Leitura Literaria - Enunciação e Encenação
Leitura Literaria - Enunciação e Encenação
Leitura Literaria - Enunciação e Encenação
Graça Paulino
Ivete Walty
(...) reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária,
violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos — ou a literatura fala do mundo,
ou então a literatura fala da literatura —, e voltar ao regime do mais ou menos, da
ponderação, do aproximadamente: o fato de a literatura falar da literatura não
impede que ela fale também do mundo. Afinal de contas, se o ser humano
desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da
ordem da linguagem. (COMPAGNON, 1999, p. 126)
Podemos acrescentar que essa dicotomia vem sendo relativizada por uma noção de
discurso como trânsito social incessante, processo entre sujeitos, que inclui tanto uma
organização do sistema lingüístico quanto interferências pessoais e sociais (cf. BAKHTIN,
1981) Assim, os estudos lingüísticos, sem reduzir a referencialidade a um mundo de idéias
pré-existentes na mente dos falantes de uma língua, conseguiriam afastar-se tanto desse
referente-objeto, pré-existente, quanto do mundo dos pensamentos a serem expressos. Por
outro lado, o próprio conceito de real vem sendo relativizado, por meio das contribuições
da psicanálise, as quais levam em conta o papel do imaginário na composição do real, que,
por sua vez, só se dá a conhecer através do simbólico (cf. LACAN, 1988). A filosofia dá
seu contributo a essa relativização do real, quebrando a tradição platônica do
logocentrismo, em que as idéias são o centro e ponto de partida para a construção das
produções simbólicas (DERRIDA, 1973; DELEUZE, 1974). A quebra da homogeneidade e
da universalidade de um real foi decorrente ainda dos estudos antropológicos, que se
voltaram para a presença das diferenças culturais como significantes, ultrapassando os
limites do etnocentrismo e a pretensa hegemonia do Ocidente “civilizado”.
Tais transformações levaram a um deslocamento da teoria literária, hoje em diálogo
com os Estudos Culturais, em práticas de escrita e leitura que, em sua pluralidade, cruzam
textos de origens diversas, mesmo que cada um guarde suas especificidades. É bom lembrar
que o conceito de identidade vem sendo relativizado, o que não significa sua negação, já
que desconstruir não é sinônimo de destruir (cf. DERRIDA, 2004). O que ocorre é que
tanto o indivíduo como o texto não se fecham em um único espaço, já que pertencem
simultaneamente a várias ordens. Daí a idéia do trânsito. Há uma categoria fundamental
para que possa ocorrer esse trânsito entre diferentes produções culturais sem que haja perda
de traços identitários: a enunciação. Nosso propósito neste artigo é mostrar que, por isso
mesmo, tal categoria faz-se um importante operador de leitura.
Entenda-se por enunciação o ato simultaneamente social e subjetivo de apropriar-se
da linguagem, num processo interlocutório. Bakhtin (1981) afirma que toda enunciação é
de natureza social. Trata-se de uma ação individual, presente, concreta, que produz a
relação eu/tu, ao mesmo tempo em que é produzida por ela. Benveniste (1991) considera
que a enunciação é sempre o estabelecimento de um diálogo, mesmo que se trate do
chamado monólogo interior. O eu, a primeira pessoa do discurso, a que fala para si mesma
ou para o outro, insere-se em um contexto e dirige-se necessariamente a um tu, segunda
pessoa, com a qual se comunica lingüisticamente.
Nesse sentido, vale realçar a inserção histórico-social do ato enunciativo, que marca
todo e qualquer discurso, diversificando-os. A referência está ligada à enunciação, pois só
esta pode dizer se os enunciados se mostram verdadeiros ou falsos. Como lembram
Todorov e Ducrot (1977):
Iser fala ainda que é o desnudamento da ficcionalidade que faz a literatura se dar a
conhecer como um tipo especial de texto:
O autor alerta, pois, para a importância do contrato que se estabelece entre autor e
leitor. Philipe Lejeune denominou esse contrato de pacto ficcional (1975). Partilha-se uma
representação que simultaneamente se mostra como tal e se vale dos recursos próprios de
outras enunciações encenadas.
Retomando a metáfora do vampiro, vale lembrar que na cena ele é palavra que,
desmanchada, (des)vela seus mistérios e, como bom vampiro, está pronto para devorar os
atores e os espectadores. Como no jogo enunciativo, todos representam: do autor aos atores,
passando pelo diretor e chegando aos espectadores.
No texto literário a linguagem põe-se em cena, revelando a nós que toda linguagem
é assim: representada. Alguns textos fingem a realidade, buscando “um efeito de real”,
como quer Barthes (1988). Nesse momento, quando parece prender-se ao referente, a
linguagem tentaria negar a mimesis, já que parece apagar seu caráter de representação.
Nesse sentido, vale lembrar Jean Bessière, quando afirma que “a obra realista é o sistema
comparativo de suas próprias convenções” (1995, p. 385). Também Iser, ao discutir o
caráter da obra realista, refere-se à possibilidade de a ficção apresentar-se como aparência
de realidade, dissimulando seu estatuto próprio. Acrescenta no entanto que
Pode até ser mesmo que a função da dissimulação seja manter intactos os
critérios naturais, para que a ficção seja compreendida como uma realidade que
possibilita o esclarecimento de realidades. (ISER, 2002, p. 973)
São múltiplas as relações que o texto literário pode manter com outros textos
(reforço, ironia, paráfrase, paródia etc). Um exemplo de enunciação literária que aponta, em
forma de pastiche, para o jornalístico é o texto de Bonassi, “Telejornal”.
