ANPUH 2019 ARQUIVO JecaTatuefutebolnafestadocentenario
ANPUH 2019 ARQUIVO JecaTatuefutebolnafestadocentenario
ANPUH 2019 ARQUIVO JecaTatuefutebolnafestadocentenario
1
O Correio da Manhã havia publicado, no ano anterior, cartas atribuídas ao então candidato da situação Artur
Bernardes com graves ofensas aos militares e ao candidato de oposição, Nilo Peçanha, provocando revolta e
mobilização de segmentos militares contra o candidato da situação.
edição continental dos Jogos Olímpicos, promovidos com a chancela do Comitê Olímpico
Internacional, bem como a realização do VI Campeonato Sul-Americano de Futebol, além dos
jogos militares internacionais constituíram as atrações esportivas da celebração, espalhadas
entre a Quinta da Boa Vista, o Estádio do Exército, o Quadrado da Urca e o recém reformado
estádio do Fluminense.
Mas ao rolar a bola nos gramados, a performance diplomática muito bem sucedida com
os cerimoniais e protocolos em torno da Exposição Internacional não se repetiria nas
competições. No caso dos jogos olímpicos, o fiasco se revelava no desempenho e nos
resultados obtidos. No caso do VI Sul-Americano, a situação se tornou delicada pelo trato com
os estrangeiros e na denúncia de manipulação de resultados. Como o desempenho da seleção
brasileira andava longe do esperado, para não correrem o risco de perder o campeonato, “numa
sucessão de arranjos espúrios ao futebol”, recorreram a uma vergonhosa manipulação de
resultados, assegurando a conquista para a seleção debaixo de muitos protestos e desconfianças
dos adversários.
Observando outra charge de Storni, numa composição mais alegórica e imaginativa,
uma sugestão explícita de agressão física entre dois jogadores de futebol atrai o olhar do leitor.
Um deles ergue a perna a ponto de pisar na garganta do adversário, que flexiona o tronco para
trás e ergue os braços, em busca de equilíbrio. Atrás deles o círculo da bandeira do Brasil ganha
volume e se transforma numa grande esfera, na frente do qual, jaz de perfil, esbelta e ereta a
imagem da República descansando o braço direito sobre a bainha da espada. Seu olhar mira o
horizonte, acima da altura dos jogadores. Imóvel parece ignorar a violência do golpe. Atrás da
globo da bandeira, um parlamentar, em trajes oficiais, volta os olhos à briga entre os atletas e
exclama: “o que alguns fazem com as mãos, outros fazem com os pés.”(MALAIA e PESSOA,
2012, p.158) Isolada na cena, praticamente esquecida, a bola não merece a atenção de nenhum
dos personagens descritos. Acima da cabeça da República, tremulam as bandeiras de três países
vizinhos: Argentina, Chile e Uruguai. Na legenda, o comentário do cartunista. “O que alguns
fazem com as mãos, outros desfazem com os pés.”
Figura 4 - STORNI, Alfredo. Fraternidade Sul-Americana, Rio de Janeiro: Careta 07 OUT 1922.
A dupla alfinetada se dirige ao futebol, como uma modalidade esportiva violenta, mas
também debocha da estratégia do Estado em fazer uso das competições esportivas para estreitar
as relações internacionais com os países vizinhos, embora o país não tivesse questões
territoriais mais sérias a se resolver com os demais países da América do Sul. Na verdade, as
confusões ocorridas durante os jogos, bem como as suspeitas levantadas contra arbitragem
talvez tenha causado mais arranhões do que laços afetivos (JESUS e GUIMARÃES, 2012).
Deste modo, a charge chama atenção ainda para o retumbante fracasso no papel que se esperava
que cumprisse, reforçando as boas relações diplomáticas entre os países da América do Sul.
Mas talvez o motivo mais forte para formar uma resistência desses formadores de opinião à
prática do futebol era enfatizar o esforço físico em desfavor do esforço intelectual, e a isso se
explica perfeitamente a enorme dificuldade destes cartunistas, além de escritores renomados
como Lima Barreto2, em aceitar o futebol como símbolo pátrio e elemento de unidade nacional,
apesar do enorme entusiasmo do público.
2.3.3 O confronto entre as letras e o futebol
2
Tornou-se célebre seu artigo carregado de ironia, As Glorias do Brasil, publicado na primeira edição de 1922,
onde considerava a prática esportiva mera futilidade inútil e lamentava profundamente o alvoroço popular em
torno deste espetáculo, face à pouca importância dada às letras. “As Glorias do Brasil”. Careta. Ano XV. nº
107, 7 de janeiro de 1922, p.19.
