Dissertacao Natureza
Dissertacao Natureza
Dissertacao Natureza
RIO DE JANEIRO
2012
CRISTIANE GONÇALVES DE SOUZA
Rio de Janeiro
2012
SOUZA, Cristiane Gonçalves de. Projeto Sagrada Natureza:
currículo em ação – uma experiência multicultural na aplicação da
Lei 11.645/2008. Cristiane Gonçalves de Souza. Rio de Janeiro,
UFRJ, 2012.
125 p.
SUMÁRIO
Dissertação. (Mestrado em Educação). Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2012.
_____________________________________________
(Orientadora Profª Drª Ana Canen - UFRJ)
____________________________________________
(Profª. Drª. Maria Vitória Campos Mamede Maia - UFRJ)
____________________________________________
(Profª Drª Mary Rangel - UFF)
____________________________________________
(Profª Drª Helena Amaral de Fontoura - UERJ - suplente externa)
____________________________________________
(Profª Drª Sonia Maria de Castro Nogueira Lopes - UERJ - suplente interna)
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, D. Dora que, com suas mãos, na labuta do dia-a-dia, garantiu as
À Profª Drª Clarice Nunes, que me possibilitou, quando ainda ensaiava meus passos
Arosa, pelo apoio institucional ao projeto nos anos letivos de 2007 e 2008;
À Profª Drª Ana Canen, pela orientação com extremo rigor, qualidade, excelência
acadêmica e humana. Sua atenção extrema e paciência, diante dos limites que apresentei no
trilhar os caminhos desta pesquisa. Ser aluna deste grupo foi um privilégio!
grandeza!
À EAP das escolas municipais da rede pública de ensino de Niterói: E.M. Rachide da
Glória Salim Saker, E.M. Altivo César, E.M. Levi Carneiro, E.M. João Brazil, E.M. Honorina
de Carvalho e UMEI Bezerra de Menezes, pelo acolhimento da proposta e pela interlocução
Gesteira; Eloá Maciel; Carminha Vasconcellos; Geisa Capistrano; Rogério Lafayette; Gleice
Coelho; Márcia Valéria Cavalcante; Marizeth Santos Faria; Wanda Lúcia Lyrio Haritoff e
Margareth da Paixão Franca Nogueira; Silvana Badaró Pitzer; Letícia Alfradique Ayres
nosso diálogo elevou a qualidade das discussões de forma crítica, nem sempre confluente,
mas com extremo respeito contribuindo muito para a qualidade das reflexões desenvolvidas;
À Profª Raquel Muniz Maya, pelo encontro, parceria, coragem e presença na trajetória
do Projeto Sagrada Natureza. Ao final desta etapa afirmamos nosso maior aprendizado... you
À Profª Fernanda Lima Rabelo, pela leitura sempre atenta e crítica deste trabalho, pela
A Luciano Martins, amigo querido, seu incentivo é a marca registrada da sua presença
no meu caminho;
esteve ao meu lado compartilhando seu conhecimento e apoiando a trajetória deste projeto,
À Subsecretária de educação Profª Cléa Monteiro, pelo apoio, pelo voto de confiança e
pelo respeito ao meu trabalho. Em um momento crítico que vivemos no ano de 2011, ela
garantiu a continuidade das ações do Projeto Sagrada Natureza, permitindo a finalização desta
pesquisa.
E aos que porventura não se encontrem aqui, tenham a certeza de que estão marcados
A presente dissertação teve como objetivo analisar, como pesquisa qualitativa, uma
experiência de currículo em ação desenvolvida em cinco escolas da rede municipal de
educação de Niterói. Esta experiência se deu a partir do Projeto Sagrada Natureza que, através
das oficinas “No Xingu, Oxóssi reina!, propõe ilustrar uma alternativa de aplicação da lei
11.645/2008, como um tópico da educação ambiental em uma perspectiva multicultural, no
conteúdo escolar de 3º e 4º ciclos. Por meio de uma pesquisa-ação buscou-se compreender os
desafios docentes na implementação de práticas multiculturalmente orientadas, sobretudo, no
que diz respeito à mitologia dos orixás. A conclusão aponta para a necessidade de fomentar
as formações continuadas para os professores e a instrumentalização dos docentes com
material didático sobre a temática. A presente pesquisa sugere também o aprofundamento da
análise dos dados levantados, diante do peso que o aspecto religioso tem sobre as
subjetividades dos professores, pedagogos e diretores de escola. A metodologia baseou-se na
pesquisa-ação, a partir da triangulação dos dados: observação das aulas e reuniões de
planejamento; avaliação da proposta pelos professores em formações continuadas; entrevistas
e análise dos referenciais curriculares da Fundação Municipal de Educação de Niterói. A
partir das análises identifica-se que a implementação da lei 11.645/2008 pode ser
potencialmente ampliada em propostas curriculares que avançam da perspectiva multicultural
folclórica para abordagens multiculturais críticas e pós-coloniais.
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 12
1.1 PROBLEMA E OBJETO ............................................................................ 12
1.2 OBJETIVOS ................................................................................................ 18
1.3 JUSTIFICATIVA ........................................................................................ 19
1.4 REFERENCIAL TEÓRICO ........................................................................ 25
1.5 METODOLOGIA ........................................................................................ 36
1.6 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO........................................................... 43
CAPÍTULO 2
O PROJETO SAGRADA NATUREZA ............................................................. 46
2.1 O PROJETO: PRÁTICA E REFLEXÃO PARA A AÇÃO ........................ 46
2.2 AS OFICINAS: NO XINGU, OXÓSSI REINA! ........................................ 55
2.2.1 A onça-pintada e a cosmologia dos indígenas no Brasil ......................... 58
2.2.2 A mitologia dos orixás: Oxóssi, o caçador de uma flecha só e o
conceito de sustentabilidade ambiental .................................................... 63
CAPÍTULO 3
A PESQUISA-AÇÃO NA ATUAÇÃO DO NÚCLEO DE AÇÕES
INTEGRADAS ..................................................................................................... 73
3.1 MULTICULTURALISMO E CURRÍCULO: OS DESAFIOS NA
CONSTRUÇÃO DO DIÁLOGO ................................................................ 73
3.2 CONVERSA COM A EQUIPE DE ARTICULAÇÃO PEDAGÓGICA
SOBRE A MITOLOGIA DOS ORIXÁS E SUA INSERÇÃO NO
CURRÍCULO .............................................................................................. 79
3.3 O QUE DIZEM OS PROFESSORES? ........................................................ 86
3.3.1 Meio Ambiente, povos indígenas e orixás: um diálogo possível? ......... 90
3.3.2 O Projeto Sagrada Natureza: avaliação dos professores ....................... 109
CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 112
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO
Felizes aqueles que sabem cultivar as margens das nossas escolas: elas são
as terras frutuosas de descoberta dos saberes de amanhã.
(DURAND, 1982)
nos remete a desafios para a compreensão dessa humanidade e o respeito a ela. É fundamental
desenvolver ações que se desdobrem em políticas públicas que estabeleçam metas que não
fiquem restritas à tolerância, mas sim que se voltem ao respeito aos valores culturais e aos
harmoniosa.
Portanto, nós, educadores, devemos repensar nosso diálogo com o saber que
legitimamos diante de nossos alunos e repensar o próprio diálogo entre nós e eles. Nos dias
atuais, a escola se defronta com os desafios propostos pela violência, pela evasão escolar, pela
falta de entusiasmo dos professores, pelo descrédito que muitos discursos apontam diante do
magistério e sua competência pedagógica. Estamos diante de uma escola tensionada por estes
conflitos que se desdobram em soluções que vão desde os índices de aprovação referendados
pelas avaliações institucionais até o inchaço de projetos “culturais”, que objetivam promover
13
uma escola mais prazerosa e elevar a autoestima dos alunos. As perguntas que devemos fazer
a nós mesmos diante de nossa prática pedagógica são: qual é o papel da escola diante do
conhecimento? Quais são os saberes e valores que elencamos quando elegemos determinado
conteúdo curricular? É possível pensar a escola como espaço de afirmação de uma sociedade
Não pretendemos, aqui, apresentar nenhuma solução para as questões complexas que
contribuir com o diálogo sempre salutar que se impõe ao campo teórico e prático da educação
quando reconhecemos que o saber é sempre provisório, e cabe à escola promover o exercício
da confrontação dos saberes de forma crítica e emancipatória, contribuindo, desta forma, para
um sujeito histórico, inserido em um processo histórico, social e político, e que exerce forte
influência sobre sua prática e seu pensamento, influenciando, portanto, seu posicionamento no
mundo.
vida cotidiana, acentua-se, para todos, a consciência de múltiplos pertencimentos (de gênero,
de religião, de etnia, etc.), tributária dos avanços tecnológicos e pela divulgação dos meios de
mundo cada vez mais tensionado pelas diferenças e desafios às estruturas de valores
estabelecidas.
buscar trazer à superfície, refletida em nossos atos cotidianos. A opção de dar voz às
enfrentamento mais lúcido dos limites e valores construídos historicamente, que justificam os
discursos que são reforçados pelo contexto e trajetórias culturais, e não por ser uma verdade
absoluta e incontestável.
la menos plural ou para demarcar diferenças para sempre estanques, mas para tornar visíveis
as relações historicamente construídas entre indivíduos e grupos, cujas fronteiras são sempre
partir de seu universo sagrado e simbólico e sua relação com o meio ambiente.
15
culturas e sua relação com o meio ambiente, que se articula com a percepção do divino. Os
deuses indígenas e afro-brasileiros têm lugar na natureza e nela recebem reverência. Tratar o
meio ambiente como sagrado é um paradigma alternativo e enriquecedor para a nossa relação
com a natureza.
A natureza concebida pelas culturas indígenas e afro-brasileira de culto aos orixás tem
seu lugar na história da trajetória humana. Tal natureza tem o poder de representação na tribo,
da aldeia no conselho tribal. Boaventura Sousa Santos (2007, p. 41) afirma que “em nossa
cultura falamos de direitos humanos, mas não de deveres humanos. Por isso em nossa cultura
de direitos humanos a natureza não tem direitos: porque tampouco tem deveres”.
desta forma, um diálogo que rompe com a linha de ensino fundamentada em apenas uma
curricular, ainda é frágil. Os saberes indígenas e a religiosidade afro-brasileira são alguns dos
pontos mais nevrálgicos quando se aborda a cultura desses povos. Diante disto, coloca-se a
questão: quais os limites que desafiam a inclusão destas temáticas no currículo escolar? Ou
profissionais da educação dispostos a confrontar sua cultura com outras formas de saber,
1
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm (Acesso em 16/10/2011).
