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CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA ENTRE O JECA-TATU E O

FUTEBOL: CARICATURAS DE IDENTIDADES NACIONAIS NO BRASIL DE 1922

Flavio Mota de Lacerda Pessoa


PPGAV/EBA/UFRJ
[email protected]

Introdução - O centenário de uma nação em crise


Importante, oportuna e incômoda efeméride, a celebração do Centenário da
Independência. Carregado de significados, interpretações e projetos muitas vezes dissonantes,
o ano de 1922 seria intenso, e traria à tona crises, dúvidas e um cenário de disputas simbólicas
diversas, marcado por uma série de episódios relevantes na história do país. As eleições
presidenciais seriam acirradas por escândalos envolvendo candidatos em manchetes de jornais,
imposição de censura à imprensa, revoltas militares e novas representações partidárias. O
modelo político estabelecido pelas primeiras décadas da República que manteve o poder das
oligarquias agrárias, começava a dar claros sinais de esgotamento. Diante do crescimento de
novas forças e vozes dissonantes, o governo, então, não economiza investimentos e esforços
na oportuna celebração do centenário, onde buscava projetar positivamente, interna e
externamente, a imagem de uma nação unida, moderna, civilizada e pacífica. (MOTTA, 1992)
O ambiente provocado pela expectativa em torno do centenário, trazia à tona o
incômodo problema da identidade nacional. A questão expunha a fragilidade dos componentes
e das condições que esboçam o que poderíamos reconhecer como características culturais da
nação brasileira; formada por uma esmagadora maioria de analfabetos, “herdeiros” da
escravidão. Os processos de independência do Brasil, bem como das ex-colônias da América
Latina nas primeiras décadas do século XIX, não alterou a condição agrária e de dependência
econômica destas novas nações, que configurava a raiz de todo atraso tecnológico e estrutural
em relação às nações européias. No caso brasileiro, nem o processo de independência, nem
tampouco a proclamação da República teria promovido alterações radicais na política
econômica e estrutural do país até a Revolução de 1930, cujas condições históricas começam
a se esboçar neste conturbado ano de 1922.
Em seu estudo sobre as revistas paulistanas da primeira república, Ana Luiza Martins
define o ano de 1922 como um período de “balanços e tomadas de posição”, (2001, p.18)
lembrando de imediato duas ocorrências no âmbito político de enorme relevância simbólica: a
fundação do Partido Comunista do Brasil e o levante dos 18 do forte, que de algum modo
evidenciam sinais de desgaste da República “Café com Leite”. Se o período que entendemos
por “Primeira República” iria se estender até a Revolução de 1930, o ano de 1922 seria cenário
de uma série de ocorrências históricas no plano político, econômico e cultural de forte carga
simbólica que começam a denunciar o esgotamento daquele modelo político. Em “A Nação
faz cem anos”, Marly Motta contextualiza o ano de 1922 como de uma profunda descrença da
nova elite intelectual com relação aos rumos políticos do país, orientado pelos interesses da
velha oligarquia agrária. Em suas palavras,
1922 revelou-se um ano-chave para o acirramento desta descrença: de um lado, a
comemoração do centenário, forçando uma reflexão sobre o país, e em especial, um balanço
sobre as realizações republicanas; de outro, a crise política, representada por uma campanha
presidencial particularmente tensa, coroada por uma rebelião militar na própria capital.
Justamente no ano em que o país deveria celebrar a emancipação da nação, obtida graças “a
união de todos com o mesmo objetivo”, aí se incluindo até o antigo dominador, eis que uma
“atmosfera de ódios” torna evidente a falência do regime republicano. (MOTTA, 1992, p.23-
24)
Que identidade nacional poderia ser pensada se parte considerável da intelectualidade
brasileira rejeitava seu passado, “configurado na trajetória pouco edificante de uma República
que buscou copiar a "belepoque" falida” (1992, p. 31) ? Mota define como “múltiplas,
contraditórias e divergentes” as interpretações e caminhos propostos por uma heterogênea elite
