A Cosmologia Na Sala de Aula (Miolo, Prova 1)

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Copyright © 2022 L. Paulucci Marinho, P. H. R. S. Moraes e J. E.

Horvath

Editor: J OSÉ R OBERTO M ARINHO


Editoração Eletrônica: H ORIZON S OLUÇÕES E DITORIAIS
Capa: H ORIZON S OLUÇÕES E DITORIAIS

Texto em conformidade com as novas regras ortográficas do Acordo da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marinho, Paulucci, L.

A cosmologia na sala de aula / L. Paulucci Marinho, P. H. R. S. Moraes e J.


E. Horvath – São Paulo: Livraria da Física, 2022.

Bibliografia.
ISBN 978-65-5563-000-0

1. XXXXXX

00-0000000 CDD-000.0000

Índices para catálogo sistemático:

1. XXXXX 000.0000

Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB–1/3129

ISBN: 978-65-5563-000-0

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quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora. Aos infratores aplicam-se
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1998.

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Fone/Fax: +55 (11) 3459-4327 / 3936-3413
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SUMÁRIO
Introdução 11

Capítulo 1. O Cosmos: da Pré História até o século 19 15


Algumas considerações gerais a respeito do objeto de nosso estudo... 16
O Universo na Pré-História 18
O Universo nas Grandes Civilizações 20
A Cosmologia na Grécia Antiga 28
O Universo na Idade Média, o Renascimento e a Revolução Científica 39
Newton e o Universo até os começos do século XX 42
Atividade Didática 1: a determinação da paralaxe trigonométrica e estelar 45
Referências 49

Capítulo 2. A descoberta de Hubble e o nascimento da Cosmologia moderna 51


O cenário do início do século XX 52
A teoria da Relatividade Geral e a descrição do Universo 63
Uma nova cosmologia 67
Voltando no tempo 70
Atividade Didática 2: a escala de distâncias extragaláctica 73
Atividade Didática 3: A idade do Universo 74
Referências 76

Capítulo 3. Modelos Relativísticos de Cosmologia 77


Cosmografia: as quantidades próprias e comoveis, a propagação da luz e o 78
redshift
As distâncias em Cosmologia: distância angular e distância luminosidade e o 79
horizonte cosmológico
Outros fatos importantes a respeito da expansão de Hubble 84
A caminho do modelo cosmológico atual: a gravitação de Newton e os 85
desenvolvimentos do século XX
Como construir um modelo cosmológico e por que ele deve ser 92
fundamentado numa teoria de gravidade?
Modelos Relativísticos de Cosmologia 93
O lado escuro do Universo 102
Atividade Didática 4: curvas de rotação e matéria escura 122
Atividade Didática 5: As escalas de tempo no Universo 127
Referências 128

Capítulo 4. A História do Universo 131


A formação da estrutura no Universo 133
O que observamos no Universo atual 134
Da (quase) homogeneidade a estrutura atual: flutuações primordiais e 138
instabilidade gravitacional
A estrutura e o espectro de potência 144
Outras observações da estrutura do Universo 146
151
A radiação cósmica de fundo
O que é a radiação cósmica de fundo? 152
Os primeiros núcleos 161
A nucleossíntese primordial 162
Bariogênese e hadrossíntese: a origem dos prótons e dos nêutrons 169

A era inflacionária 171


O que é a Inflação? 172
As evidências observadas e as dificuldades da Inflação 176
Atividade Didática 6: a Inflação na sala de aula 177

A era de Planck 181


Constantes fundamentais, sistemas de unidades e a validade das teorias
físicas disponíveis 182
A Cosmologia na Era de Planck 184
Referências 186

Capítulo 5. A Cosmologia que vem do futuro do Universo 189


Cosmologia no futuro próximo 190
O futuro do Universo 195
Considerações finais 198
Referências 198

Apêndices 199

Apêndice A: O Modelo Padrão das partículas elementares 201


Referências 203

Apêndice B: Escalas de comprimento no Universo 205

Apêndice C: O Princípio Antrópico 207


O que é o Princípio Antrópico? 207
A formulação do Princípio Antrópico 209
Referências 211

Apêndice D: Ondas gravitacionais 213


As ondas gravitacionais são uma predição da teoria da Relatividade Geral 213
Que fenômenos produzem a radiação gravitacional? 216
Os detectores de ondas gravitacionais: interferômetros e massas ressonantes 220
Referências 223

Apêndice E: Testes observacionais da Teoria da Relatividade Geral 225


Referências 229

Apêndice F: As perguntas mais frequentes da Cosmologia (e as respostas que 231


temos hoje)

Apêndice G: A Cosmologia no contexto da Ciência, Tecnologia e Sociedade 235


Por que estudar o Cosmos? 235
Referências 237
A história temporal do Universo desde o
“instante inicial” até nossos dias

Introdução

A Astronomia é a ciência natural mais antiga, tendo despertado o inte-


resse da humanidade desde tempo imemoriáveis. Fenômenos astronômicos
como o nascer e o pôr do Sol, as fases da Lua e as estações do ano tem sido utili-
zados como referência na contagem do tempo, na agricultura e na localização
geográfica por séculos. O longo e difícil descolamento da Astronomia das religi-
ões e pseudociências, mais efetivo a partir do século XV, permitiu um avanço
enorme na explicação dos fenômenos observados com base em teorias físicas
que se aplicam à descrição da interação da matéria e radiação, espaço e tempo.
Além deste conhecimento utilitário, o desejo de ligar o destino do ho-
mem ao destino do Cosmos levantou algumas das maiores questões da Huma-
nidade. De onde viemos? Como todo começou? também são tão antigas como a
civilização mesma. Com o passar dos séculos, nosso entendimento do Cosmos
passou de diferentes mitos e lendas que descreviam como tudo surgiu a partir
12 A Cosmologia na sala de aula

de elementos sobre-humanos à descrição matemática da “máquina cósmica” na


Grécia Antiga. Copérnico e o Renascimento nos tiraram do centro do Universo,
concomitantemente à criação das lunetas, permitindo observações bem mais
detalhadas de nossa vizinhança cósmica. O desenvolvimento e evolução dos
telescópios e de novos métodos de análise da luz, com o advento da espectros-
copia, nos séculos seguintes foram determinantes para uma expansão cada vez
maior da extensão do Universo conhecido.
No século XX, teve lugar uma verdadeira revolução em nossa compre-
ensão do Universo. Além da criação da Mecânica Quântica para a descrição do
comportamento da matéria em escalas microscópicas, e da Relatividade Geral
para a descrição da gravitação, a descoberta de um Universo em expansão com o
trabalho de Edwin Hubble culminou em uma importante quebra de paradigma,
para usar a terminologia do filósofo Thomas Kuhn: a passagem de um Universo
estático, infinito e imutável a um Universo dinâmico, em constante evolução e
que tem uma origem.
Do ponto de vista tecnológico, a corrida espacial deixou um importante
legado para a Ciência e abriu as portas aos observatórios espaciais que, além de
melhorar a precisão e a profundidade com que imagens são obtidas com luz visí-
vel, também permitiu expandir as observações a comprimentos de onda inacessí-
veis desde a superfície terrestre devido à absorção atmosférica. Além disso, a As-
tronomia passou a analisar as informações contidas em outros tipos de mensagei-
ros diferentes da luz, com a detecção de raios cósmicos (elétrons, núcleos atômi-
cos, prótons e neutrinos que penetram a atmosfera terrestre provenientes do
Sistema Solar e muito além dele) e ondas gravitacionais. Tudo isso culminou em
uma compreensão sem precedentes dos componentes do Cosmos.
Além das estrelas, cuja formação, evolução e morte foram desvendadas
a partir do conhecimento da estrutura da matéria e dos ciclos de fusão nucleares
que geram energia em seus interiores, hoje se estuda uma variedade de outros
objetos astronômicos que são fundamentais para a consolidação do modelo
cosmológico vigente, chamado de modelo ΛCDM, que será descrito em detalhe
no texto. A formação e evolução das galáxias é um importante ingrediente na
avaliação da formação de estrutura no Universo. Estão diretamente associados à
proposta de existência de matéria escura, um dos grandes mistérios ainda a se-
rem resolvidos. Os quasares, buracos negros gigantescos que acretam matéria,
são extremamente luminosos e, portanto, possíveis de serem observados quan-
do o Universo ainda era muito jovem. As supernovas do tipo Ia, também por
emitirem grande quantidade de luz, podem ser observadas a diferentes distân-
A Cosmologia na sala de aula 13

cias provendo informação sobre mudanças ao longo da evolução do Universo, e


estão diretamente associadas à proposta da existência da energia escura, que
resulta a forma mais simples para explicar o comportamento da expansão cós-
mica mas cuja natureza é totalmente desconhecida.
A transformação da Cosmologia em um ramo da Ciência bem similar a
outros, no sentido de obter e interpretar observáveis em vez de discutir soluções
matemáticas abstratas somente se acelerou na segunda metade do século XX.
Uma das pedras fundamentais deste modelo ΛCDM é a observação da radiação
cósmica de fundo, uma relíquia de quando o Universo tinha uns 380 mil anos de
idade. A sua análise permite a derivação de quanta matéria/energia compõe o
Universo e em que forma se apresenta. Além disso, a chamada nucleossíntese
primordial, que identifica a formação dos núcleos durante os primeiros minutos
de evolução do Cosmos, indica um modelo cosmológico extremamente bem
sucedido e que explica as observações com precisão. Finalmente, levantamen-
tos em muito larga escala começam a revelar as maiores estruturas conhecidas e
a própria forma em que as galáxias se formaram.
Neste livro, o professor encontra a descrição sobre a origem e evolução
do Universo, considerando-se os desenvolvimentos mais recentes, para apro-
fundamento no tópico, além de algumas atividades que podem ser levadas
diretamente para a sala de aula. Estas atividades visam traduzir de forma sim-
ples alguns dos conceitos mais importantes dentro da Cosmologia, tópico que
desperta o interesse desta faixa etária. A proposta é a de estimular jovens a te-
rem mais contato com o meio científico, abrindo a oportunidade de questionem
a respeito dos métodos e suposições associados a interpretação dos dados que
nos permitem descrever toda a história do Cosmos. Ficará claro que a Cosmolo-
gia atual está longe de ser um jogo adivinhatório onde todo tem cabimento. É
importante notar, no entanto, que a Cosmologia, como toda a Ciência está sem-
pre em desenvolvimento, e não há garantias de que novas quebras de paradig-
ma aconteçam, conforme os estudos avançam. Ainda assim, o nível de sucesso
obtido com o modelo cosmológico atual indica que estamos no caminho certo.
Também pretendemos que fiquem claras as fronteiras e os limites do que é
conhecido, já que existe um grande número de instrumentos de última geração
que deverão esclarecer muitas questões em aberto (Capítulo 5).

Boa leitura!
Os autores - Fevereiro de 2022
Capítulo 1

Mosaico de Anaximandro de Mileto, considerado


“o primeiro cosmólogo” (século 6 A.C.)

O Cosmos: da Pré-História até o século 19


16 A Cosmologia na sala de aula

■ Algumas considerações gerais a respeito do objeto de


nosso estudo...

É frequente encontrarmos vários termos considerados similares para


descrever o estudo do contexto cósmico da humanidade. Por exemplo, as de-
nominações de “cosmovisão” ou “cosmogonia” são muitas vezes aceitas como
sinônimos de “cosmologia”, embora vamos ver que existem diferenças impor-
tantes de interesse educativo que precisam ser esclarecidas.
A forma mais acurada de denominar as relações entre uma sociedade
humana e o contexto cósmico é Astronomia cultural. Astronomia cultural não deve-
ria se referir ao “quanto os povos diversos sabem de nossos conhecimentos”, mas
antes denomina a forma na qual sociedades e grupos não-Ocidentais e da Anti-
guidade entendem o ambiente estendido que os abriga e ao qual estão intima-
mente conectados. De fato, esta é uma categoria social, não natural. Nesta perspec-
tiva é compreensível a impossibilidade de boa parte destes povos de separar o
Universo deles próprios, já que não concebem esta ideia de separação (em particu-
lar, isto acontece em quase a totalidade das etnias indígenas brasileiras [1]). Uma
cosmovisão é assim implícita, culturalmente desenvolvida, e resulta das tradições
específicas de cada sociedade. Poderíamos afirmar que como sistema de conhe-
cimento, justifica e embasa a forma em que os povos se vêem a si próprios, e ou-
tras entidades tais como o tempo, o espaço, entre muitas outras.
Em consequência destas considerações, é imediato notar que cada povo
detém alguma ideia mais ou menos elaborada a respeito da origem de tudo,
denominada genericamente cosmogonia. Existem elementos dos inúmeros mi-
tos da criação que são comuns, o que diz a respeito da natureza humana mais do
que de qualquer fato real relatado. Notamos assim que estamos ainda dentro
do domínio antropológico, não pertencente às Ciências exatas. Temos, por outro
lado, antecedentes ilustres deste tipo de relato cosmogônico no Ocidente. Pla-
tão no seu livro Timeu descreve a origem do Universo como o trabalho de um
demiurgo/artesão construtor com um plano baseado nas formas perfeitas (hoje
conhecidas como platônicas) [2]; mas também adverte sutilmente que as ques-
tões abordadas são muito complexas e que o relato é, antes de mais nada, um
mito. De fato, os platônicos posteriores têm defendido ao longo dos séculos
uma visão metafórica da criação narrada, embora existam controvérsias moder-
nas a respeito desta última interpretação secular.
A Cosmologia na sala de aula 17

As cosmogonias análogas à do Timeu são muito numerosas, e postulam


eventos fantásticos de forma sistemática, desde a origem a partir dos restos do
gigante Ymir na mitologia nórdica; até a descida de Tupã e Araci como criadores
dos Tupi-Guarani. Contrariamente ao que poderia ser pensado, existem elemen-
tos racionalistas em muitas destas cosmogonias mitológicas, mas a consideração
da racionalidade dos mesmos não é prioritária/hegemônica como acontece nas
Ciências ocidentais. Devemos aqui advertir que também é muito diferente a in-
terpretação e compreensão de uma cosmogonia ou cosmovisão no seu próprio
contexto cultural, do que a mesma coisa no contexto da nossa sociedade ocidenta-
lizada [3]. Normalmente, o que acabamos assimilando não é o original, mas a
reconstrução ocidental em termos dos nossos valores e parâmetros. Por este mo-
tivo, as tentativas de introdução nos currículos escolares destes temas está fadada
a distorção e erro quando praticada desta forma direta, não-antropológica.
A denominação de “Cosmologia” para este livro segue as práticas da Ciên-
cia ocidental, especialmente as desenvolvidas depois do século XVII, que define e
norteia nossa tradição cultural majoritária. Sua própria etimologia aponta para
implementar o conceito de logos, ou seja, explicação e definição conceitual racioci-
nada ao mesmo tempo [4]. A diferença entre a “cosmogonia” e a “cosmovisão”
discutidas anteriormente são muitas: além da prioridade da razão como elemen-
to metodológico e epistemológico, que exclui outras formas de conhecimento
(por exemplo, a revelação mística), deve-se notar que a Cosmologia pretende
excluir totalmente qualquer perspectiva social ou setorial. Tal como o resto das
Ciências exatas modernas, a pretensão da Cosmologia é a de construir um enten-
dimento do Universo utilizando categorias que são neutras, objetivas, eticamente
indiferentes e universais. Mais especificamente, desde o século XIX a Cosmologia
constitui progressivamente uma disciplina à parte, seguindo o caminho de outras
disciplinas cada vez mais aprofundadas e especializadas, embora fortemente
ligada à Matemática, Física e Ciências afins, e particularmente fundamentada na
observação e no experimento.
Após estas definições e ponderações, não é de estranhar a dificuldade de
lidar com estas ideias quando apresentadas a grupos e culturas com tradições
diferentes da Ocidental, pelo menos nas suas origens e desenvolvimento. O corpo
de conhecimentos não-ocidentais é facilmente qualificado de “primitivo”, “pré-
científico” ou termos similares, fato que reflete as diferenças intrínsecas que aca-
bamos de descrever. A síntese cognitiva/epistemológica entre esses pontos de
vista “científico” e “natural” é praticamente impossível, mais ainda quando existe
uma suposta posição claramente hierárquica adotada em favor da superioridade
18 A Cosmologia na sala de aula

epistemológica das Ciências tal como nós as concebemos. Como exemplo, pude-
mos testemunhar um episódio que aconteceu em um congresso internacional da
União Astronômica Internacional, onde uma astrônoma profissional dos Estados
Unidos descreveu uma viagem a um mosteiro do Tibete com o intuito de “mostrar
para os monges qual é seu lugar no Universo”. Por mais delirante que possa pare-
cer esta pretensão, o pior de tudo foi que nenhum dos 150 astrônomos e educado-
res presentes a achou descabida (a menos de um dos autores deste livro...). Boa
parte das diferenças descritas antes estão em evidência direta neste breve relato.
Para muitos antropólogos e sociólogos, estas esferas são incomensuráveis, e a
submissão da cosmovisão à Ciência resulta inevitável dado o ponto de vista ado-
tado. A alternativa às vezes seguida (o Relativismo Cultural) é igualmente pro-
blemática, mas por outras razões.
Tendo diferenciado e caracterizado os termos mais comuns utilizados, e
os fundamentos que os embasam, procederemos neste texto a discutir a Cos-
mologia como reconstrução racional da história do Universo fundamentada na
tradição Ocidental. Dentro de cada assunto ficarão evidentes os métodos e idei-
as que pairam nesta tarefa, tão importantes quanto os fatos apresentados como
“verdadeiros”, já que estes dependem daqueles de forma direta. Um panorama
histórico pode ajudar a ver com maior clareza esta longa tarefa que recebemos e
desenvolvemos nos dias de hoje, e a conectar o corpus de conhecimento com o
resto da cultura humana.

■ O Universo na Pré-História
A visão ambiente no qual estamos imersos, tanto o local (ou “Mundo”)
quanto o global (o “Universo”) deve ter sido contemporânea à emergência da
consciência humana e sua organização social elementar, ao menos como “cos-
movisão” no sentido do ponto anterior. A organização das sociedades (primeiro
caçadoras-coletoras, antes da emergência de grandes civilizações) teve segura-
mente os céus como atores importantes, já que existe farta evidência em um
número de casos da interdependência do mundo terreno com o cósmico . Po-
rém, não devemos esquecer a dimensão humana destas relações: já que se os
céus estão presentes para todos, a construção de uma relação com os objetos
reais e mitológicos é própria de cada cultura e cada momento histórico, não uma
realidade empírica objetiva como é para nós hoje, a ser entendida e quantitati-
vamente descrita.
A Cosmologia na sala de aula 19

Figura 1.1. O carreto do Sol achado em Dupljaja, atual Sérvia, um dos exemplos de transporte do
Sol compartilhado por várias culturas européias e indicativa de uma matriz cultural de traços
comuns Proto-Indo Europeus.

As dificuldades para tentar uma compreensão mínima da cosmovisão


dos povos do Neolítico e ainda da Idade de Bronze posterior são muito grandes.
Para os primeiros, os restos de assentamentos e locais de enterro são quase ine-
xistentes, existe uma simbologia abstrata de difícil interpretação e os relatos são
fragmentados. É muito possível, mas bem especulativo, a existência de uma
“herança” Neolítica mais ou menos universal presente nas civilizações Assíria-
Babilônia, Escandinava e outras denominadas Proto-Indo Européias e Proto-
Urales com uma discutível presença de elementos egípcios. A risco de cair em
uma generalização errada, podemos dizer que encontramos elementos cosmo-
gônicos comuns, tais como o desmembramento de algum ser sobrenatural (a
exemplo do gigante Ymir, que, por sua vez, emergiu do gelo lambido por uma
vaca pré-escandinava “primordial”...), uma trajetória do Sol que viaja em algum
tipo de carreto (como o representado na Fig. 1.1) e a partição do Universo/Mundo
em uma parte superior (habitada por seres geralmente benignos), uma inter-
mediária (domínio dos homens) e um infra-mundo povoado por criaturas me-
nos benignas, todos estes três setores em contato e troca contínua. Existem
evidências de uma abordagem xamanística para o contato com os seres sobre-
naturais dos outros mundos, e a primeira representação inequívoca dos céus (o
Disco de Nebra, Fig. 1.2) tem sido identificada como parte dessa presença [5].
20 A Cosmologia na sala de aula

Pouco podemos adicionar com certeza às cosmologias pré-históricas


além destas generalidades. A inomogeneidade e até algum caráter contraditó-
rio no pensamento desses povos a respeito dos céus tem sido apontada [6]. Mas
é o estágio inicial do pensamento humano que preparou para a emergência das
grandes civilizações na Idade de Bronze, abordada a seguir, e muito mais docu-
mentada e concreta, de tal forma a acrescentar elementos interessantes para
nossa cronologia cosmológica.

Figura 1.2. O Disco de Nebra, achado na atual Alemanha, representa o Sol, a Lua e as Plêiades (o
conjunto de pontos entre os dois). A datação é de uns 2000 A.C. Os arcos podem representar o
levantamento e o ocaso do Sol entre os solstícios. Fonte: Goethe Universitat Frankfurt

■ O Universo nas Grandes Civilizações


O crescimento e desenvolvimento de algumas sociedades antigas le-
vou-as a se assentarem geograficamente (não por acaso, às margens dos gran-
des rios navegáveis e crescidas que deixavam as terras férteis), produzindo as
primeiras Grandes Civilizações da História. Com diversos graus de herança pré-
histórica, novas ideias e visões do Universo foram se desenvolvendo nelas, se-
gundo descreveremos brevemente a seguir.
A Cosmologia na sala de aula 21

Mesopotâmia

Existem elementos de continuidade entre as civilizações Suméria -


Assíria - Babilônia. O primeiro deles é que ocuparam a mesma região geográfica,
a Mesopotâmia, e seu desenvolvimento foi sucessivo. Os sumérios são uma das
primeiras civilizações documentadas da História. Além de produzir o mais anti-
go poema épico de Gilgamesh em escrita cuneiforme, os sumérios acreditavam
em um Universo onde a Terra consistia em um disco plano encerrado por um
domo contendo os astros. Havia uma divisão em quatro quadrantes, cada um
associado com características geográficas terrenais, tais como florestas e mon-
tanhas, e sua origem (cosmogonia) estava ligada a uma série de “matrimônios”
ou arranjos entre seres divinos.
Os Assírios dominaram a cena a partir do ano 1000 A.C., e depois de dois
ou três séculos foram por sua vez ofuscados pela emergência de Babilônia. Nes-
te sentido, a cosmovisão que emerge é mística, porque enxerga os céus como
cheio de divindades (astros). Um mapa da Cosmologia Babilônica pode ser
apreciado na Fig. 1.3. Babilônia está localizada no centro do Universo e tanto a
Terra quanto o Universo a rodeiam, neste último, representado pelos símbolos
animais do Zodíaco. Um relato escrito da criação do mundo é o poema Enûma
Elish escrito em cuneiforme e que tem sido interpretado de várias formas bem
diversas, incluindo uma de caráter social sem relação com o mundo natural.

Figura 1.3. Babilônia no centro do Universo, tanto na Terra quanto nos céus indicados pelo Zodíaco.
22 A Cosmologia na sala de aula

Egito

A importância do Egito no Mundo Antigo é enorme, e sua influência


tanto no Oriente próximo quanto na Europa Central e Mediterrânea marcante.
Os egípcios desenvolveram uma cosmologia com muitas coisas em comum com
outros povos (por exemplo, os hebreus). Acreditavam que tanto a Terra quanto
os céus eram sustentados por pilares ou colunas (Fig. 1.4). Diversas regiões Mên-
fis, Heliópolis, etc.) tiveram sua própria versão cosmogônica, mas todas coinci-
dem em que o mundo emergiu de um oceano infinito num momento primor-
dial, onde o Deus-Sol Rá teve o poder para criar o mundo e a vida. Este instante
também coincide com a origem da deusa Nut e seu irmão Geb, Céu e Terra res-
pectivamente.
Enquanto o Cosmos egípcio é espacialmente infinito, a Terra está con-
centrada embaixo de uma redoma, e além do céu existe um oceano primordial.
Cada dia a deusa Nut engole o Sol, que passa a uma região oculta chamada Du-
at, e renasce dela pela manhã, enquanto o resto do Universo não parece ser afe-
tado. Um detalhe interessante é que no famoso Livro dos Mortos [7] menciona-
se a possibilidade do Universo acabar algum dia por vontade da divindade
Atum.

Figura 1.4. O básico de várias cosmologias do Mundo Antigo, incluindo a Egípcia e a Hebraica. A
Terra e o Céu estavam sustentados por pilares, com um infra-mundo inferior e água além do
firmamento que contém as estrelas.
A Cosmologia na sala de aula 23

Em suma, podemos destacar um instante de criação (embora existam


várias versões segundo a região e também a época, começando no Velho Reino
~2800 A.C.), uma forma de redoma finita com um oceano primordial infinito, e
uma periodicidade diária no renascimento do Sol através da deusa Nut que
mantém o ciclo dos dias/noites no mundo, e finalmente um possível final do
Universo que também deixa entrever um possível recomeço, tal como aconte-
ceu no Universo atual. A cosmovisão egípcia, em particular sua relação com o
mundo dos mortos, é muito conhecida e discutida e não resulta relevante para
nós aqui.

Figura 1.5. A deusa Nut (o céu estrelado) arqueada acima de Geb (a Terra, deitada) e mantida com
a ajuda de Shu (com as mãos em alto).

Índia

Na Índia o desenvolvimento de ideias cosmogônicas e cosmovisão co-


meça no vale do rio Indo com a cultura Indo/Harappa que floresceu por dois
milênios, desde ~3300 A.C. até ~1300 A.C. e que serviu como alicerce cultural aos
sucessores. No hinduísmo posterior observa-se uma síntese onde foram assimi-
lados elementos de vários outros povos de uma ampla região. O Universo hindu
foi apresentado em detalhe ainda antes dessa síntese, por exemplo nos textos
Védicos, séries de poemas originados em tradições orais e finalmente transcritos
desde 1500 A.C. aproximadamente. Os Vedas apresentam vários pontos de vis-
ta, inclusive contraditórios, a respeito da cosmogonia e as questões fundamen-
tais do Universo. Existem outras fontes importantes, tais como Upaniṣadica,
24 A Cosmologia na sala de aula

Épica, Purāṇica, não-Sanscrítica a respeito do Universo, sua origem e evolução. A


mais difundida cosmogonia mantém que o Universo começa com um sonho de
Vishnu, do qual o criador Brahma (forma masculina do Brahman, de gênero
neutro) emana e finalmente executa a construção do sonho. O Universo é cíclico,
com longos períodos de 311.04 trilhões de anos (número assustador medido em
tempo humano, mas correspondente a poucos dias do deus Brahma) antes de
ser destruído por Shiva e tudo recomeçar. Mas existem outros textos sagrados
com visões alternativas: transcrevemos um famoso hino do Rig Veda [8] de claro
caráter agnóstico e grande valor cultural (tradução dos autores do inglês)

No princípio foram as trevas, ocultas na escuridão


Sem marcas próprias, tudo era água
Que chegando a ser, encobriu o vácuo
Este pela força do calor, começou a existir

Quem sabe com certeza? Quem aqui vai afirmá-lo?


De onde foi criado? De onde é esta criação?
Os Deuses vieram depois, com a criação deste Universo
Quem sabe então de onde veio?

Se foi criado pela vontade dos Deuses, ou se Ele estava em silêncio;


Talvez criou-se a si próprio, ou talvez não
Só Ele que observa no mais alto dos céus sabe.
Só Ele sabe, ou talvez não

Além do tempo cíclico, a Cosmologia hindu contém alguns componen-


tes muito diferentes de outras culturas, que resultam relevantes numa leitura
atual (sempre lembrando do contexto antropológico). Embora a estrutura espa-
cial do mundo resulta para nós um tanto quanto ingênua (Fig. 1.6), a escala de
distâncias do Universo é para os hindus muito diferente da simples distância a
uma redoma: no Mahābhārata (escrito entre os séculos IX A.C. até IV A.C.) afir-
ma-se que as estrelas são objetos enormes com brilho próprio e que estão locali-
zadas a grandes distâncias, de tal forma que o Sol não seria visto a partir delas. A
fonte de tal informação (notavelmente acurada) é incerta. Também admite a
existência de outros Universos, em número ilimitado, habitados por outros seres
vivos, ou seja, algo como o multiverso científico. Existem esforços para mostrar o
paralelismo da Cosmologia hindu com o Big Bang e conceitos similares [9].
A Cosmologia na sala de aula 25

Figura 1.6. O complicado esquema da Terra sustentada por quatro elefantes acima de uma tarta-
ruga na cosmologia hindu. A serpente que morde seu rabo é indicação do tempo cíclico, medido
em dias de Brahma.

