Leitura Literaria - Enunciação e Encenação

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Leitura literária: enunciação e encenação

Graça Paulino
Ivete Walty

Começamos nossa reflexão com algumas perguntas: a que se refeririam os textos


denominados literários? Seria possível definir um texto como literário a partir de seu
processo de referenciação? Para responder a essas questões, a história da teoria da literatura
vem se dividindo entre duas posições, em princípio, antagônicas. Uma que entende o texto
literário, voltado para seu próprio código, como criador de seu próprio referente, sem
compromisso com algo fora dele ou pré-existente a ele. É como se fosse o “grande sertão”
de Guimarães Rosa, por exemplo, apenas uma produção textual, criada pelo autor dentro do
romance e interpretável a partir de seus próprios componentes.
Outro segmento da crítica entende aquele sertão inserido numa geografia, numa
antropologia, como representação de um modo de existência exterior e anterior à criação de
Rosa, que ele teria usado e tornado um objeto de existência lingüística.
A própria crítica tem evidenciado que essas duas formas de compreensão do
processo de referenciação do texto literário não são suficientes para caracterizar sua
produção e sua recepção. No primeiro caso, o centramento do texto em si mesmo, como
propriedade de um autor, seja como expressão de sua subjetividade, seja como uma
construção textual particular, fecha-se em uma autonomia orgulhosa de si mesma, como se
a literatura fosse uma instituição demiúrgica, fundadora de mundos autônomos. Tal postura,
paradoxalmente, acaba por diminuir o estatuto desse tipo de texto, na medida em que o
isola dos outros, da vida social e da história.
O segundo, por sua vez, pode levar a uma universalidade documental, como se a
função do texto literário, tal qual a de outro qualquer, fosse apenas registrar o mundo pré-
dado. Nesse sentido também, o literário seria um texto sem importância, já que nada
acrescentaria à ordem do mundo. Essa era a concepção idealista de Platão, quando
considerava a arte como cópia da cópia, um simulacro, linguagem construída a partir de
outra linguagem, sendo esta já uma reprodução do modelo existente no mundo das idéias.
Não é sem razão que tal filósofo preconizava a expulsão do poeta da República.
Já Aristóteles, considerando a literatura como mimesis, introduz a noção de
representação, que não significa uma simples cópia do real, mas uma construção lingüística
aberta ao mundo social. O poeta imita objetos diversos, através de meios diversos e
diferentes modos de elocução. Por isso mesmo, o conceito de mimesis vem sendo retomado
durante toda a história da teoria da literatura, que vem buscando uma terceira via, como
opção ao dualismo entre a prisão ao referente ou à auto-referência.
Compagnon, por exemplo, ao criticar esse dualismo propõe uma ordem
intermediária:

(...) reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária,
violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos — ou a literatura fala do mundo,
ou então a literatura fala da literatura —, e voltar ao regime do mais ou menos, da
ponderação, do aproximadamente: o fato de a literatura falar da literatura não
impede que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se o ser humano
desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da
ordem da linguagem. (COMPAGNON, 1999, p. 126)

