Universidade Federal de Pernambuco

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO ACADÊMICO DO AGRESTE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA
CURSO DE MESTRADO

A CONSCIÊNCIA METATEXTUAL DO GÊNERO DISCURSIVO CORDEL:


ENTRE O SABER E O FAZER SABER POÉTICO, COM A PALAVRA, OS
CORDELISTAS

JULY RIANNA DE MELO

CARUARU
2017
JULY RIANNA DE MELO

A CONSCIÊNCIA METATEXTUAL DO GÊNERO DISCURSIVO CORDEL:


ENTRE O SABER E O FAZER SABER POÉTICO, COM A PALAVRA, OS
CORDELISTAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação Contemporânea da
Universidade Federal de Pernambuco/Centro
Acadêmico do Agreste, dentro da linha de
pesquisa Formação de Professores e
Processos de Ensino e Aprendizagem, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestra em Educação Contemporânea.

Área de concentração: Ciências Humanas.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro da Silva


Coorientador: Prof. Dr. Fábio Marques de
Souza

CARUARU
2017
Catalogação na fonte:

Bibliotecária – Paula Silva CRB/4 – 1242

M528c Melo, July Rianna de.


A consciência metatextual do gênero discursivo cordel: entre o saber e o fazer saber
poético, com a palavra, os cordelistas. / July Rianna de Melo. – 2017.
254f.: il. ; 30 cm.

Orientador: Alexsandro da Silva


Coorientador: Fábio Marques de Souza.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-
Graduação em Educação Contemporânea, 2017.
Inclui Referências.

1. Gêneros literários. 2. Análise do discurso literário. 3. Literatura de cordel. 4.


Poética. I. Silva, Alexsandro da (Orientador). II. Souza, Fábio Marques de
(Coorientador). III. Título.

370 CDD (23. ed.) UFPE (CAA 2017-249)


JULY RIANNA DE MELO

A CONSCIÊNCIA METATEXTUAL DO GÊNERO DISCURSIVO CORDEL:


ENTRE O SABER E O FAZER SABER POÉTICO, COM A PALAVRA, OS
CORDELISTAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação Contemporânea da
Universidade Federal de Pernambuco/Centro
Acadêmico do Agreste, dentro da linha de
pesquisa Formação de Professores e
Processos de Ensino e Aprendizagem, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestra em Educação Contemporânea.

Aprovado em: 14/08/2017.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Profº. Dr. Alexsandro da Silva (Orientador)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________
Profº. Dr. Fábio Marques de Souza (Coorientador)
Universidade Estadual da Paraíba
____________________________________________
Profº. Dr. Artur Gomes de Morais (Examinador interno)
Universidade Federal de Pernambuco
_____________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria de Oliveira Galvão (Examinadora externa)
Universidade Federal de Minas Gerais
Dedico esta obra, especialmente,
aos meus avós: Antônio Beco da Silva (Asa Branca) e
Julia Maria, in memorian
AGRADECIMENTOS

Na história do conhecimento humano, muitos são os casos em que uma descoberta


ou avanço científico são atribuídos a apenas uma mente, um único indivíduo. Newton
desvendou o movimento dos astros através da sua lei da Gravitação Universal. Galileu, a
partir de observações feitas com sua luneta, demonstrou que a teoria heliocêntrica era, de
fato, possível. Darwin apresentou, pela primeira vez, a ideia da seleção natural. Einstein se
perguntou como seria viajar ao lado de um raio de luz e revolucionou a física. No entanto,
embora seja inquestionável a importância desses pensadores, também é inegável que o
desenvolvimento que conseguiram só foi possível ao trabalho de muitas outras pessoas,
algumas das quais ficaram para sempre ocultas nas páginas da história1.
Com isto, quero dizer que mesmo aqueles considerados como uns dos grandes gênios
da humanidade valeram-se do apoio, direta e indiretamente, de diversas pessoas. Pois, tal
como diz a obra cinematográfica “O nome da rosa”2, baseada no best-seller homônimo do
escritor italiano Umberto Eco (que se inspirou numa célebre frase de Newton), nós “somos
como anões aos ombros de gigantes, e se conseguimos enxergar além do nosso campo de
visão, superando a altura do nosso corpo e de nossas capacidades, é porque nos apoiamos e
nos elevamos em estaturas gigantes e através delas podemos ver muito além do que
poderíamos imaginar”.
Dessa forma, durante a escrita desta dissertação, precisei da ajuda de várias pessoas,
que me serviram de esteio e, às quais, aqui, aproveito para ressaltar os meus sinceros
agradecimentos.
Em especial, ao meu orientador, Dr. Alexsandro da Silva, por ter, no decorrer destes
anos, reconhecido as minhas limitações, ajudando-me a superá-las. Agradeço pelo apoio e
generosidade, neste trabalho e em outros que o precederam;
Aos meus pais e ao meu irmão, Niraldo Riann, que sempre fizeram das minhas
vitórias as suas;

1
O trabalho de Newton foi precedido por importantes avanços realizados por Johannes Kepler. Galileu
adaptou uma luneta, inventada por Hans Lippershey, e utilizou os resultados de suas observações para ratificar
a teoria heliocêntrica de Copérnico, que, por sua vez, foi proposta na Grécia antiga por Aristarco de Samos.
Darwin definiu o conceito de seleção natural influenciado pela teoria demográfica do economista Thomas
Malthus, ao mesmo tempo em que Wallace chegava a conclusões semelhantes. Einstein desenvolveu a teoria
da relatividade baseado nos trabalhos de Lorentz e Minkowski.
2
O Nome da Rosa. Direção: Jean-Jacques Annaud. Produção: Bernd Eichinger. Coprodução: Franco Cristaldi.
Intérpretes: Sean Connery, Christian Slater, Valentina Vargas, Elya Baskin, Michael Lonsdale, Leopoldo
Trieste, William Hickey e Ron Perlman. Roteiro: Howard Franklin e Jean-Jacques Annaud. [S.I.]: Warner
Home Video, 1986. DVD (131 min), NTSC, color., Widescreen, Dolby Digital 5.1, linguagem original: inglês.
Adaptado do livro “O Nome da Rosa”, do autor Umberto Eco.
Ao meu querido Cícero Jailton, pelo amor e companheirismo em todos os momentos
da vida. Obrigada por ter compreendido as minhas ausências em várias ocasiões, devido à
produção desta investigação;
Ao Prof. Dr. Artur Gomes de Morais e à Profa. Dra. Ana Maria de Oliveira Galvão,
pelas importantes e necessárias contribuições na banca de qualificação e defesa;
Aos cordelistas - J. Borges, Val Tabosa, Zé Guri, Jailton Pereira, Diosman Avelino e
Paulo Pereira - que se dispuseram, gentilmente, a participar desta pesquisa. Agradeço pelo
acolhimento e pela riqueza dos seus depoimentos, sem os quais este trabalho não teria sido
possível;
A Olegário Fernandes, Nogueira Netto, Nelson Lima e Jénerson Alves, com quem
muito aprendi sobre cordel;
Ao meu coorientador, Dr. Fábio Marques de Souza, pela leitura com afinco de todo o
texto;
Aos meus queridos amigos Rafaela Salles e Pedro Brandão, interlocutores de todas
as horas;
Aos colegas do mestrado (2015.1), que, junto comigo, aprenderam as alegrias e os
percalços de serem mestres;
Aos meus professores, sem exceção, que participaram e colaboraram com o meu
processo formativo, desde o período do Curso de Normal Médio até o Mestrado;
À Fundação de Amparo à Pesquisa (FACEPE), pela concessão da bolsa de mestrado
e pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa;
A todos aqueles que, nomeados ou não, se fizeram presentes e cooperaram para a
realização deste trabalho.
RESUMO

Este estudo objetivou analisar a consciência metatextual de poetas acerca do gênero


discursivo cordel, considerando as dimensões sociodiscursivas, temáticas, composicionais e
paratextuais desse gênero. Participaram desta pesquisa seis cordelistas com idades que
variavam de 81 a 34, dos quais uns frequentaram apenas alguns anos do Ensino
Fundamental I e outros haviam concluído o Ensino Médio. Para tanto, utilizamos, como
recurso metodológico, a entrevista semiestruturada e duas tarefas de transgressão de gênero
(produção e identificação). Evidenciamos que, no caso dos aspectos sociodiscursivos,
parecia haver uma relação entre as verbalizações dos propósitos comunicativos do cordel e o
tempo de escrita do gênero. Observamos, também, que, para alguns poetas, o cordel deveria
estar disposto apenas no seu suporte prototípico (no caso, o folheto), não reconhecendo
outros lócus físicos e/ou virtuais de circulação. Sobre os aspectos composicionais, houve
duas tendências quanto aos conhecimentos sobre a rima: a explicitação verbal dos motivos
de o cordel ter rima e a ausência dessa explicitação, apesar do reconhecimento da rima como
elemento obrigatório na estrutura desse gênero. Quanto à métrica, verificamos que alguns
poetas menos escolarizados utilizavam exclusivamente o recurso do “canto” para verificar se
os versos estavam de fato metrificados e tinham dificuldade nas verbalizações da contagem
das sílabas poéticas dos versos. Alguns cordelistas afirmaram, inclusive, que o critério do
número de sílabas na metrificação poderia ser flexibilizado, porque seria na performance
oral que esse aspecto se ajusta. Na atividade de produção de transgressões, verificamos que
não houve uma correspondência entre a quantidade de erros cometidos e o “grau” de
sofisticação das transgressões realizadas. Ademais, pareceu ser mais difícil para alguns
entrevistados transgredir apenas a regra de rima, mantendo as demais (métrica e oração)
preservadas. Quanto à métrica, os entrevistados mais escolarizados conseguiram verbalizar
as regras de metrificação e os acidentes poéticos porque, ao que tudo indica, não aprenderam
tais princípios, exclusivamente, por meio da prática e do contato com outros folhetos, tal
como pareceu ocorrer com os poetas com menor escolaridade. Chamamos atenção para o
fato de que os participantes se saíram melhor na atividade de produção do que na de
identificação das transgressões de oração. Apenas um cordelista conseguiu indicar nas
estrofes os erros de coerência. É importante elucidar que por terem que atentar,
simultaneamente, para diferentes aspectos certos erros podem ter passado despercebidos.
Sobre a identificação de transgressões de métrica, não conseguimos estabelecer uma
equivalência com a atividade de produção, já que os depoentes que produziram menos erros
foram aqueles que se saíram melhor na tarefa de identificação de erros. Os resultados desse
estudo sugeriram que as oportunidades de produção do gênero pareciam influir na
consciência metatextual dos poetas. Contudo, os saberes poéticos oriundos de aprendizagens
explícitas pareciam promover níveis mais elaborados de controle e explicitação do que
aqueles incorporados, preferencialmente, através da prática.

Palavras-Chave: Gêneros discursivos. Cordel. Consciência metatextual. Explicitação.


ABSTRACT

This study aimed to analyze the metatextual consciousness of poets about the discursive
genre cordel. That it is considering the sociodiscursive, thematic, compositional and
paratextual dimensions of this genre. Six cordelistas, ranging in age from 81 to 34,
participated in this study, of whom one had only attended a few years of elementary school I
and others had finished high school. For this, we used, as a methodological resource, the
semi-structured interview and two tasks of transgression of gender (production and
identification). In the case of the sociodiscursive aspects, there appeared to be get a
relationship between the verbalizations of communicative purposes of the cordel and the
writing time of the genre. We also note that, for some poets, the string should be disposed
only in its prototypical support (in this case, the leaflet), not recognizing other physical and /
or virtual loci of circulation. On the compositional aspects, there were two tendencies
regarding the knowledge about the rhyme: the verbal explication of the reasons for the string
rhyme and the absence of this explanation, despite the recognition of rhyme as a mandatory
element in the structure of this genre. Regarding the metric, we found that some less
educated poets exclusively used the "singing" feature to verify if the verses were in fact
metrified and had difficulty in the verbalizations of the counting of the poetic syllables of
the verses. Some cordelistas even affirmed that the criterion of the number of syllables in the
metrification could be relaxed, because it is in oral performance that this aspect fits. In the
activity of producing transgressions, we verified that there was no correspondence between
the amount of errors committed and the degree of sophistication of the transgressions made.
In addition, it seemed to be more difficult for some respondents to transgress only the
rhyming rule, keeping the others (metrics and prayer) preserved. As for the metric, the more
educated interviewees were able to verbalize the rules of metrification and poetic accidents
because, apparently, they did not learn these principles exclusively through practice and
contact with other leaflets, as seemed to be the case with poets with less schooling. We call
attention to the fact that the participants did better in the production activity than in
identifying the transgressions of prayer. Just one writing cordel was able to indicate in the
verses the errors of coherence. It is important to elucidate that due to having to look at
different aspects simultaneously certain errors may have gone unnoticed. Regarding the
identification of metric transgressions, we were not able to establish an equivalence with the
production activity, since the deponents that produced less errors were those that did better
in the task of identifying errors. The results of this study suggested that the production
opportunities of the genre seemed to influence the metatextual consciousness of the poets.
However, poetic knowledge derived from explicit learning seemed to promote more
elaborate levels of control and explicitness than those embodied, preferably, through
practice.

Keywords: Discursive genres. Cordel. Metatextual consciousness. Explicitation.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Folheto “sem capa” Os aviadores e a voagem pelo espaço .................................35


Figura 2 – Capa do Folheto O filho de Ali-Ba-Bá .................................................................36
Figura 3 – Cidades em que residiam os participantes da pesquisa. .....................................103
Figura 4 – Capa do folheto A feira que não pude pagar .....................................................146
Figura 5 – Terceira capa do folheto A caveira e o viajante.................................................147
Figura 6 – Capa do folheto ..................................................................................................180
Figura 7 – Capa do cordel A chegada da prostituta no céu ................................................189
Figura 8 – Capa do cordel A ciência evoluindo ...................................................................192
Figura 9 – Capa de cordel de autoria de Val Tabosa ...........................................................192
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1– Distribuição de teses e dissertações, por ano de publicação, encontradas no


IBICT, de 2010 a 2016.................................................................................................... 51
Gráfico 2 – Distribuição de teses e dissertações, por ano de publicação, defendidas na
UFPE............................................................................................................................. 54
Gráfico 3 – Áreas de origem das teses e dissertações sobre cordel produzidas na UFPE,
no período de 2010 a 2016............................................................................................... 55
Gráfico 4 – Metodologias empregadas nas teses e dissertações sobre cordel produzidas
na UFPE, no período de 2010 a 2016............................................................................... 56
Gráfico 5 – Número de teses/dissertações sobre consciência metalinguística defendidas
entre 2011 e Junho de 2016, localizadas no Banco de Teses da CAPES.......................... 77
Gráfico 6 – Quantitativo de teses e dissertações sobre consciência metalinguística
localizadas no Banco de Teses da CAPES por ano de defesa (2011-2016)...................... 78
Gráfico 7 – Distribuição dos trabalhos de pós-graduação por Estado localizadas no
Banco de Teses da
CAPE................................................................................................................................. 79
Gráfico 8 – Quantidade das pesquisas de pós-graduação, por ano de publicação,
localizadas no Banco de Teses da CAPES........................................................................ 85
Gráfico 9 – Distribuição dos artigos por ano de publicação entre 2011 e junho de
2016.................................................................................................................................. 87
Gráfico 10 – Perfil dos sujeitos nos artigos publicados entre 2011 e junho de 2016...... 88
Gráfico 11 – Comparativo entre a quantidade de Teses e Dissertações e Artigos sobre as
habilidades de consciência metalinguística, por ano de publicação, no período entre 2011
e junho de 2016................................................................................................................ 88
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Temática das teses e dissertações sobre cordel produzidas na UFPE, no período
de 2010 a 2016........................................................................................................................55
Quadro 2 – Modelo de Redescrição Representacional de Karmiloff-Smith ........................60
Quadro 3 – Distribuição das teses e dissertações localizadas no Banco de Teses da CAPES
por Instituição de fomento ......................................................................................................79
Quadro 4 – Habilidades Metalinguísticas estudadas nas teses defendidas entre 2011 a junho
de 2016 localizadas no Banco de Teses da CAPES por Instituição de fomento ....................80
Quadro 5 – Habilidades Metalinguísticas estudadas nas dissertações defendidas entre 2011
a junho de 2016 localizadas no Banco de Teses da CAPES ..................................................82
Quadro 6 – Habilidades metalinguísticas estudadas em artigos publicados entre 2011 e
junho de 2016 .........................................................................................................................86
Quadro 7 – Frequência das publicações sobre consciência metalinguística, por periódico,
no período entre 2011 e junho de 2016 ..................................................................................86
Quadro 8 – Perfil dos poetas entrevistados ..........................................................................91
Quadro 9 – Extratos dos cordéis usados na tarefa de produção de transgressões ................96
Quadro 10 – Estrofes de cordel usadas na tarefa de identificação de erros .........................98
Quadro 11 – Materiais impressos que os poetas costumavam ler (ou tinham acesso) no dia
a dia ......................................................................................................................................111
Quadro 12 – Materiais de leitura que os poetas declararam ter em casa ...........................114
Quadro 13 – Como os poetas obtinham informações no dia a dia .....................................116
Quadro 14 – O que os poetas costumam escrever no dia a dia ..........................................117
Quadro 15 – Tempo de atuação como produtor de cordéis................................................124
Quadro 16 – Propósitos comunicativos atribuídos ao cordel pelos poetas ........................134
Quadro 17 – Público leitor dos cordéis declarados pelos poetas .......................................141
Quadro 18 – Leitores/ouvintes dos cordéis produzidos pelos poetas ................................144
Quadro 19 – Indicações de autoria nos folhetos produzidos pelos poetas .........................147
Quadro 20 – O suporte do gênero cordel segundo os cordelistas ......................................150
Quadro 21 – Caráter narrativo ou não dos cordéis .............................................................157
Quadro 22 – Justificativas atribuídas pelos poetas para a necessidade de rima nos cordéis
..............................................................................................................................................162
Quadro 23 – A metrificação dos cordéis segundo os poetas ..............................................171
Quadro 24 – Finalidades dos títulos dos cordéis atribuídas pelos poetas ..........................182
Quadro 25 – Justificativas para o uso de imagens nos cordéis segundo os poetas ............187
Quadro 26 – Tipos de erros de rima cometidos pelos poetas .............................................195
Quadro 27 – Produção de erros de métrica ........................................................................204
Quadro 28 – Produção de erros de oração pelos poetas ....................................................210
Quadro 29 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da quadra ..................216
Quadro 30 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da sextilha ...............219
Quadro 31 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da septilha ................222
Quadro 32 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da décima .................224
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Programas de Pós-graduação em que foram publicadas teses e dissertações sobre


cordel, no IBICT, entre os anos de 2010 e 2016 ....................................................................51
Tabela 2 – Instituições em que foram publicadas teses e dissertações sobre cordel no
IBICT, entre os anos de 2010 e 2016 .....................................................................................52
Tabela 3 – Áreas do conhecimento em que foram desenvolvidas as teses e dissertações
localizadas no Banco de Teses da CAPES .............................................................................83
Tabela 4 – O perfil dos sujeitos das pesquisas localizadas no Banco de Teses da CAPES ..84
Tabela 5 – Quantidade de transgressões nas atividades de produção ..................................214
Tabela 6 – Quantidade de erros identificados na atividade de transgressão as regras de rima,
métrica e oração ....................................................................................................................226
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACLC Academia Caruaruense de Literatura de Cordel


BTD Banco de Teses e Dissertações
CAPES Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior
CGEE Centro de Gestão e Estudos Estratégicos
E1 Nível explícito 1
E2 Nível explícito 2
E3 Nível explícito 3
FACEPE Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia de Pernambuco
I Implícito
IBGE Indicador Brasileiro de Geografia e Estatística
IBICT Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
INAF Indicador de Alfabetismo Funcional
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
LILACS Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
MACKENZIE Universidade Presbiteriana Mackenzie
PE Pernambuco
PEPsic Periódicos Eletrônicos em Psicologia

PPGH Programa de Pós-Graduação em História


PUC-Campinas Pontifícia Universidade Católica de Campinas
PUC-RS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RR Redescrição Representacional
SCIELO Scientific Electronic Library Online
UCP Universidade Católica de Petrópolis
UCPel Universidade Católica de Pelotas
UECE Universidade Estadual do Ceará
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
UEPB Universidade Estadual da Paraíba
UERJ Universidade Estadual do Rio de janeiro
UESC Universidade Estadual de Santa Cruz
UFAC Universidade Federal do Acre
UFAL Universidade Federal de Alagoas
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFC Universidade Federal do Ceará
UFF Universidade Federal Fluminense
UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFMS Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
UFPA Universidade Federal do Pará
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFPel Universidade Federal de Pelotas
UFPR Universidade Federal do Paraná
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFSCAR Universidade Federal de São Carlos
UFSM Universidade Federal de Santa Maria
UFT Universidade Federal do Tocantins
UFU UFU - Universidade Federal de Uberlândia
UnB Universidade de Brasília
UNESP Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNICAP Universidade Católica de Pernambuco
UNICENTRO Universidade Estadual do Centro-Oeste Paraná
(Paraná)
UNIFESP Universidade Federal de São Paulo
UNIMONTES Universidade Estadual de Montes Claros
UNIPAMPA Universidade Federal do Pampa
UNISC Universidade de Santa Cruz do Sul
UNISINOS Universidade do Vale do Rio dos Sinos
UNIVERSO Universidade Salgado de Oliveira
UNOESC Universidade do Oeste de Santa Catarina
USP Universidade de São Paulo
USP (Ribeirão Preto) Universidade de São Paulo Ribeirão Preto
USP (São Paulo) Universidade de São Paulo São Paulo
UVA (Rio de Universidade Veiga de Almeida
Janeiro)
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 19
1.1 Percurso trilhado: organização da dissertação ................................................... 26
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................ 28
2.1 Cordel: gênero discursivo, literatura e cultura ................................................... 28
2.1.1 Gêneros discursivos: entre a estabilidade e mudança ........................................... 28
2.1.2 O “entre-lugar” da literatura de cordel ................................................................. 33
2.1.3 O termo “popular” sob a égide da cultura ............................................................. 42
2.1.4 Estado do conhecimento: o que dizem recentes pesquisas sobre cordel? ............. 49
2.1.4.1 Cordel: levantamento de dissertações e teses, no Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia, no período de 2010 a 2016.......................... 50
2.1.4.2 Cordel: o que revelam as dissertações e teses da UFPE, de 2010 a 2016 ................ 53
2.2 Consciência metatextual: reflexão sobre diferentes dimensões do
texto/gênero ............................................................................................................ 57
2.2.1 “Consciência”: uma introdução ao tema ............................................................... 58
2.2.2 Consciência metalinguística ................................................................................... 61
2.2.3 Dimensões da consciência metalinguística ............................................................ 64
2.2.4 Classificação das pesquisas sobre a consciência metatextual ............................... 68
2.2.4.1 Pesquisas que tratam dos aspectos microlinguísticos do texto ................................ 68
2.2.4.2 Pesquisas sobre os aspectos macrolinguísticos do texto .......................................... 70
2.2.4.2.1 A consciência metatextual em relação ao conteúdo ................................................ 70
2.2.4.2.2 A consciência metatextual em relação à estrutura do texto .................................... 71
2.2.5 Consciência metalinguística: considerações sobre as produções acadêmicas
brasileiras (teses, dissertações e artigos) entre 2010 a junho de 2016 .................. 76
2.2.5.1 Resultado e Discussão .............................................................................................. 76
3 OS CAMINHOS PERCORRIDOS: ITINERÁRIO PARA A
CONSTRUÇÃO DO CORPUS DA PESQUISA.................................................. 90
3.1 Critérios de seleção e perfis dos participantes da pesquisa ................................ 90
3.2 Procedimentos de produção de dados .................................................................. 93
3.2.1 Entrevistas semiestruturadas .................................................................................. 93
3.2.2 Entrevista semiestruturada metalinguística ........................................................... 94
3.3 Tarefas de transgressão ......................................................................................... 95
3.3.1 Produção de transgressões em cordéis ................................................................... 96
3.3.2 Identificação de transgressões em cordéis ............................................................. 97
3.4 Procedimentos de análise dos dados ................................................................... 100
3.4.1 A pré-análise ......................................................................................................... 100
3.4.2 A exploração do material ...................................................................................... 100
3.4.3 O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação .............................. 101
4 CONTEXTUALIZANDO OS PARTICIPANTES: TRAJETÓRIAS DE
ESCOLARIZAÇÃO, LETRAMENTO E CORDELÍSTICA DOS POETAS
ENTREVISTADOS ............................................................................................. 102
4.1 De quem falamos quando falamos ...................................................................... 102
4.1.1 De onde falavam os cordelistas ............................................................................ 103
4.2 Memórias sobre as experiências escolares: o que os poetas tinham a
dizer? ..................................................................................................................... 104
4.3 Práticas de letramento dos poetas a partir de diferentes gêneros
discursivos ............................................................................................................. 111
4.4 Os primeiros passos para tornarem-se cordelistas: memórias sobre o fazer
poético ................................................................................................................... 118
4.4.1 O início da produção de cordéis ........................................................................... 124
4.5 As concepções dos poetas sobre a produção de cordéis .................................... 128
4.5.1 As concepções dos poetas acerca da origem da sua habilidade poética e da
produção ................................................................................................................ 128
5 ANÁLISE DOS RESULTADOS: OS CONHECIMENTOS DOS POETAS
SOBRE O GÊNERO DISCURSIVO CORDEL ............................................... 132
5.1 Os conhecimentos verbalizados dos poetas sobre os aspectos
sociodiscursivos do gênero cordel ....................................................................... 132
5.1.1 Os propósitos comunicativos ................................................................................ 134
5.1.2 Os leitores/ouvintes ............................................................................................... 140
5.1.3 Indicações de autoria do cordel nos folhetos ....................................................... 146
5.1.4 O suporte de circulação dos cordéis ..................................................................... 150
5.1.5 Conteúdo temático................................................................................................. 154
5.2 Os conhecimentos verbalizados pelos poetas sobre os aspectos
composicionais do gênero cordel ........................................................................ 159
5.2.1 As rimas ................................................................................................................. 160
5.2.2 A métrica ............................................................................................................... 170
5.2.3 As modalidades de criação poética ....................................................................... 176
5.2.4 Oração ................................................................................................................... 177
5.3 Elementos paratextuais ....................................................................................... 182
5.3.1 Os títulos nos cordéis ............................................................................................ 182
5.3.2 As imagens nos folhetos ........................................................................................ 186
6 ANÁLISE DAS PRODUÇÕES E IDENTIFICAÇÕES DE
TRANSGRESSÕES DE ASPECTOS COMPOSICIONAIS (RIMA,
MÉTRICA E ORAÇÃO) DA LITERATURA DE CORDEL ......................... 194
6.1 Análise das produções de transgressões de rima, métrica e oração ................ 195
6.1.1 Análise das produções de transgressões de rima .............................................. 195
6.1.2 Análise das produções de transgressões de métrica .......................................... 204
6.1.3 Análise das produções de transgressões de oração ........................................... 210
6.2 Análise da atividade de identificação de transgressões .................................... 215
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 228
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 233
APÊNDICE A - Roteiro da entrevista para seleção dos participantes da
pesquisa ................................................................................................................. 249
APÊNDICE B - Termo de consentimento da participação da pessoa como
voluntária .............................................................................................................. 250
APÊNDICE C - Roteiro da entrevista semiestruturada 1 ............................... 253
APÊNDICE D - Roteiro de entrevista semiestruturada 2 ................................ 254
19

1 INTRODUÇÃO

Nossos olhos viajam no tempo. Assim, guiando-nos pelos caminhos de Clio,


conhecida como a musa grega da História, voltamo-nos há mais de cinco décadas passadas,
período no qual se difundiram os prognósticos de fim da literatura. Durante muitos anos,
utilizou-se a palavra “crise” para falar da “decadência” do cordel face o impacto avassalador
das tecnologias. Com efeito, no século XX, mais precisamente na década de 1960, com os
avanços tecnológicos (o advento do rádio e da televisão) e a grande circulação dos jornais,
alguns estudiosos proclamaram: “É o fim dos folhetos”. Nesse período, em que já se buscava
anunciar o final da modernidade, a morte também passou a ser a palavra de ordem nos
discursos sobre a literatura de cordel. Entretanto, todos os laudos cadavéricos foram apenas
uma mera especulação, pois o cordel não sucumbiu à profecia apocalíptica dos estudiosos
(MELO, 2003).
Mas se, por um lado, a revolução tecnológica, que ocorreu a partir da segunda
metade do século XX, não ocasionou, de modo algum, a destruição do gênero discursivo
cordel, por outro, alterou radicalmente os seus modos de produção, recepção e transmissão.
Bakhtin (2011) nos explica que essas transformações sofridas pelos gêneros são reflexos, de
uma maneira ou de outra, das mudanças nas práticas sociais e discursivas de que eles
participam, ou seja, eles tendem mesmo a se modificar à medida que as esferas de circulação
onde eles operam se desenvolvem e se complexificam.
Em vista disso, damos mais um salto no tempo para fazer jus à afirmativa de Miller
(2015) e retornamos ao presente. Para a autora, temos dificuldade, ainda no século XXI, de
entender a estabilidade e a mudança, a tradição e a inovação no campo dos estudos de
gêneros discursivos, e o cordel, por sua vez, não escapa a essa realidade. Partimos, então, da
premissa de que quando o cordel permanece e o mundo em volta dele muda, o cordel
também muda3. Do contrário, poderíamos cometer o equívoco, como dito por Galvão
(2005), de “congelar” a literatura de cordel em um dado tempo e espaço, apesar dela não ser
a-histórica, tampouco ocorrer à revelia do contexto histórico e cultural.
Cientes disto, decidimos dirigir o nosso olhar para a realidade que nos circunda. O
ano de 2017 se inicia e já escutamos os burburinhos sobre as possíveis atrações do São João
na “Capital do Forró”, nome atribuído à cidade de Caruaru, situada no agreste

3
Bourdieu (2011), em debate com Roger Chartier acerca das práticas de leitura, fez esta afirmação a respeito
do livro, o que nos inspirou a realizar esta proposição.
20

pernambucano. No Alto do Moura4, as tradições de arte em barro ganham uma mostra


especial com exposições, oficinas e apresentações das Bandas de Pífanos. Entre tantas
manifestações populares, a cidade sedia o Encontro de Mestres Mamulengueiros. No
Encontro do Clube de Leitura5, todos os anos, pessoas de diferentes idades se reúnem para
dividir as experiências vivenciadas com os livros, enquanto a Academia Caruaruense de
Literatura de Cordel (ACLC) comemora mais um ano de existência, tendo sido fundada em
2005 com o objetivo de difundir e valorizar o cordel, o repente, a xilogravura e as artes
afins. Desde 2006, o projeto Cordel nas Escolas oferta, durante todo o ano, oficinas de
poesia e cordel aos jovens das escolas públicas da região, na qual o Museu do Cordel
Olegário Fernandes passa a ser parada obrigatória e onde, anualmente, ocorre o Festival
Literário Arrasta Cordel.
Em Bezerros, cidade vizinha a Caruaru, em qualquer período do ano, podemos
apreciar diversos objetos da cultura regional na Casa da Cultura do Lula Vassoureiro, como
as tradicionais máscaras, bonecos, cordéis, cerâmicas e xilogravuras. Além dessa Casa, o
Museu da Xilogravura e Memorial J. Borges, sempre aberto a visitações, é composto por um
acervo formado por peças decorativas, folhetos, livros e matrizes xilográficas que foram
talhadas por J. Borges ao longo dos anos e que podem ser adquiridas pelos visitantes.
O município de Belo Jardim, também localizado na mesorregião do agreste
pernambucano, tem promovido, todos os anos, o tradicional evento “Noite de Poesias
Populares”, no qual artistas locais reúnem-se para apresentações de cantoria improvisada,
declamação de poesias/cordéis e contação de histórias. O projeto “Arrasta Cultura”, que
ocorre em Pesqueira, situada também em Pernambuco, tem reunido poetas e outros artistas
da cidade e região para apresentações culturais, como declamações e exposições de literatura
de cordel. Nas escolas têm sido realizadas, com certa frequência, cantorias e declamações de
poesias através do projeto “Cantigas e Poesias”.
Evidentemente, o fato é que nós, seres humanos, somos marcados pelas relações
concretas da vida social e histórica. As nossas identidades são resultantes de um processo de
identificação social e pessoal que ocorre através da cultura e não fora dela (HALL, 1997).
Por isso, este trabalho é profundamente marcado por esse universo cultural no qual me

4
Bairro localizado no município de Caruaru-PE, que se tornou um importante polo de produção de arte,
principalmente, produzido em barro.
5
O Clube de Leitura Caruaru é uma instituição sem fins lucrativos, fundada em outubro de 2012, e que tem
como propósito reunir pessoas, geralmente a cada bimestre, para compartilhar opiniões e emoções
proporcionadas pela leitura.
21

formei e ainda tenho me formado. Desse modo, a escolha do objeto de estudo desta
dissertação surgiu, sobretudo, a partir de duas motivações: o interesse acadêmico por um
tema de pesquisa ainda incipiente no Brasil - e, por isso mesmo, repleto de possibilidades e
reflexões - e pela minha trajetória pessoal com o cordel, que inclui as experiências que tive
como escriba e leitora dos poemas produzidos, oralmente, pelo meu pai e, também, por meu
avô, ambos poetas “analfabetos”6, que não sabiam ler e escrever convencionalmente, mas
que demonstravam outras formas possíveis de interagir com o escrito.
As práticas de produção e leitura de cordéis, ainda hoje, têm sido bastante comuns, já
que pessoas com diferentes níveis de domínio da leitura e escrita apropriam-se de diferentes
maneiras dessa literatura (ABREU, 2004). De acordo com Galvão (2006), a escolarização
restrita, pelo menos na época do apogeu da literatura de cordel, não impedia que as pessoas
“analfabetas” tivessem acesso, lessem ou ouvissem os folhetos. Isso indica que as relações
entre os indivíduos das camadas populares e o universo da escrita nunca estiveram
vinculadas estritamente à escola, pois, apesar de ela ter um papel fundamental nas
diferenciações quanto à participação dos sujeitos na cultura escrita, outras esferas de
socialização também operam como agências de letramento. O estudo das práticas
educativas, portanto, não pode ser restringido aos estudos das práticas de escolarização, já
que os modos de participação na cultura do escrito nunca estiveram única e exclusivamente
associados à escola e ao nível de escolarização (GALVÃO, 2000).
Segundo Abreu (1997), as trajetórias dos cordelistas eram bastante semelhantes,
sobretudo até a década de 1960: muitos deles nasceram no campo e eram filhos de pequenos
proprietários ou de trabalhadores assalariados; apresentavam pouca ou nenhuma
escolarização, embora vários fossem autodidatas ou tivessem aprendido a ler com familiares
e conhecidos; o aprendizado formal, em escolas, era pouco frequente e a escolarização não
era um requisito fundamental para o sucesso na carreira como cordelista, ainda que fosse
necessário o contato com alguns dos conteúdos da tradição letrada.
Contudo, Resende (2010), ao entrevistar poetas e editores entre 2002 e 2004, afirma
que houve um distanciamento desses poetas no que se refere à pouca escolarização que os
caracterizava no período tradicional. Essas mudanças, consoante a autora, não podem, de
modo algum, estarem dissociadas da enorme expansão da escolarização e do acesso à

6
Estamos utilizando esse termo, mas reconhecemos que ele apresenta algumas imprecisões conceituais, como
esclarece Soares (2014). No artigo de Ferraro (2002) sobre o analfabetismo e níveis de letramento no Brasil, o
autor chama atenção para as concepções (excludentes) que estiveram, ao longo da história, atreladas ao termo
analfabeto, que, no sentido epistemológico, significa a (n)alfabeto, aquele que é privado do alfabeto, ou seja,
que não sabe ler e escrever.
22

universidade, que, por sua vez, configuraram o final do século XX. Não é difícil, portanto,
perceber que o perfil dos cordelistas e dos leitores já não são mais os mesmos de décadas
passadas (OLIVEIRA, 1999; AMORIM, et al. 2010; QUINTELA, 2013).
É necessário considerar, igualmente, que, apesar das transformações operadas nas
práticas discursivas e sociais vinculadas ao cordel, algumas normas composicionais do
gênero (como as regras de rima, métrica e oração) têm sido menos flexíveis às mudanças. Os
cordelistas, ao que tudo indica, têm estado atentos a estes aspectos, considerando que eles
precisam mobilizar, durante o processo de escrita, conhecimentos de naturezas diversas e
tomar decisões tanto a nível macro (que envolvem aspectos como o conteúdo e a estrutura
do texto), quanto a nível micro (tais como os marcadores de coesão textual). No entanto,
conforme Cardoso (2001), embora os sujeitos, ao produzirem textos, mobilizem vários tipos
de conhecimento, a sua atenção está voltada, mais diretamente, para a atividade em si e não
para a reflexão sobre os processos cognitivos, sociais e linguísticos envolvidos. Nesta
dissertação, nosso interesse incide, principalmente, sobre conhecimentos de poetas sobre o
gênero cordel, o que a literatura especializada tem denominado de “consciência
metatextual”, uma dimensão da consciência metalinguística.
Ao longo desses últimos três decênios, pesquisadores vêm se voltando para o estudo
da consciência metalinguística, que consiste na reflexão consciente sobre diferentes
unidades da linguagem, incluindo o texto. No levantamento realizado por Maluf, Zanella e
Pagnez (2006) acerca das produções acadêmicas brasileiras (englobando dissertações, teses
e artigos) sobre o desenvolvimento metalinguístico e a linguagem escrita, no período de
1987 a 2004, verificou-se um aumento gradual no número de pesquisas sobre o tema. Tais
autoras consultaram, para esse levantamento, as seguintes bases de dados: Portal da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Portal da
Biblioteca Virtual de Psicologia: Banco de Dados LILACS (Literatura Latino-Americana e
do Caribe em Ciências da Saúde); SciELO (Scientific Electronic Library Online) e PEPsic
(Periódicos Eletrônicos em Psicologia).
Nesse estudo, foram encontrados 157 trabalhos, sendo 89 dissertações, 24 teses de
doutorado e 44 artigos. Uma primeira constatação feita pelas autoras foi a de que a
consciência fonológica era a habilidade metalinguística mais investigada, estando presentes
em 113 das teses/dissertações e 34 dos artigos. Se houve uma ênfase nos estudos sobre
consciência fonológica, em contrapartida, o percentual de pesquisas envolvendo a
consciência metatextual foi bastante limitado (4 teses e dissertações e 1 artigo). Além disso,
23

uma grande parte das pesquisas tinha como participantes crianças, sendo escassos, até aquele
momento, trabalhos envolvendo adultos.
Moura e Paula (2013) buscaram também fazer um balanço acerca das habilidades
metalinguísticas e a aquisição da linguagem escrita nas teses e dissertações7, no período de
2005 a 2010, ampliando o levantamento realizado por Maluf, Zanella e Pagnez (2006). As
autoras constataram que a produção anual quase que dobrou neste período, somando 187
estudos. Porém, esse aumento não foi acompanhado, igualmente, pela diversificação no tipo
de delineamento, faixa etária dos participantes e habilidades metalinguísticas
investigadas. Das 187 pesquisas encontradas, 47 eram teses de doutorado e 140
dissertações, sendo a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) a segunda instituição
com o maior número de trabalhos (18). Assim como no levantamento feito por Maluf,
Zanella e Pagnez (2006), no estudo conduzido por Moura e Paula (2013) observou-se que,
dentre as habilidades e conhecimentos metalinguísticos, a dimensão fonológica foi a mais
estudada. Apenas 4 pesquisas tratavam da consciência metatextual e, a maioria delas, tinham
como participantes as crianças, sendo ainda poucos os trabalhos com adultos.
Não é à toa que estudiosos(as), como Mota (2009) e Cunha e Santos (2014), tenham
discutido sobre a escassez de pesquisas sobre a consciência metatextual. Dos anos de 1987 a
2010, manteve-se praticamente inalterado o número de estudos sobre esse tema. Escassez
essa que parece se intensificar quando procuramos estudos envolvendo poetas. Tomando por
base o levantamento de Maluf, Zanella e Pagnez (2006), bem como o estudo realizado por
Moura e Paula (2013), mapeamos as produções acadêmicas sobre as habilidades
metalinguísticas entre o período de 2011 a junho de 2016.
Reunimos os trabalhos presentes no Banco de Dissertações e Teses da CAPES e
artigos e periódicos disponíveis no Portal da Biblioteca Virtual de Psicologia (acessado em
julho de 2016) com acesso direto aos sites SCIELO e PEPsic. A partir das análises,
encontramos o total de 229 trabalhos, sendo 139 teses e dissertações e 90 artigos e
periódicos. Em comparação às pesquisas supracitadas, verificamos que, em nível de
mestrado e doutorado, a consciência fonológica continuava sendo a habilidade
metalinguística mais estudada. Houve, no entanto, um aumento no número de trabalhos
envolvendo a consciência metatextual, totalizando oito (8) teses e dissertações, e, a partir de
2011, existiu um crescente interesse em pesquisar a consciência morfológica. Do ponto de

7
As respectivas autoras consultaram apenas o Banco de Teses e dissertações da CAPES.
24

vista dos participantes contemplados nesses estudos, as crianças continuavam apresentando


o maior quantitativo, tanto nos artigos quanto nas teses e dissertações. Por fim, cabe
enfatizar que ainda permanecem sendo poucos os estudos envolvendo adultos.
Realizamos, também, um mapeamento das produções acadêmicas, entre 2010 a
2016, sobre cordel e os poetas de bancada8. Ao investigarmos as pesquisas envolvendo o
cordel no Banco de Teses e Dissertações da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
averiguamos que, das 7 (sete) pesquisas encontradas neste repositório, 3 (três) delas estavam
vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), o que representou 43% do
total dos trabalhos encontrados. Em outras áreas do conhecimento (Letras e Linguística,
Geografia, Educação e Ciências da Informação) a quantidade de produções foi apenas de
uma (1). Chamamos atenção, também, para as abordagens metodológicas que consistiam
em: história oral (três); análise documental e entrevistas semiestruturadas (duas); análise
documental (uma) e estudo de caso com a realização de entrevistas semiestruturadas (uma).
Ante esses dados, parece-nos que, apesar de essas pesquisas abordarem temáticas variadas e
terem o cordel no epicentro do debate, ainda são incipientes os estudos envolvendo este
gênero e os seus produtores, na UFPE, sobretudo na área da educação.
Esta dissertação pretende, portanto, contribuir com a produção de conhecimentos
sobre o tema, além de colaborar para a compreensão dos saberes de um grupo específico de
adultos, com diferentes níveis de escolarização: os cordelistas. Apesar disso, buscamos, na
medida do possível, evitar comparações entre os grupos com menor e maior escolaridade,
pois, como alerta Kleiman (1995), este último poderia servir de norma e, com isso,
acabaríamos reforçando a dicotomia entre os que não sabem ler e escrever e aqueles que
sabem.
Para Régnier (1996), analisar as competências cognitivas de adultos pouco
escolarizados é algo bastante difícil, mas essa problemática é importante tanto do ponto de
vista teórico quanto metodológico. Ainda de acordo com a autora, esses processos
cognitivos estão diretamente relacionados com a cultura na qual esses participantes estão
inseridos. As regras de funcionamento da escola são diferentes das regras de funcionamento
cognitivo das pessoas pouco escolarizadas. Nessa perspectiva, a explicitação verbal é uma
tarefa a que os indivíduos analfabetos ou pouco escolarizados não estão habituados a
realizar, porque, em geral, as suas verbalizações costumam estar mais voltadas para a
atividade do que para análise dos processos cognitivos envolvidos (RÉGNIER, 1996).

8
Uma das denominações atribuídas àqueles que produzem cordéis.
25

Ao investigar a prática dos repentistas, suas técnicas e estratégias de criação poética


e improvisação, Sautchuk (2009) percebeu que, na cantoria, os poetas dependiam muito
mais dos conhecimentos incorporados através da prática do que, propriamente, de
conhecimentos poéticos explícitos. Segundo o autor, os conhecimentos das regras de rima,
métrica e oração não forneciam, por eles mesmos, a técnica para o improviso, pois as
habilidades do repente eram, majoritariamente, incorporadas através da prática e não,
necessariamente, por um saber reflexivo.
Neste sentido, Lahire (1998) tem defendido que, de modo geral, os indivíduos não
são espontaneamente conscientes daquilo que sabem e fazem. Assim sendo, pode ser
complexo falar sobre as aprendizagens que foram construídas implicitamente e não,
necessariamente, por meio de processos formais de ensino e aprendizagem. Destarte, dois
questionamentos se destacam: podemos afirmar que isso ocorreria com escritores
experientes, mesmo sendo pouco escolarizados? Será que todos os conhecimentos do gênero
e das suas diversas dimensões estão, para os sujeitos mais escolarizados, no “nível explícito
consciente verbalizável” (KARMILOFF-SMITH, 1994)?
Reconhecemos que as duas temáticas contempladas nesta pesquisa se relacionam a
áreas do conhecimento diferentes e com tradições teórico-metodológicas distintas.
Entretanto, resolvemos assumir os riscos decorrentes das nossas escolhas. Percebemos,
então, que, apesar das dificuldades, não apenas teóricas, mas também metodológicas, que
poderíamos enfrentar durante a produção deste trabalho, a opção pela intersecção entre os
temas “cordel” e “consciência metatextual” poderia ser muito pertinente para o campo da
pesquisa educacional e, por isso mesmo, buscamos cruzar duas áreas de pesquisa
comumente tratadas de modo separado.
Pelo que pudemos apurar, a pesquisa conduzida por Roazzi e outros (1994) foi a
única, até o momento, em território brasileiro, a abordar os conhecimentos metalinguísticos
de um grupo de poetas. Não obstante, tal investigação está voltada para o exame da
consciência fonológica de repentistas. Frente ao exposto, abrimos possibilidades para
analisar a consciência metatextual de poetas acerca do gênero discursivo cordel,
considerando as dimensões sociodiscursivas, temáticas, composicionais e paratextuais desse
gênero. Partindo dessas discussões, delimitamos como objetivos específicos investigar:

a) os aspectos (sociodiscursivos, composicionais, temáticos e paratextuais) do gênero


discursivo cordel que eram verbalizados pelos poetas;
26

b) os erros (de métrica, rima e oração) que os participantes conseguiam cometer e


justificar, durante a produção de transgressões por indução em um dos seus cordéis e
de outrem;

c) se os poetas conseguiam identificar e justificar transgressões de métrica, rima e


oração em algumas estrofes de cordéis que lhes foram disponibilizadas.

No decurso de escrita e análise dos dados, lançamos mão de enunciados já ditos e


que se tornaram referência em nossa cultura, numa espécie de reação-resposta aos
enunciados que nos precederam e aos que, também, nos sucederão, pois “o locutor não é o
Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a
nomear” (BAKHTIN, 2011, p. 300). Contudo, apesar de muito já ter sido dito sobre o cordel
e a consciência metatextual, acreditamos que ainda há muito a se dizer. Eis, portanto, um
dos desafios desta pesquisa.

1.1 Percurso trilhado: organização da dissertação

Já dizia o poeta espanhol Antônio Machado (2010) que, para o caminhante, não há
caminho, o caminho se faz ao caminhar. Neste sentido, podemos afirmar que, em nosso
itinerário investigativo, ao andarmos pelas veredas do desconhecido nos transformamos
durante o processo. No decorrer dessa caminhada, também, usamos como referência os
rastros deixados por outros, que nos serviram de apoio e nos ajudaram a seguir novos rumos,
a escolher outras trilhas. Na aventura do caminhar nos refizemos enquanto andarilhos e, por
isso, nas próximas andanças, já não seremos mais os mesmos. Assim, deixamos aos futuros
desbravadores as coordenadas do percurso trilhado, os caminhos (e possíveis descaminhos)
pelos quais enveredou esta pesquisa.
O nosso trajeto, nesta pesquisa, está, portanto, registrado em sete capítulos. O
primeiro deles está dedicado a esta introdução. No segundo capítulo, apoiamo-nos em
diferentes estudos para melhor refletir a respeito da temática dessa investigação. Logo,
propomo-nos dialogar com teóricos de várias áreas e cotejar os seus diferentes pontos de
vista, com o propósito de construir uma base analítica mais ampla. Por tais razões, foi
necessário, em nível de esclarecimento, refletirmos sobre a concepção de gênero discursivo.
Posteriormente, realizamos um breve histórico sobre o cordel (atentando para os aspectos do
gênero), para, a posteriori, enveredarmos pelo terreno ainda movediço do conceito de
cultura “popular”. Ademais, recorremos, em particular, a várias teorizações sobre a
consciência metatextual, sem, no entanto, ter a pretensão de considerá-las únicas e
27

definitivas, tampouco de esgotá-las. Na tessitura deste trabalho, as pesquisas acadêmicas que


perfizeram o estado do conhecimento, também, nos serviram como suporte, já que
iluminaram, de uma ou de outra forma, a nossa análise à medida que os dados foram
gerados.
No terceiro capítulo, apresentamos o levantamento das produções acadêmicas que
compuseram o Estado do Conhecimento. No primeiro momento, detivemo-nos nos estudos
envolvendo o cordel e, em seguida, sobre a consciência metalinguística.
O quarto capítulo foi direcionado à metodologia, na qual incluímos a abordagem da
pesquisa, a escolha dos colaboradores, dos procedimentos para geração e análises dos dados.
No que tange os capítulos cinco e seis, trouxemos as análises dos dados obtidos
através das entrevistas e atividade de produção e identificação de transgressões a certas
regras do cordel.
Por fim, fechando o capítulo 7, nas considerações finais, retomamos o nosso objetivo
de estudo e organizamos, sistematicamente, o conjunto de dados analisados, como também
elencamos algumas questões que ainda merecem ser ampliadas futuramente.
28

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Neste capítulo, deter-nos-emos, especificamente, em discutir sobre o gênero cordel e


a consciência metatextual. Para realizar tal tarefa, começaremos apresentando algumas
reflexões em torno dos gêneros discursivos, à luz da teoria bakhtiniana. Faremos, também,
uma breve incursão na história sobre o desenvolvimento do cordel no Brasil e traremos à
baila algumas concepções sobre a cultura “popular”. Em seguida, investiremos no debate
sobre a consciência metalinguística, com enfoque na consciência metatextual. Os estados do
conhecimento nos servirão como uma espécie de pano de fundo para estas discussões.

2.1 Cordel: gênero discursivo, literatura e cultura

2.1.1 Gêneros discursivos: entre a estabilidade e mudança

É sabido que, de acordo com a perspectiva teórica que se adote, um mesmo objeto
pode ser tratado de maneiras diversas. O conceito de gênero, por sua vez, não foge à regra.
Com efeito, diante da profusão de perspectivas epistemológicas, reiteramos que, nesta
dissertação, tomamos como substrato teórico a concepção sócio-histórica e dialógica de
Bakhtin (2011), considerando que este autor, nos termos de Marcuschi (2008), representa
uma espécie de “bom senso teórico” com relação à visão de linguagem. Por essa razão,
utilizamos, também, algumas das ferramentas conceituais elaboradas por aquele autor, em
especial, os conceitos de gênero discursivo e de suas dimensões (conteúdo temático,
construção composicional e estilo verbal); enunciados verbais e escritos; dialogismo e
compreensão responsiva ativa9.
Postas essas reflexões iniciais, partimos do entendimento de que, tal como nos
apresenta Bakhtin (2011), a língua é dialógica e não fruto de um ato monológico isolado
(subjetivismo idealista) ou um sistema abstrato de signos (objetivismo abstrato) como
pensavam alguns estudiosos. Na visão desse autor, a língua se configura no interior das
práticas sociais como um fenômeno da interação verbal, contrariando a ideia de Saussure
(1977, p.22) de que “a língua não constitui, pois, uma função do falante: é produto que o
indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação, e a reflexão nela intervém
somente para atividade de classificação [...]”.
Por defender a dialogicidade da língua, Bakhtin argumenta que não existe um
receptor passivo da mensagem proferida pelo falante, posto que, frente ao enunciado, o leitor
9
Ressaltamos que, apesar de apoiarmo-nos nos construtos bakhtinianos, não pretendemos realizar neste
trabalho uma análise dialógica do discurso.
29

ou ouvinte adota uma atitude responsiva ativa. Dito de outro modo, “o falante termina o seu
enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente
responsiva” (BAKHTIN, p.275). Nesse sentido, o leitor/ouvinte torna-se, agora, o locutor,
isto é, formula uma contra palavra diante da palavra do outro.
Todo enunciado proferido é determinado, como sugere Bakhtin, por três elementos
(ou fatores) que estão intimamente ligados, a saber: a relação entre o autor (a partir do seu
projeto discursivo) com os interlocutores; a alternância dos sujeitos falantes; e o acabamento
específico do enunciado, que corresponde à “possibilidade de responder – mais exatamente,
de adotar uma atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar uma ordem). […] É
necessário o acabamento para tornar possível uma reação ao enunciado” (BAKHTIN, p.
299).
Destacamos, ainda, que os sentidos, por sua vez, não estão dados a priori. Na
verdade, eles são construídos na interação verbal, resultante, dentre outros fatores, das
condições de produção: quem diz, para quem diz, em que situação tece este dizer e para
atingir determinados propósitos. Dessa maneira, a relação entre o locutor e os destinatários
não está orientada apenas pelo conteúdo do dizer, mas, sobretudo, por sua finalidade
discursiva.
As práticas de linguagem materializam-se por meio de um determinado gênero do
discurso. Então, para que a comunicação entre os falantes ocorra, cada sociedade carrega
consigo um legado de gêneros. Caso assim não fosse, atesta o próprio Bakhtin (2011), a
comunicação seria praticamente impossível. Nessa direção, ele esclarece:

Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do


outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, presentir-lhe o
gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo
discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim. […] Se não
existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos
de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria
quase impossível (BAKHTIN, 2011, p. 302).

Segundo Mendonça (2005), em nossa sociedade, são vastos e diferentes os gêneros


discursivos que escrevemos, lemos, falamos e ouvimos. Nas palavras de Bakhtin (2011),
todos nós dominamos um vasto repertório de gêneros (orais e escritos). Porém, nosso
domínio, num ou noutro gênero, dependerá da nossa circulação pelos diversos campos de
atuação humana. Com isso, estamos querendo dizer que teremos dificuldades em produzir
determinados textos e dominar os gêneros específicos de certas esferas sociais de uso da
linguagem nas quais não transitamos (ou pouco transitamos).
30

Quando um adulto se considera expert na escritura de um gênero específico


– pensemos no caso de um especialista em fazer atas –, isto não quer dizer
que o mesmo domine a escritura de um texto narrativo, explicativo, poético
ou argumentativo. Na verdade, os textos citados não apresentam as mesmas
características linguísticas: os tempos verbais, por exemplo, não são os
mesmos, assim como não são os mesmos os conectivos (PASQUIER;
DOLZ, 1996, p.1-2).

Os gêneros são, portanto, construções sociais, históricas e ideológicas que, face às


necessidades comunicativas dos indivíduos, estão suscetíveis a modificações e, como
corolário, “novos” gêneros podem emergir ancorados em outros já preexistentes, conforme
Bakhtin já havia observado ao se referir à “transmutação” dos gêneros e à assimilação de um
gênero por outro. Para ele, os gêneros

[...] refletem de modo mais imediato, preciso e flexível todas as mudanças


que transcorrem na vida social. Os enunciados e seus tipos, isto é, os
gêneros do discurso, são correias de transmissão entre a história da
sociedade e a história da linguagem. Nenhum fenômeno novo (fonético,
léxico, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter percorrido um
complexo e longo caminho de experimentação e elaboração de gêneros e
estilos. (BAKHTIN, 2011, p. 268.)

Por isso mesmo, Marcuschi (2008) explica que é muito difícil fazer uma
classificação de gêneros ou contá-los em sua totalidade, uma vez que são eles dinâmicos e
variáveis. De qualquer forma, vale lembrar o que aponta Antunes (2002): cada época e lugar
são marcados pela predominância de certos gêneros, os quais podem permanecer, transmutar
ou desaparecer.
Ainda na esteira dos estudos de Bakhtin (2011), os gêneros discursivos colocam em
funcionamento duas forças (des)reguladoras opostas, porém inter-relacionadas: uma que
responde por sua estabilidade e padronização (forças centrípetas) e outra por sua
desestabilização, tornando-os heterogêneos (forças centrífugas). Daí que “o gênero une
estabilidade e instabilidade, permanência e mudança. De um lado, reconhecem-se
propriedades comuns em conjuntos de textos; de outro, essas propriedades alteram-se
continuamente” (FIORIN, 2006, p.69).
Diríamos que eles servem como horizontes de expectativas para os leitores e
modelos de escrita para os seus produtores (TODOROV, 1980). Dito isto, entendemos que
cada esfera de atividade humana formula seus tipos relativamente estáveis de enunciados
constituídos por convenções e expectativas reconhecíveis e compartilhadas pelos seus
usuários (BAKHTIN, 2011), o que denominamos de gênero do discurso. Essa estabilidade
31

se deve, sobretudo, à recorrência de três elementos: o conteúdo temático, a construção


composicional e o estilo verbal.
O conteúdo temático diz respeito ao conjunto de temas que é tomado como objeto de
discurso por determinado gênero e definido pelo autor na relação com os seus interlocutores.
Podemos citar, a título de exemplo, os concursos de literatura de cordel que, embora tenham
uma temática específica, possibilitam que cada texto seja construído de modo a fazer ecoar
um tema sui generis. Em decorrência disso, Bakhtin explica que o conteúdo temático
contempla os aspectos vinculados à singularidade do locutor/escritor e os parâmetros
reguladores do gênero.
A construção composicional, por sua vez, refere-se ao modo de organização e
estruturação do gênero. Com relação ao arranjo textual do cordel, encontramos algumas
características que lhes são comuns, tais como a rima, a métrica e a oração, conforme
veremos mais detalhadamente na seção seguinte, que, apesar da aparente semelhança com o
repente, mantém inúmeras distinções com relação a ele (SANTOS, 2009).
O estilo verbal corresponde à seleção dos recursos lexicais (vocabulário),
fraseológicos (sintaxe) e gramaticais realizadas pelos falantes/ ou escritores. No cordel, por
exemplo, os poetas precisam eleger as rimas que comporão os versos. Muitos textos, desse
gênero, apresentam ainda traços do discurso oral, fazem uso de metáforas e os verbos são
frequentemente empregados na 1ª pessoa do plural, o que confere um estilo íntimo, que
resulta da proximidade entre o escritor/narrador e o leitor/ouvinte (RAMOS; PINTO, 2015).
O estilo verbal deve ser considerado como um efeito da individualidade (estilo individual)
do falante e da coletividade (estilo do gênero).
Esses três pilares do gênero, portanto, não são entendidos por Bakhtin (2011, p. 266)
separadamente, visto que “o estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o
que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais [...]”.
Nas variadas esferas de utilização da língua, os gêneros, também, são classificados
como primários ou secundários. São considerados gêneros primários (mais ligados às esferas
do cotidiano) as formas de diálogo que decorrem da interação face a face, da comunicação
verbal espontânea. Os gêneros secundários (típicos das esferas acadêmica e jornalística, por
exemplo) são mediados, predominantemente, pela escrita.
Compreendemos que as relações entre fala e escrita, gêneros primários e secundários
são complexas e não cabe, portanto, analisá-las a partir de uma visão dicotômica. Durante
muito tempo, foi renegada à literatura oral, por exemplo, o estatuto de texto artístico, já que
as suas formas se distanciavam das sacralizadas pelos cânones literários, cuja tradição
32

privilegiou a escrita. Todavia, parece-nos adequado considerar, conforme sugerem


Marcuschi e Dionísio (2007), que fala e escrita não competem entre si, mas se
complementam. Rojo (2006) busca, inclusive, relativizar essas polaridades, chamando
atenção para a forma dinâmica e mutuamente relacionada com que elas ocorrem no plano da
linguagem.
No cerne dessas reflexões, faz-se importante também, para fins de esclarecimento,
distinguirmos gênero discursivo e tipo textual, por empregarmos ambos os termos durante a
análise dos dados e reconhecermos, tal como Bezerra (2015), que têm sido relativamente
frequentes os equívocos em torno destes conceitos, inclusive na área dos estudos científicos
da linguagem. Corroboramos com este autor a respeito do fato de que cada texto possui, em
regra, sequências textuais (que podem ser narrativas, descritivas, argumentativas, injuntivas,
entre outras). Diante disso, parece possível dizer que, quando usamos o termo “narrativo”,
não estamos nos referindo a um gênero em especial, mas, sim, a uma sequência tipológica
(ou a um tipo textual) que pode estar presente em diversos gêneros. Estes, muitas vezes,
podem apresentar outras sequências que não são, necessariamente, predominantes: um
cordel, por exemplo, pode conter trechos descritivos sobre pessoas ou locais. Ramos e Pinto
(2015) atestam que, embora predomine a narrativa no cordel, há outras formas de expressão
em que não vigora essa tipologia, como as pelejas e abecês.
Nessa direção, Marcuschi (2008, p.156) evidencia que as sequências linguísticas são
“subjacentes à organização interna do texto”, enquanto os gêneros correspondem a como os
textos são materializados. Entendemos, em conformidade com o autor, que os gêneros e os
tipos textuais mantêm uma relação de complementariedade e não de oposição. Assim, o
autor define as duas noções:

(a) Tipo textual designa uma espécie de construção teórica {em geral
uma sequência subjacente aos textos} definida pela natureza linguística de
sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
lógicas, estilo}. O tipo caracteriza-se muito mais como sequências
linguísticas (sequências retóricas) do que como textos materializados; a
rigor, são modos textuais. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de
meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação,
exposição, descrição, injunção. O conjunto de categorias para designar
tipos textuais é limitado e sem tendência a aumentar. Quando predomina
um modo num dado texto concreto, dizemos que esse é um texto
argumentativo ou narrativo ou expositivo ou descritivo ou injuntivo.
(b) Gênero textual refere os textos materializados em situações
comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões
sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais,
objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de
33

forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. Em contraposição aos


tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações comunicativas e se
expressam em designações diversas, constituindo em princípio listagens
abertas. (...). Como tal, os gêneros são formas textuais escritas ou orais
bastante estáveis, histórica e socialmente situadas. (MARCUSCHI, 2008,
p. 154-155).
A compreensão dessas particularidades dos enunciados e, portanto, dos gêneros, nos
dão subsídios para discutir, na seção seguinte, o cordel como um gênero discursivo.
Seguindo estas pistas, passar-nos-emos, agora, a refletir sobre esse tema.

2.1.2 O “entre-lugar” da literatura de cordel

No entrelaçamento entre tradição e inovação, oral e escrito, clássico e “popular”, rural e


urbano, há o elemento de interseção que os liga, o “entre-lugar”. É nesse espaço que
situamos a literatura de cordel. Para falar sobre ela, inspirando-nos em Bakhtin (2011),
buscamos unir o texto e o contexto em que essa literatura foi gestada. Assim sendo, nessa
seção, nutrir-nos-emos de retomadas à outrora. Todavia, a fim de compreendermos a
literatura para além de um mero resgate à tradição, procuramos não nos aprisionar ao
passado. De início, perguntávamo-nos: o que caracteriza o cordel é o formato? Ou as
questões formais imbricadas no fazer poético? E mais: Existe, de fato, um novo cordel?
Essas indagações, também, espreitaram muitos pesquisadores. Contudo, antes mesmo
de buscar respostas, quiçá esclarecedoras, acerca dessa possível “nova” literatura de cordel,
voltamos um pouco na sua história. Galvão (2000) observa que no decurso histórico do
cordel diferentes denominações foram utilizadas para se referir a ele:

“Folheto”, “livrinho de feira”, “livro de histórias matutas”, “romance”,


“folhinhas”, “livrinhos”, “livrozinho ou livrinho véio”, “livro de história
antiga”, “livro de poesias matutas”, “foieto antigo”, “folheto de história de
matuto”, “poesias matutas”, “histórias de João Grilo”, “leitura e literatura
de cordel”, “história de João Martins de Athayde” ou simplesmente “livro”
(GALVÃO, 2000, p.21).

Mas, o epíteto “literatura de cordel” foi atribuído pelos estudiosos em função de um


tipo de literatura semelhante encontrada em Portugal. Em vários trabalhos, como demonstra
Pinto (2009), a literatura de cordel brasileira foi identificada como originária da literatura de
cordel portuguesa, com base, sobretudo, no pressuposto de que o fator temático seria
suficiente para pensar em uma possível filiação.
Em contrapartida, outros autores defenderam a ideia de que a origem do cordel
adveio das formas de poesia oral já existentes no nordeste brasileiro, constituindo-se, dessa
maneira, em um tipo de literatura distinta da europeia. Abreu (2006b), por exemplo, explica
34

era que as relações entre o cordel brasileiro e a literatura de cordel portuguesa são mínimas,
enquanto as diferenças são inúmeras. Dentre elas, a autora destaca que, em Portugal, os
poetas eram, predominantemente, adaptadores de textos clássicos na forma de poesia, as
narrativas eram, via regra, escritas em prosa e os cordéis portugueses tendiam a ser prolixos.
No Brasil, por sua vez, os poetas, em sua maioria, tiravam seu sustento da venda de versos
de própria autoria ou realizavam modificações decisivas nos textos que transpunham da
prosa para o verso10. Ainda conforme a autora, essa associação parece ter sido provável em
razão de que

[...] O contato com os cordéis portugueses pode ter engrossado o caldo,


aumentando o repertório de situações, temas, personagens, incorporados a
uma forma poética fixa, criada e aperfeiçoada pelos poetas nordestinos,
primeiramente no âmbito das cantorias orais e, posteriormente, por meio
dos folhetos impressos. [...] Diante das dificuldades sociais e econômicas
semelhantes, encontram-se soluções semelhantes. Publicar pequenas
brochuras, em papel barato, parece ser a melhor solução quando não se
possuem recursos para a edição de livros compostos segundo o padrão da
elite ou quando se atinge um público que não tem condições de adquirir ou
compreender esses livros [...] (ABREU, 2006b, p.134).

Diante dessa assertiva, o que parece sensato afirmar é que houve certa influência do
cordel português na formação da literatura de cordel brasileira (GALVÃO, 2000), embora
não seja suficiente para dizer que aquele serviu como fonte para o desenvolvimento dos
folhetos no Brasil. Desde 1950 pode-se evidenciar, no país, um movimento de mão dupla no
que concerne às produções científicas sobre o cordel: por um lado, a ênfase na ideia de
vínculo genealógico entre a literatura de folhetos e a literatura de cordel portuguesa e, por
outro, a valorização de uma literatura de cordel genuinamente nacional (QUINTELA, 2005).
Em termos gerais, o fato é que esta questão da origem da literatura de cordel encontra-se
longe de um consenso (GALVÃO, 2006; PINTO, 2009). Por isso, situaremos a discussão
em outro plano: no desenvolvimento deste gênero literário no Brasil.
Segundo Terra (1983), é no século XIX, mais especificamente nos idos de 1893, que
Leandro Gomes de Barros deu início à publicação dos folhetos no Nordeste. Para a autora,

Leandro foi sem dúvida o primeiro a produzir regularmente folhetos,


possibilitando assim esta literatura em toda sua especificidade. Toma
forma um processo conjunto de textos em permanente reedição. Tem início
um processo peculiar de produção e comercialização e constitui-se um
público para esta literatura (TERRA, 1983, p. 17).

10
No livro “Histórias de cordéis e folhetos”, Abreu (2006) aponta outras distinções entre a literatura de cordel
brasileira e o cordel português.
35

No início da impressão dos folhetos, as tiragens eram realizadas em tipografias


especializadas em produzir jornais ou que faziam serviços gráficos diversos. Apesar das
impressões dos cordéis terem sido iniciadas no final do século XIX, foi somente em 1909
que começam a funcionar as tipografias dos poetas (TERRA, 1983). Nesse processo, se
destacou o poeta e editor João Martins de Athayde, o primeiro a montar uma tipografia
especializada para imprimir seus próprios folhetos, em Recife, no ano de 1909. No entanto,
os cordéis publicados por ele que se têm registro datam de 1918. Como lembra Terra
(1983), Leandro Gomes de Barros nunca teve um impressor exclusivo para as suas obras,
costumando mandá-las para diversas tipografias no Recife e em João Pessoa.
Nas décadas de 1930 e 1950 a produção e distribuição de cordéis aumentaram
significativamente, o que fez com que surgisse a necessidade de profissionalização na edição
dos folhetos, antes feita em grande parte pelos próprios poetas. Galvão (2006) explica que
Leandro e Athayde11 foram os responsáveis pela fixação das normas de impressão que
vieram a ser seguidas a posteriori. Foi no século XX, portanto, que as características formais
do cordel começaram a ser definidas (ABREU, 2006b; TERRA, 1983) e se estabeleceu no
país o processo de edição, distribuição e formação do público leitor/ouvinte dos folhetos.
Os primeiros cordéis, como recorda Loureiro (2010), não traziam imagens em suas
capas (apenas o nome do cordel, do autor e, se fosse o caso, da editora apareciam). Por esse
motivo, passaram a denominá-lo de folhetos sem capa (ver Fig. 1).
Figura 1 – Folheto “sem capa” Os aviadores e a voagem pelo espaço

Fonte: Cruz (1922).

