conquista, ali era o esconderijo do meu pai guardador, com
suas coleções e objetos de afeto. Do cômodo maior é que vinha o som da máquina de escrever
Remington, sinal de que tudo ia bem, e fazer parte desse mundo era uma das minhas aventuras
mais agradáveis. Não foram poucas as vezes que o interrompi para receber de suas mãos papel e
lápis para desenhar e escrever as primeiras letras seriamente, como se fora eu coautora daquele
ambiente espetacular. Um dia ele me disse: “tudo isso, minha filha amada, também é seu”. E tomei
talvez inconscientemente aquele escritório e todo seu acervo como responsabilidade minha.
Das memórias da coleção pessoal me identifiquei também com os diversos acervos de história
e do patrimônio cultural mineiro. Foram muitos passeios e trabalhos auxiliares que fizemos por
Minas Gerais, incluindo a nossa ancestral Itaverava, que me despertou para o que venho fazendo
ao tentar recuperar as memórias afetivas quilombolas de Itaverava, ligada à história de vida de
meus bisavós maternos, especialmente o avô pardo de meu pai, o músico e abolicionista Antônio
Roberto Ferreira Barros, que libertou seus irmãos escravizados e lhes concedeu terras para
moradia, cultivo e subsistência e se propôs a se aventurar pela causa abolicionista e ‘a música de
influência negra lundu’, ainda no ano de 1851, fato documentado e presente no acervo do museu
de música de Mariana, doadas que foram suas partituras pela família.
Na revista Barroco, logo ainda adolescente, tornei-me a revisora auxiliar de papai. Ora lia os
textos datilografados, trocávamos, ora ele lia os textos de artigos inéditos nas provas de gráfica,
trocávamos também. Eram tantos erros que, entre risos, aprendi com o amigo e bibliófilo Hélio
Gravatá a frase que se tornou imortal através de Monteiro Lobato: “os erros saltam como sacis”.
No final de tanta leitura e releitura, papai passava os impressos da revista para a sua companheira
de vida, Laís Corrêa de Araújo, que era responsável por passar o pente-fino, retirando as lêndeas
e os piolhos que sobravam de nossa leitura.
Meu pai me fez historiadora da arte e da cultura, escritora e ensaísta, no dia a dia, independente do
curso de História da UFMG, onde os professores acreditavam ser ele o redator de meus trabalhos.
Affonso Ávila, que considerava o trabalho a melhor medicação para tempos difíceis, me arranjou,
desde bem jovem, ainda estudante, grávida e desempregada, uma função: a de fazer fichamentos
para a composição de seu livro Iniciação ao barroco mineiro. Tornei-me colaboradora desse livro
que, hoje esgotado, ainda desperta o interesse daqueles que se iniciam no estudo do barroco. Mais
ainda, fui responsável por redigir a biografia de artistas barrocos mineiros.
Com o nascimento de meu primeiro filho, André, pouco mudou, pois fui estagiária do APM, via
concurso público, da Fundação João Pinheiro e do Museu Mineiro, que foi inaugurado na direção
impecável de minha querida professora Myriam Ribeiro de Oliveira. Foi ela a minha mestra no
estudo formal da arte e da iconografia religiosa, começando pelos santos que compõem a coleção
Geraldo Parreiras.
Muitas foram as frustações de Affonso Ávila e suas vitórias que assisti desde criança. Por ele e
para ele, fichei a Bíblia em temas devocionais que interessavam tanto a ele como a mim. Herdei
de papel passado a revista Barroco, da qual fui responsável pelos dois últimos números publicados
Tive também, entre minhas experiências juvenis, a grata participação voluntária no projeto de
tombamento da Unesco das cidades de Ouro Preto e Mariana. Participei, junto ao meu saudoso
colega e amigo professor José Arnaldo Coelho de Aguiar Lima, do inventário e notas sobre o
pequeno distrito de Bento Rodrigues, em Mariana. Após o derramamento irresponsável de lama
tóxica sobre o pequeno distrito, que atingiu sua população, seus bens, materiais e imateriais, e as
consequências nefastas que fez o antigo trajeto da Bacia do Rio Doce até o oceano, destruindo
referências afetivas, pessoais, históricas, artísticas, fauna e flora, povos ribeirinhos etc.
***
Ao contrário do que se pensa nunca foi intenção do poeta, jornalista e ensaísta Affonso Ávila se
inserir na cultura brasileira como historiador ou fundador de uma nova concepção teórica sobre
o Barroco no Brasil. Mas foi, como ele mesmo disse, em depoimento publicado a seu pedido na
póstuma Barroco 20, “uma feliz coincidência e uma motivação telúrica” que já se adivinhava em
sua poesia “combativa e de denúncia política das raízes oligárquicas mineiras, especialmente os
poemas confeccionados em plena ditadura militar”.
Nesse momento trágico do país, Ávila encara um projeto que revolucionaria as ideias sobre
a análise do Barroco, o estudo de 2 documentos literários: Áureo Trono Episcopal e Triunfo
Eucarístico, que viriam a constituir o livro Resíduos Seiscentistas em Minas, premiado duas vezes
nacionalmente e publicado através do Centro de Estudos Históricos da UFMG.
A partir daí a relação de Affonso Ávila com o patrimônio cultural dá uma guinada certeira em prol
da militância profissional e decisiva na definição da política de preservação do patrimônio cultural
mineiro. No ano de 1968, ao lado de nomes como: Vinicius de Morais, Murilo Rubião, Domitila
do Amaral e Eloy Heraldo Lima, foi um dos responsáveis pela criação da Fundação de Arte de
Ouro Preto (FAOP). Posteriormente o poeta coordenaria a equipe de criação do IEPHA/MG.
A Barroco (1969) nasce com a intenção de cumprir o valor de uma ciência empírica de
experimentação, ainda que com o necessário respeito histórico às fontes impressas e arquivistas.
Buscava-se uma criatividade que abarcasse o fenômeno arte colonial brasileira às suas diversas
intertextualidades e ao fundamento das ciências humanas comparadas, ainda uma novidade
na época. Ao mesmo tempo, o organizador do periódico aliado ao pensamento de vanguarda,
especialmente o debate entre a revista Tendência e os concretistas, foge da linearidade evolucionista,
Cabe aqui uma bela citação de Benedito Nunes, que, além de filósofo sensacional, faz uma leitura
das mais dignas de quem foi Affonso Ávila e sua obra, iniciando pelas suas origens ancestrais em
Itaverava, Minas Gerais, onde ainda criança publicaria o que chamou de suas garatujas poéticas,
por iniciativa de sua tia Augusta, a quem homenageou com o poema “Cantiga de Santa Augusta”
no livro o Falso Alphonsus el Sábio.
“Deus não joga dados, dizia Einstein. O poeta, sim, ele os joga; mas os seus
dados são a matéria e forma de linguagem. Ambos lhe abrem o caminho a
uma preliminar experiência das coisas. Pela matéria sonora e gráfica, pela
forma enunciativa ou expressional, antes de tudo pelo ritmo da frase. (...)
O poeta pode fazê-la seguindo os modos e modas do momento presente
e do passado ou se opondo à dominância de um estilo, à inércia histórica
da tradição. (...) E que outro melhor meio de mostrar do que fazer ver,
colocar o que se mostra verbalmente como uma coisa no espaço à frente
de quem lê, intuída pelo poeta e perceptível para o leitor? (...) Cada poema
escrito nesse espírito renova o voto de franciscana pobreza que o sujeita, e
os versos de Affonso Ávila, assim elaborados, põem em prática toda uma
ascese mediante a qual foi possível escrevê-los. O que se quer que sob tal
ascese ele diga é quase sempre um dizer de menos. (...) No entanto, mineiro
de poucas palavras no verso e na vida, nascido em Belo Horizonte e, como
eu, em torno do fim da década de 1920, sempre voltado para suas ancestrais
raízes em Itaverava, nunca desatento à trama iluminista dos inconfidentes
de Vila Rica com o Barroco das igrejas e cidades setecentistas do ciclo do
ouro.”
Falar de sua poesia é pois falar de sua permanente interação de vidas, especialmente a de ensaísta
do Barroco e a sua poesia, que se estabelecem no “retraimento à expressão lírica em proveito a
narrativa com o epos tradicional popularesco”, nas expressão ainda de Benedito Nunes. Nascendo
daí poemas como “O Boi e o presidente”, “As Viúvas de Caragoatá”, “O Concílio dos plantadores
do Café” e, sobretudo “os negros de itaverava”, que me interessa particularmente pelos estudos
que venho fazendo ao lado do professor e ativista negro Paulo Esteban (quilombola do Bengo).
Terras férteis, por onde passa o Rio Piranga, afluente do mutilado Rio Novo, após a derrama
assassina das barragem em Bento Rodrigues, alvo cobiçado pelos pecuaristas da região, que roubam
água e terra dos quilombolas, sem que este fato seja notado e denunciado por nenhum órgão de
proteção governamental, atingindo a Usura, crime impune. Tema ao qual o poeta se refere, em
quase toda a sua produção poética, mesmo no período anterior e pós-ditatorial. A exemplo de:
Carta do Solo (1957- 1960), Carta sobre a Usura (1961-1962), Código de Minas, (1963-1967), Código
Muitas críticas foram traçadas sobre a teoria do Barroco (mineiro, brasileiro e latino) de Ávila,
especialmente aquelas que pretendiam desmitificar o mito, como se Ávila não compreendesse o mito
como lugar da ficção do preenchimento do vazio, num país carente de memória e memorização.
No ano de 1971, Ávila nos brinda com um estudo ainda mais pertinente e inventivo – O lúdico
e as Projeções do Mundo Barroco, ressaltando o elemento lúdico nas formas de expressão do
Barroco. Neste livro ele propõe três linhas de explicação do fenômeno – a ênfase do Visual, o
lúdico e o persuasório (não deixando de lado a influência ideológica da Igreja da Contrarreforma
e do Absolutismo.)
Ávila incrementa ainda o estudo das transplantações culturais. Entende o fenômeno como
globalizante, uma sistematização de gosto e de estilo de vida, não apenas um estilo artístico formal
incluindo além da arquitetura, pintura e escultura, o teatro, a literatura, a festa, manifestações
populares até um senso de carnavalização da poética brasileira, que viria a ser confirmado pelos
tropicalistas. Não persegue a origem, mas a originalidade dos modos de ser no mundo colonizado
da América Latina.
Podemos acrescentar ainda estudos menores como os do livro O Poeta e a Consciência Crítica,
a Circularidade da Ilusão e outros.
Cabe destacar que toda a obra de Ávila incluindo vários números da Barroco encontram-se
esgotados e mesmo assim, com todas as dificuldades que o setor de cultura se deparou nesses
últimos anos temos número significativo de pesquisas e autores de acadêmicos a poetas e artistas
que se interessam pela labuta da cultura intelectual, que, de diversas formas, acenam ao pensamento
intertextual e intertemático que discutem de forma aberta com a formação da mentalidades e a
transhistoricidade em Minas, no Brasil e no mundo. São a consciência artística, poética e histórica
brasileira, como fizeram os primeiros historiadores brasileiros, o romantismo e os modernistas
aqui em belo texto de crítica de literatura, Macunaíma, Memória e Modernismo, por Myriam
Ávila, professora titular de Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa de pós-
graduação em Estudos Literários da UFMG, como a partir de uma consideração de vanguarda
que entrelaça tempos, citações, ironia e a arquitetura do poema em sua vitalidade visual, aqui
representada por diversos autores destacando-se a análise das Barrocolagens do prof. Dr. Paranaense
Josoel Kovalsky, de textos fundamentais sobre arquitetura da profa. Sônia Gomes Pereira, profa
hemérita da UFRJ, arte portuguesa, um dos mais antigos colaboradores da BARROCO , o recém-
falecido prof. Dr. Luis de Moura Sobral, catedrático titular de cultura portuguesa de Montreal.
Muito obrigada!
CRISTINA ÁVILA
Diretora da Revista Barroco Digital
AFFONSO ÁVILA
V
iajante da palavra - a criação poética, a reflexão crítica, a pesquisa cultural, dividi-me, em
mais de 50 anos de atividade, entre trilhas, desvios e fidelidades, por um mundo variegado
de interesses, todos convergindo, no entanto, para uma realização pessoal conhecida
e reconhecida. Por cerca de duas décadas, em que me apaixonara, ao lado primacial da poesia,
pelo encanto e estranhamento do barroco em seu viés teórico, vejo-me, de repente, envolto com
os sinais e ruínas de um passado mais pragmático: a pesquisa e interpretação de fontes e acervos
de nossa fundante história como país ansiado e tropicalizado. Parti para o trabalho de campo em
projeto que, se não se concretizou, deixou mais que resíduos em meu olhar instigado e aguçado.
Foi o denominado Plano Viana de Lima concebido pela UNESCO e entregue aos destinos
direcionados da Fundação João Pinheiro, à época conceituada e prestigiada em todo o País
pelos seus estudos aplicados na área de desenvolvimento urbano. O Plano Viana de Lima,
urbanista da UNESCO e supervisor profissional da ambiciosa tarefa, contemplava a conurbação
histórico-regional das cidades de Mariana, a primeira diocese, e Ouro Preto, a ex-Vila Rica, centro
maior da mineração e administração do território do ouro. Ambas se encontravam diante de um
dilema: ou desenvolver-se ao revés de sua ancianidade urbanística e artística, inscrevendo-se de
vez na linha expansiva do progresso, ou desvirtuar-se de suas singularidades de tempo e beleza
tradicionais, em decadência maior do que a então sofrida. A UNESCO, que daria a Ouro Preto o
status de monumento universal, achou por bem intervir na questão, prevendo um rol conjugado
de providências, junto à irmã gêmea Mariana, que equacionasse o imperativo contraposto.
A Fundação João Pinheiro, com a cobertura dos governos federal e estadual e atrelada à visão técnica
da UNESCO, iniciou então o intitulado Plano de Conservação, Valorização e Desenvolvimento de
Ouro Preto e Mariana. Com nome já assegurado na vertente estudiosa do barroco – os Resíduos
(1967) e O Lúdico (1971), sou invitado oficialmente para assumir a Coordenação da Equipe de
Suporte Histórico-Documental (ESHD) da empreitada institucional, sendo então contratado para
fundamentá-la e organizá-la. Tendo a par a tutela urbanística e conjuntural do arquiteto, depois
amigo dileto, professor emérito Augusto Carlos da Silva Telles, representante do Governo Federal
(IPHAN e SEPLAN/PR); Francisco Iglesias, mestre e escolha afetiva; Myriam Andrade Ribeiro
de Oliveira, parceira de toda uma vida de promoções e trabalhos, um casamento profissional que
se diria profícuo; Hélio Gravatá, o dono dos segredos bibliográficos de Minas, e o restaurador
Jair Afonso Inácio, que em várias línguas sabia tudo de Ouro Preto. A eles – elenco setorial – se
somavam urbanistas, arquitetos, engenheiros, sociólogos, economistas, o ecólogo e paisagista Burle
Marx, outros técnicos e futurosos estagiários. Se o Plano se frustrou, salvaram-se a experiência,
o aprendizado, a afetividade, bens que não se compram, que se aprendem e apreendem.
Superado o insucesso pragmático do Plano Viana de Lima, permaneci na seara das cidades
históricas e até modernas, pulando da Fundação João Pinheiro para o IEPHA/MG – minha
criação anterior, dali para o Ministério da Cultura, de Brasília ao retorno à Fundação, na qual,
aos quase sessenta anos, fui vítima de um complô de preconceitos e desrespeito, demitido em
1988 por excesso talvez de talento e peso próprio de aplicação. Mas valeu. Apenas a poesia se
ressentiu desses deslocamentos e seus contratempos, porém logo me redimi, retornando com
força, paixão e decisão ao meu berço de origem, já inseminado de visões e previsões, convívios
e amavios, como o demonstra em linguagem, beleza e invenção a minha Cantaria Barroca,
estruturada em pedras, formas e percursos na temporada febril e inesquecível dos dois anos de
vivências e prendas ouro-pretanas. Trabalhei em outros levantamentos, se não do mesmo porte,
pelo menos da mesma espécie: o patrimônio histórico e artístico. Foram planos para o Circuito
do Diamante, o Circuito do Ouro, a visão de conjunto da província ancestral e contraditória, que
eu devassara irônica e implacavelmente na esfera da poesia, o tão bem-sucedido e questionado
Código de Minas, que me levou, no entanto, à primeira fila dos que são os ditos eleitos das musas.
Não há, ao que se conclui, história sem percalços e eu, na minha missão e visada preservacionista,
também os tive. Além do insucesso do Plano Viana de Lima, outros desacertos se adicionaram à
minha peripécia ora profissional, ora ao maior do tempo amadora. Doeu-me muito o cancelamento,
na última hora, do simpósio internacional do ano 2000, que, com Myriam Ribeiro e companheiros,
planejávamos, que me deixou, que nos deixou na contramão do tempo. E um segundo fato, de
ampla repercussão na ocasião, também me desapontou, tornando-me mesmo um quase incrédulo
do instituto do tombamento. Refiro-me à posição isolada em que fiquei no chamado “Caso Cine
Metrópole”, quando a incúria e a ganância se assestaram contra um sinal, ainda que quase dos
raros, que nos restava do início de Belo Horizonte (antigo Teatro Municipal), e descambaram
em franca falácia e insensibilidade. Contra meu voto, pessoal, explícito e resistente a pressões
políticas, voto consciente e solitário/solidário, alienou-se o velho edifício, reformado mas não
desfigurado, e, em seu lugar, ergueu-se mais uma torre de usura. Em vão lutaram, junto comigo, o
IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil – Secção de MG), artistas, intelectuais, estudantes e, enfim,
toda uma população afeiçoada à memorável casa de entretenimento da antiga Praça do Teatro.
Entretanto, como demonstram estas novas Memórias de Ofício, nem tudo foi fracasso em minha
trajetória na área. Ademais da revista BARROCO, que heroicamente persiste há mais de três
décadas, e hoje sob direção de minha filha e historiadora Cristina Ávila, dos congressos e encontros
de pesquisa que suscitou até internacionalmente, posso ostentar – como neste volume o faço – a
criação de entidades vitoriosas, que se impuseram ao panorama da cultura mineira: a Fundação
de Arte de Ouro Preto (FAOP), o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA/
MG) e o Centro de Estudos do Ciclo do Ouro (CECO), este por incumbência do Ministério da
Fazenda, na monumental Casa dos Contos, de Ouro Preto. E mais fiz, como aqui se registra, que
me trouxe alento em quase vinte anos de ofício e que se agregam a trabalhos concretizados, como o
do Circuito do Diamante, o Igrejas e Capelas de Sabará, o Glossário de Arquitetura e Ornamentação,
ferramenta de iniciação em cursos de arquitetura, história, belas artes, turismo e fonte de acesso
de amplo público interessado (já esgotadas três edições!). Fique, ao final, camonianamente, o
dístico O AMADOR E A COISA AMADA, embora em casos de AMOR, como o que nutri nessa
passagem de minha vida, nem tudo reverte a beijos e abraços.
Sobrevivi.
AFFONSO ÁVILA
2011
A SACRISTIA COMO PINACOTECA
DA ÉPOCA BARROCA:
O CICLO PICTURAL DE BENTO COELHO
NO CONVENTO DE S. PEDRO DE
ALCÂNTARA, LISBOA
N
a sua configuração actual – disposição em relação ao santuário, comunicação directa
com o exterior e decoração com lavabo, móveis diversos e obras de arte – a sacristia
data unicamente dos finais do século XVI. Antes do século IX não se tem conhecimento
da existência nas catedrais e templos importantes de locais especificamente designados como
“tesouros”. As vestes sacerdotais e os objectos do culto eram então arrecadados em cofres ou
baús que se dispunham na sacristia, dependência cuja existência se constata desde o século
III. Certas igrejas de maior importância possuíam mesmo duas sacristias, uma para as funções
quotidianas, e a outra reservada ao /capítulo e aos cónegos, sendo nesta última que se guardavam
as relíquias e o Tesouro.
Assim praticamente desde sempre, serviu a sacristia para conservar relíquias, objectos preciosos
relacionados com o culto e, duma maneira geral, obras de arte. Na Itália do Renascimento a
arquitectura de tais locais foi por vezes concebida de maneira autónoma, integrando-se num
conjunto coerente outros elementos decorativos. As exigências do culto e as prescrições de
ordem litúrgica próprias da Contra Reforma determinaram para a sacristia um novo estatuto
físico e simbólico. O enriquecimento decorativo e semântico próprio da época barroca vem
assim sistematizar e coroar uma tendência que na realidade se verifica desde os começos
do cristianismo. Acrescente-se que o arcaz, a cómoda em cujas espaçosas gavetas se podem
guardar estendidas as vestes sacerdotais, elemento fundamental das sacristias barrocas, aparece
unicamente no século XVII2.
Figura 1 - Arcaz do lado esquerdo, Sacristia da igreja do convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, último terço do século XVII.
Note-se, e estas observações aplicam-se a toda a série de S. Pedro de Alcântara, que o pintor
modificou sensivelmente a composição da gravura conferindo-lhe uma maior diversificação
espacial, acrescentando Anjos e anjinhos e dinamizando de maneira geral as atitudes das
personagens. De simples ilustrações, algo hieráticas e sempre com reduzido número de figurantes,
as alegorias transformam-se pelo pincel de Bento Coelho em composições movimentadas,
coloridas, cheias de personagens secundárias. Staurófila está ajoelhada diante de Cristo, numa
demonstração de humildade e de respeito, a terceira personagem avança lestamente, parecendo
dançar, enquanto quatro ou cinco anjos colaboram duma maneira ou de outra à acção.
As gravuras do livro de Haeften eram bastante conhecidas em Portugal na época barroca. Elas
foram de facto utilizadas num grande ciclo de azulejos para o convento de freiras chamado
das Grilas, hoje no claustro superior do Museu do Azulejo em Lisboa (Figura 4). As alegorias
diretamente copiadas das gravuras, praticamente sem alterações, alternam aí com cenas da vida
quotidiana, num discurso didático de carácter claramente moralizador, contrapondo à vida
profana as atitudes mortificatórias necessárias à redenção.
A segunda tela (“Com ele estou na angústia”, Salm. 91,15)16 utiliza a referência, pelo texto de
Haeften, à Esposa do Cântico dos Cânticos, numa imagem que também se pode interpretar como
Figura 9 – Painel de azulejos, claustro superior, Museu do Azulejo - Convento da Madre de Deus, Lisboa, primeiro terço do século
XVIII (foto do autor).
O primeiro quadro do arcaz da direita uma interpretação um tanto misógina dum versículo do
Salmo 32, 10 (Figura 12); “Muitas dores serão para os pecadores”19. Com efeito nada no texto
indica tratar-se de pecadores do sexo feminino, mas é assim que Bento Coelho os representa,
limitando-se a seguir o texto de Haeften e a gravura que o ilustra: “As mulheres perversas
recusaram a mais pequena Cruz. Quanto mas elas a evitam mais pesadas será a Cruz que terão
de levar” (Figura 13). É assim um diabólico monstro que, como um castigo, impõem a Cruz à
mulher Dobrada sobre o seu peso. Note-se que o azulejo eliminou o diabo, acaso considerado
inútil ou inapropriado num claustro feminino... Bento Coelho pintou uma outra série de
alegorias da Cruz baseadas nas mesmas gravuras das quais só uma coincide com um dos temas
tratados em S. Pedro de Alcântara. As dez telas, a necessitar urgente tratamento de conservação,
encontram-se dispersas por diversas dependências da igreja do antigo convento das Flamengas,
em Lisboa. A pintura que se inspira no Salmo 32 é de qualidade muito superior à da sacristia de S.
Pedro. As telas das Flamengas, de dimensões mais consideráveis e de execução mais cuidadosa,
indicam uma encomenda de outra importância. O convento dito das Flamengas era de facto
uma fundação real e porventura destinar-se iam as telas à decoração de alguma sala de carácter
oficial. Na pintura seguinte, Bento Coelho separou nitidamente as duas figuras; Jesus assenta
solidamente os pés na terra firme (Figura 14). A citação bíblica é de outro Salmo (“Socorro
na aflição”, 107,13)20, mas é a glosa de Haeften que lhe confere um carácter marítimo: “Que
Assim também, apropriadamente, se termina o ser mão plástico patente na sacristia, dirigido
a todos os que, religiosos ou leigos, habitualmente a frequentam o Por Ela passam. A primeira
tela do ciclo, a única que alude a uma passagem da vida do Cristo (um versículo do evangelista
S. Lucas), introduz a problemática geral; a Cruz como filosofia de vida a vida como imitativo
Christi. Nas quatro pinturas seguintes a Cruz é o que cada um deve carregar, símbolo das
dificuldades e misérias da existência. Os três últimos quadros apresentam nos, um espírito
radicalmente diferente, optimista e cheio de Esperança, a Cruz como um instrumento de
salvação. Na derradeira pintura do ciclo, última astúcia teológica e retórica, a alusão implícita
a Moisés evoca a unidade da história sagrada, a continuidade entre o fundador institucional
da religião judaica, o instaurador da Antiga Lei, por um lado e, por outro lado, o fundador do
Cristianismo, o instaurador da Nova Lei. Será este último que, se aceitarmos e seguirmos o que
nos é explicado nas pinturas, nos acolherá no cimo do monte, no lado de lá da realidade, a qual
não passa pois de fictícia, fatídica, ilusão...
No conturbado século XVI abundam as manifestações de amor e de devoção à Cruz, no
momento do martírio do Filho de Deus e via da salvação. Santa Teresa de Jesus escreveu em
1581 num poema intitulado La Cruz:
Um poeta português, religioso capucho, Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), é o autor dum
Hino à Cruz, centrado obviamente sobre o Cristo da paixão:
Mas as citações sobre este tema tirada de autores dos séculos XVI e XVII encheriam provavelmente
bibliotecas inteiras. Lembremos unicamente que o século XVI é a época de San Juan de la Cruz,
de Luis de Granada, de Inácio de Loiola, e que a pintura barroca, necessitada de êxtases, de
martírios e de imagens de penitência e de devoção, multiplicou até à saciedade as representações
da Cruz em todo o tipo de visões, aparições, adorações, milagres, etc, etc.
S. Pedro de Alcântara é uma das figuras de religioso do século XVI que mais utilizou a Cruz na
sua acção de pregação e de evangelização. Nascido em Alcântara, na estremadura espanhola,
em 1499 e falecido em 1562, franciscano descalço, S. Pedro de Alcântara, esteve por diversas
vezes em Portugal, contando-se entre os fundadores do convento da Serra da Arrábida. Director
espiritual de Santa Teresa, S. Pedro distinguiu-se por um modo de vida espantosamente severo25.
Foi devotíssimo da Cruz, como no-lo mostra o seu principal biógrafo Francesco Marchese
no livro preparado para o processo da sua canonização26. Marchese descreve ainda diversos
fenômenos de êxtase ou de levitação, que tudo isso era necessário no estabelecimento das provas
da santidade de um candidato à canonização: “Sucesse poù volte, che ponendosi di notte ad
orare nel campo, fù vedutto da Pastori sollevato da terra nell´aria l´altezza d´um huomo; e altre
volte più alto che uma picca com le braccia distese in sembianza di Croce; il qual modo d´orare
era al Servo di Dio assai familiare (...)”27.
Figura 23 – Painel de azulejos, átrio da igreja do Convento de S. Pedro de Alcântara, Lisboa, primeiro terço do século XVIII.
I
A CONTRA-REFORMA E OS JESUÍTAS
A
reação da Igreja Católica à Reforma Protestante2 foi iniciar uma reforma radical na
liturgia, no clero e nas ordens monásticas, que atingiu um efeito mais vigoroso na
Itália a partir da terceira década do século XVI. Em Roma, a reforma religiosa foi
particularmente intensificada após o saque da cidade, em 1527, por tropas francesas, espanholas
e austríacas, fato que tomou uma significação apocalíptica para os contemporâneos3. O mesmo
espírito de reforma religiosa se estendeu fora de Roma, especialmente no norte da Itália, onde,
em 1524, Gian Matteo Giberti, nomeado bispo de Verona, começou uma completa reformulação
em todo os aspectos da prática eclesiástica de sua diocese4.
Este espírito reformista atingiu também as velhas ordens medievais: Santa Teresa D’Ávila e
São João da Cruz são os grandes reformadores das Carmelitas e São Pedro de Alcântara dos
Franciscanos. Ao mesmo tempo, novas ordens surgiram, expressamente organizadas para
promover e expandir a Reforma Católica, como os Capuchinhos, os Barnabitas, os Oratorianos,
os Jesuítas, entre outros.
Em todas estas novas ordens, os Jesuítas tiveram, desde o início de sua existência, um papel de
liderança na Contra-Reforma, não apenas na Europa, mas também na África, Ásia e América5.
Criada em 1539, em Roma, por Santo Inácio de Loyola6 e aprovada em 1540, pelo Papa Paulo III,
a Companhia de Jesus era, nos seus primórdios, uma ordem predominantemente espanhola, e
enfrentava imensas dificuldades para dar conta dos inúmeros empreendimentos, que sua rápida
expansão lhe impunha.
II
O PRIMEIRO PROJETO PARA O GESÙ DE ROMA: 1550
Neste mesmo ano de 1550, um projeto foi feito para a nova igreja e claustro9 (Figura 1). O
Desenho não é assinado, mas provavelmente foi feito por Nanni di Baccio Bigio, um Florentino
que trabalhou como assistente de Antonio da Sangallo, o Jovem, e que sucedeu a Rafael como
arquiteto de São Pedro do Vaticano. Esta atribuição é baseada isso num documento de 1554, em
que o próprio Nanni menciona o “disegno che ho fato dela chiesa nova, che vole fare la comp.a
di Jesu”10.
Este projeto prevê uma nave bastante larga com uma entrada na fachada principal e ladeada
por seis capelas em cada lado. O transepto não é proeminente, apenas está um pouco mais largo
do que as capelas da nave, e possui uma entrada lateral em cada um dos braços. A nave, ainda,
prolonga-se além do transepto, também ladeada por um par de capelas, e termina na abside. A
cobertura seria um simples teto plano de madeira e a fachada seria enquadrada por torres11.
Em termos funcionais, o programa desta igreja estava em perfeita concordância com os novos
requisitos da Contra-Reforma, que, em relação à liturgia, envolviam três pontos básicos: à assistência
à missa, a assistência ao sermão e o comportamento respeitoso e piedoso dos fiéis na igreja.
A nova religiosidade, procurava incentivar uma profunda espiritualidade nos fiéis, demonstrada
III
O SEGUNDO PROJETO PARA O GESÙ DE ROMA: 1554
Um outro projeto, identificado por uma escritura posterior como sendo para o Gesù, foi feito
provavelmente em 155416 (Figura 2). Ele tem sido atribuído muitas vezes a Michelangelo17:
primeiro, por causa das cartas entre Santo Inácio e o secretário da Ordem Jesuíta, Padre Polanco,
mencionando que os serviços do grande artista tinham sido assegurados para o Gesù18, e
segundo, pelo fato do desenho possuir anotações feitas no material favorito de Michelangelo,
giz vermelho, e em seu estilo característico.
Examinando, no entanto, este segundo projeto, nota se o conjunto é muito próximo ao esquema
original de Nanni: uma abside e um transepto amplos e uma nave com cobertura plana de
madeira. Há, porém, algumas diferenças: as três portadas da fachada, a ausência das duas torres
na fachada, quatro Capelas laterais em lugar de seis, um transepto mais largo e com braços
proeminentes e uma pequena área entre nave e transepto, com indicação de conter escada. Em
relação ao primeiro projeto, este segundo parece uma solução melhor desenvolvida, embora
seguindo o mesmo partido básico.
Por esta época, o que Michelangelo estava fazendo em termos de arquitetura, mostra que ele
IV
O MECENATO DO CARDEAL FARNESE
Em 1561, o Cardeal Alessandro Farnese, sobrinho do Papa Paulo III, concordou em pagar pelos
custos da igreja: este patronato mudou completamente o enfoque que tinha sido dado até então
pelos Jesuítas, sobretudo pelo fato de Farnese indicar Giácomo Barozzi Vignola21 para arquiteto
do Gesù.
É verdade que, desde o início, Vignola havia estado envolvido com a Igreja, mas apenas
assessorando como especialista22. Ele deve ter-se ocupado das medições para os limites precisos
do lugar, o que constituía um problema básico: a impossibilidade de obter a área atrás dos
palácios Altieri e Astalli forçava os Jesuítas a ficarem restritos há uma área irregular, em que a
igreja tinha de ser posicionada em relação oblíqua às ruas. Esta era, na verdade, a posição da
velha igreja de Santa Maria Alteriorum (Figura 3), que foi o primeiro núcleo do Gesù. E esta
era também, a posição do primeiro projeto (FI. 1). Este problema do posicionamento da igreja
em relação ao contexto urbano era uma das principais preocupações do Cardeal Farnese, que
enfaticamente desaprovava a posição insólita da igreja nestas soluções anteriores23. E, de fato,
ele conseguiu resolver o problema removendo os obstáculos para a aquisição dos dois palácios
atrás, permitindo assim localizar a igreja numa posição mais razoável, formando ângulo reto
A preferência do Cardeal Farneses por Vignola será de capital importância para a igreja do
Gesù. Desde o seu estabelecimento definitivo em Roma, em 1550, Vignola era considerado
pelos seus contemporâneos como um arquiteto e engenheiro altamente competente. Durante o
Papado de Júlio II, de 1550 a 1555, tinha sido requisitado para alguns empreendimentos papais
importantes, como a Villa Giulia, perto de Roma, onde trabalhou de 1550 a 1558, Sant´Andrea
in Via Flaminia, que pertencia ao conjunto da Villa, de 1550 a 1553. A partir de 1559, tornou-se
arquiteto da família Farmese, estando, consequentemente, à frente de seus principais projetos:
o Palácio Farnese em Piacenza, de 1561 a 1565; o Orti Farnesiani sul Palatino, de 1565 a 1573;
assim como a sua colaboração com Michelangelo no Palácio Farnese em Roma.
V
O PROJETO DEFINITIVO PARA O GESÙ DE ROMA: 1568
Em 1568, Vignola fez o projeto definitivo para o Gesù de
Roma, adotando o partido da nave única com capelas
laterais e com cobertura abobadada, seguindo as
instruções da carta de Farnese (Figuras 5 e 6)27.
A planta de Vignola compreendia uma nave única
bastante larga, ladeada por quatro pares de capelas
laterais intercomunicantes, encimadas por galerias; um
transepto bastante largo, com braços não proeminentes;
e a capela-mor composta por um tramo semelhante ao
da nave, ladeado por duas capelas laterais, e pela abside.
O conjunto formava, portanto, um retângulo compacto,
apenas com exceção da abside.
