As Tramas Que Sustentam Os Corpos
As Tramas Que Sustentam Os Corpos
As Tramas Que Sustentam Os Corpos
Salvador
2019
MARINA FERREIRA BELO LOPES
Salvador
2019
MARINA FERREIRA BELO LOPES
Banca examinadora
Faltam palavras que façam justiça a tudo e todos que cruzaram meu caminho e
deixaram sua marca nesses dois anos de mestrado. Estes breves agradecimentos
são apenas uma forma de deixar registrada toda gratidão que me transborda no
encerramento de um ciclo tão significativo.
As professoras Rosa e Lia por aceitarem o convite de fazer parte dessa trama.
Desde a qualificação, as colaborações de ambas foram essenciais.
Aos meus pais e minha irmã, por acreditarem em mim mesmo quando eu não o
fiz. E por serem sempre fortaleza, incentivo e coragem, não importa onde no mundo
estivermos.
Por fim, agradeço com muito carinho a todo leitor que se propor a entrar nos
meus pensamentos e sentimentos abrigados nas próximas páginas.
A memória é a costureira, e costureira caprichosa. A memória faz a sua
agulha correr para dentro e para foram, para cima e para baixo, para cá e
para lá. Não sabemos o que vem em seguida, o que virá depois. Assim, o ato
mais vulgar do mundo, como o de sentar-se a uma mesa e aproximar o
tinteiro, pode agitar mil fragmentos díspares, ora iluminados, ora em sombra,
pendentes, oscilantes, e revirando-se como a roupa branca de uma família
de catorze pessoas, numa corda ao vento.
The following dissertation comes from a line tensioned between the female
ancestral traditions and the production of subjectivity in the context of contemporary
textile art. The process is based on the meeting of these different times, on the
marginalized narratives strategies and on the rescue of female memories through
generations. The presence and power of collective and individual memories in each
analyzed image is defended and it is from the images that the research moves. Nine
artists of different nationalities were chosen. In common, they found in embroidery a
subversive language to approach their feminine condition. One assumes the risk of
being part of this process of embroidery with the artists – a metaphorical process,
because here texts and textiles confuse and cross each other at any time.
LOPES, Marina Ferreira Belo. The weaves that holds the bodies: embroidery,
memories and contemporary women. Thesis advisor: Danillo Silva Barata. 111 f. il.
2019. Dissertation (Master in Visual Arts) – Escola de Belas Artes, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2019.
LISTA DE FIGURAS
Figura 8. I Have Been to Hell and Back, and Let Me Tell You, It Was Wonderful,
Figura 11. Penelope Unraveling Her Work at Night, de Dora Wheeler, 1886. 62
Figura 12. This Work Never Ends, de Jenny Hart, 2002. 70/71
Figura 19. Who Killed Les Demoiselles D’Avignon ? de Ghada Amer, 2010. 75
Figura 25. I Have Been to Hell and Back, and Let Me Tell You, It Was Wonderful, de
Louise Bourgeois, 1996. 79
Figura 31. Da série Animales Familiares, de Ana Teresa Barboza, 2011. 100
SUMÁRIO
1.2. ENXOVAIS 30
3.2. ROSANAS 87
O primeiro dos fios veio de um cartão postal adquirido há alguns anos em uma
visita ao Centro Georges Pompidou com a reprodução da obra de Louise Bourgeois I
have been to hell and back, and let me tell you it was wonderful1, na qual as mesmas
palavras do título são bordadas manualmente em um lenço. Idealizando o projeto a
ser submetido ao programa de pós-graduação, era eminente a vontade de comentar
sobre mulheres e feminismo, mas também sobre aspectos da arte contemporânea.
Leitora de Arthur Danto, estava obcecada por “pares de coisas das quais apenas uma
é obra de arte”2. Buscando a questão-chave que seria capaz de aproximar tais
assuntos - durante outro momento arbitrariamente atribuído ao acaso - a resposta
brotou do postal fixado na parede sobre a mesa: o bordado.
uma mulher negra - todas retiradas do álbum de família da artista - é marcada com
bordados agressivos e mal-acabados cobrindo uma parte significativa do corpo
dessas mulheres: boca, olhos, pescoço. Rosana exemplifica um grupo de artistas que
no cenário contemporâneo, em grau maior ou menor de consciência, vêm
ressuscitando e dando um novo olhar ao o uso de trabalhos manuais e domésticos
como forma de expressão. Tamanha potência artística e o modo como o bordado
parece estar “renascendo” na arte contemporânea me encantaram e instigaram,
chamando atenção para a subversão da técnica e dos objetos. O uso dos fios fora dos
padrões outrora tão estimados, o uso do próprio bastidor também como moldura,
trazendo inclusive importante metáfora poética para o trabalho ao passo que
“bastidores” se refere tanto ao objeto de madeira utilizado para esticar o tecido a ser
bordado quanto aos bastidores da história, da vida doméstica dessas mulheres
representadas.
críticos têm recentemente voltado seus olhares para o tema. Simioni (2010) faz uma
breve análise social de duas artistas brasileiras, uma delas a própria Rosana Paulino,
com forte discurso transgressor em suas obras e afirma o reconhecimento de
trabalhos que recorrem ao bordado como suporte:
3 DIDI-HUBERMAN, 2015.
18
“porque há uma memória social que transporta certos elementos: uma espécie de
memória involuntária que não é consciente” e se dá através das imagens. Abre-se
espaço para o anacronismo. (DIDI-HUBERMAN, 2015)
4 SCHVARZMAN, Sheila. Entrevista com Michelle Perrot. In: Cadernos Pagu (4), 1995, p. 29-36.
19
visível. Por outro lado, não faria sentido falar das individualidades e subjetividades de
cada artista e obra sem me colocar também nesse lugar de incerteza e criatividade.