intelectual do país. Em comum apenas, o desejo de um Brasil moderno.
O balanço dos cem anos e a conseqüente avaliação das condições concretas de atraso
da sociedade brasileira indicavam a necessidade de novos parâmetros que definissem uma nação
moderna, pois o modelo até então adotado parecia esgotado. (MOTTA, 1992, p.31)
É neste sentido que a celebração do centenário surgia num cenário conturbado como
grande oportunidade para o Estado amainar as crises em diferentes frentes. Os festejos do
centenário, que se estendia às competições olímpicas poliesportivas e à grande Exposição
Internacional, atendiam a um amplo leque de interesses políticos, diplomáticos, econômicos,
culturais e esportivos em contínuo e recíproco reforço. Empenhava-se um grande esforço em
projetar a imagem do país, interna e externamente, propagando a ideia de uma nação moderna
e civilizada. Buscava-se apoio internacional visando uma assento permanente na ONU, bem
como o reconhecimento de seu papel de liderança hegemônica na América do Sul. Pôs-se em
marcha uma série de reformas urbanas na capital do país. Em nome da higiene social, afastava-
se dos centros urbanos as moradias de baixa renda dependuradas no que ainda restava do Morro
do Castelo, medida que também atendia à especulações imobiliárias; projetava-se e fortalecia-
se o sentimento de união nacional em um momento de grandes cisões e desgastes políticos,
canalizava-se simbolicamente a capacidade de realizar eventos internacionais de grande porte,
bem como os possíveis desempenhos vitoriosos no campo esportivo. Evidencia-se, portanto, a
continuidade da exclusão do povo neste projeto de modernização.
E é nesse sentido que vamos investigar aqui uma pequena seleção da produção
caricatural do período, observando evidências da perspectiva particular de uma determinada
categoria de profissionais da imprensa. Estas obras que analisaremos aqui oferecem ao estudo
histórico um importante discurso alternativo e tantas vezes dissonante ao oficial que forma uma
frente de formadores de opinião de grande alcance e presente nos principais centros urbanos
do país. As charges, de autoria de dois nomes consagrados na história da caricatura brasileira,
Alfredo Storni e J. Carlos (LIMA, 1963, V.3 pp.), para duas das revistas de maior tiragem do
período (SODRÉ, 1966; MALAIA e PESSOA, 2012,pp.), Careta e O Malho, são evidências
de um olhar bem mais crítico às solenidades e celebrações sociais e esportivas do centenário
do que a própria linha editorial dos periódicos. A análise dessas imagens buscam ampliar o
escopo documental através de uma ferramenta estratégica para poder veicular opiniões críticas
de desaprovação dos acontecimentos e decisões do Estado, ou dos hábitos populares. Há que
se ter em conta que o contexto político conturbado do período ameaçavam a liberdade de
expressão, que culminou na aprovação do projeto de lei que previa oficializar o controle e a
censura da imprensa.
Jeca-Tatu em traje de gala: a resposta do humor ao Brasil das contradições modernizantes.
Na emblemática charge de J.Carlos para a capa de uma edição d’O Malho de 1925, um
exemplo perfeito do desgaste do modelo político oligárquico predominante na primeira
república. Na composição, dois bules de metal de proporções gigantescas destacam-se sobre
um fundo monocromático chapado em vermelho. Em primeiro plano, no bule mais alto, lemos
a inscrição “Café de São Paulo”, enquanto no menor, “Leite de Minas”. Juntos representam a
política “Café com leite” predominante por toda a República Velha. Em primeiro plano, de
expressão tristonha, observamos o Jeca. Com seu usual chapéu de palha, camisa xadrez e o
exagerado e habitual lenço vermelho atado ao pescoço, ele ergue uma xícara com as duas mãos.
Parece ter interrompido o movimento que levava a xícara à boca para dar atenção a um
conhecido personagem de J.Carlos, que lhe dirige uma pergunta pertinente:
CARDOSO__ “O’ Jeca, porque é que você não muda de refeição? Sempre a mesma coisa.”
JECA _ “ O’ xentes! Mudá como? Não tem carioca…

Figura 1 J.CARLOS,A descendência de Job. O Malho, 29AGO 1922.