16
partir deste objetivo, busca entender de que forma se estabelecem as relações de poder na
ambiental?
mitologia dos orixás e nas manifestações do sagrado na cultura indígena, um dos modos pelos
envolvendo cinco escolas de 3º e 4º ciclos da rede municipal de Niterói: E.M. João Brazil,
17
E.M. Levi Carneiro, E.M. Altivo César, E.M. Honorina de Carvalho e E.M. Rachide da Glória
Salim Saker.
ciências, cujo conjunto apresenta o título “No Xingu... Oxóssi reina”. As atividades
desenvolvidas nos encontros foram conduzidas por mim, sempre na presença do professor
e abordagem escolhidas.
escolas envolvidas no projeto e registros dos debates ocorridos nas reuniões de planejamento
com professores de diversas disciplinas que atuam nas escolas onde a pesquisa-ação foi
desenvolvida.
realizadas, muito mais do que seu papel informativo e didático, são questionadoras de
verdades e valores estabelecidos nas trajetórias das disciplinas escolares que deixaram
silenciadas contribuições de culturas consideradas inferiores. Por que não incluir no currículo
desenvolvimento da pesquisa-ação.
1.2 OBJETIVOS
multiculturalmente orientado;
1.3 JUSTIFICATIVA
No ano de 2007, a Escola Municipal Levi Carneiro foi uma das escolas a iniciar a
sugestão de ciclos, ao perceber o potencial para ampliar o currículo e permitir aos professores
maior autonomia na gestão de seu tempo e dos conteúdos escolhidos para trabalhar com os
das atividades, que, antes, eram vinculadas, sobretudo ao quadro de horários de aulas e aos
privada e;
e indígena a partir de seu universo sagrado e simbólico e sua relação com o meio
ambiente.
foi desenvolvido com alunos dos 3º e 4º anos de escolaridade, em reuniões semanais, com
grupos de 15 alunos. O horário dos encontros era articulado com o turno dos alunos e feito em
sensibilização dos alunos diante da cultura ancestral africana e indígena. Essa sensibilização
Selecionei cinco alunas para construírem, junto com a coreógrafa, uma performance
de saudação aos orixás. Este trabalho abriu nossa 1ª Mostra de Arte e Cultura e foi o passo
inicial para a apresentação do tema na comunidade escolar. O próximo passo, então, seria a
africana). Entendo que as sensações são indissolúveis do pensar; no entanto, este pensamento
Todo este cuidado ao trabalhar o tema foi condicionado pelas resistências que
afirma Lima (2006, p. 74): “um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e
contido nestas”.
Uma das críticas ao projeto é que ele corria o risco de se tornar um tema religioso, e
considerando que nossos alunos são, em sua maioria, devotos de outras crenças religiosas,
trabalhar esse tema causava muito desconforto. Alguns alunos deixaram de participar das
atividades quando elas se vinculavam à abordagem dos orixás. Cabe aqui ressaltar a
importância do apoio da gestão da escola, que foi fundamental para vencer as resistências.
Muito desse olhar limitador sobre as culturas afro-brasileiras e indígenas deve-se a uma
trajetória do currículo escolar que deixou à margem a cultura dessas sociedades, sua
Falar de cultura indígena e africana durante anos representou somente tratar o índio como
aquele que foi subjugado, simplificando, em muito, sua relação com a natureza. Quanto ao
21
manifestações consideradas exóticas e, por vezes, caricaturais. Pouco tem se considerado, nos
livros didáticos, a contribuição do negro como construtor de uma memória ancestral que,
deixada para trás e reconstituída aqui, promoveu, por exemplo, uma releitura das mitologias
apenas com o recurso da oralidade. Como nos diz Melo (1989), poeta angolano, “mas eles
A escola é um local privilegiado, dinâmico, onde as trocas de ideias são, por vezes,
conflitantes, mas que enriquecem ao reafirmar ou não práticas sociais, posto que são a
buscar romper.
Para Vygotsky:
indígena com a seriedade e o mérito que ela merece é, também, um exercício de resgate da
memória de minorias e marginalizados que, com muito esforço, mantêm o seu patrimônio
Durante séculos, gerações passaram pelas cadeiras escolares e não tiveram acesso à
que ser professor é, acima de tudo, adotar uma consciência educadora, participativa
promover a curiosidade, estabelecer uma nova criatividade na leitura do mundo que nos cerca,
23
perceber novas possibilidades de entendimento e, com isso, possibilitar a todos, sem exceção,
a possibilidade de expressão.
sociais, lutando apenas contra o que deixa milhares de crianças fora da escola. Cabe aos
para que esta contribua para a reflexão sobre escola e cultura, entendendo esta relação em
trajetória na educação, na busca incansável por um universo mais pleno de cuidado, alegria e
24
criatividade nas escolas. Escola que passou e passa por múltiplas metamorfoses, sejam elas
frutos das novas demandas dos alunos e da sociedade ou também e reflexo disto, de uma
As aulas de História são tão importantes quanto a oficina de teatro ou o vídeo que é
oferecido aos alunos. Currículo também é o conjunto de vivências, não apenas cognitivas,
mas também afetivas e artísticas, porque cada uma delas contribui para a formação do aluno e
presente pesquisa que a formação dos alunos tem que ser ampliada por novas leituras
disciplinares, por uma nova organização curricular que respeite a identidade de uma
determinada escola, que se apresenta pelas suas demandas próprias, pelo conjunto de valores e
percepções de seus professores diante do currículo e pela gestão da escola que se sensibiliza
original.
Da mesma forma, pretendo registrar que o professor é um ser que passa ao longo de
sua trajetória profissional por mudanças em sua vida pessoal, as quais promovem uma leitura
diferente do mundo, possibilitando-o reinventar o seu espaço na escola, espaço este contínuo
relações interpessoais que se estabelecem na escola muitas vezes geram conflitos que podem
Enfim, penso que a escola é tão transformadora para o professor quanto o é para o
aluno; temos apenas que encarar o conflito, e, para isso, é preciso ousadia, coragem, e
também criatividade para o posicionamento diante dos preconceitos e limitações que podemos
25
ter ao propor uma determinada temática para ser desenvolvida na escola, enfim a vivência
pretende contribuir para o debate acerca do currículo em uma perspectiva multicultural pós-
crítica.
Pensar o currículo é colocar como questão central qual o conhecimento que deve ser ensinado.
Assim, a resposta a esta pergunta, no decorrer da construção histórica deste campo, revela-nos
O campo do currículo teve origem nos Estados Unidos, com a publicação, em 1918,
do livro The Curriculum, de Bobbitt, mas foi na década de 1960 que começaram os estudos
como referência os estudos do sociólogo inglês Michael Young (2000), são os marcos da
26
sociais em defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc. o que levou a
referência, que apresentou questões sobre a noção de que o conhecimento é uma construção
social, apontando para o poder que certos grupos têm de, por exemplo, legitimar crenças e
Freire (1970).
A partir dos anos 1970, então, surgiu uma abordagem mais crítica das questões
dominante. Nesse contexto, surge o conceito de “currículo oculto”, que discute o currículo
expressava menos por manifestações verbais do que através de gestos, rituais e práticas
corporais.
Para Apple (1979), a questão não era saber qual conhecimento é verdadeiro, mas qual
discussão e seleção dos conteúdos escolares? Portanto, para Apple (1979), o currículo estava
Quando chegamos às duas últimas décadas do século XX, percebemos avanço nessa
discussão, com autores como Henry Giroux (1981), com o livro Ideology, Culture, and the
que esses dois autores recebem uma influência importante do trabalho de Paulo Freire. Esses
três educadores desenvolvem, em suas trajetórias, uma relevante interlocução entre si, com
Giroux (1981) desenvolveu três conceitos centrais para a sua concepção emancipadora
p. 54). Para este autor, a escola e o currículo devem funcionar como uma “esfera pública
promovendo, desta forma, nos alunos, atitudes críticas e que contestam o saber hegemônico,
presentes na sociedade.
chamada Pedagogia Crítica que, segundo ele, “examina a escola nos seus contextos históricos
e também como parte do tecido social e político existente que caracteriza a sociedade
dominante”.
(1999; 2000). No livro Utopias provisórias (1999), o autor dedica um capítulo à pedagogia
revolucionária de Che Guevara. Ainda nesse livro, o autor faz um mapeamento das
ordem capitalista.
1990. Autores como Grant (2000), Hall (2000) e McLaren (2000) e, no campo educacional
brasileiro, Candau (1994), Canen (1997) e Moreira (2001) publicam trabalhos resultantes de
No contexto da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1960, surgiu
cultural trouxeram a categoria cultura para o centro das reflexões. Identidades étnicas e
culturais lutam por espaços de representação e legitimidade. Há, também, um forte potencial
tecnológico e pela difusão de valores religiosos, estéticos, políticos e bens culturais pelos
em todo o seu potencial criativo, mas também coloca para o mundo os desafios que surgem no
no cotidiano educacional.
Por ser um termo polissêmico, “estes precisam ser analisados, de forma que práticas
curriculares que se pretendam multiculturais não acabem por perpetuar a construção das
diferenças e dos preconceitos que tanto desejam combater” (CANEN, 2005, p. 180).
de valores, crenças e costumes, mas, quase sempre, percebemos que o discurso em prol da
adotada nesta dissertação é a de que as identidades não são naturais, que elas se formam no
provisórias.
promoção do diálogo entre as diferenças e afirma que as vozes presentes na sala de aula são
educação e cultura(s), reconhecendo a escola como espaço onde estas se cruzam, de forma
lo, mas busca analisar a trajetória histórica e cultural em que ele é instituído como o Outro, o
diferente. Autores como Hall (1997), Silva (2000), Candau e Moreira (2008) e Canen (2009)
curriculares, ao propor um currículo que estabeleça ações pedagógicas: “em prol da formação
perspectiva de educação para a cidadania, para a paz, para a ética nas relações interpessoais,
Sendo assim, Moreira (1996; 1997) e Canen (2000; 2005; 2008) contribuem para a
esta questão ganha particular significado, já que exige uma sensibilidade para a maneira como
encontramos o desejo de que cada escola e/ou redes públicas de ensino reconheçam as
pluralidade cultural:
Apontou-se, quando da análise dos PCNs, por exemplo, que o fato de que tal
tema se encontre sob a denominação “transversal” pode resultar em sua
eventual diluição no currículo. (CANEN, 2000) Ainda registrou-se que o
significado de multiculturalismo aí presente oscilava entre propostas mais
críticas de desafio a estereótipos e preconceitos, até afirmações que reduziam
tais manifestações a componentes psicológicos de “medo do outro”, sem
questionar as raízes históricas e culturais das mesmas ou apontar formas de
combatê-las (CANEN, 2008, p. 73).
Percebe-se, então, que, no decorrer da leitura dos PCNs, com um olhar mais atento
vislumbramos que a proposta ilustra uma perspectiva multicultural que objetiva a valorização
poder que se estabelecem na sociedade vão legitimar valores e olhares sobre o Outro, ou seja,
sobre aquele que não está inserido na identidade supostamente hegemônica; vão orientar o
nosso olhar para o que nós somos, e é através deste movimento que o Outro se estabelece. Os
desta dinâmica.
indígena, constituídas por mitos que recebem leituras folclóricas e quase sempre sob o risco
do exótico e da desqualificação. Por outro lado, a mitologia grega é percebida como uma das
mais criativas seja do ponto de vista estético ou moral. Cabe ressaltar que, mesmo no caso da
mitologia grega, a abordagem nos livros didáticos tem o objetivo apenas de ilustrar uma
cultura, mas não há uma problematização dos mitos e sua relação com a sociedade.