11
Abreu (2006) atribui a Athayde a responsabilidade de reformular as estruturas dos folhetos. Antes dele era
prática comum publicar uma história em mais de um cordel, de forma que cada parte da narrativa era contada
em folhetos diferentes. Era também muito usual a publicação numa brochura de 16 páginas, sendo que se a
história não fosse suficiente para abranger todo o espaço, eram inseridos sonetos, canções e poemas do autor,
mesmo que não estivessem, necessariamente, no padrão do cordel.
36

Nota: Folheto encontrado no Acervo Casa Rui Barbosa.

Um dos pioneiros na inserção de imagens nos folhetos foi Leandro Gomes de Barros,
que contratava desenhistas de cartazes de filmes de cinema do Recife (FARIAS FILHO,
2016). Outros poetas, seguidamente, começaram, também, a pagar ilustradores para compor
os desenhos que seriam colocados nas capas de seus folhetos, mas, segundo Farias Filho
(2016), as imagens utilizadas não eram todas inéditas, pois, com a modernização das
tipografias e o aumento da popularidade dos cinemas, os poetas apropriaram-se de imagens
de outras mídias, principalmente de jornais e cartazes de filmes. Para ilustrar isso, Loureiro
(2010, p. 266) utiliza o exemplo “da foto de Marlon Brando, vestindo a túnica romana no
filme de Júlio César, que no cordel é usado na capa do folheto O filho de Ali-Babá”, como
revela a Figura 2.
Figura 2 – Capa do Folheto O filho de Ali-Ba-Bá

Fonte: Sobrinho, [19--].


Nota: Folheto encontrado no Acervo Casa Rui Barbosa.

Logo que começaram a serem impressos folhetos com imagens nas capas, as
tipografias utilizavam para esta tarefa clichês de zinco na qual se gravava uma imagem ou
um texto para impressão em prensas tipográficas. No entanto, os clichês se desgastavam
muito e eram pouco econômicos. A utilização da xilografia, em substituição aos clichês de
zinco, foi atribuída, por Farias Filho (2016), a João Martins de Athayde. A associação entre
a literatura de cordel e a xilogravura foi, dessa maneira, uma construção realizada,
ulteriormente, pelos intelectuais que viam na gravura de madeira uma forma de expressão do
37

“popular”, do rural e, por consequência, do Nordeste (GALVÃO, 2005). Por conseguinte,


compreendemos que a xilogravura, embora constitua um elemento do cordel, decisivo em
sua formação, não pode ser com ele confundida (SANTOS, 2009).
Loureiro (2010), ao discorrer sobre a literatura de cordel brasileira, observou que as
imagens não se limitavam apenas à capa do cordel. Pelo contrário, vários são os exemplos
nos quais os poetas utilizavam imagens no interior do folheto, acompanhando o texto
principal e servindo para ilustrá-lo. Desse modo, as imagens passam a ser utilizadas,
conforme o autor supracitado, como uma segunda narrativa ou para completar espaços
narrativos dos textos, o que aproximou alguns folhetos da linguagem dos quadrinhos. Para
Loureiro (2010, p.268), a inserção de imagens foi capaz de aumentar a potencialidade e a
dramaticidade da escrita, ao proporcionar “novas ordens e técnicas narrativas, mediante a
combinação original de tempos e imagens em um relato de quadros descontínuos”.
Nos últimos quinze anos, a produção e difusão dos impressos, que demandavam dos
poetas o deslocamento até as tipografias e as feiras, foram sendo acrescidas da possibilidade
de composição gráfica, impressão e montagem dos folhetos por meio do computador, sem a
necessidade de se deslocar para outros espaços físicos (AMORIM, 2009). As ilustrações
presentes nos cordéis, por sua vez, não ficaram imunes às transformações do mundo ao seu
redor, sendo, portanto, uma forma de registro histórico dele. Diante dessa poética, que
transitou da boca para os ouvidos e da mão para os olhos, por meio de seus múltiplos
suportes, percebemos que a imagem do cordel já foi desenho à mão, já foi preto-e-branca, já
foi colorida, já foi fotografia, já foi cartão postal, já foi cartaz de Hollywood, já foi
xilogravura, já foi impressa em computador e até mesmo sequer existiu.
Neste sentido, podemos dizer que as imagens do cordel, tal como seus temas e
estilos12, são situadas histórica e socialmente e, à vista disso, está suscetível às mudanças.
Essas modificações são, também, resultado das estratégias de permanência do gênero.
Todavia, não se trata de uma evolução linear, pois esses diferentes formatos podem ter
coexistido ao longo da história do cordel, tendo sido abandonados e retomados em função
das necessidades sociais.
No que tange às temáticas, concordamos com os próprios poetas de que elas são
muito diversificadas, “chegando mesmo a não poder ser aquilatada a sua abrangência”
(RAMOS; PINTO, 2015, p. 48). Ademais, as histórias de amor, valentia e acontecimentos,

12
No cordel, também, vigoram diferentes estilos: as pelejas ou desafios, por exemplo, são marcadas pela
disputa entre poetas, em que um tenta depreciar o outro e alteram-se na criação dos versos. Nos ABCs, o
cordelista inicia cada estrofe com uma letra do alfabeto, indo da letra A até a Z.
38

por exemplo, não deixaram de existir, mas, na atualidade, muitos outros foram sendo
incorporados pelos cordelistas, a exemplo das lutas femininas para a inserção no mercado de
trabalho e de busca pela preservação do meio ambiente (AMORIM, 2009). Recorremos,
novamente, a Amorim e outros (2010), por afirmarem que,

No caso específico da literatura de cordel, igualmente a ampliação do nível


de escolaridade e as novas escolhas temáticas, as modificações no perfil
sócio-econômico do poeta e dos processos de distribuição, a dinâmica de
como e onde comercializar mostram o quanto a maleabilidade é benéfica e
garantia de continuada renovação do vigor. Graças à dinâmica da
cibercultura e ao novo gênero cordelístico das pelejas virtuais, o cordel
hoje circula não somente em feiras, também na Internet, nas bancas de
jornal e revista, nas livrarias, nas lojas e exposições de artesanato, nas
feiras de livros e festivais literários, nos recitais poéticos em que a palavra
dita/cantada tem prioridade e vai granjeando, pela vocalização dos poemas,
diversos novos grupos de apreciadores. As produções brasileiras estão
espalhadas pelo país, independente de serem protagonizadas por
nordestinos, por descendentes de nordestinos ou não. E, com a
diversificação de público e de meios de difusão, com o aprimoramento de
habilidades do poeta no manejo de linguagens e de ferramentas, o folheto
de cordel é feito em múltiplos espaços do país inteiro, desestabilizando a
idéia de que o “legítimo” cordel é exclusividade do meio rural ou, mais
precisamente, do “telúrico” e “rústico” mundo sertanejo (AMORIM et al.,
2010, p.150).
Em face deste comentário, voltamos às questões postas no introito desta seção, a
saber: diante antes das transformações ocasionadas pelo surgimento de novas tecnologias,
poderíamos dizer que, hoje, existe um novo cordel, completamente distinto (nas temáticas,
no suporte, nos propósitos comunicativos, na estrutura dos versos e nos leitores) daquele do
período tradicional?
Para Amorim (2009, p.140), o que se tem verificado é que a “tecnologia entra na
reengenharia do verso, na condição de ferramenta, sem desfigurar a fisionomia do cordel ou
uma ‘estética secular’ defendida pelo poeta”. A autora, então, destaca que as pelejas virtuais,
apesar das mudanças, estão diretamente vinculadas às pelejas reais dos repentistas e às
pelejas fictícias dos cordelistas, alicerçadas nas formas fixas da literatura de cordel.
A rima, a métrica e a oração representam os princípios que regem a escrita desse
gênero literário. Abreu (2006a), explica-nos que a composição das estrofes tem sido feita,
principalmente, na modalidade de sextilhas (ABCBDB), que são constituídas de estrofes de
seis versos com sete sílabas poéticas13. Nessa modalidade, o segundo verso deve rimar com

13
Na contagem de sílabas poéticas, que diferem das sílabas gramaticais, são desconsideradas as sílabas
posteriores à última tônica, caso o número de sílabas seja superior a sete. Exemplo: O/ cor/ del/ tem/
e/xi/gê/cias. A quantidade de sílabas poéticas são oito, mas a sílaba tônica (gê) é a sétima.
39

o quarto e o sexto verso, enquanto nenhum dos outros versos deve rimar. Vejamos, como
exemplo, uma estrofe de Jénerson Alves, cordelista caruaruense:

O ser humano imagina (A)


Tudo bem controlado, (B)
Mas fica inerte e atônito (C)
Diante o inesperado (B)
Vejo isso em Caruaru (D)
Meu torrão doce e amado (B)
(Tremores em Caruaru, p.1)

Após a sextilha, as modalidades mais populares na literatura de cordel são as setilhas


ou septilhas, estrofes de sete versos de sete sílabas poéticas, e as décimas, estrofes de dez
versos de sete (décima de sete pés) ou dez (martelo agalopado) sílabas poéticas. Alguns
poetas costumam denominar a setilha de “sete por sete”, face à quantidade equivalente de
versos e sílabas poéticas empregadas. No caso das septilhas, a distribuição das rimas é
ABCBDDB (o segundo, o quarto e o sétimo verso rimam entre si, enquanto o quinto e sexto
apresentam uma segunda rima). É o que podemos observar a seguir:

Eu estava há alguns anos (A)


Cansado, fraco, doente, (B)
Me levantava e caía (C)
Sem ir pra trás nem pra frente (B)
E achando que era incapaz (D)
De viver com força e paz, (D)
De maneira diferente (B)
(8 Dicas de Saúde, p 1)

As décimas apresentam, conforme apontamos anteriormente, variações na


quantidade de sílabas poéticas (sete ou dez), embora mantenham o mesmo número de versos
(dez). Como notaremos, esta modalidade tem, ainda, dois esquemas de rima:
ABABCCDEED e ABBAACCDDC.
Dormindo só no meu lar, (A)
Fui de súbito despertado (B)
Senti me faltando o ar, (A)
Totalmente angustiado (B)
Com néscias variações, (C)
Indecifráveis grilhões (C)
Prendendo meu corpo rude (D)
Em forte pranto caí (E)
Tentei dormir, não dormi, (E)
Tentei escrever, não pude. (D)
(Até que o inesperado me aquiete, p.5)
40

Muito rápido irei lhe responder (A)


Pra tirar nota dez na minha prova (B)
Repentista famoso é Vila Nova (B)
E o pai da química é Lavoisier (A)
Já Golias no humor pode crescer (A)
Capital Paraguaia é Assunção (C)
E Hitler foi um perverso alemão (C)
Causador de conflitos no passado (D)
Respondi seu martelo agalopado (D)
Quem responde martelo é campeão (C)
(Peleja entre Olegário Filho e Jénerson Alves, p. 2)

As quadras, que são compostas por quatro versos heptassilábicos e apresentam o


esquema ABAB ou ABCB de rimas, também, constituem uma das modalidades do cordel.

Mas Jonas ficou com medo (A)


De obedecer a Deus, (B)
Seguindo os desejos seus (B)
Foi para Tárcis bem cedo (A)
(O profeta Jonas, p. 1)

Vale ressaltar que a quadra foi a modalidade que deu início à literatura de cordel,
mas hoje não é, usualmente, empregada pelos cordelistas. Sautchuk (2009) atesta que muitas
modalidades de estrofes utilizadas na cantoria passaram a ser empregadas no cordel. Não
obstante, é preciso considerar, também, o movimento inverso, ou seja, a contribuição do
cordel para o repente nordestino (QUINTELA, 2005; SANTOS, 2009).
Quanto às rimas do cordel, elas devem ser preferivelmente consoantes, ou seja,
devem apresentar uma correspondência entre os fonemas desde a vogal tônica até o final da
última palavra do verso. Podemos dizer, assim, que Juazeiro rima com pedreiro e café com
Assaré, mas não com mulher. As rimas assonantes ou toantes, por sua vez, apresentam
coincidem apenas entre as vogais das sílabas tônicas, como em chapéu e menestrel. Esse
tipo de rima considerada, por diversos cordelistas como imperfeita, era muito comum até a
década de 1960, quando os poetas passaram a determinar que as rimas fossem consoantes,
provavelmente em função do aumento da escolarização e da necessidade de adequação aos
padrões de publicação e a um público mais exigente.
A métrica concerne ao ritmo marcado pela quantidade de sílabas poéticas. Ademais,
para alguns, embora não seja unânime, a métrica trata ainda da distribuição dos acentos
prosódicos (também nomeados de censura ou sisura) no interior dos versos. Por exemplo, na
sextilha, a 2a e a 7a sílabas do verso devem ser tônicas.
A oração é, como dissemos anteriormente, outro princípio que rege o cordel e
corresponde à unidade temática e articulação das ideias, tanto do ponto de vista lógico
41

quanto do textual. O conteúdo temático está, também, relacionado com a oração. As


possibilidades temáticas são tantas que listá-las seria uma atividade inócua (ABREU, 1993).
Entretanto, reconhecemos que, durante décadas, essa variedade despertou o interesse de
muitos pesquisadores, que, na tentativa de propor uma abordagem mais didática para a
literatura de cordel, dispuseram-se a classificá-las conforme os chamados “ciclos temáticos”.
Tais ciclos foram, comumente, utilizados para se referir a um conjunto de folhetos que
tinham um conteúdo temático em comum.
Como esteve diretamente ligada à oralidade, não surpreende que os principais palcos
dos cordéis tenham sido as feiras, tão comuns no interior brasileiro, onde seus autores –
também chamados de cordelistas ou poetas de bancada (GALVÃO, 2000) – declamavam
seus versos para uma variada plateia, formada de crianças a idosos, de compradores a
feirantes. Nessa direção, corroboramos com a ideia de Galvão (2005) de que não se pode
associar o gênero a certo perfil de leitor ou, ainda, a uma camada social e cultura específica.
Endossando esse raciocínio, Abreu (1993) discute que, embora grande parte do público
pertencesse predominantemente às classes populares, alguns setores das classes dominantes
“interessavam-se pelos folhetos, pois, apesar das diferenças econômicas, estavam também
imersos numa cultura oral e tinham como uma das principais fontes de lazer as histórias
narradas nos folhetos” (ABREU, 1993, p. 173).
Galvão (2006) constatou, por meio dos depoimentos dos leitores e ouvintes, entre
1930 e 1950, em Pernambuco, que a leitura e audição de cordéis estavam relacionadas, na
maioria dos casos, ao lazer. As argumentações dadas pelos depoentes, como ela indicou,
eram a falta de opções de diversão nos lugares onde viviam, a ausência da televisão e os
altos custos do rádio. Para mais, os folhetos eram tidos com fonte de informação e educação.
Em alguns dos relatos, os cordéis apareciam, até mesmo, como o principal motivador da
aprendizagem da leitura e escrita.
Apoiando-nos ainda em Galvão (2000), ressaltamos que, durante os anos 1960, a
literatura de cordel viveu um período de crise. A sua gradativa “morte” foi atribuída, pelos
estudiosos, a diferentes fatores: “a influência da televisão, a censura, a falta de interesse das
autoridades pela ‘arte popular’ e as transformações da sociedade em geral, cada vez mais
urbana e industrializada”14. Porém, para Melo (2003), a decadência da indústria dos folhetos
não pode ser conferida à televisão ou ao rádio, pois as cantorias passaram a ter, como
veículo de comunicação, o rádio como aliado em sua difusão. Mais à frente ela atesta que o

14
GALVÃO, Ibid.,p.35.
42

“declínio” das tipografias de cordel, no Nordeste, esteve mais relacionado ao aumento dos
custos da produção, à inflação e à crise econômica.
Tendo em vista os aspectos apontados, Amorim (2006) expõe que, no decorrer dos
últimos 50 anos, face os prenúncios de morte do cordel, surgiram folhetos datilografados,
copiados, digitalizados. Ainda, conforme a mesma autora, em torno das duas últimas
décadas, os folhetos passaram a serem impressos em computador, na própria residência dos
poetas, e divulgados através da internet, conquistando, até mesmo, outros suportes de
circulação e divulgação. Os folhetos, também, deixaram de ser, há muito tempo, produzidos
unicamente no nordeste brasileiro. Com a migração dos poetas e editores, os cordéis
ultrapassaram os confins dessa região, sedimentando-se em diversos locais, tais como: São
Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Belém do Pará, entre outros (AMORIM, 2006).
Na década de 1970, o cordel tornou-se centro de interesses por parte de turistas,
universitários brasileiros e estrangeiros (GALVÃO, 2006). De acordo com Certeau (2012),
foi necessário que a cultura popular estivesse “em vias de extinção” para se tornar objeto da
curiosidade científica, justamente quando se anulam os seus “perigos” por meio do uso de
medidas repressivas. No cerne desse debate, apontando uma questão que merece ser
discutida ainda que concisamente: o que é mesmo “popular”?

2.1.3 O termo “popular” sob a égide da cultura

A palavra cultura compõe um léxico de expressões cuja principal característica é a


multiplicidade de sentidos e definições que a ela podem ser atribuídos. De fato,
reconhecemos diferentes e, por vezes, contraditórios significados conferidos à palavra
cultura, bem como as ambiguidades, não menos frequentes, presentes no vocábulo popular.
Sabemos que quando acrescemos ao termo cultura o complemento popular acabamos por
adentrar em um território minado, repleto de tensões e com uma série de complexidades
analíticas. Por isso mesmo seria muito audacioso, da nossa parte, querer resolver, ou mesmo
aprofundar, todas as disputas existentes em torno desse tema, haja vista que a tentativa de
definição, no caso da “cultura popular”, não levaria a lugar nenhum, exceto a uma infindável
discussão acerca das suas fronteiras que, historicamente, insistem em se esvanecer (ABREU,
2003).
Apesar de a expressão cultura popular ter emergido desde a virada do século XVIII
(BURKE, 2010) e ter sido utilizada, com muita frequência, até a metade do século XX,
atualmente, ela tem sido evitada ou problematizada pelos estudiosos que optam por
43

empregá-la, sobretudo pelo seu caráter polissêmico e esquivo. Como consequência, ela não é
passível de definição simples e, tampouco, a priori (ABREU, 2003). Hoje, sabemos que
determinar de onde vem o “popular“ é uma busca inócua, porque não há resposta, uma vez
que ele é uma invenção social e não uma solução objetiva que se pretende obter. Afinal,
quem define o que é popular? E, além disto, será que o que se demarca como popular
equivale ao modo como as camadas populares definem a si mesmas?
Por essa razão, Chartier (1995) reconhece, com certo teor de denúncia, que a cultura
popular é uma categoria erudita destinada a “delimitar, caracterizar e nomear práticas que
nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo à ‘cultura popular’”15.
Precisamos, portanto, ter cuidado com certas generalizações, já que estas podem “distrair
nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes”
(THOMPSON, 1998, p. 17)16.
Historicamente, o interesse por este tema, como expõe Arantes (2007), foi marcado
pela negação do popular e muitos historiadores, antropólogos e folcloristas, no afã de definir
e delimitar a cultura popular, propuseram concepções equivocadas e com inúmeras
valorações negativas: se, por um lado, o povo é visto como desprovido de cultura, por outro
a cultura popular corresponde, para alguns estudiosos, às tradições nacionais que precisam
ser preservadas. Contudo, para o autor, ambas as concepções não se sustentam, na medida
em que pressupõem que a cultura “seja passível de cristalização, permanecendo imutável no
tempo a despeito das mudanças que ocorrem na sociedade, ou, quando muito, que ela esteja
em eterno ‘desaparecimento’” (ARANTES, 2007, p.27).
Burke (2010) explica que, no final do século XVIII e início do século XIX, período
em que a cultura popular tradicional estava começando a desaparecer, o “povo” tornou-se
mote de discussão dos intelectuais europeus por uma série de razões estéticas, intelectuais e
políticas. Para ele, é no período de consolidação dos estados nacionais que, na Europa,
buscava-se resgatar as produções culturais do “povo” e esse culto ao “povo” fazia parte de
um de um movimento “nativista” que, sob o fulcro das teorias positivistas, viam na figura do
camponês simples, “iletrado” e portador de uma rica tradição oral, o seu principal
representante. Entretanto, o camponês não era apreendido na sua função social, porque ele
correspondia ao que havia de mais isolado na civilização (ORTIZ, 1992). Acerca disso,
Abreu (2003) chama atenção para o fato de que

15
CHARTIER, Ibid., p. 179.
16
É importante esclarecer que Chartier e Thompson apresentam perspectivas teóricas diferentes: enquanto o
primeiro volta-se para a História Cultural, o segundo segue uma vertente Marxista.
44

Depois de os iluministas, no século XVIII, terem visto os camponeses e os


homens comuns como incultos e carentes de tudo, muitos românticos, ao
longo do século XIX, procuraram conhecer os costumes populares, as
expressões dos subalternos do mundo rural, elevando-as ao patamar das
marcas da nacionalidade contra tudo que fosse estrangeiro (ABREU, 2003.
p.3).

Assim, os intelectuais românticos do século XIX viram nas festas, nos contos e
canções populares uma forma de resistência cultural e de preservação de uma identidade
nacional (ROCHA, 2009), ao mesmo tempo em que foram os responsáveis pela fabricação
de um popular ingênuo e anônimo (ORTIZ, 1992). Esteve, também, muito presente nos
estudos sobre cordel a associação entre cultura popular, primitivismo e ingenuidade
(GALVÃO, 2005). Segundo essa autora, os poetas eram considerados os guardiões das
manifestações culturais que estariam ameaçadas de extinção. Esse ponto de vista,
preponderante a partir do Romantismo, garantia ainda à literatura denominada “culta” uma
individualidade da produção e à literatura de cordel, considerada “popular”, uma autoria
coletiva, posto que esta era entendida como parte da tradição oral (LUCENA, 2009).
Buscava-se, de igual modo, afirmar uma espécie de identidade nacional brasileira
desvinculada da antiga metrópole portuguesa (AYALA; AYALA, 2011), dado que o país já
não podia mais ser considerado uma “mera” cópia da metrópole. O meio e a raça eram tidos
como dois elementos imprescindíveis para a construção dessa identidade nacional e popular
(ORTIZ, 2006). É diante deste quadro que se reforça, por assim dizer, o imaginário do
Nordeste como o lugar do flagelado, “do arcaico, da imobilidade, da não-modernidade, do
rural, do folclore” (GALVÃO, 2005, p.114) e o cordel seria, portanto, a expressão mais
autêntica da cultura popular brasileira, desenvolvido, quase que exclusivamente, em alguns
estados do Nordeste, uma vez que eles teriam uma predisposição para acolher esse tipo de
literatura. Entretanto, esse imaginário, consoante a autora, seria o responsável por construir
uma visão a-histórica e, ao mesmo tempo, homogênea dessa região, por partir da ideia de
que

[...] nela, habitam homens aparentemente iguais entre si, que possuem
visões de mundo e costumes homogêneos, próximos aos observados na
Idade Média. Os folhetos refletiriam, então, essa “essência” do homem
nordestino: hospitaleiro, puro, ingênuo, triste, inerentemente criativo,
místico. “Homem nordestino”, para muitos desses autores, é sinônimo de
sertanejo: um rosto marcado pela seca e pelo sofrimento [...] (GALVÃO,
2005, p.114).

Foi partindo desses princípios evolucionistas e naturalistas que os primeiros


folcloristas conceberam o folclore como o estudo das “camadas inferiores” que não
45

conseguiam acompanhar o desenvolvimento geral da cultura, porque estavam, de certa


maneira, presas à tradição. Ao longo da sua trajetória, a literatura de cordel, foi caracterizada
pelos estudiosos ora como popular ora como folclore. Para Bourdieu (2006),
a maior parte das noções que os artistas e os críticos empregam para se
definirem ou para definirem os seus adversários são armas e objetivos de
lutas e muitas das categorias que os historiadores da arte utilizam para
pensar seu objeto são apenas categorias nativas mais ou menos sabiamente
disfarçadas ou transfiguradas. Estes conceitos de combate (...) tornam-se
pouco a pouco em categorias técnicas a que, graças à amnésia da gênese, as
dessecações da crítica e as dissertações acadêmicas ou as teses acadêmicas
conferem um ar de eternidade (BOURDIEU, 2006, p. 293).

Assim, podemos dizer que as concepções acerca do literário estiveram marcadas por
um conjunto de valores vigentes, de tal maneira que, a definição do que é literatura não
esteve (ou está) balizada, exclusivamente, por critérios estéticos, já que a seleção de algumas
obras, em detrimento de outras, esteve (e ainda está) intimamente relacionada às relações de
poder e de exclusão que ocorrem no seio da sociedade. Concebemos, tal como Lucena
(2009), que o emprego do adjetivo ”popular”, na verdade, marginaliza o poeta que não é
associado ao campo literário.

A escrita do “povo” até pode gozar do direito à Literatura, mas apenas na


condição de literatura popular. Ao “artista popular” é vedado o acesso à
Literatura, pois, se isso ocorresse, colocaria em questão o que é Literatura,
isto é, a divisão (que a todo custo se quer como inexistente) entre os que
podem escrever Literatura e os que não podem (LUCENA, 2009, p.83-84).

Nessa tessitura, Ortiz (1992) afirma que se a história cultural tradicional sempre
esteve preocupada em explicar os feitos dos “grandes homens”, dos “grandes clássicos”, das
“grandes narrativas”, a Nova História Cultural se concentrou em construir uma abordagem
da “história vista de baixo”. Associada à Escola dos Annales, a Nova História Cultural
partiu do princípio de que a realidade seria socialmente e culturalmente produzida. Destarte,
o que antes era considerado imutável passa a ser compreendido como uma “construção
social” sujeita a variações, tanto em função da sua época quanto do seu contexto (BURKE et
al., 1992). Por essa razão, Burke (2010), Ortiz (1992) e Canclini (1989) consideraram que a
cultura só poderia ser entendida no plural (culturas populares), já que não constitui um
complexo uniforme, mas, sim, um conjunto de conhecimentos, crenças, representações e
práticas que variam em função do tempo e espaço.
Nessa concepção, a cultura popular não constituiria uma categoria oposta à cultura
erudita, pois, embora fossem distintas, elas se entrecruzariam. Bakhtin (2013) demonstrou a
heterogeneidade das manifestações culturais, ao analisar a cultura cômica popular na Idade
46

Média e no Renascimento, através da obra de François Rabelais, escritor francês que se opôs
à cultura oficial dominante na medida em que descreveu e recriou o “popular” da época.
Segundo Bakhtin (2013), as múltiplas manifestações da cultura cômica popular poderiam ser
subdivididas em três categorias que se conectam e inter-relacionam: as formas dos ritos e
espetáculos (especialmente, o carnaval), as obras cômicas verbais (orais e escritas, em latim
ou em língua vulgar) e o vocabulário familiar e grosseiro. Essas manifestações seriam
capazes de criar uma “dualidade do mundo” em oposição à cultura oficial (da Igreja e do
Estado). Este autor identificou que, no período do Renascimento e, principalmente, na Idade
Média, havia um profundo diálogo entre a cultura cômica popular e a oficial, algo que o
autor denominou de circularidade cultural.
Burke (2010), também, reconheceu, através de inúmeros exemplos, que a nobreza do
século XV e XVI se apropriava dos costumes da plebe. Contudo, Redfield sugeriu, como
esclarece Burke (2010), que haveria duas tradições culturais no início da Europa Moderna: a
"grande tradição", pertencente a uma minoria “culta”, e a "pequena tradição", atribuída aos
“incultos”. Burke (2010) propôs, então, uma reformulação no modelo apresentado por
Redfield, haja vista que, para aquele autor, existiram duas tradições culturais da Europa do
século XV, mas elas não correspondiam proporcionalmente aos dois principais grupos
sociais, a elite e o povo comum. Essa assimetria emergiu porque as duas tradições eram
transmitidas de modos distintos: a “grande tradição” era divulgada formalmente nos liceus e
universidades da época, sendo, assim, restrita ao grupo que frequentava essas instituições; a
“pequena tradição”, por sua vez, era difundida informalmente e estava aberta a todos. De
acordo com o autor, o fato é que a elite se apropriava, de certo modo, da pequena tradição,
embora não ocorresse o contrário.

Assim, a diferença cultural crucial nos inícios da Europa moderna (quero


argumentar) estava entre a maioria, para quem a cultura popular era a única
cultura, e a minoria, que tinha acesso à grande tradição, mas que
participava da pequena tradição enquanto uma segunda cultura. Essa
minoria era anfíbia, bicultural e também bilíngue. Enquanto a maioria do
povo falava apenas o seu dialeto regional e nada mais, a elite falava ou
escrevia latim ou uma forma literária do vernáculo, e continuava a saber
falar em dialeto, como segunda ou terceira língua. Para a elite, mas apenas
para ela, as duas tradições tinham funções psicológicas diferentes: a grande
tradição era séria, a pequena tradição era diversão (BURKE, 2010, p. 51-
52).

Determinados grupos atuavam como mediadores entre as duas culturas. Por isso
mesmo, nessa época, poderíamos dizer que a Europa era constituída por três e não apenas
duas culturas, uma vez que
47

Entre a cultura letrada e a cultura oral tradicional vinha o que se poderia


chamar de "cultura de folhetos", a cultura dos semiletrados, que tinham
freqüentado a escola, mas não por muito tempo [...]. Essa cultura de
folhetim pode ser vista como uma forma inicial daquilo que Dwight
Macdonald chama de midcult, situada entre a grande e a pequena tradição,
alimentando-se de ambas (BURKE, 2010, p. 87).

Para Burke essa dificuldade de definição acerca do que é o “povo” demonstra, no


mínimo, a ideia de que a cultura popular não é monolítica e tampouco homogênea (BURKE,
2010). Márcia Abreu (2004), em um estudo comparativo entre obras da literatura erudita e
suas versões para folhetos de cordel, revelou que muitos autores dos folhetos costumavam
fazer adaptações com base nos textos da literatura erudita, o que requeria uma série de
alterações, não apenas na estrutura dos textos, mas, também, no próprio conteúdo da
narrativa. De certo, os folhetos e os livretos também eram contaminados pela grande
tradição. Sendo assim, podemos supor que

A espinha dorsal dessa cultura de folhetos consistia nos oficiais


impressores, que participavam da cultura artesã, mas tinham familiaridade
com o mundo dos livros. Como as mulheres da nobreza, eles estavam numa
boa posição para servirem de intermediários entre a grande e a pequena
tradição (BURKE, 2010, p. 88).

Muitos desses impressos, ainda que retratassem a vida dos camponeses e artesãos,
haviam sido escritos por nobres, padres e doutores. Isso significa que era impossível, no
início da Europa Moderna, realizar uma abordagem direta com a cultura popular, já que
muitas dessas obras eram, em geral, escritas e consumidas pela elite (BURKE, 2010). Abreu
(2006b) atestou que, em Portugal, nos anos oitocentos, os folhetos não eram basicamente
populares, por isso “não se poderia tentar defini-lo como uma literatura dirigida
exclusivamente às camadas pobres ou pressupor que ela expusesse e revelasse o ponto de
vista popular, visto o interesse que despertava desde o rei até as senhoras da corte” (p.45).
Nos séculos XVI e XVIII, com a grande circulação dos materiais impressos,
alteraram-se, radicalmente, as formas de sociabilidade e as próprias relações com o poder
(CHARTIER, 1991). Com o surgimento da impressa houve, de certa maneira, um
rompimento com o monopólio da escrita e isso contribuiu diretamente para o
entrecruzamento das culturas.

[...] A invenção do alfabeto - que cerca de quinze séculos antes de Cristo


quebrou pela primeira vez esse monopólio - não foi suficiente, contudo,
para pôr a palavra à disposição de todos. Somente a imprensa tornou mais
concreta essa possibilidade. [...] A idéia de cultura como privilégio fora
48

gravemente ferida (com certeza não eliminada) pela invenção da imprensa


(GINZBURG, 2006, p. 104-105).

Carlo Ginzburg, na década de 1970, retratou as ideias do moleiro Domenico


Scandella, dito Menocchio, perseguido pela Inquisição no século XVI. Conforme o autor,
Menocchio viveu em uma época de intensas transformações, ocasionadas, sobretudo, pela
invenção da imprensa, a reforma protestante de Martinho Lutero e a contrarreforma da Igreja
Católica. Nessa época, os impressos destinados ao público “popular” eram carregados de
inúmeras intenções, sobretudo cristianizadoras (CHARTIER, 1995), mas a sua recepção,
pelas classes populares, não ocorria por uma mera assimilação passiva. Podemos dizer, isto
sim, que

A descrição das normas e das disciplinas, dos textos ou das palavras com
os quais a cultura reformada (ou contra-reformada) e absolutista pretendia
submeter os povos não significa que estes foram real, total e
universalmente submetidos. É preciso, ao contrário, postular que existe um
espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção e a prática, entre o
sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se
reformulações e deturpações (CHARTIER, 1995, p.182).

De acordo com Ginzburg (2006), Menocchio costumava ler os textos canônicos, mas
a partir do crivo da tradição oral, o que o levou a, mais tarde, formular opiniões bastante
singulares, isto porque a leitura realizada por Menocchio escapava a qualquer modelo pré-
estabelecido, já que ele recriava, em confronto com a tradição oral, as páginas impressas às
quais tinha acesso. É certo que muitos estudos têm buscado caracterizar a leitura “popular” a
partir de Menocchio, mas Chartier (1995), ao analisar a obra, evidencia que essa concepção,
ainda que pertinente, deva ser problematizada, ao passo que

As formas populares das práticas nunca se desenvolvem num universo


simbólico separado e específico; sua diferença é sempre construída através
das mediações e das dependências que as unem aos modelos e às normas
dominantes (CHARTIER 1995, p. 189).

Consoante Chartier (1995), essa literatura dita popular não difere radicalmente da
literatura da elite que impõe seus próprios repertórios e modelos. Ela é compartilhada por
diferentes meios sociais e não única, e exclusivamente, pelos meios populares. Nesse
sentido,

Realizar o cruzamento entre a cultura popular e a cultura erudita não


significa, assim, sobrepor esses dois conjuntos como se eles pudessem ser
estabelecidos a priori. Significa, ao contrário, considerá-los como “ligas”
49

culturais ou intelectuais, cujos elementos se encontram solidamente


incorporados uns nos outros (GALVÃO; DI PIERRO, 2012, p. 94).

Tendo esses aspectos em vista, é preciso descontruir essas delimitações rígidas e


antinomias marcadas pelo erudito versus popular ou leitura versus escrita. A intenção, nesta
seção, foi, portanto, a de colocar em relevo algumas ideias preliminares sobre o tratamento
dado, por diferentes autores, à cultura e ao termo “popular”, sobretudo, no que se refere à
literatura de cordel.
De modo sucinto, compreendemos que a cultura foi construída historicamente a
partir de diferentes paradigmas conceituais que sofreram, ao longo do tempo, inúmeras
variações. Com efeito, partimos do pressuposto de que a cultura é dinâmica, social, e que,
por isso mesmo, transforma-se permanentemente, de tal maneira que os indivíduos não são
apenas produtos dela, mas, também, seus produtores.

2.1.4 Estado do conhecimento: o que dizem recentes pesquisas sobre cordel?

A escrita constituiu uma das mais importantes invenções da humanidade. Estudos


como o de Chartier (2002) têm demonstrado que ela não emergiu por acaso, mas,
principalmente, da necessidade dos seres humanos de registrar informações. Temos,
também, frequentemente, lançado mão da escrita com o intento de compreender como o
conhecimento vem sendo construído, as continuidades e rupturas teóricas daquilo que hoje
denominamos de pesquisa científica.
Partimos do pressuposto de que os acontecimentos atuais adquirem significados na
relação que estabelecem com o contexto dos fatos passados (RICHARDSON, 1999). Nesse
sentindo, entendemos, assim como Bakhtin (2011), que, em cada época e esfera social, os
sujeitos lançam mão de enunciados já ditos e que se tornaram referência em sua cultura. Este
trabalho, portanto, não é indiferente aos ditos alhures e aos ainda não ditos. Pelo contrário,
ele reflete e dialoga com os outros dizeres, numa espécie de reação-resposta aos enunciados
que os precederam e aos que, também, os sucederão. Por isso, ao refletirmos sobre as
produções acadêmicas que se aproximam da nossa problemática, consideramo-las como
fruto de uma produção histórico-cultural situada em um determinando espaço-tempo.
Buscamos, então, dialogar com as produções que se aproximam de nossa temática de
investigação com o intuito de interrogar a própria história de uma parcela da produção
acadêmica no Brasil. Afinal, qual o olhar dos trabalhos acadêmicos a respeito do cordel? Se
é possível afirmar que muitos debates têm sido empreendidos sobre este tema, parece-nos
50

oportuno perguntar em que medida eles permitem-nos pensar sobre a temática da nossa
investigação. Frente a isto, nesta seção, mapeamos e discutimos pesquisas acadêmicas, de
diferentes campos do conhecimento, que mantêm alguma relação com o tema “cordel”.
Muitas dessas pesquisas, como iremos perceber, apresentam o cordel como coadjuvante e
outros estudos, em menor proporção, os colocam como objeto de exame.

2.1.4.1 Cordel: levantamento de dissertações e teses, no Instituto Brasileiro de Informação


em Ciência e Tecnologia, no período de 2010 a 2016

Diante do crescente número de teses e dissertações publicadas no Brasil, nas últimas


décadas, ocasionado, sobretudo, pelo aumento no número de programas de pós-graduação
em todo o país, consideramos que a compreensão do processo de construção do
conhecimento em torno do cordel constituiria um movimento necessário de reflexão. Ante,
pois, o propósito de contribuir para uma análise das pesquisas concernentes a este tema,
questionamo-nos: como o cordel, na contemporaneidade, é tratado pelas teses e dissertações,
que a ele se dedicam?
Dado o grande número de trabalhos existentes no Banco de Teses e Dissertações da
Capes, detivemo-nos em analisar apenas as pesquisas presentes no site do IBICT (Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia) e no Banco de Teses e Dissertações da
UFPE. Na base de dados do IBICT, localizamos, a partir do uso do termo “cordel” e
restringindo a busca tanto pelo assunto (cordel) quanto pelo recorte temporal (2010 a 2016),
o total de 72 trabalhos (excluindo repetições), sendo 19 teses e 53 dissertações. Desse
quantitativo, 5 (cinco) estão presentes no mapeamento das teses e dissertações da UFPE,
conforme podemos observar no Gráfico 1, a seguir.
51

Gráfico 1 – Distribuição de teses e dissertações, por ano de publicação, encontradas no


IBICT, de 2010 a 2016

Teses Dissertações

12
11

7
6
5 5
4 4
3 3
2
1

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016


Fonte: A Autora (2017)

Observamos, no Gráfico 1, que em 2016 tivemos um número maior de publicações


anuais, chegando a 12 dissertações, mas, neste ano, não encontramos nenhuma tese. O
número de dissertações foi superior ao de teses, salvo no ano de 2014. Percebemos, ainda,
que 24 destes trabalhos (33% das teses e dissertações encontradas) foram produzidos nos
Programas de Pós-graduação em Letras, conforme dados da Tabela 1.

Tabela 1 – Programas de Pós-graduação em que foram publicadas teses e dissertações


sobre cordel, no IBICT, entre os anos de 2010 e 2016
Área do Programa de Pós-graduação Total

Antropologia Social 1
Artes 2
Ciência da Informação 1
Ciência da Religião 1
Comunicação e Semiótica 2
Desenho, cultura e Interatividade 1
Ensino de Ciências e Matemática 1
Estudos Culturais 1
Estudos da Linguagem 2
Estudos da Linguagem e Letras 1
Estudos da Mídia 1
Educação 1
Formação de Professores 2
Geografia 1
História 7
Letras 25
Língua Portuguesa 1
52

Linguística 6
Literatura 2
Literatura e Crítica Literária 1
Literatura e Diversidade Cultural 1
Literatura e interculturalidade 7
Psicologia 1
Serviço Social 1
Sociologia 2
Total 72
Fonte: A Autora (2017)

Consideramos pertinente, também, mapearmos as instituições de fomento das teses e


dissertações, como averiguamos na Tabela 2, a seguir:

Tabela 2 – Instituições em que foram publicadas teses e dissertações sobre cordel, no


IBICT, entre os anos de 2010 e 2016
Instituição Total
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 7
Universidade Católica de Pernambuco 1
Universidade de Brasília 1
Universidade de Fortaleza 1
Universidade de São Paulo 2
Universidade de Viçosa 1
Universidade do Estado da Bahia/ Pontifícia 1
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Universidade Estadual da Paraíba 10
Universidade Estadual de Campinas 2
Universidade Estadual de Feira de Santana 2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná 1
Universidade Estadual Paulista 1
Universidade Federal da Paraíba 8
Universidade Federal de Pernambuco 5

Universidade Federal de Campinas 2


Universidade Federal de Juiz de Fora 1
Universidade Federal de Minas Gerais 2
Universidade Federal de Ouro Preto 1
Universidade Federal de Santa Catarina 2
Universidade federal de São Carlos 3
Universidade Federal de Sergipe 4
53

Universidade Federal do Ceará 7


Universidade Federal do Pará 1
Universidade Federal do Paraná 1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 5
Total 72
Fonte: A Autora (2017)

A Universidade Estadual da Paraíba e a Universidade Federal da Paraíba


apresentaram o maior percentual de publicações sobre o tema cordel, representando,
respectivamente, 10 (14%) e 8 (11%) do total de teses e dissertações encontradas neste
repositório. Diante do panorama traçado, percebemos que este gênero tem sido objeto de
investigação das teses e dissertações, contudo, encontramos, neste arrolamento, poucos
estudos que tinham os cordelistas como participantes da pesquisa e, além disso, nenhum
deles tratavam da consciência metatextual do gênero.

2.1.4.2 Cordel: o que revelam as dissertações e teses da UFPE, de 2010 a 2016

Examinamos, também, os trabalhos presentes no Banco de Teses e Dissertações da


UFPE. Para tanto, utilizamos como palavra-chave o termo “cordel” e como recorte temporal
os estudos publicados neste repositório entre os anos de 2010 e 2016. Neste primeiro
levantamento, obtivemos uma listagem de 249 trabalhos de diferentes áreas do
conhecimento. Realizamos a leitura dos resumos dessas pesquisas e, em vários casos, dos
trabalhos por completo. Evidenciamos, que, em muitos deles, o cordel não era objeto de
análise ou até mesmo de discussão. Excluímos, portanto, as pesquisas em que o cordel era
pouco referenciado e que, por não se deterem a este tema, não correspondiam ao propósito
dessa investigação.
Assim, alguns desses estudos eliminados apresentavam o cordel como um dos
achados e não, propriamente, como um objeto de investigação. À guisa de exemplo,
podemos citar o estudo conduzido por Costa (2012), que pretendeu caracterizar e analisar os
murais didáticos elaborados por alunos do ensino fundamental II e do ensino médio,
oriundos de escolas públicas e privadas. Um dos murais investigados pela autora foi
elaborado em torno do gênero discursivo cordel. Costa (2012), então, constatou que o
objetivo desse mural era o de, exclusivamente, socializar as produções dos alunos em torno
do gênero e embora isto não tivesse alterado a estrutura do cordel, a sua funcionalidade
54

imediata havia sido afetada, pois apresentava características distintas sob o ponto de vista da
textualização.
Santos (2015), também, teceu algumas considerações em torno do cordel, ao
problematizar os usos e os significados das práticas de leitura e escrita ocorridas em uma
escola do campo. Para trabalhar este gênero literário, a autora percebeu que uma professora
do 5º ano do ensino fundamental se utilizava de outros gêneros discursivos, como a
entrevista e o relato, porque eram aqueles com que as crianças tinham maior familiaridade.
Após a análise de todos os trabalhos e atendendo aos requisitos supracitados de
seleção desses estudos, restaram apenas 7 pesquisas, sendo 4 teses e 3 dissertações, como
podemos observar no Gráfico 2.

Gráfico 2 – Distribuição de teses e dissertações, por ano de publicação, defendidas na


UFPE
2.5

1.5
Teses

1 Dissertações

0.5

0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Fonte: A Autora (2017)

Notamos, no Gráfico 2, que durante os anos de 2010, 2012, 2013, 2015 e 2016 houve
poucas publicações (uma ou duas em cada ano) e, no caso de 2011 e 2014, não foram
encontrados trabalhos que atendessem aos requisitos deste estudo. Contudo, isso não
significa dizer que o cordel não tenha sido pesquisado nesse período, pois reconhecemos que
poderíamos ter elegido outras palavras-chaves (como folheto, livreto e outras) em
substituição ao vocábulo cordel. No entanto, ainda parecem ser poucos os trabalhos que se
detêm a esta temática na base de dados estudada.
No que se refere às áreas nas quais esses trabalhos foram produzidos, constatamos,
no Gráfico 3, que a grande maioria de teses e dissertações sobre cordel foi produzida na área
de História (3), o que representa 43% do total dos trabalhos encontrados. Nas demais áreas
55

do conhecimento (Letras e Linguística, Geografia, Educação e Ciências da Informação), a


quantidade de produções foi a mesma (1), como fica evidente no Gráfico 3.
Gráfico 3 – Áreas de origem das teses e dissertações sobre cordel produzidas na UFPE, no
período de 2010 a 2016

Geografia

Educação

Ciências da Informação

História

Letras e Linguística

0 0.5 1 1.5 2 2.5 3 3.5


Letras e Ciências da
História Educação Geografia
Linguística Informação
Total 1 3 1 1 1

Fonte: A Autora (2017)

Apesar da escassez, no que se refere ao número de trabalhos, as temáticas


contempladas nestas pesquisas foram bastante variadas, como exposto no Quadro 1.

Quadro 1 – Temática das teses e dissertações sobre cordel produzidas na UFPE, no


período de 2010 a 2016
TEMAS DAS DISSERTAÇÕES E TESES ÁREAS DO CONHECIMENTO
Informação e memória na literatura de cordel Mestrado em Ciências da
Informação
Memórias da educação pelo cordel em Recife na Mestrado em Educação
década de 70
J. Borges entre folhetos e xilogravuras na década de Doutorado em História
1970
A (re)criação do imaginário Lampiônico como Mestrado em Geografia
tradição da cultura serratalhadense
A Trajetória do Poeta José Costa Leite Doutorado em História
As representações identitárias femininas no cordel do Doutorado em Letras
século XX ao XXI
História de botijas e os labirintos do universo Doutorado em História
assombroso na Paraíba
Fonte: A Autora (2017)
56

Concomitantemente às áreas de conhecimento investigadas e às temáticas abordadas


nessas investigações, buscamos, também, observar os procedimentos metodológicos
comumente utilizados nessas teses e dissertações (GRÁFICO 4).

Gráfico 4 – Metodologias empregadas nas teses e dissertações sobre cordel produzidas na UFPE,
no período de 2010 a 2016

Estudo de Caso, Entrevistas


semiestruturadas e Análise…
Análise Documental e Entrevistas
semiestruturadas

Análise Documental

História oral

0 0.5 1 1.5 2 2.5 3 3.5


Estudo de Caso,
Análise
Entrevistas
Análise Documental e
História oral semiestruturadas e
Documental Entrevistas
Análise
semiestruturadas
Documental
Dissertações 0 0 2 1
Teses 3 1 0 0

Fonte: A Autora (2017)

No Gráfico 4, percebemos que a técnica de história oral, utilizada nas teses em


História, obteve uma maior incidência nesses estudos (3). Nessa direção, podemos citar a
tese produzida por Cabral (2016), que, a fim de investigar a trajetória e produção artística do
poeta José Costa Leite, recorreu à técnica da história oral e, como ponto de partida,
mobilizou um vasto corpus documental, constituído pela autobiografia, folhetos de cordel,
xilogravuras, almanaques sertanejos, cartas recebidas, textos manuscritos e relatos de
memórias obtidos através de entrevistas.
Do total de 7 trabalhos encontrados, 2 dissertações foram desenvolvidas a partir da
análise documental, valendo-se também de entrevistas semiestruturadas. Silva (2012) fez
uso da análise documental e de entrevistas semiestruturadas para identificar os processos
informacionais presentes na literatura de cordel. Para a autora, os assuntos abordados no
cordel, que retratam lembranças e fatos de uma determinada época, fazem dele uma
importante fonte de informação e, também, de compreensão da memória social e coletiva.
57

Barbosa (2010), por sua vez, investiu exclusivamente na análise documental para
investigar as representações femininas presentes nos cordéis ao longo dos séculos XX e
XXI. Através da análise de 46 folhetos, cujo tema era a mulher em situações ficcionais
distintas, a autora demonstrou os estereótipos femininos recorrentes ao longo do século
XX, nesses folhetos, segundo o prisma do olhar patriarcal, e a desconstrução dessa cultura,
a partir do novo século (XXI). Barbosa (2010) evidenciou que, à medida que o olhar dos
escritores sobre a mulher se transformava, o próprio gênero era renovado. A referida autora
explica, ainda, que as capas dos cordéis eram um dos artifícios estéticos que expressavam,
também, essas abordagens diferenciadas sobre as mulheres.
Na dissertação de Silva (2013), que realizou um estudo de caso, percebemos o papel
educativo do cordel nas aulas de uma professora da 4.ª série da Escola Estadual Professora
Eunice Beltrão, localizada na cidade do Recife, na década de 1970. Ela constatou que os
folhetos eram usados como um recurso didático importante para a aprendizagem das
disciplinas escolares, o que, mais tarde, também, influenciou a profissão de cordelista de um
dos alunos daquela turma.
Face aos dados obtidos por meio deste levantamento, constatamos que, embora o
cordel fosse o objeto de estudo de todas essas pesquisas, as produções possuíam variados
temas. Não obstante, ainda existe uma escassez de trabalhos cujo foco seja o cordel. Essa
literatura, embora pouco frequente no conjunto da produção acadêmica deste repositório,
como demonstramos anteriormente, concentrou-se, em sua quase totalidade (43%), na área
de História como quadro de referência teórica. Isso parece demonstrar, mais uma vez, a
importância científica dessa nossa pesquisa.

2.2 Consciência metatextual: reflexão sobre diferentes dimensões do texto/gênero

O ser humano, desde que nasce, é influenciado pelo meio em que vive, mas, também,
é capaz de transformá-lo através do seu agir individual. Essa interação do indivíduo com o
ambiente, que ocorre, sobretudo, através da linguagem, tem um importante papel no
desenvolvimento cognitivo (VYGOTSKY, 2000). Podemos dizer, tomando como base as
considerações de Luria (1984), que a linguagem e a cognição tornaram-se, no decorrer da
história, um dos domínios mais complexos da ciência. Estas categorias estão, inclusive,
enredadas em muitos aspectos e, por isso mesmo, permanecem despertando o interesse de
inúmeros estudiosos que, por diferentes vias, as têm como objeto de discussão e análise.
58

2.2.1 “Consciência”: uma introdução ao tema

Entendemos que as palavras estão sempre carregadas de um conteúdo, sejam eles


ideológicos ou vivenciais (BAKHTIN, 2011), que não nascem nos dicionários (PASSOS;
PEREIRA, 2009), mas, sim, à medida que um novo fenômeno ganha visibilidade. Dito isto,
antes de buscarmos apresentar uma sistematização sobre determinados conceitos acerca da
consciência metalinguística, recorreremos a um breve debate sobre o termo consciência. Tal
reflexão, ainda que sucinta, pode oferecer ao leitor uma maior compreensão do texto que se
seguirá. Mas, nossa pretensão, por sua vez, não foi a de apresentar uma resposta final e
absoluta acerca da palavra consciência, que sempre foi alvo de discussão filosófica, tida
como o crivo de análise daquilo que seria a verdade e do que se apresentaria como falso.
Certamente porque, segundo os filósofos, por meio da consciência, os seres humanos
poderiam questionar e pensar criticamente sobre as coisas. Platão (1993), por exemplo,
buscou retratar, por meio da alegoria da caverna, como o ser humano poderia se libertar da
condição de escuridão que o aprisionava. Ele presumia que somente através do
conhecimento filosófico e, portanto, do uso da consciência, o sujeito poderia sair do estado
de ignorância.
Todavia, buscar definições para essa palavra não foi algo exclusivo da filosofia, já
que cientistas, como Libet (2004), no campo da neurologia, contribuíram para a
compreensão de que a consciência envolve uma parcela da atividade cerebral, na qual um
grande esforço é requerido a fim de gerar um processo consciente. A isto se acresce o fato de
que a consciência se constituiu, também, como objeto de estudo da psicanálise (Freud), da
neuropsicologia (DAMÁSIO, 2000)17, da psicologia cognitiva, da sociologia, dentre outros
campos do conhecimento e sob os mais variados enfoques.
Ao perscrutarmos a epistemologia da palavra consciência verificamos que ela tem
origem no latim conscientia, que significa conhecimento partilhado. Ademais, segundo o
dicionário Aurélio (1999), há outas quatro interpretações para esse vocábulo: (1) conjunto
formado pelos fatos psíquicos e pela atividade mental de que há consciência clara, por
oposição ao subconsciente e ao não consciente; (2) que sabe o que faz; (3) que tem
consciência da própria existência e (4) cujo sistema nervoso central permite pensar, observar
e interagir com o mundo exterior. Essas definições, apesar de serem elementares, são
importantes, pois, já de início, revelam que, enquanto qualidade da mente, a consciência se
refere a estar ciente de algo ou de alguma coisa realizada pelo próprio sujeito ou por outrem.

17
Damásio (2000), ao falar da consciência, propõe a metáfora do “sair à luz”.
59

Poersch (1999), reportando-se à psicologia cognitiva, lembra que a consciência diz


respeito ao conhecimento que os indivíduos possuem acerca dos seus objetos mentais. A
conscientização ocorre, como argumenta o autor, numa espécie de complexo continuum, no
qual, em um extremo, encontra-se disposto aquilo que está totalmente fora da consciência e
que denominamos de não consciente e, no outro extremo, o que está plenamente consciente,
ou seja, aquilo que o sujeito consegue controlar, refletir e manipular. No meio desse
continuum, existem níveis intermediários de consciência.
No tocante a essa questão, Vygotsky (2000) acrescenta que a atividade da
consciência segue diferentes vias. Segundo esse autor, quando se trata de funções não
conscientes que se tornam conscientes, a consciência refere-se, mais precisamente, à
percepção da atividade do cérebro, ou seja, a consciência de ter consciência. A título de
exemplo, Vygotsky explica que poderíamos pensar em uma criança em idade pré-escolar
que, ao ser perguntada “eu sei o seu nome?”, responde dizendo o próprio nome. Ela não
possui, portanto, uma consciência autorreflexiva: sabe o nome, mas não tem consciência de
que o sabe. Assim sendo, podemos inferir que “a consciência e o controle só aparecem num
estádio relativamente tardio de desenvolvimento de uma função, depois de esta ter sido
utilizada e praticada inconsciente e espontaneamente”18.
No bojo dessas discussões, Karmiloff-Smith (1994) apresenta uma importante
contribuição para a superação da dicotomia entre conhecimento explícito versus
conhecimento implícito ao propor níveis intermediários de representação, que, nos termos de
Tolchinsky (2006), melhor explicam o funcionamento mental e o desenvolvimento.
Karmiloff-Smith (1994) defende que tais fenômenos devem ser vistos à luz de um
processo dinâmico de interação entre a mente e o ambiente. No modelo de Redescrição
Representacional, doravante RR, proposto pela referida autora, existem, no mínimo, quatro
níveis nos quais os conhecimentos podem ser representados: (I) implícito; Explícito 1 (E1);
Explícito 2 (E2); Explícito (E3). No primeiro nível, chamado por Karmiloff-Smith de
implícito (I), a informação encontra-se direcionada para o input externo, não sendo possível
analisá-la em suas partes componentes. Nessa fase, o indivíduo centra-se em informações
advindas do meio externo para criar representações adicionais. Contudo, essas
“representações adicionais” não alteram as representações já existentes, pois são justapostas
a elas. Nesse nível, as representações adotariam, portanto, a forma de procedimentos e
seriam ativadas como resposta do organismo a estímulos externos. No nível explícito

18
VYGOTSKY, Ibid., p. 90-91.
60

primário (E1) o conhecimento encontra-se explícito para o sistema, mas não para o sujeito,
melhor dizendo, suas representações são explícitas, mas ainda não disponíveis à consciência
e, tampouco, são verbalizáveis. No nível de explicitação secundária (E2), as representações
estão disponíveis para o acesso consciente, embora o sujeito não consiga ainda verbalizar
justificativas. No quarto nível, a explicitação terciária (E3), a representação torna-se
consciente e verbalizável. Podemos simplificar o modelo de Redescrição Representacional
da Mente, através do Quadro 2, do seguinte modo:

Quadro 2 – Modelo de Redescrição Representacional de Karmiloff-Smith

Nível Implícito Nível explícito Nível Explícito Nível Explícito


Níveis
1 2 3
(I) (E1) (E2) (E3)
Explicitação Não Sim Sim Sim

Consciência Não Não Sim Sim

Verbalização Não Não Não Sim


Fonte: A Autora (2017)

Para Karmiloff-Smith (2010), essas diferentes formas de representação não


constituem estágios relacionados à idade (como propunha Piaget), mas partes de um ciclo
que se aplica em diferentes microdomínios e que ocorrem ao longo de todo desenvolvimento
humano, inclusive na idade adulta. As representações mentais dos sujeitos tornam-se, ao
longo do tempo, mais flexíveis e manipuláveis, à medida que a informação implícita na
mente (I) torna-se cada vez mais explícita (E1-E2), até chegar ao ponto em que pode passar
a ser verbalizada (E3). Em outras palavras, a informação implícita, embutida em um
procedimento, converte-se em conhecimento explícito, primeiramente no interior de um
domínio e, posteriormente, ao longo de diferentes domínios. Entretanto, para transitar de um
nível ao outro, as representações precisam ser redescritas, o que ocorre por meio de um
processo no qual elas são representadas, recursivamente, tornando-se cada vez mais
explícitas.
A autora apresenta, então, uma conciliação entre duas vias de aquisição do
conhecimento: inatistas/modulares e o construtivismo. Tanto a primeira quanto a segunda
perspectiva, para a autora, não seriam per se suficientes para explicar a mudança
representacional, já que a mente humana não apenas se apropria do meio, mas, também, das
próprias representações internas. A flexibilização cognitiva e a consciência surgem em
61

virtude do processo de RR, que não é, exclusivamente, consequência da interação com o


ambiente.
Nessa visão, a mente se modulariza, progressivamente, à medida que se desenvolve.
No entanto, em decorrência dessa posição, Karmiloff-Smith (1994) defende que esse
processo é de domínio geral, embora possa ser influenciado pela forma e nível de
explicitação das representações de domínio19 específico determinado, o que não significa
que ocorram mudanças simultâneas entre todos os domínios. Em trabalho posterior
(KARMILOFF-SMITH, 1998), porém, essa autora alerta para o fato de que, dificilmente, o
desenvolvimento seria um processo unicamente de domínio específico ou apenas de domínio
geral.
Gombert (1992), apoiando-se no Modelo de Redescrição Representacional, considera
que os conhecimentos implícitos caracterizariam as primeiras habilidades linguísticas,
enquanto os conhecimentos explícitos primários estariam implicados na atividade
epilinguística20 e os conhecimentos explícitos secundários e terciários na atividade
metalinguística em sentido estrito. Desse modo, o conhecimento metalinguístico seria um
conhecimento explícito consciente ou – mas não obrigatoriamente – um conhecimento
explícito consciente verbal. Por outro lado, o conhecimento epilinguístico estaria
explicitamente representado, mas não acessível à consciência.

2.2.2 Consciência metalinguística

Após essas considerações iniciais sobre o termo consciência e as contribuições do


Modelo de Redescrição Representacional para a superação de dicotomias como
implícito/explícito e consciente/ não consciente, julgamos ser oportuno proceder à reflexão
sobre o que seria a consciência metalinguística. Para isso, comecemos tomando como objeto
de reflexão o prefixo “meta” (que tem origem no grego e cujo sentido é de mudança e
transformação). Trata-se de uma questão também abordada por Arruda (2008, p.13), ao
afirmar que este prefixo serve “para indicar uma atividade cognitiva que ocorre sobre
processos e conteúdos cognitivos”. Quando anteposto a um nome em particular - como, por
exemplo, em “metalinguístico” ou “metatextual” -, o prefixo meta significa voltar-se para

19
A autora busca distinguir o domínio do módulo. O primeiro é um conjunto de representações de uma área de
conhecimento com diferentes microdomínios. O segundo corresponde à unidade de processamento da
informação.
20
A atividade epilinguística envolve, segundo Gombert (1992), comportamentos semelhantes aos
comportamentos metalinguísticos, mas que não são controlados conscientemente pelos sujeitos.
62

aquilo que é denotado pelo nome. Sendo assim, quando o termo metalinguístico é utilizado,
expressa um retorno para o linguístico (GOMBERT, 2013).
Entretanto, Poersch (1999, p.515) considera que a partícula meta significa
consciência. Dessa maneira, e segundo esse autor, o termo consciência metalinguística seria
inapropriado, dado o seu caráter redundante. Logo, a consciência estaria presente tanto no
próprio termo consciência quanto na palavra metalinguística. Por conseguinte, a expressão
“consciência metalinguística” traria, portanto, o mesmo significado duas vezes. Por isso,
Poersch (1999) sugeriu que o termo consciência metalinguística fosse evitado e substituído
pela expressão metalinguagem ou consciência linguística.
Embora o uso do termo “consciência linguística” talvez seja mais apropriado que o
de “consciência metalinguística”, optamos por esse último, tendo em vista sua ampla
utilização21. Por outro lado, diferentemente do autor supracitado, consideramos que
substituir o termo consciência metalinguística por metalinguagem parece-nos inviável,
porque esse último termo tem o sentido de linguagem que é usada para se referir à própria
linguagem, não contemplando, portanto, o processo de reflexão ou de análise sobre ela.
Nesse debate, é, igualmente, importante declarar, segundo Morais e outros (2010),
citando Gombert (2003), que o prefixo meta tem significado diferente para a linguística e a
psicologia. Na perspectiva linguística, a metalinguística é compreendida como
autorreferenciação da língua (metalinguagem), isto é, o foco de interesse é dirigido para o
exame da produção verbal, cujo propósito é o de observar a utilização da linguagem para
referir-se a ela mesma. Do ponto de vista da psicologia, a partícula meta, no termo
metalinguístico, é usada, sobretudo, no que diz respeito ao conhecimento do sujeito em
relação ao seu próprio conhecimento. Apesar disso, para Morais e outros (2010), a
psicolinguística tem usado esse termo em ambos os sentidos: no sentindo de metalinguagem
enquanto autorreferenciação da língua e, no sentido mais amplo, de refletir e examinar a
linguagem a partir de um monitoramento intencional e deliberado. Nessa direção, essa
atividade requer, por parte do indivíduo, um distanciamento em relação ao seu uso, para
aproximar-se das suas propriedades.
Em síntese, é preciso distinguir esses dois termos a fim de evitar certos equívocos
conceituais, já que alguns estudiosos têm tratado “consciência metalinguística” e
“metalinguagem” como expressões equivalentes. Como já deixamos antever, a consciência

21
Apesar disso, tem-se observado entre pesquisadores, nacionais e internacionais, a variação quanto ao uso do
prefixo meta, o qual ora é excluído, ora é acrescentado. Por exemplo, Soares (2016), no livro Alfabetização: a
questão dos métodos, agrega para algumas habilidades a partícula meta (metatextual), mas em outras já não o
faz (pragmática, sintática, fonológica, morfológica e semântica).
63

metalinguística refere-se à capacidade do sujeito de refletir ou de manipular a língua de


modo consciente. Já a metalinguagem concerne ao uso da linguagem para referir-se à
própria linguagem. Como elucida Morais (no prelo), a partir dos anos 1980, o termo
“metalinguístico” passou a ter, no Brasil, e mais precisamente no campo da linguística, um
significado bastante limitado, já que “metalinguagem” e “metalinguístico” passaram a ser
sinônimos do ensino tradicional de nomenclaturas gramaticais.
No que concerne à atividade metalinguística, Teberosky (1992) aponta que essa
atividade pressupõe, para além do uso da linguagem, o desenvolvimento de certa
consciência e atenção para decidir “como” e “quando” é apropriado analisar seus
componentes e refletir sobre as suas combinações. A autora concebe, ainda, que as
atividades metalinguísticas podem ser divididas em dois grupos: (1) as que analisam as
expressões em si, as suas unidades, bem como o modo como se referem ao universo
extralinguístico (denominadas de atividades metalinguísticas estruturais) e (2) as que
refletem sobre a utilização das expressões em contextos comunicativos: sobre a propriedade
com relação aos interlocutores, às finalidades do discurso e ao contexto da situação
(nomeadas de atividades metalinguísticas pragmáticas).
Nos últimos vinte anos, diversas pesquisas também têm revelado que o
desenvolvimento da consciência metalinguística é fulcral no desempenho das crianças no
que se refere à aprendizagem da leitura e da escrita. Para alguns estudiosos, ela se
encontraria, inclusive, diretamente vinculada com o sucesso escolar (ROAZZI;
CARVALHO, 1995). Do mesmo modo, estudos têm apontado o inverso: o domínio da
leitura e da escrita também teria um papel fundamental na aquisição das competências
metalinguísticas (GOMBERT, 2013).
Para Stumpf (2013), os estudos que relacionam a consciência metalinguística à
aprendizagem da leitura podem ser distribuídos em três correntes de pensamento: (1) aquelas
em que a consciência metalinguística é pré-requisito para a aprendizagem da leitura; (2) a
que entende que seria o processo de escolarização e, portanto, a aprendizagem da leitura que
garantiria o aumento da consciência metalinguística; e (3) os pesquisadores que defendem a
existência de uma “via de mão dupla”, já que certo grau de consciência metalinguística é
necessário antes da aprendizagem da leitura, mas a própria capacidade de ler, por sua vez,
aumentaria a consciência da língua.
Entretanto, muitos desses estudos não evidenciam quais habilidades metalinguísticas
seriam pré-requisito para a aprendizagem da leitura e quais seriam consequência da
capacidade metalinguística. O que as abordagens teóricas mais recentes – que constituem o
64

terceiro grupo de pesquisadores –, têm defendido é que a relação entre a consciência


metalinguística e a alfabetização é de influência mútua. De fato, muitas evidências
apresentadas mostram que é necessário algum grau de consciência metalinguística para
aprender a ler e escrever e que, concomitantemente, a alfabetização tem um papel
fundamental no desenvolvimento dessa habilidade (GOMBERT, 2003).
É preciso ainda lembrar, a partir de uma perspectiva histórica e antropológica, que as
disposições metalinguísticas, cuja gênese é particularmente vinculada à relação com a
linguagem (mais reflexiva, distanciada, metalinguística) que a escrita instaurou, não são
apenas disposições cognitivas, mas também sócio-políticas (LAHIRE, 1994). Segundo esse
autor, a origem das dificuldades das crianças dos meios populares estaria diretamente
relacionada à natureza da cultura escolar, que pressupõe o desenvolvimento de uma
capacidade socialmente instituída que aquelas crianças muitas vezes não dispõem: a de
adotar uma relação distanciada e reflexiva com a linguagem, dissociando-a dos sentidos que
ela produz. Como indica o referido autor,

Sabe-se hoje, pela infinidade de trabalhos internacionais consagrados a


essas questões, que as famílias dotadas de recursos culturais mandam para
a escola crianças já portadoras de formas bem constituídas de habilidades
de linguagem (particularmente capacidades metalinguísticas), de
conhecimentos culturais diversificados e inclusive de competências
escolares não desprezíveis (LAHIRE, 2012, n.p.).