Então, peço licença para transformar esse texto em têxtil. Roland Barthes -
curiosamente o orientador da tese de Ana Maria Machado - já havia traçado um
paralelo entre textos e têxteis, relacionando a construção do conhecimento à formação
de uma teia de aranha. Justamente por não se formar segundo uma lógica linear e
sim cíclica. Para o autor, o texto difere de uma linha de palavras e ideias, “o texto é
um tecido de citações”. (BARTHES, 1970, p. 3)
Para dar vida ao primeiro movimento, eu pego meu tear e desperto lentamente
a fixar lado a lado os fios da memória. A urdidura deve ser fixa, firme, deve-se contar
os fios, escolher bem as cores, já que define a forma da obra, suas dimensões. É
nesse movimento lento, porém preciso que o capítulo 1 TECER É NARRAR, como o
próprio título antecipa, retoma a relação de textos e têxteis. Não apenas em suas
coincidências formais, mas realizando uma revisão histórica que dá conta de nos
situar na teia de ideias articuladas em torno da construção da memória feminina, sua
íntima relação com as artes têxteis e das estratégias de criação e visibilidade das
mulheres dentro de uma sociedade cuja história é escrita por homens. Em analogia,
comparo a genealogia feminina aos enxovais, formas de transmissão de memórias e
afetos. Entender esses lugares fora da narrativa formal onde as mulheres
conseguiram firmar suas vozes é importante antes de entrar no fazer artístico
21
5 Figura 1 – Louise Bourgeois, Aranha, 1996, Museu de Arte Moderna de São Paulo. Fonte:
Marcos Mendes/Estadão.
24
Tantas culturas reconhecem essa figura. Ela é materna. Mãe dos Dias. Senhora
do Destino. Grande criadora da humanidade. Ela é a própria natureza.
Essencialmente feminina. Deusa. Virgem. Selvagem. Ela mora nas florestas. Ela
dança e te convida a dançar. Tem várias formas. Diversos corpos ou nenhum. Ela é a
mulher que mora no fim do mundo. Ela é aranha. Megera-criadora. Tecelã. Que
6
Ambas mitologias grega e romana possuem suas versões desse mito, aqui me baseio na
contada por Bufinch (2002).
25
Figura 2 - Gustave Doré, Arachne, 1861, ilustração para edição do Inferno de Dante.
deus criador original, girando o universo para forma-lo, a pedido do espírito do Grande
Céu” (BARTLETT, 2011, p.164) e intermediária entre os homens e os deuses.
Voltando aos gregos em sua narrativa mitológica, aquela que controla o fio da
vida surge na figura de três irmãs, jovens ou velhas a depender do momento. Para os
gregos, romanos e nórdicos elas são, respectivamente, conhecidas como Moiras,
Parcas ou Nornas. As Moiras, filhas da Noite e de Cronos (Deus do Tempo), fazem
uso da Roda da Fortuna como tear. Todos as temiam, uma vez que nem o próprio
Zeus tinha poder sobre as mesmas. As voltas da roda posicionam o fio do indivíduo
em parte mais privilegiada, no alto, ou em situações menos favoráveis, em baixo,
permitindo o controle de sua sorte e destino. Na mitologia romana as três deusas são
Nona, Décima e Morta. Nona tece o fio da vida no útero materno, até a nona lua.
Décima cuida de sua extensão e caminho, representando o nascimento e vida terrena.
Morta corta o fio. As Nornas Urd, Verdandi e Skuld representam respectivamente
passado, presente e futuro, mas trabalham ao mesmo tempo, de maneira tal que os
três tempos se tornam inseparáveis. Segundo Marta Robles (2006), a tríplice entidade
se relaciona também à deusa lua ou grande deusa. Mais além, o mito das Moiras
parece arraigado no costume remoto de bordar as insígnias da família e do clã nos
cueiros do recém-nascido.
“Às mulheres não foi dado durante séculos escrever. Elas traçavam
sinais de criação usando linhas enfiadas em finos orifícios, em teares,
manipulando pequenos instrumentos de fabricação caseira. Com isso,
transfiguravam o mundo, escrevendo signos que substituíam as palavras.”
(ALMEIDA, 2003)
pessoas que nada veem ou escutam dentro de si, mas suas mãos são capazes de
dar expressão concreta aos conteúdos do inconsciente.” (JUNG, 2011).
Diante das dificuldades que fazem sombra ainda nos tempos atuais, como se
desenvolveram a memória e epistemologia feminina? Em que outros aspectos seriam
as mulheres próximas à natureza da aranha? A medida em que a sociedade ocidental
patriarcal parece eliminar o caráter mitológico e louvável para entender bordado e
tecelagem como artes menores ou nem mesmo arte, seria o bordado uma forma de
aprisionar as mulheres ao doméstico bem como Aracne à sua nova forma ou a aranha
29
à sua teia? Estamos montando o tear, ainda criando a base que dará forma à teia de
questionamentos e significações. Sigamos com a tecitura.
30
1.2. ENXOVAIS
Juana Gómez8
passados, presentes e futuros. Hesíodo, contemporâneo de Homero e agraciado com tal poder pelas
musas, narra em um de seus poemas, Teogonia, a origem e nascimento dos Deuses, incluindo
Mnemosyne e suas filhas. Então, para mais detalhes sobre o mito, buscar o poema do século VIII a.C.
31
Para a agenda feminista os ganhos são louváveis, mas ainda longe do equilíbrio
idealmente esperado. As vitórias visíveis são o topo de um iceberg de violências
simbólicas, novamente se tratando de mulheres que também se fazem afetadas por
pertencerem ao mesmo tempo a outros grupos sociais estigmatizados que, frente ao
modelo do homem branco heterossexual se separam por um coeficiente simbólico
O que se quer ressaltar aqui é a força com qual se plantou no terreno da história
e, coletivamente, no terreno da memória uma figura feminina derivada da das duplas
de homólogos construídas pelo androcentrismo dominante a sociedade, ao longo de
muitos anos. A memória individual e consequentemente as atitudes e fazeres
femininos se moldam a essas representações socialmente aceitas, ainda que
passíveis de questionamento, que frequentam o consciente e inconsciente das
mulheres e homens até hoje. E como essa evolução está ligada também ao mítico,
aos arquétipos, ao religioso e psicológico.
privado por anos guardadas nos sótãos: das casas e da história. A medida em que o
masculino exerce hegemonia na narrativa histórica tradicional, é privilegiada a cena
pública (revoluções, guerras, regimes políticos etc.). Isto é o que Le Goff (1990) vai
chamar de história dos acontecimentos, onde os homens são maioria e a figura
feminina invisibilizada.