De qualquer forma, estudar a mitologia grega não provoca desconforto. Exu e Hermes,
falar de Hermes não produz tanto medo quanto falar de Exu. Problematizar a construção
Projeto procurou resgatar uma sabedoria que resiste há séculos, apesar do descrédito,
reforçado pelo desconhecimento que acentua o preconceito e que não enxerga que essa
fortalecidos em uma determinada conjuntura. Além disso, é possível perceber, também, que o
reinvenção neste processo; logo, o currículo está em constante tensão pelas relações de poder
estabelecidas na sociedade.
No ano de 2003, foi sancionada, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei
10.639. Com isso, a Lei 9.394/96 passou a vigorar com o acréscimo dos seguintes artigos:
Entre 2004 e 2005, foi elaborado o documento Orientações e Ações para a Educação
e órgãos relacionados à educação pública. Formaram-se, então, vários grupos de trabalho para
efetiva também da cultura indígena nos currículos escolares, com a Lei 11.645:
35
A questão dos negros e afrodescendentes no Brasil, assim como a que se refere aos
pelo seu lugar no Estado brasileiro. Na tentativa de se estabelecer uma identidade nacional,
sociedade.
1.5 METODOLOGIA
qualitativa.
A partir dos anos 1980 e 1990, os estudos chamados “qualitativos”, ganharam força e
história oral.
outra crítica diz respeito à falta de regras de procedimento rigorosas para guiar atividades de
coleta de dados, o que pode dar margem para que o bias do pesquisador venha a modelar os
dados que coleta, que, por isso, não podem ser usados como evidência científica.
científico e ético de conter a subjetividade inerente a todo processo de pesquisa seja ele
qualitativo ou não.
sua atuação como pesquisador exigem rigor científico, mesmo que estes não sejam os mesmos
A partir dos critérios de validação de Anderson e Herr (1999 apud André, 2001), que
validade externa: ou seja, que se julgue o valor dos resultados (ou da ação).
natureza;
desenvolvimento do Projeto Sagrada Natureza nos anos letivos de 2007, 2008 e 2009.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), percebi que é no chão da escola que se dá o
Por exemplo, ao apresentar para os alunos que havia uma sabedoria nos orixás e que
esses orixás podiam ser exemplos da interação profunda do Homem com a natureza e que,
portanto, o preconceito não se justificava, uma vez que os preconceitos são construídos
historicamente e impedem um olhar mais amplo diante da vida, e, por outro lado, quando
diálogo lançando a seguinte pergunta: o aluno que chega à escola com uma Bíblia ou um
38
crucifixo passa quase que despercebido ou seria elogiado pelo exemplo, mas se um aluno
Por que, quando se fala em educação ambiental, não se pode relacionar a tradição das
paradigma dessas culturas ancestrais guarda em si uma grande contribuição para nossa
sociedade? É importante mostrar aos alunos que a história da África e dos povos indígenas
ultrapassa os objetivos de se entender a dominação e a conquista que sofreram por parte das
de leitura e ação dos professores diante das políticas institucionais e de sua capacidade de
reinvenção perante conteúdos e expectativas que eles têm em relação à sua disciplina e ao seu
período.
2
Dissertações: COSTA NETO. Ensino religioso e as religiões de matrizes africanas no Distrito Federal
39
oriundos dessas comunidades e que são inseridos em escolas regulares. Apenas um desses
Indígenas e Educação Ambiental. Não foi encontrada nenhuma dissertação ou tese que
abordagens antropológicas.
desta pesquisa: BONIN. E por falar em povos indígenas... Quais narrativas contam em
(Mestrado/2008/UFSCar).
2004; CANDAU, 2008; CANEN, 2008 e 2009; CANEN e MOREIRA, 2001; CANEN e
OLIVEIRA, 2002; MCLAREN, 1999; MOREIRA, 2008) e foi desenvolvida com professores
realizadas durante os anos letivos de 2010 e 2011, e com alunos de 3º e 4º ciclos desta mesma
Segundo Barbier:
matriz iorubá, e as perguntas sobre o que é macumba estão presentes em todos os encontros.
Não houve um encontro, no qual termos desqualificadores desta religiosidade, assim como
casos exóticos de casas de terreiro próximas, não sejam relatados. Grande parte dos
discriminatório.
Sendo assim, esta pesquisa busca a reflexão sobre o olhar do professor, suas escolhas e
com o avanço das discussões, os professores afinam o discurso com a reflexão e ampliam a
41
possibilidade de ações pedagógicas que podem modificar olhares antes limitados pelo
preconceito.
buscando um olhar afinado com a perspectiva da pesquisa. Ressalto que, nestes momentos, a
regente da turma (geografia e ciências). Cada oficina correspondeu a dois tempos de aula.
Antes da oficina, o professor recebeu o material sobre multiculturalismo e o currículo para sua
apreciação, além de ter respondido a uma entrevista semiestruturada elaborada por mim. Os
pedagogos das escolas onde as oficinas foram realizadas também foram entrevistados assim
importantes para o processo de reavaliação e reflexão das ações implementadas pelo Projeto
sobre a proposta do Projeto Sagrada Natureza e como eles percebem as dificuldades para
levar para a sala de aula a temática dos orixás e dos povos indígenas do Brasil. Esta
participantes das entrevistas. Busquei, nas relações que estabeleci, um olhar de mão dupla
entre o pesquisador e o objeto de pesquisa. Questões foram colocadas para a pesquisa, que
problematizaram ainda mais o diálogo estabelecido. Destaco este momento como o mais
enriquecedor e que me desafiou a procurar novas leituras diante das novas questões que eram
propostas.
registros de avaliação da proposta pelos professores, além das entrevistas com os pedagogos.
Destaco, aqui, que o referencial curricular que orienta os professores da Fundação Municipal
Moreira:
procurei sempre dialogar com meus colegas professores, mesmo quando estas não foram
A presente dissertação tem como objetivo apresentar uma análise dos desafios e
avanços, a partir de uma experiência de currículo em ação, proposto pelas ações orientadas
desenvolvimento Projeto Sagrada Natureza, na E.M. Levi Carneiro, nos anos de 2007, 2008 e
2009. Apresenta também os objetivos e justificativa para o presente estudo, diante dos
desafios da aplicação da lei 11.645/2008 nos conteúdos escolares. Neste capítulo, também
crítico e pós-colonial, assim como um breve histórico da evolução dos estudos e debates no
campo do currículo. Além disso, foi feita uma leitura crítica inicial dos Parâmetros
enquanto constatei como fundamental tensionar mais o debate, questionando a construção das
diferenças no contexto histórico. Apresentei também, a metodologia que me orientou, que foi
pesquisador.
44
E.M. Levi Carneiro que apresentou questões e motivou as ações para esta pesquisa.
no projeto e com as equipes de articulação pedagógica das escolas envolvidas. Neste capítulo
análise feita a partir da triangulação dos dados: as oficinas com os professores e seus alunos,
Figura 1 - Pintura em grafite, produzido por ex-alunos da E.M. Levi Carneiro dedicado
ao Projeto Sagrada Natureza – jun./2007
CAPÍTULO 2
O PROJETO SAGRADA NATUREZA
(BOFF, 2001, p. 9)
A E.M. Levi Carneiro, no ano de 2007, foi uma das escolas a iniciar a implementação
dos ciclos escolares na rede municipal de educação de Niterói. Esse processo começou
gradualmente, e o Projeto Sagrada Natureza foi um dos projetos que contribuíram para o
Professora regente de história nesta unidade escolar, desde o ano letivo de 1999, eu
Esse apoio veio, sobretudo, com a aprovação de um RET3 de 16hs, para que eu
desenvolvesse as atividades do Projeto Sagrada Natureza, além dos ensaios e da produção das
3
Decreto nº 9782/2006 - Fica instituído o Regime Especial de Trabalho (RET), que se destinará ao atendimento
de necessidades de relevante interesse público, de caráter especial e temporário, aplicável aos servidores dos
Grupos Magistério e Técnico-Científico da Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME), na forma dos
artigos 5º, 6º e 7º da Lei 2.307/2006, que estejam em efetivo exercício de suas atividades na FME ou nas
unidades de educação da Rede Municipal de Niterói ou que pertençam ao grupo de servidores inativos da FME,
desde que possuam uma única matrícula e não tenham sido aposentados por invalidez.
47
Iniciei, então, nossas atividades. A sala de leitura era o espaço utilizado para os
encontros e foi justamente nesse espaço que tive a primeira aproximação com as mitologias
Cabe esclarecer que, na sua concepção inicial, o Projeto Sagrada Natureza tinha como
mitologia dos orixás e a mitologia indígena poderiam ser temáticas muito próximas no que diz
respeito à questão ambiental. Percebi que seria uma boa oportunidade de aplicação da Lei
10.639/2003.
foi a forma inicial que organizei para apresentar aos alunos esses mitos, um primeiro desafio
surgiu. A gestão de pessoal da FME alegou que, por eu não ser professora de português, não
minha capacidade de fazer uso da sala de leitura e de seus materiais, assim como as atividades
de leitura, ainda que não tivesse tido formação específica para tal. Diante disso, o
Prossegui, então, com o trabalho. Além das sessões de contação de histórias e rodas de
leitura com os alunos, foram realizadas algumas atividades como: um grupo de ex-alunos
foram convidados para produzirem grafites na quadra da escola com a temática ambiental;
organizamos mostras de arte e cultura, para expor nosso trabalho à comunidade escolar;
48
participei ativamente das discussões pedagógicas divulgadas pela FME, sempre apresentando
a proposta de trabalho; a gestão da escola convidou uma coreógrafa para a concepção de uma
performance de saudação aos orixás; e foram organizados diversos sábados letivos com
acesso.
A primeira delas diz respeito à nova forma de organização do tempo que fizemos
semanalmente, os alunos (grupos de 15) iriam durante um tempo de aula (45 minutos) para a
sala de leitura para as atividades do Projeto Sagrada Natureza. Poucos aceitaram e muitos
colegas alegaram que esse tipo de atividade atrasaria e dificultaria ainda mais o
desenvolvimento dos alunos nas disciplinas obrigatórias. Além disso, como decidimos que
todos os alunos de 3º e 4º ciclos teriam acesso a essas atividades, muitos colegas alegaram
que alunos indisciplinados não deveriam ser contemplados com tal atividade.
indisciplinados não devem participar de atividades que saiam da rotina de sala de aula? As
atividades que apresentam temáticas que fogem ao conteúdo regular não são consideradas
como parte do currículo e da formação do aluno? Tais atividades seriam mais uma recreação?