Este tratamento dado ao alçado de sua nave confere ao Gesù de Roma uma configuração espacial
nova. A grande linha horizontal e ininterrupta do entablamento, que inevitavelmente reforça a
longitunidade da nave, direcionando o espectador a avançar em direção à cabeceira da igreja,
é enfaticamente contraponteada pelas grandes linhas verticais das duplas pilastras colossais,
que refreiam o olhar do espectador e o fazem deter se na própria nave. Este fenômeno ainda
é reforçado pela colocação do púlpito exatamente no meio da nave, trazendo, portanto, para o
centro dela, um dos pontos principais de atuação dentro do cerimonial litúrgico: o sermão. A
própria escolha de Vignola – e esta é uma das novidades do Gesù de Roma em relações às igrejas
anteriores - de não usar a habitual sequência de pilastras e arcos da mesma altura, preferindo
empregar a alternância de altas pilastras duplas e a superposição de arcos baixos encimados por
tribunas vedadas mudou, radicalmente, a concepção espacial desta nave: primeiro, porque as
tribunas de vedadas funcionam como partes da superfície das paredes mais do que como vãos,
reforçando, desta forma, essas paredes como limites do espaço da nave; segundo, porque os
arcos mais baixos isolaram mais as capelas laterais, que se transformavam em simples apêndices
da nave, não interferindo no seu espaço, que é, desta forma, mantido muito mais compacto. Por
meio desta nova maneira de articular as paredes, portanto, a nave da igreja do Gesù de Roma se
constitui numa unidade espacial compacta e independente28.
O PROJETO DA FACHADA
A planta de Vignola para Gesù, provavelmente feita em setembro de 1568, foi imediatamente
aceita pelo Cardeal Farnese, mas a fachada permaneceu indeterminada. Vignola foi pago por
um modelo para a fachada em 1569 e por outro modelo em 157034. Destas propostas, só se
conhece o projeto final, que foi gravado por Mario Cartaro em 1573 (Figura 7): tratava-se de
uma fachada com dois andares, o inferior mais largo do que o superior, unidos lateralmente
por volutas interrompidas, é um frontão reto como a remate superior. Mas nenhuma das
proposições de Vignola agradou ao Farnese. Em janeiro de 1570, Galeazzo Alessi foi convidado
para submeter um projeto para a fachada35, mas somente o projeto de Giacomo della Porta de
1571 foi aceito (Figura 8): baseando-se, claramente, no projeto de Vignola, della Porta acentua
a portada principal, com a invenção do frontão inscrito em outro frontão, e traz os nichos
para o corpo da fachada, deixando os corpos laterais cegos; suas volutas são mais compactas,
enfatizando a união entre os dois andares.
A CONSTRUÇÃO
Quando Vignola foi afastado36, as capelas laterais e a nave, sem a abóbada, já estavam construídas.
A direção da obra foi, então, entregue ao arquiteto-chefe dos Jesuítas, o Padre Giovanni Tristano,
e, após a sua morte em 1575, ao seu sucessor, Padre Giovanni De Rosis. A fachada foi terminada
em 1575 e a abóbada da nave em 1577, quando começou a construção da cabeceira com a
colaboração de della Porta, especialmente para a cúpula37. A igreja ficou totalmente pronta em
1584.
VII
ASPECTOS DA IGREJA DO GESÙ EM ROMA FORA DOS
MODELOS ITALIANOS TRADICIONAIS E CONTEMPORÂNEO
A Solução de articulação das paredes predominantemente no Quattrocento e, mesmo no
Cinquecento, sempre foi a simples sequência de pilastras e Arcos da mesma altura, reforçando
o eixo longitudinal da nave e tornando-a um espaço orientado em direção à cabeceira, que se
destacava, assim, como o lugar mais importante da igreja. A igreja franciscana de Sant´Angelo
em Milão, por exemplo, foi fundada pelo vice-rei Ferrante Gonzaga. Começado em 1552 e
consagrada em 1555, é obra de Domenico Giunti e segue este padrão tradicional de articulação
das paredes da nave. Também SS. Paolo e Barnaba em Milão, projetada por Galeazzo Alessi,
provavelmente em 1558, é construída entre 1561 e 1567, para a Ordem dos Barnabitas, surgida
com a Contra-Reforma, apresenta este mesmo partido. Outro exemplo é San Salvatore al Monte,
projeto de Cronaca, de final do século XV, consagrada em 1504 (Figura 11).
O Gezù de Roma, no entanto, apresentava uma novidade no tratamento das paredes da nave, como
já foi referido anteriormente: as duplas pilastras colossais, ladeadas por Arcos baixos encimados
por tribunas vedadas, reforçam as linhas verticais e as superfícies das paredes, contrapondo,
desta maneira, as Fortes linhas horizontais formadas pelo entablamento ininterrupto. A nave do
Gezù, então, torna-se uma unidade espacial independente, reforçada pela colocação do púlpito
bem no meio da nave, caracterizando, portanto, este espaço como um auditório para sermão.
É verdade que, Sant´Andrea em Mântua, projeto de Alberti de 1470, também apresentam certo
sistema de compensação na nave: a importância do Cruzeiro com a cúpula é contrastado por
eixos laterais estabelecidos pelos arcos transversos da abóbada de berço e pela sequência de vãos
alternados grandes e pequenos da nave43. Mas, como a Construção não foi começada antes da
morte de Alberti, em 1472 e boa parte da igreja - a cabeceira e a cúpula - só foi completada no
Figura 12 - Igreja de Santa Maria della pace em Roma. Figura 13 - Igreja de San Pietro in Montorio em Roma.
IX
A ORIGEM ESPANHOLA DO PARTIDO DO GESÙ EM ROMA
Na Catalunha, portanto, assim como no sul da França51, a arquitetura gótica orientou se muito
mais para a simplificação e para a tendência ao espaço unificado52. E a típica igreja catalã
medieval, com nave única, capelas laterais intercomunicantes entre contrafortes e sem transepto,
tornou-se na verdade modelo para todas as províncias do Reino de Aragão e mesmo para fora
da Espanha: é o caso da igreja de Santa Maria di Monserrato, construída em 1495, em Roma,
por Antonio da Sangallo, o Velho, para a comunidade catalã radicada em Roma, já referida
anteriormente53.
San Juan de los Reyes é uma das mais antigas igrejas, deste tipo de solução peculiar do Gótico
Final castelhano e serviu de modelo para uma série de outras igrejas: a igreja dominicana de
Santo Tomás em Ávila, construída de 1483 a 1493 e atribuída a Martin de Solórzano; a igreja
franciscana de San Francisco em Medina de Rioseco, Província de Valladolid, provavelmente
terminada em 1530; a igreja dominicana de San Esteban em Salamanca, começado em 1524 por
Juan de Alava; San Jerónimo em Real em Madrid, construído na segunda metade do século XV.
X
AS IGREJAS JESUÍTAS NA ITÁLIA ANTERIORES AO GESÙ DE ROMA
Nos primórdios da história da construção jesuíta na Itália, o padre Giovanni Tristano
desempenhou um papel destacável. Tristano vinha de uma família de arquitetos e, ele próprio,
teve alguma prática em arquitetura na sua cidade natal, Ferrara62, antes de entrar para a
Companhia de Jesus em 1555. No ano seguinte, 1556, vai para Roma e, daí até a sua morte, 1575,
esteve sempre envolvido com construções jesuítas por toda a Itália. Na segunda Congregação
Geral da Ordem em 1565, Tristano foi nomeado Consiliarius Aedilicius: tornou-se, assim,
responsável pelo exame de todos os projetos que eram enviados a Roma, para aprovação do
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Notas
1 Sônia Gomes Pereira possui graduação em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(1967), mestrado em História da Arte na University of Pennsylvania (1976) e doutorado em Comunicação e
Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992). Fez pós-doutorado no Laboratoire du Patrimoine
Français/CNRS em Paris (2000). É professora titular (1988) da UNIRIO; professora titular (1994) e emérita
(2014) da UFRJ.
2 A primeira Reforma de Lutero data de 1517 e a ruptura religiosa da Igreja Anglicana e de Calvino em Genebra
datam respectivamente de 1534 e 1537.
3 No próprio ano do saque de Roma, 1527, o Cardeal Sadoleto considerou as destruições como “punições
amendrontadoras” e atribuiu-as à justiça de Deus. Em 1528, no primeiro encontro da Roma depois do saque, o
bispo Stafileo explicava que esta tragédia tinha ocorrido “porque toda a carne se tornou corrupta, porque não
somos cidadãos da santa cidade de Roma, mas de Babilônia, a cidade da corrupção. Nós pecamos gravemente
... precisamos reformar, o altar ao senhor e ele terá piedade de nós”. LEWINE, M. (1967) p. 24.
4 Os princípios das visitas episcopais de Giberti foram codificadas nas suas “Constituzioni”, publicadas em 1542,
obra que muito influenciou São Carlos Borromeo, quando chegou em Milão em 1565. ACKERMAN, J. (1972)
p. 20.
5 A principal preocupação dos Jesuítas era a evangelização dos povos não cristãos. Por este motivo, o colégio
jesuíta oferecia um treinamento especial para os seus padres, para torná-los aptos a missões estrangeiras.
A filosofia jesuíta, a respeito destas missões estrangeiras, diferia radicalmente da posição de outras ordens
tradicionais, como os Dominicanos e os Franciscanos, que insistiam na evangelização total sem nenhuma
concessão. Os Jesuítas, ao contrário, apoiavam sua estratégia na versatilidade, na adaptabilidade, na tolerância
e até mesmo na concessão, até um certo ponto. Estes são os motivos de seu incomensurável sucesso nas missões
estrangeiras WITTKOWER, R. (1972) p .2.
7 São Francisco de Borja Y Aragón nasceu em Gandia, em 1510. Bisneto do Papa Alexandre VI, pelo lado
paterno, e bisneto do rei católico Fernando V, que em 1542 nomeou-o Vice-rei da Catalunha. Em 1543, com
a morte do pai, tornou-se Duque de Gandia. Após a morte de sua esposa em 1546, embora continuasse ainda
por algum tempo ligado às suas obrigações particulares em Gandia. Somente, em 1553 abandonou todas as
atividades seculares para dedicar-se completamente à Ordem.
8 Como os Jesuítas são uma Ordem dedicada à vida religiosa, ativa, suas igrejas deveriam localizar-se em locais
acessíveis à população e não precisavam ficar destacadas do restante do complexo construído para o uso da
Ordem. ACKERMAN, J. (1972) p. 25.
9 Este projeto, assim como outros inúmeros projetos jesuítas dos séculos XVI e XVII, está preservado na
Biblioteca Nacional de Paris.
11 A fachada ladeada por duas Torres seguia o padrão das igrejas góticas do norte ou talvez o modelo de seu
mestre Sangallo para São Pedro do Vaticano. HEYDENREICH, L. & LOTZ, W. (1974) Figura 205.
12 Naquela época, o leigo comum assistia à missa apenas uma vez por ano na Páscoa. E a situação não era melhor
entre o próprio clero. Esta é a razão para a ordenação do Papa Paulo III em 1536, obrigando todos os padres
a frequentar os cultos religiosos, oficiá-los aos domingos, tomara comunhão em todas as festas obrigatórias e,
pelo menos, uma vez por mês. Em consequência destas medidas, vários altares passaram a ser necessários, para
que mais de uma missa pudesse ser rezada ao mesmo tempo numa mesma igreja.
13 Significativo da nova importância da missa foi o crescimento da devoção da Santíssima Eucaristia. Tornou-
se cada vez mais comum reservar-se a capela-mor para a Eucaristia, forçando as missas diárias comuns a se
realizarem nas capelas laterais. LEWINE, M. (1967) p. 25.
14 Naquela época, os sermões eram muito raros, somente durante o Advento e a Quaresma, e os pregadores
estavam restritos legalmente aos frades. Santo Inácio introduziu a obrigatoriedade do sermão durante todo o
ano, podendo atuar como pregador, até mesmo fiéis sem hábitos monásticos. LEWINE, M. (1967) p. 25.
15 Alguns especialistas afirmavam que o teto plano de madeira proporcionava uma melhor distribuição do
som, encontraste com o teto abóbada de alvenaria, produziria ecos. Este era, por exemplo o ponto de vista
de Francesco Giorgi, no seu conselho aos construtores da igreja de San Francesco della Vigna em Veneza, em
1535. ACKERMAN, J. (1972) p. 19-20. E era, também, a opinião de São Francisco de Borja, como aparece em
sua correspondência com o Cardeal Farnese sobre o Gesù. Ibid. p. 17 e 23.
17 A primeira atribuição deste segundo projeto a Michelangelo foi feita por A. Popp em 1927. ACKERMAN, J.
(1972) p.18. Posteriormente Maria Casotti toma esta atribuição como definida. CASOTTI, M. (1960) v. I, p.
199.
19 Comparar, por exemplo, com o projeto São Pedro do Vaticano feito oito anos antes (1546). CASOTTI, M.
(1960) v. II, fig. 222. Ou então com o risco para S. Giovanni de Fiorentini realizado cinco anos mais tarde
(1559). ACKERMAN, J. (1971) figs. 109, 111, 112 e 114.
24 Após a morte de Santo Inácio de Loyola em 1556, seguiram-lhe no posto de Geral da Ordem, o padre Diego
Lainez, de 1556 a 1565, e São Francisco de Borja, de 1565 a 1572.
25 Giovanni Tristano nasceu provavelmente em 1515 em Ferrara, onde trabalhou como arquiteto, antes de entrar
para a companhia de Jesus em 1555. No ano seguinte, e 1556, Tristano foi para Roma e, em 1558 foi apontado
pelo Padre Geral Lainez como “consiliarius aedificiorum” da Ordem, posto que ele conservou até sua morte
em 1575. PIRRI, P. (1955) p. 40-44. Como arquiteto-chefe dos Jesuítas, Tristano foi obrigada a fazer longas
estadias em toda a Itália, embora poucos dos seus trabalhos tenham sobrevivido. WITTKOWER, R. (1972)
p. 6. O nome de Tristano está também ligado a alguns projetos jesuítas em Portugal (São Roque em Lisboa),
na Espanha (São Luis de Villagarcia de Campos, em Castilha) e na Alemanha ( a universidade e a igreja, em
Dillingen). PIRRI, P. (1955) p. 89-95.
27 Antes das cartas de Farnese, com estas instruções, Vignola tentou algumas outras soluções para o Gesù, que
diferem do seu projeto final. A medalha de fundação, feita por G. Bonsegni em junho de 1568, portanto antes das
cartas que foram escritas em agosto, mostra uma fachada que não combina com a planta final. ACKERMAN, J.
(1972) p. 24-25 e fig. 13b. Há também a possibilidade de Vignola ter feito experiências com plantas ovais, pelo
que se pode deduzir de um desenho copiado por Oreste Vannocci Biringucci no final do século XVI, onde está
escrito “Il Viga. Per il Jesu”. Ibid. p. 24 e fig. 13.
28 Depois do estilo inquieto, tenso e não conformista, das décadas de 30 a 40 do Cinquecento (Giulio Romano em
Mântua, Peruzzi em Roma, o jovem Vignola e o jovem Michelangelo), as décadas de 50 e 60 são caracterizadas
pelos ideais de regularidade, simetria ordem e uso correto das ordens e pela preferência por espaços estáticos,
enclausurados por paredes, que não sugerem nenhum impulso direcional (Palladio, Cristoforo, Lombardo,
Sanmicheli em seus últimos trabalhos em Verona e o ultimo Michelangelo) LOTZ, W. (1958) p.129-139.
29 O conceito de um espaço orientado, levando a um clímax de uma organização social, que já apareceu no Gesù,
vai tornar-se, predominante, na década de 80, do Cinquecento. A colocação do obelisco em frente à igreja de
São Pedro do Vaticano por Fontana e a Villa Pratolino, em Florença, de Buontalenti são exemplos deste novo
conceito. LOTZ, W. (1958) p. 134-137.
30 Este tratado foi publicado em 1562. É um pequeno tratado (32 pranchas) e só trata das ordens. O principal
objetivo de Vignola foi estabelecer um sistema numérico-proporcional para as ordens, a fim de obter uma
Harmonia absoluta entre partes e o todo. A origem deste sistema foi o estudo comparativo entre os edifícios
antigos da mesma ordem, ajudado pelo texto de Vitrúvio. A principal motivação de Vignola deve ter sido a
lacuna que existia, naquela época, entre o texto vitruviano, que é muito obscuro, e os edifícios antigos reais.
31 A prancha I do Tratado de Vignola explica as medidas gerais da ordem compósita; a prancha LIV acrescenta
algumas observações sobre o pórtico compósita sem pedestal. VIGNOLA, G. *1891).
37 Ackerman diz que Vignola, incapaz de satisfazer o Cardeal Farnese em relação à fachada do Gesù, foi despedido
em 1571, após o pagamento de 40 escudos como compensação, e desapareceu até a sua morte em 1573.
ACKERMAN, J. (1972) p. 23-25. Maria Casotti, no entanto, acha que “la questione della facciata fosse stato
um episodio che non avera affatto compromisso o alterato i rapporti fra il Cardinale e il Vignola”, baseado no
fato de que Vignola permaneceu como arquiteto dos Famese, trabalhando em Caprarola e em Orti Farmesiani.
CASOTTI, M. (1960) v. I, p. 203. Ibid. p. 208-209.
38 Toda a teoria arquitetural, de Alberti a Palladio, insistia na superioridade da planta centralizada por razões
simbólicas, originadas das ideias platônicas da estrutura harmônica do universo e da correspondência de
microcosmo e macrocosmo, e na compreensão de Deus, através de símbolos matemáticos como o centro,
círculo e a esfera. WITTKOWER, R. (1971) p. 3-32.
40 Vignola exerceu a superintendência, das obras em São Pedro do Vaticano, de 1567 a 1573, o que lhe possibilitou
estar em contato bom o projeto Michelangelo. Quanto a Alessi, Maria Casotti menciona que Vignola tinha
“esaminato e correto” o projeto de Alessi para S. Maria di Carignano, sem dar, no entanto, nenhuma prova
desta afirmação. CASOTTI, M. (1960) v. I, p. 206.
41 Embora a planta centralizada fosse preferida pelos arquitetos por razões simbólicas, ela era frequentemente
usada para memoriais seguindo a tradição da arquitetura cristã primitiva. Nas igrejas regulares, no entanto, a
nave era necessária para acomodar a audiência.
42 O transepto, como foi construído, não fazia parte do projeto de Alberti, que previa uma composição central
a ser acrescentada à nave, com a forma de uma rotunda ou, mais provavelmente, não excedendo a largura da
nave. HEYDENREICH, L & LOTZ, W. (1974) p. 36.
43 No Gesù, as cúpulas das capelas não tem importância estrutural para a sustentação da abóbada de berço,
uma vez que os empuxos desta são conduzidos para os contrafortes acoplados às paredes entre as capelas. Em
Sant´Andrea em Mântua, no entanto, as abóbadas de berço transversas das capelas trabalham como suporte
para a abóbada principal e tem, por esta razão de acompanhar a altura da cornija. HEYDENREICH, L & LOTZ,
W. 1974 p. 275.
44 San Pietro in Montorio foi a primeira igreja espanhola em Roma depois da unificação do país. Antes havia
S. Maria di Monserrato para as comunidades da Catalunha e de Aragão, S. Giacomo degli Spagnuoli para a
comunidade de Castela. TORMO, E. (1942) v. I, p. 102-103.
45 “Quando il 31 luglio 1556 S. Ignazio passo da questa vita, la Compagnia di /gesù, fondata da lui, contava già
um migliato di soggetti e um centinaio di case, sparse in diversi parti del mondo, in Portogallo, in Spagna, in
Germania, in Francia, in India e in Brasile, ma specialmente in Italia, dove esistevano case e collegi in venti
città”. PIRRI, P. (1955) p. 1.
47 Ibid. p. 6.
48 Os Dominicanos tentaram em algumas igrejas a planta com duas naves separadas por colunas: uma nave
reservada para os frades e outra para os leigos. Esta é, por exemplo, a planta da igreja-mãe em Toulouse, a igreja
dos Jacobinos, construída de 1260 a 1304. Mas, este padrão foi abandonado, pela desvantagem de obscurecer a
vista do altar-mor.
51 Entre o sul da França (Languedoc) e o nordeste da Espanha (Catalunha) existiam traços culturais muito
próximos durante a Idade Média, como a língua, por exemplo.
52 Esta tendência ao espaço unificado está presente mesmo quando o pano basilical é usado, aproximando-se do
tipo da igreja-salão, em que todas as naves apresentam a mesma altura.
53 Emile Mâle afirma que a existência desta igreja catalã em Roma possibilitou aos arquitetos italianos conhecer
o tipo espanhol de igreja de nave única com capelas laterais, que, na sua opinião, é o principal modelo para a
igreja de Gesù em Roma. MÂLE, E. (1927) p. 152-159. Paulo Santos, citando Otto Schubert, também credita
às igrejas catalãs, embora com cautela, a procedência do padrão do Gesù de Roma. Diz ele: O. Schubert, sem
referir-se a S. Andrea de Mântua, considera que Gesù provém das igrejas espanholas: <La planta ideal para
la iglesia de predicación católica era la iglesia de salón del norte de España, com capillas laterales, y Borgia
(vice-rei da Catalunha, duque de Gandia, ingressado em 1548 na Comp. De Jesus, Geral da Ordem de 1565 a
1572, animador da construção do Gesù) llevó la idea de esta disposición a Roma; Vignola adapto la cúpula de
San Pedro a la planta de la iglesia catalana de salón> (Otto Schubert, Historia del Barroco em España, Madri,
MCMXXIV, pgs 304 e 305). A questão está a exigir mais amplas investigações”. SANTOS, P. (1951) p. 90.
54 Por esta época, o reino de Castela compreendia apenas a parte central da Espanha. Mais tarde, irá incorporar
os Países Bascos, Leão, Astúrias, Galícia, Múrcia e parte da Andaluzia.
55 A tendência ao espaço unificado aparece também nas igrejas de planta basilical: a altura das naves é quase
igualada, o transepto sem braços proeminentes dá contorno regular à planta de igreja; e sobre o cruzeiro, uma
cúpula (cimborio).
56 Um desenho de Juan Guas, que está no Museu do Prado, refere-se ao projeto original para San Juan de Los Reyes,
sem as poucas modificações que foram feitas durante a construção. A capela-mor deveria ser um retângulo
perfeito, sem os ângulos encurvados da parede posterior; o cimborio deveria ser mais alto; e a elevação da nave
previa um triforium entre a arcada e o clerestório. TORRES BALBÁ, L. (1952) p. 340.
57 Estas cúpulas eram comuns na arquitetura árabe. A Mesquita de Ibn-Tulun no Cairo e a Mesquita de Córdoba
possuem uma cúpula sobre um espaço quadrado. A proximidade destes exemplos espanhóis, especialmente
após a gradual reconquista pelos cristãos, pode ter sugerido o uso destes cimborios para as igrejas.
58 Este coro suspenso foi antecipado pelo da Cartuja de Miraflores, perto de burgos começada em 1454 e
terminada em 1494. KUBLER, G. & SORIA, M. (1959) p. 1.
59 Fernando de Aragón e Isabel de Castela casaram-se em 1469. Em 1474 Isabel tornou-se rainha de Castela e, em
1479, Fernando foi feito rei de Aragão, unificando, assim, os dois reinos.
60 A ideia de uma sala enorme, com o contorno regular, deve também ter sido sugerido pelas plantas das mesquitas,
como a de Córdoba, por exemplo.
61 Georg Weise afirma que estas igrejas napolitanas são a fonte imediata para a igreja do Gesù em Roma. WEISE,
G. (1952) p. 148, 151-152.
63 Ibid. p. 42.
64 Ibid. p. 20.
65 Ibid. p. 30.
66 Ibid. p. 34-35.
67 Ibid. p. 52.
INTRODUÇÃO
Apesar da ampliação das pesquisas sobre a arquitetura colonial no Brasil nas últimas décadas,
Goiás ressente-se de estudos mais sistematizados sobre o seu patrimônio do século XVIII, que
permanece ainda marginalizado. Considerável parcela de seus edifícios e pequenos conjuntos
arquitetônicos ainda é desconsiderada pela historiografia da arte, e pode estar sujeita ao
desaparecimento, caso não adquira maior visibilidade. Tal fato ocorre pela manutenção da
ideia de marginalidade e decadência predominante na tradicional historiografia goiana, o que
provavelmente manteve os pesquisadores desinteressados pelo tema.
Este artigo, portanto, em sintonia com outros escritos que buscam atribuir a importância devida
à arquitetura de regiões menos visibilizadas, visa compreender melhor as tipologias retangulares
de capelas e igrejas que predominaram em Goiás nos setecentos. São pequenos edifícios de
arquitetura bastante simplificada, que às vezes alcançam um certo requinte na ornamentação
dos seus espaços internos. Acredita-se que o exame das variações tipológicas das capelas e igrejas
de Goiás, bem como o seu diálogo com demais regiões do Brasil, pode trazer contribuições para
a atual historiografia da arte local e nacional, que no momento ainda permanece com muitas
lacunas.
A despeito do pouco avanço, cabe destacar que uma literatura mais recente tem trazido
importantes contribuições para os estudos sobre a arquitetura religiosa de Goiás. São eles: a
dissertação de Carla Freitas P. Pereira (2008), que trata das dimensões compositivas da Igreja
Esse mesmo autor diz ainda que esses tradicionais planos simplificados eram acompanhados por
um traço bastante característico de fachada – a disposição em diagonal ou em “V” das aberturas
– e podem estar relacionados à arquitetura de precedentes medievais, tanto em Portugal quanto
Marília Maria B. Teixeira Vale, em Arquitetura Religiosa no Antigo Sertão da Farinha Podre
(1998), também afirma terem sido os planos retangulares simplificados bastante adotados em
diferentes lugares de Minas Gerais, como no caso da região do Sertão da Farinha Podre, atual
Triângulo Mineiro, cujo território no século XVIII fazia parte da capitania de Goiás. Atesta
ainda a longevidade do tipo, afirmando que nessa região ele alcançou até o século XIX.
Em demais partes de Minas Gerais, como na região do Piranga, vê-se a ampla difusão desse
mesmo tipo provincial, com o qual Goiás, ao que parece, também manteve permanente diálogo
em relação às suas referências arquitetônicas, ainda que fosse intermediado inicialmente pelos
paulistas bandeirantes e posteriormente por construtores que circulavam pelos diferentes
lugares. Ainda assim, as formas resultantes de tais tipos foram ajustadas às condições locais, o
que conferiu aos edifícios feições mais atarracadas e, em sua grande maioria, acompanhados de
pequenas e modestas torres de madeira.
Das igrejas citadas acima destaca-se a Matriz de Santana que desabou no século XIX. Em
um manuscrito de 1745, nota-se a providência de um plano retangular que foi submetido às
autoridades. Nele consta que uma provisão foi “[...] enviada pello governador da Capitania, com
planta e risco para a igreja matriz della; já se achava quasi acabada, e coberta, pella primeira
planta e risco que esta câmara poz na Real presença de Vossa Magestade [Documento avulso,
1745, Arquivo Frei Simão Dorvi, Cidade de Goiás.]”.
Um outro documento, aponta ainda que o Conselho Ultramarino enviou uma outra planta ao
governador da capitania de São Paulo, [...] para que elle arremeta a Câmara de Villa Boa de
Goyaz, assim que por ella se execute o edifício da Nova Igreja, que aquelle povo voluntariamente
quer fazer, por ter parecido muito imperfeita a planta que daquelas minas se remeteu [...]
(Documento avulso, Frei Simão Dorvi). Mas, a despeito da qualidade ou não dessas plantas, o
que se quer assinalar aqui é a presença de planos portugueses em Goiás, chamando a atenção
para os diálogos que se estabeleceram entre Goiás e a metrópole.
Por outro lado, tais documentos não apresentam informações necessárias sobre o edifício em
si. Para tanto, utilizou-se os desenhos de Burchell (1981) (Figura 1), que ajudam a confirmar a
predileção pelos planos retangulares em Goiás, seguindo uma mesma tradição arquitetônica
de outras capitanias. Ao que tudo indica ela era composta por um espaço que continha as
principais peças para um templo dessa natureza: nave, arco-cruzeiro, altar-mor e consistórios
das Irmandades do Santíssimo Sacramento e do Senhor dos Passos, e, muito provavelmente,
uma sacristia. Cunha Matos (1979, p. 97), em sua passagem por Vila Boa, fez os seguintes
comentários sobre o altar-mor dessa igreja:
Ainda de acordo ainda com as imagens de Burchell (1981), a Matriz de Santana apresenta traços
compositivos que denunciam rigorosa sobriedade. Sua volumetria é formada por um bloco
central compacto, com marcações de pedra e frontão muito bem definido, onde se encontra
o óculo. Os poucos movimentos encontrados no edifício encontram-se nas vergas curvas das
janelas que compõem a composição em V, e que são vistas também nas janelas das duas torres.
O conjunto completa-se com uma torre sineira de madeira que se ergue ao lado do edifício,
típica de muitas igrejas de Goiás dos séculos XVIII e XIX. Em linhas gerais, o edifício lembra
também as soluções severas adotadas nas tradicionais igrejas jesuíticas, ou aos tipos descritos
por Bazin (1986, p. 198):
Semelhante à Matriz de Santana, com plano para a execução de obra, tem-se a Matriz de Traíras,
de um arraial do norte da capitania de Goiás setecentista, localizado próximo à Natividade, no
Esses desenhos são reveladores da permanência do tipo de nave única com capela-mor profunda,
seguida de altares laterais e púlpito. A composição geral do frontispício da Matriz de Traíras
consiste em um corpo central acompanhado por duas torres e coroado por um frontão, que é
marcado por uma cornija que se estende por todo o conjunto, e um pequeno óculo. Nesse corpo
central encontram-se duas janelas de vergas retas, alinhadas com duas outras que estão nas
torres. Entre o corpo central e as torres, notam-se ainda pilastras sobrepostas, duas em cada um
dos lados, sendo que uma delas continua fazendo o arremate das torres.
A porta da Matriz de Traíras, com ornamentos que a envolvem e ultrapassam a altura das janelas,
foge ao padrão estabelecido para a grande maioria das igrejas de Goiás, aproximando-se da
solução de edifícios mais ornamentados de Minas Gerais.
A Igreja São José, de Mossâmedes, fez parte de um aldeamento localizado a cinco léguas e a
sudoeste de Vila Boa de Goiás, cuja criação ocorreu em novembro de 1744, por iniciativa do
governador e Capitão General de Goiás, José de Almeida e Vasconcelos Soveral. A Figura 5 a
seguir, traz uma panorâmica da Igreja.
Em 1788 foram feitas algumas alterações físicas no aldeamento, agora sob o comando do
governador Luís da Cunha Menezes, que mandou reformar a “[...] Igreja, primeiro objecto
daquelles estabelecimentos; por ter achado esta somente com os seus primeiros fundamentos
construídos de taipa meramente, sem ainda estar cuberta [...]”. (AHU, Documento 2025, 1788).
Em um prospecto de 1801, podem ser observados os traços severos desse edifício, bem como a
manutenção do tradicional esquema compositivo em V, formado por um frontão com cornija
que o arremata com uma porta, duas janelas com vergas levemente curvas e pilastras localizadas
entre o corpo principal e as torres, como também nas esquinas do edifício. É o que mostra a
Figura 6 a seguir.
Em fotos recentes, nota-se que o conjunto volumétrico da Igreja São José, de Mossâmedes, é
animado apenas pelas torres, pelo corpo do edifício e pelo jogo desencontrado dos níveis dos
beirais. Mas a despeito dessa configuração que se organiza segundo um grande bloco, é possível,
a partir das alturas dos três telhados, identificar os componentes dos espaços internos.
Internamente, a Igreja São José, de Mossâmedes, segue mantendo os tradicionais espaços vistos
nas demais capelas goianas. São compostos por uma nave única, com a capela-mor envolvida
pelos corredores laterais e a sacristia com a mesma largura da nave. Separa a capela-mor e a
nave, o arco cruzeiro. Dois outros arcos são encontrados nas paredes laterais da capela, de onde
se acessam os corredores. Tais conjuntos de arcos, somados à pouca movimentação volumétrica
do edifício, apresentam-se como uma rara opção construtiva no quadro da arquitetura colonial
de Goiás. Esse espaço interno da igreja pode ser conferido na Figura 7 a seguir.
Pode-se incluir ainda nessa lista de edifícios acompanhados de planos, a Igreja Nossa
Senhora do Rosário, de Natividade (TO), com provável data de 1780 (Figuras 8).
Figuras 8 – Capela-mor das ruínas da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de Natividade (TO)
Fonte: https://www.agenciatocantins.com.br/noticia/26705
De grandes proporções, a igreja possui também uma única nave. A partir de suas ruínas, Silva
Neto (2022) fez a reconstituição de sua planta, na qual se nota a nave, seguida de uma capela
profunda e marcada por um arco cruzeiro sustentado por pilastras muito bem executadas. Nas
laterais da capela, encontram-se aberturas coroadas por arcos que seguem o mesmo cuidado do
principal. A Igreja Nossa Senhora do Rosário, de Natividade (TO), seria seguramente um dos
monumentos de maior qualidade da arquitetura colonial da capitania de Goiás, se consideradas
essas suas condições construtivas.
Os demais edifícios que não apresentam planos para as suas construções serão analisados
considerando dois grupos: os que foram erguidos até a década 1760, e os demais, construídos a
partir daqueles anos até meados do século XIX. O primeiro grupo conta com seis monumentos,
e o estudo será iniciado pela Igreja Nossa Senhora da Barra, do arraial de Buenolândia, que
parece ter sido a primeira a ser erguida neste vasto sertão goiano (Figura 9).
Uma análise mais pormenorizada de cada uma dessas construções permite notar as
particularidades da Matriz de Nossa Senhora do Rosário e das igrejas do Nosso Senhor do
Bonfim e de Nossa Senhora do Carmo, localizadas no arraial de Meia Ponte (atual Pirenópolis).
Em todas foram utilizadas uma estrutura autônoma de madeira e uma modulação estrutural
como recurso compositivo que define as linhas gerais da organização dos frontispícios.
Idênticos recursos podem ser vistos na arquitetura religiosa do Vale do Piranga, em Minas
Gerais (MIRANDA apud ÁVILA, 1977), e, no final dos setecentos, em Pilar de Goiás, um
antigo arraial de grande importância à época, com a Igreja Nossa Senhora das Mercês (1770).