Nota-se que é o personagem urbano e letrado que questiona o porquê de nos mantermos
assim tão fiéis ao café com leite. J.Carlos sublinha aqui a persistente dificuldade do Estado
brasileiro de ir além do café como motor de sua economia, bem como da população reagir a
sua condição negligenciada. Mas é sobre a figura do caipira que vamos concentrar nossas
reflexões. A resposta humorística aos esforços do Estado em projetar superficialmente a
imagem de um país moderno e civilizado, era escancarar o descompasso entre a ideia de nação
pretendida e propagada e a realidade agrária brasileira. O caipira, usualmente chamado de Jeca,
em alusão ao Jeca-Tatu, personagem da obra de Monteiro Lobato, venceu e perdurou como
uma representação usual da população brasileira nas páginas das revistas de grande circulação
do país, nos traços diversos nomes consagrados da imprensa brasileira na arte da caricatura
durante a década de 1920 e só iria começar a desaparecer no decorrer da era Vargas.
Pesquisando a revista O Malho, por exemplo, nos deparamos com um número incontável de
capas com o caipira no centro das atenções no decorrer da década de 1920.
Logo percebe-se que o personagem não é sempre o mesmo, ainda que carregue
invariavelmente o nome de Jeca. Seus traços físicos de rosto e corpo variam a cada charge.
Essa flexibilidade no tipo físico do personagem o torna ainda mais anônimo, o que reforça sua
condição precária, sem identidade ou cidadania. Adota-se um nome genérico para se denominar
um personagem genérico, que representa uma determinada coletividade, reproduzindo um
estereótipo da figura do caipira, e projetando essa identidade na representação da população
brasileira Roupas rasgadas ou remendadas, pés descalços, gestos servis, sotaque carregado,
além da enorme dificuldade com a gramática da língua portuguesa definem o personagem que
melhor representa a nação, na perspectiva humorística do período. Já o Cardoso, outro
personagem que aparece na charge, era sempre o mesmo. Era conhecido por um sobrenome,
não por uma alcunha brejeira. Ao caipira resta ocasionalmente uma sagacidade irônica, um
tanto debochada. Ostenta um sorriso sardônico e uma dentadura desfalcada, barba por fazer,
ou uma nascente e modesta barbicha na ponta do queixo. Ao sublinhar a alienação do
personagem, os cartunistas lhe conferiam, por outro lado, uma dose de personalidade. Alheio
ao agito dos grandes centros urbanos, algumas vezes ele desdenha das celebrações, das pompas
e solenidades que configuram os costumes da metrópole.

Figura 3 : STORNI. Alfredo. Jeca-Tatu em traje de gala,


Careta, Rio de Janeiro, n.746, p.23, 07 out 1922.

Exatamente um mês depois da inauguração da Exposição Internacional do Centenário


da Independência, uma charge (Figura 3), Storni elegia o Jeca-Tatu como anfitrião da festa.
Posava entre Marcelo Torcuato de Alvear, futuro presidente da Argentina, e o então presidente
de Portugal, António José de Almeida. Muito pouco ou nada à vontade no traje à rigor, trazia
o colarinho frouxo no pescoço e a gravata amarrada como um lenço. Seu sorriso bestificado
pela surpresa contrastava com a expressão sisuda dos dois estadistas, mais altos e elegantes.
Ao fundo, percebemos a imponência dos pavilhões e luminárias compondo um cenário que
pouco fazia lembrar paisagens icônicas do Brasil ou mesmo do Rio de Janeiro. Ao pé da charge,
vemos uma legenda, sugerindo a fala do representante do povo brasileiro: “_Imagina só, se eu
não fosse anarfabeto (sic)!”
Storni debocha da obsessão civilizatória e colonizada do Estado e seus esforços em
enaltecer e se espelhar na tradição e cultura eurocêntrica. Um humor que debocha de um Brasil
oficial que ainda olha com desprezo para o povo e para a sua produção cultural. O Brasil não
se representa por esses palácios suntuosos, de arquitetura de gosto bem mais conservador, que
já vinha sendo suplantado na Europa desde a virada do século. Aponta o dedo na ferida, ao
mostrar a realidade atrasada e agrária da nação e a precariedade da população, passiva diante
das decisões políticas que não a considera. Só é lembrada aqui e como representante autêntica
do povo brasileiro através da expressão humorística.