Das mulheres muito se fala, já elas falam muito pouco. Raízes religiosas,
mitológicas, biológicas ou sociais levam a um entendimento quase unânime na
construção do pensamento filosófico e histórico que domina o conhecimento ocidental
contemporâneo, da inferioridade da mulher diante do homem. Pensemos na
psicanálise, em como Laqueur difere os sexos através da diferenciação da genitália:
a masculina, exteriorizada, representando superioridade, a feminina invaginada e
imersa na obscuridade. Resultando respectivamente em perfeição e atividade,
imperfeição e passividade. Lacan, por exemplo, entende a construção do simbolismo
materno na natureza e paterno na linguagem/cultura, uma outra justificativa para a
dificuldade de acesso à linguagem por parte da mulher. A função da maternidade
afasta a mulher das faculdades intelectuais e aproxima da governabilidade no espaço
privado. (BIRMAN, 2006). A francesa Simone de Beauvoir, entrega contribuição
importante ao trazer o conceito do sujeito mulher como “o outro”, construído
historicamente em comparação ao homem. Obra de referência para toda discussão
acerca do patriarcalismo e condição de inferioridade feminina, o Segundo Sexo,
publicada originalmente em 1949, traz a afamada afirmativa: “a humanidade é
masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele”
(BEAUVOIR, 2016a). A teoria existencialista de Beauvoir caminha para o rompimento
entre conceitos de mulher e natureza, condição outrora naturalizada, corroborando
para o entendimento do ser social/cultural.
tempo, jura se casar ao terminar de tecer uma mortalha para Laerte, pai de Ulisses, e
então, por quase vinte anos, Penélope trabalha de dia e desmancha à noite.
gerações. São tarefas longas, minuciosas, que fazem o tempo do feminino ser e
parecer mais lento que o masculino. Só as mulheres podiam passar horas nas
atividades de bordar, tecer e costurar. Nada tão lento é designado aos homens, viris,
ativos e superiores, responsáveis pelas tarefas públicas, políticas e de prestígio.
Dessa forma, estar diante de uma imagem com a de Eliza é estar diante do
tempo, de vários tempos. A vitalidade da memória de uma imagem supera a humana
e não segue o curso linear do tempo, assim como a história tradicional tenta
convencer. É entender que os passados e memórias se apresentam enquanto
sintomas, de forma anacrônica. Segundo o autor, o anacronismo surge na “dobra
exata da relação entre imagem e história” (Didi-Huberman, 2015). O passado nunca
cessa de se reconfigurar, então a imagem só se torna pensável numa construção da
memória e da obsessão que ali sobrevivem. Sempre, diante de uma imagem, estamos
diante do tempo. Nesse sentido, mesmo em uma imagem - objeto ou gesto - do
passado, podem e devem surgir novos questionamentos a todo momento. Cabem
aqui questões relativas às experiências carregadas pelo autor e pelos leitores. Ao
contrário de “eterna” ou “absoluta”, a imagem, da mesma forma, se reconfigura diante
dos olhares. Mas sobrevive, visto que é o elemento da duração, do futuro. Diante de
uma imagem, somos o elemento de passagem.
24 de maio de 2018
44
A relação da artista com a arte têxtil remonta à infância, quando sua família
possuía um ateliê de restauração e tecelagem. A mesma relata em algumas
entrevistas seu afeto pelas lembranças da mãe bordando e trabalhando nas
tapeçarias. O envolvimento de Louise com a temática é de progresso natural, na
década de 1990, costura e bordado assumiram papel central e essencial de sua obra.
Diz ter encontrado ali a analogia perfeita para o ato de reparar, consertar. Quando
chegava uma tapeçaria destruída, no ateliê da família, as mulheres tinham que
analisar onde havia fendas na trama do tecido, pois seria necessário cobri-las,
refazendo, com paciência, com diversas linhas, assim como uma aranha tece sua teia.
Na obra de 1996, o título I have been to hell and back, and let me tell you, it was
wonderful, é também elemento central da obra quando bordado em letras garrafais.
Assim como em A Woman's Work is Never Done, a dor se apresenta como um
elemento antagônico ao delicado e feminino bordado. O lenço é outro objeto
tipicamente doméstico e rotineiro. O rosa, cor atribuída ao feminino. As características
45
Figura 8 - Louise Bourgeois, I Have Been to Hell and Back and Let Me Tell You It Was Wonderful, 1996.
Lenço de pano bordado, 29.5cm x 29.5cm;
Na imagem creditada à Alex Van Gelder vemos, sobre o fundo preto de suas
vestimentas, as mãos da própria Bourgeois, capturadas em fotografia no último ano
de sua vida. São linhas que, assim como as mãos de Eliza, são bordadas de memórias
e lembranças, de uma vida inteira dedicada à sua arte. Novamente como as mãos de
Eliza, contam uma história singular ao mesmo passo em que permitem uma série de
olhares externos, relações atemporais e identificações.
Aleida Assman
Louise Bourgeois15
15 Figura 10 – Louise Bourgeois, Art is a Guaranty of Sanity, 2000. Lapis sobre papel colorido.
“limitada”, mas fazer a vida fugir de suas limitações. Enquanto artista, ‘fugir’ é delírio
e é um ato libertário, tecendo a construção de outros modos de ser: “a subjetivação,
a relação consigo, não deixa de se fazer, mas se metamorfoseando” (DELEUZE,
2005, p 111).
A arte é nossa linha de fuga, a arte é o meio que nós mulheres bordadeiras
encontramos para atravessar a vida, a história. A arte é o que garante a sanidade no
dia a dia marcado por opressões e violências simbólicas. A arte é o que nossas mães
e avós nos ensinaram. A arte nada mais é do que uma maneira de escrever novas
narrativas. Me proponho, nas próximas páginas, a explorar com mais detalhes o lugar
da mulher e do feminino na arte, o poder de manipular sua própria verdade, as
estratégias feministas na direção de reconhecimento e destaque e as muitas
possibilidades e temáticas de produção de subjetividade.