Mitos indígenas e orixás, o que isto tem a ver com o conhecimento escolar?
questões apontadas, ainda que as implicações multiculturais para a didática ainda sejam pouco
abordadas.
49
Neste ponto, o trabalho de James A. Banks é fundamental para a análise das questões
Bartolomé Pina (1994) situa o modelo proposto por Banks, que denomina holístico, na
interseção entre aqueles que se situam em uma opção baseada na promoção das relações
interculturais e os que se orientam a construir uma sociedade mais justa, lutando contra a
assimetria cultural, social e política. Assim, Pina define esse modelo: “Ele aborda a educação
luta contra a discriminação e o racismo.” (PINA, 1994, p. 45, apud CANDAU, 2002, p. 111).
relacionadas à diversidade; pretende, também, promover uma nova forma de olhar a escola e
seu cotidiano, e, neste, a presença de relações de poder que determinam o que deve ser
Diante disso, surge a reflexão de que o cotidiano da escola pode ser enriquecido com
novas situações criativas que tenham como objetivo favorecer outras formas de entendimento
do mundo e que estas sejam respeitadas. Por outro lado, ao percebermos o currículo em
constante construção e o nosso potencial de intervenção em nossas salas de aula e nos demais
50
Pensar e viver uma escola pública nos convida sempre à utopia de que podemos criar
condições objetivas para a realização plena dos sujeitos em sua trajetória, marcada pela
garantia dos direitos de cidadania. Refletir sobre a educação e a escola exige de nós a
percepção de que nas escolas ainda sobrevivem perspectivas tradicionais, onde estas são
É ignorado que elas são também locais culturais e políticos, assim como é
ignorada a noção de que elas representam arenas de contestação e luta entre
grupos culturais e econômicos que têm diferentes graus de poder (GIROUX,
1986, p. 17).
exigem de nós a sensibilidade para ouvir o que esses atos de indisciplina nos dizem. Um
aluno indisciplinado deve ser ouvido com mais atenção, porque talvez os atos de indisciplina
sejam as únicas formas de verbalização do que ele tem a dizer. Portanto, defendo que a
fundamental se defendemos uma escola solidária e que luta pela inclusão de todos. Não
podemos negar os instrumentos de negociação disciplinar de que podemos fazer uso, mas
esses instrumentos devem ser usados como mais uma estratégia de aproximação do aluno da
escola. Com isso, podemos afirmar que as questões de indisciplina devem ser analisadas caso
51
a caso, para não perdermos de vista a motivação subjetiva presente em cada situação
uma relação positiva com os alunos, assim como com qualquer outra forma de relação
No que diz respeito ao conhecimento escolar, entendemos que, neste ponto, também o
Quando defendo que a escola pública é uma das possibilidades para a construção de
uma sociedade mais justa, com os direitos à cidadania garantidos, não quero negar que a
escola ao seguir o modelo proposto pela Modernidade, foi incapaz de lidar com as diferenças
de vozes, leituras, desejos, sentidos, narrativas, dos diferentes sujeitos que nela interagem.
(GABRIEL, 2008). A concepção de educação que ainda predomina nas escolas, sofre a
argumenta que:
universais e absolutas. Não quero aqui negar um referente extradiscursivo, tornando-se, assim,
2008)
Incluir nos conteúdos escolares outras formas de se pensar e fazer ciência, outras
são caminhos que se abrem para o professor e a escola que pretendem praticar um currículo
Um dos caminhos que o Projeto Sagrada Natureza percorreu foi o de promover ações
iorubá. Procurei inserir essas contribuições como conteúdo a ser estudado reflexivamente
trajetória histórica dos povos indígenas e por ser a nossa maior reserva, contendo, por isso, em
Ao longo de seus 2,7 mil quilômetros, ele corta o nordeste do Mato Grosso e atravessa o Pará
até desembocar no rio Amazonas, formando uma bacia hidrográfica de 51,1 milhões de
hectares que abriga trechos ainda preservados do Cerrado, da Floresta Amazônica e áreas de
assinado pelo presidente Jânio Quadros, quando sua área correspondia a apenas um quarto da
13/07/1971, tendo sido finalmente feita a demarcação de seu perímetro atual em 1978.
ambiental e das populações indígenas que orientou sua criação, estando a área subordinada
tanto ao órgão indigenista oficial quanto ao órgão ambiental. Foi apenas com a criação da
56
Funai (em 1967, substituindo o SPI – Serviço de Proteção aos Índios) que o “Parque
uma relevância que não esperávamos, mas neste momento se apresentava a principal
equivocada que percebemos ao longo da história. A religiosidade iorubana deve ser vista
como expressão do maléfico, do desqualificado e daquilo que deve, sim, ser apagado de nossa
cultura, ou pelo menos ter expressão apenas folclórica e muitas vezes caricatural? Portanto, o
que nos mobilizou foi tentar entender a motivação religiosa presente nestas críticas e,
Esse Projeto foi desenvolvido até o final de 2009, na E.M. Levi Carneiro, quando
Projeto se transformou em oficinas que percorreram outras escolas e dialogou com outros
57
profissionais da educação. O título dado a essas oficinas e que era divulgado nas escolas foi:
O título dado ao Projeto, agora em forma de oficinas nas unidades escolares, foi
inspirado na proposta que o Projeto defende que é a de que, nas reservas indígenas, o conceito
da sociedade brasileira, que lutam por reconhecimento e que apresentam afinidade em suas
contrário da tradição científica ocidental, que fundamenta o ensino das ciências em nossas
escolas, em que a natureza é tratada como objeto, como um “isso” (GRÜN, 2003).
O casamento entre o céu e a terra, assim como o círculo sagrado dos orixás que
natureza guarda sua outridade e que esta deve ser reconhecida mediante uma relação em que a
natureza é parte fundadora da constituição dos seres e se constitui ela própria em um SER que
Para Grün:
mitológico indígena. Trata-se de uma valorização e simbiose com a natureza. São inúmeros
mitos que contam a história de mitos fundadores de vários povos indígenas. Se Prometeu, na
mitologia grega, recebe o fogo de seu pai, Zeus, para transmiti-lo aos homens, os xamãs
humanos. O deus criador dos Ashaninka lhes dá a coca; o jacaré está na origem do pequi, tão
importante para os Kuikuro; para os Huni Kuï, a aranha ensina a colher o algodão, e a jiboia é
quem ensina a fazer os desenhos tradicionais – os Kene – que vemos pintados nos corpos das
pessoas e feitos nas roupas. A cotia dá o amendoim para os Panará e o rato dá a semente do
milho.
(2002), é um conceito que qualifica um aspecto muito característico de várias, senão todas, as
cosmologias indígenas:
indígenas.
Para os Guarani, bem como para outros povos indígenas, o animal está intimamente
ligado aos gêmeos lendários criadores dos povos indígenas. A mãe desses personagens, que
onça. A princípio é acolhida, mas, em seguida, as onças, que voltavam da caça famintas, pelo
fracasso, devoram-na. Os gêmeos são poupados e criados pelos felinos, mas quando
fogo”, que os homens roubaram, obrigando-a a comer apenas carne crua, o que a teria tornado
perdido na selva, um menino é ajudado pelo animal. Em meio às peripécias que se seguem, o
curumim avista um jatobá em chamas. De volta à aldeia, conta aos homens sobre o fogo e o
recolhem, tirando-o da onça. Desde então, os homens comem cozido e ela come cru. Assim, o
homem possui o fogo porque o roubou da onça (segundo algumas versões, ela o deu de boa
vontade). Por causa dessa perda, o animal teria se tornado canibal, devorador de carne crua e
que podemos encontrar no clássico estudo da antropologia nas culturas sul-americanas, O cru
do fogo e da culinária.
Em muitos povos indígenas, os xamãs, quando estão diante de uma doença difícil de
curar, invocam o espírito da onça para lutar contra o mal que ataca o corpo do indivíduo.
que marcam a identidade da fauna brasileira, assim como a degradação ambiental e os riscos
de extinção de animais.
Nosso principal objetivo era apresentar aos alunos uma lógica diferente de percepção e
convívio com os animais. Contrastando com a caça indiscriminada, que leva os animais ao
risco de extinção, encontramos nos povos indígenas uma possibilidade de recriar esta relação,
que nos inspire para uma lógica ambiental pela sustentabilidade, mas, também, pelo respeito e
4
No Brasil, ela já praticamente desapareceu da maior parte das regiões Nordeste, Sudeste e Sul. É classificada
pela IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza) e pelo IBAMA como espécie vulnerável e está
no apêndice I do CITES (Convenção de Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em
Perigo de Extinção)
62
todos se assemelham.
indígenas como sujeitos que estabelecem entre si uma relação que deve ser contemplada nos
conteúdos escolares como mais uma alternativa para as discussões ambientais na escola.
Em recente pesquisa, Lima (2011) demonstra como a cultura iorubá, base expoente
narrativa. Lima (2011), argumenta que na concepção africana, o espaço religioso é integrado à
outras esferas da vida, pois a vida se desenvolve num todo orgânico, e não em esferas
modelo ocidental:
e todos festejaram.
Todos cantaram em louvor a Oxotocanxoxô.
O caçador ficou muito popular.
Cantavam em sua honra, chamando-o de Oxóssi,
que na língua do lugar que dizer “O Caçador Oxô é Popular”.
Desde então Oxóssi é o seu nome (PRANDI, 2001, p. 113 [51]).
Figura 3 - Uma das gravuras presentes no mural para a apresentação do Projeto Sagrada
Natureza na Semana do Meio Ambiente, na E.M. Levi Carneiro/Junho de 2008
Estudiosos estrangeiros e mais tarde iorubás letrados iniciaram, a partir do século XIX,
o resgate e a compilação do vasto patrimônio mítico iorubá, que, na ausência da escrita nessa
sociedade, foi transmitida oralmente. Na sociedade iorubá tradicional, é pelo mito que se
alcança o passado, é o mito que explica o presente. Os mitos dos orixás originalmente fazem
parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como
ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e
Por iorubás passaram a ser designados, desde a metade do século XIX, diferentes
grupos que, na atual Nigéria, na República do Benin e no Togo, falam a mesma língua, ainda
estado, compartilhando muitas tradições, embora em alguns casos pudessem ser diferentes e
até mesmo conflitantes. Tidos como iorubás (e, no Brasil, também nagôs), sabiam-se oiós,
ifés, egbas, auoris, quetos, ijexás, ijebus, equitis, ondos, igbominas ou de outras nações. De
vários grupos com dialetos e culturas diferenciados, entre os quais andongos, dembos,
Os primeiros mitos escritos apareceram já nas primeiras obras que trataram da religião
dos orixás na África no século XIX: os livros de padre Baudin, de 1884, e do coronel Ellis, de
1894, iniciando-se uma contribuição crescente, com destaque para a obra do mais importante
pesquisador atual da mitologia dos orixás na África – Ulii Beier (PRANDI, 2001).