Esporte, imprensa e identidade nacional


As obras de Benedict Anderson e Eric Hobsbawn se tornaram referência obrigatórias
para o estudo acadêmico sobre processo de construção e formação de identidades nacionais
(HOBSBAWN, e ANDERSON, 2008). “Comunidades imaginadas”, de Anderson, evidencia a
importância dos aspectos socioculturais para a formação política de Estados-Nações, bem
como para a delimitação e manutenção das fronteiras, explicando porque membros de uma
mesma comunidade que morem em pontos distantes e que nunca se viram compartilham de
sentimentos, valores e demais aspectos identitários comuns. Nesse sentido, as mídias assumem
papel fundamental com a disseminação das mais variadas produções artísticas ou culturais que
contribuem para estabelecer hábitos e valores simbólicos de grande expressão.
Hobsbawn, por sua vez, introduz a discussão sobre a invenção das tradições, define a
expressão como um conjunto de práticas rituais e simbólicas.que são criadas ou estimuladas
para “inculcar certos valores e comportamentos por meio da repetição, o que implica,
automaticamente; uma continuidade em relação ao passado”. (HOBSBAWN, 2008, p.9)
Seja “formalmente institucionalizadas”, seja constituídas por fenômenos e hábitos sociais que
vão surgindo e se estabelecendo, cuja origem é bem mais difícil de se localizar num período
delimitado de tempo. Uma forma exemplar que interessa particularmente a esta pesquisa é o
surgimento e a evolução das práticas em torno da final do campeonato britânico de futebol,
lembrado pelo historiador.
Tanto o esporte das massas quanto o da classe média uniam a
invenção de tradições sociais e políticas de uma outra forma:constituindo um
meio de unificação nacional e comunidade artificial. (...) era a demonstração
concreta dos laços que uniam todos os habitantes do Estado Nacional,
independente de diferenças locais ou regionais, como na cultura futebolística
puramente inglesa ou mais literalmente em instituições desportivas como o
Tour de France dos ciclistas (1903), seguidos do Giro D’Italia (1906)
(HOBSBAWN, 2008, p.309)
Benedict Anderson, por sua vez, empresta-nos a noção de “comunidade política
imaginada”, ao observar que os cidadãos, via de regra, se reconhecem como pertencentes a
uma mesma nacionalidade, mesmo sabendo que nunca viram, nem virão a maioria de seus
compatriotas (1993, p.21). Resgatando uma consideração sagaz do historiador francês Ernst
Renan, que estuda o conceito de nação, para quem a essência do termo residiria tanto no que
os indivíduos dessa sociedade podem ter em comum como nos esquecimentos. No caso do
Brasil, isso nos leva a pensar no esquecimento das camadas populares nas representações
oficiais, ou no investimento no futebol em detrimento das letras como símbolo nacional, o que
acusavam cartunistas e escritores.
Com esse conceito de nação em mente, W.S. Pope organizou uma publicação que
buscava oferecer um panorama analítico sobre como o esporte, através das suas relações com
a imprensa, constituindo uma contribuição fundamental para a construção do “nacionalismo
americano”. Pope escolheu, de forma simbólica, o intervalo entre 1876 e 1926, aproveitando
as celebrações pelos 100 e 150 anos da independência americana, reunindo reflexões que
tomam o espetáculo esportivo como janela para análise do amplo processo de materialização
de elementos da cultura popular no plano nacional, através dos mais variados recursos de
comunicação e das indústrias de entretenimento de massa.