Considerando as discussões anteriormente desenvolvidas, refletiremos, a seguir, sobre


as diferentes dimensões da consciência metalinguística, que constitui um amplo construto
que envolve habilidades de reflexão e de manipulação consciente de diferentes estratos da
língua, como os fonológicos, morfológicos, sintáticos, textuais e pragmáticos.

2.2.3 Dimensões da consciência metalinguística

O termo metalinguístico surgiu em meados das décadas de 1950 e 1960 para se referir
à atividade cognitiva na qual a linguagem torna-se objeto de análise. Mas, foi apenas a partir
de 1980 que houve teorizações mais sistemáticas sobre o assunto (SOARES, 2016). Nessa
época, apesar de já terem surgido estudos sobre a consciência metalinguística, Pratt e Grieve
(1984) chamaram atenção para o fato de que a própria psicologia, assim como outras áreas
do saber, ainda não tinha conseguido delimitá-la com exatidão e de forma articulada, haja
vista que não se tinha (ou pouco se tinha) clareza sobre os diferentes tipos ou níveis de
consciência e o modo como eles se relacionavam. Para Soares (2016), com a publicação de
65

Gombert (1992), pode-se ter uma maior especificação das dimensões da consciência
metalinguísticas. Porém, como adverte esse autor no início do livro Metalinguistic
Development22, a classificação das atividades metalinguísticas por ele proposta , tomando
como referência critérios linguísticos e não cognitivos é, de certa forma, artificial.
Como poderemos perceber, a consciência metalinguística engloba várias habilidades
linguísticas em suas diferentes unidades. Soares (2016) ressalta que a complexidade desse
construto é decorrente da diversidade de operações cognitivas nele envolvidas. Com relação
a esse aspecto, pode-se dizer ainda que a consciência metalinguística

Não é um fenômeno que possa ser considerado em bloco, cujo


desenvolvimento se processe de forma homogênea em relação a todas as
instâncias. Embora haja características gerais a serem consideradas nesse
desenvolvimento, é necessário considerar as peculiaridades de cada
unidade linguística tratada no âmbito da metalinguística (SPINILLO, 2009,
p. 105).

A consciência metapragmática, uma das dimensões da consciência metalinguística,


está voltada para as situações de uso da língua
(enunciador/interlocutores/finalidades/contexto de produção). Soares (2006) chama atenção
para a classificação originalmente proposta por Gombert em 1990, pois, em obra posterior, o
autor questiona a pertinência da inclusão da metapragmática como uma das dimensões
metalinguísticas, tendo em vista que a consciência metapragmática constituiria uma
categoria maior da qual as demais atividades metalinguísticas seriam subcategorias. Não
obstante, para Soares, essa alteração não retira sua especificidade e importância para a
aprendizagem da língua escrita. Sobre isso, a autora atesta que os estudos no campo da
psicologia cognitiva e da psicolinguística sobre a consciência metapragmática são ainda
escassos.
A consciência metassintática, também nomeada de consciência gramatical,
concerne, por sua vez, à habilidade de refletir e manipular intencionalmente a estrutura
sintática da linguagem. Para Rego (1993), a leitura constitui uma habilidade altamente
complexa, na medida em que várias informações interagem durante esse processo. Para dar
sentindo ao texto, o leitor precisa não somente conhecer as regras ortográficas da língua,
mas, também, utilizar as informações sintáticas. Destarte, que a consciência metassintática
possibilita refletir se um determinado enunciado está de acordo com a gramática normativa,

22
Estamos nos referindo à data da primeira publicação em inglês. A obra original de Gombert é anterior à data
deste livro e foi publicada em francês no ano de 1990.
66

ou, ainda, ajustar as formas de expressões conforme as situações sejam mais ou menos
formais (MORAIS, no prelo).
Segundo Gombert (1992), as primeiras evidências de um comportamento
metassintático podem ser evidenciadas por volta dos seis anos de idade, quando as crianças
demonstram habilidade para corrigir violações à gramaticalidade. Soares (2016) comenta
que nas pesquisas sobre a consciência metassintática são propostas, por exemplo, tarefas em
que os participantes são solicitados a julgar frases, caracterizando aquelas gramaticalmente
corretas e aquelas com incorreções gramaticais ou corrigir frases que possuem incoerências
gramaticais.
A consciência metamorfológica corresponde à habilidade de refletir sobre os
morfemas, isto é, as menores unidades de significado que integram um vocábulo. Muitas
palavras podem ser deduzidas se conhecermos a sua origem. Por exemplo, no caso da
palavra laranjeira, caso não saibamos a sua grafia, podemos escrevê-la corretamente se
soubermos a palavra de origem: laranja. Há, portanto, um elemento comum que serve de
base para as palavras. No entanto, alguns pesquisadores, como Gombert (1992), não incluem
essa dimensão metalinguística, dada a dificuldade de distinguir a sintaxe e a morfologia.
A consciência metassemântica representa a capacidade de diferenciação das
palavras ou sentenças dos seus significados. Soares (2016) adverte que em estudos
posteriores Gombert não trata mais o componente semântico como uma das habilidades
metalinguísticas. Posteriormente, conforme a autora, ele passa a considerar a consciência
semântica e lexical23 como de natureza fonológica. Logo, “o componente semântico da
língua oral ou escrita não é uma das dimensões da consciência metalinguística, no mesmo
nível das demais, mas se sobrepõe a elas, presente em todas, ora como influência, ora como
obstáculo” (SOARES, 2016, p. 163, grifo da autora). No trabalho de Maluf e Zanella (2011),
a dimensão semântica aparece sempre associada à dimensão metatextual.
A consciência metafonológica envolve a capacidade de identificar, segmentar,
isolar, unir e manipular os segmentos fonológicos da língua. Atentamos, ainda, para o fato
de que a consciência fonológica é algo mais abrangente do que a consciência fonêmica, na
medida em que inclui a consciência não só dos segmentos fonêmicos da fala, mas também
de unidades maiores que eles (MORAIS, 2012). De acordo com este autor, existe uma
relação de causalidade múltipla entre consciência fonológica e a aprendizagem da leitura e

23
Capacidade de segmentação da linguagem oral em palavras, considerando tanto as funções semânticas
(verbos, substantivos, adjetivos) quanto à sintático-relacionais, que adquirem significado no interior das
sentenças.
67

escrita, pois certas habilidades para identificar e manipular unidades sonoras da linguagem
são necessárias para o aprendiz aprender a ler e escrever, enquanto outras parecem ser
consequência.
É importante expormos nessa discussão que a consciência fonológica, conforme
apontado por Morais (2012), não é uma habilidade única, mas um conjunto de habilidades,
com níveis de complexidade diferentes e que se desenvolvem em momentos também
diferentes. Ao conceber, conforme sustentado por Morais (2012, p.79), que “a consciência
fonológica não é algo que se tem ou não, mas um conjunto de habilidades que varia
consideravelmente”, acreditamos que certas habilidades de identificar e manipular as
unidades sonoras da língua mostram-se mais fáceis ou mais difíceis que outras.
A consciência metatextual, que é a que interessa mais diretamente a este estudo,
passa a ser considerada como uma dimensão metalinguística a partir do estudo de Gombert
(1992), sendo composta, para o autor, pelo monitoramento da coerência, da coesão e a
estrutura textual. As suas propriedades são examinadas através de um monitoramento
deliberado, no qual o sujeito focaliza sua atenção no texto e não em seus usos (GOMBERT,
1992). Para Spinillo (2009), as habilidades metatextuais podem ser desenvolvidas
progressivamente e parecem estar, também, relacionadas com a consciência
metapragmática:

A atividade metatextual envolve múltiplos olhares sobre o texto por parte


daquele que, geralmente, por uma demanda externa, realiza tal atividade.
Ao tomar o texto como objeto de reflexão e análise, o indivíduo se depara
com a necessidade de considerar os aspectos linguísticos relacionados aos
contextos de uso em que o texto se insere. A consciência sobre o texto
parece estar também associada à consciência pragmática (SPINILLLO,
2009, p. 104).

É preciso estar atento, porém, para o fato de que não são todos os estudos que
possuem o texto como objeto de análise que tratam a consciência metatextual como um
fenômeno a ser investigado. A consciência metatextual está diretamente relacionada, nas
palavras de Spinillo (2009), com a reflexão consciente, o controle e a explicitação verbal24
das dimensões linguísticas e extralinguísticas do texto.

24
Spinillo e Simões (2003) chamam atenção para o fato de que, com isso, não se quer dizer que não existam
outras situações de investigação que dispensem a explicitação verbal. Entretanto, a explicitação constitui um
recurso importante a ser considerado em estudos sobre esse tema, uma vez que possibilita o exame dos níveis
de consciência que o sujeito possui.
68

2.2.4 Classificação das pesquisas sobre a consciência metatextual

Para Spinillo e Simões (2003), apesar de a consciência metatextual ser, geralmente,


investigada no âmbito da escrita e da compreensão de textos, há possibilidade de essa
dimensão ser examinada em relação à capacidade do indivíduo de refletir sobre a estrutura e
a organização de textos de diversos gêneros. Com efeito, estudos realizados neste domínio
apontam para a importância de se levar em consideração duas instâncias: a pragmática e a
linguística (SPINILLO, 2009).
Os critérios de natureza pragmática dizem respeito aos fatores extralinguísticos, à
posição social do próprio locutor e dos interlocutores, à finalidade do texto, ao conteúdo do
discurso, aos usos e às funções sociais da escrita. A segunda instância trata dos aspectos
linguísticos que estruturam o texto, as suas dimensões composicionais e estilísticas. Neste
trabalho, consideraremos essas duas instâncias como inerentes à consciência metatextual,
tendo em vista a imbricação entre as dimensões textual e pragmática da língua.
Em geral, a pouca literatura existente sobre a consciência metatextual tem sido
classificada, conforme Spinillo e Simões (2003), em dois grupos: pesquisas direcionadas à
análise dos aspectos microlinguísticos (coesão e pontuação, por exemplo) e pesquisas que
tratam, mais detidamente, dos aspectos macrolinguísticos do texto. Segundo as autoras, as
pesquisas inseridas nesse último grupo buscam examinar a capacidade do indivíduo de
refletir sobre a organização geral do texto. Estes estudos podem, ainda, ser subdivididos em
duas categorias: (a) estudos voltados para uma reflexão sobre o conteúdo do texto; e (b)
estudos que envolvem uma reflexão sobre a estrutura e que, em geral, remetem à noção de
gêneros textuais.
Essa classificação das pesquisas sobre a consciência metatextual nos permite
observar que essa dimensão da linguagem é composta por diferentes habilidades, com
distintos níveis de complexidade e que incidem sobre variados aspectos do texto. Desse
modo, assim como a consciência fonológica (MORAIS, 2012), a consciência metatextual
não constitui uma habilidade única, mas um conjunto de habilidades, e, nesse sentido, seria
mais apropriado se referir a habilidades metatextuais em vez de consciência metatextual. No
entanto, usaremos, por convenção, o termo que se encontra mais difundido na literatura da
área: consciência metatextual. Neste estudo detivemo-nos na consciência metatextual em
relação às suas dimensões sociodiscursivas, temáticas e composicionais.

2.2.4.1 Pesquisas que tratam dos aspectos microlinguísticos do texto


69

Historicamente, a produção de texto constituiu um objeto de estudo de diversos


teóricos (FLOWER; HAYES, 1980; BEREITER; SCARDAMÁLIA, 1987; SCHNEUWLY,
1988) preocupados em explicar os processos cognitivos envolvidos nessa atividade, desde o
seu momento inicial até o final. A partir, principalmente, da década de 1980, com o
desenvolvimento de pesquisas, sobretudo nas áreas de educação, linguística aplicada e
psicologia, houve o surgimento de perspectivas teóricas mais preocupadas em estudar os
textos e seus gêneros (SPINILLO, 2001). Nesse retrospecto sobre as produções científicas
que enfatizam a importância do controle e atenção deliberada em torno do texto, é oportuno
citar a pesquisa realizada por Spinillo e outros (2002), que buscou examinar como as
crianças de 8 anos de idade eram capazes de compreender e identificar os diversos nexos
presentes nas cadeias coesivas de uma história. Foram propostas duas tarefas com 17
crianças alunas da 2ª série do Ensino Fundamental de escolas particulares de Recife. No
primeiro momento, pediu-se que as crianças escrevessem livremente uma história. No
segundo momento, após ler outra história, o examinador entregava o texto lido para que elas
pudessem lê-lo em voz alta. Algumas palavras desse texto encontravam-se em destaque.
Durante a leitura, quando as crianças se deparavam com a palavra (grifada e em negrito), o
examinador perguntava sobre a respectiva palavra empregada no texto. Era necessário que a
criança justificasse o uso e a que se referia a palavra.
Após a análise das histórias produzidas livremente pelos alunos, as autoras
evidenciaram que eles produziram cadeias coesivas variadas, tanto em relação aos tipos
quanto em extensão. Além disso, as respostas, no que se remetia a uma dada palavra
presente no texto, foram classificadas em três categorias: categoria 1 (não justifica ou
oferece justificativa subjetiva); categoria 2 (justificativa global, vaga) e categoria 3
(justificativa precisa com base no significado que a palavra tem no texto). Concluiu-se que
as crianças eram capazes de tomar os nexos como objeto de reflexão e compreender, pelo
menos de forma implícita, os diferentes sentidos das cadeias coesivas (pronomes pessoais,
substantivos). Muitas crianças ainda tinham dificuldades em explicitar as razões que as
levaram a relacionar os nexos aos seus referentes.
No bojo dessas produções, o estudo conduzido por Lima (2003) analisou o uso e a
compreensão das marcas de pontuação por crianças com diferentes níveis de instrução sobre
a pontuação, no contexto escolar. Participaram do estudo 42 crianças com idades entre 6 e 8
anos, alunos de alfabetização (21 crianças) e de 1ª série (21 crianças) do ensino fundamental,
de uma escola particular da cidade do Recife (PE). Nessa investigação, foram realizadas
duas tarefas (Tarefa de Produção e Tarefa de Compreensão), aplicadas em duas sessões. Na
70

primeira sessão (produção), realizada coletivamente em cada série, o examinador lia em voz
alta uma história. As crianças eram, então, solicitadas, individualmente, a reproduzir por
escrito a história ouvida. Na segunda sessão (compreensão), efetuada individualmente, o
examinador mostrava à criança a história que ela própria havia reproduzido na sessão
anterior, e, a partir de uma entrevista clínica, solicitava a identificação das marcas de
pontuação que haviam produzido em seu texto e a explicação dos usos e funções atribuídos a
elas.
Os resultados indicaram diferenças significativas encontradas entre as séries quanto à
produção de pontuação. Os resultados referentes à compreensão, também, revelaram
diferenças entre as séries no que se refere às questões relativas aos usos e funções da
pontuação em um texto, na medida em que as crianças da 1ª série atribuíam vários usos e
funções a um mesmo sinal de pontuação, enquanto as crianças da alfabetização tendiam a
conferir um único uso a cada um dos sinais de pontuação.

2.2.4.2 Pesquisas sobre os aspectos macrolinguísticos do texto

As pesquisas inseridas nesse grupo podem ser subdivididas, segundo Spinillo e


Simões (2003), em duas categorias: as direcionadas à reflexão sobre o conteúdo e as
informações veiculadas no texto e as que envolvem a reflexão sobre a estrutura
composicional de determinado gênero discursivo.

2.2.4.2.1 A consciência metatextual em relação ao conteúdo

Desde muito cedo, as crianças utilizam a linguagem como forma de ação


comunicativa. Várias pesquisas, como as que já apresentamos, têm revelado que as crianças
sabem muito acerca dos aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e textuais da língua,
mas ainda têm dificuldades em explicitar verbalmente esses conhecimentos. Segundo Fayol
(1985), isso acontece porque a consciência sobre a organização e as partes que compõem o
texto não ocorre de maneira imediata, uma vez que envolve operações cognitivas com um
alto nível de complexidade. Devido a isso, inúmeras pesquisas têm se dedicado à análise e
ao monitoramento das habilidades mobilizadas pelas crianças, sobretudo daquelas que se
encontram em processo de alfabetização, durante as atividades de reflexão sobre as várias
partes que formam o texto.
Spinillo e Simões (2003) argumentam que, nas pesquisas que tratam sobre o
conteúdo do texto, os entrevistados são solicitados a detectar as anomalias e as contradições
71

em um texto; detectar sentenças que não condizem com o título fornecido e identificar as
principais ideias de um dado texto25. Segundo Spinillo (2009), podemos imaginar que uma
criança, ao ler uma história em que suas partes estão invertidas, percebe que essa história
inicia com uma introdução dos personagens, passa diretamente para o desfecho “E foram
felizes para sempre” e termina com o meio especificando situação-problema com a qual o
personagem principal se depara. Ainda, durante a leitura, a criança nota que o texto está
“misturado” e apresenta diferentes gêneros discursivos: por exemplo, inicia com uma
história e termina com uma carta. Tanto na primeira quanto na segunda situação, ao detectar
as incongruências de um texto, ela está realizando uma atividade metatextual, na qual a sua
atenção se volta para a análise do texto em si mesmo (SPINILLO, 2009).

2.2.4.2.2 A consciência metatextual em relação à estrutura do texto

Além das pesquisas nas quais o foco de análise recai sobre o conteúdo do texto,
recentemente, novas perspectivas têm buscado refletir sobre a forma como o texto se
configura linguisticamente (SPINILLO; SIMÕES, 2003). Um dos primeiros estudos
desenvolvidos no Brasil sobre a consciência da estrutura do texto, segundo Spinillo e
Simões (2003), foi o de Rego (1996), que investigou os critérios adotados por crianças para
julgar histórias. Participaram desse estudo 30 crianças, cuja faixa etária era 7-8 anos e que
frequentavam uma escola particular do Recife. Elas foram submetidas a uma tarefa de
julgamento de textos (dos quais alguns eram histórias convencionais e outros não). Os
textos, portanto, “constituíam histórias convencionais, histórias sem nexo, começos de
história, meios de história e finais de histórias” (p.123). O examinador tinha a função de ler
os textos para as crianças que haviam sido produzidos por alunos de outra escola. No final
de cada leitura, ele questionava a criança: “Você acha que essa foi uma história? ” e “Por
quê?”. Cada criança tinha que justificar a sua resposta.
A partir do julgamento e das justificativas apresentadas, Rego (1996) classificou as
crianças em três níveis de desempenho: no nível 1 elas tendiam a aceitar todos os textos-
estímulos como sendo histórias; no nível 2 (a) as crianças discriminavam os textos com
critérios objetivos (como, por exemplo, o tamanho do texto e a presença de início típico de
história). No entanto, aceitavam os textos incompletos ou sem nexo como sendo histórias, já
que eles apresentavam o início típico de histórias. Os textos longos, mesmo sem qualquer

25
Na verdade, consideramos que tais pesquisas investigam aspectos que se situam na interface com a
compreensão de textos, chegando a confundir-se com ela, como é o caso da identificação da ideia principal de
um texto.
72

nexo, também eram considerados histórias em razão do seu tamanho; no nível 2 (b), as
crianças julgavam quase todos os textos corretamente, mas ainda consideravam como
história textos que tinham começos de história e que eram longos; no nível 3, foram
incluídas as crianças que demonstravam julgar adequadamente todos os textos-estímulos.
Elas sabiam julgar o que era um começo, um final e um meio de história nos textos
incompletos e rejeitavam os textos sem nexo por serem misturados.
Após as quatro ocasiões de testagem, Rego (1996) verificou que havia uma
concentração de crianças nos níveis 2a e 2b, sugerindo que o começo e o tamanho da
história eram características que exerciam muita influência no julgamento das crianças.
Além disso, o desempenho das crianças do nível 3 só começava a emergir em torno dos 8
anos de idade, quando elas já estavam concluindo a primeira série. Sendo assim, tal estudo
demonstrou que a habilidade para usar o esquema de história de uma forma consciente seria
muito precária antes dos 8 anos de idade.
À luz desse debate, no estudo conduzido por Albuquerque e Spinillo (1998) foi
solicitado que crianças de 5, 7 e 9 anos determinassem se o texto apresentado (história, carta
ou notícia de jornal) estava completo ou incompleto e justificassem as suas respostas. A
partir das justificativas fornecidas, as pesquisadoras evidenciaram que a estrutura do texto
era adotada como critério, conclusão não observada em outro estudo de Albuquerque e
Spinillo (1997).
Para Albuquerque e Spinillo (1998), a capacidade de refletir, deliberadamente, sobre
a estrutura do texto emerge por volta dos 7 anos. As mesmas autoras identificaram três
níveis de desenvolvimento: nível I: não adotavam critérios definidos de julgamento,
tendendo a aceitar todos os textos-estímulo como completos; nível II: utilizavam critérios
definidos que não envolviam a estrutura do texto (conteúdo, tamanho); e nível III: adotavam
a estrutura do texto como critério, acertando todos os textos-estímulo de um mesmo gênero.
As autoras revelaram, então, que a habilidade de refletir sobre a estrutura do texto não
estaria somente relacionada à idade e à escolaridade das crianças, mas, também, ao gênero
discursivo que estava sendo adotado como objeto de reflexão.
É importante salientar, em conformidade com Spinillo (2009), que as funções e o
conteúdo do texto podem ser aprendidos informalmente nas práticas cotidianas. Porém, para
a autora, a estrutura textual e as convenções linguísticas seriam saberes adquiridos,
sobretudo, no contexto formal de ensino (escola). Contudo, acreditamos que isso se refere a
gêneros que são aprendidos, predominantemente, na escola.
73

É o que também nos parece apontar a pesquisa de Lucena (2009), que investigou o
desenvolvimento da consciência metatextual em crianças e a influência da aquisição da
leitura e da escrita (alfabetização) nesse desenvolvimento. Nessa pesquisa, foram analisadas
52 crianças de escolas públicas com sete anos de idade, igualmente divididas em dois
grupos: crianças alfabetizadas e não alfabetizadas. Todas foram individualmente
entrevistadas em duas sessões, sendo solicitadas a realizarem quatro tarefas: duas
consideradas de natureza epilinguística26 e duas consideradas de natureza metalinguística.
Nas tarefas epilinguísticas, as crianças deveriam apenas identificar gêneros textuais diversos
e a incompletude de histórias. Nas tarefas metalinguísticas, além de identificar a ausência e a
presença de partes de histórias, as crianças ainda deveriam justificar suas respostas 27. Os
resultados indicaram que as crianças não alfabetizadas conseguiam realizar
competentemente as atividades consideradas epilinguísticas, entretanto, como esperado,
apresentaram dificuldades nas atividades metalinguísticas. Além disso, quando eram
solicitadas a justificarem suas respostas, as crianças desse grupo pautavam-se,
predominantemente, em critérios indefinidos ou relacionados ao conteúdo do texto,
demonstrando que seus conhecimentos sobre a estrutura textual típica de histórias ainda
eram de natureza epilinguística.
As crianças alfabetizadas, por sua vez, não tiveram dificuldades na realização de
nenhuma das tarefas propostas e justificaram suas respostas mediante critérios de natureza
linguística. De modo geral, percebeu-se que crianças alfabetizadas apresentavam uma
consciência metatextual mais sofisticada do que crianças não alfabetizadas, confirmando a
hipótese inicial de que a escolarização seria fator importante na transição de
comportamentos epilinguísticos para comportamentos metalinguísticos, no que se referia ao
conhecimento sobre os textos. Todavia, parece haver, neste estudo, certa confusão entre
alfabetização e escolarização, apesar desses processos não serem sinônimos.
Spinillo e Pratt (2002) também investigaram os conhecimentos quanto aos gêneros
história, carta e notícia de jornal, e o fizeram comparando com o nível socioeconômico das
crianças de classes sociais diferentes. O objetivo era analisar se havia uma relação direta
entre os contextos sociais e o conhecimento dos textos. Esse estudo foi realizado com 48
crianças distribuídas em dois grupos: o primeiro era composto por 24 crianças brasileiras
26
Gombert (1992; 2013) distingue as habilidades metalinguísticas das atividades epilinguísticas. Para o autor,
existem comportamentos que não são conscientemente monitorados pelos indivíduos, sendo derivados das
aprendizagens implícitas. O conhecimento explícito, por sua vez, é caracterizado pela reflexão consciente e
deliberada sobre a linguagem. Este, no entanto, seria fruto das aprendizagens escolares. A repetição dessas
atividades, posteriormente, levaria à automatização.
27
Nesse estudo, a atividade metalinguística é associada apenas à explicitação verbal.
74

pertencentes à classe média e cuja faixa-etária era entre 7 e 8 anos. Já o segundo era formado
por outras 24 crianças brasileiras de 9 e 10 anos de idade de baixa renda e que possuíam
pouca ou nenhuma escolaridade (crianças de rua não escolarizadas).
A fim de responder o objetivo proposto, foram apresentadas duas tarefas: (1)
identificação dos gêneros (história, carta e notícia de jornal) – a examinadora lia nove textos
e pedia que a criança identificasse o gênero discursivo a que pertencia tal texto e justificasse
a resposta; (2) produção textual oral – o propósito era o de que as crianças respondessem à
seguinte pergunta: “para você, o que é uma história/carta/notícia de jornal?”. Os autores
perceberam que, com exceção do gênero notícia de jornal, as crianças de classe média
obtiveram melhores resultados na identificação do gênero. Além disso, as crianças com
maior nível de escolaridade deram melhores justificativas para a escolha do gênero,
enquanto as de baixa renda tinham dificuldades em identificar os gêneros e nunca adotavam
a estrutura nos seus julgamentos. Consideramos que na pesquisa de Spinillo e Pratt (2002)
há certa superposição entre classe social e escolarização, de modo que os resultados não são
claros quanto a influência desses aspectos no desenvolvimento da consciência metatextual.
Spinillo e Pratt (2002) concluíram que as diferenças entre as crianças brasileiras de
ambos os grupos socioeconômicos se davam pela experiência e o contato que elas tinham
com diversos textos de diferentes gêneros. Apesar de a rua ser um espaço de circulação
informal dos textos, a escola ainda se apresentava como espaço importante para o
desenvolvimento das habilidades metatextuais. Então, o conhecimento das crianças sobre a
estrutura variava em função do contato que elas tinham com textos no dia a dia.
Rosa (2011), por sua vez, investigou a explicitação consciente-verbal de
conhecimentos sobre o gênero notícia e a sua relação com o processo de produção de textos.
Neste estudo, realizado com 20 (vinte) crianças de uma escola pública estadual de
Pernambuco e que cursavam o 5º ano do Ensino Fundamental, a autora constatou, dentre
outras coisas, que havia uma correlação entre a capacidade de explicitar e mobilizar os
componentes do gênero notícia, tendo em vista vez que, nos cinco componentes investigados
nas dimensões sociodiscursivas e temáticas (função social da escrita, discurso referencial
noticiando acontecimentos reais, conteúdo factual e temática de interesse público), 80% das
crianças apontaram para uma relação forte entre as duas atividades, 17% apresentaram uma
relação fraca e apenas 3% demonstraram uma ausência dessa relação.
Em outro estudo, Silva (2005) procurou analisar o desenvolvimento da consciência
metatextual em crianças de escola pública de diferentes séries (1ª e 3ª), por meio do conceito
que estas crianças apresentavam em relação a diferentes gêneros de textos (história, carta e
75

notícia de jornal). Esta pesquisa foi realizada com 40 crianças de idades entre 7 e 9 anos.
Todos os participantes foram submetidos, individualmente, a duas tarefas: (1) a primeira
solicitava que a criança definisse de forma aleatória uma história, uma carta e uma notícia de
jornal; (2) na segunda, após a leitura de seis textos (sendo dois de cada gênero), pedia-se que
a criança identificasse a qual gênero pertencia cada texto. A autora notou que tanto na tarefa
de definição, quanto na tarefa de identificação, as crianças da 3ª série demonstraram
melhores habilidades para conceituar os textos, por meio de respostas mistas (que
combinavam vários atributos definidores de cada texto) e, também, de respostas isoladas. Os
resultados indicaram um progresso significativo com a idade e a escolaridade em relação ao
desenvolvimento da consciência metatextual.
Investigações como estas têm apontado que a consciência metatextual está não
somente relacionada com a idade e à escolaridade, mas, também, com os fatores sociais e as
características estruturais de cada texto.
Com o intuito de examinar as possíveis relações entre produção, compreensão de
textos e a consciência metatextual com crianças de diversos níveis de escolaridade, Pereira
(2010) realizou uma pesquisa com 64 crianças de classe média, com idades entre 7 e 9 anos,
que foram divididas em três grupos distintos em função da escolaridade: o grupo 1 era
formado por crianças do 3º ano, o grupo 2 por crianças do 4º ano e o grupo 3 por crianças do
5º ano do ensino fundamental. As crianças participantes desse estudo foram submetidas a
três tarefas: produção, compreensão de textos e a consciência metatextual. Na primeira
tarefa, a criança era solicitada a produzir uma história oralmente, a partir do tema proposto
pela examinadora. Na tarefa de compreensão textual, uma história era lida para a criança e
logo em seguida solicitava-se que ela respondesse um conjunto de perguntas de natureza
inferencial. A tarefa de consciência metatextual consistia na leitura de doze textos-estímulos
pela examinadora (desse total, 9 textos estavam incompletos pois continham apenas o início,
o meio ou o final da história, e apenas três textos apresentavam a história completa) e, após a
leitura de cada um desses textos, pedia-se que a criança julgasse a completude e/ou
incompletude dos textos, justificando as suas respostas. A criança tinha que identificar que
parte havia sido lida (início, meio e final), explicitando os critérios para tal escolha.
A pesquisadora constatou que existia uma correlação positiva entre as três
habilidades (produção, compreensão e consciência metatextual). Isso implicava dizer que, à
medida que uma habilidade se aprimorava, as demais acompanhavam essa evolução. Havia,
portanto, uma relação entre essas habilidades, mesmo quando não se tinha nenhuma
instrução específica sobre a tarefa. No entanto, a autora conseguiu verificar se o domínio de
76

uma de uma dada habilidade afetava as demais, não sendo possível estabelecer uma relação
de causalidade entre elas.
Postas essas considerações, na seção seguinte, apresentaremos o Estado do
Conhecimento sobre as habilidades metalinguísticas, de modo mais amplo.

2.2.5 Consciência metalinguística: considerações sobre as produções acadêmicas


brasileiras (teses, dissertações e artigos) entre 2010 a junho de 2016

Na busca por mapear as produções acadêmicas brasileiras sobre as habilidades


metalinguísticas, realizamos um levantamento que teve como foco o período de 2011 a
junho de 2016. As pesquisas conduzidas por Maluf, Zanella e Pagnez (2006) e Moura e
Paula (2013) serviram como esteio para esta análise, pois ainda não existiam pesquisas que
investigassem as produções científicas desses anos.
Este estudo reuniu, portanto, dissertações e teses presentes no Portal da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, doravante CAPES, e artigos e periódicos
disponíveis no Portal da Biblioteca Virtual de Psicologia com acesso direto aos sites
SCIELO e PEPsic. Para tanto, analisamos os resumos e os termos-chave de todos os
trabalhos encontrados, excluindo os estudos que tratavam da aprendizagem de outro idioma
ou que não tinham relação com a temática em questão. Além disso, os trabalhos que
apareceram mais de uma vez, devido as diferentes palavras-chave utilizadas no
levantamento, foram contabilizados apenas uma única vez.
Utilizamos algumas das palavras-chave que nortearam as pesquisas de Maluf,
Zanella e Pagnez (2006) e de Moura e Paula (2013), sendo elas:
 Consciência, conjuntamente com as especificações: Fonológica, Lexical,
Metalinguística, Metatextual, Morfológica, Morfossintática, Pragmática, Semântica e
Sintática.
 Habilidade, alterando os termos: Metalinguística, Metafonológica, Metatextual,
Morfológica, Morfossintática, Pragmática, Semântica e Sintática.
Usufruímos dos estudos referenciados anteriormente como fontes de pesquisa, tanto
no que concerne à metodologia empregada, quanto no que se refere às variáveis pesquisadas.
Todos os termos foram colocados entre aspas para melhor seleção dos dados.

2.2.5.1 Resultado e Discussão


77

No curso desse tempo, transcorrido entre 2011 e junho de 2016, foram contabilizados
229 trabalhos, sendo 139 teses e dissertações e 90 artigos em periódicos. Após a análise do
corpus deste estudo, dividimo-lo em dois subtópicos: o primeiro corresponde às teses e
dissertações e o segundo trata dos artigos encontrados em distintos periódicos.

a) Teses e dissertações

Como revela o gráfico, a seguir, das 139 teses e dissertações, 101 referiam-se a
dissertações e apenas 38 a teses. Evidenciamos que, no período de 2011 a junho de 2016, o
número total de obras publicadas no Portal da Capes sobre o tema manteve-se semelhante
aos anos de 2005 a 2010, já indicado no estudo conduzido por Moura e Paula (2013)28. Esse
quantitativo de produções científicas (139), em nível de mestrado e doutorado, parece não
ter acompanhado o crescimento no número de programas de pós-graduação. Segundo o
estudo conduzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), o número de
programas de mestrado, no Brasil, em 2010, era de 2.791 e de doutorado era 1.502, enquanto
que, no ano de 2014, o número de programas de mestrado chegou a 3.620 e 1.954 de
doutorado (BRASIL, 2016a), conforme confirma o Gráfico 5.

Gráfico 5 – Número de teses/dissertações sobre consciência metalinguística defendidas


entre 2011 e Junho de 2016, localizadas no Banco de Teses da CAPES

Número de trabalhos
73%

27%

38 Teses 101 Dissertações


Fonte: A Autora (2017)

Apesar de o crescimento, entre 2011 e 2016, ter sido apenas de 1 trabalho (tese),
quando comparado ao período de 2005 a 2010, notamos que no ano de 2015 houve um

28
Nesse estudo foram encontrados 187 trabalhos. Contudo, ao excluirmos os termos-chave que não utilizamos
nesta pesquisa (consciência ortográfica, metalinguagem e alfabetização, fonologia e alfabetização,
metalinguagem, leitura e escrita e metalinguística e alfabetização), as autoras contabilizaram 138 estudos,
sendo 31 teses e 107 dissertações.
78

aumento significativo no número de pesquisas científicas (que quase triplicaram) em


comparação ao ano de 2011, período em que foram defendidos apenas 18 trabalhos
(GRÁFICO 6).

Gráfico 6 – Quantitativo de teses e dissertações sobre consciência metalinguística


localizadas no Banco de Teses da CAPES por ano de defesa (2011-2016)

Comparativo das teses e dissertações por ano de defesa


120
100
80
60
40
20
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016 Total
Teses 5 3 8 6 15 1 38
Dissertações 13 18 17 18 28 7 101
Fonte: A Autora (2017)

Buscamos, também, situar o conjunto dessas produções por estados da Federação e


por universidade, sem desconsiderar a distribuição desproporcional do número de programas
de mestrado e doutorado nas cinco macrorregiões brasileiras. De acordo com o CGEE, quase
metade dos programas de pós-graduação estavam concentrados no ano de 2014 na região do
Sudeste do país (BRASIL, 2016a) e isso incide diretamente no número de trabalhos
publicados nesse estado (GRÁFICO 7).
79

Gráfico 7 – Distribuição dos trabalhos de pós-graduação por Estado localizadas no Banco de


Teses da CAPES

Distribuição das Teses e Dissertações por Estado da Federação


120

100

80
Frequência

60

40

20

0
MG SC TO RJ PR PE RS SP AC AL BA CE DF MS PA RN PB -
Teses 2 1 1 2 3 5 9 15 0 0 0 0 0 0 0 0 0 38
Dissertações 12 4 1 14 0 6 5 36 2 1 8 3 1 1 1 1 5 101

Fonte: A Autora (2017)

Observando o Gráfico 7, vemos que nos estados que compõem a região sudeste
(Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro) foram defendidas 81 trabalhos, o que representa
65,4% do total das produções. Essa distribuição também pode ser percebida através dos
dados apresentados no Quadro 3.

Quadro 3 – Distribuição das teses e dissertações localizadas no Banco de Teses da CAPES


por Instituição de fomento
Universidades Teses Dissertação Total
MACKENZIE 4 4 8
PUC-Campinas 0 1 1
PUC-RS 5 1 6
PUC-SP 2 5 7
UCP 0 1 1
UCPel 0 1 1
UECE 0 2 2
UEFS 0 2 2
UEPB 0 1 1
UERJ 0 1 1
UESC 0 1 1
UFAC 0 2 2
UFAL 0 1 1
UFBA 0 5 5
UFC 0 1 1
UFF 0 1 1
UFJF 0 6 6
UFMG 2 4 6
UFMS 0 1 1
80

UFPA 0 1 1
UFPB 0 3 3
UFPE 5 5 10
UFPel 1 0 1
UFPR 3 1 4
UFRJ 2 3 5
UFRRJ 0 1 1
UFSC 1 3 4
UFSCAR 0 1 1
UFSM 2 1 3
UFT 1 1 2
UFU 0 1 1
UnB 0 1 1
UNESP 0 3 3
UNICAMP 1 1 2
UNICAP 0 1 1
UNICENTRO (Paraná) 0 1 1
UNIFESP 0 3 3
UNIMONTES 0 1 1
UNIPAMPA 0 1 1
UNISC 0 1 1
UNISINOS 1 0 1
UNIVERSO 0 5 5
UNOESC 0 1 1
USP (Ribeirão Preto) 2 5 7
USP (São Paulo) 6 13 19
UVA (RJ) 0 2 2
Fonte: A Autora (2017)

Como também aponta Moura e Paula (2013), as universidades que lideram com o
número de publicações continuam sendo a Universidade de São Paulo (USP), com 19
trabalhos, e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com 10. Pode-se verificar
ainda, como mostra o Quadro 3, que a produção foi proveniente de 46 instituições de
diversas regiões do país.
Na sequência, investigamos quais habilidades metalinguísticas foram as mais
estudadas, tanto em nível de mestrado quanto de doutorado. Nos Quadros 4 e 5, indicamos
os diferentes termos pesquisados e os trabalhos que englobavam o estudo de mais de uma
habilidade metalinguística.

Quadro 4 – Habilidades Metalinguísticas estudadas nas teses defendidas entre 2011 a


junho de 2016 localizadas no Banco de Teses da CAPES por Instituição de
fomento

Teses
Habilidade/ Estuda 1 Estuda 2 Estuda 3 Estuda 4 Total
Consciência habilidade habilidades habilidades habilidades
81

Habilidade/
Consciência 28 2 - 1 31
Fonológica
Habilidade/
Consciência 1 - - - 1
Lexical
Habilidade/
Consciência - - - - -
Morfossintática
Habilidade/
Consciência 1 - - - 1
Sintática
Habilidade/
Consciência - - - - -
Semântica
Habilidade/
Consciência - - - - -
Pragmática
Habilidade/
Consciência 3 - - - 3
Metatextual
Habilidade/
Consciência 2 - - - 2
Mofológica
Fonte: A Autora (2017)

Notamos, no quadro 4, que a consciência fonológica foi a mais examinada das


habibilidades metalinguísticas, o que representou 31 pesquisas (81,6% do total de teses)
ainda que algumas delas (3) tenham estudado também duas (fonológica e lexical; fonológica
e morfossintática) ou mais habilidades (fonológica, sintática, pragmática e morfológica). De
acordo com Soares (2016), essa significativa predominância de pesquisas sobre consciência
fonológica pode ter duas razões principais: primeiramente, porque desde os anos 1970 vem
sendo priorizado nos estudos internacionais sobre a aprendizagem inicial da escrita as
relações desta com a consciência fonológica; segundamente, devido ao entendimento da
importância dessa habilidade metalinguística para responder os desafios do fracasso
brasileiro no que se refere à alfabetização.
Assim como no caso das teses, percebemos que o estudo da dimensão fonológica
também foi predominante nas dissertações (mais de 85%), conforme podemos observar no
Quadro 5. Dos 86 trabalhos que tratavam da consciência fonológica, 5 deles investigavam
também outras habilidades metalinguísticas: fonológica e morfológica ; morfossintática,
semântica e pragmática; fonológica, lexical e sintática. Em uma pesquisa, a habilidade
metalinguística foi mencionada sem especificações. Das 101 dissertações, 7 abordaram a
consciência morfológica, 5 a consciência metatextual e 1 a consciência sintática. Houve,
82

ainda, uma delas que focalizou a análise da consciência morfossintática, semântica e


pragmática (QUADRO 5).

Quadro 5 – Habilidades Metalinguísticas estudadas nas dissertações defendidas entre 2011


a junho de 2016 localizadas no Banco de Teses da CAPES

Dissertações
Habilidade/ Estuda 1 Estuda 2 Estuda 3 Estuda 4 Total
Consciência habilidade habilidades habilidades habilidades
Habilidade/
Consciência - - - - 1
Metalinguística
Habilidade/
Consciência 81 2 2 1 86
Fonológica
Habilidade/
Consciência - - - - -
Lexical
Habilidade/
Consciência - - 1 - 1
Morfossintática
Habilidade/
Consciência 1 - - - 1
Sintática
Habilidade/
Consciência - - - - -
Semântica
Habilidade/
Consciência - - - - -
Pragmática
Habilidade/
Consciência 5 - - - 5
Metatextual
Habilidade/
Consciência 7 - - - 7
Mofológica
Fonte: A Autora (2017)

Tanto no que concerne às teses quanto às dissertações, a consciência fonológica


continuou sendo a habilidade metalinguística mais estudada. Nos levantamentos realizados
por Maluf, Zanella e Pagnez (2006) e Moura e Paula (2013), as autoras constataram que,
desde a década de 1980, essa habilidade metalinguística permanece sendo a mais investigada
pelos pesquisadores. O que verificamos, em comparação aos estudos supracitados, é que a
partir de 2011 houve um crescente interesse, dos estudiosos, em pesquisar a consciência
morfológica. Se nas revisões anteriores, desenvolvidas no período compreendido entre 1987
a 2010, houve apenas 9 publicações, de 2011 a junho de 2016, essas publicações quase que
83

dobraram. Também averiguamos um aumento no número de publicações sobre a


consciência metatextual.
No que se refere às áreas de conhecimentos das produções, estas se encontram
mapeadas na tabela 3, que segue.

Tabela 3 – Áreas do conhecimento em que foram desenvolvidas as teses e dissertações


localizadas no Banco de Teses da CAPES

Área
Teses Dissertações Total

Diversidade e Inclusão 0 1 1

Ciências da Reabilitação 0 3 3

Ciências da Saúde 0 5 5

Ciências Odontológicas 1 0 1

Educação 9 14 23
Educação (Psicologia da
1 4 5
Educação)
Educação Especial 0 1 1
Ensino de Línguas e Língua e
0 2 2
Cultura
Fonoaudiologia 8 16 24

Letras 2 13 15

Linguística 3 8 11

Linguística e Letras 4 3 7

Medicina 2 2 4
Neurociência 0 1 1
Oftalmologia 0 1 1
Processos Interativos dos 0 1
1
Órgãos e Sistemas
Psicologia 8 25 33

Psiquiatria 0 1 1

Fonte: A Autora (2017)

Percebemos, na tabela 3, que as áreas de conhecimento que mais se debruçaram


sobre a temática foram a Psicologia (33) a Fonoaudiologia (24) e a Educação (23). As áreas
de Letras e Linguística também contam com um número expressivo de trabalhos, sobretudo
se somarmos as teses e dissertações defendidas em cada área, separadamente, assim como
84

aquelas oriundas de programas que contemplam as duas em seus nomes. Desse modo,
teremos, ao todo, 33 trabalhos nessa área (35, se considerarmos também a área de Ensino de
Línguas e Língua e Cultura). Além disso, se adicionarmos os trabalhos da área de Educação
Especial e de Educação (Psicologia da Educação) aos de Educação, teríamos 29 produções
nessa última. Em síntese, as áreas de Psicologia, Letras/Linguística, Educação e
Fonoaudiologia são as que mais se destacam.
Dando prosseguimento à análise, buscamos apontar os participantes que eram
investigados nestas teses e dissertação, tal qual revela a Tabela 4.

Tabela 4 – O perfil dos sujeitos das pesquisas localizadas no Banco de Teses da


CAPES

Faixa etária Teses Dissertações Total

Adulto 0 1 1

Crianças e Professores 0 1 1

Crianças Jovens e Adultos 0 1 1

Crianças e Adultos 1 0 1

Jovens, Adultos e Professores 1 0 1

Crianças e Jovens 1 3 4

Jovens (14-17anos) 1 5 6

Jovens e Adultos 2 3 5

Professores 4 6 10

Crianças (0-13 anos) 27 73 100

Fonte: A Autora (2017)

Excluímos, da Tabela 4, as pesquisas que tiveram apenas análise bibliográfica/teórica


(5) e análise de material didático (4). As pesquisas cujos participantes são crianças
continuam apresentando, de modo geral, maior quantitativo que aquelas que investigam a
consciência metalinguística em jovens e adultos. Desse modo, ainda permanecem sendo
escassos os estudos envolvendo adultos. Porém, chama a atenção, nas pesquisas, a presença
de um grupo diferenciado de adultos: os professores.
85

Ao compararmos os dados apresentados no mapeamento realizado por Maluf,


Zanella e Pagnez (2006) e por Moura e Paula (2013), evidenciamos que desde 2005 até 2015
a quantidade de estudos sobre as habilidades metalinguísticas foi maior em relação aos anos
anteriores. Porém, nesses últimos dez anos, o percentual de publicações se manteve
praticamente o mesmo (GRÁFICO 8).

Gráfico 8 – Quantidade das pesquisas de pós-graduação, por ano de publicação, localizadas no


Banco de Teses da CAPES

Fonte: A Autora (2017)

É importante ressaltarmos que não temos como definir as produções acadêmicas


(teses e dissertações) do ano de 2016, já que contabilizamos os trabalhos defendidos apenas
até junho.
Passaremos, a seguir, à descrição e análise dos artigos envolvendo as habilidades
metalinguísticas em diferentes periódicos.

b) Artigos em Periódicos

A análise realizada também nos permitiu constatar que os artigos, em número de 90,
investigaram diferentes habilidades metalinguísticas. No entanto, a consciência fonológica
foi mais examinada (77,7%), seguida da consciência morfológica, metatextual,
morfossintática, sintática e pragmática. Para melhor compreender e analisar estes artigos
que vêm sendo produzidos, nos últimos anos, apresentamos tais dados no Quadro 6.
86

Quadro 6 – Habilidades metalinguísticas estudadas em artigos publicados entre 2011 e


junho de 2016
Artigos

Habilidade/ Estuda 1 Estuda 2 Estuda 3 Estuda 4 Total


Consciência habilidade habilidades habilidades habilidades
Habilidade/
Consciência 62 7 - 1 70
Fonológica
Habilidade/
- - - - -
Consciência Lexical
Habilidade/
Consciência 2 - - - 2
Morfossintática
Habilidade/
Consciência 2 - - - 2
Sintática
Habilidade/
Consciência - - - - -
Semântica
Habilidade/
Consciência 1 - - - 1
Pragmática
Habilidade/
Consciência 4 - - - 4
Metatextual
Habilidade/
Consciência 11 - - - 11
Mofológica
Fonte: A Autora (2017)

Assim, entre 2011 e junho de 2016, foram encontrados 90 artigos distribuídos em


diferentes periódicos. O maior número de produções (20) encontram-se na Revista CEFAC,
que, a partir de 2010, aumentou a periodicidade das publicações, deixando de ser semestral
(entre 1999 a 2001) para bimestral (a partir de 2010). Cabe ressaltar que esse periódico é da
área de Fonoaudiologia, uma das que, conforme nosso levantamento, mais publicou teses e
dissertações sobre o tema nos últimos anos (QUADRO 7).

Quadro 7 – Frequência das publicações sobre consciência metalinguística, por periódico,


no período entre 2011 e junho de 2016
Periódicos Total
Audiology Communication Research 3
Avaliação Psicológica 1
Temas em Psicologia 2
CoDAS 4
Revista Distúrbio da Comunicação 2
Estudos e Pesquisa em Psicologia 5
Estudos de Psicologia (Campinas) 3
87

Estudos de Psicologia (Natal) 2


Interação em Psicologia 1
Jornal da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia 6
Paideia 5
Psicologia: teoria e pesquisa 2
Psicologia-USF 3
Psicologia: Ciência e Profissão 1
Psicologia em Estudo 1
Psicologia em Pesquisa 2
Psicologia: Teoria e Prática 1
Psicologia USP 2
Psicopedagogia 2
Revista Brasileira de Linguística Aplicada 1
Revista Cefac 20
Revista de Psicopedagogia 5
Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia 5
Fonte: A Autora (2017)

Como vemos, a maior parte dos periódicos são da área de Psicologia. Entretanto,
também, tem a ver com as bases de dados consultadas. Em 2012, houve um crescimento de
9% no número de artigos em comparação ao ano anterior, embora, nos anos seguintes,
observemos uma queda em relação a 2012 (GRÁFICO 9).

Gráfico 9 – Distribuição dos artigos por ano de publicação entre 2011 e junho de 2016

Fonte: A Autora (2017)

No que concerne à faixa etária dos participantes desses estudos, constatamos que, do
total de 90 trabalhos, 84% deles foram realizados com crianças e apenas 7% com adultos ou
jovens e adultos. Isso revela, em certa medida, um número bastante limitado de pesquisas
88

com esse último público. Excluímos os 7 artigos que voltam-se, exclusivamente, para a
análise teórica do tema (GRÁFICO 10).

Gráfico 10 – Perfil dos sujeitos nos artigos publicados entre 2011 e junho de 2016

Adultos 2

Jovens e Adultos 4

Crianças 76

Crianças e Jovens 1

0 10 20 30 40 50 60 70 80
Total 83
Fonte: A Autora (2017)

Para finalizar esse levantamento, comparamos a quantidade de teses e dissertações,


defendidas entre 2011 a junho de 2016, com o número de artigos publicados nesses anos e
obtivemos os resultados apresentados no Gráfico 11, a seguir.

Gráfico 11 – Comparativo entre a quantidade de Teses e Dissertações e Artigos sobre as


habilidades de consciência metalinguística, por ano de publicação, no período entre 2011
e junho de 2016

Fonte: A Autora (2017)


89

As produções de teses e dissertações relevaram-se superiores às de artigo, com


exceção do ano de 2011, período em que a quantidade de publicações foi idêntica, e em
2012, ano em que o número de artigos foi superior. Evidenciamos que as teses/dissertações
não foram, em todos os anos, mais numerosas do que os artigos publicados em periódicos,
como ocorreu no estudo conduzido por Maluf, Zanella e Pagnez (2006).
Em síntese, buscamos, com este levantamento, entender o amálgama de saberes que
estavam sendo mobilizados pelos autores, em um tempo histórico e social determinado,
tanto sobre a literatura de cordel quanto sobre a consciência metatextual, com o propósito de
(re) pensarmos os próprios objetivos dessa nossa investigação. Em outras palavras, cada vez
que nos deparávamos com estes trabalhos, recorríamos aos nossos objetivos e indagávamo-
nos sobre a maneira como eles poderiam contribuir com esta dissertação. Por isso,
comungamos da ideia de que o estado do conhecimento não permite apenas que o
pesquisador tenha acesso às produções científicas, mas que reflita sobre as próprias escolhas
(teóricas e metodológicas) que realiza durante a escrita de um trabalho dessa natureza. São
essas questões, entre outras possíveis de serem evocadas, que justificam o propósito, já
anunciado nesta dissertação, de investigar a consciência metatextual de poetas (cordelistas)
sobre o gênero cordel.
90

3 OS CAMINHOS PERCORRIDOS: ITINERÁRIO PARA A CONSTRUÇÃO DO


CORPUS DA PESQUISA

Definimos os objetivos e, aos poucos, fomos delimitando, ao nosso modo, a melhor


maneira de tentar atendê-los. Como um mosaico, em que a combinação das partes dá forma
ao todo, compusemos a metodologia. Era necessário, igualmente, considerar que a
metodologia incluía, simultaneamente, as concepções teóricas da abordagem (o método), o
conjunto de técnicas que contribuíra para a construção da realidade e a criatividade do
pesquisador, suas vivências e sensibilidade diante do objeto que pretendia estudar
(MINAYO, et al., 2002).
Nesse processo, valemo-nos de uma abordagem qualitativa, uma vez que buscamos
dar resposta a questões particularistas, captando, muitas vezes, o que estava nas entrelinhas,
para assim enxergarmos a realidade em toda sua dinamicidade. A escolha por esta
abordagem de pesquisa fez-se necessária pelo fato dela ser reveladora das condições
simbólicas, estruturais e, “ao mesmo tempo, possui a magia de transmitir, através de um
porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados, em condições históricas,
socioeconômicas e culturais específicas” (MINAYO; SANCHES, 1993, p.245).
Assim sendo, esse tipo de investigação permitiu interpretar o conteúdo dos discursos
e da fala cotidiana, mas no interior de um quadro de referência (MINAYO; SANCHES,
1993). A adoção por esse tipo de abordagem não descartou, porém, o uso de dados
quantitativos, na medida em que qualitativo e quantitativo não são aspectos dicotômicos,
mas, “ao contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage
dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia” (MINAYO, et al., 2002, p. 22).
Instigados, pois, pela ideia de que por essa trilha poderíamos enveredar, com a
pretensão de atingir os objetivos (tanto o geral quanto os específicos), apresentamos, a
seguir, as razões das nossas escolhas metodológicas.

3.1 Critérios de seleção e perfis dos participantes da pesquisa

Entrevistamos, no total, 14 (quatorze) cordelistas (ver o roteiro no apêndice A) que


frequentavam o Museu do Cordel Olegário Fernandes, em Caruaru – PE, e que haviam sido
indicados por outros poetas. Desse quantitativo, foram selecionados 6 (seis), em função,
sobretudo, de seu nível de escolaridade (três deles tinham pouca ou nenhuma escolarização e
os outros três possuíam maior escolaridade) e das idades/pertencimento geracional,
conforme detalharemos a seguir.
91

Em razão dos nossos objetivos, excluímos, intencionalmente, os poetas que


apresentavam nível superior de escolaridade (graduação e pós-graduação) e que eram
professores do Ensino Fundamental e Médio, por acreditarmos que suas respostas seriam
menos naturais e mais marcadas por certa teorização acadêmica. Nesta dissertação,
mantivemos os nomes originais dos depoentes e, em alguns casos, os nomes artísticos, por
opção deles e em conformidade com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
assinado por eles (Apêndice B). Diante disto, apresentamos um quadro síntese com o perfil
dos participantes selecionados (QUADRO 8):

Quadro 8 – Perfil dos poetas entrevistados

Informações dos participantes da pesquisa

José Paulo Pereira José Manuel José Genival Diosman Jailton Pereira
Nome Francisco da Silva dos Santos Tabosa Avelino da Silva
Borges (Val Tabosa)
(Zé Guri)
(J. Borges)

Idade 80 anos 71 anos 66 anos 54 anos 38 anos 34 anos

Cidade na Bezerros Caruaru Belo Jardim Caruaru Pesqueira Tacaimbó


qual reside
atualmente
Residência Sítio Sítio Sítio Sítio Sítio Buíque Sítio Tacaimbó
anterior Bezerros Lajedo Belo Jardim Caruaru

Ocupação Comercializa Comerciante Comercializa Tapeceiro Comercializa Produz cordéis


atual cordéis, mas aposentado cordéis e cordéis e sem fins
tem atuado, outros objetos objetos comerciais.
sobretudo, (CDs, decorativos Atualmente,
como chapéus, está
Xilógrafo espelhos e desempregado
outros)
Escolaridade Um ano Terceira série Um ano Ensino Médio Ensino Médio Ensino Médio
incompleto do Ensino incompleto completo completo completo
(10 meses) Fundamental (EJA)
Escolaridade Não Não Não A mãe fez Não Estudaram
dos pais frequentaram frequentaram a frequentaram magistério e o frequentaram durante um ano
a escola escola a escola pai concluiu o a escola
(o pai sabia primário
ler e escrever)
Profissão dos Agricultores Agricultores Agricultores O pai é Agricultores Agricultores
pais e motorista e a
Almocreve29 mãe,
atualmente, é
dona de casa
(do lar), mas

29
Os almocreves eram pessoas que trabalhavam conduzindo animais de carga ou mercadorias de um lugar a
outro.
92

já foi
professora
Fonte: A Autora (2017)

Ao observarmos o Quadro 8, notamos que os participantes deste estudo


apresentavam idades variadas, mas, ainda assim, reunimo-los em três grupos, sendo estes: a)
J. Borges e Paulo Pereira (81 e 70 anos), nascidos nas décadas de 1930 e 1940,
respectivamente; b) Zé Guri e Val Tabosa (com 66 e 54 anos), nascidos nas décadas de 1950
e 1960, na devida ordem; e c) Diosman Avelino e Jailton Pereira (38 e 34 anos), nascidos
nas décadas de 1970 e 1980, também nesta ordem. Eles residiam em cidades distintas,
embora todas fossem pertencentes à microrregião do Agreste Pernambucano.
É importante salientar que, ainda que todos os participantes fizessem parte da
categoria “poetas”, e isso os colocasse em um grupo com uma série de experiências comuns,
somavam-se ao pertencimento ocupacional outras variáveis sociais (como idade/geração,
lugar geográfico, etc.). Esse pertencimento, certamente, tinha (ou “resultava em”)
consequências decisivas nos processos cognitivos desses colaboradores da pesquisa, pois se
relacionam, entre outros elementos, às vivências urbanas e à provável familiaridade
construída não apenas com a cultura escrita, mas também com as novas tecnologias.
Apesar de haver certas distinções entre esses poetas, percebemos, também, algumas
aproximações, como, por exemplo, o fato de todos terem nascido em áreas rurais e, mais
tarde, terem se deslocado para os centros urbanos. Segundo Abreu (1997), este é um dado
recorrente nas pesquisas que envolvem cordelistas, pois muitos deles são filhos de pequenos
proprietários ou de trabalhadores assalariados, oriundos da área rural. Pode-se dizer,
também, que isso se deve porque, até a metade do século XX, em 1950, apenas 34,4% dos
pernambucanos residiam em áreas urbanas estaduais. De acordo com o censo demográfico,
foi apenas em 1970 que a população urbana tornou-se superior à rural. Esse foi um período
marcado pela transição de uma sociedade “tradicional” e “agrária” para uma sociedade
“moderna” e “urbana” (NETO; VERGOLINO, 2014). Não estamos querendo, com isso,
atribuir ao cordel um caráter rural, pois Galvão (2005) explica que o surgimento e
desenvolvimento dessa literatura só tornaram-se possível no contexto de urbanização.
Ainda conforme Abreu (1997), alguns dos poetas deram início à vida profissional
como vendedores, agricultores, almocreves, mas, à medida que começaram a editar e vender
os folhetos, passaram a se dedicar ao trabalho com os versos. No tocante à profissão e à
escolaridade dos pais, evidenciamos que a maioria deles trabalhava como agricultores e
93

eram pouco (ou não) escolarizados. Apenas um deles, José Genival Tabosa, era filho de pais
com maior nível de escolaridade e que possuíam outro vínculo empregatício.
No que se refere à escolaridade dos entrevistados, distribuímo-los em dois grupos: a)
poetas com pouca escolaridade e b) poetas com maior escolaridade. Utilizamos, neste
trabalho, o termo “escolaridade” como o processo educativo ocorrido na instituição escolar.
Todavia, reconhecemos que a escola não foi (e ainda não é) a única agência mediadora do
processo de apropriação da leitura e escrita (GALVÃO, 2001).

3.2 Procedimentos de produção de dados

A fim de atendermos os propósitos da presente pesquisa, fizemos uso de três


instrumentos metodológicos distintos, porém intimamente relacionados: entrevistas
semiestruturadas, entrevista semiestruturada metalinguística e tarefas de transgressão do
gênero (produção e identificação). Os três procedimentos foram realizados, individualmente,
em locais sugeridos pelos entrevistados30.
Com o intuito de avaliar, revisar e aprimorar esses instrumentos, realizamos testes
pilotos com poetas não participantes do estudo. Assim, a priori às realizações de cada uma
das etapas descritas a seguir, foram feitos pré-testes para verificar a viabilidade e
confiabilidade das perguntas e atividades propostas.

3.2.1 Entrevistas semiestruturadas

Após a seleção dos participantes, realizamos uma primeira entrevista semiestruturada


que versava sobre as suas experiências escolares, suas atuais práticas de letramento e a
introdução na carreira de cordelista. Com isto, não buscamos desenvolver um estudo
minucioso sobre as trajetórias familiares, de escolarização e de letramento dos entrevistados,
mas, sim, entender, brevemente, como as suas experiências escolares e extraescolares
poderiam se relacionar às suas verbalizações sobre o gênero cordel.
Considerando essa ressalva, apresentamos, inicialmente, aos poetas perguntas sobre as
suas experiências escolares. Da mesma maneira, procuramos investigar as experiências de

30Esclarecemos que as entrevistas e as tarefas de transgressão ocorreram em três lugares diferentes: em


Bezerros, no Museu da Xilogravura e Memorial J. Borges (com o referido poeta); na Casa do Cordel, em
Caruaru (com Paulo Pereira e Jailton Pereira) e no Shopping Rosa, localizado em Pesqueira (com Diosman
Avelino).
94

letramento dos participantes, sem, no entanto, termos a pretensão de avaliar e/ou medir os
seus níveis de letramentos. Tendo isso em vista, propusemos algumas perguntas sobre os
materiais a que tinham acesso e a frequência com que os liam, bem como sobre os textos que
escreviam e a frequência com que os faziam. Além disso, apresentamos aos colaboradores
perguntas sobre as suas experiências como cordelistas, de modo a termos acesso a
informações sobre como ocorreram os seus primeiros contatos com o gênero cordel, como
produziam e de que modo o faziam (consultar o Apêndice C).
Essa entrevista, portanto, consistiu em uma série de perguntas verbais abertas, em
uma ordem prevista, na qual o entrevistador acrescentava perguntas de esclarecimento
(LAVILLE; DIONE, 1999). Todas elas foram feitas conforme a disponibilidade dos poetas
e, para os registros dos dados, utilizamos como auxílio a gravação de áudio.

3.2.2 Entrevista semiestruturada metalinguística

Com a finalidade de analisar as verbalizações dos poetas sobre o gênero discursivo


que produziam (no caso, o cordel), optamos, também, por realizar uma entrevista com
caráter metalinguístico (ver roteiro em Apêndice D), que demandasse um maior nível de
reflexão, por parte dos entrevistados, já que se tratava de questões sobre aspectos que, muito
provavelmente, eles não pensavam de forma explícita consciente durante o processo de
escrita. Assim, as entrevistas (ou uma parte delas) foram efetuadas com a mediação dos
textos produzidos pelos próprios autores, que, nesse caso, eram os próprios poetas. Em
outras palavras, podemos dizer que o propósito dessa entrevista foi o de demonstrar como
tais escritores analisavam o próprio texto e o gênero que produziam. Tal procedimento pode
se caracterizar, portanto, como uma entrevista metalinguística (KARMILOFF-SMITH,
1995), a qual incidiu principalmente sobre aspectos sociodiscursivos, temáticos,
composicionais e paratextuais do gênero cordel.
Optamos por não investigar a dimensão estilística desse gênero em decorrência do
curto tempo para realização de uma pesquisa em nível de mestrado31. Para o

31 Em sua tese de doutorado, ao investigar a explicitação consciente-verbal de conhecimentos sobre o gênero


notícia e sua relação com o processo de produção de textos, Rosa (2011) indicou que era muito difícil elaborar
perguntas que dessem conta da explicitação dos conhecimentos concernentes à dimensão estilística do gênero,
sobretudo, em virtude do nível de escolaridade das crianças investigadas (estudantes do 5º ano do Ensino
Fundamental). Além disso, referindo-se ao projeto piloto das entrevistas, estas dimensões eram consideradas de
difícil explicitação. Por isso, a autora optou por tratar, nas tarefas propostas, apenas algumas características das
dimensões sociodiscursivas, temáticas e composicionais da notícia.
95

aperfeiçoamento das perguntas dessa entrevista, fizemos dois testes-pilotos: o primeiro


buscava averiguar a adequação em termos de linguagem e a coerência da estrutura e da
sequência das perguntas; o segundo tinha a pretensão de analisar a viabilidade das perguntas
propostas, o que nos levou, em alguns momentos, a excluir e acrescentar determinadas
questões. Conforme assinalado por Lahire (1998), a escolha das perguntas pode ser decisiva
quando se quer ter acesso às práticas reais dos depoentes, pois a versão da realidade que
iremos obter dependerá delas e da forma como conduzimos a entrevista. Apesar de termos
tido esse cuidado, reconhecemos as limitações que ainda, porventura, permaneceram no
roteiro utilizado.

3.3 Tarefas de transgressão

Em dias posteriores à realização das entrevistas metalinguísticas, propusemos aos


participantes duas tarefas de transgressão, inspiradas em Morais (2003). Esse tipo de tarefa,
como alude esse autor, tem como pressuposto a ideia de que, para transgredir
intencionalmente uma norma ou regra, os conhecimentos dos participantes sobre um dado
objeto precisavam estar em um nível explícito consciente. À luz desse debate e para
execução desta tarefa, baseamo-nos, assim como aquele autor, no modelo da Redescrição
Representacional ( KARMILOFF-SMITH, 1998), já discutido anteriormente.
Tal como já apontamos, essa teoria compreende que, em um primeiro momento, as
informações estão para os sujeitos em um nível implícito. Por isso, eles agem de maneira
automática e mecânica, sem ter o controle consciente do que fazem. Com a progressiva
flexibilidade cognitiva, esses conhecimentos vão se tornando explícitos, podendo atingir um
nível explícito consciente e ainda um nível explícito consciente verbal (MORAIS, 2008).
Dividimos as tarefas em duas modalidades, a saber: i) produção de transgressões, ii)
identificação de transgressões, ambas em cordéis. No primeiro caso, visamos reconhecer que
dimensões do gênero os poetas manipulavam intencionalmente para que um cordel “bem
escrito” se transformasse em um cordel “mal escrito”. No segundo, tínhamos como intenção
perceber se os poetas conseguiam detectar certos problemas nas estrofes que lhes foram
apresentadas. Em ambas as modalidades, os poetas foram solicitados a justificar os erros
produzidos e identificados.
Nas duas tarefas, as transgressões incidiram sobre os três aspectos considerados na
literatura como essenciais no gênero e que foram, inclusive, apontados pelos próprios poetas
com os elementos definidores de um bom cordel: rima, métrica e oração. A realização das
96

tarefas pelos participantes foi registrada com apoio da gravação de áudio e do diário de
campo.

3.3.1 Produção de transgressões em cordéis

Solicitamos que, para o cumprimento dessa atividade, os entrevistados imaginassem


uma pessoa que começou a produzir cordéis, mas que ainda cometia (muitos) erros ao fazê-
lo. Assim, os entrevistados tinham que criar erros (de rima, métrica e oração) nas estrofes
que lhes foram apresentadas e que poderiam ter sido cometidos por aquela pessoa durante a
escrita do cordel. Para cada estrofe, requeríamos que os poetas cometessem erros
envolvendo os três aspectos supracitados, do gênero em questão, e explicitassem
verbalmente as regras que nortearam as transgressões efetuadas. Foi cometido, por cada
entrevistado, um tipo de erro (de rima, de métrica e oração) por vez e nesta respectiva
ordem.
Partimos do pressuposto de que para produzir tais erros e justificá-los, seria
necessário que os participantes tivessem, respectivamente, conhecimentos explícitos
conscientes e explícitos conscientes verbais sobre o gênero. Ante o exposto, elegemos três
estrofes de cordéis32. Essa escolha foi feita, sobretudo, em virtude de dois motivos: por
darem possibilidade aos investigados de transgredirem os princípios estruturantes do gênero
e de os seus autores já eram muito conhecidos pelos poetas entrevistados (QUADRO 9).

Quadro 9 – Extratos dos cordéis usados na tarefa de produção de transgressões


Título e autoria dos cordéis ESTROFES

Eis a real descrição


Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
A Donzela Teodora Tirado tudo direito
(Leandro Gomes de Barros) Da história grande dela

Em pouco tempo ela tinha


Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
A qualquer um instrumento
(...)
32
Mantivemos a estrofe inicial do cordel, mas, em função dos nossos propósitos, elegemos as demais sem que
elas, necessariamente, atendessem a ordem na qual o texto foi redigido.
97

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel
(...)

Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal assombrado
A chegada de Lampião no Inferno
(José Pacheco) Foi ele que trouxe a noticia
que viu Lampião chegar
o inferno nesse dia
faltou pouco pra virar
incendiou-se o mercado
morreu tanto cão queimado
que faz pena até contar

(...)

