Artigo - Luiza Romão
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jan.-- jul. 2021 | BARRA DO GARÇAS - MT
RESUMO: O artigo busca apresentar a forma como o corpo feminino se constitui como arquivo
na obra Sangria, da poeta Luiza Sousa Romão, por meio da análise de alguns de seus poemas.
O livro, constituído por 28 poemas, relaciona, por meio de uma metáfora discursiva, o ciclo
menstrual com o processo de colonização do Brasil até a atualidade, expondo a subalternidade
dos corpos femininos, abrindo não apenas seu arquivo pessoal, mas expondo a intimidade de
seu corpo.
ABSTRACT: The article seeks to present how the female body is constituted as an archive in
the work Sangria, by the poet Luiza Sousa Romão, through the analysis of some of her poems.
The book consisting of 28 poems relates through a discursive metaphor the menstrual cycle
with the process of colonization of Brazil to the present day exposing the subalternity of female
bodies opening not only their personal archive exposing the intimacy of their body.
INTRODUÇÃO
A obra poética de Luiza Romão, intitulada Sangria (2017), desvela o corpo feminino
e relaciona o clico menstrual com a história da colonização do Brasil. Os 28 poemas que
constituem a obra desconstroem os estereótipos sociais, expondo os tabus recorrentes da
sociedade no que se refere ao papel do corpo feminino.
É importante ressaltar que tal tipo de poesia, marginal-periférica e de autoria feminina,
começa a ser produzida no Brasil no início do século XXI e tem como característica fomentar
os debates e críticas relacionados aos padrões impostos, literários e sociais, no que se refere ao
feminino ou à forma como ele, até então, era representado pelas obras clássicas da literatura.
ANÁLISE DA OBRA
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Mestre em Letras -Universidade Federal do Espírito Santo. Professora de Língua Portuguesa do SESI-
ES. E -mail: [email protected]
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entre o teatro e a literatura, o que esclarece muitos aspectos e características de seus livros,
considerando que apresentam imagens, fotografias e projetos visuais como o filme Sangria,
produzido a partir dos poemas do livro com o mesmo título. Sobre essa performance da autora
em plataformas distintas, afirma Pilar Lago e Lousa:
Sua obra poética é entrelaçada por bandeiras, lutas sociais e políticas, causas estas que
ela reivindica desde jovem por meio de participação ativa em organizações e movimentos
sociais. Seus poemas são marcados pela oralidade, o que evidencia sua carreira de slammer, e
exploram além da linguagem verbal, empregando em sua escrita não apenas palavras como
também se utilizando de outros recursos como os símbolos, ademais do tom de denúncia e
resistência que preenchem os versos.
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Figura 1
Romão, 2017 Foto: Sérgio Silva. Intervenção: Luiza Romão
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Figura 2
Fonte: Romão, 2017. Foto: Sérgio Silva. Intervenção: Luiza Romão
A posição fetal pode indicar o medo e o abandono, assim como as letras “BR”
costuradas ao corpo indicam a “procedência” e a “origem”, dando o aspecto de mercadoria ao
corpo.
Desta forma, a figura feminina é simbolizada como “coisa”, algo que pode ser
identificado, nomeado e se tornar propriedade. O que já indica ao leitor, inicialmente, quais são
as denúncias que a voz poética buscará ao longo de seus poemas. A poetisa, através de seus
poemas, grita a forma violenta com que o corpo feminino é, e sempre foi explorado e violentado
em busca de um “bem maior”, seja a escravidão, a colonização de um território ou a manutenção
do sistema patriarcal.
A nudez dos corpos indica e expõe a intimidade das mulheres fotografadas, além de
um desnudamento sobre a própria nudez do corpo, a mulher como objeto sexual, desconstruindo
a concepção erótica dos corpos femininos, que muitas vezes são alvo de um mercado masculino
que os utiliza apenas para satisfação e prazer. Logo, a obra Sangria (2017) não busca enaltecer
as questões estéticas, muitas vezes associadas ao desejo pelo corpo, e sim mostrá-lo como coisa,
objeto. Sobre a nudez dos corpos, afirma Nancy (2015):
No primeiro dia-poema do livro, fica latente o “grito” que pode ser identificado pelo
emprego de sinais gráficos, letras em caixa alta e outros recursos que censuram palavras
relacionadas aos tabus sociais em relação ao corpo feminino e sua exploração na construção da
sociedade brasileira:
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(Romão,2017, p. 18).
Desta forma, Sangria (2017), título da obra não por mero acaso, refere-se ao efeito de
sangrar durante o ciclo menstrual, e, semanticamente, pode indicar a extração de produtos
naturais ou o sangue que se extravasa ao abater um animal para consumo. Ambos os
significados encontrados evidenciam a problemática dos dias-poemas que tornam o “grito” da
voz poética sobre como se elabora a apropriação do corpo feminino desde o período colonial
no Brasil. Os símbolos utilizados no poema indicam que a palavra “brasil” não pode ser
pronunciada indicando o grito engasgado:
A obra poética é dividida em seis capítulos que revisitam a história do Brasil através
da metáfora de um útero. O capítulo um, intitulado “GENEALOGIA”, apresenta poemas como:
“Dia 1. NOME COMPLETO”, “Dia 2. DATA DE NASCIMENTO”, e “Dia 3. NÚMERO DE
REGISTRO”. Descrevem o processo de colonização do território, denunciando a violência e a
exploração dos corpos, sobretudo no processo de povoação, fruto do papel biológico imposto
pela sociedade às mulheres:
[...]