Diplomacia da bola jogos: sul-americanos e relações internacionais


Mauricio Drummond destaca episódios e situações que tornaram o ano de 1922
extremamente conturbado politicamente. O pleito presidencial ocorrido em março daquele ano
acirraria a oposição entre oligarquias divergentes de diferentes estados. A cisão se tornou mais
tensa após o episódio que ficou conhecido por “cartas falsas” 1, envolvendo também segmentos
militares. A confusão agravaria a crise, que culminou com o levante no Forte de Copacabana.
A eclosão da revolta provocou o decreto de estado de sítio no Estado do Rio de Janeiro e no
então Distrito Federal (DRUMMOND, 2012). As comemorações do centenário no horizonte
tornam-se mais do que oportunas ao interesse de selar novamente a união nacional em torno
do objetivo comum de projetar positivamente a imagem do país como uma nação moderna e
capaz de realizar eventos internacionais de grande porte e de receber elevado número de turistas
e autoridades internacionais. As competições poliesportivas realizadas no bojo dos festejos
estavam cercadas de expectativa e envolvimento político e diplomático.
De acordo com Diego de Jesus e Valéria Guimarães, toda organização dos eventos
constituíam rara oportunidade de projetar internacionalmente a imagem de um país, moderno,
civilizado, com um futuro promissor e, principalmente, “um novo e decisivo ator da política
internacional” (JESUS e GUIMARÃES, 2012, p.47.) Ocupando desde 1920 um dos quatro
assentos temporários do Conselho da Liga das Nações, a república brasileira nutria sistemática
obsessão em conquistar uma cadeira permanente e garantir posição de maior destaque entre as
grandes potências da época, hegemonia na América Latina e condições cada vez mais
favoráveis nas relações comerciais. O governo não mediria esforços e recursos para grandes
reformas urbanas na capital, para a reestruturação e expansão da rede hoteleira, para a reforma
das praças esportivas, como o estádio do Fluminense ou para a construção dos suntuosos e
monumentais pavilhões da exposição. Considerando os objetivos e expectativas da projeção
nacional e internacional almejada, era imprescindível demonstrar impecável capacidade de
organizar eventos de porte internacional, evidenciando cada missão bem sucedida, fosse nas
vitórias no futebol, fosse nas competições dos produtos em exibição na exposição.
Neste contexto, as competições esportivas constituíam importante reforço no
estreitamento de laços diplomáticos entre as nações vizinhas, além de contribuir igualmente
para a pretendida projeção da imagem do país no plano internacional como nação moderna e
civilizada, disponibilizando um dos estádios mais modernos da América Latina. A primeira