Dou início aqui com o pertinente questionamento de Linda Nochlin: Por que não
existiram grandes mulheres artistas?16 Bem, certamente não por não serem capazes
de criatividade, talento e grandiosidade. Tampouco por suas diferenças biológicas em
comparação aos considerados grandes gênios da arte. A sociedade se conduziu de
tal forma que os homens tiveram vantagens, oportunidades e protagonismos nunca
permitidos às mulheres. No texto original, escrito em 1971 e ainda assim bastante
atual, a autora aborda algumas tentativas de responder a tal pergunta, desde a
iniciativa de historiadoras feministas dedicadas a resgatar registros de artistas pouco
reconhecidas em sua época. Outra tentativa envolve quebrar os paradigmas da arte
clássica e apontar diferentes formas de identificar a genialidade artística, abraçando
as técnicas e fazeres baseados na experiência feminina, obviamente tão diferentes
da masculina, como fazem algumas artistas contemporâneas. Invoca-se a ideia de
que arte é, em sua essência, uma forma particular e individual de expressar emoção.
16 NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women artists? In: Konsthistorisk
A arte feminista une, não por conformidade estética ou unidade de estilo, mas
através de um posicionamento que é político. As identificações com o feminino, seja
qual for a origem e manifestação, permitem infinitos caminhos. Ao tentar agrupar a
produção artística contemporânea na temática central desse projeto, dois deles são
destaque aqui: A compreensão do indivíduo e o mapa para os que vem depois; Lugar
de individuação e lugar de encontro. Pequenas e grandes narrativas.
52
Carolyn Heilbrun (1988) menciona quatro maneiras pelas quais pode se escrever
a vida de uma mulher: a autobiografia que a mesma se propõe a contar, a ficção criada
a partir de eventos específicos, a biografia redigida por um terceiro ou “a mulher pode
escrever sua vida no decorrer dos dias e ao longo das páginas de uma forma quase
inconsciente, por meio das folhas de um diário - esse gênero secreto que não raro se
torna uma faca de dois gumes contra a própria autora ao denunciar os episódios mais
inconfessáveis de sua vida.” (ROBLES, 2006, p.438)
A crítica literária feminista, nessa mesma obra de 1988 - Writing a Woman’s life
- tece, capitulo a capitulo, a história de mulheres independentes, ambiciosas,
poderosas, mas às quais o script masculino pouco faz jus. Carolyn defende que a
verdade é deixada de lado em detrimento dos conformes socialmente aceitos. De
George Sand a Virginia Woolf, as mulheres que Heilbrun nos apresenta são
aproximadas devido às dificuldades enfrentadas só pelo fato de serem mulheres. Dar
lugar para que essas histórias sejam contadas em perspectivas além das dificuldades
é uma homenagem ao passado, ao presente e também um convite ao futuro, para que
as mulheres contem suas histórias, criem novos meios. A autora faz parte do que ela
mesma chama de turning point da autobiografia feminina moderna, a partir de 1973,
quando uma série de artistas passam a explorar mais amplamente o gênero literário.
A inglesa Virginia Woolf é de fato uma mulher à frente de seu tempo, não apenas
por sua vida pessoal bem capturada por Carolyn, mas pela sua obra, vezes ficcional,
constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas
atuais.” (FOUCAULT, 2015, p 267). Ele continua: “Trata−se de ativar saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretenderia depurá−los, hierarquizá−los, ordená−los em nome de um conhecimento
verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns.” (FOUCAULT,
2015, p 268)
A leitura que Deleuze (1996) faz dos dispositivos é uma boa analogia para tentar
simplificar as relações de poder: “é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto
multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo
55
não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o
sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em
desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras.”
(DELEUZE, 1996, p.1). Nesse sistema, as forças em exercício são como vetores, de
variáveis diferentes e complementares, não necessariamente pré-definidas. Saber,
Poder e Subjetividade são as três grandes forças que Deleuze aponta. Trabalhar,
entender e desemaranhar as linhas de um dispositivo é um trabalho de cartografia.
Fugir de determinado dispositivo que organiza esse mapa, é criar uma linha de fuga.
Apesar de ser um termo não diretamente definido por Foucault em seus livros, o
dispositivo parece tangenciar todas as principais discussões trazidas aqui. Em
palavras resumidas, diria ser uma rede heterogêneo de coisas de diversas naturezas
- linguagens, discursos, instituições, enunciados científicos, leis - inscrito em um jogo
de poder particular, com uma função estratégica definida.
devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires” (Deleuze
e Guattari, 1997). A construção social dos corpos que surge dos discursos que
consolidam a sexualidade e subjetividade dominantes da relação de gênero, que já
atravessamos à luz do poder simbólico bourdiano, agora como nos modos de
existência contemporâneos agem para o aniquilamento do pensamento dualista. Na
lógica da dualidade, sendo a mulher esse indivíduo minoritário, o homem enquanto
‘oposto’ é majoritário por excelência e por tal razão Deleuze e Guattari negam a
possibilidade de um devir-homem, o que não impede que o devir-mulher seja
vivenciado pelos sujeitos masculinos. E pela sua característica de dupla captura, o
devir-mulher contamina tanto a forma do homem quanto da mulher simultaneamente.
A luta também pode se dar de maneira muito visceral, uma vez que o espaço
de contato de convergência dos indivíduos e dos dispositivos é o próprio corpo, é a
pele. Os dispositivos do patriarcado funcionam de maneira a convencer as mulheres
de habitarem um corpo dócil, socialmente mais frágil e biologicamente subordinado.
Então, o processo de fuga das mulheres deve passar em algum momento pelo
empoderamento do próprio corpo, dos seus desejos, gestos e sexualidade, vivências
das quais o corpo feminino foi por muito tempo exonerado.
Louise Bourgeois afirmava: Arte é uma garantia de sanidade. Para Louise, que
também se aventurou na escrita de livros e diários, a linguagem encontrada para
acessar o inconsciente e construir sua narrativa veio na forma de desenhos, de
esculturas, de bordados. Essa mulher que foi mãe, que foi casa, que foi corpo e mente
em catarse registrou em seu diário de agosto de 1984: “ser um artista é uma garantia
para seus companheiros seres humanos de que o desgaste da vida não deixará você
se tornar um assassino.” (BOURGEOIS apud BRAIN PICKINGS, s/d)
As imagens que Louise traz até nosso mapa fogem aos estereótipos de
representação do feminino, de uma imagem romantizada da natureza. Simone de
Beauvoir (2016) entendia a feminilidade como uma construção de código de regras
comportamentais em paradigma com o “feminino como essência”. O caráter artificial
da mulher viria acompanhado de uma série dessas imagens clichês, como, por
exemplo, ao longo da história da arte, a representação da mulher exaustivamente
repete paisagens bucólicas, confraternização com animais, flores e campos. Imagens
que nos ensinam a construir identidades, gestos e atos performativos (termo de Judith
Butler).