China

A China milenar é uma surpresa a respeito de mitos cosmogônicos:


embora os chineses conseguiram feitos notáveis em Astronomia (por exemplo,
a identificação dos cometas de curto período no Livro da Seda no 400 A.C.), a Chi-
na não detém nenhum mito cosmogônico antigo claramente identificável. Os
autores especializados assinalam que a cultura Han, por exemplo, identifica a
origem com os reis antigos, mas não se preocupa com a existência de um instan-
te de criação primordial ou suas circunstâncias. Como dito anteriormente, isto é
sinal de uma cosmovisão e não de uma cosmogonia. Em outras palavras, o
mundo chinês é mais uma categoria social/cultural que uma categoria natural. É
talvez o único caso entre as Grandes Civilizações desta ausência [10]. Alguns
relatos cosmogônicos posteriores existentes (~ século IV A.C.), já contém o co-
meço do Universo com a doutrina dos opostos (yin e yang) e uma “energia vital”
qi, e ainda existe a ideia de que alguns mitos com a participação de divindades
possam ter sido importados durante a expansão chinesa Han.
26 A Cosmologia na sala de aula

América

Em comparação com as civilizações apresentadas, as Grandes Civiliza-


ções americanas são relativamente mais modernas, estabelecendo seu auge
entre o primeiro e o segundo milênio D.C. É muito o que ainda ignoramos a res-
peito dos predecessores, basta considerar Nazca e os Moches no Peru para ima-
ginar quanto deixamos de fora focando nossa atenção nos Incas, por exemplo,
povo tardio mas de importância cultural e cosmológica inegáveis.
A cosmogonia Inca (a grafia Inka é preferida no Peru pelos falantes do
idioma quechua) começa com o criador Wiracocha (Fig. 1.7), que é o pai do Sol
(Inti), da Lua e da humanidade. O mundo Inca está dividido em três domínios, o
Hanan Pacha (celestial), o aqui e agora (Kay Pacha) e o inframundo (Ucu Pacha). O
Cosmos Inca é dual, no sentido de que cada ente tem sua contrapartida e são
concebidos como emparelhados, a exemplo do Sol e a Lua [11].

Figura 1.7. Wiracocha, o criador do mundo, segundo os Incas, tudo começou no lago Titicaca.

O mais interessante e peculiar da cultura Inca é seu conceito do espaço e


do tempo. A chave é justamente a ideia de Pacha, traduzível como “para todo
tempo e em todo lugar”. Contrariamente, por exemplo, à Física Newtoniana
onde espaço e tempo são duas categorias bem diferentes, os Incas não os sepa-
ram e falam do Pacha. Mais ainda, existe tempo inacessível no passado e no futu-
A Cosmologia na sala de aula 27

ro (uma espécie de horizonte temporal), e nem mesmo o fluxo do tempo é cons-


tante no Cosmos. Todas estas ideias têm um paralelo notável na Física Einsteini-
ana, embora obviamente são coisas desenvolvidas de forma muito diferente e
com significado díspar para essa civilização e para nós. Mas, com as devidas pre-
cauções, resulta muito interessante traçar analogias neste sentido [12].
Os povos mais dominantes na Mesoamérica, os Maias e Aztecas, apre-
sentam cosmologias relativamente ordinárias. A influência em ambos da cha-
mada cultura Tolteca é muito discutida, já que existem muitas evidências de
contatos estreitos, mas sequer é clara a localização da capital Tolteca (Tula, apa-
rentemente diferente da cidade atual com esse nome) e a precedência destes
sobre os Maias e Aztecas. Os Maias acreditavam num mundo plano, que repou-
sava sobre as costas de um crocodilo enorme que flutuava no oceano. Treze céus
com seus respectivos senhores, e nove camadas do infra-mundo existiam. A
exemplo da Cosmologia hindu, os Maias acreditavam em ciclos de tempo cósmi-
co. De fato, o começo do Universo teria acontecido em 11 de Agosto de 3114 A.C.
exatamente. Como o ciclo de 5125 anos finalizava em 2012, houve uma confusão
que levou muitos a predizer o fim do mundo, quando na verdade somente fina-
lizava um ciclo, a ser seguido por outro (de fato, se o mundo acabou e foi substi-
tuído, nós não tomamos conhecimento...). Já os Aztecas, invasores do norte ao
México Central, elaboraram um calendário exato (exposto na Pedra do Sol, To-
natiuh, na Cidade de México) e uma cosmogonia muito elaborada, que consta
de 10 episódios, que começa com a história de Tezcatlipoca e Quetzalcoátl
atraindo um monstro do oceano e formando a Terra com seus restos (embora
existam outros relatos vários, como a da reunião de deuses em Teotihuacán -
que já existia antes do próprio mundo! -, para criar o mundo...). A estrutura do
Universo é similar à Maia, com céus e infra-mundos, além de estar dividida em
setores cardinais gerenciados por diferentes divindades.

África e Brasil

Embora poderíamos nos estender muito discutindo outras culturas


várias, como a Anazasi (EUA), Inuit e outras na América do Norte, são necessá-
rias referências das várias etnias no próprio Brasil de aplicabilidade direta à Esco-
la. Isto não é fácil, já que além de existirem várias etnias importantes em regiões
do território brasileiro, nem sempre existe estudo e documentação específica.
Um levantamento rápido [13] mostra os dois principais grupos e as etnias que os
compõem: Macro-Jê (grupos Boróro, Guató, Jê, Karajá, Krenák, Maxakali, Ofayé,
28 A Cosmologia na sala de aula

Rikbaktsa e Yatê), e o Tupi (Arikém, Awetí, Jurúna, Mawé, Mondé, Mundurukú,


Puroborá, Ramaráma, Tuparí e Tupi-Guarani). Alguns elementos comuns a
várias etnias aparecem como parte do mito da criação (por exemplo, a Grande
Cobra no Norte). Somente iremos mencionar uma das cosmogonias importan-
tes aqui.
Para os Tupi-Guarani, o deus Tupã, havia descido em um monte da re-
gião do Aregúa (atual Paraguai, que estranhamente precede o resto da Terra...) e
deste local teria criado tudo que existe com a ajuda da deusa Araci (que domina-
va as auroras) e colocado as estrelas no céu. Uma intervenção posterior destruiu
o Sol, mas Tupã o recriou e adicionou a Lua e as estrelas para iluminar a noite.
Além de uma indicação geográfica muito regional para este evento, não parece
haver muita preocupação com a idade da Terra ou do Universo, nem com sua
organização espacial. Mas vale a pena consultar, por exemplo, as obras especia-
lizadas [13, 14, 15] para um estudo aprofundado.
Finalmente os mesmos problemas aparecem nas ideias cosmogônicas
e cosmológicas africanas, de grande influência no Brasil (em particular aos
Yorùbá-Nágô [16]). A cosmogonia deste grupo tem o deus do céu Olorum (ou
Olodumaré) como protagonista. Habitando um lugar pantanoso e úmido, Olo-
rum ordenou a criação do mundo, mas uma intrincada trama de caráter antro-
pológico complicou as coisas, embora finalmente os 16 orixás floresceram e to-
maram conta de cada setor do mundo. Também se associa a forma do mundo a
duas cabaças e existe um complexo simbolismo nas histórias das idas e voltas do
processo de criação do mundo. Estas questões são abordadas em estudos confi-
áveis e aprofundados de acesso direto [17, 18] que descrevem a integração e sin-
cretismo com outras correntes ocidentais e africanas desde a chegada dos pri-
meiros escravos.

■ A Cosmologia na Grécia Antiga


A matriz cultural ocidental tem no mundo grego sua origem principal.
Existe uma mudança notável na atitude grega a respeito da procura lúdica, não
utilitária, pelas causas físicas e lógicas nas descrições do mundo natural [19], desfa-
vorecendo o misticismo e colocando as preocupações humanas em um plano
diferente. É claro que muitos destes elementos persistem e integram ainda o
desenvolvimento das ideias gregas, como visto, por exemplo, em Pitágoras e sua
escola [20]. Mas a Filosofia grega não está comprometida com nenhum poder
A Cosmologia na sala de aula 29

divino, nem responde a influências religiosas ou místicas de maneira alguma.


Para os filósofos, a rica mitologia grega não é motivo de conformismo nas ques-
tões cosmogônicas e cosmológicas, já que procuram um Universo inteligível,
racional, e as causas naturais que assim o definem.
É claro que houve diversas posturas a respeito da relação da Filosofia
com a Mitologia, por exemplo, Xenófanes no século V A.C. criticou duramente o
caráter humano dos deuses gregos, separando-se claramente destes relatos. Os
atomistas Leucipo e Demócrito foram mais longe ainda, negando a existência
dos deuses [20]. Contudo, o mundo grego também conta com uma cosmogonia
mitológica, descrita por Homero e principalmente por Hesíodo na Teogonia em
700 A.C. e contemporânea das primeiras versões do Antigo Testamento da Bí-
blia.
Embora importante culturalmente, a Teogonia de Hesíodo parece-nos
muito menos interessante que a tarefa empreendida pelos grupos de filósofos
(ou escolas como são hoje conhecidas na explicação do mesmo evento (cosmo-
gônico), a posterior evolução do Cosmos e o problema da natureza da matéria e
do Universo. A primeira tentativa documentada de entender o que compõe o
mundo em termos de alguma substância fundamental se deve à chamada esco-
la jônica. Os membros desta escola incluem Tales de Mileto (convencionalmente
identificado como “o primeiro filósofo”), Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito,
Empédocles e Anaxágoras.
Tales de Mileto (624-548 A.C.) é o primeiro grande nome da Filosofia
grega. Ele tem uma preocupação clara com a regularidade do mundo físico e a
procura por ferramentas para melhor descrevê-lo, isto nos primórdios do desen-
volvimento da Matemática. Na procura de um elemento primordial, Tales afir-
ma que a água é o princípio gerador de todas as coisas. Embora estritamente
falando isto não é verdade, a composição da água (dois átomos de hidrogênio e
um de oxigênio) bate em boa medida com a composição básica do Universo
(predominantemente de hidrogênio, Capítulo 4) e achamos que Tales estaria
feliz em saber disto.
Anaximandro (611-547 A.C.) foi discípulo de Tales, e o primeiro filósofo
grego a propor um modelo espacial de Universo baseado no raciocínio lógico e
sem estar baseado em elementos religiosos ou místicos/fantásticos. O modelo
de Anaximandro pode ser visto na Fig. 1.8. Embora a forma da Terra de um cilin-
dro com a Grécia numa das caras possa ser considerado ingênuo, Anaximandro
produz aqui uma novidade de importância: a Terra não está suportada por ele-
fantes, colunas ou nada, ela flutua no espaço (infinito). Os sucessivos “anéis” trans-
30 A Cosmologia na sala de aula

parentes que imaginou guiam os astros, e um fogo primordial ocupa a posição


mais longínqua. As estrelas eram, para Anaximandro, os buracos onde se podia
ver esse fogo. Pode parecer simples demais, mas esta ideia não é muito diferen-
te conceitualmente que a de postular uma “energia escura” para explicar a acele-
ração da expansão do Universo que veremos no Capítulo 3, isto é, recorrer a al-
gum tipo de substância ou objeto colocado num contexto novo para explicar o
que é observado. Anaximandro também tentou desenhar um mapa do mundo
conhecido (Fig. 1.8, esquerda) e propôs a existência de um princípio universal,
materializado em uma substância denominada “o ilimitado”, ou ápeiron, de
natureza quantitativamente infinita e qualitativamente indeterminada. Tal
substância conteria em si os contrários (como o calor e o frio, o seco e o úmido),
cuja manifestação seria meramente a separação destas duas essências. Todo o
conteúdo do Universo poderia ser formado a partir do áiperon.
Com Anaxímenes (588-524 A.C.), colega de Anaximandro em Éfeso, o ar
passa a ser considerado como o elemento primitivo. Seus argumentos discutem
como as demais coisas surgiram por um processo de rarefação deste elemento
(como o fogo) e de condensação do mesmo (como a água, terra e demais seres).
A matéria fundamental passa a ser uma substância conhecida. Mas Éfeso, na
moderna Turquia, produziu também a obra de Heráclito (535-475 A.C.), conven-
cido da mutabilidade e eterno fluxo de todas as coisas do Universo. Embora não
tenha elaborado uma Cosmologia, Heráclito reconheceu no fogo, móvel por
excelência, o princípio fundamental de todas as coisas, no lugar do ar ou áiperon.
Esta discussão parece ter tido uma importância muito grande para os pré-
socráticos.

Figura 1.8. O mundo conhecido (esquerda) e o Universo (direita) de Anaximandro. Estas são as
primeiras representações gregas do mundo natural conhecidas.
A Cosmologia na sala de aula 31

Com uma natureza axiomática, as candidatas a substância primordial


dadas pelas diferentes doutrinas da época atendiam diferentes necessidades
filosóficas, e de alguma forma explicavam a partir de si os demais elementos, de
modo que uma explicação não poderia ser contraposta a outra, já que eram
excludentes. Suprimindo esta contradição de uma primazia entre os elementos,
Empédocles de Agrigento (495-435 A.C.) propõe a doutrina dos quatro elementos
[21]. Esta teoria ficou famosa posteriormente, no tratamento de Aristóteles, e
reinou na ciência por bastante mais de 1 milênio. Todos os corpos seriam com-
postos de ar, água, terra e fogo. Estes elementos são postulados como primordi-
ais, ingênitos, imutáveis e irredutíveis. As diferenças entre os corpos seriam con-
sequência das diferentes proporções na composição dos mesmos. Uma multi-
plicidade de elementos originais é mais flexível, mas menos revolucionária que
as propostas anteriores.
Contudo, as transformações da matéria tinham ficado sem explicação
convincente. Este problema levou Anaxágoras (500-428 A.C.) a introduzir o con-
ceito de que a causa material (natureza) sobrepõe-se à causa eficiente (origem) do
Universo, afirmando a irredutibilidade entre o material e o imaterial. Sua subs-
tância seria um agregado de partículas mínimas de todas as substâncias existen-
tes, denominadas homeomerias. As propriedades de um dado corpo dependeri-
am da predominância de uma dada homeomeria, e a existência de homeome-
rias de outras espécies, existentes em todos os corpos, explicaria a possibilidade
de transformação de uns em outros e também a impossibilidade de “sumirem”,
ou deixarem de existir. Anaxágoras está aqui assentando as bases para uma lei
de conservação no sentido moderno, no caso da matéria.
Na sequência cronológica aparece no mundo grego Pitágoras e sua esco-
la pitagórica em Crotona, nu sul da Itália (Magna Grécia) [20]. Os pitagóricos não
postulam nenhum elemento material como substância primordial, antes ficam
convencidos que são os números abstratos os fundamentais e procuravam in-
terpretar a realidade como uma série de regularidades numéricas. Eles vêem o
Universo como uma construção aritmética, e chegam a cogitar que a realidade é
matemática, não sem adicionar um forte viés místico. Tudo o que existe é fruto
de uma grande harmonia matemática. Embora não tenham formulado e de-
senvolvido extensivamente suas ideias a respeito da matéria, pode-se dizer que
o conceito de unidades fundamentais, de cujos múltiplos o mundo é constituído, e
uma descrição quantitativa do Universo nasceu com eles. Têm sido dito que os
pitagóricos intuíram que o mundo é “quântico”, e nesse sentido teriam aprecia-
32 A Cosmologia na sala de aula

do os desenvolvimentos atuais (Mecânica Quântica e derivados) com grande


interesse e satisfação.
Uma escola diferente, a eleática, representada pelo filósofo Parmênides
de Eléia veio contribuir pouco depois ao problema da substância: em vez de
procurar um elemento fundamental, questionou a própria definição da realida-
de (o ser), e proclamou a negação de todo o que não seja (o não-ser). Parmênides
distinguiu então ordens opostas de conhecimento: a sensitiva e a intelectual, a
primeira mutável e a segunda única e imutável. Como um ente não poderia vir
de um “não ente”, tudo viria de algo único, eterno, ingênito, imóvel, indivisível,
imutável, homogêneo, contínuo e esférico (forma perfeita). Esta atitude provo-
cou debates e refutações que levaram à formulação de teorias da matéria até
hoje vivas em muitos aspectos. Segundo os eleáticos, o mundo dos fenômenos
não passaria de uma ilusão, e na sua Cosmologia do aparente, tudo seria com-
posto por dois princípios: luz e trevas, calor e frio, isto é, fogo e terra. Esta posição
é totalmente oposta a do Heráclito, que considerava a mudança como o ele-
mento fundamental da realidade.
A própria existência do tempo e do movimento foram colocadas em
questão logo a seguir por outros eleáticos, particularmente por Zenão de Eléia,
criador dos famosos paradoxos a respeito do movimento que levam seu nome.
Com efeito, o raciocínio de Zenão e dos eleáticos levava a uma refutação do tempo
quando considerada a soma das infinitas distâncias que devia percorrer, por
exemplo, uma lebre para ultrapassar uma tartaruga que saia na sua frente, des-
de que a lebre fosse um certo número de vezes mais rápida que a tartaruga.
Vemos hoje que a barreira cognitiva eleática era consequência da impossibili-
dade de realização de somatórias infinitas que culminam em um resultado fini-
to (os eleáticos não chegaram a conceber isto). Por muitos séculos foi impossível
a construção dos conceitos que levariam a Newton e Leibniz formular o cálculo
no século XVII (principalmente o de limite de uma sucessão numérica) e a mos-
trar assim que a lebre passa na frente e que o tempo não é ilusório neste sentido.
Mas estas colocações provocaram a reação dos filósofos pré-socráticos Leucipo e
Demócrito, que por volta do ano 450 A.C. formularam uma das primeiras teorias
qualitativas a respeito da estrutura da matéria, cujas ressonâncias deixam-se
ouvir ainda hoje.
Leucipo e Demócrito foram fundadores da escola atomística, a qual procu-
rou dar uma resposta filosófica ao problema proposto por Parmênides a respeito
da oposição ser – não-ser. Com efeito, segundo Parmênides e os eleáticos não-ser
implicava o “não existir”, enquanto os atomistas responderam inventando o con-
A Cosmologia na sala de aula 33

ceito de vácuo, o qual embora correspondesse ao não-ser parmenídeo (ou seja, não
caracterizava nenhuma substância), tinha existência perfeitamente concreta co-
mo substrato no qual os átomos se movimentam, sendo essencial para o movi-
mento deles. Tudo o que há no Universo, segundo os atomistas, seria composto
por átomos e vazio, como a música que seria composta por notas e pausas (certa
duração de silêncio). Átomos se diferenciariam por sua geometria (como a dife-
rença entre as figuras A e N), pela disposição ou ordem (como as diferenças entre
NA ou AN) e pela posição (como N é um Z deitado). Diferentes combinações e
proporções seriam responsáveis pelas diversidades de corpos. Vemos que o Uni-
verso atomista não contém uma única substância primordial, mas átomos indes-
trutíveis de muitas classes. Ainda mais, os átomos podiam se combinar por fica-
rem “enganchados”, e formar outras substâncias. Assim sendo, podemos dizer
que os atomistas inventaram o conceito moderno de molécula [21].
A Cosmologia atomística reconhece pela primeira vez que a Via Láctea é
formada por estrelas, as quais não enxergam como muito distantes e sim como
muito pequenas (Demócrito). Esta afirmação é o primeiro registro histórico que
conhecemos do chamado problema da escala de distâncias no Universo [22]. Os
filósofos gregos provavelmente não poderiam compreender uma “especializa-
ção” como a de nossos dias, já que para eles todos os problemas da Natureza
eram importantes e interligados. Já na cosmogonia atomística, a origem do
mundo seria explicada por um processo puramente mecânico e aleatório, sem
recorrer à intervenção de uma inteligência sobrenatural. Os átomos se movendo
no vácuo infinito com movimentos retilíneos e velocidades desiguais poderiam
se chocar e da formação de imensos vórtices ou turbilhões se originariam a Terra
e os mundos. O atomismo grego não tinha nenhuma possibilidade de experi-
mentar e comprovar suas idéias, e de fato iam decorrer 20 séculos até que isto
fosse feito. Contudo, a visão da escola atomística a respeito deste problema foi
um marco conceitual historicamente importante para compreendermos a ma-
téria e o Universo, pelo menos depois dos aportes de Newton e outros à ideia de
unidades fundamentais.
Sócrates no século V A.C. marca um desvio importante do interesse nas
questões “naturais” para as humanas (de fato os pré-socráticos eram conhecidos
como “os físicos” em reconhecimento a seus interesses e trabalho), mas o méto-
do socrático de se chegar a verdade, conhecido como maiêutica, embutia ideias
do que mais tarde comporia o método científico. Os sucessores de Sócrates, os
quais incorporaram e reciclaram boa parte do pensamento socrático, são dois
34 A Cosmologia na sala de aula

nomes fundamentais que definiram o pensamento ocidental da estrutura da


matéria e do Universo por mais de dez séculos: Platão e Aristóteles.
Platão é o responsável pela fundação da primeira instituição do tipo
universitária da história: a Academia, a qual reuniu discípulos interessados em
vários aspectos das ciências e que funcionou entre 387 A.C e 529 D.C., quando foi
fechada pelo Imperador Romano Justiniano, considerada como um vestígio
vergonhoso dos tempos pagãos. A Academia foi o elo entre as ideias pré-
socráticas, o período clássico e a posterior escola de Alexandria, herdeira direta
dessas tradições. É de grande importância que tanto os escritos completos de
Platão quanto registros das suas doutrinas foram conservados. Vários destes
escritos, em forma de diálogo, contêm extensas discussões a respeito da “arqui-
tetura” do mundo físico, o conceito de existência das substâncias e o conheci-
mento humano da realidade através do pensamento e da linguagem. A ele cou-
be a formulação da teoria das propriedades físicas das substâncias, conceito
conhecido como arquétipos platônicos [19].
Platão pensava que existia um mundo de realidades, objetivamente
dotadas dos mesmos atributos que conceitos subjetivos que as representavam:
as ideias. Estas seriam os arquétipos eternos, dos quais as coisas visíveis (fenôme-
nos) são meras cópias imperfeitas e perecíveis. A relação entre o mundo dos
fenômenos e o mundo das ideias constitui a essência da Cosmologia platônica.
À procura de regularidade e beleza (tal como os cientistas atuais), Pla-
tão baseou-se na geometria pura para identificar quatro sólidos regulares (te-
traedro, cubo, octaedro e icosaedro) com os quatro elementos fundamentais
(água, ar, fogo e terra), postulados uns séculos antes. Assim, Platão formulou
uma teoria corpuscular da natureza da matéria com forte conteúdo matemático-
geométrico, ou seja, em boa medida similar às nossas teorias atuais. Também,
na sua obra, o Timeu, se ocupou da natureza do Universo e o movimento dos
astros, revelando o mesmo espírito na procura de regularidade e ordem, embo-
ra adverte que o tipo de objeto estudado somente admite um relato possível. É
interessante observar que no platonismo o Universo teve uma origem, e portanto
tem uma idade, já que foi criado por um artesão divino. O legado de Platão ao
pensamento humano em geral e às ciências em particular é profundo e marcan-
te, e suas obras ainda podem ser lidas com proveito.
Chegamos no século III A.C. à obra de Aristóteles, que pode ser conside-
rado o mais influente pensador da Antiguidade pela abrangência e autoridade a
ele atribuída. A adoção de Aristóteles à doutrina da Igreja por Santo Tomás de
Aquino resultou na vigência do aristotelismo quase intocado depois de um mi-
A Cosmologia na sala de aula 35

lênio. Discípulo de Platão, partiu do mesmo problema acerca do valor objetivo


dos conceitos, construindo um sistema inteiramente independente de seu mes-
tre. Ao contrário de Platão, que, (idealista), rejeitava de antemão a observação
como fonte de conhecimento (para Platão os estímulos sensores eram passíveis
de erro e distorção), Aristóteles propunha a observação cuidadosa da natureza e
a aplicação de um método para a busca da realidade. Sintetizou uma metodolo-
gia científica baseada em (a) definição de um objeto, (b) na enumeração de so-
luções históricas, (c) proposta de dúvidas, (d) indicação de uma solução própria,
(e) resolução por meio do embate e refutação das sentenças contraditórias. Por
fim, isto levaria a uma unidade do conjunto em que todas as partes se compori-
am e confirmariam mutuamente. Este caminho é, com poucas variantes, o que
norteia o nosso trabalho como cientistas contemporâneos.
As contribuições de Aristóteles ao conhecimento são múltiplas e muito
significativas, tais como no estudo da lógica formal e da biologia. Para Aristóte-
les a constituição da matéria também resultava da teoria dos quatro elementos,
a qual ele adicionou mais um (o éter ou quintessência) que constituiria a matéria
da qual os corpos celestes (perfeitos e imutáveis) seriam formados. Seu sistema
do Universo ficou mais complicado do que os anteriores, já que adicionou esfe-
ras concêntricas em contato para explicar o movimento dos planetas, à maneira
de uma grande engrenagem cósmica (Fig. 1.9). O seu Universo resultou assim
único e imutável, com a Terra no centro, e com existência eterna (sem um início
ou nascimento).
A Física de Aristóteles tratou múltiplos problemas, por exemplo, a inér-
cia e as leis do movimento. Mas um certo receio às matemáticas por parte do
filósofo parece ter impedido avanços quantitativos nestas áreas. Porém, a prosa
de Aristóteles é muito eficiente na tarefa de sistematizar e expor sua doutrina,
de uma forma bem clara (embora às vezes esquemática demais), e só veio ser
contestada e criticada a partir do século XVI. Muito pouco sobrou das idéias
atomísticas e platônicas na física aristotélica, e a discussão da natureza da maté-
ria enveredou mais para questões “metafísicas” na linguagem atual (por exem-
plo, o assunto das causas do movimento e dos “lugares naturais”, às quais Aristó-
teles dedicara uma atenção destacada).
36 A Cosmologia na sala de aula

Figura 1.9. O Universo aristotélico (gravado em madeira das Crônicas de Nuremberg, 1493). Sucessi-
vamente encontramos as esferas dos planetas, o Zodíaco e as estrelas. Além delas, Deus e os anjos
habitam o Cosmos.

Ainda dentro da Física grega clássica, existiu uma importante revalori-


zação do atomismo devida a Epicuro (341-270 A.C.). Epicuro modificou o materi-
alismo atomista de Demócrito, para quem o movimento dos átomos era fatal e
necessário, de modo que os átomos poderiam desviar-se espontaneamente da
linha reta, com o intuito puramente filosófico para justificar a possibilidade e a
existência do livre arbítrio. Se olharmos para esta questão hoje, o conceito de
trajetória de uma partícula como o elétron nem tem sentido, desde a imprevisi-
bilidade (quântica) associada ao seu movimento é tão grande que quase se as-
semelha à “vontade própria” epicurea.
Se pretendermos sumarizar a visão grega do Cosmos, notamos imedia-
tamente que desde Anaximandro até Ptolomeu (vide a seguir) o “Universo”
imaginado finalizava nas estrelas. Em outras palavras, a distância (escala) do
Cosmos era a distância até a esfera das estrelas “fixas”. Esta ideia da existência de
uma esfera onde as estrelas (buracos ou objetos brilhantes) estavam atreladas é
natural em qualquer modelo onde a Terra é o centro do Universo. De fato,
quando Platão encomendou a seu discípulo Eudoxo o estudo deste modelo,
A Cosmologia na sala de aula 37

este procedeu a introduzir uma série de esferas concêntricas com velocidades


de rotação diferentes para explicar o movimento dos planetas, e uma esfera
externa onde as estrelas residiam, com um éter que se estendia infinitamente
depois desta última. Neste modelo a distância até a esfera “fixa” (as estrelas não
se mexiam tal como os planetas o fazem, e daí sua denominação) era compará-
vel à distância até o Sol (este mesmo um “planeta” no sentido grego, de vagar
pelo céu). Quantitativamente, o Cosmos de Eudoxo e Platão tinha uma distância
pequena até as estrelas (vide Fig. 1.11, primeiro ponto à esquerda). Com Aristóte-
les, o modelo ganhou aceitação geral (já dizemos que predominou por mais de 1
milênio), mas uma separação nova e drástica entre a natureza das estrelas e da
Terra foi introduzida: Aristóteles postulou que estas estavam feitas de um mate-
rial único chamado de quintessência, incognoscível à observação. Automatica-
mente o estudo das estrelas ficou relegado ao domínio das ideias e à filosofia
pura, já que esta identificação impediu qualquer tentativa de aplicar leis da Físi-
ca terrestre ao domínio estelar.

