Dissertacao Natureza

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


FACULDADE DE EDUCAÇÃO/PPGEDU

CRISTIANE GONÇALVES DE SOUZA

PROJETO SAGRADA NATUREZA:


CURRÍCULO EM AÇÃO - UMA EXPERIÊNCIA
MULTICULTURAL NA APLICAÇÃO DA LEI 11.645/2008

RIO DE JANEIRO
2012
CRISTIANE GONÇALVES DE SOUZA

PROJETO SAGRADA NATUREZA:


CURRÍCULO EM AÇÃO - UMA EXPERIÊNCIA
MULTICULTURAL NA APLICAÇÃO DA LEI 11.645/2008

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado


em Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito essencial para a
obtenção do Grau de Mestre em Educação.

Orientadora: Profª Drª Ana Canen

Rio de Janeiro
2012
SOUZA, Cristiane Gonçalves de. Projeto Sagrada Natureza:
currículo em ação – uma experiência multicultural na aplicação da
Lei 11.645/2008. Cristiane Gonçalves de Souza. Rio de Janeiro,
UFRJ, 2012.
125 p.
SUMÁRIO
Dissertação. (Mestrado em Educação). Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2012.

Orientadora: Profª Drª Ana Canen

1. Educação. 2. Currículo. 3. Lei 11.645/2008. – Teses.


I. CANEN, Ana. (Orientadora). II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro. III. Título.
Cristiane Gonçalves de Souza

PROJETO SAGRADA NATUREZA:


CURRÍCULO EM AÇÃO - UMA EXPERIÊNCIA
MULTICULTURAL NA APLICAÇÃO DA LEI 11.645/2008

Rio de Janeiro, 28 de março de 2012.

_____________________________________________
(Orientadora Profª Drª Ana Canen - UFRJ)

____________________________________________
(Profª. Drª. Maria Vitória Campos Mamede Maia - UFRJ)

____________________________________________
(Profª Drª Mary Rangel - UFF)

____________________________________________
(Profª Drª Helena Amaral de Fontoura - UERJ - suplente externa)

____________________________________________
(Profª Drª Sonia Maria de Castro Nogueira Lopes - UERJ - suplente interna)
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, D. Dora que, com suas mãos, na labuta do dia-a-dia, garantiu as

condições para que eu pudesse ter o direito de sonhar;

A Paulo (in memoriam) e Yolanda, que acolheram os meus sonhos e me fizeram

acreditar que era possível chegar lá;

À Profª Drª Clarice Nunes, que me possibilitou, quando ainda ensaiava meus passos

na pesquisa histórica, a primeira experiência em um grupo de pesquisa e a quem devo o

primeiro grande reconhecimento do meu trabalho;

À Eliane Gordiano, diretora geral da E.M. Levi Carneiro/FME/Niterói, pela coragem e

pela confiança ao apoiar o Projeto Sagrada Natureza;

À gestão do Presidente da Fundação Municipal de Educação e Secretário de Educação,

Waldeck Carneiro da Silva e ao Superintendente de Desenvolvimento Pedagógico, Armando

Arosa, pelo apoio institucional ao projeto nos anos letivos de 2007 e 2008;

À Profª Drª Ana Canen, pela orientação com extremo rigor, qualidade, excelência

acadêmica e humana. Sua atenção extrema e paciência, diante dos limites que apresentei no

decorrer da pesquisa, tornaram possível esta dissertação;

Aos professores do PPGE/UFRJ, pelas discussões acadêmicas que me ajudaram a

trilhar os caminhos desta pesquisa. Ser aluna deste grupo foi um privilégio!

À secretaria do PPGE/UFRJ: Solange, Aline, Lays e Ricardo. Camaradas de primeira

grandeza!

À EAP das escolas municipais da rede pública de ensino de Niterói: E.M. Rachide da

Glória Salim Saker, E.M. Altivo César, E.M. Levi Carneiro, E.M. João Brazil, E.M. Honorina
de Carvalho e UMEI Bezerra de Menezes, pelo acolhimento da proposta e pela interlocução

que permitiram as reflexões deste trabalho.

Aos professores da rede municipal pública de ensino de Niterói: Carmen Lídia

Gesteira; Eloá Maciel; Carminha Vasconcellos; Geisa Capistrano; Rogério Lafayette; Gleice

Coelho; Márcia Valéria Cavalcante; Marizeth Santos Faria; Wanda Lúcia Lyrio Haritoff e

Sheila Lima. Companheiros nesta trajetória de professores-pesquisadores, obrigada pelas

discussões calorosas, pelos desafios apresentados e pela parceria no chão da escola;

À equipe pedagógica do FSDE/FME Niterói, pelos debates e pela torcida!

Às pedagogas da rede municipal pública de ensino de Niterói: Sandra Sousa;

Margareth da Paixão Franca Nogueira; Silvana Badaró Pitzer; Letícia Alfradique Ayres

Bitencourt; Yara de Souza Ferreira e Glória Maria Anselmo. No percurso da pesquisa, o

nosso diálogo elevou a qualidade das discussões de forma crítica, nem sempre confluente,

mas com extremo respeito contribuindo muito para a qualidade das reflexões desenvolvidas;

À Profª Raquel Muniz Maya, pelo encontro, parceria, coragem e presença na trajetória

do Projeto Sagrada Natureza. Ao final desta etapa afirmamos nosso maior aprendizado... you

get what you give!

À Profª Fernanda Lima Rabelo, pela leitura sempre atenta e crítica deste trabalho, pela

amizade e incentivo na busca pela excelência na produção acadêmica;

A Nádia Denaui, Cristina Padilha e Giselle Trajano, amigas, educadoras, na torcida

sempre pelo meu sucesso;

A Luciano Martins, amigo querido, seu incentivo é a marca registrada da sua presença

no meu caminho;

À Glória Lima, pela revisão do texto, de forma, generosa, competente e guerreira;


À Profª Drª Cristina Campos, que canta os saberes e as cores dos povos da floresta, e

esteve ao meu lado compartilhando seu conhecimento e apoiando a trajetória deste projeto,

com liderança, ética e extrema generosidade;

À Subsecretária de educação Profª Cléa Monteiro, pelo apoio, pelo voto de confiança e

pelo respeito ao meu trabalho. Em um momento crítico que vivemos no ano de 2011, ela

garantiu a continuidade das ações do Projeto Sagrada Natureza, permitindo a finalização desta

pesquisa.

E aos que porventura não se encontrem aqui, tenham a certeza de que estão marcados

nesta trajetória com toda a minha gratidão.


DEDICATÓRIA

Aos meus ex-alunos da E.M. Levi Carneiro, andorinhas


e colibris que inspiraram a maestria de me tornar professora:

Borboletas me convidaram a elas.


O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente
dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta -
Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras
do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças
do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidades para a paz do
que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do
ponto de vista de uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

Manoel de Barros (2000)


RESUMO

SOUZA, Cristiane Gonçalves de Projeto Sagrada Natureza: currículo em ação – uma


experiência multicultural na aplicação da Lei 11.645/2008. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação
apresentada ao Programa de Mestrado em Educação. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2012.

A presente dissertação teve como objetivo analisar, como pesquisa qualitativa, uma
experiência de currículo em ação desenvolvida em cinco escolas da rede municipal de
educação de Niterói. Esta experiência se deu a partir do Projeto Sagrada Natureza que, através
das oficinas “No Xingu, Oxóssi reina!, propõe ilustrar uma alternativa de aplicação da lei
11.645/2008, como um tópico da educação ambiental em uma perspectiva multicultural, no
conteúdo escolar de 3º e 4º ciclos. Por meio de uma pesquisa-ação buscou-se compreender os
desafios docentes na implementação de práticas multiculturalmente orientadas, sobretudo, no
que diz respeito à mitologia dos orixás. A conclusão aponta para a necessidade de fomentar
as formações continuadas para os professores e a instrumentalização dos docentes com
material didático sobre a temática. A presente pesquisa sugere também o aprofundamento da
análise dos dados levantados, diante do peso que o aspecto religioso tem sobre as
subjetividades dos professores, pedagogos e diretores de escola. A metodologia baseou-se na
pesquisa-ação, a partir da triangulação dos dados: observação das aulas e reuniões de
planejamento; avaliação da proposta pelos professores em formações continuadas; entrevistas
e análise dos referenciais curriculares da Fundação Municipal de Educação de Niterói. A
partir das análises identifica-se que a implementação da lei 11.645/2008 pode ser
potencialmente ampliada em propostas curriculares que avançam da perspectiva multicultural
folclórica para abordagens multiculturais críticas e pós-coloniais.

Palavras-chave: Currículo multicultural. Povos indígenas. Mitologia dos orixás. Lei


11.645/2008.
ABSTRACT

SOUZA, Cristiane Gonçalves de Projeto Sagrada Natureza: currículo em ação – uma


experiência multicultural na aplicação da Lei 11.645/2008. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação
apresentada ao Programa de Mestrado em Educação. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2012.

This dissertation had as objective to analyze, as qualitative research, an experience of


curriculum in action developed in five municipal schools of Niterói Educational System. This
experiment was performed based on the Project Sacred Nature, which through the workshops
"In Xingu, Oxóssi reigns!”, intends to illustrate an alternative for the enforcement of law nº
11.645/2008, as a topic of environmental education in a multicultural perspective, in school
programs for 3rd and 4th cicles. By means of an action research this study sought to
understand the teacher challenges to implement multiculturally oriented practices, especially
with regard to the mythology of Orishas. The conclusion points towards the need to foster
continuing education for teachers providing them with educational materials on the subject.
This research also suggests a deeper analysis of data collected due to the religious aspect that
shapes the identities of teachers, educators and school administrators. The methodology was
based on action research, involving triangulation of data: observation of lessons and planning
meetings, evaluation of the proposal by teachers in continuing education, interviews and
analysis of the cultural references of the Fundação Municipal de Educação de Niterói. The
analyses results have shown that the implementation of Law nº11.645/2008 can potentially be
extended in curricular proposals that advance from the multicultural folk perspective to
multicultural and postcolonial criticism approaches.

Key-words: Multicultural curriculum. Indigenous peoples. Mythology of the Òrisàs. Law


11.645/2008
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Pintura em grafite, produzido por ex-alunos da E.M. Levi Carneiro


dedicado ao Projeto Sagrada Natureza – jun./2007 ................................ 45

Figura 2 Coreografia dos Orixás: Abertura do Seminário de Culturas


Afrobrasileira e Indígena promovido pela Fundação Municipal de
Educação – 2008 ................................................................................... 54

Figura 3 Uma das gravuras presentes no mural para a apresentação do Projeto


Sagrada Natureza na Semana do Meio Ambiente, na E.M. Levi
Carneiro/Junho de 2008 .......................................................................... 65
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 12
1.1 PROBLEMA E OBJETO ............................................................................ 12
1.2 OBJETIVOS ................................................................................................ 18
1.3 JUSTIFICATIVA ........................................................................................ 19
1.4 REFERENCIAL TEÓRICO ........................................................................ 25
1.5 METODOLOGIA ........................................................................................ 36
1.6 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO........................................................... 43

CAPÍTULO 2
O PROJETO SAGRADA NATUREZA ............................................................. 46
2.1 O PROJETO: PRÁTICA E REFLEXÃO PARA A AÇÃO ........................ 46
2.2 AS OFICINAS: NO XINGU, OXÓSSI REINA! ........................................ 55
2.2.1 A onça-pintada e a cosmologia dos indígenas no Brasil ......................... 58
2.2.2 A mitologia dos orixás: Oxóssi, o caçador de uma flecha só e o
conceito de sustentabilidade ambiental .................................................... 63

CAPÍTULO 3
A PESQUISA-AÇÃO NA ATUAÇÃO DO NÚCLEO DE AÇÕES
INTEGRADAS ..................................................................................................... 73
3.1 MULTICULTURALISMO E CURRÍCULO: OS DESAFIOS NA
CONSTRUÇÃO DO DIÁLOGO ................................................................ 73
3.2 CONVERSA COM A EQUIPE DE ARTICULAÇÃO PEDAGÓGICA
SOBRE A MITOLOGIA DOS ORIXÁS E SUA INSERÇÃO NO
CURRÍCULO .............................................................................................. 79
3.3 O QUE DIZEM OS PROFESSORES? ........................................................ 86
3.3.1 Meio Ambiente, povos indígenas e orixás: um diálogo possível? ......... 90
3.3.2 O Projeto Sagrada Natureza: avaliação dos professores ....................... 109

CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 112

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 118

ANEXOS ............................................................................................................................. 123


ANEXO 1 - QUESTIONÁRIO
ANEXO 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO
12

CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO

Felizes aqueles que sabem cultivar as margens das nossas escolas: elas são
as terras frutuosas de descoberta dos saberes de amanhã.

(DURAND, 1982)

1.1 PROBLEMA E OBJETO

A humanidade, historicamente, é marcada pela diversidade cultural. Tal diversidade

nos remete a desafios para a compreensão dessa humanidade e o respeito a ela. É fundamental

desenvolver ações que se desdobrem em políticas públicas que estabeleçam metas que não

fiquem restritas à tolerância, mas sim que se voltem ao respeito aos valores culturais e aos

indivíduos de diferentes grupos, do reconhecimento desses valores e de uma convivência

harmoniosa.

A escola, cumprindo sua responsabilidade de formar cidadãos e cidadãs, deve

promover práticas pedagógicas que enriqueçam, no cotidiano escolar, a vivência da

diversidade, promovendo o diálogo entre as diferenças, a fim de evitar a proliferação de

atitudes de preconceito e violência, explícita ou não, reforçando, assim, práticas excludentes.

Portanto, nós, educadores, devemos repensar nosso diálogo com o saber que

legitimamos diante de nossos alunos e repensar o próprio diálogo entre nós e eles. Nos dias

atuais, a escola se defronta com os desafios propostos pela violência, pela evasão escolar, pela

falta de entusiasmo dos professores, pelo descrédito que muitos discursos apontam diante do

magistério e sua competência pedagógica. Estamos diante de uma escola tensionada por estes

conflitos que se desdobram em soluções que vão desde os índices de aprovação referendados

pelas avaliações institucionais até o inchaço de projetos “culturais”, que objetivam promover
13

uma escola mais prazerosa e elevar a autoestima dos alunos. As perguntas que devemos fazer

a nós mesmos diante de nossa prática pedagógica são: qual é o papel da escola diante do

conhecimento? Quais são os saberes e valores que elencamos quando elegemos determinado

conteúdo curricular? É possível pensar a escola como espaço de afirmação de uma sociedade

democrática e igualitária, como um espaço em que todos tenham direito e legitimidade em

expressar sua identidade?

Não pretendemos, aqui, apresentar nenhuma solução para as questões complexas que

vivemos hoje, em um mundo em constante e acelerada transformação. Pretendemos, sim,

contribuir com o diálogo sempre salutar que se impõe ao campo teórico e prático da educação

quando reconhecemos que o saber é sempre provisório, e cabe à escola promover o exercício

da confrontação dos saberes de forma crítica e emancipatória, contribuindo, desta forma, para

o reconhecimento de que o saber científico não é neutro, e que o sujeito do conhecimento é

um sujeito histórico, inserido em um processo histórico, social e político, e que exerce forte

influência sobre sua prática e seu pensamento, influenciando, portanto, seu posicionamento no

mundo.

O sentido da vida, hoje, para os indivíduos, é constituído de múltiplas referências. Na

vida cotidiana, acentua-se, para todos, a consciência de múltiplos pertencimentos (de gênero,

de religião, de etnia, etc.), tributária dos avanços tecnológicos e pela divulgação dos meios de

comunicação e informação. Com a globalização, cresce a visibilidade das diferenças e

acentua-se a consciência da diversidade cultural.

O multiculturalismo nasce com a proposta e o compromisso de tornar visíveis as

identidades silenciadas e ocultas. Na segunda metade do século XX, ampliam-se os

movimentos pelo reconhecimento da diversidade cultural, e outras identidades nascem e

reforçam os movimentos sociais reivindicatórios, caracterizando o multiculturalismo que

conquista um espaço acadêmico que reflete as demandas e desafios sociais e culturais de um


14

mundo cada vez mais tensionado pelas diferenças e desafios às estruturas de valores

estabelecidas.

A proposta multicultural abre o caminho para o enfrentamento e a percepção dos

estereótipos e preconceitos que registramos em nosso inconsciente coletivo e que devemos

buscar trazer à superfície, refletida em nossos atos cotidianos. A opção de dar voz às

identidades silenciadas pelo receio de constrangimento público pode nos permitir o

enfrentamento mais lúcido dos limites e valores construídos historicamente, que justificam os

discursos que são reforçados pelo contexto e trajetórias culturais, e não por ser uma verdade

absoluta e incontestável.

É importante demonstrar para os alunos como as relações entre as culturas são

construídas historicamente e ajudá-los a compreender a pluralidade cultural, “não para torná-

la menos plural ou para demarcar diferenças para sempre estanques, mas para tornar visíveis

as relações historicamente construídas entre indivíduos e grupos, cujas fronteiras são sempre

contingentes” (GONTIJO, 2003).

A partir do ano letivo de 2010, iniciei minha atuação no Núcleo de Diversidade da

Fundação Municipal de Educação (FME) de Niterói, o qual, a partir de agosto de 2011,

passou a se chamar Núcleo de Ações Integradas. Assim, os núcleos de Diversidade, Educação

e Saúde e Educação Ambiental passaram a ser um único núcleo.

Minha atuação no núcleo é marcada pela realização de oficinas com alunos e

formações continuadas com professores da educação básica. Essas oficinas são

desdobramentos de um projeto anterior, realizado em uma unidade escolar da rede municipal

de Niterói - E.M. Levi Carneiro, nos anos letivos de 2007 a 2009.

O projeto Sagrada Natureza propõe o resgate das culturas afro-brasileira e indígena a

partir de seu universo sagrado e simbólico e sua relação com o meio ambiente.
15

O projeto ressaltou a ética intrínseca à construção da percepção do sagrado nessas

culturas e sua relação com o meio ambiente, que se articula com a percepção do divino. Os

deuses indígenas e afro-brasileiros têm lugar na natureza e nela recebem reverência. Tratar o

meio ambiente como sagrado é um paradigma alternativo e enriquecedor para a nossa relação

com a natureza.

A natureza concebida pelas culturas indígenas e afro-brasileira de culto aos orixás tem

seu lugar na história da trajetória humana. Tal natureza tem o poder de representação na tribo,

definindo e orientando a trajetória do grupo e do indivíduo, pois é ouvida como um membro

da aldeia no conselho tribal. Boaventura Sousa Santos (2007, p. 41) afirma que “em nossa

cultura falamos de direitos humanos, mas não de deveres humanos. Por isso em nossa cultura

de direitos humanos a natureza não tem direitos: porque tampouco tem deveres”.

No contexto da aprovação das Leis 10.639/2003 e 11.645/20081, as culturas africana,

afro-brasileira e indígenas, tornaram-se obrigatórias nos currículos escolares, promovendo,

desta forma, um diálogo que rompe com a linha de ensino fundamentada em apenas uma

civilização. No entanto, percebe-se que a tradução da lei, efetivamente em conteúdo

curricular, ainda é frágil. Os saberes indígenas e a religiosidade afro-brasileira são alguns dos

pontos mais nevrálgicos quando se aborda a cultura desses povos. Diante disto, coloca-se a

questão: quais os limites que desafiam a inclusão destas temáticas no currículo escolar? Ou

seja, qual é o posicionamento que os professores estão dispostos a manifestar diante da

diversidade de habilidades, desejos, valores e saberes presentes no mundo? Estariam os

profissionais da educação dispostos a confrontar sua cultura com outras formas de saber,

produzidos em outra lógica cultural?

Sácristan leva à reflexão e articulação dos questionamentos e desafios apresentados:

1
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm (Acesso em 16/10/2011).
16

Em outras palavras, o problema do currículo multicultural não é algo que


diga respeito apenas às minorias culturais, raciais ou religiosas, com vistas a
que tenham oportunidade de se verem refletidas na escolarização como
objetos de referência e de estudo; trata-se, antes, de um problema que afeta a
“representatividade” cultural do currículo comum que, durante a
escolarização obrigatória, é recebido pelos cidadãos. Nossa conclusão final
será que o currículo multicultural exige um contexto democrático de
decisões sobre os conteúdos de ensino, no qual os interesses de todos sejam
representados. Mas para torná-lo possível é necessária uma estrutura
curricular diferente da dominante e uma mentalidade diferente por parte dos
professores, pais, alunos, administradores e agentes que confeccionam os
materiais escolares (SÁCRISTAN, 1999 apud CANEN, 2009, p. 83).

Esta pesquisa pretende problematizar como os valores internalizados pela

comunidade escolar contribuem para o silenciamento de identidades dentro da escola. A

partir deste objetivo, busca entender de que forma se estabelecem as relações de poder na

comunidade escolar que legitima ou desafia os preconceitos. Considerando que algumas

propostas curriculares silenciam identidades e os processos de construção da diferença,

poderiam os professores e pedagogos, através de ações curriculares multiculturalmente

orientadas, dar visibilidade às temáticas da diversidade, problematizando a construção das

diferenças? Quais os desafios e potenciais multiculturais presentes em um currículo que

contemple e resgate a relação da cosmovisão afro-indígena em uma perspectiva da educação

ambiental?

O Projeto Sagrada Natureza propõe ilustrar, a partir da lógica ambiental presente na

mitologia dos orixás e nas manifestações do sagrado na cultura indígena, um dos modos pelos

quais podemos elaborar currículos multiculturalmente orientados e problematizar formas de

organização curriculares monoculturais. Portanto, o Projeto se apresenta como uma das

possibilidades de desenvolvimento de um currículo em ação, como um tópico da educação

ambiental em uma perspectiva multicultural.

Assim, partindo de uma experiência anterior, em uma única unidade escolar, ao

iniciar minha atuação no Núcleo de Ações Integradas, desenvolvi uma pesquisa-ação,

envolvendo cinco escolas de 3º e 4º ciclos da rede municipal de Niterói: E.M. João Brazil,
17

E.M. Levi Carneiro, E.M. Altivo César, E.M. Honorina de Carvalho e E.M. Rachide da Glória

Salim Saker.

Nos limites do presente estudo, os dados da pesquisa-ação desenvolvida incidem

sobre encontros realizados em sala de aula, com os professores regentes, de geografia e

ciências, cujo conjunto apresenta o título “No Xingu... Oxóssi reina”. As atividades

desenvolvidas nos encontros foram conduzidas por mim, sempre na presença do professor

regente, e após a realização da atividade o professor colocava questões a respeito da temática

e abordagem escolhidas.

Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os pedagogos das

escolas envolvidas no projeto e registros dos debates ocorridos nas reuniões de planejamento

com professores de diversas disciplinas que atuam nas escolas onde a pesquisa-ação foi

desenvolvida.

No contexto da aplicação e desdobramento das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, a

pesquisa pretende problematizar os desafios representados pelas resistências e atos de

preconceito e discriminação presentes nas relações étnicas, que, omitidas no currículo,

impedem a representatividade das identidades presentes na escola, como afirma Thiollent:

... uma pesquisa pode ser qualificada de pesquisa-ação quando houver


realmente uma ação por parte das pessoas ou grupos implicados no problema
sob observação. Além disso, é preciso que a ação seja uma ação não-trivial,
o que quer dizer uma ação problemática merecendo investigação para ser
elaborada e conduzida (THIOLLENT, 2009, p. 17).

Portanto, a presente pesquisa parte do pressuposto da inter-relação entre os

indivíduos e as culturas. Busca entender os processos que produzem os preconceitos e

desqualificam determinadas identidades, e pretende contribuir para a percepção de que as

políticas públicas refletidas nos documentos oficiais, relacionados ao currículo, respondem a

processos de poder presente nos movimentos de afirmação de identidades. As oficinas


18

realizadas, muito mais do que seu papel informativo e didático, são questionadoras de

verdades e valores estabelecidos nas trajetórias das disciplinas escolares que deixaram

silenciadas contribuições de culturas consideradas inferiores. Por que não incluir no currículo

de ciências a sabedoria dos xamãs, o conhecimento da floresta e suas plantas medicinais?

No item reservado à metodologia, será comentado, com mais detalhes, o

desenvolvimento da pesquisa-ação.

1.2 OBJETIVOS

A partir do exposto anteriormente e reconhecendo a importância histórica para a

educação brasileira da aprovação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e seus desafios,

pretendo apresentar e analisar uma possibilidade de currículo em ação, multiculturalmente

orientado. Para isso, os objetivos do presente trabalho são:

promover uma experiência de currículo em ação, relacionando a mitologia dos

orixás e as culturas indígenas com a educação ambiental;

discutir os limites observados durante esta pesquisa na aplicação das Leis

10.639/2003 e 11.645/2008, no currículo escolar;

extrair possibilidades e limites das experiências e desdobramentos para o

desenvolvimento de ações pedagógicas multiculturais e um currículo

multiculturalmente orientado;

analisar as resistências e adesões dos professores e pedagogos ao

desenvolvimento do Projeto Sagrada Natureza.


19

1.3 JUSTIFICATIVA

No ano de 2007, a Escola Municipal Levi Carneiro foi uma das escolas a iniciar a

implementação dos ciclos escolares na rede municipal de educação de Niterói. Tal

implementação começou gradualmente, e o Projeto Anima Ludens foi um dos que

contribuíram para o desenvolvimento desta proposta.

Na qualidade de professora proponente do projeto, senti-me estimulada com a

sugestão de ciclos, ao perceber o potencial para ampliar o currículo e permitir aos professores

maior autonomia na gestão de seu tempo e dos conteúdos escolhidos para trabalhar com os

alunos. Percebo, também, que, nesta modalidade de estruturação do ensino, o cotidiano

escolar se torna mais dinâmico, promovendo novas abordagens temáticas e de organização

das atividades, que, antes, eram vinculadas, sobretudo ao quadro de horários de aulas e aos

temas listados previamente.