Podemos acrescentar que essa dicotomia vem sendo relativizada por uma noção de
discurso como trânsito social incessante, processo entre sujeitos, que inclui tanto uma
organização do sistema lingüístico quanto interferências pessoais e sociais (cf. BAKHTIN,
1981) Assim, os estudos lingüísticos, sem reduzir a referencialidade a um mundo de idéias
pré-existentes na mente dos falantes de uma língua, conseguiriam afastar-se tanto desse
referente-objeto, pré-existente, quanto do mundo dos pensamentos a serem expressos. Por
outro lado, o próprio conceito de real vem sendo relativizado, por meio das contribuições
da psicanálise, as quais levam em conta o papel do imaginário na composição do real, que,
por sua vez, só se dá a conhecer através do simbólico (cf. LACAN, 1988). A filosofia dá
seu contributo a essa relativização do real, quebrando a tradição platônica do
logocentrismo, em que as idéias são o centro e ponto de partida para a construção das
produções simbólicas (DERRIDA, 1973; DELEUZE, 1974). A quebra da homogeneidade e
da universalidade de um real foi decorrente ainda dos estudos antropológicos, que se
voltaram para a presença das diferenças culturais como significantes, ultrapassando os
limites do etnocentrismo e a pretensa hegemonia do Ocidente “civilizado”.
Tais transformações levaram a um deslocamento da teoria literária, hoje em diálogo
com os Estudos Culturais, em práticas de escrita e leitura que, em sua pluralidade, cruzam
textos de origens diversas, mesmo que cada um guarde suas especificidades. É bom lembrar
que o conceito de identidade vem sendo relativizado, o que não significa sua negação, já
que desconstruir não é sinônimo de destruir (cf. DERRIDA, 2004). O que ocorre é que
tanto o indivíduo como o texto não se fecham em um único espaço, já que pertencem
simultaneamente a várias ordens. Daí a idéia do trânsito. Há uma categoria fundamental
para que possa ocorrer esse trânsito entre diferentes produções culturais sem que haja perda
de traços identitários: a enunciação. Nosso propósito neste artigo é mostrar que, por isso
mesmo, tal categoria faz-se um importante operador de leitura.
Entenda-se por enunciação o ato simultaneamente social e subjetivo de apropriar-se
da linguagem, num processo interlocutório. Bakhtin (1981) afirma que toda enunciação é
de natureza social. Trata-se de uma ação individual, presente, concreta, que produz a
relação eu/tu, ao mesmo tempo em que é produzida por ela. Benveniste (1991) considera
que a enunciação é sempre o estabelecimento de um diálogo, mesmo que se trate do
chamado monólogo interior. O eu, a primeira pessoa do discurso, a que fala para si mesma
ou para o outro, insere-se em um contexto e dirige-se necessariamente a um tu, segunda
pessoa, com a qual se comunica lingüisticamente.
Nesse sentido, vale realçar a inserção histórico-social do ato enunciativo, que marca
todo e qualquer discurso, diversificando-os. A referência está ligada à enunciação, pois só
esta pode dizer se os enunciados se mostram verdadeiros ou falsos. Como lembram
Todorov e Ducrot (1977):

A enunciação está sempre presente, de um modo ou de outro no interior do


enunciado; as diferentes formas dessa presença, assim como os graus de sua
intensidade, permitem fundar uma tipologia dos discursos. (p. 305)

Um desses discursos é o que se chama literário. A enunciação, nesse caso,


desdobra-se em uma pluralidade de eus e tus, que se relacionam numa cadeia enunciativa
assumidamente representada. Nesse sentido, poderíamos afirmar que a enunciação na
literatura encena o próprio jogo da linguagem. Estabelece-se não apenas uma relação entre
interlocutores reais como também entre interlocutores ficcionais, mesmo que se trate de um
poema lírico em que parece haver apenas um sujeito poético.
O jogo enunciativo e os desdobramentos do eu ou do sujeito
A leitura literária exibe, pois, o próprio jogo da linguagem — um eu que se põe em
cena diante do outro — ao mesmo tempo em que exibe os bastidores dessa encenação.
A peça “Os mistérios de Irma Vap”, representada em várias regiões do Brasil,
durante muitos anos, por Marco Nanini e Ney Latorraca, pode ser um bom exemplo para
ilustrar tal jogo. O título, que tem a palavra vampiro em anagrama, já explicita o caráter de
representação, tanto em cena como nos bastidores. Os atores entram no palco, voltam aos
bastidores e vêm de novo ao palco rapidamente, já com outra roupa. Além disso, em outra
montagem os mesmos atores apresentaram o que ocorria nos bastidores, durante a troca de
vestimentas. Esse jogo de vestir e (des)vestir, mais do que linguagem cênica, é linguagem
encenada, e, mais do que isso, evidencia que toda linguagem é encenada, figurada. Nesse
sentido, a linguagem literária se distingue das outras por assumir essa encenação, embora o
modo de assumir isso inclua até mesmo sua aparente negação. Iser, ao tratar da questão do
real, fala de um espaço “de concretização do imaginário” e cita Jeremy Bentham:

Por entidade fictícia entende-se um objeto cuja existência é fingida pela


imaginação — fingida em favor do discurso — e que, ao ser assim formada, é
tratada como um real. (BENTHAM apud ISER, 2002, p. 969)

Iser fala ainda que é o desnudamento da ficcionalidade que faz a literatura se dar a
conhecer como um tipo especial de texto:

O sinal de ficção (...) reconhecido através de convenções determinadas,


historicamente variadas, de que o autor e público compartilham e que se
manifestam nos sinais correspondentes. (ISER, 2002, p. 970)

O autor alerta, pois, para a importância do contrato que se estabelece entre autor e
leitor. Philipe Lejeune denominou esse contrato de pacto ficcional (1975). Partilha-se uma
representação que simultaneamente se mostra como tal e se vale dos recursos próprios de
outras enunciações encenadas.
Retomando a metáfora do vampiro, vale lembrar que na cena ele é palavra que,
desmanchada, (des)vela seus mistérios e, como bom vampiro, está pronto para devorar os
atores e os espectadores. Como no jogo enunciativo, todos representam: do autor aos atores,
passando pelo diretor e chegando aos espectadores.
No texto literário a linguagem põe-se em cena, revelando a nós que toda linguagem
é assim: representada. Alguns textos fingem a realidade, buscando “um efeito de real”,
como quer Barthes (1988). Nesse momento, quando parece prender-se ao referente, a
linguagem tentaria negar a mimesis, já que parece apagar seu caráter de representação.
Nesse sentido, vale lembrar Jean Bessière, quando afirma que “a obra realista é o sistema
comparativo de suas próprias convenções” (1995, p. 385). Também Iser, ao discutir o
caráter da obra realista, refere-se à possibilidade de a ficção apresentar-se como aparência
de realidade, dissimulando seu estatuto próprio. Acrescenta no entanto que

Pode até ser mesmo que a função da dissimulação seja manter intactos os
critérios naturais, para que a ficção seja compreendida como uma realidade que
possibilita o esclarecimento de realidades. (ISER, 2002, p. 973)

Explicita-se, pois, o paradoxo: não há como escapar do fictício, tudo é dissimulação.


Tal concepção, no entanto, não descola a literatura do social. Antes, mesmo quando parece
construir seu referente, ela pode desvelar relações sociais, indiciando “verdades”. Para isso
é essencial que o leitor se dê conta do jogo. Há um aqui e agora, há um ontem, um hoje e
um amanhã, há um sujeito enunciador, há um leitor; tudo isso se desdobrando
infinitamente, relativizado em cada performance do texto e da leitura. Tal desdobramento
pode evidenciar o caráter intertextual, muitas vezes metalingüístico, mas sempre mutável,
sempre histórico.
Não estamos nos referindo aos velhos estilos de época, que ainda hoje regem os
estudos da literatura na escola, passando aos alunos leitores a falsa idéia de que em cada
época só há um modo de escrever, uma visão de mundo. É importante ressaltar que, a
despeito de traços comuns, cada época é plural. Na verdade, ficam registradas algumas
manifestações culturais enquanto outras se perdem na história, podendo eventualmente ser
recuperadas.
Nesse processo, o domínio discursivo ficcional relaciona-se com outros domínios
discursivos, agrupando-se em textos e gêneros diversos. A enunciação ficcional pode assim
devorar outros discursos, assimilá-los, mas a proposta literária de interação é, em princípio,
diferente, já que se afasta do pragmático, da utilidade imediata, da informação como
referencial que se esgota em um dado.
No poema, “Eu, etiqueta”, de Carlos Drummond de Andrade (2002, p. 1252), pode-
se ver um exemplo de desdobramento do eu, já a partir do título paradoxal, que agrupa na
mesma frase um índice de subjetividade, ao lado de outro de coisificação: o discurso
publicitário é referência invertida na construção textual. Tal referente interdiscursivo, no
entanto, desdobra-se não apenas na leitura irônica do poder do texto publicitário, mas
também das relações que sustentam esse poder.