Figura 1.10. A Lua em quadratura, os ângulos que Aristarco mediu a olho nu (em preto) e os valores
reais (vermelho). Embora o raciocínio é correto e muito agudo, era praticamente impossível uma
acurácia maior sem nenhum instrumento. Assim, o tamanho do Sol e da Lua, embora significati-
vamente grandes, ficaram aquém dos seus valores reais. Mas este problema prático não diminui o
valor da visão de um grande cientista.
38 A Cosmologia na sala de aula

A única voz no mundo grego oposta a esta doutrina das dimensões da


Terra, o Sol e as distâncias até as estrelas (embora a existência de uma esfera
onde estavam as estrelas não foi contestada), foi a do astrônomo Aristarco de
Samos (310 A.C.-230 A.C.). Aristarco pensava (como todos os gregos clássicos)
que a Terra era uma esfera e identificou os eclipses com as sombras dos astros, o
qual está basicamente correto. E na contramão do pensamento geocêntrico
vigente, ele pensava que era a Terra que girava em torno do Sol, e não o contrá-
rio. Sua determinação da distância e do raio do Sol e da Lua usando as medidas
das quadraturas (Fig. 1.10) foi basicamente correta, mas errou numericamente
porque os dados que precisava utilizar, diretamente determinados a olho nu,
continham erros grandes (a). Independentemente disto último, o modelo de
Aristarco entrou imediatamente em conflito com a observação da imobilidade
das estrelas (e em conflito com a ausência de paralaxe anual das estrelas, tendo
sido, a rotação diária por ele atribuída à própria Terra): em um modelo heliocên-
trico a ausência de paralaxe anual implicava que a distância até a esfera das es-
trelas tinha que ser muitas ordens de grandeza maior que a aceita até então, de
modo a não produzir efeitos observáveis. Assim, a distância até as estrelas no
modelo heliocêntrico tinha um limite inferior muito mais elevado (segundo
valor desde a esquerda na Fig. 1.11). Os modelos geocêntricos não apresentam
este problema e as estrelas não têm paralaxe anual porque estão sempre à
mesma distância da Terra, numa distribuição esférica perfeita.
O modelo heliocêntrico de Aristarco estava talvez muito adiantado a
seu tempo, e foi criticado e depois ignorado. A síntese final da Antiguidade gre-
ga clássica foi atingida uns séculos depois, na obra O Almagesto de Ptolomeu,
astrônomo da Biblioteca de Alexandria por volta do ano 150 D.C. Utilizando a
medida da circunferência da Terra por Eratóstenes (com resultado apenas cerca
de 2% menor que o aceito atualmente), a distância até a esfera das estrelas fixas
foi determinada por Ptolomeu em uns 20.000 raios terrestres, ou algo como
2000 vezes a distância ao Sol (com a medida dessa época, esta última de fato
estava subestimada por um fator ~20). Esta escala de distância maior, mas ainda
modesta para nós, permaneceu por mais de 1200 anos como a verdadeira (ter-
ceiro ponto na Fig. 1.11, [23]). Mas veremos logo a seguir como foi que a Ciência
saiu desse impasse para desenvolver uma verdadeira Revolução que mudou
muito a visão do Universo dominante até então.
A Cosmologia na sala de aula 39

a) Embora seu raciocínio fosse impecável (e essencialmente correto até


hoje), os erros nas quantidades observadas que Aristarco necessitava
eram muito grandes e assim sua estimativa da distância ao Sol e a Lua
eram muito menores que os valores reais hoje aceitos. Faltou a ele a
“sorte” de Eratóstenes, que errou por muito pouco porque vários erros se
cancelaram mutuamente na sua medida do raio da Terra.

Figura 1.11. O logaritmo da distância estimada até as estrelas através do tempo utilizando-se como
referência a distância da Terra ao Sol. Os pontos correspondem, em sequência, aos modelos de
Eudoxo (~400 a.C.), Aristarco (~300 a.C.), Ptolomeu (~150 d.C.), Descartes e Bruno (~1600), Bessel
(~1838) e o intervalo de valores do “século 20” (> 1930) (vide texto).

■ O Universo na Idade Média, o Renascimento e a Revo-


lução Científica
Já dissemos que a Igreja Católica, com a influência decisiva de Santo
Tomás de Aquino, instituiu a Cosmologia aristotélica como doutrina oficial,
onde boa parte do dogma cristão tinha lugar e era assim justificado. Embora
houvesse no Ocidente uma ortodoxia de longa duração neste sentido de inter-
pretar as escrituras que continham a visão aristotélica, já no século XIII as pri-
meiras vozes que prefiguram a Revolução Científica se fizeram ouvir.
40 A Cosmologia na sala de aula

Figura 1.12. Esquerda: Roger Bacon (1214-1294) conduzindo experimentos, num gravado de 1617.
Direita: o Bispo Robert Grosseteste (1175 - 1253), estudioso da luz e criador de um cenário precursor
do Big Bang.

Não deixa de ser curioso que as inovações viessem precisamente de re-


ligiosos imersos na Escolástica Medieval. Mas a proposta do monge Roger Bacon
é simplesmente revolucionária para essa época: Bacon enfatizou que a forma de
obter conhecimentos a respeito do mundo físico é o experimento e a observa-
ção, e não a leitura de textos sacros. De fato, Bacon em pessoa parece ter condu-
zido uma quantidade de experimentos que trouxeram um novo olhar para os
estados da matéria e outros assuntos. Por sua parte, o Bispo de Lincoln Robert
Grosseteste estudou a fundo a natureza da luz, já questionada nos trabalhos de
Averróis que ele conhecia, e propôs uma ideia da criação do Universo que mais
parece um relato científico, não sobrenatural. Para muitos, este cenário exposto
na obra De Luce contém elementos que reapareceriam no cenário do Big Bang
no século XX, e também ideias muito ousadas a respeito do processamento da
luz por instrumentos que ainda demorariam 300 anos para serem formuladas.
A continuação do processo da construção da imagem do Universo e da
natureza do mundo é bem conhecida e discutida. A Revolução Copernicana
trouxe o Sol ao centro da consideração, mas ao contrário das ideias de Aristarco,
foi coletando adesões e argumentos favoráveis, diferentemente do que havia
acontecido na Antiguidade clássica. Galileu Galilei foi fundamental na defesa do
sistema heliocêntrico copernicano na sua obra Diálogo sobre os dois máximos siste-
mas do mundo ptolomaico e copernicano de 1632, uma das obras mais importantes
da Ciência Ocidental. O trabalho de Copérnico deslocou a Terra do centro do
Universo e abriu caminho para a consideração de um Cosmos diferente, onde o
A Cosmologia na sala de aula 41

Sol e a Terra não eram nada “especiais”. Isto provocou uma forte reação da Igreja
Católica, ameaças a Galileu pela defesa desta “heresia” e convulsão por décadas
no meio intelectual. Veremos mais para frente que Copérnico é um dos pilares
da construção dos princípios que balizam a Cosmologia atual.
Com estas perspectivas, e seguindo um raciocínio bastante lógico, Des-
cartes considerou o Sol e as estrelas como sendo “da mesma” natureza. Um pou-
co antes, e por razões mais teológicas e filosóficas, Giordano Bruno tinha chega-
do à noção de um Universo infinito onde cada estrela era identificada como um
“Sol”, com seu próprio sistema planetário. Assim, para explicar as observações, a
estimativa da distância até as estrelas aumentou ordens de grandeza, ainda,
porém, sem a possibilidade de se efetuar medidas concretas. Cabe apontar que
o matemático e astrônomo indiano Aryabhata tinha formulado esta ideia (Sol =
estrelas) 1 milênio antes , mas isto era desconhecido para Copérnico, Bruno e
Descartes.
Com o desenvolvimento dos telescópios e sua utilização para estudar o
céu, a caça às distâncias estelares passou pela primeira vez a um plano experi-
mental, não mais filosófico e doutrinário. O próprio Galileu tentou estimar estas
distâncias medindo os diâmetros estelares, mas conseguir perceber, a partir da
imagem em sua luneta, que o raio de uma estrela, mesmo das mais próximas,
estava muitas ordens de grandeza além da sua capacidade tecnológica (e de
fato só pôde ser atingido bem recentemente). Mas estavam colocados os alicer-
ces para uma exploração de caráter diferente nas questões cosmológicas, e de
certa forma aberta a porta da cosmogonia baseada em ideias científicas que se
desenvolveu a partir do século XX.
Johannes Kepler é uma figura importante nos primórdios da Revolução
Científica. Seu trabalho observacional que o levou à generalização e estabeleci-
mento das Leis de Kepler teve um impacto muito grande, mas na sua época
também o teve seu modelo de Universo. Kepler tentou construir as órbitas dos
planetas como inscritas nos sólidos platônicos. As órbitas nesta versão do Uni-
verso eram círculos perfeitos, e ao próprio Kepler coube esclarecer que isto não
correspondia com as observações. Mas embora o trabalho de Kepler revelou
regularidades (Leis) depois explicadas utilizando a Mecânica de Newton, sua
procura pelas formas universais é inegavelmente metafísica e prescritiva, ainda
baseada em ideias do Mundo Antigo que teve posteriormente que abandonar.
Kepler abre o caminho para a Astronomia atual onde estes elementos são con-
siderados “fora” da Ciência, embora existam inúmeros resíduos metafísicos par-
cialmente incorporados e não reconhecidos [24].
42 A Cosmologia na sala de aula

Figura 1.13. O Universo geométrico de Johannes Kepler. As órbitas dos planetas eram inscritas
dentro dos sólidos platônicos (esquerda), os quais por sua vez eram associados com os elementos
(direita, do manuscrito original).

■ Newton e o Universo até os começos do século XX

Além de assentar as bases da Mecânica e contribuir para outros tantos


assuntos, a figura de Isaac Newton teve uma participação fundamental na As-
tronomia e no estudo dos céus. Newton foi o inventor do telescópio refletor,
instrumento que melhorou em muito a observação da época e que ainda é um
desenho básico para instrumentos contemporâneos. Em posse dessa inovação,
Newton tentou comparar o brilho de Sirius, estrela mais brilhante do céu notur-
no, com o do Sol, e logo percebeu que bem poderia estar comparando coisas
diferentes (ou seja, cogitou que as estrelas poderiam vir em muitas variedades,
fato confirmado pela moderna teoria da Evolução Estelar). Mas desconsideran-
do este fato, só com a hipótese de que as estrelas são todas iguais (ou velas-
padrão), já estudada no fim do século XVII, é possível obter estimativas realistas
das distâncias até as estrelas mais próximas [25]. Contudo, a determinação dire-
ta das distâncias, e com ela a confirmação da natureza estelar, deveria aguardar
mais de um século.
A Mecânica que Newton desenvolveu pode ser aplicada para o Univer-
so. Newton imaginava que as estrelas existem até o infinito, e que o tempo é
universal e transcorre igualmente para todos os observadores do Universo. Te-
mos com Newton pela primeira vez um esquema matemático quantitativo para
descrever como o Universo é estruturado, ampliando em muito a visão qualita-
tiva. Mas é preciso dizer que o próprio Newton nem foi tão longe na sua análise,
e que a “Cosmologia Newtoniana” (que pode servir de base à derivação relativís-
tica, como veremos no Capítulo 3) se serve de ferramentas mais modernas, des-
A Cosmologia na sala de aula 43

conhecidas para Newton, tal como as integrais de fluxo Gaussianas. Em outras


palavras, embora o potencial para quantificar a evolução do Universo estava
presente em 1700, o esforço para sintetizar e quantificar um modelo para o Uni-
verso era muito grande e este desenvolvimento é facilmente executado hoje.
Contudo, o brilhante raciocínio de Newton esclareceu algumas questões fun-
damentais neste sentido. Newton percebeu que um Universo finito espacial-
mente onde as partículas (estrelas) se atraíssem com a Lei de Gravitação Univer-
sal seria instável, colapsando numa grande massa (embora também não calcu-
lou este tempo, que pode ser muito longo). Assim, foi levado a considerar um
Universo infinito, com a ressalva de admitir que a gravitação também o faria
mudar “internamente”. Na carta que Newton escreveu em 1692 para Richard
Bentley [26]:

“...se a matéria de nosso Sol e Planetas e toda a matéria no Universo esti-


vesse uniformemente espalhada pelos céus, e cada partícula tivesse uma
gravidade inata em relação a todo o resto, e todo o espaço ao longo do
qual esta matéria estava espalhada, fosse apenas finito: a matéria do la-
do de fora deste espaço, por sua gravidade, tenderia a toda a matéria do
lado de dentro e, por conseqüência, cairia no meio de todo o espaço e lá
comporia uma grande massa esférica. Mas se a matéria fosse uniforme-
mente espalhada através de um espaço infinito, nunca se reuniria em
uma massa, mas algumas delas se reuniam em uma massa e outras em
outra, de modo a formar um número infinito de grandes massas espa-
lhadas a grandes distâncias umas das outras, por todo aquele espaço infi-
nito.”

Neste último parágrafo Newton fala de uma instabilidade gravitacional local,


conceito que ia nortear o trabalho de Jeans dois séculos depois no contexto da
formação de estruturas. O ponto central é que Newton enxerga uma instabili-
dade global do Universo finito (de fato, Einstein ia encontrar o mesmo problema
para um Universo estático na Relatividade Geral, e introduziu a constante cos-
mológica precisamente para impedir esta instabilidade...). Agora bem, a consis-
tência deste quadro Newtoniano, quando matematizado convenientemente, é
ainda objeto de discussão [27] . Por exemplo, se todas as massas do Universo se
atraem com a Lei de Gravitação Universal ⃗⃗⃗⃗⃗ 𝐹𝐺 = − 𝐺𝑀 𝑟2
𝑟, se considerarmos
̂
uma distribuição densa de partículas e convertemos a soma em integral, o resul-
tado pode ser escrito de forma integral usando o Teorema de Gauss

𝐹𝐺 . ⃗⃗𝐴 = −4𝜋𝐺 𝑀𝑖𝑛𝑡𝑒𝑟𝑖𝑜𝑟 ,


∮ ⃗⃗⃗⃗⃗ (1.1)
44 A Cosmologia na sala de aula

onde 𝐴 é o vetor radial multiplicado pela área, e 𝑀𝑖𝑛𝑡𝑒𝑟𝑖𝑜𝑟 é toda a massa inte-
rior à área (geralmente suposta esférica sem perda de generalidade). Isto é o
Teorema de Birkhoff, que estabelece que somente a massa interior atrai as mas-
sas na borda, e que o exterior pode ser ignorado. Melhor ainda é utilizar a equa-
ção de Poisson para determinar o potencial gravitacional 𝜙 da distribuição de
massa, e depois obter a força resultante

𝜕 𝜕 𝜕
( + + ) 𝜙 = 4𝜋𝐺𝜌 , (1.2)
𝜕𝑥 2 𝜕𝑦 2 𝜕𝑧 2

em coordenadas cartesianas. Se quisermos que uma partícula na borda tenha


resultante ⃗⃗⃗⃗⃗
𝐹𝐺 = 0 para evitar que tudo colapse, então a solução é 𝜙 = 𝑐𝑡𝑒,
mas somente 𝜌 = 0 produz este resultado. Ou seja, um Universo estático é
possível só se estiver vazio. Newton não percebeu essa característica que invali-
da o modelo. Mas também não ficou satisfeito com um Universo infinito, já que
assim o conteúdo de massa deveria ser também infinito e ninguém gosta disso,
ainda hoje. Vemos que os Universos Newtonianos têm problemas sérios, que
serão resolvidos na formulação einsteiniana, mas com considerável esforço.

Figura 1.14. Um Universo finito (círculo preto) onde cada estrela interagisse com as outras pela
força da gravitação, seria levado a um colapso num tempo finito. Isto somente é evitado se não
houver limite, ou seja, se for espacialmente infinito (embora possa haver colapso local neste últi-
mo, vide texto).

Outros trabalhos trouxeram novas formas de ver o Universo na saga de


Newton. Um dos mais interessantes se deve a Thomas Wright (1711-1786), astrô-
nomo inglês, que na obra An original theory or new hypothesis of the universe de 1750
A Cosmologia na sala de aula 45

postula que a Via Láctea observada no céu era um efeito devido à nossa posição
próxima do centro, mas contida no plano horizontal da mesma. Wright anteci-
pou a forma da galáxia como um disco achatado onde grande parte das estrelas
se concentram, e também observou um conjunto de “nebulosas” que hoje sa-
bemos são outras galáxias, determinando em alguns casos sua estrutura espiral.
Mas caberia a Kant especular posteriormente que a Via Láctea era uma estrutura
gigantesca, mas que outras similares poderiam existir, por ele denominadas
“Universos-ilhas”. Kant pensava que os Universos-ilhas estavam separados por
distâncias muito maiores que a distância às estrelas, e chegou a este quadro
desde um ponto de vista puramente lógico, sem intervenção de elementos em-
píricos (vide Capítulo seguinte).
Do ponto de vista observacional, ainda haveria muito para acontecer no
problema da determinação da distância até as estrelas. Isto foi um dos proble-
mas mais importantes na consideração dos astrônomos já nos primórdios do
século XIX, mas agora com uma perspectiva concreta e sólida para sua solução
por meio das observações. Um prêmio em dinheiro tinha sido estabelecido para
quem apresentasse uma medida da paralaxe estelar, quantidade muito peque-
na que tinha escapado à detecção a olho nu na Antiguidade, e que está mistura-
da com o movimento próprio da estrela (vide Atividade Didática). A paralaxe
poderia potencialmente confirmar a visão de Aristarco e outros se detectada. O
prêmio foi finalmente concedido à Friedrich Bessel pela descoberta e medida da
paralaxe de 61 Cygni, a qual implicava uma distância de 11 anos-luz até ela, ou
um fator centenas de vezes maior que o “esperado” no modelo Ptolomaico. O
mundo das esferas com estrelas atreladas se desfez para dar passagem a um
Cosmos gigantesco, possivelmente até infinito, com as estrelas como “outros
sóis” como Bruno tinha imaginado.

Atividade Didática 1: a determinação da paralaxe trigonomé-


trica e estelar
A determinação da distância às estrelas percorreu um longo caminho
no qual se misturaram elementos místicos, filosóficos, científicos e tecnológicos,
tal como se deduz da discussão. Mas no século XVIII o trabalho dos astrônomos
permitiu uma determinação confiável medindo a paralaxe estelar, conceito
análogo à paralaxe trigonométrica que mostraremos a seguir como Atividade
proposta para os alunos.
46 A Cosmologia na sala de aula

A paralaxe trigonométrica é o deslocamento angular de um objeto rela-


tivamente próximo a respeito de outros muito mais distantes quando muda a
linha de visada. A distância entre os dois pontos de vista é chamada linha de base,
e o ângulo da paralaxe convencionalmente denominado 𝛽. Não é difícil deter-
minar a paralaxe de um objeto, mas a precisão alcançada na medida do ângulo
influi muito na determinação da distância, que é o pretendido. Para começar a
atividade, escolha um objeto qualquer (um poste é uma boa escolha, mas pode
ser outra coisa) e posicione-se a uns 5-6 m de distância. No fundo do campo do
objeto deve haver outros objetos (prédios, árvores, etc.) muito mais distantes, os
quais servirão de referência.
Feche um olho, registrando mentalmente a posição do objeto-alvo con-
tra esse fundo. Depois troque, fechando o outro olho. O objeto parecerá deslo-
cado nas duas imagens com respeito ao fundo “fixo”. Repita várias vezes. O es-
quema é mostrado na Fig. A1.

Figura A1. a) A paralaxe trigonométrica da Atividade, a distância D pode ser medida medindo o
ângulo Beta e a distância da linha de base d. b) Na Astronomia, tudo é similar, mas a linha de base
precisa ser enorme para detectar o ângulo de paralaxe que é muito pequeno. No meio da figura se
mostram as imagens que vê o observador em cada caso.

Para estimar o ângulo do deslocamento convém lembrar uma regra


empírica simples: esticando o braço, o tamanho angular que subtende o dedo
mindinho é de aproximadamente 1𝑜 . Usando a trigonometria elementar
temos para um dos triângulos até o objeto que

𝑑/2
tan 𝛽 =
𝐷
A Cosmologia na sala de aula 47

e o problema se reduz à estimativa do ângulo 𝛽, já que a distância entre as duas


pupilas (“linha de base”) é facilmente medida com uma régua, e resulta algo entre
6 cm e 8 cm dependendo do formato da cara do observador. Um procedimento
muito cru é o de tentar estimar o deslocamento angular do objeto em unidades da
largura do mindinho, imediato mas de baixa acurácia. Um segundo método pode
utilizar uma câmara de telefone celular, tomando duas imagens com ela
separadas por 1 m (ou seja, substituindo a linha de base dos olhos da cara pela
distância à qual as duas fotos são tomadas) e medir com um transferidor em um
gráfico a escala [1, 2].
Quando estes procedimentos são aplicados na Astronomia (tal como
feito por Bessel), os ângulos a medir são minúsculos. De fato a unidade parsec foi
definida justamente como a distância à qual a paralax e de 1 segundo de arco.
Em termos da unidade astronômica temos que

1 𝑈. 𝐴.
𝐷= = 206 265 𝑈. 𝐴. = 3,26 𝑎𝑛𝑜𝑠 − 𝑙𝑢𝑧
1′′

desde que o ângulo seja expresso em radianos. A determinação da paralaxe


trigonométrica constitui uma Atividade de valor didático que tem uma analogia
fácil com a determinação de Bessel e as distâncias estelares

Para saber mais deste assunto:

■ R. Caniato, O Céu (Ed. Átomo, Campinas, 2011)


■ F. Catelli, O. Giovannini e P. Hoffmann, Um problema didático: como determinar
ângulos de paralaxe trigonométrica. Rev. Bras. Ensino Fís. 40, e1306 (2018)

Esta identificação fundamental agora confirmada, estrelas=Sol, tinha


sido observacionalmente sugerida pelos trabalhos de Wollaston, que identifi-
cou linhas de absorção no espectro da luz do Sol, associadas a elementos quími-
cos conhecidos, e Fraunhofer, que mostrou que as mesmas linhas apareciam
nos espectros das estrelas. Tinha sido assim provado que a composição das es-
trelas é similar a do Sol, e que não estão feitas de nenhuma “quintessência”. Con-
juntamente com a determinação das distâncias, foi possível um estudo físico
das estrelas usando as mesmas ferramentas que descrevem os objetos físicos na
Terra.
48 A Cosmologia na sala de aula

Um segundo feito importante no século XIX foi a tentativa de W. Hers-


chel de mapear com as estrelas todo o Cosmos conhecido, com o resultado da
forma irregular da Fig. 1.15. Para Herschel as estrelas já tinham adquirido o status
de objetos físicos, não meros pontos luminosos da Astronomia de Posição, e sua
intenção foi antes a de entender como e por quê as estrelas se distribuem espa-
cialmente. Isto era incomum na época, e o trabalho astronômico (de posição)
descrito como “um tédio modelo em ação” [28]. Note-se como, de novo, a ob-
servação substitui definitivamente a especulação no conhecimento, tal como
houvesse querido Roger Bacon. Utilizando um telescópio refletor de 45 cm com
6 m de distância focal, parecendo com um canhão (Fig. 1.15, direita), Herschel
coletou observações suficientes para fazer o mapa desejado (Fig. 1.15, esquerda),
com o Sol próximo do centro da distribuição. Heschel utilizou duas hipóteses
importantes: 1) que seu telescópio poderia ver todas as estrelas existentes e 2)
que a distribuição espacial das estrelas tinha uma regularidade. A forma irregu-
lar do seu mapa é hoje bem entendida, já que Herschel não conhecia a extinção
da luz pela poeira cósmica (que viola sua hipótese 1). De fato, a forma da nossa
galáxia afetada pela extinção foi o que o Herschel realmente mediu.

Figura 1.15. Esquerda: Universo observado por W. Herschel, na imagem original da sua publicação.
Hoje sabemos que as “irregularidades” na distribuição das estrelas são causadas pela extinção da
luz pela poeira cósmica. O Sol é mais uma destas estrelas, que se encontram até distâncias de
milhares de anos-luz. (Plate 8, figura 4 do trabalho “On the construction of the heavens”, de William
Herschel, Philosophical Transactions of the Royal Society, vol.75 (1785), pp.213-266). Direita: um dos
telescópios refletores de Herschel, no caso com 6 m de distância focal, utilizados para construir o
mapa do Universo (Crédito: Royal Society, London).

Hoje nós sabemos da existência de outras galáxias, mas até em traba-


lhos do próprio E. Hubble, 150 anos depois de Kant e 1 século depois de Herschel,
era comum a hipótese de que a nossa galáxia era tudo o que existia, sem qual-
quer outra coisa “fora” dela. A escala espacial da galáxia tinha aumentado para
vários milhares de anos-luz, e todas as estrelas que observamos individualmen-
A Cosmologia na sala de aula 49

te estão na nossa galáxia (de fato observamos as mais próximas a olho nu, e
algumas até dezenas de anos-luz com binóculos, mas sabemos que elas existem
até ~10 kpc de nós sem sairmos da galáxia). Estas escalas, desde poucos anos-luz
até os confins da nossa galáxia, é o indicado com o intervalo vertical mais à direi-
ta na Fig. 1.11, marcado como “século XX”. Mas a história de como as “outras ga-
láxias” vieram a ser finalmente comprovadas, e como isto aumentou de forma
absurda as dimensões atribuídas ao Universo, merece uma discussão à parte,
apresentada no próximo Capítulo.

Referências
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Cultures, J. A. Rubiño-Martín, J. A. Belmonte, F. Prada and A. Alberdi, Eds.. ASP Conference Series 409 ( 2009)
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[5] E. Pásztor and C. Roslund. An interpretation of the Nebra disc, Antiquity 81, 267 (2007)
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ic Ideas in the Carpathian Basin. In: Cosmology Across Cultures, J. A. Rubiño-Martín, J. A. Belmonte, F. Prada and A.
Alberdi, Eds.. ASP Conference Series 409 ( 2009)
[7] O Livro dos Mortos do Antigo Egito, E. A. Wallis Budge (Org.) (Ed. Madras, São Paulo, 2019)
[8]  Rigveda 10:129-6 . Henry White Wallis. The Cosmology of the Ṛigveda: An Essay. Williams & Norgate. (London,
1887) pp. 61–73.
[9] F. Capra, The Tao of Physics. (Shambhala Ed., Boston, 1975)
[10] N.J. Girardot, The Problem of Creation Mythology in the Study of Chinese Religion, History of Religions 15, 289
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[11] S.R. Gullberg, Astronomy of the Inca Empire: Use and Significance of the Sun and the Night Sky, (Springer Nature,
2020).
[12] M.R. Gamarra, S.R. Gullberg, M Estrázulas, J.E. Horvath and C.A.Z. Vasconcellos, Inka's cosmovision, space,
time, and Cosmos: A Western perspective . Astronomische Nachrichten 342, 31 (2021)
[14] https://pib.socioambiental.org/pt/Mitos_e_cosmologia, acessado em 1 de Agosto de 2021 e referências
nele sugeridas
[13] M.A. de Pádua Lopes da Silva. Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: breve introdução. Em Índios no Brasil.
(Global, São Paulo 2005)
[15] vide a conferência de G. Afonso, Astronomia Indígena https://www.google.com/search?client=firefox-
bd&q=germano+afonso+cosmologias+brasil e referências nele sugeridas
[16] R. Santana da Silva, Orisun ati awǫn ayie ati awǫn aráyé. A cosmogonia Iorubá como uma proposta didática para a
explicação da origem do mundo e da vida no Ensino de História do 6º ano. (Dissertação, UFBA, 2017) e referências nele
sugeridas
[17] E. Ferreira Rocha, Resignificações da Cosmologia Afro-Brasileira, CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências
Sociais 11 (2010) e referências nele sugeridas
[18] K.Woortmann, Cosmologia e geomancia: um estudo da cultura Yorùbá-Nágô (1977). http://www.dan.unb.br
50 A Cosmologia na sala de aula

[19] B. Russell, História do Pensamento Ocidental, (Ediouro, Rio de Janeiro, 2001)


[20] C.H. Kahn, Pitágoras e os pitagóricos - Uma breve história (Ed. Loyola, São Paulo, 2007)
[21] W.K.C. Guthrie, A History of Greek Philosophy - Vol. I (Cambridge University Press, UK, 2000)
[22] P. Cartledge, Demócrito e a Política atomista (Ed. Unesp, São Paulo, 2001)
[23] M.C. Danhoni Neves e C. Arguello, Astronomia de Regua e Compasso de Kepler a Ptolomeu (Ed. Papirus, Campi-
nas, 1986 )
[24] E.A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science (Dover, NY, 2003)
[25] J.E. Horvath, Uma proposta para o ensino da astronomia e astrofísica estelares
no Ensino Médio, Rev.Bras. Ensino Fís. 35, 4501 (2013)
[26] http://www.newtonproject.ox.ac.uk/view/texts/normalized/THEM00254
[27] P. Vickers, Was Newtonian cosmology really inconsistent?. Studies in History and Philosophy of Modern Phys-
ics 40, 197 (2009)
[28] K. Donnelly, On the Boredom of Science: Positional Astronomy in the Nineteenth Century, The British Journal for
the History of Science 47, 479 (2013)
Capítulo 2

Edwin Hubble (1889 - 1953), primeiro astrônomo a fazer


uma medida de distância extragaláctica e identificar ob-
servacionalmente uma relação linear entre a velocidade
de recessão e a distância da maioria das galáxias.