O projeto Anima Ludens apresentou duas linhas de ação:

a organização de uma caravana de teatro, composta por alunos da escola e com o

objetivo de desenvolver temas relacionados ao universo adolescente, como drogas

e gravidez na adolescência, que se apresentaria em escolas da rede pública e

privada e;

o projeto Sagrada Natureza, com a proposta de introduzir as culturas afro-brasileira

e indígena a partir de seu universo sagrado e simbólico e sua relação com o meio

ambiente.

Esse projeto esteve diretamente relacionado à educação ambiental em nossa escola e

foi desenvolvido com alunos dos 3º e 4º anos de escolaridade, em reuniões semanais, com

grupos de 15 alunos. O horário dos encontros era articulado com o turno dos alunos e feito em

parceria com os professores regentes.


20

Na primeira fase, o projeto Sagrada Natureza desenvolveu atividades para a

sensibilização dos alunos diante da cultura ancestral africana e indígena. Essa sensibilização

precedeu o conhecimento e a articulação dessa cultura com o conteúdo didático.

Selecionei cinco alunas para construírem, junto com a coreógrafa, uma performance

de saudação aos orixás. Este trabalho abriu nossa 1ª Mostra de Arte e Cultura e foi o passo

inicial para a apresentação do tema na comunidade escolar. O próximo passo, então, seria a

sensibilização da comunidade escolar através desta e de outras vivências introdutórias ao tema

(confecção de murais, exibição de documentários e leitura de contos da mitologia indígena e

africana). Entendo que as sensações são indissolúveis do pensar; no entanto, este pensamento

racional só se dá com base nas vivências (sentimentos).

Todo este cuidado ao trabalhar o tema foi condicionado pelas resistências que

emergem a partir dos preconceitos, sobretudo a respeito da religiosidade africana. Como

afirma Lima (2006, p. 74): “um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e

afrodescendentes, é com relação às suas práticas religiosas e um suposto caráter maligno

contido nestas”.

Uma das críticas ao projeto é que ele corria o risco de se tornar um tema religioso, e

considerando que nossos alunos são, em sua maioria, devotos de outras crenças religiosas,

trabalhar esse tema causava muito desconforto. Alguns alunos deixaram de participar das

atividades quando elas se vinculavam à abordagem dos orixás. Cabe aqui ressaltar a

importância do apoio da gestão da escola, que foi fundamental para vencer as resistências.

Muito desse olhar limitador sobre as culturas afro-brasileiras e indígenas deve-se a uma

trajetória do currículo escolar que deixou à margem a cultura dessas sociedades, sua

organização e mitologias, e de como elas estão presentes em nosso inconsciente coletivo.

Falar de cultura indígena e africana durante anos representou somente tratar o índio como

aquele que foi subjugado, simplificando, em muito, sua relação com a natureza. Quanto ao
21

negro, reduz-se sua contribuição ao vocabulário, à culinária e às danças, além de outras

manifestações consideradas exóticas e, por vezes, caricaturais. Pouco tem se considerado, nos

livros didáticos, a contribuição do negro como construtor de uma memória ancestral que,

deixada para trás e reconstituída aqui, promoveu, por exemplo, uma releitura das mitologias

apenas com o recurso da oralidade. Como nos diz Melo (1989), poeta angolano, “mas eles

sorriram, terão de levar apenas, estes sons de tambores, na memória”.

Reconheço, então, nessas culturas ancestrais, uma contribuição enriquecedora além da

margem a que estão submetidas nos currículos escolares.

De acordo com Botelho:

Ao descrever as origens do universo e das criaturas, as relações entre a


humanidade e as divindades e, ainda, como se dá o equilíbrio dinâmico entre
eles, o mito de cada divindade dota de sentido o mundo e fornece um sistema
de valores e de princípios para os seus seguidores e seguidoras. Em relação
ao meio ambiente, cada habitat natural está relacionado a um orixá, que tem
como um de seus atributos preservar o planeta e a humanidade. (BOTELHO,
2007, p. 211).

A escola é um local privilegiado, dinâmico, onde as trocas de ideias são, por vezes,

conflitantes, mas que enriquecem ao reafirmar ou não práticas sociais, posto que são a

discussão e construção de um cotidiano escolar que se deseja dinâmico a partir de seus

conflitos e que se articula entre diversos padrões culturais e modelos cognitivos.

Ao eleger o tema das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas, dialogamos com

os estereótipos e preconceitos que registramos em nosso inconsciente coletivo e que devemos

buscar romper.

Para Vygotsky:

os conceitos são construções culturais, internalizadas pelos indivíduos ao


longo de seu processo de desenvolvimento. Os atributos necessários e
suficientes para definir um conceito são estabelecidos por características dos
elementos encontrados no mundo real, selecionados como relevantes pelos
diversos grupos culturais. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve
que vai lhe fornecer, pois, o universo de significados que ordena o real em
categorias, nomeadas por palavras da língua desse grupo (VYGOTSKY
22

apud OLIVEIRA, 1992, p. 28).

Para desenvolver o projeto, escolhi um ponto em que as ambas as culturas convergem

- a natureza como algo sagrado e as manifestações do divino. Resgatar a cultura afro-

indígena com a seriedade e o mérito que ela merece é, também, um exercício de resgate da

memória de minorias e marginalizados que, com muito esforço, mantêm o seu patrimônio

histórico e cultural vivo.

Acredito em uma escola como um espaço de cruzamento de culturas, fluido e

complexo, atravessado por tensões e conflitos. Reconhecer a escola como um universo

multicultural, desafia-nos a questionar como legitimamos em nossa trajetória histórica, como

sujeitos socioculturais, silenciamentos de outros tantos sujeitos, negando sua cultura.

Como afirma Candau:

A problemática multicultural nos coloca de modo privilegiado diante dos


sujeitos históricos que foram massacrados, que souberam resistir e
continuam hoje afirmando suas identidades e lutando por seus direitos de
cidadania plena na nossa sociedade, enfrentando relações de poder
assimétricas, de subordinação e exclusão (CANDAU, 2008, p. 17).

Durante séculos, gerações passaram pelas cadeiras escolares e não tiveram acesso à

sabedoria e cultura dos povos da floresta (povos indígenas e grupos afrodescendentes),

tradições e conhecimentos que influenciaram a formação da sociedade brasileira. Acredito

que ser professor é, acima de tudo, adotar uma consciência educadora, participativa

(considero a pesquisa um dos principais instrumentos de intervenção e interlocução com as

escolas), desafiadora de olhares estanques e monoculturais, com verdades preestabelecidas e

irrevogáveis. Quando duvidamos, podemos desenvolver reflexões e avançar no conhecimento,

promover a curiosidade, estabelecer uma nova criatividade na leitura do mundo que nos cerca,
23

perceber novas possibilidades de entendimento e, com isso, possibilitar a todos, sem exceção,

a possibilidade de expressão.

Como justifica Botelho:

É preciso criar novos espaços e eleger outros atores sociais para um


conhecimento educacional diferenciado e nesse aspecto privilegiar os
conhecimentos dos quilombolas, do povo de santo, das comunidades da
floresta, de grupos que carregam o respeito à natureza. Será benéfico para a
nossa sociedade competitiva e destruidora, que na preeminência do lucro,
devasta grandiosas áreas e desrespeita a irmã-árvore, o irmão-céu, a irmã-
terra, o irmão-rio, enfim, uma comunidade infinita que sustenta a existência
da humanidade (BOTELHO, 2007, p. 213).

A educação, hoje, não deve se limitar à discussão da cidadania e das desigualdades

sociais, lutando apenas contra o que deixa milhares de crianças fora da escola. Cabe aos

pesquisadores em educação aprimorar a discussão e ampliar as possibilidades de pesquisa

para que esta contribua para a reflexão sobre escola e cultura, entendendo esta relação em

perspectiva multicultural, sempre caminhando rumo ao diálogo entre os diversos grupos

sociais, étnicos e culturais.

Como afirma Candau:

As questões multiculturais questionam este universalismo que informa o


nosso modo de lidar com o conhecimento escolar e o conhecimento de modo
geral. A questão colocada hoje supõe perguntarmo-nos e discutirmos que
universalidade é essa, mas, ao mesmo tempo, não cairmos num relativismo
absoluto, reduzindo a questão dos conhecimentos veiculados pela educação
formal a um determinado universo cultural, o que nos levaria inclusive a
negar a própria possibilidade de construirmos algo juntos, negociado entre os
diferentes. Exige desvelar o caráter histórico e construído dos conhecimentos
escolares e sua íntima relação com os contextos sociais em que são
produzidos. Obriga-nos a repensar nossas escolhas, nossos modos de
construir o currículo escolar e nossas categorias de análise da produção dos
nossos alunos/as (CANDAU, 2008, p.33).

Logo, esta dissertação é fruto do meu esforço em sistematizar e compreender minha

trajetória na educação, na busca incansável por um universo mais pleno de cuidado, alegria e
24

criatividade nas escolas. Escola que passou e passa por múltiplas metamorfoses, sejam elas

frutos das novas demandas dos alunos e da sociedade ou também e reflexo disto, de uma

reavaliação do currículo e das disciplinas.

As aulas de História são tão importantes quanto a oficina de teatro ou o vídeo que é

oferecido aos alunos. Currículo também é o conjunto de vivências, não apenas cognitivas,

mas também afetivas e artísticas, porque cada uma delas contribui para a formação do aluno e

promove o desenvolvimento de suas habilidades cidadãs. Portanto, pretendo mostrar com a

presente pesquisa que a formação dos alunos tem que ser ampliada por novas leituras

disciplinares, por uma nova organização curricular que respeite a identidade de uma

determinada escola, que se apresenta pelas suas demandas próprias, pelo conjunto de valores e

percepções de seus professores diante do currículo e pela gestão da escola que se sensibiliza

com o coletivo e promove o diálogo para a construção de um projeto político-pedagógico

original.

Da mesma forma, pretendo registrar que o professor é um ser que passa ao longo de

sua trajetória profissional por mudanças em sua vida pessoal, as quais promovem uma leitura

diferente do mundo, possibilitando-o reinventar o seu espaço na escola, espaço este contínuo

de sua formação. A interação com os alunos, com os colegas professores e os demais

educadores presentes no espaço escolar também promovem uma área de construção de

conhecimento de novos relatos e possibilidades de vida e percepções diferentes de valores. As

relações interpessoais que se estabelecem na escola muitas vezes geram conflitos que podem

levar a uma reflexão de valores e expectativas diante do Outro e do mundo.

Enfim, penso que a escola é tão transformadora para o professor quanto o é para o

aluno; temos apenas que encarar o conflito, e, para isso, é preciso ousadia, coragem, e

também criatividade para o posicionamento diante dos preconceitos e limitações que podemos
25

ter ao propor uma determinada temática para ser desenvolvida na escola, enfim a vivência

plena de nossa arte de fazer.

1.4 REFERENCIAL TEÓRICO

A linha de pesquisa em que se insere esta dissertação é a de Currículo e Linguagem e

pretende contribuir para o debate acerca do currículo em uma perspectiva multicultural pós-

crítica.

O currículo é reflexo de uma determinada organização social e do pensamento

educacional, que, em um determinado contexto histórico, vai operar em suas estruturas.

Pensar o currículo é colocar como questão central qual o conhecimento que deve ser ensinado.

Assim, a resposta a esta pergunta, no decorrer da construção histórica deste campo, revela-nos

que, explícita ou implicitamente, critérios de seleção serão desenvolvidos para justificar a

resposta que darão àquela questão.

As teorias do currículo desenvolvidas apresentam, em sua base, algum aspecto

relacionado à identidade ou à subjetividade, como afirma Silva:

Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas


em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o
currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido
naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa
subjetividade (SILVA, 2010, p. 15).

O campo do currículo teve origem nos Estados Unidos, com a publicação, em 1918,

do livro The Curriculum, de Bobbitt, mas foi na década de 1960 que começaram os estudos

críticos de currículo que colocavam na berlinda o pensamento e a estrutura educacional

tradicionais. O “movimento de reconceptualização” e a nova sociologia da educação, que têm

como referência os estudos do sociólogo inglês Michael Young (2000), são os marcos da
26

renovação da teoria educacional, que promoveu novas experiências e trabalhos teóricos em

vários centros de estudos e produção acadêmica.

Fortaleceram-se os elos entre as mudanças na sociologia e a difusão dos movimentos

sociais em defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc. o que levou a

um intenso desenvolvimento da sociologia da educação. O trabalho de Young (2000) foi uma

referência, que apresentou questões sobre a noção de que o conhecimento é uma construção

social, apontando para o poder que certos grupos têm de, por exemplo, legitimar crenças e

valores acerca das relações entre saber e sociedade.

No Brasil, o reflexo desse movimento sobre a teoria educacional crítica e da teoria

crítica sobre o currículo se dá com a publicação do livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo

Freire (1970).

A partir dos anos 1970, então, surgiu uma abordagem mais crítica das questões

relacionadas ao currículo, buscando superar seu caráter técnico-prescritivo até então

dominante. Nesse contexto, surge o conceito de “currículo oculto”, que discute o currículo

como instrumento utilizado para reproduzir e afirmar privilégios de classes e grupos

dominantes. Neste ponto, cabe destacar os livros A Ideologia e os aparelhos ideológicos de

estado, de Louis Althusser (1983) e Ideologia e Currículo, de Michael Apple (1979).

Apesar da noção de currículo oculto ter sido desenvolvida inicialmente pela

sociologia conservadora e funcionalista (JACKSON, 1968), a obra de Althusser fornecia uma

definição de ideologia que destacava sua dimensão prática, material. A ideologia se

expressava menos por manifestações verbais do que através de gestos, rituais e práticas

corporais.

Para Apple (1979), a questão não era saber qual conhecimento é verdadeiro, mas qual

conhecimento é considerado verdadeiro. Ou seja, quais interesses orientaram a seleção de

conteúdos presente no currículo? Quais são as relações de poder envolvidas no processo de


27

discussão e seleção dos conteúdos escolares? Portanto, para Apple (1979), o currículo estava

diretamente relacionado às relações de poder.

Quando chegamos às duas últimas décadas do século XX, percebemos avanço nessa

discussão, com autores como Henry Giroux (1981), com o livro Ideology, Culture, and the

Process of Schooling, e Multiculturalismo crítico, de Peter McLaren (1997). Cabe destacar

que esses dois autores recebem uma influência importante do trabalho de Paulo Freire. Esses

três educadores desenvolvem, em suas trajetórias, uma relevante interlocução entre si, com

desdobramentos enriquecedores no debate sobre educação, currículo e cidadania.

Giroux (1981) desenvolveu três conceitos centrais para a sua concepção emancipadora

do currículo e da pedagogia: “esfera pública, intelectual transformador, voz” (SILVA, 2000,

p. 54). Para este autor, a escola e o currículo devem funcionar como uma “esfera pública

democrática”, onde os professores devem atuar como “intelectuais transformadores”,

promovendo, desta forma, nos alunos, atitudes críticas e que contestam o saber hegemônico,

subvertendo relações de poder hegemônicas que desconsideram e silenciam outras vozes

presentes na sociedade.

Peter McLaren (1997, p. 191) é considerado um dos principais representantes da

chamada Pedagogia Crítica que, segundo ele, “examina a escola nos seus contextos históricos

e também como parte do tecido social e político existente que caracteriza a sociedade

dominante”.

McLaren situa seu trabalho no campo do multiculturalismo crítico (1997) e

revolucionário (2000), reconhecendo no educador o seu potencial revolucionário:

Os professores precisam destronar a política textual que domina a maioria


das salas de aula multiculturais e engajar-se numa política de investimento
corporal e afetivo, fundada tanto no conhecimento teórico quanto no
relacional. Uma pedagogia crítica para uma educação multicultural deve
estimular a sensibilidade afetiva dos estudantes, bem como fornecer-lhes
uma linguagem de análise social, crítica multicultural e ativismo social a
serviço da eliminação do capitalismo. (MCLAREN, 1999, p. 129)
28

Percebemos, claramente, a influência do materialismo histórico no trabalho de McLaren

(1999; 2000). No livro Utopias provisórias (1999), o autor dedica um capítulo à pedagogia

revolucionária de Che Guevara. Ainda nesse livro, o autor faz um mapeamento das

alternativas de organização da sociedade a partir dos elementos de subversão e oposição à

ordem capitalista.

O multiculturalismo ganha expressão nos meios educacionais no final da década de

1990. Autores como Grant (2000), Hall (2000) e McLaren (2000) e, no campo educacional

brasileiro, Candau (1994), Canen (1997) e Moreira (2001) publicam trabalhos resultantes de

pesquisa em educação orientadas pela perspectiva multicultural.

No contexto da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1960, surgiu

a preocupação em relacionar educação às questões da diversidade cultural. Gonçalves e Silva

(1998) identifica, no final do século XIX, a preocupação dos negros norte-americanos em

propor ações para a formação de uma identidade racial.

Na última década do século XX, o processo de globalização e a chamada virada

cultural trouxeram a categoria cultura para o centro das reflexões. Identidades étnicas e

culturais lutam por espaços de representação e legitimidade. Há, também, um forte potencial

de hibridização das identidades, que surge a partir da consciência de múltiplos pertencimentos

(de etnia, de gênero, de religião, de estilo de vida, etc.), tributárias do desenvolvimento

tecnológico e pela difusão de valores religiosos, estéticos, políticos e bens culturais pelos

meios de comunicação. Todo este movimento acentua a consciência da diversidade cultural

em todo o seu potencial criativo, mas também coloca para o mundo os desafios que surgem no

diálogo entres as diferenças.

Em tempos globalizados, o reconhecimento do caráter multicultural de grande parte

das sociedades leva à constatação da diversidade cultural no contexto histórico da formação


29

da cidadania e das identidades e que se desdobra em demandas por reconhecimento e

legitimação de direitos e valores.

O termo multiculturalismo pode indicar diversas ênfases (MOREIRA, 2001): a)

atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural; b) meta a ser alcançada em um

determinado espaço social; c) estratégia política referente ao reconhecimento da pluralidade

cultural; d) corpo teórico de conhecimentos que buscam entender a realidade cultural

contemporânea; e e) caráter atual das sociedades ocidentais (CANEN e MOREIRA, 2001).

Em nosso trabalho, o multiculturalismo é entendido, de acordo com Canen (2008),

como o corpo teórico e político de conhecimentos, que privilegia o múltiplo, o plural, as

identidades marginalizadas e silenciadas, buscando formas alternativas para sua incorporação

no cotidiano educacional.

Por ser um termo polissêmico, “estes precisam ser analisados, de forma que práticas

curriculares que se pretendam multiculturais não acabem por perpetuar a construção das

diferenças e dos preconceitos que tanto desejam combater” (CANEN, 2005, p. 180).

Em geral, o chamado multiculturalismo promove o entendimento de uma pluralidade

de valores, crenças e costumes, mas, quase sempre, percebemos que o discurso em prol da

tolerância e do respeito sedimenta e cristaliza identidades e culturas. A perspectiva teórica

adotada nesta dissertação é a de que as identidades não são naturais, que elas se formam no

tempo e guardam em si um potencial de hibridização constante, porque são dinâmicas e

provisórias.

Além disso, partimos do pressuposto de que identidade e diferença caminham juntas,

como aponta Silva:

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as


operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer “o que somos” significa
também dizer “o que não somos”. A identidade e a diferença se traduzem,
assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence,
sobre quem está incluído e quem está excluído. (SILVA, 2000, p. 82)
30

A categoria identidade é fundamental no currículo multicultural. A afirmação de

identidades e seu pleno reconhecimento é a proposta do multiculturalismo, que busca a

promoção do diálogo entre as diferenças e afirma que as vozes presentes na sala de aula são

igualmente válidas. O multiculturalismo contribui, também, para a compreensão entre

educação e cultura(s), reconhecendo a escola como espaço onde estas se cruzam, de forma

fluida e tensionada por conflitos.

Como nos diz Moreira:

O foco na identidade, no âmbito da educação, revela-se indispensável.


Qualquer teoria pedagógica precisa examinar de que modo espera alterar a
identidade do/a estudante. O fim do ensino é que o/a aluno/a aprenda a
atribuir significados e a agir, socialmente, de modo autônomo. Essa
perspectiva exige a aprendizagem de saberes e habilidades, a adoção de
valores, bem como o desenvolvimento da identidade pessoal e da
consciência de si como um indivíduo que, inevitável e continuamente,
deverá julgar e agir. Essa consciência é indispensável para a atividade
racional que todos efetuamos e para a livre opção em situações difíceis, nas
quais muitas vezes precisamos saber “dizer não” (MOREIRA, 2008, apud
WARDEKKER, 1999, p. 39).

Problematizar a formação das identidades e sua legitimação ou silenciamento é a

proposta do multiculturalismo pós-crítico; mais do que reconhecer o Outro, busca-se entender

a sua constituição histórica, cultural e social. O multiculturalismo não se limita a reconhecê-

lo, mas busca analisar a trajetória histórica e cultural em que ele é instituído como o Outro, o

diferente. Autores como Hall (1997), Silva (2000), Candau e Moreira (2008) e Canen (2009)

destacam a necessidade do reconhecimento da fragmentação de uma noção de identidade fixa,

como afirma Silva:

Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato –


seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente,
unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva,
31

acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a


identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma
relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória,
fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas
discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação.
A identidade tem estreitas conexões com relações de poder (SILVA, 2000, p.
96-7).

O multiculturalismo, então, supera a discussão que aponta apenas para os discursos

curriculares, ao propor um currículo que estabeleça ações pedagógicas: “em prol da formação

de identidades abertas à diversidade cultural, desafiadoras de preconceitos, em uma

perspectiva de educação para a cidadania, para a paz, para a ética nas relações interpessoais,

para a crítica às desigualdades sociais e culturais” (CANEN, 2009, p. 64).

Sendo assim, Moreira (1996; 1997) e Canen (2000; 2005; 2008) contribuem para a

reflexão sobre os currículos que se pretendem nacionais, especialmente a proposta dos

Parâmetros Curriculares apresentado aos educadores em 1997. Em sociedades multiculturais,

esta questão ganha particular significado, já que exige uma sensibilidade para a maneira como

a pluralidade de vozes e as identidades culturais têm sido contempladas nas propostas

curriculares, implicando uma sensibilidade para perceber os silenciamentos, ênfases e as

relações de poder que as rearfimam.

O Ministério da Educação e Cultura (MEC), desde a elaboração dos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCNs), apresenta possibilidades para o desenvolvimento de ações

multiculturais. No volume que introduz os parâmetros para as diversas disciplinas,

encontramos o desejo de que cada escola e/ou redes públicas de ensino reconheçam as

contribuições locais assim como o desenvolvimento das propostas apresentadas:

O estabelecimento de parâmetros curriculares comuns para todo o país, ao


mesmo tempo em que contribui para a construção da unidade, busca garantir
o respeito à diversidade, que é marca cultural do país, por meio de
adaptações que integrem as diferentes dimensões da prática educacional. (...)
Os PCNs configuram uma proposta aberta e flexível, a ser concretizada nas
decisões regionais e locais sobre currículos e sobre programas de
32

transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades


governamentais, pelas escolas e pelos professores (BRASIL, 1997, p. 13).

Nesta proposta curricular, a questão da pluralidade cultural é assim apresentada:

Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso respeitar os


diferentes grupos e culturas que a constituem. A sociedade brasileira é
formada não só por diferentes etnias, como por imigrantes de diferentes
países. Além disso, as migrações colocam em contato grupos diferenciados.
Sabe-se que as regiões brasileiras têm características culturais bastantes
diversas e a convivência entre grupos diferenciados nos planos social e
cultural muitas vezes é marcada pelo preconceito e pela discriminação. O
grande desafio da escola é investir na superação da discriminação e dar a
conhecer a riqueza representada pela diversidade etnocultural que compõe o
patrimônio sociocultural brasileiro, valorizando a trajetória particular dos
grupos que compõem a sociedade. Nesse sentido, a escola deve ser local de
diálogo, de aprender a conviver, vivenciando a própria cultura e respeitando
as diferentes formas de expressão cultural (BRASIL, 1997, p. 32).

Canen aponta as contradições discursivas presentes nos PCNs, no que se refere à

pluralidade cultural:

Apontou-se, quando da análise dos PCNs, por exemplo, que o fato de que tal
tema se encontre sob a denominação “transversal” pode resultar em sua
eventual diluição no currículo. (CANEN, 2000) Ainda registrou-se que o
significado de multiculturalismo aí presente oscilava entre propostas mais
críticas de desafio a estereótipos e preconceitos, até afirmações que reduziam
tais manifestações a componentes psicológicos de “medo do outro”, sem
questionar as raízes históricas e culturais das mesmas ou apontar formas de
combatê-las (CANEN, 2008, p. 73).

Percebe-se, então, que, no decorrer da leitura dos PCNs, com um olhar mais atento

vislumbramos que a proposta ilustra uma perspectiva multicultural que objetiva a valorização

da diversidade cultural e a tolerância às diferenças, mas não aprofunda e amplia a discussão

para o reconhecimento da construção histórica da diferença, não problematizando o conceito

de identidade nacional e ignorando a hibridização e dinâmica das identidades, quase sempre

ocultas em sua complexidade. As diferenças são construídas socialmente, e as relações de


33

poder que se estabelecem na sociedade vão legitimar valores e olhares sobre o Outro, ou seja,

sobre aquele que não está inserido na identidade supostamente hegemônica; vão orientar o

nosso olhar para o que nós somos, e é através deste movimento que o Outro se estabelece. Os

livros didáticos, as avaliações, as propostas curriculares e de formação docente são reflexos

desta dinâmica.

Os livros didáticos não aprofundam as questões relacionadas à religiosidade africana e

indígena, constituídas por mitos que recebem leituras folclóricas e quase sempre sob o risco

do exótico e da desqualificação. Por outro lado, a mitologia grega é percebida como uma das

mais criativas seja do ponto de vista estético ou moral. Cabe ressaltar que, mesmo no caso da

mitologia grega, a abordagem nos livros didáticos tem o objetivo apenas de ilustrar uma

cultura, mas não há uma problematização dos mitos e sua relação com a sociedade.