O vigia disse assim


Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que eu disser
Eu levo o senhor lá dentro

(...)

Fonte: Elaborado pela autora (2017)


Nota: Adaptação dos extratos do cordel “A Donzela Teodora”, de Leandro Gomes de
Barros, e de “A chegada de Lampião no Inferno” de José Pacheco.

3.3.2 Identificação de transgressões em cordéis

Pedimos aos poetas que, para a realização desta tarefa, se imaginassem como parte
da comissão avaliadora de um concurso de literatura de cordel cujo tema era o amor. Os
poetas tinham, pois, a função de julgar as estrofes (de modalidades distintas) produzidas por
quatro participantes do concurso. Para tanto, intencionalmente, alteramos as rimas, as
98

métricas, a ordem dos versos e os temas das estrofes33, de modo que os entrevistados
tivessem que identificar os erros cometidos, propositalmente, e explicitar verbalmente por
que eles não atendiam às regras do gênero.
Explicamos aos poetas, a priori à realização da tarefa, que neste concurso de caráter
fictício não foi delimitada a modalidade em que as estrofes seriam construídas (quadra,
sextilha, septilha ou décima) e a quantidade de sílabas poéticas (que podiam ser
versos heptassilábicos ou decassílabos). O único requisito era que os candidatos fizessem
apenas duas estrofes sobre o tema proposto. As estrofes foram apresentadas uma por vez e
pedimos que identificassem, nelas, possíveis erros de rima, métrica e oração. A cada
identificação eles, também, tinham que justificar os erros que foram encontrados nos versos.
A seguir, no Quadro 10, apresentamos as estrofes disponibilizadas aos poetas,
indicando os nomes fictícios dos autores, as modalidades dos versos e os erros que
produzimos intencionalmente.

Quadro 10 – Estrofes de cordel usadas na tarefa de identificação de erros

Nomes dos fictícios


participantes do
Estrofes Erros cometidos
concurso e as
modalidades dos versos

Eu me transformo em palhaço Erro de metrificação


Ao lado do amor do verso (quantidade
Fazendo um circo de sonhos inferior de sílabas
PEDRO Debaixo do cobertor poéticas)

(QUADRA A presença é inconstante Erro de rima (rima


HEPTASSILÁBICA) A distância causa trauma assonante) e de
E o seu corpo é nutriente oração
Que alimenta minha alma

A justiça do amor
Desmede em suas balanças Erro de metrificação
A chegada traz prazeres do verso (quantidade
MARIA Sua ida traz mudanças inferior de sílabas
E o peito se torna um túmulo poéticas)
(SEXTILHA Guarda velhas lembranças
HEPTASSILÁBICA)
Meu corpo longe do teu Erro de rima (rima

33 Para a produção desta atividade, contamos com a ajuda do poeta Nogueira Netto e, durante as análises, com
o poeta Jénerson Alves, que não eram participantes deste estudo.
99

Sente falta dos amassos assonante)


Meus braços paralisaram
Sem enlaçar-me aos teus braços
E a alma vidraça frágil
Dividida em mil pedaços

A falta que ela faz


Posso descrever assim:
O peixe longe do rio
A flor longe do jardim
Quando eu estou no quarto Erro de metrificação
Do meu próprio eu me aparto do verso (quantidade
APARECIDA Sem seu eu perto de mim inferior de sílabas
poéticas)
(SEPTILHA Tô pensando em dar o troco
HEPTASSILÁBICA) E preencher meu vazio
Senti no fio da meada Erro de oração
Sua vida por um fio
Como o ego faz cobrança
Vou provar que a vingança
Nunca foi um prato frio

No começo foi só uma figura


Preenchendo meu álbum de malícias
E o projeto mudou de estrutura
Inundou-me com flertes e carícias
Eu pensei ser mais uma aventura
Pela forma que o nosso amor se deu
Mas depois que o encontro aconteceu
Se na cama pudemos nos perder
Sem querer comecei a te querer Erro de posição das
Ao tentar me esquecer que me esqueceu rimas nos versos
CÍCERO
Este meu coração um pobre músculo
Aceitou rejeitar instintos loucos
(DÉCIMA EM
E a lembrança da ex foi aos poucos
DECASSÍLABO)
Parecendo o cair de um crepúsculo Erro de metrificação
Por você meu amor foi bem minúsculo
Mas depois que ele em mim cresceu
Um minuto somente ao lado teu
Leva uma eternidade de prazer
Sem querer comecei a te querer
Ao tentar me esquecer que me esqueceu

Fonte: Elaborado pela autora (2017)


Nota: Adaptação dos extratos de cordel feitos pelo poeta Nogueira Netto (2017).

Em síntese, os cordelistas tiveram não apenas que identificar os erros, mas também
verbalizar as regras que haviam sido transgredidas. Nas análises, deter-nos-emos mais
detalhadamente nos erros e justificativas dadas por eles.
100

3.4 Procedimentos de análise dos dados

Os dados gerados a partir desses procedimentos metodológicos foram tratados a


partir da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (1979). Esta foi desenvolvida
por temas (análise temática categorial) e envolveu as seguintes etapas: pré-análise,
exploração do material (codificação e categorização da informação) e tratamento dos
resultados (inferência e interpretação).

3.4.1 A pré-análise

Essa fase consistiu na organização do material propriamente dito, de modo a torná-lo


operacional. Após dispormos do material gerado a partir das entrevistas e das tarefas,
fizemos uma leitura flutuante do texto, que fora devidamente transcrito, com o objetivo de
analisá-lo. Nesse momento, já levantamos algumas hipóteses sobre o material textual, mas
sem maiores preocupações técnicas. Elegemos o corpus constituinte das entrevistas
semiestruturadas e atividades de transgressão (de produção e identificação) a serem
submetidos à análise.
Entendemos, tal como Bardin (1979), o corpus como um conjunto de documentos
que foram submetidos aos procedimentos analíticos, o que implicou, muitas vezes, em
escolhas, seleção e regras (BARDIN, 1979). Diante dessas premissas, na primeira entrevista
semiestruturada, delimitamos, para objeto de análise, apenas as respostas relacionadas às
experiências de escolarização, de letramento e de imersão na carreira como cordelista. As
perguntas que realizamos contemplavam, inclusive, outros elementos (como o processo de
produção, por exemplo) que não nos detivemos em analisar. Na segunda entrevista, que
contemplava os aspectos sociodiscursivos, temáticos e composicionais do gênero, todos os
dados gerados foram sujeitos à análise, da mesma forma que os obtidos por meio das
atividades de produção e identificação das transgressões. Para seleção do corpus, levamos
em considerações as regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e
pertinência, Após essa etapa, o material foi, novamente, lido, listando por os temas
(principais e secundários) que emergiram das mensagens, os quais tiveram que ser
codificados e categorizados.

3.4.2 A exploração do material

Nessa fase de exploração do material, definimos as categorias de análise face ao


referencial teórico adotado e aos dados empíricos. Estipulamos as seguintes categorias, a
partir da entrevista metalinguística: dimensão sociodiscursiva (propósitos, leitores/ouvintes,
101

indicação de autoria suporte e conteúdo temático), dimensão composicional do gênero (rima,


métrica e oração) e aspectos paratextuais (título e imagem). Nas tarefas de transgressões,
limitamo-nos à dimensão composicional do cordel. Dessa maneira, a codificação, a
classificação e a categorização foram básicas nesta fase (BARDIN, 1979). Cabe salientar
que, em todo o processo de construção das categorias, procuramos preservar os depoimentos
dos poetas entrevistados.

3.4.3 O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação

Neste momento, organizamos os dados em quadros, culminando nas interpretações


inferenciais. Ao realizar o tratamento e análise dos dados, articulamos, também, os aspectos
da superfície das mensagens com aqueles que se encontravam nelas implícitos, isto é,
articulamos o “dito” com o “não dito”, conforme sugere Bardin (1979).
Mediante as categorias referenciadas acima, prosseguiremos com a análise das
experiências de escolarização, de letramento e profissionais (como cordelistas) dos
participantes.
102

4 CONTEXTUALIZANDO OS PARTICIPANTES: TRAJETÓRIAS DE


ESCOLARIZAÇÃO, LETRAMENTO E CORDELÍSTICA DOS POETAS
ENTREVISTADOS

4.1 De quem falamos quando falamos

Na introdução desta dissertação, ao relatarmos como construímos o objeto da


investigação, evidenciamos as marcas do nosso horizonte social e de como elas repercutiram
no processo de construção desta pesquisa. Consideramos, então, relevante apresentar o lugar
de onde os cordelistas teciam os seus dizeres. No caso deste estudo, 6 (seis) poetas passaram
a compor o quadro de participantes, sendo eles os que apresentamos a seguir.
Francisco José Borges (J. Borges) nasceu em 20 de dezembro de 1935 no município
de Bezerros – PE. Nessa época, a maioria das famílias residentes no campo vivia da
agricultura de subsistência. O seu pai, Joaquim Francisco Borges, além de agricultor,
trabalhava como almocreve conduzindo mercadorias, de um lugar a outro, no lombo do
cavalo. Aos 21 anos, J. Borges começou a comercializar folhetos em diversas cidades da
região. Por falta de condições financeiras para ilustrar os cordéis, começou a produzir as
próprias xilogravuras. Considerado um dos Patrimônios Vivos de Pernambuco, hoje, aos 81
anos, é reconhecido nacional e internacionalmente como cordelista e xilógrafo.
Paulo Pereira da Silva, nascido no município de São Bento do Una– PE, em 20 de
dezembro de 1945, era também agricultor. Aos 10 (dez) anos de idade foi residir em Caruaru
– PE, onde trabalhou, durante anos, como modelista, solador, apalazador e vendedor. Aos 71
anos, embora aposentado, continua declamando em eventos, produzindo músicas e cordéis.
Ele é um dos membros da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel.
José Manuel dos Santos (Zé Guri), atualmente com 67 anos, nasceu em Belo Jardim
– PE. Aos 30 (trinta) anos foi residir no centro da cidade, onde passou a comercializar vários
objetos, inclusive cordéis, almanaques e canções. Filho de agricultores, Zé Guri começou
cantando repente, embolada e comerciando cordel antes de dar início à profissão de
cordelista.
José Genival Tabosa (conhecido como Val Tabosa) tem 54 anos e é residente na
cidade de Caruaru – PE. Nasceu no Sítio Vertentes, ainda distrito deste município, e aos 13
(treze) anos mudou-se para a área urbana. Terminou o Ensino Médio em 1984, aos 19 anos,
mas não ingressou em uma faculdade, porque, na época, não tinha condições financeiras, o
103

que o levou a optar pelo trabalho. Atualmente, atua como tapeceiro de móveis. É, também,
um dos associados da ACLC.
Diosman Avelino nasceu em 1978 (hoje com 38 anos) em Buíque, município do
estado de Pernambuco localizado a quase 300 (trezentos) quilômetros da capital Recife.
Hoje, ele dedica-se, exclusivamente, à comercialização de cordéis, embora já tenha
trabalhado como garçom, pedreiro, vendedor em lojas de calçados, ajudante de caminhão e
outros. Concluiu o Ensino Médio em 2015, em Pesqueira (onde reside atualmente) na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos, doravante EJA.
Jailton Pereira da Silva, conhecido pelos colegas como Caxingó, nasceu em São
Caetano – PE em 1982, mas ainda na infância foi residir no município de Tacaimbó– PE.
Filho de agricultores, o poeta ajudava os pais na agricultura. Embora no período da pesquisa
estivesse desempregado, ele teve vários empregos informais, tais como: agricultor, servente
de pedreiro, frentista e outros. Terminou o Ensino Médio em 2003.

4.1.1 De onde falavam os cordelistas

Os seis participantes desta investigação residiam em cidades do Agreste Central de


Pernambuco, mais especificamente em Belo Jardim, Bezerros, Caruaru, Pesqueira e
Tacaimbó, todas localizadas na microrregião do Vale do Ipojuca. A referida região destaca-
se, economicamente, por possuir diversos polos industriais alimentícios, pela agricultura e
criação de gado. A Figura 3 revela os municípios em que entrevistamos os cordelistas e onde
os mesmos, atualmente, habitam.

Figura 3 – Cidades em que residiam os participantes da pesquisa


104

Fonte: Google Maps (2017).

Em conformidade com os últimos censos do IBGE (utilizamos os índices de 2016


quanto à população e de 2010 acerca da taxa de escolarização), averiguamos que o
município de Caruaru apresentava uma população muito grande (351. 686 pessoas)
comparada às outras cidades onde foram realizadas as entrevistas. Já Tacaimbó continha a
menor taxa de escolarização (94,4% - 157ª posição no estado) e a menor população (12.872
habitantes). Desses municípios, Pesqueira teve a melhor colocação em relação à taxa de
escolarização no estado, ocupando a 47ª posição.

4.2 Memórias sobre as experiências escolares: o que os poetas tinham a dizer?

Durante muito tempo, o fracasso foi imputado a causas extraescolares, como a


família e o ambiente social, cujas explicações emergiram de diferentes vertentes: psicologia
(mensuração das “deficiências” individuais através do baixo desempenho dos alunos nos
testes de inteligência); neurologia (dislexia) e sociologia (pouca ou nenhuma escolarização
da família e baixo capital cultural). A partir de 1990, no Brasil, inúmeros pesquisadores se
interessaram em investigar as trajetórias de grupos ou indivíduos particulares que fugiam das
regularidades estatísticas e apresentavam sucessos “inesperados” (NOGUEIRA, 2004).
Também, no decorrer das últimas décadas, estudiosos de diferentes áreas do
conhecimento buscaram discutir sobre o papel social da escola a partir de distintas óticas. O
certo é que, embora hoje a educação constitua um direito, no decorrer da história ela foi um
privilégio de poucos. De acordo com o cordelista J. Borges, durante a década de 40, do
século XX, era difícil os povos campesinos terem acesso à escola. A isto se acresce o fato
105

que de, segundo os dados do IBGE, em 1944, havia, em todo o Estado de Pernambuco,
apenas 853 unidades de ensino localizadas no campo e que ofertavam o ensino
fundamental34.

No tempo que eu me criei lá no sítio não existia escola lá. Só tinha escola
aqui em Bezerros [área urbana] ou lá em Gravatá. Mas era uns vinte e
tantos quilômetros para Gravatá e para aqui [se referindo à cidade de
Bezerros] era dezesseis quilômetros. Então, eu não tinha condição de vir a
pé para escola. Então, fiquei até os doze anos doido para escrever meu
nome, mas não tinha condição. Um dia, um rapaz inventou uma escolinha
particular lá e meu pai falou com ele. Eu fui pra escola, passei dez meses e
com dez meses o irmão dele, que já trabalhava em Recife, arranjou um
emprego, e ele foi embora. Fiquei sem escola (J. Borges).

Para Silva (2003), até as primeiras décadas do século XX, a escola no campo surge
de forma tardia e destinada apenas a uma minoria da população. Ainda que, neste período, o
Brasil se constituísse como um país predominantemente agrário, as especificidades da
cultura local eram desconsideradas, sendo este reflexo de uma política de descaso por parte
do governo. Conforme Zé Guri, era necessário que os pais pagassem aos professores, que
residiam em cidades circunvizinhas, aulas particulares para que os filhos aprendessem a ler e
escrever, sem que fosse preciso se deslocar para os centros urbanos. À vista disso, destacou
o poeta:

Lá no sítio, lá na época, não tinha nem escola. Eu passei uma


temporadazinha na escola particular com papai pagando ao professor que
veio de Lajedo na época. Aí, eu passei pouco tempo e não tinha quase
escola do município, não (Zé Guri).

Alguns dos cordelistas que entrevistamos, tal como Zé Guri, foram à escola por
períodos curtos e intermitentes. Galvão e Di Pierro (2012) explicam que a interrupção dos
estudos e as aprendizagens pouco significativas levavam muitos indivíduos, a posteriori, a
retornarem à condição de analfabetos.
A escola não era graduada por séries e os alunos eram agrupados pelo nível de
instrução que possuíam. Assim, “naquele tempo, não tinha nem quase nome de série. A
gente começava na carta de ABC, cartilha e o primeiro livro, somente. Não tinha esse
negócio de fazer prova e nem arranjar boletim. Li só até o primeiro livro e bem pouquinho”,
ressaltou Zé Guri durante a entrevista. Nessa direção, Galvão e Batista (1998, p.25) afirmam
que, no início do século XX, “o professor não dava aulas, como hoje estamos acostumados a

34
Informação disponível no site do IBGE:
http://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/arquivos_download/educacao/1948/educacao1948m_aeb_47a48.p
df
106

pensar, mas "tomava" a lição de cada um dos alunos, fazendo-os ler em voz alta. Enquanto
isso, os outros alunos ficavam em suas carteiras lendo a lição do dia”.
Apesar do movimento da Escola Nova, emergido na década de 1930, ter criticado
assiduamente o uso dos castigos como forma de condenar o mau comportamento e a
dificuldade de aprendizagem, as práticas punitivas, na década de 1940, ainda eram
empregadas na maioria dos espaços escolares. Essa afirmação encontrou eco nos dizeres de
J. Borges:

[...] Primeiro, a gente fazia uma escrita, copiava numa folha de caderno,
depois fazia uma conta de dez colunas (uma conta de somar), somava e
escrevia por extenso o resultado (um milhão trezentos e vinte e oito
cruzeiros e vinte e cinco centavos). Tinha que escrever por extenso ali
embaixo. Se não lesse, se fizesse a conta e não lesse o resultado, era meia
dúzia de “bolo” que levava. Então, eu nunca apanhei não por conta disso,
mas tinha menino que vinha com a mão inchada. [...] De qualquer modo,
eu apanhava “bolo” também porque o professor perguntava uma pergunta
fácil, eu ganhava. Agora quando era mais difícil, aqui acolá, eu errava.
Mas, só quem dava em mim era o professor, porque o professor dava um
“bolinho” bom e os outros quando davam era para estourar as mãos. Aí, era
proibido passar da orelha à palmatória. A palmatória era uma bola de
madeira com um cabinho feito uma colher de pau e aí não podia passar da
orelha. Quando passava da orelha o professor pegava e dizia: “Olhe, eu
disse a você que não pode passar da orelha”. E Pá!, dava um “bolo” (J.
Borges).

No Brasil, a palmatória foi um dos instrumentos de punição mais utilizados pelos


professores no século XIX e grande parte do século XX (MORAES; SANTOS, 2009), sendo
introduzida no país pelos jesuítas como forma de disciplinar os índios. De maneira
semelhante a J. Borges, o cordelista Paulo Pereira lembrou-se do uso intensivo da punição
que tanto aterrorizava os alunos e norteava a ação escolar.

Nós tínhamos tanto medo do professor que bastava ele falar. Ele ensinava a
gente a soletrar. Vê como era que ele ensinava: RATOEIRA. Ele fazia:
RÊ+A=RA (ele puxava muito pelo “r”)| T+O=TO| E+I=EI| RÊ+A=RÁ|
RATOEIRA. Entendeu? Aí, tudo dele era soletrar. Ele fazia uma tábua
com um buraco. Então, ele saia colocando em cima das letras que era pra
você sair conhecendo o alfabeto. Ele botava a taboa aqui e perguntava:
“Que letra é essa?” Que era pra você aprender as letras, porque você vai
escrever o nome. Muitas vezes, você vai escrever o nome, mas não bota o
nome completo. Você pensa que tá certo, mas se você for naquele negócio
(soletrando) está errado. Num passou na televisão um dia desse esse
soletrando que até o garotinho ganhou 40 mil? A gente que soletra, a gente
não erra porque já tem aquele negócio na mente. Tá certo, eu escrevo
errado porque meu estudo é pouco, mas conto as letras que tem naquela
palavra. Olhe, ele tinha um nome que não existe esse nome, que era pra
você aprender a soletrar. Você já viu o nome com cinco “H”? Tá vendo?
Ele fazia isso. Ele inventou esse nome porque era pra a gente aprender a
107

soletrar. Pra você ver ser vai saber que nome é esse: P-H-O-PON/T-H-
TA/D-H-I-DI/L-H-I-LHI/N-H-A-NHA. Que nome é esse? É PONTA DE
LINHA. Ponta de linha não é escrita assim, mas ele fazia assim pra você
aprender a soletrar chamando a letra toda. PONTA DE LINHA (P-H-O-
PON-T-H-TA-D-H-I-DI-L-H-I-LHI-N-H-A-NHA). Tá entendendo como
era? Pronto, a gente tinha medo e através do medo era que a gente
aprendia. A gente lia o primeiro livro, depois, no próximo ano, ia recordar
o mesmo livro (Paulo Pereira).

Como podemos observar no depoimento de Paulo Pereira, o professor utilizava o


método da soletração/deletreação, que faz parte do grupo de métodos segundo o qual os
alunos devem aprender, primeiramente, as unidades menores da língua (letra; fonema;
sílaba) para, posteriormente, aprender as unidades maiores (palavra; texto). Dever-se-ia,
assim, o ensino da leitura iniciar com a apresentação das letras e seus respectivos nomes
para que, subsequentemente, os alunos conseguissem reunir as letras formando sílabas,
conhecer as famílias silábicas, ler palavras formadas por essas sílabas e letras e, por fim,
formar frases (MORTATTI, 2006). Esse método seguia os princípios dos métodos sintéticos
(FRADE, 2014). Essa última autora salienta, ainda, que as sílabas eram aprendidas como
uma sequência de letras soletradas e, em decorrência da falta de sentido, era comum colocar
os alunos para cantarem as combinações (o que era nomeado de cantilena).

Eu ia buscar o leite do meu irmão, aí passava em frente da escola. Aí,


estavam os meninos dizendo: B-A|BA, B-E|BE, B-I|BI, B-O|BO,B-U| BU,
B-ÃO|BÃO (BA-BE-BI-BO-BU-BÃO). Era esse negócio assim. Quando
eu peguei a carta do ABC, aí comecei o “A” e tal, o maiúsculo, o minúsculo
e passei pra preguiça, passei pra cartilha, da cartilha pra o primeiro livro e
pronto (Zé Guri).

No entanto, evidenciamos que, apesar de esses poetas menos escolarizados terem


frequentado a escola, ainda que de maneira e por um tempo bastante limitado, a
aprendizagem da leitura e escrita era atribuída, por todos eles, ao contato que tiveram com
cordéis ao longo dos anos e não ao processo de escolarização que tiveram. Nesse sentido,
esclareceu Zé Guri:

Não aprendi nada não na escola, quase. Eu aprendi a ler um pouco no


cordel. Até pra votar, quando eu fui votar, já com 18 anos, não sabia de
nada. Um tio meu me trouxe pra votar apulso e pra tirar o título sem saber
ler. Eu disse umas coisas zangado com ele, porque eu não sabia e ele
achava que eu era inteligente e dava pra passar. Ele trabalhava como cabo
eleitoral para um chefe político lá de Xucuru. Aí pra arrumar mais um voto
ele me levou sem eu saber, mas ele achava que eu sabia. Aí, quando eu
cheguei no cartório, o chefe político lá me entregou uma nota pra eu treinar
e fazer aquele letreiro que ele escreveu que dizia: “Belo Jardim, 28 de
Julho de mil e não sei quanto”. Só sei que era de julho que ele me deu a
nota. Aí, comecei a escrever e fiz bem feitinho, fui treinando, mas quando
108

cheguei no cartório já era 2 de Agosto e eu só treinando naquilo ali (Belo


Jardim, 28 de Julho) e já era 2 de agosto. Aí, quando eu escrevi tava bom,
mas a data tava errada. Aí, o tabelião, o tabelião na época disse: “Ah, a
data já está passada. Tem que ser esse assim”. Aí, eu peguei a letra do
homem e fui treinar para escrever certo e deu pra passar. Eu fiz do jeito que
ele queria e peguei o título sem saber quase ler, porque eu não sabia
mesmo não. Aprendi com o tempo e só com o cordel (Zé Guri).

O cordel, portanto, para além dos fins de comercialização, desempenhava um papel


fundamental na alfabetização desses poetas. Logo, podia-se dizer, que, em muitas situações,
“o ‘alfabetizando’, em um processo solitário de reconhecimento das palavras e versos,
procedia, ele mesmo, à decodificação. Aos poucos, esse processo se ia estendendo a outros
objetos de leitura” (GALVÃO, 2000, p. 498).

Depois, eu comecei vender cordel e do cordel eu aprendi muita coisa. Por


que o cordel é uma miscelânea que tem de tudo e todos os assuntos têm no
cordel. Então, eu ampliei mais a minha letra, a minha leitura. A ortografia
eu melhorei muito depois do cordel (J. Borges).

As trajetórias dos poetas eram bastante semelhantes, sobretudo até o início do século
XX: muitos deles nasceram no campo e eram filhos de pequenos proprietários ou de
trabalhadores assalariados e apresentavam pouca ou nenhuma escolarização e, não muito
raramente, aprenderam a ler a partir da audição dos folhetos, tratando-se de autodidatas
(ABREU, 1997). O pai de Diosman costumava memorizar os versos que havia construído
durante o trabalho, apesar de não ter frequentado a escola e de não dominar determinadas
habilidades de leitura e escrita.

Minha mãe, ela mal assina o nome dela e meu pai é analfabeto de pai e
mãe, como dizem. Se você mostrar qualquer letra pra ele, ele não sabe.
Mas tem uma coisa bacana nele, e chegar aqui e tiver cinco pessoas, ele faz
um verso pra cada uma, improvisado. Sem conhecer métrica, sem conhecer
distribuição de rimas, como a gente estava conversando há pouco tempo.
Sem conhecer as regras da poesia, ele faz uma sextilha e se você escrever
você vai achar que foi escrito por alguém que conhece. [...] Meu pai tem
tudo memorizado. Ele faz músicas, toadas, é tudo na memória. Eu conheci
meu pai faz três anos, acho que ele deve ter 62, por aí. Acho que a minha
mãe tem 60, por aí também (Diosman Avelino).
Ora, muitas pessoas, assim como o pai de Diosman, embora não dominem o sistema
de escrita alfabética, têm um nível de participação na cultura escrita. Em outras palavras,
isso quer dizer que, mesmo os sujeitos “não alfabetizados” que vivem em sociedades
letradas, apropriam-se, de certa maneira, da organização social e da lógica gráfica que
envolve o uso da escrita (COMERLATO, 2004). Contudo, não podemos negar que essa
109

apropriação ocorre de maneira bastante limitada e, muitas vezes, periférica em relação à


produção e ao usufruto dos bens culturais da sociedade na qual se encontram.
Os pais de Paulo Pereira e Zé Guri, de igual modo, não chegaram a frequentar a
escola, tal como posto no seguinte extrato:

Um deles não sabia nem a letra “A”. Parece que eles nunca entraram numa
escola, nem papai, nem mamãe. Eu ainda fui pra escola no sítio, tentei na
cidade ir lá ao colégio, mas não teve jeito não. Eu digo que não aprendi
nada na escola. O que eu aprendi foi no cordel e até agora eu digo que sei
ler até muito porque todos os dias eu leio um livro, leio uma carta, leio
revista, leio cordel, leio a bíblia, leio tudo. Eu sei ler (Zé Guri).

Diferentemente dos entrevistados com menor tempo de escolaridade (J. Borges, Zé


Guri e Paulo Pereira), os poetas mais escolarizados (Val Tabosa, Diosman Avelino e
Jailton Pereira) apresentaram relatos sobre as experiências escolares bastante distintas.
Tratou-se, porém, de um grupo menos homogêneo. Jailton Pereira, ao relembrar as
vivências escolares, mencionou as práticas de leitura de cordéis feitas por um professor de
História e Geografia. Essas situações de leitura deleite estavam voltadas para o prazer de
ler, sem que houvesse nenhuma cobrança ou tivesse como objetivo o ensino de
determinados conteúdos.

[...] Foi um período bacana, que foi nesse período que eu descobri que eu
poderia ser cordelista. Por que quando eu estudava oitava série um
professor, aqui de Caruaru, que ensinava História e Geografia, reservava
dez minutos das aulas e lia um cordel pra gente. Ele não escrevia, não sabia
nada de cordel, mas lia pra gente. Eu achei aquilo bacana e antes já tinha
feito algumas rimas em casa escondido para o povo não ver, aí fui e
mostrei a ele. Ele foi e me disse: “Rapaz, não esconda não”. Aí, essa é uma
das lembranças boas. Eu lembro que escrevi uma música também,
provavelmente na sétima série, sobre a história que um cara contou. Ele
escreveu uma carta para uma menina que ele estava a fim e me contou a
história. Sei que passou alguns anos, eu aprendi a tocar um pouco de
violão. Aí como já tinha a letra, eu dei uma ajeitadinha na letra e encaixou
numa melodia que eu arrumei. Aí, tenho esse brega lá em casa guardado
(Jailton Pereira).

O ambiente escolar, certamente, é um dos espaços propícios de aprendizagem do


aluno, mas, também, onde podem ocorrer atitudes de agressão, de castigo e humilhação que
são prejudiciais para o seu desenvolvimento. Atribuir apelidos para constranger colegas, por
exemplo, são alguns dos comportamentos conhecidos como “bullying”. O poeta Diosman
Avelino ressaltou como transformou as atitudes agressivas que ocorriam, com certa
frequência, em sala de aula em mote para os seus cordéis.
110

São tantas lembranças. Veja bem, são tantas lembranças de escola. Pronto,
eu vou lhe falar uma lembrança que eu guardo muito e é de quando eu
cheguei em São Paulo. Eu com meu jeito de sítio, matuto, porque eu adoro
ser Nordestino, e quando eu entrei na escola alguns alunos... Eu sei que não
era por maldade, sabe? Naquela brincadeira, gaiatice, me botaram logo um
apelido. Se eu não me engano era Sibito do Nordeste. Era um negócio
assim. Foi passando o tempo, passando o tempo, até eu chegar ao ponto
de, lembrando daquilo e de algumas coisas que eu ouvir falar, eu fazer um
poema que está no livro, na primeira antologia da sociedade dos poetas,
intitulado “Meu jeito é matuto”. Isso é uma das coisas que eu lembro
muito. Não lembro com mágoa essa parte de que alguns falavam,
brincavam comigo. Eu sempre levava as coisas na brincadeira. O poeta
tem até a mania de pegar as coisas ruins e transformar em poesia. Então, eu
acho que tenho isso comigo também (Diosman Avelino).
Mesmo diante das intempéries, Diosman transformava as adversidades em temas
para os cordéis. Algo que comentou em diferentes trechos da entrevista: “as dificuldades que
a gente passa também pode ser transformada em poesia”; “Pra mim tudo vira tema, tristeza,
dor, amor...” e “A gente faz cordel do que ocorre de bom e do que acontece de ruim”.
Referindo-se às recordações da escola, Val Tabosa lembrou-se do seu bom
rendimento escolar e de, por isso mesmo, nunca ter ficado em recuperação final nas provas.
Ademais, o poeta comentou sobre as relações de amizade que, ainda hoje, mantinha com os
alunos e professores do período escolar. Resgatamos, abaixo, um excerto da entrevista de
Val Tabosa:

Agora há pouco, depois do whatsapp, nos juntamos. Conseguimos nos


juntar com o pessoal que concluiu no ano de 84 e fizemos dois encontros
já. Foi muito interessante e a surpresa que a gente tem, porque a gente fica
com a imagem guardada de quando se conhecia, todo mundo jovem, né?
Hoje na faixa dos 50 e poucos anos. Aí, muitos perderam os cabelos,
muitos ficaram mais gordinhos. Eu tenho boas recordações do tempo que
estudei. Por exemplo, eu quando estudei nunca fiz recuperação. Todos os
anos eu passava por média. Na época, tinha uma média e a gente se
esforçava um pouquinho no começo do ano e eu nunca fiquei em
recuperação. Nunca fui reprovado. Desisti um ano de estudar por conta do
trabalho, mas eu tenho boas recordações.[...] Hoje tenho muitos professores
que são amigos meus (Val Tabosa).

Por meio das narrativas acerca das experiências de escolarização dos poetas,
observamos que aqueles com menor escolaridade apresentaram relatos muito semelhantes,
sobretudo no que diz respeito às práticas educativas a que tiveram acesso e das relações
que, de uma maneira ou de outra, tinham com a escola. Quanto aos mais escolarizados,
mesmo que tenham rememorado vivências diferentes e que de início pudessem parecer
desvinculadas do tema desta dissertação, elas adquirem outros contornos quando nos
defrontamos e os relacionamos com as suas falas expostas nas próximas seções.
111

4.3 Práticas de letramento dos poetas a partir de diferentes gêneros discursivos

Há certa dificuldade em se definir o letramento, por se tratar de um termo amplo e


complexo. Segundo Soares (2009, p. 65), essas “[...] dificuldades e impossibilidades devem-
se ao fato de que o letramento cobre uma vasta gama de conhecimentos, habilidades,
capacidades, valores, usos e complexidades difíceis de serem contempladas em uma única
definição”. Concordamos, também, com Mortatti (2004) acerca de que, por se tratar de uma
palavra recente, os significados que lhes são atribuídos nem sempre são idênticos, assim
como os objetivos com que é empregada35. Assumir esse pressuposto implica dizer que
qualquer medição desse fenômeno será imprecisa, pois dependerá, consoante Soares (2009),
das habilidades de leitura e/ou escrita e/ou das práticas sociais de letramento que se estará
avaliando, dos seus propósitos, do contexto e dos critérios utilizados.
À vista disso, buscamos conhecer algumas experiências de letramento dos poetas,
com base nos seus depoimentos, sem, no entanto, termos a pretensão de avaliar e/ou medir
os seus níveis de letramento. Isso nos levou, pois, a interrogá-los sobre os materiais a que
tinham acesso e a frequência com que os liam, bem como os textos que produziam e a
frequência com que os faziam. Nesse contexto, apresentamos as seguintes perguntas: “Que
tipo de material impresso você costuma ler (ou tem acesso) no dia a dia?” e “Com que
frequência lê (ou tem acesso) a esses materiais?”. Diante do exposto, exibimos no Quadro 11
os gêneros discursivos e os suportes textuais citados pelos poetas que, com maior ou menor
frequência, costumavam ter acesso e ler no dia a dia.

Quadro 11 – Materiais impressos que os poetas costumavam ler (ou tinham acesso) no
dia a dia

Poetas
Gêneros e J. Borges Paulo Zé Guri Val Diosman Jailton Total
suportes que Pereira Tabosa Avelino Pereira
costumavam ler
ou tinham
acesso
Cordel X X X X X X 6
Canção X 1
Almanaque X 1

35
Segundo Magda Soares (2009, p. 33), o termo letramento parece ter sido usado pela primeira vez no Brasil
em 1986 por Mary Kato no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”. Já em 1995 este
termo apareceu como parte de título de livro “Os significados do letramento”, este por sua vez organizado por
Angela Kleiman e “Alfabetização e letramento” de Leda V. Tfouni.
112

Livro X X X X 4
Revista X 1
Jornal X 1
Bíblia X 1
Total por poeta 3 1 4 2 2 3 15
Fonte: A Autora (2017)

As práticas leitoras dos poetas davam-se a partir de diferentes gêneros e por meio de
suportes textuais distintos (cordéis, almanaques, canções, livros, revistas, jornais e a bíblia).
De modo geral, os participantes reportaram-se ao cordel como um dos materiais impressos a
que costumavam ter acesso e que liam com maior frequência, sobretudo, porque eles tinham
a ideia de que “pra escrever cordel você tem que ler bem os cordéis. Aí, você vai pegando o
macete e já aprende escrever lendo os cordéis”, como revelou J. Borges.
Para além do cordel, Zé Guri citou outros gêneros e suportes (canção, almanaque e
livro), que eram, inclusive, vendidos por ele no ponto comercial de que dispunha. Conforme
assinalado por Melo (2011), os almanaques articulam os conhecimentos astrológico,
medicina popular, ciências ocultas ao saber religioso e às observações sobre a natureza. Eles
guardam muitas semelhanças com a literatura de cordel: muitos são escritos pelos
cordelistas, compartilham os mesmos processos de editoração, circulação (mercados e
feiras) e almejam o mesmo público leitor dos folhetos. Mais adiante, a autora explica que os
almanaques intercalam a poesia em versos com previsões do tempo, astrológicas e
ensinamentos morais. As canções, a que se referiu Zé Guri, eram poemas impressos em
folhas avulsas, comercializadas pelos folheteiros nas feiras e mercados nos anos 1970/1980
(AYALA, 2016). Retornando ao Quadro 11, é possível afirmar ainda que os entrevistados (J.
Borges, Val Tabosa, Diosman Avelino e Jailton Pereira) também recorriam à leitura de
textos fixados em livros (3), revistas (1), jornais (1) e na bíblia (1).
Dos dados apresentados, pode-se depreender que a literatura de cordel tornou-se uma
importante ferramenta de participação dos poetas alfabetizados (ou não) na cultura do
escrito. Galvão (2002) evidenciou que o fato de os folhetos serem lidos de maneira coletiva
e estarem, direta ou indiretamente, ligados à tradição oral os tornavam mais próximos
daqueles que apresentavam pouca familiaridade com o universo da escrita.
Apenas para acrescentar a esta reflexão, vale citar a afirmação de Paulo Pereira:
“Olhe, eu gosto muito de ler e aqueles cordéis que tem no Museu do Cordel quase todos eu
já li. Até antes deu saber ler, eu já gostava de cordel”. Existem diversos espaços de
letramento (como o Museu Olegário Fernandes), o que nos permite dizer que as relações
113

entre os indivíduos das camadas populares e o universo da cultura escrita nunca estiveram
vinculadas estritamente à escola, pois existem outras esferas de socialização que também
operam como agências de letramento (família, igreja, trabalho e outras). De acordo com
Kleiman (1995), a escola preocupa-se com um tipo de prática de letramento, a alfabetização,
concebido em termos de competências individuais, e não com o letramento enquanto prática
social.
Val Tabosa é membro de movimentos religiosos e nos disse: “Eu costumo ler pouco.
[...] a liturgia diária, que é um calendário litúrgico, é seguida de três leituras por dia e eu
faço isso todos os dias, mas outro tipo de leitura eu faço esporadicamente”. Na tese de
Oliveira (2015), que objetivou analisar os significados da leitura e da escrita literárias em
camadas populares residentes no Morro do Papagaio em Belo Horizonte – MG, a partir de
um estudo de natureza etnográfica, se constatou que os três participantes da pesquisa
(Luzia, 32 anos; Tatiana, 10 anos; e Matheus, 15 anos) apresentavam maneiras bastante
singulares de se relacionarem com a literatura em seu cotidiano e, além disso, a dinâmica
intrafamiliar, as trajetórias escolares e outras instâncias socializadoras (como as práticas
religiosas) influenciavam, diretamente, o modo como eles interagiam com o escrito.
Na mesma direção, Reis (2010), ao estudar como João Gumes, um sujeito
proveniente de uma família com poucas condições econômicas da cidade de Caetité – BA,
que participava ativamente na cultura do escrito durante as últimas décadas do século XIX e
anos iniciais do século XX, percebeu, através da análise documental, que existiam várias
instâncias formadoras (dentre elas, a família) que repercutiam no modo como o investigado
se relacionava com a leitura e a escrita. Seus resultados demonstraram ainda que, apesar da
instância familiar ter sido importante, ela não era a única a colaborar com a formação e
socialização de Gumes, pois a escola, o trabalho e as práticas religiosas também os
influenciavam.
Frente ao exposto, sublinhamos que o letramento extrapola a escola e a alfabetização,
referindo-se a processos sociais mais amplos. Passemos, então, a discutir sobre os materiais
de leitura de que os poetas dispunham em casa. Dois entrevistados mais velhos (Paulo
Pereira e Zé Guri) disseram não possuir nenhum material de leitura em suas residências. No
caso de Zé Guri, os objetos de leitura a que costumava ter acesso estavam disponíveis na
loja onde comercializava uma grande variedade de produtos (cordéis, almanaques, chapéus,
quadros, discos e outros).
Lahire (1998) atenta para a existência de modelos e objetos idealizados de leitura. As
representações que muitos indivíduos possuem acerca da leitura e escrita, cingidas,
114

sobretudo, pela lógica escolar, resultam no encobrimento de certas práticas e materiais que
não são considerados “oficiais” ou “legítimos”. Para melhor firmar o expresso, respaldamo-
nos na declaração de Borges: “Eu não leio hoje muito, porque vivo muito ocupado, mas tem
dia que eu subo ali em cima e pego um livro. Tenho um bocado de livro ali, livro que ganho
e eu leio. [...] Não leio muito não porque, ultimamente, eu não tenho muito tempo”. Os
materiais de leitura “legítima” eram os mais declarados pelos entrevistados e os que não
eram, embora de uso frequente, costumavam ser omitidos por eles. Reconhecemos, porém,
que a construção dessa pergunta (Que tipo de material impresso você costuma ler, ou tem
acesso, no dia a dia?) e, mais especificamente, do uso do termo “impresso”, pode ter levado
a isso (QUADRO 12).

Quadro 12 – Materiais de leitura que os poetas declararam ter em casa


Poetas
Materiais de leitura Total
J. Paulo Zé Val Diosman Jailton
que os poetas
Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira
dispunham em casa
Cordel X X X X 4
Calendário Litúrgico X 1
Livro X X X 3
Apostila X 1
Jornal X 1
Bíblia X 1
Não tem nenhum
material de leitura em X X 2
casa
Total por poeta 2 1 1 3 3 3 13
Fonte: A Autora (2017)

Os cordéis eram os materiais de que os participantes (J. Borges, Val Tabosa,


Diosman Avelino e Jailton Pereira) mais dispunham em casa, seguidos dos livros (3),
calendário litúrgico (1), jornal (1), apostila (1) e bíblia (1). Como pode ser visto, ainda no
Quadro 12, os poetas mais escolarizados (Val Tabosa, Diosman Avelino e Jailton Pereira)
apontaram um número maior de objetos de leitura que possuíam em suas residências.
Contudo, conforme já apontamos, as relações entre os indivíduos das camadas
populares e o universo da escrita nunca estiveram, portanto, vinculadas estritamente à
escola, porque, até um período recente, apenas uma pequena parcela da elite cultural
brasileira tinha acesso a ela e, por isso, os processos de letramentos de grande parte da
população brasileira davam-se de maneira muito particular e pareciam estar mais
relacionados às práticas orais e aos modos não escolares de aprendizagem (GALVÃO,
115

2001). Isso nos leva a considerar que, apesar das aprendizagens básicas de leitura e escrita
serem importantes, o nível de escolarização não é, necessariamente, um fator decisivo para
que os indivíduos vivenciem determinadas experiências de letramento (GALVÃO, 2002).
Essa compreensão demonstra, no mínimo, que não há sempre uma relação
proporcionalmente direta entre o grau de escolaridade e os níveis de letramento,
contrariando o que tem defendido Ferraro (2002). Para este autor haveria uma equivalência
entre o nível de escolaridade e as medidas de letramento. Partia-se da concepção de que, em
função de certo grau de instrução, o indivíduo não só teria se apropriado do sistema de
escrita alfabética, isto é, se tornado alfabetizado, mas, também, teria adquirido as
competências básicas para o uso competente das práticas sociais de leitura e escrita, ou seja,
o letramento.
Com a criação do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, doravante INAF,
em 2000, pode-se evidenciar estatisticamente, através de testes e entrevistas, os usos que a
população brasileira tem feito da leitura e escrita. Os resultados deste estudo, realizado em
parceria com o Instituto Paulo Montenegro, entre os anos de 2012 e 2015, com 2.002
pessoas entre 15 e 64 anos de idade, revelaram que entre as pessoas que não chegaram a
frequentar a escola (97 dos entrevistados) ou que tinham no máximo quatro anos de
escolaridade (320), 283 delas permaneciam na condição de analfabetismo funcional, com 79
consideradas analfabetas e 204 no nível rudimentar. Nesse grupo, encontravam-se ainda 113
dos entrevistados no nível elementar, 17 no intermediário e somente 4 atingiram a condição
de alfabetismo proficiente. Levando em consideração as pessoas que cursaram pelo menos
um ano ou terminaram o ensino médio (795 dos respondentes), 382 atingiram, no máximo, o
nível elementar, 246 ficaram no grupo intermediário, enquanto apenas 71 situavam-se na
condição de proficiente. Com base nos dados desta pesquisa, percebemos que, embora a
escolaridade fosse um dos fatores explicativos da condição de alfabetismo, essa relação,
entretanto, não ocorria de maneira uniforme ou linear, pois havia pessoas que, mesmo tendo
chegado ao ensino médio, não conseguiam atingir o grupo mais alto da escala de
alfabetismo36.
Esse tipo de avaliação do letramento por amostragem, como o realizado pelo INAF,
parece ser, de acordo com Soares (2004), mais apropriado, porque evita que certo grau de
instrução seja um indicativo do nível do letramento e foge do pressuposto bastante discutível
de que o letramento seja alcançado, concomitantemente, com os processos de escolarização.

36
Entendemos alfabetismo como alternativa ao termo letramento.
116

Essa é uma noção restritiva e simplificadora do letramento, já que é associado, sob essa
ótica, exclusivamente à pratica da instrução formal (QUINTELA, 2013). No bojo dessa
discussão, para Street (2014), é preciso rejeitar certas concepções que privilegiam uma
forma particular de letramento, já que há múltiplos letramentos. Soares (2002), então, propôs
o uso do termo letramentos, no plural, justamente para enfatizar que as diferentes
tecnologias de escrita (tipográficas e digitais) gerariam diferentes estados ou condições
naqueles que delas fazem uso, resultando em diferentes letramentos.
Nessa acepção, também interpelamos os poetas sobre como, diariamente, obtinham
informações. Ratificamos, novamente, que não tivemos a pretensão de “medir” os níveis de
letramento dos poetas, mas apenas evidenciar alguns indícios acerca de determinadas
práticas de leitura e escrita por eles vivenciadas (QUADRO 13).

Quadro 13 – Como os poetas obtinham informações no dia a dia


Poetas
Obtinham Total
Paulo Val Diosman Jailton
informações J. Borges Zé Guri
Pereira Tabosa Avelino Pereira
através de:
Cordel X X 2
Rádio X 1
Televisão X X X 3
Diálogo com
X 1
outras pessoas
Jornal X X X 3
Internet X X X 3
Total por
2 1 2 2 3 3 13
poeta
Fonte: A Autora (2017)

Várias maneiras de obtenção de informações foram citadas pelos cordelistas, dentre


as quais foram priorizadas, quantitativamente, o jornal, a televisão e a internet. A pesquisa
sobre os hábitos de consumo da população brasileira (BRASIL, 2016b) revelou que a
televisão permanece, para os entrevistados, como o meio de comunicação preferido para as
pessoas manterem-se informadas. Constatou-se que, praticamente, nove de cada dez dos
entrevistados fizeram menção à TV como principal veículo para obter informações e quase
metade dos brasileiros (49%) declarou usar a internet, percentual abaixo da televisão (89%),
mas acima do rádio (30%), dos jornais (12%) e das revistas (1%). O tempo médio que eles
ficavam online podia variar em decorrência da idade, escolaridade e até da região.
Os poetas mais escolarizados tinham acesso frequente à internet. Para Soares (2002,
p.121) a tela, como um novo espaço de leitura e escrita, alterou significativamente as
117

relações “entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e até mesmo, mais
amplamente, entre o ser humano e o conhecimento”. Este letramento, entendido como
estado ou condição de quem se apropria das novas tecnologias digitais e faz uso da leitura e
escrita na tela, difere, em diversos aspectos, dos que exercem as práticas de leitura e escrita
no papel.
O cordel foi o único meio de comunicação exposto por Paulo Pereira e do qual o
cordelista disse fazer uso, embora ele certamente obtenha informações também por outros
meios. Para Zé Guri, além do cordel, o rádio também desempenhava um papel fundamental,
sobretudo porque na cidade em que residia existiam várias rádios em funcionamento, dentre
as quais podemos destacar a Rádio Belo Jardim (104.9FM), Rádio Bitury (153.0 AM) e
Rádio Itacaité (88.1 FM). “Dialogar com as pessoas” e “ouvir rádio” foram respostas menos
recorrente entre os entrevistados, sendo mencionada apenas uma única vez, mas que, apesar
disso, demonstram a força da oralidade primária (conversa com outras pessoas) e da
oralidade secundária (rádio, televisão).
Nessa empreitada, também investigamos (por meio da pergunta: “O que você
costuma escrever no dia a dia e com que frequência?”) outras práticas de escrita vivenciadas
pelos participantes, para além da escrita de textos do gênero cordel. Consideremos, então, o
Quadro 14.

Quadro 14 – O que os poetas costumam escrever no dia a dia

Poetas
Gêneros que Total
J. Paulo Val Diosman Jailton
costumam Zé Guri
Borges Pereira Tabosa Avelino Pereira
escrever
Cordel X X X X X X 6
Conto X 1
Canção X 1
Frases Poéticas X 1
Música X X 2
Toada X 1
Total por poeta 1 2 2 1 3 3 12
Fonte: A Autora (2017)

O cordel é o gênero que mais costumavam escrever, embora, para alguns dos poetas
(J. Borges, Paulo Pereira e Val Tabosa) esta não fosse uma atividade diária como era para os
demais depoentes (Zé Guri, Diosman Avelino e Jailton Pereira). Os poetas Paulo Pereira e
Jailton Pereira compunham músicas que haviam sido gravadas em CDs e, até, recebido
premiações. Diosman também declarou produzir toadas. Sautchuk (2009) elucida que o
118

aboio ou toada é também uma das formas poético-musicais que mantém relações temáticas e
formais com a cantoria. Trata-se de um canto (que pode ser improvisado) usado pelos
vaqueiros para conduzir o gado. As duplas de vaqueiros costumam adaptar esse canto para
os espetáculos (como as apresentações em vaquejadas ou gravações comerciais). Além da
toada, Diosman já tinha produzido alguns contos. No momento, estava dedicando-se à
escrita de cordéis, atualmente uma das suas fontes de renda. No geral, apesar dos poetas
produzirem outros gêneros literários ou não (conto, canção, frases poéticas, música e toada),
a produção de cordéis era mais comum e a que faziam com maior frequência.

4.4 Os primeiros passos para tornarem-se cordelistas: memórias sobre o fazer poético

Todos os cordelistas que apresentavam menos tempo de escolarização e maior faixa


etária (J. Borges, Paulo Pereira e Zé Guri) iniciaram as suas carreiras como folheteiros. Foi,
portanto, a partir desse primeiro contato como vendedores ambulantes que estes
entrevistados se lançaram, mais tardiamente, como poetas. Arantes (1982), ao investigar a
produção dos cordéis no Nordeste, na década de 1970, também evidenciou que, a partir da
comercialização desse material impresso, os poetas passaram a relacionar-se mais
diretamente com os editores e, através da leitura dos cordéis nas feiras, tinham a
oportunidade de desenvolver, gradualmente, o domínio sobre a forma de linguagem própria
do gênero. A respeito do assunto, Zé Guri exprimiu como ocorreu o seu primeiro contato
com o cordel do seguinte modo:

[...] Eu carregava a mala de livro para todo canto que eu ia. Eu carregava a
viola de um lado, o pandeiro em uma pasta e a mala de livro do outro lado.
Porque quando eu chegava na feira que tinha um cantador de viola, nós
fazia cantoria, se chegasse a outra feira que tivesse um coquista nós fazia
embolada e quando não tinha ninguém eu ia vender folheto sozinho. Aí, de
todo o jeito eu aproveitava o tempo e o trabalho. Eu pegava o cordel,
comprava e saía cantando na feira fazendo a propaganda (Zé Guri).

Como evidenciamos no depoimento acima, a priori a produção de folhetos, Zé Guri


já era repentista e embolador. Há, portanto, repentistas e emboladores que são também
cordelistas, e vice-versa, mas isto não é uma regra. Vários dos poetas entrevistados (Zé Guri,
Paulo Pereira, Diosman Avelino e Jailton Pereira) referiam-se, com certa frequência, aos
gêneros repente e embolada. A literatura de cordel, ainda que impressa, mantém uma estreita
relação com a música. Para Ayala (2010) isso é compreensível, porque, embora o cordel
tenha a escrita como base de criação, ele mantém vínculos com os sistemas que se alicerçam
119

na oralidade, não apenas por ser cantado ou declamado, mas por ter trazido o repente e a
embolada para o interior da composição escrita.
Reconhecemos que, apesar desses gêneros discursivos (cordel, repente e embolada)
apresentarem semelhanças no que concerne os seus aspectos formais (rima, métrica e
oração) e estarem intimamente relacionados em sua história e prática, eles são distintos
(SAUTCHUK, 2009). O cordel trata-se de um gênero de composição escrita, embora possa
ser oral no que diz respeito à sua transmissão e fruição. Já o repente ou cantoria é um gênero
poético-musical improvisado, no qual, geralmente, os repentistas, com o auxílio da viola,
apresentam-se em dupla, alternando na criação das estrofes. Essa relação entre os
cantadores, como enfatiza Sautchuk (2009), pode ser caracterizada tanto pela disputa quanto,
também, pela parceria. A embolada é um gênero bastante confundido com a cantoria,
contudo o desafio poético entre os dois poetas é acompanhado pelo som do pandeiro ou
ganzá (SAUTCHUK, 2009)37.
Além disso, notamos, através da declaração de Zé Guri, que, para tornar-se
folheteiro, era necessário saber cantar ou declamar os folhetos publicamente. Os poetas,
sobretudo os mais velhos, costumavam usar a expressão “cantar folheto” ou “cantar
cordel”38. Sobre isto, Paulo Pereira comentou:

Olhe, na minha infância eu já cantava cordel. Eu ganhava dois mil réis pra
cantar cordel, porque eu canto cordel. O cordel cantado ele é mais bonito.
Você lê tá certo, mas você vai cantar o cordel chama atenção. Entendeu
como é? Esse cordel da caveira e o viajante eu coloquei uma melodia nele
que é uma melodia bonita pra cantar. Se for o cordel em embolada eu canto
ele no ritmo de embolada, se for de forró, se for de canção, se for de aboio,
do que ele for publicado eu canto. Se for uma história triste eu coloco uma
melodia triste, se for uma história alegre eu coloco uma melodia alegre
(Paulo Pereira).

Esse canto dos folhetos, como explica Arantes (1982), era sempre acompanhado de
breves explicações ou comentários sobre os enredos, chamando-se, dessa maneira, a atenção
dos ouvintes para as histórias narradas pelos vendedores. Este autor, como bases nos dados
da sua pesquisa realizada nos anos 1970, enfatiza que os folheteiros costumavam chegar
cedo à feira para montar sua “banca”. Geralmente, eles colocavam os cordéis em uma maleta
que ficava exposta sob uma armação de madeira, abriam o guarda-sol, levantavam o tripé do

37
Há outras distinções entre os gêneros apontados por Sautchuk (2009).
38
Não podemos desconsiderar que determinadas semelhanças entre esses poetas são decorrentes das
experiências sociais e vivências comuns que compartilham, especialmente por pertencerem a um mesmo grupo
geracional.
120

alto-falante, quando o possuíam, e começavam a trabalhar. É o que, também, asseverou o


poeta J. Borges:

Uma vez, lá em Caruaru, quando a feira era lá perto da Estação, coloquei o


carro perto de um pé de árvore bem grande num dia de terça-feira. Aí,
amarrei o alto-falante lá em cima das folhas do mato, com a boca pra
baixo, montei a banca e larguei o pau (pá-pá-pá). Aí, quando cercou de
gente na sombra, aí eu li essa história d’“Os olhos de dois amantes por
cima da sepultura”, de Cícero Vieira da Silva. Naquele tempo, o povo tinha
tempo e ficava lá duas, três horas esperando. Eu vendi 50 romances nessa
lida. Por que a história é muito emocionante, sabe? (J. Borges).

As estratégias de comunicação das narrativas pelos folheteiros não se restringiam


apenas à oralização dos folhetos, mas envolviam também uma expressão corporal que se
manifestava através dos movimentos das mãos e da curvatura do corpo, ao compasso mesmo
dos versos (MATOS, 2007). Segundo Galvão (2006), a performance do folheteiro parecia
constituir um dos fatores mais importantes para a definição de quais folhetos comprar por
parte dos leitores/ouvintes entrevistados, sobretudo para aqueles com menor nível de
letramento. A leitura dos versos era sempre interrompida pelo folheteiro no momento clímax
da história. O uso dessa estratégia (chamada de tranca) empregada na venda dos folhetos foi
assim referenciado por Borges:

Eu tenho a história “Domiciano e Rosete ou viajante da sorte”. O pai de


Domiciano perdeu-se e ele saiu procurando o pai dele. Andou o dia todo,
parou em uma fazenda, pediu arrancho ao fazendeiro pra dormir lá e disse
que estava procurando o pai dele. Era naquele tempo que ninguém tinha
maldade e a pessoa dormia na casa de estranhos. Aí, deram o arrancho a ele
e de noite na hora da janta, que na época se chamava ceia, a filha do
fazendeiro foi servir a mesa. Ele olhou pra ela assim, ela olhou também e
acabaram simpatizando um com o outro. No fim, o fazendeiro disse:
“Fulana, vá preparar a cama para o rapaz”. Ela foi lá pro quarto, forrou a
cama, perfumou, depois fez um bilhete e botou em cima do travesseiro, um
bilhete dizendo: “Rapaz estranho e bonito, eu quero falar com você”. Aí,
pronto, ele leu o bilhete e no outro dia não viajou, ficou por ali. O velho
gostava muito dele. Teve uma noite que a filha do fazendeiro foi dormir
com ele. Eu pensando como era que o povo ia gostar da história, revelei o
segredo para o velho, na história, dizendo que ele ouviu a cama ranger. Aí,
o povo gostava tanto dessa história que depois eles procuravam: “Seu Zé, o
senhor tem aquele folheto que diz a cama rangendo?” Eu disse: “Tem”.
Todo mundo achava engraçado quando ia ler. Quando dizia “o velho viu a
cama ranger”, aí eu parava. Parava e nós chamava de “Tranca”. Dava o
“tranca” e o povo dizia: “Vá, leia logo que é pra a gente ver”. Eu dizia:
“Não, eu vou vender logo um aqui, outro ali, outro acolá, a senhora
também leva um, o senhor leva um e eu vou terminar”. O cara disse: “Eu
vou levar, mas só vou levar se você ler o resto pra eu ver como foi a
confusão” (J. Borges).
121

Poder acompanhar a reação dos ouvintes no transcorrer das histórias permitia que os
vendedores identificassem aquelas narrativas que melhor agradavam os compradores, o que,
possivelmente, o influenciava no momento de compor uma nova história (ABREU, 2006).
As feiras, certamente, constituíam-se como importantes espaços de comercialização dos
folhetos (AYALA; FREIRE, 2010), ainda que houvesse outros locais (como os mercados, as
tipografias, os correios ou até a própria casa do autor) onde facilmente podia-se ter acesso a
esse tipo de material impresso (GALVÃO, 2000). Para a maioria dos poetas que
entrevistamos (J. Borges, Zé Guri, Paulo Pereira e Val Tabosa), a feira havia sido a primeira
instância de leitura/audição dos folhetos, como relembrou Val Tabosa:

Eu já conhecia o cordel nas feiras de Caruaru. Aí, já tinha visto alguns


cordéis. Eu tenho um avô materno que é cantador de viola, repentista, e
meu avô paterno é poeta que não escrevia cordel, mas fazia poesia, fazia
textos poéticos. Então, através disso é que, desde a infância, a gente tem o
contato com a poesia (Val Tabosa).

Além das feiras, os folhetos costumavam ser lidos/cantados nas próprias residências
dos poetas ou familiares, onde, geralmente, as pessoas reuniam-se em grupos para declamá-
los/lê-los, conforme também atestado por Galvão (2000). O fato é que, declamada ou
cantada, a leitura desses versos torna-se parte da existência de um público leitor/ouvinte
formado por adultos, jovens e crianças, mas que não, necessariamente, dominavam as
habilidades de leitura e escrita. Em outras palavras, a leitura coletiva dos folhetos
congregava pessoas de diferentes localidades e níveis de escolaridade (CABRAL, 2016).
Nessas situações de leitura coletiva dos cordéis, Arantes (1982) informa que as pessoas
costumavam reproduzir em casa o modo de leitura realizada pelo folheteiro. J. Borges, ao se
referir às situações de leitura e audição de folhetos, acrescentou:

A gente não tinha acesso a livro, jornal, não existia televisão nos anos 40,
já tinha a Rádio Clube e a Rádio Jornal, mas só quem possuía rádio era
rico. Aqui ou acolá, tinha um fazendeiro que tinha um rádio de bateria que
levava pra carregar, no sábado, na cidade e usava o rádio só durante a
semana, mas a gente não tinha nem o direito de chegar na porta. Então, não
tinha informação nenhuma e aonde tinha informação era o cordel que era
lido nas bocas de noite, nos feriados, nos sábados e domingos. Meu pai
gostava muito de ler cordel. Toda noite ele lia um, dois e eu ficava na mesa
escutando e ali mesmo eu cochilava, dormia. E eu me apaixonei. Quando
eu cheguei, nos vinte anos, comecei a trabalhar com cordel e até hoje (J.
Borges).

As cantorias e as declamações e/ou leituras dos cordéis ocorriam, frequentemente, no


mesmo lugar e desfrutavam do mesmo público ouvinte/leitor. Para Abreu (2006), as
temáticas dos folhetos interessavam tanto ao público rural quanto urbano, tendo em vista
122

que, no início do século XX, as distinções entre campo e cidade não eram tão evidentes no
Nordeste. Apesar do público dos folhetos pertencer, predominantemente, às classes
populares, a elite também se interessava pelo cordel, considerado como uma das principais
fontes de lazer.
A esse respeito, Galvão (2005) defende que a atribuição de um caráter rural ao cordel
precisa ser complexificada, tendo em vista que o seu surgimento e desenvolvimento só
foram possíveis no contexto de urbanização. Aliás, como discute a autora, os primeiros
folhetos produzidos, sobretudo na sua primeira fase, estavam principalmente direcionados
para um público urbano.
Nas primeiras décadas do século XX, o jornal ainda não estava acessível à grande
parcela da população e o rádio ainda se encontrava em processo de expansão. A
leitura/audição dos folhetos era a principal forma de diversão, lazer e informação.
Com efeito, os chamados “folhetos de acontecido” ou “folhetos circunstanciais”, que
divulgavam as notícias diariamente a nível local, nacional e internacional, eram
considerados os “jornais do povo”. Até mesmo naqueles lugares onde se dispunha do rádio,
os folhetos ainda tinham um importante papel informativo (GALVÃO, 2006). Percebemos
a pertinência desta colocação quando observamos o relato de Paulo Pereira:
O cordel é o jornal do povo. Na época que o cordel surgiu não existia a
tecnologia que existe hoje. Então, quando acontecia um fato, se fazia um
apanhando de tudo aquilo ali, do dia, da hora que aconteceu, os
personagens que estavam envolvidos naquele problema, tudo para poder se
escrever um cordel. [...] Tá certo que a gente faz um cordel de brincadeira,
como um homem casando com uma jumenta ou uma mulher sem cabeça
correndo pelo meio da rua. Isso tudo é pra brincadeira, mas quando são
fatos reais a gente tem que fazer do jeito que aconteceu, porque esse é o
jornal do povo (Paulo Pereira).

O jornal, o rádio e a televisão costumavam ser considerados pelos poetas como


fontes de histórias. O rádio em 1940 ainda se mantinha como um veículo restrito a uma
pequena parcela da sociedade pernambucana. Conquanto, como apontado por muitos
cantadores, ele foi um dos responsáveis pela divulgação e difusão de diversos poetas, nos
diferentes estados do Brasil (SAUTCHUK, 2009). Diosman Avelino, um dos poetas que
entrevistamos, ao ser perguntado sobre os primeiros contatos com o cordel, lembrou que
costumava ouvir, na década de 1980, as cantorias nos programas de rádio: “Veja bem, eu
sempre gostei de ouvir repente. A gente morava no sítio, tinha aquele raidinho e nos
programas sempre passava cantorias de viola, repentistas de manhã e à tarde [...]”.
123

A televisão também tornou-se um dos meios de divulgação dessa literatura através


das apresentações ao vivo (ou gravadas) de cantadores e cordelistas, como é possível extrair
das palavras de Jailton Pereira:

[...] Tinha um programa aqui em Caruaru, eu ainda era criança, que era
Cantorias na TV, se eu não me engano. Aí, nesse programa quem
apresentava era Ivan Lourenço. Como meus pais gostam de cantoria, eles
assistiam na antiga TV Pernambuco. Eu criança via e gostava daquilo [...]
(Jailton Pereira).

Neste extrato da entrevista, o poeta se reportou a um dos programas de televisão que,


na sua infância, costumava ser assistido por seus pais. É importante ressaltarmos que três (J
Borges, Diosman Avelino e Jailton Pereira) dos poetas que entrevistamos referiram-se à
figura dos pais como leitores e/ou ouvintes dos gêneros cordel e/ou repente. Val Tabosa,
apesar de não falar sobre a relação dos seus pais com a literatura de cordel, foi o único poeta
cujos avôs haviam sido repentistas e que tinha um irmão cordelista. Zé Guri e Paulo Pereira,
ao falar dos primeiros contatos com o cordel, não se remeteram aos seus genitores ou demais
familiares. Esta constatação também deu origem a outra asserção: os poetas que possuíam
pais leitores (J. Borges) ou ouvintes (Jailton Pereira e Diosman Avelino) foram aqueles que
tinham menor idade quando começaram a produzir cordéis.
Embora a escolaridade fosse um fator importante, ela não era, necessariamente, um
determinante para que os poetas dessem início à produção de cordéis mais cedo. Outros
fatores, como o contato dos pais ou familiares com o gênero, pareceram incidir de forma
mais direta. Dessa maneira, acreditamos que aqueles poetas que herdavam dos pais ou de
outros integrantes da família o gosto pelo cordel pareceram ter se relacionado mais
precocemente com a escrita do gênero.
Não é demais lembrar que o termo cordel, até o final da década de 1960, não era uma
expressão usualmente utilizada para designar esse gênero poético. Nessa época, a expressão
“literatura de cordel” foi dada aos folhetos brasileiros, pelos estudiosos, como uma forma de
atribuir uma gênese portuguesa a essa forma de poesia impressa, produzida e consumida, no
Brasil (GALVÃO, 2000).

O pessoal não sabe o que é um cordelista que canta, porque agora eles
dizem que o cordelista é só quem escreve, mas o cordelista que eu digo se
chamava romancista ou folheteiro na época. A gente comprava na
folheteria o folheto e saía cantando. Era cordelista também. Agora, parece
que o cordelista é só se escrever. Também, na época, o nome mais
conhecido era folheteiro. O livro era folheto. E agora é cordelista e o livro
é o cordel. É um nome um pouco diferente. O pessoal novo não sabe o que
é folheto e o pessoal novo ainda não sabe o que é cordel. O cordel quer
124

dizer o negócio de cordão que pendurava o folheto na feira, nos caixotes.


Terminava sendo uma coisa só, só que não era esclarecido. A clientela do
folheto só chamava folheto e todo mundo comprava pra sair cantando
como eu cantei agora uma estrofe ou duas. E, agora, os clientes do cordel
compram pra ler, pra fazer trabalho na escola, mas parece que eles não
cantam, faz só declamar (Zé Guri).

Tendo em vista o que foi atestado por Zé Guri, a denominação cordel remetia-se ao
fato de os livros serem postos à venda pendurados em um barbante. Embora várias
pesquisas tenham apontado que a origem dos folhetos é ibérica, o estudo conduzido por
Abreu (1993) evidenciou que a literatura de cordel portuguesa, apesar de ter exercido
alguma influência nos folhetos nordestinos, não se constituiu a matriz a partir da qual esse
tipo de literatura se desenvolveu no Brasil. Os poetas nordestinos introduziram significativas
alterações nos enredos e, principalmente, nas formas de composição.
Na seção seguinte, apresentamos como ocorreu o início da produção de cordéis dos
poetas entrevistados.

4.4.1 O início da produção de cordéis

Ao investigarmos o período de início das produções de cordéis pelos entrevistados,


identificamos que os poetas mais velhos não eram, necessariamente, aqueles que tinham o
maior tempo de experiência como produtores de folhetos, como podemos observar no
Quadro 15.