Ora, se o “ser mulher” é uma construção social, ela existe para ser questionável.
A arte de Louise funciona como uma linha de fuga nesse emaranhado de forças e
saberes dos dispositivos do patriarcado e das artes conforme as regras do jogo
tradicional masculino. Na fluidez constante do devir, Louise persegue o horizonte do
autoconhecimento. Nada obstante, como todo horizonte, a aproximação nunca finda
em um encontro real. A questão do “cuidado de si” está no caminho que é percorrido.
Mia Couto20
20 COUTO, 2016, p. 60
61
bens, de seu filho ainda jovem. Heilbrun lembra ainda de teorias que defendem autoria
feminina para A Odisséia, o que corrobora com as críticas feministas.
Não obstante, ao mesmo tempo em que tecer simboliza tanta carga feminina e
passiva, carrega o significado de ser uma linguagem própria e secreta das mulheres.
Ana Maria também nos fala dos espaços que se tornam exclusivamente ou
predominantemente femininos, onde se compartilha a criação de têxteis e de textos
igualmente:
Heilbrun atenta para o fato que Penélope se faz tão recolhida que nem aparece
entre os livros quatro e dezesseis da Odisséia. Introspectiva - ademais solitária -
Penélope estaria vivenciando um teto todo seu, ou melhor, uma narrativa toda sua.
Melhor ainda, múltiplas narrativas: cada dia experimentando uma imagem diferente,
cada noite reescrevendo-as. Ela é uma mulher que tem uma escolha e isso é raro. Ela
tem a possibilidade de testar, de desmanchar, “Sua história não aparece iluminada
em primeiro plano, mas está nos bastidores – ela a delineou reiteradamente no tear,
para uso próprio, em substituição às tantas histórias que teve de ouvir a vida toda.”
(MACHADO, 2003, p 189)
Figura 11 – Dora Wheeler, Penelope Unraveling Her Work at Night, 1886. Seda bordada com fio de
seda. 114.3 x 172.7 cm.
Outro mito grego que bem exemplifica o fenômeno e que Machado nos faz
rememorar é o de Filomena:
de sua história e faz com que a tapeçaria chegue às mãos de sua irmã – boa
leitora, que, imediatamente, decodifica a mensagem e entende o que
aconteceu, podendo assim encontrar a irmã e buscar justiça.” (MACHADO,
2003, p 188).
De forma até mais direta que em outros mitos e contos, podemos traçar aqui o
paralelo entre a leitura e sensibilidade feminina. A irmã consegue “ler” a tapeçaria de
Filomena, transformando em linguagem objetiva a subjetividade do artesanato da irmã
e ressaltando o caráter clandestino de transformar em narrativa um instrumento de
submissão, como é a tapeçaria.
Com o título de uma arte menor, a Penélope de Atwood inicia seu primeiro
capítulo criando um posicionamento crítico a como acha que será recebida sua
narrativa, no entanto sugere que todas as ‘verdades’ são igualmente não confiáveis.
Sendo assim, sua história parte de um lugar de igual subjetividade e dúvida que a de
Homero. Justificando, Penélope acrescenta:
21 ATWOOD, 2005.
64
mais com a opinião pública. A opinião de quem está aqui: das sombras, dos
ecos. Portanto, vou tecer minha própria narrativa. (ATWOOD, 2005, p. 17)
Vale também ressaltar que existe na obra ressignificada uma dupla oposição:
primeiramente à representação negativa das mulheres frente à autoridade masculina,
em segundo lugar à posição de privilégio de Penélope em comparação às doze
escravas. Condição esta que Bourdieu (2017) chamaria de vítima privilegiada – ao
falar das mulheres da pequena burguesia. Richards (2013) entende, na escolha de
Atwood em reler a participação das escravas na trama, a recuperação dessa voz
coletiva, uma narrativa dual tangenciando a crítica a consciência de classe.
Posso fazer referência à morte do autor de Barthes e buscar entender por que
só depois de sua morte física que Penélope decide – ou consegue – escrever sua
versão da história. Barthes fala da escrita como a “destruição de toda a voz” através
da qual se perde toda identidade, a começar pela do autor. (BARTHES, 1970). A
metáfora de que o autor deve entrar em sua própria morte para que a escrita possa
começar é levada ao extremo por Atwood. Ao mesmo tempo que parece não levar a
fundo a concordância com Barthes, uma vez que a figura feminina não parece se
desassociar da identidade do autor. Para Atwood, a autora feminina carrega questões
outras que dificultam acessar o lugar do romântico culto ao autor. A morte também é
explorada por Richards:
For the female author this death of the other self and the creation of her
new authorial identity becomes conflated with the cultural construction of the
female artist who must sacrifice her life for her art and will eventually be
destroyed by what she creates. (RICHARDS, 2013, p. 174)22
22 Para a autora feminina, essa morte do outro eu e a criação de sua nova identidade autoral se
confunde com a construção cultural da artista feminina que deve sacrificar sua vida por sua arte e
acabará sendo destruída pelo que ela cria. [tradução minha]
65
Toda essa construção em torno da história de Penélope vem para confirmar que
o bordado (simbolizando aqui toda arte têxtil ou fazer manual tipicamente feminino)
está longe de ser submisso e, quando decide se fazer risco, se fazer perigo, é de
grande potência. Quando a Penélope de Atwood se dá conta do que sua imagem tinha
se tornado, se refere às mulheres que a leem: “E o que me restou, quando a versão
oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para fustigar outras
mulheres (...) Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês”
(ATWOOD, 2005, p. 16)
A história das mulheres enquanto história menor, a arte têxtil enquanto arte
menor, ambas se relacionam a uma literatura menor, como Deleuze e Guattari leem.