(Figuras 13 e 14)
As duas primeiras igrejas construídas em Meia Ponte - Nossa Senhora do Rosário e Nosso Senhor
do Bomfim - diferenciam-se pela presença das torres, solução pouco explorada na região, sendo
substituídas, na grande maioria dos casos, pelas torres sineiras de madeira, fixadas ao lado dos
edifícios. Ressalta-se também as proporções diferenciadas das torres da Igreja Nosso Senhor do
Bonfim, em razão de serem mais altas que as das demais congêneres, contrariando um traço
marcante da arquitetura religiosa local, de feições mais robustas (Figuras 15 e 16).
Os edifícios do segundo grupo, são os construídos a partir dos anos 1760 até meados do século
XIX. São todos tipos retangulares básicos, compostos por naves únicas, capelas-mores e com
anexos ou não. No que diz respeito às demais características observa-se que nesse período,
houve soluções mais variadas, que iam desde a configuração final dos frontispícios, a presença
ou não de torres, a estrutura exposta em madeira até o modo de se expressar volumetricamente
no arranjo das plantas. Compõem esse conjunto as igrejas de São João Batista, de 1761 (Arraial
do Ferreiro); São Francisco de Paula, de 1761 (Vila Boa); Nossa Senhora do Rosário, de 1769
(Arraial de Luziânia, hoje Luziânia); Nossa Senhora das Mercês, de 1770 (Arraial de Pilar, atual
Pilar); Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de 1776 (Arraial de Jaraguá, atual Jaraguá) (Figura
17); Santa Bárbara, de 1780 (Vila Boa); Nossa Senhora do Rosário, de 1780 (Natividade); Nossa
Senhora da Abadia, de 1790 (Vila Boa); as matrizes de Nossa Senhora do Carmo, de 1801
(Tocantins) e de Nossa Senhora da Penha de França, de 1751/1858 (Arraial de Corumbá, hoje
Corumbá); e a Igreja Nosso Senhor do Bonfim, de 1857 (Silvânia, antigo arraial de Bonfim).
A despeito das linhas gerais que caracterizam esse grupo, nele se destacam as igrejas Nossa
Senhora da Abadia e São Francisco de Paula, ambas em Vila Boa; Nossa Senhora das Mercês,
de Pilar; e a de Nosso Senhor do Bonfim, do antigo arraial do Bonfim, hoje Silvânia. A primeira
dessas, a Igreja Nossa Senhora da Abadia foi organizada espacialmente de forma diferenciada,
com um plano que se assemelha ao da igreja da Fazenda de Santo Antônio de São Roque4, com
nave e capela-mor de igual largura. A partir de um outro retângulo, localizado à direita da nave,
desenvolvem-se os anexos e, próximo a eles, está o volume da torre, distante da nave. O conjunto
apresenta uma rica dinâmica volumétrica, valorizada ainda mais pelos diferentes telhados. A
composição de sua fachada segue também o tradicional esquema de vãos em diagonal, com as
vergas e sobrevergas das janelas curvas e frontão recortado, marcado por cornijas em sua base.
Com essas soluções, a Igreja Nossa Senhora da Abadia configura-se como um excepcional caso
da arquitetura goiana, não só em função do seu frontispício, como também em relação aos seus
arranjos espaciais e à decoração interna, que conta com retábulo e teto de grandes qualidades
estéticas (Figuras 17 e 18).
A Igreja São Francisco de Paula chama a atenção pela sua rara e incomum implantação em
acrópole. Com nave única flanqueada por dois corredores, o plano geral do edifício desenvolve-
se inteiramente dentro de um retângulo, com capela-mor mais estreita em relação à nave, e
arco-cruzeiro que os separa. Com tal organização espacial, o resultado denuncia uma forma
em bloco, movimentada pelos dois telhados do conjunto. O frontispício também segue a
composição em diagonal, formada por linhas rígidas, de rigor simétrico, reforçadas pelas quatro
pilastras coroadas por capitel e pináculo. O frontão segue também as linhas retas e sua base
conta com cornijas. Internamente a decoração se realiza pelo trabalho em madeira aplicado no
arco-cruzeiro e pelo teto com pintura que parece ser do século XIX (Figura 19).
A Igreja Nossa Senhora das Mercês, de Pilar de Goiás, destaca-se pela grande proximidade de suas
soluções arquitetônicas com as igrejas de Minas Gerais, sobretudo aquelas do Vale do Piranga,
a exemplo das capelas de Nossa Senhora do Rosário, de Pinheiros Altos; de Nossa Senhora da
Conceição, de Manja-Léguas; e a de Nossa Senhora do Rosário, de Elói Mendes (MIRANDA,
apud ÁVILA, 1997). Essa última capela segue a tipologia básica encontrada na região, com
a presença de capela-mor, nave e apenas um anexo. A volumetria é resultante da articulação
desses espaços, porém, mais dinamizada pelas diferentes alturas dos seus dois telhados, que se
complementam com o de uma varanda localizada ao lado do corpo principal do edifício. Para
além de ser essa uma solução isolada no quadro da arquitetura regional, é no frontispício que
se encontra a referência mais direta e reveladora do diálogo entre Goiás e Minas Gerais, ou
seja, a estrutura exposta em madeira, que ajuda na organização do frontispício com vãos em
diagonal. A composição consiste na formação de um retângulo apoiado horizontalmente na
base do corpo principal e com uma porta centralizada, além de mais dois outros retângulos
menores, que ajudam na definição das larguras das janelas. Acima, fica a empena, com sua base
marcada também em madeira, completada por um óculo.
A Igreja oitocentista Nosso Senhor do Bonfim, no arraial de Bonfim, hoje Silvânia, também se
destaca pela presença de uma estrutura em madeira que contribui não só para a composição dos
vãos do frontispício, como também para a volumetria como um todo, como se fosse a ossatura
do edifício. São singularidades ainda as relações de proporção dos espaços entre a nave e a
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferentemente do que consta na tradicional historiografia artística regional, Goiás não esteve
tão distante e isolado como se quer fazer crer. Sua arquitetura esteve em permanente diálogo
com outras regiões, o que permitiu a proliferação de tipos retangulares muito semelhantes aos
que foram construídos em algumas regiões de São Paulo e em Minas Gerais, particularmente no
Vale do Piranga e na região da antiga Farinha Podre, atual Triângulo Mineiro, que assimilaram
referências portuguesas.
Assim como nessas capitanias, as” traças” e os “riscos” foram instrumentos de trabalho
imprescindíveis para a construção das Matrizes de Santa Ana, Traíras e da Igreja de São José de
Mossâmedes, garantindo a lógica de concepção arquitetônica dos planos retangulares. Por outro
lado, na falta dos desenhos, o soerguimento das igrejas que se espalharam por todo território da
capitania de Goiás contou com as instruções escritas e as presenças de escrivães e padres como
responsáveis pela verificação, medição, demarcação do local destinado ao adro e definição de
algumas medidas. Nesse caso, algumas descontinuidades nas obras foram registradas, atenuadas,
porém, pelo respeito que os construtores mantiveram pela ordem estabelecida pelos tradicionais
tipos retangulares, sobretudo em relação à hierarquia espacial e à lógica composicional dos
típicos frontispícios, organizados pelos esquemas de vãos em diagonal. Em alguns exemplares,
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Arquivo Frei Simão Dorvi. Sobre as ruínas da Matriz de Santana. Documento avulso. Cidade de Goiás, 1745.
Arquivo Frei Simão Dorvi. A respeito da planta da igreja enviada pelo Conselho Ultramarino, 1745.
Arquivo Frei Simão Dorvi. Sobre a construção de Santa Bárbara. Documento avulso Cidade de Goiás, 1775.
Notas
1 Deusa Maria Rodrigues Boaventura é doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo (FAU-USP), mestre pela USP de São Carlos e especialista em História Cultural pela Universidade
Federal de Goiás. É pesquisadora e professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e da
Universidade Estadual de Goiás (UEG). Trabalha no Programa de Pós-Graduação em História da PUC Goiás
e ministra disciplinas de arquitetura e urbanismo em ambas as universidades.
2 Esta dissertação foi publicada, na íntegra, em 2001 com o título O espaço urbano em Vila Boa, pela Editora
UCG.
3 Cabe assinalar que na capitania de Goiás algumas poucas capelas fogem a essa configuração mais tradicional,
tais como a de Nossa Senhora da Boa Morte (1762-1779) e a de Nossa Senhora do Carmo (anterior a 1786),
ambas construídas em Vila Boa de Goiás. Esses edifícios são exceções por apresentarem espaços internos
mais dinamizados, adquiridos pela adoção de estruturas de madeira que ajudam a compor formas octogonais,
mostrando também o pleno diálogo dessa solução com capelas mais elaboradas, como a Igreja Pilar de Taubaté
de 1749.
4 Essa pequena capela é quadrangular e possui uma nave e uma capela-mor da mesma largura e envolvida por
uma sacristia e um único e largo corredor do lado da Epístola.
Cristina Ávila1
INTRODUÇÃO
Em civilizações antigas, em que a apropriação do universo tem um sentido mágico, a tradução
dos fenômenos inexplicáveis do “sagrado” – espaço intransponível para o homem comum – se
faz através da imagem que ganha caráter prioritário e eficaz.
A quantidade de informação contida em uma comunicação qualquer resultaria mais atraente
quando complementada por esculturas, pinturas, figurações e ilustrações iconográficas. Assim,
uma dada imagem devocional serviria para demonstrar a veracidade da história da vida (sagrada
ou não), para exemplificar métodos teológicos, científicos e até mesmo para a decifração de
códigos da experiência individual ou coletiva.
Em todo Brasil, no período colonial, quando havia grande trânsito social por meio de ordens
religiosas regulares, irmandades e ordens terceiras, surge uma produção significativa de figuras da
literatura litúrgica, em que os enfoques teológicos voltavam-se para temas de ordem devocional,
exequial e gratulatória, as quais se coadunavam com o espírito barroco da vida da época.
Edifícios religiosos cobertos de informações iconográficas – pintura, talha e imaginária – e a
partir de um púlpito integrado a um igual sentido ornamental contribuíam para a formação de
uma dada mentalidade, na qual a representação artística era o referencial e o parâmetro da fé.
Tanto a imaginária litúrgica ligada as igrejas, santuários ou capelas, como a devocional, usada
em locais de culto particular, devem, sem dúvida alguma, ser consideradas como parte relevante
das manifestações criativas desenvolvidas dentro da gama de produções significativas para a
compreensão da realidade vivencial do chamado Barroco Brasileiro desde a vinda dos primeiros
colonizadores, perpassando pela evangelização dos jesuítas até as manifestações de fé de caráter
mais popular.
Poderíamos dizer, portanto, que as artes visuais coloniais se multiplicaram em diversas expressões
interligadas, relacionadas indiretamente às perspectivas portuguesas da colonização, à Igreja
Tridentina e ao Estado Absolutista; podemos destacar, no entanto, mais diretamente à tipicidade
da formação social da Capitania Mineira. O isolamento do litoral e a sede de enriquecimento
fácil desenvolveram uma sociedade de características mais urbanas, em que vilas e lugarejos
possuíam vida própria, distantes que estavam do Reino.
Por outro lado, Walter Benjamin nos dá a dimensão filosófica do estudo do Barroco a partir
de uma concepção histórica pautada nos anos seiscentos e setecentos: a ideia de uma história
natural, na qual a imanência se faz condutora dos valores e estilo de vida da época. Ainda em
Benjamin, encontramos uma preocupação com o sentido da imagem no aspecto que ele chama,
pertinentemente, de alegoria barroca.
Figura 3 - Santas Mães - Pernambuco, séc XVIII, madeira esculpida, policromada e dourada - Coleção ângela Gutierrez
Figura 4 - Snat’Ana Mestra - Minas Gerais, séc XVIII/XIX, madeira esculpida, policromada e dourada - Coleção ângela Gutierrez
Figura 5 - Snat’Ana Mestra - Minas Gerais, séc XVIII/XIX, madeira esculpida (fatura negra) - Coleção ângela Gutierrez
Figura 6 - Sant’Ana Mestra - Minas Gerais (Serro), séc. XVIII/XIX, madeira esculpida, policromada e dourada - Coleção Cristina Ávila
Como exemplo, citamos o soneto da Oração Academica, do reverendo Cônego Francisco Xavier
da Silva (Figura 8), dito na festa do Aureo Trono Episcopal, que festejava a transferência do
bispo de Maranhão para o novo bispado de Mariana:
Portanto, a expressão artística tem outras aplicações, podendo ser entendida também como
forma de discurso que se desvia de seu uso normal e, consequentemente, mais óbvio. A palavra
figura tem a mesma raiz de fingere, figulus, fictor e effigies, dando a ideia de fingimento (falsear em
linguagem) e de efígie – forma plástica. Ambas as noções se aproximam da palavra representar –
passar por ser algo que não se é em si. Tornar-se por meio do falso em algo que representa uma
forma ou um conceito, mantendo o sentido de aparência, da semelhança, do simulacro.
Na origem da teologia cristã de fundamentação católica, a imagem passa a ter uma função quase
espiritual, a de transformar as coisas históricas relacionadas à vida de santos, à Bíblia e aos
ritos em uma locução transcendental. O desenvolvimento histórico da cristandade, através de
alusões simbólicas, se define a partir das origens do cristianismo e das perseguições históricas
que fizeram com que a linguagem cristã fosse velada, inserindo-se a cruz no nome do devoto
ou a palavra da revelação codificada em desenhos. Depois de Constantino, com a regularização
da fé católica, é que a Cruz foi integralmente absorvida pela arte, tomando posição de destaque
entre as representações sígnicas cristãs.
O mais importante é que a ideia de figura como “imagem”, ou em grego schema, do que se
anuncia como verdade, prevalece sobre a noção de figura como aparência, ao mesmo tempo
que detém algo dessa definição mais simplória. Assim, quando Adão é interpretado como uma
prefiguração de Cristo, a ideia do homem (filho de Deus) está na aparência carnal. (Figura 10)
O MOTE ALEGÓRICO
Para maior compreensão do sentido da imagem, cabe ainda uma breve reflexão sobre a ideia
de alegoria em complementação ao que aqui tratamos como imagem. Segundo elucida Sérgio
Paulo Rouanet, etimologicamente
alegoria deriva de allos, outro, e agoreuein, falar na ágora, usar uma linguagem pública. Falar
alegoricamente significa, pelo uso de uma linguagem literal, acessível a todos, remeter a outro
nível de significação: dizer uma coisa para significar outra.9
Desse modo, faz-se o jogo barroco entre o destino inevitável e a redenção pela palavra, pela
forma alegórica, pela imagem ou, se quisermos, figuralmente. A linguagem alegórica, assim
como a arte visual no barroco, é a instância mediadora entre origem e estrutura conceitual para
a criação autônoma, popular ou mesmo tosca, incluindo-se nessas categorias os artistas mais
eruditos às obras afro-brasileiras.
Ao tratar da alegoria Benjamin (1984) não perde a perspectiva visual, no sentido da figuração,
da aparência. Ao tratar da noção de bem e mal, ele chega a identificar a subjetividade figural
da representatividade. Assim é que se estabelece a noção do “mal” como conhecimento na
promessa da serpente em toda a sua subjetividade. O homem conhece o mal quando come a
fruta proibida e a serpente passa, então, a representar alegoricamente o mal – o demônio – e, ao
mesmo tempo, a sabedoria ou o conhecimento. Fixa-se, no entanto, o sentido negativo ligado a
Lúcifer, o anjo decaído, que quis ser (e portanto saber) mais do que Deus.
É o que se pode observar nas imagens devocionais, constantes em oratórios de teor totalmente
popular e procedentes do Maranhão ou do litoral mais cultista até Minas Gerais e Goiás, em
datas variadas, mantendo porém o princípio da mescla de culturas. O que ocorre é exatamente
uma transposição da estética erudita do excesso de ornamentos a uma estética alternativa.
(Figura 12)
Usa-se da mesma linguagem cifrada das imagens, de forma verossimilhante, quase um simulacro
dos oratórios e retábulos eruditos, porém carregada de afetividade. O fiel guarda aí a memória de
sua fé, seus objetos devocionais mais queridos. Assim, surgem miniaturas de Sant’Anas que além
de comporem pequenos altares, tornaram-se usáveis em outros contextos, como na algibeira
do minerador ou ao lado da mulher na urgência de doar ao mundo mais um cidadão terrestre.
Mantendo-se em constante ligação a chamada sacra conversação que completa em família, o ato
de fé e da piedade.
A sugestão de um ambiente familiar sem discórdias dão sentido à segurança de se estar frente a
mediadores poderosos – avó, a filha e o neto, deslocando ou afastando aos poucos a inteireza da
família apenas patriarcal. Na sacra conversação, não se torna essencial a figura de São Joaquim,
os problemas cotidianos são bem resolvidos pelas mulheres, que têm o poder de guardar dentro
de si um tesouro: a descendência através da concepção e, por isso, podem falar diretamente ao
ouvido do filho de Deus.
Figuras 12 e 13 - Sant’Ana Mestra - Minas Gerais, séc XVIII/XIX, madeira esculpida (miniatura)
Coleção ângela Gutierrez - Museu das Sant’Anas - Tiradentes/MG
Figura 14 - Oratório Bala - chumbo, ferro, bala de cartucheira - Minas Gerais, séc. XIX/XX - imagem Nossa Senhora da Conceição -
Colewção Angela Gutierrez - Museu do Oratório - Ouro Preto/MG
Notas
1 Cristina Ávila - Diretora da Revista Barroco. Escritora, Historiadora da Arte e da Cultura, Doutora em
Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG, Mestre em Artes pela ECA/USP.
2 Ver a propósito: VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.
3 SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Estudos applicaveis a Portugal e ao
Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1883. p.386-387.
5 BENJAMIN, Walter. O DRAMA DO BARROCO ALEMÃO. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.11/47.
6 ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco. São Paulo : Perspectiva, 1980.p.22.
7 Idem, p. 56
INTRODUÇÃO
A
cidade do Serro/MG (minas do Serro do Frio de 1702 a 1714, Vila do príncipe de 1714
a 1838) foi uma das primeiras a terem reconhecido seu conjunto arquitetônico como
patrimônio nacional pelo Iphan, em 1938. A capela do Bom Jesus do Matozinhos é um
dos templos religiosos tombados individualmente pelo órgão federal, recebendo nas últimas
décadas restaurações e investimentos para sua manutenção.
A Fundação João Pinheiro produziu através de estudos de especialistas de várias áreas contratados
entre os anos de 1978 e 1981, o Atlas dos monumentos históricos e artísticos de Minas Gerais do
Circuito do Diamante. Este estudo realizado pelo Centro de Estudos Históricos e Culturais da
fundação tornou-se o n. 16 da revista Barroco. Nele consolidou-se a versão de que entre os anos
de 1781 a 1797 a capela do Bom Jesus do Matozinhos já se encontrava pronta e decente para
as celebrações religiosas dos ofícios divinos e reuniões de suas irmandades de São Benedito e
de Nossa Senhora das Mercês (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1995, p. 171). Segundo esta
narrativa histórica, os confrades teriam assumido as despesas da construção e ornamentação da
capela. Esta interpretação devocional do templo passa ao largo de qualquer suposição de que a
capela teria sido construída com a finalidade de abrigar santos protetores dos ofícios mecânicos.
Pretendemos rever minimamente esse senso comum estabelecido sobre esta capela serrana, a
fim de propor novas formas de explicar sua edificação na Praia. Assim, para além desse estudo
da fundação mineira, encontramos alguns documentos não consultados à época que demostram
Figura 1 - Igreja do Matozinhos e ao lado direito o atual Museu Regional Casa dos Ottoni, 1946.
Fonte: ARQUIVO CENTRAL DO IPHAN RIO DE JANEIRO.
Este estudo pretende lançar novo olhar sobre os motivos e motivações para a edificação da
capela do Bom Jesus do Matozinhos na Vila do Príncipe, no século XVIII e retomar a discussão
sobre o conceito usado pela Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito para sua
reedificação, a nosso ver toda modelada para homenagear os ofícios mecânicos e seus mestres
e seus santos protetores. Trata-se de fato raro na história brasileira a edificação de um templo
religioso devocional tipificado quase que exclusivamente pela referência aos ofícios mecânicos,
pois se tratava de atividades caracterizadas por uma degradação social, chamada então de “defeito
mecânico” (FRANCO, 1997, p. 21-63; MELLO E SOUZA, 2004; NADALIN, 2003, p. 230-231;
240). Ele foi uma forma de qualificar o mundo do trabalho, servindo como distintivo social para
o seus não praticantes e como degradação para os que assumiam esses ofícios; dizia respeito aos
trabalhos manuais, cujo exercício gerava desprestígio social. No rol das profissões, os trabalhos
manuais eram destituídos de nobreza em comparação com os trabalhos da administração, da
gerência, da coordenação, de atividades provisionadas pela coroa portuguesa, legislativos, ou seja,
os trabalhos intelectuais, no topo da pirâmide hierárquica, dariam status social e nobreza. Para
além da questão econômica nacional, impõe a questão racial no recorte sobre a importância dos
tipos de trabalho, se mais mental ou mais manual. Por isso, ao desvalorizar os ofícios mecânicos
para elevar os ofícios nobres, as elites locais de certa forma justificavam a escravidão e seus
prolongamentos sociais, como a alforria e a miscigenação racial, e acabavam por dar a ela uma
finalidade útil para a melhoria da civilização ou da moralidade serranas. É nesse sentido que os
oficiais mecânicos eram, na sua maioria, egressos da escravidão, seja por alforria, seja por uniões
Termo de aforamento que fez José Ferreira Coelho preto forro morador nesta
vila de seis braças de terra de frente da capela do Senhor dos Matozinhos
que partem com as casas e quintal de Sebastião da Costa Almeida e quintal
de Antonia da Rocha [...mo] ¾ – 6 braças.
Aos vinte e nove dias do mês de janeiro de mil e setecentos e setenta e três
anos nesta vila do Príncipe em a rua de frente da Capela do Senhor de
Matozinhos que partem de uma parte com casas de João Angola e da outra
com o quintal de Antonia da Rocha onde eu escrivão ao diante nomeado
cheguei e sendo aí presente José Ferreira Coelho preto forro que reconheço
pelo próprio de que faço menção e dou fé e por ele me foi dada uma sua
petição despachada pelo juiz presidente e oficiais da Câmara desta vila
requerendo-me lhe aceitasse e desse inteiro cumprimento de justiça a qual
eu escrivão lhe aceitei tanto quanto dever posso em razão do meu oficio
cujo teor é o seguinte de verbo adverbum [...] (ARQUIVO IPHAN SERRO,
Aforamentos, Doc. 01 Caixa 43, fls. 81v.-82v.).
O assento confirma que em 1773 uma capela já existia na Praia, bairro serrano dos primeiros
anos do descobrimento, em 1702. Outro registro documental anterior ao primeiro livro da
irmandade no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina foi assentado no dia 16 de
maio de 1782, pelo o escrivão do Senado da Câmara no livro próprio, um edital para limpeza das
ruas por onde iria passar o cortejo da bandeira do Divino Espírito Santo, que seria levantada ao
pé da capela do Senhor do Matozinhos com a presença de cavaleiros e corso triunfante, mostra
que já havia sido reconstruída a primeira capela em ruínas:
Edital que mandou publicar pelas ruas desta vila o almotacé atual, o capitão
José Antônio Dias Barbosa e Sá, respectivo a arrumação das ruas e mais
que nela se contém. O capitão José Antônio Dias Barbosa e Sá, almotacé
atual os presentes dois meses nesta Vila do Príncipe por eleição na forma
da lei, etc. Mando pelo presente meu edital a todos os moradores desta Vila
do Príncipe principalmente aos das ruas públicas dela que no dia domingo
do Espírito Santo que se contam 19 do presente mês de maio tenham suas
testadas barridas e limpas das madeiras que pelos ditas ruas estiverem
em forma que sem impedimentos algum possam passar por todas elas
os cavaleiros e corso triunfante com a bandeira do Divino Espírito Santo
que no mesmo dia se pretende alevantar ao pé da capela do Senhor do
Matozinhos debaixo da pena de que o que assim o não fizer ser recolhido
à cadeia desta vila donde não sairá sem primeiro pagar 3$000 réis para as
despesas do concelho; e para que chegue a notícia de todos e não possam
alegar ignorância mandei lavrar o presente edital que vai por mim assinado
o que será lido pelas ruas desta vila e afixado no lugar mais público dela
para que assim cumpram [...] (ARQUIVO IPHAN SERRO, Registro Geral
1781-1783, Doc. 01 Cx. 53, fl. 85v-86).
Os dados estatísticos da Irmandade das Mercês e São Benedito são muito precisos e mostram um
controle total dos processos de sepultamento dos irmãos e irmãs, das missas, e da comunidade
atendida pelo templo. Dos 266 irmãos de compromisso, havia brancos, pardos e negros. O
requerimento apresentou ainda três certidões para comprovar os serviços da Irmandade e seu
compromisso com a ordem e sossego públicos. Assim, o ouvidor relata que “diz o Provedor da
Irmandade de São Benedito ereta nesta Vila na Capela do Senhor de Matozinhos que ele precisa
de certidão, o número de irmãos que se acham com termo de entrada na dita Irmandade”
(ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 3). Por isso, o
mesmo ouvidor geral ordenou ao escrivão da Ouvidoria que passasse as certidões “do número
de irmãos, e irmãs, e a das sepulturas concedidas” (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO,
Cx. 145, doc. 48, 24/09/1798, fl. 3). Foram convocados três “homens bons” para passarem as
suas certidões. Tudo foi resumido pelo tenente Antonio Cardozo Nunes, escrivão da Ouvidoria
Geral nesta Vila do Príncipe e sua comarca do Serro Frio:
Os “homens bons” que certificaram o funcionamento regular e para o bem público da Irmandade
de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito foram três – Bernardino José de Queiroga, José
Antonio Dias Barbosa e Sá e Claudio de Brito Teixeira, ouvidos segundo o que se lê, “aos sete dias
do mês de maio de mil oitocentos nesta Vila do Príncipe no lugar da residência do dr. Antonio
de Seabra da Mota e Silva em desembargo de Sua Majestade Fidelíssima seu Ouvidor Geral, e
Corregedor desta Comarca do Serro do Frio” (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx.
145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 4) pelo escrivão que perguntou “as testemunhas abaixo assinadas
as quais mandou vir a sua presença para averiguação do requerendo na petição: no que para
constar faço este termo eu Antonio Cardoso Nunes escrivão da Ouvidoria” (ARQUIVO
HISTÓRICO ULTRAMARINO, Cx. 145, Doc. 48, 24/09/1798, fl. 4). Depois de apresentar as
certidões e suas respectivas assinaturas, o documento foi enviado para Vila Rica e de lá seguiu
para o Conselho Ultramarino para deliberação. Importante registro foi escrito no resumo das
oitivas pelo ouvidor: a Irmandade era composta por 38 irmãos brancos, 128 irmãos pardos e
crioulos e cem mulheres da qualidade branca, parda e crioula, totalizando 266 confrades; além
disso, a irmandade estava autorizada a usar 20 sepulturas de seu campanário. A capela do Bom
Jesus do Matozinhos estava plenamente integrada à vida paroquial serrana. E exigia que seu
compromisso fosse oficialmente reconhecido.
A presença de São Crispim, padroeiro dos sapateiros, na Igreja do Matozinhos desde pelo menos
1773 permite-nos compreender como era a sociabilidade dos oficiais mecânicos no Brasil
colonial. O pressuposto para os processos de ensino e aprendizagem dos ofícios mecânicos
na Vila do Príncipe foi a sua regulação pela Casa dos Vinte e Quatro de 1572 e 1771. Havia
uma classificação rigorosa das etapas de aprendizado dos ofícios mecânicos em Portugal. Em
Portugal, depois de examinado e aprovado, o oficial recebia uma carta de examinação passada
pelos juízes, confirmada e registrada pela Câmara, podendo estabelecer-se como mestre de tenda
aberta e participar da eleição dos juízes; os juízes em parceria com os vereadores negociavam
os preços e fiscalizam as tendas. Este costume de classificar a hierarquia das corporações em
aprendizes, jornaleiros ou obreiros e oficiais e de prestar exames oficiais perante um juiz de
oficio e seu escrivão chegou, modificado, à Vila do Príncipe. Estamos nos referindo ao modelo
de formação dos mestres adaptada às realidades coloniais do setecentos e o primeiro quartel do
oitocentos, especialmente por conta das dinâmicas de mestiçagens biológicas e culturais. Assim,
é necessário analisar a estrutura de funcionamento dos processos de formação e avaliação dos
novos oficiais mecânicos e a emissão de suas provisões para abertura de tendas ou lojas públicas;
além disso é fundamental entender o papel dos juízes e escrivães de ofícios escolhidos pelo
Senado da Câmara e como se dava esta relação na Vila do Príncipe. Em resumo, o processo de
formação de um mestre de ofícios era simples: o jovem era admitido por seu mestre residindo
ou não em sua casa; tornava-se um aprendiz, usando as ferramentas da oficina de seu mestre,
observando e praticando suas lições; ao final do processo ele solicitava a examinação pelo juiz
CONCLUSÃO
Os oficiais alfaiates criaram no período colonial importante estrutura de serviços que lhes
possibilitou ter a maior renda dos ofícios mecânicos da Vila do Príncipe e por extensão da
Comarca do Serro do Frio. Eles eram a maior corporação de ofícios com 21 oficiais (sem
contar os seus aprendizes) – apesar do desgaste desse modelo copiado de Portugal no primeiro
quartel do século XIX – contribuindo com seus serviços para o desenvolvimento comercial
regional e com seus impostos para o financiamento do corpo político. Os seleiros e sapateiros
representavam a segunda corporação mais importante em 1821, atuando nas atividades ligadas
ao couro, pagando pouco mais da metade dos impostos dos alfaiates, seguidos dos ferreiros
e dos carpinteiros. De fato, aos oficiais mecânicos alfaiates, seleiros e sapateiros, ferreiros e
carpinteiros somavam-se um amplíssimo espectro de tantas outras profissões mecânicas, tão
essenciais ao funcionamento do universo colonial que acabavam passando despercebidas. Em
torno desses ofícios mecânicos banais (MENESES, 2013) era possível garantir a sobrevivência
de populações inteiras no Brasil colonial.
Por conta do pacto colonial ou exclusivo comercial metropolitano Portugal se beneficiou
dos produtos e atividades econômicas da Comarca do Serro do Frio por mais de cem anos.
Referências
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00-00-0000 Francisco de Assis Gomes Pinheiro [c], n.p.; Caderno [24] 24-05-1973 Caderflex, n.p.; Caderno
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Notas
1 Danilo Arnaldo Briskievicz é professor do Instituto Federal de Minas Gerais, Santa Luzia, Minas Gerais,
Brasil. Doutorado em Educação pela Puc/MG, mestrado em Filosofia pela UFMG, licenciatura em Filosofia e
Pedagogia.
2 Maria Eremita de Souza (1913-2003) pesquisou a história serrana em dois movimentos diversos, mas
complementares: por um lado, transcreveu de próprio punho centenas de livros de arquivos de Câmara, da
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Serro, do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina
e do Arquivo Público Mineiro; por outro, escreveu a partir de suas anotações, algumas narrativas sobre
personagens serranos (Jacinta de Siqueira, Chica da Silva, etc.) e da Inconfidência Mineira (padre Rolim, por
exemplo). Após seu falecimento a família autorizou a digitalização dos seus 220 cadernos que hoje me servem
de referência em vários estudos, especialmente por conter cópias e informações desaparecidas em arquivos
públicos. Ver: BRISKIEVICZ, 2020.
3 Tudo parece ser uma questão do investimento das irmandades na construção do templo. Ao final da obra,
ficou consolidada a versão de que as irmandades de São Benedito e Mercês haviam colocado mais recursos
financeiros em seu templo, o que se confirma pela entronização de Nossa Senhora das Mercês e São Benedito
nos altares laterais, em grandiosas imagens. Por isso, faz sentido o requerimento dos irmãos dessa irmandade
de dois santos pedindo a confirmação do seu compromisso à Coroa portuguesa, enviado em 24 de setembro de
1798 (BOSCHI, 1998, p. 207) e sem confirmação até a 1802 (BOSCHI, 1998, p. 261).
4 O termo festejo ou cortejo cívico-religioso diz respeito às festas populares oficiais do calendário litúrgico
da Igreja e que eram organizadas com a participação do Senado da Câmara e a república, ou seja, o povo.
Segundo Souza (1999, p. 130-131), em 1779, Dr. Joaquim Antônio Gonzaga, em correição na Vila do Príncipe
perguntou quais as festas eram determinadas por Sua Majestade, o rei de Portugal e a resposta foi: “Todos os
anos são feitas quatro festas do Senado: Anjo Custódio do Reino, Santa Isabel, Corpo de Deus e a da padroeira
Senhora da Conceição”. Além das festas cívico-religiosas – posto que eram organizadas pari passu com a Igreja,
irmandades e povo – haviam as chamadas festas reais, mais espontâneas, com a finalidade de comemorar
com ruas iluminadas o nascimento de herdeiros dos tronos, casamentos de príncipe e princesa e aniversários
da realeza. O luto também era obrigatório e se faziam os cortejos fúnebres em homenagem aos falecidos da
monarquia lusitana. Em relação à música nas igrejas as irmandades dispunham de seus músicos contratados ou
próprios, como a Ordem Terceira do Carmo dispunha dos serviços do serrano Emerico Lobo de Mesquita; as
bandas de música que alegravam os cortejos pelas ruas se tornaram com o passar do tempo fundamentais para
esses eventos criando uma das mais tradicionais manifestações culturais mineiras. Em 16 de maio de 1821, por
exemplo, Manuel Joaquim da Silva, diretor da música teve sua banda contrata por 16 oitavas de ouro para as
festividades do Corpo de Deus (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 25, n.p.). Para
que o povo e senadores participassem das festas eram necessários os mais diversos ofícios mecânicos: pintores
de estandartes, alfaiates para a confecção de roupas, chapeleiros, sapateiros, músicos instrumentistas para
as celebrações sacras e profanas, carpinteiros para a colocação dos palcos, etc. Os cortejos cívicos-religiosos
serviam para gerar uma coesão social em torno da submissão à Coroa portuguesa, da doutrina da Igreja e dos
bons costumes sociais e civilizados. Para um aprofundamento do termo, ver: MONTERO, 2020.
6 Esta é a mais ostensiva figuração de um estandarte numa igreja serrana. É revelador da importância dos
estandartes arvorados para os cortejos cívico-religiosos, pelo fato de aparecer naturalizado em um mural de
grande representatividade para os devotos das irmandades de Nossa Senhora da Mercês e São Benedito; além
disso fica demonstrado – mesmo que implicitamente – a relevância dos ofícios mecânicos para esses festejos,
pois pressupõem a técnica e criatividade dos pintores.