Quadro 15 – Tempo de atuação como produtor de cordéis

Idade do poeta Período de início


Nomes dos poetas quando deu início à das produções de Idade atual
produção de cordéis cordéis
J. Borges 29 anos Há 51 anos. 80 anos

Paulo Pereira 60 anos Há 11 anos. 71 anos

Zé Guri 60 anos Há 6 anos 66 anos

Val Tabosa 41 anos Há 13 anos 54 anos


Diosman Avelino 35 anos Há 3 anos 38 anos
Jailton Pereira 18 anos Há 16 anos 34 anos
Fonte: A Autora (2017)

No que tange às informações do Quadro 15, podemos agrupar os poetas em três


subgrupos distintos em função da idade de início da produção dos cordéis: o primeiro
corresponde àqueles poetas que eram mais novos quando deram início à produção desse tipo
125

de material impresso (Jailton Leite e J. Borges); o segundo trata dos poetas que estavam na
faixa etária dos 30 a 40 anos de idade quando produziram o primeiro folheto (Diosman
Avelino e Val Tabosa) e o último concerne àqueles poetas que começaram a produzir
cordéis mais tardiamente (Zé Guri e Paulo Pereira), estando ambos com 60 anos.
No entanto, se observamos o Quadro 15 em função do período de início das
produções de cordéis, averiguaremos a presença de três subgrupos diferentes em relação à
idade de início da produção cordelística e idade atual. Percebemos, por exemplo, que J.
Borges tem o maior tempo de experiência como cordelista (51 anos), distanciando-se, no
que se refere ao tempo de atuação, dos demais poetas. Podemos notar, ainda, que os poetas
Jailton Leite, Val Tabosa e Paulo Pereira apresentam tempos de experiência de produção
próximos (16, 13 e 11 anos), mas com variações de 5 a 3 anos. Zé Guri e Diosman Avelino
são aqueles que começaram a escrever cordéis mais recentemente, em torno de 3 a 6 anos,
embora tenham quase 30 anos de diferença de idade. Se atentarmos para a idade atual dos
poetas quando foram entrevistados, essas divisões que realizamos anteriormente em função
da idade e do período de início da escrita do gênero sofre algumas modificações: J. Borges e
Paulo Pereira correspondem ao grupo dos poetas mais velhos (71-80 anos); Zé Guri e Val
Tabosa estão no grupo intermediário (66-54 anos) e Diosman Avelino e Jailton Pereira são
os poetas mais novos (34-38 anos). Tendo em vista estes aspectos apontados, consideramos
que eles podem nos ser bastante úteis, sobretudo para justificarmos as possíveis
diferenciações e/ou aproximações desses poetas quanto aos seus níveis de conhecimento
sobre o gênero discursivo que produzem.
Tal como indicado por J. Borges, o começo da sua produção de cordéis ocorreu em
1964, anos após ter trabalhado como vendedor ambulante nas feiras.

Ninguém me incentivou não. Eu já comprava e vendia. Depois, eu escrevi


o primeiro e mostrei para um amigo meu que já era veterano, que já tinha
no mínimo uns dez ou quinze originais. Eu mostrei pra ele. Nós já
viajávamos juntos, também, há muitos anos. Mostrei pra ele e ele disse a
mim: “Rapaz, tu nunca escrevesse nada?” Eu disse: “Eu já escrevi umas
besteiras, mas não têm muito valor não”. Ele disse: “Me dá um escrito teu
aí”. Fui lá numa mesinha de sala que tinha uma gaveta, puxei o original e
dei pra ele. Era até em papel pautado que eu escrevia. Dei pra ele e ele
disse: “Rapaz, um negócio desse, têm outros mais ruins fazendo e
vendendo por aí, esse tá muito bom”. Foi o cordel do vaqueiro. Ele disse:
“Por que não publica?” Eu disse: “Não, isso aí não tem jeito de vender”.
Ele: “Vamos levar na gráfica que eu ajudo você publicar”. Aí, ele foi
comigo na gráfica, pagou a metade da publicação e o cara disse: “Quando
for na outra semana venha buscar”. Na outra semana já estava o cordel
pronto. Aí eu fiquei entusiasmado com o meu cordel. Antes de terminar de
126

vender esse, eu já fiz outro. E daí que eu continuei e vi que tinha futuro.
Comecei a escrever, mas ninguém nunca me incentivou não (J. Borges).

Os entrevistados J. Borges, Zé Guri e Paulo Pereira disseram que não tiveram, no


início da profissão, alguém que os incentivavam a produzir cordéis, embora alguns deles
tenham recebido a ajuda de poetas veteranos.

Pra fazer cordel ninguém incentivou não. Apenas um repentista velho,


muito meu amigo, quando eu já estava com quatro anos de profissão
,viajando pelo mundo só cantando e sem trabalhar em nada, cantando mais
cego sem ter a certeza se rimava ou não rimava. Aí, o poeta velho, meu
amigo, me ensinou como é que rima e como é que não rima. Então,
naquele dia até agora eu fiquei rimando e sabendo se estava rimado ou não.
Somente. Eu comecei faz pouco tempo, porque que eu ia, e ainda vou, pra
fazer apresentações nas escolas, nos colégios, nas faculdades Aí, quando eu
ia apresentar meu trabalho, a primeira coisa que eles perguntavam era se
tinha alguma coisa da minha autoria. Aí, eu dizia que tinha muita coisa da
minha autoria, só que não era publicado, porque eu nunca tinha publicado
nada e nem escrito. Eu escrevia um bocado de poema e um bocado de
canção pra vender na feira, mas como cordelista eu nunca tinha escrito um
cordel porque ele era grande e na época, também, era muito difícil de fazer
um cordel pra vista de agora. Então, eu comecei escrevendo um de 8
páginas há bem pouquinho tempo. Na base de uns 10 anos só. Não, a base
de uns 6 anos só que eu comecei a escrever cordel. Agora, escrever canção
foi desde que eu comecei cantar repente. Quase antes de eu vender cordel,
eu comecei vender canção... Escrevo canção, poema, que a gente vendia
junto também do cordel na mala. [...] (Zé Guri).

Ninguém me incentivou não. Foi de mim mesmo. Eu comecei a escrever


depois que me aposentei e antes eu só fazia declamar e ler cordel. Agora,
eu vim escrever cordel depois que me aposentei (Paulo Pereira).

Quanto ao poeta Diosman, ele informou que recebeu incentivo de poetas


conhecedores do cordel e do repente.

Quando eu vim ter mesmo contato com o cordel foi há dez, doze anos
atrás. Por aí. Quando eu vim embora de volta de São Paulo, aí eu trouxe
uma pasta com um monte de poesias que eu já fazia e entre aqueles poemas
ali vários eram no estilo de literatura de cordel em sextilha e em quadra.
Aí, eu conheci um poeta em Arcoverde chamado Manuel de Lima. Ele é
repentista e cordelista. Acho que qualquer repentista pode ser cordelista,
mas nem todo cordelista pode ser repentista. Aí, eu mostrando,
conversando com Manuel de Lima e ele vendendo seus folhetos assim.
Parei lá algumas vezes, conheci, comprei, comecei a ler os cordéis dele e
dizendo: “Mas rapaz, acho que eu faço isso aqui também”. Só que eu via
que sempre tinha 24 estrofes, 32 e tudo longo, mas eu escrevia 10 estrofes,
5, 6, 4. Aí, eu dizia: “Mas rapaz, será que um dia eu vou conseguir fazer
um folheto de cordel um dia?”. Comecei conversando com Manuel de
Lima e ele falando dos cordéis. Ele declamava pra mim, lia e tal. E eu já
gostava, já era amante da poesia de mais. Através disso, dele e de outros
caras que eu fui conhecendo aí, quando vi já estava com vários cordéis. [...]
Agora, o primeiro folheto meu a ser impresso foi esse aqui “O meu Sertão
127

é demais, pra ele eu tiro o chapéu”. Um dia, eu conversando com uma


poetisa, ela me disse: “Diosman, você escreve uns poemas longos, mas por
que você não aumenta mais um pouquinho o tamanho dos cordéis seus para
imprimir em folheto de cordel?” Aí, eu fiquei pensando nisso. Foi quando
eu criei esse aí. Foi em 2013, há três anos. Eu aprendi observando
(Diosman Avelino).

Se por um lado houve entrevistados que tiveram a ajuda de algum poeta, na época,
mais experiente ou que, até mesmo, não foram aparentemente incentivados por alguém a
produzir cordéis, por outro existiram alguns deles (Jailton Pereira e Val Tabosa) que
receberam muito incentivo familiar, o que demonstra, de certo modo, o papel da família nas
experiências de letramento.

Minha mãe quando via eu tímido ainda, até para mostrar os cordéis, ela
sempre incentivava. Ela dizia: “Passe e mostre, é assim”. Eu dizia: “É
porque eu tremo muito, fico nervoso”. Aí, ela dizia: “Tem nada não”. Aí,
isso tudo foi me incentivando. Minha mãe incentivou muito e de fora teve a
prima que eu falei a você. Eu mostrei e ela disse que não era pra eu deixar
numa gaveta não. Aí, eu achei bacana, porque ela usou até o termo assim:
“Olhe, isso Deus está lhe dando pra você compartilhar com a
gente”(Jailton Pereira).

Escrever o cordel eu fui incentivado pelo meu irmão, Dorge Tabosa. Dorge
Tabosa é mais novo do que eu, mas desde cedo ele começou a escrever
cordel, livros, declamações. Eu achava muito interessante ele fazer, mas eu
nunca fazia. Aí, depois, quando houve um concurso de literatura de cordel,
promovido pelo Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional] e nesse concurso era para salvaguardar a feira de Caruaru, e
nesse concurso tinha o critério que tinha que ser com 32 estrofes de seis
linhas em sete sílabas. E ele me incentivou: “Faz, faz, que tu sabe fazer”.
Em algum momento de festividade da família eu fazia alguns versos e ele
achava que eu tinha jeito. Então, eu fiz esse poema, mostrei a ele para
[que] ele corrigisse se estava errada a ortografia e ele disse que estava
muito bom (Val Tabosa).

Sabemos que os sujeitos que participam de eventos de letramento, ainda na infância,


vendo os familiares escrevendo, lendo e contando histórias, chegam à escola já refletindo
sobre a língua e, também, reconhecendo os usos e as funções sociais da escrita. Isso nos leva
a pensar que oportunizar às crianças experiências autênticas e significativas com os textos é
um caminho necessário para que elas aprendam, desde cedo, a refletir e utilizar diferentes
estratégias de leitura e produção de textual. Certamente, isso não é algo que elas aprenderão
por si mesmas como fruto de fatores biológicos e, nem tampouco, de forma imediata, mas,
sim, mediadas por alguém que as ajude a perceber o caráter funcional e social que envolve
as práticas de escrita.
128

4.5 As concepções dos poetas sobre a produção de cordéis

Carvalho e Roazzi (2002), a fim de compreender o que pensam repentistas sobre as


suas produções, realizaram entrevistas semiestruturadas com doze (12) cantadores. Os
autores concluíram que os poetas apresentavam três concepções distintas acerca da origem
da sua habilidade poética e sobre o processo de produção: o primeiro grupo de entrevistados
enunciava concepções inatistas; o segundo demonstrava uma perspectiva behaviorista; e o
terceiro voltava-se para uma visão interacionista. Contudo, eles constataram que nessas
representações havia uma prevalência da ideia de “dom” nos depoimentos dos repentistas
entrevistados. De certo, essa noção de dom, enquanto uma capacidade inata restrita a poucos
privilegiados, também esteve presente nas falas de muitos dos poetas que entrevistamos. Por
isso, baseando-nos neste estudo realizado por Carvalho e Roazzi (2002), revelamos, adiante,
as concepções que os poetas tinham a respeito do início da elaboração dos textos poéticos e
o processo de produção dos cordéis. Todavia, não adotamos, neste trabalho, as classificações
utilizadas por Carvalho e Roazzi (2002).

4.5.1 As concepções dos poetas acerca da origem da sua habilidade poética e da


produção

Durante muito tempo, prevaleceu o mito, dentre vários outros, de que a escrita seria
um dom. Essa perspectiva se manteve (e ainda permanece) intacta no imaginário de
inúmeras pessoas e, até mesmo, de escritores experientes. Ao perguntarmos aos depoentes
sobre os seus primeiros contatos com o cordel, identificamos que três deles (Paulo Pereira,
Diosman Avelino e Jailton Pereira) apresentavam concepções semelhantes sobre a origem
da sua habilidade poética. À guisa de exemplificação, listamos alguns desses depoimentos:

Paulo Pereira: Porque se você tiver o dom, você vai se adequando,


sabendo como faz a rima e as colocações todas do cordel.

Paulo Pereira: Por que o dom não é de estudo, o dom é lá de cima. Eu


participei de um festival internacional e quando eu desci do palco, aí um
grupo de senhores me chamaram e perguntaram o meu grau de estudo. Eu
digo: “É terceira série primária”. E ele disse: “E a sua idade?” Eu digo: “63
anos”. Aí ele disse: “E o que você tem nessa mente?” Eu disse:
“Sabedoria”. Quando eu faço meus trabalhos nas escolas é o que o pessoal
comenta logo. Dizem: “Olhe, a gente ensina isso e isso, mas o que o Paulo
faz a gente não sabe fazer”. É porque não teve o dom.

Paulo Pereira: O cordel tem que ter o dom de fazer. Se não tiver, não faz
não. Não faz não, porque você tem que saber colocar as rimas todinhas.
129

Jailton Pereira: Alguns poetas defendem que você pode ser poeta
querendo, mas eu acho que só quando tem dom, porque eu fazia isso sem
saber e ninguém me ensinou a fazer [...].

Jailton Pereira: Eu não sei como aprendi. Eu sei que tentei e fiz. Aí, eu
acho que é do dom da pessoa [...].

Diosman Avelino: O que eu conheço é só a inspiração que Deus dá [...].

Diosman Avelino: [...] Acho que foi a coisa melhor que Deus me deu foi a
de fazer poesia, porque às vezes você tá com raiva, aí faz um verso, faz um
poema.

As justificativas para estes entrevistados terem se tornado poetas eram atribuídas ao


dom e à inspiração divina. No entanto, é preciso reconhecer que só aprendemos a produzir
textos quando produzimos, já que só passamos a dominar a escrita quando praticamos
socialmente essa atividade. Por isso, Sautchuk (2009) mostra que esse discurso do dom
revela-se insuficiente para descrever os aspectos que englobam a formação dos cantadores e,
acrescentamos, de todos os poetas de modo geral. Todavia, segundo o autor, “não se pode
recusá-lo como se fosse reles mistificação. Pois demandas e opiniões coletivas como a
ideologia do dom têm papel constitutivo no campo no qual se definem as relações entre
cantadores e ouvintes”39.
A maior parte dos poetas mencionou a questão do dom e alguns sinalizaram a
experiência. Zé Guri, por exemplo, atribuía à observação a causa para o aprendizado: “Os
cordéis, eu aprendi ouvindo os cordelistas logo primeiro”.
Salientamos, no entanto, que as perspectivas que estes entrevistados mantinham sobre
como se tornaram cordelistas não necessariamente coincidiam com as concepções que
apresentavam sobre o processo de produção. Paulo Pereira, ao ser perguntado sobre como
aprendeu a fazer os cordéis, mencionou: “[...] Eu aprendi porque lia muito. Você lendo uma
coisa muito, você vai aprender tudo”.
No tocante à aprendizagem do cordel, poetas como Paulo Pereira e J. Borges
afirmavam que era “preciso ler muitos cordéis para se escrever bem o cordel”. Essa ideia,
defendida por ambos os poetas, pressupunha que a leitura e a escrita estavam diretamente
relacionadas, já que “ler muito” seria um pré-requisito para se “escrever bem”. Do mesmo
modo, ressaltou Paulo Pereira:

39
SAUTCHUK, Ibid., p.98.
130

Eu aprendi porque eu lia muito. Você lendo uma coisa muito você vai
aprender tudo. Por que se você tiver o dom, você vai se adequando,
sabendo como faz a rima e as colocações todas do cordel. Você vai
aprendendo (Paulo Pereira).

Entretanto, é preciso considerar que a relação entre leitura e escrita, leitor e escritor
não ocorre de maneira mecânica, embora a leitura constitua, de fato, uma fonte importante
sobre “o que dizer” e “como dizer”: uma pessoa que lê muito não significa que,
automaticamente, ela escreve bem. A fala de Borges nos ajuda a balizar tal afirmação:

[...] Em 2012 teve um movimento da Rede Globo chamado Travessia e lá


na FENEART a Rede Globo fez um estande. Acho que dava uns três
tamanhos dessa sala e tinha até elevador pra subir. Aí, me chamaram pra
lá: “Olhe, o senhor vai lá pra exposição de cordel? Tem uns poetas por lá e
mandaram lhe convidar pro senhor ver lá como é o movimento”. Aí,
quando eu cheguei lá tinha um elevadorzinho. Eu subi. Era um negócio
monstruoso, muito grande, muito organizado. Veio uma mulher toda
“society” e disse: “Olhe, esse aqui é presidente, diretor, colaborador,
escritor, poeta, cordelista... (e mais num sei o quê, num sei o quê)”. Aí ele:
“Olhe um cordel meu aqui”. Eu li o primeiro verso e tinha a rima
PENSAMENTO, com ALIMENTO e última rima era TEMPO. Eu disse:
“Meu amigo, você acha que TEMPO rima com PENSAMENTO?” Ele
disse: “Não rima não?” Eu disse: “Rima não, senhor. Pra melhor, eu tenho
até nojo de ler uma escrita de cordel errada”. O cara tinha mais poder do
que o Presidente da República. Aí, li o outro e disse: “Esse ainda está pior.
Me diga, você sabe o que é uma rima positiva?” Ele disse: “Não!” Eu
disse: “Então, por que você se mete a escrever? Você sabe o que é rima
comparativa?” Ele disse: “Não!” “E a rima negativa?” Ele disse: “Também
não”. Eu disse: “Você não sabe é de nada e seu cordel eu não leio, pode me
pagar que eu não leio, porque eu me sinto ofendido quando eu pego um
cordel todo errado como o que você escreve”. Aí, outro veio com um papel
e disse: “Eu também sou cordelista”. Mas veio com o papel com uma linha
desse tamanho e outra com outro tamanho. Eu disse: “Que abacaxi é esse
aqui?” Eu disse: “O senhor sabe quantas sílabas tem um verso de cordel?”
Ele disse: “Não”. Eu digo: “Não se meta a se escrever não que você não
sabe de nada, rapaz”. É sete sílabas o verso positivo, mas de acordo com a
frase, quando a frase é boa e a gente não quer perder, a gente escreve com
oito e quando vai ler engole uma sílaba. “PARA”, tem canto que você pode
escrever “PARA” isso e isso, mas tem canto que a pessoa não pode
escrever “PARA”, aí bota “PRA” que aí morre, mata mais a sílaba. Tudo
isso são pormenores do cordel: a rima comparativa, a rima positiva, a rima
negativa. A rima negativa é a que não rima com nada. Por que tem gente
que escreve e só obedece ao verso, a estrofe assim (seis linhas), mas não
tem nenhuma rima. Essa rima comparativa é essa rima de CÉU e
CHAPÉU, quer dizer essa é rima positiva, mas CORDEL é rima
comparativa. Ela se compara com essa. Essa rima comparativa não é
permitida no cordel. Até que os emboladores, violeiros, eles cantam
porque é uma coisa que o vento leva e ninguém nem marca aquilo, mas
escrevendo tem que se obedecer. Olhe, CEU, CHAPEU, REU, TETEU
tudo é rima positiva. CORDEL, MENESTREL, SAMUEL, MEL tudo
isso... CAPITAL, SENSACIONAL e PAU é também rima comparativa.
Ela se compara, mas escrita está errada. Então, eu estive dizendo isso aí e a
131

mulher disse: “Tá vendo”. Eu disse: “Olhe moço, me perdoe, me desculpe,


mas eu sou muito rigoroso. Eu não aceito o cordel errado não. Você lê
muito cordel? Você não lê cordel para escrever”. Ele disse: “Não”. Eu
disse: “Então é aí onde está o problema”. Você pode se formar, ser o
maior poliglota do mundo, mas em cordel você tem que ler bem o cordel
para ver como é escrito (J. Borges).

Entretanto, é importante considerarmos o movimento inverso (um bom escritor lê


muito). O domínio de um gênero não garante o domínio de todos, porque cada gênero
possui características que lhe são próprias. O acúmulo de conhecimentos, advindos das
leituras ou através de outras experiências, facilita a aprendizagem, porém não elimina a
necessidade de se conhecer as características do gênero que se deseja produzir.
132

5 ANÁLISE DOS RESULTADOS: OS CONHECIMENTOS DOS POETAS SOBRE


O GÊNERO DISCURSIVO CORDEL

Abordar as características do cordel como gênero discursivo é uma tarefa complexa,


pois envolve um considerável número de aspectos difíceis de distinguir, definir e classificar.
Por isso mesmo, nosso propósito não é, e nem poderia ser, o de exaurir em poucas páginas
toda a complexidade que envolve o cordel, visto que, ao que tudo indica, nem sempre a
identificação de um gênero é clara ou facilmente delimitável, já que depende, segundo
Marcuschi (2003a), da perspectiva teórica que assumimos e do modo como encaramos os
fenômenos.
Evidentemente, existem muitas possibilidades teóricas de análise para a abordagem
da questão. No entanto, nesta pesquisa, apoiamo-nos principalmente na visão bakhtiniana,
por entendermos, assim como o autor, que a língua, enquanto manifestação da interação
social entre as pessoas, materializa-se através das enunciações, também reconhecidas como
gêneros discursivos (ou gêneros do discurso). Nas diferentes esferas de atividade humana,
fazemos uso da linguagem, seja ela falada ou escrita, por meio de gêneros que, por sua vez,
são caracterizados por seus aspectos sociocomunicativos, conteúdo temático, estrutura
composicional e estilo verbal.
Essas dimensões que constituem os gêneros serviram-nos como categorias de análise
dos dados. Contudo, decidimos não contemplar a análise dos aspectos estilísticos do cordel
haja vista a necessidade de realizarmos um recorte, dada pelas limitações temporais de um
trabalho de dissertação de mestrado.
Nesse sentido, apresentaremos, inicialmente, os dados relativos aos conhecimentos
dos poetas acerca da dimensão sociodiscursiva do cordel (finalidade; suporte; autor;
interlocutor; e objetivo). Em seguida, deter-nos-emos no exame das verbalizações dos
depoentes sobre as características temáticas e composicionais do gênero. De antemão,
destacamos que cada uma das categorias e subcategorias que perfazem esta análise não
depende exclusivamente da sua natureza ou de sua forma própria, mas de sua relação com as
outras.

5.1 Os conhecimentos verbalizados dos poetas sobre os aspectos sociodiscursivos do


gênero cordel

Os gêneros discursivos, como formas de comunicação humana, constituem


fenômenos historicamente situados e vinculados à vida cultural e social (MARCUSCHI,
133

2002). Entender essa dinamicidade é, conforme esse autor, uma condição sine qua non para
análise e compreensão dos gêneros, pois, do contrário, corremos o risco de considerá-los
fixos e imutáveis.
Sabemos, também, que ao escrever um texto, o escritor elege o gênero em
decorrência não apenas daquilo que deseja dizer, mas do efeito que pretende produzir no(s)
seu(s) interlocutor(es), dado que cada enunciado integra o eterno diálogo determinado “[...]
tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”
(BAKHTIN; VOLOCHÍNOV ([1929-1930] 2010, p. 113). Esta concepção da linguagem, de
viés sociointeracionista, se contrapõe à ideia de que a língua é apenas um instrumento de
transmissão de informação, posto que a entende de modo interacional, considerando “os
sujeitos [...] como autores/construtores sociais, sujeitos ativos que - dialogicamente - se
constroem e são construídos no texto” (KOCH; ELIAS, 2008 p.10).
Podemos, assim, frisar que essa dimensão pragmática da língua focaliza a exploração
das atitudes do produtor e do destinatário do texto nas situações de comunicação,
relacionando-se, “por conseguinte, nesse quadro, os traços textuais da intencionalidade
referentes à atitude do produtor; os da aceitabilidade ligados à reação do receptor; os da
situacionalidade relacionados com as situações comunicativas” (GUIMARÃES, 2013, p.55,
grifo da autora).
Ainda a respeito dos aspectos de natureza pragmática, Spinillo (2009) afirma que,
por exemplo, o conteúdo e a função podem ser aprendidos informalmente e, por isso, seriam
menos complexos que os aspectos linguísticos (estrutura do texto, organização de suas
partes constituintes e convenções linguísticas) que demandariam do indivíduo certo nível de
aprendizagem escolar. Contudo, consideramos que os aspectos linguísticos requerem a
aprendizagem escolar quando se trata de gêneros que são aprendidos, majoritariamente, na
escola. O cordel, até a alguns anos, não era aprendido na escola, assim como hoje os posts
do facebook ou as mensagens do whatsapp também não são.
Reconhecemos que os textos são regidos por regras que podem ser aprendidas às
vezes de maneira tácita, outras vezes de forma intencional, porém, isso não significa, de
modo algum, que a dimensão sociodiscursiva dos gêneros não deva ser objeto de ensino na
escola40.

40
Dolz e Schneuwly (2004) propõem a organização do trabalho de produção de textos, dos diferentes gêneros,
por meio de sequências didáticas que se constituem em estratégia de ensino e se tornam instrumentos que
podem guiar os professores em sala de aula.
134

A metapragmática tem, portanto, um importante papel no desenvolvimento da


produção e compreensão textual, visto que, como explica Gombert (1993), citado por Soares
(2006), a metalinguística seria uma subcategoria da consciência metapragmática, e não o
contrário, dado que esta última pode envolver conhecimentos linguísticos ao nível
fonológico, sintático, morfológico e textual. Balizados por esse entendimento, buscamos,
então, analisar, a seguir, as verbalizações dos poetas acerca dos aspectos sociodiscursivos do
cordel.

5.1.1 Os propósitos comunicativos

O processo de escrita do cordel não envolve apenas o conhecimento sobre a estrutura


interna do texto, mas, também, acerca do seu funcionamento enquanto prática de
linguagem41. Para Marcuschi (2002), os gêneros são mais caracterizados por aspectos
sociocomunicativos do que, propriamente, pelas suas peculiaridades linguísticas e
estruturais. Entretanto, as funções sociocomunicativas dos gêneros nem sempre são fáceis de
explicitar, e isso acontece porque, geralmente, eles não servem a um único propósito
comunicativo, mas, sim, a um conjunto deles, que variam em decorrência do tempo e
espaço.
Dessa maneira, Lopes-Rossi (2012) destaca que o cordel atende a propósitos diversos
(informar sobre acontecimentos recentes, contar uma história, trazer ensinamento, fazer
crítica social com humor ou lamento e traçar o perfil de uma pessoa ilustre). À luz desse
quadro, resta-nos a questão: até que ponto os poetas conseguem explicitar verbalmente os
propósitos comunicativos “socialmente reconhecidos” do cordel, relacionando-os às suas
produções escritas? Por isso mesmo, perguntamos-lhes: “De modo geral, para que serve o
cordel?” e “Qual a finalidade deste cordel?”. Frente a estes questionamentos, evidenciamos,
no Quadro 16, os propósitos a que se presta este gênero, conforme as declarações dos poetas
entrevistados.

Quadro 16 – Propósitos comunicativos atribuídos ao cordel pelos poetas

Nomes dos poetas

Propósitos Total
Paulo Val Diosman Jailton
comunicativos J. Borges Zé Guri
Pereira Tabosa Avelino Pereira
do cordel

41
Pensamos, a partir de Schneuwly e Dolz (1999), que as práticas de linguagem materializam-se através dos
gêneros e, como dimensões particulares do funcionamento da linguagem, têm implicações sociais, cognitivas e
linguísticas.
135

Informar sobre
X X X X X 5
acontecimentos
Contar uma
X 1
história
Fazer uma
X 1
crítica social
Ensinar algo X X X X 4
Incentivar a
X 1
leitura
Divertir X X X 3
Total por poeta 3 3 2 3 1 3 15
Fonte: A Autora (2017)

Como pode ser observado no Quadro 16, foram predominantes nas verbalizações dos
cordelistas os propósitos comunicativos de informar, ensinar algo e divertir 42. De acordo
com Curran (2011), podemos dizer que as funções do cordel, referidas pelos entrevistados
acompanham a própria história e o surgimento deste gênero no Brasil. Nas primeiras
décadas do século XX, o cordel era consumido, sobretudo, como forma de lazer coletivo, de
socialização e de informação (RESENDE, 2010). Nessa época, para muitos
leitores/ouvintes, os cordéis eram considerados mais acessíveis do que outros meios de
comunicação. Ademais, Galvão (2006) evidenciou, através do depoimento de Zé Moreno
(um leitor/ouvinte de cordéis, entre 1930 e 1950, em Pernambuco), que a preferência das
pessoas pelos folhetos estava relacionada, entre outras coisas, à questão da compreensão: a
familiaridade com esse gênero era importante para que elas melhor entendessem a notícia e
o fato do texto ser impresso permitia várias retomadas a ele por parte do leitor.
Nas entrevistas que realizamos, o cordel foi mencionado pela quase totalidade dos
poetas (5) como um importante veículo de informação. Apresentamos, a seguir, enxertos de
depoimentos que ilustram essa nossa observação:

Hoje, ele [o cordel] serve do mesmo jeito que servia, só que diferente. Ele
serve hoje para diversão: o caba compra pra ler pra achar engraçado. Serve
também para ensinamento, porque antigamente ele ensinava as pessoas que
não sabiam ler e hoje ele ensina.[...] Então, hoje, ele [o cordel] já ensina
esse povo sabidão e ainda serve como diversão. E, às vezes, também ainda
como jornalismo, porque quando acontece alguma coisa alguém faz o
cordel. Tinha o cordel que era tipo jornal, como a “Virada do caminhão em
Gravatá”. Vendeu muito. Foi em 49 [...] (J. Borges).

O cordel ainda é um jornal. O cordel é um jornal do povo. Muita gente não


sabe o que é cordel não, mas se ele pegar num cordel, e ele for ler, eu acho

42
Muitos dos propósitos comunicativos dos gêneros apresentados pelos cordelistas parecem, inclusive, se
fundir.
136

que ele vai gostar de ler, porque tem história de Lampião, história de
regime militar, de tudo tem no cordel. Tudo que você procurar, está tudo
no cordel (Paulo Pereira).

[...] Pode até alguém contestar isso aí, mas ele é uma coisa só pra diversão.
Mas, não pode ser só isso aí não. Pode ser uma ferramenta de informação,
de educação, no sentido do sujeito aprender a ler através de um cordel
(Jailton Pereira).

Nesses relatos, percebemos ainda que, para além da função informativa, como
apontam diversos pesquisadores (LEMAIRE, 2010; RESENDE, 2010; QUINTELA, 2013),
o cordel tornou-se uma fonte de diversão e formação. Durante o apogeu da literatura de
cordel no Brasil, a leitura/audição dos folhetos uma importante forma de informação e lazer,
principalmente em algumas comunidades e para alguns grupos sociais, devido à dificuldade
de acesso aos jornais, aos altos custos do rádio e à ausência da televisão. Em vista disso, os
folhetos eram considerados, para muitos leitores/ouvintes, uma fonte de informação capaz
de divertir (GALVÃO, 2000).
Galvão (2006), ao investigar os meandros da literatura de cordel em Pernambuco nas
décadas de 30, 40 e 50 do século XX, observou o papel educativo presente na leitura e
audição dos folhetos, já que inúmeras pessoas eram, através deles, alfabetizadas em um
processo, por vezes solitário, de reflexão metalinguística. Os cordéis pareciam se constituir,
consoante a autora, como a principal mediação entre os sujeitos e o mundo da leitura e
escrita, visto que, nos idos das primeiras décadas do século XX, em que os baixos índices de
escolarização eram uma realidade brasileira e as taxas de analfabetismo chegavam a quase
70% da população com mais de 15 anos, eles eram tidos como um meio capaz de auxiliá-las
no desenvolvimento das competências de leitura.
Entretanto, para Resende (2010), essa função social de alfabetização, desempenhada
pelo cordel tradicional não se observaria mais nos dias de hoje devido à expansão das
escolas e à ‘despopularização’ do gênero. Não obstante, a autora alerta que, atualmente,
procura-se utilizar os folhetos em sala de aula como atividade de leitura, de valorização
cultural e não como um recurso de alfabetização. Devemos lembrar que essas modificações
apontadas por Resende (2010) decorrem, pelo menos, de dois fatores. Em primeiro lugar, do
fato de que os gêneros, por não serem estáticos, estão constantemente suscetíveis a
alterações sociais, históricas e culturais. Em segundo lugar, pelas transformações da situação
educacional e condições sociais do país, como revelado pelos resultados do Censo de 2010,
divulgado pelo IBGE, que mostra que os índices de analfabetismo caíram, entre a população
de 15 anos ou mais de idade, para 9,6% (o que representa ainda 13.933.173 dos brasileiros).
137

Os propósitos comunicativos tomam forma linguística no texto, mas são construídos


social e historicamente. Continuando o que foi exposto acima, pode-se dizer que, ao eleger
um texto de um determinado gênero, o leitor o faz em função de algum (ou vários) dos
propósitos sociais de leitura. Do mesmo modo, Soares (2001) sublinha que, ao escrever, o
produtor precisa ter algo a dizer (o assunto, o tema), para que dizer (funções/propósitos), a
quem dizer (destinatário) e uma situação na qual se diz e tais aspectos constitutivos de sua
configuração conduzem o “como dizer” (estrutura). Vários autores (BAKHTIN, 2011;
SILVA; MELO, 2007) têm reforçado, inclusive, a ideia de que os gêneros, elementos
fundamentais da interação social, emergem, ao menos, com um propósito comunicativo
definido.
Tendo em vista os aspectos arrolados, analisamos 6 (seis) folhetos (um de cada
participante desta pesquisa) escolhidos aleatoriamente. Assim, encontramos cordéis que
buscavam fazer uma crítica social (1), orientar (1), narrar uma história fictícia/divertir (1),
trazer ensinamento (1), contar a história de vida de uma pessoa ilustre (1) e narrar fatos da
sua vida do cordelista, usando elementos da descrição (1). Em muitas situações, as funções
de determinados cordéis fundiam-se, o que levou-nos a apontar apenas aquela(s) que
consideramos predominante(s). Percebemos, assim, que os propósitos comunicativos dos
folhetos eram muito semelhantes àqueles apontados por Lopes-Rossi (2012), mesmo que,
também, tenhamos encontrados outros que não enfatizados pela autora. Podemos reafirmar
que as “funcionalidades discursivas” dos gêneros são diversas e passíveis de variações ao
longo do tempo
Além de investigar os conhecimentos gerais dos poetas sobre a finalidade do gênero,
averiguamos se os poetas conseguiam verbalizar e justificar o(s) propósito(s)
comunicativo(s) de certos cordéis que eles próprios haviam produzido. Utilizando como
referência as respostas dadas à questão “Para que você escreveu este cordel?”, percebemos
que a maior parte dos cordelistas (J. Borges, Paulo Pereira, Val Tabosa e Jailton Pereira)
conseguiu verbalizar e justificar os propósitos de comunicação a que se prestavam
determinados cordéis.
À guisa de ilustração, podemos começar referindo-nos aos dois folhetos analisados
por Jailton Pereira, intitulados “A feira que tudo tem” e “O Nordeste tudo tem”. No
primeiro, elaborado para o concurso promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, doravante IPHAN, o poeta versou as diversas mercadorias que podiam
ser encontradas na feira da Sulanca, em Caruaru. O segundo dirigia-se, sobretudo, para as
tradições e eventos culturais da Região Nordeste. Em ambos, a função social dos folhetos
138

era a de valorização cultural, tal qual podemos observar no seguinte trecho da entrevista de
Jailton:

Sobre a finalidade desse cordel [A feira que tudo tem], eu tenho que ser
bem claro: eu queria ganhar o prêmio. Eu fiquei em segundo. Aí, eu me
preocupei com isso. Mas eu já fiz um cordel “O Nordeste tudo tem” [o
poeta se remete a um folheto de que não dispunha naquele momento]. Aí,
eu fiz buscando mostrar as coisas da cultura Nordestina. Eu falei,
sobretudo, de Pernambuco. Falei do festival de inverno, falei de
bacamarteiros... Aí, eu fiz esse no intuito da rapaziada... que lesse,
valorizasse isso aí que muita gente não valoriza: a cultura. Falei do
cantador de viola, do coquista. Aí, é tão provável que foi... Tinha um
professor que tinha me dado aula, e ele usou esse cordel em aulas de
história. Ele substituiu uma apostila por esse meu cordel. Tem algumas
pessoas que brincam com situações políticas, mas eu nunca fiz não com
situações políticas. Ou eu fiz? Parece que eu fiz há um tempo um cordel
chamado “Preciso ver primeiro pra poder acreditar” em que eu digo umas
coisas com graça, mas, como se diz, dando uns cutucões e fazendo uma
crítica social (Jailton Pereira).

Mediante essa assertiva, percebemos que, além dos propósitos comunicativos do


gênero, havia também as intenções (objetivos) pretendidas pelo escritor com o texto. Jailton
Pereira mencionou que, ao escrever o cordel “A feira que tudo tem”, cuja finalidade era a de
valorização da Feira de Caruaru, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro,
visava ganhar o prêmio do concurso promovido pelo IPHAN.
O folheto que Val Tabosa tomou como objeto de análise continha seis cordéis. Todos
eles traziam ensinamentos religiosos, embora tratassem de temas distintos (Batismo; Natal;
O Terço; Dia dos Pais; Dia das Mães e Paulo Apóstolo). Era comum este depoente reunir
três ou mais cordéis em um único folheto, justificando que eram mais fáceis de serem
comercializados e lidos, à medida que se tratava de textos mais curtos. Como veremos, para
Val, os textos eram determinados pelos interlocutores a quem se destinavam (mais adiante
nos deteremos um pouco mais sobre este assunto):

Esse aqui mesmo, religioso, serve para palestras com temas religiosos. Eu
uso muito esse cordel em palestras religiosas. Tem uns humorísticos, tem
uns que são críticos, da atualidade. Então, quando a gente vai pra um
canto... Eu não sei decorado todos eles. Eu sei decorado, mais ou menos,
uns 14. Então, a gente vai pra algum canto, fazer uma apresentação, e no
ambiente a gente vê qual a necessidade daquele público. Então, a gente diz
um poema que o pessoal gosta. Então, depois vem outro e a gente faz uma
reflexão. Depende muito do público. O público jovem gosta de sorrir, dar
risada, gargalhada. O público mais ligado à cultura gosta de apreciar a
riqueza da poesia [...] (Val Tabosa).
139

O fato, conforme acabamos de ver, é que há amplas possibilidades de uso do gênero,


que se ajustam às esferas sociais específicas, a situações, propósitos e destinatários
determinados. Nesse sentido, a obra literária é um objeto social que só existe, enquanto obra,
na relação entre alguém que a escreve e outro alguém que a lê ou escuta (LAJOLO,1995).
Essa relação (entre autor, leitor e obra literária) é ainda mediada por outros agentes, como
editores, ilustradores, distribuidores, dentre outros.
J. Borges disse-nos que tem investido na escrita de cordéis humorísticos
(reconhecidos como gracejos), que são textos voltados para o entretenimento e nos quais os
poetas utilizam, com muita frequência, palavras com duplo sentido (trocadilhos). A adoção
por temas dessa natureza está ligada, sobretudo, ao perfil dos atuais leitores do gênero:

Eu escrevo mais temas de humor, para divertir, como esse aqui [O homem
que nasceu pra ser chifrudo e as mulheres gaieiras]. Hoje, o povo lê rápido,
dá uma risada e joga pra lá. Não se tem mais tempo de tá lendo cordel
como era antigamente. Agora, eu faço uns por encomenda, também como
esse “Como evitar a AIDS”, que foi orientando como a pessoa se prevenir
da doença [...] (J. Borges).

Resende (2007), referindo-se à literatura de cordel, afirma que as transformações que


vem sofrendo esse gênero têm correlação com as necessidades sociais dos leitores que já não
são as mesmas de outrora. Neste particular, cabe evocarmos, igualmente, as mudanças no
perfil dos profissionais que trabalhavam com a literatura de cordel. Se até a década de 1950
as atividades dos autores, editores, ilustradores e vendedores eram exercidas por diferentes
pessoas, salvo algumas situações, a partir de 1960 estes diversos ofícios passaram a ser
desempenhados por uma única pessoa com o objetivo de diminuir os custos de produção.
Atentamos, ainda, para o depoimento de Paulo Pereira que também verbalizou o
propósito comunicativo do cordel que havia produzido. O folheto (A caveira e o viajante)
consistia em uma narrativa em que o personagem principal, durante uma viagem,
encontrava-se com uma caveira que fez um pedido ao viajante e, no final, deu-lhe uma
recompensa. Sobre este cordel, Paulo pronunciou: “Esse aí é contando uma história. Sou eu
contando a história de uma caveira que encontrou com o viajante. Aqui eu estou contando
uma história”.
Por outro lado, reconhecemos que um dos seis participantes (Diosman Avelino)
atribuía, a diferentes exemplares do gênero, uma única finalidade. No caso de Diosman, o
propósito comunicativo mencionado (incentivar a leitura) estava mais relacionado às
intenções particulares do autor do que, propriamente, às finalidades dos cordéis. Esse
aspecto também foi observado, conforme apontamos anteriormente, na verbalização de
140

Jailton Pereira, que, apesar de explicitar as finalidades dos cordéis, mencionou o objetivo
pessoal de “ganhar o prêmio de um concurso”, ao tratar-se de um determinado folheto.
Notamos que Zé Guri, apesar de reconhecer certos propósitos comunicativos do
gênero, como o fez anteriormente, não conseguiu explicitar verbalmente o(s) propósito(s)
funcional(is) dos folhetos de sua própria autoria. Respondeu à pergunta dirigindo-se aos
leitores e não às suas finalidades, como podemos observar no seguinte trecho: “o cordel
agora só serve mais para o aluno, porque ele não sabe o que é folheto e muita gente não sabe
o que é cordel [...]”. De fato, os leitores relacionam-se intimamente com os propósitos a que
se prestam os gêneros discursivos, o que pode fazer com eles se (con)fundam.
Vislumbramos, por conseguinte, que a compreensão acerca dos propósitos
comunicativos parecia não estar relacionada, diretamente, com a escolarização dos poetas,
mas, sim, com o tempo de escrita do gênero (aqueles com maior período de produção do
gênero conseguiram explicitar verbalmente os propósitos dos cordéis, justificando as
respostas).

5.1.2 Os leitores/ouvintes

Compreendemos, na trilha do que diz Bakhtin e Volochínov ([1929-1930] 2010), que


todos os enunciados se dirigem a um destinatário, cuja compreensão responsiva o autor do
discurso presume a partir das representações que possui acerca do leitor/ouvinte. Desse
leitor, espera-se que confirme, refute ou avalie os enunciados que tem diante de si, que dê
sentido e significação ao que lê. Convidamos, então, os poetas a refletirem sobre os leitores
dos cordéis e para isso questionamos-lhes: “Em geral, quem são as pessoas que leem ou
escutam cordel?” “Quando você produziu esse cordel, já imaginava quem poderiam serem
os leitores/ouvintes dele?”. Inúmeros estudos têm buscado apontar as mudanças nos modos
de produção, divulgação e recepção dos cordéis atuais, em comparação ao período
tradicional (GALVÃO, 2005; OLIVEIRA, 1999; SANTOS, 2009).
Aliás, para Santos (2009), modificaram-se não apenas os folhetos, mas também os
poetas: dos que apresentavam poucos “conhecimentos do vernáculo aos estudantes e
graduados nas universidades, os poetas intervieram moldando o cordel às necessidades do
mundo global, emprestando-lhe acabamento gráfico e visibilidade midiática nunca vista”
(Idem, p.11).
Podemos dizer, em consonância ao que afirma Oliveira (1999, p.33), que o autor não
é mais o nômade de épocas passadas (muitas vezes representado pela figura do folheteiro)
em que a poesia era a sua única fonte de renda. Tampouco, o leitor da literatura de cordel é
141

o mesmo, pois, “hoje, ele está muito mais próximo do autor-texto e o que lhe chega às mãos
está diante de seus olhos, não a centenas de quilômetros de distância”.
Se o cordel tradicional esteve marcado pela autoria individual e a leitura coletiva, no
“ciber cordel” tem ocorrido o inverso - a produção tem sido coletiva enquanto a leitura é
individual (AMORIM, 2009). Para a autora, o leitor pós-revolução eletrônica tem a
possibilidade de intervir no texto, submetendo-o às suas próprias decisões, incluindo ou
excluindo partes da versão original. Perante esta realidade, buscamos identificar,
respaldando-nos nos depoimentos dos entrevistados, o público leitor/ouvinte dos seus
cordéis e, para propiciar visão do conjunto das respostas, elaboramos o Quadro 17.

Quadro 17 – Público leitor dos cordéis declarados pelos poetas

Nomes dos poetas

Total
Público leitor Paulo Val Diosman Jailton
J. Borges Zé Guri
dos cordéis Pereira Tabosa Avelino Pereira
Pessoas mais
X X 2
velhas
Poetas X X 2
Estudantes X X X X 4
Apreciadores de
X 1
poesia, no geral
Povo X 1
Total por poeta 2 1 2 1 2 2 10
Fonte: A Autora (2017)

Os dados presentes no Quadro 17 dão indícios de que, para os depoentes, os leitores


de cordéis são constituídos, sobretudo, por estudantes (4), pessoas mais velhas (2) e até
mesmo poetas (2). No fragmento da fala de J. Borges como será destacado adiante, ele
reporta-se ao povo como destinatário geral (uma coletividade) e sinaliza ainda que o cordel
tem interessado aos alunos (por ser objeto de ensino).

É o mesmo público. Agora, a decadência do cordel foi porque acabaram os


cordelistas de praça e feira. [...] Eu escrevo de acordo com o povo e de
acordo com o tempo também. Antigamente se escrevia história de luta, de
amor, de reino encantado, de mistério, mas agora não se escreve mais isso,
porque o povo hoje não tem mais tempo para estar duas ou três horas
sentado lendo um cordel. O povo hoje usa cordel por brincadeira, por
necessidade de estudo também das crianças e os adolescentes. [...] Tudo
que eu escrevo é pensando no gosto do povo. Não é no meu, é no gosto do
povo, porque o povo é quem absorve a produção, quem compra tudo, quem
142

lê, quem gasta... Tudo que se fabrica no mundo é para vender para o povo
(J. Borges).

Segundo Borges, os espaços de divulgação dessa literatura se transformaram


radicalmente, deixando as feiras e invadindo as galerias e universidades. Ademais,
ocorreram mudanças no gênero (o cordel deixou de ser lido intensivamente) e, também, em
função do leitor, que têm hoje outros interesses (não se interessam mais por cordéis longos,
com temas mais heroicos, fantásticos...). Concordamos com Borges acerca de que a
interação do texto e o leitor é regulada pelas intenções, pelos objetivos de leitura que se tem
ao ler um texto: há textos que são lidos quando se pretende manter-se informado, há outros
cuja leitura é realizada por puro prazer...
Val acredita que não se pode delimitar uma faixa etária específica dos atuais leitores
de cordel, haja vista que, via regra, eles são formados por pessoas que gostam e ouvem
poesias, cujas idades são bastante diferentes, embora reconheça também que o cordel “não
vai atingir todo mundo”:
Quem lê é quem gosta de poesia. No Museu do Cordel, em Caruaru, na
Casa do Cordel, as pessoas procuram o cordel pra comprar. Na Feira do
Livro nós, poetas, ganhamos um estande lá. Expomos vários cordéis, de
vários autores, e vendemos muito. Então, tem um público, que tem várias
idades. Agora, a gente sabe que não é um segmento que vai atingir todo
mundo [...] (Val Tabosa).

Para os entrevistados Paulo Pereira e Zé Guri, os leitores/ouvintes de cordel são


compostos, em sua maioria, pelas pessoas mais velhas. “Sempre, sempre é o pessoal mais
velho que lê”, reforçou o cordelista Paulo Pereira. Apenas para acrescentar esta reflexão,
trazemos à baila a afirmação de Zé Guri: “Tem pouca gente que lê, mas ainda tem um
pessoal que passa a procurar. Sempre, sempre é pessoal mais velho. O aluno novinho é quem
mais compra ou precisa, por necessidade de fazer um trabalho, mas não lê”. Nesses relatos
(de Paulo Pereira e Zé Guri), observamos dois aspectos relevantes na caracterização do
público leitor/ouvinte: a questão geracional (os mais velhos) e, ao que tudo indica, a
dimensão escolar (a procura de cordéis por alunos que possivelmente precisam fazer algum
trabalho sobre o tema).
Esses testemunhos, por sua vez, nos permitiram perceber que a literatura de cordel
tem se adaptando a novos espaços e contextos socioculturais, ao público de leitores mais
velhos e aqueles mais jovens, os quais parecem se aproximar do cordel por motivações
diferentes.
143

No que tange aos leitores/ouvintes dos cordéis dos anos de 1930 e 1940, Galvão
(2006) mostrou que eles eram constituídos por homens, mulheres e crianças. Mesmo que
não dominassem as habilidades de leitura, os homens participavam dos espaços públicos de
leitura, ouviam os vendedores declamando na feira e adquiriam os impressos. Às mulheres e
crianças era reservado, sobretudo, o espaço doméstico de leitura. Fossem moradores de
comunidades rurais ou das cidades de médio e grande porte, os leitores/ouvintes eram,
majoritariamente, analfabetos ou semianalfabetos.
Nas últimas décadas, com a ampliação do nível de escolaridade, as modificações no
perfil socioeconômico do poeta, os processos de distribuição, recepção e produção dessa
literatura alteraram-se radicalmente (RESENDE, 2010).
Dirigindo-nos, novamente, ao Quadro 17, visualizamos que para Diosman e Jailton,
os leitores de cordéis têm sido formados, principalmente, por poetas e estudantes. Em
muitas ocasiões, os cordéis têm circulado entre os próprios cordelistas, por meio das
associações e dos meios de comunicação digital. É nesta linha que interpretamos estes
depoimentos:

Acredito que são mais os próprios poetas. É lamentável a gente falar, mas
eu digo pra você que a gente tem professores que não são leitores, não é
verdade? Quem era mais pra ler... Você vai numa escola qualquer dessas
aí, em qualquer lugar do Brasil, você leva os folhetos, [e] às vezes os
alunos compram, e o professor não compra o cordel (Diosman Avelino).

É mais pessoas do meio, acredita? Através das postagens do facebook, dos


eventos. Vou citar uns professores – não querendo meter o pau no
professor –, mas os professores, que deviam ser os grandes incentivadores
da arte, não são pessoas que leem cordel [...] (Jailton Pereira).

Essas falas de Diosman e Jailton denunciam que, para eles, muitos professores não
são leitores de cordéis. Atinente a isto, Medeiros e Alves (2014) apontam que a poesia
“popular” na escola tem ainda se deparado com vários problemas: em geral, ela só tem
notoriedade em datas comemorativas ou é utilizada apenas como pretexto para correções
linguísticas e para facilitar o ensino de determinados conteúdos, perdendo o seu valor
estético. Por conseguinte, os professores normalmente não teriam o hábito de leitura desse
gênero literário. Em paralelo a declaração de Medeiros e Alves (2014), recorremos às
palavras de Pinto (2006, p.21) ao afirmar que “a quase ausência de folhetos nos livros
didáticos e o tratamento, muitas vezes, equivocado do assunto quando consegue ser
alcançado à condição de matéria de leitura e de aula provam que o cordel ainda não está
efetivamente na pauta da educação formal”.
144

Dando prosseguimento a esta análise, investigamos as representações dos seis


cordelistas sobre os supostos leitores de um dos seus cordéis. Alguns deles, como veremos,
disseram não acionar informações, de maneira consciente, sobre os leitores/ouvintes quando
produziam o texto. Esta acepção pautou-se na análise das respostas dadas à pergunta:
“Quando você produziu esse cordel, já imaginava quem poderiam ser os leitores/ouvintes
dele?” (QUADRO 18).

Quadro 18 – Leitores/ouvintes dos cordéis produzidos pelos poetas

Nomes dos poetas

Público leitor Paulo Diosman Jailton


J. Borges Zé Guri Val Tabosa Total
dos cordéis Pereira Avelino Pereira
Não imagina os
possíveis X X X 3
leitores
Imagina que
todas as pessoas X 1
possam ler
Pensa que os
leitores
dependerão X 1
do tema do
cordel
Sempre imagina
quem poderão X 1
ser os leitores
Total por poeta 1 1 1 1 1 1 6
Fonte: A Autora (2017)

A partir do exposto, concluímos que os poetas deram respostas mais gerais sobre o
público leitor, embora o questionamento, conforme demonstramos, tenha sido direcionado a
um folheto específico. Os cordelistas, sobretudo os menos escolarizados, disseram não
acionar informações sobre os possíveis leitores durante a escrita dos cordéis. Todavia, cabe
ressalvar que, durante a entrevista, a influência dos leitores/ouvintes sobre a produção foi
mencionada por eles, tal como J. Borges no seguinte excerto: “Eu faço meus cordéis baseado
nisso, no sentimento das pessoas, no que o povo gosta, porque eu fico pensando: isso aqui o
povo não gosta muito, agora desse jeito aqui eles gostam. Aí, é assim. Eu sempre escrevo
dessa maneira”.
Esse testemunho de Borges, inclusive, contradiz a ideia anterior. Diante disso, não
podemos alegar que os participantes investigados não refletiam, de modo algum, sobre os
possíveis leitores dos seus cordéis, pois, durante o processo de interlocução, eles
145

mobilizavam um conjunto de conhecimentos e estratégias visando à obtenção de uma atitude


responsiva dos leitores. Diosman, no que se refere aos supostos leitores do folheto
“Inquilinos de um mundo violento e opressor”, justificou:

A minha imaginação é que todos pudessem ler esse cordel, todos que
sabem ler lessem e aqueles que ainda não leem que ouvissem, pelo menos,
alguém lendo. A única coisa que eu penso é que seja para qualquer um, se
vai agradar. Eu não penso muito, assim, quem vão ser os leitores, porque a
gente tem que ser consciente de que você pode gostar desse aqui e fulano
pode não gostar, entendeu?” (Diosman Avelino).

Com base neste relato, entendemos que o respectivo entrevistado não definiu, de
maneira específica, o público leitor do seu cordel, todavia, para Val Tabosa, as temáticas e o
contexto narrativo do folheto já revelam o destinatário para quem o escritor dirigiu o texto.
Mas, é preciso considerar, também, que o sentido do texto não está dado, ele é construído
tanto pelas “sinalizações” feitas pelo autor quanto pelo conhecimento que o leitor já possui e
é capaz de mobilizar durante a leitura. Sobre isso, eis o seguinte fala:

Esse cordel com temas religiosos, aí a gente tem a ideia de que as pessoas
ligadas ao movimento vão ter uma apreciação maior, né? O cordel “Águias
do Agreste” eu fiz para o moto clube do qual eu faço parte. Então, outros
cordéis que eu tenho eles nem leem, mas esse eles acham interessante,
porque falam da nossa história, né? Eu não posso levar um cordel desse
que fala de motociclismo e botar na igreja, porque as pessoas não vão achar
interessante, já que não conhecem a história. [...] Aí, cada cordel tem um
público diferente que depende, também, do tema (Val Tabosa).

A fim de atingir suas expectativas e de provocar os efeitos de sentido pretendidos,


Jailton Pereira disse-nos se colocar no lugar dos seus interlocutores no decorrer da escrita do
texto. Nesse caso, o público leitor principal do cordel ao qual se remeteu foi a comissão
julgadora do concurso do qual participou.

Sim, a gente imagina muito. Eu imagino muito. Quando eu estou


escrevendo, na hora, eu estou querendo muito que leiam pessoas mais
jovens do que eu e que gostem para poder passar adiante a minha arte. Não
apenas a minha, mas a arte do cordel. [...] A gente também imagina outros
poetas lendo. Nesse cordel aí, aconteceu, assim, de eu imaginar: ‘Será que
vão aprovarem?’. Nesse caso aí, desse cordel, eu sabia. Eu sabia dos três
caras da comissão julgadora e aí eu imaginava “Vou fazer umas coisinhas
das coisas que eles gostam. Mas, nem sempre, eles vão analisar isso [...]
(Jailton Pereira).

Determinados aspectos (como, por exemplo, a temática dos impressos ou espaços de


circulação) podiam, até mesmo, pressupor um destinatário específico. Tendo esses aspectos
em vista, concebemos que quanto mais específico o leitor, maior a necessidade dos poetas
146

em conhecer a suas características e levá-las em conta durante o processo de produção. Por


outro lado, quanto mais genérico o público, maior seria a preocupação em não direcionar
demais o seu texto para um conjunto particular de pessoas.
Assim, todos esses elementos só podem ser percebidos em uma relação dialética
entre o leitor e o autor via texto. Na próxima seção, procuramos discutir as indicações de
autoria nos folhetos do ponto de vista dos participantes contemplados nesse estudo.

5.1.3 Indicações de autoria do cordel nos folhetos

Figura 4 – Capa do folheto A feira que não pude pagar

Fonte: Folheto de Diosman Avelino (2014).

No decorrer do século XX, a ideia de circularidade entre autor, leitor e obra


consolida-se, contrapondo-se à concepção romântica, cuja compreensão assentava-se no
pressuposto de que o autor seria alguém dotado de qualidades superiores (gênio criador)
distintas do destinatário. Do nosso ponto de vista, e refletindo a partir das palavras de
Bakhtin (2011), tomamos a noção de autoria como o engajamento do autor em provocar nos
seus interlocutores uma atitude responsiva. Partindo deste pressuposto teórico, buscamos
investigar se os depoentes apontavam indícios de autoria nos folhetos. Diante desse cenário,
inquietou-nos saber: “Nos cordéis, aparece alguma informação sobre o autor? Qual?” e
“Nesse cordel, tem alguma informação sobre o autor?”.
No Quadro 19, demonstramos, em conformidade com as informações concedidas
pelos poetas entrevistados, que a indicação da autoria costumava estar disposta na capa, no
interior do folheto (no início ou final) e, em alguns casos, na contracapa.
147

Quadro 19 – Indicações de autoria nos folhetos produzidos pelos poetas

Nomes dos poetas

Indicação de
Paulo Val Diosman Jailton
autoria nos J. Borges Zé Guri Total
Pereira Tabosa Avelino Pereira
folhetos
Insere o nome
do autor na X X X X X X 6
capa
Insere o nome
do autor no
X X X X X X 6
interior do
folheto
Inclui lista com
principais
obras do autor X 1
na quarta capa
do folheto
Faz ou
pretende fazer X X X 3
uma biografia
Total por poeta 2 3 3 3 3 3 16
Fonte: A Autora (2017)

No que se refere às indicações de autoria dos cordéis, todos os poetas (os seis
participantes entrevistados) disseram inserir o próprio nome (ou o nome artístico), por
extenso, na capa, e no interior do folheto (no início ou no final do texto). Metade dos
entrevistados (3) reportou-se ao uso de biografia, tendo já sido empregada nos impressos ou,
ainda, pretendendo utilizá-la em publicações futuras. A totalidade dos participantes (6)
também conseguiu indicar essas informações no próprio folheto.
No bojo dessa discussão acerca da autoria, encontramos no único folheto de Paulo
Pereira ao qual tivemos acesso uma biografia do autor (FIGURA 5), mas durante a
entrevista ela não foi mencionada pelo poeta.
Figura 5 – Terceira capa do folheto A caveira e o viajante
148

Fonte: Folheto de Paulo Pereira [200-].

Todavia, é importante ressaltarmos que não realizamos nenhuma pergunta específica


sobre o uso da biografia, mas quando nos voltamos para a questão da autoria, os poetas Zé
Guri, Jailton Pereira e Diosman Avelino constantemente referiam-se a ela. Para além do
gênero biografia, os seis folhetos que analisamos dos depoentes continham propaganda (3) e
acróstico (1) e, como expresso pelos cordelistas, a identificação do autor, principalmente, na
capa, contracapa e no interior dos folhetos. Percebemos a pertinência desta colocação
quando observamos as falas desses poetas:

Eu só coloco mesmo isso, o nome por extenso aqui [na capa] e aqui [dentro
do folheto]. Na capa eu coloco J. Borges porque a capa do cordel é
pequena. Então, não dá para eu colocar o nome todo cortado na madeira:
José Francisco Borges. [...] A gente coloca o nome que é para identificar
quem fez. É como você pegar um CD: se não tiver o nome do artista você
fica sem saber quem produziu. Colocar o nome é até uma forma de
divulgar quem fez, porque se não tiver o meu nome, como vão saber? (J.
Borges).

Aqui, em algumas obras, era pra ter uma pequena biografia sobre... Aí, isso
eu até conversei com o rapaz que faz as impressões pra mim, porque em
breve acho que não terá mais. Nas próximas impressões eu vou mudar: ao
invés de colocar algumas obras, eu vou colocar uma pequena biografia,
porque muita gente me pergunta isso, e às vezes é bom (Diosman
Avelino).

Nos meus eu coloco a biografia: tenho livros publicados, fiz tal coisa, moro
em tal lugar e uma foto geralmente atrás. Na frente coloco o título e o meu
nome na frente, na capa [aponta para um cordel]. Antes tinham cordéis que
não tinham informações do autor, mas hoje todos têm. Hoje, os autores se
preocupam em dar essa informação. (Jailton Pereira).

A gente coloca no final o nome do autor e também coloca a biografia. Eu


nunca faço a biografia não nos cordéis, mas é interessante pra você saber
149

quem foi que construiu. Agora, nessa nova geração do cordel, eles sempre
escrevem uma biografiazinha. Esse meu não tem não. Não, não escrevo
nada de biografia. É só o autor e pronto. Do jeito que era antigamente,
assim, olha [ele mostra um cordel]. Os folhetos que agora é cordel, mas
antigamente não tinha nada no autor. Informação não tem não, mas o nome
tem. Olhe aqui, ó [mostra a capa de um cordel dele]. Também tem aqui
[dentro do cordel]. Do jeito dos outros. Aqui também tem a minha
propaganda [ele mostra o verso do cordel]. Alguns têm a data. Esse aqui é
13(treze) do 12 (doze) de 2013 (dois mil e treze). Quando eu termino eu
coloco a data assim (Zé Guri).

Por sua vez, não podemos ignorar, como endossado por Val, que a menção ao autor
da obra pelo leitor é uma questão mais ética do que, propriamente, uma obrigação.

Tanto na capa tem o nome do autor como também no término do poema a


gente coloca o nome do autor. Isso é mais ético do que obrigatório. Porque,
às vezes, a gente vê assim até poetas que declamam uma poesia que não
são deles e não dizem, né? Por exemplo, eu sei decorados dois poemas que
não são meus, mas eu faço questão, quando eu declamo esses poemas...
depende do ambiente onde a gente esteja, de dizer que não são meus e
dizer a origem. Então, se você pega um poema como o cordel, é uma coisa
leve que até o vento pode levar, se encostar em qualquer esquina, [alguém]
ler, achar interessante, mas não tem o nome do autor, A pessoa jamais vai
saber quem foi que fez. A gente tem que deixar registrado o nome e a
criação (Val Tabosa).
Gaudêncio, Dias e Albuquerque (2015) advertem que, historicamente, os poetas de
bancada conviveram com problemas de plágio, principalmente porque os donos das
tipografias contratavam cordelistas que não dispunham de recursos financeiros para
publicar, distribuir e comercializar os folhetos. À medida que eram impressos, o proprietário
da tipografia pagava ao escritor pelo cordel, possuindo, por sua vez, o direito autoral da obra
que o permitia suprimir o nome do autor ou substitui-lo por seu próprio nome (ABREU,
2006).
Galvão (2000, p.120) reitera que, ao adquirir os direitos de uma obra, o “‘editor-
proprietário’ pode, pelo acordo feito, omitir ou até mesmo modificar a autoria do folheto”,
mas, ao passo que o cordel se “populariza”, a questão da autoria e propriedade passa a ter
cada vez menos importância.
Em suma, a apropriação indébita dos folhetos parece não ser mais uma das
preocupações dos cordelistas. Destarte, Marinho e Pinheiro (2012), por exemplo, aludem
que os problemas relativos à autoria dos cordéis já não existem nos dias de hoje e
acreditamos que isso se deve, dentre vários motivos, porque alguns cordelistas têm recorrido
a repositórios digitais ou registram suas obras.
150

5.1.4 O suporte de circulação dos cordéis

Segundo Marcuschi (2003b), todos os gêneros, tanto orais quanto escritos, possuem
suporte por meio do qual eles conseguem circular na sociedade. Entretanto, Costa (2008)
defende que existe uma grande variedade de gêneros orais para a qual a categoria “suporte”
não se aplica, tal como há gêneros que podem possuir diferentes suportes. Por isso, como
acentua a autora, tem sido preferível restringir a ideia de suporte aos gêneros escritos e
multimodais.
Mediante essas considerações preliminares, não poderíamos deixar de discutir a
relação do gênero cordel com os suportes nos quais os textos são fixados e circulam
socialmente, embora essa associação entre os gêneros discursivos e os seus suportes ainda
seja um tema complexo e a distinção entre ambos não seja simples (COSTA, 2008;
MARCUSCHI, 2003b). Com efeito, atualmente, os pesquisadores têm preferido nomear o
gênero “cordel” e atribuir o nome “folheto” ao suporte no qual o gênero é veiculado,
justamente com o intuito de diferenciá-los.
A fim de compreendermos os conhecimentos que os poetas tinham do gênero que
produziam e dos suportes que permitiam sua circulação, as seguintes indagações guiaram-
nos nesta análise: “Todo cordel precisa ter este formato (apontamos para um folheto)? Por
quê?”. Reunimos as respostas dadas pelos depoentes em dois grupos: aqueles para os quais
o cordel teria que estar disposto apenas no folheto (suporte) e aqueles que entendiam que o
cordel poderia estar em outros suportes para além do folheto (QUADRO 20).

Quadro 20 – O suporte do gênero cordel segundo os cordelistas


Nomes dos poetas

Relação gênero Paulo Val Diosman Jailton


J. Borges Zé Guri Total
e suporte Pereira Tabosa Avelino Pereira
O cordel deve
ser apenas
X X X 3
disposto no
suporte folheto
O cordel pode
estar presente
em outros X X X 3
suportes para
além do folheto
Fonte: A Autora (2017)
151

Como pode ser observado no Quadro 20, metade dos participantes entrevistados (3)
ressaltou que o cordel deveria estar disposto apenas no suporte folheto. Costa (2008) advoga
que se costuma estabelecer uma relação metonímica entre o gênero cordel e o suporte, numa
espécie de interligação tão estreita que faz com que muitas pessoas usem o mesmo nome
tanto para o gênero quanto para o suporte. Ficou saliente, na visão desses poetas, que, no
caso do cordel, o gênero e o suporte se fundiam, eram inseparáveis, conforme materializado
neste enunciado:

Tem que ser esse formato de livreto. Se não for, aí não é cordel. A origem
do cordel vem de cordão, que eram onde as pessoas expunham as
literaturas de cordéis feitas bem rudemente, pois não tinha gráfica, mas se
fazia com os tipos móveis ainda - é um processo bem antigo que os jornais
usavam. Então, como eles não tinham umas prateleiras ou estantes para
exporem nas feiras, se pendurava nos cordões. Daí o nome cordéis, que
vem de cordão. Então, essa tradição não pode ser perdida. Quando a gente
tira esse formato de livreto, aí ele passa a ser um livro de poesias ou um
poema normal em folha de papel ofício. Se eu pegar o conteúdo e colocá-
lo em uma única folha de ofício, ele deixa de ser cordel. Ele é um poema
em outro tipo de grafia. É um poema no livro, por exemplo. Pronto, eu
tenho quatro poemas em um livro. No livro de Dorge Tabosa, eu escrevi
quatro poemas que estão no livro dele. [...] Ficou um poema bom, mas não
é no cordel. Se eu quiser, e eu ainda vou fazer, porque esse poema eu não
botei num cordel ainda, eu posso botar ele no cordel. Aí, ele passa a ser um
cordel. Mas, até então, ele é um poema dentro de um livro que fala de
poesias (Val Tabosa).
Hoje, no entanto, temos nos deparado com outras realidades, diferentes daquela do
cordel tradicional, pois este gênero tem aparecido, por exemplo, na tela do computador, nos
livros, em revistas etc. Chartier (1999) argumenta que, com a revolução dos suportes
ocasionada pelos avanços tecnológicos, modificaram-se radicalmente as formas de recepção
dos textos (os modos de ler) e os modos de escrever dos autores. De acordo com o referido
autor, um texto, em dado suporte textual, já não é mais o mesmo, caso seja modicada a base
em que ele é fixado (suporte).
Com a passagem do códice ao monitor, emergiram novos modos de escrever, de ler
e compreender uma obra literária. A tela do computador, certamente, impôs uma nova
relação física, intelectual e estética com o texto, mas isso não significou, de modo algum, o
desaparecimento do impresso ou da cultura manuscrita (CHARTIER, 1994). Ao referir-se a
outros gêneros vendidos pelos folheteiros durante o início do século XX, J. Borges afirmou
que

Em uma folha não é cordel, se chama canção ou poema. Vendia-se mesmo


assim. Só o poema mesmo. Tinha muitos sobre vaqueiros, sobre amor... É
mais coisa de amor mesmo. Ele é escrito da mesma forma que o cordel, os
152

versos são os mesmos, só que a maioria é em assunto de amor e tinha


muito sobre vaquejada, a vaquejada do Sertão, a morte do vaqueiro... Eles
inventavam alguma coisa e escrevia só uma página assim. Tinha umas
grandes, mas a maioria era só meio ofício assim. Esse era o tamanho ideal.
Tinha o título, o nome do autor e tinha os versos todinhos contando a
história (J. Borges).