De qualquer forma, estudar a mitologia grega não provoca desconforto. Exu e Hermes,

conforme a tradição mitológica, iorubá e grega, respectivamente, dialogam com os deuses.

Os dois são detentores do poder da comunicação e do movimento. No entanto, entre nós,

falar de Hermes não produz tanto medo quanto falar de Exu. Problematizar a construção

deste olhar é um dos focos desta pesquisa.

O Projeto Sagrada Natureza buscou desafiar, por exemplo, a verdade de que a

sabedoria inerente aos orixás é dispensável ao conhecimento e é desprovida de valor. O

Projeto procurou resgatar uma sabedoria que resiste há séculos, apesar do descrédito,

reforçado pelo desconhecimento que acentua o preconceito e que não enxerga que essa

sabedoria guarda em si um paradigma que considero ter relevante importância para o

currículo escolar, que é a relação com a natureza, considerando-a sagrada.


34

O currículo tradicional reflete os posicionamentos hegemônicos ou que estejam

fortalecidos em uma determinada conjuntura. Além disso, é possível perceber, também, que o

professor em sala de aula pode ser o agente dinamizador de um processo de crítica e

reinvenção neste processo; logo, o currículo está em constante tensão pelas relações de poder

estabelecidas na sociedade.

No ano de 2003, foi sancionada, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei

10.639. Com isso, a Lei 9.394/96 passou a vigorar com o acréscimo dos seguintes artigos:

Art. 1º O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a


vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afrobrasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (BRASIL, 2008, p.
1).

No ano de 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou o parecer que propõe as

Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras (BRASIL, 2005).

Entre 2004 e 2005, foi elaborado o documento Orientações e Ações para a Educação

das Relações Étnico-Raciais, construído com a participação de professores de diversas regiões

e órgãos relacionados à educação pública. Formaram-se, então, vários grupos de trabalho para

formular ações pedagógicas (atividades dirigidas e oficinas) (BRASIL, 2006).

Em 2008, avançamos mais na legislação que reafirma a importância da inclusão

efetiva também da cultura indígena nos currículos escolares, com a Lei 11.645:
35

Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no


10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena”.
Art. 1° O art. 26-A da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a
vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.
§ 1° O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil,
a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2° Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras.

A questão dos negros e afrodescendentes no Brasil, assim como a que se refere aos

povos indígenas, está relacionada à presença de um imaginário social peculiar. No discurso

sobre a democracia racial brasileira, desconsidera-se a construção histórica da desigualdade

entre brancos e negros e a marginalização imposta a outros grupos étnico-raciais.

Portanto, o mito da democracia racial silencia a luta do movimento negro e indígena

pelo seu lugar no Estado brasileiro. Na tentativa de se estabelecer uma identidade nacional,

escondem-se identidades híbridas, conflitos e silenciamentos que ocorrem dentro da

sociedade.

Gomes afirma que:

Muitas vezes o caráter universal e abstrato do discurso em prol de uma


democracia para todos acaba uniformizando e homogeneizando trajetórias,
culturas, valores e povos. Por isso, os movimentos sociais cada vez mais
buscam ampliar a noção de democracia, a fim de que ela insira a diversidade
e apresente alternativas para lidar com as políticas de identidade. Essa outra
perspectiva de democracia deverá radicalizar ainda mais a luta pelos direitos
sociais, incluindo nessa o direito à diferença. Assim, a democracia estará
mais próxima das vivências concretas dos diferentes sujeitos sociais e de sua
luta pela construção da igualdade social que incorpore e politize a
diversidade (GOMES, 2008, p. 70)
36

1.5 METODOLOGIA

A metodologia proposta neste projeto é uma pesquisa-ação, como investigação

qualitativa.

A partir dos anos 1980 e 1990, os estudos chamados “qualitativos”, ganharam força e

se caracterizam pelo conjunto diversificado de perspectivas, de técnicas, de métodos e

análises, compreendendo abordagens e estudos do tipo etnográfico, estudos de caso, pesquisa-

ação e, ainda, análises de discursos e narrativas, estudos de memória, histórias de vida e

história oral.

A pesquisa qualitativa sofre críticas de muitos cientistas sociais, que a consideram

deficiente em objetividade, rigor e controle científico. Segundo Goldenberg (2003, p. 45),

outra crítica diz respeito à falta de regras de procedimento rigorosas para guiar atividades de

coleta de dados, o que pode dar margem para que o bias do pesquisador venha a modelar os

dados que coleta, que, por isso, não podem ser usados como evidência científica.

Atuando como professores-pesquisadores, a nossa subjetividade é estímulo para

reflexão e atenção ao rigor que estabelecemos no processo de investigação e análise dos

dados. Na perspectiva do que Bourdieu (1989) chama de objetivação, temos o compromisso

científico e ético de conter a subjetividade inerente a todo processo de pesquisa seja ele

qualitativo ou não.

Portanto, como afirma André:

Percebo quão difícil é conciliar os papéis de ator e de pesquisador, buscando


o equilíbrio entre a ação e a investigação, pois o risco de sucumbir ao
fascínio da ação é sempre muito grande, deixando para o segundo plano a
busca do rigor que qualquer tipo de pesquisa requer (ANDRÉ, 2001, p. 57).
37

Como apontam Anderson e Herr (1999), a formação e ação do professor reflexivo e

sua atuação como pesquisador exigem rigor científico, mesmo que estes não sejam os mesmos

critérios estabelecidos pelo referencial positivista.

A partir dos critérios de validação de Anderson e Herr (1999 apud André, 2001), que

propõem pesquisas desenvolvidas pelos professores em seu campo de atuação, levaremos em

conta, principalmente, os seguintes critérios de validação:

validade externa: ou seja, que se julgue o valor dos resultados (ou da ação).

Segundo eles, é preciso verificar se o projeto culminou em uma ação e de qual

natureza;

validade catalítica: se a pesquisa levou os participantes a conhecerem melhor a

realidade para transformá-la e;

validade dialógica: se houve iniciativa de busca do diálogo com os pares para

discussão do problema e dos resultados da pesquisa.

Esta pesquisa é tributária de minha trajetória na E.M. Levi Carneiro e do

desenvolvimento do Projeto Sagrada Natureza nos anos letivos de 2007, 2008 e 2009.

A partir de minha admissão no Programa de Pós-Graduação em Educação na

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), percebi que é no chão da escola que se dá o

primeiro passo para o surgimento do objeto de pesquisa, para o olhar afinado e

comprometido, mas também instigador e crítico do educador em relação à sua prática.

Por exemplo, ao apresentar para os alunos que havia uma sabedoria nos orixás e que

esses orixás podiam ser exemplos da interação profunda do Homem com a natureza e que,

portanto, o preconceito não se justificava, uma vez que os preconceitos são construídos

historicamente e impedem um olhar mais amplo diante da vida, e, por outro lado, quando

alguns professores insistiam que a pesquisa promovia o candomblé, insisti em provocar o

diálogo lançando a seguinte pergunta: o aluno que chega à escola com uma Bíblia ou um
38

crucifixo passa quase que despercebido ou seria elogiado pelo exemplo, mas se um aluno

chega à escola com um badulaque do candomblé seria tratado da mesma forma?

Por que, quando se fala em educação ambiental, não se pode relacionar a tradição das

culturas ancestrais, que percebiam a existência do sagrado na natureza, e reconhecer que o

paradigma dessas culturas ancestrais guarda em si uma grande contribuição para nossa

sociedade? É importante mostrar aos alunos que a história da África e dos povos indígenas

ultrapassa os objetivos de se entender a dominação e a conquista que sofreram por parte das

civilizações europeias. As atividades que desenvolvi pretendiam, também, reconhecer o

intercâmbio e recriações de mitos, rituais e símbolos culturais entre os povos indígenas no

norte e nordeste do Brasil e a chegada dos africanos ao Brasil.

Considero minha experiência na E.M. Levi Carneiro um exemplo das possibilidades

de leitura e ação dos professores diante das políticas institucionais e de sua capacidade de

reinvenção perante conteúdos e expectativas que eles têm em relação à sua disciplina e ao seu

lugar de ação na escola.

Como afirma Linhares:

Por sua vez, as experiências instituintes estão sempre em devir, pisando em


um terreno movediço, sem certezas e comprovações da história, mas
enfrentando e infiltrando-se nas tramas instituídas, para aproveitar frestas e
contradições e, assim, afirmar a outridade. Afinal, não podemos esquecer
que, a despeito de profetas agourentos, a escola pode ser outra, como outra
pode ser a sociedade, e as próprias política e racionalidade que nos
organizam (LINHARES, 2005, p. 9).

Foi realizada uma pesquisa bibliográfica no banco de dissertações e teses da CAPES,

no período de 1999 a 2011 e foram utilizadas as palavras-chaves: Orixás e Religiosidade

Afro-brasileira, e foram encontradas sete2 produções acadêmicas registradas até aquele

período.

2
Dissertações: COSTA NETO. Ensino religioso e as religiões de matrizes africanas no Distrito Federal
39

Constatei que nenhuma delas contempla a temática dos orixás em currículos de

escolas públicas regulares. Os trabalhos acadêmicos quando se relacionam à pedagogia dos

orixás se referem à educação em comunidades estabelecidas em terreiros ou com alunos

oriundos dessas comunidades e que são inseridos em escolas regulares. Apenas um desses

trabalhos identifica o multiculturalismo como palavra-chave.

Este levantamento seguiu o critério de perceber como a temática relacionada à

religiosidade afro-brasileira e a mitologia iorubá são instituídos no debate acadêmico, no que

se refere ao currículo da educação básica e ao multiculturalismo.

No que diz respeito à cultura indígena, foram utilizadas as palavras-chaves: Povos

Indígenas e Educação Ambiental. Não foi encontrada nenhuma dissertação ou tese que

relacionasse os povos indígenas e a educação ambiental em escolas regulares. Todos os

trabalhos acadêmicos estavam centrados nas próprias comunidades indígenas e sobretudo em

abordagens antropológicas.

Quando incluí a palavra-chave: Currículo, encontrei dois trabalhos que se aproximam

desta pesquisa: BONIN. E por falar em povos indígenas... Quais narrativas contam em

práticas pedagógicas?. (Doutorado/2007/UFRGS) e CRUZ Percepções das crianças sobre

currículo e relações étnico-raciais na escola: desafios, incertezas e possibilidades.

(Mestrado/2008/UFSCar).

A presente pesquisa-ação trabalhou numa perspectiva multicultural (ASSIS e CANEN,

2004; CANDAU, 2008; CANEN, 2008 e 2009; CANEN e MOREIRA, 2001; CANEN e

OLIVEIRA, 2002; MCLAREN, 1999; MOREIRA, 2008) e foi desenvolvida com professores

de 3º e 4º ciclos da rede municipal de Niterói em encontros nas reuniões de planejamento

(2010/UNB); BRANCO. A cultura afrobrasileira: práticas pedagógicas observadas na comunidade


afrobrasileira de Cruz Alta/RS (2002/UNIJUI); ALVES. Educação ambiental na perspectiva da cultura de
matriz africana (2010/UFMT); LIMA. Crenças religiosas como caminho para educação ambiental: um
estudo de caso na Comunidade Candomblé Ilê Asé Orisá Dewi, (2011/UNB). Teses: CORREIA. Agô, Orixá!
Gestão de uma jornada afro estética-trágica: o relato de um aprendizado e de uma formação pedagógica
vivida no candomblé. (2009/UFRGS); BOTELHO. Educação e orixá: processos educativos no Ilê Axé Iya
Mi Agba (2005/FEUSP); GUEDES. Educação nos terreiros e como a escola dialoga com crianças que
praticam candomblé.(2005/PUC-RJ).
40

realizadas durante os anos letivos de 2010 e 2011, e com alunos de 3º e 4º ciclos desta mesma

rede em aulas programadas com professores de ciências e geografia.

Segundo Barbier:

a pesquisa-ação reconhece que o problema nasce, num contexto preciso, de


um grupo em crise. O pesquisador não o provoca, mas constata-o, e seu
papel consiste em ajudar a coletividade a determinar todos os detalhes mais
cruciais ligados ao problema, por uma tomada de consciência dos atores do
problema numa ação coletiva (BARBIER, 2002, p.54).

Portanto, nesses encontros, o projeto é apresentado, e os professores são convidados a

discutir os desafios para o desenvolvimento da proposta. O desconforto é grande, mas o

interesse também. Há um desconhecimento sobre a trajetória da religiosidade africana de

matriz iorubá, e as perguntas sobre o que é macumba estão presentes em todos os encontros.

Não houve um encontro, no qual termos desqualificadores desta religiosidade, assim como

casos exóticos de casas de terreiro próximas, não sejam relatados. Grande parte dos

professores é católica ou evangélica, e alguns deles são categóricos e contra a discussão da

temática na escola. Nota-se que o ato de opor-se à problematização da inserção de uma

temática de determinados grupos étnicos no currículo escolar se configura um ato

discriminatório.

Sendo assim, esta pesquisa busca a reflexão sobre o olhar do professor, suas escolhas e

seu posicionamento e de que modo sua subjetividade pode limitar as possibilidades de um

currículo multiculturalmente orientado bem como é capaz de construir olhares e percepções

que reforçam o preconceito e a discriminação.

Através das entrevistas e formações continuadas, foi possível perceber

posicionamentos preconceituosos, porém muitos deles são produzidos no senso comum e,

com o avanço das discussões, os professores afinam o discurso com a reflexão e ampliam a
41

possibilidade de ações pedagógicas que podem modificar olhares antes limitados pelo

preconceito.

Com a observação e vivência nessas formações, nas quais eu mesma preparo a

dinâmica, proponho o material e inicio o diálogo com a equipe de articulação pedagógica, já

buscando um olhar afinado com a perspectiva da pesquisa. Ressalto que, nestes momentos, a

possibilidade de compreensão da subjetividade é muito grande, em especial quando

comparamos com outras possibilidades de metodologia de pesquisa, em que o papel da

subjetividade é pouco considerado.

Entre as diversas definições possíveis, neste trabalho, a referência à pesquisa-ação é a

proposta por Thiollent:

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é


concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a
resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de
modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2009, p. 16).

Foram realizadas 12 oficinas com alunos de 6º ao 9º ano, em parceria com o professor

regente da turma (geografia e ciências). Cada oficina correspondeu a dois tempos de aula.

Antes da oficina, o professor recebeu o material sobre multiculturalismo e o currículo para sua

apreciação, além de ter respondido a uma entrevista semiestruturada elaborada por mim. Os

pedagogos das escolas onde as oficinas foram realizadas também foram entrevistados assim

como a direção das escolas.

No percurso da pesquisa, também participei de 9 formações continuadas: 6 com

professores de 3º e 4º ciclos e 2 com professores de educação infantil de 1º e 2º ciclos, todas

elas na rede municipal de Educação de Niterói. Estas formações continuadas foram

importantes para o processo de reavaliação e reflexão das ações implementadas pelo Projeto

Sagrada Natureza e a condução da pesquisa nas escolas que se engajaram ao projeto.


42

O objetivo das entrevistas foi o de compreender o olhar dos professores e pedagogos

sobre a proposta do Projeto Sagrada Natureza e como eles percebem as dificuldades para

levar para a sala de aula a temática dos orixás e dos povos indígenas do Brasil. Esta

metodologia de pesquisa qualitativa promove e valoriza a subjetividade dos educadores

participantes das entrevistas. Busquei, nas relações que estabeleci, um olhar de mão dupla

entre o pesquisador e o objeto de pesquisa. Questões foram colocadas para a pesquisa, que

problematizaram ainda mais o diálogo estabelecido. Destaco este momento como o mais

enriquecedor e que me desafiou a procurar novas leituras diante das novas questões que eram

propostas.

No capítulo 3, são analisados os dados levantados e a triangulação dos dados

estabelecida entre as oficinas com os professores e seus alunos, as formações continuadas e os

registros de avaliação da proposta pelos professores, além das entrevistas com os pedagogos.

Destaco, aqui, que o referencial curricular que orienta os professores da Fundação Municipal

de Educação é o multiculturalismo; assim, coube-me, então, analisar como estão sendo

desenvolvidos os conteúdos escolares a partir desta nova perspectiva, ou seja, o

estabelecimento de um referencial curricular multicultural facilitou a introdução das temáticas

propostas pelo Projeto Sagrada Natureza?

Assumi, com toda convicção, nesta trajetória de pesquisa, a perspectiva do encontro,

ou seja, do diálogo, como princípio multicultural, a exemplo do que enfatizam Canen e

Moreira:

Destaque-se a importância do diálogo como elemento delineador de uma


prática curricular multiculturalmente orientada. Seja em dinâmicas que
visem a sensibilizar discentes e futuros docentes para os diferentes aspectos
envolvidos na construção identitária (em contraposição a uma visão
essencializada dessa construção), ou em discussões desafiadoras de visões
estereotipadas de grupos distintos, o diálogo oferece a base indispensável
para o desenvolvimento de uma perspectiva multicultural no currículo em
ação (CANEN e MOREIRA, 2001, p. 33).
43

Portanto, nesta pesquisa-ação, apesar da consciência da complexidade do tema

procurei sempre dialogar com meus colegas professores, mesmo quando estas não foram

confluentes e colocaram novas questões e possibilidades de abordagem. Seguimos juntos, eu

e os professores envolvidos na pesquisa, cultivando em nossa parceria, formas plurais de

relacionar as questões multiculturais com o currículo de nossas disciplinas.

1.6 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO

A presente dissertação tem como objetivo apresentar uma análise dos desafios e

avanços, a partir de uma experiência de currículo em ação, proposto pelas ações orientadas

pelo projeto Sagrada Natureza, em escolas de 3º e 4º ciclos da rede municipal pública de

Niterói, nos de 2010 e 2011.

O capítulo 1 apresenta as motivações para o estudo nascidas no contexto do

desenvolvimento Projeto Sagrada Natureza, na E.M. Levi Carneiro, nos anos de 2007, 2008 e

2009. Apresenta também os objetivos e justificativa para o presente estudo, diante dos

desafios da aplicação da lei 11.645/2008 nos conteúdos escolares. Neste capítulo, também

apresento o referencial teórico que me orientou nesta pesquisa, que é o multiculturalismo

crítico e pós-colonial, assim como um breve histórico da evolução dos estudos e debates no

campo do currículo. Além disso, foi feita uma leitura crítica inicial dos Parâmetros

Curriculares Nacionais relacionando-os com a temática da pluralidade cultural, reconhecendo

seus avanços e limites no desafio aos preconceitos e na percepção de identidades congeladas,

enquanto constatei como fundamental tensionar mais o debate, questionando a construção das

diferenças no contexto histórico. Apresentei também, a metodologia que me orientou, que foi

a da pesquisa-ação como estudo qualitativo, destacando o papel reflexivo do professor-

pesquisador.
44

O capítulo 2 apresenta a proposta do Projeto Sagrada Natureza, sua concepção e suas

afinidades com a temática ambiental. Elaborei também um breve relato da experiência na

E.M. Levi Carneiro que apresentou questões e motivou as ações para esta pesquisa.

O capítulo 3 abordou a pesquisa-ação, a interlocução com os professores que atuaram

no projeto e com as equipes de articulação pedagógica das escolas envolvidas. Neste capítulo

são apresentadas as entrevistas com os professores e a avaliação deles diante do projeto, e a

análise feita a partir da triangulação dos dados: as oficinas com os professores e seus alunos,

as formações continuadas e os registros de avaliação da proposta pelos professores, além das

entrevistas com os pedagogos.

O capítulo 4 apresenta as conclusões ao final desta etapa de pesquisa da dissertação,

mas que já aponta para futuros desdobramentos em novas reflexões e pesquisa.


45

Figura 1 - Pintura em grafite, produzido por ex-alunos da E.M. Levi Carneiro dedicado
ao Projeto Sagrada Natureza – jun./2007

Fonte: acervo pessoal


46

CAPÍTULO 2
O PROJETO SAGRADA NATUREZA

Hoje nos encontramos numa fase nova na humanidade. Todos estamos


regressando à Casa Comum, à Terra: os povos, as sociedades, as culturas e as
religiões. Todos trocamos experiências e valores. Todos nos enriquecemos e
nos completamos mutuamente.

(BOFF, 2001, p. 9)

2.1 O PROJETO: PRÁTICA E REFLEXÃO PARA A AÇÃO

A E.M. Levi Carneiro, no ano de 2007, foi uma das escolas a iniciar a implementação

dos ciclos escolares na rede municipal de educação de Niterói. Esse processo começou

gradualmente, e o Projeto Sagrada Natureza foi um dos projetos que contribuíram para o

desenvolvimento dessa proposta.

Professora regente de história nesta unidade escolar, desde o ano letivo de 1999, eu

desfrutava de um contexto político bastante favorável. Tanto a gestão da escola quanto a

institucional – Fundação Municipal de Educação de Niterói – apoiavam o Projeto e deram o

apoio necessário para o seu desenvolvimento.

Esse apoio veio, sobretudo, com a aprovação de um RET3 de 16hs, para que eu

desenvolvesse as atividades do Projeto Sagrada Natureza, além dos ensaios e da produção das

peças de teatro da caravana Anima Ludens, também coordenada por mim.

3
Decreto nº 9782/2006 - Fica instituído o Regime Especial de Trabalho (RET), que se destinará ao atendimento
de necessidades de relevante interesse público, de caráter especial e temporário, aplicável aos servidores dos
Grupos Magistério e Técnico-Científico da Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME), na forma dos
artigos 5º, 6º e 7º da Lei 2.307/2006, que estejam em efetivo exercício de suas atividades na FME ou nas
unidades de educação da Rede Municipal de Niterói ou que pertençam ao grupo de servidores inativos da FME,
desde que possuam uma única matrícula e não tenham sido aposentados por invalidez.
47

Iniciei, então, nossas atividades. A sala de leitura era o espaço utilizado para os

encontros e foi justamente nesse espaço que tive a primeira aproximação com as mitologias

afro-brasileiras, através do livro, Contos e lendas afro-brasileiros – a criação do mundo, de

Reginaldo Prandi (2007).

Cabe esclarecer que, na sua concepção inicial, o Projeto Sagrada Natureza tinha como

objetivo realizar atividades pedagógicas para fomentar a temática indígena no currículo

escolar praticado na E.M. Levi Carneiro.

Porém, quando li A criação do mundo de Reginaldo Prandi (2007), reconheci que a

mitologia dos orixás e a mitologia indígena poderiam ser temáticas muito próximas no que diz

respeito à questão ambiental. Percebi que seria uma boa oportunidade de aplicação da Lei

10.639/2003.

Com a minha presença constante na sala de leitura e a realização de atividades muito

características de um professor de apoio de sala de leitura, como a contação de histórias, que

foi a forma inicial que organizei para apresentar aos alunos esses mitos, um primeiro desafio

surgiu. A gestão de pessoal da FME alegou que, por eu não ser professora de português, não

poderia exercer as atividades características de um professor de sala de leitura. Com o total

apoio da direção da escola, reunimo-nos com a superintendência de ensino e argumentamos a

minha capacidade de fazer uso da sala de leitura e de seus materiais, assim como as atividades

de leitura, ainda que não tivesse tido formação específica para tal. Diante disso, o

superintendente de desenvolvimento pedagógico da FME, Armando de Castro Cerqueira

Arosa, aprovou a minha permanência nessa atividade.

Prossegui, então, com o trabalho. Além das sessões de contação de histórias e rodas de

leitura com os alunos, foram realizadas algumas atividades como: um grupo de ex-alunos

foram convidados para produzirem grafites na quadra da escola com a temática ambiental;

organizamos mostras de arte e cultura, para expor nosso trabalho à comunidade escolar;
48

participei ativamente das discussões pedagógicas divulgadas pela FME, sempre apresentando

a proposta de trabalho; a gestão da escola convidou uma coreógrafa para a concepção de uma

performance de saudação aos orixás; e foram organizados diversos sábados letivos com

atividades às quais a comunidade escolar e os alunos dos 1º e 2º ciclos também tivessem

acesso.

Nesse processo, vivemos duras críticas às nossas atividades.

A primeira delas diz respeito à nova forma de organização do tempo que fizemos

gradualmente na grade de horários da escola.

Alguns professores foram convidados para organizarem um cronograma, em que,

semanalmente, os alunos (grupos de 15) iriam durante um tempo de aula (45 minutos) para a

sala de leitura para as atividades do Projeto Sagrada Natureza. Poucos aceitaram e muitos

colegas alegaram que esse tipo de atividade atrasaria e dificultaria ainda mais o

desenvolvimento dos alunos nas disciplinas obrigatórias. Além disso, como decidimos que

todos os alunos de 3º e 4º ciclos teriam acesso a essas atividades, muitos colegas alegaram

que alunos indisciplinados não deveriam ser contemplados com tal atividade.

Neste momento, o Projeto Sagrada Natureza abria a oportunidade de discutirmos nas

reuniões de planejamento algumas questões importantes sobre educação como: alunos

indisciplinados não devem participar de atividades que saiam da rotina de sala de aula? As

atividades que apresentam temáticas que fogem ao conteúdo regular não são consideradas

como parte do currículo e da formação do aluno? Tais atividades seriam mais uma recreação?

Mitos indígenas e orixás, o que isto tem a ver com o conhecimento escolar?

As propostas que apresentam alternativas inspiradas no referencial teórico do

multiculturalismo indicam algumas possibilidades para ações pedagógicas e reflexão para as

questões apontadas, ainda que as implicações multiculturais para a didática ainda sejam pouco

abordadas.
49

Neste ponto, o trabalho de James A. Banks é fundamental para a análise das questões

multiculturais na perspectiva didático-pedagógica.

Banks (1999) entende a educação multicultural como um movimento reformador

destinado a realizar mudanças significativas no sistema educacional. Para ele, a principal

finalidade da educação multicultural é favorecer que todos os estudantes desenvolvam:

habilidades, atitudes e conhecimentos necessários para atuar no contexto da


sua própria cultura étnica, no da cultura dominante, assim como para
interagir com outras culturas e situar-se em contextos diferentes do seu de
origem (BANKS, 1999, p. 2).