P
artimos de um caso verídico ocorrido no ano de 2011, nas ruas do centro da cidade de
São João del-Rei, Minas Gerais. Professor recém-chegado na universidade, ao lecionar a
unidade curricular “Bicicleta urbana” no curso de Arquitetura e Urbanismo, promoveu
com os estudantes passeios ciclísticos pelas ruas da cidade, com o objetivo de analisar condições
e criar estratégias e planos de uso da bicicleta. Os únicos requisitos recomendados para que os
discentes se matriculassem na disciplina eram poder andar de bicicleta e comparecer às aulas
práticas com uma delas. Um dos estudantes, com cerca de 18 anos de idade, que em sua infância
não tivera a oportunidade de aprender a andar de bicicleta, tomou a corajosa decisão de fazê-lo,
para estar de posse do saber básico que o permitiria participar das aulas. No primeiro trajeto
realizado com a turma e sob orientação do professor, todos se encontravam animados e com os
devidos equipamentos de segurança. Inseguro em suas pedaladas, o dito estudante acabou por
esbarrar em um retrovisor de carro que se achava estacionado. O dono do automóvel, que nele
se encontrava sentado, saiu à rua enfurecido e, aos gritos, exigia que o suposto estrago fosse
reparado. O jovem estudante, apavorado, lançou mão de seu telefone celular e ligou para seu pai,
pedindo ajuda para solucionar a situação. O pai, muito nervoso, exigiu falar imediatamente com
o professor. De posse do telefone, o professor ouviu a indagação realizada, também aos gritos,
pelo pai do estudante: “o que é que você está fazendo na rua com seus alunos?” Indagação essa
seguida de uma afirmação peremptória: “Lugar de estudante aprender é na sala de aula”. Sem
maiores possibilidades de diálogo no momento, o pai desligou o telefone e deu-se por encerrada
a comunicação.
Essa história ficou guardada em nossas memórias, sendo relembrada de vez em quando, ao
relatarmos situações curiosas que nos aconteceram no trabalho docente. Apesar de o caso
inicialmente parecer anedótico e poder até mesmo suscitar algumas risadas, a fala do pai
direcionada ao professor nos provoca relevantes reflexões. O ponto de vista do pai nos faz
ponderar sobre onde e como nossos estudantes aprendem e, ainda, o quê aprendem. A ideia de
que lugar de aprender é na sala de aula e não na rua, guarda um ponto de vista sobre a educação
contra o qual nós professores e autores desse artigo trabalhamos, cada qual a seu modo – mas em
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diálogo constante – seja na graduação em Arquitetura ou em Pedagogia, seja na pós-graduação
ou em nossos projetos de extensão. Nossas concepções se estruturam a partir de vários
conceitos e práticas que entram em conflito com o que foi expresso pelo pai no caso aludido.
Destarte, tomando como pressuposto que as caminhadas pela cidade e a relação direta com seus
patrimônios podem possibilitar relevantes experiências educativas, daremos a ler algumas ações
empreendidas em nossa atuação como professores, em atividades extra campus, pelas ruas de
São João del-Rei e de Tiradentes. Essas cidades nascidas nos setecentos se localizam no campo
das Vertentes, interior de Minas Gerais, são destinos turísticos bastante visitados e possuidoras
de patrimônios tombados pelos órgãos de proteção municipal, estadual e nacional. Antes de
apresentarmos nossas experiências nessas cidades, entretanto, vejamos algumas premissas que
norteiam nosso trabalho.
Miranda e Siman (2013) também destacam as potencialidades educativas das cidades e afirmam
que elas nos oferecem o suporte espacial para que nossas experiências aconteçam e para que
nossas memórias sobrevivam. Na cidade, a vida de cada um encontra, cotidianamente, um
porto para ancorar as experiências e memórias no tempo e no espaço. Dessa maneira, as autoras
consideram que a cidade é “um espaço para educar em um sentido lato sensu. Educar sentidos,
sociabilidades, pessoas humanas e, por que não... escolas e professores?” (MIRANDA; SIMAN,
2013, p. 15).
Nesse artigo e em nossa atuação docente, baseamo-nos na noção de experiência. Aportados em
Larrosa (2020), entendemos o conceito de experiência como ato de nos educar coletivamente,
em busca de mudanças. Criamos possibilidades a partir das quais todos nós, professores e
estudantes, “exploramos juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial (sem ser
existencialista) e mais estética (sem ser esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par
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experiência/sentido” (LARROSA, 2020, p.16). Sabemos o quão difícil é criar situações de ensino-
aprendizagem que possam se tornar significativas aos estudantes em seu processo de formação,
tendo em vista que a possibilidade da experiência, tal qual a concebemos, se apresenta cada vez
mais rara em um contexto histórico no qual o que se valoriza é o excesso. Em tempos nos quais
o que vale é a quantidade e a rapidez, a relação com o saber acaba se tornando superficial e tudo
conspira para a impossibilidade da experiência: excesso de informação, excesso de trabalho e
falta de tempo. De modo antagônico, consideramos que, para que a experiência aconteça, faz-se
necessária a pausa. Justamente nas andanças vagarosas com pausas pela cidade que acreditamos
construir coletivamente a possibilidade de um aprendizado no qual corpos, sentidos e mentes se
encontram envolvidos e de maneira significativa para que a experiência aconteça, uma vez que:
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o caminhar revela-se um instrumento que, precisamente pela sua intrínseca
característica de simultânea leitura e escrita do espaço, se presta a escutar
e interagir na variabilidade desses espaços, a intervir no seu contínuo
devir com uma ação sobre o campo, no aqui e agora das transformações,
compartilhando desde dentro as mutações daqueles espaços que põem em
crise o projeto contemporâneo (CARERI, 2013, p. 32-33).
A propósito, em sua atuação como professor universitário, Careri utiliza o “andare a Zonzo”,
ou seja, deambular ou “perder tempo vagando sem objetivo” (2013, p. 162), como didática de
ensino e possibilidade de pesquisas. Careri defende a importância do caminhar, mas também
a necessidade do parar, uma vez que “quem levanta a âncora para uma longa viagem, além das
velas e dos remos, leva certamente consigo também a âncora: a possibilidade de parar e conhecer
de perto outros territórios e outras gentes” (CARERI, 2017, p. 32-33).
Todos esses autores citados nos levam a refletir sobre a importância de voltarmos a caminhar
pela cidade, de parar para senti-la e de utilizarmos dessas caminhadas como experiência de
vida e como uma possibilidade também de aprender, um recurso didático. Em nosso caso,
a experiência do caminhar pela cidade abrange uma ampla e variada gama de conceitos e
dimensões: no que tange ao seu espaço, incluindo os logradouros e edificações, com destaque
para os museus, considerando, sobretudo, as relações sociais constituídas na cidade ao longo dos
tempos, relações essas muitas das vezes tensas, hierárquicas e excludentes.
Pensar a cidade como espaço aberto onde se aprende implica, dessa forma, a fruição do
espaço urbano a partir das caminhadas como meio de apreciação estética e enriquecimento
sociocultural. Assim, referimo-nos tanto ao próprio espaço urbano aberto ao céu, ao ar livre,
quanto à abertura dos aprendizados e leituras que essas experiências proporcionam. Dessa
maneira, a relação direta e a apropriação dos bens patrimoniais a partir de todos nossos sentidos
torna-se imprescindível, haja vista que:
Procuramos, ainda, pensar os museus em contexto, em suas relações (ou na ausência de relações) com
as cidades e comunidades nas quais estão inseridos. Nos espaços de memória erigidos nas cidades,
tem-se lugar para aspectos como a manifestação das culturas e a rememoração da ancestralidade,
mas também lacunas, pontos obscuros e silenciamentos. Emerge então o sentido de patrimônio,
aqui tomado na medida das significações de algo para alguém, ou na relação dos seres humanos
com o meio (ver SANTOS, 2008, p. 150). Assim, referimo-nos a algo que herdamos do passado
e que deve ser preservado, podendo ser atualizado e cuidado para que não seja destruído – um
compromisso ético de conservar heranças para as futuras gerações. Embora as políticas voltadas
à preservação do patrimônio no Brasil, que remontam à década de 1930, tenham se debruçado
sobretudo ao que se costuma nomear de patrimônio “de pedra e cal”, ou seja, aos bens edificados,
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ao longo do tempo essa concepção foi ampliada. A legislação referente ao patrimônio nacional e
as pesquisas sobre o tema passaram a integrar os bens de natureza “imaterial” ou o “patrimônio
intangível” desde os anos 2000 (FONSECA, 2009). Nesse processo, o irreconhecível, o distante, o
oculto, os saberes e as memórias daqueles que foram excluídos historicamente tornam-se objetos
de maior compreensão e ganham o direito de reconhecimento e preservação. Esse conceito mais
abrangente de patrimônio ganha destaque ao pensarmos o espaço aberto da cidade e todos os
que nele circulam e vivem. A partir desses pressupostos, a experiência do aprender ao caminhar
concorre para a inserção do sujeito no mundo em que habita, em relação direta com o lugar e tudo
aquilo que ele suscita, numa integração do intelectual com o sensorial.
Nesse âmbito, os casos de São João del-Rei e São José (atual Tiradentes), são exemplares. Suas
histórias remontam ao início do século XVIII, quando os arraiais se originaram a partir da
descoberta de ouro em córregos e encostas das serras circundantes. A rápida elevação da Vila de
São João del-Rei à cabeça da Comarca do Rio das Mortes representa a sua importância política
no contexto da capitania e a relativa pujança econômica que sustentou mesmo após o declínio
da extração aurífera, até pelo menos os finais do século XIX (LENHARO, 1979; GRAÇA FILHO,
2002). Pesem as transformações no tempo, essas cidades figuraram entre os primeiros conjuntos
urbanos tombados pelo então SPHAN, depois Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), no ano de 1938, situação que atualmente se sobrepõe às medidas e políticas
a nível municipal (ver DIAS, 2019).
Em São João del-Rei, a dualidade entre a transformação no tempo e uma relativa preservação
resultou em um tecido urbano e acervo edificado que atravessam e representam a variedade de
períodos históricos pelos quais passou a localidade. Tal fato se expressa na diversidade de estilos
arquitetônicos presentes na área central mais antiga e se vê enriquecido pela conformação do
espaço urbano (serra, relevo, córrego), respectivos logradouros (largos, praças, pontes), além
de casario e edificações de destaque. Ao longo de sua história, São João del-Rei foi e tem sido
palco de inúmeras manifestações culturais, ricas em múltiplos simbolismos. Destacamos sua
musicalidade expressa pelas bandas e orquestras setecentistas, as festas religiosas, o pré-carnaval
e o carnaval, o toque dos sinos, as lendas, saberes populares ancorados na ancestralidade, a
culinária local, saberes e produções dos diversos artesãos etc.
O cenário atual de São João del-Rei mostra ainda a permanência da vocação tanto comercial
quanto institucional da cidade, com ruas movimentadas, lojas diversas, além de estabelecimentos
tanto oficiais como culturais, educativos, de serviço, de saúde, entre outros, que atrai um fluxo
variado de pessoas. A cidade é dotada de uma vida própria e amparada por uma abrangência
regional, que resiste em boa medida aos processos de “turistificação” (CASTRO; TAVARES, 2016).
Em Tiradentes destaca-se o impacto causado nos núcleos urbanos de interesse cultural, em que
um turismo massivo tem causado o afastamento da população e de suas práticas cotidianas,
assim como descreveu Choay (2006) para outros contextos geográficos. No que se refere à
inserção das cidades na “indústria cultural”, a autora afirma que a “cidade patrimonial”, estando
em evidência e ao ser explorada, se mostra
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de um lado, iluminada, maquiada, paramentada para fins de embelezamento
e midiáticos; de outro, palco de festivais, festas, comemorações, congressos,
verdadeiros e falsos happenings que multiplicam o número de visitantes em
função da engenhosidade dos animadores culturais (CHOAY, 2006, p. 224).
Algumas cidades tombadas pelo mundo, assim transformadas e exploradas pela “indústria cultural”
acabaram por se esvaziar. A perda de espaço dos moradores da cidade sob a pressão do turismo é
uma realidade vivida em Tiradentes e pode ser muito bem observada no documentário Tiradentes
sob óticas (2016). Nesse documentário, o testemunho de Dona Celina de Almeida Nascimento,
presidente da associação de feirantes de Tiradentes, é exemplar. Ao se referir à feira de artesanato
local, que antes ocupava o Largo das Forras (praça central) Dona Celina relembra que: “era lá
na praça né!? Aí, depois que reformaram a praça, tirou o pessoal da praça e trouxe pra cá [para
perto da rodoviária]. Aí, agora, se nós deixar, eles tiram nós daqui também. Nós porque ficamos
firmes”. Em outro documentário sobre memórias afetivas de moradores da cidade de Tiradentes,
intitulado Alma da cidade (2018), D. Leonor da Conceição, uma senhora tiradentina, afirma: “a
gente pode andar da Prefeitura até os Quatro Cantos que a gente não vê ninguém da cidade, é só
comércio...”. D. Leonor se refere ao fato de os proprietários dos casarões antigos venderem suas
moradias (sendo essas casas transformadas em pontos comerciais) e se mudarem para bairros mais
periféricos da cidade, fenômeno que também foi estudado por Zolini (2007). Essa especulação
imobiliária vivida nos centros antigos das cidades tombadas pelos órgãos de preservação do
patrimônio aumenta a pressão sobre os moradores e eles acabam por vender suas casas centenárias,
passando a habitar as periferias, em um processo conhecido como “gentrificação” (BATALLER,
2012). Ainda recorrendo às palavras de Choay, podemos dizer que o fenômeno de transformação
do patrimônio em “culto” traz efeitos secundários e perversos, pois acaba por ameaçar as práticas
patrimoniais “de autodestruição pelo favor e pelo sucesso de que gozam: mais precisamente, pelo
fluxo transbordante e irresistível dos visitantes do passado” (CHOAY, 2006, p.227). Nesse ínterim,
a paisagem se transforma, seja com o excessivo controle de uma imagem estática ou nostálgica, em
todo caso artificial, seja com novos padrões de consumo, fluxo e uso do espaço. Tal artificialidade,
causada por fatores heterônomos ao modo de vida local, termina por se associar também a um
processo de “museificação” do espaço urbano (RUY; ALMEIDA, 2020).
Para nós, entretanto, a utilização do espaço das cidades tem conotação mais bem positiva, na
perspectiva precisamente da valorização das culturas existentes, acreditando que as cidades
tomadas aqui como casos exemplares ainda sustentam um importante potencial nesse sentido,
tanto sob o ponto de vista do turismo, quanto sob o ponto de vista das experiências que podem
oferecer àqueles que nela habitam ou simplesmente caminham por suas ruas.
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caso, acionamos conhecimentos e colocamos em diálogo referências das áreas de Educação,
Arquitetura, História e Patrimônio. A preparação das atividades nas ruas ou em museus inclui
aulas expositivas amplamente ilustradas com mapas, plantas, fotografias e documentários em
que se destacam os processos de formação urbana e a transformação da arquitetura e de outros
aspectos do patrimônio (tangível e intangível) ao longo do tempo. Sobretudo, ganhar as ruas
com atividades fora dos muros da universidade é imprescindível.
Os trabalhos práticos realizados pelos estudantes envolvem uma série de dinâmicas de
experimentação do espaço urbano, do acervo arquitetônico, de espaços museais, de experiências
culturais e interlocução com moradores da cidade. Promovemos visitas mediadas com paradas
estratégicas para ouvir os estudantes sobre suas percepções, observar aspectos de interesse, tecer
explicações e discutir dúvidas, chamar atenção para o que não está ali, o que foi relegado ao
esquecimento, incluindo momentos de pausa para pura observação em silêncio, de descanso, ou
ainda de degustação de comidas locais (Figura 1).
Figura 1. Caminhada noturna com estudantes. Rua Santo Antônio, São João del-Rei, 2018.
Foto: Christianni Morais.
Nas ruas e outros logradouros, criamos percursos gerais que atendam a variados interesses e,
ao mesmo tempo, abarquem dimensões diversas da história urbana e do espectro arquitetônico
definido pelos diferentes períodos estilísticos. Apesar da dificuldade em se estabelecer uma
relação estritamente cronológica na rota, em São João del-Rei é possível, por exemplo, começar
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próximo à área de mineração no sopé da serra, acessar as ruas principais do núcleo colonial e
imperial, rumar para a Estação Ferroviária, passando por exemplos da arquitetura eclética, até
chegar na região mais moderna, em torno da Avenida Tiradentes. Cabe lembrar, entretanto, que o
tecido arquitetônico dessa cidade é bastante heterogêneo e, portanto, permeado por intervenções
de épocas diversas. Se, por um lado, perde-se com a fragmentação dos conjuntos urbanos, por
outro lado são facilitadas as comparações diacrônicas enriquecedoras da experiência.
Outros percursos são desenhados em função de tópicos temáticos definidos por períodos
históricos e respectivas técnicas e materiais construtivos (GUIMARÃES, 2020). As visitas
mediadas a trechos urbanos e obras de interesse previamente selecionadas figuram como
importantes recursos de suporte às atividades. Em certas ocasiões, são propostos ainda trajetos
mais específicos a serem contemplados pelos grupos de estudantes (Figura 2).
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Os diferentes estilos arquitetônicos e respectivos sistemas construtivos são então observados,
o que implica a experiência inclusive do interior das edificações. Em momento posterior, as
experiências são finalmente compartilhadas, o que possibilita o cruzamento e a sinergia das
informações com atividades de pós-visita em seminários realizados pelo coletivo de estudantes.
A nível da paisagem, é solicitada a elaboração de mapas conceituais e colagens, abrangendo os
principais elementos de referência na formação da cidade, desde a sua fundação até os tempos
modernos. (Figura 3)
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Figura 4. Foto dentro da foto: produção de uma professora em curso de extensão no Largo do Tamandaré. São João del-Rei, 2016.
Fonte: Acervo Christianni Morais.
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Figura 5. Professores municipais realizando desenhos a partir de observação no Museu Regional em projeto de extensão.
São João del-Rei, 2016. Foto: Christianni Morais.
Entre as atividades práticas realizadas com os estudantes, destacam-se, ainda, rodas de conversa
com pessoas naturais da cidade, detentores de saberes muito antigos. Como exemplo, temos uma
aula ministrada pelo artesão sanjoanense Edmar Luiz Batista, que conhece cerca de quinhentas
técnicas de bordados e rendas, várias das quais raras nos dias de hoje e em risco de extinção
(Figura 6).
A aula versava sobre patrimônio intangível e o que se convencionou nomear de “tesouros
humanos vivos” – programa de valorização de mestres de ofícios criado pela UNESCO com
objetivo de assegurar condições de transmissão de seus saberes às novas gerações (ABREU,
2009). Na ocasião, o grupo de estudantes do Programa de Mestrado em Educação se encontrou
com o artesão no Solar da Baronesa (Centro Cultural da UFSJ), que realizou um relato de
sua história de vida e de como foi, ao longo do tempo, aprendendo e ampliando seus saberes.
Em um segundo momento, fomos convidados a sua residência no centro antigo, uma estreita
casa centenária com fachada de porta e janela – sendo esta protegida por uma rótula. Na sala,
Edmar nos brindou com a apresentação de peças de bordados, rendas e uma enorme coleção
de acessórios do seu ofício, como agulhas, bilros, dedais, navetes, bastidores, fusos, rocas – de
diferentes materiais, épocas e procedências. Ainda foi possível observar as ágeis mãos do artesão
na demonstração de técnicas de bordados que correm o risco de se perder, caso esses saberes
não sejam ensinados aos mais jovens.
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Figura 6. Explicação de técnicas de bordado em visita ao artesão Edmar Luiz Batista.
São João del-Rei, 2018. Foto: Christianni Morais.
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cidade oferece um espetáculo verde, pertencendo ao circuito das Serras
Verdes do Sul de Minas (N.M.R., 2011).
A palavra museu é algo que, seja na televisão, na escola, em grupo de amigos,
ou por qualquer outro meio que ouvimos ser dita, nunca nos explicam o
seu verdadeiro sentido, para que serve, o que tem lá dentro, quem pode
visitar, quanto paga, ou até mesmo que roupa vestir ao ir a um museu. Essas
e outras questões não me foram apresentadas durante minha vida escolar,
nunca fui a um museu com a escola (P.D.C., 2017).
Minha visão a respeito do museu não diferia da maioria das pessoas, pois
culturalmente crescemos sem este tipo de prática e as escolas também
não trabalham questões tão pertinentes, o que acaba por tirar o direito de
termos contato com algo tão essencial para nossa formação. Até o dia 15 de
junho de 2015, dia que ficará marcado em minha vida, nunca tinha tido essa
oportunidade. (...) Mesmo que para mim esta oportunidade tenha vindo
um pouco tarde, com certeza foi uma experiência muito enriquecedora (...).
Foi uma experiência única poder ter tido a oportunidade de me aproximar
de peças tão únicas (...) me proporcionou a experiência de viajar a outros
tempos e mundos. (A.L.S., 2015).
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A preparação das visitas em sala de aula visa a aguçar os sentidos e a curiosidade, sensibilizar
os estudantes para que a experiência propriamente dita se torne algo marcante, criando até
mesmo um momento de ruptura com o cotidiano entre aqueles que habitam a cidade. Parar
e desenhar, ou fotografar um lugar por onde passamos cotidianamente, são experiências que
permitem um distanciamento necessário para que o novo se apresente e as visões de mundo
sejam modificadas. Tal possibilidade pode ser observada em outro trecho de relatório final:
foi interessante, pois nos fez ampliar nossos olhares e perceber coisas
que passariam despercebidos quando não se tem conhecimento. Quando
cheguei e comecei a andar pelas ruas da cidade, parecia que eu nunca tinha
ido lá, pois o meu olhar em relação a ela estava diferente (K.A.L., 2019).
Dispor de tempo para parar e observar sob novos ângulos as coisas simples que nos cercam,
sem pressão, olhar as fotografias realizadas nos percursos, rememorar e se debruçar à escrita de
um relato, são experiências marcantes, educativas em termos profundos, como podemos ler nas
palavras de outra estudante:
A possibilidade de andar com tempo, calmamente pelas ruas, de fugir do cotidiano assoberbado e
saborear algumas iguarias da cidade, de parar em pontos estratégicos da caminhada, também foi
experimentada e rememorada. Essa experiência foi digna de destaque, mesmo entre estudantes
naturais de São João del-Rei, mas que habitam bairros mais distantes do casco antigo:
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desfrutar das tradições locais nos torna mais próximos daquilo que nos
identifica e intensifica o nosso sentimento de pertencimento. Isso diminui
as distâncias entre o que é patrimônio e nossa vontade-obrigação de
preservá-lo. Seja um monumento de pedra e cal, seja um delicioso lanche
tradicional. Outra importante iguaria degustada foi o “Picolé do Amado”,
feito aos moldes tradicionais de família (V.A.A., 2019).
Não estamos acostumados a aprender saboreando, nem mesmo a refletir sobre os sabores únicos
de nossa cidade. Na correria do dia-a-dia, muitas vezes nos alimentamos rapidamente, pouco
mastigamos, apenas comemos para nos mantermos de pé e voltarmos apressados a nossas
atividades. Degustar um simples lanche popular em silêncio, saborear um picolé artesanal
calmamente na companhia dos colegas, ouvir a história de como se produz o alimento, conversar
com a pessoa responsável pela cozinha da lanchonete, também pode ser um ato de aprendizado.
Não aprendemos somente sentados, olhando e ouvindo o professor dentro da sala de aula.
Precisamos estar presentes por completo, de corpo inteiro, integrados com todos os sentidos.
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Moramos e trabalhamos em uma cidade de porte pequeno do interior de Minas Gerais e que,
portanto, goza de muitos privilégios: não ser palco da violência como as grandes cidades; possuir
uma universidade pública com importante inserção regional; estar situada em uma região em
que há diversidade arquitetônica e cultural, com uma infinidade de patrimônios que precisam
ser conhecidos e preservados. Assim, “sair da escola” e caminhar pela cidade torna-se menos
complicado do que nas cidades grandes. Visitar o centro antigo, outras instituições culturais,
ouvir histórias de vida, são práticas que nos permitem integrar os campos do ensino e da
extensão, destacando atividades que, de uma forma ou de outra, contribuem para a concepção
da cidade, de seus locais de memória e de seus habitantes como possibilidades de experiências
que oferecem aprendizados profundos. Indicamos, outrossim, as interfaces da educação na
cidade, na relação direta com o patrimônio, na esfera de nossa atuação acadêmica. No geral, a
partir de nossas próprias vivências e dos relatos de nossos estudantes, uma experiência vívida –
ativa, sensorial, sentimental – do espaço urbano perpassou de modo fundamental os processos
e procedimentos envolvidos. Assim, constatamos que o caminhar pela cidade democratiza
a informação e a fruição do patrimônio, aproxima os sujeitos e amplia a experiência, tanto
acadêmica como cotidiana, alargando horizontes.
Foram ressaltadas em nossa abordagem as relações com o patrimônio e sua preservação. Nesse
sentido, cabe notar a necessidade de se ampliar a sua visão, de modo a incluir diferentes dimensões,
categorias e interfaces. Embora nossas atividades recaiam sobre o espaço circunscrito aos ditos
“centros históricos” de São João del-Rei e Tiradentes, consideramos importante trabalhar para uma
extrapolação destes limites. Ora, sabemos que categorias tais como industrial, imigração, rural e
natural, entre outras tantas, são parte integrante do sistema de compreensão e fruição das cidades,
assim como as diversas manifestações culturais que permeiam a vida citadina. Acreditamos que o
abarcamento dessas noções de patrimônio necessariamente implica a inclusão da diversidade do
público e o direcionamento democrático das respectivas informações veiculadas.
Sobressai, nesse contexto, a figura do museu, tanto na sua concepção institucional como
conceitual. Entendemos que cabe ao museu extrapolar as suas fronteiras – tanto espaciais
quanto institucionais – e se abrir para a cidade e suas possibilidades de patrimônio. Ao fomentar
o diálogo com a comunidade na qual se insere e a colaboração com outros agentes, tais como a
universidade e escolas de educação básica, o museu potencializa reciprocamente a sua razão de
ser e a sua capacidade de ação e transformação social. A colaboração com outras instituições
educativas contribui, finalmente, para a própria noção museal do espaço urbano, que se nutre
de um esforço comum de valorização de aspectos, como os relativos às memórias, identidades
e à diversidade. Todos esses aspectos conferem sentido ao museu e merecem fazer parte dos
processos democráticos de patrimonialização.
A escrita desse artigo foi realizada ao longo do primeiro semestre de 2021, momento no qual a
vida que até então conhecíamos foi obrigada a sofrer uma pausa. Em um cenário de verdadeira
tragédia mundial, fomos obrigados a ficar em casa. Encontramo-nos trabalhando de forma
remota, impossibilitados de estar presencialmente com nossos estudantes, impedidos de ir às ruas,
devido à necessidade de isolamento social imposta pela Pandemia de Covid 19. Aproveitamos a
pausa na convivência com os que são de fora de nosso núcleo familiar para escrever esse artigo.
REVISTA BARROCO DIGITAL - nº 2 - 2022 - CHRISTIANNI CARDOSO MORAIS E MARCOS VINÍCIUS TELES GUIMARÃES
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Trabalhamos incessantemente diante das telas, dedicamo-nos aos afazeres domésticos, à educação
das crianças que se encontram sem poder ir à escola. No fim do dia, nas pausas, conversamos
sobre nossas preocupações com o futuro, retomamos nossos diálogos sobre as aulas, os projetos
de extensão, a saudade do mundo lá fora, a vontade de estar presencialmente na universidade.
Relemos textos e revisitamos trabalhos de nossos estudantes que acumulamos ao longo dessa última
década, transformando esse material empírico em fontes documentais. Depois de ler, discutimos,
discordamos, concordamos, escrevemos, reescrevemos. Com as reflexões aqui apresentadas,
esperamos ter alcançado o objetivo de dar resposta àquele pai e que essa resposta sirva para alertar
a muitas outras pessoas que consideram que a educação deve ser realizada confinada entre quatro
paredes. As aulas remotas trouxeram outras dimensões para nossas experiências docentes. Mais
do que nunca, ficou evidente o quanto nós, seres humanos, precisamos caminhar, sentir e viver
experiências significativas, de maneira presencial e coletiva. Diante dos desafios impostos pelas
aulas remotas, paramos para rememorar e analisar a docência e reiteramos nossa mais sincera
convicção de que, assim que as condições sanitárias o permitirem, ganharemos as ruas com nossos
ruidosos grupos de estudantes, pois lugar de aprender é, sim, em imersão na cidade, caminhando,
travando relação direta com seus patrimônios, olhos nos olhos.
Referências
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– notas sobre a experiência francesa de distinção do “mestre da arte”. In: ______; CHAGAS, Mário (Orgs.).
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de Sociomuseologia, v. 47, n. 3, p. 71-90, 2014. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/
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del-Rei, Minas Gerais. 2019. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo – Faculdade de Arquitetura
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151
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redalyc.org/articulo.oa?id=449644420010 Acesso em: 24/09/2021.
Notas
1 Christianni Cardoso Morais - Bacharel e Licenciada em Filosofia pela FUNREI, Mestre em Educação e
Doutora em História pela UFMG, Professora Associada do Departamento das Ciências da Educação da UFSJ.
2 Marcos Vinícius Teles Guimarães - Arquiteto e Urbanista pela UFMG, Mestre em Projeto Arquitetônico pela
UNAM, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP, Professor Adjunto do Departamento de Arquitetura,
Urbanismo e Artes Aplicadas da UFSJ.
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RESTAURAR E CONSERVAR:
UMA TRAJETÓRIA DE REFLEXÃO E PRÁTICA
ENTREVISTA COM BEATRIZ RAMOS DE VASCONCELOS COELHO
A
história de vida da professora emérita da
UFMG Beatriz Ramos de Vasconcelos Coelho
é inseparável da conservação, da restauração
e do ensino sobre as Artes Plásticas em Minas Gerais.
Nascida em Pernambuco, ela adotou Belo Horizonte
como sua cidade no final dos anos 1950, junto com o
marido, o professor Marcelo de Vasconcelos Coelho,
que foi reitor da UFMG no período de 1969 a 1973. A
trajetória de Beatriz Coelho na UFMG teve início em
1972, quando ela, recém-formada na Escola Guignard
e já atuando como professora, foi indicada por Yara
Tupinambá, professora da Escola de Belas Artes da
Universidade, para ensinar as técnicas da xilogravura.
Cinco anos depois, em 1977, Beatriz Coelho assumiu
o cargo de diretora da Escola de Belas Artes
Desde então, são décadas de dedicação integral ao ensino e à pesquisa na universidade e à
formação de especialistas no restauro de bens históricos, com um legado incomparável para o
mundo acadêmico e para o patrimônio da arte e da história, salvando obras importantes que
estavam se perdendo e resgatando relíquias sacras que foram produzidas por grandes mestres
da pintura, da escultura. Em 1980, Beatriz Coelho foi responsável pela idealização e implantação
do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor), uma unidade da
Escola de Belas Artes da UFMG dedicada à pesquisa e à formação de profissionais dedicados à
restauração de bens do patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil.
Beatriz Coelho ocupava o cargo de vice-diretora da Escola de Belas Artes, em 1976, quando
recebeu um importante desafio. Foi localizado um conjunto de 13 obras valiosas em um
depósito da Prefeitura da Cidade Universitária, no campus da UFMG, mas elas estavam muito
Como aconteceu sua aproximação com as artes plásticas? Quais são as experiências mais
antigas sobre este assunto que permanecem em sua memória?
Beatriz Coelho – Primeiro, quero agradecer a você e a Cristina Ávila por terem me escolhido
como entrevistada deste número da revista BARROCO, que Cristina tem continuado depois
do falecimento do seu querido pai, Afonso Ávila, apesar de todo tipo de dificuldade que tem
enfrentado. A revista BARROCO é de uma importância enorme para os estudos, não só do
barroco, mas também do rococó no Brasil. Tenho praticamente todos os números, a maioria
comprados em uma liquidação feita há muitos anos, pela Editora da UFMG.
Agora, vou responder à sua primeira pergunta: Desde pequena, em Recife, sempre gostei de
desenhar. No colégio das Doroteias (Colégio de São José, criado pelas Irmãs de Santa Doroteia),
onde estudei por muitos anos, era uma das escolhidas para fazer desenho para o álbum que
seria oferecido à provincial italiana, quando ia visitar o colégio. Também estudava piano,
que era minha principal ocupação. Fui aluna de Manoel Augusto, diretor do Conservatório
A experiência como aluna na Escola Guignard alterou a sua percepção sobre a obra de arte?
Guignard, patrono da escola, além de criar obras marcantes, que permanecem em destaque
na arte brasileira, também teve uma importância fundamental como professor…
Beatriz Coelho – Entrei como aluna da Escola Guignard em 1964, dois anos depois do
falecimento de Guignard. Não tive, portanto, o privilégio de ser aluna dele. Fui aluna dos artistas
que estudaram com ele, como Yara Tupinambá, Maria Helena Andrés e Wilde Lacerda.
O desafio que surgiu em 1976, para restaurar os murais pintados por Dakir Parreiras, pode
ser apontado como um divisor de águas na trajetória da professora Beatriz Coelho?
Beatriz Coelho – Sim. Completamente. Foi dessas coisas que acontecem sem a pessoa esperar
nem programar. Eu era vice-diretora da Escola e estava em exercício da diretoria, porque Yara, a
diretora, estava nos Estados Unidos, quando um dia, Benedito Schimdt, secretário, me entregou
um ofício do reitor, professor Eduardo Osório Cisalpino. No ofício, o reitor informava que tinham
sido encontradas 13 pinturas de Antônio Parreiras, que estavam perdidas há muitos anos; que
entrasse em contato com a diretoria do Patrimônio Histórico, para conseguir um técnico que
orientasse os trabalhos de restauração e fornecesse uma lista de materiais necessários para o
trabalho, que ele queria, fosse feito na EBA, Escola de Belas Artes da UFMG. Dizia também que
a restauração deveria ter um sentido didático, com participação de alunos.
Era fácil, para mim, obter do diretor do Patrimônio Nacional em Minas Gerais, o arquiteto
Roberto Lacerda, tudo isso, porque ele e a esposa, eram como irmãos, para mim e meu marido.
Ele indicou o restaurador, Francisco Xavier Filho, o Ládio, que me forneceu a lista de material
necessário. Tereza Apocalypse era a chefe do Centro de Extensão e se encarregou de todas as
providências para o início dos trabalhos. Os alunos, porém, não se interessaram. Estavam na
Escola para se prepararem para a vida artística criativa, e não para aprenderem a restaurar.