Em Kafka: por uma literatura menor, Deleuze e Guattari (2014) desenvolvem o
conceito do menor enquanto uma prática que assume sua marginalidade dentro de
um campo ideológico enraizado. Não se trata de uma língua menor, mas do uso de
uma língua maior por uma minoria. Nesse sentido, para existir, um menor prevê um
maior. Mas não se faz menor em qualidade ou em ser diminuído, mas em ser minoria,
uma minoria que causa tensão na língua maior, que subverte:
Chamei assim de linhas subversivas, chamo desde que as conheci. O termo foi
se construindo de maneira que hoje visualizo o padrão que une as imagens através
desse substantivo-adjetivo. Com essas imagens-linhas-subversivas entendo uma
intenção que sobrevive e se renova a cada nó. Nas palavras de Jacques Rancière, “a
ação artística identifica-se com a produção de subversões pontuais e simbólicas do
sistema”. (RANCIÈRE, 2012, p 71) E assim fazem, ponto a ponto, as musas
contemporâneas com suas imagens-linhas-subversivas: na construção de novos
corpos, novos sentidos, novas mulheres, novas memórias, criam estratégias de
subversão e tiram do lugar comum ideias que tinham sido cristalizadas, em gerações
anteriores, sobre o que o bordado deveria ser e significar. Ao contrário da tecelagem,
com suas regras e sentidos, urdiduras e tramas, o bordado é livre. Bordar é uma
dança, é coreografia. O corpo se move e se molda ao gesto repetitivo, repetido cada
vez mais natural e instintivamente. As meadas de linhas se cruzam e se confundem.
Cada fio puxado causa uma ruptura no tecido.
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12 Jenny Hart, This Work Never Ends, 2002. Bordado manual sobre algodão. Fonte:
<www.jennyhart.net>
13 Eliza Bennett, A Woman's Work is Never Done, de Eliza Bennett, 2012. Linha, pele e impressão
digital. Fonte: <www.elizabennett.co.uk>
15 Ghada Amer, Sindy in Pink – RFGA, 2015. Fonte: tinta acrílica e bordado sobre tela. 91.4 x 106.7
cm. Fonte: Ghada Amer / ADAGP Paris.
17 Rosana Paulino, Bastidores, 1997. imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura,
30cm. Disponível em: <http://www.rosanapaulino.com.br/>
19 Ghada Amer, Who Killed Les Demoiselles D’Avignon? 2010. Fonte: tinta acrílica e bordado sobre
tela. Fonte: Ghada Amer / ADAGP Paris.
20 Ana Teresa Barboza, Animales Familiares, 2011. Grafite e bordado sobre tela. 104 x 102 cm. Fonte:
< http://anateresabarboza.blogspot.com/p/blog-page_9.html>
21 Ana Teresa Barboza, Animales Familiares, 2011. Grafite e bordado sobre tela. 130 x 102 cm Fonte:
< http://anateresabarboza.blogspot.com/p/blog-page_9.html>
22 Brígida Baltar, A quimera das plantas [Os cogumelos e a batata doce], 2016. Bordado sobre tecido.
60 × 41 cm. Fonte: Galeria Nara Roesler.
23 Juana Gómez, Self-consciousness b, 2016, bordado manual e fotografia sobre tela 100 x 200 cm.
Fonte: Isabel Croxatto Galeria.
24 Brígida Baltar. Autorretrato com pelos, 2016. Bordado sobre tecido, 38 × 37 cm, Fonte: Galeria Nara
Roesler.
25 Louise Bourgeois, I Have Been to Hell and Back, and Let Me Tell You, It Was Wonderful, 1996.
Bordado sobre lenço. 29.5 x 29.5 cm
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Brígida Baltar23
Mãe, uma palavra que muito se repetiu até aqui. O arquétipo materno - por
escolha nossa, constantemente simbolizado pela aranha - parece ser outra linha que
coloca em conexão os pontos da rede de artistas. Tecedeira da sua casa, que é ao
mesmo tempo armadilha e armazém, ao depender da mesma para subsistência, a
aranha também é refém da sua teia, "a mulher casada é, ao mesmo tempo,
dependente e dona de casa" (PERROT, 2009, p. 47). Como as simbioses corpo-casa
de Louise ou o trabalho incessante de Eliza Bennett, Jenny também carrega a
afirmação critica: this work never ends. Quatro palavras onde se pode caber tanto
significado, quatro palavras que rememoram toda uma tecitura de ideias e conceitos
que pairam à nossa volta enquanto bordamos.
caseiras, que encontraram um novo hobby ou terapia. Mas diferente do que se pode
imaginar, diferente das nossas avós, os temas são outros. O “novo bordado” traz um
tom político, reivindicações feministas, imagens que vão do soft porn aos tabus sobre
o corpo feminino. Riot é uma palavra que significa revolta, revolução, desordem. Além
dos Estados Unidos e Inglaterra, a onda atingiu vários outros países. Na vanguarda
do movimento no cenário brasileiro, por exemplo, o Clube do Bordado é um coletivo
de São Paulo que produz conteúdo para redes sociais, promove cursos e vende
tutoriais desde 2013. O clube conecta jovens, trazendo cada vez mais adeptas ao
trabalho manual, são mais de 71 mil inscritos no canal de vídeos que as seis mulheres
responsáveis pelo coletivo mantêm na plataforma Youtube. Então é interessante
perceber que as barreiras da arte enquanto fazer erudito são ultrapassadas da mesma
forma que a barreira das gerações.
Assim, a duração das obras, de sua vida e contemplação, tem a ver com a
duração da memória feminina enraizada em casa uma das artistas. As filhas da
memória ademais sobrevivem gerações e gerações, evocando as musas quando as
palavras não são suficientes e a arte deve falar. Uma musa, ao ser questionada por
uma figura patriarcal não recua, sopra-lhe ao ouvido: nós somos as netas das bruxas
que vocês não conseguiram queimar.
I have been sewing since I was a child. I used to help my mom make
dresses. It was in Egypt at the time, and it was expensive to buy already-made
clothes. My mother is a chemist; she has a Ph.D. and is an agronomist, and
she wanted to be very well dressed. So, she decided to go to sewing school
while she was working so she could learn how to make a professional suit. So,
she began, and when my four sisters and I were born, she taught us to do the
same. I thought it was a good medium to speak about women. It was an activity
where, when I was growing up, women would gather and sew together—my
mother and all of her female friends, my grandmother, the grandmothers of all
the neighbors of our house. But all of the designers were men, which was very
annoying. And painting has historically been male-dominated; in my art history
classes, there are no references to any females, just men, men, men, men.