Bartolomé Pina (1994) situa o modelo proposto por Banks, que denomina holístico, na

interseção entre aqueles que se situam em uma opção baseada na promoção das relações

interculturais e os que se orientam a construir uma sociedade mais justa, lutando contra a

assimetria cultural, social e política. Assim, Pina define esse modelo: “Ele aborda a educação

intercultural na escola a partir de um enfoque institucional. Incorpora elementos de denúncia e

luta contra a discriminação e o racismo.” (PINA, 1994, p. 45, apud CANDAU, 2002, p. 111).

Um currículo multicultural não se limita apenas a apresentar e discutir temáticas

relacionadas à diversidade; pretende, também, promover uma nova forma de olhar a escola e

o currículo, reconhecendo naquela a presença de diversas subjetividades e que influenciam no

seu cotidiano, e, neste, a presença de relações de poder que determinam o que deve ser

ensinado e avaliado como habilidade cognitiva a ser alcançada.

Diante disso, surge a reflexão de que o cotidiano da escola pode ser enriquecido com

novas situações criativas que tenham como objetivo favorecer outras formas de entendimento

do mundo e que estas sejam respeitadas. Por outro lado, ao percebermos o currículo em

constante construção e o nosso potencial de intervenção em nossas salas de aula e nos demais
50

espaços que se abrem para a discussão, podemos reconhecer o potencial transformador de

nossas ações e reflexão de nossa prática e da escola que buscamos.

Freire defende que:

Estar no mundo e com o mundo significa exatamente experienciar


continuamente a dialética entre subjetividade e objetividade, (...) uma das
coisas mais difíceis é viver no mundo sem cair na tentação, seja de
sobrestimar a subjetividade em detrimento da objetividade, seja de
sobrestimar a última em favor da primeira (FREIRE, 1986, p. 10).

Pensar e viver uma escola pública nos convida sempre à utopia de que podemos criar

condições objetivas para a realização plena dos sujeitos em sua trajetória, marcada pela

garantia dos direitos de cidadania. Refletir sobre a educação e a escola exige de nós a

percepção de que nas escolas ainda sobrevivem perspectivas tradicionais, onde estas são

vistas meramente como locais de instrução.

É ignorado que elas são também locais culturais e políticos, assim como é
ignorada a noção de que elas representam arenas de contestação e luta entre
grupos culturais e econômicos que têm diferentes graus de poder (GIROUX,
1986, p. 17).

Com base nisso, defendo que os desafios para o enfrentamento da indisciplina

exigem de nós a sensibilidade para ouvir o que esses atos de indisciplina nos dizem. Um

aluno indisciplinado deve ser ouvido com mais atenção, porque talvez os atos de indisciplina

sejam as únicas formas de verbalização do que ele tem a dizer. Portanto, defendo que a

criação de alternativas didáticas, às quais todos os alunos tenham acesso, é condição

fundamental se defendemos uma escola solidária e que luta pela inclusão de todos. Não

podemos negar os instrumentos de negociação disciplinar de que podemos fazer uso, mas

esses instrumentos devem ser usados como mais uma estratégia de aproximação do aluno da

escola. Com isso, podemos afirmar que as questões de indisciplina devem ser analisadas caso
51

a caso, para não perdermos de vista a motivação subjetiva presente em cada situação

apresentada e reconhecer que um fator de extrema importância para o desenvolvimento de

uma relação positiva com os alunos, assim como com qualquer outra forma de relação

interpessoal, é a confiança. Como argumentam Stühler e Assis:

Sua construção [confiança] no cotidiano de qualquer organização, incluindo


a escola, é um processo constante em que algumas estratégias e
sensibilidades devem estar presentes. Dois campos de reflexão podem
fornecer importantes subsídios para o desenvolvimento dessas estratégias e
sensibilidades, com vistas à criação da confiança, para o desenvolvimento de
relações interpessoais positivas: o multiculturalismo, como perspectiva
teórica e prática de valorização da diversidade cultural e compreensão das
identidades culturais e coletivas; e a psicologia, como campo de estudos
sobre as identidades individuais e seus mecanismos internos de afirmação,
defesa e equilíbrio (STÜHLER e ASSIS, 2009, p. 109).

No que diz respeito ao conhecimento escolar, entendemos que, neste ponto, também o

multiculturalismo contribui muito para a reflexão sobre currículo, escola e cultura.

Quando defendo que a escola pública é uma das possibilidades para a construção de

uma sociedade mais justa, com os direitos à cidadania garantidos, não quero negar que a

escola ao seguir o modelo proposto pela Modernidade, foi incapaz de lidar com as diferenças

de vozes, leituras, desejos, sentidos, narrativas, dos diferentes sujeitos que nela interagem.

(GABRIEL, 2008). A concepção de educação que ainda predomina nas escolas, sofre a

influência da Modernidade ao enquadrar os sujeitos na categoria “humanidade”. Gabriel

argumenta que:

É nessa categoria de “sujeitos universais” que as portas dessa instituição são


abertas para que ensinem e aprendam. Mesmo quando questões do universo
da linguagem começam a ser incorporadas pelas teorias educacionais
críticas, por meio das abordagens estruturalistas do discurso, essa concepção
representacionista de linguagem não é suficientemente colocada em questão,
dificultando a professores/as e alunos/as assumirem sua condição de atores
sociais. De sujeitos universais, os sujeitos passam a ser percebidos por
categorias como dominante, dominado, opressor, oprimido. Não se trata de
negar a contribuição desses construtos teóricos; o desafio é ir além da crítica
da dominação. É problematizar as tendências de homogeneização, de
52

uniformização presentes nas linguagens que falam sobre dominação. É


buscar caminhos que permitam pensar a relação dominador-dominado sem
denominadores comuns, é deixar que a condição de oprimido possa também
ser dita, falada, lida, narrada, vivida, no plural (GABRIEL, 2008, p. 237).

Portanto, o multiculturalismo como referencial teórico avança como uma alternativa

para pensarmos ações pedagógicas que fomentem o currículo para sensibilidades

multiculturais. Ou seja, tensionar o currículo, os conteúdos escolares, as ações pedagógicas

nessa perspectiva, permite-nos avançar e problematizar os saberes escolares e identificá-los

como não neutros e históricos. Refletir sobre o conhecimento escolar na perspectiva

multicultural significa assumir o posicionamento de que não há saberes plenos de verdades

universais e absolutas. Não quero aqui negar um referente extradiscursivo, tornando-se, assim,

possível pensar questões de objetividade e de verdade do conhecimento escolar. (GABRIEL,

2008)

Gabriel argumenta que:

Essa possibilidade é importante quando estamos falando de aprendizado e de


escola como espaço onde são estabelecidas relações privilegiadas com os
saberes científicos e os demais saberes, problematizar os critérios de
legitimação social atribuída a esse tipo de saber, afirmar sua historicidade
não significa negar o seu papel crucial e estratégico no processo de ensino de
aprendizagem em uma perspectiva emancipatória (GABRIEL, 2008).

Incluir nos conteúdos escolares outras formas de se pensar e fazer ciência, outras

maneiras de leitura e sentido diante do mundo, e diferentes formas de vivenciar o cotidiano

são caminhos que se abrem para o professor e a escola que pretendem praticar um currículo

em ação multiculturalmente orientado.

Defendo que nesse caminho devemos buscar a sensibilidade de perceber as outras

culturas e seus sentidos respeitando a sua lógica original.

Como afirma Candau:


53

Diferentes culturas possuem linguagens, valores, símbolos e estilos de


comportamentos diferentes, que têm de ser compreendidos na sua
originalidade. As relações entre as culturas não podem ser analisadas numa
perspectiva hierarquizadora. (...) O que precisa ser mudado não é a cultura
do aluno, mas a cultura da escola, que é construída a partir de um único
modelo cultural, o hegemônico, apresentando um caráter monocultural
(CANDAU, 2002, p. 112).

Um dos caminhos que o Projeto Sagrada Natureza percorreu foi o de promover ações

que escapassem à abordagem unicamente folclórica dos povos indígenas e da mitologia

iorubá. Procurei inserir essas contribuições como conteúdo a ser estudado reflexivamente

pelos alunos. Considero os saberes indígenas e africanos de origem iorubá como

possibilidades objetivas de se pensar o mundo e a ciência.


54

Figura 2 - Coreografia dos Orixás: Abertura do Seminário de Culturas Afrobrasileira


e Indígena promovido pela Fundação Municipal de Educação – 2008

Fonte: acervo pessoal


55

2.2 AS OFICINAS: NO XINGU, OXÓSSI REINA!

A árvore não é uma impressão, nenhum jogo de minha imaginação, nenhum


aspecto emocional, ela me confronta corporalmente e tem que lidar comigo
ou Eu preciso lidar com ela – apenas diferentemente. Não deveríamos tentar
diluir que o significado da relação é a reciprocidade.

(BUBER, 1996, p. 58)

Escolhemos como temática o Parque Indígena do Xingu, por sua importância na

trajetória histórica dos povos indígenas e por ser a nossa maior reserva, contendo, por isso, em

seu território, diversas etnias.

Através do Parque Indígena do Xingu, apresentamos aos alunos a diversidade de

povos indígenas no Brasil.

Além disso, o rio Xingu é um símbolo da diversidade biológica e cultural brasileira.

Ao longo de seus 2,7 mil quilômetros, ele corta o nordeste do Mato Grosso e atravessa o Pará

até desembocar no rio Amazonas, formando uma bacia hidrográfica de 51,1 milhões de

hectares que abriga trechos ainda preservados do Cerrado, da Floresta Amazônica e áreas de

transição (Campos e Florestas de Várzea).

O Parque Nacional do Xingu foi criado pelo Decreto nº 50.455, de 14/04/1961,

assinado pelo presidente Jânio Quadros, quando sua área correspondia a apenas um quarto da

superfície inicialmente proposta. O Parque foi regulamentado pelo Decreto nº 51.084, de

31/07/1961; ajustes foram feitos pelos Decretos nº 63.082, de 6/08/1968, e nº 68.909, de

13/07/1971, tendo sido finalmente feita a demarcação de seu perímetro atual em 1978.

A categoria híbrida de “Parque Nacional” deveu-se ao duplo propósito de proteção

ambiental e das populações indígenas que orientou sua criação, estando a área subordinada

tanto ao órgão indigenista oficial quanto ao órgão ambiental. Foi apenas com a criação da
56

Funai (em 1967, substituindo o SPI – Serviço de Proteção aos Índios) que o “Parque

Nacional” passou a ser designado “Parque Indígena”, voltando-se então, primordialmente,

para a proteção da sociodiversidade nativa.

Reunimos, então, alguns professores que participaram de atividades relacionadas ao

Projeto, enriquecendo em suas aulas a temática proposta.

Nas oficinas do Projeto, os alunos aprofundavam seus estudos sobre os povos

indígenas, especialmente: os Kuikuro (maior população no Alto Xingu); os Xavante (que

habitam a zona central do cerrado brasileiro) e os Guarani (Mbya, Ñandeva e Kaiowa). Os

alunos também participavam de sessões de contações de história e leitura de mitos e contos

indígenas relacionados à fauna, principalmente relacionados à onça-pintada e contos e mitos

de origem iorubana relacionados a Oxóssi.

No percurso dessas atividades, enfrentamos outros desafios, quase todos relacionados

à pertinência de se contemplar a mitologia dos orixás na escola. O aspecto religioso ganhou

uma relevância que não esperávamos, mas neste momento se apresentava a principal

motivação para a reflexão e pesquisa. O que incomoda é o aspecto religioso ou a forma

equivocada que percebemos ao longo da história. A religiosidade iorubana deve ser vista

como expressão do maléfico, do desqualificado e daquilo que deve, sim, ser apagado de nossa

cultura, ou pelo menos ter expressão apenas folclórica e muitas vezes caricatural? Portanto, o

que nos mobilizou foi tentar entender a motivação religiosa presente nestas críticas e,

consequentemente, o peso das subjetividades que influenciam o cotidiano da escola e a

reflexão e prática dos currículos.

Esse Projeto foi desenvolvido até o final de 2009, na E.M. Levi Carneiro, quando

houve o convite para eu ingressar no Núcleo de Ações Integradas da FME/Niterói, onde o

Projeto se transformou em oficinas que percorreram outras escolas e dialogou com outros
57

profissionais da educação. O título dado a essas oficinas e que era divulgado nas escolas foi:

“No Xingu, Oxóssi reina!”

O título dado ao Projeto, agora em forma de oficinas nas unidades escolares, foi

inspirado na proposta que o Projeto defende que é a de que, nas reservas indígenas, o conceito

de sustentabilidade ambiental está presente e pode servir de orientação para as ações

ambientais e apresenta a possibilidade de interpretar o encontro de culturas que estão na base

da sociedade brasileira, que lutam por reconhecimento e que apresentam afinidade em suas

mitologias, nas quais a natureza ganha sua outridade.

Para os povos indígenas e na mitologia iorubá, a natureza é vista como o Outro. Ao

contrário da tradição científica ocidental, que fundamenta o ensino das ciências em nossas

escolas, em que a natureza é tratada como objeto, como um “isso” (GRÜN, 2003).

O casamento entre o céu e a terra, assim como o círculo sagrado dos orixás que

promove a união do Orum (céu/orixás) e do Aiê (terra/humanos), parte do princípio de que a

natureza guarda sua outridade e que esta deve ser reconhecida mediante uma relação em que a

natureza é parte fundadora da constituição dos seres e se constitui ela própria em um SER que

atua na tribo, na aldeia e na comunidade.

Para Grün:

A natureza é o Outro que se dirige a nós. A voz do Outro sempre constitui o


campo da compreensão hermenêutica. A linguagem viva do diálogo é que
proporciona a compreensão do Outro. Em toda experiência hermenêutica
existe sempre um potencial para ser outro que repousa não só no consenso,
mas também no respeito pela diferença e pelo Outro. (...) Qualquer tentativa
de interpretar a natureza, a partir da vontade de dominá-la, não é considerada
uma interpretação, uma vez que para a interpretação ocorrer é necessário que
o significado do Outro possa permanecer como autoapresentação, pois ditar
o significado da natureza para predição e controle não é um ato de
compreensão. (GRÜN, 2003, p. 179)
58

2.2.1 A onça-pintada e a cosmologia dos indígenas no Brasil

Os Guarani contam que o processo de criação do mundo teve início com


Ñane Ramõi Jusu Papa ou “Nosso Grande Avô Eterno”, que se constituiu a si
próprio do Jasuka, uma substância originária, vital e com qualidades
criadoras. Foi quem criou os outros seres divinos e sua esposa, Ñande Jari ou
“Nossa Avó”, que foi alçada do centro de seu jeguaka (espécie de diadema
que perpassa, como ornamento, testa e cabeça), o adorno ritual. Criou
também a terra que então tinha o formato de uma rodela, estendendo-a até a
forma atual; levantou também o céu e as matas.
Viveu sobre a terra por pouco tempo, antes que fosse ocupada pelos homens,
deixando-a, sem morrer, por um desentendimento com a mulher. Tomado de
profunda raiva causada por ciúmes, quase chegou a destruir sua própria
criação que foi a terra, sendo impedido, contudo, por Ñande Jari com a
entoação do primeiro canto sagrado realizado sobre a terra, tomando como
acompanhamento o takuapu: instrumento feminino, feito de taquara, com
aproximadamente 1,10m, que é golpeado no solo produzindo um som surdo
que acompanha os Mbaraka masculinos, espécie de chocalho de cabaça e
sementes específicas.
O filho de Ñane Ramõi, isto é, Ñande Ru Paven (“Nosso Pai de Todos”) e
sua esposa Ñande Sy (“Nossa Mãe”) ficaram responsáveis pela divisão
política da terra e o assentamento dos diferentes povos em seus respectivos
territórios, criando montanhas para delimitar o território guarani. Ñande Ru
Paven roubou o fogo dos corvos e o entregou aos homens; criou a flauta
sagrada (mimby apyka) e o tabaco (petÿ) para os rituais e foi o primeiro que
morreu na terra. Da mesma forma que seu pai, decidiu abandonar a terra em
função de um desentendimento com sua esposa que estava grávida de
gêmeos. O mito dos gêmeos é um dos mais contados e difundidos pela
América do Sul. Pa’i Kuara é neto de Ñane Ramõi. A ele, depois de muitas
aventuras na terra, foi atribuída a responsabilidade de cuidar do Sol, assim
como de seu irmão, Jacy, a quem caberia o cuidado da Lua.
Assim, Ñande Sy saiu em busca de seu marido e com freqüência perguntava
ao filho, que ainda não havia nascido, qual o caminho a ser seguido. Pa’i
Kuara chegou a indicar caminho errado para sua mãe que lhe havia negado
uma flor que queria para brincar durante o percurso. Ñande Sy chegou à
morada dos Jaguarete ou “os verdadeiramente selvagens” (que são as onças).
O avô destes seres ferozes tentou em vão salvar a vida da mulher. Seus
filhos, ao voltarem famintos pelo fracasso da caça, mataram Ñande Sy,
deixando vivos apenas os pequenos gêmeos. Estes, depois de grandes,
encontraram com o “papagaio do bom falar” (parakau ñe’ëngatu) que lhes
contou da morte da mãe. Resolveram vingá-la. Pa’i Kuara e seu irmão menor
Jasy prepararam armadilha na qual morreram todos os jaguarete, menos uma
que estava grávida, razão pela qual os jaguarete (onças) permaneceram no
mundo.
Pa'i Kuara e Jasy viveram inúmeras aventuras sobre a terra até que o
primeiro decidiu ir para os céus à procura de seu pai. Sua preparação para
isto consistiu em jejuar, dançar e rezar até sentir-se suficientemente leve de
modo a poder subir. Lançou então uma seqüência de flechas, umas sobre as
outras, até construir um caminho que o levou aos céus, onde entrou através
da abertura feita por suas flechas. Seu pai Ñande Ru Pavë o reconheceu
como filho autêntico, entregando-lhe o Sol para dele cuidar.
Os Paï se consideram descendentes diretos, como netos, de Pa’i Kuara, o ser
59

divino mais referido em seus mitos e a quem recorrem mais


sistematicamente em momentos de penúria ou doença (MURA, 2009, apud
CAMPOS, 2011, p. 162).

O mundo animal tem forte presença como referência cosmológica no universo

mitológico indígena. Trata-se de uma valorização e simbiose com a natureza. São inúmeros

mitos que contam a história de mitos fundadores de vários povos indígenas. Se Prometeu, na

mitologia grega, recebe o fogo de seu pai, Zeus, para transmiti-lo aos homens, os xamãs

também recebem de vários espíritos animais conhecimentos fundamentais para os seres

humanos. O deus criador dos Ashaninka lhes dá a coca; o jacaré está na origem do pequi, tão

importante para os Kuikuro; para os Huni Kuï, a aranha ensina a colher o algodão, e a jiboia é

quem ensina a fazer os desenhos tradicionais – os Kene – que vemos pintados nos corpos das

pessoas e feitos nas roupas. A cotia dá o amendoim para os Panará e o rato dá a semente do

milho.

De acordo com Campos (2011), o perspectivismo, concebido por Viveiros de Castro

(2002), é um conceito que qualifica um aspecto muito característico de várias, senão todas, as

cosmologias indígenas:

Trata-se da noção de que o mundo é povoado de muitas espécies e seres


dotados de consciência e de cultura, e, de que, cada uma dessas espécies vê a
si mesma e às demais como animais ou espíritos. Todo ser que ocupa
vicariamente o ponto de vista de referência, estando em posição de sujeito,
apreende-se sob a espécie de humanidade (CAMPOS, 2011, p. 149).

A onça-pintada aparece em vários relatos de mitos fundadores nas cosmologias

indígenas.

Para os Guarani, bem como para outros povos indígenas, o animal está intimamente

ligado aos gêmeos lendários criadores dos povos indígenas. A mãe desses personagens, que

os dá a luz em circunstâncias maravilhosas, vê-se constrangida a procurar refúgio em casa da


60

onça. A princípio é acolhida, mas, em seguida, as onças, que voltavam da caça famintas, pelo

fracasso, devoram-na. Os gêmeos são poupados e criados pelos felinos, mas quando

descobrem os detalhes da morte da mãe vingam-se, preparando uma armadilha, em que só

sobrevive uma onça que estava grávida.

Entre as tribos sul-americanas, a onça-pintada é reverenciada como a antiga “dona do

fogo”, que os homens roubaram, obrigando-a a comer apenas carne crua, o que a teria tornado

a grande caçadora que é.

Os Kayapós narram da seguinte forma o clássico mito do roubo do fogo da onça:

perdido na selva, um menino é ajudado pelo animal. Em meio às peripécias que se seguem, o

curumim avista um jatobá em chamas. De volta à aldeia, conta aos homens sobre o fogo e o

recolhem, tirando-o da onça. Desde então, os homens comem cozido e ela come cru. Assim, o

homem possui o fogo porque o roubou da onça (segundo algumas versões, ela o deu de boa

vontade). Por causa dessa perda, o animal teria se tornado canibal, devorador de carne crua e

inimigo dos homens (LEVY e MACHADO, 1999).

Claude Lévi-Strauss (1908-2009) dedicou-se ao estudo desses mitos; registro este

que podemos encontrar no clássico estudo da antropologia nas culturas sul-americanas, O cru

e o cozido (1964). Conforme o antropólogo, nessa mitologia a onça é indissociável da origem

do fogo e da culinária.

Em muitos povos indígenas, os xamãs, quando estão diante de uma doença difícil de

curar, invocam o espírito da onça para lutar contra o mal que ataca o corpo do indivíduo.

Araújo explica que:

Nas culturas indígenas, há uma rica e constante transformação de gente em


animais míticos, de animais míticos em deuses, de deuses em gente, e de
animais em gente. Os seres humanos são muitas vezes formados a partir do
“consórcio entre divindades e animais”. Devemos apreciar essas sofisticadas
elaborações, classificações e associações cosmológicas, como formas de
filosofia indígena. São conhecimentos e interpretações sobre o mundo tão
importantes quanto quaisquer outras formas religiosas e de conhecimento
61

tradicional (ARAÚJO, 2010, p. 129).

Relatamos alguns mitos que justificaram a escolha da onça-pintada. Além da sua

simbologia mítica e exuberante na cosmologia indígena, a onça-pintada4 é um dos animais

que marcam a identidade da fauna brasileira, assim como a degradação ambiental e os riscos

de extinção de animais.

Os professores de ciências engajados no Projeto foram convidados a incluir, em suas

aulas, o estudo das onças-pintadas no conteúdo relativo a seres vivos e zoologia,

aprofundando, dessa forma, o conhecimento sobre esse animal.

Nas oficinas, os alunos conheciam alguns mitos relacionados à onça-pintada e sua

relação com a cultura dos povos indígenas.

Nosso principal objetivo era apresentar aos alunos uma lógica diferente de percepção e

convívio com os animais. Contrastando com a caça indiscriminada, que leva os animais ao

risco de extinção, encontramos nos povos indígenas uma possibilidade de recriar esta relação,

que nos inspire para uma lógica ambiental pela sustentabilidade, mas, também, pelo respeito e

reconhecimento da outridade dos animais.

Como explica Campos:

No pensamento indígena a natureza é particular (depende do ponto de vista


do observador) e a cultura é única, humanos e não humanos são sujeitos
dessa cultura, ou seja, uma unidade espiritual e uma diversidade corporal
indígena – uma só cultura e múltiplas naturezas – um “multinaturalismo”. O
perspectivismo evoca a noção de “animismo”, onde as categorias
elementares de estruturação da vida social organizam as relações entre os
humanos e as espécies naturais – o animal é foco estratégico de objetivação
da natureza e de sua socialização. No modo anímico, a relação
natureza/cultura é interna ao mundo social, pois humanos e animais acham-
se imersos no mesmo seio sóciocósmico (CAMPOS, 2011, p.152).

4
No Brasil, ela já praticamente desapareceu da maior parte das regiões Nordeste, Sudeste e Sul. É classificada
pela IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza) e pelo IBAMA como espécie vulnerável e está
no apêndice I do CITES (Convenção de Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em
Perigo de Extinção)
62

Dessa forma, animais e outros seres do cosmo se encontram na qualidade de sujeito;

todos se assemelham.

Defendemos, então, uma intervenção através de ações pedagógicas, que discutam

questões ambientais, que caminham em direção ao reconhecimento da natureza e dos povos

indígenas como sujeitos que estabelecem entre si uma relação que deve ser contemplada nos

conteúdos escolares como mais uma alternativa para as discussões ambientais na escola.

Como afirma Grün:

Este encontro com a natureza, através de uma dialética da escuta, é sempre


um vir à tona da natureza na linguagem. É importante perceber que tal
processo é relevante para todos os contextos, sejam eles nos currículos das
escolas e universidades, ou contextos macropolíticos como as nações e os
estados políticos. Como Gadamer (1992) nos alerta, nós não precisamos
temer o significado da outridade, pois seu reconhecimento e aceitação é
precisamente o caminho para o reconhecimento e aceitação de nossos
próprios eus, e como meio de genuinamente encontrar o Outro na linguagem,
religião, arte, lei e história. E é isso que constitui o verdadeiro caminho em
direção a uma genuína comunalidade. Assim, a postura acima esboçada
constitui o centro do que Gadamer (1992) formulou como um princípio
político. Eu proponho que é precisamente para esta política e ética que uma
Educação Ambiental efetiva e radical terá que rumar, se nosso objetivo for
nos libertarmos dos constrangimentos causados pelo Cartesianismo (GRÜN,
2003, p. 184).