Em minha calça está grudado um nome


que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome ... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.

A enfática repetição de verbos e pronomes relativos a um sujeito da enunciação que


transita para o enunciado é um dos elementos irônicos de que se vale o texto para
desconstruir a força dos anúncios frente aos sujeitos sociais. Dessa forma, o eu poético
acolhe tanto o cidadão consumidor quanto o sujeito humanista que propõe uma ordem
político-econômica diferente. Desse polêmico “encontro” interdiscursivo resulta o teor
crítico do texto, que tem como alvo o sistema capitalista reificador. Os dois últimos versos
evidenciam tal processo: “Meu nome novo é coisa./Eu sou a coisa, coisamente.”
Enquanto, nesse poema, encara-se como referencial a ordem política e filosófica que
sustenta a sociedade de consumo, no que se segue, “Os materiais da vida”, o modo de
enunciação/construção do texto publicitário é assumido simultaneamente como objeto e
forma do poema. O deslocamento de tais forma e objeto, no entanto, provoca o
estranhamento irônico que incomoda o leitor e o faz pensar.

Drls? Faço meu amor em vidrotil


nossos coitos serão modernfold
até que a lança de interflex
vipax nos separe (2002, p. 427)

São múltiplas as relações que o texto literário pode manter com outros textos
(reforço, ironia, paráfrase, paródia etc). Um exemplo de enunciação literária que aponta, em
forma de pastiche, para o jornalístico é o texto de Bonassi, “Telejornal”.

Essa tarde, diversas pessoas assaltaram, estupraram, denegriram, assustaram,


violentaram, amarraram, achacaram, atentaram, atazanaram, espicaçaram,
espinafraram, desrespeitaram, desuniram, desmembraram, saquearam,
seqüestraram, sonegaram (...). Boa noite.

Esse conto de Bonassi, na seção “Jazz”, da revista alternativa Ocas (jan. 2004),
toma como objeto o mundo das notícias televisivas. É nesse espaço, que parece delimitado,
que se desvelam redes sociais “contaminadoras” de outros espaços. Com exceção da
primeira e da última frases, todas as outras são constituídas apenas com um verbo no
pretérito perfeito. São mais de 200 verbos, que, não por acaso na terceira pessoa do plural,
traduzem atos de violência. Depois de toda a lista, indiciadora das relações humanas na
sociedade contemporânea, um irônico “Boa noite” fecha o texto/imagem, não apenas do
telejornal, mas da própria sociedade. Na verdade, a indeterminação dos sujeitos das ações
evidencia que eles não estão circunscritos a espaços dados como marginais e perigosos.
Nessa mesma linha, vale lembrar o microconto “Acerto”, de Francisco de Morais
Mendes (apud FREIRE, 2004, p. 79):

— Está feito?
— Sim.
— Quem?
— O de treze...
— É?
— Sim.
— E agora?
— O enterro é às cinco.

O microconto faz referência a um acerto de contas entre traficantes e seus pequenos