Afinados com discursos nacionalistas de uma elite letrada que ocupavam espaços de
proeminência na imprensa, os cartunistas pesquisados aqui condenavam a apropriação do
futebol, por conta de ser uma atividade física e não intelectual, como símbolo cultural de nossa
identidade nacional. Considerando as evidências já expostas, podemos afirmar, então, que
durante o período das competições sul-americanas poliesportivas de 1922, o futebol vinha
gradativamente se estabelecendo como modalidade esportiva mais popular no então Distrito
Federal, tomando o espaço que antes pertencera ao remo e ao turfe. Jornais e revistas de maior
alcance do Rio e de São Paulo já alguns anos antes do certame de 1922, reforçavam com
frequência o patriotismo envolvido no entusiasmo dos torcedores com os jogos entre equipes
brasileiras e estrangeiras.
Isso mesmo antes da fundação da Confederação Brasileira de Desportos, em 1914, e da
formação das primeiras seleções nacionais reunindo atletas considerados mais aptos a
representar o país em competições internacionais, com a chancela oficial de “seleção
brasileira’. O futebol configurava-se um produto altamente atrativo para ser consumido pelas
sociedades de massa que se formavam em grandes centros urbanos como Rio de janeiro e São
Paulo, que vivenciavam um ritmo intenso de crescimento econômico e populacional. Entre os
novos hábitos, as atividades de lazer público comercializável como o futebol, “sport da moda”
ganham destaque, responsáveis por um novo estilo de vida urbano característico. A conquista
do título da competição de 1922 pela seleção mereceu grande destaque nos grandes veículos
da imprensa que exultava o feito. “Todo o Brasil rejubila a estas horas com a merecida vcitória
alcançada hontem[...]” (MALAIA e PESSOA, 2012) destacava a primeira página do jornal
Imparcial. Já O Jornal carregava no tom patriótico ao afirmar que “os louros dessa memorável
pugna couberam, mui justamente aos nossos patrícios que tiveram, assim, o justo premio dos
esforços dispendidos e da abnegação com que sempre lutaram em defesa das cores nacionais.”
3
Vale esboçar aqui a dimensão desses periódicos de grande circulação nas grandes
cidades do país. A maioria dos jornais era diário e custava $100, metade ou um terço do preço
que se pagava para andar de bonde. As revistas, semanais ou quinzenais, eram mais caras. Um
3
O Jornal, 24 de outubro de 1922, p.7.
exemplar da Careta, em 1922, custava $400 (MALAIA e PESSOA, 2012)4. Com tiragem
semanal e circulação nacional e nos grandes centros urbanos podia ser facilmente encontrada
em engraxates, barbearias e consultórios médicos (SODRÉ, 1966, p.346), de modo que pode
supor o quanto este entusiasmo da imprensa contagiava o espírito dos leitores, fortalecendo e
ampliando o alcance deste sentimento. De todo modo, essas revistas tinham um alcance
certamente maior do que o número de exemplares de cada tiragem, se considerarmos que eram
facilmente encontradas em “engraxates, barbeiros, consultórios” (SODRÉ, 1966, p. 346), nos
grandes centros urbanos. Há que se sublinhar, portanto, que o enorme alcance desses periódicos
consagra e situa a posição daqueles que produziam o conteúdo dessas edições, seja textual, seja
iconográfico, como uma elite intelectual e formadora de opinião.
Em meio à competição, Storni encontra numa cena escolar, uma metáfora perfeita para
passar seu recado (figura 05). Uma figura alegórica da República faz as vezes de professora,
afagando com uma das mãos a cabeça de um Ruy Barbosa de proporções infantis em traje de
gala. Com a outra, estende um livro a um grupo de jogadores de futebol anônimos, que
aparecem de costas pro leitor, fazendo lembrar os alunos relapsos, gazeteiros em contraponto
com o “esforçado” e letrado Ruy. A legenda da ilustração acaba soando redundante diante da
imagem que fala por si. Ao estender o livro aos “meninos gazeteiros”, a figura da República
ainda recomenda:“ Meus filhos! Nada de exageros! Lembrai-vos que a grandeza de uma nação
não está nos músculos de seus atletas, mas na inteligência de seus intelectuais.” Lembrado
nesta e em outras charges, a figura de Ruy Barbosa, ex-presidente da Academia Brasileira de
Letras, duas vezes derrotado nas eleições presidenciais e tendo renunciado a uma cadeira no
Senado, parecia se configurar um símbolo facilmente identificável como um representantes das
letras e da intelectualidade brasileira.
4
O salário médio dos operários da importante América Fabril girava em torno de 200$000, de modo que
adquirir uma dessas revistas por semana lhe custava menos do que um por cento de seu ordenado. (LOBO,
Eulália Santos, 1978)
Figura 05 - Alfredo Storni. Aos livros. Rio de Janeiro: Careta, 28 de OUT 1922, p. 11.