PAU-BRASIL
o pau-branco hegemônico
enfiado à torto e à direto
suposto direito
de violar mulheres
o pau-a-pique
o pau-de-arara
o pau-de-araque
o pau-de-sebo
o pau-de-selfie
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o pau-de-fogo
o pau-de-fita
O PAU
face e orgulho nacional
pedro ejaculando-se
dom precoce
deodoro metendo a espada
entre as pernas
de uma princesa babel
costa e silva gemendo cinco vezes
AI AI AI AI AI
(Romão, 2017, p. 20).
A biopolítica estabelece não apenas o discurso, mas a quem ele pode pertencer e a
hierarquia dos corpos. Sobre essa relação hierárquica dos corpos na sociedade e como eles são
classificados, no que se refere a importância do papel a ser desempenhado com base nas regras
sociais, o corpo feminino está mais próximo da vida animal, considerando o papel de objeto em
relação ao corpo masculino. Logo, a manutenção da exploração dos corpos femininos ocorre
de forma progressiva.
Mulheres que não tiveram escolha visto que ou estavam destinadas a serem
subjugadas ou a morrerem. A perpetuação dos mesmos modelos até os dias
atuais institucionalizou o direito de tratar seus corpos como mercadoria, para
satisfação do prazer masculino e só. Segundo Pierre Bourdieu, a dominação
simbólica “se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas
através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são
constitutivos dos habitus” (BOURDIEU, 2002, p. 49), tornando possível a
dominação masculina e um ciclo vicioso de violência de gênero que tem por
função controlar mulheres (LAGO-LOUSA, 2018, p. 157).
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Desta forma, a poesia de Romão retrata um corpo violado, marcado pela violência
social e, a partir desta perspectiva, expõe o que há de mais íntimo em uma mulher: seu arquivo.
O ciclo menstrual é exposto e revela um outro tipo de arquivo: o arquivo histórico. Essa relação
entre arquivo pessoal e histórico é elaborada em Indicionário do contemporâneo (2018), onde
o arquivo é analisado a partir da perspectiva de que não se trata de uma coleção de coisas ou
objetos, mas sim aquilo que nos permite construir significado daquilo que restou de uma
experiência.
Em relação a essa construção social de arquivo, a obra Indicionário do contemporâneo
(2018), organizada em seis capítulos, tem por objetivo propor uma reconstrução de conceitos
estabelecidos como “Arquivo”, “Comunidade”, “Endereçamento”, “O Contemporâneo”, “Pós-
Autonomia” e “Práticas Inespecíficas”. Sobre a concepção de arquivo afirma Pedrosa (2018):
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(américa)
uma mulher não é um território
mesmo assim
lhe plantam bandeiras
[...]
(ROMÃO, 2017, p. 31).
O poema inicia fazendo várias negações, que podem ser repostas a perguntas feitas
sobre o papel da mulher na sociedade e a forma como são subjetivadas. Em Sangria: discurso e
memória (2018), afirma Maria Daniela Leite da Silva acerca do poema “Dia 5. LOCAL DE
NASCIMENTO”:
Tantos nãos suscitam a indagação do motivo pelo qual a autora escolheu negar
ao invés de simplesmente afirmar. Uma possibilidade de resposta a esta
questão remete à ideia de que ao negarmos, estamos respondendo a uma outra
voz já-lá, um já-dito. São saberes que precedem e ecoam em nossos discursos,
entretanto, ao serem lançados em uma outra rede de formulações, eles
precisam ser re-significados, daí o uso reiterado das negações. 1) uma mulher
não é um território – em algum contexto, atrelado a um conjunto de condições
de produção específica a mulher já foi historicamente entendida como um
território. O dono deste território possivelmente seja um homem se
relacionarmos a dimensão do corpo feminino intrinsecamente ligado aos
poderes machistas conferidos aos homens de outrora (ou nem tanto). 2) uma
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Logo, o que se quer evidenciar é o poder enunciativo da poesia produzida por Luiza
Romão e a sua importância para o reconhecimento do corpo feminino, além da forma como tem
sido explorado ao longo das décadas. Os arquivos íntimos e históricos abertos se relacionam,
permitindo que o leitor, por meio de uma outra perspectiva, seja impactado com a forma com
que os corpos femininos foram entrelaçados, costurados, violados e abandonados para a
construção de um território.
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REFERÊNCIAS
DA SILVA, Maria Daniela Leite. Sangria: discursos e memórias. Fios do discurso: entre
cerziduras e descosturas [recurso eletrônico]. 1. ed. Porto Alegre: Instituto de Letras da
UFRGS, 2018. Disponível em:
<https://www.ufrgs.br/ppgletras/fiosdodiscurso/artigos/18SILVA-Sangria.pdf>. Acesso em:
28 nov. 2019.
NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Trad. e org. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro:
7Letras, 2015.
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