A descoberta de Hubble e o nasci-


mento da Cosmologia moderna
52 A Cosmologia na sala de aula

■ O cenário no início do século XX


William Herschel não tinha como determinar as distâncias das estrelas
(a primeira medida de paralaxe foi feita somente em 1838) e por isso supôs que
todas tinham o mesmo brilho absoluto, mapeando a Galáxia a partir dos seus
brilhos aparentes. Durante o século seguinte a sua exposição sobre a distribui-
ção das estrelas, acreditou-se que vivíamos no centro de um Universo pequeno,
achatado e alongado em uma direção.
A partir do final do século XVIII, estruturas conhecidas como “nebulo-
sas”, reconhecidas como objetos de aparência difusa, como uma nuvem, passa-
ram a ser catalogadas, em particular por Charles Messier e pela família Herschel.
Entre 1758 e 1780, Charles Messier observa e cataloga 110 nebulosas, enquanto
entre 1786 e 1802, William Herschel e família catalogam milhares destes obje-
tos. Estas nebulosas incluíam diferentes objetos astronômicos como remanes-
centes de supernovas, nebulosas planetárias e galáxias, com estruturas de difícil
resolução frente a capacidade dos telescópios da época.
Em 1845, Lord Rosse, a partir de observações utilizando o telescópio
mais avançado da época, descobre que algumas dessas nebulosas possuíam
uma estrutura espiral, como mostrado na figura 2.1. Como não era possível a
observação de estrelas individuais nestas estruturas, na segunda metade do
século XIX houve discussão sobre qual seria a natureza destas nebulosas espi-
rais, com a possibilidade de que fossem nuvens em rotação ou “Universos-ilha”,
semelhantes à Via Láctea, como proposto por Immanuel Kant.

Figura 2.1: A nebulosa M51 (galáxia do Redemoinho) conforme observada, da esquerda para a
direita, por John Herschel em 1833 (aqui reproduzida do trabalho de G.F. Chambers [1]), Lord Rosse
em 1850 com seu telescópio de 1,8 m de diâmetro [2] e em imagem composta a partir de dados do
telescópio Hubble (imagem de NASA e STScI). A resolução da estrutura da galáxia aumentou
consideravelmente com o passar do tempo, mas só a partir da década de 1920 foi possível identifi-
car que muitas nebulosas eram de fato outras galáxias, compostas por ~bilhões de estrelas.
A Cosmologia na sala de aula 53

Medir distâncias em Astronomia envolve compreender o comporta-


mento da propagação da luz com o caminho percorrido. Ao acender uma lâm-
pada, por exemplo, a luz que sai desta é emitida igualmente em todas as dire-
ções. Chamamos de luminosidade a energia emitida por unidade de tempo
(taxa de emissão, o equivalente à potência de uma lâmpada) por uma dada
fonte. A intensidade de luz observada, ou fluxo, F, dependerá da luminosidade
intrínseca, L, do objeto e da sua distância ao observador, r. Em um ambiente sem
obstáculos ou sem a presença de nenhuma outra fonte de luz, podemos escre-
ver que o fluxo é dado pela luminosidade dividida pela área total sobre a qual se
observa,
𝐿
𝐹= (2.1)
4𝜋𝑟 2

A intensidade da luz que será observada em uma determinada região


será inversamente proporcional ao inverso do quadrado da distância à fonte (ver
figura 2.2) de modo que as fontes parecem cada vez mais fracas com o aumento
da distância.

Figura 2.2: Uma fonte de luz, indicada pela estrela vermelha ao centro, emite igualmente em
todas as direções. Se não há nada que bloqueie a propagação da luz ou outra fonte no meio do
caminho, então a quantidade de luz delimitada pelas linhas radiais tracejadas é sempre a mesma.
A área a uma distância r1 da fonte, e indicada pelos 4 quadrados vermelhos de área A, é iluminada
pela mesma quantidade de luz total que chega na região à distância r2 = 2 r1, indicada por 16 qua-
drados vermelhos de área A. Deste modo, a iluminação em um dado quadrado de área A localiza-
do sobre r2 será 4 vezes menor do que a do mesmo quadrado à distância r1.
54 A Cosmologia na sala de aula

Uma forma comum de se quantificar a luz que observamos proveniente


de um objeto em Astronomia é referir-se ao conceito de magnitude. Hiparcos, na
Grécia antiga, estabeleceu o sistema de magnitudes para classificar as estrelas
como função do seu brilho observável. Para tal, determinou que as estrelas mais
brilhantes seriam classificadas como tendo magnitude 1 e as menos brilhantes,
a olho nu, como de magnitude 6. Dadas as características de detecção do olho
humano, resulta que a escala de magnitudes é uma escala logarítmica e pode-
mos dizer que ao compararmos dois objetos de magnitudes m1 e m2, a relação
entre os fluxos de luz que chegam ao observador das duas fontes, F1 e F2, é dada
por
(𝑚1 −𝑚2 )
𝐹2
= 100 5 , (2.2)
𝐹1

o que nos leva a definir a magnitude aparente, 𝑚, de um objeto como função do


fluxo, F, observado como

𝑚 = −2,5 log10 𝐹 + 𝐶, (2.3)

com 𝐶 uma constante a ser definida a partir de uma calibração da escala, ou seja,
o estabelecimento de um “zero” referencial. Tipicamente, determina-se que a
estrela Vega, a mais brilhante da constelação de Lira, a cerca de 25 anos-luz de
distância, é o “ponto zero” da escala.
De acordo com a equação (2.1), a magnitude aparente de um objeto
dependerá, portanto, da sua luminosidade e da distância entre a fonte e o ob-
servador, não sendo, deste modo, uma grandeza que caracteriza de forma abso-
luta a fonte.
Se soubermos exatamente o quanto de luz um dado objeto emite por
unidade de tempo (sua luminosidade) e medirmos o quanto de luz chega vindo
desta fonte sobre uma certa área (sua magnitude aparente), é possível estimar
sua distância ao ponto de medição. Quando existe um objeto com luminosidade
bem definida, permitindo realizar tal tipo de comparação, dizemos em Astro-
nomia que temos uma “vela-padrão”.
Uma vela-padrão já conhecida no início do século XX são as chamadas
variáveis Cefeidas. Estas são estrelas que, em determinado estágio de sua evolu-
ção, apresentam uma fase “pulsante”, na qual os seus raios, e consequentemen-
A Cosmologia na sala de aula 55

te suas temperaturas superficiais, passam por variações regulares em um inter-


valo de tempo bem definido.
As condições no interior das estrelas são de temperatura 𝑇 e densidade
𝜌 elevadas o suficiente para que reações de fusão nuclear ocorram. Para fusão
de núcleos com massas inferiores à do núcleo de ferro, há liberação de energia
no processo, ponto fundamental para garantir o equilíbrio da estrela pela maior
parte de sua vida. Uma forma bastante interessante de acompanhar a evolução
das estrelas é a partir do diagrama HR, um gráfico da luminosidade como fun-
ção da temperatura superficial da estrela, como mostrado na figura 2.3. As estre-
las inicialmente realizam a fusão de núcleos de hidrogênio em hélio, no estágio
conhecido como Sequência Principal, e migram para fora dela quando exaurem
o hidrogênio na região mais central. A massa da estrela é o fator principal para
definir a sucessão de eventos posterior, a qual evolve modificações importantes
na estrutura. Assim, a temperatura efetiva e o raio têm o papel de diagnóstico da
evolução da estrela quando ela saiu da Sequência Principal.

Figura 2.3: Diagrama HR, com indicação da localização da Sequência Principal, gigantes, supergi-
gantes e anãs brancas, além das regiões de instabilidade, que correspondem às fases nas quais as
estrelas apresentam variações periódicas do seu brilho, representadas por Cefeidas, variáveis de
longo período e RR Lyrae.
56 A Cosmologia na sala de aula

Como a luminosidade da estrela depende do seu raio e temperatura


superficial (para uma estrela, podemos considerar sua luminosidade como
aproximadamente 𝐿 = 4𝜋𝑅2 𝜎𝑇 4 , onde 𝜎 é a constante de Stefan-
Boltzmann), seu brilho varia de forma periódica nesta fase de pulsos. Mais im-
portante ainda, a luminosidade das estrelas na fase de Cefeidas é correlacionada
ao seu período de oscilação: quanto maior o período, maior a luminosidade,
conforme observado por Henrietta Leavitt em 1912. Deste modo, determinar o
período de oscilação de uma Cefeida é determinar seu brilho intrínseco. Ao me-
dir-se o brilho aparente, é possível, portanto, obter a distância a estes objetos.
Esse método atualmente pode ser utilizado para estimar distâncias de até apro-
ximadamente 13 milhões de anos-luz.
Leavitt, observando Cefeidas nas nuvens de Magalhães, partiu de uma
suposição válida para correlacionar o período de pulsação e a luminosidade
destes objetos, a de que, por pertencerem a mesma nebulosa, estavam aproxi-
madamente a mesma distância da Terra, portanto as estrelas com brilhos apa-
rentes maiores também tinham brilhos intrínsecos maiores. O gráfico por ela
obtido encontra-se reproduzido na figura 2.4. No entanto, as distâncias às nu-
vens de Magalhães não eram conhecidas. Ejnar Hertzprung rapidamente utili-
zou dados que ele havia obtido de Cefeidas próximas para calcular a distância à
Pequena Nuvem de Magalhães como sendo 37.000 anos-luz. Na sequência,
Harlow Shapley expandiu a amostra de Cefeidas e, propondo uma nova calibra-
ção, obteve o valor de 95.000 anos-luz para a mesma nebulosa.

Figura 2.4: Relação período-luminosidade para variáveis Cefeidas na Pequena Nuvem de Maga-
lhães, conforme obtida por Leavitt e Pickering em 1912 [3]. À esquerda, magnitude aparente como
função do período e à direita, como função do logaritmo do período. Os pontos na curva de cima
representam as máximas luminosidades observadas para as Cefeidas, enquanto os de baixo,
representam seus valores mínimos. Note que, por não ser possível ainda determinar a distância
até a nuvem, o gráfico é apresentado em função da magnitude aparente dos objetos e não da
absoluta, o que não prejudica o indicativo de correlação entre as duas variáveis pois as distâncias às
Cefeidas da nuvem são essencialmente as mesmas.
A Cosmologia na sala de aula 57

Um passo adicional foi dado por H. Shapley, quem estudou variáveis


Cefeidas em 86 aglomerados globulares, concentrações densas de estrelas con-
tendo centenas de milhares de indivíduos, provenientes do colapso de nuvens
moleculares que geraram estrelas que ficaram ligadas gravitacionalmente, com
idades de 12-13 bilhões de anos. Hoje sabemos que a distribuição da matéria na
Via Láctea é tal que os aglomerados globulares encontram-se espalhados de
maneira praticamente esférica em torno do seu centro, no chamado halo galác-
tico. Utilizando sua curva de calibração de período-luminosidade, Shapley de-
terminou que estes aglomerados tinham essencialmente o mesmo tamanho e
luminosidade. Deste modo, mapeou a distribuição e distâncias destes objetos
para obter uma estimativa da forma e tamanho da Via Láctea. Concluiu que os
aglomerados globulares estavam uniformemente distribuídos acima e abaixo
do plano da Via Láctea e que, se o centro desta distribuição coincide com o cen-
tro da Via Láctea, então o Sol está a ~60.000 anos-luz do centro da Via Láctea,
que possuía uma extensão total de cerca de 300.000 anos-luz.
Na mesma época, Heber Curtis propunha uma Via Láctea com apenas
30.000 anos-luz de extensão e com o Sol a menos de 10.000 anos-luz do centro.
Posteriormente, Jacobus Kapteyn e Pieter van Rhijn, a partir da mais precisa
contagem de estrelas registradas em placas fotográficas realizada até então,
determinaram as distâncias das estrelas próximas medindo suas paralaxes e
movimentos próprios. Concluíram que a Via Láctea tinha a forma de um disco
com cerca de 65.000 anos-luz de diâmetro com o Sol praticamente no centro.
Estas visões destoantes, sumarizadas na figura 2.5, da estrutura da Via
Láctea e a escala de distância do Universo foram apresentadas por Shapley e por
Curtis, em 1920, durante um debate no auditório do Museu Smithsonian de
Ciência Natural, na cidade de Washington, EUA, e publicadas no Boletim do
National Research Council no ano seguinte. Além disso, os dois ainda debateram a
natureza das “nebulosas espirais”, com Curtis afirmando que eram outras galá-
xias, grandes e distantes, enquanto Shapley afirmava que eram apenas nuvens
de gás, pequenas e mais próximas, ainda que não fizessem parte da Via Láctea.
O evento, que ficou conhecido como o Grande Debate de 1920, terminou de for-
ma inconclusiva e na realidade, nenhuma das duas propostas estava comple-
tamente adequada nem completamente inadequada. Ambas tinham pontos
que seriam validados ou descartados mais tardiamente.
58 A Cosmologia na sala de aula

Figura 2.5: Representação pictórica dos modelos de Universo propostos à época do Grande Debate
de 1920. À esquerda, o modelo de Curtis, de uma Via Láctea pequena, achatada, com o Sol (repre-
sentado pela estrela amarela) deslocado do centro, marcado com um xis. Ao centro, o modelo de
Kapteyn e van Rhijn, cerca de duas vezes mais extenso que o de Curtis e com o Sol praticamente no
seu centro. Nestes dois casos, as nebulosas (não mostradas) são de tamanho comparável à Via
Láctea e muito distantes, são “universos-ilha”. À direita, o modelo de Shapley, de uma Galáxia
muito maior, com uma distribuição de matéria praticamente esférica, com o Sol fora do centro e
nebulosas (representadas pelas nuvens cinzas) pequenas e muito próximas à Via Láctea.

As discrepâncias nos dois modelos apresentados durante o Grande De-


bate de 1920 eram muito grandes e não era óbvio o motivo de tamanha discor-
dância nos tamanhos previstos e para a distribuição de matéria na Via Láctea. A
justificativa viria cerca de uma década depois, com a identificação do papel im-
portante que tem a poeira cósmica na extinção da luz proveniente das estrelas e
da existência de duas classes de variáveis Cefeidas.
O meio interestelar é composto por gás e poeira. Aqui, poeira significa
ter grãos compostos por uma mistura de grafite (carbono), silicatos (silício e
oxigênio) e gelo, de tamanhos muitos pequenos, que vão de nanômetros a mi-
crômetros. Apesar de constituírem apenas 1% do meio interestelar, a poeira,
com uma densidade média de 10−23 𝑘𝑔 𝑚−3 , influencia fortemente a propa-
gação de luz nas galáxias.
A maneira com a qual ondas eletromagnéticas interagem com a maté-
ria depende fundamentalmente do seu comprimento de onda. Na escala da luz
visível, um ponto importante é o comprimento de onda em relação ao tamanho
do obstáculo, neste caso, a poeira. A luz azul, com comprimento de onda menor
(~400 nm) será espalhada com maior probabilidade do que a luz vermelha, de
maior comprimento de onda (~700 nm). Quando a luz branca passar por uma
nuvem de poeira, a componente vermelha será atenuada, porém a luz azul será
bastante mais afetada pelo espalhamento. Deste modo, a consequência é uma
A Cosmologia na sala de aula 59

espécie de filtragem ao longo da direção de propagação da luz, mais efetiva em


comprimentos de onda menores, que deixa a luz mais avermelhada ao sair da
nuvem do que ao entrar (veja figura 2.6). Este efeito é semelhante ao que ocorre
com a luz solar na atmosfera terrestre, com a componente azul sendo espalhada
pelas moléculas de ar e se difundindo sobre toda a atmosfera. Quando ocorre
um pôr do sol, a luz vinda da estrela precisa atravessar uma camada muito mais
grossa da atmosfera do que quando o sol está a pino, por exemplo, o que remo-
ve de forma efetiva a componente azul, resultando em uma visualização de
cores vermelho-alaranjada.

Figura 2.6: Representação pictórica do processo de dispersão da luz causada pela poeira intereste-
lar e a influência sobre o espectro estelar. Uma nuvem de poeira espalha e absorve a luz passando
por ela, em proporção que depende da densidade de grãos de poeira, do comprimento de onda da
luz e da espessura da nuvem. O observador A vê a estrela mais avermelhada devido ao espalha-
mento do comprimento de onda menor pela poeira na nuvem enquanto o observador B enxerga
a luz espalhada (com menor comprimento de onda), resultando em uma nebulosa azulada. Note
que a forma do espectro da estrela é afetada pela passagem da luz pela nuvem.

A relação entre o período das Cefeidas e sua luminosidade foi obtida an-
tes sequer de haver a compreensão dos fenômenos físicos que ditavam o pro-
cesso oscilatório (a explicação veio em 1941 com Arthur Eddington). Deste modo,
é evidente que este foi um processo observacional, que dependeu da determi-
nação experimental das três quantidades físicas envolvidas: período, luminosi-
dade e distância. O período é uma determinação simples, obtido a partir da lu-
minosidade observada da estrela como função do tempo; a distância foi obtida
para estrelas próximas pelo método da paralaxe, que já era conhecido na época
60 A Cosmologia na sala de aula

e que teve um grande impulso no início do século XX com o uso de chapas foto-
gráficas (na época permitia a determinação de distâncias de até ~160 anos-luz);
já a luminosidade, parâmetro intrínseco da estrela, era obtida a partir do seu
brilho aparente e da sua distância, em um processo inverso ao que se faz no caso
de velas-padrão. E foi justamente este último ponto que trouxe as discrepâncias
evidentes no debate de 1920. A curva de calibração (luminosidade como função
do período de oscilação) para variáveis Cefeidas foi obtida com observações
feitas majoritariamente no disco da galáxia. Nesta região, a quantidade de poei-
ra tende a ser grande e sua influência sobre a luminosidade determinada não foi
levada em conta, o que resultou em uma curva que subestimava as luminosida-
des, portanto, as distâncias.
As observações realizadas por Curtis, Kapteyn e van Rhijn para a deter-
minação da estrutura da Galáxia foram feitas com estrelas localizadas no plano
galáctico. Aqui, a influência da poeira é grande e isso resultou em uma estrutura
pequena demais, com o Sol muito próximo ao centro, pelo fato de que a luz das
estrelas era bastante atenuada, resultando em fluxos não detectáveis na época
para estrelas muito distantes (a poeira não permite a observação clara no visível
acima de ~6600 anos-luz). Já Shapley observou aglomerados estelares no halo
galáctico, no qual a visibilidade é mais estendida pelo fato de haver uma peque-
na quantidade de poeira nesta região, o que o permitia determinar objetos mais
distantes, com a distribuição esférica observada. No entanto, o problema estava
na curva de calibração utilizada.
Estrelas são formadas a partir do colapso de nuvens moleculares no
meio interestelar. Quando terminam as suas vidas, elas ejetam parte desta ma-
téria, agora mais rica em elementos pesados, que acaba sendo “reciclada” para
formar novas estrelas. A cada nova geração de estrelas, portanto, a metalicidade
(quantidade de elementos mais pesados que o hélio) tende a aumentar. As es-
trelas do disco galáctico são mais ricas em metais do que as estrelas do halo,
mais antigas, presentes nos aglomerados globulares. A correspondência entre o
período e a luminosidade de Cefeidas depende da quantidade de metais pre-
sente nas suas atmosferas, sendo as mais ricas em metais (“classical Cepheids”)
mais luminosas do que as mais pobres em metais (“type II”), como mostrado na
figura 2.7. Isso ficou evidente na década de 1940 quando Walter Baade identifi-
cou as bases para as duas diferentes populações estelares (as componentes da
galáxia estão mostradas na figura 2.8).
A Cosmologia na sala de aula 61

Figura 2.7: Relação período-luminosidade para variáveis Cefeidas clássicas, que são ricas em me-
tais (pontos cinzas acima), e tipo II, que são pobres em metais (pontos coloridos), observadas na
Grande Nuvem de Magalhães conforme referência [3]. Está claro que sem separar estas classes o
erro induzido para a constante de Hubble será substancial, como aconteceu antes de 1940.

O problema com a curva de calibração de Cefeidas à época de Shapley


era que a determinação de distâncias por paralaxe só era possível para estrelas
próximas, no disco, cujas luminosidades, como já apontamos, eram subestima-
das devido à poeira. Deste modo, a curva de calibração disponível, que deveria
corresponder à linha cheia da figura 2.7, ficava entre esta e a tracejada. Ao aplicar
esta correspondência entre período e luminosidade para Cefeidas ricas em me-
tais, a luminosidade era subestimada, levando a distâncias menores do que as
verdadeiras. Por outro lado, aplicando-a a estrelas pobres em metais, a lumino-
sidade era superestimada, levando a estimativas maiores de distância. Isso foi o
que ocorreu com Shapley, o que o levou a concluir que os aglomerados tinham
luminosidades maiores do que as reais, resultando em uma Galáxia muito ex-
tensa. A extensão do disco da Via Láctea é de cerca da metade do valor determi-
nado por Shapley, como pode ser visto na figura 2.8.
62 A Cosmologia na sala de aula

Figura 2.8: Estrutura da Via Láctea. À esquerda, representação das principais componentes da
Galáxia: o bojo central, com cerca de 6.500 anos-luz de raio, o disco com 160.000 anos-luz de com-
primento e 1000-3200 anos-luz de espessura, e o halo com pelo menos 326.000 anos-luz de ex-
tensão (considerando-se a distribuição de matéria escura). O Sol encontra-se a ~26.000 anos-luz
do centro (adaptado de Agência Espacial Europeia, ESA). À direita, representação artística com
detalhes do disco galáctico, seus braços espirais e barra central (fonte: NASA/JPL-Caltech/R. Hurt
(SSC/Caltech)).

A influência da poeira sobre a luz visível só foi determinada na década


de 1930 e a existência de duas classes de Cefeidas na década de 1940, dois fatores
que permitiram corrigir a curva de calibração das Cefeidas. Mas mesmo antes da
compreensão destes efeitos, observações importantes foram feitas em 1924 por
Edwin Hubble, com a determinação da distância de estrelas Cefeidas em duas
nebulosas que estariam a 900.000 e 850.000 anos-luz de distância. Apesar des-
tas distâncias estarem subestimadas por um fator de ~3, elas ainda eram muito
maiores do que a estimativa de tamanho da Via Láctea de Shapley, o que as
colocavam como objetos extragalácticos, além de ficar agora inegável que as
“nebulosas espirais” continham estrelas, não sendo compostas apenas por gás.
Na realidade, as Cefeidas observadas por Hubble estavam nas galáxias de An-
drômeda e Triângulo, que se encontram a 2.537.000 e 2.723.000 anos-luz de
distância, respectivamente. Ainda assim, com esta observação, a natureza da
Via Láctea e das “nebulosas espirais” fica estabelecida e começam a ser desven-
dadas as características de um Universo com bilhões de outras galáxias.
A Cosmologia na sala de aula 63

■ A teoria da Relatividade Geral e a descrição do Universo


Desde o nascimento da Astrofísica, os modelos físicos utilizados para
descrever fenômenos terrestres teve seu uso expandido para o resto do Univer-
so. Isso primeiro ocorreu com o uso das leis do movimento e lei da Gravitação
Universal, propostas por Isaac Newton ao movimento dos astros, em particular
dos planetas no sistema solar, de onde se derivam as leis de Kepler.
Um conceito fundamental na Cosmologia moderna, o Princípio Cosmo-
lógico, teve sua semente plantada por Nicolau Copérnico quando este, ao propor
um modelo heliocêntrico para o Universo, declarou que a Terra não era nem o
centro do Universo, nem um ponto de observação privilegiado para o Cosmos
(esta afirmação é conhecida como o Princípio Copernicano). Se observamos, então,
a partir da Terra em qualquer direção, um Universo que parece o mesmo quan-
do analisado de qualquer ponto, esta conclusão também seria válida para um
outro ponto qualquer. Na Cosmologia moderna, esta visão é ampliada para a
descrição do Universo como um todo, com o estabelecimento do Princípio Cos-
mológico que diz que o Universo é homogêneo e isotrópico, tomado assim co-
mo uma suposição fundamental.
As características de homogeneidade e isotropia são importantes e
possuem significados bem definidos (e distintos!). Em Cosmologia, dizer que o
Universo é homogêneo implica em dizer que não há posição privilegiada para sua
observação, enquanto ser isotrópico implica não haver direção privilegiada. Disto
resulta algo muito importante: se o Princípio Cosmológico é válido, as leis da
Física, que descrevem todos os fenômenos, são necessariamente as mesmas,
são universais, independentemente de onde se esteja. É possível ter homogenei-
dade sem isotropia e vice-versa, como mostrado na figura 2.9.

Figura 2.9: Exemplos de distribuições em duas dimensões que são: (a) homogênea e isotrópica, à
esquerda; (b) isotrópica mas não homogênea, ao centro; e (c) homogênea mas não isotrópica, à
direita.
64 A Cosmologia na sala de aula

Como podemos notar em uma noite de céus limpos, o Universo não pa-
rece homogêneo: é possível observar uma faixa de aparência leitosa, composta
por uma mais densa aglomeração de estrelas (quando olhamos na direção do
disco da Via Láctea), e regiões menos populosas, com objetos mais esparsos
(quando observamos fora do disco). Observação semelhante pode ser feita em
relação à distribuição dos elementos que compõem o sistema solar, por exem-
plo. O Princípio Cosmológico seria válido, portanto, apenas quando tratamos de
escalas de centenas de milhões de anos-luz, dimensões muito superiores às
definidas pelas escalas galácticas, e este assunto será retomado à luz das evidên-
cias no Capítulo 4.
Em 1915, Albert Einstein publica sua Teoria da Relatividade Geral, des-
crevendo a gravitação dentro de uma proposta na qual corpos em movimento
seguem os caminhos ditados pelas deformações de um espaço-tempo plano
devido à presença de matéria-energia (conforme será detalhado no Capítulo 3).
Em 1917, Einstein aplica as equações da Relatividade Geral ao Universo como um
todo [4] e, tomando o Princípio Cosmológico como válido, descreve um Universo
estático, finito, com uma curvatura esférica. Por acreditar em um Universo imu-
tável com o tempo, introduziu a chamada constante cosmológica, um termo de
repulsão que serviria para contrabalançar a atração exercida por um Universo
com uma distribuição homogênea de matéria. Este foi o primeiro modelo relati-
vístico de Universo, colocando as bases para os trabalhos seguintes.
Em 1922, Aleksandr Friedmann resolve as equações da Relatividade Ge-
ral de Einstein [5], também supondo válido o Princípio Cosmológico, derivando
um Universo esférico oscilante, que passa por fases de expansão e de contração.
Mais tarde foi verificado que esta solução era apenas uma das possíveis na Rela-
tividade Geral, que ficaram conhecidas como modelos de Friedmann, que serão
apresentadas no Capítulo 3.
Algumas indicações de que o Universo não era estático, apareceram já
no começo da década de 1920. O estudo de espectroscopia, quando a luz visível é
decomposta em suas cores, de fontes astronômicas é feito desde o começo do
século XIX, quando Joseph von Fraunhofer decompôs o espectro solar, notando
uma grande quantidade de linhas de absorção (escuras) no espectro. Estas li-
nhas são definidas pelos níveis de energia dos elétrons em um dado átomo e,
portanto, um conjunto de linhas é característico de um dado elemento. Quando
há deslocamento relativo entre a fonte de ondas eletromagnéticas e o detector,
há um deslocamento da posição das linhas em relação ao detectado quando a
velocidade relativa é zero. Classicamente, isso ocorre quando a velocidade relati-
A Cosmologia na sala de aula 65

va é radial, com um deslocamento para comprimentos de onda maiores (averme-


lhamento, em inglês, redshift) quando há afastamento entre fonte e observador e
para comprimentos de onda menores (azulamento, em inglês, blueshift) quando
há aproximação (é importante notar que dentro da relatividade, há um deslo-
camento mesmo que o movimento não seja na direção radial devido à dilatação
temporal).
As estrelas foram os primeiros objetos astronômicos a terem desloca-
mentos Doppler medidos e a espectroscopia estelar utilizando chapas fotográfi-
cas era comum no final do século XIX. Sendo galáxias formadas por estrelas,
nuvens, entre outros objetos, a luz que observamos proveniente destas estrutu-
ras é a soma da luz que é emitida individualmente por seus componentes. Tipi-
camente os espectros de galáxias apresentam uma componente contínua e
também linhas, de absorção e/ou emissão, a depender do tipo de galáxia. Deste
modo, também é possível medir deslocamentos destas linhas, como no exem-
plo da figura 2.10.

Figura 2.10: Exemplo de um espectro galáctico, obtido com o software CLEA-VIREO, com três
linhas de absorção típicas indicadas: linhas H e K do cálcio e linha da banda G. Em vermelho, os
comprimentos de onda em laboratório (sem deslocamento), que correspondem a 3934, 3969 e
4304 Angstroms, respectivamente. Em azul, os comprimentos de onda identificados no espectro
da galáxia. A diferença entre cada par é o equivalente ao deslocamento sofrido.