Contemporâneo de Beier, Pierre Verger colheu vários mitos no Brasil e certamente foi
o maior divulgador da religião dos orixás. Roger Bastide (1945; 1961) e René Ribeiro (1978)
primeiro cientista brasileiro a se preocupar com a mitologia africana, e Artur Ramos (1935,
1940, 1952), que publicou o mito “Xangô deixa a velha Oba e encontra Oxum”, na revista
Kosmos, em 1904.
No entanto, Prandi (2001) considera que a mais rica fonte primária brasileira de mitos
é, certamente, o caderno escrito por Agenor Miranda Rocha5, cuja redação foi iniciada em
deixar sua terra natal. Tinha início, então, uma longa trajetória de luta pelo resgate da
identidade desses grupos, que com uma criatividade imensa recriaram seus mitos, dando
mitologia grega, o mundo islâmico são percorridos pelos alunos nas aulas de história sem
nenhum constrangimento, mas incluir a mitologia dos orixás no currículo escolar, na sala de
aula, causa uma tensão muito grande. Defendemos que talvez não seja por causa do aspecto
5
Foi iniciado no candomblé em Salvador, em 1912, aos cinco anos de idade, por Mãe Aninha Oba Bií, Ana
Eugênia dos Santos (1869-1938), filha-de-santo da Casa Branca do Engenho Velho e fundadora do terreiro Axé
Opô Afonjá.
68
religioso, presente nas mitologias, mas sim pelo fato de ser uma mitologia recriada pelos
sofreram toda forma de discriminação. Afinal, a mitologia dos orixás foi recriada no Brasil,
dentro das senzalas, é uma cosmologia, que resistiu a séculos de marginalização e que, neste
momento que temos uma legislação que promove a cultura africana e afrodescendente na
escola, tornou-se “a pedra no sapato” para muitos. Como falar de cultura afro-brasileira e não
Silva nos ajuda a refletir sobre a relação entre currículo e representação racial quando
afirma que:
não podemos desconsiderar que o currículo e os livros didáticos quando não contemplam
orixás, reforçam a natureza exótica e/ou folclórica da história e cultura afrobrasileira, porque
Natureza, através de suas oficinas, buscaram trazer essa temática como um conteúdo
indígenas e a mitologia iorubá guardam uma sabedoria e lógica próprias, que também foram
modificadas ao longo da história, mas que resistem e estão presentes na sociedade brasileira.
Sendo assim, por que não podem ganhar representação nos livros didáticos?
necessariamente uma vivência religiosa, e, sim, uma aproximação cultural, crítica e reflexiva,
de uma expressão que está presente na sociedade brasileira e que grande parte da sociedade
brasileira desconhece.
Escolhemos o mito de Oxóssi para ilustrar uma temática relacionada ao meio ambiente
Oxóssi é o provedor das comunidades. É com ele que a gente aprende que a caça deve
ocorrer para alimentar a sociedade e, assim, deve ter caráter sagrado, de manutenção da
florestas, o grande caçador trará sempre fartura e prosperidade para os lares daqueles que
Relacionamos a partir do seu mito, que o identifica como o caçador de uma flecha,
provavelmente esta relação tenha nascido a partir de dois mitos que praticamente
desapareceram no Brasil e que nos remetem a Oxóssi: Orô, o temido espírito da floresta, de
rugido assustador, e Oquê, a montanha. Até os dias atuais, a saudação a Oxossi é Okê Aro.
70
Apresentamos para os alunos que a lógica que inspira o arco e a flecha dos índios está
presente na lógica do caçador de uma flecha só, que entra na mata em busca da sobrevivência
conteúdo escolar, discutindo a trajetória ambiental que marca a história de nosso país.
Consideramos que a mitologia dos orixás pode, sim, ser uma alternativa de abordagem para
O PCN – tema transversal, Meio Ambiente (1997), aponta também para uma nova
Faz parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o ser humano não é
o centro da natureza, e deveria se comportar não como seu dono, mas,
percebendo-se como parte dela, resgatar a noção de sua sacralidade,
respeitada e celebrada por diversas culturas tradicionais antigas e
contemporâneas.
(...)
Algumas das ideias fundamentais para a estruturação do conhecimento a
partir da Idade Moderna desvinculam-no de ideais ético-filosóficos,
afirmando e buscando a objetividade científica. Com isso os seres vivos e os
elementos da natureza foram destituídos de qualquer outro tipo de valor
místico que podem ter tido em diversos momentos da história em várias
71
Esta ética de perceber a sacralidade da natureza e seu potencial para que nossos alunos
reconheçam como outras culturas elaboram seus sentidos e lógicas, promovendo, dessa forma,
alternativas que podem inspirar uma mudança fundamental e entender que todas as culturas
partilham do mesmo espaço natural, que é o planeta Terra e que podemos conceber a partir de
uma ética do cuidado, relacionada ao Outro, seja ele, um indivíduo, um grupo ou a natureza.
O Projeto Sagrada Natureza, através das oficinas “No Xingu, Oxóssi reina!”, buscou
ilustrar uma possibilidade de dialogar com as demais disciplinas e com a lógica hegemônica,
que persiste em nossas escolas e deixa à margem saberes presentes nas culturas que não são
“outro”, indígenas e negros, tiveram sua alteridade negadas violentamente. Esta negação se
histórica que legitimou sua construção, nos coloca diante destes sujeitos históricos que foram
Sagrada Natureza, apesar de não abraçar uma trajetória etnográfica, procurou resgatar parte
CAPÍTULO 3
A PESQUISA-AÇÃO NA ATUAÇÃO DO NÚCLEO DE AÇÕES INTEGRADAS
No decorrer desta pesquisa não foram poucas as afirmações de que todo currículo é
com mais uma forma de olhar a escola, o currículo e a sociedade, dos quais esses mesmos
encontram, poderíamos dizer mesmo, que se esbarram, no fazer da história, constituindo desta
forma a diversidade cultural, que reconhecemos desde a Antiguidade; então, por que nos
livros de história, por exemplo, encontramos, tão pouco, ou quase nada, a respeito das culturas
indígenas? Por que a contribuição do negro na história do Brasil ganha destaque na escravidão
e quase nada se diz sobre as formas de ciência e interpretações do sentido do universo, tão
bem representado na mitologia iorubá? Estes são apenas alguns exemplos de como devemos
que a história escolar de cada um de nós e de nossos alunos, foi e é vivida diante de muitos
que ganha terreno nas discussões sobre currículo, convida a dar voz a estas expressões
identitárias.
escolas podem garantir a legitimidade de ações que desafiam preconceitos, mas também
tensionam subjetividades em seus valores éticos e culturais? Quem determina o que deve ser
perspectiva multicultural quando apresentou aos alunos e aos professores uma possibilidade
de abordagem e inserção dos saberes da floresta e da mitologia dos orixás, a partir da lógica
O multiculturalismo pretende contribuir para uma escola que valorize através das
afirmou que reconhecia o valor das temáticas multiculturais e que defendia a inserção no
currículo dessas temáticas. No entanto, afirmou que só faria a abordagem desses assuntos em
sala de aula se eles estivessem nos livros didáticos. O professor argumentou que se
76
determinado assunto, como a mitologia dos orixás, não estivesse no livro didático, como ele
poderia justificar com a família dos alunos a abordagem deste assunto em sala de aula.
Fica claro, para nós pesquisadores, que muitos colegas professores não se percebem
decorrer de sua trajetória, limitam-se na maioria das vezes a reproduzir o que os livros
surgem elas estão inseridas em sábados letivos, que muitas vezes se limitam à confecção de
murais, apresentação de danças e exibição de filmes que se perdem nas semanas seguintes
perspectivas do multiculturalismo folclórico. Muitas das vezes, elas são estratégias que os
Na E.M. Levi Carneiro, em 2007, o Projeto Sagrada Natureza foi apresentado a partir
várias salas temáticas, com murais ricos em gravuras e desenhos feitos pelos próprios alunos
que representavam os orixás e desenhos de alguns animais considerados sagrados pelos povos
indígenas com destaque para a onça-pintada, assim como apresentamos uma coreografia de
saudação aos orixás na quadra da escola e organizamos sessões de contação de histórias sobre
Desta forma, sugerimos que o enfoque multicultural deve inspirar ações concretas no
“chão da escola”. Para isso, o corpo docente deve ser estimulado a desenvolver atividades em
das identidades dos educandos, expressos em sua cultura e realidade, são traços fundamentais
tributários no Brasil, das ideias de Paulo Freire no campo da educação popular. Pensar
multiculturalmente pressupõe sempre a disposição para o diálogo, que pode se dar entre
professores e alunos, entre os professores e seus pares, entre as disciplinas, entre escola e
instituição central (no caso das redes públicas de ensino), entre escola e comunidade escolar,
enfim, entres todas as instâncias possíveis. Pensar e fazer uma educação multicultural é
reconhecer seu horizonte utópico; é uma possibilidade de trazermos para o centro das falas
fundamenta as ações pedagógicas, o pensar a práxis dos educadores em uma lógica diferente
daquela que produziu tantos silenciamentos. Pensar a educação exige de nós o desafio de
reconhecer que a lógica da produção do conhecimento, da legitimação dos saberes que devem
78
entrar na sala de aula, e dos sentidos da vida diversos que encontramos no mundo, não estão
historicamente presentes no discurso que é aceito, não são as vozes ouvidas. Portanto, o
caminha para a luta por um currículo que “inscreva narrativas que contem histórias de novos
sujeitos e novas histórias que desinstalem as velhas identidades de suas privilegiadas posições
O Projeto Sagrada Natureza criou espaços para a discussão de uma nova forma de
perceber o mundo e dar sentido a ele. As tensões que nasceram nesta trajetória contribuíram
nos espaços onde as oficinas ocorreram para vários debates, dentre estes o mais caloroso e
não apenas desta manifestação religiosa, mas também dos saberes que ela guarda. A medicina
dos Xamãs indígenas e as ervas curadoras de Ossain não participam da lógica ocidental para a
construção do conhecimento e da ciência. Ora, se, nas escolas, pensar a educação e o currículo
professores foram formados nesta lógica aliada ao exótico e ao espaço periférico que estas
culturas foram colocadas, não há incentivo à inclusão destas temáticas; elas são vozes
caminhamos para um olhar mais amplo, para um conhecimento mais holístico, onde as
dicotomias produzidas pelo conhecimento dão lugar a totalidades cósmicas, mais articuladas,
representação coletiva dos cidadãos, em sua originalidade, pensar em uma escola pública,
democrática, mas onde a voz das minorias tenham espaço de escuta e sejam legitimadas por
diversidade presente no mundo e garanta a todos, sem distinção, o direito à livre expressão.