auxiliares, em geral os chamados aviõezinhos, numa leitura da atual vida social brasileira.
O discurso direto e rápido está adequado à frieza com que se cometem esses assassinatos,
sem referência a qualquer possível punição. Encena-se aí uma enunciação cotidiana entre
pessoas envolvidas com o tráfico. A ausência de um narrador que situe o fato ficcional
exige que o leitor atue mais na produção de sentido literário, com seu conhecimento prévio
de mundo e de textos. Entre esses textos, poderia estar, por exemplo, o da Folha de
S.Paulo, de 14/11/04 (p. 1, 1º caderno): “Crescem homicídios de meninos em São Paulo.
Assassinatos foram maior causa de morte de garotos de 5 a 14 anos entre 1999 e 2003;
número se aproxima do de conflito no Oriente Médio”.
Embora, no caso dos textos de Bonassi e Mendes, a língua utilizada não se marque
pelo trabalho com imagens e pela conotação, o simples deslocamento do diálogo de seu
espaço primeiro agrega ao discurso outros sentidos e efeitos. Seja essa primeira enunciação
a do telejornal, seja a do diálogo entre traficantes, preocupados em trocar informações
sobre o acerto de contas. Mesmo no discurso que se quer realista, a enunciação literária se
torna uma encenação da fala cotidiana, lançando sobre ela um estranhamento de natureza
estética e crítica. Ao desterritorializar o discurso, o autor faz com que essas falas se voltem
contra as próprias enunciações encenadas: seus agentes e seu contexto.
Vê-se, portanto, que não se trata de definir a linguagem literária necessariamente
como espaço da conotação, ou de buscar elementos que definam a literariedade do texto,
mas de perceber essa linguagem no contexto interativo da enunciação, levando em
consideração que ela se faz trânsito social entre interlocutores historicamente situados (cf.
BENVENISTE, 1989 e 1991, e BAKHTIN, 1981). Como se viu, isso implica o trabalho
interativo, que envolve sujeitos vários: de autores a leitores, passando por sujeitos textuais
que, por sua vez, aí introduzem vozes sociais diferenciadas.
Essa percepção do texto literário, como espaço de encenação do próprio processo
enunciativo, exige que o leitor participe mais ativamente da construção de sentidos, com
atenção especial ao modo de enunciar ali inscrito. Nesse sentido, vale reiterar que o texto
sempre propõe um contrato de leitura, um pacto subjacente à forma de ler, que atua sobre a
biblioteca interna, o repertório do leitor, como um “saber” partilhado.
No caso da narrativa literária, o leitor não se prenderá, pois, apenas ao narrado, mas
também ao modo de narrar, de organizar as pessoas do discurso em seus desdobramentos,
de configurar o tempo e o espaço, tanto os do enunciado como os da enunciação. A esse
respeito, diz Iser:
É no modo da constituição (do texto) que se manifesta a perspectiva do autor. Se
pretendemos captar o grau de não familiaridade desse mundo constituído pelo
texto, necessitamos de uma estrutura que possibilite ao leitor realizar as visões
previamente dadas. Ora, o texto literário não apresenta apenas uma perspectiva do
mundo de seu autor, ele próprio é uma figura de perspectiva que origina tanto a
determinação dessa visão quanto a possibilidade de compreendê-la. (1996, p. 74)

Na construção dessas perspectivas o texto literário configura seus espaços, tempos e


pessoas, assim como toda situação de comunicação lingüística. Entretanto, esses topos,
índices cronológicos e dêiticos não se subordinam a percepções construídas no mundo da
cultura, embora mantenham com elas uma relação necessária. Se uma narrativa não
determina o lugar em que ocorrem os eventos narrados, essa estratégia tem uma função, e
exatamente pelo conhecimento dos lugares pré-existentes é que se pode atribuir sentido à
ausência. O mesmo ocorre com o tempo, na medida em que esse pode transitar da
mensuração cronológica mais estrita ao ir e vir do tempo mítico ou do tempo do
inconsciente. Todos necessariamente encenados na literatura, mas ancorados em
enunciações historicamente constituídas.
Enquanto no microconto de Mendes, já citado, o espaço e o tempo são facilmente
determinados pelo leitor, baseado em reportagens jornalísticas, em um miniconto de
Oswaldo França Júnior, por exemplo, em que também não há definição exata de espaço e
tempo, como nomes de lugares nem sugestões de época, o leitor preenche esse vazio do
texto com sua imaginação, prescindindo de ancoragens no real.

A evidência

Ela me disse:

— Não, meu amigo, eu não vivi. Nunca nadei pelas estradas, nunca um homem
me conheceu, e até hoje a água do mar não molhou meu corpo.

Ela me disse isso. Ela que sempre foi sincera, que nenhuma vez faltou com a
verdade.