Quem se interessou foram os professores: Álvaro Apocalypse, Jeferson Lodi, Maria do Carmo
Vivacqua Martins (Madu), Jarbas Juarez, Júlio Espíndola e eu. Começamos acompanhar, a
aprender e a participar dos trabalhos. Com o passar do tempo, alguns foram se afastando, tendo
continuado apenas Jarbas, Júlio e eu. Como eram 39m2 de pinturas sobre tela, aos poucos os
alunos foram vendo e se interessando, chegando alguns a pedir para fazer estágio, mesmo como
voluntários, sem receberem nada (Figura 1).
Sua atuação como professora de iniciação à gravura mudou e a senhora passou a trilhar um
percurso como referência em trabalhos de restauração. Esta mudança foi apenas obra do
acaso ou o tema da restauração já estava presente em sua formação?
Beatriz Coelho – Eu não conhecia nada de restauração e esse tema nunca tinha entrado nas
minhas cogitações. As telas, como já foi informado aqui, eram coladas na parede com argamassa,
um sistema que não se usa há muitos anos, e que se chamava de marrouflage. Elas tinham sido
retiradas das paredes do Conservatório de Música pelo importante restaurador mineiro, Jair
Afonso Inácio, enroladas na forma de tubos e guardadas umas sobre as outras. Com o passar
do tempo e com o peso da argamassa, elas foram se achatando. Este foi um dos motivos para
terem “desaparecido”, tendo sido encontradas, bastante tempo depois, em um dos depósitos da
prefeitura do campus da UFMG. Pareciam telhas de amianto, apresentando também rasgos e
sujidades (Figura 2). Quando vi aquelas telas – que na verdade estavam assinadas por Dakir
Parreiras, filho do Antônio Parreiras – ficarem sem ondulações, os rompimentos sendo
emendados e elas poderem ser admiradas outra vez, fiquei impressionada, me apaixonei pelo
trabalho e aos poucos, foi deixando a gravura de lado.
O professor Edson Motta, que foi diretor do Museu de Belas Artes, no Rio de Janeiro, é
apontado com frequência como pai da restauração de obras de arte no Brasil. Ele teve
participação no projeto para criação do Curso de Especialização em Conservação e
Restauração na Escola de Belas Artes da UFMG? Quais foram os principais colaboradores
nesta iniciativa?
Beatriz Coelho – O professor Edson Motta foi muito importante para a existência do curso de
especialização, pois me forneceu os programas das disciplinas de Restauração de Pinturas e de
Obras Sobre Papel, que ele e outros professores lecionavam na Escola de Belas Artes do Rio,
e nomes de profissionais da restauração no Brasil que atuavam em seus estados e poderiam
participar do curso: José Rescala, da Bahia (Figura 3); Maria Luísa Salgado, do Rio de Janeiro;
Ado Malagoli, do Rio Grande do Sul; e Jair Afonso Inácio, de Minas Gerais. Fiz correspondências
para cada um desses restauradores, dizendo que iria tentar obter recursos para um curso de
especialização, se eles gostariam de lecionar aquela disciplina e se gostariam que continuasse como
estava no programa ou se preferiam mudar alguma coisa. Todos responderam positivamente,
com sugestões para alguma modificação. No Rio de Janeiro não havia nenhuma disciplina de
escultura, mas convidei Jair Inácio e Ládio para ela. Convidei também o museólogo Orlandino
Freitas Fernandes para apresentar uma parte teórica.
Na época, havia o Programa de Cidades Históricas, o PCH, dirigido pelo economista mineiro
Henrique Oswaldo de Andrade. O PCH já funcionava para o Nordeste e começava sua atuação
Beatriz Coelho – Minha aproximação com as obras dos estilos barroco e rococó em Minas
Gerais se deu quando começaram a chegar, no pequeno ateliê da Escola de Belas Artes, depois
de 1978, esculturas do Museu do Ouro, em Sabará. Antônio Joaquim de Almeida, seu diretor,
enviou várias esculturas em madeira policromada que tinham caído do alto de uma estante
do Museu, tento ficado danificadas. Como o restaurador do Iphan, Ládio, estava orientando
o trabalho de restauração das telas, ele as trouxe para restauro. Logo depois, recebemos uma
Beatriz Coelho – Os alunos do curso de especialização no primeiro ano eram quase todos ex-
alunos de Jair Inácio, e todos de Minas Gerais, com uma única exceção, uma aluna que veio de
Vitória, no Espírito Santo. Todos tiveram bolsas de estudo do Programa de Cidades Históricas.
Um caso interessante foi que recebemos como aluno um químico, que trabalhava no Centro
Tecnológico de Minas Gerais (Cetec), e que posteriormente foi professor de Química no nosso
curso. Quase todos tinham curso de graduação completo ou terminando, e tinham de trabalhar
no Iphan ou em alguma instituição ligada ao patrimônio para serem aceitos. No caso do químico
estudante, ele estava num projeto com o professor José Israel Vargas, sobre desinfestação de
insetos em obras do patrimônio com utilização de energia nuclear. Ao começar o bacharelado,
em 2008, eu já estava aposentada, mas participei da comissão que elaborou o projeto do curso.
Tínhamos convivido, durante 20 anos, com alunos formados em artes visuais, arquitetura,
química e história, e pensávamos que, no bacharelado, iríamos receber alunos muito jovens, de
17, 18 anos, sem ainda saber muito bem o que queriam. Mas na verdade muitos profissionais já
graduados quiseram fazer o curso, que antes não existia no Brasil. Isso surpreendeu a todos os
professores.
Beatriz Coelho – Depois de minha aposentadoria, em 1995, estava no Rio de Janeiro, quando
recebi um recado, pelo professor Marcos Hill, que a professora de História da Arte, Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira, do Iphan, gostaria de conversar comigo. Fui conversar com ela,
que me disse: “Beatriz, em tantos anos estudando a arte brasileira e percorrendo tantos lugares
do Brasil, estou convencida de que a imaginária religiosa é a expressão artística mais autêntica e
valiosa do Brasil. Precisamos criar um grupo de estudos, tipo o grupo do Barroco, que possa se
interessar em desenvolver estudos e publicações sobre esse tema. O que você acha?”
Claro que achei muito boa a proposta, porque era exatamente o assunto das pesquisas que eu vinha
desenvolvendo, inclusive recebendo Bolsa de Produtividade do CNPq. Fizemos uma reunião
com um pequeno grupo durante um congresso da Associação Brasileira de Conservadores e
Restauradores (Abracor), em Ouro Preto, em 1996, e em 29 de outubro do mesmo ano, outra
reunião no Museu Mineiro, aberta com uma conferência da professora Maria Beatriz de Melo
e Souza, sobre a Imaculada Conceição. Assim foi criado, oficialmente, o Centro de Estudos da
Imaginária Brasileira, o Ceib, que completa agora 26 anos de grande atividade, já tendo realizado
11 Congressos, publicado 76 números do “Boletim do Ceib”, sempre com artigos inéditos, e 11
números da revista “Imagem brasileira”.
Nota
1 José Antônio Orlando é jornalista, graduado pela UFJF, Mestre e Doutor em Literatura, História e Memória
Cultural pela UFMG.
O
resgate do Barroco em fins do século XIX e as diversas revisões que dele foram feitas no
século XX tiveram especial impacto nas letras e nas artes visuais mineiras. Em Minas,
a revisão do Barroco se entrelaça com a modernidade artística, e a essa dinâmica se
soma – e também se entrelaça – outra linhagem de interpretação do barroco que, imersa nas
questões que envolvem o mundo contemporâneo, seu desenvolvimento técnico-científico e
as novas possibilidades de produção artística, busca estudar obras e fenômenos culturais que
se conformam naquilo que autores como Severo Sarduy e Omar Calabrese vão denominar
neobarroco – não um mero “revival” das questões do Barroco histórico, mas uma categoria
autônoma que se baseia em analogias com este para se entender o presente.
Observando a produção de artes visuais em Minas Gerais de meados do século XX até os dias
de hoje, fica certo que podemos traçar uma linha – tortuosa mas contínua – de obras que se
caracterizam por inegáveis traços barrocos, sejam esses constantes visuais que se incluem na
definição genético-formal de Barroco traçada por Wölfflin ou nas posteriores exegeses sobre o
neobarroco, mas que são, antes, conformados pelos dilemas sócio-existenciais de seu tempo e
que, por vezes, são também fruto de diálogo – direto ou indireto – com os resíduos do Barroco
histórico no espaço de Minas Gerais – que, nas palavras de Lourival Gomes Machado, têm
caráter de evidência na arte colonial mineira2. A breve reunião de imagens aqui expostas busca
ensaiar um caminho livre e subjetivo dentro desse quadro barroquizante da arte em Minas, de
Guignard às mais recentes tendências da arte digital, reafirmando a compleição barroca de obras
já icônicas no cenário artístico e aproximando-as de novas produções – muitas delas alheias a
esse ideário.
Partindo de Guignard e suas imaginárias paisagens de Ouro Preto, em que o espaço é fantástico
e onírico, o céu nebuloso se funde com as montanhas (“rochas de espuma”, nas palavras de
Cecília Meireles)3, igrejas barrocas pontuam assimetricamente a paisagem e caminhos sinuosos
reforçam o dinamismo da composição, chegamos na também fantástica produção de sua aluna
Sara Ávila que, explorando os limites entre abstração e figuração com o uso de manchas –
inspirada diretamente pelo teste de Rorschach – sugere em seus quadros e desenhos um turbilhão
de figuras agônicas e formas contorcidas em tom sépia. Como bem observou Márcio Sampaio, o
trabalho de Sara tem forte ligação com o espaço de Minas Gerais, “quer pela alusão às paisagens
coloniais e às formações geológicas, quer pela reinterpretação dos elementos formadores do
barroco (...)”4.
2 MACHADO, Lourival Gomes. O Barroco em Minas Gerais. In: Barroco mineiro. São Paulo: Perspectiva,
1973. p. 151 - 175.
3 PERDIGÃO, João. Ouro Preto, amor barroco e inspiração abstrata (1940-1960). In: Balões, vida e tempo de
Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 176 -188.
4 AVILA, Sara; QUEIRÓS, Campos.; LATERZA, Moacyr; OLIVEIRA, Sálvio de.; MUSEU MINEIRO. Sara
Ávila. [Belo Horizonte: Museu Mineiro, 1988]. [12] p.
5 ÁVILA, Affonso. O Barroco e uma linha de tradição criativa. In: O poeta e a consciência critica: uma linha de
tradição, uma atitude de vanguarda. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Summus, 1978. p. 15 - 24.
Cristina Ávila1
Mônica Sartori2
S
em cuidados especiais, as flores do Cerrado surgem como por milagre, resistem à seca,
às tempestades, ao solo em erosão, asfaltos e depredações de toda espécie. Expõem suas
belas formas graciosamente. Caem em cascatas, se agarram a palmeiras, são pingos de luz
no mato seco, trepadeiras e canteiros descuidados que avançam sobre pedras, montes e cantos
obscuros. Estão aqui e acolá. Quem as plantou? Quem cuida delas? Mantêm-se sempre-vivas,
debocham das tempestades, abrem-se lindas bromélias, têm corolas, caules e sementes. Mesmo
na falta da terra, rochas se expandem carregadas de plantas presas a elas: bambus, orquídeas e
araucárias selvagens.
Dentre a biodiversidade brasileira, o Cerrado é reconhecido como a savana mais rica do mundo,
ocupando cerca de 20% do território nacional. Abriga mais de 11.000 espécies de plantas. Vivem
nessas matas mamíferos, répteis, peixes e anfíbios. O Cerrado é simplesmente o refúgio de
borboletas e abelhas.
Do cenário natural captamos o efeito da luz nas beiras das montanhas, matagais e pequenas
florestas. Pontinhos de cor avançam ora com certa violência, ora timidamente. Rosas, lilases,
azuis, amarelos, laranjas, castanhos e brancos pontuam verdes nunca lineares, ressecados ou
vívidos, são o descanso das flores do Cerrado, que levantam e desmaiam a seu bel-prazer.
Muitas foram batizadas com pomposos nomes científicos de seus meticulosos inventariantes.
São as chamadas lavoiseiras – provavelmente em homenagem ao químico Lavoisier, aquele para
quem nada se perde, tudo se transforma. E vão seguindo um destino incerto. Intrometem-se na
natureza desabrochando a ermo, enquanto serrotes, máquinas e represas artificiais as destroem
em favor do que teimosamente chamamos de progresso humano.
Pioneira, a pintora naturalista Marianne North (1830-1890) foi a primeira mulher a se aventurar
pelos nossos Sabarás, Ouro Pretos, Caetés, chegando a conhecer o velho Lund, desbravador
de grutas em Lagoa Santa. Esteve no Cerrado mineiro de 1872 a 1873, deixando vasta obra de
pintura contendo nossa fauna e flora.
Profetizou o que infelizmente vem acontecendo, o descaso e a destruição dessa flora brava e
resistente em sua aparente candura. Dentro do cânone engendrado pelo naturalista prussiano
Alexander von Humboldt (1769-1889), Marianne imprime modernidade em suas aquarelas
brasileiras, mas o faz com a preciosidade de quem alia arte e ciência.
O crítico de arte e poeta Baudelaire (1821-1867), autor dos poemas malditos As flores do mal, já
suspeitava que o moderno deveria se inserir à ciência, mas não poderia adivinhar que, apesar de
uma faceta classificatória onírica, as flores têm linhas e cores abertas à concepção livre de artistas
que, além de divulgarem a impermanência desse patrimônio geoambiental, seriam capazes de
as liberarem como asas de anjo ao alcance de um céu mais amplo que o simbolismo em toda a
sua modernidade. A contemporaneidade se deu conta que uma realidade pode se transformar a
partir de uma ação-atitude ampliadora do original.
Vendo a leveza que se traduz em resistência e fortaleza, as flores de Mônica Sartori atingem a
conexão midiática e estética do habitat do Cerrado mineiro com a tradição japonesa Yamato-e
(), uma das mais antigas e refinadas expressões das artes visuais.
Se o Universo integra o tudo natural, há que se saber da importância real das florinhas, que sem
nenhuma vergonha se esparramam pelo chão. Miúdas ou encorpadas – seres viventes de luz e
água –, encontram hoje refúgio entre cipós e araucárias. De algumas podemos falar com certo
empirismo, como da calandra, a chamada flor símbolo do Cerrado, das amarelas fedegosas ou
cássias, que se expõem em pétalas irregulares, desconcertantes para o senso comum que exige
simetria e regularidade.
Mas o que podemos fazer senão contemplar as begônias, as bromélias, as arnicas curativas,
as insolentes trepadeiras e as minimalistas flores que compõem verdadeiras rosáceas? E
sobram ainda aquelas batizadas ao deus-dará, ao acaso e sabor incontestes, como as flores de
pimenta-de-negro, inexplicavelmente brancas. Para as mimosas, os brincos de princesa, os
raminhos de arruda, as sebastianas, as ingratas, os veludinhos aromáticos, as damas-da-noite,
os chuveirinhos, as ciganinhas e cactos coloridos, resta a reverência de nossa memória afetiva –
contas contadas das lágrimas de Nossa Senhora que compõem uma lúdica ciranda de artefatos
divinizados.
Dessas flores uma artista do Cerrado captou a essência, pois não estaria na essência o real?
Mãe herbórea as reproduziu para a contemporaneidade, enquanto nós, receptores da poiesis,
viajamos numa fruição única – Mônica.
ON HOW TO LOVE THE CERRADO FLOWERS
A
s if by miracle, they resist drought, storms, eroded soil, asphalt and all kinds of
depredation, the unattended Cerrado flowers graciously blossom showing off their
shapes. They fall like cascades, grabbing onto palm trees like droplets of light in the
dry brush, in creeping vines and neglected flowerbeds while moving over stones, mounds
and dark corners. They are here and there. Who planted them? Who tends to them? They stay
alive, mocking storms by opening beautiful bromeliads, with corollas, stalks and seeds. Even in
the absence of land, the rocks expand with plants stuck on them: bamboos, orchids and wild
araucaria.
Within the Brazilian biodiversity, the Cerrado is known as the world’s richest savannah, covering
roughly 20% of the national territory. It hosts more than 11,000 species of plants and mammals,
reptiles, fish and amphibians live in these woods. The cerrado is the refuge for butterflies and bees.
In this natural scenery, we capture the light effect on the mountains’ edges, bushes and small
forests. Colored dots move forward, dramatically sometimes, timidly at others. Pinks, lilacs,
blues, yellows, oranges, browns and whites stand out amidst the dried out or vivid nonlinear
greens, a resting place for the Cerrado flowers that either wake up or faint at will.
Many were termed with pompous scientific names by their meticulous researchers. Lavoiseras were
probably named after the chemist Lavoisier, who said that nothing is lost, everything is transformed.
The flowers wander an uncertain fate, meddling in nature, blossoming anywhere, while saws,
machines and artificial dams destroy them in favor of what we stubbornly call human progress.
Marianne North (1830-1890), a pioneer naturalist painter, was the first woman to venture into
our Sabarás, Ouro Pretos, and Caetés. She even encountered old Lund, the Lagoa Santa grotto
pathfinder. She travelled the Minas Cerrado between 1872 and 1873, leaving a vast pictorial
work depicting our fauna and flora.
Unfortunately, what she foresaw then is continuously happening: the neglect and destruction
of the wild and apparently candid, yet resistant flora. Within the begotten canons by Prussian
naturalist Alexander von Humbolt (1769-1889), Marianne imprinted modernity in her Brazilian
watercolors, preciously allying art and science.
Baudelaire (1821-1867), the art critic and poet, author of the accursed poems “Flowers of Evil”,
already suspected that what was considered modern should be introduced in science. He could
not have guessed, though, that besides a classificatory oneiric facet, the flowers had lines and
colors opened to the artists’ free conception. Besides divulging the impermanence of this geo-
environmental patrimony, they would also be able to release them as angel wings in search of a
sky broader than the symbolism in all its modernity. Contemporariness realized that a certain
reality could be transformed, starting from an amplifying original action-attitude.
Seeing the lightness that translates into resistance and strength, the flowers by Monica Sartori
reach the media connection as well as the Minas Cerrado’s esthetic habitat with the Yamato-e (),
Japanese tradition, one of the most ancient and refined visual art expressions.
If the Universe integrates all of Nature, it should know the real importance of the little flowers
that spread shamelessly on the ground. Tiny or full-bodied, these living beings are light and
water and find refuge amidst the vines and araucaria. We can talk about some of them with
a speck of empiricism, such as the Calandra, the flower-symbol of the Cerrado, as well as the
yellow pigweeds or Cassias with their irregular petals, a disconcerting sight for our common
sense that requires symmetry and regularity.
However, what else can we do, but contemplate the begonias, bromeliads, curing arnicas,
insolent creeping vines and minimalist flowers that compose the true rosacea? There are still
those misnamed ones, left uncontested and by chance, like the inexplicably white flowers of the
black pepper. We are left to pay reverence to our affectionate memory through the mimosas, the
princess earrings, the rue sprigs, the ungrateful, the aromatic velvets, the ladies of the night, the
little showers, the little gypsies, and the colorful cacti. They are the tearful beads of Our Lady
that comprise the playful merry-go-round of our deified artifacts.
An artist was able to capture the essence of these flowers. Wouldn’t its essence be in what’s
real? Mother herb reproduced them for contemporaneity while we, the poesis receptors, travel
through a unique fruition – Monica.
Notas
1 Cristina Ávila - Diretora da Revista Barroco. Escritora, Historiadora da Arte e da Cultura, Doutora em
Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG, Mestre em Artes pela ECA/USP.
2 Mônica Sartori - Artista visual. Graduada em Desenho pela EBA/UFMG. Participou de Bienais e fez várias
exposições individuais no Brasil e exterior.
ETHOS-PATHOS-STIMMUNG:
PARA ALÉM DO FORMALISMO RETÓRICO 1
Edilson de Lima2
INTRODUÇÃO
P
arece que palavra e música condividiram, e ainda condiviem, seus modos de “ser-
fazer” por muito tempo e por motivos que podem ser bastante justificáveis, dos quais
destaco: uma discursividade temporal articulada (AGAMBEN, 2012), algumas vezes,
pela proposta temática da obra (inventio), outras, seu vínculo com determinado gênero e estilo
musical (poética), disposta em partes (dispositio) elaboradas e cuidadosamente arranjadas
(TARLING, 2005). Além disso, ao “acontecem” no tempo e no espaço, logo, em uma instância
e historicamente localizada, palavra e música carregam consigo os modos ou disposições
emotivas3 de quem, ou da maneira como foram produzidas. Arriscaria dizer que estas intenções
também podem ser encontradas no gesto da escrita (ZUMTHOR: 2014, p. 71), seja de uma
determinada língua ou seja em uma determinada modalidade de escrita musical.
Ao vivenciarmos uma situação de performance, e ao deixar-nos levar por seu desenrolar, em
uma coparticipação ativa, é como se ali estivéssemos sintonizados, ou sincronizados, a uma
“espécie de afinação interior pelo mesmo diapasão” (VIEIRA DE CARVALHO, 1999, p. 24).
Nesse sentido, emoção e percepção, quando nos colocamos em situação de “expectador”, trazem
consigo uma plêiade de processos “psicofisiológicos” (cf. SPINOZA, 2013; JAQUET, 2011),
onde mente e corpo são uma totalidade e, ao (re)agirmos não estamos sendo apenas passivos
Além disso, também parece que, apesar de sua indefinição semântica, a música, também inaugura
mundos, pois articular redes de relações significativas constrói seu sistema de organização sonora
e sua estrutura: modos de ser e fazer, ou seja, o ser humano, “é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu”, e a cultura sãos “essas próprias teias” (GEERTZ, 2008, p. 4).
A partir dos séculos XVI, com a nova concepção humanística renascentista (Cf. OLIVERIA,
2011; BARTEL, 1997; CIVRA, 1991), o conceito de “música poetica” e sua aproximação com
a retórica, ganhou uma dimensão que ajudou a mudar o rumo da produção musical para os
próximos séculos.4 A noção de música poetica, associada, sobretudo, a adequação entre gênero
e estilo, e a de música retorica, calcada em formalização discursiva, visaram principalmente
persuadir a recepção pelo efeito comocional por meio de “afetos tipificados” (VIEIRA de
CARVALHO: 1999, p. 122). Assim, essas diretrizes adentraram de modo enfático o discurso
musical, em especial após o século XV, acentuando-se de maneira gradativa nos séculos
seguintes, tendo alcançado seu auge no século XVIII e, partir de então, esmorecendo, mas não
ao ponto de desaparecer completo ao longo do século XIX. E acredito que tendências retóricas
continuem vivas, mesmo que em usos completamente diverso nos dias atuais5.
Não obstante as dificuldades semânticas associadas à arte dos sons, é certo que uma tendência
poético-retórica tem orientado a “representação afetivo-musical” – seu conteúdo, forma e efeito
comocional – há séculos. Nas obras musicais produzidas, sobretudo, entre os séculos XVI e
XVIII, elaborações calcadas em formalizações retóricas são copiosas: preocupações com temas
musicais (inventii); disposição e reelaboração temática dentro da obra (dispositio); elocução
(elocutio) apropriada, com a inclusão de ornamentação (decoratio) adequada ao gênero e ao
Nesse entendimento, assim como nós somos linguagem, esta que nos possibilita a construção de
códigos e a elaboração de uma língua, somos também o modalismo, o tonalismo, o serialismo,
ou um poética aleatória... E à medida que realizamos ou ouvimos obras musicais elaboradas
nesses sistemas ou modos de articulação que, como a língua e/ou linguagem, nos transcende, se
no abrimos interiorizamos e nos dispomos a escutar – ou habitar – uma determinada construção
sonora, que acontece como um “evento”, tornamo-nos a música que não está simplesmente fora
de nós, mas conosco, e “em” nós (LIMA, ob. cit. p. 194), permanecemos como que “suspensos”
na linguagem musical. E como sintetizou Giorgio Agamben:
SOBRE A STIMMUNG
A palavra Stimmung, como destacou o filósofo Giorgio Agamben, é formada a partir do radical
Stimme, que possui o significado de voz e se relaciona, como indica essa relação, com a esfera
sonora ou acústica (AGAMBEN: 2015, p. 72). Nessa compreensão, voz ou vocalização, formam
o centro do pensamento sobre a linguagem. E, como destaca em sua interpretação,
Deste modo, segundo Giorgio Agamben, o ser humano somente pode se realizar existencialmente
e socialmente quando se encontra em um mundo, no aí, em um local, numa instância, em algum
momento, em uma temporalidade, ou historicidade. É nesse limite ou limiar entre ser humano e
mundo, e sempre em uma disposição emotiva, que ele pode realizar-se como ser humano, logo,
em uma fusão de horizontes entre o exterior (mundo) e o interior (sua disposição), mesmo que
seja em uma relação conturbada ou “dissonante”. Sendo assim, reiteramos, é por buscar um
lugar no “mundo” através da linguagem, que o ser humano pode experimentar os “sentidos”
como “afetos” e “ter sensibilidade para aquilo que se manifesta na afecção”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que ainda necessitemos debater de modo longevo e aprofundado a afirmação de
Friedrich Nietzsche sobre a “essência retórica” de toda língua, um sistema de organização
“rítmico-sonoro” (AGAMBEN, 2012) parece aproximar a palavra e música. Nesse sentido, o
que nos chega aos ouvidos, ou por ouvidos e olhos, no caso de uma performance musical ao vivo
ou transmitida por imagens registradas, nos toca porque nos relacionamos com “um” mundo,
ou mundos possíveis, através também das afecções que nos advém (SPINOZA, 2013), que nos
afetam e alcançam nosso corpo, pois “é sempre pelo corpo que entramos em contato com a
realidade exterior” (PEIXOTO JUNIOR, 2013). Logo, como sintetizou Marilena Chauí a partir
de uma leitura muito apropriada de MERLEAU-PONTY, somos uma “consciência encarnada
num corpo” (CHAUÍ, 2011).
Desta forma, os modos de produção de uma obra musical, suas disposições e intenções, o ethos
e o pathos, estão presentes nessa produção ou reproduções interpretativas. E mesmo numa
partitura tradicional, bem como nos códigos da escrita de uma língua ou sistema musical,
intenções ou “dicas” de disposições emocionais estão minimamente grafados ou sugeridos; e,
ainda que não estivessem, a realidade discursiva, logo, interdiscursiva, de uma língua ou obra
musical, encarregar-se-ia de colocar em “cena” suas disposições emotivas, suas Stimmungen.
Portanto, e por mais que as convenções formais retórico-musicais ou tópicas estejam “fora”
de nossa prática conceitual cotidiana, uma Stimmung está presente no conteúdo de toda obra
musical, atuando em sua realidade sonora; mesmo numa “simulação” por meio de uma leitura
silenciosa. E uma vez mais retroagindo à epígrafe que encabeça este texto sobre a “natureza”
retórica de toda língua (sistema) e se, de fato, “el linguaje mismo es el resultado de artes puramente
retóricas” e se estamos-somos linguagem, ou se experimentamos o mundo como linguem, como
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3 Emoção, em nosso entender, “são relações afetivo-expressivas, relacionando aspectos psicológicos e fisiológicos”
e “resultam de alterações sincronizadas e inter-relacionadas desses componentes [percepção, sentimento] em
resposta a estímulos que o indivíduo avalia como tendo algum significado relevante.” (CEZAR, Adieliton Tavares,
JUCÁ-VASCONCELOS, Helena Pinheiro - Diferenciando sensações, sentimento e emoções: uma articulação
com a abordagem gestáltica. In Revista IGT na Rede, v. 13, no 24, 2016. p. 4 – 14. Disponível em http://www.
igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526); Mário Vieira de Carvalho (1999, p. 93) assim sintetiza: “parece pacífico que
os processos psíquicos emocionais acompanham os cognitivos e vice versa”; já António Damásio (2015, p.
32), assim escreve: “Minha teoria é que nos tornamos conscientes quando os mecanismos de representação
do organismo exibem um tipo específico de conhecimento sem palavras – o conhecimento de que o próprio
estado do organismo foi alterado por um objeto – e quando esse conhecimento ocorre juntamente com a
representação realçada de um objeto.” E algumas páginas à frente, arremata: “A consciência começa quando os
cérebros adquirem o poder – o poder simples, devo acrescentar – de contar uma história sem palavras” (idem,
p. 36). A fim de ampliar essa discussão, consultar também: DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer
e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004
4 Acredito que seja desnecessário desenvolvermos uma discussão sobrea a importância das experiências na
expressão da palavra durante o século XVI, as experiências com madrigais (o expresso verborum), e o que
representou, para a futura cantata, para ópera, a “favola in musica”, e para o oratório, e que possibilitaram
uma desenvolvimento dramático-musical jamais visto até então. A fim de empreender uma pesquisa sumária,
consultar GROUT, Donald Jay. A history of western music. J. Peter Burkholder, &th ed. New York: W. W.
Norton & Company, 2006.
5 A fim de complementar essa discussão, consultar HANSEN, João Adolfo. “Barroco, neobarroco e outras
ruínas”, vídeo onde defende a continuidade da retórica sobre outras formas e usos, mas que se localiza no cerne
da língua – acesso em 01/04/2021 https://www.youtube.com/watch?v=JGYNjYUEJfo&t=39s. Além disso, a
epígrafe desse texto, que perpassa essa discussão, também enfatiza a estrutura retórica de toda língua e aponta
para a “essência estrutural” metafórica, ou representativa, que a conforma - NIETZSCHE, Friedrich. Escritos
sobre retórica. Madrid: Editorial Trotta, 2000.
7 Music’s contexts are many, probably infinite. Music resembles myth, animates religious ritual, and facilitates
movement and dance. It is an agent in music drama and plays a catalytic if not constitutive role in film and
other forms of visual narrative. Music frequently transgresses borders and seems uniquely placed among the
arts to do so. Perhaps the most basic of these associations, however, is that between music and natural language.
Kofi AGAWU. Music as Discours. NY: 2008, p. 15.
8 Como discurso, entendemos uma articulação de visões de mundo, histórica e socialmente produzidos, que
possibilitam a produção de sentidos, operando entre os níveis linguístico e o extralinguístico (cf. Brandão:
2004, p.11). Sendo assim, o discurso “é um sentido construído no processo de interlocução (opõem-se a
língua [sistema] como mera transmissão de informação). Logo, o discurso nunca é “fechado em si mesmo”
e, tampouco, dominado pelo do “locutor” e “aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar
social do que se diz, para quem se diz, em relação a outros discursos” (ORLANDI, apud. BRANDÃO, 2004, p.
106)
O
tema deste artigo segue o convite que me foi feito pelo Programa de Pós-graduação
em Letras da Universidade Federal de Ouro Preto (POSLETRAS) para sua aula
inaugural. Tema sob medida para uma aula da nossa querida Eneida Maria de Souza
e um pouco menos para mim, que estou há algum tempo afastada das discussões sobre
modernismo e Macunaíma, embora sempre em embate com a questão da memória. Penso que
a ideia de uma aula magna está profundamente imbricada na noção de memória, por se tratar,
em última análise, de uma comemoração da instituição onde é ministrada – ela comemora a
existência da universidade e, mais especificamente, da pós-graduação. Tem um caráter oficial,
formalizado. Constitui um ponto estabelecido do calendário letivo, tem o sentido de dar início
a mais um período letivo, quase se poderia dizer que tem uma existência pro forma. Mas seu
sentido assenta-se na intenção de motivar e trazer reflexões aos alunos que, sendo nascidas
da trajetória específica da palestrante, não seriam contempladas pelos seus professores do
curso regular. Insisto, porém, que, no mais fundo de sua razão de existir está a reverência à
universidade como instituição. Lembremos o verso de Mário de Andrade, do poema Quando
eu morrer, no qual ele faz uma espécie de testamento e distribui as partes do corpo pelos vários
marcos da cidade de São Paulo, um deles sendo “o joelho na universidade, saudade...”. Essa
reverência marca o reconhecimento da instituição como monumento ao saber. O poema é de
meados dos anos 40. A universidade era a USP, fundada 10 anos antes. Sabemos todos que a
USP retribui a reverência, e que Mário é a grande estrela do Instituto de Estudos Brasileiros,
que detém seu acervo.
A data de criação da USP, 1934, não é um marco de destaque na nossa cultura, como o é a data
da Semana de Arte Moderna, de 22, cujo centenário comemoramos agora. (Nem se costuma
lembrar a UFMG como uma universidade que surge sete anos antes da USP). Mas podemos
argumentar que a USP nasce de uma intensa integração com o movimento modernista, no
sentido de que nasce de um impulso de modernização do saber. Mário de Andrade avalia, vinte
anos depois, a Semana e o período heroico do modernismo, como responsáveis por introduzir
no meio cultural brasileiro “o direito à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística
brasileira; a estabilização de uma consciência criadora nacional” (1942). Se eliminarmos as
palavras “estética, artística e criadora”, teremos um programa para a universidade brasileira
como um todo. O papel da universidade na canonização do modernismo não é tão difícil de
determinar, já o papel do modernismo na instituição de uma universidade moderna no Brasil
1822
1922
1972
2022
vemos primeiro o ano da proclamação de independência, um pouco apagado com relação às demais.
Duzentos anos depois, essa efeméride parece bem pálida diante das comemorações generalizadas
dos cem anos da Semana, mostrando uma muito maior valorização da independência criativa
proclamada pelos modernistas do que da constituição do Brasil como nação soberana. Em
1972, passados 50 anos de 22, ocorreram ruidosas comemorações oficiais do sesquicentenário
da Independência, mas, marginalmente, a força das ideias modernistas revelava-se então em
grande exuberância na prevalência de um novo movimento insurgente, a Tropicália, apesar da
repressão da ditatura militar. A eclosão do movimento tropicalista ocorrera no fim de 1967, mas
cinco anos depois Caetano Veloso e Gilberto Gil estão em plena atividade e são reconhecidos
como duas das mais vigorosas figuras da cena cultural brasileira. O emblemático ano de 1968,
ano de revoltas estudantis por todo o mundo e de acirramento dos confrontos políticos entre
exército e manifestantes no Brasil foi o ano de incorporação do acervo Mário de Andrade ao IEB
da USP. Em 1972, empreende-se a edição da coleção de obras de Oswald de Andrade. Não se
via qualquer contradição entre o apoio público às comemorações do modernismo pelo governo
militar, simultaneamente às comemorações oficiais do sesquicentenário da independência. Isso
parece, a princípio, um sintoma de tentativa de oficialização da memória do modernismo, como
forma de neutralizar essa memória. No entanto, revolver a herança modernista não poderia
deixar de trazer à tona a ebulição criativa que os participantes da Semana produziram na
época, provocando respostas nada oficiais por parte dos artistas e críticos dos anos 70. Se as
comemorações oficiais concentraram-se basicamente em São Paulo, umbigo do movimento, em
Minas aconteceu uma avaliação importante do modernismo durante o Festival de Inverno da
UFMG, em Ouro Preto. Em meio à festa que era o Festival de Inverno (sou testemunha ocular
da história), promoveu-se um curso sobre o modernismo que depois se transformou em um
livro já clássico sobre o movimento iniciado em 22. O curso consistia em uma série de palestras
a cargo de grandes nomes da intelectualidade brasileira, grandes leitores da cultura brasileira,
Nessa configuração, é como se todo grande acontecimento nacional passasse a fazer parte de um
percurso ou decurso impulsionado pela Semana de Arte Moderna que, em lugar de se confinar
no tempo, desenvolve-se indefinidamente “contaminando”, talvez, ou dando sentido ao futuro,
como o dá ao passado.