Em recente pesquisa, Lima (2011) demonstra como a cultura iorubá, base expoente

das religiões de matriz africana no Brasil, é um exemplo, de lógica diferente de tempo e

narrativa. Lima (2011), argumenta que na concepção africana, o espaço religioso é integrado à

outras esferas da vida, pois a vida se desenvolve num todo orgânico, e não em esferas

específicas e particularizadas. Essa forma de pensar marca distinções importantes frente ao

modelo ocidental:

Enquanto o colonizador marca seu tempo pelo relógio, pelo tempo


de produção, obedecendo a lógica do capital, os Terreiros marcavam o tempo
pelo sistema lunar. Esse jeito de contar o tempo é exatamente contrário ao do
colonizador, pois enquanto esse artificializa o tempo, valorizando-o ao
63

inventar o sistema produtivo, a comunidade de Terreiro concebe o tempo a


partir de um referencial cultural – os ciclos da lua, o que caracteriza bem a
relação dos últimos com a natureza. Ao invés de um tempo
instrumentalizado pela produção, temos um tempo sacralizado na natureza. A
natureza é o princípio (OLIVEIRA, 2003 apud LIMA, 2011, p. 26).

2.2.2 A mitologia dos orixás: Oxóssi, o caçador de uma flecha só e o conceito de


sustentabilidade ambiental

Todos os anos, para comemorar a colheita dos inhames,


o rei de Ifé oferecia aos súditos uma grande festa.
Naquele ano, a cerimônia transcorria normalmente,
quando um pássaro de grandes asas pousou no telhado do palácio.
O pássaro era monstruoso e aterrador.
O povo, assustado, perguntava sobre sua origem.
A ave fora enviada pelas feiticeiras,
a Iá Mi Oxorongá, nossas mães feiticeiras
ofendidas por não terem sido convidadas.
O pássaro ameaçava o desenrolar das comemorações,
o povo corria atemorizado.
E o rei chamou os melhores caçadores do reino para abater a ave grande.
De Idô, veio Oxotogum com suas vinte flechas.
De Morê, veio Oxotogi com suas quarenta flechas.
De Ilarê, veio Oxotadotá com suas cinquenta flechas.
Prometeram ao rei acabar com o perverso bicho,
ou perderiam suas próprias vidas.
Nada conseguiram, entretanto, os três odés.
Gastaram suas flechas e fracassaram.
Foram presos por ordem do rei.
Finalmente, de Irem, veio Oxotocanxoxô,
o caçador de uma só flecha.
Se fracassasse, seria executado
junto com os que o antecederam.
Temendo pela vida do filho,
A mãe do caçador foi ao babalaô
e ele recomendou à mãe desesperada
fazer um ebó que agradasse às feiticeiras.
A mãe de Oxotocanxoxô sacrificou então uma galinha.
Nesse momento, Oxotocanxoxô tomou o seu ofá, seu arco,
apontou atentamente e disparou sua única flecha.
E matou a terrível ave perniciosa.
O sacrifício havia sido aceito.
Nesse momento, Oxotocanxoxô tomou o seu ofá, seu arco,
apontou atentamente e disparou sua única flecha.
E matou a terrível ave perniciosa.
(...) As Iá Mi Oxorongá estavam apaziguadas.
O caçador recebeu honrarias e metade das riquezas do reino.
Os caçadores presos foram libertados
64

e todos festejaram.
Todos cantaram em louvor a Oxotocanxoxô.
O caçador ficou muito popular.
Cantavam em sua honra, chamando-o de Oxóssi,
que na língua do lugar que dizer “O Caçador Oxô é Popular”.
Desde então Oxóssi é o seu nome (PRANDI, 2001, p. 113 [51]).

Prossegue neste discurso, completando que:

Um certo dia, Orunmilá precisava de um pássaro raro


para fazer um feitiço de Oxum.
Ogum e Oxóssi saíram em busca da ave pela mata adentro,
nada encontrando por dias seguidos.
Uma manhã, porém, restando-lhes apenas um dia para o feitiço,
Oxóssi deparou com a ave e percebeu que só lhe restava uma única flecha.
Mirou com precisão e a atingiu.
Quando voltou para a aldeia,
Orunmilá estava encantado e agradecido com o feito do filho,
sua determinação e coragem.
Ofereceu-lhe a cidade de Queto para governar até sua morte,
fazendo dele o orixá da caça e das flechas (PRANDI, 2001, p. 116 [53]).
65

Figura 3 - Uma das gravuras presentes no mural para a apresentação do Projeto Sagrada
Natureza na Semana do Meio Ambiente, na E.M. Levi Carneiro/Junho de 2008

Fonte: acervo pessoal


66

Estudiosos estrangeiros e mais tarde iorubás letrados iniciaram, a partir do século XIX,

o resgate e a compilação do vasto patrimônio mítico iorubá, que, na ausência da escrita nessa

sociedade, foi transmitida oralmente. Na sociedade iorubá tradicional, é pelo mito que se

alcança o passado, é o mito que explica o presente. Os mitos dos orixás originalmente fazem

parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como

ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e

os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na

diáspora africana, os mitos iorubás reproduziram-se na América, especialmente cultivados

pelos seguidores das religiões dos orixás no Brasil e em Cuba.

Por iorubás passaram a ser designados, desde a metade do século XIX, diferentes

grupos que, na atual Nigéria, na República do Benin e no Togo, falam a mesma língua, ainda

que com variados dialetos e culturas semelhantes e se aglutinavam em torno de cidades-

estado, compartilhando muitas tradições, embora em alguns casos pudessem ser diferentes e

até mesmo conflitantes. Tidos como iorubás (e, no Brasil, também nagôs), sabiam-se oiós,

ifés, egbas, auoris, quetos, ijexás, ijebus, equitis, ondos, igbominas ou de outras nações. De

igual forma, também os falantes de quimbundo, os ambundos de Angola, compreendiam

vários grupos com dialetos e culturas diferenciados, entre os quais andongos, dembos,

hungos, quissamas, songos, libolos e bângalas (COSTA E SILVA, 2003).

Os primeiros mitos escritos apareceram já nas primeiras obras que trataram da religião

dos orixás na África no século XIX: os livros de padre Baudin, de 1884, e do coronel Ellis, de

1894, iniciando-se uma contribuição crescente, com destaque para a obra do mais importante

pesquisador atual da mitologia dos orixás na África – Ulii Beier (PRANDI, 2001).

Contemporâneo de Beier, Pierre Verger colheu vários mitos no Brasil e certamente foi

o maior divulgador da religião dos orixás. Roger Bastide (1945; 1961) e René Ribeiro (1978)

também colheram mitos em terreiros de candomblé na Bahia e em Pernambuco.


67

Cabe ressaltar a importância histórica do trabalho de Nina Rodrigues (1898), o

primeiro cientista brasileiro a se preocupar com a mitologia africana, e Artur Ramos (1935,

1940, 1952), que publicou o mito “Xangô deixa a velha Oba e encontra Oxum”, na revista

Kosmos, em 1904.

No entanto, Prandi (2001) considera que a mais rica fonte primária brasileira de mitos

é, certamente, o caderno escrito por Agenor Miranda Rocha5, cuja redação foi iniciada em

Salvador e concluída no Rio de Janeiro, em 1928:

Na década de 50, Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo, já então


mãe-de-santo do Axé Opô Afonjá de Salvador, teria emprestado a Pierre
Verger uma cópia do caderno, publicado cerca de trinta anos depois, em
edição bilíngue inglês-português, por Willfried F. Feuser e José Mariano
Carneiro da Cunha, com o título de Dílógún: Brazilian Tales of Yorùbá
Divination Discovered in Bahia by Pierre Verger (1982), com autoria
creditada a Mãe Agripina de Souza, que sucedeu Mãe Aninha na chefia de
seu terreiro do Rio de Janeiro e que era irmã-de-santo de Professor Agenor e
Mãe Senhora (PRANDI, 2001, p. 28).

Percebemos, portanto, que os mitos iorubás são patrimônio cultural da humanidade,

pois chegaram ao Brasil, na memória de africanos, que, escravizados, foram obrigados a

deixar sua terra natal. Tinha início, então, uma longa trajetória de luta pelo resgate da

identidade desses grupos, que com uma criatividade imensa recriaram seus mitos, dando

origem, dessa forma, ao candomblé, expressão religiosa marcada historicamente pela

discriminação e, consequentemente, pelo silenciamento.

Nos livros de história do ensino fundamental, as cruzadas, a atuação dos jesuítas, a

mitologia grega, o mundo islâmico são percorridos pelos alunos nas aulas de história sem

nenhum constrangimento, mas incluir a mitologia dos orixás no currículo escolar, na sala de

aula, causa uma tensão muito grande. Defendemos que talvez não seja por causa do aspecto

5
Foi iniciado no candomblé em Salvador, em 1912, aos cinco anos de idade, por Mãe Aninha Oba Bií, Ana
Eugênia dos Santos (1869-1938), filha-de-santo da Casa Branca do Engenho Velho e fundadora do terreiro Axé
Opô Afonjá.
68

religioso, presente nas mitologias, mas sim pelo fato de ser uma mitologia recriada pelos

afrodescendentes a partir de mitos transmitidos pelos antepassados e que ao longo da história

sofreram toda forma de discriminação. Afinal, a mitologia dos orixás foi recriada no Brasil,

dentro das senzalas, é uma cosmologia, que resistiu a séculos de marginalização e que, neste

momento que temos uma legislação que promove a cultura africana e afrodescendente na

escola, tornou-se “a pedra no sapato” para muitos. Como falar de cultura afro-brasileira e não

falar da mitologia dos orixás?

Silva nos ajuda a refletir sobre a relação entre currículo e representação racial quando

afirma que:

Em termos de representação racial, o texto curricular conserva, de forma


evidente, as marcas da herança colonial. O currículo é, sem dúvida, entre
outras coisas, um texto racial. A questão da raça e da etnia não é
simplesmente um “tema transversal”: ela é uma questão central de
conhecimento, poder e identidade (SILVA, 2010, p. 102).

Se consideramos que a diferença é um processo relacional – histórico e discursivo –

não podemos desconsiderar que o currículo e os livros didáticos quando não contemplam

determinadas temáticas, ou quando o fazem é de forma superficial, como a mitologia dos

orixás, reforçam a natureza exótica e/ou folclórica da história e cultura afrobrasileira, porque

reduzem a temática a uma questão de informação. As ações desenvolvidas no Projeto Sagrada

Natureza, através de suas oficinas, buscaram trazer essa temática como um conteúdo

curricular, no caso, a temática ambiental, e promoveram a seguinte pergunta: os mitos

indígenas e a mitologia iorubá guardam uma sabedoria e lógica próprias, que também foram

modificadas ao longo da história, mas que resistem e estão presentes na sociedade brasileira.

Sendo assim, por que não podem ganhar representação nos livros didáticos?

Como argumentam Munanga e Gomes:


69

Tanto a religiosidade negra como outras expressões religiosas devem ser


compreendidas como formas construídas, no interior da cultura, de
estabelecimento de elos com o Criador, com o que está além do que
costumamos considerar como mundo racional. Devem ser vistas como
“experiências religiosas” e não como mero “credo religioso”. Tomadas como
uma produção da humanidade, fruto das diversas formas de se relacionar
com a natureza, da busca de explicações para questões que afetam a vida de
todos e do modo como se estabelecem relações entre as pessoas e delas com
o mundo (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 140).

Entendemos que a mitologia dos orixás guarda em si um fundamento religioso, mas a

leitura e a apropriação desses mitos, em sala de aula e no conteúdo escolar, não é

necessariamente uma vivência religiosa, e, sim, uma aproximação cultural, crítica e reflexiva,

de uma expressão que está presente na sociedade brasileira e que grande parte da sociedade

brasileira desconhece.

Escolhemos o mito de Oxóssi para ilustrar uma temática relacionada ao meio ambiente

e uma aproximação com a cultura indígena.

Oxóssi é o provedor das comunidades. É com ele que a gente aprende que a caça deve

ocorrer para alimentar a sociedade e, assim, deve ter caráter sagrado, de manutenção da

humanidade, sem maus-tratos e sem carnificinas desnecessárias. Pela preservação das

florestas, o grande caçador trará sempre fartura e prosperidade para os lares daqueles que

respeitam a mãe natureza (BOTELHO, 2007).

Relacionamos a partir do seu mito, que o identifica como o caçador de uma flecha,

apenas o conceito de sustentabilidade ambiental.

Em algumas regiões do nordeste, o povo de santo reconhece o orixá na onça-pintada.

Em diversas representações de Oxóssi, a referência à onça-pintada está presente. Muito

provavelmente esta relação tenha nascido a partir de dois mitos que praticamente

desapareceram no Brasil e que nos remetem a Oxóssi: Orô, o temido espírito da floresta, de

rugido assustador, e Oquê, a montanha. Até os dias atuais, a saudação a Oxossi é Okê Aro.
70

Portanto, procuramos, nas oficinas, promover o encontro de duas tradições culturais

através de seus mitos e sempre na lógica da sustentabilidade ambiental: os povos indígenas e a

mitologia dos orixás.

Apresentamos para os alunos que a lógica que inspira o arco e a flecha dos índios está

presente na lógica do caçador de uma flecha só, que entra na mata em busca da sobrevivência

e que extrai da floresta o suficiente para a manutenção da vida na aldeia.

Campbell afirma que:

Aprende-se que ao turvar as águas dos rios estaremos maculando o ambiente


das yabás – orixás femininos – e como sabemos que os atributos de cada
orixá nos possibilitam uma vivência mais saudável e íntegra, vamos
assimilando valores de preservação e manejo sustentável, uma vez que
precisamos intervir na natureza, sem, contudo, destruí-la, porque somos
atingidos pela lição da unicidade essencial entre indivíduo e grupo
(CAMPBELL, 1997, p. 369).

Buscamos, assim, inserir a mitologia dos orixás, através do mito de Oxóssi, no

conteúdo escolar, discutindo a trajetória ambiental que marca a história de nosso país.

Consideramos que a mitologia dos orixás pode, sim, ser uma alternativa de abordagem para

promover uma nova ética e manejo sustentável da natureza.

O PCN – tema transversal, Meio Ambiente (1997), aponta também para uma nova

ética entre homem e natureza:

Faz parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o ser humano não é
o centro da natureza, e deveria se comportar não como seu dono, mas,
percebendo-se como parte dela, resgatar a noção de sua sacralidade,
respeitada e celebrada por diversas culturas tradicionais antigas e
contemporâneas.
(...)
Algumas das ideias fundamentais para a estruturação do conhecimento a
partir da Idade Moderna desvinculam-no de ideais ético-filosóficos,
afirmando e buscando a objetividade científica. Com isso os seres vivos e os
elementos da natureza foram destituídos de qualquer outro tipo de valor
místico que podem ter tido em diversos momentos da história em várias
71

culturas. Tal concepção se estruturou dessa forma no contexto de


possibilidades e necessidades criadas no interior de um novo ordenamento
da produção econômica e organização política da sociedade. Assim, acabou
contribuindo para legitimar a manipulação irrestrita da natureza... (MEC,
1997, p. 179).

Esta ética de perceber a sacralidade da natureza e seu potencial para que nossos alunos

reconheçam como outras culturas elaboram seus sentidos e lógicas, promovendo, dessa forma,

alternativas que podem inspirar uma mudança fundamental e entender que todas as culturas

partilham do mesmo espaço natural, que é o planeta Terra e que podemos conceber a partir de

uma ética do cuidado, relacionada ao Outro, seja ele, um indivíduo, um grupo ou a natureza.

O Projeto Sagrada Natureza, através das oficinas “No Xingu, Oxóssi reina!”, buscou

ilustrar uma possibilidade de dialogar com as demais disciplinas e com a lógica hegemônica,

que persiste em nossas escolas e deixa à margem saberes presentes nas culturas que não são

consideradas nos currículos. As atividades desenvolvidas pelo Projeto e a concepção dele

estão de acordo com o que afirmam e defendem Canen e Moreira:

Considerar as vozes autorizadas a falar nas escolas e nas salas de aula


implica, então, considerar os processos que discriminam e abafam tantas
outras. Implica perceber os múltiplos silêncios que ocorrem desde a
concepção de currículos até sua tradução por professores e estudantes no
âmbito das práticas pedagógicas. Implica analisar que saberes e experiências
são incorporados e valorizados nos currículos. Implica verificar que
identidades e diferenças se está procurando produzir e que identidades se
deveria procurar produzir. Implica, em síntese, compreender razões e efeitos
das ênfases e omissões referentes a saberes, significados e identidades.
(CANEN e MOREIRA, 2001, p. 8)

A nossa formação histórica está marcada pela eliminação física e escravização do

“outro”, indígenas e negros, tiveram sua alteridade negadas violentamente. Esta negação se

processa também no plano das representações e no imaginário social. Neste sentido, um

currículo multicultural crítico, que desnaturalize as diferenças e reconheça a trajetória


72

histórica que legitimou sua construção, nos coloca diante destes sujeitos históricos que foram

massacrados. No entanto, souberam resistir e continuam na atualidade afirmando suas

identidades, produzindo significados e representações que enriquecem o mundo com novas

possibilidades de tradução de sentidos em várias esferas da trajetória humana. O Projeto

Sagrada Natureza, apesar de não abraçar uma trajetória etnográfica, procurou resgatar parte

destes sentidos, significados e representações presentes na cultura destes povos.


73

CAPÍTULO 3
A PESQUISA-AÇÃO NA ATUAÇÃO DO NÚCLEO DE AÇÕES INTEGRADAS

3.1 MULTICULTURALISMO E CURRÍCULO: OS DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO


DO DIÁLOGO

No decorrer desta pesquisa não foram poucas as afirmações de que todo currículo é

potencialmente multicultural, assim como a escola e a sociedade. Diante disso, qual é a

necessidade de se considerar o multiculturalismo como um referencial teórico para pensar e

orientar os estudos curriculares? Será necessário defender um currículo multicultural, diante

da característica plural da sociedade?

Diante destas questões, nós pesquisadores dos estudos de currículo, inseridos no

referencial teórico multicultural, argumentamos e buscamos promover o diálogo, menos

comprometidos com a verdade inexorável, e mais estimulados pela possibilidade de contribuir

com mais uma forma de olhar a escola, o currículo e a sociedade, dos quais esses mesmos

currículos fazem parte.

Partimos então, não de respostas, mas de novas perguntas. Se reconhecemos a

sociedade como multicultural, entendida aqui, como um mosaico de culturas, que se

encontram, poderíamos dizer mesmo, que se esbarram, no fazer da história, constituindo desta

forma a diversidade cultural, que reconhecemos desde a Antiguidade; então, por que nos

livros de história, por exemplo, encontramos, tão pouco, ou quase nada, a respeito das culturas

indígenas? Por que a contribuição do negro na história do Brasil ganha destaque na escravidão

e quase nada se diz sobre as formas de ciência e interpretações do sentido do universo, tão

bem representado na mitologia iorubá? Estes são apenas alguns exemplos de como devemos

cuidar do conceito de currículo multicultural, fazendo a distinção do termo multiculturalismo,


74

como “encontro” de culturas ou o reconhecimento da diversidade cultural e da necessidade de

lutas pela legitimação da expressão plena das identidades.

Segundo Gonçalves e Silva:

O multiculturalismo não surgiu no campo da educação. Foi e é expressão de


reivindicações, contemplado por políticas com diferentes enfoques e
abrangências, que invadiram o campo educacional. Na educação, o currículo
multicultural não significa necessariamente a inclusão de assuntos e tópicos
apenas ligados a povos, culturas e grupos. Trata-se de uma visão em que
nossos próprios alunos sejam percebidos em sua diversidade, em que não
desejemos trabalhar com turmas homogêneas, mas sim que valorizemos a
pluralidade de habilidades e competências dos alunos, a diversidade de
sotaques e dialetos, a multiplicidade de saberes e das identidades étnicas,
raciais, culturais, linguísticas, religiosas e outras (GONÇALVES E SILVA,
1998, p. 67).

Quando estamos comprometidos com um currículo multicultural devemos reconhecer

que a história escolar de cada um de nós e de nossos alunos, foi e é vivida diante de muitos

silenciamentos, os quais foram naturalizados pelo tempo e que na perspectiva multicultural,

que ganha terreno nas discussões sobre currículo, convida a dar voz a estas expressões

identitárias.

E os professores, como lidam com esta nova perspectiva? E os pedagogos e direção de

escolas podem garantir a legitimidade de ações que desafiam preconceitos, mas também

tensionam subjetividades em seus valores éticos e culturais? Quem determina o que deve ser

ensinado em uma determinada comunidade?

Canen sugere um caminho para o início do debate:

Em uma perspectiva multicultural, não devemos recair nem em uma


centralização excessiva do currículo, homogeneizando-o, nem em uma
relativização exagerada, que leve a preconizar currículos locais
exclusivamente. O diálogo entre a diversidade cultural e a regulação é
possível, sendo que as propostas curriculares podem ser ressignificadas em
cada local, em cada estado, em cada escola, a partir de diretrizes comuns
(CANEN, 2009, p. 89).
75

O Projeto Sagrada Natureza, através da realização das suas oficinas introduziu-se na

perspectiva multicultural quando apresentou aos alunos e aos professores uma possibilidade

de abordagem e inserção dos saberes da floresta e da mitologia dos orixás, a partir da lógica

própria destes grupos (mesmo reconhecendo os limites do conhecimento desta professora

educada no universo do homem branco e eurocêntrico) e destacando que tais saberes e

sentidos dados ao movimento do universo e da trajetória humana nos enriquecem de

significados e de novas possibilidades de interpretar e sentir o mundo. O Projeto contribuiu,

também, para nos abrir a sensibilidade às demais diversidades de gênero, de orientação

sexual, religiosas, entre outras, presentes em nosso cotidiano.

O multiculturalismo pretende contribuir para uma escola que valorize através das

ações pedagógicas, a diversidade cultural e fomente as habilidades cidadãs de toda

comunidade escolar na lógica da solidariedade e da sensibilidade em relação à originalidade

que cada indivíduo guarda em si e deve ter o direito pleno de expressar.

Como argumenta Canen:

Não procuramos fornecer receitas – mesmo porque o cerne do


multiculturalismo é o questionamento sobre verdades únicas e absolutas,
narrativas mestras – mas sim buscamos levantar questões e reflexões sobre
possíveis olhares teóricos e caminhos de pesquisa para tentar viabilizar uma
educação que questione o modelo único, branco, masculino, heterossexual e
ocidental que embasa discursos curriculares monoculturais, dominantes, se,
no entanto, cair em dogmatismos e radicalismos que continuem a separar eu-
outro, normalidade-diferença (CANEN, 2007, p. 92).

No decorrer desta pesquisa, em uma das formações continuadas, um professor

afirmou que reconhecia o valor das temáticas multiculturais e que defendia a inserção no

currículo dessas temáticas. No entanto, afirmou que só faria a abordagem desses assuntos em

sala de aula se eles estivessem nos livros didáticos. O professor argumentou que se
76

determinado assunto, como a mitologia dos orixás, não estivesse no livro didático, como ele

poderia justificar com a família dos alunos a abordagem deste assunto em sala de aula.

Fica claro, para nós pesquisadores, que muitos colegas professores não se percebem

como intelectuais reflexivos de sua prática e atuantes efetivamente no processo de crítica,

transformação e emancipação na educação de seus alunos, na construção de uma escola

pública onde todos se sintam potencialmente representados. Os professores subordinados ao

cotidiano de salas de aulas lotadas, baixos salários e carentes de formações continuadas no

decorrer de sua trajetória, limitam-se na maioria das vezes a reproduzir o que os livros

didáticos apresentam como conteúdo a ser ensinado. Quando as temáticas multiculturais

surgem elas estão inseridas em sábados letivos, que muitas vezes se limitam à confecção de

murais, apresentação de danças e exibição de filmes que se perdem nas semanas seguintes

porque a abordagem se limita a estes espaços isolados no ano letivo.

Não podemos desqualificar as tentativas de introdução das temáticas relacionadas a

diversidade que são inicialmente apresentadas em estratégias que reconhecemos nas

perspectivas do multiculturalismo folclórico. Muitas das vezes, elas são estratégias que os

professores encontram para apresentar a comunidade escolar a temática.

Na E.M. Levi Carneiro, em 2007, o Projeto Sagrada Natureza foi apresentado a partir

de atividades desenvolvidas em um sábado letivo dedicado ao Meio Ambiente. Preparamos

várias salas temáticas, com murais ricos em gravuras e desenhos feitos pelos próprios alunos

que representavam os orixás e desenhos de alguns animais considerados sagrados pelos povos

indígenas com destaque para a onça-pintada, assim como apresentamos uma coreografia de

saudação aos orixás na quadra da escola e organizamos sessões de contação de histórias sobre

a criação do mundo a partir de alguns mitos indígenas e iorubanos.

Como afirma Canen:


77

Nada impede que o professor multiculturalmente comprometido faça uso de


estratégias plurais em suas práticas, desde aquelas vinculadas a perspectivas
mais folclóricas àquelas associadas a perspectivas mais críticas do
multiculturalismo. Nosso argumento é que, informando tais opções, deve
haver um projeto mais amplo de multiculturalismo, no qual o professor
perceba os pressupostos e implicações deste tipo de trabalho e as finalidades
mais amplas que deseja alcançar. (CANEN, 2007, p. 102)

Desta forma, sugerimos que o enfoque multicultural deve inspirar ações concretas no

“chão da escola”. Para isso, o corpo docente deve ser estimulado a desenvolver atividades em

perspectivas multiculturais, assim como devem ser incentivados a percorrerem a trajetória

como professores comprometidos com a pesquisa, refletindo constantemente sobre sua

prática, estabelecendo desta forma alternativas de vivências curriculares que ampliem o

diálogo e valorizem as identidades presentes na escola.

O compromisso com a liberdade, com o diálogo e o dialógico, com o reconhecimento

das identidades dos educandos, expressos em sua cultura e realidade, são traços fundamentais

da pedagogia de Paulo Freire (1970). O multiculturalismo e seu enfoque na educação são

tributários no Brasil, das ideias de Paulo Freire no campo da educação popular. Pensar

multiculturalmente pressupõe sempre a disposição para o diálogo, que pode se dar entre

professores e alunos, entre os professores e seus pares, entre as disciplinas, entre escola e

instituição central (no caso das redes públicas de ensino), entre escola e comunidade escolar,

enfim, entres todas as instâncias possíveis. Pensar e fazer uma educação multicultural é

reconhecer seu horizonte utópico; é uma possibilidade de trazermos para o centro das falas

que são ouvidas as identidades oprimidas.