Em outra charge de Storni, um gigante uniformizado como jogador de futebol, um
semblante que exala felicidade: de olhos fechados, o gigante mostra um sorriso aberto de
apenas dois dentes. Em posição ereta e de braços erguidos, tem em cada mão, dois membros
da Academia Brasileira de Letras, um deles de cabeça para baixo, é seguro pelos pés,
identificados pelo tradicional fardão da instituição letrada, símbolo máximo da intelectualidade
do país. A posição e a expressão do gigante fazem lembrar uma postura infantil. Os acadêmicos
lembram brinquedos em sua mão. Metáfora adequada para expressar a ideia de inversão de
valores que inquietava uma parte da elite que torcia o nariz para o sport da moda. O gigante de
Storni parece representar um atleta, trajando um uniforme mais característico de um jogador
de futebol: meias esticadas até o joelho, chuteiras, camiseta enfiada dentro do calção.
Figura 09 - Alfredo Storni. Sem título. Rio de Janeiro: Careta, 28 de OUT 1922, p.30
Se não podemos de imediato afirmar que o gigante atleta da charge de Storni poderia
ter sido pensado para representar o povo brasileiro, podemos considerar que parece representar
o futebol como uma ideia. Mas se “o futebol” é mostrado como um atleta gigante com
expressão abobalhada, brincando com as nossas letras, devemos levar em conta que a crítica
do cartunista recai mesmo sobre a sociedade brasileira, que prestigia e valoriza essa “futilidade
toda” em torno da competição esportiva, enquanto as letras são meros brinquedos, não são
levados a sério. O gigante de Storni pode não ser uma representação assumida do povo
brasileiro, mas é possível que faça alusão à “gigantesca popularidade’ da prática no Brasil, o
que de certo modo, abarca todo brasileiro envolvido com mais popular esporte bretão”.
Notas conclusivas
Quase 100 anos depois, no dia de estreia da seleção brasileira na Copa de 2014, o
cartunista Mario Alberto, então no diário esportivo Lance!, faria uma renovada caricatura de
um gigante torcedor para representar novamente o povo brasileiro. Um ano depois da série de
manifestações de 2013 que mobilizaram o país e popularizaram a expressão “o gigante
acordou”, o cartunista ironiza este despertar, mostrando o gigante ajudando na decoração das
ruas para a Copa do Mundo. Acentuava duas características do povo mais aceitas no país: o
tamanho da população, quinta maior do mundo, e sua passividade política, submissa e
apartidária. Curiosamente, o cartunista do jornal esportivo ensaia resgatar a velha crença que
associa futebol à alienação, quando o ato de enfeitar as ruas enfatiza essa condição.
Válido reforçar, portanto, que esta representação pejorativa que reconhece o povo como
uma massa alienada e passiva diante dos rumos políticos do país, não surgiu ali, em 1922, mas
bem antes disso, com o desenvolvimento da imprensa durante o segundo reinado e tampouco
haveria de terminar no ano do centenário, como parece demonstrar a charge bem mais recente
de Mario Alberto. Entre o gigante de Storni e o de Mario Alberto, muitas outras representações
de um personagem apático e passivo podem abrir horizontes a novos caminhos de pesquisa.
Antes da figura do caipira, o indígena também fora outra das representações lembradas pela
caricatura oitocentista. Na maioria das vezes, de forma pejorativa, estereotipada, mostrando-o
como vítimas, martirizados, passivos. O recorte aqui apresentado configura-se uma breve e
modesta mostra do que o estudo da imensa produção caricatural brasileira tem ainda a oferecer
à pesquisa historiográfica e ampliar o campo de reflexões sobre o passado.
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
DRUMOND, Mauricio. Os jogos esportivos do centenário: o ponto de vista da política.
In: MALAIA, João M. C. e MELO, Victor. (org)1922:celebrações esportivas do centenário.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e terra, 2012.
JESUS, Diego Santos Vieira e GUIMARÃES, Valéria Lima. Muito além da festa: o VI
sul-americano e as relações internacionais no centenário da independência do Brasil.
In: MALAIA, João M. C. e MELO, Victor(org). 1922:celebrações esportivas do
centenário. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963.
LOBO, Eulália M. Lahmeyer. Rio de Janeiro Operário: natureza do Estado, conjuntura
econômica, condições de vida e consciência de classe: Access Editora, 1992.
MAIA, Andrea Casa Nova. O Mundo do trabalho nas páginas das revistas ilustradas. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2015.
MALAIA, João M. C. e PESSOA, Flavio M.L. Os jogos de 1922 na imprensa. In: MALAIA,
João M. C. e MELO, Vitor (org)1922:celebrações esportivas do centenário. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2012
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: Imprensa e práticas culturais em tempos de
república. São Paulo: FAPESP/EDUSP, 2001.
MOTTA, Marly. 1922 A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da
independência. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getulio Vargas - CPDOC, 1992
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso. A representação humorística na história brasileira: da
Belle Époque aos primórdios dos tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
SILVA, Marcos Antônio da. A construção do saber histórico: historiadores e imagens. R.
História. São Paulo, n. 125-6, p. 117-134, jan./jul. 1992.
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.