A memória coletiva se revela então como um patrimônio “genético” de uma comunidade6, de
uma sociedade, de uma cultura. Um patrimônio que pode ser ativado a qualquer momento e,
exemplarmente, como sugere Walter Benjamin, nos momentos de perigo. A literatura desde
sempre impulsionou a memória coletiva, e sempre foi reconhecida como esse patrimônio sem o
qual a comunidade humana não pode sobreviver. Já a universidade, apesar de sua carga simbólica,
nem sempre é reconhecida como equipamento de sobrevivência. No momento histórico
nacional em que nos encontramos, entretanto, as ameaças que pesam sobre a universidade
brasileira nos despertam para os terríveis efeitos sobre a sociedade de uma destruição desses
espaços de promoção do saber. Talvez diante dessas ameaças, pareça-nos enfim essencial criar
uma memória da universidade, para além de uma história pacificada.
Neste mês de abril de 2022, o vice-presidente da República, o general Mourão, perguntou qual
seria o sentido de revisitar a tortura e morte dos opositores do regime militar dos anos 60 e 70,
já que todos os envolvidos estão mortos (e, com sorte, até enterrados). Mortos e enterrados
estão também os modernistas de 22. Macunaíma transformou-se em estrela e subiu ao céu. No
entanto, permanecem vivos no nosso presente como hão de estar em nosso futuro.
A cínica pergunta do general torna manifesta a verdade contida na sentença de Walter Benjamin:
“Também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Do mesmo modo, o poeta
italiano Giuseppe Ungaretti afirma, no poema abaixo, estar toda a vida dos vivos pendente de
sua capacidade de ouvir os mortos:
ÁVILA, Myriam. Alice through Macunaima’s looking-glass. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
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Notas
1 Texto apresentado no ICHS-UFOP em 26 de abril de 2022.
2 Myriam Ávila -
3 As palestras foram reunidas por Affonso Ávila no livro O Modernismo (Ed. Perspectiva, 1975).
Alice da Palma1
A
na Hatherly e Salette Tavares, duas multiartistas, foram importantes nomes da arte
portuguesa desde a década de cinquenta. Ambas participaram, tornando-se expoentes
de maior importância e nomes incontornáveis, do movimento português de Poesia
Experimental (PO-EX), vanguarda experimental dos anos 1960. As únicas mulheres2.
Salette Tavares nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique, em 1922,
mudando-se para Sintra, Portugal, aos onze anos. Graduou-se em Ciências Histórico-Filosóficas
pela Universidade de Lisboa. Leciona Estética na Sociedade Nacional de Belas Artes e na AR.CO.
Além disso, publica artigos teóricos na revista Brotéria. Em 1957, publica o seu primeiro livro
de poemas, Espelho Cego, no qual já se pode observar o seu interesse crescente pela exploração
do texto em seu caráter visual, i.e., enquanto composição gráfica. Poesias feitas para serem lidas
e, também, vistas, em igual medida. Ela introduz, nesses seus poemas inaugurais, desalinhos,
espaçamentos, intervalos e quebras, de tal forma que eles adquiriram uma expressão visual que
os amplia as possibilidades da palavra, desdobrando-a. Em sua investigação das potencialidades
da palavra, Salette Tavares cria um espaço alargado de possibilidades para sua própria atuação:
foi poeta, crítica, tradutora, ensaísta, artista visual, performer etc.
Ana Hatherly nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em 1929. Licenciou-se em Filologia
Germânica pela Universidade Clássica de Lisboa e obteve diploma em técnicas cinematográficas
pela International London Film School. Fez doutorado em Estudos Hispânicos do Século de Ouro
pela University of California, Berkeley. Foi poeta, precursora em Portugal da poesia concreta (o
primeiro poema concreto a ser publicado nesse país, no ano de 1959, é de sua autoria), artista
visual, performer, escritora, realizadora e professora catedrática em Lisboa.
Para este artigo, escolhi cinco obras dessas duas mulheres. De Ana, Margarida ao tear e Le
plaisir du texte , escritas-desenho de A reinvenção da leitura: breve ensaio crítico seguido de 19
textos visuais, publicado em 1975 (pp. 42 e 48, respectivamente). De Salette, Aranha, de 1963,
publicada em seu caderno no primeiro número da revista Poesia Experimental, em 1964;
Aranhão, de 1978; e Borboleta de Aranhas, de 1979.
Aranhas se multiplicam nas sedas secretadas e nas teias tecidas-escritas por Ana e Salette.
*
Aranhas são bichos que produzem fios. Fios que chamamos de seda, seda das aranhas. Todas elas,
se forem mesmo aranhas, produzem suas sedas (algumas chegam a produzir até sete diferentes
tipos de seda!). Essas sedas são produzidas em órgãos específicos, fiandeiras ou fieiras.
Aranha, o bicho que tece, que transforma sua baba em fio e, do fio-baba, tece teias, teias que,
como complexos labirintos3, prendem suas presas e depois as enredam num casulo mortuário
(o casulo é a vida que urge em morte).
(Seria a aranha a um só tempo arquiteto que projeta e constrói o labirinto e o monstro que
devora quem nele fica preso?)
De cada mulher sai um único fio que se estende pela sala, como se elas
fossem aranhas, como se o fio saísse direto das suas barrigas. (...) Elas estão
fiando, e estão presas na teia.
SOLNIT, 2017, p. 52
Etimologicamente, aranha vem do grego arachne, donde originou o latim araneus. Aracne é o
nome de uma protagonista de mito grego, cuja versão mais conhecida foi contada por Ovídio
no em suas Metamorfoses4. Narra o poeta romano que Aracne foi uma tecelã da Lídia 5 cuja
excepcional habilidade para tecer e costurar era admirada até mesmo por ninfas, que iam
contemplar suas belas criações6. Porém, a vaidade da tecelã a levou a se comparar com a deusa
Atena, que, enraivecida, a desafiou. Aracne teceu uma tapeçaria narrando as traições de Zeus,
pai de Atena; e a deusa, por sua vez, tece uma contando os feitos dos seres olímpicos e dos
heróis. Atena, não encontrando defeito no trabalho de sua rival, rasga a tapeçaria. Desesperada
com o ciúme de Atena, a jovem tecelã acaba se enforcando nos fios de sua obra despedaçada.
Atena, então, se apiedada de Aracne e solta os fios que apertavam seu pescoço, fios esses que
se transformam em uma teia; a jovem lídia, por sua vez, metamorfoseia-se em uma aranha,
destinada a tecer eternamente.
TEXTO-TECIDO
No seu estado de dicionário, texto é o conjunto de letras, palavras e frases que se organizam em
começo, meio e fim nos suportes da matéria escrita. Porém, ao despertarmos a palavra desse seu
estado (mudo e solitário) descobrimos que o texto vem de textum que, por sua vez, deriva de
texere, raiz comum de aparentados seus: tecido, tessitura, tecer, têxtil e textura.
Escrever um texto é, então, análogo ao tecer, ou seja, é a construção de uma trama pelo
entrelaçamento de fios. No texto-tecido cada fio alterna-se com os demais em movimentos de
pontos, nós, laçadas que mantêm sua coesão. Assim, cada tecido vai constituir a sua trama em
texturas (uns mais sedosos, outros, ásperos) e espessuras únicas, formando sua própria tessitura.
O texto é tecido, escrever é tecer.
*
SALETTE
Na obra de Salette há três poemas visuais que estão ligados à imagem da aranha: Aranha,
tipografia de 1963; o Aranhão, serigrafia de 1978; e a Borboleta de Aranhas, colagem de 1979.
Aranhão e Borboleta de Aranhas surgem num processo de multiplicação da primeira aranha.
Aranha foi publicada no seu caderno, que tinha como título um sugestivo “Brin Cadeiras”, da
primeira revista da Poesia Experimental 8. Em carta a Ana Hatherly 9, enviada anos mais tarde
10
, Salette explica como surgiu a imagem da aranha:
Devia ter sido Carnaval há pouco tempo e estava ali uma aranha dos meus
filhos, que deu origem a uma série de desenhos que guardo e penso publicar.
Daí resultou a aranha, que todos conhecem feita em letraset.
A princípio, inclusive, ela teria sido feita manualmente por Salette, i.e., caligraficamente, como
ela mesma conta ainda nessa carta a Ana Hatherly:
Não temos registro, porém, dessa primeira versão da Aranha. Temos, isso sim, a versão em
tipografia publicada na revista.
Nela, a forma da aranha é desenhada a partir de um jogo visual e sonoro feito com palavras:
“arre” funciona como a cabeça (em tamanho maior e circunscrito entre parênteses deitados,
na horizontal) e as patas da aranha (em tamanho menor, repetida nas patas 4, 5 e 6 vezes);
“arrrranha” constitui-se como o corpo do animal, esticada numa vertical; “arrranhisso”, na
horizontal (posicionamento mais tradicional das palavras no espaço da folha) e “arranh /
aço”, que se dobra formando uma espécie de L invertido ou foice, formam linhas da seda desta
estranha aranha, fios que prefiguram uma teia futura, talvez. A aranha está, então, a tecer.
Ela ocupa um lugar central na folha branca, deixando um vazio propositado em seu redor. O
som da aranha que fia sua seda e tece sua teia reverbera-se no espaço: rrrrrrrr ssssss. Escrita,
forma, som interligam-se e afetam-se nessa brin-cadeira de Tavares, ela mesma a aranha-mãe
que nos captura em sua teia – somos nós as suas presas.
Aranha, que brinca e captura seu observador-leitor, trabalha importantes noções dentro da
poética de Salette Tavares: a escrita, a forma, o visual, o sonoro, o lúdico. Assim, não é de
espantar que Tavares a tenha multiplicado, replicado e/ou reproduzido. E nessas reproduções
de sua aranha inicial, Salette opera uma multiplicação poeticamente programada. A aranha
metamorfoseia-se em outra aranha e numa borboleta. Surgem assim Aranhão e Borboleta de
Aranhas.
Em Aranhão, utiliza diversas escalas e letras em outline (apenas o contorno), criando um
emaranhado de diferentes texturas na folha. A forma inicial da aranha permanece, mas ganha
em corpo e espessura, a trama avoluma-se. Uma aranha maior e peluda é formada, tendo em suas
patas diversas aranhas menores, iguais à primeira de 1963. Aquela talvez fosse uma pequenina
ainda, agora metamorfoseia-se em tarântula. Quase pode-se sentir as cerdas que cobrem seu
corpo na pele, ora roçando – arrrranha –, ora acariciando - arrranhisso – e, por fim, a picar –
arranh /aço.
Borboleta de Aranhas é uma colagem de diversas Aranha(s). O que antes eram os fios de seda, aqui
tornam-se antenas. Seus corpinhos (onde distinguíamos cabeça, corpo e pernas) dispostos na
diagonal formam as asas do inseto, seus padrões e escamas. As asas de borboletas são compostas
por escamas sobrepostas que servem para camuflagem e também isolamento térmico. Aqui as
escamas são aranhas. Aranhas que agora tornam-se mecanismo para voar. E o espaço em volta
da aranha-borboleta vibra, em ondas produzidas pelas asas que estão prestes a bater.
ANA
Ana, apesar de sua aracnofobia – sempre tive medo de aranhas – , traz a imagem da aranha para
o centro de sua poética, seja em acepções mais literais, mais líricas e até mesmo gráficas. Ela
transformou-se nessa “aranha especial” a tecer “redes-escritas” em diversos momentos, como
em Margarida ao tear e Le plaisir du texte , escritas-desenho de A reinvenção da leitura (pp. 42 e
48, respectivamente). Duas glosas visuais, a primeira do poema Gretchen (am Spinnarade allein)
11
– comumente traduzido para o português como “Margarida ao fiar” ou “Margarida à roca de
fiar” – do autor alemão Goethe 12; e a segunda do livro homônimo de Barthes.
Em Margarida ao tear é o nome da personagem, Gretchen, repetido por Ana no centro da
composição, que ganha destaque, virando uma espécie de coluna vertebral do texto. O nome,
repetido sozinho nessa coluna, reverbera o título do poema não somente no nome da personagem,
mas também na condição em que se encontra Gretchen frente à roda de fiar, sozinha – allein. No
topo, a cabeça – “meu pobre senso / se desatina / a mísera alma / se me alucina” 13 (GOETHE,
2004, p. 273) – acima da coluna, lembra a imagem de uma aranha com suas várias pernas de
onde se desgarra o nome da mulher atormentada pela paixão – “[...] em igualmente provisórias
patas que singularmente / davam origem a uma excrescência vertical e / rendilhada uma espécie
de cauda aberta rígida que / aqui se chamavam singularmente costas” 14 (HATHERLY, 2001,
p.137). Desgarra-se e escorre vertical, como a baba que vira fio para logo abaixo convulsionar-se
em uma teia espessa e caótica – se me alucina – de onde saem novos fiapos até uma pequenina
aranha sobre um solo de escrita na horizontal. Nesse movimento vertiginoso, Ana descreve
visualmente o movimento de queda da personagem, queda em pecado – ela afasta-se de Deus
para deitar-se com o amado – e também em loucura – passa a sofrer de alucinações. Ilegíveis,
a não ser por algumas palavras (como o nome Gretchen) e sinais (como as interrogações e
exclamações – que também elas descrevem o tumulto interno da personagem, da dúvida – ? ?
? – ao cair – ! ! !) os versos de Goethe se deixam adivinhar nesse movimento.
Ainda mais ilegível é a escrita-desenho de Le plaisir du texte, em que o texto glosado se torna
uma trama de garatujas fibrilares, um tecido vibrátil sobre o qual passeia uma aranha espessa
e peluda. Se olharmos bem, são as próprias aranhas, fiandeiras, que secretam (e aqui nos
interessa também a secreção como segredo) o texto sob o texto tramando-lhe a textura e nela se
dissolvendo. Já não importa a palavra ou o significado, mas a própria escrita. O texto barthesiano
se transforma visualmente em hyphos, e “hyphos é o tecido e a teia de aranha” (BARTHES, 2015,
p. 75). E Ana se transforma na aranha, a tecelã Aracne metamorfoseada, e se impregna no tecido
– se dissolve, como escreveu Barthes – , deixando o vestígio de seu trabalho de fiar (ou desfiar)
o texto de outrem, seu gesto de glosa.
Ana Hatherly e Salette Tavares metamorfoseiam-se em aranhas, como ocorrera com Aracne,
mas aqui não há castigo, só experimentação e criação. Tecelãs de escritas-imagem, criam através
do gesto de escrever-tecer, desescrever-destecer, escrever desescrevendo, tecer destecendo.
Escorregam as estruturas textuais em imagem. Brincam com quem olha-lê, apelando aos
sentidos, criando sons e texturas. Tecem suas teias sobre nós, capturando-nos. E nesse casulo
de escrita (palavras, letras, linhas, fios) nos recriamos e transformamos. Trata-se mesmo de
metamorfose: reinvenção, recriação da e na leitura ativa. Viramos nós também aranhas.
A metamorfose está completa.
*
Este texto é também tecido.
Quem escreve, tece. Quem analisa, destece. Análise vem do grego aná + lysis, indicando um
gesto de afrouxar ou soltar, daí, desfiar.
Referências
ALVES, Margarida Brito e PRIOR, Patrícia Rosas. “Os diálogos criativos de Salette Tavares”. In: Revista-Valise,
Porto Alegre, v. 6, n. 11, ano 6, julho de 2016
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad.: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015.
FLÜSSER, Vilém. A Escrita: Há futuro para a escrita?. Trad. M. J. da Costa. São Paulo: Annablume, 2010.
GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: uma tragédia. Trad. J. Klabin Segall. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2004.
_______________. “A idade da escrita: poema-ensaio”. In: Colóquio Letras, n. 99 (Setembro 1987). Disponível
em: <http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=99&p=43&o=p>.
OVÍDIO, Publio N. Metamorfoses. Trad.: João Ângelo O. Neto. 1ª edição, São Paulo: Editora 34, 2017.
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Cultrix, 2017.
TORRES, Rui. Salette Tavares: desalinho das linhas (catálogo). Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2010.
<https://www.po-ex.net/>
<http://gulbenkian.pt/>
Notas
1 Alice da Palma - Professora substituta do Departamento de História e Teoria da Arte da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Crítica, Curadoria e Teoria da Arte pela Faculdade de Belas Artes
de Lisboa (2021), bacharel em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2017). Pesquisa
as relações entre imagem e escrita, com foco na produção de artistas mulheres.
2 O grupo de poesia experimental português, PO.EX, contava com Ana Hatherly, Salette Tavares, E. M. de Melo
e Castro, António Aragão, Herberto Helder, José Alberto Marques e Liberto Cruz. O grupo publicou duas
revistas, intituladas Poesia Experimental, em 1964 e 1966, em que era patente a influência de Mallarmé, Pound,
Cummings e dos caligramas de Apolinalire. Ana Hatherly expandiu o interesse do grupo também para os
textos-visuais do Barroco. PO.EX é um acróstico de Poesia Experimental criado por E. M. de Melo e Castro
para a exposição PO.EX/80 (Galeria Nacional de Arte Moderna, Lisboa/1980).
3 Existe, inclusive, uma espécie de aranha que recebe o nome de “aranha do labirinto” (Agelena labyrinthica).
Esta espécie fia uma teia branca e densa com uma zona tubular (onde ela se esconde) e que é aberta em ambas
as extremidades.
8 O primeiro número da revista Poesia Experimental, organizada por António Aragão e Herberto Helder, foi
lançada em 1964. Teve ainda um segundo número, publicado em 1966, organizado por António Aragão, E. M.
de Melo e Castro e Herberto Helder.
12 Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832, escritor e estadista alemão, considerado um dos maiores nomes da
literatura alemã e do Romantismo europeu.
13 No original, em alemão, lê-se: “Mein armer Kopf / Ist mir verrückt / Mein armer Sinn / Ist mir zerstückt”.
Olga Kempinska1
N
o presente artigo, busco compreender o alcance intercultural da noção de concretude
da palavra poética em sua relação com a representação das emoções humanas. Ao
buscar aplicar a teoria brasileira à leitura poética dos textos da escritora sulista Claudia
Emerson, procuro também estabelecer uma relação entre a noção de concretude e a compreensão
do silêncio. Elaborada no Brasil a partir dos anos 50 como um desdobramento da abordagem
formalista do texto literário que atribuía a preponderância à materialidade da linguagem,
a teoria concretista é, de fato, contemporânea do influente trabalho estruturalista de Roman
Jakobson sobre o conceito da função poética. Ao mesmo tempo, a abordagem teórica brasileira
ultrapassa a proposta estruturalista, assinalando desde o início de sua discussão conceitual a
importância da abertura cultural à alteridade, e investigando os textos em línguas estrangeiras,
assim como as poéticas provenientes de diferentes contextos. Assim, a noção de concretude
pode ser compreendida mais como um motivo de questionamento do que como um conceito
estável, pois ao longo de quase duas décadas seu sentido sofre significativos deslocamentos, que
também tendem a se tornar pretextos de diversos experimentos poéticos.
O poema de Claudia Emerson – um dos vários, do livro Impossible bottle , que utilizam a
expressão “metástase” – corresponde à dificuldade de se nomear as emoções humanas. Surge,
com efeito, o vocábulo sorrow, “aflição”, uma emoção que estranhamente se destaca do “corpo”
da emoção, sendo experimentada ao lado, sugerindo a diferença entre o corpo social e a carne
sensível, discutida por exemplo pela antropologia do choro. Como tentarei mostrar na presente
interpretação, a poética de Emerson valoriza a metonímia, buscando destarte reformular a
articulação da relação entre o corpo, a emoção e a linguagem, e valorizar o silêncio.
a February-blank sky
the bird deviant
A tarefa da tradução discursiva da experiência surge como um “hino da sombra”, do livro Claude
before time and space. A metonímia desafia, com efeito, a traduzibilidade, fazendo com que se
vislumbre a concretude dos contextos e dos fatos, que independem das palavras.
Sendo uma mudança de nome de um objeto ou de um conceito para o nome de um outro objeto
ou conceito, e dado que a relação concreta entre esses dois objetos existe no mundo real, e não
apenas na linguagem, a metonímia coloca o problema da relação entre a linguagem e a realidade,
apresentando não raramente as expressões que parecem de certa forma “prontas”.
O problema da traduzibilidade já havia sido levantado no livro Figure studies, na representação
das línguas e de seus deslocamentos. A traduzibilidade é, de fato, sempre limitada, dependendo
também dos critérios descritivos e normativos das teorias da tradução. O que, de fato, pode ser
traduzido? As palavras? Os textos? As experiências? As culturas? As línguas em deslocamento
evocadas no poema apontam para a ilusão da possibilidade de se transportar os sentidos por
meio de “equivalências”, pois a incomensurabilidade das línguas corresponde à distinção entre
o sentido e a compreensão, ou seja, a interpretação, indissociável da interpretação do todo de
um contexto:
behind her.
(…) (EMERSON, 2008, p. 10)6
Ainda que seja por vezes associada nos primeiros textos, dos inícios dos anos 50, à mera
transposição gráfica da oralidade ou do movimento do pensamento, a concretude não pode
ser reduzida a um simples desenvolvimento das aspirações simbolistas remanescentes da busca
pela sinestesia baudelairiana, enraizada nos anseios cratílicos. O trabalho teórico de Augusto de
Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos pode ser, de fato, descrito como uma procura pelo
sentido da concretude, que ultrapassa também o desafio vanguardista, da ordem ideográfica à
ordem gramatical, que encontrou sua realização nas obras futuristas e nos caligramas relacionados
mais às práticas da caligrafia do que à escrita enquanto tal. Assim, a importância dessa pesquisa
pela concretude corresponde no pensamento dos concretistas brasileiros ao recurso experimental
aos textos dos mais diferentes âmbitos culturais. Com o passar do tempo, a concretude visa
criticamente a linguagem, sobretudo em seus aspectos de autonomia em relação à realidade.
Valorizando a ordem metonímica contra a metafórica, que pareciam ser conciliadas no conceito
da função poética, o concreto passa a significar uma relação que preexiste a sua configuração
linguística, indagando destarte a iminência da realidade. Poder-se-ia dizer que o movimento
concretista chegou a esgotar os apelos do niilismo metapoético da linguagem, atravessando o
caminho do entusiasmo à desconfiança e acabando por criticar o “clima” do poema.
Desde que não reflita expressamente sobre meu corpo, a consciência que
dele tenho é imediatamente significativa de uma certa paisagem à minha
volta, como aquela de um certo estilo fibroso ou granuloso do objeto que
me é dado pelos meus dedos. Da mesma maneira, a palavra que profiro ou
escuto é pregnante de uma significação legível na própria textura do gesto
linguístico, a ponto de uma hesitação, uma alteração da voz, a escolha de
uma certa sintaxe, ser suficiente para modificá-la, sem, no entanto nunca
estar contida nele. (MERLEAU-PONTY, 1975, p. 323)
Na visão da linguagem elaborada por Maurice Merleau-Ponty, o silêncio corresponde aos vestígios
daquilo que foge à expressão linguística, sendo destarte comparável à memória tátil dos objetos
quando não podemos segurá-los, e menos ainda guardá-los. A realidade fenomenológica almejada
pelos poetas concretistas surge, assim, como marcada pela negatividade, correspondendo com
efeito à experiência de não ter, e de não ter tido, o que a afasta do âmbito da melancolia, a saber,
do discurso do paraíso perdido. Nesse sentido, parece duvidoso poder ter a linguagem, e com
esta, a impressão de que ela se exprime totalmente, ou seja, sem lacunas. Mas o silêncio mantém
uma relação justamente com esse impossível todo da linguagem. O sentido aparece na beira
dos signos, no intervalo das palavras, nas dobras linguísticas, atualizando sempre o desejo da
totalidade: o de tudo dizer e de se dizer o todo. Com isso, a frases parecem sempre movimentar
o todo da linguagem, e é talvez justamente dessa conflagração iminente que surgem o medo do
discurso, o horror da linguagem, a catástrofe do dizer e o amor do silêncio:
A partir dessa visão da linguagem, que busca descrever a experiência da palavra, a linguagem
em nós, é possível considerar também a ausência de um signo (lacuna) não como um vão na
realidade e sim como um signo:
Uma das interpretações possíveis dos poemas de Emerson consistiria então no jogo com o vazio
das lacunas, a saber, nas propostas concretas de seu preenchimento. Uma outra leitura convida
aos experimentos rítmicos, que acentuariam a descontinuidade dos fluxos discursivos, pois a
pausa corresponde também à escuta e à atenção ao silêncio do outro, o próprio diálogo sendo
nesse sentido um movimento de desdobramento, ultrapassando a oposição tradicional entre o
silêncio e o ruído. A linguagem parece também às vezes ácrona, deslocada no tempo histórico e
no tempo do sujeito:
A metonímia se volta contra a atitude que Merleau-Ponty chama “linguageira”, uma forma de
poder linguístico, na qual as palavras do falante o surpreendem, fazendo com que descubra seu
pensamento, como se a linguagem o traduzisse.
Ao estudar o contato do sujeito com a língua por ele falada, a fenomenologia descreve também
as lacunas que surgem, como acasos ou acontecimentos, no sistema sincrônico. A perda da
concretude das lacunas, ou seja, a impressão da universalidade, aparece na situação da
comparação com uma língua estrangeira, e também na tradução. Para que haja a concretude
a fenomenologia propõe o retorno à palavra, que pressupõe a recriação no interlocutor de um
certo vazio inerente à intenção de significar:
Apesar da força devastadora das ideologias que buscam intervir no lugar do silêncio,
transformando-o em um não-dizer opressivo – a censura sendo um dos melhores exemplos
do uso perverso do silêncio –, este preserva na poesia concreta algo do sentido de nosso “outro
lugar”, inatingível e sempre procurado, intraduzível, descrito como “felicidade” ou como a outra
face da superfície. Garantia da espiritualidade humana em seus aspectos reflexivos, ou protetor
da subjetividade como um conforto psíquico, o silêncio constitui uma das mais eficazes críticas
da linguagem em seus aspectos invasivos, agressivos e cruéis, pois o silêncio da palavra concreta
coloca também em questão a injunção a significar característica das abordagens teóricas da
linguagem das últimas décadas, marcadas pelo imperialismo da psicanálise.
Referências
ALLAN, Kathryn. Metaphor and Metonymy: A Diachronic Approach. Chichester: Wiley-Blackwell, 2008.
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta. Textos críticos e
manifestos, 1950-1960. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.
EMERSON, Claudia. Figure studies. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2009.
EMERSON, Claudia. Impossible bottle. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2015.
EMERSON, Claudia. Claude before time and space. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2018.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos. Os Pensadores XLI. São Paulo: Abril, 1975.
ORLANDI P., Eni. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
2 tarde demais aqui talvez para alguma / intervenção diz o médico // fala a sua tela e não a todos //
vocês isso // se tornou suas palavras não imaginadas / agora mas reais e // sua aflição é extática algo
/ que você não sente // você ouve sua própria voz a uma distância / no arbusto de abelia // fora em casa
um Deus sem voz / chamas ali abelhas tardias // uma queima lenta milagre de um tal verde ali / ali
está você
3 não há erro essa rede se estende / quase até o invisível // na luz encurralada a porta da varanda com tela
/ aberta o ano todo a entrada // do mundo a descoberta / da carriça o acidente // a rede engrossa a
aranha / merceeira seu lindo avental // filamento porções de ar / adormecida e atada e você // aprova
de alguma forma o comércio / como se de acordo // com a facilidade da hábil volta a alegria // tão veloz
excisão
4 ali está você no ver / primeiro seu traje // recebido do antigo V / uma invenção contra // o pálido céu de
fevereiro / o pássaro desviante // albino aquele transformado / na silhueta recortada // como se em relevo
no voo a mesma / perfeição como a dos // em sua volta manchas à vista / alegria de não ser visto // por
um instante imutável dentro / de seu cérebro
5 isso isso um hino / de sombra está aqui minha própria / tradução rápido / rápido um léxico pronto
/ betrothal sempre foi assim a solda / você está farta a ilusão / alugada naquela hora / pode insistir que isso
/ não é real e vai não é real
6 Meias com costura, sapatos delicados, cardigã / todo abotoado até o alto, ela cumprimenta // cada uma pelo
nome quando entram em sua sala / rebeldes, idênticas. Querem o italiano, // o francês, uma professora mais
nova – tudo / menos essa mulher fluente em uma língua // que não viaja – o sul profundo de suas vogais / lento
como a agulha dos minutos no relógio com rumor // atrás dela. (...)
Carolina Tomasi1
N
o ensaio “Os poetas metafísicos”, T. S. Eliot (1989, p. 123), depois de afirmar que os poetas
“devem ser difíceis”, estabelece que “o poeta deve tornar-se cada vez mais abrangente,
mais alusivo, mais indireto, no sentido de violentar – de deslocar, se necessário – a
linguagem em seu significado”. Frederico Barbosa (In: COSTA, 1992, p. 137), em “A tradição do
rigor e depois”, reforça que o texto, em que não se percebesse o trabalho com a linguagem por
meio de “condensamentos linguísticos”, “articulações formais”, “descobertas originais”, não seria
poesia e sim prosa.
Com base na valorização dos entraves linguísticos, examinemos a seguir como a agudeza se
estrutura nos preceptistas seiscentistas, em termos de PE e de PC. As produções artísticas
seiscentistas configuradas pela agudeza apoiavam-se em versões neoescolásticas do livro III
da Retórica de Aristóteles e em novos conceitos de dialética e retórica produzidos, no século
XVI, em Roma, em Florença, na França, em Castela, em Portugal. À dialética cabia a tarefa
de definir e contradefinir tópicas exclusivas até então da retórica, que foi modificada como
doutrina renovada da elocução ou do ornato. Anteriormente, ela ocupava-se em particular da
argumentação (invenção e disposição).
Os preceptistas seiscentistas recorreram ao Organon e ao De anima (Aristóteles) para propor dez
categorias e especificações sobre o juízo silogístico como esquema de definição e organização
dialética dos temas e dos argumentos (cf. CARVALHO, 2007, p. 44). Em seguida, recuperam
também a doutrina sobre a metáfora de Aristóteles, bem como as leituras que dele fizeram
Quintiliano e Cícero.
A agudeza poética era rigorosa quanto aos procedimentos retóricos dos poetas, cuja causa
eficiente era o engenho das escolhas enunciativas e cuja consequência seria provocar êxtase no
enunciatário. Escolhido um tema (“tópica”, topos), o artista aplicava as categorias aristotélicas
de substância, quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, situação, tempo, espaço, hábito.
Suponhamos que, tomado um tema qualquer, o enunciador aplicasse a categoria de quantidade:
deveria, então, considerar a quantidade do tamanho (pequeno, grande, longo, curto, curtíssimo);
a quantidade numérica (nenhum, um, dois, poucos, pouquíssimo); a quantidade de peso (leve,
pesado, pesadíssimo); a quantidade de apreço (precioso, vil, preciosíssimo); a quantidade geral
(medida, parte, todo, perfeito, perfeitíssimo, infinito, maior, menor etc.).
Em Hansen (2000, p. 328), vemos um exemplo de aplicação de agudeza poética à figura de um
anão para caracterizá-lo como um ator de tipo ridículo nos enunciados da poesia seiscentista
joco-satírica:
Assim, as categorias aristotélicas possibilitam que o processo de invenção seja levado à exaustão
e desse processo exaustivo surge a agudeza do PC nos seiscentos. Trata-se de um trabalho com a
linguagem em que a intensidade, preocupação do poeta, resvala no hermetismo da metáfora aguda.
Por exemplo: a alegoria de umbigo de escudo para dizer anão obscurece de tal forma o enunciado
que o enunciatário se maravilha pela aproximação distante de “umbigo de escudo” e de “anão”. Ao
aproximar semanticamente duas unidades afastadas, suscita-se prazer intelectivo, aproximando e
convidando o enunciatário à busca de uma solução para o efeito de sentido produzido.
Outras possibilidades de vivificar anão seriam as figuras:
• átomo
• grão de areia
• pigmeu
• unha
• formiga
• pulga
• mosca
• ácaro
• escama de peixe
• grão de trigo
Essas opções encaminham o enunciado poético para uma acentuação da tonicidade
de excessivamente pequeno: muito pequeno, pequeníssimo, demasiadamente pequeno.
Fundamentalmente, a técnica consiste na exploração das virtualidades discursivas da analogia.
São virtuais, porque estão em ausência paradigmática, havendo mil combinações possíveis;
todavia, em presença (no sintagma), o enunciador combina (o que chamamos aqui de
condensação) termos sobrecontrários (as figuras) e, portanto, semanticamente distantes. Essa
combinação inesperada provoca, em termos zilberberguianos, maravilhamento, êxtase, surpresa
estética.
Consideramos a possibilidade de dois momentos de maravilhamentos:
Não se trata aqui de projetar a teoria de Zilberberg nos séculos XVI e XVII, mas de verificar que
o jogo tensivo se dá em qualquer tempo, é anacrônico. Ademais, os preceptistas seiscentistas
já reconheciam na poética da agudeza dos seiscentos, avant la lettre, o efeito de inesperado, de
surpreendente, que agrada, maravilha e persuade o enunciatário (HANSEN, 2000, p. 317). A
seguir, vamos ver algumas propriedades da agudeza barroca em Gregório de Matos.
Por essa razão, enganam-se os que atualmente interpretam as sátiras atribuídas a Gregório de
Matos como se fossem a representação de seu “eu psicológico”. O enunciador do poema projeta-
se no enunciado como um ator discursivo que participa de uma cena enunciativa singular.
O sujeito da enunciação competente engloba enunciador e enunciatário pressupostos ao
contrato enunciativo em questão. Trata-se de um contrato fiduciário que revela, então, um fazer
persuasivo e um fazer interpretativo em jogo (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 86). Assim, a
agudeza seiscentista leva em conta os destinadores retóricos, que estabelecem uma convenção
poética como conhecimento socialmente partilhado por poetas e público contemporâneos à
época (cf. HANSEN, 2004, p. 374). Nesse sentido, a recepção da poesia seiscentista por seus
contemporâneos era regida por um simulacro discursivo de letras específicas. Por isso, não seria
apropriado o conceito de neobarroco como ressurgimento do barroco, mas como outro tipo
de contrato, que se propõe euforizar o barroquismo como categoria que pudesse transpassar o
tempo, algo que refutamos, como já dissemos, pelo fato de distinguirmos dois tempos discursivos
singulares, cada um movido por um destinador diferente.