Diante disto, reconhecemos no multiculturalismo um enfoque teórico que amplia e

fundamenta as ações pedagógicas, o pensar a práxis dos educadores em uma lógica diferente

daquela que produziu tantos silenciamentos. Pensar a educação exige de nós o desafio de

reconhecer que a lógica da produção do conhecimento, da legitimação dos saberes que devem
78

entrar na sala de aula, e dos sentidos da vida diversos que encontramos no mundo, não estão

historicamente presentes no discurso que é aceito, não são as vozes ouvidas. Portanto, o

multiculturalismo amplia as possibilidades de subversão dos discursos hegemônicos e

caminha para a luta por um currículo que “inscreva narrativas que contem histórias de novos

sujeitos e novas histórias que desinstalem as velhas identidades de suas privilegiadas posições

de referência e normalidade” (COSTA, 2002, p. 113).

O Projeto Sagrada Natureza criou espaços para a discussão de uma nova forma de

perceber o mundo e dar sentido a ele. As tensões que nasceram nesta trajetória contribuíram

nos espaços onde as oficinas ocorreram para vários debates, dentre estes o mais caloroso e

recorrente foi o da presença da religiosidade na escola. Tal debate, e o consequente

desconforto referente à religiosidade ioruba, diz muito sobre o preconceito e marginalização

não apenas desta manifestação religiosa, mas também dos saberes que ela guarda. A medicina

dos Xamãs indígenas e as ervas curadoras de Ossain não participam da lógica ocidental para a

construção do conhecimento e da ciência. Ora, se, nas escolas, pensar a educação e o currículo

ainda sofre uma influência importante do mundo ocidental anglo-saxão e europeu, e os

professores foram formados nesta lógica aliada ao exótico e ao espaço periférico que estas

culturas foram colocadas, não há incentivo à inclusão destas temáticas; elas são vozes

dissonantes, rebeldes e subversivas, elas desestabilizam a produção do conhecimento

científico e a racionalidade ocidental aos quais estamos subordinados.

No horizonte utópico, em que o multiculturalismo acena com novas alternativas de se

pensar a ciência, a produção do conhecimento e os sentidos do mundo, o que vislumbramos é

a possibilidade de resistência e subversão deste mundo ordenado em verdades irrevogáveis e

caminhamos para um olhar mais amplo, para um conhecimento mais holístico, onde as

dicotomias produzidas pelo conhecimento dão lugar a totalidades cósmicas, mais articuladas,

muito mais amplas, em multiplicidade de tempos (SANTOS, 2007).


79

Professores engajados em uma perspectiva multicultural são a possibilidade concreta

de resgatar saberes, de dar voz a identidades silenciadas, de possibilitar o exercício da

representação no mundo dos sujeitos e pensar coletivamente em um mundo mais solidário ao

“outro” e fomentar assim a trajetória de uma escola pública comprometida com a

representação coletiva dos cidadãos, em sua originalidade, pensar em uma escola pública,

democrática, mas onde a voz das minorias tenham espaço de escuta e sejam legitimadas por

um projeto político-pedagógico que caminhe rumo a formação de cidadanias abertas à

diversidade presente no mundo e garanta a todos, sem distinção, o direito à livre expressão.

Como afirma Costa:

Para ter direito a existir, sem ser idêntico [ao colonizador], é preciso
encontrar as brechas, praticando a política cultural da representação. É
preciso encher o mundo de histórias que falem sobre as diferenças, que
descrevam infinitas posições espaço-temporais de seres no mundo. É preciso
colocar estas histórias no currículo e fazer com que elas produzam seus
efeitos (COSTA, 1998, p. 40).

Neste sentido, buscamos a conversa com a equipe de articulação pedagógica.

3.2 CONVERSA COM A EQUIPE DE ARTICULAÇÃO PEDAGÓGICA SOBRE A


MITOLOGIA DOS ORIXÁS E SUA INSERÇÃO NO CURRÍCULO

Estabelecer uma relação de confiança e parceria na reflexão da temática proposta foi

um dos pressupostos fundamentais que adotamos nesta trajetória de pesquisa. Diante disto,

fundamentar e apostar no diálogo com a Equipe de Articulação Pedagógica composta pelos

diretores e pedagogos (supervisão e orientação escolar) foi o primeiro esforço para o início

das oficinas nas escolas.


80

Em todas as escolas, a proposta foi muito bem recebida e a disposição dos pedagogos

e diretores, em apoiar a discussão e o desenvolvimento das oficinas com alunos e professores,

facilitou muito a pesquisa.

Desde o ano de 2010, quando iniciei esta pesquisa já como desdobramento do projeto

inicialmente desenvolvido na E.M. Levi Carneiro, era salientado que a questão religiosa era

apresentada como dominante desafio a ser vencido e entendido. No entanto, em nenhuma

escola houve uma resistência ao desenvolvimento da proposta.

Cabe registrar que nesta trajetória no Núcleo de Ações Integradas tive a oportunidade

de conhecer e conversar com equipes de articulação pedagógica de outras unidades escolares

da rede municipal de educação de Niterói e constatei algumas resistências para o

desenvolvimento da proposta. Em duas unidades escolares: uma UMEI (unidade de educação

infantil) e uma UE de ensino fundamental (1º e 2º ciclos), ficou bastante claro a objeção das

diretoras em desenvolver o Projeto Sagrada Natureza. Nos dois casos, procurei conversar com

as demais equipes6 que faziam o acompanhamento destas escolas e ficou claro que a gestão,

era mais centralizada e tinham um comprometimento religioso relevante. Porém, foram

bastante pontuais estas demonstrações de resistência, pois, na maioria das vezes, o apoio foi

muito grande.

Em uma das escolas em que o Projeto foi desenvolvido, tive a oportunidade de realizar

uma formação continuada com os professores desta unidade escolar. Fui muito bem recebida

e o que me chamou a atenção é que a diretora é evangélica e demonstrou plena consciência de

que aquele é um universo multicultural e que a garantia de uma escola pública e democrática

só é possível com uma gestão de escola que saiba dialogar com a subjetividade presente nos

valores e escolhas, com o reconhecimento de que existem valores e escolhas diferentes, e que

6
A Fundação Municipal de Educação de Niterói é dividida em sete polos. Cada um deles recebe visitas regulares
de membros das equipes que trabalham na sede com o objetivo de acompanhar e dar apoio pedagógico para as
UMEIs e UEs.
81

isto deve ser garantido. Nesta escola, um dos professores é do candomblé, tem uma longa

trajetória na escola e é respeitado em sua crença.

Portanto não é a crença em uma determinada moral ou religião que influencia a

decisão de não se dar voz às demais identidades religiosas; o que determina esta escolha é a

incapacidade de se reconhecer a escola como uma organização multicultural, imersa em

múltiplas subjetividades e com infinitas possibilidades de ações pedagógicas que enriquecem

o currículo escolar.

Como afirmam Candau e Moreira:

Talvez seja possível afirmar que estamos imersos em uma cultura da


discriminação, na qual a demarcação entre “nós e “os outros” é uma prática
social permanente que se manifesta pelo não reconhecimento dos que
consideramos não somente diferentes, mas, em muitos casos, “inferiores”,
por diferentes características identitárias e comportamentos (CANDAU e
MOREIRA, 2003, p. 163).

No início da pesquisa era necessário, então, estabelecer critérios e preparar o campo

para a ação.

Procurei a equipe de articulação pedagógica, sobretudo as pedagogas, e apresentei a

proposta. Assim, em algumas dessas escolas, eu me sentia quase como “professora da casa”, e

isso ajudou no relacionamento com os colegas professores e na observação reflexiva que

desenvolvi desde o início. Acredito que esse processo contribuiu muito para a pesquisa, no

sentido de que as pedagogas se sentiam muito à vontade e tranquilas para apresentar seus

questionamentos. Este dado é importante porque eu fazia parte da equipe institucional, e

vivemos nesses dois últimos anos, sobretudo 2011, paralisações e manifestações sindicais que

culminaram com uma greve de três meses e muito desgaste na comunicação entre algumas

UEs e a Fundação Municipal de Educação de Niterói. Cabe destacar que das cinco escolas

participantes desta pesquisa, duas delas tinham um comando de greve muito forte e em
82

nenhum momento senti qualquer represália ou resistência ao trabalho desenvolvido. As

dificuldades que surgiram e que limitaram algumas ações inicialmente propostas pela

pesquisa foram decorrentes da suspensão das aulas, já que nessas escolas muitos professores

aderiram ao movimento grevista.

Nas conversas informais que tive neste primeiro momento a adesão foi total, mas

sempre fui alertada do enorme contingente de alunos evangélicos e que isto poderia ser um

obstáculo, mas sempre me incentivaram a prosseguir com a ação que seria a pesquisa aqui

apresentada.

Em todas as oportunidades de diálogo e ação, argumentei que as situações de

resistências, críticas e preconceitos deveriam ser assimiladas como incentivo para ações

reflexivas e emancipatórias. As situações de discriminação são cotidianas no espaço escolar,

dentro da comunidade escolar; portanto, é fundamental que estas situações não sejam veladas

e sim que sejam a pauta das discussões de planejamento, norteadoras dos conteúdos e

abordagens em sala de aula. Um diálogo multicultural deve ser desejado e promovido, porque

só assim podemos fortalecer uma trajetória de escola pública com base nas múltiplas

identidades presentes na sociedade e fomentar cada vez mais a nossa capacidade de dialogar

com o diferente, quem, por vezes, calamos em nós mesmos.

A possibilidade de se promover um currículo multiculturalmente orientado se dá na

nossa capacidade e muitas vezes coragem de reconhecer as situações de preconceito, e nos

comprometer no diálogo com nossos colegas educadores e nas reuniões de pais. Enfim,

assumirmos o discurso multicultural sem nos limitar à dimensão romântica da tolerância e da

pluralidade cultural e encararmos os desafios e resistências que o multiculturalismo apresenta.

Como argumentam Oliveira, Canen e Franco:

A atribuição de conteúdos concretos a esses valores não pode ser entendida


como processo monológico em que o professor deposita afirmações
83

categóricas no espírito do aluno. Ao contrário, exige a instauração de


processos dialógicos em que os atores da prática pedagógica agem uns sobre
os outros e, dessa perspectiva, ainda que não cheguem a um consenso, se
modificam mutuamente. Essa é a riqueza maior de toda prática educativa, a
qual naturalmente requer a substituição dos procedimentos
homogeneizadores, antidialógicos, por outros mais alinhados ao espírito do
pluralismo – que pressupõe debate, polêmica, confronto entre diferentes
visões de mundo – e não à tolerância condescendente para com o outro, a
qual acaba por manter educadores e educandos na redoma de vidro das
próprias intolerâncias (OLIVEIRA, CANEN e FRANCO, 2000, p. 124).

O currículo reflete os posicionamentos hegemônicos ou que estejam fortalecidos em

uma determinada conjuntura. É possível perceber, também, que o professor em sala de aula

pode ser o agente dinamizador de um processo de crítica e reinvenção neste processo;

portanto, o currículo está em constante tensão pelas relações de poder estabelecidas na

sociedade.

No decorrer da realização das oficinas, foram percebidos vários juízos de valor

construídos historicamente; sendo assim, as atividades pretenderam contribuir para a

desconstrução destes valores, tendo como base, por exemplo, que o conceito de diferença é

reflexo da percepção do que é ser diferente para um determinado grupo, ou seja, as oficinas

foram um espaço onde se buscou a reflexão de que a produção de conhecimento responde às

demandas presentes nas sociedades diversas espalhadas pelo mundo, e que, portanto, uma

teoria que explique e contemple a diversidade não é o mais importante, e sim o entendimento

de que o conhecimento se produz de inúmeras formas, que os conceitos são produzidos por

uma determinada sociedade, que guarda em si a sua especificidade, sendo, então, única e

original.

O multiculturalismo desenvolvido pelo Projeto Sagrada Natureza avançou em relação

ao folclorismo e tensionou o diálogo, desafiando preconceitos, como propõe o

multiculturalismo crítico. No entanto, o desenvolvimento do trabalho também permitiu a

constatação, através da pesquisa e do estudo das identidades afro-indígenas, a necessidade de


84

se reconhecer as diferenças presentes também nestes grupos étnicos, por exemplo, em sua

religiosidade. A complexidade das interpretações dos símbolos, mitos e rituais é muito

grande. Como denominou Santos (2001): “as diferenças dentro das diferenças”.

Os referenciais curriculares estabelecidos pelo Sistema Municipal de Ensino de Niterói

tem como fundamento o multiculturalismo na sua visão de cidadania. As portarias FME

132/2008, 125/2008 e 569/2009 consolidaram esta proposta.

O processo de elaboração caracterizou-se pelas seguintes etapas: em 2009, a

sistematização do material produzido, identificando o foco teórico, aprofundando sua

consistência e delineando, de forma inicial, possível tradução das intenções teóricas no

desenvolvimento de matrizes curriculares, nos eixos e nos ciclos, em texto-base intitulado

Orientações Curriculares Preliminares para a Rede Municipal de Ensino de Niterói: Educação

Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (FUNDAR, 2010).

Ocorreram vários momentos de discussão e as equipes pedagógicas assim como a

comunidade escolar foi convidada a participar das discussões. Então, espera-se que diante de

um referencial curricular multiculturalmente orientado fosse bastante facilitado o

desenvolvimento de ações pedagógicas que promovam um currículo em função do diálogo

com as identidades plurais que circulam nas unidades escolares, valorizando a pluralidade de

saberes e a multiplicidade de identidades raciais, religiosas, linguísticas, de gênero, entre

outras, que constituem a realidade escolar. É inegável que este documento oficial legitima

ações como o Projeto Sagrada Natureza, mas observei que alguns professores e equipe de

articulação pedagógica de diversas escolas não buscaram conhecer melhor o documento e não

assimilaram esta contribuição ao seu trabalho nas salas de aula ou como ação pedagógica nas

escolas. Uma pedagoga de uma escola de 1º e 2º ciclos chegou a afirmar para mim que na

escola dela “não havia diversidade, portanto, era desnecessário ações que combatessem este

problema”.
85

Percebemos que a diversidade para alguns é considerada um problema e constatamos a

importância de uma formação continuada efetiva e constante, assim como a ampliação nas

universidades de disciplinas e de cursos de extensão que favoreçam a formação para

sensibilizar o educador para ações que promovam ações multiculturalmente orientadas.

Como argumenta Canen:

Entender a formação docente como plural, construída por narrativas e pontos


de vista diversificados, ajuda futuros professores a situarem a produção do
conhecimento em seu caráter de construção, superando uma visão
essencializada e universalizada do ensino e da pesquisa, e entendendo-os
como complexos, plurais e plurivocais. Argumentamos, finalmente, que tal
perspectiva florescerá em ambientes em que a identidade institucional
configure-se como a de uma organização multicultural, cujo clima
institucional reflita a valorização da pluralidade de vozes e identidades, e
que busque, no confronto de ideias e na orquestração das diferenças, a seiva
do trabalho acadêmico e da pesquisa na formação de professores (CANEN,
2008, p. 307).

Quando a citada pedagoga afirma que não há diversidade em sua escola e que não tem

esse problema, percebemos como o olhar dela não reconhece inúmeras identidades que

certamente foram veladas pela postura adotada na escola, pelas escolhas de conteúdo que não

promoveram a sensibilização do aluno para a diferença e, o que é mais preocupante, como a

diferença é desqualificada. Desse modo, para alunos, professores e comunidade, a

homogeneidade ilusória é a escolha pertinente. No entanto, a escola não deixa de ser uma

organização multicultural; as identidades estão lá, mesmo que silenciadas, daí a importância

de esforços para que a escola como organização multicultural se revele plenamente em

potencial de discussão e transformação para formação de habilidades cidadãs, mas

comprometidas com a luta contra as opressões e preconceitos.

No decorrer do processo de pesquisa mantive contato mais próximo e recorrente com

sete pedagogas que faziam parte da equipe de articulação pedagógica das escolas em que

desenvolvi as oficinas e participações em reuniões de planejamento.


86

Neste grupo, reconheci um comprometimento com o desenvolvimento de projetos que

encarassem as questões relacionadas aos preconceitos e à intolerância. Em todas as nossas

conversas, era sinalizada a importância de se discutir questões como a intolerância religiosa e

as resistências relacionadas à religiosidade afro-brasileira. Destaco que. neste grupo, uma das

pedagogas já havia pensado em um projeto desta natureza, mas, por falta de tempo, por estar

sempre sobrecarregada de demandas no cotidiano escolar como as questões relacionadas a

disciplina, ela não conseguiu realizar o projeto.

3.3 O QUE DIZEM OS PROFESSORES?

Como foi dito no tópico anterior, o sistema de ensino da rede municipal de Niterói tem

como fundamento o multiculturalismo crítico; portanto, os referenciais curriculares são

orientados por este referencial teórico.

Um dos desafios que tinha pela frente era o posicionamento diante de meus colegas

professores. Percebi que a opção pelas conversas frequentes e pela construção do trabalho em

conjunto foi fundamental para o estabelecimento da relação de confiança.

Os oito professores participantes das oficinas foram escolhidos por serem professores

das escolas que eu acompanhava regularmente e pela relação de amizade que estabelecemos

anteriormente quando eu era professora regente.

Os professores foram divididos em dois grupos: professores de ciências e professores

de geografia. A escolha pelas disciplinas foi feita a partir das minhas relações interpessoais.

Professores que conhecia anteriormente e outros que reconhecia um potencial multicultural na

abordagem ou que pelo menos estava aberto a novas ações pedagógicas. Além disso, eu

queria explorar a possibilidade de aplicação das leis 10639/2003 e 11645/2008 relacionando-


87

as com a educação ambiental, tópico não exclusivo, mas que se identifica, sobretudo com

estas disciplinas.

Deste grupo, quatro professores se destacaram no comprometimento e reflexão em

relação ao trabalho. Uma das professoras realizou comigo mais de uma oficina e sugeriu,

inclusive, que a temática dos orixás fosse mais explorada.

As oficinas aconteciam como aulas temáticas. O professor escolhia 15 alunos de sua

turma para os encontros. Alguns professores preferiram que toda a turma participasse, o que

não prejudicou em nada o desenvolvimento das atividades. Cabia ao professor escolher a

turma e ele era convidado a participar e construir comigo a dinâmica a ser utilizada.

As oficinas eram divididas em duas partes, mas que buscavam o encontro das culturas

indígenas e africanas no que diz respeito a sua relação com a natureza. No capítulo 2

descrevemos com detalhes a proposta do projeto.

Após as aulas, conversava com os professores e apliquei um questionário

semiestruturado (vide Anexo 1). Importante ressaltar que estes professores continuavam a

interlocução comigo, seja em conversas informais, em reuniões de planejamento ou em

formações continuadas. Nestes momentos é que percebia os limites e avanços da ação

proposta, assim como era o momento em que os professores expressavam suas inseguranças

em relação à temática e apontavam também a falta de tempo e material para explorar as

questões propostas.

Ficou claro, para mim, que muitos professores, com os quais travei discussões a

respeito dos potenciais multiculturais presentes no currículo escolar, conhecem muito pouco

do multiculturalismo e quase sempre reconhecem este termo como diversidade e/ou

pluralidade de culturas, além de, na maioria das vezes, atribuírem a esse conceito as noções de

respeito e tolerância, problematizando menos as questões relacionadas à construção da

diferença.
88

Dos quatro professores que participaram mais efetivamente com suas turmas das

atividades apenas um deles percebia o multiculturalismo de forma reducionista. Os outros três

eram engajados e, apesar de não adotarem a proposta multicultural como referencial teórico,

buscavam, em suas práticas, o desenvolvimento de ações potencialmente desafiadoras de

preconceitos e abertas a novos saberes. Não é por acaso que foram estes professores que se

engajaram no projeto.

Os quatro professores se graduaram em universidades públicas no Rio de Janeiro e

tiveram alguma experiência em pesquisa. Um deles continua a sua formação acadêmica com

cursos de pós-graduação latu-sensu e demonstra interesse em projeto para o mestrado.

Quando iniciei a análise dos dados e no decorrer das discussões e atividades percebi

que neste grupo de quatro professores o que limitou a ação foi uma questão subjetiva. Um dos

professores tinha um comprometimento claro com sua religião e isto foi demonstrado ao final

das atividades.

Observei que em uma das oficinas, em que a temática de destaque era Oxossi o

professor preferiu não estar em sala e convidou um colega para substituí-lo. Cabe ressaltar

que, ainda assim, o professor promoveu a atividade, estimulando os alunos a participar, mas,

diante deste fato, percebi que muito ainda teríamos que discutir, porque, decididamente,

orixás nos remetem a algo negativo e os valores dos professores influenciam em seu

posicionamento em sala de aula.

Mais uma vez, o campo de pesquisa mostra a importância de uma formação de

professores com uma perspectiva de pesquisadores em ação, com a percepção de uma

trajetória como educador reflexivo e um intelectual transformador, que, através de seu fazer,

promove ações emancipatórias e críticas da realidade, permitindo assim, o desafio das

situações de opressão e silenciamento de algumas identidades.

Como propõe Canen:


89

A compreensão do pesquisador como não-neutro, como portador de


identidade cultural, étnica, racial, religioso, de gênero e outros fatores tem
sido por nós enfatizada, reforçando o que Denzin e Lincoln (2000) defendem
como a visualização do pesquisador como sujeito multicultural, que é
influenciado por sua história de vida, seus pertencimentos identitários e pelas
relações estabelecidas em seu campo de atuação e de pesquisa. Trabalhar
com a pesquisa no âmbito da formação de professores poderia, nesta visão,
incorporar o papel do futuro professor como pesquisador em ação,
problematizando, em primeiro lugar, a pseudoneutralidade com que costuma
ser interpretado, tanto no ato de ensinar como no de pesquisar (CANEN,
2008, p. 299).

Todo este processo de desqualificação da religiosidade afro-brasileira e seus mitos de

criação ficaram a margem dos conteúdos escolares e sofreram historicamente ataques que

confirmavam sua inferioridade diante das demais mitologias e contribuições culturais. Daí a

necessidade de ações que promovam novas formas de abordagem com objetivo de perceber a

mitologia dos orixás como mais uma contribuição para a humanidade, que guarda sua

sabedoria e dignidade.

Como defendem Candau e Koff:

Para sermos capazes de relativizar nossa própria maneira de situarmo-nos


diante do mundo e atribuir-lhe sentido, é necessário que experimentemos
uma intensa interação com diferentes modos de viver e expressar-se. Não se
trata de momentos pontuais, mas da capacidade de desenvolver projetos que
suponham uma dinâmica sistemática de diálogo e construção conjunta entre
diferentes pessoas e/ou grupos de diversas procedências sociais, étnicas,
religiosas, culturais, etc. Exige romper toda tendência à guetificação,
presente também nas instituições educativas, e supõe um grande desafio para
a educação (CANDAU e KOFF, 2006, p.490).

Além disso, devemos reconhecer o desafio real que o encontro com novas formas

de expressão cultural e saberes pode se dar no ambiente escolar. Como podemos legitimar o

resgate de um saber tão desqualificado historicamente? Quem determina e quais os valores

que fundamentam nossos currículos e nosso posicionamento em sala de aula? De que forma
90

podemos desafiar a noção de conhecimento dominante e estabelecer novas possibilidades de

ciência? A cultura indígena e afro-brasileira são convidadas a estar cada vez mais presentes

em nosso currículo, a partir de dois dispositivos legais, quais são os limites para a aplicação

desta lei? Os valores e saberes indígenas e afro-brasileiros só poderão entrar em nossas salas

de aula a partir da lógica ocidental e do homem branco? Foram estas as perguntas que

nasceram e/ou se reafirmaram após a leitura inicial dos dados e que descrevo a seguir.

3.3.1 Meio Ambiente, povos indígenas e orixás: um diálogo possível?

Omi kosi, éwè kosi, òrisà kosi


(não existem orixás, sem as águas e sem as folhas)

Favorecer o processo de reinvenção das ações pedagógicas e da prática educativa no

interior da comunidade escolar não é tarefa fácil. Exige disciplina, convicção, persistência e

aposta no sentido de escola e cultura escolar que estamos dispostos a perceber e garantir em

nossa trajetória como educadores, para a construção de uma educação verdadeiramente

democrática.

Moreira e Candau (2003) apontam para a necessidade de reflexão constante dos

educadores sobre a sua própria identidade cultural: como são capazes de descrevê-las, como

tem sido construída, que referentes têm sido privilegiados e por meio de que caminhos.

Em pesquisa realizada por Moreira e Candau (2003) podemos perceber as

manifestações dos educadores diante do desafio aos preconceitos para construção de uma

nova perspectiva de educação escolar:

Os(as) educadores(as) manifestaram estar conscientes de que se trata de um


processo difícil, em muitos momentos desestabilizador, que suscita as mais
variadas reações, que mexe com o imaginário coletivo, exige persistência,
porque a própria cultura que nós temos nos convida a desistir no
91

primeiro impasse. Trata-se de um grande desafio que supõe paciência


para que a escola vá agregando estas ideias (MOREIRA e CANDAU,
2003, p. 166).7

Com o grupo de professores que desenvolvemos o Projeto Sagrada Natureza,

percebemos um potencial reflexivo e disposição para o debate de forma muito positiva.

Apesar de reconhecerem os desafios, refletidos no desconforto que a religiosidade afro-

brasileira desperta, todos eles apostaram na possibilidade e participaram ativamente na

construção desta pesquisa.

Como afirma a professora M.8 quando perguntamos em entrevista semiestruturada

como ela avalia a contribuição de perspectivas multiculturais nas ações pedagógicas e

especificamente para o currículo de ciências:

Acho que se encaixa perfeitamente no atual momento da sociedade, onde a


palavra de ordem é a “globalização”. Especialmente em ciências é
interessante que o aluno perceba que povos e regiões bem distintas, com
realidades socioculturais, econômicas e geográficas variadas, estão todas
interligadas e serão todas afetadas e responsabilizadas, direta ou
indiretamente, pelas ações umas das outras. Estamos todos no mesmo
planeta e, por mais diversificado que ele seja, é único. É a nossa ‘casa’.
Acho que ajuda também a diminuir o preconceito em vários aspectos, pois
muitas vezes o preconceito está relacionado ao desconhecimento da
realidade do outro (M. Entrevista dia 25/11/2011).