Como explica Ayala (2016), nos anos de 1970/1980, os poemas e as canções eram
produzidos a partir de recortes de papel das capas dos folhetos que sobravam nas gráficas e
eram vendidos nas bancas das feiras e mercados pelos folheteiros. Os poemas e as canções
eram, portanto, narrativas de curta extensão, diferentemente dos folhetos. Essa é uma das
razões pelas quais alguns poetas consideraram que o cordel não poderia ser escrito em uma
única folha, estando desvinculado do seu suporte prototípico (COSTA, 2008), e classificado
os poemas e as canções como espécies relacionadas ao gênero cordel, por ambos
apresentarem semelhanças nos esquemas de rima e métrica.
Por que isso aqui é a capa do cordel e tem que ser assim o cordel. Tem a
xilogravura, tem que ter o nome do autor, o título daquele cordel. Você tem
que fazer o cordel, fazer a capa na medida certa. Eles fazem assim: dobram
aqui, dobra aqui, aqui assim e corta. O cordel você tem que fazer a
xilogravura, o nome do autor e o título daquele cordel também (Paulo
Pereira).

Como temos vindo a sustentar, atualmente, o cordel possui suportes extremamente


variados, já que encontramos textos desse gênero em livros, revistas, facebook, sites da
internet, etc. Porém, concordamos com Marcuschi (2003) sobre a preferência dos gêneros
por algum suporte específico. No caso do cordel, o suporte tradicional é o folheto. Os
poetas Val Tabosa, J. Borges e Paulo Pereira entendiam que essa tradição devia se manter
pura e autêntica para que não pudesse se perder.
Sob outra perspectiva, os depoentes Diosman Avelino e Jailton Pereira expressaram
que o suporte era apenas o “portador” do texto. O folheto era “mais para ser comercializado,
e se não tiver nesse formato, se esse texto aqui estiver em quatro folhas dessas aqui, ele é um
cordel, não deixa de ser. Aqui é uma literatura de cordel, mas aqui ele é um folheto de
cordel”, disse Diosman. Em sentido complementar, Jailton e Zé Guri argumentaram:

Esse aqui quando foi lá para o concurso só foram as folhas mesmo


dentro do envelope. Aí, depois foi que a produção, quando selecionaram os
ganhadores, fez ele fechadinho. Agora, se você quer vender como cordel é
legal que seja assim em livreto. Esse aqui que eu fiz em uma folha é cordel,
ele não deixa de ser cordel de jeito nenhum. Esse negócio do cordel é pela
aquela questão cultural de vender no cordão, das feiras. Aí, não deixa de
ser uma poesia de cordel, porque não está assim, não deixa de ser não. É
literatura cordel, porque ficou popularmente conhecida dessa forma.
Poderia ser poesia popular ao invés de cordel, mas como é o nome que as
153

gerações, há gerações usam cordel, aí ficou. Não sou contra falar: “Olha
aqui o meu cordel”. E, de repente, ele me dá uma folha dessa. Vou ler
tranquilamente como cordel mesmo (Jailton Pereira).
O cordel de uma página, como eu disse, é poema ou canção e que é cordel
também. Mesmo sendo uma página é cordel porque tem o verso da poesia,
é o mesmo autor, sabe? Só que a diferença é que tem canção, poema.
Antigamente, tinha outro menor ainda que era o soneto. Soneto, canção,
poema pode colocar com cordel, porque são tudo da mesma bagagem, tudo
é poesia. O cordel quer dizer aquilo que pendura no grampo, no pegador de
roupa, no cordão. É o cordel. Aí, é a mesma coisa. Tanto faz ser grande
quanto pequena. É tudo cordel (Zé Guri).

Reconhecemos que o suporte condiciona a relação do leitor com o texto, entre o


escritor e o texto e entre o escritor e o leitor: o mesmo cordel impresso ou inserido no site de
internet será lido de modos diferentes. Assim, “O gênero e o texto são os mesmos, mas a
relação com o leitor é diferente em um ou outro caso” (COSTA, 2008).
Os cordelistas com mais idade (J. Borges, Zé Guri e Paulo Pereira), também,
mencionaram que houve uma diminuição no número de páginas, sobretudo em comparação
a décadas passadas, em que se publicavam folhetos bastante extensos. No que toca, em
particular, ao número de páginas, J. Borges asseverou:

Olhe, cordel sempre tem páginas pares: 4 páginas, 8, 16, 24, 32. Os cordéis
são mais publicados nesses números. Agora, existe com 40 páginas, com
48, existe com 62, mas existia. Existe, mas não é mais publicado hoje,
porque esses grandes assim não são mais vendidos (J. Borges).
Como já dissemos, o número de páginas dos folhetos é par devido ao fato de que a
folha de papel dobrada em quatro forma um folheto de 8 (oito) páginas, duas folhas
dobradas compõem um de 16 (dezesseis) e assim por diante. Têm-se prevalecido folhetos
curtos, de 4 (quatro) e 8 (oito) páginas. Como informa Abreu (2006a), o número de páginas
não influi apenas no tamanho do folheto, mas determina também os temas dos escritos. Para
a autora, os folhetos de 8 (oito) páginas destinam-se aos assuntos do cotidiano, os fatos
jornalísticos, bem como os desafios e pelejas. Aqueles com 16 (dezesseis) páginas ou mais
são chamados de romance. Quanto a esta questão, Paulo Pereira se pronunciou assim:
Tem de 8, tem de 16 e tem de 32. O de 16 já é romance. Esse aqui só são 8,
olhe. Aqui é 8 páginas, são 24 estrofes. Aqui: uma, duas, três, quatro, cinco,
seis, sete, oito. É 8 sem contar a capa e a contracapa; só conta o miolo. Isso
aqui é pra você saber o título, saber o autor. Romance é 32 e tem de 36
também. Essa do Ipojuca eu não sei. Essa do Ipojuca não é cordel não, é uma
poesia. Não é em formato de cordel, porque ele tem parte mais e parte
menos. Tem estrofe maior e estrofe menor. Aí, não é cordel, é uma poesia
(Paulo Pereira).
154

É mister enfatizar que as delimitações no número de páginas referem-se às


publicações dos cordéis no suporte folheto. A restrição das páginas não é, portanto, um
elemento definidor do gênero, como já o demonstramos.

No mínimo 8 páginas agora, né? E acabou-se, eu acho, com 42. Não tem
mais. Com 32 ainda existe. Só que os clientes quando chegam não querem
mais de 32, querem do menor que é pra aprender, pra dar tempo ler e tal.
Trinta e duas páginas é um livro que poderia ser outra coisa melhor ou mais
do que cordel, porque os leitores não querem ler de uma vez só como a gente
lia antigamente. Só que, assim, tem cordel com uma página só, mas ele não é
considerado folheto. Tem uma divisão, mas pode ser cordel, porque é verso,
é poesia (Zé Guri).

Os poetas com mais idade (J. Borges, Paulo Pereira e Zé Guri) não faziam uso da
internet, a não ser quando recorriam a pessoas que digitavam os cordéis e os imprimiam. Por
outro lado, os mais jovens (Val Tabosa, Diosman Avelino e Jailton Pereira) mantinham
outras relações com as tecnologias digitais, utilizando-as inclusive como meio para obter
informações diárias, divulgar eventos, participar de grupos de poetas, compartilhar cordéis
através do facebook, blogs, entre outros.
Para Lucena (2016), as mudanças dos suportes representam uma tentativa de
introdução da literatura de cordel no mercado editorial brasileiro, nos estudos acadêmicos e
de emponderamento dos poetas por outras novas formas de publicação que extrapolam os
folhetos.

5.1.5 Conteúdo temático

Optamos por inserir o conteúdo temático nos aspectos sociodiscursivos do gênero


por compreendermos que “o que se diz” está vinculado ao “para que” e “para quem se diz”.
O conteúdo do dizer é, pois, influenciado pelas condições de produção discursiva
(interlocutores; propósitos comunicativos; suporte). Ramos e Pinto (2015) declaram, com
isso, que são de mais valia os estudos que se voltam às peculiaridades do cordel e às suas
finalidades de comunicação do que aqueles que pretendem apenas apresentar um sistema de
classificação temática deslocada do contexto de produção.
Por conseguinte, não buscamos apresentar uma listagem de temas presentes nas
produções literárias dos poetas, pois reconhecemos que as temáticas são diversas e derivam,
em geral, da vivência particular de cada autor. Por certo, essa questão da classificação
temática no âmbito da literatura de cordel despertou o interesse de muitos pesquisadores ao
longo dos anos. Entretanto, Santos (2007, p.32) tem advertido, com certo teor de denúncia,
155

que muitos desses estudos que procuram demostrar os temas recorrentes nos cordéis na
realidade têm como pretensão “mostrar, exoticamente, que, apesar de o autor popular ser um
homem simples, preocupou-se com temas os mais diversos, como se estivesse descobrindo o
mundo e seus semelhantes, emergindo das trevas profundas da ignorância”. Ademais, os
critérios utilizados para a classificação dos cordéis por “ciclos temáticos” são bastante
imprecisos.
Propomo-nos, à vista disso, refletir sobre os conteúdos temáticos dos cordéis que se
relacionam tanto com o nível sociodiscursivo quanto com o nível linguístico, sem a intenção
de enumerar todos os temas. Ao tratarmos, nesta seção, sobre conteúdo temático, não
estamos nos referindo ao assunto específico de um texto, “mas a um domínio de sentido de
que se ocupa o gênero” (FIORIN, 2006, p 62). Tais proposições fizeram-nos perscrutar os
seguintes questionamentos: “Que assuntos podem ser abordados em um cordel?”, “Qual o
assunto desse cordel?” e “Você costuma realizar alguma pesquisa sobre o tema do cordel?
Onde? Por quê?”.
Os poetas verbalizaram inúmeros temas que dificultaram qualquer tentativa de
categorização. Desta feita, concordamos com Ramos e Pinto (2015, p.54) acerca de que as
classificações do cordel orientadas pelo tema agem no nível do gênero onde mais
vigorosamente atuam as forças de expansão, responsáveis pelas inovações, o que “torna
praticamente impossível qualquer busca de classificação mais sedimentada e/ou definitiva”.
Existe uma grande variedade de temas dos cordéis, como, aliás, já sublinharam estes autores
e que foi reconhecida pelos próprios cordelistas, como ficou evidente neste extrato da
entrevista:

Olhe, os meus temas são variados. Eu faço falando em floresta, em


animais, o que aconteceu no dia-a-dia. É você querer fazer. Faço de quem
leva gaia, de quem bota gaia, dos passarinhos, do rio Ipojuca, de amor, de
brincadeira...[...] Você pode falar na fundação de uma escola, você pode
falar numa feira, você pode falar numa vizinha ruim, qualquer tema você
pode fazer cordel. Qualquer tema dá cordel. Você vai a uma viagem,
gostou daquela viagem, aí você vai escrever um cordel sobre aquela
viagem que você fez mostrando como aconteceu (o que você comeu, por
onde você andou, onde você dormiu...). O cordel é uma leitura importante.
Você tem um namorado, marido ou se separou, aí você pode fazer um
cordel sobre separação. Tudo dá cordel. A questão é você saber a métrica, a
rima e a oração, sem fugir daquele assunto (Paulo Pereira).

Todos os poetas (6) conseguiram identificar os temas dos seus cordéis rapidamente
quando perguntamos “qual o assunto desse cordel?”. Os folhetos, em geral, abarcavam duas
linguagens, a verbal e a visual, que permitia o acesso imediato, por parte do autor e leitor, do
156

tema do texto. Para melhor firmar o expresso, destacamos, a seguir, algumas falas
consoantes este entendimento:

O assunto desse aqui é “A solidão da donzela e a precisão da viúva”, como


tá no título. É solidão da donzela, porque ela só, né? A viúva sozinha
também, já é parecida uma com a outra. A donzela mora mais o pai e tal,
mas na base do marido ela é sozinha. No caso da viúva, ela pode estar com
quem for, mas é sozinha também. Aí, eu bolei aqui uma história da solidão
da moça e da precisão da viúva que são quase iguais (Zé Guri).

Pensa bem, se você...Veja aqui. Dá uma olhada pra o tema e pra essa capa,
o que é que você imagina que é o maior trauma do Nordestino?... É a seca.
É exatamente isso. Por isso, a importância da imagem. A imagem já retrata,
né? (Diosman Avelino).

Posto isso, atestamos ainda que a escolha dos temas, por parte dos poetas, dependia
da finalidade e dos objetivos que queriam alcançar, bem como do público-alvo que se visava
atingir.

Tem vários segmentos na poesia, por exemplo, tem movimentos


escolares em que os professores nos convidam para que a gente
possa dar uma aula de poesia. É como se fosse uma aula meio show,
que serve para mostrar como se fazer um cordel, mas também se
escuta as poesias declamadas. Então, nesse público se tem
professores e alunos. Os alunos, geralmente, na fase jovem e também
tem os alunos do EJA. Ontem à noite, nós fizemos uma apresentação
assim. E também tem encontros de poesia com cantadores de viola.
Aí o público já é bem diferente. Não são estudantes, não são
professores, mas são apologistas, que são aquelas pessoas que
curtem e gostam da poesia. Ai é um público que, com certeza, os
aplausos são garantidos. Os cordéis que faço e recito dependem do
público. Pronto, ontem mesmo nós fomos para escola e lá eram
estudantes e a professora de português que estava lá. Então, eu fiz
um poema que fala da língua portuguesa e esse é o lugar ideal para
recitar essa poesia. Como eu gosto muito de ler a bíblia, nós somos
convidados a dar palestras em movimentos religiosos e nesses
movimentos religiosos eu uso muito poesias religiosas que prende
muito a atenção. [...] Aí, o poder da poesia é esse. É muito
interessante, porque o poder da poesia desperta a curiosidade nas
pessoas (Val Tabosa).

A abordagem de um tema requeria, do autor, o domínio das informações das quais


iria tratar no texto. É relevante ressaltar que ainda que todos os poetas tenham declarado
fazer algum tipo de pesquisa sobre os temas dos cordéis (nomes de pessoas, descrições de
lugares e outros) com o objetivo de melhor conhecê-los, apenas os poetas mais escolarizados
recorriam à internet para estes fins, já que o acesso à informação na internet é mais fácil.
157

Qualquer um. Qualquer assunto você pode falar dele. Agora, nem todo
poeta pode falar de qualquer assunto. Aí é diferente. Tem que ter
conhecimento dele. Se você me disse assim: “Me fale do computador”. O
que é que vou dizer? Vou dizer que tem um monitor, tem um CPU e vou
terminar por aí, porque eu não sei desmanchar um computador e nem
montá-lo. Então, pra que você fale, você tem que conhecer. Então, pra
fazer esse poema vou ter que estudar, vou ter que pesquisar, vou ter que...
Por isso que eu digo que um poema você pode fazer com qualquer assunto,
mas nem todo mundo pode fazer, porque tem que ter conhecimento. [...]
Quando a gente pega um tema, às vezes, eu procuro na internet. Hoje, o
livro a gente não usa mais, né? A internet está tão fácil. Por exemplo, eu
participei de um concurso de literatura de cordel falando sobre o Nordeste.
Então, eu pesquisei na internet os pontos principais, as culturas de cada
estado do Nordeste. Então, eu não tinha conhecimento, mas a internet
favorece muito. Aí, quando você tem a história, você pega os fatos e coloca
a rima nos fatos. Tem também o estilo da poesia, né? (Val Tabosa).
Seguidamente, perscrutamos os poetas sobre os cordéis contarem ou não uma
história: “Todo cordel conta sempre uma história? Por quê?” e “Esse cordel conta uma
história? (não sendo uma história, o que é esse cordel?)”.No Quadro 21, reunimos as
resposta dos poetas para esses questionamentos.
Quadro 21 – Caráter narrativo ou não dos cordéis
Nomes dos poetas

Caráter dos Paulo Val Diosman Jailton


J. Borges Zé Guri Total
cordéis Pereira Tabosa Avelino Pereira
Os cordéis não,
necessariamente,
X X X X X 5
se tratam de
histórias.
Os cordéis sempre
X 1
contam histórias
Fonte: A Autora (2017)

Dois tipos de respostas foram dados ao primeiro questionamento, a saber: 1) entendia


que havia cordéis que se tratavam de histórias e outros que não e 2) compreendia que todos
os cordéis referiam-se a histórias. Para quase todos os cordelistas, com exceção de Paulo
Pereira, no cordel não vigorava apenas a narrativa, pois existiam outras formas de expressão
que escapam a essa estrutura, a exemplo das pelejas e abecês.

Às vezes não é uma história. Eles vão informando em algumas estrofes,


mas sem ter uma história definida com começo, meio e fim. Vai falando
das coisas, mas não tem sequência. Então, não precisa ser uma história até
o fim. Pronto, posso dar um exemplo. Pode ser um cordel sobre a feira,
mas eu posso falar do ambulante. Não é obrigado contar a história da feira,
assim. É tipo uma reportagem. Uma reportagem nem sempre conta uma
história, às vezes ela apenas denuncia... Sobre a questão crítica, o cordel
158

pode ser também pra denunciar algo. [...] Acho que se encaixa aí o cordel
“Nosso Brasil é assim”. Aí, é uma parceria minha com Dorge.

No Brasil que eu vejo todo dia


Tem sem terra, conflito e tem ladrão
Crianças sem ter educação
Que padecem com fome e agonia
Tem mendigo em toda periferia
Mas tem gente ricaça bem contente
Que pro pobre só olha indiferente
Duvidando da sua honestidade
Pois são poucos que tem capacidade
De um gesto bondoso e consciente

Tem um povo que luta bravamente


Que trabalha no sol, vai pro roçado
Mas tem sempre um bandido deputado
Que não está nem aí pra essa gente
Esse é bom e muito competente
Quando é pra roubar nosso povão
Emprego só dá ao seu irmão
Ele é rei se tratando de egoísmo
Sabe bem praticar o nepotismo
E que se dane o futuro da nação

No meu modo de ver, eu não estou contando uma história, eu estou


fazendo uma análise do contexto e dando umas agulhadas necessárias. Eu
acho que pode ser dessa forma. Pode-se fazer uma análise, pode criticar e
não só contar histórias. O que são histórias? Geralmente, gracejo, porque
começa com um personagem e conta até o fim o que foi que aconteceu.
Geralmente é assim. Aí, tem as histórias reais com as pitadas inventadas e
tem as que são inventadas mesmo, só pra fazer graça mesmo. O cordel em
si é gracioso, mas não é necessário que ele seja uma história verídica. O
poeta pode usar e abusar (Jailton Pereira).

A narração é um tipo de texto que apresenta uma sequência de fatos, reais ou


fictícios, nos quais os personagens atuam em um determinado tempo e espaço. Detendo-se,
também, a essa questão, Santos (2009) explica que, embora a narratividade seja
predominante nessa literatura, ela é não é determinante para classificar se um texto é ou não
cordel. Esse entendimento parece se diferenciar do relato de Paulo Pereira, que pode não
dominar suficientemente o termo metalinguístico “história”. O próprio exemplo que ele
fornece (do pai) não remete a uma história.

E num é contando aquilo que aconteceu? É uma história. O cordel é


contando o que acontece, uma história. Digamos, você tem seu pai, você
ama o seu pai, aí pode fazer um cordel privilegiando o seu pai. Aí, você vai
fazer um cordel só falando em seu pai, no amor que ele lhe dedica, que
dedica à família, dizendo: meu pai é assim... , meu pai foi assim... Aí faz o
cordel (Paulo Pereira).
159

Partimos do entendimento de que um texto narrativo pode conter elementos da


descrição ou argumentação, mas sem perder as características predominantes da narrativa.
Galvão (2006), ao analisar 8 (oito) folhetos, evidenciou que a maioria das histórias tinha
características de narrativa e, mesmo aqueles que não contavam uma história, dedicavam
grande parte do texto à narração. Eram poucos os casos em que as estrofes apresentavam
descrição ou análise de um fato.
Por fim, não podemos desconsiderar que no cordel há, em certa medida, uma relação
de dependência entre forma e conteúdo temático. Assim, forma e conteúdo são elementos
interdependentes, embora cada um desses mantenha características próprias. Focaremos nos
aspectos composicionais do gênero na seção seguinte.

5.2 Os conhecimentos verbalizados pelos poetas sobre os aspectos composicionais do


gênero cordel

Existem princípios sócio-historicamente constituídos e regras específicas que


norteiam a escrita de textos do gênero cordel. Segundo Abreu (2006) e Terra (1983), é desde
o final do século XIX e início do século XX, mais precisamente na década de 1920, que se
começam a definir as características formais dessa literatura. É nesse período também que se
estabelece no Brasil o processo de edição, comercialização e a formação do público
leitor/ouvinte dos cordéis.
Apesar de o início da publicação mais sistemática dos folhetos nordestinos ser
atribuído ao poeta Leandro Gomes de Barros, no século XIX, é somente no começo do
século seguinte, como já dissemos anteriormente, que o poeta e editor João Martins de
Athayde introduz inovações na impressão dos folhetos. Através desses poetas foram fixadas
as regras de criação poética e de impressão (GALVÃO 2006).
Para todos os cordelistas que entrevistamos é, justamente, a obediência às normas de
métrica, rima e oração que definem um “bom” cordel. Este foi um dado também presente
nas entrevistas etnográficas realizadas por Resende (2010), entre 2002 e 2004, com diversos
cordelistas e editores. Corroboramos ainda com esta autora acerca de que a criação de
padrões fixos para as estruturas estróficas, rímicas e métricas auxilia na composição dos
cordéis e permite que os versos sejam memorizados com maior facilidade, tanto pelos
leitores/ouvintes quanto pelos próprios poetas. Dessa maneira, Abreu (2006b) observa que
estas regras, ao invés de se constituírem como amarras, são necessárias para a criação dos
160

versos. À luz dessas considerações, vejamos, no fragmento da entrevista a seguir, o que


disse o poeta Val Tabosa:
Entrevistadora: Para o senhor, o que é necessário que um texto tenha para ser
considerado um bom cordel?
Val Tabosa: Rima, métrica e oração. Rimas são as terminações das palavras. Tem
rimas fonéticas e as rimas consoantes. [...] Também tem a Oração. A oração é o
enredo, é a história. Às vezes, você pode fazer várias rimas, mas não ter conteúdo
agradável. O que vai acontecer na próxima estrofe, né? Então, isso é a oração. Outra
coisa importante no cordel é a metrificação. Na metrificação é importante as sílabas
de cada verso. O verso é a linha. Uma linha. Então, a gente constrói o verso em sete
sílabas e em dez sílabas. Às vezes passa uma, mas tem a consideração da sílaba
poética. Ela deve ser a tônica ou a sílaba poética [...].

Notamos, neste excerto do depoimento de Val, que a rima, a métrica e a oração


constituem aspectos essenciais do gênero, isto é, a sua “superestrutura”. Para todos os
entrevistados, os textos que não obedecem, simultaneamente, essas três regras não podem
ser considerados literatura de cordel, mesmo que sigam isoladamente uma ou duas delas.
Esse tripé (rima, métrica e oração) que sustenta o gênero, embora faça parte do discurso
“oficial” dos poetas, foi descrito por eles com maior ou menor grau de detalhamento. J.
Borges, Val Tabosa e Jailton Pereira, por exemplo, pareceram fornecer respostas mais
elaboradas, exemplificando os fundamentos do cordel – excetuando a métrica, no caso de J.
Borges. Alguns participantes, inclusive, demonstraram mais facilidade de explicitar
verbalmente as regras de rima do que, propriamente, aquelas que envolviam a metrificação.
Diante disso, nas próximas subseções, discutiremos sobre a estrutura composicional
do gênero com base nas verbalizações dos cordelistas. Reconhecemos, conforme Ferreira e
Spinillo (2003), que refletir sobre a estrutura do texto é uma atividade complexa, pois
demanda uma ação deliberada a respeito da sua forma e organização, dado que, quando
conversamos ou escrevemos um texto, nem sempre refletimos, deliberadamente, sobre a
estrutura ou a função da língua da qual estamos fazendo uso por termos a impressão de que a
linguagem flui automaticamente, sem maiores esforços. Nessas situações, pouca importância
é atribuída à estrutura interna do texto, ao modo como ela está organizada ou, ainda, pode
ser manipulada.

5.2.1 As rimas

Na presente seção, pretendemos demonstrar as verbalizações dos poetas acerca da


rima. Para tanto, indagamo-los do seguinte modo: “É necessário que todo cordel tenha rima?
Por quê?” e “Nessas estrofes, quais palavras rimam? Por quê?”. Como já anunciamos no
161

referencial teórico, a rima é uma das dimensões da consciência fonológica, que consiste em
uma habilidade metalinguística relacionada à reflexão consciente sobre as propriedades
sonoras das palavras, dissociando-as do seu significado, e à segmentação das palavras em
sons (SOARES, 2016).
Existe ainda uma discussão entre os pesquisadores acerca da consciência fonológica:
afinal, seria ela uma habilidade que aparece antes, durante ou depois do processo de
alfabetização? Soares (2016) explica que, para alguns estudiosos, certos níveis de
consciência fonológica, como a sensibilidade à rima, desenvolver-se-iam espontaneamente
nas crianças, e também em adultos analfabetos, como consequência do crescimento
linguístico e cognitivo, embora isso não signifique, necessariamente, que eles sejam capazes
de pronunciar os segmentos das palavras que as representam.
Concebemos, ainda, em consonância com a autora, que a rima tem, em português,
um duplo significado: no primeiro, de uso restrito, ela é entendida como uma unidade
intrassilábica que se soma ao ataque (onset)43 na constituição da sílaba (rima da sílaba); no
segundo, a rima designa a semelhança entre os sons finais de palavras (rima das palavras),
comumente a partir da vogal ou ditongos tônicos, mas também entre fonemas finais de
palavras oxítonas e entre uma ou duas sílabas finais das palavras. Nesta pesquisa, então,
voltar-nos-emos, especialmente, para esta segunda definição.
Na investigação conduzida por Roazzi e outros (1994), que buscou analisar as
habilidades de consciência fonológica entre sujeitos repentistas e não repentistas, foram
realizadas tarefas com 41 pessoas (sendo 22 repentistas e 19 não repentistas) de baixo nível
socioeconômico e que eram capazes de ler e escrever. Estas tarefas foram distribuídas em
três categorias, sendo estas: tarefas de controle (testes de inteligência e memória verbal);
tarefas de leitura (leitura e escrita de palavras) e tarefas de consciência fonológica (tarefa de
inversão de fonemas, tarefa de inversão de sílabas, tarefa de semelhança e detecção de rima
e aliteração, tarefa da língua do “P” e tarefa de produção de aliteração). Constatou-se,
através destas várias atividades de consciência fonológica, que houve diferenças
significativas entre os dois grupos apenas na atividade de inversão de fonemas e que os
repentistas se saíram melhor na tarefa de segmentação fonêmica do que os indivíduos não
repentistas.

43
Quando referimo-nos ao ataque ou onset em uma sílaba, estamos nos remetendo à posição silábica que
envolve os segmentos que precedem a vogal da sílaba. Usando como exemplo a sílaba “lar”, a consoante (l)
está na posição de ataque e a rima concerne a todos os segmentos que não englobam o ataque (ar).
162

Uma das explicações dadas pelo autor foi a de que a produção de repente exige dos
poetas uma capacidade de análise do final (rima) e global da palavra (métrica), o que os
levaria a ter uma consciência fonológica mais aprimorada. Dentre outras coisas, este estudo
também revelou a importância da leitura na detecção de rimas pelo grupo de não repentistas,
o que não ocorreu entre os repentistas, provavelmente por terem muita prática em lidar com
rimas, devido à própria profissão, resolvendo com maior facilidade esse tipo de tarefa.
Todos os cordelistas que entrevistamos (6) apontaram a rima como um dos
elementos determinantes para qualificar um texto como sendo do gênero cordel: “Se não
tiver rima, eu mesmo não considero cordel não” (J. Borges); “Todo cordel tem que ter rima,
porque é uma característica do cordel” (Val Tabosa); “Se não tiver, não é cordel. Alguém
pode chegar e dizer, o cara que faz, que é cordel, mas não é não. O cordel tem que ser uma
poesia popular. Poesia popular, se não tiver rima, não é poesia” (Jailton Pereira).
Em contrapartida, as justificativas dadas por eles sobre a necessidade de haver rimas
nos cordéis foram diferentes, o que nos permitiu agrupar as explicações em três categorias:
1) o texto que não contém rima é considerado prosa; 2) a literatura de cordel brasileira
apresenta rima, diferentemente da portuguesa, que não seguiria padrões de rima e métrica e,
por isso, não seria cordel em sentido estrito; 3) o texto que não apresenta rima não seria
cordel, mas não é apresentada nenhuma justificativa para isso. Tais dados podem ser
observados no Quadro 22 que segue:
Quadro 22 – Justificativas atribuídas pelos poetas para a necessidade de rima nos cordéis
Nome dos Poetas

Total
Paulo Val Diosman Jailton
Justificativas J. Borges Zé Guri
Pereira Tabosa Avelino Pereira
O texto que não
contem rima é
X X X 3
considerado
prosa
A literatura de
cordel brasileira
apresenta rima
X 1
diferente da
literatura de cordel
portuguesa
O texto que não
apresenta rima não
X X 2
é cordel

Fonte: A Autora (2017)


163

Na categoria 1, as justificativas de alguns poetas estavam direcionadas à rima como


elemento definidor do cordel e capaz de distingui-lo da prosa (gênero literário que não está
sujeito à rima).

Se não tiver rima eu mesmo não considero cordel não. Eu considero o


formato só, o formato que é de cordel, mas a escrita eu considero que é um
livreto de prosa, escrito em prosa (J. Borges).

A literatura de cordel, a cultura popular tem rima e se ela sair desse padrão
vai ser poesias eruditas como a de Mario de Andrade e a poesia de Cecília
Meirelles, que contam um conteúdo muito forte, mas não têm rima O que
não deixa de ser poema, mas não é cordel e, também, não é popular. É uma
coisa erudita, uma coisa mais profunda, para intelectuais. A rima é popular
e a cultura também, da tradição e da modalidade, aí é popular. Por isso que
o cordel é considerado uma cultura popular, diferente das poesias de Mario
de Andrade, de Câmara Cascudo, que são todos poetas renomados, mas
que as rimas passam bem longe deles (Val Tabosa).

Poesia popular, se não tiver rima, não é poesia. Ela pode ser outro tipo de
poesia, menos de cordel. Não pode ser poesia de cordel, não pode ser
repente, não pode ser toada, porque não rima. Eu nunca li não um cordel
sem rima. Agora que num concurso em que eu fui júri há um tempo, um
senhor fez. Era um senhor mesmo que eu cheguei até conhecer depois. Aí,
não tinha rima não. Ele até fez a sextilha, mas não tinha rima. Pronto! Já
não tinha chance nenhuma porque que eles elaboram um edital lá falando:
tem que ser assim e assim, obedecendo aos padrões métricos, de rima,
oração em geral. Aí, esse senhor fez assim. Ele fez um... Tipo a estrofe em
sextilha (estou citando a sextilha, por exemplo). Ele fez num
esquemazinho, mas não tinha uma rima não. Aí, não teve como... Porque
estava pedindo que fosse assim. Isso eu diria que é uma prosa. Aí, dizem:
“Um cordel pode ser em prosa?”. Pode, porque pode tudo desde que tu
queira fazer. Agora, eu não acho legal definir como um cordel, chegar e
vender junto com o de Jénerson, por exemplo, que tá falando… Ele tem
aquele sobre os estremeço no morro. Aí, eu chego com um que tá um texto
sem rima e botar lá no meio. Um é cordel e o outro é um texto em prosa. É
o meu modo de ver (Jailton Pereira).

A categoria 2, representada pela resposta de Diosman, voltou-se para a diferenciação


do cordel brasileiro e da literatura de cordel portuguesa. Reconhecemos, também, que o
cordel brasileiro possui formas fixas, rigidamente estabelecidas quanto à métrica, à rima e à
oração, diferentemente da literatura de cordel portuguesa, em que não há tal uniformidade
(ABREU, 2006).

Dizem que o cordel veio de Portugal, num sei o que e tal... Mas eu digo pra
você: pra mim, o cordel nasceu foi no Brasil. Acho que cordel é 100 %
brasileiro. Eu ainda não me aprofundei pesquisando, ainda não li nenhuma
literatura de lá, que seria um cordel de outro país, mas dizem também que
era sem métrica, era sem rima. Então, pra mim, se era sem rima não era
164

cordel. Pra mim o cordel é 100 % brasileiro. O cordel tem que ser nacional
mesmo, principalmente nordestino (Diosman Avelino).
Na categoria 3, observamos que alguns dos poetas (Zé Guri e Paulo Pereira) tiveram
dificuldade de verbalizar as razões pelas quais a rima era um componente substancial do
cordel, ainda que reconhecessem a sua importância. As palavras de Zé Guri e Paulo Pereira
que passaremos a transcrever ilustram tal afirmação:

O cordel é a poesia, poesia de cordel. Aí, se não tiver rima, não é poesia.
Tem de ter. Se tiver a rima pode ser cordel, mas... Esse aqui mesmo não é.
Esse aqui com o nome literatura de cordel [na capa] não é cordel mesmo.
Deixa eu ver aqui...Não rimou aqui SENHOR com FALOU, ENTROU.
Não está rimado não. LIBERDADE dá AMIZADE, BONDADE,
SAUDADE, CIDADE, mas COMPADRE só dá PADRE ou COMADRE.
Entendeu? Aí, botaram como cordel, mas não está rimado. É, mas não está
certo não (Zé Guri).

Se não tiver rima não é cordel. Tem que ter rima, metrificar. Olhe, é rima,
métrica e oração. O cordel tem isso tudo. Agora, você vai fazer um cordel
assim de doido, mas não tá certo. Você não pode botar uma palavra que
não rime direito. Você tem que rimar. Se não rimar na escrita, tá errado
(Paulo Pereira).
As declarações dos entrevistados permitiram-nos perceber duas tendências quanto
aos conhecimentos sobre a rima: aqueles que conseguiam explicitar verbalmente motivos
para que o cordel teria rima (categorias 1 e 2) e aqueles que não o faziam, apesar de
considerarem a rima como um elemento obrigatório na estrutura desse gênero (categoria 3).
Faz-se importante destacar, também, que algumas experiências eram comuns ao último
grupo de poetas: Zé Guri e Paulo Pereira trabalharam, quando jovens, como folheteiros,
apresentavam recortes etários bastante semelhantes (67 e 71 anos e, dentre os entrevistados,
eram uns dos que tinham menor tempo como produtores de cordel). Já J. Borges, Val
Tabosa e Jailton Pereira, ainda que pertencessem a diferentes gerações, tratava-se dos
cordelistas com maior tempo como escritores do gênero.
Além do aspecto salientado, notamos que, através das respostas à questão posta
“Quais as palavras rimam? Por quê?”, não havia discordância entre os cordelistas quanto à
importância da rima, inclusive para os poetas Zé Guri e Paulo Pereira. Os 6 (seis)
participantes entrevistados conseguiram identificar as rimas presentes no folheto de sua
própria autoria e apontaram a existência de dois tipos de rimas comumente utilizadas nos
textos do gênero cordel: rimas consonantes ou consoantes (correspondência total dos sons e
da grafia) e assonantes ou fonéticas (coincidência sonora desde a vogal ou ditongo tônico
até o último fonema, mas não gráfica). Extraímos das entrevistas algumas declarações que
nos parecem elucidar o que dissemos agora, como, por exemplo, o seguinte relato:
165

Rimas são as terminações das palavras. Têm rimas fonéticas e as rimas


consoantes. As rimas consoantes são as rimas que terminam com as letras
iguais. E as fonéticas... Por exemplo, eu digo MEL e digo CÉU, rimou,
mas a grafia é diferente. Se eu digo CORAÇÃO e digo AÇÃO, as rimas
são iguais, mas a grafia também é igual. Então, quanto mais as rimas forem
consoantes melhor, mas o que vale é a rima. As fonéticas são as rimas em
que a grafia é diferente, mas o som é igual, como eu dei o exemplo (CÉU e
MEL). Se escreve diferente, mas se rima igual. Isso é possível dentro da
poesia (Val Tabosa).

Na referida fala, percebemos que para Val Tabosa as rimas ideais são as consoantes,
ainda que os usos das rimas fonéticas fossem também possíveis no cordel. Na mesma
direção, Zé Guri nos explicou sobre as escolhas das rimas, tal como podemos evidenciar
neste trecho:

[...] Então, quer dizer que aqui foi três palavras rimadas [aponta para o
cordel]. Aqui chegou a CANTORIA pra rimar com VENTANIA. GURI,
CARIRI e ALI rima. CANTORIA rima com VENTANIA. Aqui eu botei
CORAGEM, VIAGEM e LAJE. Essa aqui é seis. Aqui é sextilha.
ALGUÉM rima com BEM. Essa parte aqui [a primeira linha] fica parada.
A segunda rima com a quarta e a sexta. Pra dar certo mesmo tem que
ser a escrita igual, porque quando não tá igual não rima não. O poeta
velho disse: “Você pra ser cantador tem de pegar um folheto do melhor que
tem e olhar os versos se rimam ou não rimam. Sabe?”. Aí, esse aqui é um
dos melhores (A donzela Teodora, de Leandro Gomes de Barros). Acho
que aqui é tropeçar ou é tropeço? É “torpeza”. E aqui é “acesa” e aqui é
“surpresa”. Todos eles são assim. É por que, às vezes, um “Z” como
“JOSÉ”... Num tem gente que bota um “Z” e outro bota um “S”? É um “S”
no som de “Z”. Tem letra que cabe. O “Z” tem vez que pega o “S”.
SUPRESA, ACESA e TORPEZA eu rimo. Se não tiver certo, então eu
não sei não. Tem muitas coisas assim, como JESUS com CRUZ. JESUS
eu rimo com CRUZ. Todo poeta rima com CRUZ, mas parece que a letra é
diferente. Ou não? Mas é rimado. Por que o som só não dá assim:
CANTOU e CANTOR, mas JESUS com CRUZ tá rimado. ACESA com
BELEZA ou MASSA com PRAÇA ou com CACHAÇA. Eu rimo tudo.
Se não tiver rimado, então tem pouca gente errado. Por que
CACHAÇA, PRAÇA, MASSA, FAÇA, TAÇA, muda a letra mas está
rimado. E se for pra rimar do jeito que a letra é vai ter pouco cabra
certo (Zé Guri).
Todos os poetas (6) pareciam, assim, reconhecer, implícita ou explicitamente, que as
rimas consoantes, por serem mais difíceis de serem usadas, seriam consideradas “perfeitas”
(idealização), mas poucos utilizavam exclusivamente este tipo de rima, porque, de fato,
davam menos opções de criação poética ao cordelista. Zé Guri reportou-se, no enunciado
exposto mais acima, ao desconhecimento que, muitas vezes, ocorre em relação à grafia
correta das palavras, como a questão do uso do S e Z (ortografia), pelo fato de que um
mesmo som pode ser representado por mais de uma letra, assim como o inverso (uma
mesma letra pode representar mais de um som).
166

Para Jailton Pereira, nos concursos de literatura de cordel, por exemplo, somente as
rimas consoantes devem ser empregadas. Sem embargo, quando não é o caso, a regra pode
ser flexibilizada, mesmo que ele tenha feito questão de dizer que preza pela “rima
verdadeira” quando está escrevendo à vontade.
A rima deve sempre obedecer aquilo que eu já falei: a rima consoante, que
é considerada a rima verdadeira e não aquela rima disfarçada (chamada
fonética ou sonante), tipo CANTAR e CEARÁ, tipo VIOLA e HORA.
Esse tipo aí de rima não serve. Se o cordel tiver uma rima sonante, ele já
começa perdendo um ponto aí, no caso do concurso. Pra você escrever
um trabalho que você não está sendo analisado é diferente. Embora até
quando eu faça à vontade, eu também busco prezar por isso que você me
perguntou sobre o que o cordel tem que ter pra ser bom. Aí, eu sempre
prezo pela rima, métrica e oração (Jailton Pereira).
Faleiros (2006) explica que ainda há uma discussão sobre o que caracteriza a
reiteração total dos sons, tendo em vista que a grafia nem sempre corresponde ao que se
pronuncia. Esta é, aliás, uma das fronteiras, segundo o autor, que separa os estudos clássicos
de rima dos estudos linguísticos. Nestes últimos, a rima é classificada a partir dos sons e não
da grafia das palavras.
Conforme J. Borges, as rimas ainda podem ser classificadas de três maneiras: rimas
positivas (as sílabas finais dos versos têm sons e grafia idênticos); rimas comparativas
(composta por sílabas finais cujos sons são semelhantes, mas se distinguem na ortografia) e
rimas negativas (a grafia e os sons que as sílabas finais apresentam são diferentes). Embora
nos cordéis possam existir essas três formas de rimar, “um bom cordel apresenta apenas
rimas positivas”, proclamou Borges. Ao deter-se sobre a diferenciação entre as rimas, o
poeta fez a seguinte colocação:

Pra ser um bom cordel têm que ter as rimas todas positivas [...]. Agora,
se não tiver rima eu mesmo não considero cordel não. Eu considero o
formato só, o formato que é de cordel, mas a escrita eu considero que é um
livreto de prosa, escrito em prosa. A rima positiva é essa: PREGUIÇA,
ATIÇA e COBIÇA. Essas são positivas. E é como eu disse a você: aquela
pronúncia de RÉU e CORDEL, essa é comparativa. Já a rima negativa é
quando você escreve PENSAMENTO e TEMPO. Isso aqui é rima
negativa, não rima nada (J. Borges).
Cabe-nos, também, referendar a proposição do poeta Diosman Avelino de que

Pra ser realmente um cordel bem feito, bacana, o poeta tem que cumprir
um pouco as regras: tá metrificado, tá com as rimas bacanas, sem muito
pé-quebrado, como dizem. Pé-quebrado é uma rima que... é uma rima
imperfeita. Vamos procurar aqui algo: AMOR às vezes você confunde com
SOU e tem gente que pensa que rima, né? Eu e meu AMOR, num sei o
167

que... SOU. Por exemplo, algo desse tipo. Palavras que parece que rimam,
mas não rimam (Diosman Avelino).
Redizemos, as rimas consoantes ou positivas são consideradas, por diversos poetas, e
pelo público especializado, como “perfeitas”. Apesar de essa regra ser socialmente
legitimada pelos cordelistas, muitas delas costumam ser burladas por eles durante o processo
de escrita dos cordéis, porque o modelo idealizado de rima não é sempre possível de ser
atingido. Porém, o poeta precisa estar atento a certas distinções, como, por exemplo,
“mulhé” com “café” ou “amô” com “dor”, porque, nesses casos, se estará cometendo uma
infração.
Em sua tese de doutorado, Santos (2009) defende que existem algumas confusões
entre o poema matuto e o cordel que ainda precisam ser desfeitas: no cordel não se
permitiria o uso desse tipo de grafia que reproduz a linguagem coloquial (mulhé e amô).
Dessa forma, para o referido autor, essas “rimas” se aproximariam mais da poesia matuta do
que, propriamente, da literatura de cordel.
No tocante à análise de alguns folhetos dos entrevistados, percebemos que alguns
equívocos no emprego de determinadas rimas, por vezes, eram decorrentes das dificuldades
que alguns poetas (Paulo Pereira e Zé Guri) apresentavam quanto ao conhecimento da
norma ortográfica. Em outras palavras, isso significa que, apesar do consenso entre os
cordelistas na utilização das regras de rima, o seu domínio não estava acessível a todos, já
que dependia, em grande medida, da aprendizagem da língua escrita. A escrita é que define
o que é bom, certo. Sobre esta questão, Zé Guri se pronunciou assim:

Eu ia cantar e rimava CANTAR com GUARANÁ e não pode. Eu rimava


BELO JARDIM e botava CARIM e não dá. Botava DORMIR, eu rimava
com GURI. Nesse tempo, eu não sabia ler quase nada. Agora eu leio muito.
Eu não sou escolarizado, mas leio muito e naquele tempo eu lia pouco.
Naquele tempo eu trabalhava no sítio, só vivia trabalhando. Aí, o cantador
disse: “Você sabe ler?”. Eu disse: “Sei”. Aí, ele mandava eu soletrar GURI
e DORMIR e eu soletrava. Ele dizia: “Para você rimar GURI você tem que
procurar as letras que terminam com R e I e um agudo”. Aí, a poesia tem
muito a ver com a leitura. Pode ser cordel, pode ser repente, pode ser
embolada, quanto mais o poeta sabe ler, mais ele se desenvolve. Ele sendo
analfabeto, ele canta um bocado de coisa errada, não fala bem. Eu mesmo
não sei falar nada porque não tive escola. Eu sei ler, mas nunca cheguei
numa aula para uma professora dizer “essa palavra não é assim, é assim”
pra eu ficar sabendo. Eu me criei falando do jeito que papai falava e
mamãe falava, a linguagem matuta e pronto. Ninguém nunca disse: “Não é
assim, é assim”. Se eu tivesse estudado igual meu menino, ele já é
professor. Ele não fala o português errado não. Sempre é certo, mesmo.
Todo mundo que estudou fala certo, porque aprendeu, mas eu não aprendi.
Eu aprendi a ler por eu mesmo. Eu sei muito ler, mas comigo mesmo (Zé
Guri).
168

Galvão e Di Pierro (2012) assinalam que o analfabetismo, na maior parte das vezes,
não é compreendido, pelas pessoas adultas que não sabem ler e escrever, como resultado dos
processos de exclusão social ou como violação de diretos, mas, sim, como experiências
individuais de fracasso. Historicamente, e em diferentes instâncias sociais, a palavra
analfabeto esteve carregada de um sentido negativo (pessoa que não sabe falar e não tem
conhecimento; pessoa sem instrução; incapaz, entre outras adjetivações) que, por vezes, foi
incorporado e legitimado pelo próprio analfabeto. Ao observamos a fala de Zé Guri,
percebemos que não dominar as habilidades de escrita tornou-se marca evidente desse
estigma. Não podemos negar que, por meio do cordel, muitos poetas - como Zé Guri – e
editores deram início às práticas de leitura e escrita, tendo-o como uma primeira referência
de impresso (QUINTELA, 2012).
Prosseguindo, então, analisamos as verbalizações dos poetas por notarmos, também,
que eles faziam distinções quanto ao valor das rimas, já que, para eles, existiam rimas fáceis
e outras mais difíceis, que davam poucas possibilidades de criação e exigiam do cordelista
maior criatividade ao versar.
No caso, o que eu geralmente dou uma reparada é tentar deixar mais ou
menos com a métrica, porque acontece ainda de não ter tanta métrica. Eu
evito repetir rimas, palavras, por exemplo, CRUEL, NOEL e PAPEL.
Evito essa repetição de rimas. Não acho muito bacana a pessoa ficar
repetindo a mesma palavra várias vezes na mesma história... Aí, vai aqui
(pá- pá- pá- cruel). Aí, num sei o que cruel... tá faltando assunto no caso.
Evito um pouco isso, sempre vejo e acontece de passar despercebido.
Eu fiz um poema há pouco tempo e coloquei um verso que dizia que o
trovão grita sorrindo e a criançada grita sorrindo. Aí, eu mudei. Eu deixei o
da criançada grita sorrindo e coloquei que o trovão grita tinindo... Aí, eu
evito um pouquinho essa questão de repetição de palavras que rimam.
Mas qual a palavra que nunca foi repetida, né? (Diosman Avelino).
Essas escolhas lexicais feitas pelos depoentes, ao compor os cordéis, adquiriam uma
notável importância, não apenas quanto à rima, mas também para a manutenção de sentido
do texto como um todo. Nessa perspectiva, os poetas com menor faixa etária (Val Tabosa,
Diosman Avelino e Jailton Pereira) disseram, muitas vezes, recorrer aos dicionários e/ou à
internet para verificar a ortografia das palavras e procurar sinônimos.

A gente vai no dicionário, ou coisa assim, para ver se fez muita besteira.
Eu uso mais dicionário em significados, procurando sinônimos. Às vezes,
você vai numa determinada rima e quer dizer alguma coisa, aí você procura
uma palavra com aquele sentido que você queria dizer, mas ela não dá a
rima, aí é onde você procura uma palavra sinônima. Aí, eu uso o dicionário
para isso. [...]. Às vezes uma palavra perde o sentido da estrofe. É nesse
sentido também (Jailton Pereira).
169

A este respeito, Morais, Leite e Silva (2007) explicam que os adultos mais letrados
costumam usufruir, de forma natural, do dicionário para a resolução de dúvidas ortográficas
durante o processo de produção de um texto, quando se interrogam sobre a escrita de uma
determinada palavra ou, ao final, para valer-se desse recurso com o objetivo de memorizar
as grafias sobre as quais se sentem inseguros ou que ainda não têm automatizado suas
regras.
Além disso, vimos que cordelistas, como Val Tabosa e Jailton Pereira, escreviam os
versos na “deixa”, ou seja, rimavam o primeiro verso da estrofe com o último verso da
estrofe anterior. Conforme Sautchuk (2009), esse é um recurso empregado também no
repente. Essa estratégia, como ressaltaram Val Tabosa e Jailton Pereira, costumava auxiliá-
los na memorização dos versos.
[...] Têm muitos poetas que não escrevem na “DEIXA” e eu, sim, escrevo
na “DEIXA”. A “DEIXA”, o cara termina uma estrofe e começa a outra
rimando com a última palavra da frase anterior. Eu acho que isso é coisa
minha. Eu achei bacana para memorizar o poema. Eu memorizo mais fácil
do que aquelas que não são com “DEIXA”. Quando eu termino uma
estrofe eu já estou me lembrando da primeira frase da outra estrofe. Você
lembrando a primeira, automaticamente, você lembra do resto. O trabalho é
a primeira linha (Jailton Pereira).

As rimas também podem ser classificadas quanto à sua posição nas estrofes: rimas
emparelhadas ou paralelas, como o próprio nome sugere, combinam-se alternadamente,
seguindo o esquema AABB; rimas alternadas ou cruzadas, que correspondem à sequência
ABAB; rimas interpoladas ou opostas (ABBA); e os versos brancos, que são aqueles que
não apresentam rimas. Esta afirmação encontra eco no relato de Diosman Avelino:

A sextilha, você vai ver aqui, as palavras que rimam são geralmente
números pares, dois, quatro e seis. Um, três e cinco não rimam. Mas eu
tenho um poema que rima todas. Mas é raro. Eu fazia mais isso porque eu
ainda não... Eu ainda tava aprendendo. Por exemplo, eu vi um poema
intitulado “Sou Poeta Nordestino”, tem várias que rimam todas.
Sou poeta nordestino
E não sou por opção
No tempo de menino
Já fazia um refrão
Isso é obra do divino
E não tem explicação
É rimando tudo aqui ó: a primeira com a terceira e com a quinta e as pares
com as pares. É mais trabalhoso. Você tem que ter mais palavras pra rimar,
e aqui não.
170

Com isso, e como temos vindo a sustentar, a rima apresenta-se como um dos
elementos formais essenciais do gênero e um importante recurso mnemônico mobilizado
pelos poetas durante o processo de escrita e leitura do texto.
Por fim, insistimos, conforme argumenta Morais (2007), que, apesar de usarmos a
língua para nos comunicarmos, não é sempre que a tratamos como objeto sobre o qual
podemos refletir e examinar as suas características. Ainda que muitas pessoas possam
utilizar a palavra bote e bode sem se confundir, não quer dizer que todas consigam pensar
sobre elas, tomando-as como objeto de análise de tal modo que consigam observar que
ambas possuem duas sílabas, cujas iniciais são semelhantes, porque apresentam a mesma
sílaba. Na esteira dessas observações, compreendemos, com base em Roazzi e outros (1994),
que os repentistas, assim como os cordelistas, são altamente sensíveis à rima, o que não
significa, necessariamente, que isso se estenda para outras habilidades fonológicas.
Soares (2016), citando Bryant e outros (1989), afirma que o autores, ao pesquisarem
a percepção de crianças inglesas sobre as rimas e aliterações, propuseram que as
experiências informais nos anos iniciais da vida possivelmente exerciam influência sobre o
desenvolvimento da sensibilidade fonológica. Para a autora, o mesmo poderia se supor sobre
as crianças brasileiras. Em relação aos cordelistas, poderíamos dizer que as suas
experiências com cordel certamente influenciaram suas habilidades fonológicas relativas à
rima. Em contrapartida, chamamos a atenção também para o fato de que ter certo grau de
“consciência” não significa, necessariamente, que o indivíduo seja capaz dirigir
intencionalmente a sua atenção para os sons das palavras e verbalizar os porquês do que
observa nas mesmas.

5.2.2 A métrica
Como os próprios poetas costumavam declarar, a métrica consiste na medida do
verso, isto é, na contagem dos sons de cada verso (linha poética). No que diz respeito à
metrificação, interpelamos os poetas da seguinte maneira: “De modo geral, como é a métrica
dos versos de um cordel?” e “Como é a métrica de cada verso desse cordel?”. O propósito
dessas indagações era o de compreender os conhecimentos dos cordelistas sobre a métrica,
já que, como referenciado, ela constitui, tal qual a rima e a oração, um dos importantes
elementos de categorização do cordel, em virtude da necessidade dos versos serem
metrificados conforme as peculiaridades de cada modalidade. No Quadro 23, organizamos
as respostas dos depoentes no que concerne à metrificação dos cordéis.
171

Quadro 23 – A metrificação dos cordéis segundo os poetas

Nomes dos poetas

Total
Paulo Val Diosman Jailton
Métrica dos cordéis J. Borges Zé Guri
Pereira Tabosa Avelino Pereira
Quantidade de sílabas
X X 2
poéticas
Quantidade de sílabas
poéticas e modalidade X X 2
(posição das rimas)
Quantidade igual de
versos em todas as
X 1
estrofes e comprimento
do verso
Quantidade de sílabas
poéticas, modalidade
(posição das rimas) e
X 1
quantidade igual de
versos em todas as
estrofes
Fonte: A autora (2017)

A métrica correspondia para os cordelistas, primordialmente, à quantidade de sílabas


poéticas dos versos. No entanto, houve ainda entrevistados que fizeram referência às
modalidades poéticas (posição das rimas) e à quantidade idêntica de versos nas estrofes. De
certa maneira, estes aspectos não atuam dicotomicamente, mas em uma relação de
integralidade.
Autores como Gonçalves (2016) apontam que a metrificação dos cordéis é,
geralmente, produzida de “ouvido” e que poucos poetas realizam a contagem das sílabas
poéticas manualmente. Durante a entrevista, Val Tabosa disse-nos, com o intento de
contabilizar as sílabas poéticas de um verso, o seguinte:

Esse aqui é em dez. É em dez. POR-QUE-BA-TI-ZAR-CRI-AN-ÇA? [o


poeta faz a contagem batendo os dedos na mesa]. É em dez versos e em sete
sílabas. Essa última (ÇA) foge, mas tem a sílaba poética. Aí, é considerado
oito, nove. Por que é difícil conseguir deixar com as sete mesmo [...]. Por
exemplo, falando desse cordel aqui “Moto Clube Águias do Agreste”. Eu
vou fazer um poema pra o Águia do Agreste, não vou logo digitando, eu faço
primeiro num papel. Faço no papel. Se não der certo, eu jogo e pego outro.
Aí quando está mais ou menos pronto eu vou digitar, porque a digitação
também é interessante para metrificação. Então, quando eu vou digitar,
digito também devagar. Aí eu faço a metrificação e essa metrificação eu faço
contando mesmo nos dedos pra que fique dentro do que é regulamentado,
pra que a gente não saia do padrão. Se você vai declamar um poema pra um
poeta, ele vê logo os defeitos ou os acertos (Val Tabosa).
172

Observamos também, por meio desse relato de Val, que no cordel as sílabas poéticas
diferem das sílabas gramaticais, sobretudo, pelos seguintes preceitos: 1) as sílabas poéticas
são contadas até a última sílaba tônica do verso. Sendo assim, as sílabas posteriores a esta
não são contabilizadas; 2) os ditongos possuem apenas o valor de uma única sílaba poética;
e 3) duas ou mais vogais átonas e, às vezes tônicas, podem ligar-se entre uma palavra e
outra, formando uma única sílaba poética. Troquemos em miúdos esta afirmação,
examinando-a à luz do seguinte depoimento:

A métrica é o tamanho de cada linha em sílabas, que não é em sílabas


gramaticais, mas em sílabas poéticas. É um pouquinho diferente. Você
começa a contar quando chega na sílaba tônica, tipo aqui: E -NÃO-VE-
JO- QUEM-CON-TES-TE. O “E” inicial é uma, aí o “NÃO” conta
todinho, o “VE”, o “JO” e o “QUEM” contam separadamente, e em
“conTESte” o mais forte é o “TES”. Aí parou aí. Aí, é sete porque a última
não conta. Geralmente, todas têm que ficar com sete obedecendo a isso aí.
Essas aqui todas são com sete, mas, algumas vezes, umas não saem com
sete. Isso também não prejudica a métrica não por causa do jeito que a
poesia é feita. É complicada a poesia por isso. Isso vai naturalmente. Essa
aqui é a mesma coisa, o que vai diferenciar é a sílaba mais forte no final da
palavra. Quando chega na sílaba mais forte da última palavra, aí parou, tipo
rapaDUra. Igual a como a professora ensinava a gente na aula. Aí, o
rapaDUra parou em DU aí. Tem outra coisa a métrica. Chegou aqui em
“QUEI-JO E- RA-PA-DU-RA”, aí esse E aqui se junta pra cá. Ele conta
como um só. QUEI é junto, é uma sílaba só. A métrica tem muito isso aí.
Às vezes, pra gente metrificar, a gente usa muito palavras pra encurtar e
para aumentar. A gente usa POIS e mais alguma coisa quando quer
aumentar. Aí, é nesse sentido, mas é complicado. Esse aqui é uma sextilha.
Aí, ela tem que ter no máximo sete sílabas poéticas e seis versos. Versos
são cada linha de uma estrofe. No caso, a sextilha é composta por seis
versos e rimam os versos pares:
É riqueza do Nordeste
Cantada por Gonzagão,
Onildo imortalizou,
Na letra d’uma canção,
Vitalino com argila,
Retratou com perfeição
Olhe, o “d’” eu usei porque se eu botasse “de uma” aumentava uma sílaba.
Aí, botei um “d’” aí. Aí, a segunda rima com a quarta, a quarta com a
sexta e as outras não rima com ninguém. Às vezes, tem gente que faz
rimando também, mas só que com essas (1º, 3º e 5º), Mas, pode fazer. É
chamada rima cruzada. Essa (2º, 4º e 6º) é alternante ou alternada (Jailton
Pereira).

Consoante o que declarou Jailton Pereira, a contagem termina sempre na sílaba


tônica da última palavra do verso (E não vejo quem conTESte), dispensando-se da contagem
as demais sílabas dessa mesma palavra (nesse caso, é a sílaba TE), se houver. Além disso,
173

quando uma palavra terminar com uma vogal átona e a palavra seguinte for iniciada por uma
vogal, deve haver a elisão (ambas são contadas como uma sílaba poética apenas).
Entretanto, identificamos que alguns cordelistas (J. Borges, Paulo Pereira e Zé Guri)
não conseguiram verbalizar, durante a entrevista, as divisões silábicas particulares (elisão,
sinérese, diérese, dentre outras), o que levou-nos conjecturar que tal fato poderia estar
relacionado com a escolarização e com a categoria social do tipo geracional.
Ao que tudo indica, a aprendizagem da metrificação por esses poetas se deu através
do intenso contato que tinham como os impressos, especialmente, por terem trabalhado
como folheteiros. O que eles diziam sobre o que faziam e sabiam em torno da métrica
parecia ser muito dependente das categorias de percepção (e de designação) que foram
interiorizadas durante a socialização com estes impressos – ouvindo ou lendo –e com outros
cordelistas. Determinadas exigências de metrificação (elisão, sinérese, diérese) que
demandavam certo grau de dificuldades eram de difícil acesso, sobretudo para os poetas com
menor escolaridade. Estes poetas, então, diziam que, quando o verso apresentava mais de
sete sílabas poéticas ou dez (como exigem os versos decassílabos), o leitor deveria engolir
ou falar mais rápido. No entanto, a(s) ultimas(s) sílabas, eram desconsideradas, pois a
contagem só é feita até a sílaba tônica.

Na sextilha rima a segunda com a quarta e a quarta com a sexta. Essas


outras três aqui são negativas (1º, 3º e 5º). Agora, quem tem a prática já vai
escrevendo... Já sai.
Dadá ganhava mais
Por ser mais reboculosa
Usando roupas compostas
Era muito caprichosa
Tinha um riso atraente
E o gesto de dengosa.

Essa tá maior o verso, mas dá.


U (1) SAN (2) DO (3) ROU (4) PAS (5) COM (6) POS (7) TAS (8)
Essa está com oito, mas a gente lendo a gente engole, fala mais rápido ou
engole uma letra. O geral é 7 ou 8. Se botar 9 já não dá mais (J. Borges).

Importa ressaltar que, quando perguntarmos aos poetas sobre a métrica dos cordéis,
suas respostas, de algum modo, já contemplavam o questionamento “Como é a métrica de
cada verso desse cordel”, pois eles costumavam explicitar o funcionamento dela usando
como base os folhetos de sua autoria. A este respeito, no que tange à metrificação,
percebemos que a dificuldade de alguns poetas em verbalizar como faziam ou mesmo por
não ter consciência de como faziam parecia se expressar em suas respostas, que, muitas
vezes, dirigiam-se ao tamanho dos versos, já que “não se pode colocar uma linha com mais e
174

outra com menos não. Muitos fazem o cordel errado. Botam uma estrofe com mais linhas e
outras com menos. Tem que metrificar direitinho”, disse Paulo Pereira. Ou, ainda, para
averiguar se o verso estava metrificado, não recorria, necessariamente, à contagem das
sílabas, mas cantava o conteúdo do cordel em uma melodia reconhecida previamente.
Assim, era obrigatório que os versos “coubessem” nessa melodia, no compasso do ritmo, de
modo a soar agradável:

A métrica? A métrica é assim, é como eu disse naquele ali:


Nos quatro cantos do mundo
Deus abençoa o amor
(o poeta diz cantando)
Se eu dissesse nos dezessete cantos do mundo, aí já não dava. Tem que ser
nos quatro cantos ou nos cinco cantos. A métrica quer dizer igualzinha. É a
sílaba que diz.
Nos-qua-tro - can-tos- do- mun-do
É o que? É seis sílabas aqui? Dá seis? Aí, se botar oito não dá. E se botar
cinco também fica curto. Tem que dar conforme a palavra.

Deus abençoa o amor


Tá certo também.
Nos quatro cantos do mundo
Deus abençoa o amor
(o poeta diz cantando)

Aí, o poeta diz:


Jesus que é o padroeiro
Jesus que é o meu pastor
Jesus é o meu amor
Jesus é advogado certeiro
É melhor do que dinheiro
Jesus sempre a meu favor
Jesus é superior
Primeiro sem segundo
Nos quatro cantos do mundo
Deus abençoa o amor
(o poeta diz cantando)
É igualzinho. Aí, se colocar menos letras ou mais letras, aí fica ou curto ou
comprido. Essa palavra compatibilidade tem a mesma base daqui. A
mesma coisa que eu digo: é a quantidade de sílabas. Entendeu? (Zé Guri).

Neste testemunho, é interessante observar que, para metrificar, era de extrema


importância, para Zé Guri, a percepção do ritmo. Podemos dizer com base nesses
entrevistados (Zé Guri e Paulo Pereira) que, em cada modalidade, os versos tinham a mesma
duração de tempo (tamanho) e o conjunto de versos formava uma estrutura maior (também
com tempo definido). Quando uma estrofe estava desmetrificada, significava, portanto, que
algo presente nos versos fugiu dos padrões rítmicos e melódicos daquela poesia. Pinto
175

(2009) reconhece que a literatura de cordel brasileira mantém uma forte relação com a
música, mas acredita que isso ainda requer um estudo mais aprofundado. Neste contexto e
com esta perspectiva, falou-nos Paulo Pereira:

[...] Olhe, é rima, métrica e oração. O cordel tem isso tudo. Agora, você vai
fazer um cordel assim de doido, mas não tá certo. Você não pode botar
uma palavra que não rime direito. Você tem que rimar. Olhe, você está
conversando, aí você tem que pegar e fazer a primeira parte, a segunda, a
quarta... Tem que rimar e ficar tudo rimadinho. Se não rimar na escrita tá
errado. O cordel é como uma música também. Se tiver uma palavra errada
e você for cantar ele, você erra. Cai o ritmo da melodia se tiver errado.
Você repare aqui, ó:
Tem muita gente que conta
Muita história engraçada
História de jogador
De pescador e caçada
E da velha sem cabeça
Lá da casa abandonada
Tá vendo como rima direitinho? Se eu fizer uma rima e a métrica errada
aqui, aí cai o ritmo da música. Pra fazer cordel não é só dizer que vai fazer
não. Se tiver errado não pode dar certo (Paulo Pereira).

Na estrutura poética do cordel, cada linha é considerada um verso e o conjunto de


versos (ou linhas) compõe a estrofe. Os diferentes modos de distribuição dos versos em cada
estrofe são denominados, pelos cordelistas, como modalidade ou estilo. Cada modalidade
possui padrões métricos específicos que devem ser seguidos pelo escritor. Quando algum
verso foge dos padrões métricos de uma modalidade, considera-se que o poeta fez um verso
quebrado ou desmetrificado. No tocante à dificuldade de metrificar os cordéis, Diosman
informou:

Aí, veja bem, passou um tempo e o pessoal falava sobre a métrica, a


distribuição de rimas... E eu, que bexiga é essa? Até hoje eu ainda acho
muito chato. Acho muito chato a contagem de sílabas poéticas. No começo
é pior, mas depois eu comecei... Veja bem, em sete sílabas poéticas, a
gente já conversando a gente já está falando em sete se parar pra ver. E
dez, que é mais complicado. O repentista usa mais, é mais usado no
repente, na cantoria de viola. Com o tempo você vai se acostumando,
você começa a escrever, parece que já sai pronto. Eu vou lhe explicar
de uma forma mais bacana. Como eu falei pra você, eu não gosto muito
dessa parte. Veja bem, eu trouxe um material aqui que eu vou mostrar pra
você onde o cara diz que:
Pra fazer boa poesia
Põe amor no coração
Abre teu peito e confia
Na tal metrificação
Aí, aqui ele tá dividindo as sílabas. Olhe, “Pra fazer boa poesia”. Veja bem
aqui como tá sendo feita a divisão. Aí, você usando essa questão de sílaba
tônica, a sílaba mais forte num sei o que... PRA-FA-ZER-BO-A-POE-SIA.
176

Se você for contar em sílabas gramaticais você vai separar PO-E-SI-A, mas
na sílaba poética veja bem como se fala POE-SIA. . PÕE-A-MOR-NO-
CO-RA-ÇÃO tem sete sílabas poéticas. Sete sílabas poéticas. “Abre teu
peito e confia”. Seria oito, mas você vê aqui A-BRE-TEU-PEI-TO- E
CON-FIA. Vê como como tá aqui, ó. O “E”, né? “E CONFIA”? Quando eu
fiz esse daqui, era um pouco bagunçado ainda, depois eu tive que fazer
reparos na questão da métrica. Por exemplo, ele não tava numa métrica
bacana e nem sei se ainda tá. Mas, eu tive que fazer umas correções e
metrificar. Metrificar é o mais complicado. Aqui ó, “vou dizer para
vocês”. Esse aqui tá fácil. “VOU-DI-ZER-PA-RA-VO-CÊS”, sete sílabas.
[...] A questão da métrica, isso é muito chato, eu acho. Acho que muita
gente acha chato, mas é muito bacana se aprofundar na questão da
métrica pra errar menos na poesia. Porque, um exemplo: quem não
entende vai ler e achar normal, mas quem entende, um outro poeta, uma
pessoa que estudou, que conhece um pouco, vai ler seu poema e vai dizer:
“O cara erra demais, o cara não respeita métrica, não respeita distribuição
de rima, não respeita a rima”. Por isso que a gente tem que tá sempre... E
quanto mais você pesquisar... Eu mesmo ainda estou estudando e
pesquisando bem essa questão de métrica (Diosman Avelino).