Para ter direito a existir, sem ser idêntico [ao colonizador], é preciso
encontrar as brechas, praticando a política cultural da representação. É
preciso encher o mundo de histórias que falem sobre as diferenças, que
descrevam infinitas posições espaço-temporais de seres no mundo. É preciso
colocar estas histórias no currículo e fazer com que elas produzam seus
efeitos (COSTA, 1998, p. 40).
um dos pressupostos fundamentais que adotamos nesta trajetória de pesquisa. Diante disto,
diretores e pedagogos (supervisão e orientação escolar) foi o primeiro esforço para o início
Em todas as escolas, a proposta foi muito bem recebida e a disposição dos pedagogos
Desde o ano de 2010, quando iniciei esta pesquisa já como desdobramento do projeto
inicialmente desenvolvido na E.M. Levi Carneiro, era salientado que a questão religiosa era
Cabe registrar que nesta trajetória no Núcleo de Ações Integradas tive a oportunidade
infantil) e uma UE de ensino fundamental (1º e 2º ciclos), ficou bastante claro a objeção das
diretoras em desenvolver o Projeto Sagrada Natureza. Nos dois casos, procurei conversar com
as demais equipes6 que faziam o acompanhamento destas escolas e ficou claro que a gestão,
bastante pontuais estas demonstrações de resistência, pois, na maioria das vezes, o apoio foi
muito grande.
Em uma das escolas em que o Projeto foi desenvolvido, tive a oportunidade de realizar
uma formação continuada com os professores desta unidade escolar. Fui muito bem recebida
que aquele é um universo multicultural e que a garantia de uma escola pública e democrática
só é possível com uma gestão de escola que saiba dialogar com a subjetividade presente nos
valores e escolhas, com o reconhecimento de que existem valores e escolhas diferentes, e que
6
A Fundação Municipal de Educação de Niterói é dividida em sete polos. Cada um deles recebe visitas regulares
de membros das equipes que trabalham na sede com o objetivo de acompanhar e dar apoio pedagógico para as
UMEIs e UEs.
81
isto deve ser garantido. Nesta escola, um dos professores é do candomblé, tem uma longa
decisão de não se dar voz às demais identidades religiosas; o que determina esta escolha é a
o currículo escolar.
para a ação.
proposta. Assim, em algumas dessas escolas, eu me sentia quase como “professora da casa”, e
desenvolvi desde o início. Acredito que esse processo contribuiu muito para a pesquisa, no
sentido de que as pedagogas se sentiam muito à vontade e tranquilas para apresentar seus
vivemos nesses dois últimos anos, sobretudo 2011, paralisações e manifestações sindicais que
culminaram com uma greve de três meses e muito desgaste na comunicação entre algumas
UEs e a Fundação Municipal de Educação de Niterói. Cabe destacar que das cinco escolas
participantes desta pesquisa, duas delas tinham um comando de greve muito forte e em
82
dificuldades que surgiram e que limitaram algumas ações inicialmente propostas pela
pesquisa foram decorrentes da suspensão das aulas, já que nessas escolas muitos professores
Nas conversas informais que tive neste primeiro momento a adesão foi total, mas
sempre fui alertada do enorme contingente de alunos evangélicos e que isto poderia ser um
obstáculo, mas sempre me incentivaram a prosseguir com a ação que seria a pesquisa aqui
apresentada.
resistências, críticas e preconceitos deveriam ser assimiladas como incentivo para ações
dentro da comunidade escolar; portanto, é fundamental que estas situações não sejam veladas
e sim que sejam a pauta das discussões de planejamento, norteadoras dos conteúdos e
abordagens em sala de aula. Um diálogo multicultural deve ser desejado e promovido, porque
só assim podemos fortalecer uma trajetória de escola pública com base nas múltiplas
identidades presentes na sociedade e fomentar cada vez mais a nossa capacidade de dialogar
comprometer no diálogo com nossos colegas educadores e nas reuniões de pais. Enfim,
uma determinada conjuntura. É possível perceber, também, que o professor em sala de aula
sociedade.
desconstrução destes valores, tendo como base, por exemplo, que o conceito de diferença é
reflexo da percepção do que é ser diferente para um determinado grupo, ou seja, as oficinas
demandas presentes nas sociedades diversas espalhadas pelo mundo, e que, portanto, uma
teoria que explique e contemple a diversidade não é o mais importante, e sim o entendimento
de que o conhecimento se produz de inúmeras formas, que os conceitos são produzidos por
uma determinada sociedade, que guarda em si a sua especificidade, sendo, então, única e
original.
se reconhecer as diferenças presentes também nestes grupos étnicos, por exemplo, em sua
grande. Como denominou Santos (2001): “as diferenças dentro das diferenças”.
comunidade escolar foi convidada a participar das discussões. Então, espera-se que diante de
com as identidades plurais que circulam nas unidades escolares, valorizando a pluralidade de
outras, que constituem a realidade escolar. É inegável que este documento oficial legitima
ações como o Projeto Sagrada Natureza, mas observei que alguns professores e equipe de
articulação pedagógica de diversas escolas não buscaram conhecer melhor o documento e não
assimilaram esta contribuição ao seu trabalho nas salas de aula ou como ação pedagógica nas
escolas. Uma pedagoga de uma escola de 1º e 2º ciclos chegou a afirmar para mim que na
escola dela “não havia diversidade, portanto, era desnecessário ações que combatessem este
problema”.
85
importância de uma formação continuada efetiva e constante, assim como a ampliação nas
Quando a citada pedagoga afirma que não há diversidade em sua escola e que não tem
esse problema, percebemos como o olhar dela não reconhece inúmeras identidades que
certamente foram veladas pela postura adotada na escola, pelas escolhas de conteúdo que não
homogeneidade ilusória é a escolha pertinente. No entanto, a escola não deixa de ser uma
organização multicultural; as identidades estão lá, mesmo que silenciadas, daí a importância
sete pedagogas que faziam parte da equipe de articulação pedagógica das escolas em que
as resistências relacionadas à religiosidade afro-brasileira. Destaco que. neste grupo, uma das
pedagogas já havia pensado em um projeto desta natureza, mas, por falta de tempo, por estar
Como foi dito no tópico anterior, o sistema de ensino da rede municipal de Niterói tem
Um dos desafios que tinha pela frente era o posicionamento diante de meus colegas
professores. Percebi que a opção pelas conversas frequentes e pela construção do trabalho em
Os oito professores participantes das oficinas foram escolhidos por serem professores
das escolas que eu acompanhava regularmente e pela relação de amizade que estabelecemos
de geografia. A escolha pelas disciplinas foi feita a partir das minhas relações interpessoais.
abordagem ou que pelo menos estava aberto a novas ações pedagógicas. Além disso, eu
as com a educação ambiental, tópico não exclusivo, mas que se identifica, sobretudo com
estas disciplinas.
relação ao trabalho. Uma das professoras realizou comigo mais de uma oficina e sugeriu,
turma para os encontros. Alguns professores preferiram que toda a turma participasse, o que
turma e ele era convidado a participar e construir comigo a dinâmica a ser utilizada.
As oficinas eram divididas em duas partes, mas que buscavam o encontro das culturas
indígenas e africanas no que diz respeito a sua relação com a natureza. No capítulo 2
semiestruturado (vide Anexo 1). Importante ressaltar que estes professores continuavam a
proposta, assim como era o momento em que os professores expressavam suas inseguranças
questões propostas.
Ficou claro, para mim, que muitos professores, com os quais travei discussões a
respeito dos potenciais multiculturais presentes no currículo escolar, conhecem muito pouco
pluralidade de culturas, além de, na maioria das vezes, atribuírem a esse conceito as noções de
diferença.
88
Dos quatro professores que participaram mais efetivamente com suas turmas das
eram engajados e, apesar de não adotarem a proposta multicultural como referencial teórico,
preconceitos e abertas a novos saberes. Não é por acaso que foram estes professores que se
engajaram no projeto.
tiveram alguma experiência em pesquisa. Um deles continua a sua formação acadêmica com
Quando iniciei a análise dos dados e no decorrer das discussões e atividades percebi
que neste grupo de quatro professores o que limitou a ação foi uma questão subjetiva. Um dos
professores tinha um comprometimento claro com sua religião e isto foi demonstrado ao final
das atividades.
Observei que em uma das oficinas, em que a temática de destaque era Oxossi o
professor preferiu não estar em sala e convidou um colega para substituí-lo. Cabe ressaltar
que, ainda assim, o professor promoveu a atividade, estimulando os alunos a participar, mas,
diante deste fato, percebi que muito ainda teríamos que discutir, porque, decididamente,
orixás nos remetem a algo negativo e os valores dos professores influenciam em seu
trajetória como educador reflexivo e um intelectual transformador, que, através de seu fazer,
criação ficaram a margem dos conteúdos escolares e sofreram historicamente ataques que
confirmavam sua inferioridade diante das demais mitologias e contribuições culturais. Daí a
necessidade de ações que promovam novas formas de abordagem com objetivo de perceber a
mitologia dos orixás como mais uma contribuição para a humanidade, que guarda sua
sabedoria e dignidade.
Além disso, devemos reconhecer o desafio real que o encontro com novas formas
de expressão cultural e saberes pode se dar no ambiente escolar. Como podemos legitimar o
que fundamentam nossos currículos e nosso posicionamento em sala de aula? De que forma
90
ciência? A cultura indígena e afro-brasileira são convidadas a estar cada vez mais presentes
em nosso currículo, a partir de dois dispositivos legais, quais são os limites para a aplicação
desta lei? Os valores e saberes indígenas e afro-brasileiros só poderão entrar em nossas salas
de aula a partir da lógica ocidental e do homem branco? Foram estas as perguntas que
nasceram e/ou se reafirmaram após a leitura inicial dos dados e que descrevo a seguir.
interior da comunidade escolar não é tarefa fácil. Exige disciplina, convicção, persistência e
aposta no sentido de escola e cultura escolar que estamos dispostos a perceber e garantir em
democrática.
educadores sobre a sua própria identidade cultural: como são capazes de descrevê-las, como
tem sido construída, que referentes têm sido privilegiados e por meio de que caminhos.
manifestações dos educadores diante do desafio aos preconceitos para construção de uma
professora coloca a palavra globalização entre aspas ela nos pergunta que globalização é esta.
Candau (2010) nos fala de uma tendência atual, dentre outras, na literatura sociológica
que é a de perceber a globalização a partir de três perspectivas básicas: 1) Ela é plural (há
Matta (1996); a globalização não se dá de forma linear em todas as sociedades, portanto, não
há etapas a vencer para se chegar àquilo que seria uma instância final e englobadora de toda a
muito no espaço social) ou, como afirma Canclini (1996), a imposição de modelos culturais
dos vencedores é antiga na história das civilizações. Assim, “podemos verificar que cada país,
dependendo de seu papel na lógica capitalista (país central ou periférico), viverá um tipo de
globalização, que será também vivida de forma diferente entre os grupos sociais de uma
culturas, e consequentemente dos saberes locais e da ciência produzida por estes povos.