Na fala da profª M. percebemos o apoio às ações multiculturalmente orientadas.

Percebemos também que multiculturalismo está relacionado à globalização, e quando a

professora coloca a palavra globalização entre aspas ela nos pergunta que globalização é esta.

Candau (2010) nos fala de uma tendência atual, dentre outras, na literatura sociológica

que é a de perceber a globalização a partir de três perspectivas básicas: 1) Ela é plural (há

várias globalizações) – como afirma Santos (1997); a diversidade de relações sociais

existentes dão origem a diferentes fenômenos de globalização; 2) não linear, segundo Da


7
Grifos dos autores
8
Os nomes dos entrevistados foram omitidos.
92

Matta (1996); a globalização não se dá de forma linear em todas as sociedades, portanto, não

há etapas a vencer para se chegar àquilo que seria uma instância final e englobadora de toda a

história humana e 3) não recente (o global e o local, o moderno e o tradicional coexistem há

muito no espaço social) ou, como afirma Canclini (1996), a imposição de modelos culturais

dos vencedores é antiga na história das civilizações. Assim, “podemos verificar que cada país,

dependendo de seu papel na lógica capitalista (país central ou periférico), viverá um tipo de

globalização, que será também vivida de forma diferente entre os grupos sociais de uma

mesma Nação” (CANDAU, 2010, p. 15).

A profª M. reconhece que no currículo de ciências, disciplina que leciona, em duas

redes municipais do Estado do Rio de Janeiro, não contempla a diversidade de povos e

culturas, e consequentemente dos saberes locais e da ciência produzida por estes povos.

Nos PCNS destinados a disciplina de Ciências Naturais (1998) são apontados critérios

para se estabelecer os conteúdos a serem trabalhados:

Reconhecida a complexidade das Ciências Naturais e da Tecnologia, é


preciso aproximá-las da compreensão do estudante, favorecendo seu
processo pessoal de constituição do conhecimento científico e de outras
capacidades necessárias à cidadania. É com esta perspectiva e com aquelas
voltadas para toda a educação fundamental que foram destacados os
critérios de seleção de conteúdos:
- os conteúdos devem favorecer a construção, pelos estudantes, de uma
visão de mundo, como um todo formado por elementos inter-relacionados,
entre os quais o ser humano, agente de transformação. Devem promover as
relações entre diferentes fenômenos naturais e objetos da tecnologia,
possibilitando a percepção de um mundo em transformação e sua
explicação científica permanentemente reelaborada;
- os conteúdos devem se constituir em fatos, conceitos, procedimentos,
atitudes e valores compatíveis com o nível de desenvolvimento intelectual
do aluno, de maneira que ele possa operar com tais conteúdos e avançar
efetivamente nos seus conhecimentos;
- os conteúdos devem ser relevantes do ponto de vista social e ter revelados
seus reflexos na cultura, para permitirem ao aluno compreender, em seu
cotidiano, as relações entre o homem e a natureza mediadas pela tecnologia,
superando interpretações ingênuas sobre a realidade à sua volta. Os Temas
Transversais apontam conteúdos particularmente apropriados para isso
(BRASIL/MEC, 1998, p. 35).
93

Esta pesquisa não teve como objetivo a análise dos PCNs de Ciências Naturais, mas é

um documento importante para o processo de reflexão e intervenção que o Projeto Sagrada

Natureza procurou garantir em suas oficinas e formações continuadas.

Portanto, gostaria de destacar duas questões observadas nos critérios estabelecidos

para a organização dos conteúdos. Em primeiro lugar, não há nenhuma referência aos

conhecimentos indígenas. O Brasil apresenta uma biodiversidade imensa e parte dela está em

território indígena que comprovadamente garante a preservação da área. Os Parâmetros

Curriculares Nacionais, que orientam as diretrizes curriculares para todo o território não faz

nenhuma referência do conhecimento e prática dos povos indígenas. Os povos indígenas têm

um conhecimento da biodiversidade e do território das reservas que muito poderia contribuir

para o currículo de ciências, para a discussão das questões ambientais e para uma nova ética

na relação do homem com a natureza. Percebemos, também, que as questões relacionadas a

cultura, segundo os critérios apresentados no PCN, devem ser mediadas pela tecnologia

porque estas poderiam ser garantia de superar interpretações ingênuas. Com um olhar

reflexivo crítico multiculturalmente orientado sobre o currículo, poderíamos perguntar: Quem

define o que é relevante socialmente para ser incluído como conteúdo em um currículo? Qual

é o papel da tecnologia nas demais culturas, como a dos povos da floresta? Poderíamos

entender o conhecimento dos xamãs que utilizam ervas e rezas como conhecimento ingênuo,

que à luz de um conhecimento tecnológico poderia ser superado?

Refletindo sobre critérios ético-políticos e cognitivos, quando duas formas de saber se

confrontam, Santos (2007) cita o exemplo da Revolução Verde que colocou em lados opostos

uma tribo das montanhas de Bali e os agentes do Banco Mundial que consideravam a forma

de irrigação das terras desta tribo como ilógica e irracional, por ter como fundamento a

espiritualidade e a magia. Com a imposição da nova tecnologia foi um desastre total e a forma

tradicional de irrigação voltou a ser praticada. Portanto, se pretendemos dar voz à sociedade e
94

que esta se sinta representada nos conteúdos escolares, é de difícil compreensão porque os

conhecimentos dos povos da floresta ficam à margem, são silenciados praticamente em todas

as disciplinas. Os povos indígenas aparecem no cotidiano escolar graças a iniciativas pessoais

de professores que incluem esta temática em sua disciplina.

Assim sendo, como afirma Santos:

Os critérios cognitivos são os que administram certa forma de


saber, mas decidir sobre o tipo de intervenção no real não é cognitivo; essa é
a armadilha dos engenheiros, dos técnicos, que dizem: ‘Esta é a solução
técnica’. Não, é produto de um critério ético e político. É uma disputa
política, e, se realmente houvesse incompatibilidade entre ir à Lua e
preservar a biodiversidade, deveríamos ter um debate global na Terra para
dizer se necessitamos disto ou daquilo, aonde vai o dinheiro, qual é o
reconhecimento que vamos dar a cada uma; são disputas políticas mais
globais que necessitamos trazer à epistemologia. Não há outra possibilidade;
por meio da argumentação não podemos ter argumentos automáticos que
digam ‘este é o que vale porque está sustentado por conhecimentos
científicos’, porque já sabemos em demasia que as coisas não são assim.
Penso que o que necessitamos – como diria John Dewey – é de outro diálogo
da humanidade (SANTOS, 2007, p. 44-45).

Outro ponto a destacar é a referência aos Temas Transversais como instrumento de

orientação para contemplar questões relacionadas à cultura e ao cotidiano dos alunos. É

inegável o avanço na formulação dos PCNs, ainda que eles tenham sofrido críticas

(MOREIRA, 1966; 1997) “tanto no que diz respeito à reduzida consulta prévia à comunidade

acadêmica para a sua elaboração inicial, quanto ao excesso de prescrições em seu bojo e ao

viés psicológico em sua abordagem” (CANEN, 2000, p. 141). Os PCNs representaram um

avanço porque, a despeito de suas limitações, organizaram uma proposta curricular que

reconhece a pluralidade cultural como tema a ser tratado no âmbito da educação formal.

Entretanto, Canen (1995) e Grant (1997) questionam a viabilidade de se tratar a pluralidade

cultural como tema transversal. Poderíamos apontar aqui também o tema transversal meio

ambiente. Como argumenta Canen:


95

Receio de que a “impregnação” de tal proposta no trabalho, nas diferentes


áreas, possa ser tão tênue a ponto de se tornar invisível. A relevância em se
promover a conscientização acerca da educação multicultural como
necessária à promoção de cidadãos críticos e participativos, em sociedades
cada vez mais multiculturais, deveria, dessa forma, ser enfatizada no interior
de todas as áreas, bem como no trabalho relativo às representações sociais de
docentes (Alves-Mazzoti, 1994), sob pena de reduzir-se a um “imperativo
moral” consensualmente aceito no currículo formal, porém, não
efetivamente implementado nas práticas curriculares vivenciadas (CANEN,
2000, p. 141).

Dessa forma, entendo que um currículo comprometido com a educação multicultural

não deve se limitar a apresentar as demais culturas nacionais como as diversas etnias

indígenas e as comunidades quilombolas, como uma ilustração da diversidade cultural

presente no país, mas olhar estas culturas sem negá-las em seu saber, buscando sempre

alternativas para inseri-lo em sala de aula, no conteúdo escolar. Acreditamos que, assim,

podemos ir para além do discurso da tolerância e considerá-las efetivamente produtoras de

conhecimento, em sua lógica própria, tendo o cuidado para não congelar estas identidades e

perceber que assim como o mundo e as grandes cidades estão em contínua dinâmica de

transformação, as comunidades quilombolas e os povos indígenas não estão alheios a tal

movimento.

Contudo, cabe destacar que apesar das contradições que apontam para a necessidade

de se estabelecerem, com maior clareza, as intenções e os objetivos para o trabalho com a

educação multicultural, o fato de o tema ser incorporado nos PCNs pode representar o início

de um debate onde se repensem práticas pedagógicocurriculares, levando em conta a

pluralidade cultural (CANEN, 2000).

Neste sentido Canen considera que:

a complexidade das representações acerca do que significa “nacional”,


“multicultural”, “cultura ou patrimônio nacional comum” e “pluralidade
cultural” indica a diversidade de significados de que se revestem tais
96

expressões e a relevância em se proceder à sua desconstrução e reconstrução,


em uma perspectiva transformadora e crítica, em cursos de formação inicial
e continuada de docentes, de forma que propostas curriculares concretizem-
se em práticas educativas cotidianas, viabilizadoras da formação de cidadãos
críticos e participantes em sociedades cada vez mais multiculturais
(CANEN, 2000, p. 148).

O professor de geografia, T., destacou na entrevista, que não entendia a pouca ou

inexistente contribuição indígena no currículo da geografia, apontando esta limitação,

inclusive, nos referenciais da rede municipal de Niterói, onde leciona e participou do Projeto

Sagrada Natureza, e foi um dos principais interlocutores, com quem discutimos várias

possibilidades de abordagem e que foi fundamental para o amadurecimento das oficinas.

Para o prof T., o multiculturalismo:

É um tema amplo e aparece na geografia mais no 9º ano do ensino


fundamental, relacionado a conflitos mundiais como o Oriente Médio, e
menos nos outros anos de escolaridade. Como é um tema amplo, possibilita
múltiplas abordagens, que podem variar de acordo com as características de
cada lugar, escola ou grupo de pessoas (T. Entrevista no dia 8/12/2011).

Portanto, mais uma vez o sentido de multiculturalismo apontado esta relacionado às

questões mundiais, o que não é um problema. A questão é que se limita a discussão

multicultural ainda a questões relacionadas ao conflito, à tolerância, à diversidade cultural e o

respeito à diferença. Quando falamos dos conflitos no Oriente Médio, como a disputa entre

judeus e israelenses, refletimos e problematizamos de que judeus e palestinos falamos?

Ultrapassamos a temática do conflito e apresentamos aos alunos os sentidos de mundo

inerentes à estas culturas? Questionamos se todos os judeus e palestinos se posicionam de

maneira similar diante do conflito? Quais são os discursos presentes na mídia e que nos

apresentam os palestinos e judeus?


97

Woodward (2000), ao discutir sobre os conceitos de identidade e diferença a partir dos

conflitos entre os sérvios e os croatas contribui na discussão quando afirma:

Trata-se de uma história sobre a guerra e o conflito, desenrolada em um


cenário de turbulência social e política. Trata-se também de uma história
sobre identidades. Nesse cenário mostram-se duas identidades diferentes,
dependentes de duas posições nacionais separadas, a dos sérvios e a dos
croatas, que são vistos, aqui, como dois povos claramente identificáveis, aos
quais os homens envolvidos supostamente pertencem – pelo menos é assim
que eles se veem. Essas identidades adquirem sentido por meio da
linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas
(WOODWARD, 2000, p. 8).

A questão que devemos problematizar neste ponto é que as identidades que aparecem

nos currículos de geografia, história e qualquer outra disciplina quase sempre são

apresentadas na perspectiva essencialista, onde a identidade judaica e palestina, por exemplo,

são cristalizadas, autênticas, de características que todos os palestinos e judeus partilham e

que ao longo da história se manteve estática. A alternativa conceitual se apresenta a partir das

abordagens não-essencialistas, que focalizaria as diferenças e os traços característicos, em

comum ou compartilhados, e o potencial híbrido que estas identidades desenvolvem no

contato com outras culturas. Uma abordagem não-essencialista também levaria em conta os

processos históricos de afirmação, transformação e hibridização destas identidades.

Podemos ampliar os exemplos e verificar que os povos indígenas quase sempre são

apresentados discursivamente como bastante semelhantes e alheios ao potencial de

hibridização das identidades.

A profª R., ao analisar a proposta de maior inserção da cultura indígena no currículo

de geografia, afirmou que:

Concordo, mas com uma abordagem realista, mostrando as diferentes facetas


da cultura indígena, tirando aquela imagem de que todo índio é um ser
sublime, em comunhão com a natureza.
Acho que deve ser mostrado, inclusive, que existem grupos já inseridos na
98

prática capitalista (R. Entrevista no dia 16/11/2011).

Nesta afirmação da professora, percebemos a importância de relativizar a identidade

do índio quando percebemos que a imagem idealizada e ingênua dos povos indígenas teve

espaço e foi o discurso hegemônico presente nos livros didáticos durante muitas gerações que

passaram pelas carteiras escolares e nos livros didáticos de história. Por exemplo, o índio

quase sempre é percebido como apenas uma vítima do colonizador branco.

É fato que temos que trazer para o contexto de nossas disciplinas que os povos

indígenas não são passivos e que cada etnia utilizou de estratégias para garantir a

sobrevivência, ainda que muitos tenham sido dizimados. Fato também é que os povos

indígenas, ao iniciarem o contato com o homem branco e a sua lógica econômica, como as

trocas capitalistas, desenvolveram formas próprias de aproximação e assimilação, o que não

desqualifica o sentido de mundo presente em sua cosmovisão e que muito contribui para

pensarmos uma nova ética para a relação entre homem e natureza.

Muitos indivíduos, nascidos nas aldeias espalhadas em todo o território nacional,

escolheram, por motivos pessoais e sociais, negar a identidade indígena, assim como não

podemos negar a associação de algumas aldeias ao tráfico de drogas. O que podemos fazer

para entender este processo é reconhecer que este responde a uma história de luta pela

sobrevivência, e que a presença do capital e a ausência do Estado para garantir aos povos

indígenas suas terras, podem ter contribuído e muito para o estabelecimento destas relações

assimétricas e, muitas vezes, perversas.

Algumas aldeias permitem que grileiros e contrabandistas de animais silvestres entrem

em suas terras, mas isto aponta muito mais na direção da necessidade de fiscalização e

demarcação das terras indígenas do que uma mudança na percepção destes povos no que eles

consideram como “O Casamento entre o Céu e a Terra”; ou seja, na integração absoluta entre
99

homem e natureza, os deuses estão presentes no espaço absoluto que ocupamos e na relação

que estabelecemos com todos os seres vivos, também não podemos considerar que todos os

índios, de diversas etnias, pensam o mundo da mesma forma.

O que importou, nesta pesquisa, como motivação da temática em meio ambiente, foi a

identificação de uma identidade mestra, um paradigma filosófico e ético, que pode ser uma

referência para esta forma de perceber os animais, os rios, as florestas, entre outros, como

‘sagrado’ e compor, assim, uma ética onde a natureza é percebida como mais um SER

presente na aldeia, na tribo e na comunidade.

Cabe, mais uma vez, considerar que as identidades são dinâmicas, mas não deixam de

existir no contato com o outro. Elas são transformadas. Como afirma o escritor mexicano

Octávio Paz: “as civilizações não são fortalezas, mas encruzilhadas” (apud FREIRE, 2002, p.

25). Nenhuma sociedade vive isolada absolutamente, no decorrer de sua história os contatos

interculturais vão sendo travados. Podem ser conflituosos, violentos, mas também podem ser

cooperativos, em que se estabelece a troca e o diálogo.

De acordo com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2011), para os povos

indígenas, o diálogo com outras culturas é muito importante, para estes povos a riqueza deste

mundo é a riqueza de relações. Rico é aquele que é capaz de mobilizar um grande número de

relações; as coisas são apenas instrumentos para isso. O problema é que para os povos

indígenas, as relações tem sido assimétricas; historicamente eles não escolheram o que

queriam tomar emprestado, não houve diálogo.

Portanto, o discurso por um índio mais realista, aponta para duas questões: em

primeiro lugar, a percepção que o índio real perdeu sua identidade após o contato com o

branco e, em segundo lugar, será que os índios ainda existem? Estaria justificada, dessa

forma, a inclusão de seus valores culturais no currículo escolar?

Para Freire:
100

O brasileiro pode usar coisas produzidas por outros povos – computador,


telefone, televisão, relógio, rádio, aparelho de som, luz elétrica, água
encanada – e nem por isso deixa de ser brasileiro. Mas o índio, quando
realiza a mesma operação, deixa, então, de ser índio? Quer dizer, nós não
concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para a nossa: o
direito de entrar em contato com outras culturas e de, como consequência
desse contato, se transformar (FREIRE, 2010, p. 25);

Este autor argumenta ainda que:

Uma excelente matéria sobre a escola Waimiri Atroari foi publicada no


jornal A Crítica, de Manaus, com belíssimas imagens do fotógrafo Euzivaldo
Queiroz, mostrando índios, semi-nus, usando um computador em uma escola
– uma construção coberta de palha - combinando o novo com o tradicional.
Quando a reportagem passou lá, os alunos estavam em sala de aula, numa
atividade escolar. Os índios Waimiri Atroari, há 40 anos, não falavam
português e nem sabiam o que era escola. Eles tinham outras instituições
encarregadas de transmitir saber, ciências, artes e literatura, que era a
tradição oral. No contato com a sociedade brasileira, eles decidiram criar
uma escola, para aprender português como segunda língua, da mesma forma
que a gente aprende o inglês, para poder sobreviver e entrar em contato com
o mundo. O brasileiro aprende o inglês, não para substituir o português, mas
para desempenhar outras funções. Assim também os índios aprendem o
português, não com o objetivo de eliminar suas próprias línguas, que
continuam com a função de comunicação interna, mas para se comunicar
para fora (FREIRE, 2010, p. 26).

Com a aprovação da Lei 10.639, em 2003, as editoras de livros didáticos e

paradidáticos iniciaram um processo de inserção e valorização da cultura indígena e dos

povos africanos em seus materiais didáticos. Tal esforço se prolonga até hoje, e nós, do

Núcleo de Ações Integradas, temos frequentemente recebido materiais para a avaliação.

Percebemos, no entanto, que, em sua maioria estes livros ainda abordam de forma

bastante discreta estas culturas e que quase sempre são direcionados para a área de história.

De qualquer forma, percebemos que as culturas indígena e africana ainda surgem como algo

preso ao passado, seja da escravidão ou pelas contribuições folclóricas e lutas pelos direitos

civis.

Segundo a profª R.:


101

A cultura indígena é um assunto pouco discutido pelos livros didáticos ou


mesmo nos currículos. Quando ocorre o assunto é tratado de forma
superficial ou, muitas vezes, com erros primários (R. Entrevista no dia
16/11/2011).

A profª M. se aproxima da discussão e concorda afirmando:

Acho importante aproximar um pouco o índio da nossa realidade, pois não


costumo ver nos livros atuais de ciências referências aos índios. Passa um
pouco a impressão de que índio é “coisa do passado”, como se ele não
existisse mais. Além de ajudar no resgate de nossos próprios costumes, nossa
origem. Costumamos criticar a visão que o norte americano tem do povo
brasileiro, como se todos fôssemos despreparados, incapazes, atrasados
culturalmente, ignorantes... mas a nossa visão de “índio” não é semelhante a
essa?(M. Entrevista no dia 25/11/2011.)

Pouco vemos a relação destas culturas, no mundo contemporâneo, como culturas

efetivamente atuantes em nossa sociedade. Desconhecemos, em grande parte, o esforço de

escolarização dos povos indígenas, dos projetos de resgate cultural e projetos de

sustentabilidade ambiental. Pouco falamos das lideranças do candomblé que têm

representações em fóruns internacionais, que são formados na trajetória acadêmica branca e

ainda assim lutam pela preservação de seus bens simbólicos. Praticamente desconhecemos

que lideranças do candomblé no Brasil, tem uma atuação importante nos movimentos por uma

economia e sociedade sustentável9.

9
A Iyalorixá Mãe Stella de Oxossi, principal liderança do Candomblé no Brasil, tem a sua militância marcada até
os dias atuais pela luta contra o sincretismo religioso, dirige o Ilê Axé Opô Afonjá, onde mantém o Museu Ilé
Ohun Lailai, tombado pelo IPHAN e neste terreno instalou-se a E.M. Eugênia Anna dos Santos, em homenagem
à primeira Iyalorixá e fundadora do Terreiro, Mãe Aninha (1869-1938), que defendia a inclusão das crianças de
terreiro nas escolas do branco para ganharem o título de Doutor. Além disso, Stella de Oxossi é escritora de
livros infantis dentre eles o, “Epé Laiyé - terra viva" (2009), conta a história de uma árvore que ganha pernas e
vai lutar pela construção de um mundo que respeita o meio-ambiente. Em sua trajetória o personagem ganha
ajuda do orixá Ossain, divindade que domina o conhecimento sobre o mundo vegetal.
102

Aproveitamos muito pouco a possibilidade de discutir as questões de gênero e da

mulher negra, assim como das relações de poder que construíram a história do candomblé e

da igreja católica no Brasil como movimento de resistência e legitimação da cultura

afrodescendente, assim como as manifestações populares que apontam para o sincretismo

religioso, presente nas principais festas populares no Brasil.

O Prof. T., quando comenta a presença dos povos indígenas nos livros de geografia,

afirma a partir de uma citação da obra Introdução à história das bandeiras de Jaime Cortesão:

Deficiente. Citando Jaime Cortesão10 : Limitemo-nos por agora a


salientar que a realização de tamanha empresa (nota: a expedição de Aleixo
Garcia), em território tão vasto e semeado de obstáculos, supõe da parte do
aborígene um notável amadurecimento das técnicas de deslocação, por terra
e água, e conhecimentos geográficos bastante vastos para dar-se como
termo um objetivo tão longínquo. Temos de considerar que o nomadismo
ou o seminomadismo na zona de floresta tropical entranhava uma cultura
própria e representou uma soma de elementos vitais e herdados, da maior
importância na formação das bandeiras e do bandeirismo. E ainda:
Supomos que até hoje não se deu suficiente relevo a essa contribuição. É
sabido que o aborígene trouxe às bandeiras e aos bandeirantes a sua
adaptação econômica ao meio geográfico; e uma arte náutica, adaptada aos
rios de planalto e de planície. Mas a importância não menor tiveram o
sentido topográfico excepcional do índio, servido por uma astronomia de
orientação, e a sua capacidade de representação plástica ou cartográfica do
território. (...) Como outros povos nômades, os primitivos habitantes do
Brasil eram verdadeiras bússolas e mapas vivos. Onde está isso na
Geografia? (T. Entrevista no dia 8/12/2011).

No que diz respeito à contribuição indígena para fomentar as discussões ambientais

em sala de aula, o prof. T. também salienta a necessidade de explorar mais no conteúdo de

geografia esta contribuição:

Sim, principalmente no que se refere à língua tupi-guarani. Como bem


salienta Warren Dean11, o tupi guarani contribuiu com milhares de
palavras para o português brasileiro, especialmente para o léxico do mundo
natural. Os portugueses atribuíam, por analogia, os nomes de plantas e

10
CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das bandeiras. Belo Horizonte: Livros Horizonte, s.d., p. 103,
104 e 112.
11
DEAN, Warren. A ferro e fogo – a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, s.d., p. 104.
103

animais europeus familiares a algumas espécies da Mata Atlântica, mas o


resto foi recebido dos indígenas. Dois terços dos nomes comuns das árvores
da Mata Atlântica e praticamente de todos os seus animais são de origem
tupi-guarani. Os neobrasileiros preservaram os nomes de inúmeras
formações naturais – geológicas, edáficas, vegetais – e de acidentes
geográficos – rios, montanhas, vales e estuários. Em geral, os atuais nomes
em português de lugares são traduções do original tupi. Até meados do
século XIX, existiam sinais da persistente vitalidade dessa língua franca ao
longo da fronteira da floresta. Bem poderiam os representantes indígenas
contemporâneos reivindicar direitos legítimos a uma terra à qual eles deram
o nome (T. Entrevista no dia 8/12/2011).

No decorrer da pesquisa, dois temas suscitaram debates calorosos e críticos ao Projeto

Sagrada Natureza: religiosidade e escola laica, e educação ambiental como disciplina isolada.

Como discutido no capítulo 2, a relação da mitologia iorubá e a religiosidade foi uma

das críticas recorrentes que o Projeto sofreu e o maior obstáculo que professores e pedagogos

das escolas envolvidas apontaram como desafio a ser vencido.

Outra questão foi a formação e legitimação de uma disciplina própria para discutir as

questões relacionadas à Educação Ambiental. Em alguns momentos de debate acadêmico no

decorrer das disciplinas exigidas como créditos ao título de mestre, fomos questionados se

estávamos ou não falando de Educação Ambiental e, em caso afirmativo por que não

explorávamos o referencial teórico desta área específica.