1
O Correio da Manhã havia publicado, no ano anterior, cartas atribuídas ao então candidato da situação Artur
Bernardes com graves ofensas aos militares e ao candidato de oposição, Nilo Peçanha, provocando revolta e
mobilização de segmentos militares contra o candidato da situação.
edição continental dos Jogos Olímpicos, promovidos com a chancela do Comitê Olímpico
Internacional, bem como a realização do VI Campeonato Sul-Americano de Futebol, além dos
jogos militares internacionais constituíram as atrações esportivas da celebração, espalhadas
entre a Quinta da Boa Vista, o Estádio do Exército, o Quadrado da Urca e o recém reformado
estádio do Fluminense.
Mas ao rolar a bola nos gramados, a performance diplomática muito bem sucedida com
os cerimoniais e protocolos em torno da Exposição Internacional não se repetiria nas
competições. No caso dos jogos olímpicos, o fiasco se revelava no desempenho e nos
resultados obtidos. No caso do VI Sul-Americano, a situação se tornou delicada pelo trato com
os estrangeiros e na denúncia de manipulação de resultados. Como o desempenho da seleção
brasileira andava longe do esperado, para não correrem o risco de perder o campeonato, “numa
sucessão de arranjos espúrios ao futebol”, recorreram a uma vergonhosa manipulação de
resultados, assegurando a conquista para a seleção debaixo de muitos protestos e desconfianças
dos adversários.
Observando outra charge de Storni, numa composição mais alegórica e imaginativa,
uma sugestão explícita de agressão física entre dois jogadores de futebol atrai o olhar do leitor.
Um deles ergue a perna a ponto de pisar na garganta do adversário, que flexiona o tronco para
trás e ergue os braços, em busca de equilíbrio. Atrás deles o círculo da bandeira do Brasil ganha
volume e se transforma numa grande esfera, na frente do qual, jaz de perfil, esbelta e ereta a
imagem da República descansando o braço direito sobre a bainha da espada. Seu olhar mira o
horizonte, acima da altura dos jogadores. Imóvel parece ignorar a violência do golpe. Atrás da
globo da bandeira, um parlamentar, em trajes oficiais, volta os olhos à briga entre os atletas e
exclama: “o que alguns fazem com as mãos, outros fazem com os pés.”(MALAIA e PESSOA,
2012, p.158) Isolada na cena, praticamente esquecida, a bola não merece a atenção de nenhum
dos personagens descritos. Acima da cabeça da República, tremulam as bandeiras de três países
vizinhos: Argentina, Chile e Uruguai. Na legenda, o comentário do cartunista. “O que alguns
fazem com as mãos, outros desfazem com os pés.”
Figura 4 - STORNI, Alfredo. Fraternidade Sul-Americana, Rio de Janeiro: Careta 07 OUT 1922.
A dupla alfinetada se dirige ao futebol, como uma modalidade esportiva violenta, mas
também debocha da estratégia do Estado em fazer uso das competições esportivas para estreitar
as relações internacionais com os países vizinhos, embora o país não tivesse questões
territoriais mais sérias a se resolver com os demais países da América do Sul. Na verdade, as
confusões ocorridas durante os jogos, bem como as suspeitas levantadas contra arbitragem
talvez tenha causado mais arranhões do que laços afetivos (JESUS e GUIMARÃES, 2012).
Deste modo, a charge chama atenção ainda para o retumbante fracasso no papel que se esperava
que cumprisse, reforçando as boas relações diplomáticas entre os países da América do Sul.
Mas talvez o motivo mais forte para formar uma resistência desses formadores de opinião à
prática do futebol era enfatizar o esforço físico em desfavor do esforço intelectual, e a isso se
explica perfeitamente a enorme dificuldade destes cartunistas, além de escritores renomados
como Lima Barreto2, em aceitar o futebol como símbolo pátrio e elemento de unidade nacional,
apesar do enorme entusiasmo do público.
2.3.3 O confronto entre as letras e o futebol