E é por esse motivo que estou pensando: como, se seus cabelos estão molhados
pelas ondas, seus pés têm vestígio de todas as estradas e no seio ela amamenta
uma criança? (FRANÇA JÚNIOR, 1985, p. 117)

Aqui a relativização da verdade construída pela evidência compõe a enunciação da


personagem feminina, numa encenação dentro da encenação ficcional: contrapõem-se, pois,
uma visão masculina com lógica racional e uma fala feminina com força fundadora de
outros reais. A ambigüidade do conto se mantém, impedindo a classificação de qualquer
um dos discursos como mentiroso, já que se trata de uma enunciação confessadamente
ficcional.
Considerando o jogo entre real e ficcional, vale examinar mais um texto, dessa feita
um conto de Moacyr Scliar, escrito a partir de notícia veiculada na Folha de S.Paulo.

Miau

Toda noite a feirante Satiko Motoie Simmio, 56, vai ao Parque Tenente Siqueira
Campos, o Trianon, na Av. Paulista (zona oeste de S.P.) alimentar os gatos que
vivem no local — cerca de 25, diz ela. A feirante gasta R$800 por mês, na
alimentação dos gatos. (Cotidiano, 4.out. 2004.)

Menino de rua, sem pai nem mãe, ele era pobre, era feio, era analfabeto. Mas
possuía uma habilidade da qual se orgulhava: imitava à perfeição o miado de um
gato. Certo, muita gente faz isso, mas no caso dele era arte, arte pura. Tão
autêntico era o seu miado que fazia os cachorros da vizinhança latirem, irritados.
Daí o seu apelido: Miau. Era como ele mesmo se apresentava; o nome verdadeiro
raramente lembrava.

Vida difícil a dele. Dormia na rua, passava fome. Arranjar comida era sua
preocupação maior, uma preocupação que ressurgia a cada manhã.

Foi então que ouviu falar na senhora que alimentavas gatos. Uma senhora muito
boa, que proporcionava aos felinos do Trianon generosas rações.

Aquilo lhe deu uma idéia. Naquela mesma noite foi até o parque, escondeu-se
atrás de uma árvore. Pouco depois apareceu uma senhora, trazendo um cesto. É
ela, pensou, e de imediato começou a miar, um miado inspirado, o melhor que já
produzira. A senhora deteve-se, olhou em direção ao arbusto, não viu gato algum,
mas convencida de que ali deveria estar um felino faminto depositou no solo uma
generosa ração. Miau esperou que ela se afastasse e, mais que depressa, atirou-se
ao alimento. Era comida para gato, claro, mas muito saborosa.

Desde então ele tem repetido a manobra todas as noites. Não passa mais fome e
até engordou um bocado. Mas enfrenta dois problemas.

O primeiro é o dos gatos propriamente ditos, que não estão gostando da


concorrência e mais de uma vez se dispuseram a atacá-lo. Deles, porém, Miau
não tem medo; além de miar, sabe rosnar e já mostrou, rosnando, que o dono do
pedaço agora é ele.

O segundo problema resulta de uma inquietação quanto ao futuro. A senhora é


absolutamente fiel aos animais e todas as noites cumpre o ritual de alimentá-los.
Mas por quanto tempo fará isso? E o que acontecerá se ela um dia ficar doente ou
tiver de viajar? Quem providenciará a ração de comida?

Para esta interrogação o garoto não tem resposta. Já observou, contudo, que o
lugar está cheio de camundongos gordinhos e lentos. Com um pouco de treino
conseguirá apanhar cinco ou seis deles numa noite. Para quem se chama Miau
não deve ser difícil. (SCLIAR, Moacyr. Folha de S.Paulo, 11/10/2004, p. C.2)