So, I thought this was a good way to talk about women and language ... That’s
why I wanted to paint with sewing it, but out of necessity, not out of loving the
craft.25 (AMER apud ARTSY EDITORS, 2013)
25 Costumo costurar desde criança. Eu costumava ajudar minha mãe a fazer vestidos. Estava no
Egito na época, e era caro comprar roupas já feitas. Minha mãe é química; ela tem um Ph.D. e ela é
engenheira agrônoma e queria estar muito bem vestida. Então, ela decidiu ir para a escola de costura
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A frase we are the granddaughters of the witches that you could not burn - nós
somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar - se repete em toda
superfície de uma tela de quase 1m . As letras são perceptíveis no branco, no vazio
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enquanto trabalhava para aprender a fazer um terno profissional. Então ela começou, e quando minhas
quatro irmãs e eu nascemos, ela nos ensinou a fazer o mesmo. Eu pensei que era um bom meio para
falar sobre mulheres. Era uma atividade em que, quando eu estava crescendo, as mulheres se reuniam
e costuravam - minha mãe e todas as amigas, minha avó, as avós de todos os vizinhos da nossa casa.
Mas todos os designers eram homens, o que era muito chato. E a pintura tem sido historicamente
dominada pelos homens; nas minhas aulas de história da arte, não há referências a nenhuma mulher,
apenas homens, homens, homens e homens. Então eu pensei que essa era uma boa maneira de falar
sobre mulheres e linguagem ... É por isso que eu queria pintar com costura, mas por necessidade, não
por amar o artesanato. [tradução minha]
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Sobre conviver com a memória e sobre conviver com nossos vazios, voltamos a
outra imagem-linha-subversiva desse bordado: i have been to hell and back and let
me tell you it was wonderful. Que inferno é esse que Louise visitou? De que mergulho
ela retornou para dizer que, apesar de infernal, foi maravilhoso?
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26 Entre quatro paredes é o nome da peça, de 1945, de onde vem a famosa afirmação de Jean
Paul Sartre
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3.2 ROSANAS
Quando essas duas mulheres Rosanas bordam merecem nosso olhar mais
afetuoso, imperturbado e minucioso. Duas brasileiras, uma paulista e uma carioca,
artistas de alma e de formação acadêmica. Entre o eu e o outro - o outro mulher, o
outro que sou eu - dissertam temas que se tangenciam e se afastam, como duas linhas
bordando o mesmo tecido por lados opostos em um traçado que se completa.
“Em minhas obras forma e conteúdo servem à uma mesma finalidade, e uma
das principais é a discussão dos estereótipos ligados às mulheres. Assim
sendo, acredito ser imperioso que os dois andem juntos e em colaboração
estreita, para que a obra atinja o propósito para a qual foi elaborada.”
(PAULINO, 2011)
Fonte:rosanapalazyan.blogspot.com
Assim como o conjunto das proposições selecionadas, o título indagativo por que
daninhas? convida o observador a refletir. Por que as espécies apresentadas “são
vistas como inimigos a serem controlados”? Quais são e quem impõe tais “definições
que transformam seres vivos em daninhas”? Ainda, surge o questionamento: A que
seres vivos a artista está realmente se referindo? Dado que “Nascem onde não são
desejadas” e “Afetam o desenvolvimento de culturas produtivas” são afirmações que
poderiam ser deslocadas para um discurso sobre o próprio ser humano e nossa
sociedade, onde questões raciais, geográficas, sociais e econômicas decidem quais
são as “espécies de maior interesse”, as “culturas mais produtivas” e, em oposição,
os “inimigos” e “indesejados”. Tanto que o adjetivo daninha é comumente utilizado
fora do âmbito da biologia ou agronomia. Diz-se de algo ou alguém que causa danos
ou estragos, que prejudica, que tem péssimas qualidades morais. Mas entende-se
também que não são realmente as qualidades morais, formais ou estéticas que fazem
dessas plantas espécies daninhas. O mesmo é verdadeiro para os grupos de pessoas
marginalizadas, por conta de sua raça, gênero, nacionalidade. Qualquer ser vivo pode
ser considerado danoso ou valoroso, a depender do contexto em que se insere. No
entanto, tais definições são justas? Devem ser adotadas? Nesse ponto da discussão
se encontra a crítica política da artista, apresentada com tanta sutileza. A obra fala de
lugar de pertencimento, de opressão, de preconceitos. Nesse sentido, atenta-se para
o fato de o texto formar especificamente a raiz e não outro elemento da imagem. Mais
do que escritas, quando tais frases são bordadas, os seus significados entranham nas
imagens, enraízam. Se a árvore é símbolo de vida, a raiz é o sustento da mesma. E
tais definições de fato revelam-se como base no crescimento das árvores
genealógicas de tantas culturas. Seguindo esta mesma comparação, perto da figura
humana a erva daninha assemelha uma árvore, se pensarmos em uma escala de
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tamanho real. Sendo árvore, nesse contexto, não aparenta ser indesejada como as
pequenas ervas.
nas cores (o trabalho manual têxtil, faz isso com a gente, ilude com sua precisão da
técnica, escolha das linhas coloridas e brilhantes, afinal pouco importa o que a imagem
é capaz de rememorar, sendo imagens aleatórias, clichês). Lembrei das revistas que
minha mãe colecionava. Desenhos para serem copiados e decalcados. Imagino, à
época, que semanas após o lançamento de uma edição, era possível ver o “mesmo”
objeto habitar diferentes casas, assim como roupas de franquias fast fashion tendem
a desfilar repetidamente nas ruas. “Olha, aqueles cogumelos da página 10 da revista”,
alguém entonaria entrando na casa de uma amiga e se deparando com o pano de
prato adornado. Não imagino esse diálogo com “Olha, aquela simbiose de cogumelos
e batata doce”. Aí mora a sutil diferença que o olhar atento não deixa passar, que o
olhar atento estranha. Aquelas espécies não existem, nem na natureza mais
selvagem, a não ser se artificialmente unidas. Brígida e o irmão, tão próximos em
origem, também não existiriam como um só se não fosse a ação da ciência. A
complexidade das imagens está muito além de sua superfície.