Vesto Slipher conseguiu determinar com precisão até então inalcança-


da o deslocamento de linhas espectrais de outras galáxias, graças a desenvolvi-
mentos tecnológicos propostos por ele na montagem de espectroscópios e tra-
tamento de emulsões feitos especificamente para a observação de nebulosas.
Em 1921, ele tinha determinado a velocidade relativa entre 41 galáxias espirais e
a Terra a partir dos deslocamentos de suas linhas [6], sendo que a maioria abso-
66 A Cosmologia na sala de aula

luta das nebulosas apresentava uma velocidade de recessão, ou seja, de afasta-


mento, aumentando suas distâncias em relação a nós com o tempo (apenas 4 se
aproximavam do Sistema Solar). A velocidade relativa entre a fonte e o observa-
dor, 𝑣, como função do deslocamento das linhas, para baixas velocidades, pode
ser aproximado por

𝜆−𝜆0 𝑣
≃ (2.4)
𝜆0 𝑐

onde λ e λ0 são, respectivamente, os comprimentos de onda medido e em labo-


ratório (velocidade relativa zero) e c é a velocidade da luz.

Após a constatação de que Andrômeda era uma estrutura fora da Via


Láctea, Hubble continuou com observações de distâncias a diferentes galáxias a
partir do observatório do Monte Wilson, nos EUA, que abrigava o melhor teles-
cópio da época, de 2,5 m de abertura1. Em particular, ele se dedicou a buscar
Cefeidas em outras galáxias mas também se utilizou de outros métodos como
usar as luminosidades de eventos conhecidos como novas ou de galáxias intei-
ras para estimar suas distâncias.
Hubble, então, combinou em 1929 seus resultados de distância de ne-
bulosas com suas velocidades determinadas com os espectros (apesar da falta
de crédito a Slipher) e notou uma relação linear entre a velocidade de recessão e a
distância às galáxias, como na figura 2.11. É importante apontar que Georges
Lemaître já havia derivado das equações relativísticas a relação linear entre dis-
tância e velocidade de recessão, com seu modelo do “átomo primordial”, em
uma publicação ocorrida dois anos antes [7].

1
Este telescópio foi inaugurado em 1917 e se manteve como o maior telescópio óptico do mundo por 40 anos.
Com 100 polegadas de abertura, podia captar quase três vezes mais luz que o segundo maior telescópio da
época, de 60 polegadas, também localizado no Monte Wilson (a comparação na capacidade de coleção da luz
de telescópios é feita a partir da razão entre seus diâmetros ao quadrado). Quanto mais luz coletada, maior a
capacidade de observação, aumentando a escala de distância para detecção de estrelas fracas, nebulosas e
galáxias distantes.
A Cosmologia na sala de aula 67

Figura 2.11: Comparação entre os dados para distâncias obtidas a partir da observação de variáveis
Cefeidas publicados em 1929 por Hubble [8], 1931 por Hubble e Humason [9] e em 2001 pelo Hub-
ble Space Telescope “Key Project” [10]. Note que a inclinação da reta indicada pelos dados de Hub-
ble era maior do que a estimativa atual por um fator de ~7. As distâncias são dadas em milhões de
parsecs, sendo que 1 parsec equivale a 3,26 anos-luz.

Na sequência, Hubble juntou-se a Milton Humason, que expandiu o


trabalho de Slipher para observar galáxias ainda mais fracas, ampliando a amos-
tra de galáxias. No entanto, eles ainda utilizavam a curva de calibração não cor-
rigida das Cefeidas, o que levava a uma proporcionalidade errada. A constante
de proporcionalidade entre a velocidade e a distância ficou conhecida como
constante de Hubble, H0, e a relação como lei de Hubble-Lemaître. As implica-
ções da Lei de Hubble-Lemaître levaram a uma nova cosmologia, completa-
mente diferente do pensamento vigente até então. E estava inaugurada a era da
cosmologia observacional, na qual detecções de precisão dão suporte ao mode-
lo cosmológico vigente.

■ Uma nova cosmologia


Quais as implicações de uma relação linear entre a velocidade de reces-
são das galáxias e a sua distância até nós? A primeira e mais evidente é que cai
por terra a ideia de um Universo estático, no qual se supunha a noção newtonia-
na de distribuição homogênea de matéria em um universo infinito para que a
68 A Cosmologia na sala de aula

força gravitacional não provoque um colapso do Universo ou ainda a existência


de uma constante cosmológica como proposta por Einstein que equilibraria a
atração gravitacional2. Ao saber dos resultados de Hubble, Einstein considerou a
introdução da constante cosmológica em suas equações como “o maior erro de
sua vida”, apesar dela ter sido “resgatada” décadas mais tarde (ver discussão no
Capítulo 4) com outra justificativa.
Um ponto importante que convém destacar é que os deslocamentos
das linhas espectrais observadas por Slipher, Hubble e Humanson foram inter-
pretadas como um efeito Doppler, com as galáxias movimentando-se sobre o
tecido do Universo. Hoje sabemos que não se trata de um efeito Doppler, no
qual há movimento relativo entre a fonte e o observador sobre um plano de
fundo estático. Não se trata de um processo cinemático entre os objetos, mas
sim de uma expansão do próprio espaço-tempo que “estica” os comprimentos
de onda da luz, causando um efeito de deslocamento para o vermelho, o que
ficou conhecido como redshift cosmológico.
Pode-se também especular se estas observações indicam que estamos
no centro do Universo. Seria a Lei de Hubble-Lemaître exclusiva para um obser-
vador na Terra? Sejam duas galáxias, 1 e 2, observadas a partir da Terra e distan-
tes, respectivamente, ⃗⃗⃗
𝑟1 e ⃗⃗⃗
𝑟2 de nós. Pela lei de Hubble-Lemaître, suas velocida-
des de recessão são dadas por:

𝑟1 ,
𝑣1 = 𝐻0 ⃗⃗⃗
⃗⃗⃗⃗ (2.5)

𝑟2 .
𝑣2 = 𝐻0 ⃗⃗⃗
⃗⃗⃗⃗ (2.6)

Qual seria a velocidade da galáxia 2 conforme vista por um observador


na galáxia 1? Neste caso, é necessário apenas fazer uma mudança de referencial
com os dados determinados na Terra. O vetor que dá a distância de 2 até 1 é
⃗⃗⃗⃗⃗
𝑟21 = ⃗⃗⃗
𝑟2 − ⃗⃗⃗𝑟1 , já a velocidade:

𝑣2 − ⃗⃗⃗⃗
⃗⃗⃗⃗ 𝑣1 = 𝐻0 ⃗⃗⃗ 𝑟1 = 𝐻0 (𝑟⃗⃗⃗2 − ⃗⃗⃗
𝑟2 − 𝐻0 ⃗⃗⃗ 𝑟21 ,
𝑟1 ) = 𝐻0 ⃗⃗⃗⃗⃗ (2.7)

ou seja, temos exatamente a mesma forma da Lei de Hubble-Lemaître para um


observador na galáxia 1. A conclusão claramente seria a mesma se a análise fosse
relativa a um observador na galáxia 2 ou em qualquer outra galáxia do Universo.
2
É importante notar que ambos estes Universos são, na realidade, instáveis gravitacionalmente quando
perturbados.
A Cosmologia na sala de aula 69

Assim, a Lei de Hubble-Lemaître é universal e não indica em absoluto que temos


uma posição privilegiada no Cosmos. De fato, podemos utilizar uma analogia
“caseira” que ilustra este afastamento mostrada na Fig. 2.12.

Figura 2.12. A expansão do espaço-tempo pode ser comparada ao caso de um panettone com
passas. As “galáxias”-passas se afastam umas das outras quando a massa cresce, arrastradas por
ela. Se medidas, as distâncias crescem mais quanto mais afastadas estão umas das outras, isto é,
satisfazem a Lei de Hubble.

Das implicações mais profundas, porém, envolve considerar que se as


galáxias estão se afastando de nós, significa que no passado estavam mais pró-
ximas entre si. O tempo que demora para uma galáxia apresentar-se na sua
configuração atual, com a distância medida, pode ser estimado de forma sim-
ples utilizando-se a Lei de Hubble-Lemaître, supondo pelo momento que o pa-
râmetro 𝐻0 seja uma constante, como (ver Capítulo 3)

𝑡𝑒𝑚𝑝𝑜 ∝ 1/𝐻0 , (2.8)

ou seja, pelo inverso da constante de Hubble, um resultado universal. Assim, o


tempo que demorou para uma dada galáxia estar a uma distância 𝑟 de nós in-
depende da galáxia em questão. Isso implica que existe um tempo no passado,
1/𝐻0 , no qual as distâncias entre as galáxias são simultaneamente zero, no qual
todas as galáxias, toda a matéria e todo o espaço do Universo convergiram a um
mesmo ponto: uma singularidade! Isso nos leva à conclusão de que a expansão
do Universo teve início há um tempo finito, em um estado de enorme densida-
de, pressão e temperatura. Aqui vemos uma mudança de paradigma funda-
70 A Cosmologia na sala de aula

mental na Cosmologia: pela primeira vez na história, o Universo passava a ter


uma origem do ponto de vista científico, fora da mitologia e religiões.
A ideia de um Universo dinâmico era inegável frente aos dados de Hub-
ble e Humason mas a conclusão de que ele tinha um início não foi amplamente
aceita na comunidade científica à época. Um grande ponto era o fato de que, com
a curva de calibração das Cefeidas, que não levava em conta a influência da poeira,
entre outras correções não adotadas na época, a constante de Hubble estimada
no trabalho de 1931 levava a uma idade estimada do Universo de apenas ~2 bi-
lhões de anos, cerca de metade da estimativa de idade da Terra fornecida por Lord
Rutherford em 1929 [11]. Alguns estudiosos apresentaram forte oposição a este
modelo cosmológico e o termo Big Bang foi cunhado em 1949 por Sir Fred Hoyle
em palestra veiculada pela rádio BBC de Londres, criticando a ideia de origem para
o Universo, em um estado muito quente e denso. É importante notar, no entanto,
que a ideia do Universo surgindo em uma explosão não é o sustentado pela teoria
do Big Bang, como será discutido no Capítulo 4.
Em 1952, Walter Baade [12] contribuiu enormemente ao determinar
que existem dois tipos diferentes de Cefeidas (pobres e ricas em metais), resul-
tando em uma revisão da sua relação período-luminosidade, que passaram a ser
duas, um ajuste necessário para o uso de Cefeidas como velas-padrão. Na se-
gunda metade do século XX, revisões do valor da constante de Hubble levaram
a estimativas para a idade do Universo entre 10 e 20 bilhões de anos, agora mais
velho que a idade estimada da Terra. No entanto, ainda faltavam evidências
convincentes de que o Universo vinha se expandindo e esfriando desde seu iní-
cio.

■ Voltando no tempo
Conforme o Universo expande, ele esfria. Deste modo, uma conse-
quência de voltar no tempo e diminuir o tamanho do Universo é que não só a
densidade de matéria aumenta mas também a sua temperatura média. Ralph
Alpher, Robert Herman e George Gamow, no final da década de 1940, desenvol-
veram estudos sobre o modelo de Big Bang e a radiação que permearia todo o
Universo, um resquício desta sua infância muito quente.
Quando um gás é descomprimido em uma câmara que não permite
trocas de calor com o meio externo (descompressão adiabática), há uma dimi-
nuição na temperatura do gás, com a conversão de energia interna do gás em
A Cosmologia na sala de aula 71

trabalho realizado pelo mesmo, fazendo diminuir a agitação térmica das molé-
culas. A depender da variação de temperatura, é possível que ocorram transi-
ções de fase da matéria, como a liquefação, por exemplo. A matéria da qual o
Universo é composto também pode sofrer transições de fase ao longo do tempo,
como resposta às mudanças de temperatura, pressão e densidade impostas
pela expansão do espaço-tempo.
No Universo muito jovem, com temperatura e densidade elevadas, a
matéria está presente nos seus componentes mais fundamentais, as partículas
elementares. A interação entre os componentes é grande já que o livre caminho
médio, que mede essencialmente o quanto uma partícula pode percorrer antes
de colidir com outra, é pequeno. Já que em temperaturas mais altas as partículas
também possuem energias médias mais altas, estas colisões ocorrem de modo
que a formação de estados ligados (ou formação de partículas mais pesadas)
entre elas não é favorecida nessas condições. Conforme o Universo esfria, as
partículas podem rearranjar-se formando outras, não elementares, mais conhe-
cidas, como os núcleos atômicos, os átomos e as moléculas. O que permitirá ou
não a formação destas combinações é o livre caminho médio dos fótons, as par-
tículas de luz.
Um gás ideal em equilíbrio térmico apresenta uma distribuição de velo-
cidades (ou energias) de seus componentes que segue a distribuição de
Maxwell-Boltzmann, exemplificada na figura 2.13. Quanto maior a temperatura,
maior a probabilidade de se ter uma partícula com velocidade (energia) maior
que um determinado limiar. Analisando-se agora a questão da formação de
átomos, elétrons precisam se ligar aos núcleos atômicos, em um processo que
libera energia, definida pelo arranjo dos elétrons nas camadas atômicas. Para
quebrar a ligação entre um elétron em um átomo e seu núcleo, é necessário que
um fóton com energia acima de um determinado valor transfira sua energia ao
elétron, de tal modo que ele consiga ficar livre. Fótons com energia menor do
que o limiar de ionização atômica não poderão ionizar um determinado átomo.
72 A Cosmologia na sala de aula

Figura 2.13: Comparação da distribuição de Maxwell-Boltzmann para a energia de um gás a tem-


peraturas diferentes, com 𝑇1 = 100 𝐾 < 𝑇2 = 1200 𝐾 < 𝑇3 = 3000 𝐾. O gás a maior
temperatura tem energias médias maiores que o mesmo gás a menor temperatura.

Quando o Universo é muito quente, praticamente todos os fótons po-


dem ionizar o átomo de hidrogênio, por exemplo. Conforme ele esfria, a fração
de fótons com energia acima do limiar diminui até que chega um ponto no qual
a energia média é baixa o suficiente para que eles não mais possam ionizar os
átomos formados. Com o livre caminho médio dos fótons tendendo a infinito,
eles passam a viajar pelo Cosmos desimpedidos, com suas energias médias
diminuindo conforme o Universo expande.
Em 1948, Alpher e Herman [13] descrevem o esfriamento desta radiação
com a expansão e preveem que o Universo deve estar preenchido por uma radi-
ação de corpo negro com temperatura de 5 K, relíquias cósmicas dos primórdios
do Universo, que vagavam com comprimento de onda na região das micro-
ondas. O modelo de Big Bang fazia, portanto, uma predição passível de teste. A
detecção da chamada Radiação Cósmica de Fundo (mais detalhes no Capítulo 4)
veio em 1964 com Arno Penzias e Robert Wilson e colocou este modelo cosmo-
lógico de um Universo que continha uma origem em um estado extremamente
quente e denso no centro da Cosmologia moderna.
Em menos de meio século, a nossa visão do Cosmos mudou completa-
mente. Passamos de um Universo estático, imutável, eterno e possivelmente
infinito, herdeiro do pensamento filosófico grego e Newtoniano, a um Universo
dinâmico, regido pela Relatividade Geral de Einstein, em constante evolução, na
qual a matéria segue o ditado pela expansão do espaço-tempo e que ainda
guarda muitas surpresas e mistérios, como veremos mais à frente.
A Cosmologia na sala de aula 73

Atividade Didática 2: a escala de distâncias extragaláctica


Com o Grande Debate Curtis-Shapley houve um consenso para consi-
derar a maior parte das nebulosas observadas como enormes enxames de estre-
las muito distantes, tal como Kant tinha sugerido 150 anos antes. Tinha nascido
a Astronomia Extragaláctica, e com ela o Universo inteiro mudou drasticamente
de escala, com sérias consequências para o cenário físico que o descreve, como
veremos no Capítulo seguinte.
Esta escala extragaláctica de distâncias é verdadeiramente muito difícil
de captar para a mente humana. Os alunos normalmente evidenciam esta con-
fusão ao lidar com distâncias incomensuráveis, alheias totalmente à experiência
humana, ainda no domínio local, do Sistema Solar. Quase nenhum deles têm
feito uma reflexão a respeito da escala da galáxia ou da escala extragaláctica. A
presente atividade aponta para uma compreensão da real dimensão da Astro-
nomia Extragaláctica por meio de um recurso simples, o escalonamento, usan-
do objetos conhecidos para evidenciar o pretendido.
Para começar, imaginemos reduzir o Sol ao tamanho de uma bolinha
de gude. Nessa escala, a Terra estaria representada por um grão de areia menor
que 1 mm. Uma cálculo elementar mostra que a distância Sol-Terra (1 U.A. = 150
milhões de km) corresponderia a colocar o grão de areia a uns 2 m da bolinha de
gude (o professor pode pedir para os próprios alunos fazerem estas contas de
escalonamento, até no Ensino Fundamental). Agora a questão seguinte é: qual é
a distância à qual deveríamos colocar uma segunda bolinha (Alfa Centauro)? e
onde as últimas bolinhas que representariam a “borda” da nossa galáxia?
Quando efetuados estes cálculos, ficará claro que a escala Sol=bolinha é
grande demais, já que a galáxia neste caso se estenderia além do raio da Terra.
Com o intuito da visualização, imaginamos agora que o próprio Sol é represen-
tado por um grão de areia. O cálculo indica que as estrelas mais próximas devem
ser outros grãozinhos, e agora sim, a galáxia seria um disco de raio igual ao raio
de Terra, uns 6.000 km.
Por último, e com os modelos anteriores na cabeça, peça para represen-
tar a galáxia inteira (que anteriormente era do tamanho da Terra) por meio de
um prato de cozinha de uns 10 cm de raio. Onde deveriam estar as galáxias mais
próximas (Andrômeda por exemplo)? E o resto do Universo observável?
As respostas são que as galáxias do Grupo Local, Andrômeda e outras,
estariam a uns 10 m, o rico aglomerado de Virgo com mais de 20.000 galáxias a
uns 200 m, e mesmo assim o raio de Hubble, o Universo observável, excederia o
74 A Cosmologia na sala de aula

raio da Terra. Todas estas estimativas estão indicadas na Fig. 1. Sem conseguir
muito mais que uma percepção relativa das distâncias, esta Atividade põe os
alunos em contato com as escalas de comprimento extragalácticas e do Univer-
so de forma concreta, e deve contribuir bastante para repensar nosso lugar no
Universo.

Figura A2. Visualização das escalas galáctica e extragaláctica com objetos comuns, tal como expli-
cado no texto. Note-se a progressiva redução da escala até finalmente “encaixar” as outras galáxias
no último estágio.

Atividade Didática 3: A idade do Universo


Vários dos assuntos apresentados aqui podem ser tratados em sala de
aula. A busca da humanidade pelo seu local no Universo é antiga e uma bela
amostragem de como o conhecimento avança a partir do desenvolvimento de
técnicas e métodos, com o trabalho coletivo de diferentes pessoas e nem sem-
pre de forma absoluta, clara e linear, levando ao debate de ideias que são avali-
adas frente aos dados, sob a luz do método científico.
A Cosmologia na sala de aula 75

O Grande Debate de 1920 é uma boa oportunidade para ampliar a per-


cepção dos alunos sobre nosso lugar no Cosmos. A ideia de que a Terra não é o
centro do Universo, com a discussão sobre Copérnico, Galileu e Kepler, tem sido
realizada de forma efetiva no ensino básico. No entanto, parece que o Sol conti-
nua como centro do Universo no imaginário popular. Shapley conseguiu mover
o Sistema Solar para uma posição mais periférica em relação ao centro da Galá-
xia, enquanto as ideias de Curtis sobre a existência de outras galáxias, confirma-
das por Hubble alguns anos mais tarde e enormemente ampliadas pelos desen-
volvimentos teóricos relativísticos, com o apoio de dados provenientes de teles-
cópios e equipamentos modernos, nos colocou em um Universo com bilhões de
outras galáxias, com um início e sem nenhuma posição privilegiada.
Uma atividade que pode ser realizada com alunos (e que pode ser tra-
balhada em conjunto com a disciplina de matemática por trazer ao “mundo
real” a determinação de uma equação da reta) é o uso dos dados da Lei de Hub-
ble-Lemaître para a determinação da idade do Universo. Para tal, podem-se
usar os dados reais, apresentados na tabela 2.1, obtidos a partir da observação de
variáveis Cefeidas em outras galáxias do Hubble Space Telescope Key Project, um
projeto proposto na década de 1990 por um grupo internacional de astrônomos
para usar dados do telescópio espacial Hubble na determinação da constante de
Hubble. Aqui, além da Cosmologia, podem ser tratados conceitos de eletro-
magnetismo para explicar a ideia de determinação de distâncias a partir de ve-
las-padrão. E ainda conceitos relativísticos ao tratar da expansão do espaço-
tempo e o redshift cosmológico.

Tabela 2.1: Lista de distâncias e velocidades medidas pelo Hubble Space Telescope Key Project [10]
para galáxias com variáveis Cefeidas identificadas. As distâncias são dadas em milhões de parsecs
(Mpc), sendo que 1 Mpc equivale a 3,086 × 1019 𝑘𝑚.

Galáxia D (Mpc) v (km/s)


NGC 0300 2,00 133
NGC 5253 3,15 232
NGC 2403 3,22 278
NGC 3031 3,63 80
IC 4182 4,49 318
NGC 3621 6,64 609
NGC 0925 9,16 664
NGC 3351 10,00 642
NGC 3368 10,52 768
NGC 2541 11,22 714
NGC 2090 11,75 882
76 A Cosmologia na sala de aula

NGC 4725 12,36 1103


NGC 3198 13,80 772
NGC 7331 14,72 999
NGC 4496A 14,86 1424
NGC 4536 14,93 1423
NGC 4321 15,21 1433
NGC 4535 15,78 1444
NGC 1326A 16,14 1794
NGC 4548 16,22 1384
NGC 4414 17,70 619
NGC 1365 17,95 1594
NGC 1425 21,88 1473
NGC 4639 21,98 1403

Referências
[1] G. F. Chambers, A handbook of descriptive astronomy (3rd edition, Oxford, UK, 1877), p. 523.
[2] The Earl of Rosse, Observations on the Nebulae. Philosophical Transactions of the Royal Society of London 140,
499 (1850). Disponível em www.jstor.org/stable/108449.
[3] H.S. Leavitt e E.C. Pickering, Periods of 25 Variable Stars in the Small Magellanic Cloud. Harvard College Observa-
tory Circular, 173, 1 (1912). Disponível em: https://bit.ly/3LrMeS7.
[3] B.F. Madore, W.L. Freedman, The Cepheid Distance Scale. Proc. Astron. Soc. Pac. 103, 933 (1991).
[4] A. Einstein, em Textos Fundamentais da Física Moderna, Tradução do original alemão, Das Relativitatssprinzip
(Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1971), p. 225; A. Einstein, em Cosmological Constants - Papers in Modern
Cosmology, editado por J. Bernstein e G. Feinberg (Columbia University, New York, 1986), p. 16.
[5] A.F. Friedmann, em Cosmological Constants - Papers in Modern Cosmology, editado por J. Bernstein e G.
Feinberg (Columbia University, New York, 1986), p. 49.
[6] V. M. Slipher, The Radial Velocity of the Andromeda Nebula. Lowell Observatory Bulletin 1, 56 (1913).
___ . Spectrographic Observations of Nebulae. Popular Astronomy 23, 21 (1915).
___ . Radial velocity observations of spiral nebulae. The Observatory 40, 304 (1917).
___ . Two Nebulae with Unparalleled Velocities. Popular Astronomy 29, 128 (1921).
[7] G. Lemaître, Un Univers homogène de masse constante et de rayon croissant rendant compte de la vitesse radiale des
nébuleuses extra-galactiques. Annales de la Société Scientifique de Bruxelles (1927). Tradução parcial para o inglês
em G. Lemaître, Monthly Notices of the Royal Astron. Soc. 91, 483 (1931).
[8] E. Hubble, A relation between distance and radial velocity among extra-galactic nebulae. Proceedings of the Na-
tional Academy of Sciences 15, 168 (1929).
[9] E. Hubble e M. L. Humason, The velocity-distance relation among extra-galactic nebulae. The Astrophysical
Journal 74, 43 (1931).

[10] W. L. Freedman, et al. Final Results from the Hubble Space Telescope Key Project to Measure the Hubble Constant.
The Astrophysical Journal 553, 47 (2001).
[11] W. Baade, The period-luminosity relation of the Cepheids. Publications of the Astronomical Society of The Pacific
68, 5 (1956).
[12] E. Rutherford, Origin of Actinium and Age of the Earth. Nature 123, 313 (1929).
[13] R.A. Alpher e R.C. Herman, Evolution of the Universe. Nature 162, 774 (1948).
Capítulo 3

Albert Einstein (1879-1955)


A figura fundamental para o estabelecimento da Relatividade Geral em 1915

Modelos Relativísticos de
Cosmologia
78 A Cosmologia na sala de aula

A descoberta da expansão do Universo descrita no Capítulo 2 e a consi-


deração da velocidade de propagação finita da luz trazem, quando consideradas
simultaneamente, uma nova visão do Cosmos com a qual precisamos lidar. Em
outras palavras, há uma apreciação diferente dos tempos e distâncias que vai
além da nossa experiência “local”. Esta nova situação leva muitas vezes a afirma-
ções erradas, até nos livros especializados, e desfazer esta confusão é um objeti-
vo prioritário. Posteriormente, mostraremos os fundamentos dos modelos
cosmológicos relativísticos que incorporam esta nova visão do Universo.

■ Cosmografia: as quantidades próprias e comóveis, a


propagação da luz e o redshift
Como primeiro exemplo concreto consideremos uma galáxia cujo es-
pectro mostra um elevado redshift. Devido à velocidade finita da luz 𝑐, sabemos
que estamos vendo esta galáxia não como ela é hoje, mas como era há um tem-
po 𝛥𝑡, da ordem (mas não exatamente!) da distância 𝑑 dividida por 𝑐. A luz dos
objetos distantes carrega informação do passado do Universo. Mas é importante
notar que neste tempo 𝛥𝑡, tanto a nossa galáxia quanto a observada se desloca-
ram, e assim terá havido uma variação da distância com o tempo, que deve ser
calculada utilizando o valor da “constante de Hubble” no tempo da emissão. As
observações cosmológicas, apresentam uma mistura indissociável entre coorde-
nadas espaciais e temporal, e precisam da utilização plena dos conceitos relati-
vísticos. Isto deve ser levado em conta quando pensarmos os problemas cosmo-
lógicos, mesmo que aparentemente os análogos newtonianos sejam suficientes
para a descrição física.
O que precisamos fazer, por exemplo, para definir nossa distância a
uma galáxia? Há pelo menos duas formas de um observador determinar uma
distância, cada uma correspondente a um dos sistemas de referência particula-
res. No primeiro caso o observador pode “cair” junto com seu sistema de referên-
cia junto ao fluxo de Hubble (este é o chamado observador comóvel ou funda-
mental). Este observador pode conferir que as distâncias entre ele e as galáxias
permanecem fixas ao longo do tempo, e são assim denominadas distâncias
comoveis (𝑑𝑐 ). Por outro lado, um observador fixo que não acompanha o fluxo de
Hubble (tal como nós fazemos observando o crescimento do panetone da Fig.
2.12) verá que as distâncias aumentam com o tempo devido à expansão. Estas
distâncias são conhecidas como próprias (𝑑𝑝 ). Podemos ver como estas quanti-
A Cosmologia na sala de aula 79

dades estão relacionadas considerando uma galáxia que estava localizada na


coordenada 𝑟 = 𝑟1 e que emitiu luz em 𝑡 = 𝑡1 , a qual está chegando até nós
hoje (Fig. 3.1). A posição da galáxia hoje, se arrastada pelo fluxo de Hubble de-
termina sua distância comóvel até nos 𝑑𝑐 = 𝑎0 × 𝑟1 , onde 𝑎0 = 𝑎(𝑡 = 𝑡0 ) é
o fator de escala do Universo hoje, a quantidade adimensional que caracteriza a
expansão (a ser definido e relacionado com os modelos neste Capítulo). Se hou-
véssemos no entanto calculado a distância própria no tempo 𝑡1 , ela resultaria
𝑑𝑝 = 𝑎1 × 𝑟1 , menor do que a atual já que 𝑎0 > 𝑎1 . Porém, esta não seria
uma medida muito útil, já que os fótons da luz emitida viajaram enquanto o Uni-
verso se expandia (Fig. 3.1). Para ter uma definição confiável, os astrônomos
geralmente expressam seus resultados em distâncias comoveis, mesmo que
estas não sejam as diretamente observadas. As quantidades próprias e comoveis
estão sempre relacionadas entre si pelo fator de escala 𝑎(𝑡) que precisa ser
calculado, e que é a quantidade fundamental das soluções que serão descritas
mais adiante neste Capítulo.