Frente a esse conto, como um leitor em formação literária poderia interagir,


desenvolvendo uma proposta de leitura?
O primeiro passo seria ler o texto inteiro, para reconstruir sua proposta
interlocutória predominante: o que propõe o texto a seus leitores? O que espera deles?
Assim, o leitor pode começar o diálogo com o texto: há um pacto ficcional proposto,
embora o conto esteja publicado num jornal. Este pode ser eleito como um segundo núcleo
de atenção para a produção de sentidos pelo leitor: um conto presente num jornal não pode
ser lido como se estivesse num livro. E essa circunstância logo se explicita, na referência
inicial a uma notícia que teria servido de mote ao autor: no dia 4 de outubro de 2004, a
Folha de S.Paulo noticiou que uma feirante de 56 anos distribuía toda noite, num parque de
São Paulo, comida para os gatos do lugar. Já no dia 11, Moacyr Scliar escreve seu texto, em
outro registro, com nova proposta de interação, inserindo na narrativa uma outra
personagem humana, sem nome humano, que acaba definida pelo som que aprende a emitir
para viver: Miau. A partir dessa estratégia, o novo texto desloca e amplia seus sentidos para
as questões sociais brasileiras mais sérias e para algumas angústias existenciais bem
dolorosas.
O menino de rua, para sobreviver, usa sua habilidade de saber miar como os gatos
para ganhar da mulher seu alimento diário. Vê-se, pois, obrigado a assumir a voz de um
bicho faminto, na frágil solidão resultante de sua condição de excluído da comunidade
social. O parque é o espaço ambíguo de uma convivência desigual entre os seres humanos e
os outros bichos, sendo que a sobrevivência destes depende da caridade daqueles. O espaço
textual do enunciado representa metonimicamente o espaço social em que vive o menino,
ele próprio a representar parte da população excluída.
Como o espaço, as vozes do texto se desdobram: o poder selvagem do sistema
social desumanizado fala, na sua possibilidade de matar de fome um ser vivo; a
solidariedade voluntária e paradoxal fala, na atitude da senhora preocupada com a
sobrevivência dos gatos e esquecida de seus semelhantes; o medo da morte fala, na angústia
do menino que teme que a mulher não volte mais. Meio a esse coro de vozes, cresce a força
crítica da enunciação ficcional, comparada à “neutralidade” da notícia. Essa força crítica é
fruto do conjunto de estratégias utilizadas pelo autor na abordagem do assunto tratado antes
pelo jornal. Dessa forma, inscreve-se no texto a figura autoral, posicionando-se frente à
questão, na medida em que a narrativa literária joga outras luzes sobre a notícia,
possibilitando ao leitor lê-la por outra perspectiva, percebendo a animalização do
menino/gato, que vai se valer de outros recursos dos felinos para defender sua ração diária.
Paradoxalmente, ao utilizar a capacidade criativa própria do ser humano, o menino mia,
rosna e mata ratos, aproximando-se dos animais com que disputa a comida.
Nesse sentido, vale recorrer a Jurandir Freire Costa quando propõe o conceito de
“desinvestimento cultural” para definir um processo que faz o caminho inverso ao da
construção identitária do sujeito em sua inserção na ordem da linguagem e da cultura. O
sujeito se despe da pele cultural em retorno ao mundo dos instintos. Tal desinvestimento
seria originário da perda da cultura como “espaço transicional dos irmãos que se
reconhecem como artífices do próprio destino” (COSTA, 2000, p. 26).
Esse conto de Moacyr Scliar se insere num universo bem amplo de produções
contemporâneas de denúncia social, aliadas à qualidade literária de bons escritores, capazes
de criar esse jogo entre o verossímil e o fictício como forma de relação de estranhamento
ante uma realidade social desumanizada e terrível, que se naturaliza para ser esquecida na
rapidez da mídia que trata de tudo um pouco, muitas vezes sem a força textual da literatura.
Assim esse processo que Jurandir Freire Costa denomina “desinvestimento cultural” é
freqüentemente apontado e questionado pelas práticas de produção e recepção literárias, em
seu diálogo incessante com outros discursos e outros reais.
Percebe-se, pois, que a enunciação literária não é apenas uma representação direta
do mundo já constituído, mas não volta as costas para ele. Mesmo porque não há um
mundo já constituído, ele se constitui em processo, de que faz parte o próprio discurso
literário. Ao encenar textualmente as diferentes vozes que constituem a realidade, a
literatura, sem dar lições de moral, de ética ou de política a seus leitores, pode levá-los a
pensar enquanto vivem o prazer de ler.

Referências

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