Mas ela anda nessa corda bamba entre o real e o abstrato, entre os diversos
livros de anatomia no qual se baseia para criar os esboços de seus trabalhos e as
crenças budistas e hinduístas que levam o entendimento das conexões para um plano
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metafísico. O trabalho vira algo maior que a soma das partes, é algo que transcende
a experiência finita do corpo humano, da vida orgânica e nos coloca em um lugar
sensível, eterno e comum a toda energia universal.
O “mergulho para dentro” de Juana é literal, ela destaca em uma série de três
imagens inicialmente idênticas (uma fotografia dela mesma, impressa em preto e
branco em tecido) e marca em linha e agulha veias, musculaturas, vias neurais, que
fluem em uma rede harmônica. A ideia é explorar sua própria imagem, como explica
em entrevista:
29 Eu bordei quase toda essa série sobre o meu próprio corpo. Trabalhar com o meu corpo
parece-me mais direto e honesto do que trabalhar com outra pessoa. Escolher um modelo implicava
uma decisão ou discriminação, e eu não queria ter nenhum preconceito estético e preferiria trabalhar
com o que tenho, com o que sou. Desafiar minha própria imagem tem sido uma tarefa muito mais difícil,
já que sou extremamente modesta. Quando começo a desenhar em cima de mim, começo a me ver
como um modelo de anatomia, algo morto. Eu sempre pensei que estava pronto para enfrentar a morte,
mas esse trabalho me fez sentir mais frágil. Tornou meu próprio corpo mais presente, com suas forças
e fraquezas, e essa consciência inevitável nos conecta com nossa natureza finita e com o medo e a
fascinação com a morte. [tradução minha]
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Figura 30 - Juana Gómez, Self-consciousness, 2016, bordado manual e fotografia sobre tela
curioso, mas a postura que você faz com as mãos ao bordar, quando une as pontas do polegar e do
indicador, é semelhante à do Buda. [tradução minha]
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Faço mais uma linha de leitura: os sistemas que Juana retrata, apesar de não
visíveis externamente, são vitais para a existência. Metaforizando em uma escala
social, há tantos sistemas vitais igualmente invisibilizados no corpo social, tal qual o
trabalho feminino, as estruturas domésticas e familiares que se baseiam em pilares
femininos.
31 É tão predominante em nossa estrutura física, na forma como pensamos, na maneira como
nos comportamos socialmente, na maneira como nos movemos. Para mim, uma das coisas mais
bonitas em trabalhar com arte é a forma como se vai unindo certos fios, encontrando respostas que,
mesmo que você não esteja descobrindo nada de novo, você é quem chega a elas. [tradução minha]
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Figura 31 – Ana Teresa Barboza, Animales Familiares, 2011. Grafite e bordado sobre tela. 70 x 49 cm
A delicadeza visceral da artista peruana, ainda que tão jovem (nascida em 1980)
traz também de sua avó a influência em abraçar o bordado. As palavras da artista
aprofundam no entendimento sobre sua relação com a técnica e temáticas
exploradas:
Se tivesse que traçar uma ultima linha que, com seus pontos unisse todas as
imagens bordadas nas ultimas páginas, ela seria uma linha textual, uma palavra:
corpos. Sempre presentes nos discursos, vezes de maneira mais direta, vezes de
maneira mais simbólica, os corpos dessas mulheres são parte essencial da
composição das imagens. A começar pelo processo do bordado, que requer uma
presença do corpo em um trabalho manual, vagaroso, dolorido – já que horas em uma
posição ou gesto causa cansaço nos braços e machucados nas mãos. Segundo que
32 Eu gosto do trabalho manual, usando minhas mãos para transformar diferentes materiais.
Meu trabalho passou por diferentes períodos: o corpo e a pele: bordando como se fossem tecidos,
suturando-o e decorando-o. Roupas: usando o vestido como linguagem para discutir relacionamentos
que estabelecemos com outras pessoas. Continuei com o tópico dos relacionamentos, mas
instintivamente, usando representações de animais ao lado dos humanos, criando tensões entre eles.
[tradução minha]
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essa aproximação do corpo da feitura das obras, aqui eu suponho, parece aproximar
também simbolicamente o corpo – físico, emocional e social – das mulheres das
temáticas e representações. Corpos selvagens, daninhos, corpos eróticos e
desnudos, corpos negros, corpos imigrantes, corpos reais. Corpos de mulheres.
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Entendi - a partir das conversas com Penélope - que o corpo feminino dificilmente
se distancia da identidade do autor. Antes de mais nada, isso se deve ao peso do
corpo social, moldado e docilizado por normas misóginas e patriarcais, que no caso
do feminino é um corpo que consegue, ao mesmo tempo, ser humano e ser menor
que o homem. É do lugar atribuído como menor – partindo da leitura de Deleuze do
termo, de uma literatura menor, também uma história ou arte menor, como levantado
no segundo capitulo – que é possível traçar uma linha de fuga, um eterno devir em
direção à emancipação e liberdade desses corpos.
33 Louise Bourgeois, The Unilever Series: I Do, I Undo, I Redo, 1999-2000, Tate Modern, Londres.
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O objetivo aqui foi, fio a fio, encontrar as tramas de textos e têxteis tecidas a
medida em que tais mulheres decidem narrar suas próprias histórias. Foi clarear os
caminhos que possam ter levado à existência de uma curadoria de obras significativas
para a produção contemporânea, dialogando com as aproximações entre elas. E foi,
conjuntamente, tecer um convite a prestar atenção às histórias escondidas nas
sombras, nos quartos e nos avessos.
A imagem que encerra é a mesma que deu início: a aranha, figura feminina
tecelã que retira de si o fio com o qual produz incessantemente a própria trama. Seu
trabalho é prolongamento e parte do seu corpo. E as tramas que vem dos corpos são
as mesmas que sustentam os corpos. Corpos de mulheres-aranha, filhas da memória.
Corpos de mães e avós bordadeiras, corpos de artistas sensíveis e políticas, que
traçam linhas subversivas, que bordam a sim mesmas. Corpos de mulheres
subversivas.
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