Com base no simulacro discursivo, depreendemos também um artifício de verossimilhança
(GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 489). Segundo os tratadistas seiscentistas, um pintor que faz um
nariz deformado não peca contra a arte; essa deformação é uma exigência do contrato fiduciário
que implica igualmente uma cena enunciativa convencionada e uma escolha do enunciador em
sua arte de dissimular.
A título de esclarecimento, os enunciadores pressupostos, constantes da poesia atribuída a
Gregório, assumem papéis diferentes na sátira, na poesia religiosa e na lírico-amorosa: se na
sátira, o enunciador é mais despudorado, na religiosa é mais comedido. Trata-se de dissimulação.
A propriedade discursiva da agudeza de dissimular está diretamente relacionada ao artifício,
técnica aplicada ao fazer poético seiscentista. Tal artifício indica qualquer espécie de ficção ou
fingimento produzida pela competência do enunciador para a obtenção de determinado efeito.
Por exemplo:
• O enunciador discreto, simulacro do engenhoso: caracteriza-se pela prudência, pelo
engenho, “que fazem dele um tipo agudo e racional” (HANSEN, 2004, p. 93), competente
para distinguir o que é melhor.
• O enunciador néscio, simulacro do rústico, do desprovido de saber: “caracteriza-se pela
falta de juízo” (HANSEN, 2004, p. 93); do latim, néscio acumula “ne” (não) + “scio, scire”
(saber). Modalizado pelo não saber, néscio era, pois, o sujeito vulgar; do latim, vulgaris,
“conhecimento ralo, comum”. Não equivale ao antitetismo pobreza/riqueza. Conceito
aristotélico por excelência, o “vulgo” “pode significar aqueles que, embora pertencentes
aos ‘melhores’ pela propriedade e posição, são caracterizados como rústicos, falhos de
discernimento e, portanto, como ‘néscios’” (p. 93).
Desse modo, o poeta constrói um simulacro, a depender do contrato fiduciário, do néscio ou
do discreto. Se não incorporado ao texto os destinadores justos e seus valores, a leitura dos
poemas atribuídos a Gregório terá um resultado enviesado. Como vimos em alguns manuais de
literatura, houve durante muito tempo (e ainda há) equivalência do ator, simulacro do néscio,
com a pessoa de Gregório, o de carne e osso, considerado como rústico, grosso, canalha. Mais
ainda, alguns deles reconhecem no enunciado poético gregoriano uma euforização da língua
indígena. Ao contrário, nessas poesias, há um simulacro do néscio que utiliza uma variante
não valorizada do português colonial, mesclando-a com a língua tupi. Em vez da euforia, a
ironia. Essa é uma confusão inapropriada: onde o poeta foi sarcástico, conservador nos moldes
da atualidade, a crítica atual vê-o como antecipador de tendências modernas, vê-o como
revolucionário em termos de usos de linguagem.
Pécora e Hansen (2006, p. 90) afirmam que “o artifício deve ser entendido como uma
operação técnica ou como o efeito de uma técnica [...] como o resultado controlado da
aplicação de um conjunto de preceitos”. Por isso, reconhecem não ser correto contrapor
artificioso a natural, em que artificial seria visto disforicamente. Nesse sentido, no século
XVII, o termo artificial nada tinha de valor negativo, pois se acreditava que “uma construção
artificiosa” não contradizia o natural nem o verdadeiro, mas ajustava um e outro “aos
conceitos de ‘belo’ ou ‘artístico’”. O artifício era regulado por preceptivas poéticas, como as
de Gracián e de Tesauro.
Esse conceito de artifício como simulacro discursivo seria o lugar por excelência do engenho
agudo, gerando outras propriedades, conforme veremos adiante. Uma delas, ainda concernente
ao fingimento discursivo, diz respeito à adequação. A agudeza poderia ser adequada em um
poema lírico, mas não adequada, por exemplo, em um sermão. Trata-se, portanto, de coerções
de gênero a que o enunciador competente estaria submetido. Nesse sentido, a crítica de Vieira
(2000, p. 40-41) aos dominicanos diz respeito à não adequação linguística de procedimentos
que poderiam ser conformes a outros lugares, mas não ao púlpito:
Da mesma forma, o Gregório lírico, enunciador de papel, como sabemos, não pode ser confundido
com o Gregório pessoa física. A ele cabia fingir, criar um ator discursivo competente que
enunciasse enunciativamente, em primeira pessoa, um discurso capaz de levar o enunciatário
a crer na verdade discursiva de seus enunciados em jogo (verossimilhança). Ainda, a poesia
atribuída a Gregório de Matos, por meio de figuras, utilizava os motivos petrarquistas que eram
comuns no mediterrâneo (séculos XV a XVIII).
O fingimento discursivo desse fazer poético seguia os destinadores tratadistas e preceptistas,
influenciadores dos seiscentos. Ao enunciador cabia, se fizesse poesia lírica, por exemplo, saber
compor enunciados cujo nível discursivo contemplasse atores de papel, simulações da criação
do discurso poético, que se apoiassem nas convenções do gênero. Não se trata, portanto, do
derramamento de emoções do poeta romântico em que as paixões do “eu”, ator do enunciado,
identifica-se com as paixões mundanas desse eu, pessoa de carne e osso, extralinguística. Ora,
todas essas formas poéticas são produtos da invenção discursiva, sejam as seiscentistas, sejam
as novecentistas.
Como verificamos, trata-se de uma questão de procedimentos enunciativos. A enunciação é
apresentada por Benveniste como a instância do ego, hic et nunc. O eu instaura-se no ato de
enunciar: “eu é que[m] diz eu”. A pessoa a quem o eu se dirige é o tu: “Eu designa aquele
que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o ‘eu’ [...]. Na segunda pessoa, ‘tu’ é
necessariamente designado por eu e não pode ser pensado fora de uma situação proposta a
partir do ‘eu’; [...]” (BENVENISTE, 2005, v. I, p. 250 e 286).
Assim, eu e tu, compositores da ação enunciativa, constituem o sujeito da enunciação, porque o
“eu” produz o enunciado e o “tu” é levado em consideração pelo “eu” na construção desse mesmo
enunciado (FIORIN, 2008b, p. 137). O espaço e o tempo linguísticos do “eu” são organizados com
base no “aqui” e “agora”. As debreagens enunciativa e enunciva são mecanismos da enunciação
que tornam possível a instauração de pessoa, tempo e espaço nos textos. Na debreagem enunciva,
por exemplo, temos um efeito de objetividade, de distanciamento, de neutralidade e de clareza
e na debreagem enunciativa, temos um efeito de subjetividade, aproximação, parcialidade e
obscuridade. Todos apenas efeitos de sentido, visto que tudo emana de um enunciador que
parte de um fazer persuasivo.
Podemos, então, inferir dos estudos de Benveniste que sempre há efeito de objetividade
e subjetividade, respaldados por uma enunciação pressuposta em qualquer enunciado. A
subjetividade pode advir de um advérbio, de um adjetivo, de uma reiteração, de uma ênfase etc.
Daí se conclui que a subjetividade não é produto tão somente de pessoas verbais; um discurso
pode estar em terceira pessoa, mas provocar o efeito de aproximação, dependendo de outros
elementos linguísticos presentes no enunciado.
A debreagem enunciativa simula no enunciado um “eu-aqui-agora” da enunciação. Ao simular
um “eu”, está implicado um “tu”. A debreagem enunciva é erigida com um “ele-alhures-então”;
nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da enunciação. Na debreagem
enunciva, o enunciado constrói-se com os actantes, os espaços e os tempos do enunciado e não
da enunciação. É um jogo, uma dissimulação, em que a enunciação estrategicamente se revela ou
se esconde. Como sabemos, a enunciação é uma instância pressuposta em ambas as debreagens.
Com as marcas deixadas pela enunciação no enunciado poético, podemos, por exemplo,
reconstituir o ato enunciativo, que nada mais é do que competência discursiva (GREIMAS;
COURTÉS, 1983, p. 147-148; FIORIN, 2008b, p. 138), uma das propriedades da agudeza.
O enunciador e o enunciatário são o “autor” e o “leitor”, não de carne e osso, mas os que
estão implícitos; em outras palavras, temos a imagem do autor e de seu leitor construída pelo
próprio texto dentro da cena enunciativa. Em diferentes poemas, por exemplo, essas posições
se concretizam, e os actantes tornam-se atores da enunciação. O ator, do nível discursivo, é um
caso de concretude temático-figurativa do actante, que é mais abstrato, pertencente ao nível
narrativo. Por exemplo, a simulação do enunciador no enunciado é sempre o ator eu, como no
soneto “Admiravel expressão que faz o poeta de seu atiencioso silencio”, atribuído a Gregório
de Matos; nesse poema, o EU é concretizado no ator poeta “de papel”, discursivo, que a crítica
impressionista identifica com o próprio Gregório de Matos (2010, v. 1, p. 415):
Não se trata, pois, do poeta Gregório de Matos em tamanho real, mas de um ator discursivo.
Os verbos em primeira pessoa (peno, calo, mostro, encubro, desminto, sustento...) configuram
uma debreagem enunciativa aproximadora, como convém nos poemas em que o pathos é figura
central do discurso. Um distanciamento maior poderia produzir descrença no enunciatário. O
eu fingido revela as paixões e a tensão entre o que sente e o que exterioriza.
A escolha é pela dissimulação dos sentimentos, pela a arte de fingir, pelo labirinto de palavras.
Assim, a tensividade antitética de “largo em sentir, em respirar sucinto” e entre as categorias
“interior-exterior [simulação]”, em “o mal, que fora encubro, ou que desminto,/ dentro do
coração é que sustento”; “pois não me chegam a vir à boca os tiros/ dos combates, que vão dentro
do peito”, funciona como escolha de valores pelo enunciador. A simulação das paixões da alma
no enunciado poético, em geral, é traduzidas pela metáfora aguda de “fogo”. Nosso enunciador,
por sua vez, opta por traduzir suas revoluções de alma por “tiros do combate que vão dentro no
peito”. A metáfora agora aguda encampa o fogo e o estampido do tiro; estampido, porém, que
fica abafado no peito.
O objeto seiscentista, com sua agudeza de dissimulação, é uma máquina de truques, em que o
texto progride na direção metalinguística; o fazer poético é um disfarçar e um mostrar, ambos
produtos da linguagem: “que fazendo disfarce do tormento / mostro, que o não padeço, e sei,
que o sinto”. Não trataremos nesta tese da questão da autoria de Gregório de Matos, discutida a
posteriori por Pécora e Hansen (2006, p. 96; cf. também HANSEN, 2004), que afirmam que sua
poesia é apógrafa, ou seja, trata-se de poemas cuja autoria é atribuída a Gregório de Matos.
A seguir, vamos ver as propriedades agudas na poesia do final do século XX, mais especificamente
em Affonso Ávila.
AS PROPRIEDADES AGUDAS EM AFFONSO ÁVILA
Outro tipo de simulacro discursivo evidencia-se no jogo enunciativo dos poemas do final do
século XX. Essa primeira propriedade da agudeza tem como pressuposto um jogo enunciativo
entre um enunciador, que suscita maravilhamento por meio de fingimento discursivo, de
condensações (fusões) de elementos inamalgamáveis etc., e um enunciatário cujo fim é deleitar
duplamente: (1) após o impacto sensível do êxtase; (2) após o reconhecimento dos emaranhados
da agudeza do PC, quando a fruição se dá também inteligivelmente.
Em “São Francisco de Assis”, poema de Affonso Ávila (2008a, p. 296), fazer poético conduzido
por outro tipo de destinador, o do final do século XX, dá-se uma amostra da propriedade aguda
do simulacro discursivo:
Como notamos no poema de Ávila, ali também há forte preocupação com a linguagem e não
com o derramamento de emoções. Daí a simulação de uma enunciação enunciva – nesse caso,
o enunciador distancia-se, criando efeito de objetividade –, marcada pelo tempo verbal no
presente, terceira pessoa, do indicativo para que a verdade do enunciador soe como máxima,
dando origem à voz de um destinador, superior e que tudo sabe. O poema parece perder em
subjetividade para ganhar em racionalidade.
Todavia, ao conter as emoções e os sentimentos – observar a repetição nos dois versos do poema
do verbo pronominal “se conhece” – e estabelecer a já dita construção poética pela arquitetura
linguística, o enunciador mostra uma linguagem que deixa de ser apenas substância do conteúdo
como grande mensagem sentimental para se transformar ela própria em fim e forma; nesse
caso, a linguagem poética é operação que estrutura as relações entre formas do PE e do PC,
característica semelhante à da poesia aguda seiscentista.
A agudeza da enunciação (primeira propriedade do simulacro discursivo) revela-se no poema
“São Francisco”, de Affonso Ávila, pela seleção de figuras que levam o enunciatário a aproximar-
se do cotidiano: tomar conhecimento sobre como identificar uma obra de Aleijadinho in loco,
ou seja, observando a “portada”.
Ao ocupar-se do fazer arquitetural, o enunciador volta-se para a própria linguagem. Trata-se
de um poema metalinguístico, tônica dos destinadores do século XX, que leva a pensar sobre o
próprio fazer poético como poiesis, criação, afastando-se do contrato de fazer mimético, próprio
do destinador das obras seiscentistas. Mais uma razão para se descartar o rótulo “neobarrocas”
para as poesias de Affonso Ávila ou de Haroldo de Campos, visto seguirem outros destinadores.
Em “São Francisco”, o trabalho com a linguagem pode também ser observado no jogo linguístico
em que feminino (portada e arquitetura) e masculino (partido e arquiteto) vão sucessivamente
trocando de lugar, como numa combinatória. Trata-se de um quiasmo morfológico: as figuras
do poema são distribuídas em forma de X; nesse sentido, feminino e masculino cruzam-se
diagonalmente. Quiasmo2 é uma figura retórica que se caracteriza pela disposição entrecruzada
e simétrica das figuras de dois enunciados (LAUSBERG, 2004, p. 233):
Com base em Baltasar Gracián, para Pécora e Hansen (2006, p. 92), o sujeito da enunciação é
discreto e possui competência semiótica para dissimular enunciados, dando a cada um deles
a exata medida que lhes é devida. Essa competência de enunciador e de enunciatário pode ser
percebida no verso “pela portada se conhece o arquiteto”, isto é, só conhece o “arquiteto” e a
“arquitetura” quem tem competência para tal. Enunciadores não se confundem, pois que deixam
rastros no enunciado.
Em suma, tanto os sujeitos da enunciação do século XVI e XVII quanto os do final do século
XX são instituições pressupostamente competentes3, que contam com um contrato, regido por
uma agudeza de um fazer persuasivo e de um fazer interpretativo implícitos. Com base nesse
argumento, temos uma coenunciação, conceito de sujeito da enunciação já citado, que concentra
e difunde o enunciado, quando é preciso fazê-lo, mantendo-se o jogo da poética tensiva entre o
maravilhamento sensível e o posterior prazer do reconhecimento inteligível.
Corolário da primeira propriedade da agudeza seria a solidariedade do complexo sujeito da
enunciação:
Temos, portanto, um movimento, cujo sentido se dá numa sintaxe solidária e reflexiva, em que
tanto enunciador quanto enunciatário têm papel ativo na construção do sentido do enunciado
poético. Desse modo, quando o enunciador compõe o poema, amalgamando fonemas, morfemas,
ressignificando-os, toca ao enunciatário decompô-lo para reconhecê-lo inteligivelmente, visto
que esteve refreado sensivelmente por algumas estratégias da agudeza. E, quando o mesmo
enunciador decompõe, desmantela uma sílaba, um morfema, por exemplo, cabe ao enunciatário
recompor e reorganizar o enunciado. Ademais, a troca de posição de categorias gramaticais do
gênero masculino e feminino, em “São Francisco de Assis” (“partido / arquitetura / portada
/ arquiteto”), sugere uma troca de posição entre objeto estético (arquitetura) e seu criador/
contemplador (arquiteto) para que o sentido do texto se estruture.
Em “Casa de Gonzaga”, outro poema de Affonso Ávila (2008a, p. 295), a cooperação entre
enunciador e enunciatário opera-se também na reorganização dos refreamentos formais da
agudeza. Vejamos o poema:
&
pobrealdeiaondeo
sgrandesmoramemca
zademadeiraapique
&
pobre........................
........a....mor.....emca
zademadeiraapique
&
pobre...........a..........
........rañ......a...emca
zademadeiraapique
&
po..........ei................
......ra....e.m...........ca
zade .adei. aa. ique
&
..................................
.g...........o....m...........
za..........................que
&
Nos três primeiros versos, há uma aglutinação aguda no significante que erige no significado
o conteúdo Casa de Gonzaga, cuja imagem surge no enunciado visual da última estrofe
“.g..........o....m........./za..........................que”. O PE vai perdendo paulatinamente alguns de seus
fonemas, visualmente representado pelos pontilhados gráficos. As elipses, as faltas, no PE
endossam o PC com a expressão ambígua a pique, que significa, além da técnica de construção
casa de pau a pique, tonicidade elevada de “malogro”, “fazer gorar” (HOUAISS; VILLAR, 2001).
Aqui, notamos uma cifra tensiva de acentuação da intensidade, que figurativiza o estágio de
alta deterioração da Casa de Gonzaga. A essa cifra de vivificação junta-se o juízo avaliativo do
enunciador, que escolhe isolar o termo “pobre” no primeiro verso da segunda estrofe e elimina
“aldeiaondeo/sgrandemoram”.
O jogo tensivo continua no segundo verso em que, ao separar “a” de “mor”, figurativiza “amor”
(amor vivido por Tomás Antônio Gonzaga e Marília de Dirceu), bem como a dor da “mor”(te),
que pode ser lida também como morte da Casa de Gonzaga e morte do amor, visto que o casal
“Tomás e Marília de Dirceu” se separa. “Mor” é ainda forma intensificada de grande (maior) e
teríamos, assim, como possibilidade de direção a grandiosa Casa de Gonzaga.
Na terceira estrofe, o enunciador elege outros artifícios de agudeza: a sequência de fonemas /
rãn/, que se inicia com a velar vozeada vibrante /R/, corrobora o PC de ruir.
Semissimbolicamente, temos:
________. O lúdico e as projeções do mundo barroco II. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994.
________ (Org.). Barroco: teoria e análise. Tradução de Sérgio Coelho et al. São Paulo: Perspectiva, 1997.
_______. Homem ao termo: poesia reunida [1949-2005]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a.
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa
Neri. 5. ed. Campinas: Pontes, 2005. v. 1.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Traduzir & trovar. São Paulo: Papirus, 1968.
CARVALHO, Maria do Socorro Fernandes de. Artifício de agudeza: estudo de glosa de Dom Francisco Manuel
de Melo. Graphos. João Pessoa, v. 8, n. 1, p. 71-74, jan./jul. 2006.
ELIOT, T. S. Ensaios. Tradução de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.
FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008b.
GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix,
1983.
HANSEN, João Adolfo. Experimental/Exemplar: Hélio Oiticica. Utopia Arquivo, Revista USP, São Paulo, n. 22,
p. 138-153, 1994.
_______. Práticas letradas seiscentistas, Discurso, São Paulo, n. 25, p. 153-183, 1995.
_______. Ut pictura poesis e verossimilhança na doutrina do conceito no século XVII colonial, Revista de
Crítica Literária Latinoamericana, Lima-Berkeley, ano 23, n. 45, p. 177-191, 1997.
________. Barroco, neobarroco e outras ruínas. Teresa – Revista de Literatura Brasileira, São Paulo: Edusp:
Editora 34, 2001, n. 2. p. 10-66.
________. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2. ed. São Paulo: Ateliê;
Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001
LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. Tradução de R. M. Rosado Fernandes. 5. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
MATOS, Gregório de. Obra poética completa. Códice James Amado. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. 2 v.
PÉCORA, Alcir; HANSEN, João Adolfo. Categorias retóricas e teológico-políticas das letras seiscentistas da
Bahia. Desígnio – Revista de História da Arquitetura e do Urbanismo, São Paulo, Annablume, n. 5, p. 87-109,
mar. 2006.
TEIXEIRA, Ivan. Rosa e depois: o curso da agudeza na literatura contemporânea. Revista USP, São Paulo, n.
36, p. 100-115, dez./fev. 1997-1998.
VIEIRA, Antonio. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000. v. 1.
Notas
1 Carolina Tomasi - Mestre e Doutora em Linguística (USP); Pós-Doutorado (UFF E USP).
2 O termo quiasmo deriva da letra grega χ (qui), em latim chiasmus. Em português, sofreu alteração por causa
da influência da língua italiana cuja pronuncia de ch é /k/.
3 Teixeira (1997-1998) afirma: “Sabe-se que, no século XVII, os intelectuais reuniam-se em seções acadêmicas
para exibir os frutos dos respectivos engenhos sobre um tema previamente apresentado. Nessas disputas, a
sutileza das composições funcionava como elemento diferenciador entre os concorrentes.”
CADERNO DE POESIA RESISTÊNCIA:
10 ANOS SEM O POETA AFFONSO ÁVILA
PEDRO ÁVILA1
A
língua é fascista, como diria Barthes, uma vez que nos impõe o que e como pensar o
mundo. Mais especificamente a Língua Portuguesa foi um instrumento colonizador nas
mãos dos portugueses, servindo para difundir seus valores e crenças, as quais incluíam
seu direito (disfarçado de dever) de dominar e subjugar povos americanos e africanos. Afinal,
sem escrita, ou como será formulado posteriormente, sem literatura, não é possível que um povo
possua História. A dominação, exploração e eliminação daquilo que é diferente são aspectos
centrais do colonialismo, os quais o fascismo herdaria na Europa do século 20, promovendo
horrores similares aos que embarcaram com as pombas e caramujos ibéricos 500 anos atrás
com portugueses para terras brasileiras. Afinal, o que o fascismo propôs foi parte da Europa
colonizar o resto do continente tal qual nações europeias como França e Inglaterra vinham
fazendo há séculos com o resto do mundo.
Talvez haja algo de fato fascista na maneira com que a língua recorta e delimita como seus
falantes enxergam e delimitam o mundo a seu redor. Mas e quanto à literatura? Seria a literatura
fascista? Barthes concluiu sua primeira aula para o Collège de France, em 1978, dizendo que “o
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. O português não nos proíbe pensar além do
masculino e feminino, ele nos obriga a delimitar todos os seres existentes, sejam humanos ou não,
animados ou não, como masculinos ou femininos. Mas o que seria a literatura se não o espaço
em que podemos ir além das amarras da língua? Através da função poética, podemos fabular
novas formas de ser, estranhificar as palavras e seus sentidos, tirando a língua de sua pragmática
corrente, como sugere Chklovski, ou fundar novos termos para coisas novas, neologismos,
trocadilhos, que encontram associações semânticas ou significados ocultos em semelhanças
sonoras. A literatura, especialmente a poesia, com sua potência sintética e heterogênea, possui
a possibilidade de conter “entre um grão qualquer, pedra ou indigesto/ um grão imastigável,
de quebrar dente”, como diria João Cabral de Melo Neto, um grão que resiste à compreensão
obrigatória e clara (fascista) da língua, subvertendo e “desafinando o coro dos contentes”, como
canta Jards Macalé a letra de outro neto, Torquato.
Nota
1 Pedro Ávila - poeta, tradutor, graduado em Letras pela UFF.
ADÃO VENTURA
Extraídos de: ANTOLOGIA CONTEMPORÂNEA DA POESIA NEGRA BRASILEIRA,
organização de PAULO COLIMA. São Paulo: Global Editora, 1982. 103 p.
ondinhas verdes
e muitas braçadas
os lemes rasgando a água
são pênis de nadadores nus
Mor,
queríam comê-los
mas grossos grudavam na garganta
impossível engoli-los
mergulhamos para salvá-los
mas o mar era piche
e colava em nossa pele - ardia
Mor,
talvez você fosse o pai
e tivéssemos filhos
como aqueles que soubemos ser
crustáceos, tartarugas e corais
enredados em piche
e escorregadios e tristes
Mor,
me mostre o azul escuro
aquele que olhamos de um recife ao luar
e sonhamos que nossos filhos
crustáceos, tartarugas e corais
por todo lado surgiam
madrugada adentro
CRISTINA ÁVILA
Croniquetas – simples, coloquial, piegas. Belo Horizonte: CS Cultural. 2022. p. 99
JAVALI
Um tanto de nós na lagoa. um tanto seguros a remover ninfeias da margem. irmãos protegidos
pelas ramas que vão na trilha da lagoa.
Um dardo, porém,
Desatina. Todos em disparada. Os de trás a superar os que
Adiante se adiantam sobre os próprios narizes. Não a quem se fie em apagar os rastros todos em
disparada por temer a sentença que incendia o dardo.
O atirador não mira o primeiro nem o segundo, atingidos seriam esterco antes que o último se
aviasse.
Para este o atirador guarda os olhos o calor o fim da descendência.
(...)
o poema
que faço não é
o que quero
quero
o
silêncio
na
carne
o
gozo
na
língua
fim
do
fogo
sobre
o
sangue
que
veste
a
tarde
fim
do
( teus olhos
ignoram
a
Água
e
a
parte
vermelha
da
procuram
paisagens
repletas
de
ossos
jardins
repletos
de
círculos )
quero
versos
arrancados
dos
olhos
da
tarde
enterrados
no
Céu
da
carne
um
rio
de
gozo
no
rosto
do
Sol
um
resto
de
( teus olhos
amanhecem
fechados
procuram
corpo
adentro
planícies
cremosas
eflúvios
íntimos
vestígios
de
fome
no
escuro
interior
da
boca )
o poema
que quero
não se
escreve
porque
de tão
leve
o
de
resto
lençóis
sujos
de
Dor
e
na
língua
um
gosto
doce
de
Eva
GARBO GOMES
Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022
(...)
poesia
te detestam
materialista idealista ista
vão te negar pão e água
(para os inimigos: porrada!)
- es a inimiga
poesia
(...)
poesia pois é
poesia
te detestam
lumpemproletária
voluptuária
vigária
elitista piranha do lixo
ou como
há pouco
augusto
o augusto:
o colibri colibrisa
e a poesia poesia
HAROLDO DE CAMPOS
Extraído de: Melhores poemas Haroldo de Campos/seleção de Inês Oski-Dépré. São Paulo: Global. 200. p. 96-101
DIÁSPORA
Meu povo morreu andando na estrada de pedra e Jerusalém.
SOBRE O AMOR
Sobre o Amor
não há realmente nenhuma prova que exista
JUÓ BANANERE
Extraído de: La Divina Increnca. Reprodução integral da primeira edição de 1915. São Paulo: Editora 34. 2001. p. 8
“A seara é grande
Mas os lavradores são poucos”
Os gafanhotos são muitos
DUAS PALAVRAS
nojo
asco
9 MM
Seus dedos passeiam pelo metal, calmamente acaricia o cano
entumecido do aço latejando nas mãos se entreabrindo o fruto
de um outono de ódio e dor pelo beijo recusado, que hoje o faz
salivar no esgar dos seus lábios finos o leito negado ao menino
e pólvora, num rastilho da febre que vibra junto ao trilho das balas
dentro do cano em brasa, frêmito dos desenganos não cicatrizados
vertigem do cheiro do suor acre não derramado sobre seu sangue
virgem, jamais vertido no gozo das casernas, oculto numa caverna
O FILHO DE NEFELE
Cem mil mortos.
Comecei a escrever este poema quando completamos noventa mil mortos pela pandemia, sabia
inevitável, tal o descaso do facínora, que chegaríamos à triste marca de cem mil.
Por mórbida coincidência, chegamos aos cem mil no dia dos pais. E mal sabíamos quantos ainda
chorariam seus mortos não enterrados.
(Quando terminei de escrever este livro já tinham sido mais de seiscentos mil mortos.
...
Néfele (Nuvem), na mitologia grega, foi um “eídolon” (imagem) de Hera, moldada de nuvens
por Zeus para enganar Íxion, que perseguia a deusa .
O PARTO
Seis de agosto de 1945,
a sede de Satã bebe chuva
radioativa um lençol de mortos cobre o céu de Hiroshima.
LÚCIO AUTRAN
Poemas enviados para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022
OURO PRETO
DE PRETO, A PELE
DE OURO, A CORJA
OURO PRETO
DE PRETO, A FORÇA
DE OURO, O ROUBO
OURO PRETO
DE OURO, O OUTRO
DE PRETO, O OUTRO
OURO PRETO
DE PRETO, O PESO
DE OURO, A MALA
OURO PRETO
DE PRETO, A BOIA
DE OURO, A JOIA
OURO PRETO
DE OURO, A CASA
DE PRETO, A RUA
OURO PRETO
DE OURO, O FÁCIL
DE PRETO, O FÓSSIL
OURO PRETO
DE PRETO, O FAZER
DE OURO, O PODER
OURO PRETO
DE OURO, O ALGOZ
DE PRETO, O FEROZ
OURO PRETO
DE OURO, A GANA
DE PRETO, O DANO
OURO PRETO
DE PRETO, A GANGA
DE OURO, A PANÇA
OURO PRETO
DE PRETO, A PROLE
que as
mãos reaprendam suas ferramentas
e as frequentem::
o poema ainda é vivaind-
a
NATÁLIA AGRA
Extraído de: Noite de São João. São Paulo: Corsário-Satã. 2020. p. 52.
À distância
Na praça
Aleijadinho e os anônimos
Bem da terra
salvação da espécie
passaporte para o eterno:
o homem de cada nome!
O interior inacabado
Duas irmandades
guerreavam nos altares
A capela-mor quase ao cabo
invadem a nave da Igreja
cada lado é uma trincheira
fogo — a imaginação
desafio — a criação
Se a luxúria incrusta altar
no soberbo altar esquerdo
vai ao teto o altar direito
com feéricas figurações
Eram duas irmandades
seus altares são rivais
a desavença desenhou
as soluções desiguais
que no mar de paz da nave
se pacificam m beleza
Seria tratado de paz
concordar com o mesmo púlpito?
Eram duas irmandades:
(Que é do fruto das almas?)
ao lado de ouro e pompa
oferenda de discórdia
Agora em brumas de histórias
cinzas de esquecimento
refulge a ira de Deus
na inconclusão dos altares
Os Anjos
De ouro ornado
veste a cor do tempo
desfolha o padre
os Evangelhos Sagrados
OSWALDO ANDRÉ
Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022
OTÁVIO RAMOS
Extraído de: O juízo Final. Sabará: Edições Dubolso, 1997.
um fudum só
PEDRO ÁVILA
Extraído de: https://casulosblog.com.br/guanabara-um-mapa-descritivo-por-pedro-avila
2019
preto e vermelho
presentes dos antigos
tintas árvores
nos corpos escritos
páginas ao vento
cores dos licores
jenipapo preto
retinto
guarda um segredo
todos os humanos
incorporam
listram uniformes
vestem totens
RAFAEL FARES
Extraído de: Árvore Nômade. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2019. p. 45.
RICARDO ALEIXO
Extraído de: Pensando demais para a ventania – Antologia poética. São Paulo: Toda Via. 2018. p. 46.
Nasceu carnívoro.
Como os monarcas.
RITA ESPESCHIT
Extraído de: Lua Gorda. Sabará: Edição do Bolsinho, 2012. p. 29.
Na areia
minhas pegadas são réstias
que resistem
Um eco
centelha no deserto –
rasga a burka do medo
na fenda de um niqab negro
THAIS GUIMARÃES
(Prêmio Off-Flip 2019)
Poema enviado para o Caderno poesia resistência – Revista Barroco Digital n. 2. 2022
Josoel Kovalski1
O
recorte preludia o movimento. Nessa ação de cortar um corpo, o pedaço é remetido ao
trâmite do deslocamento, trânsito que busca um ajuste para outras ações e percepções,
recolocadas em novas formas. Quando do corpo seccionado faz-se poesia, não há
mutilação traumática do organismo, mas concessão, empréstimo, duplicação, reprodução
poética. Designa, ao mesmo tempo, duas operações: extirpar de um e enxertar em outro
corpo. Os dois estados do trecho recortado teimam em permanecerem os mesmos, apesar de
obedecerem a duas instâncias, duas alocações. Ou como disse Antoine Compagnon, a citação
Cinese é um transporte. Uma porção de algo que se coloca em um lugar diferente do primordial,
em um espaço outro, um novo contexto, uma parte da possível textualização a dialogar com a
antecedente, com o espaço ilusório da originalidade. Os vazios que ficam são aparências somente
visíveis aos que reencontram a nova poematização recortada da fonte, são vasos comunicantes
entre textos e épocas, viagens, citações. Citar é deslocar, é a cinese em seu étimo grego. Também
é uma evocação latina, um chamar junto, clamar outro texto em socorro de nossas intenções.
Nessa operação, o nascimento de uma nova forma poética, de um novo lugar de poesia, está
associado à permanência da palavra poética transportada – citada – um afixamento com papel
e cola, uma sutura em novo corpo de que faz de outro, de vários, de muitos. Poema-colagem.
O outro formato que as colagens propiciarão, de lugares variados, quem sabe de autores a
princípio distanciados pelas opiniões, temáticas e labutas, será a montagem final, a que reclama
o direito de cidade a partir da reestruturação do poeta citador, jogando recortes cuidadosamente
pensados de formas poéticas e poemas muitos. O poeta monta o edifício a partir de sua leitura.
Quando grifa o subtraço dos versos que destaca, o poeta escolhe pelo desalinho do lápis as
partes que serão remontadas em outras agências, devolvendo em novas roupagens signos que
evocam leituras e reescritas. O trabalho da citação retextualiza fragmentos, recolados na nova
Cada elemento da colagem vai referir-se a uma realidade externa, muito embora esteja minando,
pela composição, as referências que parece afirmar. (PERLOFF, 1986, p. 47). No caso do discurso
barroco transitado para a contemporaneidade do século XX, o poema que se produz reflete
ambos os dilemas: o do barroco (histórico) e o da sua releitura contemporânea.