Neste patamar, convém notar, através do excerto da entrevista de Diosman, que a


complexidade na metrificação decorre, principalmente, de uma série de recursos poéticos
(sinalefa, elisão, diérese, sinérese e outros) que os poetas, muitas vezes, precisam fazer uso
para saber se o verso estava ou não metrificado. E que, de fato, para se automatizar certas
regras, o conhecimento delas nem sempre é suficiente ou o contrário: o uso da regra é
automatizado, mas não se consegue explicitá-lo verbalmente.
Se, por um lado, os dados revelam que um grupo de poetas conseguia explicitar as
regras de metrificação e, em algumas ocasiões, os recursos poéticos possíveis de serem
empregados no texto (Val Tabosa, Diosman Avelino e Jailton Pereira), por outro, havia
aqueles que, embora reconhecesse as regras envolvendo a quantidade de sílabas poéticas
(heptassilábicas ou decassilábicas), usavam exclusivamente o “canto” como estratégia de
verificação da métrica dos versos (Zé Guri e Paulo Pereira).

5.2.3 As modalidades de criação poética

Existe uma grande variedade de modalidades poéticas (ABREU, 1993) que resultam
das regularidades estróficas. Na literatura de cordel, pode haver estrofes com quatro versos
de sete sílabas (quadra), estrofes com seis versos de sete sílabas (“sextilha”), estrofes de sete
versos com sete sílabas (septilha/setilha), estrofes com oito versos setissílabos (nomeado
“oito pés de quadrão” ou oitava) e com dez versos de sete sílabas (“décima”) ou de dez
sílabas (“martelo agalopado”), entre outras. A modalidade predominante do gênero é a
177

sextilha (com estrutura ABCBDB, sendo B os versos com rima e ACD versos sem rima), em
que o segundo, o quarto e o sexto versos devem estar obrigatoriamente rimados.
Aí, rima essa, essa aqui com essa. A primeira com a quarta e a quarta com
a sexta, que é a última com essa. Você rima a segunda com quarta e a
quarta com a sexta. Num é três rimas aqui? Num é de sextilha? Agora,
quando é septilha, aí você rima duas palavras, uma parecida com a outra,
mas não a mesma palavra. Aqui é sextilha porque é de seis linhas. A
septilha é de sete linhas. Aí, tem de oito, tem de decassílabo também, tem
de quadra. Na sextilha você rima, digamos, MESMO com TESMO, com
ESMO, que é pra rimar pra poder dar embaixo. Agora, depende, porque
aqui não é septilha, é sextilha. Você tem que procurar as palavras
parecidas, mas que não é a mesma palavra. Agora, que essa aqui de baixo
rime com essa segunda. Apesar disso, é possível dizer que há certo
consenso quanto à ideia de coerência como unidade de sentido do texto.
Sextilha, a última tem que rimar com a segunda e com a quarta, porque tem
que ficar tudo rimado (Zé Guri).

A quadra (com quatro versos) foi a mais antiga modalidade (CASCUDO, 2006).
Abreu (2006a) esclarece que, apesar de múltiplas formas/modalidades terem convivido, as
quadras e as sextilhas disputaram a primazia. No começo do século XX, as quadras haviam
praticamente desaparecido, sendo predominantes as sextilhas setessilábicas com rimas em
ABCBDB. Posteriormente, outras formas fixas de composição foram sendo incorporadas, a
exemplo das septilhas setessilábicas com rimas ABCBDDB.
É, depende do que você escolheu para fazer. Pode ter dez, pode ter seis,
pode ter sete. Pode ser feito em quadra. Pode ser em terceto, mas esse
ninguém faz pra cordel não. O mais usado, eu vou lhe dizer, o que é mais
usado no cordel: sextilha, septilha e décima. O decassílabo se usa, que é em
décima, só que com métrica maior. Se usa, mas não tanto quanto esse. O
usado, bem usual mesmo, o mais que é usado é sextilha. O mais de todos é
sextilha. Com a modernidade, muitos cordelistas fazem em décima em
decassílabo (Jailton Pereira).

Os padrões métricos e rítmicos não auxiliavam apenas na composição dos versos,


mas também na sua memorização. Galvão (2002) acredita que dois fatores poderiam
contribuir para que os cordéis fossem memorizados mais rapidamente: a maneira intensiva
como as leituras eram realizadas e as características formais dessa literatura. Segundo a
autora, os agrupamentos das estrofes, que, em geral, seguiam um mesmo padrão métrico,
pareciam facilitar a memorização por parte dos poetas e dos leitores/ouvintes.

5.2.4 Oração
178

Não basta construir versos com rimas e métricas adequadas, é preciso que o texto
possua uma coerência interna, ou seja, uma relação lógica entre as ideias subjacentes ao
texto. Com isso, não estamos, de modo algum, pretendendo apresentar uma definição de
coerência, pois, dada à sua complexidade e como apontam diversos pesquisadores (KOCH,
TRAVAGLIA, 1992; SPINILLO; MARTINS, 1997), é muito difícil conceituá-la. Apesar
disso, é possível dizer que há certo consenso, entre os estudiosos, quanto à ideia de
coerência como se referindo à unidade de sentido do texto.
A oração, na literatura de cordel, concerne à coerência e continuidade lógica do
assunto sobre o qual poeta versa (RESENDE, 2010). Perguntamos, então, aos entrevistados:
“De modo geral, um cordel aborda um tema ou vários temas? Por quê?” e “Qual o tema
(ideia central) deste cordel?”. Nesta seção, direcionamo-nos para a compreensão dos poetas
quanto à coerência global do texto. Evidentemente, reconhecemos que tais questionamentos
não abarcaram todos os aspectos que envolviam a construção de um texto coerente.
Spinillo e Martins (1997) consideram que, nas últimas décadas, os estudos têm sido
voltados para a análise da coerência do ponto de vista do receptor do texto (ouvinte e/ou
leitor) e poucas pesquisas buscaram tratá-la pela ótica do narrador. Por essa via de
entendimento, esses autores defendem que os mecanismos necessários no estabelecimento
da coerência para produzir um texto podem ser muito diferentes dos exigidos para interagir
com o texto como leitor ou ouvinte. Em ambas as situações, as relações que se mantem com
o texto são, portanto, distintas. Consideramos, assim, que diversos fatores (tanto micro
quanto macrolinguísticos) são responsáveis pela coerência, seja pela perspectiva do produtor
ou até mesmo do próprio destinatário.
Ainda conforme os autores supracitados existem alguns indicadores que podem estar
relacionados à coerência do gênero história: a manutenção dos personagens ao longo da
narrativa, a relação entre os eventos narrados e entre o desenvolvimento da história e o
desfecho.
Voltando-nos, pois, à questão da estrutura enunciativa do cordel, todos os poetas (os
seis entrevistados) disseram que o tema sobre o qual versavam deveria ser mantido até a
conclusão do texto. Essa “manutenção do tópico” (SPINILLO; MARTINS, 1997) seria
importante para que haja coerência. É isto que vemos neste trecho da entrevista de Zé Guri:

Esse cordel aqui [Tributo a Luiz Gonzaga] fala de muitas coisas. Fala de
Umberto Teixeira, fala em Zé Dantas, em Zé Marcolino, fala em Benito de
Paula, fala em Januário, em Santana, em Zé Gonzaga, em Gonzaguinha,
fala de muita coisa. Agora, tudo ao redor de Luiz Gonzaga (Zé Guri).
179

Assim, deve-se obedecer à temática sobre a qual o cordel foi escrito, ainda que outras
ideias possam se encontrar vinculadas à principal. Os assuntos, embora diferentes, devem
estar conectados de modo a contribuir para a unidade do texto, pois “a ruptura de sentido é o
que cava a ausência de coerência” (GUIMARÃES, 2013, p.16).

Um único tema. Mas, esse único tema pode dar aquelas lapidadas que eu
disse a você, pode apresentar outras coisas. Um único tema é pra não sair
da temática que se pede e a poesia está dizendo, mas que não deixa de ser
livre pra, dentro dessa temática, abordar outros assuntos. Vamos supor, está
falando sobre a feira, mas, de alguma forma, você fala da pessoa que está
ali pedindo uma esmola e o poder público não está arrumando uma
moradia pra ela ou chances que não teve enquanto jovem, caso ela seja
idosa, pra ter uma educação e estar no mercado de trabalho. Então, pode
ser dessa forma. Essa questão que eu digo de ser só um é só no sentido de
obedecer ao tema que está sendo feito, o que não empata de no meio você
dar umas lapidadas. Tudo tem como você dar umas lapidadas sobre um
determinado tema sem precisar, necessariamente, sair da linha de
raciocínio que você está falando. Os jornalistas fazem muito isso, e o
cordel é uma forma de jornal também (Jailton Pereira).

Conforme Abreu (1993), algumas vezes, os poetas, na tentativa de manter a clareza e


a coerência, elaboram nas primeiras estrofes do cordel uma síntese do enredo, na qual
descrevem, brevemente, os personagens, destacam os aspectos principais e, em alguns casos,
antecipam o desfecho. Essa sinopse, para a autora, facilita a compreensão do público e
permite que o poeta respeite o princípio da oração. Ao analisar oito folhetos publicados entre
as décadas de 1930 e 1940, Galvão (2000) evidenciou que todos eles apresentavam nas
primeiras estrofes os principais elementos da narrativa. As estrofes posteriores eram
desdobramento das primeiras.
Os cordelistas Val Tabosa e Diosman Avelino mencionaram que um único folheto
podia conter mais de um cordel e cada um deles pode abordar temas diferentes (FIGURA 6).

A oração é o enredo, é a história. Às vezes, você pode fazer várias rimas,


mas não ter conteúdo agradável de você escolher. O que vai acontecer na
próxima estrofe, né? Então, isso é a oração. [...] Aí, entra a parte comercial,
porque em um cordel desse aqui [referindo-se ao folheto] que tem três
temas eu posso construir três cordéis diferentes e posso vendê-los ao preço
que é um cordel. Então, eu estou vendendo três cordéis com o mesmo
tema. Como eu não faço com a finalidade de comercializar, então eu tento
colocar o conteúdo maior em um cordel que eu vou doar. Então, eu acho
mais interessante você pegar um cordel só com três temas do que pegar três
cordéis cada um com um tema só. A maioria do pessoal faz assim porque a
intenção é de comercializar mesmo. Mesmo sendo fininho, você compra
um, compra outro, pega um daquele dia, depois empresta a outra pessoa...
Tem essa finalidade. É mais comercial do que outra coisa. Os meus
poemas também são menores. São mais poemas que a gente divide e pra
engrossar o cordel bota três em um (Val Tabosa).
180

Figura 6 - Capa do folheto

Fonte: Val Tabosa [200-]

Tal como nesse relato de Val Tabosa, as colocações de Diosman que se seguem
ressaltam a possibilidade de inserir em um só folheto mais de um cordel:

Um livro desse? Pode ter mais de um tema. Olhe, ele pode ser um mini
livro. Um folheto pode ter dois poemas com dois temas diferentes. Agora,
o cordel é um tema só, uma história só. Aí, eu fiquei, você falou... “Cordel
diferenciado”, não sei de onde eu tirei isso. Eu tirei isso justamente disso,
porque é um livrinho com duas literaturas, dois poemas. Aí, eu quis colocar
um nome aqui e coloquei “Cordel Diferenciado”, mas poderia ser um
“folheto diferenciado”. Isso aqui tem dois poemas. Aqui, “Trauma
nordestino”, é um cordel só, um poema só. Não tem como colocar dois
temas nesse poema aqui, não tem. Vai ficar perdido, né? Vai ficar meio... É
igual eu colocar dois nomes no meu filho. O nome dele é Pedro Henrique,
mas também eu quero que seja registrado também como Paulo José,
entendeu? (Diosman Avelino).

J. Borges mantém a mesma ideia anteriormente defendida sobre a manutenção do


tema, mas acrescenta alguns elementos. Para este entrevistado, a coerência também depende,
dentre outros fatores, da relação entre as partes do texto e o seu desfecho ou conclusão, o
que exige não apenas enunciados gramaticalmente corretos. Baseando-nos em J. Borges,
apresentamos o seu pensamento nos seguintes termos:

Pra ser um bom cordel tem que ter as rimas todas positivas, a métrica toda
bem medida, o assunto seja um assunto interessante, com episódios que o
povo fique ansioso para saber o resultado e ter um desfecho bom, do final.
Porque esses caras que estão escrevendo agora, eles escrevem uma coisa
com o título muito banal, uma coisa sem graça e eles começam a escrever
misturando religião com política, gracejo, crime, sangue, tudo numa
181

história só. No fim, termina, encerra e ninguém sabe o que foi que ele
disse. Então, o romance tem que ser feito do princípio até fim
acompanhando aquela história e o desfecho sempre seja agradável. Tem
uma história muito boa, famosa. Aliás, não é tão boa, mas é famosa:
Romeu e Julieta. Eu não gosto, porque morre os dois. Zezinho e
Mariquinha é uma história boa, famosa, de muitos anos, mas morre os dois.
Eu não gosto de histórias que morrem os dois personagens. Eu gosto de
história que todo o mundo se acabe, mas que o personagem fique vivo (J.
Borges).

A falta de relações lógicas entre as ideias e de um bom desfecho podem tornar um


texto incoerente, dificultando o entendimento dos destinatários na situação de interação
comunicativa. Não obstante, Koch e Elias (2008) explicam que a coerência é construída na
interação entre o autor, o texto e leitor. Como assinala Guimarães (2013), na literatura tem
sido predominante uma concepção pragmática da coerência, segundo a qual ela (a coerência)
não é decorrente apenas de uma marca do texto, mas como produto dos processos cognitivos
mobilizados também pelos leitores.

Geralmente, se falava que os cantadores antigamente, os cordelistas, eram


analfabetos, porque nunca estudaram. Mas é diferente hoje: a maioria dos
repentistas são formados, cordelistas, tem cursos superiores. Tem
repentista advogado, cordelista com doutorado, tem cursos superiores.
Então, o que acontece? Fica mais fácil. Quanto mais você estuda, melhor
você vai escrever. Por que a gente escreve pra quem? Pra o leitor. A
música é feita pra o ouvinte, no caso. O cordel é feito pra o leitor, pra o
ouvinte, ou seja, pra os dois tipos de pessoa. Quando você declama o
cordel, você tá declamando pra alguém que tá ouvindo. Quando você
vende um folheto desse pra alguém que adquire, ele vai ler. Então o cordel
é dessa forma (Diosman Avelino).
Em suma, por meio das análises das verbalizações, averiguamos que os poetas eram
altamente sensíveis às regras de rima, ainda que o seu domínio dependesse, em certa
medida, da aprendizagem da língua escrita padrão. Em relação à métrica, evidenciamos que
certos preceitos eram de difícil verbalização, mesmo para aqueles participantes com maior
escolaridade. Nesse sentido, uma das explicações possíveis é de que, como informa
Sautchuk (2009) sobre a cantoria, a métrica é um fundamento incorporado e não consciente,
enquanto a rima (como técnica) exige, de algum modo, o ensino e a aprendizagem
deliberada. Neste bojo, podemos acionar a discussão de Lahire (1998) de que os indivíduos
são mais conscientes das aprendizagens explícitas e poucos sabem sobre as disposições
cognitivas construídas não conscientemente. Isso nos levou a inferir que os depoentes mais
escolarizados (Val Tabosa, Diosman Avelino e Jailton Pereira) podem não ter aprendido as
182

regras de métrica, exclusivamente, através do contato com outros cordelistas ou da


leitura/escuta de diversos cordéis, mas, também, de certo estudo sistemático das regras.

5.3 Elementos paratextuais

Também privilegiamos, nesta análise, os elementos que acompanhavam o texto


(título, imagem e capa) e que contribuíam para a sua identificação e compreensão. Por isso,
visamos analisar as verbalizações dos poetas sobre a utilização de recursos verbais e visuais
no que se refere aos folhetos (sendo este o mote da próxima seção), tendo em vista que, por
vezes, as análises desses impressos têm sido feitas apenas a partir do seu conteúdo, sem
considerar o conjunto mais complexo do que o seu interior e exterior demonstram.

5.3.1 Os títulos nos cordéis

Concebemos que o título é um aparato textual “cuja função é estratégica na sua


articulação” (MENEGASSI; CHAVES, 2000, p. 27): ele não apenas nomeia o texto, mas dá
pistas sobre o sentido dele, desperta o interesse dos leitores, permitindo que se estabeleçam
relações entre as informações textuais e extratextuais, e orienta acerca da conclusão a que o
leitor deverá chegar. Nesse contexto, investigamos se, para todos os poetas, os cordéis
deveriam possuir um título e por quê. Além disso, pedimos que eles identificassem os
títulos de alguns dos seus folhetos e dissessem os motivos da sua escolha. Constatamos que
todos os poetas (6) disseram que os cordéis deveriam possuir um título. Contudo, diferentes
finalidades foram a ele atribuídas, como podemos observar no Quadro 24.

Quadro 24 – Finalidades dos títulos dos cordéis atribuídas pelos poetas

Nome dos Poetas


Finalidade do
Paulo Val Diosman Jailton
título dos J. Borges Zé Guri Total
Pereira Tabosa Avelino Pereira
cordéis
Distinguir um X X X X 4
cordel de outros
Atrair ou causar
algum efeito no X X X 3
público leitor
Auxiliar nas
vendas dos X 1
folhetos
Organizar o texto X 1
Total por poeta 2 1 1 2 1 2 9
Fonte: A autora (2017)
183

Nesse prisma, percebemos que todos os poetas apresentavam uma preocupação


especial em nomear os folhetos, certamente porque sabiam da sua importância e influência
sobre os leitores e ouvintes. Como acompanhamos no Quadro 24, duas finalidades foram as
mais mencionadas pelos poetas: distinguir um cordel de outro e atrair o público leitor.
Desse modo, um dos propósitos do título seria o de identificação da obra, distinguindo-a de
outras, o que contribuía para o reconhecimento dos poetas perante o público e, também,
junto aos seus pares. Oliveira (2012) chama atenção para o fato de que a escolha do título,
pelos cordelistas, não ocorre de maneira desinteressada, ao contrário, ela é motivada por
vários fatores, dentre eles está o de cumprir a função de diferenciar os cordéis e
individualizar os seus autores.
Consideramos, pois, que, enquanto componente paratextual, o título assume funções
diversificadas no texto: muitas vezes, é através dele que o público decide se comprará os
folhetos; o título indica o tema do cordel (história de amor, de guerra, humor, fato
“jornalístico”, etc.) e é por meio do qual o leitor ativa os conhecimentos prévios necessários
para a compreensão do texto. Os títulos curtos e informativos são mais chamativos e de
mais fácil compreensão (ABREU, 2006). Sobre a importância do título, Paulo Pereira
afirmou:

Tem que ter. Não pode ser sem título. Tem que ter o título daquele cordel.
O livro sem capa, como pode ser? Porque você num vai contar aquela
história, história de tal canto, chuva em tal canto, terremoto em tal canto.
Aí, pronto, tem que ter aquele título. Aí, você vai trabalhar no cordel
naquilo que está acontecendo. Naquele dia que deu um terremoto e matou
um monte de pessoas, aí você vai escrever aquilo que aconteceu naquele
país. Aí, tem o título “Terremoto em tal canto”. Digamos, deu uma chuva
em Caruaru ou Caruaru estrondando. Aí, já é o título “Estrondo em
Caruaru”. Tudo tem que ter o título. Música sem o título, pode ser? Não
pode. Tem que ter o título da música também. Eu tenho umas 200 músicas,
porque eu faço a hora que eu quero. “A caveira e o viajante” e isso aí é
você criar na mente, na imaginação. Você cria na imaginação. Vou fazer
uma história de malassombro, pronto. Aí, faz a história pra criança, pra
criança ler e ficar com medo. Esse aqui é a história de malassombro.
Digamos, tem uma casa abandonada ali e você vê uma luz. Dali, você, na
sua imaginação, já vai fazer um cordel. É assim. O que você quer fazer dá
cordel, desde que você faça na rima, na métrica e na oração (Paulo
Pereira).

O cordel está, assim, diretamente vinculado às práticas concretas da vida social e à


maneira pela qual os poetas titulam as suas produções não escapa a esse pressuposto. Para
Oliveira (2012), os títulos também são influenciados pelas condições de produção,
comercialização e fruição do gênero. O autor ainda descreve, em sua tese de doutorado, que
184

uma das características dos títulos, frente à sua função comercial, está relacionada ao
extenso tamanho dos sintagmas nominais tituladores, principalmente pelo uso da conjunção
“ou”. Em geral, a primeira parte do título era dirigida ao assunto, seguido de uma
especificação ou explicação sobre a natureza da história ou com os nomes dos personagens.
Havia ainda títulos que eram ainda autoexplicativos sobre o enredo da história. Nota-se, por
conseguinte, que o título e a narrativa atuam numa espécie de simbiose, pois nas palavras de
Val Tabosa:

Alguém pode até fazer sem, mas eu coloco título em todos os cordéis que
eu escrevo até pra saber de qual poesia se fala. Às vezes, você está num
local e perguntam sobre aquela poesia que fala de tal coisa, aí você sabe
qual o título. [...] Esse título “Águias do Agreste”, esse aqui é um moto
clube do qual eu faço parte, sou motociclista e fiz um poema falando das
histórias de viagem, do ambiente que a gente convive. Mandaram até fazer
um banner desse poema. Então, outros cordéis que eu tenho eles nem leem,
mas esse eles acham interessante, porque falam da nossa história, né? Eu
não posso levar um cordel desse que fala de motociclismo e botar na igreja,
porque as pessoas não vão achar interessante, já que não conhecem a
história. Como eu participo de outros movimentos também da sociedade...
Aí, cada um tem um público diferente e cada um aprecia do jeito que gosta
de apreciar. Esse título é “Experiência”. Experiência é aquilo que você
vive. Você vai tendo experiência com os anos, os cabelos vão caindo,
outros vão ficando brancos. Então, a experiência que você tem hoje não é a
experiência de uma menina que tem 10 anos, né? Você já passou um
pouquinho dos 10. Então, você tem outra experiência, você vê as coisas
diferentes e assim são todas as pessoas. Então, esse foi um poema pequeno
que eu fiz falando nisso. Eu via uma coisa, mas antigamente eu via de um
jeito e hoje eu a vejo diferente. A experiência está em mim, porque eu vivi.
Então, experiência é vivência. Você vive aquilo, então você passa a
conhecer. Em geral eu escrevo sobre um tema, aí depois o nome. Depois,
eu posso mudar esse nome [título] também, se não deu certo. Tiro esse
nome e boto outro. Geralmente, quando eu vou digitar , o que fica
registrado é a primeira frase e eu uso muito isso também [...] (Val
Tabosa).

Nessa direção, averiguamos que, assim como Val, os demais cordelistas com maior
escolaridade (Diosman Avelino e Jailton Pereira) usavam algum trecho contido no cordel
para o título. Diosman e Jailton fornecem depoimentos que ilustram esta asserção:

Tem que ter. Isso é assim, coisa minha. Como é que tu sabe? Um
personagem falando de Maria, aí tu fica imaginando: “E o nome disso aqui
é o quê? Como é o nome dessa história?” Aí, acho que todo texto, e não
somente o cordel, tem que ter o título. Uma música, por exemplo, tem que
ter também o título. Uma pessoa falando disso e daquilo, mas o nome da
música é o quê? “Não, tem não”. É esquisito. Aí, volta de novo à questão
da organização. O título serve como forma de organizar o cordel. Tem que
ter o título. Esse aí é “A feira que tudo tem”. Aí, o que foi premiado foi
sobre feira também, aí foi “Passeando sobre a feira”. Aí, justamente um dia
de passeio. Pra fazer o título, às vezes eu pego alguma coisa de dentro do
185

cordel mesmo. Agora, eu não sei se esse “Passeando pela feira” tem
alguma coisa dentro falando isso. Não lembro. Mas eu pego alguma
determinada frase e transformo no título (Jailton Pereira).

Imagine você pegar aqui um cordel desses, só com o nome do autor, sem o
título. Só a capa aqui, né? É igual um livro, todo livro tem um título. Um
CD tem um título do CD. Tem que ter um título. Eu não sei como outros
poetas fazem, mas, geralmente, eu tiro o título de dentro da poesia. Agora
aqui “Meu Sertão é Demais Pra Ele Tiro o Chapéu”, eu não sei aonde vai tá
aqui, mas isso vai tá dentro de alguma estrofe dessas aqui. Pronto, tá aqui
no começo:
Vou dizer para vocês
Escrevendo no papel
Vou falar do meu sertão
Em forma de um cordel
Meu sertão é demais
Pra ele tiro o chapéu

Aí, daqui eu já tirei dessa daqui o título, “Meu sertão é Demais Pra Ele
Tiro o Chapéu” (Diosman Avelino).

Atentamos, ainda, para o fato de que, para J. Borges, um bom título contribuía para a
vendagem dos folhetos, o que se relaciona também à função de atrair a atenção do leitor. J.
Borges expressou tal compreensão no que segue:

Do meu modo, dos que eu vi já e li, todos eles têm o título. Às vezes, não
tem o nome do poeta, mas tem o título [...]. O título também é uma coisa
que tem que ser feito com muito cuidado. O título, às vezes, ajuda também.
Tem que ser um título meio engraçado também. O cabra lê, aí diz: “Eu vou
comprar isso aqui, porque isso aqui é bom”. Eu fiz o cordel “O que
acontece no Galo da Madrugada”, o povo leu o título e dizia: “Vou levar
porque eu já fui lá no desfile, mas não olhei o que acontece não”. Esse
título foi o título de um poeta que eu acho que já morreu, aí eu aproveitei e
botei o mesmo título. Não é meu não esse título. Era um cordel desse
mesmo assunto, se perdeu, não tem mais o original, aí eu escrevi outro. O
da chegada da prostituta no céu eu não sei por que foi. Tem a chegada de
Lampião no céu, né? Quer dizer, no inferno. É um dos que mais vende. Aí,
eu disse: “Eu tenho que fazer um personagem chegando no céu. O que é
que eu boto? Boto pato? Boto bispo? Boto papa?” Aí, saí caçando. Aí, eu
me lembro que ia pra Olinda. Eu ia no ônibus de Recife pra Olinda. Aí
pensei: “Ah, vou botar a prostituta que a religião condena e vou fazer esse
contraste da prostituta com o clero e vou ver o que é que dá”. Oxe, foi
mesmo que queijo. [...] Um dos dez poetas melhores que eu considero é o
Cicero Vieira da Silva, que tem o vulgo de Mocó. Ele é paraibano e não
sabe ler. Os romances dele são histórias muito bonitas e até os títulos. “A
filha da mendiga na esquina do pecado” é um romance dele. “O sofrimento
de Elisa: os prantos de uma esposa”, “Os olhos de dois amantes por cima
da sepultura”, que é o romance que eu mais admiro dele, e é muito bem
feito (J. Borges).

Para Zé Guri, no cordel é preciso que se estabeleça uma relação adequada entre a
narrativa verbal (título) e a narrativa visual (imagem):
186

É. Todos eles têm um nome, né? Se não tiver o nome, fica uma coisa só.
Esse aqui é “Tributo a Luiz Gonzaga”, né? Aí, o retrato de Luiz Gonzaga,
que é pra ficar mais parecido. Esse aqui já não tem quase nada:. “Ditado
que o povo diz” não tem nada a ver com a foto, mas não foi eu que botei
não, foi o meu menino. Eu mando ele bolar seja lá o que for. Tudo sou eu,
mas eu mando ele colocar a foto pra completar. Esse aqui é “A peleja dos
dois coquistas”, aí tem o retrato dos dois. Tá bem bacana, né? “Antônio,
João e Maria” [título do cordel] foi a mulher que disse a eu que, quando era
uma moça nova, o marido dela era doidinho por ela e ela não queria. Ele
doido por ela. Pra todo canto que ia, ele sempre no pé dela. Aí, foram na
festa um dia, passaram a noite todinha na festa. Aí, ela ia pra um canto e
ele ia atrás. Assim passou a noite toda. Nem se namoraram, nem ele
arrumou outra e nem ela arrumou outro. Ficou a festa perdida. Com o
tempo ela arranjou outro. Aí, ligeirinho ficou grávida do outro. Esse só fez
e foi embora. Não quis saber dela não. O primeiro, que era doidinho por
ela, quando o menino nasceu, ele de olho, de olho, terminou ganhando ela
e casou com ela. Aí, ficaram, ficaram “mei” mundo de tempo. Quando ela
me contou essa história, ela morava mais ele, mas com o tempo se
separaram. Aí, eu escrevi a história. Não coloquei o nome dela, nem dele e
nem do outro que eu não conheço. Aí, eu fiz a história pelo que ela disse.
Está tudo aqui. Mudou só o nome. Nem tem o nome real dele e nem o dela
(Zé Guri).

Diante do exposto, entendemos que, ao eleger as palavras ou frases para compor o


título, os poetas estavam realizando, ainda que de modo não consciente, uma operação
estilística. Esses traços estilísticos permitiam reconhecer certas intenções do autor e os
efeitos de sentido pretendidos com o texto perante os interlocutores. No mais, evidenciamos
que os títulos e as imagens dos cordéis constituíam artifícios estéticos e semióticos
que forneciam pistas aos leitores sobre o sentido geral do texto. Essa e outras questões,
envolvendo as imagens serão retomadas no próximo tópico.

5.3.2 As imagens nos folhetos

Voltemo-nos agora, mais detalhadamente, para discutirmos sobre as ilustrações das


capas dos folhetos, pois não poderíamos deixar de atentar para o fato de que a sua
organização não envolve apenas os elementos linguísticos, mas, além disso, aspectos de
natureza gráfica que extrapolam as escolhas verbais. Para tanto, evocamos os cordelistas
com as seguintes indagações: “Todo cordel precisa ter imagem? Por quê?”. A partir das
respostas dadas a esses questionamentos, identificamos que todos os entrevistados
reconheceram que os primeiros folhetos tinham capas cegas (ou seja, não apresentavam
nenhuma ilustração), e que a zincogravura e xilogravura surgiram apenas posteriormente.
Para os participantes deste estudo, a ilustração da capa tornou-se um importante artifício
estético e comercial, como atestamos através do Quadro 25.
187

Quadro 25 – Justificativas para o uso de imagens nos cordéis segundo os poetas

Nomes dos poetas

Paulo Val Diosman Jailton


Justificativas J. Borges Zé Guri
Pereira Tabosa Avelino Pereira
“A imagem enriquece
o cordel”,
“com imagem fica X X X
mais bonito e
organizado”
“É mais
comercializável”, X X X
“ajuda a vender”
“Porque sem
xilogravura ou sem X
desenho não é cordel”
Fonte: A autora (2017)

Convém ressaltar que para todos os poetas os cordéis deviam ser acompanhados de
alguma ilustração, salvo para Jailton Pereira, que declarou que a imagem não seria um
requisito indispensável, embora apresentasse um valor comercial e estético. Paulo Pereira
afirmou que a xilogravura seria, até mesmo, um componente que caracteriza o gênero e que
o define como tal. Vislumbramos, por conseguinte, a importância atribuída às imagens, que
ora atuam como articuladoras da escrita, ora ampliam seus significados. Observemos, a
seguir, os depoimentos de Zé Guri e de Diosman Avelino:

É importante porque veja só: imagina aqui sem essa foto aqui, sem esse
desenho, né? Num fica mais bonito? E aqui você vê que, geralmente, o
desenho da capa é de acordo com o tema do cordel, da história. “Se não
fosse o leitor eu parava de escrever” [título de um cordel], aqui ele
desenhou um rapaz lendo o próprio cordel. Ele tá lendo o cordel que é um
cordel que a capa é... um cangaceiro aqui, o chapéu de Luiz Gonzaga aqui.
Aí, você vai aqui, vamo lá: “A feira que eu não pude pagar”. Você vê que o
cara tem uma bodega, aqui tá a caixinha com a feira que ele comprou. Vai
de acordo com o tema... (Zé Guri).

Na capa tem que colocar seja lá o que for: um nome, um animal, uma
pessoa. A canção que tem uma folha só é difícil de ter imagem. Então, tem
que ter a imagem, porque ajuda a vender e já pela história. “Macaco
Antônio Ferreira” [título de um cordel], aí já tem o retrato de um
macaquinho; “Donzela Teodora” [título de um cordel], aí já tem o retrato
dela. Conforme a história, sempre, sempre, tem que ter uma fotografia, um
retrato ou qualquer coisa pra fazer jus com a história (Diosman Avelino).
188

Estes relatos podem suscitar-nos várias reflexões. Deles podemos extrair a ideia de
que as imagens que compunham as capas eram um chamariz de vendas (como dito por
Diosman) por, pelo menos, dois motivos principais: devido ao atrativo visual e à
identificação da temática do cordel. Assim, muitos consumidores eram seduzidos pelas
imagens e os títulos que acompanhavam essas publicações, pois como asseverou J. Borges:

Sem figura não vende. Uma vez publicaram um cordel, um cordel famoso,
mas não me lembro do nome, não sei se foi o “Pavão Misterioso” ou
“Juvenal Dragão”. Publicaram em Juazeiro do Norte e nesse tempo os
cordéis vinham pra Recife, vinha de carrada pra Recife e veio um sem
capa, só com as letras, letra grande assim, mas sem figura. Devolveram.
Foi devolvido, porque passou uns seis meses e não vendeu um. Ninguém
queria. Aí, quando o praxista veio cá e disse: “Olhe, vai ter que devolver.
Ou vocês botam uma figura aí ou, senão, queima, toca fogo”. Foi pra
Juazeiro, tiraram a capa e botaram outra capa com o desenho. Aí vendeu
rápido (J. Borges).

E, prosseguindo, J. Borges, referindo-se à importância da capa bem elaborada como


sinal de boa vendagem e aceitação do público, complementou:

Primeiro eu faço o cordel. Agora, eu tenho cordel que o tema foi tirado da
gravura. Por exemplo, “A chegada da prostituta no Céu” eu fiz a gravura e
quando eu chegava com a gravura nos lugares o povo dizia: “Borges, conta
essa história, conta a história”. Eu contava. Então um dia, não sei aonde
foi, uma mulher disse: “Por que não faz um cordel?” Eu disse: “Vou fazer
mesmo”. Aí, larguei o pau, fiz a história todinha, a ilustração e publiquei. É
o meu livro mais vendido, é esse. Já passei de 100.000 exemplares (J.
Borges).

J. Borges usava a matriz xilográfica produzida de punho próprio para ilustrar os


folhetos, tornando-se, mais tarde, um dos xilógrafos brasileiros mais famosos, com
reconhecimento nacional e internacional. No folheto A chegada da prostituta no céu
(FIGURA 7), mencionado pelo poeta, a imagem estava diretamente associada ao título e
remetia a uma cena importante do enredo.
189

Figura 7 – Capa do cordel A chegada da prostituta no céu

Fonte: Borges [199-]

Diversos intelectuais consideravam que, ao circularem separadas dos folhetos, as


xilogravuras perderiam a sua capacidade narrativa. No entanto, como revela Silva (2015), a
produção de J. Borges tem indicado outras interpretações. Conforma a autora, no início dos
anos 70 do século XX, as xilogravuras dele passam a circular separadamente dos folhetos
que lhe serviam como suporte, mas, apesar da palavra e a imagem estarem em profunda
relação, a xilogravura separada do folheto não impediu a possibilidade de contar uma
história.
A xilogravura foi inicialmente empregada pelos pequenos jornais que não dispunham
de condições financeiras suficientes para o uso do clichê e da litogravura, técnicas
consideradas mais modernas, porém mais caras. Dada à necessidade de diminuir os custos
da produção dos folhetos, a xilogravura surgiu como uma solução viável para esses
problemas (MELO, 2003). Concordamos com a autora, no que se refere à associação entre a
xilogravura e os folhetos: embora os leitores preferissem as capas em clichê44, os estudiosos
e colecionadores consideravam a xilogravura uma solução estética que melhor representava
as narrativas contadas pelos poetas.

Xilogravura é uma arte que poucos cordelistas fazem. Tem J. Borges, tem
Mestre Dila, que são os pioneiros aqui na nossa região que constroem esse
carimbo, que como todo carimbo é invertido, na madeira ou na borracha.
Depois, faz a impressão. É bem artesanal esse trabalho. Eu não faço assim

44
O clichê concerne a uma matriz gravada em placa metálica ou de madeira destinada à impressão de
imagens e textos em prensa tipográfica.
190

porque eu não tenho acesso pra fazer isso e hoje a gente tem o poder da
internet que pode até copiar uma xilogravura sem realmente ela ter sido
uma xilogravura para aquele cordel. Eu faço mais desenhos, como você
está vendo aqui. Isso aqui é com a ajuda da gráfica. A gente vai lá, senta lá
meia hora, uma hora, e eles perguntam se a imagem está boa, mas esse é
um registro muito forte dentro do cordel, porque enriquece o cordel. Esse
ano eu fui convidado para fazer um julgamento de um concurso de
literatura de cordel pra umas crianças. Então, eu peguei esses cordéis e
trouxe pra casa. A gente julga e a nota a gente dá pela rima, métrica e
oração. Tiveram alguns que ficaram mais ou menos empate e a gente usou
o critério – não só eu mais os outros que fizeram parte dessa comissão –, de
julgar a capa. Então, a capa que tinha uma tendência mais original pra o
lado da xilogravura levou um ponto. Depois, ao final, teve o resultado de
que a capa foi quem decidiu. Então, a capa é muito importante na
construção do cordel. Tem cordéis com algum desenho gráfico, mas sem
imagem nenhuma não. Geralmente, todo cordel tem capa e tem alguma
imagem. A imagem também fala (Val Tabosa).
Percebemos, na declaração de Val Tabosa, que a xilogravura é um elemento
importante na produção do folheto, mas, como pontua Santos (2009), os primeiros
cordelistas não se utilizaram de gravuras talhadas na madeira para ilustrar suas capas.
Leandro Gomes de Barros já introduzia desenhos e fotografias nos folhetos, mas a
xilogravura só surgiu a posteriori. As primeiras técnicas de ilustração dos folhetos de cordel
foram, portanto, o desenho. Para o autor supracitado, apesar, portanto, de a xilogravura se
constituir como um elemento do folheto, ela não pode ser considerada decisiva na sua
formação.
Ao analisar folhetos do período de 1900 a 1919, Galvão (2000) mostrou que nenhum
deles era estampado com clichês de zincogravura ou xilogravura nas capas, mas 76% deles
eram ilustrados com vinhetas e/ou ornamento, que eram, em geral, relacionados ao tema do
poema principal. Em dois impressos, as capas foram ilustradas com fotografias. Consoante a
autora, nas décadas de 20 e 30 do século XX, as vinhetas e/ou ornamentos foram sendo
substituídas, paulatinamente, pelos clichês de zinco. Não foi encontrado pela autora nenhum
folheto contendo xilogravura. Nos anos 40 e 50 do mesmo século, as vinhetas como
ilustração da capa praticamente desaparecem, sendo encontrado apenas um folheto contendo
esse recurso. A autora evidenciou, assim, que a maioria dos impressos (55,6%) analisados
tinham capas ilustradas com clichês de zinco de fotografias e/ou cartões postais. Os clichês
de xilogravura estampam um quarto dos folhetos analisados. Esses dados apresentados por
Galvão demonstram que a associação entre os folhetos e a xilogravura foi uma construção.
Tem, porque se não tiver... Por que você tem por obrigação colocar o nome
do autor e o título daquilo dali. Se você pegar isso aqui, é um cordel e tem a
xilogravura. Tem que ser assim. Antigamente não tinha xilogravura, mas
foram se adequando mais, fizeram a xilogravura e ficou mais enfeitado.
191

Você vê aqueles cordéis que vêm da Luzeiro45? Aqueles que são cinco reais?
Aquele é uma escrita bonita. São uns grandes que tem lá. É a cinco reais. Ele
vem da Luzeiro. A xilogravura é por obrigação você botar no cordel, porque
sem a xilogravura ou sem desenho não é. O livro, você faz um livro sem
capa? Num tem que ter a capa do livro? Pronto, do mesmo jeito é o cordel.
Você pode até desenhar, pode criar, fazer aquele desenho no computador e
fazer a capa no computador [...] (Paulo Pereira).

A ilustração das capas, que se expressa por meio de diferentes maneiras


(xilogravuras, fotos, desenhos, cartões postais, imagens impressas em computador),
“demonstra a inesgotabilidade de relações do artista com o mundo e com outras linguagens”
(LOUREIRO, 2010, p.270).

Uma imagem é boa que tenha e a xilogravura depende da pessoa, se você


está com poder aquisitivo. Não é caro, mas, às vezes, você tem alguém que
desenhe e na modernidade não precisa você usar aquela xilogravura na talha
de madeira. Um cara desenha, como é o meu caso. O cara desenha naquele
estilo que está na talha de madeira, ele desenha aquilo ali, aí eu escaneio e
coloco no meu cordel. Aí, fica como se fosse uma xilogravura mesmo, só
não usei a madeira. As coisas mudaram e o cordel mudou também. Isso é
possível. Mas, já vou entrar num ponto de vista meu: alguém pode lhe dizer
que precisa, mas acho que nada tem que ser do jeito que o povo diz que tem
que ser. Então, fica a critério de cada um. Agora, os meus, sim. Os meus têm
que ter imagem, porque eu acho que é a graça do folheto. A graça que tem é
o folheto ser bonitinho, elaboradozinho... É o mesmo que um cara fazer um
CD só com o box, sem nada. Tem o sentido comercial, mas eu faço no
sentido do cordel ficar bonito. Se vai ficar atrativo aos olhos do cara lá, não
sei, mas é no sentido de ficar bonito, organizado. Pronto, a palavra mais
adequada é organizada e ser organizada dentro do que a regra diz. No caso
da escrita é estar dentro da métrica, rima, oração e ter a capinha bonitinha.
No primeiro concurso que houve e que participei, eles pediram também com
capa. Aí, eu fiz uma capa lá que Jénerson falou também sobre essa capa. Eu
não fiz, não, pedi ao rapaz que fez lá. Tem alguns concursos que premiam
também a imagem. Aí, acho que ela era uma forte candidata a ganhar
também, a capa. Ficou muito bonita mesmo. O rapaz é muito bom (Jailton
Pereira).

45
A Editora Luzeiro (antiga Prelúdio) é conhecida como uma das grandes editoras de São Paulo por publicar
os grandes clássicos da literatura de cordel do Brasil, há mais de cinco décadas.
192

Figura 8 – Capa do cordel A ciência evoluindo

Fonte: Jailton Pereira [200-]

Apesar de os poetas mais velhos (J. Borges, Paulo Pereira e Zé Guri) não
manusearem o computador, eles recorrem a alguém que digita os impressos. Alguns deles,
inclusive, têm substituído a xilogravura pelas imagens retiradas da internet, barateando,
assim, a impressão, pois o computador transformou-se na tipografia do cordelista (ver Fig. 8
e 9). Por outro lado, os poetas mais novos (Val Tabosa, Diosman Avelino e Jailton Pereira),
costumam utilizar a internet com maior frequência e, muitas vezes, é por meio dos blogs e
do facebook que divulgam os cordéis. O fato é que, apesar da relação com este recurso
tecnológico ser diferente para ambos os grupos de entrevistados, todos, atualmente, têm feito
uso dele de alguma maneira.

Figura 9 – Capa de cordel de autoria de Val Tabosa


193

Fonte: Val Tabosa [200-].

A literatura de cordel, para alguns pesquisadores (LUCENA, 2009; OLIVEIRA,


2012), não sucumbiu ao prenúncio de morte, porque acompanhou, de certo modo, as
mudanças sociais e culturais, adequando-se, em maior ou menor grau, às modificações que
as novas tecnologias requeriam.
Nesse ínterim, podemos evidenciar que, tal como os títulos, as escolhas das imagens
nas capas dos folhetos de cordel não são feitas aleatoriamente pelos poetas, mas, sim, são
opções realizadas a partir de muitas reflexões. Como salienta Barbosa (2010), a
imagem auxilia na compreensão da temática do folheto, tornando-se uma espécie de
segunda narrativa que apoia a principal, escrita em versos.
194

6 ANÁLISE DAS PRODUÇÕES E IDENTIFICAÇÕES DE TRANSGRESSÕES DE


ASPECTOS COMPOSICIONAIS (RIMA, MÉTRICA E ORAÇÃO) DA
LITERATURA DE CORDEL

Devido à preocupação de focar, em nossas análises, no nível de explicitação dos


poetas acerca dos aspectos composicionais do cordel (rima, métrica e oração), lançamos mão
de duas tarefas de transgressão por indução (produção e identificação) que implicaram, por
parte dos participantes, na criação e no reconhecimento de erros.
No entremeio desta seção, evidenciaremos ainda as justificativas dadas pelos
entrevistados aos erros que produziram e identificaram. Como lembra Gombert (1992;
2013), a explicitação verbal tem um importante papel nas atividades metatextuais, uma vez
que permite ao investigador compreender os critérios adotados pelos entrevistados e a
natureza dos erros por eles efetuados. Esse autor evidencia, também, que o surgimento das
capacidades metalinguísticas não ocorre de maneira automática, pois demanda certo esforço
cognitivo, que, via regra, não é feito pelas pessoas espontaneamente.
Recordemos, porém, que existem níveis de conhecimento que são acessíveis apenas
internamente, o que significa dizer conhecer não é sinônimo de poder verbalizar
explicitamente. (TOLCHINSKY, 2006). Além disso, como alerta Karmiloff-Smith (1995, p.
4),
Algún conocimiento no llega a estar disponible para la conciencia porque
sólo tiene suas raíces en el procesamiento en tiempo real. Cuando el
conocimento realmente llega a ser accesible a la conciencia, nos
encontramos ante el producto final de um largo proceso evolutivo
consistente en hacer que el conocimiento sea cada vez más explícito
(KARMILOFF-SMITH,1995, p. 4).

Nossa pretensão com as tarefas de transgressão foi, portanto, a de acessar


conhecimentos explícitos dos poetas sobre os aspectos composicionais do gênero. Partimos
do pressuposto, defendido por Morais (2003), de que errar propositalmente (no caso, em
ortografia) implicaria em um conhecimento explícito da regra. Como observam Tolchinsky e
Teberosky (1992), transgredir implica um conhecimento consciente da restrição, regra,
norma ou convenção que é transgredida.
No caso da produção e identificação de transgressões, consideramos que poderíamos
ter acesso a conhecimentos explícitos (conscientes) dos poetas sobre as regras transgredidas.
Já as justificativas apresentadas por eles para as transgressões realizadas ou identificadas
poderiam dar indícios de seus conhecimentos explícitos conscientes verbais, embora
tenhamos clareza de que “um conhecimento pode muito bem ser armazenado num formato
195

linguístico, mas não se achar ainda em contato com o conhecimento armazenado em outros
formatos” (KARMILOFF-SMITH, 1998, p.33).

6.1 Análise das produções de transgressões de rima, métrica e oração

Como dito na metodologia, na atividade de produção de transgressões, pedimos que


os poetas realizassem erros propositais (tanto em estrofes de cordéis produzidos por eles
quanto por outros cordelistas) e justificassem verbalmente os motivos de tê-los cometidos.
Não delimitamos o quantitativo de erros a serem produzidos por cada entrevistado. Pontuada
essa ressalva, compete esclarecer que não percebemos diferenças significativas entre as
transgressões que cometeram nas estrofes de outros poetas e naquelas de sua própria autoria.
Em decorrência disso, fizemos um quadro contendo ambas as transgressões. Estas foram
avaliadas por dois juízes independentes e, nos casos de discordância, recorremos a um
terceiro.
Solicitamos que os participantes deste estudo se imaginassem como um cordelista
iniciante que ainda apresentava muitas dificuldades na escrita do gênero e, que, em vista
disso, cometia muitos erros.

6.1.1 Análise das produções de transgressões de rima

De modo geral, percebemos que os participantes tiveram mais facilidade de produzir


erros de rima e oração do que metrificação. Tal assertiva pautou-se, sobretudo, na
quantidade de erros cometidos e no tempo gasto para o cumprimento da tarefa. No Quadro
26, a seguir, apresentamos os tipos de erros realizados pelos entrevistados no tocante à rima.

Quadro 26 – Tipos de erros de rima cometidos pelos poetas


Poetas entrevistados

Total por
Produção de erros de J. Paulo Zé Val Diosman Jailton
cada erro
rima Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira
cometido
Substitui a última
palavra de um verso por
X X X 3
outra, deixando-o sem
rima
Substitui a última
palavra de um verso,
X X 2
criando uma rima
assonante ou toante
196

Cria um novo verso para


substituir o original, X X 2
deixando-o sem rima.
Cria um novo verso para
substituir o original,
X 1
deixando-o com uma
rima assonante
Suprime a última
palavra do verso, X 1
deixando-o sem rima
Inverte a ordem das
palavras de um verso, X 1
deixando-o sem rima
Inverte a ordem dos
versos, de modo a que
na sextilha rimem o 2º
X 1
com o 4º e 5º versos,
produzindo um verso
sem rima
Altera a flexão de
número de palavras que
rimam, deixando uma X 1
no plural e outra no
singular
Total de erros por
3 3 1 2 1 2 12
poeta
Fonte: A Autora (2017)

No Quadro 26, observamos que oito erros distintos foram produzidos pelos
participantes, os quais foram agrupados em cinco categorias, sendo elas: 1) substituição de
palavras; 2) supressão de palavra; 3) inversão de palavras e versos; 4) criação de verso; e 5)
alteração da flexão de número dos substantivos (singular e plural).
Diante dos dados evidenciados acima, percebemos que os tipos de erros mais
frequentes foram de substituição de palavras46, enquanto os menos realizados pelos
depoentes foram de inversão na ordem dos versos, supressão de palavra, criação de um novo
verso (rima assonante) e de alteração da flexão de número dos substantivos. A título de
esclarecimento, mostraremos, à frente, os tipos de transgressões realizadas por eles.
No que concerne à transgressão das regras de rima, por substituição da última
palavra de um verso, por outra, apresentamos o seguinte exemplo de transgressão, o qual foi
produzido pelo poeta J. Borges:
Eis a real descrição
Da história da princesa
Dos sábios que ele venceu

46
Morais (2003) ao analisar, através de tarefas de transgressão o desempenho ortográfico de crianças do 2º, 3º
e 4º ano do Ensino Fundamental, demonstrou que as crianças, geralmente, preferiam criar erros de substituição,
que, nesse caso, envolviam letras e dígrafos.
197

E a aposta ganha por ela


Tirado tudo direito
Da história grande dela

Nessa transgressão, Borges extraiu a palavra “donzela” e acrescentou o termo


“princesa”. Ainda que o verso tenha permanecido com métrica e obedecendo aos critérios de
oração, deixou de atender às exigências de rima da sextilha (na qual se deve rimar o
segundo, o quarto e o sexto verso).
Além dessa transgressão, J. Borges e Paulo Pereira também criaram um verso sem
rima, de modo que a última palavra da quarta frase não possuía semelhança sonora e gráfica
com a última palavra do segundo verso, conforme podemos notar na transgressão realizada
por Paulo Pereira:

Eis a real descrição


Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
Aí, não deu certo

Como vemos neste excerto, Paulo produziu uma frase sem rima e que, também, não
satisfazia os preceitos de métrica e oração que requer a literatura de cordel. Em síntese,
podemos dizer que esta estrofe, tanto apresenta um erro de rima, como solicitado na
atividade, como contém um erro de métrica e de oração.
J. Borges burlou, de forma intencional, as regras de rima ao inverter a posição das
palavras de um dos versos, conforme vemos no trecho da transgressão, abaixo, efetuada por
ele:

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor de um pai a um filho
Ou dama fiel esposa
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

A sextilha, considerada a modalidade mais usual do repente e do cordel, possui a


sequência de rimas ABABAB (sendo A os versos sem rima e B com rima). Ao inverter as
palavras do quarto verso, o poeta descaracterizou a modalidade em que foi escrito o texto.
Embora não tenha invertido a ordem das palavras, Val Tabosa alterou a posição do
quinto e sexto verso, cometendo, assim, um erro da mesma natureza que os anteriormente
citados, já que não atendia, igualmente, aos requisitos necessários à produção da sextilha. É
o que podemos averiguar neste extrato:
198

Eis a real descrição


Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a posta ganha por ela
Da história grande dela
Tirado tudo direito

Outros desvios às regras de rima consistiram na substituição da última palavra de um


verso por outra ou, ainda, na criação de um novo verso com o objetivo de que a estrofe
contivesse rimas cujas palavras apresentam a mesma correspondência sonora, mas não
gráfica (rima assonante), como fica patente nos exemplos:
Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
É de uma pessoa incréu
(Zé Guri)

Em pouco tempo ela tinha


Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
E nunca perdia tempo
(Diosman Avelino)

Consideramos que criar um novo verso (como fez Diosman) ou substituir a última
palavra do verso (Zé Guri e Jailton Pereira), produzindo uma rima assonante, pressuporia
um erro mais sofisticado e complexo por exigir dos entrevistados um maior nível de reflexão
acerca da palavra, uma vez que tinham que encontrar um vocábulo que apresentasse
semelhança sonora (mas não gráfica) e que, concomitantemente, mantivessem a coerência e
a métrica do verso.
Em um cordel de sua autoria, Jailton Pereira suprimiu a letra “s” da última palavra da
estrofe, deixando alguns versos com rimas flexionadas no plural e uma no singular.
Reconhecemos que é, hoje, consensual entre os cordelistas a ideia de que, na literatura de
cordel, não pode haver rimas singulares e plurais numa mesma estrofe, devendo o escritor
optar por uma ou outra.

Eles estão fabricando


Nanos robôs avançados
Dizem que lá no futuro
Eles serão injetados
199

Dentro dos seres humanos


Pro mal ser evitado
(Jailton Pereira)
Esse, também, pareceu ser um erro mais sofisticado, na medida em que ele não
retirou aleatoriamente uma letra da palavra, mas o seu marcador de plural (desinência de
número), transgredindo, assim, uma regra de métrica, ainda que, em razão disso, tenha
criado um erro de concordância. Diferentemente do tipo de erro efetuado por Jailton, Paulo
Pereira suprimiu a última palavra [fiel] do quarto verso, levando-o a ficar sem rima e
métrica, como no exemplo abaixo:

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa
(Paulo Pereira)

Tendo como base as considerações acima, percebemos que J. Borges e Paulo Pereira
foram os poetas que produziram, igualmente, um maior número de transgressões de rima (3
erros, cada um), ao passo que Zé Guri e Diosman realizaram, nos extratos dos cordéis que
lhes foram entregues (tanto nos que haviam sido produzidos por outros autores quanto nos
de sua autoria), um único tipo de erro. Contudo, as transgressões de Zé Guri e de Diosman
foram mais sofisticadas que as de J. Borges e Paulo Pereira.
Assim, de modo distinto ao que constatou Morais (2003), não encontramos, nesta
atividade, uma relação entre a quantidade de erros realizados e o grau de “sofisticação” das
transgressões efetuadas. No entanto, tal como este autor, percebemos que os poetas que
propuseram erros mais “elaborados” concentraram mais nas transgressões sobre os “pontos
problemáticos” da norma.
É mister enfatizar que, ao cometer propositalmente erros de rima, alguns cordelistas
tentaram não fugir da métrica e, em alguns casos, da oração: nas transgressões de rima,
notamos que J. Borges, Val Tabosa (em um dos erros), Diosman Avelino e Jailton Pereira
(em um dos erros) buscaram, inclusive, não fugir da oração (mantendo as outras regras
preservadas). Isso pareceu ser mais difícil para os poetas Zé Guri e Paulo Pereira.
Todos os participantes conseguiram justificar os erros de rima que haviam cometido.
Apresentamos, a seguir, as verbalizações de J. Borges sobre as transgressões que efetuou nos
fragmentos dos cordéis.
Entrevistadora: O senhor vai me dizer como uma pessoa que tem muita dificuldade em
escrever cordel poderia errar e cometer erros de rima nessas estrofes aqui.
J. Borges: Bem, aqui, cometer um erro de rima? No cordel tem que rimar a segunda com a
quarta e a quarta com a sexta. Agora, cometer um erro de rima... Aqui diz:
200

Eis a real descrição


Da história da donzela

[continua a leitura da estrofe em silêncio]


Então, poderia ser:
Eis a real descrição
Da história da princesa
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Quer dizer, não estava rimando com princesa, né? Rimou uma com ela (ELA e DELA), mas
essa [PRINCESA] não. É uma rima negativa essa.
Aqui diz:

Em pouco tempo ela tinha


Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
Com o instrumento dela

Quer dizer, aqui armava o mesmo sentido, mas no último verso desmanchava a rima.
Entendeu?

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama fiel esposa
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

Aqui, ele trocaria a “dama esposa fiel” por “dama fiel esposa”. Agora, tem uns que não faz
nenhuma rima. Sai dizendo, assim, a história (Bá-bá-bá...) como quem está escrevendo
mesmo alguma coisa. Aí fica tudo errado. Não fica um verso com rima.

Na situação acima, observamos que Borges, ao pensar em um cordelistas iniciante,


propôs a criação de versos sem rima nas três transgressões realizadas. Como já dissemos, há
uma discussão entre os poetas de que a rima consoante seria o arquétipo a ser empregado
nos cordéis, ainda que as rimas assonantes fossem também possíveis. Todavia, concebemos
que substituir um rima consoante por uma rima branca (sem semelhança sonora e gráfica)
seria um erro mais fácil de ser cometido, ao contrário das transgressões feitas por Zé Guri,
Diosman e Jailton Pereira. No caso deles, produzir rimas assonantes parecia consistir,
conforme dissemos anteriormente, em um erro mais sofisticado, por motivos já
referenciados. Acreditamos, de igual modo, que criar na sextilha rimas entre versos errados
(como rimar o 1º, 3º e 5 na sextilha), por exemplo, também seria um tipo de transgressão
que exigiria maior nível de reflexão e compreensão da regra
201

Outros recortes das transgressões e explicitação dos erros serão, também,


apresentados e, aqui, resgatados para ampliar nosso entendimento. O cordelista Val Tabosa,
como se notará, embora tenha verbalizado que a rima assonante poderia constituir uma
possível transgressão à regra – conforme observado na análise das verbalizações
apresentadas no capítulo anterior –, não conseguiu cometer esse tipo de erro, usando as
estrofes que disponibilizamos. Convém salientar, de um modo especial, esse aspecto, pois,
ao que tudo indica, o conhecimento das regras, embora fosse importante e necessário, não
era uma condição suficiente para conseguir realizar determinadas transgressões.

(...)
Entrevistadora: Pronto, esse verso está correto. Agora, quero que o senhor me diga de que
forma essa estrofe, um cordelista iniciante poderia errar em relação à rima, por exemplo. O
senhor está entendendo?
Val Tabosa: Estou entendendo. Agora, se é pra errar, é desordenar. Por exemplo, se eu
botasse aqui:
Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Val Tabosa: Então, se ao invés de eu botar “Tirando tudo direito”, eu botasse “Da história
grande dela” e botasse “Tirando tudo direito” na última frase do verso.
Entrevistadora: Então, em relação à rima, o senhor acha que o erro seria em relação à
organização dos versos?
Val Tabosa: É, ou então não rimar com a rima fonética ou sonante.
Entrevistadora: Então, me dê um exemplo.
Val Tabosa: Por exemplo, aqui as rimas estão fonéticas, porque eu falo da mesma forma e
também consoantes, porque termina em ELA, certo? Por exemplo, se eu rimasse CÉU com
MEL.
Entrevistadora: Agora, eu quero que o senhor me diga em relação a essa estrofe.
Aponta, então, para a seguinte estrofe:

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

Val Tabosa: Ah, de ficar errado? Só se você inverter. Cada verso é uma linha. Vamos dizer
que o quarto verso a gente bote ele no terceiro. Aí, fica fora da rima. E pra tornar ela diferente
a gente poderia rimar com outra palavra que tivesse esse som, mas não tivesse...
Entrevistadora: Tipo qual? Me dê um exemplo nessa estrofe.
Val Tabosa: MEL e CÉU rima também, não tem problema algum. Está dentro da temática da
poesia. Mas, para que ela fique mais completa, pra julgamento, você formá-la assim, com as
mesmas letras na sílaba final e com o [mesmo] som, melhor ainda. A rima quebrada é você
trocar totalmente... Por exemplo, aqui:
Donzela qual é a coisa
202

Mais doce do que mel?


O amor do pai a um filho
Ou dama esposa admirada

Aqui, você quebrou a rima. Aqui tem FIEL que está na rima certa. Você pode trocar FIEL por
HONESTA que não dá rima. Você dá o mesmo sentido, mas... Aqui tem “Dama esposa fiel”,
mas eu poderia botar “Dama esposa honesta”. Então, essa estrofe está completa, está bem feita,
e a gente poderia quebrar se tirar a rima substituindo por uma palavra que não dá rima.

Outrossim, ressaltamos que a dificuldade de produzir determinados erros poderia ter


relação com as estrofes escolhidas para a transgressão. Desse modo, as transgressões feitas
também estavam influenciadas pela estrofe e pelas restrições que ela impunha. Val
conseguiu dar um exemplo de uma transgressão com rima fonética (MEL E CÉU), mas não
conseguiu fazê-lo nessa estrofe.
Jailton Pereira propôs uma substituição da rima consoante pela assonante (da mesma
maneira que Zé Guri e Diosman) e fez uma mudança na flexão de número do substantivo.
No diálogo, abaixo, podemos observar um excerto do da sua explicação:

(...)
Entrevistadora: Pronto, o senhor vai começar por esse aqui, que é “A história da donzela”.
Em relação à rima, eu queria que o senhor me dissesse de que forma essa estrofe poderia ficar
errada.

Jailton Pereira: Essa aqui eu vou fazer em silêncio, aí depois eu vou ver se eu lhe digo
alguma coisa.

Entrevistadora: O senhor pode ler logo, depois o senhor diz.


Jailton Pereira: Tá bem.

[lê em voz alta]

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

Jailton Pereira: Na minha opinião é onde poderia errar, porque no início acontece muito
isso. Essas duas estrofes... Vou primeiro na questão da rima. Eu acho que poderia ocorrer erro
aqui, porque as rimas “mel”, “fiel” e “fel” o povo tem o hábito de rimar isso com “céu”,
“chapéu”. Aí é uma rima sonante, que é o som, mas a escrita, se você olhar, não rima. Aí, eu
acho que poderia ocorrer um erro aí.

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa pitéu
A ingratidão de um desses
203

Amarga mais do que fel


(...)
Entrevistadora: Usando o cordel do senhor, como poderia errar em relação à rima? Nessa
estrofe aqui, por exemplo:

Eles estão fabricando


Nanos robôs avançados
Dizem que lá no futuro
Eles serão injetados
Dentro dos seres humanos
Pros males serem evitados

Jailton Pereira: Aí poderia, é...


Eles estão fabricando
Nano robôs avançados
Dizem que lá no futuro
Eles serão injetados
Dentro dos seres humanos
Pros males serem evitado

Entrevistadora: Ah, tirar o “s”?

Jailton Pereira: É, eu teria cometido um erro de rima. Aí essas coisas acontecem muito no
início, tá entendendo? Da questão... a gente nem se preocupa. Pronto, não tinha saído da
temática ou da métrica, mas tinha cometido um erro de rima.

Entendemos que, no trecho acima, apesar do poeta fazer a rima fonética (EL –ÉU),
pareceu, de fato, ser difícil encontrar uma palavra que reunisse as condições de semelhança
fonética, mas não gráfica, e pertinência ao contexto semântico. Uma primeira constatação
que pode ser realizada em torno desta atividade é que a quantidade de transgressões de rima
não resultou na elaboração de erros mais sofisticados. Sem embargo, precisamos ressaltar
que a tarefa de transgressão de rima, segundo o cânone da literatura de cordel, foi mais fácil
para os poetas que as que envolviam a métrica. A partir das entrevistas, Morais (2003)
também concluiu que algumas crianças tinham mais dificuldade em verbalizar algumas
regras ortográficas que outras, mesmo aquelas com excelente rendimento ortográfico.
No caso dos repentistas, Sautchuk (2009) explica que as habilidades, muitas vezes,
derivam de princípios práticos incorporados através da experiência (como, por exemplo, a
métrica) e não de um saber reflexivo organizado por regras formuladas objetivamente, como
a rima, em que há uma verificação escrita. Para o autor, essas capacidades incorporadas
trabalham quase sempre em um plano não consciente e, por isso, os poetas dificilmente se
dão conta da lógica implícita nas suas ações.
204

6.1.2 Análise das produções de transgressões de métrica

Em relação à métrica, os erros produzidos pelos cordelistas correspondiam,


majoritariamente, ao acréscimo, retirada e substituição de palavras por outras com maior ou
menor quantidade de sílabas poéticas. Dessa maneira, por exemplo, os versos
heptassilábicos (sete sílabas poéticas) eram alterados, sendo transformados em versos
hexassilábicos (6 sílabas) ou em eneassilábicos (9 sílabas). No Quadro 27, apresentamos os
tipos de erros relativos à métrica que foram efetuados pelos poetas.

Quadro 27 – Produção de erros de métrica

Poetas entrevistados

Total por
Produção de erros J. Paulo Val Diosman Jailton
Zé Guri cada erro
de métrica Borges Pereira Tabosa Avelino Pereira
cometido
Acrescenta
palavras para
aumentar a
X X X X X 5
quantidade de
sílabas poéticas

Retira palavras
para diminuir a
quantidade de X X X 3
sílabas poéticas

Substitui palavras
por outras com
maior ou menor
X 1
quantidade de
sílabas poéticas

Altera a
quantidades de
verso por estrofe,
X 1
deixando algumas
com seis versos e
outras com sete
Comete erros de
X 1
Rima
Total de erros
2 2 2 1 2 2 11
por poeta

Fonte: A Autora (2017)


205

A maioria dos erros de metrificação correspondia ao acréscimo de palavras com o


intuito de aumentar o número de sílabas poéticas. Assim, esse tipo de erro foi cometido por
quase todos os poetas, com exceção de Paulo Pereira.
Não houve variações expressivas entre os poetas no que concerne à quantidade de
erros cometidos, pois cada um deles fez dois erros, à exceção de Val, que efetuou um único
tipo de erro de métrica. De modo geral, as transgressões propostas pelos depoentes foram de
alteração de sílabas poéticas (retirada, acréscimo ou substituição de palavras), o que pareceu
constituir um erro mais sofisticado/complexo. Apenas Paulo Pereira cometeu um erro quanto
à quantidade de versos das estrofes, o que se relaciona à métrica, além de ter cometido um
erro de rima, que não é propriamente de métrica.
Para ampliarmos a compreensão sobre tais erros, torna-se fundamental
apresentarmos alguns exemplos. Ilustramos, primeiramente, os erros que correspondiam ao
acréscimo e retirada de palavras com o intuito de aumentar e/ou diminuir a quantidade de
sílabas poéticas dos versos, como evidenciado na transgressão de Borges:

Que só Salomão
Teria um igual conhecimento

O poeta, a fim de diminuir a quantidade de sílabas poéticas do primeiro verso, retirou


a palavra TERIA e a dispôs na segunda frase. Vejamos um fragmento, na íntegra, deste
cordel:
Em pouco tempo ela tinha
Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
A qualquer um instrumento

Essa alteração realizada por Borges desmetrificou ambos os versos. No primeiro


caso, a quantidade de sílabas poéticas foi inferior ao necessário e, no segundo, esta
quantidade foi superior ao recomendado (de sete sílabas).
Com o propósito de aumentar a quantidade de sílabas poéticas, Diosman substituiu a
palavra “UM” por “É AQUELE” (É aquele cabra de Lampião). Na passagem que ora segue,
essa alteração pode ser observada:

Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado
Agora pelo sertão
206

Anda correndo visão


Fazendo mal assombrado

Pareceu-nos, também, importante demonstrar que Paulo, ao ser solicitado a


transgredir as regras de métrica, propôs um erro de rima, substituindo a palavra donzela por
casada, já que, segundo ele, erros de rima desmetrificam os versos (nos deteremos nas suas
justificativas mais à frente).