2
Tornou-se célebre seu artigo carregado de ironia, As Glorias do Brasil, publicado na primeira edição de 1922,
onde considerava a prática esportiva mera futilidade inútil e lamentava profundamente o alvoroço popular em
torno deste espetáculo, face à pouca importância dada às letras. “As Glorias do Brasil”. Careta. Ano XV. nº
107, 7 de janeiro de 1922, p.19.
Afinados com discursos nacionalistas de uma elite letrada que ocupavam espaços de
proeminência na imprensa, os cartunistas pesquisados aqui condenavam a apropriação do
futebol, por conta de ser uma atividade física e não intelectual, como símbolo cultural de nossa
identidade nacional. Considerando as evidências já expostas, podemos afirmar, então, que
durante o período das competições sul-americanas poliesportivas de 1922, o futebol vinha
gradativamente se estabelecendo como modalidade esportiva mais popular no então Distrito
Federal, tomando o espaço que antes pertencera ao remo e ao turfe. Jornais e revistas de maior
alcance do Rio e de São Paulo já alguns anos antes do certame de 1922, reforçavam com
frequência o patriotismo envolvido no entusiasmo dos torcedores com os jogos entre equipes
brasileiras e estrangeiras.
Isso mesmo antes da fundação da Confederação Brasileira de Desportos, em 1914, e da
formação das primeiras seleções nacionais reunindo atletas considerados mais aptos a
representar o país em competições internacionais, com a chancela oficial de “seleção
brasileira’. O futebol configurava-se um produto altamente atrativo para ser consumido pelas
sociedades de massa que se formavam em grandes centros urbanos como Rio de janeiro e São
Paulo, que vivenciavam um ritmo intenso de crescimento econômico e populacional. Entre os
novos hábitos, as atividades de lazer público comercializável como o futebol, “sport da moda”
ganham destaque, responsáveis por um novo estilo de vida urbano característico. A conquista
do título da competição de 1922 pela seleção mereceu grande destaque nos grandes veículos
da imprensa que exultava o feito. “Todo o Brasil rejubila a estas horas com a merecida vcitória
alcançada hontem[...]” (MALAIA e PESSOA, 2012) destacava a primeira página do jornal
Imparcial. Já O Jornal carregava no tom patriótico ao afirmar que “os louros dessa memorável
pugna couberam, mui justamente aos nossos patrícios que tiveram, assim, o justo premio dos
esforços dispendidos e da abnegação com que sempre lutaram em defesa das cores nacionais.”
3

Vale esboçar aqui a dimensão desses periódicos de grande circulação nas grandes
cidades do país. A maioria dos jornais era diário e custava $100, metade ou um terço do preço
que se pagava para andar de bonde. As revistas, semanais ou quinzenais, eram mais caras. Um

3
O Jornal, 24 de outubro de 1922, p.7.
exemplar da Careta, em 1922, custava $400 (MALAIA e PESSOA, 2012)4. Com tiragem
semanal e circulação nacional e nos grandes centros urbanos podia ser facilmente encontrada
em engraxates, barbearias e consultórios médicos (SODRÉ, 1966, p.346), de modo que pode
supor o quanto este entusiasmo da imprensa contagiava o espírito dos leitores, fortalecendo e
ampliando o alcance deste sentimento. De todo modo, essas revistas tinham um alcance
certamente maior do que o número de exemplares de cada tiragem, se considerarmos que eram
facilmente encontradas em “engraxates, barbeiros, consultórios” (SODRÉ, 1966, p. 346), nos
grandes centros urbanos. Há que se sublinhar, portanto, que o enorme alcance desses periódicos
consagra e situa a posição daqueles que produziam o conteúdo dessas edições, seja textual, seja
iconográfico, como uma elite intelectual e formadora de opinião.
Em meio à competição, Storni encontra numa cena escolar, uma metáfora perfeita para
passar seu recado (figura 05). Uma figura alegórica da República faz as vezes de professora,
afagando com uma das mãos a cabeça de um Ruy Barbosa de proporções infantis em traje de
gala. Com a outra, estende um livro a um grupo de jogadores de futebol anônimos, que
aparecem de costas pro leitor, fazendo lembrar os alunos relapsos, gazeteiros em contraponto
com o “esforçado” e letrado Ruy. A legenda da ilustração acaba soando redundante diante da
imagem que fala por si. Ao estender o livro aos “meninos gazeteiros”, a figura da República
ainda recomenda:“ Meus filhos! Nada de exageros! Lembrai-vos que a grandeza de uma nação
não está nos músculos de seus atletas, mas na inteligência de seus intelectuais.” Lembrado
nesta e em outras charges, a figura de Ruy Barbosa, ex-presidente da Academia Brasileira de
Letras, duas vezes derrotado nas eleições presidenciais e tendo renunciado a uma cadeira no
Senado, parecia se configurar um símbolo facilmente identificável como um representantes das
letras e da intelectualidade brasileira.