Affonso Ávila propôs esse exercício poético – o da colagem – já nos anos iniciais de sua dedicação
ao estudo do barroco mineiro. Percebeu ele que a técnica do “copia-e-cola” poderia, com alguma
habilidade do novo artesão-poeta, reiterar a eficácia de um discurso anterior, e que os recortes,
inseridos em um cabedal totalmente alheio à intenção do “corpo autoral” de quem emprestava os
trechos, projeta-se como uma outra verve, tanto disseminando novos sentidos, como potenciando
o texto cortado, o autor copiado. O mundo barroco se emula na técnica do refazimento, e no caso
de Ávila, barroco é o mundo evocado, desse mundo são os textos combinados, e em barroco
transforma-se o procedimento, lúdico e festivo a um só tempo. Revigorou assim pretéritos trechos
seiscentistas, nem sempre os de maior conhecimento pelos pósteros, característica, aliás, de nosso
ensaísta-barroco que enfrentou textos e eventos ditos “menores” na historiografia, muitos vindos
à lume graças e ele próprio. As colagens barrocas desenvolvidas e experimentadas por Affonso
Ávila são possibilidades da inserção do ficto em linguagens de escopo e recepções extremamente
alheias a um público do século XX e XXI, muito embora não seja a técnica nem de longe uma
novidade. Contudo, analisando a produção poético-ensaística de Ávila, posso constatar que o
prenhe discurso avilano muniu-se cotidianamente do citar de outrem muitas vezes apossando-
se de esferas em princípio díspares em gênero e conteúdo, mas que ele soube, como poucos
manipuladores do texto poético, transformar em matéria verbal: a colagem fez portanto parte
da alquimia verbal de Affonso Ávila, no sentido, digamos, mais formal e explícito, procedimento
que ele continuou desenvolvendo de maneira um pouco mais implícita, mais velada, e por isso
menos reveladora do que a escancarada e curiosa colagem, “forma artística ressonante, atrativa,
evolutiva e passível de múltiplas mídias.” (DRAG, 2020, p. 1)
Saúl Yurkievich, questionando os engessados parâmetros em que se debruçavam alguns
artistas e afins, falou com propriedade da técnica do copiar e colar. Dizia ele que no recorte dos
“fragmentos pré-formados extraídos de obras ou mensagens preexistentes” a integração em uma
nova mensagem revelaria uma poética embasada no dissímil, no dissonante, no descontínuo.
Tal operação dá-se na “sobreposição aleatória, nas contiguidades insólitas, no multiforme, no
multirreferente” (YURKIEVICH, 1986, p. 53). O produto final, compósito de vários discursos,
de vários autores, fragmentos imantados pela lógica racional de quem os sobrepõe, de quem os
une, é caminho trilhado por uma dinâmica “anexionista”, para falar com o crítico argentino, um
procedimento adesivo de implicação também heterogênea.
Os trechos mesclam-se entre pedaços de poemas, versos deslocados, trechos da prosa (prévia
alocutória do Triunfo Eucarístico, por exemplo) e de outros livros não compostos para serem
“ficção”. Assim, no terceiro movimento temos o historiador Diogo de Vasconcelos com sua
História Antiga das Minas Geraes explicitando a Revolta de Vila Rica, episódio em que Felippe
dos Santos é morto em 1720. À página 364 da edição de 1904, foi o poeta recortar o movimento
3 das considerações do historiador mineiro.
3
AS MINAS COMO A CÓLQUIDA TIVERAM O SEU VELO DE OURO
DEFENDIDO PELO DRAGÃO QUE NÃO DORMIA
E POR TOUROS QUE VOMITAVAM CHAMAS
4
CAMINHOS TÃO ÁSPEROS COMO SÃO OS DAS MINAS
AI DE NÓS! AI DO REINO! AI DE MINAS GERAIS!
O trecho final, pertencente à Relação das Exéquias11 do “Rei Barroco”, Dom João V mostra,
por um lado, o início do declínio aurífero e econômico das Minas, seguindo, em uma possível
leitura da colagem, um viés cronológico; por outro lado, revela o cabedal de textos principais
O trecho acima faz parte de seu estudo sobre a morte como celebração barroca. Ou seja, seu
poema revela-se como uma súmula avilana de sua teorização, tendo as três festas como elementos
geradores, englobando também considerações de outros autores e textos. Além disso, próprio
do jogo, o poeta coloca a parte final pertencente a um dístico localizado acima da sacristia da
igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar, em São João del-Rei, onde realizaram-se as exéquias e
onde deveria estar a máquina fúnebre chamada “Obelisco Funeral”, que reza: “Vae nobis! Regno!
Vae, Aurifodina, tibi!”12 (Relaçam, p. 26). Nesse Obelisco Funeral, com os dísticos visualmente
os ornamentando, repete-se o recurso expressivo do poema-cartaz, processo já verificado
anteriormente nas festas cívico-religiosas de Vila Rica e Mariana. Técnica também explorada
pela poesia de vanguarda brasileira, incitando o leitor da poesia a notar a materialidade da
linguagem consoante nos painéis de poemas, recurso barroco-moderno.
Durante o longo dos anos 1970 vários livros de poemas de Affonso Ávila foram lançados, amostrando
reflexas, na construção poemática, suas pesquisas no âmbito da linguagem poética, da consciência
crítica, indicando a “redescoberta das formas do passado com o frescor do presente.” como
escreveu Rogério Barbosa da Silva (2013, p. 208). Além disso, estava Affonso Ávila questionando
o papel dos artistas em um Brasil cheio de transformações tecnológicas, mas sobretudo, políticas e
governamentais. Em 1969 foi lançado o muitas vezes resenhado Código de Minas, cujas pesquisas
para a produção iniciaram-se em 1963 e que revelaram, ou ajudaram a revelar, não só a codificação
sistemática do autoritarismo embrenhado nas Minas, e, por extensão, no Brasil, mas também o
mundo barroco encrustado na própria condição mineira. Ao mesmo tempo que revolucionaria
a barrocologia brasileira com seus Resíduos Seiscentistas, estava em gestação seu Código, vindo a
lume em época de recrudescido autoritarismo, desmandos e silenciamentos. Depois disso veio o
outro código, o nacional de trânsito, título que remetem-nos à movência e à vivência dos nacionais
sob um código rígido em um país cuja governança autoritária ilustrava-se nas sanções e castigos
para quem desobedecesse o conjunto de leis, muitas vezes não tão exposto, mas cifrado, codificado
nos interstícios, nas dobras do discurso. Como resultado, temos o ponto ápice da crítica obra de
Affonso Ávila, uma poesia que conjuga seus ensaios sobre o fazer poético disseminados em seu
Nota-se que o poeta não simplesmente pinçou aleatórias frases do discurso para compor curiosos
versos, mas usou basicamente toda a forma paragrafal que inicia o terceiro capítulo do sermão,
colando-o em nova estrutura – o verso – e permitindo que a frase final do soneto de Góngora
“concluísse” a divisão do primeiro remédio: o tempo faz restar, do amor, a amargura, ou na bela
chave gongórica: “Y SÓLO DE AMOR QUEDA EL VENENO”. A experiência temporal faz nos
perder do amor a novidade, como dirá Vieira na sequência. Obviamente o poeta colador está
transportando o poema para a esfera do demasiado humano, pois o amor perfeito “vive imortal
sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo”. (VIEIRA, 1958, p. 161)
3
O TERCEIRO REMÉDIO DO AMOR É A INGRATIDÃO
E FERIDO O AMOR NO CÉREBRO E FERIDO NO CORAÇÃO,
COMO PODE VIVER?
QUIEN SUFFRIRA TAN ASPERA MUDANÇA
DEL BIEN AL MAL? O CORAÇÓN CANSADO!
Sem pretender fazer uma exegese, notamos o par entendimento/memória ferindo, pela
ingratidão, tempo e ausência o cérebro e o coração do amor, sede da lembrança, pelo menos para
Vieira. Dessa maneira, a pergunta que divide a estância, provinda de considerações teológicas
sobre o amor, descamba como epicentro do poema a conjugar tanto Vieira quanto Garcilaso de
la Vega: Como pode viver? Ou seja, como o amor ferido pode resistir? O coração tomado na
ingratidão sente-se cansado, áspera mudança. O deslocamento para o óbvio amor carnal, quase
romântico, permite a condução do poema como tema também deslocado.
Para finalizar, o último remédio: o melhorar do objeto, ou seja, algo que venha maior para
obnubilar o menor, pois diz Vieira (1958, p. 190), quase que ironicamente, que “um amor com
outro se apaga”, e se dois amores no coração lutam, “sempre fica a vitória do melhor objeto”,
donde a conclusão na barrocolagem, “EM APARECENDO O MAIOR E MELHOR OBJETO,
LOGO SE DESAMOU O MENOR”. O amor, em última instância, se “não é intenso não é amor”,
ou seja, a conclusão última é a de que o sentimento que moldara praticamente toda a história
literária universal, que atravessou oceanos e séculos, sempre pode ser substituído por um outro
amor, um amor de outro ente. Obviamente que Vieira estava falando do amor divino, que eterno
e imortal se comparado ao amor carnal e terreno, mas ao poeta colador, seguindo a dinâmica
expositiva que se apropria para descrever o sentimento, nada mais interessante que concluir com
a deixa oswaldiana AMOR/HUMOR, pois para esse outro sentimento se envereda a própria
constatação do amor infinito enquanto potencialidade duradoura, mas que ironicamente
sucumbe na apresentação de outro objeto, melhorado, modificado.
A próxima “colagem barroca” de Ávila que veremos apareceu em 21 de abril de 1973, data em
que se lembra da infame morte do Patrono da Nação Brasileira, Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes. O poema foi publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais, sendo para aquele
momento ilustrado com desenhos de Márcio Sampaio.
1
JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER: ALFERES DO REGIMENTO DA
CAVALARIA PAGA DE MINAS GERAIS, TEM MUITO GRANDE
NÚMERO DE TESTEMUNHAS, QUE O CULPAM EM QUE PROFERIA
AS SEDICIOSAS PROPOSIÇÕES, DE QUE - A AMÉRICA PODIA SER
INDEPENDENTE, E LIVRE DA SUJEIÇÃO REAL, E QUE OS FILHOS
DELA ERAM UNS VIS E FRACOS QUE NÃO FAZIAM, O QUE FIZERAM
OS AMERICANOS INGLESES, QUE ELE SE ACHAVA COM ÂNIMO
DE CORTAR A CABEÇA AO GENERAL CONSERVA-SE PRESO NA
FORTALEZA
É FILHO DE MINAS
Affonso Ávila inicia, como a capita do poema, como trecho introdutório, a referência que se
seguirá ao longo desse movimento 3 das Barrocolagens, a saber, a “Lista das pessoa presas”
constante no volume VII dos Autos de Devassa. Tanto encabeça a lista (2016, p. 47), quanto o
poema o nome à época sinônimo de ignomínia, alferes da cavalaria paga de Minas Gerais.
Rui Mourão já dizia (1962, p. 153) que cada composição de Affonso era uma “tentativa de superação
de formas já alcançadas e de audaciosa incursão em novos planos de sensibilidade”. Assim, trata-
se de um poeta que está sempre apresentando como poema último “aquele que oferece a medida
última de seu amadurecimento”. Mergulhando nas raízes barrocas do século XVIII, o século
que revelava os resíduos caracterizadores de dita mineiridade, tanto perseguida como índice de
mentalidade mineira, como “inventada” pelos poetas, para concordar com Maria José de Queiroz
que já em fins dos anos 1960 dizia que “A mineiridade não está em Minas, mas nos poetas que
a inventaram”. Essa barrocolagem, fazendo-se a partir dos Autos condenatórios e de um libelo
acusador prontamente listado com os nomes dos “párias”, reflui-se em inventiva e fecunda práxis
contemporânea ao poetizar, como forma ajustada ao movimento, uma nova pele, um novo corpo
reformulado pelo tema do único a sofrer a condenatória pena capital, cabeça perdida desse novo
corpo poético, reinserida como objeto bizarro de expressão de poder e exemplo de punição aos
que pensassem em liberdade, assombrando os contemporâneos da Vila Rica conspiratória.
O assunto, é bem verdade, sempre esteve presente nas constatações e considerações de Affonso
Ávila. Ele via a Inconfidência como um projeto de nação possível, e seus personagens como
celebridades de um viver poético, lastro de uma Minas Gerais humanizada por um Iluminismo
tropical. Seguindo, pois, essa barrocolagem com o tema do Tiradentes e a Inconfidência Mineira,
vem o colador em seu poema mostrar, como auge de sua maturidade e da sua pesquisa histórica
das Minas seiscentistas, o evento máximo do mundo barroco mineiro, aquele que fechava o
século XVIII com as cores do neoclássico iluminista de Gonzaga, do discurso reto do cônego
7
HÁ MUITAS PESSOAS QUE ERAM SABEDORAS E MUITAS EM QUE SE
DÃO PRESUNÇÕES, PRINCIPALMENTE OFICIAIS DO REGIMENTO
DE MINAS, QUE SÃO PARENTES UNS DOS OUTROS OU POR SI OU
PELA ALIANÇA DOS CASAMENTOS; MAS JUDICIALMENTE NÃO
HÁ PROVA, PORQUE TODOS SE ACAUTELARAM EM NÃO QUERER
DIZER NADA.
Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Volume 7. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de
Minas Gerais, 2016.
ÁVILA, Affonso. O poeta e a consciência crítica: uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda. 2ª edição
revista e ampliada. São Paulo: Summus, 1978.
ÁVILA, Affonso. Barrocolagens. Revista BARROCO 11. Belo Horizonte: UFMG, 1981. (Separata).
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 1ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
ÁVILA, Affonso. Resíduos Seiscentistas em Minas: Textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco.
Volumes 1 e 2. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais; Arquivo Público Mineiro,
2006.
ÁVILA, Affonso. Circularidade da ilusão e outros textos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
BUENO, Antônio Sérgio. (ORG) Affonso Ávila. Encontro com escritores mineiros. Belo Horizonte: Centro de
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JÚNIOR, Eduardo. Consciência crítica & poesia de Affonso Ávila. (Revista de Cultura Vozes). Rio de Janeiro:
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PEREIRA, Nuno Marques, Compêndio Narrativo do Peregrino da América, 2 vols. Rio de Janeiro: Publicações
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In: Revista Barroco 4. Belo Horizonte: UFMG, 1972.
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VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Geraes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de
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VIEIRA, António. Sermão do Mandato. Pregado em Lisboa, no Hospital Real. (1643). Sermões do Padre
António Vieira. Vol. 5. São Paulo: Editora das Américas, 1958.
WARNKE, FRANK J. Sacred Play: Baroque Poetic Style. In: The Journal of Aesthetics and Art Criticism,
Volume 22, Issue 4, Summer 1964, Pages 455–464.
Notas
1 Josoel Kovalski - Doutor em Letras pela UFPR.
2 Each cited element breaks the continuity or the linearity of the discourse and leads necessarily to a double reading:
that of the fragment perceived in relation to its text of origin; that of the same fragment as incorporated into a
new whole, a different totality. The trick of collage consists also of never entirely suppressing the alterity of these
elements reunited in a temporary composition.
4 Depois republicadas em ÁVILA, Affonso. O visto e o imaginado. Editora Perspectiva, 1990; e em ÁVILA,
Affonso. Homem ao termo: poesia reunida (1949-2005). Belo Horizonte: UFMG, 2008.
5 http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/affonso_avila_ensaio.html
6 Quando da publicação das Barrocolagens no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1972 e 1973, assim
como na publicação da segunda Barrocolagem “Os remédios do amor e o amor sem remédio”, em 13 de maio
de 1973 na revista Colóquio-Letras de Portugal, o nome do autor mineiro aparece por extenso.
7 O verso escolhido, também o final, traduzido por José Lourenço de Oliveira, “VÊ SUA ÁUREA IDADE A
ÁUREA TERRA” (“Aurea nunc fatis Aurea terra videt”) (Áureo Trono Episcopal, p. 147)
8 O óculo do alcance é uma alegoria para o discurso, “pelo qual se conhece tudo aquilo que se pode imaginar com
livre entendimento” (PEREIRA, 1939, p. 138), assim como a “Torre intelectual” é alegoria para o entendimento
do homem.
9 Antes disso o Peregrino descreve a Bellomodo o que vê, a saber: “Vi pelas ruas destas vilas a uns homens
pendenciando com outros, e vi a outros homens arrastando sacos e canastras pelas ruas e estradas. Vi a outros
correndo atrás de mulheres, e as mulheres correndo atrás de homens. Vi a outros, como loucos, saltando e
mordendo a si próprios. Vi a outros assentados em mesas de muitos manjares, com as bocas e as mãos cheias,
e outros com frascos e garrafas postos à boca. Vi a outros arrepelando-se e puxando pelos cabelos e barbas. Vi
a outros em varandas, e outros debaixo de sombras de arvores dormindo ao sono solto.” (PEREIRA, 1939, p.
137-138)
10 Os Argonautas, para Diogo de Vasconcelos, seriam os descobridores paulistas. Cf. ROMEIRO, Adriana. Diogo
de Vasconcelos: um historiador para as Minas Gerais. In: ROMEIRO, Adriana; SILVEIRA, Marco Antonio
(ORGS). Diogo de Vasconcelos: o ofício do historiador. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
11 Monumento agradecimento, tributo da veneraçam, obelisco funeral do obsequio, RELAÇAM fiel das reaes
exequias, que á defunta Magestade do fidelíssimo e augustissimo rey o senhor D.JOÃO V. etc. Lisboa:
Officina de Francisco da Silva, 1751.
12 “Ai de nós! Reino! Ai de ti, Minas!”. Affonso Ávila usou a tradução do dístico realizada pelo erudito padre
Lauro Palú.
15 Em minha tese intitulada “Affonso Ávila e a barrocologia americana: pensamento barroco e releitura das
Américas”. Nesse trabalho, comparo as principais teorias do barroco advindas da tríade cubana – Carpentier,
Lezama Lima e Severo Sarduy – fazendo-as dialogarem com a barrocologia avilana.
16 São eles: Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Luís Vieira da Silva, José Álvares Maciel, o padre José Lopes de
Oliveira, Domingos de Vidal Barbosa, João da Costa Rodrigues, Manuel da Costa Capanema e o padre José da
Silva de Oliveira Rolim.
17 Ou “Lista das pessoas que se acham presas em consequência das notícias de que se premeditava uma conjuração,
e em consequência das diligências judiciais a este respeito, dando uma ideia das presunções ou provas que
resultam contra cada uma delas.” (2016, p. 47)
1
SALTAM OS MON11ES DAS MINAS NESTA HORA
V'.m SUA ÃUREA IDADE A ÃUREA TERRA
A GRANDEZA DA FORTUNA CIFRADA EM BREVE ESFERA DE MATÉRIA E DE TEMPO
2
O
livro Patrimônio Cultural e Revolução Tecnológica destaca-se as relações sociais na
contemporaneidade, pois são pautadas por meio do desenvolvimento da cibercultura
e da diversidade cultural, na sociedade conectada virtualmente. A cibercultura cria
influências no meio ambiente cultural, porque as novas tecnologias passaram a fazer parte da
cultura e sua reinterpretação.
Os dispositivos jurídicos que regulam o ambiente cultural onde o ser humano está inserido
refletem no modo de vida e nas relações sociais e virtuais da sociedade. O meio cultural influencia
no modo de pensar, criar, agir e fortalece o desenvolvimento da identidade e memória cultural
de um povo e, na atualidade, passaram a ser potencializadas pelas tecnologias digitais.
A positivação desses direitos cul-
turais encontra-se na Constituição
Federal brasileira de 1988, nos ar-
tigos 215, 216 e 216 A, que são os
dispositivos que tutelam o pleno
exercício dos direitos e garantias ao
acesso às fontes das diversidades de
culturas no âmbito nacional. Os di-
reitos culturais estão consolidados
também na Lei de Incentivo à Cul-
tura n° 8.313/91, que instituiu o Pro-
grama Nacional de Apoio à Cultura
(Pronac), cuja finalidade é captar e
canalizar recursos para o setor cul-
tural. As Leis estaduais também im-
plementam a proteção à cultura e, no
Estado de Minas Gerais, por exem-
plo, a Lei n° 22.944/2018 institui o
Sistema Estadual de Cultura, o Sis-
tema de Financiamento à Cultura e
a Política Estadual de Cultura. Esses
dispositivos jurídicos são norteado-
res para efetivação do acesso à cultu-
ra e proteção dos direitos e deveres
A
pós uma demora de vários anos desde a aprovação do projeto, finalmente o Instituto
Cultural Amilcar Martins apresenta a todos os interessados na história de Minas uma
nova edição comentada do famoso opúsculo Prodigiosa lagoa descuberta nas Congonhas
das Minas do Sabará publicado de maneira apócrifa em Portugal na primeira metade do século
XVIII, cuja autoria até agora era atribuída ao cirurgião baiano João Cardoso de Miranda.
Desde a sua primeira edição, em 1749, o texto da Prodigiosa lagoa tem gerado muita polêmica,
não apenas sobre quem teria sido seu verdadeiro autor, mas sobretudo sobre o inusitado
conteúdo desta obra.
As águas da Lagoa Grande, como então era chamada, seriam de fato milagrosas, como chega a
ser sugerido até mesmo pelo título do livreto? Os peregrinos que ali se banhavam ou bebiam a
sua água em meados do século XVIII teriam realmente encontrado a cura para as suas doenças,
dando origem ao povoado e à construção da capela dedicada à Nossa Senhora da Saúde?
Ou, por outro lado, haveria talvez
uma explicação científica para
as propriedades medicinais da
prodigiosa lagoa, as quais, aliás,
em pouco tempo se perderam,
restando apenas no nome Lagoa
Santa, a lembrança do seu passado
glorioso.
Neste livro, além de publicarmos
os dois textos do século XVIII
que descrevem a lagoa e seus
supostos milagres, convidei quatro
pesquisadoras especialistas na
história de Minas e uma especialista
em acervos de obras raras, para
nos ajudarem a desvendar esses
mistérios. Sendo essas a professora
Diná Araújo que reconhece sua
inequívoca autenticidade e chama
a atenção para elementos gráficos
que se diferenciam entre dois
exemplares e que nos fazem crer
que a obra pertencente ao ICAM
O
ano de 2022 marca algumas efemérides importantes no calendário cultural como o
centenário da Semana de Arte Moderna e os cem anos de nascimento do compositor
Gilberto Mendes. Nesse contexto, a Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte
decidiu homenagear os 89 do compositor Rufo Herrera, nascido em 1933. Qualquer marca
temporal é mera convenção, “bobagem de contar tempo, de colar números na veste inconsútil
do tempo, o inumerável”, conforme escreveu Carlos Drummond de Andrade (1988, p. 814)
no poema “Manuel Bandeira faz noventanos”. Daí ser desnecessário uma contagem exata para
realizar essa justa homenagem.
Sob a curadoria de Cristina Guimarães e Paulo Sérgio Malheiros, aconteceu no dia 07 de
agosto de 2022, na Sala Sergio Magnani, um concerto que reuniu seis obras deste compositor,
de diferentes fases de sua produção1. Excluiu-se, por razões da montagem, obras cênicas e
formações instrumentais ampliadas. Embora a amostra seja reduzida é representativa de uma
obra volumosa e multifacetada que carece ainda de uma catalogação sistemática2.
O COMPOSITOR
Rufo Herrera nasceu em 1933 em um pequeno distrito rural de Córdoba (Argentina). De família
campesina e filho de um pai violeiro e payador, desde a infância demonstrou aptidão para
a música. Aos seis anos foi apresentado ao bandoneón, instrumento típico na música popular
argentina que o acompanha até os dias atuais. Transferiu-se para Buenos Aires, onde realizou
estudos de bandoneón e violoncelo, trabalhando em orquestras profissionais de tango. Em
1961 percorreu vários países da América Latina realizando pesquisa sobre a música dos povos
remanescentes das civilizações originárias do continente. Em 1963 estabeleceu-se em São Paulo
desenvolvendo estudos de composição sob a orientação do maestro e compositor Olivier Toni
e piano complementar com Marta Cerri. Convidado pelo grupo de compositores da Escola de
Música da Universidade Federal da Bahia, transfere-se para Salvador, integrando o movimento
A HOMENAGEM
O concerto – quase monográfico –, que colocou em evidência memórias e reminiscências de
lugares e situações vividas e imaginadas por Rufo Herrera, incluiu ainda uma obra de Marco
Antônio Guimarães e a leitura de um texto de João Guimarães Rosa. Um roteiro com imagens
e breves comentários projetados entre cada uma das peças apresentadas foi elaborado pelos
autores deste artigo. Embora o repertório escolhido não represente a totalidade de sua trajetória
e tampouco tenha sido organizado cronologicamente, apresenta um retrato de algumas facetas
da poética do compositor conforme pretendem demonstrar as notas a seguir:
Neste Noturno as seções são baseadas num princípio de repetição, criando zonas expressivas
que se encadeiam sem preocupação em desdobrar uma lógica discursiva evidente. Tal
procedimento provoca alterações sutis no fluxo do tempo que tem mais a ver com um tipo de
reiteração ritual e com um “despojamento voluntário de materiais” (PARASKEVAÍDIS, 2009,
p. 4-5) do que com as repetições de tendência mais mecânica, característico no minimalismo
norte americano. Nesse sentido, a peça talvez possa ser identificada como o que a compositora
Graciela Paraskevaídis denominou “minimismo” latino americano, cujo princípio fundamental
consiste em “repetições de células de uma maneira não mecânica, enriquecidas sutilmente
por elementos como o ostinato, comuns aos usados em culturas indígenas e afro americanas
(AHARONIÁN, 2003, p. 3).
Composta durante o Festival de Inverno em Diamantina, é uma obra móvel. Isso quer dizer que
a ordem temporal das estruturas musicais é decidida pelos músicos, no momento da execução.
Além da mobilidade e abertura, a obra traz elementos da cultura andina, como um fragmento
de poema em quéchua, do escritor peruano José Maria Arguedas:
A águia
sagrada
ouvirá o som da quena
dos filhos do
sol.
Fig 3. Apresentação da obra “Ideofonia 1” para piano, clarinete e violoncelo. Foto: Guilherme Machala.
Composta originalmente para viola caipira. Apresenta dois subtítulos: “Puna” e “Monotonia”.
O primeiro faz alusão a Puna de Atacama (norte do Chile e Argentina), ambiente presente
em outras obras do compositor. O segundo se refere à monotonia do deserto de Atacama,
representado pela textura estática e ressonâncias longas dos harmônicos naturais da viola.
É também uma reminiscência da paisagem sonora andina e uma homenagem ao povo originário,
“inspirada em reminiscências do meu convívio com os aimará em 1961”. É composta por três
episódios, cada um situado por uma epígrafe que evoca um afeto, um estado de espírito que se
transforma ao longo do caminho: o lamento estático e ressoante no altiplano, a descida do serro,
mais movimentada, e o encontro para festa, já no vale.
Episódio 1: “Vidála”. “Puna, silencio y viento, el hérke suena a lamento... algún índio há muerto,
algún indio há muerto...”. Em Puna, no deserto de Atacama, o lamento de uma herke, espécie de
corneta longa, comunica a morte de um índio.
Episódio 2: Andante moderato - “Chaya”. “Hoy es domingo de chaya, hemos de bajar el serro... así
nomá-y ser, así nomá-y ser...”. A Chaya tem um espírito festivo e também comunica algo, nesse
caso a descida do altiplano em lhamas carregadas de milho e batatas, para se reunir em feiras
no vale.
Episódio 3: “Huayno” - Allegro moderato. “En el valle han de bailar y chupar, hasta cair de
machaditos... así nomáy ser”. Já no vale dançam o huayno, canto e dança de origem pré-hispânica,
posteriormente denominada carnavalito, e bebem até cair.
Integrava inicialmente a Suíte Austral, para bandoneón solo, composta por quatro peças que
se relacionam a gêneros musicais do sul do continente americano: (1) Huella, (2) Pampeano,
(3) Seresta e (4) Tango. Ainda que escritas segundo o idiomatismo instrumental próprio do
bandoneón essas peças evocam o violão, instrumento no qual seu pai executava milongas
tradicionais. “Luar de agosto” seria a quinta peça da suíte, mas acabou sendo separada, passando
a ser executada como peça isolada.
A relação de Rufo Herrera com o bandoneón é íntima, profunda e atravessada por um “realismo
mágico” que poderíamos pensá-lo como uma perspectiva orientada a partir dos objetos, tal como
sugere Timothy Morton (2013, p.23) em seu ensaio “Magia realista: objetos, ontologia e causalidade”.
Uma relação de alteridade que acompanhará o compositor desde a infância até os dias atuais,
somando oito décadas. É o que Rufo registra no encarte do CD “Bandoneón” gravado em 2002:
Fig. 6 - Berenice Menegale executando “Eterne” de Marco Antônio Guimarães. Foto: Guilherme Machala.
Referências bibliográficas
AHARONIÁN, Coriún. An Approach to Compositional Trends in Latin America. Leonardo Music Journal,
vol.10, 2000, pp. 3-6.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Discurso de primavera. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1988.
COURA, Giuliano. 2021. Da Puna ao Valle: Percurso da vida e da obra de Rufo Herrera e proposta para uma
edição de performance de Senda Aimára. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.
HERRERA, Rufo; Orquestra Experimental da UFOP (Interp.). Bandonéon. Belo Horizonte: Karmim, 2002. 1
CD. Acompanha encarte.
MORTON, Timothy. Magia realista: objetos, ontología y causalidad. Open Humanities Press. Londres, 2020.
Versão eletrônica disponível em: http://www.openhumanitiespress.org/books/titles/magia-realista/
NOGUEIRA, Ilza. Grupo de compositores da Bahia: implicações culturais e educacionais. Revista Brasiliana.
Rio de Janeiro, n.1 p. 28-35, janeiro 1999.
PARASKEVAÍDIS, Graciela. 2009. Conferencia inaugural simposio La otra América. Versão eletrônica
disponível em: http://www.gp-magma.net/es_bio.html- Acesso em 31-8-2020.
ROSA, João Guimarães. Minas Gerais. In: Ave, palavra. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985. p. 269-275.
Notas
1 O concerto pode ser assistido em https://www.youtube.com/channel/UCbk6BbzvpCg8mNDN9t3t0RA
GUILHERME PAOLIELLO
Professor do curso de música da Universidade Federal de Ouro Preto.
“Estamos vivos em 2022 e isso é muita coisa. Estamos todos conectados pelo ar, pelo chão e pelo
som ao nosso redor. Vivemos em um país em que seguir fazendo dança é um ato de extrema
coragem e amor”. Dando vazão a estas palavras tão necessárias a um tempo em que são cada vez
mais recorrentes os ataques à necessária conexão entre a arte, o homem e a terra, a performer,
bailarina e terapeuta Micheline Torres inspirou o ideário dramatúrgico da mais nova criação
coreográfica de Márcio Cunha.
Titulado simbolicamente como Sacro, este espetáculo de dança-teatro também faz eco a um vínculo
sagrado entre o corpo e a natureza numa transcendência gravitacional com as energias cósmicas
através de sua representação performática. Na busca da empatia coreográfica correspondente
ao que o filósofo Merleau-Ponty chama de fenomenologia da percepção capaz, assim, de possibilitar
o “entrelace sinestésico” ou troca sensorial entre o artista/bailarino e o espectador.
Dando ainda eco a uma propensão coreográfica de busca inventiva do movimento natural que
estabeleça um despertar psicofísico entre a ambiência da natureza e a interioridade humana.
Que vem desde a sua precursora/visionária Isadora Duncan, passando por nomes da dança pós-
moderna, até chegar a contemporâneos como o anglo/paquistanês, Akram Khan.
Márcio Cunha é um dos mais contumazes adeptos desta tendência, exemplarmente mostrada
em suas últimas criações cênicas como Rosário (2018) e Barro (2019), além de outras de
experimentalismo virtual para tempos pandêmicos e, agora, neste Sacro em sua volta ao palco
presencial.
Tornando prevalente seu conceitual estético e coreográfico no entorno do cósmico encontro do
homem com os elementos orgânicos, numa dança na e pela natureza. Diferencial apenas por sua
não participação, como de hábito, no papel de performer protagonista/bailarino solo.
Mas acumulando um tríplice ofício artístico por sua concepção, direção e ambientação cênica,
tendo como intérpretes reconhecidas personalidades da dança contemporânea brasileira,
Sob uma trilha incidental (Leonardo Miranda) à base de acordes fragmentários que vão de solos
instrumentais, como uma original transcrição para flautim do hino nacional, a instantâneos
trechos de Bach ou de cantos de terreiro. Entremeados pela prevalência de sonoridades florestais,
ruídos de ventos, chuvas e cantos de pássaros.
O gestual dos bailarinos, ora expressando a vivência lúdica/sensorial de questões ecológicas
ora mergulhando na interioridade do eu, numa autodescoberta palpável da conexão física e
espiritual com si mesmo e com a natureza.
Do dançar inicializado em círculo tridimensional, três bailarinos como um só corpo, empenhados
na abertura de portas metafísicas sob posturas meditativas ou energizadas no acionamento das
tensões em movimentos mais bruscos.
Ao lado de uma mascaração facial teatralizada entre intuitivas manifestações de alegria ou de
dor, no desafio dos enigmas do Sacro e diante do difícil suporte da condição humana e sua
corporeidade terminal transmutada em parte orgânica do solo.
Integralizando emotivamente o que se poderia denominar de uma “biomimética” coreográfica
nesta dança do Ser com a Terra. Numa pulsão transcendente capaz de remeter ao emblemático
ideário de Martha Graham no acreditar que onde quer que um bailarino pise é solo sagrado...
Notas
1 Wagner Corrêa de Araújo - Jornalista especializado em cultura, roteirista, diretor de televisão, crítico de artes
cênicas.
E
m 1833, na região de Carrancas, em Minas Gerais, um grupo de escravizados se rebelou
contra seus senhores em nome da liberdade. Liderado por Ventura Mina, o levante
deixou diversos mortos, entre eles dez pessoas da família do Barão de Alfenas, incluindo
mulheres e crianças, e dezesseis escravizados. Pouco documentado, o episódio tem indícios da
participação de um oponente político do Barão, acusado de incitar o massacre, e influenciou leis
que definiram o rumo do país.
O filme tem direção de Elza
Cataldo, direção de fotografia
de Marcelo Borja, roteiro de
Elza Cataldo, Christiane Tassis e
Pilar Fazito, com consultoria de
Joel Zito Araújo. Traz entrevis-
tas com especialistas, em espe-
cial com o pesquisador da UFJF
Marcos Ferreira de Andrade,
com descendentes da família
Junqueira e com descendentes
de escravizados. O filme traz
também entrevista com o ar-
tista plástico Dalton Paula, que
criou o retrato do líder Ventura
Mina, e registra seu processo de
criação. O retrato ilustra o car-
taz do filme. Maurício Tizumba
e Sérgio Pererê fazem participa-
ção especial, com performan-
ces musicais. A produção é da
Brokolis do Brasil.
Link do trailer:
https://vimeo.com/587893508
ELZA CATALDO
Diretora, produtora e roteirista de cinema