Nos PCNS destinados a disciplina de Ciências Naturais (1998) são apontados critérios
Esta pesquisa não teve como objetivo a análise dos PCNs de Ciências Naturais, mas é
para a organização dos conteúdos. Em primeiro lugar, não há nenhuma referência aos
conhecimentos indígenas. O Brasil apresenta uma biodiversidade imensa e parte dela está em
Curriculares Nacionais, que orientam as diretrizes curriculares para todo o território não faz
nenhuma referência do conhecimento e prática dos povos indígenas. Os povos indígenas têm
para o currículo de ciências, para a discussão das questões ambientais e para uma nova ética
cultura, segundo os critérios apresentados no PCN, devem ser mediadas pela tecnologia
porque estas poderiam ser garantia de superar interpretações ingênuas. Com um olhar
define o que é relevante socialmente para ser incluído como conteúdo em um currículo? Qual
é o papel da tecnologia nas demais culturas, como a dos povos da floresta? Poderíamos
entender o conhecimento dos xamãs que utilizam ervas e rezas como conhecimento ingênuo,
confrontam, Santos (2007) cita o exemplo da Revolução Verde que colocou em lados opostos
uma tribo das montanhas de Bali e os agentes do Banco Mundial que consideravam a forma
de irrigação das terras desta tribo como ilógica e irracional, por ter como fundamento a
espiritualidade e a magia. Com a imposição da nova tecnologia foi um desastre total e a forma
tradicional de irrigação voltou a ser praticada. Portanto, se pretendemos dar voz à sociedade e
94
que esta se sinta representada nos conteúdos escolares, é de difícil compreensão porque os
conhecimentos dos povos da floresta ficam à margem, são silenciados praticamente em todas
inegável o avanço na formulação dos PCNs, ainda que eles tenham sofrido críticas
(MOREIRA, 1966; 1997) “tanto no que diz respeito à reduzida consulta prévia à comunidade
acadêmica para a sua elaboração inicial, quanto ao excesso de prescrições em seu bojo e ao
avanço porque, a despeito de suas limitações, organizaram uma proposta curricular que
reconhece a pluralidade cultural como tema a ser tratado no âmbito da educação formal.
cultural como tema transversal. Poderíamos apontar aqui também o tema transversal meio
não deve se limitar a apresentar as demais culturas nacionais como as diversas etnias
presente no país, mas olhar estas culturas sem negá-las em seu saber, buscando sempre
alternativas para inseri-lo em sala de aula, no conteúdo escolar. Acreditamos que, assim,
conhecimento, em sua lógica própria, tendo o cuidado para não congelar estas identidades e
perceber que assim como o mundo e as grandes cidades estão em contínua dinâmica de
movimento.
Contudo, cabe destacar que apesar das contradições que apontam para a necessidade
educação multicultural, o fato de o tema ser incorporado nos PCNs pode representar o início
inclusive, nos referenciais da rede municipal de Niterói, onde leciona e participou do Projeto
Sagrada Natureza, e foi um dos principais interlocutores, com quem discutimos várias
respeito à diferença. Quando falamos dos conflitos no Oriente Médio, como a disputa entre
maneira similar diante do conflito? Quais são os discursos presentes na mídia e que nos
A questão que devemos problematizar neste ponto é que as identidades que aparecem
nos currículos de geografia, história e qualquer outra disciplina quase sempre são
que ao longo da história se manteve estática. A alternativa conceitual se apresenta a partir das
contato com outras culturas. Uma abordagem não-essencialista também levaria em conta os
Podemos ampliar os exemplos e verificar que os povos indígenas quase sempre são
do índio quando percebemos que a imagem idealizada e ingênua dos povos indígenas teve
espaço e foi o discurso hegemônico presente nos livros didáticos durante muitas gerações que
passaram pelas carteiras escolares e nos livros didáticos de história. Por exemplo, o índio
É fato que temos que trazer para o contexto de nossas disciplinas que os povos
indígenas não são passivos e que cada etnia utilizou de estratégias para garantir a
sobrevivência, ainda que muitos tenham sido dizimados. Fato também é que os povos
indígenas, ao iniciarem o contato com o homem branco e a sua lógica econômica, como as
desqualifica o sentido de mundo presente em sua cosmovisão e que muito contribui para
escolheram, por motivos pessoais e sociais, negar a identidade indígena, assim como não
podemos negar a associação de algumas aldeias ao tráfico de drogas. O que podemos fazer
para entender este processo é reconhecer que este responde a uma história de luta pela
sobrevivência, e que a presença do capital e a ausência do Estado para garantir aos povos
indígenas suas terras, podem ter contribuído e muito para o estabelecimento destas relações
em suas terras, mas isto aponta muito mais na direção da necessidade de fiscalização e
demarcação das terras indígenas do que uma mudança na percepção destes povos no que eles
consideram como “O Casamento entre o Céu e a Terra”; ou seja, na integração absoluta entre
99
homem e natureza, os deuses estão presentes no espaço absoluto que ocupamos e na relação
que estabelecemos com todos os seres vivos, também não podemos considerar que todos os
O que importou, nesta pesquisa, como motivação da temática em meio ambiente, foi a
identificação de uma identidade mestra, um paradigma filosófico e ético, que pode ser uma
referência para esta forma de perceber os animais, os rios, as florestas, entre outros, como
‘sagrado’ e compor, assim, uma ética onde a natureza é percebida como mais um SER
Cabe, mais uma vez, considerar que as identidades são dinâmicas, mas não deixam de
existir no contato com o outro. Elas são transformadas. Como afirma o escritor mexicano
Octávio Paz: “as civilizações não são fortalezas, mas encruzilhadas” (apud FREIRE, 2002, p.
25). Nenhuma sociedade vive isolada absolutamente, no decorrer de sua história os contatos
interculturais vão sendo travados. Podem ser conflituosos, violentos, mas também podem ser
indígenas, o diálogo com outras culturas é muito importante, para estes povos a riqueza deste
mundo é a riqueza de relações. Rico é aquele que é capaz de mobilizar um grande número de
relações; as coisas são apenas instrumentos para isso. O problema é que para os povos
indígenas, as relações tem sido assimétricas; historicamente eles não escolheram o que
Portanto, o discurso por um índio mais realista, aponta para duas questões: em
primeiro lugar, a percepção que o índio real perdeu sua identidade após o contato com o
branco e, em segundo lugar, será que os índios ainda existem? Estaria justificada, dessa
Para Freire:
100
povos africanos em seus materiais didáticos. Tal esforço se prolonga até hoje, e nós, do
Percebemos, no entanto, que, em sua maioria estes livros ainda abordam de forma
bastante discreta estas culturas e que quase sempre são direcionados para a área de história.
De qualquer forma, percebemos que as culturas indígena e africana ainda surgem como algo
preso ao passado, seja da escravidão ou pelas contribuições folclóricas e lutas pelos direitos
civis.
ainda assim lutam pela preservação de seus bens simbólicos. Praticamente desconhecemos
que lideranças do candomblé no Brasil, tem uma atuação importante nos movimentos por uma
9
A Iyalorixá Mãe Stella de Oxossi, principal liderança do Candomblé no Brasil, tem a sua militância marcada até
os dias atuais pela luta contra o sincretismo religioso, dirige o Ilê Axé Opô Afonjá, onde mantém o Museu Ilé
Ohun Lailai, tombado pelo IPHAN e neste terreno instalou-se a E.M. Eugênia Anna dos Santos, em homenagem
à primeira Iyalorixá e fundadora do Terreiro, Mãe Aninha (1869-1938), que defendia a inclusão das crianças de
terreiro nas escolas do branco para ganharem o título de Doutor. Além disso, Stella de Oxossi é escritora de
livros infantis dentre eles o, “Epé Laiyé - terra viva" (2009), conta a história de uma árvore que ganha pernas e
vai lutar pela construção de um mundo que respeita o meio-ambiente. Em sua trajetória o personagem ganha
ajuda do orixá Ossain, divindade que domina o conhecimento sobre o mundo vegetal.
102
mulher negra, assim como das relações de poder que construíram a história do candomblé e
O Prof. T., quando comenta a presença dos povos indígenas nos livros de geografia,
afirma a partir de uma citação da obra Introdução à história das bandeiras de Jaime Cortesão:
10
CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das bandeiras. Belo Horizonte: Livros Horizonte, s.d., p. 103,
104 e 112.
11
DEAN, Warren. A ferro e fogo – a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, s.d., p. 104.
103
Sagrada Natureza: religiosidade e escola laica, e educação ambiental como disciplina isolada.
das críticas recorrentes que o Projeto sofreu e o maior obstáculo que professores e pedagogos
Outra questão foi a formação e legitimação de uma disciplina própria para discutir as
decorrer das disciplinas exigidas como créditos ao título de mestre, fomos questionados se
estávamos ou não falando de Educação Ambiental e, em caso afirmativo por que não
foco principal da pesquisa. A temática ambiental foi o modo que escolhemos para ilustrar uma
forma de currículo em ação no qual a lei 11.645/2008 poderia ser aplicada, entre tantas outras
emergência cada vez maior das questões ambientais na escola que tem como objetivo
104
contribuir para o desenvolvimento das habilidades cidadãs da comunidade escolar e uma nova
percepção do mundo:
Faz parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o ser humano não é
o centro da natureza, e deveria se comportar não como seu dono mas,
percebendo-se como parte dela, e resgatar a noção de sua sacralidade,
respeitada e celebrada por diversas culturas tradicionais antigas e
contemporâneas (BRASIL/MEC, 1997, p. 179).
teoria curricular, que evidenciam a fragmentação dos saberes em disciplinas e novas propostas
de integração curricular:
Acho que pode ser um assunto a mais a ser estudado dentro da Educação
Ambiental, por todos os motivos que já foram citados anteriormente, mas
acho desnecessário que seja abordado com uma disciplina separada. Por
sinal, ainda não existe a disciplina “Educação Ambiental”. Ela está inserida
nos conteúdos de ciências e geografia, ao se estudar o meio ambiente. E
creio que também no de história, em algumas ocasiões.
A própria “transdisciplinaridade” está cada vez mais presentes nas propostas
educacionais atuais e ela permite que as diversas disciplinas se apropriem
desse conteúdo (M. Entrevista no dia 25/11/2011).
curriculares:
esta é a forma que acreditamos poder criar mais espaço de discussão e alternativas às ações
teórico e disciplinar, pode ser analisada a partir do referencial teórico multicultural, porque,
assim como outras disciplinas e campos do saber, ela se forma em um processo histórico, em
que o reconhecimento de uma identidade própria (não queremos negar que dentro da
disciplina temos diversas identidades em disputa e diálogo que contribuem para a formação
aspecto mais delicado do projeto em seu desenvolvimento, assim como sua articulação com o
saber acadêmico.
escola pública, e, portanto, a mitologia iorubá na sala de aula poderia representar aspecto de
religiosidade e estímulo à prática desta religião. Por outro lado, recebemos críticas de colegas
ação a partir da afirmação da pesquisadora que mobilizou as ações de que nunca tinha entrado
qualquer menção aos rituais e práticas do candomblé. O que fizemos foi ilustrar com um dos
ambiental. Entretanto, não podemos negar que o fundamento religioso esteve sempre presente
quando perguntados sobre qual seria o maior desafio para a abordagem desta temática na
escola:
Profº R.:
Profª M.:
Prof. T.:
Profª R.:
Prof Thiago:
Sim, principalmente pelo seu caráter panteísta: ver o sagrado, o divino, nas
coisas da natureza (T. Entrevista no dia 8/12/2011).