4
O salário médio dos operários da importante América Fabril girava em torno de 200$000, de modo que
adquirir uma dessas revistas por semana lhe custava menos do que um por cento de seu ordenado. (LOBO,
Eulália Santos, 1978)
Figura 05 - Alfredo Storni. Aos livros. Rio de Janeiro: Careta, 28 de OUT 1922, p. 11.
Em outra charge de Storni, um gigante uniformizado como jogador de futebol, um
semblante que exala felicidade: de olhos fechados, o gigante mostra um sorriso aberto de
apenas dois dentes. Em posição ereta e de braços erguidos, tem em cada mão, dois membros
da Academia Brasileira de Letras, um deles de cabeça para baixo, é seguro pelos pés,
identificados pelo tradicional fardão da instituição letrada, símbolo máximo da intelectualidade
do país. A posição e a expressão do gigante fazem lembrar uma postura infantil. Os acadêmicos
lembram brinquedos em sua mão. Metáfora adequada para expressar a ideia de inversão de
valores que inquietava uma parte da elite que torcia o nariz para o sport da moda. O gigante de
Storni parece representar um atleta, trajando um uniforme mais característico de um jogador
de futebol: meias esticadas até o joelho, chuteiras, camiseta enfiada dentro do calção.
Figura 09 - Alfredo Storni. Sem título. Rio de Janeiro: Careta, 28 de OUT 1922, p.30

Se não podemos de imediato afirmar que o gigante atleta da charge de Storni poderia
ter sido pensado para representar o povo brasileiro, podemos considerar que parece representar
o futebol como uma ideia. Mas se “o futebol” é mostrado como um atleta gigante com
expressão abobalhada, brincando com as nossas letras, devemos levar em conta que a crítica
do cartunista recai mesmo sobre a sociedade brasileira, que prestigia e valoriza essa “futilidade
toda” em torno da competição esportiva, enquanto as letras são meros brinquedos, não são
levados a sério. O gigante de Storni pode não ser uma representação assumida do povo
brasileiro, mas é possível que faça alusão à “gigantesca popularidade’ da prática no Brasil, o
que de certo modo, abarca todo brasileiro envolvido com mais popular esporte bretão”.

Notas conclusivas
Quase 100 anos depois, no dia de estreia da seleção brasileira na Copa de 2014, o
cartunista Mario Alberto, então no diário esportivo Lance!, faria uma renovada caricatura de
um gigante torcedor para representar novamente o povo brasileiro. Um ano depois da série de
manifestações de 2013 que mobilizaram o país e popularizaram a expressão “o gigante
acordou”, o cartunista ironiza este despertar, mostrando o gigante ajudando na decoração das
ruas para a Copa do Mundo. Acentuava duas características do povo mais aceitas no país: o
tamanho da população, quinta maior do mundo, e sua passividade política, submissa e
apartidária. Curiosamente, o cartunista do jornal esportivo ensaia resgatar a velha crença que
associa futebol à alienação, quando o ato de enfeitar as ruas enfatiza essa condição.
Válido reforçar, portanto, que esta representação pejorativa que reconhece o povo como
uma massa alienada e passiva diante dos rumos políticos do país, não surgiu ali, em 1922, mas
bem antes disso, com o desenvolvimento da imprensa durante o segundo reinado e tampouco
haveria de terminar no ano do centenário, como parece demonstrar a charge bem mais recente
de Mario Alberto. Entre o gigante de Storni e o de Mario Alberto, muitas outras representações
de um personagem apático e passivo podem abrir horizontes a novos caminhos de pesquisa.
Antes da figura do caipira, o indígena também fora outra das representações lembradas pela
caricatura oitocentista. Na maioria das vezes, de forma pejorativa, estereotipada, mostrando-o
como vítimas, martirizados, passivos. O recorte aqui apresentado configura-se uma breve e
modesta mostra do que o estudo da imensa produção caricatural brasileira tem ainda a oferecer
à pesquisa historiográfica e ampliar o campo de reflexões sobre o passado.
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
DRUMOND, Mauricio. Os jogos esportivos do centenário: o ponto de vista da política.
In: MALAIA, João M. C. e MELO, Victor. (org)1922:celebrações esportivas do centenário.
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