Figura 3.1. As superfícies no instante 𝑡 = 𝑡0 e 𝑡 = 𝑡1 , mostrando as trajetórias radiais dos raios de


luz e as distâncias próprias (calculadas em cima da superfície, representadas por folhas em duas
dimensões nesta figura), sempre crescente e a comóvel, fixa. Devido a que este gráfico mostra 2
dimensões, o correspondente às 3 dimensões espaciais é chamado de híper-superfície na literatura.
80 A Cosmologia na sala de aula

Aproveitando a liberdade de escolha do sistema de coordenadas, po-


demos escolher um na nossa localização no qual os raios de luz seguem trajetó-
rias radiais. Não precisamos assim considerar coordenadas angulares, e o pro-
blema depende somente da coordenada 𝑟 e do tempo 𝑡. Se a luz foi emitida em
𝑡 = 𝑡1 , a relação entre as nossas coordenadas e as do objeto emissor é obtida
ao integrar 𝑑𝑟 = 𝑐 × 𝑑𝑡/𝑎(𝑡) , e resulta

𝑡 𝑐 𝑑𝑡
𝑟 = ∫𝑡 1 . (3.1)
0𝑎(𝑡)

Esta expressão mostra que para conhecer esta relação de coordenadas é


imprescindível um modelo cosmológico, ou seja, uma dinâmica para o Universo
que permita conhecer como varia 𝑎(𝑡) a ser integrado, ou seja, saber a evolução
do fator de escala a ser discutida a seguir.
Voltando às observações de Hubble, a observação do redshift das linhas
espectrais, se atribuído à expansão do próprio espaço-tempo (ou “substrato” que
arrasta as galáxias) permite definir de forma independente do modelo cosmológico
que
𝑎0
(1 + 𝑧) = . (3.2)
𝑎(𝑡)

Quando o fator de escala do Universo for o atual, 𝑎(𝑡 = 𝑡0 ) = 𝑎0 , não


haverá deslocamento algum das linhas já que então 𝑧 = 0. Para todo tempo
anterior, o redshift cresce conforme a expressão (3.2).

■ As distâncias em Cosmologia: distância angular e dis-


tância luminosidade e o horizonte cosmológico
A discussão das quantidades comoveis e próprias deixou em aberto o
problema de relacionar a descrição cosmográfica com os observáveis que pos-
sam servir para estudar o Universo da maneira mais direta possível. Isto é muito
necessário, já que nenhuma das duas é diretamente observável. Além disso,
outras quantidades são mensuráveis utilizando procedimentos específicos e
resultam úteis para uma descrição cosmográfica. Um exemplo delas é o diâmetro
angular de uma fonte extensa, quantidade simples de medir no cotidiano (por
A Cosmologia na sala de aula 81

exemplo, um barco no horizonte, ou a Lua no céu), já que se o tamanho físico


real do objeto é 𝛿𝐿, e subtende um ângulo 𝜒 pequeno para o observador, sa-
bemos que sua distância é 𝑑 = 𝛿𝐿/𝜒 (Fig. 3.2) .

Figura 3.2. A determinação da distância angular entre os extremos do barco e o conhecimento do


seu tamanho real 𝛿𝐿 permite calcular a distância d de imediato. No contexto cosmológico isto
precisa de um conhecimento do que faz o espaço-tempo até que os fótons da luz cheguem até o
observador.

Em Cosmologia já dissemos que enquanto os fótons trazem a imagem


até nós, o próprio espaço-tempo muda (em teoria é possível que a sua geome-
tria não seja Euclidiana, fato que desconsideramos aqui devido à evidência re-
cente em favor de um Universo plano). Assim, de forma análoga à distância 𝑑
ordinária mostrada na Fig. 3.2, podemos definir uma distância angular 𝑑𝐴 pela
relação 𝑑𝐴 = 𝛿𝐿/𝜒. No caso cosmológico, os pontos extremos do objeto emi-
tem raios de luz que viajam até nós e podemos utilizar os conceitos anteriores
para ver que 𝑑𝐴 = 𝑎(𝑡1 ) × 𝛿𝐿 (os dois pontos têm a mesma coordenada radi-
al e queremos saber a sua separação quando os fótons foram emitidos em 𝑡 =
𝑡1 ). Utilizando a equação (3.2) temos assim de forma geral que

𝑑𝐴 (𝑧) = 𝑎0 × 𝛿𝐿 (1 + 𝑧)−1 , (3.3)

uma quantidade diretamente mensurável. Mas a distância angular 𝑑𝐴 resulta de


uma mistura de coordenadas espaciais e redshift e não pode, por si própria, consti-
tuir um teste definitivo da Cosmologia. Idealmente, medindo um conjunto gran-
de de objetos para os quais tanto o redshift 𝑧 quanto a distância angular 𝑑𝐴 pos-
sam ser medidos, poderíamos determinar qual é o modelo de Universo que me-
82 A Cosmologia na sala de aula

lhor se ajusta às observações, mas na prática este procedimento está sujeito a


erros e incertezas que impossibilitam a obtenção de respostas confiáveis.
Uma segunda distância importante que podemos definir em Cosmolo-
gia é a chamada distância de luminosidade. Desde que a construção de uma escala
de distâncias precisa de “velas-padrão”, e em analogia com os conceitos familia-
res do laboratório, pode-se utilizar a relação

𝐿𝑢𝑚𝑖𝑛𝑜𝑠𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑎𝑏𝑠𝑜𝑙𝑢𝑡𝑎 ∝ 𝐿𝑢𝑚𝑖𝑛𝑜𝑠𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑜𝑏𝑠𝑒𝑟𝑣𝑎𝑑𝑎 × 𝑑𝑖𝑠𝑡â𝑛𝑐𝑖𝑎2 , (3.4)

para definir a distância luminosidade pretendida. A luminosidade observada é


uma forma de fluxo, ou quantidade de energia por unidade de área e tempo que
chamaremos de 𝐹. Sabendo quanto o objeto emite realmente (a luminosidade
absoluta), obteríamos a distância luminosidade 𝑑𝐿 extraindo a raiz do quociente
entre as luminosidades intrinseca e observada. Note-se que estamos recebendo
hoje essa energia, e assim a esfera atravessada pelo fluxo 𝐹 tem um raio que é a
distância comóvel. Portanto
1 1
𝐹= 𝐿, (3.5)
4𝜋 𝑎02 𝑟 2 (1+𝑧)2

𝐿
e para que esta expressão se reduza à forma “convencional” 𝐹 = , a defini-
4𝜋𝑑 2
ção de 𝑑𝐿 resulta (lembrando que 𝑎0 = 𝑎(𝑡 = 𝑡0 ), onde 𝑡0 é o tempo atual)

𝑑𝐿 = 𝑎0 𝑟 (1 + 𝑧) . (3.6)

Agora vemos que a relação entre estas duas distâncias cosmológicas é


simplesmente 𝑑𝐿 = (1 + 𝑧)2 𝑑𝐴 . Estas duas quantidades, 𝑑𝐿 e 𝑑𝐴 , são as
mais úteis em geral para as amostras de objetos cosmológicos. Por exemplo, a
distância de luminosidade 𝑑𝐿 é utilizada para construir diagramas magnitude vs.
redshift, conhecidos genericamente como diagramas de Hubble. O problema mais
sério é o de caracterizar as velas-padrão e conferir que não exista uma evolução
intrínseca delas, ou seja efeitos que as façam variar em si próprias sem que o
esmaecimento tenha a ver com a distância cosmológica. Este tipo de diagramas
com dados de supernovas como velas-padrão trouxe recentemente à tona a
aceleração da taxa de expansão que será discutida mais adiante neste Capítulo.
A Cosmologia na sala de aula 83

Finalmente podemos dizer que o horizonte cosmológico (também chamado hori-


zonte de partícula) é a máxima distância própria que podemos ver hoje. Seu valor
numérico deve ser calculado utilizando um modelo cosmológico adequado
(vide depois) e resulta em ~14 𝐺𝑝𝑐 que determina o Universo observável. Isto
não é mais do que uma fração pequena do total (que bem pode ser infinito). Mas
é importante ver que (mais uma vez) a expansão do espaço-tempo pode nos
confundir: quando discutida a extensão do Universo observável, para uma dada
idade admitida, digamos 13 bilhões de anos, infere-se que o Universo observável
tem uns 13 bilhões de anos-luz, uns 4 𝐺𝑝𝑐. Porém, se calcularmos a distância
até a galáxias que emitiram quando os fótons chegam até nós, o resultado é de
14 𝐺𝑝𝑐 já expressado, ou umas 3 vezes maior. As estimativas que “calculam” a
extensão observável multiplicando (𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 × 𝑐) não levam em conta que en-
quanto os fótons viajam vemos progressivamente uma fração maior do Univer-
so. Isto último é como se a expansão não fosse tida em conta.
Como segundo conceito importante temos a distância da luz, também
conhecida como distância lookback, o seu nome em inglês. Para objetos locais,
sem que a expansão de Hubble afete o caminho da luz, a distância lookback é
simplesmente 𝑑𝑙𝑏 = 𝑐 × ∆𝑡, com ∆𝑡 a diferença de nosso tempo com aquele
no qual os fótons foram emitidos. Mas para distâncias muito maiores, onde a
expansão é importante, a 𝑑𝑙𝑏 precisa de uma avaliação da trajetória dos fótons
enquanto o espaço-tempo muda. Conforme as distâncias forem maiores, a dife-
rença entre o valor “real” e 𝑐 × ∆𝑡 cresce. Em outras palavras, não tão somente
devemos levar em conta que a luz demora em chegar, mas que o Universo esta
tambem mudando enquanto o fóton viaja. Note-se que o lookback é diferente
numérica e conceitualmente do horizonte cosmológico.
Da definição do redshift da eq.(3.2) podemos ver que galáxias além de
𝑧 ≅ 1 têm uma velocidade superluminal em relação a nós, e isso leva muitas ve-
zes a acreditar que não poderíamos vê-las. Mas, de fato, no caminho da luz, o
horizonte cresce e quando os fótons entram nele, chegarão até a Terra e a galáxia
será finalmente vista (Fig. 3.3). Além deste ponto, podemos também fazer aqui
uma afirmação que parece surpreendente: não há problema algum em que
existam galáxias cuja velocidade de recessão com respeito a nós seja maior que
𝑐. A restrição da Relatividade Especial se aplica à propagação no espaço-tempo,
não à expansão do espaço-tempo, que é governado pela Relatividade Geral. De
fato, todas as galáxias que observamos com um redshift 𝑧 maior que 1 se afastam
de nós a uma velocidade maior que 𝑐, porque são arrastadas com o fluxo de
Hubble, que não está sujeito a este limite. A insistência na velocidade da luz
84 A Cosmologia na sala de aula

como limite físico máximo faz pensar que sempre é válido, quando o Universo
como um todo não obedece a Relatividade Restrita, mas às equações da Relativi-
dade Geral e as definições sui generis que o caracterizam como sistema físico.

Figura 3.3. Uma galáxia longínqua emite luz, e quando os fótons emitidos “entram” no horizonte
devem chegar ao observador. Isto acontece porque o Universo visível (horizonte cosmológico)
cresce com o tempo.

■ Outros fatos importantes a respeito da expansão de


Hubble
Além da já mencionada confusão decorrente da hipótese inicial de De
Sitter que identificou o deslocamento espectral com o efeito Doppler, quando
na verdade as galáxias não se deslocam com respeito ao espaço-tempo, mas é
este que “estica” com o tempo e as leva junto, existem outros erros de interpreta-
ção que resistiram com tenacidade por mais de 70 anos e que devemos esclare-
cer. Um trabalho de Lemâitre de 1927 parece ter sido o primeiro em corrigir a De
Sitter e expressar claramente que não há nenhum “efeito Doppler”, mas o pró-
prio espaço-tempo aumentando a escala como causa do redshift [3]. Note-se
que nesse trabalho, publicado dois anos antes do trabalho de Hubble, Lemaître
obtém a “lei de Hubble” como resultado do tratamento matemático.
A Cosmologia na sala de aula 85

Existe outra série de conceitos equivocados que tem a ver com a nature-
za dos instantes iniciais, já que a expressão Big Bang sugere uma explosão no
espaço-tempo preexistente, enquanto deve-se pensar na expansão do espaço-
tempo em si próprio. O exemplo do Capítulo 2 nos mostra que não há local privi-
legiado ou “centro” do Big Bang. Outro erro comum é pensar que o Universo era
“menor” que o que é hoje; Sua escala era certamente menor, mas provavelmente
sua extensão espacial era, do começo, infinita tal como hoje. É bem verdade que
nossa região visível ou horizonte cosmológico era bem menor, por exemplo, do
tamanho minúsculo depois da Era Inflacionária (Capítulo 4).
Finalmente, existe também o problema de compreender se os objetos
dentro do Universo são afetados pela expansão. Embora todo o espaço-tempo
está se expandindo, as forças que determinam a estabilidade e estrutura da
matéria são muito mais do que capazes de equilibrar este efeito. Por exemplo,
uma pessoa não se expande com a lei de Hubble porque quando a matéria or-
gânica que a compõe quer seguir esta expansão, as forças mecânicas que a cons-
tituem não o permitem. O mesmo vale, por exemplo, para uma estrela ou uma
galáxia como um todo, as quais encontram uma posição de equilíbrio levemen-
te diferente e param de “esticar”. Os objetos ligados não “esticam” com a lei de
Hubble, e mesmo se o fizessem, o resultado seria imperceptível porque sua
escala é muito pequena para que isto se manifeste.

■ A caminho do modelo cosmológico atual: a gravita-


ção de Newton e os desenvolvimentos do século XX
À virada do século XIX para o século XX, a Teoria de Gravidade Newto-
niana, fundamentada na célebre equação
𝑚1 𝑚2
𝐹𝐺 = −𝐺 , (3.7)
𝑟2

era o modelo admitido para descrever fenômenos gravitacionais em termos de


forças. Lembremos que na equação acima, 𝐹𝐺 é a força gravitacional atrativa
entre dois corpos de massa 𝑚1 e 𝑚2 à distância r e G é a constante de gravitação
universal. Esta equação nos diz que cada partícula massiva atrai cada uma das
outras partículas massivas no universo com uma força que varia diretamente
com o produto das massas das partículas e inversamente com o quadrado da
distância entre elas. De acordo com uma sobrinha de Newton, o que fez com
86 A Cosmologia na sala de aula

que ele meditasse profundamente sobre efeitos gravitacionais em geral e, em


particular, sobre a causa que atrai todos corpos em direção ao centro da Terra, foi
ver, em sua fazenda, uma fruta cair de uma árvore.
Newton derivou sua Lei de Gravitação Universal no ano de 1666 (com
apenas 24 anos de idade!) e a publicou apenas 21 anos depois, em seu livro Philo-
sophiae Naturalis Principia Mathematica (Os Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural), usualmente citado apenas como Principia. No livro I de III dos Principia,
além da Lei da Gravitação Universal, Newton apresentou os princípios funda-
mentais da dinâmica, ou as três Leis de Newton, o que contribui para o fato de
que o Principia é até hoje considerado como uma das obras científicas mais im-
portantes e influentes de toda história.
Sobre suas descobertas referentes à gravitação universal, Newton es-
creve [4]:
Tudo isso foi feito nos dois anos da peste, 1665 e 1666, pois naqueles dias eu
estava na flor da idade para invenções, e me ocupava mais de matemáti-
ca e filosofia (física) do que em qualquer época posterior.

Naturalmente, acima Newton se referiu à Grande Peste de Londres,


que no referido biênio matou cerca de 100.000 pessoas (aproximadamente
20% da população londrina à época). Newton, que já possuía tendências ao
isolamento social, passou então por um período de quarentena que com o tem-
po revelou-se de uma importância imensurável não apenas para sua carreira,
mas, consequentemente, para a humanidade e seu avanço científico e tecnoló-
gico.
Um pouco depois, Newton continua [4]:

É suficiente que a gravidade realmente exista e que aja de acordo com as


leis que descrevi. A sua abundância serve para calcularmos os movimen-
tos dos corpos celestiais e de nossos mares.

Outra, já muito conhecida, citação de Newton é:

Se eu vi mais distante que outros é porque me apoiei nos ombros de gigantes.

E que gigantes seriam esses? No curso de seus estudos e de sua insaciá-


vel sede por conhecimento, na faculdade, Newton teve contato com a Filosofia
Mecânica de Descartes. Em seguida, foi introduzido às ideias de Galileu sobre
movimento e gravidade e às Leis de Kepler para o movimento planetário.
A Cosmologia na sala de aula 87

A Gravitação Newtoniana estabeleceu-se incontestavelmente como


teoria de gravidade por quase 250 anos. Isto porque no ano de 1915, quando em
mais um de seus marcos acadêmicos, Einstein publicou a Teoria da Relatividade
Geral. Em 25 de novembro deste ano, no salão principal de palestras da Acade-
mia Prussiana de Ciências em Berlim, Einstein expressou [5]:

Será que precisamos de uma nova teoria de gravitação, considerando que


a física newtoniana tem nos servido tão bem há 250 anos e parece expli-
car tudo?
A gravidade de Newton é ação à distância. Dois corpos como a Terra e a
Lua, por exemplo, são unidos como que por fios invisíveis. Como é o meca-
nismo de transmissão da força? As fórmulas de Newton nos dão a ideia de
que a gravidade atinge outro corpo - não importa a que distância esteja -
instantaneamente. Minha Teoria Especial da Relatividade contradiz isso.
Afirmo que nenhum efeito físico pode se disseminar mais rápido que a ve-
locidade da luz.

A gravidade é diferente. É uma propriedade do espaço e do tempo. A ma-


téria curva o espaço. As forças espaciais são importantes para descrever
movimentos específicos. A Lua orbita a Terra porque a Terra e a Lua dis-
torcem o espaço. A gravidade é unicamente uma propriedade da geome-
tria do espaço-tempo. Outras forças naturais agem no espaço e no tempo.
Portanto, o que é a gravitação? É espaço e tempo. Esta é a minha Teoria
Geral da Relatividade. Assim, como construção lógica, a Teoria Geral da
Relatividade foi finalmente concluída.

Albert Einstein caracterizou, então, a força da gravidade como um efei-


to geométrico, o que a diferencia significativamente das demais forças funda-
mentais da natureza: força nuclear forte, força nuclear fraca e eletromagnetis-
mo. Ele conseguiu explicar a razão da gravidade ser como é, ou seja, uma força
de longo alcance e atrativa. Os corpos massivos atraem outros corpos massivos
em sua direção pois curvam o espaço ao seu redor fazendo com que ``caiam''
em sua direção. No caso de um corpo com massa muito maior que outro, recu-
peramos a ideia de “massa teste”. Por mais que Newton pudesse descrever ma-
tematicamente como a força da gravidade funciona, ele nunca entendeu a razão
por trás dela ser atrativa, ou até mesmo a razão pela qual ela é diretamente pro-
porcional às massas e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância.
Em contrapartida, Einstein mostrou que corpos mais massivos curvam mais o
espaço (geram mais gravidade em seu entorno) e que este efeito de deformação
do espaço naturalmente diminui conforme nos afastamos de tais corpos.
88 A Cosmologia na sala de aula

A visualização de Einstein da gravidade veio essencialmente por conta


do chamado Princípio da Equivalência, seu “pensamento mais feliz”, de acordo
com suas próprias palavras. Falaremos sobre este importante princípio abaixo.
Em 1907, ocorreu a Einstein que o movimento de um corpo em queda
livre é equivalente à situação em que o corpo está em estado estacionário e o
chão está subindo para encontrá-lo. Einstein percebeu que o estado de queda
em um campo gravitacional é fisicamente equivalente a flutuar à gravidade zero
no espaço sideral.
Para melhor entender o princípio acima, vamos imaginar a seguinte si-
tuação: um astrônomo encontra-se dentro de uma nave. Uma bola junto com o
astrônomo, ambos sujeitos à gravidade 𝑔, cai ao chão da nave. Suponha agora
que enclausuramos o astrônomo e a bola de modo que este não possa mais ter
acesso visual (ou qualquer outro) ao mundo exterior. Ele, então, não mais vê um
lago na superfície terrestre ficando para trás. O astrônomo perde a possibilidade
de saber se a nave decolou e está acelerando ou se está parada e a Terra os está
atraindo.

Figura 3.4. O astrônomo num elevador-nave não consegue saber sem olhar para fora se está sen-
do acelerado pelo foguete em ascensão (direita) ou atraído pela gravitação do planeta 𝑔 (esquer-
da) enquanto o foguete está quieto. Assim, baseado nesta observação, Einstein chegou a postular
que a inércia e a gravitação têm a mesma natureza.
A Cosmologia na sala de aula 89

Einstein percebeu que não há como o astrônomo enclausurado dizer se


ele está na Terra ou acelerando no espaço sideral. Se não é possível distinguir as
duas, aceleração e gravidade são equivalentes. Isto constitui o cerne do Princípio de
Equivalência. Este Princípio dita a universalidade, bem como aponta para a na-
tureza geométrica da gravidade. Assim, foi de fundamental importância para
que Einstein viesse a desenvolver a Relatividade Geral como nova teoria de gra-
vitação.
O advento da Relatividade Geral de Einstein implica então que a Gravi-
tação Newtoniana está errada? A resposta é não. De fato, ambos formalismos
podem coexistir, ao menos em alguns regimes. Na verdade é bem sabido que a
Gravitação Newtoniana funciona e muito bem em regimes em que a curvatura
do espaço é muito pequena e pode ser desprezada. Esses são os chamados regi-
mes de campo gravitacional fraco. Fenômenos terrestres, como objetos soltos por
Galileu do alto da Torre de Pisa (se é que ele fez isso mesmo...), podem ser per-
feitamente descritos pelo formalismo newtoniano de gravitação. Isto porque
podemos dizer que o campo gravitacional gerado pela Terra é “fraco”. Do mes-
mo modo, o movimento da Lua ao redor da Terra pode ser estudado de forma
puramente newtoniana, sem a necessidade de se invocar efeitos de curvatura
do espaço previstos na Relatividade Geral de Einstein.
E quanto ao Sistema Solar? Além de planetas, satélites, asteroides e
cometas, o Sistema Solar engloba (obviamente) o Sol, com uma massa de cerca
de 2 × 1033 g (aproximadamente 1 milhão de vezes maior que a massa do
planeta Terra). Uma massa tão grande assim deve gerar efeitos de curvatura
não-desprezíveis no espaço-tempo, de modo que os efeitos relativísticos previs-
tos por Einstein passem a ser importantes e considerados, certo?
É aqui que entra uma característica importante da teoria de Einstein (e
de qualquer outra proposta nas Ciências): além de dar conta do que já é observado, a
teoria precisa predizer fatos novos, de tal forma que exista um avanço real na área.
Em meados do século XIX, para explicar certos comportamentos na ór-
bita de Mercúrio que aparentemente a Gravitação Newtoniana era incapaz de
dar conta, surgiu a hipótese de existência do planeta Vulcano. Para certa massa e
distância até o Sol, o planeta Vulcano, que passaria a ser o planeta com menor
órbita, poderia explicar as peculiaridades e os desvios na órbita de Mercúrio. O
problema é que diferentes expedições com o intuito de detectar tal planeta fo-
ram em vão: não havia um planeta Vulcano (ou nenhum outro planeta com
órbita menor que a de Mercúrio).
90 A Cosmologia na sala de aula

Em 1915, com o advento da Relatividade Geral, notou-se que as peculiari-


dades na órbita de Mercúrio poderiam ser explicadas puramente pelo formalismo
einsteiniano, sem a necessidade de “se impor” a existência de um planeta mais
próximo ao Sol. O movimento aparentemente anômalo na órbita de Mercúrio era
um efeito da curvatura do espaço-tempo, não predito na Gravitação Newtoniana,
mas uma novidade que emergia da nova teoria. Outros efeitos similares não ex-
plicados pela teoria Newtoniana foram descobertos e estudados.
Enquanto no Sistema Solar os efeitos relativísticos da gravitação são de
caráter corretivo, objetos mais massivos que o Sol, como buracos negros, devem
curvar mais o espaço, necessitando da Relatividade Geral não apenas para gerar
termos corretivos, mas para descrever qualquer fenômeno gravitacional nesse
espaço. Aí temos diferenças importantes entre a Relatividade Geral e a Gravita-
ção Newtoniana. Vale ressaltar que o formalismo da Relatividade Geral engloba
a Gravitação Newtoniana. Isto é, se aplicarmos as equações de movimento da
Relatividade Geral em regimes de campo gravitacional fraco, obtemos as equa-
ções newtonianas, de modo que a “transição” entre os formalismos newtoniano
e einsteiniano seja extremamente natural, sem necessidade de imposição.
Para compreender melhor os conceitos gravitacionais acima expostos é
necessário frisar que massas afetam o campo gravitacional e que o campo gravi-
tacional afeta a forma com que as massas se movem. Isto, na verdade, poderia
ser verificado antes do advento da Relatividade Geral de Einstein.
Vamos primeiro reescrever a lei de gravitação universal de Newton em
função de um potencial ɸ, do qual a força pode ser obtida diretamente como
𝐹 = −𝑚 𝜕ɸ/𝜕𝑥 em uma dimensão. No espaço tridimensional a Lei de New-
ton é
𝜕 𝜕 𝜕
𝐹 = −𝑚 ( 𝒊 + 𝒋 + 𝒌) ɸ (3.8)
𝜕𝑥 𝜕y 𝜕z

isto é, a força gravitacional sobre uma partícula de massa m é proporcional ao


chamado gradiente do campo gravitacional ɸ, sendo o campo gravitacional uma
função da posição no espaço. Os vetores unitários 𝒊, 𝒋 e 𝒌 indicam, respectiva-
mente, as direções x, y e z no espaço tridimensional ordinário (cartesiano). Fica
mais clara a influência do campo gravitacional em “como massas se movem”
quando reescrevemos a equação acima levando em consideração a 2a Lei de
Newton, tal que
𝜕 𝜕 𝜕
𝑚𝑎 = −𝑚 ( 𝒊 + 𝒋 + 𝒌) ɸ (3.9)
𝜕𝑥 𝜕y 𝜕z
A Cosmologia na sala de aula 91

𝜕 𝜕 𝜕
⇒ 𝑎 = −( 𝒊+ 𝒋+ 𝒌) ɸ . (3.10)
𝜕𝑥 𝜕y 𝜕z

Por outro lado, podemos ver que partículas ou corpos massivos no espa-
ço “dizem” ao campo gravitacional como este deve ser, já que este último é a
solução de
𝜕 𝜕 𝜕
( + + ) ɸ = 4𝜋𝐺𝜌 , (3.11)
𝜕𝑥 2 𝜕𝑦 2 𝜕𝑧 2

sendo esta a chamada equação de Poisson, com 𝜌 a densidade de massa, que


também é uma função da posição e a quantidade entre parênteses, o chamado
laplaciano. Einstein visualizou o laplaciano do campo gravitacional na equação
acima como a própria deformação do espaço, que ocorria na presença de uma
distribuição de matéria (respeitando 𝜌). Neste quadro geométrico de Einstein, a
gravidade consiste na própria deformação do espaço, conforme figura abaixo,
em que vemos que corpos mais massivos (representados por esferas maiores)
curvam mais o espaço ao seu redor, ou seja, geram mais gravidade.
Esta é, portanto, uma forma de verificar matematicamente a relação
entre distribuição de matéria e curvatura do espaço, bem como entender fun-
damentalmente como funciona a gravidade e seu caráter geométrico.