Eis a real descrição


Da história da casada
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Ainda sobre a metrificação, Paulo alterou a quantidades de versos por estrofe,


deixando uma estrofe com seis versos e outra com sete. Tendo esses aspectos em vista,
enfocaremos, agora, as justificativas verbais deste poeta sobre as transgressões de métrica.
Eis um fragmento referente à entrevista desse depoente:
Entrevistadora: Seu Paulo, se a gente fosse desmetrificar essa estrofe aqui, o que poderíamos
fazer?
Paulo Pereira: Tudo errado.
Entrevistadora: Dê um exemplo.
Paulo Pereira: Aí, você botava aqui, repare. Aqui num tem Donzela?

[Referindo-se à seguinte estrofe]

Eis a real descrição


Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Entrevistadora: Tem.
Paulo Pereira: Aí, você botava aqui outras palavras diferentes.
Entrevistadora: Tipo quais?
Paulo Pereira: Aí, você botava CASADA, aí já descontrolou.
Entrevistadora: Aí, se não rimar já desmetrifica tudo?
Paulo Pereira: Desmetrifica tudo.
Entrevistadora: E nessa estrofe aqui:
Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel
207

Paulo Pereira: Se fosse para desmetrificar? Aí, é você botar uma palavra que não dá certo com
MEL e nem com FIEL. Botou uma palavra diferente, já está desmetrificado. Olhe, você vê: MEL,
FIEL e FEL. Tá vendo que está rimado? Agora, se você botar outra palavra que não tenha MEL,
nem FEL, nem nada, aí já está desmetrificado. Qualquer palavra que você botar errada não dá certo.
Uma mulher que fez o cordel ela falava AMOR, aí falava SINCERIDADE, aí eu olhei e falei que
estava tudo desmetrificado isso aí.
Entrevistadora: A métrica também não tem relação com a quantidade de sílabas?
Paulo Pereira: Depende do seu cordel. Aqui tem 1, 2, 3, 4, 5, 6. Seis sílabas. Aqui já tem
1,2,3,4,5,6,7,8, tá vendo? Mas a palavra é obrigado você falar toda.
Entrevistadora: Como senhor sabe que está desmetrificado?
Paulo Pereira: Desmetrificado é se você fizer uma linha de um jeito, outra de outro (fazer um
cordel com seis versos em uma estrofe, outro com sete na outra estrofe, outro com oito...). Se você,
digamos, vai fazer um cordel e faz com seis e bota a rima errada ou bota uma carreira aqui [verso]
com poucas letras e aqui com muitas, aí, fica tudo desmantelo.
Entrevistadora: Mas, olhe, esse verso está menor do que o de cima. E agora?
Paulo Pereira: Mas num está falando a palavra certa (a rima)? Está entendendo como é?
Paulo Pereira: Eu vi um trabalho de um camarada que ele botava um verso aqui (curto) e outro
assim desse tamanho (comprido). Uma linha curtinha e outra comprida demais. Por que você está
conversando que tomou um banho de mar, foi pra tal canto, aconteceu isso e isso. Aí, você já está
contando aquele negócio ali. E outra que você não pode colocar umas estrofes com seis e outras
com sete.
(...)

A partir do exposto, ficou evidente que Paulo Pereira tentou explicitar as regras de
métrica, com base na extensão (comprimento) dos versos. Ao falar em “comprimento”,
parecia estar se remetendo às sílabas poéticas47, mesmo que não estivesse utilizando esse
termo técnico.
A esse respeito, advertimos, em concordância com Morais (2003), que ter algum
grau de “consciência” não significa, necessariamente, ser capaz de verbalizar. Por exemplo,
julgamos que há uma evidente consciência metatextual, quando o poeta consegue identificar
que a estrofe contém erros de métrica, mesmo que não saiba verbalizar que a quantidade de
sílabas poéticas é inferior ou superior ao que exige a regra. Não obstante a existência dos
liames possíveis entre a métrica e a rima, há distinções que o poeta Paulo Pereira não
conseguiu justificar.
Recorremos novamente a Sautchuk (2009), pois, segundo o autor, algumas
capacidades incorporadas através da prática e automatizadas são mesmo difíceis de serem
verbalizadas pelos poetas. Lahire (1998), ao inscrever no funcionamento do mundo social as
razões para não consciência dos atores ante seus saberes e fazeres, também chama a atenção
para o fato de que pouco sabemos falar sobre disposições construídas implicitamente nas

47
Como já salientamos, as sílabas poéticas diferenciam das sílabas gramaticais e os cordéis podem apresentar
versos heptassilábicos (7 sílabas poéticas) ou decassílabos (10 sílabas poéticas).
208

relações de interdependência como os outros, nas quais o que se “transmite” não é


propriamente um “saber”, mas um “trabalho” ou uma “experiência”.
Karmiloff-Smith (1994) afirma que, num primeiro momento, a aprendizagem
ocorreria, precipuamente, de maneira automática e repetitiva, porque existem na mente
informações implícitas, codificadas em forma de procedimentos, e que são passíveis de
executar do início ao fim determinadas ações, sem que se tenha acesso às suas partes
componentes de modo consciente. Com a progressiva flexibilidade cognitiva, os
conhecimentos podem ser redescritos, tornando-se explícitos, conscientes e verbalizáveis.
Durante a realização da atividade de produção de transgressões, todos os depoentes
mencionaram a dificuldade de errar propositalmente. Quanto a isso, Diosman disse-nos o
seguinte:

Entrevistadora: Pronto. Agora, eu quero saber em relação à métrica. Como é que poderia ficar
errado essas estrofes?
[O poeta lê:]
Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal assombrado

Entrevistadora: Se o senhor quiser pode ser só essa estrofe mesmo.


Diosman Avelino: Mas tá tão perfeito aqui. “A chegada de Lampião no inferno”, Zé Pacheco.
Em relação à métrica?
Entrevistadora: É. Como a gente poderia desmetrificar essas estrofes?
Diosman Avelino: Pra bagunçar aqui a estrofe dele, eu vou tentar.
Entrevistadora: Pode bagunçar do jeito que o senhor quiser.
Diosman Avelino: “Um cabra de Lampião”... “Um cabra de Lampião”. Alguém poderia colocar
aqui “Aquele cabra de Lampião”. A-que-le-ca-bra-de-lam-pi-ão. Tem nove, já não tá na métrica.
Se botar com dez fica com métrica. Quando a gente tenta acertar fica mais difícil de errar.
Quando a gente vai se dedicando, vai começando, vai se aperfeiçoando, parece que fica na sua
cabeça. Aí quando você quer errar por querer, aí fica mais difícil. Você pode errar por acaso, por
falta de um cuidado, de atenção. Mas dessa forma é mais complicado. Não precisa ser o verso
todo não, não é?
Entrevistadora: Não.
Diosman Avelino: Então tá bom, né? “Aquele cabra de Lampião”... Eu tô achando que ainda tá
na métrica.
Diosman Avelino: É porque eu tirei o “um”.
Entrevistadora: Aí, ainda tá na métrica ou não?
Diosman Avelino: Tá. Pode ver que tá. “Aquele cabra de Lampião”. Aque-le-ca-bra-de-lam-pi-
ão.
Entrevistadora: Pronto, me explique agora.
Diosman Avelino: É-a-que-le-ca-bra-de-lam-pi-ão. Tá vendo, tá desmetrificado, né? Com nove
sílabas. Aí se der continuidade aqui, na estrofe toda, você vai ver que tá na métrica.
Entrevistadora: Não entendi.
Diosman Avelino: Se você der continuidade à estrofe, com esse primeiro verso dessa forma, aí
209

vai tá desmetrificando a primeira linha.


Entrevistadora: Por quê?
Diosman Avelino: Aqui é em sete, esse cordel ele é feito em sete, em sete sílabas, costumo
dizer “é sete por sete”. Porque o decassílabo é dez e dez, dez linhas por dez sílabas poéticas. Aí,
eu costumo falar que a septilha é sete por sete, sete sílabas e sete versos. Então no caso “É
aquele cabra de Lampião/ Com nome de Pilão Deitado...” Se aqui ele tá todo na métrica, ficaria
a estrofe imperfeita com essa linha. Muita gente não vê.
Diosman Avelino: É porque essa questão da métrica... É interessante, é a parte que eu acho mais
chata na poesia, mas eu acho que é a parte que mais precisa ter no poema. Porque sem a métrica
fica difícil pra declamar, pra cantar. Aí, cada um tem uma forma. Tenho uma colega que ela
costuma falar que não conta. Eu acredito que a maioria conta nos dedos. De alguma forma conta
pra ver se tá na métrica, e ainda erra, muita gente ainda erra. Eu erro. Aí o que acontece: ela
falou que nunca contou. Ela é muito boa na poesia, ela é paraibana. Ela fala que pega tudo de
ouvido. Só de ouvir e metrifica. Eu tento metrificar cantando. Todo poema meu eu tento cantar.
Você começa cantar ele, você vê, fica mais fácil de achar onde não tá metrificado, engasga um
pouquinho. Não sai bem. Isso aqui eu já vi gente cantando isso, já vi declamado [lê cantando]:
.
Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado

Diosman Avelino: Facilita. Vamos ver se aqui ficaria [lê cantando]:

É aquele cabra de Lampião

Diosman Avelino: Tá vendo como fica feio? Fica bem esquisito. Eu vi um repentista,
considerado hoje um dos melhores do Brasil, eu vi num jornal ele falar que tem tanta gente hoje
fazendo folheto de cordel, mas desrespeitando essa questão da métrica, da rima, rimando de todo
jeito. Muita gente pensa que o cordel é só rimar, não tem métrica. E tem pessoas que não fazem
assim por tá iniciando. Eu mesmo já errei tanto. Graças a Deus, eu erro menos hoje. Mas
continuo errando, que a gente é aprendiz até morrer, mas continuo tentando errar menos. Porque
eu vou errando até aprender, errando até acertar. Então, uma hora sai mais ou menos, outra hora
sai bom.
(...)

Como notamos, muitas vezes, os poetas não contavam as sílabas poéticas das
estrofes para saber se o verso estava (ou não) desmetrificado, mas, ao que tudo indica, os
erros de métrica eram percebidos, sobretudo, de forma auditiva. Quando os poetas mais
velhos, como J. Borges, dizem que pode ser flexibilizado o critério do número de sílabas na
metrificação é porque é na performance oral que as coisas se ajustam. Ao mesmo tempo,
afirma que “escrevendo está errado”. Mesmo Diosman Avelino, poeta jovem e mais
escolarizado, justifica a pertinência do uso da metrificação – apesar de achar esse processo
“chato” – para que haja uma boa oralização (“pra declamar, pra cantar”).
Além de alguns entrevistados considerarem esta uma maneira mais fácil de
metrificar, uma das explicações factíveis, baseando-nos em Sautchuk (2009), é a de que a
incorporação da métrica se daria de maneira prática, diferentemente da rima, enquanto
210

técnica, que é mais acessível ao aprendizado pela explicação. Para atender à métrica, essa
regra parecia ser mais complexa e difícil de ser verbalizada e manipulada. Todavia, nem
sempre a dificuldade de verbalização correspondia à falta de conhecimento explícito, pois o
conhecimento poderia estar explícito, mas não acessível à consciência e muito menos à
verbalização (KARMILOFF-SMITH, 1994).

6.1.3 Análise das produções de transgressões de oração

Seguidamente, no Quadro 28, observamos as transgressões relacionadas à oração,


outro elemento constitutivo do cordel. Entendemos, consoante Gombert (1992), a coerência
– que se relaciona à oração – como a capacidade de controlar as diferentes ideias em um
texto, verificando se as mesmas são compatíveis.

Quadro 28 – Produção de erros de oração pelos poetas


Poetas entrevistados

Total por
Produção de erros J. Paulo Val Diosman Jailton cada
Zé Guri
de oração Borges Pereira Tabosa Avelino Pereira erro
cometido
Altera o verso,
colocando palavras
ou frases com o X 1
sentido oposto
(antônimo)
Altera parcialmente
os versos da estrofe,
criando frases sem X X X X 4
continuidade
temática
Cria uma nova
estrofe com
X X X 3
contradições de
sentido
Fuga temática X X 2
Total de erros por
2 1 1 2 2 2 10
poeta
Fonte: A Autora (2017)

No geral, cada poeta produziu de uma (1) a duas (2) transgressões e o tipo de erro
mais frequente (4 ocorrências) consistiu na alteração parcial dos versos das estrofes.
Apresentamos, então, alguns exemplares dos tipos de transgressões produzidas pelos
211

participantes. Começamos apresentando a estrofe que disponibilizamos ao poeta J. Borges, a


qual utilizou para realizar os erros:

Donzela qual é a coisa


Mais doce do que mel?
O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

Frente a esta estrofe, o cordelista propôs a seguinte mudança:


Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
É coisa que me admira
É provar um pouco fel
(J. Borges)

Nessa transgressão, apenas os dois últimos versos sofreram modificação,


diferentemente da estrofe seguinte, em que o cordelista modificou todos os versos, mantendo
apenas algumas palavras da estrofe original:
É coisa que me admira
É eu conheço também o fel
E para ser uma boa esposa
Não precisa de troféu
O fel amarga muito
E eu já sei como é
(J. Borges)

Desse modo, J. Borges modificou todos os versos da estrofe, comprometendo a


coerência global do texto e impossibilitando o seu entendimento (cria uma nova estrofe com
contradições de sentido). Ainda no tocante à oração, Zé Guri e Paulo Pereira criaram uma
nova estrofe, que não continha frases incoerentes entre si, mas fugia da temática do cordel.
Havia, pois, uma coerência interna à estrofe, mas não entre ela e o restante do cordel
(coerência global).

Ela deixou de aprender,


Deixou de estudar
Ao invés de morar aqui
Passou pra outro lugar
Nunca mais quis saber
Do que estava a procurar
(Zé Guri)
212

Val, nesta mesma atividade, substituiu apenas algumas palavras, substituindo-as por
antônimos. O poeta, então, alterou algumas palavras da estrofe na intenção de conferir ao
texto um sentido oposto.

Eis a real ficção [descrição]


Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta perdida [ganha] por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela
(Val Tabosa)

Os depoimentos, a seguir, nos auxiliam na observação dessas transgressões. O


depoimento, abaixo, ilustra os dois erros produzidos intencionalmente por J. Borges:

Entrevistadora: E se fosse um erro de oração nessa história da Donzela Teodora?


J. Borges: Erro de oração?
Entrevistadora: Sim.
J. Borges: Então, eu dizia:
Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
É coisa que me admira
É provar um pouco fel

[altera as duas últimas frases]

J. Borges: Então, quer dizer, sairia da oração, porque aqui ele perguntou qual é a coisa mais doce do
que o mel. Aí, ele diria:

É coisa que me admira


É eu conheço também o fel
E para ser uma boa esposa
Não precisa de troféu
O fel amarga muito
E eu já sei como é

[altera todos os versos da estrofe, deixando-os incoerentes entre si]

J. Borges: Quer dizer, misturou tudo, né? A oração que a gente chama é a concordância do assunto.
Então, é assim que fica errado dentro do assunto. Quando se vai escrever uma história, digamos uma
história de sofrimento, que tem um assunto que a pessoa fica aqui e vai buscar a outra pessoa que é o
protetor. Que diz:

Eu deixo fulano aqui


No seu grande sofrimento
E vou trazer fulano
Que é o seu intento

J. Borges: Avisa aqui no episódio que aqui parou o assunto e que vai buscar outro para seguir a
história (...).
213

Entrevistadora: E se fosse para errar na oração nesse seu cordel?


J. Borges: Oração é sair do assunto.

E Dedé ele gostava


Por ser a mais baixinha
O cabelo loiro, cacheado
Era muito engraçadinha
E todo dia ele chegava
Montado num cavalo
J. Borges: Então, saía do assunto.

À primeira vista, o depoimento nos chama atenção porque o poeta comete erros
diferentes, mas da mesma natureza (altera parcialmente os versos da estrofe, criando frases
sem continuidade temática e cria uma nova estrofe com contradições de sentido), pois em
ambos há uma incoerência semântica marcada pela contradição dos trechos. Em outro
exemplo, destacamos, em relação à fuga temática, a entrevista de Zé Guri, que emitiu a
seguinte justificativa:

Entrevistadora: Seu Zé Guri, e se a gente fosse cometer um erro de oração? Se a gente fosse deixar
sem oração essa estrofe de cordel, tinha como?
Zé Guri: A oração sempre, sempre é... Como a gente poderia fugir da oração? Por que aí é sobre a
história da Donzela, né? Aí, para sair da oração tem que sair da história dela também.
Entrevistadora: E como seria? Como faria?
Zé Guri: Tem de procurar outro assunto com outra pessoa ou com ela mesma, mas como se ela saiu
do estudo ou deixou de estudar e em vez de morar aqui passou pra outro lugar. Uma coisa assim, já
fora da ciência.
Entrevistadora: Eu quero que o senhor me diga a sequência dos versos como eles ficariam se a
gente fosse fugir da oração.
Zé Guri:
[O poeta lê:]
Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Em pouco tempo ela tinha


Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
A qualquer um instrumento

Zé Guri: Aí, se a gente quiser mudar, fica... Por que aqui vem só da sabedoria dela, aí a gente
poderia dizer que:

Ela deixou de aprender,


Deixou de estudar
Ao invés de morar aqui
214

Passou pra outro lugar


Nunca mais quis saber
Do que estava a procurar

Ela não quis mais saber das letras e de olhar a lição. Um negócio assim pra fugir do assunto. Aqui é
só contando a história da verdade dela, naquilo que ela estudou, na sabedoria dela. Aí, pra mudar de
estilo com ela mesma, tem que ser assim. Se fosse tirando ela da história dela é a mesma coisa de sair
da oração. Você é de Sanharó, aí para fugir da oração eu iria dizer que você não é de lá, mas é de
Tacaimbó. Aí, ao invés de ser dali, é dali. Aí, já mudou um bocadão. Ao invés de ser professora,
você já seria uma cordelista. Mudar qualquer coisa já é... né?

Com base nos dados já apresentados, quantificamos as transgressões de rima, métrica e


oração produzidas pelos poetas. Apesar de Paulo Pereira ter produzido mais erros (6 ao
todo), um deles estava relacionado à rima e não à métrica, como requeria a atividade,
conforme apontados anteriormente. Assim sendo, consideramos que ele cometeu 5 erros no
total, conforme representado na Tabela 5.

Tabela 5 – Quantidade de transgressões nas atividades de produção

Poetas entrevistados
Produção de J. Paulo Zé Val Diosman Jailton
transgressões Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira TOTAL

Transgressões de
3 3 1 2 1 2 12
rima

Transgressões de
2 1 2 2 1 2 10
métrica

Transgressões de
2 1 1 2 2 2 10
oração

Total de
transgressões 7 5 4 6 4 6 31
cometidas
Fonte: A Autora (2017)

É preciso atentar, a princípio, para a quantidade de transgressões cometidas pelos


participantes. Apesar de não haver diferenças expressivas quanto à criação de erros de rima,
métrica e oração, alguns dos poetas (J. Borges, Paulo Pereira e Zé Guri) pareciam ter um
conhecimento verbalizável das regras de métrica, mas não, necessariamente, dos acidentes
poéticos.
215

Dos seis entrevistados, J. Borges foi o poeta que se saiu melhor na tarefa de produção
de erros, do ponto de vista da quantidade de transgressões. Vale lembrar que ele era o
participante que tinha mais tempo como produtor do gênero (51 anos).
Os participantes do nosso estudo verbalizaram a maioria das transgressões
efetuadas, o que podia sugerir que muitas restrições da norma do cordel já teriam sido
redescritas em um nível explícito, conforme sugerido por Karmiloff- Smith (1994).

6.2 Análise da atividade de identificação de transgressões

Enfocaremos, neste tópico, as evidências obtidas nas tarefas de identificação das


transgressões às regras do cordel. Conforme já indicamos, disponibilizamos para os poetas
quatro trechos de cordéis (que não eram, necessariamente, as estrofes iniciais), contendo
duas estrofes cada. Solicitamos que os entrevistados se imaginassem como parte da
comissão julgadora de um concurso de cordel e avaliassem, com bases nos critérios de rima,
métrica e oração, os versos que lhes foram entregues. Cometemos, propositalmente, a
seguinte quantidade de erros nos quatro extratos dos cordéis: 3 de rima; 4 de métrica e 2 de
oração. Para cada estrofe elaboramos um ou, no máximo, dois tipos de erro.
De modo geral, notamos que muitas transgressões de rima eram identificadas, mas
não eram consideradas, por alguns entrevistados, como erro (aprofundaremos esta discussão
adiante). Ademais, quanto à identificação, dois movimentos de análise foram frequentes:
identificação de erros que não existiam e, também o inverso, a não percepção dos erros
cometidos, como no caso das rimas.
Gombert (1992) considera que o desenvolvimento da consciência metalinguística
exige um nível de controle e de explicitação verbal que não são encontrados em indivíduos
com nenhuma ou pouca escolaridade. Entretanto, evidenciamos que a atividade de
identificação de transgressões foi difícil mesmo para os poetas com maior escolaridade e que
o melhor desempenho em algumas atividades não esteve relacionado estritamente com o
maior nível de escolaridade.
Adiante, detalhamos, individualmente, o desempenho dos entrevistados nestas
tarefas. Explicaremos e discutiremos as transgressões tomando, sempre que possível, as
explicitações verbais dos poetas como exemplos concretos.
Nas estrofes de quadra, que serão apresentadas a seguir, cometemos,
intencionalmente, três erros: transgredimos a regra de métrica (o segundo verso da primeira
estrofe possui uma quantidade inferior de sílabas poéticas), de oração (não há continuidade
216

temática) e de rima (pois nas palavras TRAUMA e ALMA há uma coincidência gráfica
apenas parcial e não total). Tratamos, por conseguinte, a rima assonante como erro. No
Quadro 29 apresentamos os erros encontrados pelos poetas na quadra e destacamos em
verde aqueles que eles identificaram, mas não existiam nas estrofes e, em rosa, os que foram
identificados, mas, durante a entrevista de explicitação, os poetas relativizaram a regra.

Eu me transformo em palhaço
Ao lado do amor
Fazendo um circo de sonhos
Debaixo do cobertor

A presença é inconstante
A distância causa trauma
E o seu corpo é nutriente
Que alimenta minha alma

Quadro 29 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da quadra


Poetas entrevistados

Tipos de erro Total por


J. Paulo Zé Val Diosman Jailton
Identificados pelos cada erro
Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira
entrevistados identificado
Rima assonante
X X X X X 5
(RIMA)
Rima alternada
X 1
(RIMA)
Quantidade menor de
sílabas poéticas X X X X 4
(METRICA)
Quantidade maior de
sílabas poéticas X 1
(METRICA)
Fuga temática
X 1
(ORAÇÃO)
Total de erros
identificados por
3 1 2 2 1 1 10
poeta

Fonte: A Autora (2017)

Todos os erros presentes na quadra foram identificados, mas não pela totalidade dos
entrevistados. Outro aspecto a considerar é que alguns deles, como sublinhamos, apontaram,
inclusive, erros que não existiam nas estrofes ou, mesmo identificando, relativizaram o
emprego daquele erro.
No tocante à rima, J. Borges e Jailton Pereira atribuíram um erro à segunda estrofe
pelo emprego das palavras TRAUMA e ALMA. Embora os demais entrevistados (Val
217

Tabosa, Diosman Avelino e Zé Guri) tenham identificaram a assonância


(TRAUMA/ALMA), não viram como um erro, relativizando a regra. Em consonância com
os dados do Quadro 29, apenas para Paulo Pereira a rima assonante não se trataria, de fato,
de um erro.
Como vimos nas verbalizações, no capítulo anterior, essa exigência é, muitas vezes,
relativizada por alguns cordelistas (que ainda cometem esse tipo de infração). Percebemos,
também, algumas divergências nas respostas quando comparamos os resultados da tarefa de
produção e a de identificação de erros de rima: Diosman e Zé Guri cometeram esse tipo de
erro na atividade precedente, mas nesta apontaram que a rima assonante não seria,
necessariamente, uma transgressão à norma. De modo contrário, J. Borges não cometeu esse
erro na tarefa de produção, porém indicou que as rimas TRAUMA e ALMA estariam
erradas. Em face disto, observamos os dizeres de J. Borges acerca dessas estrofes:

Entrevistadora: Como o senhor já disse, já foi muito avaliador de concurso de cordéis.


Quero que o senhor se imagine em um concurso em que o tema é o Amor e o senhor vai
avaliar umas estrofes de cordéis que vou lhe mostrar. O senhor vai dizer o que acha dessas
estrofes, falar da métrica, da rima e da oração. O senhor vai me dizer. Vamos começar por
essa aqui. Esses são nomes fictícios, não são os nomes reais dos poetas.
J. Borges: [lendo]
Eu me transformo em palhaço
Ao lado do amor

J. Borges: Essa é quadrinha, né? Esse “AO LADO DO AMOR” está faltando, está fora... está
curto.
Eu me transformo em palhaço
Ao lado do MEU amor
Fazendo um circo de sonhos
Debaixo do cobertor
J. Borges: Essa última rima está curta, mas dá.

A presença é inconstante
A distância causa trauma
E o seu corpo é nutriente
Que alimenta minha alma

J. Borges: Bem, aqui dá pronunciando TRAUMA e ALMA, mas é a mesma coisa de MEL e
CHAPÉU. É uma rima comparativa, TRAUMA e ALMA. Por que aqui o “L” está
respondendo por esse ”U”. Os cantadores de embolada, os violeiros, eles fazem isso e todo
mundo aceita, mas escrevendo está errado.
Entrevistadora: E a oração, o que o senhor achou?
J. Borges: [o poeta lê novamente as estrofes em voz alta]
J. Borges: É, saiu. Saiu da oração, porque ele tinha que continuar o que diz nesses primeiros
versos aqui, mas aqui ele já vai falando da presença que é inconstante. Saiu do assunto para
outra coisa.
Entrevistadora: Se fosse para dar uma nota, qual nota o senhor daria?
J. Borges: Eu daria nota 5.
218

No verso “Ao lado do amor”, referente à primeira estrofe, os entrevistados J. Borges,


Paulo Pereira, Val Tabosa e Diosman Avelino consideraram que havia um erro de
metrificação. Segundo estes poetas, a quantidade de sílabas era inferior a sete, resultando em
um verso desmetrificado. Por isso, alguns deles (J. Borges, Paulo Pereira e Diosman
Avelino) sugeriram o acréscimo de mais uma sílaba poética (Ao lado do MEU amor). Sob
esse aspecto, Paulo Pereira explicou no excerto de seu depoimento:

(...)
Entrevistadora: Veja essa quadra.
[O poeta lê]:
Eu me transformo em palhaço
Ao lado do amor
Fazendo um circo de sonhos
Debaixo do cobertor

Paulo Pereira: Ficaria melhor “AO LADO DO MEU AMOR”. Faltou o “MEU”. Devia ter
botado MEU, mas está bom [relativizou o erro].
A presença é inconstante
A distância causa trauma
E o seu corpo é nutriente
Que alimenta minha alma
Paulo Pereira: Tá bom.
Entrevistadora: E a rima?
Paulo Pereira: Tá bom. Olhe, TRAUMA e ALMA, tá bom também.
Entrevistadora: Qual nota o senhor dá?
Paulo Pereira: Nota 8 também. Bote aí.

Caso, durante a contagem das sílabas, o poeta tivesse recorrido à diérese (separação
de dois sons vocálicos em sílabas distintas de uma mesma palavra), o verso não estaria
desmetrificado (A/O/LA/DO/DO/A/MOR), como o fez Jailton Pereira. Por isso, muitos
poetas mencionaram a dificuldade em avaliar. Durante a contagem das sílabas manualmente,
é necessário que o poeta leve em consideração o fato de que encontros vocálicos ora são
pronunciados como ditongo (sinérese) ora como hiato (diérese). Reiteramos que alguns
poetas não faziam a contagem manualmente, mas, sim, de forma auditiva. Sobre isso,
Sautchuk (2009) aponta que os versos, na cantoria, possuem uma quantidade fixa de sílabas
que comportam uma unidade rítmica específica, possibilitando a sua internalização e seu
uso sem que haja a necessidade de uma contagem “consciente” de sílabas e linhas.
Os participantes Zé Guri e Val Tabosa identificaram dois erros que não estavam
presentes nessas estrofes. Zé Guri, por exemplo, considerou que nas quadras as rimas
deveriam ser exclusivamente alternadas com esquema ABAB. No entanto, nas quadras é
obrigatório que as rimas sejam entre o segundo e o quarto verso, não sendo necessário que
elas sejam alternadas, como defendeu o poeta. Outro erro encontrado (por Val Tabosa), que
219

não conseguimos averiguar nas estrofes, foi em relação à quantidade de sílabas poéticas no
verso (Eu me transformo em palhaço), já que, se levarmos em conta a elisão, obrigatória, em
“transformo em”, a distribuição será a seguinte:
EU/ME/TRANS/FOR/MOEM/PA/LHA/ÇO. Apesar de contabilizarmos ainda oito sílabas, a
última é ignorada por motivos que já mencionamos.
Não podemos desconsiderar que a contagem poética parece obedecer ao ritmo do
canto ou declamação do verso: não são sílabas orais, nem gráficas, mas têm relação com a
dimensão sonora/auditiva. Poderia existir, assim, alguma interface com a consciência
fonológica, já que a extensão sonora da palavra é considerada pelos poetas.
Dando prosseguimento, passamos a analisar as transgressões identificadas na
sextilha, conforme podemos observar nas estrofes a seguir e no Quadro 30. Nesta sextilha,
os erros cometidos também foram de metrificação e de rima. Na primeira estrofe, o último
verso não tem a quantidade de sílabas poéticas necessárias (sete sílabas poéticas) e, sim, seis
(6). Na segunda estrofe propusemos um erro de rima (rima assonante).

A justiça do amor
Desmede em suas balanças
A chegada traz prazeres
Sua ida traz mudanças
E o peito se torna um túmulo
Guarda velhas lembranças

Meu corpo longe do teu


Sente falta dos amassos
Meus braços paralisaram
Sem enlaçar-me aos teus braços
E a alma vidraça frágil
Dividida em mil pedaços

Quadro 30 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da sextilha

Poetas entrevistados

Total por cada


Identificação J. Paulo Zé Val Diosman Jailton
erro
dos erros Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira
identificado
Rima
assonante X 1
(RIMA)
Quantidade
menor de
sílabas X X X X X X 6
poéticas
(MÉTRICA)
220

Quantidade
maior de
sílabas X X 2
poéticas
(MÉTRICA)
Total de
erros
2 1 1 1 1 3 8
identificados
por poeta
Fonte: A Autora (2017)

Todos os poetas entrevistados conseguiram identificar o erro de metrificação


cometido, intencionalmente, no último verso da primeira estrofe (GUARDA VELHAS
LEMBRANCAS). Assim, o trecho seguinte, extraído do depoimento de Jailton Pereira,
explicita essa transgressão à métrica:

(...)
Entrevistadora: Agora esse aqui, uma sextilha.
Jailton Pereira: Tá certo. “A justiça do amor” é muito interessante, né?
Jailton Pereira: Praticamente, a mesma coisa. Aqui [primeira estrofe] não houve erro de
rima, mas foi cometido um erro na métrica. Aí quando ele diz:

A justiça do amor
Desmedem suas balanças
A chegada traz prazeres
Sua ida traz mudanças
(bem metrificadinho)
E o peito se torna um túmulo
Guarda velhas lembranças

Jailton Pereira: Olhe, quebrou.

Entrevistadora: O senhor acha que tá faltando? O quê?


Jailton Pereira: Tá faltando. “Que guarda velhas lembranças”, aí ficava bacana.
Entrevistadora: Então o senhor acha que esse tá desmetrificado? Certo. Em relação a... e
esse, o que é que o senhor acha?

Meu corpo longe do teu


Sente falta dos amassos
Meus braços paralisam
Sem alcançar-me aos teus braços
E a alma, vidraça frágil
Dividida em mil pedaços

Jailton Pereira: Esse nem tanto, dava pra engolir, mas tem alguma coisinha, tipo esse
“aos” aí, de “aos teus braços”.
Entrevistadora: O senhor acha que era melhor tirar?
Jailton Pereira: É. “Sem alcançar aos teus braços”.
Entrevistadora: “Sem enlaçar-me”, o senhor acha que tá passando? E em relação à rima?
Jailton Pereira: Está travando.
Jailton Pereira: A rima aí tá bacana [referindo-se à primeira estrofe].
221

Entrevistadora: Mas o senhor identificou o quê?


Jailton Pereira: Foi, porque aqui não tão rimando consonantemente, mas sim
sonantemente. Mas pode deixar. É um erro, mas pelo menos eu perdoaria. Não sei se outro
cara mais rigoroso ou mais sábio do que eu perdoaria. Porque são graus de conhecimento
que talvez numa faculdade, que o cara é poeta também, ele talvez não considerasse. Mas é a
questão da velha opinião. Um árbitro vai fazer um julgamento de um pênalti, às vezes pra
muitos não é, mas ele viu e tem convicção. É a mesma coisa disso.
Entrevistadora: Que nota o senhor daria?
Jailton Pereira: Eu daria 7,5, porque a fechada foi muito boa. Eu vou até pegar... quem foi
o autor mesmo? (risos) A “vidraça frágil dividida em mil pedaços”. Isso é muito bom, a
fechada.

Atentamos que Jailton Pereira explicou que havia uma quantidade menor de sílabas
poéticas do que necessário por meio de um acréscimo ao dizer “Tá faltando”. O poeta não só
identificou o erro, como, também, produziu uma solução para metrificar. Ainda no tocante à
metrificação, J. Borges e Jailton Pereira aludiram sobre o segundo verso da segunda estrofe,
pois, para ambos, o uso do pronome oblíquo “me” era desnecessário e atrapalhava a
cadência do verso durante a leitura.
J. Borges explicou-nos que essa (AMASSOS, BRAÇOS E PEDACOS) seria uma
rima positiva (consoante), já que, nesse caso, deveriam ser idênticas apenas as duas últimas
letras “OS” das palavras. No entanto, consideramos que se trata de uma rima assonante e
não consoante, mas é importante ressaltar que é mais aceitável, para os poetas, a rima
AMASSOS, PEDAÇOS e ABRAÇOS do que TRAUMA e ALMA, por simples convenção.
Isso talvez explique o motivo pelos quais os demais entrevistados não apontaram essa
transgressão.
Já no que diz respeito à septilha, cada um dos cordelistas (J. Borges, Paulo Pereira,
Zé Guri, Diosman Avelino e Jailton Pereira) identificou apenas um erro nas estrofes (de
oração ou métrica). Todavia, cometemos dois erros, sendo um deles relacionado à
metrificação (na primeira estrofe) – a quantidade de sílabas poéticas é inferior ao exigido – e
outro de fuga temática (na segunda estrofe). Nessa direção, elaboramos o Quadro 31, que
ilustra esses dados.

A falta que ela faz


Posso descrever assim:
O peixe longe do rio
A flor longe do jardim
Quando eu estou no quarto
Do meu próprio eu me aparto
Sem seu eu perto de mim

Tô pensando em dar o troco


E preencher meu vazio
222

Senti no fio da meada


Sua vida por um fio
Como o ego faz cobrança
Vou provar que a vingança
Nunca foi um prato frio

Quadro 31 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da septilha


Poetas entrevistados

Total por
Identificação dos J. Paulo Val Diosman Jailton
Zé Guri cada erro
erros Borges Pereira Tabosa Avelino Pereira
identificado
Quantidade menor
de sílabas poéticas X X X X
4
(MÉTRICA)
Quantidade maior
de sílabas poéticas X X
2
(MÉTRICA)
Fuga temática
X
(ORAÇÃO) 1
Não identifica erros
X
1
Total de erros
identificados por
poeta 2 1 1 0 1 2 8

Fonte: A Autora (2017)

Para J. Borges e Jailton Pereira havia no verso Do meu próprio eu me aparto uma
desmétrica, mas, em seguida, relativizaram o “suposto” erro. Acreditamos que,
possivelmente, tenham visto como erro, porque a construção do verso soou estranha ao
pronunciarem. Dos seis entrevistados, apenas J. Borges identificou a fuga temática na última
estrofe, ao dizer que “Esse aqui está um pouco desmantelado o assunto. Fugiu da oração”,
conforme pode ser observado no relato que segue:

Entrevistadora: E esse aqui?


A falta que ela faz
Posso descrever assim:
O peixe longe do rio
A flor longe do jardim
Quando eu estou no quarto
Do meu próprio eu me aparto
Sem seu eu perto de mim

Tô pensando em dar o troco


E preencher meu vazio
Senti no fio da meada
Sua vida por um fio
Como o ego faz cobrança
223

Vou provar que a vingança


Nunca foi um prato frio

J. Borges: É, aqui estou achando que está desmetrificado um pouco “Do meu próprio eu me aparto”.
Tem uma sílaba a mais, mas, muitas vezes, o poeta escreve isso, sabe? Quando a gente lê, a gente
engole uma sílaba.
[O poeta lê]:
Tô pensando em dar o troco
E preencher meu vazio
Senti no fio da meada
Sua vida por um fio
Como o ego faz cobrança
Vou provar que a vingança
Nunca foi um prato frio

J. Borges: Esse aqui está um pouco desmantelado o assunto. Fugiu da oração.


Entrevistadora:: E da rima, o que o senhor achou?
J. Borges: VAZIO, FIO, FRIO está positiva. Por que esse é sete linhas. Aqui está a segunda com a
quarta. Agora, a quinta e a sexta rima e a sétima rima com a quarta. Está certo. Não tem erro não.
Entrevistadora: Que nota o senhor daria?
J. Borges: Eu dou nota 9.9.
Entrevistadora: Mesmo fugindo da oração?
J. Borges: Só não dou 10 por isso aqui [porque, segundo ele, houve fuga da temática].

A quantidade inferior de sílabas poéticas a sete, no primeiro verso da primeira


estrofe, foi apontada, conforme dissemos anteriormente, por quase todos os poetas (Paulo
Pereira, Zé Guri, Diosman Avelino e Jailton Pereira). Tomemos um exemplo:

(...)
Diosman Avelino: Você sabe que toada, aboio, é muito nesse estilo aqui. Eu falo muito em toada
porque eu gosto, meu avô gostava muito.
Entrevistadora: O senhor tem uma voz também de quem canta toada.
Diosman Avelino: Mas eu não canto não.
Diosman Avelino: [Cantando]: “Tô pensando em dar o troco / e preencher meu vazio / sentindo o
fio da meada/ sua vida por um fio / como o ego faz cobrança / vou provar que a vingança / nunca foi
um prato frio”.
Entrevistadora: Pronto, o senhor vai me falar tudo o que o senhor achou aí.
Diosman Avelino: Aqui tá bacana. Eu só tô achando que essa primeira linha, da primeira estrofe, tá
com seis sílabas poéticas: A-fal-ta-que-ela-faz.
Entrevistadora: E em relação à rima e à oração, porque o senhor tá falando só da métrica.
Diosman Avelino: É porque você só falando aqui você já tá vendo que tem oração e tem rima. E
aqui, tudo rima perfeito. Então tá bacana. Um verso bonito desse, não tem nem o que tá procurando.
Não tem como colocar feiura na beleza, não é?
Entrevistadora: Que nota o senhor daria pra esse aí?
Diosman Avelino: Rapaz, minhas notas é tudo assim [o poeta escreve 10].

Na décima em decassílabo (dez versos com dez sílabas poéticas) metade dos
entrevistados (J. Borges, Zé Guri e Diosman Avelino), também, não conseguiram identificar
os erros. Nesta, produzimos dois tipos de transgressões: na distribuição dos versos da
224

primeira estrofe e de metrificação no sexto verso da última estrofe. Quanto à rima, alteramos
os esquemas de rimas (ficando ABABACCDDC), mas deveria ser ABBAACCDDC. No que
tange a métrica, há uma quantidade inferior a dez sílabas poéticas.

No começo foi só uma figura


Preenchendo meu álbum de malícias
E o projeto mudou de estrutura
Inundou-me com flertes e carícias
Eu pensei que era mais uma aventura
Pela forma que o nosso amor se deu
Mas depois que o encontro aconteceu
Se na cama pudemos nos perder
Sem querer comecei a te querer
Ao tentar me esquecer que me esqueceu

Este meu coração um pobre músculo


Aceitou rejeitar instintos loucos
E a lembrança da ex foi aos poucos
Parecendo o cair de um crepúsculo
Por você meu amor foi bem minúsculo
Mas depois que ele em mim cresceu
Um minuto somente ao lado teu
Leva uma eternidade de prazer
Sem querer comecei a te querer
Ao tentar me esquecer que me esqueceu

Quadro 32 – Transgressões identificadas pelos poetas nas estrofes da décima

Poetas entrevistados

Total por
Identificação dos J. Paulo Zé Val Diosman Jailton
cada erro
erros Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira
identificado
Ordem dos versos X X 2
Quantidade menor
de sílabas poéticas X 1
(METRICA)
Não identifica erro X X X 3
Total de erros
identificados por
poeta 1 0 1 0 1 0 6

Fonte: A Autora (2017)

Os dados presentes no Quadro 32 indicam que metade do grupo dos entrevistados


(Paulo Pereira, Val Tabosa e Jailton Pereira) não detectou nenhuma transgressão à regra nas
estrofes da décima. Contudo, existiam dois erros. O primeiro foi em relação à posição dos
225

versos da primeira estrofe e na última estrofe e o segundo consistiu na metrificação


(quantidade maior de sílabas poéticas) na última estrofe.
J. Borges e Zé Guri reportaram-se à inversão dos versos. O segundo poeta explicou
essa questão:

Entrevistadora: Agora esse é o último.


Zé Guri: Isso são os poetas que escreve, né?
Entrevistadora: Esses são nomes fictícios, inventados, mas depois eu digo ao senhor quem fez.
Zé Guri: Isso é um martelo [versos com dez linhas e dez sílabas poéticas].
Entrevistadora: O que o senhor achou?
Zé Guri: Esse aqui está bem feito também, mas está trocado alguma frase. Aqui [primeira estrofe].
Zé Guri: Esse aqui está bem feito demais [segunda estrofe].
Zé Guri: A primeira estrofe está um pouco desencontrada.
Zé Guri: 1, 2,3,4,5,6,7,8,9,10. O martelo a pessoa começa ... Aí, para dar certo era para ter
colocado a terceira no lugar da quarta. Deixa eu ver como é que é.
No começo foi só uma figura
Preenchendo meu álbum de malícias
Inundou-me com flertes e carícias
E o projeto mudou de estrutura
Entrevistadora: O resto coloca normal?
Zé Guri: “Eu pensei que era mais uma aventura”. Pronto, rimou.

No começo foi só uma figura


Preenchendo meu álbum de malícias
Inundou-me com flertes e carícias
E o projeto mudou de estrutura
Eu pensei que era mais uma aventura
Pela forma que o nosso amor se deu
Mas depois que o encontro aconteceu
Se na cama pudemos nos perder
Sem querer comecei a te querer
Ao tentar me esquecer que me esqueceu

Zé Guri: Esse está trocado uma frase, mas achei tudo bonito. Tá tudo bom, mas só isso. Aí, muda
aqui. Bonito.
Entrevistadora: Que nota o senhor daria para esse aqui?
Zé Guri: Eu acho que essa frase trocada não foi o poeta não, foi quem escreveu. O poeta sabe
demais disso. Eu dava 10 mesmo. Isso foi erro de quem publicou.

Discorrendo sobre a desmétrica da última estrofe, Diosman advertiu:

Diosman Avelino: [lendo]


Este meu coração um pobre músculo
Aceitou rejeitar instintos loucos
E a lembrança da ex foi aos poucos
Parecendo o cair de um crepúsculo
Por você meu amor foi bem minúsculo
Mas depois que ele em mim cresceu
Um minuto somente ao lado teu
Leva uma eternidade de prazer
Sem querer comecei a te querer
226

Ao tentar me esquecer que me esqueceu

Diosman Avelino: Esse “que” não seria “quem”? Acho que é “quem” [refere-se ao último verso da
primeira estrofe] aqui viu. Sei não, você vê lá.

Este meu coração um pobre músculo


Aceitou rejeitar instintos loucos
E a lembrança da ex foi aos poucos
Parecendo o cair de um crepúsculo
Por você meu amor foi bem minúsculo
Mas depois que ele em mim cresceu
Um minuto somente ao lado teu
Leva uma eternidade de prazer
Sem querer comecei a te querer
Ao tentar me esquecer que me esqueceu

Diosman Avelino: Acho que tem uma coisinha pequena aqui, mas acho que eu não tenho ainda
conhecimento pra achar não. MAS-DE-PO-IS-QUE-E-LE-EM... Talvez tenha uma
escorregadazinha aqui. Não é necessariamente um erro.
Entrevistadora: E oração e rima?
Diosman Avelino: Ah, esse aqui tá tranquilo. Bonito.
Entrevistadora: Mesmo assim o senhor dá 10?
Diosman Avelino: É.

Diosman identificou e explicou o erro fazendo a contagem das sílabas poéticas.


Esclarecemos, ainda, que a tarefa de identificação foi feita logo após a de produção e o
cansaço pode ter, de algum modo, interferido na identificação, já que estas atividades
envolvem um esforço deliberado de reflexão. Resolvemos não comparar as atividades de
produção e identificação, porque na tarefa de identificação havia uma quantidade delimitada
de erros, enquanto na produção não. Além disso, na produção, não foram utilizados
exatamente os mesmos trechos de cordel com todos os poetas. Na Tabela 6, pode-se notar a
quantidade de transgressões identificadas por cada participante.

Tabela 6 – Quantidade de erros identificados na atividade de transgressão as regras de


rima, métrica e oração

Poetas entrevistados

J. Paulo Zé Val Diosman Jailton


Total
Borges Pereira Guri Tabosa Avelino Pereira
Identificação de
erros de rima
2 0 2 0 0 2 6
(3)
Identificação de
erros de métrica 2 3 2 2 4 2 15
(4)
227

Identificação de
erros de oração 2 0 0 0 0 0 2
(2)

Total de erros
identificados por 6 3 4 2 4 4 23
poeta
Fonte: A Autora (2017)

Todos os erros presentes nas estrofes foram identificados: 3 (rima); (4) métrica e (2)
oração. Apresentamos na tabela, apenas os erros que existiam e foram identificados.
Podemos afirmar, ainda, que os poetas J. Borges, Zé Guri e Jailton Pereira demonstraram
identificar um mesmo quantitativo de erros de rima. Contudo, é preciso ratificar que a rima
assonante, para muitos dos depoentes, não eram tidas como erro e, por isso mesmo, não
pontuaram nesse quesito. Reconhecemos que a “norma” tem um caráter sociocultural e que
seu uso é por vezes resultado de um dado “critério” e de “juízos de valor”. Muitos
entrevistados identificavam o erro, mas relativizavam as regras. No que tange à métrica,
chamamos atenção para o fato de que Paulo Pereira e Diosman Avelino foram os poetas que
menos produziram transgressões de métrica (estamos nos remetendo à atividade anterior),
mas foram os participantes que se saíram melhor na atividade de identificação de erros.
Estes dados pareceram, assim, demonstrar que não havia uma correspondência direta entre a
identificação e a produção. Quanto à oração, apenas Borges conseguiu apontar a existência
deste erro. Nossa hipótese é a de os poetas poderiam estar com a atenção mais centrada nos
aspectos formais (rima e métrica), o que fez com que deixassem em segundo plano o sentido
do texto (a oração). Isso talvez tenha ocorrido, também, porque as estrofes anteriores não
tinham tido problema de oração. Sendo assim, passaram a centrar o olhar na parte mais
técnica.
228

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse estudo teve como objetivo investigar os conhecimentos48que cordelistas


possuíam acerca do gênero discursivo que produziam, considerando as dimensões
sociodiscursivas, temáticas e composicionais desse gênero. Este foi, portanto, o mote de
escrita desta dissertação.
Para tanto, tomamos como referência autores como Bakhtin (2011) e Marcuschi
(2008) para discutir o funcionamento dos gêneros discursivos. No tocante à literatura de
cordel, apoiamo-nos, sobretudo, em Galvão (2002; 2006), Resende (2010) e Abreu (1993;
2006). No nosso quadro teórico, demos, ainda, destaque para o debate sobre o emprego do
termo “popular” (ABREU, 2003; BURKE, 2010; CERTEAU, 2012; CHARTIER, 2010;
ORTIZ, 1992; GALVÃO, 2005; GINZBURG, 2006; BAKHTIN, 2013). A tríade gênero
discursivo, cordel e cultura popular constitui o fio condutor do texto. Não obstante, a fim
de atingirmos nosso objetivo, valemo-nos, de igual modo, das reflexões tecidas em torno da
consciência metalinguística (KARMILOFF-SMITH, 1994; GOMBERT, 1992; SOARES,
2016), com enfoque na consciência metatextual (GOMBERT, 1992; SPINILLO; SIMÕES,
2003; SPINILLO, 2009).
Elegemos seis poetas, com idades que variavam de 81 a 34, dos quais uns
frequentaram alguns anos do Ensino Fundamental I e outros haviam concluído o Ensino
Médio. Com este grupo de participantes realizamos entrevistas semiestruturadas e duas
atividades de transgressão (produção e identificação) dos aspectos composicionais do gênero
(rima, métrica e oração). Os resultados deste estudo indicaram que a explicitação verbal dos
propósitos comunicativos do cordel não parecia estar diretamente relacionada à
escolarização, mas, ao que tudo indica, parecia influenciada pelo tempo de escrita do gênero.
Spinillo (2009) lembra que as funções dos gêneros podem ser aprendidas informalmente, em
situações do cotidiano, embora acreditemos que tais não são de fácil verbalização. Dito isto,
o tempo de escrita do gênero pareceu ter uma forte influência sobre a compreensão dos
aspectos funcionais do cordel.
Consoante os entrevistados, os atuais leitores de cordel têm sido constituídos,
sobretudo, por estudantes. Ainda segundo eles, os professores vêm utilizando o cordel como
objeto de ensino, muito frequentemente, para a transmissão de conteúdos escolares e não,

48
Ressaltamos, porém, apoiando-nos em Tolchinsky (2006), que conhecimento não é sinônimo de
verbalização, uma vez que há níveis de conhecimento que são acessíveis à consciência, mas não são
verbalizáveis.
229

necessariamente, para a aprendizagem do gênero. Reconhecemos que, durante grande parte


da história, o cordel esteve à margem da escola. Contudo, nas últimas décadas, ela tornou-se
um dos maiores mercados consumidores desse gênero discursivo, inclusive em outros
suportes materiais que não, necessariamente, o folheto. O surgimento deste “novo” público
leitor modificou as expectativas e práticas de escrita dos poetas.
Apesar de alguns dizerem não acionar informações sobre os possíveis leitores dos
seus textos durante o processo de escrita, as entrevistas demonstraram que esta era, sim, uma
das preocupações dos depoentes. Ademais, as temáticas dos cordéis, ainda que diversas, já
não eram as mesmas de outras épocas. Conforme eles afirmaram, os leitores já não têm
muito interesse por certos temas (como os heroicos) e não dispunham mais de tanto tempo
para a leitura e, em razão disso, tem-se buscado escrever textos mais curtos sobre temas da
atualidade.
Para alguns participantes o cordel deveria, inclusive, estar disposto apenas no seu
suporte prototípico (no caso, o folheto). Todavia, também como assinalamos, hoje temos nos
deparado com outras realidades diferentes daquela do cordel tradicional: lemos cordéis na
tela do computador, nos livros didáticos, em revistas, em obras paradidáticas, etc.
Para ter “o que dizer”, todos os poetas pesquisavam sobre o tema dos cordéis, mas
apenas os mais escolarizados faziam uso da internet. Estes, aliás, mantinham outras relações
com as tecnologias digitais, utilizando-as como meio para obter informações diárias,
divulgar eventos, participar de grupos de poetas, compartilhar cordéis, dentre outros. Por
outro lado, os poetas com menor escolaridade, apesar de não saberem manusear o
computador, recorriam a pessoas que transcreviam os textos e os imprimiam. Sendo assim,
o processo de produção passou a ser mediado, principalmente, pelo computador.
Vimos, ainda, que todos os entrevistados deram muita importância aos títulos de seus
cordéis, por entenderem a forte influência que eles exerciam sobre os seus leitores,
permitindo, por parte destes, o estabelecimento de inferências sobre o tema. Com a mesma
relevância dos títulos, indicaram as imagens presentes nas capas dos folhetos como
importantes artifícios estéticos e comerciais.
Sobre os aspectos composicionais, observamos duas tendências quanto aos
conhecimentos sobre a rima: aqueles que conseguiam explicitar verbalmente motivos de o
cordel ter rima e aqueles que não o faziam, apesar de considerarem a rima como um
elemento obrigatório na estrutura desse gênero. Quanto à métrica, vimos que alguns poetas
(menos escolarizados) utilizavam exclusivamente o recurso do “canto” para verificar se os
versos estavam, de fato, metrificados e tinham mais dificuldade nas verbalizações da
230

contagem das sílabas poéticas dos versos. Muitos, inclusive, afirmavam que o critério do
número de sílabas na metrificação podia ser flexibilizado, já que é na performance oral que
as coisas se ajustam.
No tocante à atividade de produção de transgressões, evidenciamos que, em relação à
rima, e distintamente do que constatou Morais (2003) acerca da ortografia, não houve uma
correspondência entre a quantidade de erros cometidos e o “grau” de sofisticação das
transgressões realizadas. Em outras palavras, os poetas que produziram um maior número de
erros de rima, nas estrofes que disponibilizamos, não foram aqueles que criaram erros
necessariamente mais “elaborados”. Entretanto, tal como Morais (2003), percebemos que os
participantes que propuseram erros mais sofisticados concentraram-se nos “pontos
problemáticos” da norma.
Pareceu ser mais difícil para alguns entrevistados transgredirem apenas a regra de
rima, mantendo as demais (métrica e oração) preservadas. Os tipos de erros mais frequentes
nesta tarefa foram de substituição das palavras dos versos. As transgressões à rima e à
oração pareceram ser, de modo geral, mais fáceis (em função da quantidade de erros
cometidos, do tempo gasto para o cumprimento da atividade e por todos terem conseguido
justificar as regras que as subjazem) do que aquelas que envolviam a métrica.
Quanto à métrica, os erros, na atividade de transgressão por indução se,
concentraram, majoritariamente, no acréscimo, retirada e substituição de palavras por outras
com maior ou menor quantidade de sílabas poéticas. Alguns poetas (aqueles com menor
escolaridade) utilizavam, exclusivamente, o recurso do “canto” para verificar se os versos
estavam de fato metrificados, demonstrando, por sua vez, dificuldade de verbalização desse
aspecto. Dado, também, evidenciado nas entrevistas semiestruturadas.
Uma explicação plausível, para Lahire (1998), é a de que os indivíduos são mais
conscientes dos saberes oriundos das aprendizagens explícitas. Em contrapartida, pouco
sabem falar sobre aquelas construídas implicitamente. Para Sautchuk (2009), na cantoria, a
métrica, ao contrário da rima, constitui um fundamento incorporado e muito de seu
aprendizado seria irrefletido, tendo em vista que não dependeria de um ensino explícito
intencional. Além disso, ao que tudo indica, os cordelistas mais escolarizados conseguiram
verbalizar as regras de metrificação e os acidentes poéticos (como são denominados, por
exemplo, a elisão, diérese e sinérese), porque não aprenderam tais princípios,
exclusivamente, por meio da prática e do contato com outros folhetos, tal como pareceu
ocorrer com aqueles outros.
231

Isso nos permite considerar que o maior domínio da linguagem escrita pode levar a
níveis mais sofisticados de explicitação e verbalização que, muitas vezes, não são
encontradas em pessoas com pouca escolaridade (GOMBERT, 2003). É importante
ressaltarmos que a dificuldade de verbalização não corresponde per se à falta de
conhecimento explícito, pois o conhecimento pode estar explícito, mas não acessível à
consciência e muito menos à verbalização (KARMILOFF-SMITH, 1994).
No que diz respeito à oração, cada poeta produziu de uma (1) a duas (2)
transgressões e o tipo de erro mais frequente (4 ocorrências) foi na alteração parcial dos
versos das estrofes. Chamamos atenção para o fato de que os entrevistados se saíram melhor
na atividade de produção do que na de identificação das transgressões de oração. Apenas um
cordelista (que tinha maior tempo de escrita do gênero) conseguiu indicar nas estrofes os
erros de coerência. É importante elucidar que, por terem que atentar, simultaneamente, para
diferentes aspectos (rima, métrica e oração), certos erros podem ter passado despercebidos.
Nossa hipótese é a de que eles poderiam ter centrado a atenção nos aspectos formais (rima e
métrica), deixando em segundo plano o sentido do texto (a oração), podendo ainda ter
havido efeito de ordem na aplicação.
Na atividade de identificação, no que tange à rima, todas as transgressões foram
identificadas, mas não pela totalidade dos entrevistados. Duas vias de respostas foram
dadas: identificação de erros que não existiam (sobretudo, em relação à métrica) e, também
o inverso: a não percepção dos erros cometidos, como no caso das rimas. Muitos poetas
chegaram a identificar os erros de rima assonante (pois não havia uma correspondência
gráfica e sonora), mas relativizavam o uso da regra. Naquela ocasião, não consideraram uma
infração grave aos preceitos do cordel. Sobre a identificação de transgressões de métrica,
não conseguimos estabelecer uma equivalência com a atividade de produção, já que os
depoentes que produziram menos erros foram aqueles que se saíram melhor na tarefa de
identificação de erros. É necessário pontuar que a tarefa de identificação foi feita logo após a
de produção e isso pode ter interferido, de alguma maneira, no resultado, uma vez que estas
atividades requerem um esforço deliberado de reflexão.
Não pudemos realizar comparações estritas entre os conhecimentos dos poetas, pois,
para termos um “controle” da atividade, teríamos que ter solicitado, por exemplo, que todos
eles cometessem o erro em uma mesma estrofe, o que não foi o caso. Devido ao curto
período disponível, também não foi possível, por exemplo, analisarmos, nas atividades de
transgressão, como os cordelistas lidavam com outros gêneros discursivos (identificar e
produzir transgressões em cartas, histórias clássicas em prosa, notícias, etc.). Outrossim, não
232

fizemos perguntas que contemplassem a escrita e divulgação online dos cordéis, bem como
sobre a dimensão estilística desse gênero. As relações entre produzir e identificar
transgressões, por exemplo, precisariam ser ainda aprofundadas. Estas e outras questões
merecem ser profundamente investigadas
A presente pesquisa, também, ratifica a importância da consciência metatextual,
tendo em vista que, para se tornar leitor ou produtor de textos competente, é necessário que
se tenha capacidade não apenas de usar a língua, mas, também, de refletir sobre ela. A partir
de sua realização, outras indagações ainda nos espreitam, quais sejam: os poetas que
possuem um nível de explicitação consciente-verbal das dimensões do gênero produziriam
cordéis mais bem elaborados? Para conseguir ensinar adequadamente determinados gêneros
discursivos na escola, os/as professores/as precisariam possuir conhecimentos do gênero e
de suas diversas dimensões no “nível explícito consciente verbalizável” (KARMILOFF-
SMITH, 1994)?
Diante disso, fechamos essa discussão também apontando que “o cordel já não é o
mesmo”, como disse o poeta Zé Guri. A literatura de cordel, por certo, modificou-se, mas
temos que continuar olhando para a sua história, pois não podemos compreender o cordel,
no século XXI ,sem nos familiarizarmos com a tradição e, também, não podemos
permanecer estéreis à inovação. Mudam-se os tempos, assim como mudam-se, em certa
medida, os gêneros; os seus propósitos de escrita; os seus leitores...
233

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APÊNDICE A - Roteiro da entrevista para seleção dos participantes da pesquisa

 Nome:
 Idade:
 Onde mora atualmente:
 Frequentou a escola? Até que série/ano?
 A partir de quando começou a produzir cordéis?
 Antes de começar a produzir cordéis, já tinha contato com eles? Onde?
250

APÊNDICE B - Termo de consentimento da participação da pessoa como voluntária

Eu,_________________________________________________________,
CPF___________________________, abaixo assinado, após a leitura (ou a escuta da
leitura) deste documento e de ter tido a oportunidade de conversar e ter esclarecido as
minhas dúvidas com o pesquisador responsável, concordo em participar do estudo (A
consciência metatextual de poetas populares sobre o gênero cordel), como voluntário (a).
Fui devidamente informado (a) e esclarecido (a) pelo (a) pesquisadora sobre a
pesquisa, os procedimentos nela envolvidos, assim como os possíveis riscos e benefícios
decorrentes de minha participação. Foi-me garantido que posso retirar o meu consentimento
a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade (ou interrupção de meu
acompanhamento/ assistência/tratamento).

Local e data ___________________________________________


Assinatura do participante: ________________________________

Presenciamos a solicitação de consentimento, esclarecimentos sobre a pesquisa e o


aceite do voluntário em participar.

(02 testemunhas não ligadas à equipe de pesquisadores):

Nome: Nome:

Assinatura: Assinatura:

Termo de consentimento livre e esclarecido

Convidamos o (a) Sr. (a) para participar como voluntário (a) da pesquisa,
provisoriamente intitulada, A consciência metatextual do gênero discursivo cordel: entre o
saber e o fazer saber poético, com a palavra, os cordelistas, que está sob a responsabilidade da
pesquisadora July Rianna de Melo, com endereço na Rua 18 de Copacabana, 102, centro,
251

Sanharó/PE, CEP 55250-000 - Tel.: (87) 99141.9277 e sob orientação do Prof. Dr.
Alexsandro da Silva e coorientação do Prof. Dr. Fábio Marques de Souza.

Caso este termo de consentimento contenha informações que não lhe sejam
compreensíveis, as dúvidas poderão ser tiradas com a pessoa que está lhe entrevistando e
apenas ao final, quando todos os esclarecimentos forem dados, caso concorde com a
realização do estudo, pedimos que rubrique as folhas e assine ao final deste documento, que
está em duas vias, uma via lhe será entregue e a outra ficará com a pesquisadora
responsável.
Caso não concorde, não haverá penalização, bem como será possível retirar o
consentimento a qualquer momento, também sem nenhuma penalidade.

Informações sobre a pesquisa:

1. Natureza da pesquisa: o (a) sr. (sra.) está sendo convidada (o) a participar desta
pesquisa que tem como finalidade investigar a consciência metatextual, uma
habilidade metalinguística cuja unidade de análise e reflexão é o texto (suas partes
constituintes, estrutura, convenções linguísticas e organização, etc.) sobre o gênero
cordel.
2. Participantes da pesquisa: participarão deste estudo seis cordelistas, sendo levado
em consideração, sobretudo, o seu nível de escolaridade.
3. Envolvimento na pesquisa: realizaremos entrevistas semiestruturadas, com a
duração aproximada de dois meses, e, para os registros dos dados, utilizaremos a
gravação de áudio. As entrevistas serão marcadas com antecedência e serão realizadas
em dias distintos, conforme a sua disponibilidade. O (A) sr. (sra.) tem liberdade de se
recusar a participar e ainda se recusar a continuar participando em qualquer fase da
pesquisa, sem qualquer prejuízo. Sempre que quiser poderá pedir mais informações
sobre a pesquisa através do telefone dos pesquisadores do projeto e, se necessário,
através do telefone do Comitê de Ética em Pesquisa.
4. Confidencialidade: O(s) pesquisador(es) irá(ão) tratar a sua identidade com padrões
profissionais de sigilo. Os resultados da pesquisa serão enviados para você e
permanecerão confidenciais. Seu nome ou o material que indique a sua participação
não será liberado sem a sua permissão. Uma cópia deste consentimento informado
será arquivada e outra será fornecida a você. Os dados coletados nesta pesquisa
através das entrevistas ficarão armazenados no computador pessoal da pesquisadora
252

July Rianna de Melo, sob a responsabilidade do orientador Alexsandro da Silva, no


endereço acima informado pelo período de mínimo 5 anos. Todas as informações
desta pesquisa serão divulgadas em eventos ou publicações científicas.
5. Pagamento: o (a) sr. (sra.) não terá nenhum tipo de despesa para participar desta
pesquisa, bem como nada será pago por sua participação.

__________________________________
(assinatura do pesquisador)
253

APÊNDICE C - Roteiro da entrevista semiestruturada 1

Identificação
1. Nome:
2. Idade:
3. Onde mora atualmente:
4. Profissão atual:
5. Profissão dos pais:
Experiência escolar
1. Frequentou a escola? Até que série/ano?
2. Fale um pouco sobre como foi o tempo em que você frequentou a escola.
3. Por qual razão parou de estudar? (apenas para os poetas pouco escolarizados).
4. Seus pais frequentaram a escola? Estudaram até que série/ano?

Experiências de letramento
1. Que tipo de material impresso você costuma ler (ou tem acesso) no dia a dia?
2. Com que frequência lê (ou tem acesso) a esses materiais?
3. Que materiais de leitura você tem em sua casa?
4. Como você obtém informações? Jornal impresso, televisivo, internet...?
5. Você costuma escrever alguma coisa no seu dia a dia? O quê?
6. Com que frequência você escreve XXXXX (indicar o nome do gênero(s)
mencionado(s) pelo entrevistado)?
7. O que as pessoas de sua família costumam ler e escrever no dia a dia?

Experiências como cordelista


1. Você já tinha tido contato com cordel antes de começar a produzi-lo? Onde? Como?
2. A partir de quando você começou a fazer cordéis? Como você aprendeu a fazê-los?
3. Alguém o incentivou a produzir cordéis? Quem?
4. Você tem um tema predileto para os cordéis? Como você escolhe os temas?
5. Antes da produção, você costuma realizar alguma pesquisa sobre o tema do cordel?
Onde? Por quê?
6. Quais são as etapas de produção dos cordéis até chegar às mãos dos
leitores/ouvintes?
7. Você faz alguma correção no cordel antes da impressão da versão final? Há alguém
que lhe ajuda com essa correção?
8. Você costuma declamar os seus cordéis em público? Em que situações? Para que
público?
9. Para declamar o cordel, você memoriza o texto ou não? Você o lê em voz alta?
10. Além do cordel, você costuma produzir outros textos? Quais?
254

APÊNDICE D - Roteiro de entrevista semiestruturada 2

1. Para você, o que é necessário que um texto tenha para ser considerado um bom
cordel?
2. De modo geral, para que serve o cordel (finalidade/objetivo/propósito)?
3. Para que você escreveu este cordel? (indicar um dos cordéis do poeta)
4. Em geral, quem são as pessoas que leem ou escutam cordel?
5. Quando você produziu esse cordel (indicar um dos cordéis do poeta), já imaginava
quem poderiam ser os leitores/ouvintes dele?
6. Nos cordéis aparece alguma informação sobre o autor? Qual?
7. Nesse cordel (indicar um dos cordéis do poeta), tem alguma informação sobre o
autor? Qual? (pedir para o poeta mostrar onde essa informação se encontra)
8. Todo cordel precisa ter o formato de livreto? Por quê?
9. De modo geral, quantas páginas tem um cordel?
10. Qual é o número de páginas desse cordel?
11. Todo cordel tem que ter imagem (xilogravura)? Por quê?
12. Todo cordel tem que ter título? Por quê?
13. Qual o título desse cordel? (pedir para o poeta mostrar o título se encontra e dizer o
porquê da escolha dele)
14. Que assuntos podem ser abordados em um cordel?
15. Qual o assunto desse cordel?
16. Todo cordel conta sempre uma história? Por quê?
17. Esse cordel conta uma história? (não sendo uma história, o que é esse cordel?)
18. De modo geral, um cordel aborda um único tema ou vários temas? Por quê?
19. Qual o tema (ideia central) desse cordel?
20. De modo geral, quantos versos tem cada estrofe de um de cordel?
21. Nesse cordel, quantos versos têm cada estrofe?
22. De modo geral, como é a métrica dos versos de um cordel?
23. Como é a métrica de cada verso desse cordel?
24. É necessário que todo cordel tenha rima? Por quê?
25. Nessas estrofes (mostrar a estrofe), quais palavras rimam? Por quê?

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