Profª Maria:
De qualquer forma, fica claro, pela reduzida argumentação nas respostas, que a
brasileira dos currículos escolares, assim como nas práticas de ensino e nas graduações para
formação do professor teríamos que ter mais engajamento e comprometimento político com a
108
teórico, que orienta ações e reflexões para dar voz às identidades e aos saberes silenciados,
pode, sim, estar presente nas diversas disciplinas universitárias, promovendo mais uma
Ao final das oficinas no ano letivo de 2011, os professores que participaram das
perceber de que forma as ações do projeto Sagrada Natureza motivaram alguma mudança e
Um dos princípios desta trajetória de pesquisa foi articular e dialogar sempre com os
grupo que um dos professores, com o tempo, passou a interagir como pesquisador, refletindo
sobre sua prática e dialogando constantemente com a proposta do projeto Sagrada Natureza.
Cabe salientar, também, que alguns professores tiveram uma participação burocrática, sem
costumam ver nos livros didáticos, chegarem a escola e a suas salas de aula por outros
caminhos, que não são convencionais, mas nutrem com criatividade o fazer pedagógico.
aula, mas como aplicá-la no seu fazer pedagógico. Se considerarmos que a falta de material
concluímos ser necessário o fomento aos processos de formação continuada, para que os
professores possam ter acesso mais facilitado a recursos didáticos e a novos debates que
Segundo Candau:
Reduzir o preconceito, segundo Banks (1999), é uma das dimensões que caracteriza
uma educação multicultural, o que significa ter como princípio básico o desenvolvimento
junto aos (às) educandos (as) de uma postura racial e étnica mais positiva.
110
contribuições das diferentes culturas não deve se limitar a uma abordagem aditiva ou
conceitos, temas, fatos, etc., provenientes de diferentes tradições culturais e que estende a
fundamento o multiculturalismo. Ao final desta pesquisa, considera-se que este foi um passo
CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação teve como objetivo demonstrar que o currículo deve ser vivenciado e
currículo em ação, que torne as salas de aula e o conteúdo escolar, que são o espaço por
excelência para a formação humana, crítica e reflexiva, lugar onde alunos e professores
exercitem e ampliem sua condição cidadã como sujeitos emancipados, conquistando a livre
produção editorial de livros paradidáticos e reformulação dos livros didáticos com o objetivo
implementação destas temáticas no currículo escolar, ainda são muito voltadas para uma
a partir de experiência anterior em uma das escolas desta rede, ampliar a reflexão e a
intervenção na prática de ensino dos professores, com ações que incluam objetivamente a
temática indígena e afro-brasileira, tendo como fio condutor a relação das mitologias
pesquisa. Reconhecemos que nas escolas onde o projeto das oficinas teve o melhor
desenvolvimento, foram onde os pedagogos são engajados e apoiam iniciativas que produzam
escola, comprovou que quando temos uma gestão centralizada e com uma postura tradicional,
onde diversidade ainda é vista como um problema a ser vencido, propostas como a do projeto
mas que isto não garante que as identidades e culturas plurais que estão presentes tenham
espaço e legitimidade para a sua expressão, e com isso, produz-se um discurso e uma imagem
monocultural da escola, o que promove a ideia de que a diversidade seja vista como algo a ser
problematizar esta realidade e a pensar de que forma as oficinas poderiam apresentar uma
Além disso, o multiculturalismo, nos ajuda na análise, porque a partir das suas
reconstrução.
Quando pensamos o currículo dentro destas categorias, reconhecemos então que, este
também insere-se no processo permanente de construção, que pode ter uma dinâmica e
114
processos de hibridização.
de poder que determinam o que deve ou não ser ensinado e a influência dos sujeitos que
decidem como determinado conteúdo poder ser apresentado em sua sala de aula.
A trajetória desta pesquisa também se insere na defesa da escola pública como espaço
privilegiado para a discussão e expressão das múltiplas identidades. Professores, alunos e toda
geografia.
com a pesquisa buscaram ampliar os limites de sua prática e abraçaram a ideia com muita
religiosa afrodescendente, diante disto, mesmo quando deslocamos os orixás para uma
abordagem cultural e para uma ética e lógica ambiental, a ancoragem social do discurso em
relação a estas manifestações são desafiadoras porque interpretam estas manifestações como
exóticas, maléficas e supersticiosas, não creditando a elas nenhuma lógica que justifique sua
Ao final desta etapa de pesquisa, identificamos que a questão religiosa está presente na
escola, ainda que muitos defendam e reconheçam a escola como laica. Defender a laicidade
da escola não garante que os discursos presentes no cotidiano escolar afirmem esta posição,
além disso, argumentamos que, o tema da religiosidade está implícito nas questões culturais e
de uma forma ou de outra entra na escola. O ensino de história, por exemplo, aborda as
questões religiosas em sua matriz curricular. Realmente, não há como exercitar a reflexão
currículo, novas alternativas de atividades que incluam o tema da diversidade e são uma via
para professores refletirem sobre suas práticas e atuarem de forma criativa, reinventando sua
O projeto Sagrada Natureza caminhou rumo ao resgate de saberes que ficaram fora do
currículo escolar, da afirmação da escola pública como território onde as identidades tem um
com potencial transformador em seu universo de atuação e esta pesquisa-ação teve como
116
objetivo mergulhar neste universo e reconhecer este potencial assim como os limites que se
Esta pesquisa esta comprometida com um olhar sobre a escola, que insiste em
conhecimento a ser adquirido pelos alunos na escola e por que não, o que o currículo deve ter
como objetivo, oferecer respostas para um mundo ordenado em verdade incontestáveis. Que o
que realmente importa é que assim como o universo perfeito e harmônico da matemática, o
mundo gira em torno de uma ordem que deve se pretender universal, evitar e diluir as
buscar o consenso e apagar o que é múltiplo e dissonante. No entanto, diante desta proposta
podemos resgatar a chama de uma vela, e assim como Bachelard, dizer aos defensores de uma
Depende, porque o desafio real que encontramos em nossa prática é afirmar o espaço
para as diversas expressões culturais e saberes no cotidiano escolar. Olhar com sensibilidade
multicultural nos leva a reflexão para a ação que podemos desenvolver para legitimar o
e ousar a outras reflexões que nos levem a entender e reconhecer quem determina e quais os
valores que fundamentam nossos currículos e nosso posicionamento em sala de aula? De que
cada vez mais presentes em nosso currículo, a partir de dois dispositivos legais, quais são os
12
O prof. José Américo Pessanha (1993), em sua palestra: Filosofia e modernidade: racionalidade e ética,
relacionou a discussão em pauta com o personagem de Clarice Lispector - Ofélia Maria dos Santos Aguiar, que
inspirou a redação destas considerações finais.
117
limites para a aplicação desta lei? Os valores e saberes indígenas e afro-brasileiros só poderão
entrar em nossas salas de aula a partir da lógica ocidental inaugurada pela modernidade?
nossa arte de fazer como um ato político, transformador e reflexivo. Reconhecer em nosso
cotidiano, o olhar sempre aberto a novas possibilidades, sentir o chão de nossa sala de aula
como um espaço em disputa, internas e externas a ela, defender uma educação e currículo
sensível a outras formas de perceber e viver o mundo que nos cerca, cultivar com mãos
nossos caminhos.
118
REFERÊNCIAS
FREIRE, José R. Bessa. A herança cultural indígena ou cinco ideias equivocadas sobre os
índios. In: ARAÚJO, Ana C. Ziller de. Cineastas indígenas: um outro olhar: guia para
professores e alunos. Olinda, Pe: Vídeo nas Aldeias, 2010.
GABRIEL, Carmen Teresa. Conhecimento escolar, cultura e poder: desafios para o campo do
currículo em “tempos pós”. In: MOREIRA, A.F. e CANDAU, Vera (orgs.)
Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.
GIROUX, Henry. O pós-modernismo e o discurso da crítica educacional. In: SILVA, Tomás
Tadeu da (org.). Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1993.
______ . Praticando estudos culturais nas faculdades de Educação. In: SILVA, Tomás Tadeu
da (org.). Alienígenas na sala de aula. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
GOLDENBERG, Miriam. A arte de pesquisar. Rio de Janeiro: Record, 1997.
GOMES, N. L. A questão racial na escola: desafios colocados pela implementação da Lei
10.639/03. In: CANDAU, V. e MOREIRA, A. F. B. Multiculturalismo: diferenças culturais
e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.
GONTIJO, Rebeca. Identidade nacional e ensino de História: a diversidade como “patrimônio
sociocultural”. In: ABREU, Martha e SOIHET, Rachel (org.). Ensino de História: conceitos,
temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
GRÜN, Mauro. A outridade da natureza na educação ambiental. In: MOURA, GRÜN e
TRAJBER (orgs.). Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental. Brasília:
Secad/Unesco, 2006.
LEVY, Carminha; MACHADO, Álvaro. A sabedoria dos animais: viagens xamânicas e
mitologias. São Paulo: Ground, 1999.
LIMA, Mônica. História da África: temas e questões para a sala de aula. Cadernos PENESB,
n. 7, p. 74, nov. 2006.
LIMA, Valéria Dias de. Crenças religiosas como caminho para a conservação ambiental:
um estudo de caso na comunidade Candomblé Ilê Asé Orisá Dewi. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade de Brasília. 2011.
LINHARES, Célia. Políticas de formação de professores e experiências instituintes. Revista
Eletrônica do ALEPH, ano 1, n. 05, maio/jun. 2005.
LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.
121
ANEXOS
ANEXO 1 - QUESTIONÁRIO
Disciplina:
2. Como você avalia a presença das contribuições culturais indígenas no currículo de sua
disciplina?
4. No que diz respeito à Mitologia dos Orixás, qual seria o maior desafio para a
abordagem desta temática na escola?
5. Você considera que a mitologia dos orixás, intrinsecamente ligados ao meio ambiente,
pode contribuir para o desenvolvimento da consciência ecológica?
6. Caro colega, gostaria que você deixasse aqui as suas sugestões e críticas e/ou
apontamentos no que diz respeito a atividade que desenvolvi com seus alunos. Se é
pertinente e contribui para ampliar a abordagem multicultural em sua disciplina,
sobretudo, no que diz respeito à Educação Ambiental?
124
Nome: ________________________________________________________
R.G. ______________________
______________________________________________