O Projeto Sagrada Natureza tem como fundamento o referencial teórico do

multiculturalismo, portanto, a educação ambiental, sua constituição como disciplina, não é o

foco principal da pesquisa. A temática ambiental foi o modo que escolhemos para ilustrar uma

forma de currículo em ação no qual a lei 11.645/2008 poderia ser aplicada, entre tantas outras

possibilidades. Foi o caminho de interlocução que encontramos entre a cosmovisão indígena e

a mitologia iorubá, sempre como um exercício de criatividade, de mais uma possibilidade de

trabalho e diálogo interdisciplinar, na perspectiva multicultural.

As ações desenvolvidas pelo Projeto Sagrada Natureza foram inspiradas pela

emergência cada vez maior das questões ambientais na escola que tem como objetivo
104

contribuir para o desenvolvimento das habilidades cidadãs da comunidade escolar e uma nova

percepção do mundo:

Faz parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o ser humano não é
o centro da natureza, e deveria se comportar não como seu dono mas,
percebendo-se como parte dela, e resgatar a noção de sua sacralidade,
respeitada e celebrada por diversas culturas tradicionais antigas e
contemporâneas (BRASIL/MEC, 1997, p. 179).

Canen (2009) aponta as questões e desafios postos pelo multiculturalismo na

teoria curricular, que evidenciam a fragmentação dos saberes em disciplinas e novas propostas

de integração curricular:

De fato, propostas de integração curricular normalmente se contrapõem a


uma visão do conhecimento dividido em disciplinas, mais tradicional. (...) A
ideia seria a de que a separação em disciplinas estaria dando uma “falsa”
noção de compartimentalização do conhecimento, impedindo os alunos de
verem a origem e a formação dessas disciplinas, bem como suas
interdependências e conexões (CANEN, 2009, p. 70).

Como argumenta a profª M.:

Acho que pode ser um assunto a mais a ser estudado dentro da Educação
Ambiental, por todos os motivos que já foram citados anteriormente, mas
acho desnecessário que seja abordado com uma disciplina separada. Por
sinal, ainda não existe a disciplina “Educação Ambiental”. Ela está inserida
nos conteúdos de ciências e geografia, ao se estudar o meio ambiente. E
creio que também no de história, em algumas ocasiões.
A própria “transdisciplinaridade” está cada vez mais presentes nas propostas
educacionais atuais e ela permite que as diversas disciplinas se apropriem
desse conteúdo (M. Entrevista no dia 25/11/2011).

Canen (2004; 2009) apresenta os potenciais transdisciplinares presentes nas propostas

curriculares:

Na transdisciplinaridade, o objetivo não é apenas que os alunos trabalhem os


105

conteúdos, mas também que desenvolvam habilidades, atitudes,


conscientização crítica e competências relacionadas àqueles aspectos da
realidade onde se inserem.
Por exemplo, quando os PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais – falam
de temas transversais, tais como Pluralidade Cultural e Ética, estão propondo
um currículo integrado nessa perspectiva transdisciplinar (CANEN, 2009,
71).

Podemos acrescentar, também, a proposta de tema transversal Meio Ambiente

presente nos PCNS (1997).

De qualquer forma, esta pesquisa caminha sempre na perspectiva do diálogo, porque

esta é a forma que acreditamos poder criar mais espaço de discussão e alternativas às ações

pedagógicas. Entendemos que a própria constituição da Educação Ambiental, como campo

teórico e disciplinar, pode ser analisada a partir do referencial teórico multicultural, porque,

assim como outras disciplinas e campos do saber, ela se forma em um processo histórico, em

que o reconhecimento de uma identidade própria (não queremos negar que dentro da

disciplina temos diversas identidades em disputa e diálogo que contribuem para a formação

do campo) legitima seu espaço próprio como disciplina escolar.

Segundo Carvalho (2004):

Não acreditamos que seja possível traduzir ou reduzir as múltiplas


orientações numa única educação ambiental: uma espécie de esperanto ou
pensamento único ambiental. A aposta que vale a pena fazer, neste caso, é a
explicitação das diferenças de modo a contribuir para o aumento da
legibilidade e consequentemente, formulação e assunção de práticas de
educação ambiental mais consequentes com suas premissas, melhorando as
condições do encontro, intercâmbio e do debate neste campo educativo
(CARVALHO, 2004, p. 15).

Relacionar a mitologia iorubá à questão ambiental foi, sem dúvida, o momento de

maior desafio, necessidade de diálogo e comprometimento com a proposta. Sempre foi o


106

aspecto mais delicado do projeto em seu desenvolvimento, assim como sua articulação com o

saber acadêmico.

Como discutido no capítulo anterior, as críticas eram fundamentadas no caráter laico da

escola pública, e, portanto, a mitologia iorubá na sala de aula poderia representar aspecto de

religiosidade e estímulo à prática desta religião. Por outro lado, recebemos críticas de colegas

pesquisadores, ligados ao movimento afrodescendente, que duvidaram da legitimidade da

ação a partir da afirmação da pesquisadora que mobilizou as ações de que nunca tinha entrado

em um terreiro de candomblé e não tinha a menor tradição no povo de santo.

Afirmamos, anteriormente, que em nenhum momento as ações do projeto fizeram

qualquer menção aos rituais e práticas do candomblé. O que fizemos foi ilustrar com um dos

mitos relacionados a Oxóssi, o caçador de uma flecha só, o conceito de sustentabilidade

ambiental. Entretanto, não podemos negar que o fundamento religioso esteve sempre presente

como questionamento e atenção, conforme podemos observar na declaração dos professores

quando perguntados sobre qual seria o maior desafio para a abordagem desta temática na

escola:

Profº R.:

A questão religiosa, principalmente devido ao crescimento do número de


evangélicos. Também acho que existiria intolerância de muitos católicos. (R.
Entrevista no dia 16/11/2011)

Profª M.:

Indiscutivelmente o preconceito religioso, muito presente nas nossas escolas,


e a associação dos orixás à macumba, que é sempre vista de uma forma
pejorativa (M. Entrevista no dia 25/11/2011.)
107

Prof. T.:

O preconceito em relação ao tema, mais fácil de quebrar, e o fato de ser um


assunto religioso, o que exige um cuidado na abordagem (T. Entrevista no
dia 8/12/2011).

No entanto, os professores entrevistados reconheceram a possibilidade da abordagem

ecológica como forma de lutar contra o preconceito em relação à mitologia iorubá:

Profª R.:

Talvez. Reconheço que pouco conheço sobre o assunto, mas, a princípio


acho que seria importante (R. Entrevista no dia 16/11/2011).

Prof Thiago:

Sim, principalmente pelo seu caráter panteísta: ver o sagrado, o divino, nas
coisas da natureza (T. Entrevista no dia 8/12/2011).

Profª Maria:

Sim, se a abordagem não for referente ao aspecto religioso (M. Entrevista no


dia 25/11/2011).

De qualquer forma, fica claro, pela reduzida argumentação nas respostas, que a

temática ainda é distante e causa constrangimento.

Cumpre ressaltar que muito desse constrangimento e da insegurança para argumentar

mais em relação à temática podem estar relacionados à marginalização da cultura afro-

brasileira dos currículos escolares, assim como nas práticas de ensino e nas graduações para

formação do professor teríamos que ter mais engajamento e comprometimento político com a
108

questão. Neste ponto, acreditamos que o multiculturalismo, reconhecido como referencial

teórico, que orienta ações e reflexões para dar voz às identidades e aos saberes silenciados,

pode, sim, estar presente nas diversas disciplinas universitárias, promovendo mais uma

possibilidade de pedagogia emancipatória da cultura afro-brasileira.

Botelho argumenta que:

A hegemonia teórica, que privilegia apenas o conteúdo eurocêntrico nas


escolas brasileiras, tem alijado negros e brancos de um conhecimento
presente na cultura brasileira pertencente a outros grupos étnico-raciais,
dificultando uma consciência reflexiva e emancipatória da nossa população
(BOTELHO, 2007, p. 211).

3.3.2 O Projeto Sagrada Natureza: avaliação dos professores

Ao final das oficinas no ano letivo de 2011, os professores que participaram das

atividades foram convidados a avaliar o trabalho desenvolvido. Neste momento, podemos

perceber de que forma as ações do projeto Sagrada Natureza motivaram alguma mudança e

tentamos reconhecer quais as resistências e/ou dificuldades que os professores apontaram.

Um dos princípios desta trajetória de pesquisa foi articular e dialogar sempre com os

professores envolvidos. Decidimos, juntos, os caminhos escolhidos para as ações e discutimos

sempre os resultados e desafios de cada encontro. Importante ressaltar, que percebemos no

grupo que um dos professores, com o tempo, passou a interagir como pesquisador, refletindo

sobre sua prática e dialogando constantemente com a proposta do projeto Sagrada Natureza.

Cabe salientar, também, que alguns professores tiveram uma participação burocrática, sem

qualquer intervenção reflexiva.

Percebemos, na avaliação dos professores, a disposição de adotar a perspectiva

multicultural em suas ações, gostam do desafio de pensar atividades alternativas e, portanto,


109

consideram muito importantes as temáticas relacionadas à diversidade, que os alunos não

costumam ver nos livros didáticos, chegarem a escola e a suas salas de aula por outros

caminhos, que não são convencionais, mas nutrem com criatividade o fazer pedagógico.

Logo, o maior desafio para os professores não é a perspectiva multicultural em sala de

aula, mas como aplicá-la no seu fazer pedagógico. Se considerarmos que a falta de material

escolar especializado, a organização curricular e tempos de aula em que as disciplinas são

organizadas e a necessidade dos professores de trabalharem em mais de uma escola,

concluímos ser necessário o fomento aos processos de formação continuada, para que os

professores possam ter acesso mais facilitado a recursos didáticos e a novos debates que

renovem seu olhar reflexivo e estimulam sua criatividade.

Segundo Candau:

Uma das principais dificuldades que encontram os professores para assumir


a perspectiva multicultural não deriva, em geral, de objeção ao seu sentido e
finalidades propostas e sim da insegurança que provoca por não se ter
clareza de como “aterrissá-la” no dia-a-dia da sala de aula (CANDAU, 2002,
p. 113).

Como afirma a Profª M.:

Achei muito pertinente a sua abordagem enfatizando o respeito pela natureza


por povos tão distintos quanto índios, africanos e gregos, e a sua
neutralidade com relação ao aspecto religioso.
Achei que foi interessante, pois fez com que os alunos tivessem um novo
olhar para a questão dos orixás e para os africanos, contribuindo para
diminuir o preconceito, não apenas religioso, mas também da cultura
informal, não acadêmica, que muitas vezes é desvalorizada frente ao saber
científico e socialmente aceito (M. Entrevista no dia 25/11/2011).

Reduzir o preconceito, segundo Banks (1999), é uma das dimensões que caracteriza

uma educação multicultural, o que significa ter como princípio básico o desenvolvimento

junto aos (às) educandos (as) de uma postura racial e étnica mais positiva.
110

Entendemos que acrescentar no conteúdo escolar e introduzir no cotidiano da escola as

contribuições das diferentes culturas não deve se limitar a uma abordagem aditiva ou

folclórica da diversidade cultural. Devemos ir além, como sugere o prof. T.:

É muito interessante, principalmente para o 7º ano, que estuda a formação do


território brasileiro e as influências indígenas e africanas na nossa cultura,
ressaltar a presença dos índios em todo o território brasileiro e comparar a
devastação atual da floresta amazônica com a devastação da floresta e
cultura da Mata Atlântica nos séculos anteriores. Pensar em práticas e
vivências dessas culturas que proporcionem experiências mais diretas aos
alunos também é uma forma de afeta-los com essa proposta (T. Entrevista no
dia 08/12/2011).

Quando ultrapassamos a expectativa folclórica ou aditiva, podemos assumir uma

intervenção potencialmente transformadora, de modo a permitir que os alunos trabalhem

conceitos, temas, fatos, etc., provenientes de diferentes tradições culturais e que estende a

transformação curricular à possibilidade de desenvolver projetos e atividades que suponham

envolvimento direto e compromisso com diferentes grupos culturais, favorecendo a relação

teoria-prática no que diz respeito à diversidade cultural.

Concluímos nossa análise citando Candau:

Certamente a introdução da perspectiva multi/intercultural no dia-a-dia das


escolas e da sala de aula provoca muitas questões para a didática
relacionadas com a seleção dos conteúdos escolares, as estratégias de ensino,
o relacionamento professor-aluno e aluno-aluno, o sistema de avaliação, o
papel do professor, a organização da sala de aula, as atividades extraclasse, a
relação escola-comunidade, entre outras. Trata-se de temas sem dúvida
“clássicos” no campo da didática, que necessitam ser revisitados e
ressignificados a partir deste novo olhar (CANDAU, 2002, p. 119).

Os referenciais curriculares em vigor na rede municipal de ensino de Niterói, tem como

fundamento o multiculturalismo. Ao final desta pesquisa, considera-se que este foi um passo

importante, porque facilitou muito o desenvolvimento de propostas pedagógicas desafiadoras

de preconceitos, no entanto, para potencializar o alcance dos referenciais curriculares é


111

necessário oferecer ao professor, material didático, formações continuadas e a garantia de sua

autonomia criativa para o desenvolvimento de temáticas comprometidas com o múltiplo, o

plural, o diferente, o híbrido. Presente em cada um de nós. Na comunidade escolar em que

atuamos. Na sociedade como um todo.


112

CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação teve como objetivo demonstrar que o currículo deve ser vivenciado e

tensionado constantemente, e pretendeu discutir que o papel do professor e equipes de

articulação pedagógica é fundamental para o apoio e desenvolvimento de iniciativas de

currículo em ação, que torne as salas de aula e o conteúdo escolar, que são o espaço por

excelência para a formação humana, crítica e reflexiva, lugar onde alunos e professores

exercitem e ampliem sua condição cidadã como sujeitos emancipados, conquistando a livre

expressão de suas identidades.

No contexto de aplicação da lei 11.645/2008, existe um investimento importante na

produção editorial de livros paradidáticos e reformulação dos livros didáticos com o objetivo

de incluir as temáticas relacionadas a história e cultura indígena, africana e afro-brasileira. No

entanto, consideramos que os materiais didáticos desenvolvidos, assim como as ações de

implementação destas temáticas no currículo escolar, ainda são muito voltadas para uma

abordagem folclórica e informativa.

A pesquisa-ação, realizada em escolas da rede municipal de ensino de Niterói, buscou

a partir de experiência anterior em uma das escolas desta rede, ampliar a reflexão e a

intervenção na prática de ensino dos professores, com ações que incluam objetivamente a

temática indígena e afro-brasileira, tendo como fio condutor a relação das mitologias

indígenas e dos orixás, ilustrando tópicos da educação ambiental.

Com a experiência anterior à pesquisa-ação identificamos que a questão religiosa,

influía subjetivamente na receptividade á temática e se tornou um dos desafios a serem

vencidos. Procurou-se então, com as oficinas que caracterizaram a pesquisa-ação perceber se

em outros espaços escolares, com outros professores e alunos reconheceríamos os mesmos


113

desafios relacionados a religiosidade e se estes tinham as mesmas motivações. Procuramos

também perceber como as equipes de articulação pedagógica (diretores e pedagogos) se

posicionaram diante da proposta.

Percebemos o papel fundamental e decisivo da EAP para o desenvolvimento da

pesquisa. Reconhecemos que nas escolas onde o projeto das oficinas teve o melhor

desenvolvimento, foram onde os pedagogos são engajados e apoiam iniciativas que produzam

novos sentidos no currículo escolar.

Nestes dois anos de pesquisa, o contato com as equipes de pedagogos e direção da

escola, comprovou que quando temos uma gestão centralizada e com uma postura tradicional,

onde diversidade ainda é vista como um problema a ser vencido, propostas como a do projeto

Sagrada Natureza não tiveram espaço para sua atuação.

Afirmamos no decorrer da pesquisa que as escolas são organizações multiculturais,

mas que isto não garante que as identidades e culturas plurais que estão presentes tenham

espaço e legitimidade para a sua expressão, e com isso, produz-se um discurso e uma imagem

monocultural da escola, o que promove a ideia de que a diversidade seja vista como algo a ser

alcançado, quase sempre identificado com a harmonia e a tolerância.

O referencial teórico multicultural, que orientou esta pesquisa, nos ajudou a

problematizar esta realidade e a pensar de que forma as oficinas poderiam apresentar uma

nova forma de se perceber a escola e o currículo escolar.

Além disso, o multiculturalismo, nos ajuda na análise, porque a partir das suas

categorias centrais – a diversidade, a descontinuidade e a diferença – reconhecemos as

identidades como descentradas, múltiplas e em processo permanente de construção e

reconstrução.

Quando pensamos o currículo dentro destas categorias, reconhecemos então que, este

também insere-se no processo permanente de construção, que pode ter uma dinâmica e
114

incorporar em seu discurso e práticas pedagógicas, desafios a noções que tendem a

essencialização das identidades.

Portanto, esta pesquisa-ação procurou nas escolas em que ofereceu as oficinas,

desenvolver práticas de intervenção, que traduziam para o currículo em ação, abordagens

multiculturais, tendo como fundamento a problematização da construção da diferença e dos

processos de hibridização.

Durante todo o processo da pesquisa defendemos um currículo multicultural que

promovesse um novo olhar sobre a escola e o currículo, levando em consideração as relações

de poder que determinam o que deve ou não ser ensinado e a influência dos sujeitos que

decidem como determinado conteúdo poder ser apresentado em sua sala de aula.

Percebemos a importância da formação continuada dos docentes como fundamental

para a efetivação de um processo de reflexão constante sobre os currículos e os discursos que

legitimam determinado saber em sala de aula.

A trajetória desta pesquisa também se insere na defesa da escola pública como espaço

privilegiado para a discussão e expressão das múltiplas identidades. Professores, alunos e toda

a comunidade escolar encontram na educação pública o espaço discursivo onde é legítima a

militância por um mundo onde todas as vozes tenham o seu lugar.

Acreditamos no professor como o intelectual transformador por excelência, por isso,

privilegiamos na nossa pesquisa, o diálogo com os professores no espaço da sala de aula,

apresentamos uma proposta objetiva de como poderíamos abordar as mitologias indígenas,

africanas e afro-brasileiras, no conteúdo das disciplinas – no caso desta pesquisa – ciências e

geografia.

Percebemos que os professores envolvidos e que buscaram uma interlocução maior

com a pesquisa buscaram ampliar os limites de sua prática e abraçaram a ideia com muita

coragem. As escolas envolvidas em sua maioria recebem um grande número de alunos


115

evangélicos e católicos e que costumam apresentar um discurso muito resistente a expressão

religiosa afrodescendente, diante disto, mesmo quando deslocamos os orixás para uma

abordagem cultural e para uma ética e lógica ambiental, a ancoragem social do discurso em

relação a estas manifestações são desafiadoras porque interpretam estas manifestações como

exóticas, maléficas e supersticiosas, não creditando a elas nenhuma lógica que justifique sua

abordagem na esfera do saber escolar.

Ao final desta etapa de pesquisa, identificamos que a questão religiosa está presente na

escola, ainda que muitos defendam e reconheçam a escola como laica. Defender a laicidade

da escola não garante que os discursos presentes no cotidiano escolar afirmem esta posição,

além disso, argumentamos que, o tema da religiosidade está implícito nas questões culturais e

de uma forma ou de outra entra na escola. O ensino de história, por exemplo, aborda as

questões religiosas em sua matriz curricular. Realmente, não há como exercitar a reflexão

histórica sem contemplar as questões ligadas a religião. Defendemos que abordar as

expressões religiosas no currículo escolar é condição para desenvolver crítica e reflexão a

respeito da realidade e dos sentidos de mundo que nos cercam.

A pesquisa-ação com os professores afirmou que iniciativas de currículo em ação,

multiculturalmente comprometidas, são um terreno fértil para discutir novas possibilidades de

currículo, novas alternativas de atividades que incluam o tema da diversidade e são uma via

para professores refletirem sobre suas práticas e atuarem de forma criativa, reinventando sua

arte de fazer, em um processo de formação constante e dinâmica, que se dá fundamentalmente

no cotidiano escolar, em suas salas de aula.

O projeto Sagrada Natureza caminhou rumo ao resgate de saberes que ficaram fora do

currículo escolar, da afirmação da escola pública como território onde as identidades tem um

espaço privilegiado e garantido de expressão e, sobretudo, reconhece o professor como ator

com potencial transformador em seu universo de atuação e esta pesquisa-ação teve como
116

objetivo mergulhar neste universo e reconhecer este potencial assim como os limites que se

estabelecem para a atuação objetiva e motivação subjetiva do educador.

Esta pesquisa esta comprometida com um olhar sobre a escola, que insiste em

dinamizar este espaço como em constante transformação e reinvenção. Acreditamos na

atuação de docentes que transgridam a ordem de um conhecimento que se pretende universal.

Muitos dirão que o personagem de Clarice Lispector, em a Legião Estrangeira (1999)

– Ofélia Maria dos Santos Aguiar com seu portanto-portanto-portanto12 é o exemplo de

conhecimento a ser adquirido pelos alunos na escola e por que não, o que o currículo deve ter

como objetivo, oferecer respostas para um mundo ordenado em verdade incontestáveis. Que o

que realmente importa é que assim como o universo perfeito e harmônico da matemática, o

mundo gira em torno de uma ordem que deve se pretender universal, evitar e diluir as

contradições. Portanto, cabe a escolar legitimar e reproduzir este conhecimento perfeito,

buscar o consenso e apagar o que é múltiplo e dissonante. No entanto, diante desta proposta

podemos resgatar a chama de uma vela, e assim como Bachelard, dizer aos defensores de uma

ciência absoluta, autoritária e fechada em si mesmo – “depende”.

Depende, porque o desafio real que encontramos em nossa prática é afirmar o espaço

para as diversas expressões culturais e saberes no cotidiano escolar. Olhar com sensibilidade

multicultural nos leva a reflexão para a ação que podemos desenvolver para legitimar o

resgate de saberes desqualificados no decorrer da história da educação e da instituição escolar

e ousar a outras reflexões que nos levem a entender e reconhecer quem determina e quais os

valores que fundamentam nossos currículos e nosso posicionamento em sala de aula? De que

forma podemos desafiar a noção de conhecimento dominante e estabelecer novas

possibilidades de ciência? As culturas indígena e afro-brasileira são convidadas a estarem

cada vez mais presentes em nosso currículo, a partir de dois dispositivos legais, quais são os

12
O prof. José Américo Pessanha (1993), em sua palestra: Filosofia e modernidade: racionalidade e ética,
relacionou a discussão em pauta com o personagem de Clarice Lispector - Ofélia Maria dos Santos Aguiar, que
inspirou a redação destas considerações finais.
117

limites para a aplicação desta lei? Os valores e saberes indígenas e afro-brasileiros só poderão

entrar em nossas salas de aula a partir da lógica ocidental inaugurada pela modernidade?

Cabe a cada um de nós, professores-pesquisadores, em constante reflexão, perceber

nossa arte de fazer como um ato político, transformador e reflexivo. Reconhecer em nosso

cotidiano, o olhar sempre aberto a novas possibilidades, sentir o chão de nossa sala de aula

como um espaço em disputa, internas e externas a ela, defender uma educação e currículo

sensível a outras formas de perceber e viver o mundo que nos cerca, cultivar com mãos

jardineiras a real condição de sujeitos emancipados e plenos de direitos a reinvenção de

nossos caminhos.
118

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123

ANEXOS

ANEXO 1 - QUESTIONÁRIO

QUESTIONÁRIO PARA OS PROFESSORES (CIÊNCIAS E GEOGRAFIA) QUE


DISPONIBILIZARAM SEUS ALUNOS PARA PARTICIPAR DAS OFICINAS

Disciplina:

1. Como você avalia a contribuição de propostas multiculturais para o currículo de sua


disciplina?

2. Como você avalia a presença das contribuições culturais indígenas no currículo de sua
disciplina?

3. Você concorda com a ampliação do conteúdo sobre cultura indígena e sua


contribuição para a Educação Ambiental?

4. No que diz respeito à Mitologia dos Orixás, qual seria o maior desafio para a
abordagem desta temática na escola?

5. Você considera que a mitologia dos orixás, intrinsecamente ligados ao meio ambiente,
pode contribuir para o desenvolvimento da consciência ecológica?

6. Caro colega, gostaria que você deixasse aqui as suas sugestões e críticas e/ou
apontamentos no que diz respeito a atividade que desenvolvi com seus alunos. Se é
pertinente e contribui para ampliar a abordagem multicultural em sua disciplina,
sobretudo, no que diz respeito à Educação Ambiental?
124

ANEXO 2 – TERMO DE CONSENTIMENTO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Nome: ________________________________________________________
R.G. ______________________

Título da Dissertação: Projeto Sagrada Natureza: currículo em ação – uma experiência


multicultural na aplicação da Lei 11.645/2008
Responsável: Cristiane Gonçalves de Souza
Instituição: UFRJ

Eu, abaixo assinado, declaro ter pleno conhecimento do que


se segue: 1) Fui informado, de forma clara e objetiva, sobre a pesquisa acima mencionada; 2)
Sei que nesta pesquisa será realizado o questionário/entrevista por mim respondidos; 3) Estou
ciente que não é obrigatória a minha participação, caso me sinta constrangido antes e, durante
a sua realização, posso me retirar da mesma, sendo que isso não implicará em nenhum
prejuízo; 4) Poderei saber através desse estudo os resultados alcançados; 5) Sei que os
materiais utilizados para a coleta de dados serão destruídos após o registro destes; 6) Sei que o
pesquisador manterá em caráter confidencial todas as respostas que comprometam a minha
privacidade; 7) Receberei informações atualizadas durante o estudo, ainda que isso possa
afetar a minha vontade em continuar dele participando; 8) Estas informações poderão ser
obtidas através da pesquisadora; 9) Foi-me esclarecido que o resultado da pesquisa somente
será divulgado com objetivos científicos, mantendo-se a minha identidade em sigilo. 10)
Quaisquer outras informações adicionais que julgar importantes para compreensão do
desenvolvimento da pesquisa e de minha participação poderão ser obtidas através da UFRJ.

Declaro, ainda, que recebi cópia do presente Termo de Consentimento.


Rio de Janeiro, ____ de ___________________ de 2012.

______________________________________________

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