Esse conto de Bonassi, na seção “Jazz”, da revista alternativa Ocas (jan. 2004),
toma como objeto o mundo das notícias televisivas. É nesse espaço, que parece delimitado,
que se desvelam redes sociais “contaminadoras” de outros espaços. Com exceção da
primeira e da última frases, todas as outras são constituídas apenas com um verbo no
pretérito perfeito. São mais de 200 verbos, que, não por acaso na terceira pessoa do plural,
traduzem atos de violência. Depois de toda a lista, indiciadora das relações humanas na
sociedade contemporânea, um irônico “Boa noite” fecha o texto/imagem, não apenas do
telejornal, mas da própria sociedade. Na verdade, a indeterminação dos sujeitos das ações
evidencia que eles não estão circunscritos a espaços dados como marginais e perigosos.
Nessa mesma linha, vale lembrar o microconto “Acerto”, de Francisco de Morais
Mendes (apud FREIRE, 2004, p. 79):
— Está feito?
— Sim.
— Quem?
— O de treze...
— É?
— Sim.
— E agora?
— O enterro é às cinco.
A evidência
Ela me disse:
— Não, meu amigo, eu não vivi. Nunca nadei pelas estradas, nunca um homem
me conheceu, e até hoje a água do mar não molhou meu corpo.
Ela me disse isso. Ela que sempre foi sincera, que nenhuma vez faltou com a
verdade.
E é por esse motivo que estou pensando: como, se seus cabelos estão molhados
pelas ondas, seus pés têm vestígio de todas as estradas e no seio ela amamenta
uma criança? (FRANÇA JÚNIOR, 1985, p. 117)
Miau
Toda noite a feirante Satiko Motoie Simmio, 56, vai ao Parque Tenente Siqueira
Campos, o Trianon, na Av. Paulista (zona oeste de S.P.) alimentar os gatos que
vivem no local — cerca de 25, diz ela. A feirante gasta R$800 por mês, na
alimentação dos gatos. (Cotidiano, 4.out. 2004.)
Menino de rua, sem pai nem mãe, ele era pobre, era feio, era analfabeto. Mas
possuía uma habilidade da qual se orgulhava: imitava à perfeição o miado de um
gato. Certo, muita gente faz isso, mas no caso dele era arte, arte pura. Tão
autêntico era o seu miado que fazia os cachorros da vizinhança latirem, irritados.
Daí o seu apelido: Miau. Era como ele mesmo se apresentava; o nome verdadeiro
raramente lembrava.
Vida difícil a dele. Dormia na rua, passava fome. Arranjar comida era sua
preocupação maior, uma preocupação que ressurgia a cada manhã.
Foi então que ouviu falar na senhora que alimentavas gatos. Uma senhora muito
boa, que proporcionava aos felinos do Trianon generosas rações.
Aquilo lhe deu uma idéia. Naquela mesma noite foi até o parque, escondeu-se
atrás de uma árvore. Pouco depois apareceu uma senhora, trazendo um cesto. É
ela, pensou, e de imediato começou a miar, um miado inspirado, o melhor que já
produzira. A senhora deteve-se, olhou em direção ao arbusto, não viu gato algum,
mas convencida de que ali deveria estar um felino faminto depositou no solo uma
generosa ração. Miau esperou que ela se afastasse e, mais que depressa, atirou-se
ao alimento. Era comida para gato, claro, mas muito saborosa.
Desde então ele tem repetido a manobra todas as noites. Não passa mais fome e
até engordou um bocado. Mas enfrenta dois problemas.
Para esta interrogação o garoto não tem resposta. Já observou, contudo, que o
lugar está cheio de camundongos gordinhos e lentos. Com um pouco de treino
conseguirá apanhar cinco ou seis deles numa noite. Para quem se chama Miau
não deve ser difícil. (SCLIAR, Moacyr. Folha de S.Paulo, 11/10/2004, p. C.2)
Referências
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2002.
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COSTA, Jurandir Freire. Playdoier pelos irmãos. In: KEHL, Maria Rita (Org.). Função
fraterna. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000. p. 7-30.
DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas
Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 250-271.
FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. As laranjas iguais. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século: cem escritores
brasileiros do século XXI – cem microcontos inéditos. São Paulo: Ateliê, 2004.
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário; perspectivas de uma antropologia literária.
Tradução Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1996. p. 13-33 e 341-
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ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. v. 1. Tradução Johannes
Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA,
Luiz (Org.). Teoria da literatura em suas fontes, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 955-987.
LACAN, Jacques. As psicoses. Tradução Aluísio de Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
(O Seminário 3).
PLATÃO. A república, livro VII. Tradução Albertino Pinheiro. São Paulo: Atena, [s.d.].
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. v. 1. Tradução Constança Marcondes César. São Paulo:
Papirus, 1994. cap. 3, p. 85-131.
(Texto publicado no livro Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte: Editora da PUC Minas,
2005, p. 138 – 154)