Figura 3.5. Imagem em 2D da analogia visual de diferentes massas colocadas sobre um tecido
esticado. O tamanho do poço que criam é proporcional às massas. Um projétil enviado que entra
na depressão “cai” e assim é que a deformação do tecido é vista como causa da queda. Einstein
mostrou que a teoria da Relatividade Geral põe o espaço no lugar de um “tecido” fundamental, e
que a deformação deste é a causante da queda, indo além da ação à distância entre duas massas
da teoria Newtoniana.
92 A Cosmologia na sala de aula

■ Como construir um modelo cosmológico e por que ele


deve ser fundamentado na teoria de gravidade?
Para saber como evoluiu o Universo desde os primórdios precisamos
um modelo cosmológico, isto é, uma descrição matemática da qual possamos
extrair o 𝑎(𝑡) apresentada na eq. (3.1) e todas as quantidades necessárias. Um
modelo cosmológico atual é construído a partir de algumas premissas, entre as
principais podemos citar:

O Princípio Cosmológico

O Princípio Cosmológico é um enunciado indutivo (mas também pres-


critivo) que afirma que o Universo é homogêneo e isotrópico em escalas cosmo-
lógicas.
Vamos entender melhor este princípio e os conceitos nele envolvidos.
Enquanto homogeneidade significa que as mesmas evidências observacionais
estão disponíveis para observadores em diferentes posições do Universo, isotro-
pia neste contexto significa que as mesmas evidências observacionais podem ser
encontradas em quaisquer direções em que se observa o universo.
É evidente que se considerarmos distâncias relativamente pequenas,
não há isotropia nem homogeneidade, já que encontram-se direções onde há
galáxias, vazios e não algo uniforme. Em que escalas de comprimento o Princí-
pio Cosmológico pode então ser tomado como verdadeiro? Os livros-texto de
Cosmologia da atualidade [1, 2] apontam para a validade do Princípio Cosmoló-
gico em escalas > 100 𝑀𝑝𝑐, onde finalmente a distribuição espacial da maté-
ria parece satisfazer a isotropia e homogeneidade. Como referência, estamos
assim falando de algo como 1/50 da escala do horizonte cosmológico, e assim
a modelagem em termos de uma distribuição que respeite o Princípio Cosmo-
lógico parece ter sentido.
É necessário quantificar esta que é uma das principais unidades de me-
dida de distância na Astronomia, o parsec = 3,26 anos-luz, sendo 1ano-luz a distân-
cia que a luz percorre durante um ano (viajando a velocidade c). A escala cosmo-
lógica, onde vale o Princípio Cosmológico, pode ser entendida então como com-
primentos > 108 𝑝𝑐 (considerando que 106 𝑝𝑐 = 1 𝑀𝑝𝑐). Em unidades não-
astronômicas, mais “humanas”, esta escala é > 3,09 × 1022 𝑘𝑚.
A Cosmologia na sala de aula 93

A Teoria da Relatividade Geral como teoria de gravidade

Um modelo cosmológico deve ser fundamentado numa teoria de gra-


vidade pois das quatro forças fundamentais na natureza, força nuclear forte,
força nuclear fraca, força eletromagnética e força gravitacional, apenas a força
gravitacional não se anula em grandes distâncias (a eletromagnética também
tem alcance infinito, porém, existem dois sinais para a carga elétrica o Universo é
eletricamente neutro). Daí que em larga escala o Universo é regido pela gravita-
ção, a força de atração entre corpos com massa no Universo, como maçãs que
caem em direção ao centro da Terra, a Lua que orbita a Terra, a Terra que orbita o
Sol, o Sol que orbita o centro da Via Láctea etc. Deste modo, um modelo cosmo-
lógico deve ser fundamentado numa teoria de gravidade, em nosso caso, a Teo-
ria da Relatividade Geral de Albert Einstein.
Com isso em mente, em seguida veremos como são os modelos cosmo-
lógicos relativísticos e o que eles nos dizem a respeito do Universo, sua origem,
evolução até os dias de hoje, e também seu futuro.
Veremos que a dinâmica do Universo não é a mesma ao longo dos 13,8
bilhões de anos de sua existência. Pelo contrário, ela varia significativamente
dependendo do tipo de conteúdo material dominante em diferentes épocas ou
estágios. Efetivamente, temos um modelo que nos diz como o Universo evolui
(por exemplo, como sua taxa de expansão varia no tempo) quando dizemos
qual o tipo de matéria é predominante numa dada época.

■ Modelos Relativísticos de Cosmologia


Cosmologia é a ciência que estuda a evolução do Universo, desde sua
origem até os dias atuais e futuros. Ela trata o Universo como o “sistema” a ser
analisado e verifica como este evolui como função do tempo [6].
O modelo cosmológico baseado no Princípio Cosmológico e na Teoria
da Relatividade Geral mais aceito hoje é o chamado Modelo ΛCDM (hoje con-
vertido em Modelo Cosmológico Padrão), sendo Λ a constante cosmológica e
CDM a sigla para Cold Dark Matter (em Português, Matéria Escura Fria). Falare-
mos sobre estas duas entidades em mais detalhes mais adiante neste Capítulo.
Por ora, mencione-se que estes são “ingredientes” necessários para um bom
ajuste do Modelo Cosmológico Padrão com as observações, mas cuja natureza
ainda permanece um mistério.
94 A Cosmologia na sala de aula

Levando em conta as conceituações sobre a força gravitacional acima explana-


das, esperamos que haja de fato uma relação direta entre o conteúdo material
do Universo e a maneira com que ele evolui em função do tempo. Diferentes
tipos de matéria já dominaram a dinâmica do universo, e por “dominar a dinâ-
mica do Universo”, queremos dizer que a densidade deste componente domi-
nante é muito maior do que a densidade dos demais num dado estágio da evo-
lução do universo. Abaixo veremos que diferentes componentes dominantes
levam a diferentes evoluções temporais para a taxa de expansão do Universo.
Os principais componentes do Universo são: “radiação” (na forma de
luz, ou fótons, mas também assim chamados os componentes relativísticos
como os neutrinos e outras partículas que eram relativísticas no início do Univer-
so, quando a temperatura era extrema), matéria (bariônica e escura) e energia
escura. A matéria bariônica é também referida como matéria ordinária e trata
da matéria composta por bárions, que são partículas formadas por três quarks,
como os prótons e os nêutrons. É a matéria usual, que nos compõe, bem como
compõe planetas, estrelas etc. A energia escura tem relação com a constante
cosmológica, que será, bem como a matéria escura, tratada a seguir.
Para entendermos a dinâmica em modelos relativísticos, a grandeza
fundamental é o fator de escala. Vimos que o fator de escala a(t) é uma função
apenas da coordenada temporal (lembre das hipóteses da homogeneidade e
isotropia do Universo). O fator de escala dita como as distâncias evoluem no Uni-
verso. Para ilustrar seu papel, consideremos duas galáxias distantes no universo.
Consideremos que a distância entre essas galáxias, num dado tempo em particu-
lar é r, um valor bem definido. Para sabermos a distância D entre as galáxias em
qualquer tempo ou época t na história do Universo, fazemos 𝐷 = 𝑎(𝑡)𝑟.
É importante salientar que a “constante de Hubble” nada mais é do que a
razão (𝑑𝑎/𝑑𝑡)/𝑎 calculada no presente. Mais fundamentalmente, o parâmetro
de Hubble 𝐻(𝑡) é definido conforme 𝐻 = (𝑑𝑎/𝑑𝑡)/𝑎 . Vemos que 𝐻(𝑡) es-
sencialmente descreve a taxa de expansão instantânea, e foi muito diferente no
passado do Universo, já que a forma com que a varia com o tempo não é a mesma
desde o Big-Bang até os dias atuais. Conforme foi mencionado acima e será quanti-
ficado abaixo, a dependência em t para o fator de escala depende do conteúdo
material que domina a dinâmica do Universo em diferentes épocas.
Para adentrarmos o caráter quantitativo dos modelos cosmológicos,
uma vez já estando ciente da definição do fator de escala, bem como de sua
importância, retomemos brevemente o Princípio Cosmológico acima apresen-
A Cosmologia na sala de aula 95

tado. Para propósitos quantitativos, dizer que o Universo é homogêneo e isotró-


pico em escalas cosmológicas é dizer que o fator de escala depende apenas do
tempo, mas que outras quantidades também são assim, como a densidade 𝜌 e a
pressão p dos fluidos que compõem o Universo (note que da Equação de Pois-
son, que segue a abordagem newtoniana, apenas a densidade deveria ter um
papel a ser considerado no estudo da dinâmica gravitacional. De fato, existe
uma dependência também da pressão, que não é outra coisa que uma densida-
de de energia, e que faz parte da descrição em termos da Relatividade Geral de
Einstein).
Quando dizemos “densidade” e “pressão” do Universo, fundamental-
mente estamos dizendo densidade e pressão do conteúdo material que o com-
põe. Para fins de construção de modelos cosmológicos, o conteúdo material é
entendido como radiação, matéria (normal e escura) e energia escura. Cada um
desses componentes tem uma forma com a qual sua respectiva densidade e
pressão variam com o tempo.
Para construir modelos cosmológicos relativísticos que deem conta da
evolução temporal, é de extrema importância conhecermos a equação de estado
dos componentes do Universo, sendo esta simplesmente uma forma de escre-
ver a pressão como função da densidade do componente:

𝑝 = 𝑝(𝜌) . (3.12)

Em geral, equações de estado podem ser muito complicadas. Por exem-


plo, a equação de estado do interior das estrelas de nêutrons pode conter uma
série de parâmetros, além de dependências não-lineares na densidade e outros
fatores. Na Cosmologia, no entanto, lidamos com “fluidos” muito diluídos, de
modo que em geral as equações de estado são bastante simples, tais como

𝑝 = 𝜔𝜌 , (3.13)

sendo 𝜔 um número adimensional.

Uma equação de estado deste tipo torna solúvel o sistema de equações [1, 2]

1 𝑑𝑎 2 8𝜋𝐺 𝑐2
3( ) = 𝜌 + Λ + 3𝜅 , (3.14)
𝑎 𝑑𝑡 𝑐2 𝑎2
96 A Cosmologia na sala de aula

3 𝑑2𝑎 4𝜋𝐺
=− (𝜌 + 3𝑝) + Λ , (3.15)
𝑎 𝑑𝑡 2 𝑐2

conhecido como equações de Friedmann. As Equações de Friedmann regem a di-


nâmica do Universo e são obtidas a partir da consideração do acima descrito
Princípio Cosmológico nas Equações de Campo da Relatividade Geral de Eins-
tein. Acima, Λ é a constante cosmológica, responsável pela recente aceleração
na expansão do Universo e 𝜅 é a chamada curvatura, determinada pelo conteú-
do de matéria/energia e que parece ser nula (embora este valor zero não seja
algo óbvio a priori, de fato os livros de Cosmologia sempre mostraram soluções
com 𝜅 ≠ 0. mas 𝜅 = 0 é um resultado que emerge das análises modernas,
vide Capítulo 4).
As equações de Friedmann nos dão a possibilidade de desvendar como
a dinâmica do Universo se comportava há cerca de 13,8 bilhões de anos, no que
chamamos Universo primordial. Elas prevêem, em acordo com observações as-
tronômicas, a taxa atual da expansão do Universo. Temos a possibilidade de
também a partir delas prever como será a dinâmica do Universo nos próximos
bilhões de anos (Capítulo 5).
A necessidade de uma equação de estado em conjunto com as equa-
ções de Friedmann mostra-se essencial uma vez que sem uma relação conheci-
da entre densidade e pressão do Universo, teríamos um conjunto de duas equa-
ções com três incógnitas: a, 𝜌 e 𝑝, A equação de estado “fecha” o sistema de
equações, tornando-o, assim, solúvel para cada uma das incógnitas.
Abaixo, listamos outras observações importantes a respeito das Equa-
ções de Friedmann:

i) o termo ao lado esquerdo da igualdade na primeira equação é nada


menos que três vezes o parâmetro de Hubble ao quadrado, de modo
que quando calculado no presente, seja 3 vezes a constante de Hubble
ao quadrado. O parâmetro de Hubble é um observável do Universo e re-
presenta, efetivamente, sua taxa de expansão. Foi medido primeira-
mente pelo astrônomo Hubble a partir da observação do movimento
de afastamento de galáxias e hoje pode ter seu valor inferido a partir de
diversos outros métodos;

ii) 𝜌 não representa a densidade de massa como na gravitação newto-


niana, mas a densidade de energia total. O principal resultado da Teoria
da Relatividade Especial de Einstein é a equivalência entre massa e
energia, exibida na famosa equação 𝐸 = 𝑚 𝑐 2 . Esta equivalência
A Cosmologia na sala de aula 97

permite a inclusão de partículas de massa de repouso zero, como fó-


tons, no formalismo. Ou seja, se tal partícula possui uma energia finita
𝐸, ela tem uma massa finita 𝐸 = 𝑚 𝑐 2 .

iii) à época da publicação da Relatividade Geral (25 de novembro de


1915), ainda não tínhamos ciência da expansão do Universo. Nossa pró-
pria noção de universo era significativamente mais restrita, de modo
que podemos dizer que o Universo à época era entendido como sendo a
Via Láctea apenas (Capítulos 1 e 2). Acreditava-se que este Universo era
estático, ou seja, não passava por um processo de expansão ou de con-
tração. Não havia até então nenhuma evidência observacional que
apontasse para um Universo dinâmico. No entanto, as primeiras solu-
ções do tipo cosmológicas obtidas a partir da Relatividade Geral indica-
vam que o Universo podia ser dinâmico. Isto fez com que Einstein inse-
risse “à mão” a constante cosmológica 𝛬 em suas equações de campo,
pois assim esta poderia gerar soluções estáticas para o universo. Tal co-
mo mostramos no Capítulo 2, na década de 1920 no século passado, o
astrônomo Edwin Hubble detectou o afastamento de galáxias, cuja ve-
locidade apresentava dependência linear com a distância, o que indica-
va um Universo em expansão (dinâmico). Isto fez com que Einstein vies-
se a considerar a inserção da constante cosmológica em suas equações
como a “maior tolice de sua vida”, já que ele quis “forçar” que Universo
fosse estático. Na década de 1990 no século passado, a partir da obser-
vação da distribuição do brilho de explosões de supernovas do tipo Ia
progressivamente distantes, inferiu-se que a expansão do Universo
ocorre de forma acelerada. Este foi um marco na história da Astronomia,
uma vez que esperava-se que a gravidade, sendo uma força atrativa,
freasse (ou desacelerasse) a expansão. Sabe-se que a re-inserção de Λ
nas equações da Relatividade Geral, e consequentemente nas Equações
de Friedmann, prevê tal efeito.

Para fins didáticos, podemos resolver as equações de Friedmann acima


considerando que o Universo é ora preenchido apenas por radiação, ora apenas
por matéria (bariônica e escura) e ora apenas por energia escura. Isso vale com
boa aproximação, conforme será descrito abaixo.
Antes de tratarmos, em particular, cada estágio da evolução do Univer-
so (Seção seguinte), vale ressaltar que na presente abordagem, energia escura e
constante cosmológica representam o mesmo componente do Universo. Con-
forme acima mencionado, a expansão acelerada do Universo ainda é um misté-
rio a ser esclarecido na Astronomia. Justamente por não se saber exatamente a
98 A Cosmologia na sala de aula

causa da expansão do Universo no presente ocorrer de forma acelerada, deu-se


à esta causa o nome “energia escura”. A constante cosmológica, assim, pode ser
entendida como o “modelo padrão” da energia escura, a forma mais simples e
direta de se prever a expansão acelerada do Universo, mas sem que isto queira
dizer que realmente é a causa da aceleração.
Comecemos tratando o Universo dominado por radiação. Até atingir
uma idade de aproximadamente 400.000 anos (sua idade atual é de aproxima-
damente 14 bilhões de anos), a dinâmica do Universo foi dominada pela radia-
ção (que também pode ser referida como “matéria relativística”, já que como
dissemos as partículas muito leves são “ensacoladas” junto a verdadeira radia-
ção, por levarem aos mesmos efeitos). Isso ocorreu pois o Universo primordial
era muito quente, os fótons eram muito energéticos e impediam a formação
dos primeiros átomos. De fato, os primeiros núcleos atômicos (com prótons e
nêutrons) já estavam formados desde os primeiros minutos de existência do
Universo, mas os átomos ainda não porque os fótons livres eram muito abun-
dantes e espalhavam os elétron, impedindo, assim, a formação dos átomos.
Aproximadamente 400.000 anos depois do Big Bang o Universo esfriou o sufi-
ciente a ponto de que os fótons não mais possuíam energia para espalhar os
elétrons.
Apesar dos fótons não terem massa, eles têm momentum, e, portanto,
exercem pressão. A equação de estado dos fótons é
1
𝑝= 𝜌, (3.16)
3

1
ou simplesmente 𝜔 = . Tal equação de estado, quando substituída nas equa-
3
ções de Friedmann, leva à seguinte solução para o fator de escala:

𝑎(𝑡) ∝ 𝑡 1/2 . (3.17)

Assim então evolui o Universo na chamada Era da radiação. Podemos di-


zer que nesse período, as distâncias aumentam com o tempo respeitando a
equação acima.
A Era da radiação acaba, como acima mencionado, quando os fótons não
mais impedem a formação dos átomos e passam a viajar livremente pelo Univer-
so, devido à neutralidade destes. Esses fótons que viajam livremente pelo universo
desde que este tem aproximadamente 400.000 anos, são observados hoje na
A Cosmologia na sala de aula 99

forma da radiação cósmica de fundo, um dos mais importantes observáveis da Cos-


mologia. Falaremos no Capítulo 4 sobre esta importante relíquia observável.
A partir do momento em que os primeiros átomos começam a se for-
mar, temos a matéria prima necessária para a formação das primeiras estrelas e,
de fato, com cerca de uma centena de milhões de anos passados, as primeiras
estrelas começam a se formar no Universo. Estas, por sua vez, são a matéria pri-
ma para a formação das primeiras galáxias, que posteriormente irão formar os
aglomerados de galáxias, as maiores estruturas gravitacionalmente ligadas do
Universo.
Todos estes processos de formação ocorrem especialmente na chama-
da Era da matéria, que dura desde o fim da era da radiação até o Universo atingir
cerca de 10 bilhões de anos de existência. Mais uma vez, e seguindo nosso en-
tendimento de gravidade, proporcionado pela Teoria da Relatividade Geral de
Einstein, o conteúdo material “diz” ao Universo como este deve evoluir em fun-
ção do tempo. No caso, o componente dominante da dinâmica do Universo na
Era da matéria é, conforme esperado, a matéria. Qual a equação de estado da
matéria e que tipo de expansão universal provocou?
Consideramos nesse caso um gás de baixa densidade de partículas
massivas não-relativísticas. Por não-relativísticas queremos dizer que os movi-
mentos térmicos randômicos das partículas têm velocidades peculiares 𝑣 pe-
quenas se comparadas à velocidade da luz c. É bem sabido que esse tipo de gás
respeita a lei dos gases perfeitos

𝑘𝐵 𝑇
𝑝= 𝜌 , (3.18)
𝜇

sendo 𝑘𝐵 a constante de Boltzmann, T a temperatura e 𝜇 a massa média das


partículas.
Sendo a densidade de energia 𝜀 de um gás não-relativístico quase intei-
ramente advinda da massa das partículas, tem-se 𝜀 ~ 𝜌c2, podemos reescrever
a equação (3.18) como

𝑘𝐵 𝑇
𝑝= 𝜀. (3.19)
𝜇𝑐 2

Ainda para um gás não-relativístico, T pode ser escrito a partir de

3𝑘𝐵 𝑇 = 𝜇〈𝑣 2 〉 , (3.20)


100 A Cosmologia na sala de aula

sendo 〈𝑣 2 〉 a média do quadrado da velocidade. Portanto, finalmente podemos


escrever a equação de estado de matéria como

〈𝑣 2 〉
𝑝= 𝜀, (3.21)
3𝑐 2

que é também da forma 𝑝 = 𝜔𝜌, sendo

〈𝑣 2 〉
𝜔= . (3.22)
3𝑐 2

No entanto, como vimos já no início da abordagem da era da matéria,


〈𝑣 2 〉
≪ 𝑐 2 , de modo que 𝜔 ≪ 1 . Em geral esta condição simplifica-se para
𝜔 ≈ 0, e assim

𝑝=0, (3.23)

que é a equação de estado utilizada para a matéria. A equação de estado acima


simplifica significativamente a resolução das Equações de Friedmann, levando
de imediato à seguinte solução simples para o fator de escala

𝑎(𝑡) ∝ 𝑡 2/3 , (3.24)

de modo, então, que esta seja a forma com que distâncias evoluem no Universo
na Era da matéria. Neste momento, devemos salientar que o Universo expande
desde o Big Bang, mas que até o fim da era da matéria esta expansão ocorre de
forma desacelerada, ou seja, a velocidade da expansão diminui com o tempo.
Ao final da Era da matéria, à época em que o Universo tem cerca de 10 bilhões de
anos, este cenário muda radicalmente e começa a Era da energia escura, já que
esta última domina a dinâmica da expansão.
Na verdade, a desaceleração na expansão do Universo, que ocorre até o
fim da Era da matéria, é, de certo modo, esperada ou intuitiva. Lembrando que
em escalas cosmológicas apenas os efeitos gravitacionais devem ser levados em
conta (e não os das demais forças fundamentais), o caráter atrativo da gravita-
ção “freia” a expansão do Universo, causando sua desaceleração. No entanto, no
Universo “recente”, passamos a observar uma aceleração na taxa de expansão.
Matematicamente, verificamos que esta aceleração pode ocorrer se o Universo
tiver como componente dominante de sua dinâmica, um tipo de fluido “exótico”
A Cosmologia na sala de aula 101

com uma equação de estado com pressão negativa. Isto pode ser visto diretamen-
te da eq.(3.15) ao examinar o segundo membro.
É a este fluido que damos o nome “energia escura” como solução possí-
vel para explicar as observações, mas sem sabermos se é a causa real. A partir do
momento em que a aceleração da expansão do Universo inicia, temos também
o início da chamada Era da energia escura.
De fato, pode-se verificar que ainda em posse da equação de estado
𝑝 = 𝜔𝜌 (eq. 3.13), as soluções para a(t) obtidas a partir das Equações de Fried-
mann indicam uma aceleração na expansão do Universo quando 𝜔 < −1/3.
O sinal da quantidade 𝑑 2 𝑎/ 𝑑𝑡 2 é quem efetivamente informa se a expansão
ocorre de forma acelerada ou desacelerada, tal que 𝑑 2 𝑎/ 𝑑𝑡 2 > 0 indica ex-
pansão acelerada e 𝑑2 𝑎/ 𝑑𝑡 2 < 0 expansão desacelerada. A título de curiosi-
dade, o sinal de 𝑑𝑎/𝑑𝑡, por outro lado, indica contração ou expansão do Univer-
𝑑𝑎 𝑑𝑎
so, tal que > 0 para um Universo em expansão (nosso caso) e < 0 para
𝑑𝑡 𝑑𝑡
um Universo em contração.
A constante cosmológica pode ser simplesmente entendida como um
componente do Universo com equação de estado

𝑝 = −𝜌 . (3.25)

O fator de escala obtido para a equação de estado acima, suposta a úni-


ca componente, destoa significativamente das soluções anteriores, e é dado por

𝑎(𝑡) ∝ 𝑒 𝑡 , (3.26)

que indica uma expansão exponencialmente acelerada.


A análise acima, feita separadamente para cada estágio do Universo,
como se este fosse preenchido apenas por seu componente dominante (radia-
ção, matéria e energia escura), revela mais uma vez a forte relação entre matéria
e energia (𝜌 e 𝑝) e geometria (𝑎). Note que na Cosmologia, o conteúdo material,
refletido a partir de uma equação de estado nas equações de Friedmann, “diz ao
Universo” como ele deve evoluir, a partir de soluções particulares e distintas para
o fator de escala [2].
102 A Cosmologia na sala de aula

■ O lado escuro do Universo


A matéria escura

A primeira indicação de que poderia existir um tipo de matéria não ob-


servável mas que contribuía à atração gravitacional foi feita em 1932 por Jan
Oort. Ele buscava mapear a estrutura da Via Láctea e ao estimar a espessura do
disco galáctico e a massa do disco, chegou à conclusão de que as estrelas obser-
vadas eram responsáveis por apenas 10% da massa necessária para que a espes-
sura do disco fosse aquela. A conclusão era de que pela quantidade de matéria
observável, a espessura do disco deveria ser bem maior.
Já em 1933, Fritz Zwicky aplicou o teorema do Virial às galáxias dos
aglomerados de Virgo e Coma, concluindo que a massa dos aglomerados deve-
ria ser cerca de 400 vezes maior que a contabilizada pelas estrelas para que os
aglomerados tivessem a extensão observada. Na época, as técnicas de detecção
não cobriam todo o espectro eletromagnético como se faz hoje e não era possí-
vel estimar contribuições importantes como a presença de gás entre as estrelas,
o que leva a conta original de Zwicky pular de 400 para 10 vezes mais massa do
que a massa bariônica para os aglomerados. Ainda assim, há um desbalanço
notável entre a matéria observada e a atração gravitacional sendo exercida nes-
tes aglomerados.
Apesar destas indicações, havia dúvidas quanto ao método utilizado
para estimar as massas observáveis, em particular, havia dúvidas se estes seriam
sistemas em equilíbrio para permitir o uso do teorema do Virial. Deste modo, a
matéria escura, conforme cunhado por Zwicky, ficou adormecida entre as publi-
cações no mundo da física e astronomia por várias décadas até que observações
da curva de rotação de galáxias espirais reavivou esta ideia.
O Sol, as outras estrelas, as nebulosas gasosas, e tudo o que faz parte da
Via Láctea, gira em torno do centro galáctico movido pela atração gravitacional.
É possível medir a velocidade para corpos a várias distâncias do centro de rota-
ção e verificar esta dependência. Por exemplo, no Sistema Solar, observamos
que os planetas seguem a lei de Kepler, com uma curva de rotação que decai
com a raiz quadrada da distância ao Sol, que concentra cerca de 99% da massa
do sistema solar, como visto na figura 3.6.
A Cosmologia na sala de aula 103

Figura 3.6: Curva de rotação para os planetas no sistema solar utilizando-se as velocidades orbitais
e distâncias médias ao Sol dos planetas. Como praticamente toda a massa do sistema solar está
concentrada no Sol, o comportamento é kepleriano e o ajuste de curva é feito para um decaimen-
to do tipo 𝑟 −1/2 , como pode ser visto pela curva vermelha.

Na década de 1960, Vera Rubin, W.K. Ford e N. Thonnard utilizaram o


mais avançado espectrômetro da época para observarem galáxias no Observa-
tório do Monte Palomar, nos Estados Unidos. Seus trabalhos focaram em obter
o deslocamento Doppler da linha de 21 centímetros do hidrogênio em nuvens
gasosas nos discos, inicialmente da galáxia de Andrômeda e depois expandido
para outras galáxias. A diferença agora é que a massa encontra-se distribuída
em torno do centro galáctico, ao contrário do sistema solar com uma grande
concentração de massa no Sol. Mas é possível medir a distribuição da matéria
luminosa e determinar um raio que contenha a maior parte da massa. A partir
deste ponto, a velocidade deveria decrescer. Mas não é o que ocorre! A matéria
nas regiões mais externas das galáxias espirais estão se movendo muito mais
rapidamente do que o esperado pela quantidade de matéria luminosa. Ou seja,
a quantidade de matéria parece ser maior que a vista. Alguns exemplos de curva
de rotação podem ser vistos na figura 3.7.
Isto também ocorre na Via Láctea, como mostrado na figura 8. A maior
parte da matéria luminosa da Galáxia (9 × 1010 𝑀ʘ ) encontra-se interna à
órbita solar. A partir desse ponto, a curva de rotação deveria decrescer (da mes-
ma forma que a velocidade dos planetas diminui à medida que aumenta sua
104 A Cosmologia na sala de aula

distância ao Sol). Mas não é isso que acontece! A curva de rotação aumenta ligei-
ramente para distâncias maiores. Isto indica que a quantidade de massa é maior
que aquela vista, evidência para a existência da matéria escura.

Figura 3.7: Curva de rotação de 7 galáxias espirais como função da distância ao centro. Note que as
curvas de rotação não decaem para grandes distâncias como seria esperado pela distribuição de
matéria luminosa. Isso indica que há mais matéria do que a que conseguimos enxergar. Figura
adaptada de [7].

Para uma distribuição esfericamente simétrica e homogênea de massa


de raio R, podemos escrever a força gravitacional sentida por uma partícula de
teste de massa 𝑚 como

𝐺𝑀𝑟 𝑚
𝐹= , (3.27)
𝑟2

onde 𝑀𝑟 é a massa interna à superfície esférica delimitada por 𝑟, que constitui a


massa total do objeto (galáxia) para 𝑟 > 𝑅. Supondo que as estrelas girem nos
braços em movimento circular com velocidade tangencial 𝑉, podemos escrever

𝑚𝑉 2 𝐺𝑀𝑟 𝑚
𝐹 = 𝑚𝑎 → = , (3.28)
𝑟 𝑟2

e assim chegamos de imediato a

𝑉 2𝑟
𝑀𝑟 = . (3.29)
𝐺
A Cosmologia na sala de aula 105

Diferenciando-se a relação acima em relação à distância 𝑟, temos

𝑑𝑀𝑟 𝑉2
= = 4𝜋𝜌𝑟 2 , (3.30)
𝑑𝑟 𝐺

sendo que no último passo a derivada da massa com a distância foi igualada à
equação da conservação da massa, para uma distribuição de massa que depen-
de apenas da distância ao centro. Para uma curva de rotação constante, ou seja,
na qual 𝑉 não depende da distância, a distribuição de massa deve ter uma de-
pendência de 𝜌(𝑟) ∝ 𝑟 −2 . A contagem de matéria luminosa na região mais
𝐻𝑎𝑙𝑜
externa da Via Láctea apresenta um perfil de densidade 𝜌𝑙𝑢𝑚 ∝ 𝑟 −3.5 , ou
seja, que cai muito mais rapidamente do que a densidade necessária para man-
ter uma curva de rotação constante. A conclusão é a de que nossa galáxia con-
tém matéria não visível que se estende muito além da matéria visível!

Figura 3.8: Curva de rotação da Via Láctea (adaptado de [8]), à esquerda, e de NGC 6503 (adaptado
de [7]) à direita, onde são evidenciadas as contribuições da matéria do disco, do gás e a do halo de
matéria escura necessário para a explicação do formato da curva.

Há uma outra forma, talvez mais direta, de concluir a existência da ma-


téria escura a partir da equação (3.29) acima. Reescrevamos a (3.29) como

𝐺𝑀𝑟
𝑣2 = . (3.31)
𝑟

Note-se que, das figuras de curva de rotação de galáxias, num determi-


nado 𝑟, 𝑣 passa a ser aproximadamente constante. Nesta região, podemos, en-
tão, escrever 𝑣 = √𝑘, sendo 𝑘 uma constante positiva. Temos, então, da equa-
ção acima, que
106 A Cosmologia na sala de aula

𝐺𝑀𝑟
𝑘= , (3.32)
𝑟
ou
𝑘𝑟
𝑀𝑟 = . (3.33)
𝐺

A equação acima nos diz que nessa região, 𝑀𝑟 deve ser diretamente
proporcional a 𝑟, mesmo para valores de 𝑟 em que não há matéria lumino-
sa/visível. Se a massa deve crescer com 𝑟 mesmo para regiões externas ao “raio
luminoso” da galáxia, então infere-se a existência de um halo de matéria escura
que se estende até regiões bem maiores que este raio.
Os dados indicam, na realidade, que todas as galáxias, independente-
mente de serem espirais ou não, possuem halos extensos de matéria escura
totalizando cerca de 90% da sua massa total. Os resultados apresentados por
Rubin, Ford e Thonnard foram inicialmente recebidos na comunidade científica
com certo ceticismo. No entanto, trabalhos subsequentes também detectaram
anomalias gravitacionais que levaram a conclusões similares, o que abriu toda
uma área de pesquisa, não só em Astronomia mas também em Física de Partí-
culas, a da matéria escura.
Outra grande fonte de evidências para a existência de matéria escura é
o efeito de lentes gravitacionais causado por galáxias, aglomerados e super-
aglomerados de galáxias. Este é um efeito explicado dentro da teoria da relativi-
dade geral pela curvatura causada no espaço-tempo pela presença de massas. A
trajetória da luz é afetada nas proximidades de grandes massas, de modo que
será observada uma posição aparente da fonte de luz. Dependendo das posi-
ções relativas entre o objeto atuando como lente e aquele que será observado,
pode haver imagens múltiplas deste. Se o alinhamento é perfeito, há a distorção
do objeto distante no formato de um anel, o chamado anel de Einstein. Analisan-
do-se as imagens formadas pela lente gravitacional, a distribuição de massa da
lente pode ser mapeada, ou seja, as lentes gravitacionais são diretamente sensí-
veis à distribuição de matéria escura, já que o efeito de lente é sensível apenas ao
potencial gravitacional. Sendo desnecessário saber sobre o tipo de galáxia que
se está observando, como se formam, como se comportam ou que cor emitem,
este constitui um teste cosmológico claro e confiável que se apoia em poucas
suposições e aproximações. Alguns efeitos podem ser vistos na figura 3.9.
A Cosmologia na sala de aula 107

Figura 3.9: Efeito de lentes gravitacionais. Acima: Um modelo de como a distorção do espaço-tempo
causado por um objeto massivo pode alongar a imagem de um objeto localizado mais distante e/ou
causar imagens múltiplas deste objeto. Crédito da imagem: NASA, ESA. Abaixo: À esquerda, o aglo-
merado de galáxias Abell 370, que contém centenas de galáxias unidas pela atração gravitacional. É
possível ver entre as galáxias alguns arcos de luz azulada. Estas são imagens distorcidas de galáxias
remotas, localizadas atrás do aglomerado, que são muito fracas para serem observadas diretamente.
A deformação do espaço-tempo causada pelo aglomerado age como uma lente que amplifica e
estica as imagens das galáxias de fundo. Crédito da imagem: NASA, ESA, J. Lotz e o time HFF (STScI).
À direita, a galáxia vermelha luminosa vista no centro da imagem distorce a luz da galáxia azul muito
mais distante. O alinhamento das duas galáxias é quase perfeito, causando uma distorção que lem-
bra uma ferradura. Crédito da imagem: ESA/Hubble & NASA.
108 A Cosmologia na sala de aula

Análises de diferentes aglomerados e superaglomerados de galáxias


prevêem mais massa do que a observada no visível. Em 2006 foi observado um
sistema de aglomerados de galáxias em colisão, chamado de aglomerado da Bala
por conta do seu formato, como visto na figura 3.10. Pelo mapeamento da dis-
torção observada a partir do efeito de lentes gravitacionais é possível determinar
a distribuição da massa nesses aglomerados de forma bastante precisa. Anali-
sando o perfil de densidade de matéria, é verificado que o centro gravitacional
do gás (detectado em raios-X) não coincide com o centro gravitacional dos
aglomerados (determinado pelo efeito lente gravitacional). Quando os aglome-
rados colidem, a matéria que os forma vai interagir durante a colisão. Os aglo-
merados contém a matéria luminosa, composta por estrelas mas em sua maior
parte por gás, e um halo de matéria escura em uma distribuição do tipo esférica
em torno do centro. Durante a colisão, o gás interage tanto por interação gravi-
tacional quanto por interação eletromagnética, como se fosse um atrito. Este
gás irá perder energia e desacelerar mais do que os halos de matéria escura, que
interagem apenas gravitacionalmente. Então o centro dos halos de matéria
escura e das distribuições de matéria luminosa que antes da colisão eram coin-
cidentes ficaram deslocados neste sistema.

Figura 3.10: Aglomerado da Bala [9]. À esquerda, imagem do telescópio Magellan no ótico com
contornos da distribuição espacial de massa, obtida por lentes gravitacionais. À direita, os mes-
mos contornos colocados sobre a imagem do telescópio de raio-X Chandra com o qual é possível
observar o plasma quente em uma galáxia. É possível observar que o centro da distribuição da
maior parte da matéria é diferente do centro do plasma quente, que sofreu perda de energia por
fricção durante a colisão dos aglomerados e desacelerou.

Dissemos anteriormente que da análise do espectro do FRC é possível


extrair valores para o parâmetro de densidade total Ω (Capítulo 4), mas também
separadamente para a contribuição da matéria bariônica e de matéria total,
A Cosmologia na sala de aula 109

sendo que estes últimos são bastante diferentes entre si, sendo indicativo de
matéria não bariônica em excesso. Também as inomogeneidades presentes no
FRC apontam para densidades em excesso insuficientes para formar as estrutu-
ras atuais como galáxias, aglomerados e super-aglomerados, sendo necessária
mais massa do que a observável para a formação de estrutura no Universo.
Também a análise de gás quente em aglomerados de galáxias massi-
vos, a partir de sua emissão em raios-X, indica que a densidade de matéria escu-
ra aumenta em direção ao centro dos aglomerados. O poço de potencial gravita-
cional mantém o gás quente no aglomerado mas a massa visível das galáxias
não é o suficiente. É preciso uma grande quantidade de matéria invisível para
balancear a pressão do gás, que está a temperaturas superiores a 106 K. Deste
modo, a distribuição do gás quente parece ser determinada pela matéria escura
e não pela matéria visível, o que permite uma medição precisa da distribuição de
matéria escura na região interna de um aglomerado.
Cabe aqui discutir o porquê de dizer que a matéria escura é não-
bariônica. Inicialmente foi aventada a possibilidade de que esta matéria “faltan-
te” fosse simplesmente matéria usual mas que passasse despercebida às obser-
vações. Mas como seria possível deixar de detectar a maioria da matéria se ela
possuísse as mesmas propriedades da matéria que conhecemos?
Na década de 1980, surgiu a hipótese de que a matéria escura fosse
formada por MACHOs, objetos do halo massivos e compactos (do inglês, MAssi-
ve Compact Halo Objects). Estes seriam constituídos por anãs marrons, “Júpiteres”,
estrelas comuns, mas de baixo brilho, anãs brancas, estrelas de nêutrons, bura-
cos negros, ou seja, matéria bariônica normal mas de luminosidade muito baixa
(ou nula) de modo que sua detecção fosse difícil.
Para a detecção destes objetos, pequenos e de relativa baixa massa, é
usada a técnica de microlentes gravitacionais, que consiste em analisar as curvas
de luz de diferentes estrelas. Quando um MACHO passa na frente de uma es-
trela de fundo, a luz da estrela é focalizada na Terra, o que faz com que a estrela
pareça mais brilhante por algumas horas ou dias. Pela curva de luz da estrela de
fundo pode-se determinar a massa do MACHO.
O Projeto MACHO analisou 12 milhões de estrelas na Grande Nuvem de
Magalhães de 1992 a 1998 com um telescópio no observatório Mt. Stromlo na
Austrália. Foram detectados entre 13 e 17 eventos de microlente gravitacional, o
que permite uma extrapolação para estimar a massa total devido aos MACHOs
na Via Láctea. Este projeto e outros similares detectaram vários MACHOs, ou
seja, eles de fato existem, mas de longe não possuem número/massa suficiente
110 A Cosmologia na sala de aula

para explicar a matéria escura na Via Láctea, compondo menos de 1% do núme-


ro necessário.
A matéria bariônica emite e absorve radiação. Já a matéria escura pare-
ce nem emitir nem absorver a luz sendo possível detectar sua presença apenas
através de seus efeitos gravitacionais. Além disso, a nucleossíntese primordial
coloca restrições fortes já que a abundância dos nuclídeos depende da densida-
de total de bárions e as observações estão de acordo com o modelo. A matéria
escura deve ser de outra natureza.
Na Via Láctea, a análise da curva de rotação indica que a matéria escura
apresenta-se distribuída numa componente esférica (talvez um pouco achata-
da) que constitui o halo de matéria escura, correspondendo a 95% da massa
total da nossa Galáxia. Já que estamos imersos neste halo, este é o lugar mais
indicado para procurar e identificar a natureza da matéria escura.
Foi sugerido que a matéria escura é composta por um tipo ainda não
detectado de partícula fundamental. Uma das hipóteses é que seja composta de
WIMPs, partículas massivas interagindo pela força fraca (do inglês, Weakly Inte-
racting Massive Particles) que interagiriam com o resto da matéria só pela força
fraca e pela gravitação, sendo praticamente invisíveis. Já conhecemos uma par-
tícula assim, os neutrinos. Seriam eles os responsáveis pela matéria escura? Ou
seriam partículas preditas pela teoria de supersimetria? Ou ainda algo diferente?
O fato é que na década de 1980, dividiu-se a matéria escura em duas ca-
tegorias: a matéria escura quente, formada por partículas com velocidades rela-
tivísticas, incluindo neutrinos (que se movem praticamente à velocidade da luz)
e outras partículas hipotéticas, ou matéria escura fria, composta por partículas
ou objetos com massa mais alta, e velocidades baixas, como axions e WIMPs.
Esta distinção revela-se fundamental na formação de estrutura.
As partículas “quentes” possuem velocidades tão altas que escapam das
concentrações “pequenas” de massa (no caso, galáxias) e não participam na
formação destas estruturas. Neste cenário, primeiro se formariam as maiores
estruturas, os (super-)aglomerados, sendo que as galáxias se formariam depois,
por fragmentação das maiores estruturas. Já as partículas “frias” ficam ligadas às
estruturas pela gravitação, participando da sua formação. As menores estrutu-
ras são formadas mais cedo na história do Universo, e depois se juntam para
formar as estruturas maiores. Ou seja, o cenário de formação das estruturas se
dá diferentemente nas duas hipóteses e é possível comparar observações com
simulações dos diferentes cenários.
A Cosmologia na sala de aula 111

Simulações que calculam a evolução das estruturas num Universo con-


tendo matéria escura quente ou fria preveem distribuições de galáxias diferen-
tes nas duas hipóteses, sendo que a simulação com matéria escura fria reproduz
melhor as observações. Isso somado ao fato de que é possível identificar inúme-
ras fusões de galáxias e que são vistas muitas galáxias pequenas em imagens do
Hubble Ultra Deep Field, mostrando como eram 400 a 800 milhões de anos
após o Big Bang, favorecem a matéria escura fria. Ainda assim, ainda restam
alguns pontos em aberto, como a predita abundância, não observada, de uma
quantidade muito elevada de galáxias anãs.
Existem vários experimentos dedicados à detecção da matéria escura.
Eles tipicamente se apoiam na hipótese de que será possível a observação indi-
reta destas partículas a partir de interações fracas, incluindo produtos de decai-
mentos. Os detectores são colocados em minas profundas ou túneis para reduzir
ao mínimo o fundo de raios cósmicos, sendo que as chances de detecção au-
mentam com a massa do detector e o tempo de operação já que a taxa de inte-
ração prevista é muito baixa, menos de 0,1 vez ao ano por kg de material sensível
no detector.
A Terra deveria sentir um “vento” de matéria escura ao se movimentar
no sistema solar, o que introduziria uma modulação anual no sinal observado
pelos detectores. A colaboração DAMA/LIBRA [8] reportou a observação de um
sinal deste tipo mas não confirmado por outros grupos que operam na busca de
matéria escura. Existem diversos experimentos, previstos e em operação, em-
pregando diferentes técnicas de detecção dedicados à busca de matéria escura,
no entanto, ainda não há evidências fortes para a sua detecção por experimen-
tos terrestres.
É importante apontar que existem propostas de teorias alternativas que
tentam explicar estas anomalias gravitacionais sem necessitar da existência de
matéria escura. Um conjunto popular hoje em dia são as teorias do tipo MOND
(do inglês MOdified Newtonian Dynamics) , modificações da dinâmica newto-
niana para grandes acelerações, e 𝑓(𝑅) para modificações da teoria da Relativi-
dade Geral, que incluem modificações ad hoc, sem embasamento teórico forte,
para ajustar as curvas de rotação galácticas sem a necessidade da existência de
matéria escura. Estes modelos tendem a explicar muito bem um dos fenôme-
nos que indicam a existência de uma componente extra de matéria mas falham
quando são aplicados aos outros ou a evidências ainda mais básicas, como a
própria curva de rotação do sistema solar. Existe uma aceitação bastante ampla
112 A Cosmologia na sala de aula

da matéria escura na comunidade científica, apesar de não ser unânime. A exis-


tência desta componente faz parte do modelo cosmológico padrão atual.
Quais seus modos de interação, como é criada, pode ser destruída? São
algumas das dúvidas que surgem. Frente a este cenário, muitos podem pensar
que não sabemos nada sobre a matéria escura porque não conhecemos sua
natureza. No entanto, é importante destacar tudo o que sabemos sobre a maté-
ria escura, incluindo o que ela não é. Ela não é composta por matéria ordinária,
ou seja, ela é não-bariônica. Os estudos de formação de estruturas no Universo
indicam que a matéria escura deve ser fria, ou seja, deve ter massa mais alta e
velocidades baixas para poder participar da formação das estruturas. Também a
matéria escura se formou muito cedo no Universo, com evidência vinda do FRC.
O fato de que tanta matéria escura ainda está presente no Universo quase 14
bilhões de anos depois, indica que sua vida é longa, de pelo menos 3 bilhões de
anos ou mais. Além disso, não há evidência de seu decaimento. Então muito se
sabe sobre matéria escura, apesar de ainda termos as perguntas mais funda-
mentais sem resposta.
A matéria escura está fortemente presente nas galáxias e parece ter pa-
pel fundamental na formação de estrutura no Universo (Capítulo 4), contribuin-
do em cerca de 26% da densidade crítica. Não detectamos luz desta componen-
te, apenas sua interação gravitacional, o que torna o Cosmos o local ideal para o
seu estudo.
Esta contribuição e a “energia escura” que não são diretamente vistas,
têm um efeito muito importante na hora de avaliar o Universo em que vivemos.
Com efeito, podemos reescrever a eq. (3.14) na ausência de Λ e curvatura 𝜅 nula
como
8𝜋𝐺
𝐻 2 (𝑡) = 𝜌(𝑡) (3.34)
3𝑐 2

Portanto, para um valor do parâmetro de Hubble, há uma densidade crítica

3𝑐 2
𝜌𝑐 (𝑡) = 𝐻 2 (𝑡) (3.35)
8𝜋𝐺

tal que se no tempo 𝑡, 𝜌 > 𝜌𝑐 o Universo tem curvatura 𝜅 positiva (a mesma da


eq. 3.14), se 𝜌 < 𝜌𝑐 , tem curvatura negativa e se 𝜌 = 𝜌𝑐 , tem curvatura nula,
conforme figura abaixo.
A Cosmologia na sala de aula 113

Figura 3.11. A curvatura do universo nos três casos possíveis: positiva (topo), negativa (centro) e
nula (abaixo). A área dos triângulos vermelhos resulta diferente em cada caso, e somente é “dois
ângulos retos” se estivermos num Universo com curvatura nula (como parece ser o caso). Fonte:
https://www.cienciaquenosfazemos.org/post/2019/11/04/o-universo-é-plano-talvez-não-um-
universo-redondo-faria-o-fim-encontrar-o-in\%C3\%ADcioe-tudo-mu

Usando do valor presente madido para o parâmetro de Hubble 𝐻0 ≡


𝐻(𝑡 = 𝑡0 )[1], podemos computar o valor presente da densidade crítica, 𝜌𝑐0
Temos

3𝑐 2
𝜌𝑐0 = 𝐻0 . (3.36)
8𝜋𝐺

Inserindo-se os valores conhecidos para 𝑐, 𝐺 e 𝐻0 na equação acima,


chegamos ao seguinte valor
𝐽
𝜌𝑐0 = (7,8 ± 0,5) × 10−10 . (3.37)
𝑚3

Lembre que 𝜌𝑐0 é a densidade de energia crítica atual, de modo que a densidade de
massa equivalente resulta simplesmente 𝜌𝑐0 ⁄𝑐 2 = (8,7 ± 0,5) × 10−27 𝑘𝑔/𝑚3 .
Para visualizar melhor a contribuião da cada componente da sopa cósmica, cos-
114 A Cosmologia na sala de aula

ρi
tuma-se definir Ω𝑖 ≡ , onde o “𝑖” pode corresponder à radiação, matéria
𝜌𝑐0
(visível ou “escura”) ou energia escura em geral. Veremos no Capítulo 4 quanto
aporta cada componente à mistura, ou seja, que fração da densidade crítica é
medida e quanto é a soma ∑ Ω𝑖 , sendo que Ω𝑖 = 1 corresponderia ao valor de
um Universo “plano” com geometria euclidiana.
Isto é equivalente à densidade de um próton por 200 litros, o que refor-
ça o fato de que 𝜌𝑐0 é extraordinariamente baixa. Na verdade, observações da
RCF apontam para um Universo com 𝜌0 ≅ 𝜌𝑐0 , ou seja, a densidade atual do
Universo é aproximadamente igual à sua densidade crítica atual, de modo que a
seção espacial do Universo seja plana, com curvatura 𝜅 nula. Isto quer dizer que
o que não vemos ajuda o Universo a ter uma geometria análoga ao espaço eu-
clidiano, o espaço no Universo não parece ter nenhuma curvatura e não é hiper-
bólico ou esférico (ditos “aberto” e “fechado” em muitos textos). Também vale
vale ressaltar ao leitor que a maior parte do volume do Universo consiste de
vazio ou “vazios cósmicos”, à moda de um enorme queijo gruyère com galáxias e
associações nas bordas dos vazios (vide figura 4.2 do próximo Capítulo).

Energia Escura

Ao final do século passado, em 1998, houve uma importantes novidade


na Cosmologia observacional: o anúncio de que a expansão do Universo está
acelerando [10, 11] À causa postulada mais simples dessa aceleração, que perma-
nece um mistério, dá-se o nome energia escura.
O fenômeno de uma expansão acelerada não é algo esperado ou se-
quer intuitivo. Espera-se que a gravidade, sendo uma força atrativa, aja para
desacelerar a expansão ao longo do tempo, mas o que detectamos é justamente
o contrário, uma expansão acelerada. Enquanto galáxias se afastam umas das
outras seguindo o fluxo de Hubble, a gravidade deveria agir como uma espécie
de “freio” à essa expansão. No entanto, não é isso que observamos. Ao menos
não no Universo recente. Isto porque a aceleração na expansão do Universo que
observamos hoje não ocorreu sempre. Nos períodos em que a dinâmica do Uni-
verso foi dominada por radiação e por matéria, que duraram desde que o Uni-
verso tinha uma fração de segundo até atingir cerca de 10 bilhões de anos de
existência (lembre, hoje sua idade é de aproximadamente 13,8 bilhões de anos),
a sua expansão ocorreu de forma desacelerada, como esperado e conferido.
A Cosmologia na sala de aula 115

Mas como a expansão acelerada foi descoberta? Em 1998, dois grupos


de pesquisa independentes, chefiados por Adam Riess e Saul Perlmutter (o Su-
pernova Cosmology Project e o High-Z Supernova Search Team respectivamente),
ambos laureados com o Prêmio Nobel de Física em 2011, reportaram a evidência
direta desta aceleração observando supernovas do tipo Ia [10, 11] para distâncias
longínquas, as quais revelam como é o fluxo de Hubble.
Vamos primeiro entender, então, o que são supernovas. Uma superno-
va (em geral) é uma estrela que explode. Particularmente, supernovas Ia podem
ocorrer em sistemas binários contendo estrelas anãs brancas que realizam a fu-
são do carbono “fóssil” do seu interior quando ultrapassam um limiar de densi-
dade e temperatura. Uma anã branca é o estágio final de uma estrela do tipo do
Sol, e nela a gravidade é sustentada por um efeito quântico chamado pressão de
“degenerescência de elétrons”. Estudos realizados no início da década de 30 do
século passado pelo físico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar (também
laureado com o Nobel de Física) indicaram que anãs brancas não podem supor-
tar massas maiores que 1,44 massas solares. Este limite passou a ser conhecido
como limite de Chandrasekhar. Uma anã branca que está chegando a este limite
de massa, então, é candidata a explodir em uma supernova do tipo Ia.
Os mecanismos para que uma anã branca atinja este limiar de massa
são dois: um repentino, fundindo-se com outra anã branca (este evento causa
uma emissão de ondas gravitacionais que poderão futuramente ser detectadas
por experimentos espaciais, conforme Apêndice 4) ou vagaroso, acretando gás
de uma estrela companheira até que o centro esteja denso e quente e dispare a
fusão do carbono. Se em qualquer um desses processos, uma anã branca se
aproxima ao limite de Chandrasekhar, ela começa a colapsar e o carbono se
“acende” e a consome em menos de 1 𝑠. As figuras abaixo mostram os dois
mecanismos de produção de supernovas Ia.
116 A Cosmologia na sala de aula

Figura 3.12: Duas anãs brancas começam a coalescer, a princípio, a distâncias de muitos raios
estelares (painel superior). Devido à emissão de ondas gravitacionais, a distância entre as anãs
brancas diminui com o tempo (painel central) até que eventualmente elas se tocam e fundem
(painel inferior). O resultado é uma Anã Branca que viola o Limite de Chandrasekhar e, logo, ex-
plode numa supernova Ia. Fonte: https://forbes.com.br/forbeslife/2018/07/os-7-shows-de-luzes-
mais-poderosos-do-universo/#foto1

Figura 3.13: Uma anã branca acreta matéria de sua estrela companheira (painel superior) e sua
massa aumenta até chegar perto do limite de Chadrasekhar, e explodir pela fusão descontrolada
do carbono (painel inferior) numa supernova Ia. Fonte: https://bit.ly/3D5yIR5.
A Cosmologia na sala de aula 117

Em nossa galáxia, a Via Láctea, eventos como supernovas do tipo Ia são


bastante raros, ocorrendo aproximadamente uma vez por século, em média. No
entanto, estas supernovas são eventos extraordinariamente luminosos (poden-
do atingir uma centena de bilhões de vezes a luminosidade do Sol! Na verdade,
podemos dizer com boa aproximação que a luminosidade de uma supernova
do tipo Ia é equivalente à luminosidade de uma galáxia inteira), logo, podem ser
vistas mesmo quando a enormes distâncias, em diversas galáxias. Sendo o Uni-
verso grande o suficiente para que mesmo os eventos raros aconteçam frequen-
temente, temos um importante número de supernovas do tipo Ia já observadas,
de modo que a existência da aceleração seja comprovada com base numa
amostragem estatística alta o suficiente.
Como é então que a observação de supernovas Ia foi associada a uma ace-
leração da expansão de Hubble? Acontece que supernovas Ia são conhecidas como
“velas padrão”, altamente luminosas e geradas em essência pelo mesmo meca-
nismo, a fusão do carbono perto do limite de Chandrasekhar. Sendo “iguais” ao
momento da explosão, espera-se que estes eventos tenham a mesma luminosi-
dade (sejam velas padrão), já que sempre são gerados a partir da mesma configu-
ração e com a mesma fornte de energia. Medindo-se o brilho de supernovas Ia,
podemos então inferir sua distância até nós.
A figura abaixo mostra algumas das supernovas do tipo Ia mais distantes
detectadas pelo Telescópio Espacial Hubble.

Figura 3.14: Imagens de explosões supernova Ia e valores para seus redshifts. Fonte: Ref. [9].

Se coletarmos as curvas de luz das supernovas Ia, identificadas pelos es-


pectros como tais, existe uma diversidade notória (Fig. 3.15, esquerda). Mas co-
mo são fontes cosmológicas, devemos aplicar as correções do modelo cosmológi-
co para corrigir tanto a duração quanto a luminosidade observadas. Quando
efetuado este procedimento, as curvas convergem para uma forma universal (Fig.
3.15 direita), e os astrofísicos falam assim de calibração (devida a Hamuy e Phil-
118 A Cosmologia na sala de aula

lips). O resultado é que a luminosidade no máximo é só função da largura tem-


poral: quanto mais larga a curva, mais brilhante. Isto é interpretado como a uni-
versalidade das curvas de luz das explosões: todas as diferenças se devem à
Cosmologia. Assim, se observarmos supernovas mais distantes ainda, podemos
saber como são intrinsecamente (por meio da aplicação da calibração) e com ela
testar o próprio modelo cosmológico. As supernovas são desta forma “velas-
padrão” para a Cosmologia.

Figura 3.15. As curvas de luz de várias SNIa para diferentes redshifts (esquerda), e a forma obtida
depois de aplicadas as correções (direita). Este procedimento é conhecido como a calibração de
Hamuy-Phillips [2].

Para uma população de “velas padrão” com luminosidade conhecida L,


mede-se seu fluxo 𝐹, tal que

𝐿 1/2
𝑑𝐿 = ( ) . (3.38)
4𝜋𝐹

é a distância luminosidade até a supernova, já definida na eq. (3.6). Velas padrão


que possuem sistematicamente um fluxo mais baixo que o predito teoricamente
indicam um Universo em expansão acelerada, já que um fluxo mais baixo indica
que a fonte está mais distante do que se espera, logo, o Universo expandiu mais
rapidamente que o previsto.
O modelo teórico cosmológico, baseado na Relatividade Geral (eqs. 3.14
e 3.15), desconsiderando-se a constante cosmológica, ou seja, descrevendo um
Universo composto apenas por matéria e radiação, é incapaz de se ajustar bem
aos dados observacionais de supernovas Ia. Se preenchermos o Universo de
nosso modelo cosmológico apenas com matéria e radiação, e analisarmos a
A Cosmologia na sala de aula 119

distância de luminosidade predita teoricamente, vemos que o brilho das super-


novas (observação) é mais baixo do que se espera (teoria). Como então dar conta
deste desajuste entre teoria e observação?
É aqui que a constante cosmológica entra em cena para dar conta deste
desajuste (vide figura 3.16 abaixo). Considerando a constante cosmológica nas
Equações de Friedmann (3.14) e (3.15), e consequentemente na equação para a
distância luminosidade, para um dado valor de Λ , é possível melhor ajustar os
dados observacionais de supernovas Ia ao modelo teórico. Isto ocorre pois a
dinâmica do Universo é alterada na presença da constante cosmológica. Em
outras palavras, a constante cosmológica faz com que a expansão do Universo
acelere e, assim, justifica a diminuição no brilho das supernovas. Esta ocorre pois
as supernovas estão mais distantes do que se esperaria num Universo desprovi-
do de Λ.

𝑑𝐿
Figura 3.16: Módulo de distância, definido como 𝑚 − 𝑀 = 5 log10 ( ) + 5, versus redshift
𝑀𝑝𝑐
para uma amostra de 580 supernovas Ia, contendo suas barras de erro. Enquanto a linha pontilha-
da-tracejada superior representa um Universo preenchido apenas com constante cosmológica e a
linha pontilhada um Universo apenas com matéria, a linha sólida descreve um Universo cuja
composição é ~ 30% de matéria e ~ 70% de constante cosmológica. Fonte: Ref. [10].

A aceleração da expansão é um indício de que pode existir algum tipo


de componente desconhecido e exótico no Universo, e que hoje, ele possui uma
densidade maior que matéria e radiação, já que um Universo dominado por
qualquer um desses dois componentes desacelera sua expansão. A constante
cosmológica que “já estava aí” da teoria (embora considerada “um erro” pelo
120 A Cosmologia na sala de aula

próprio Einstein) permite resolver o problema. Mas a introdução de Λ domi-


nando a dinâmica atual do Universo (sendo que esta componente deve ser
~70% da densidade crítica, valor confirmado pelas medidas da RCF do Capítu-
lo 4), diz que esta energia escura deve ter alguma propriedade exótica para cau-
sar a aceleração. Efetivamente, a causa da expansão acelerada pode estar relaci-
onada a um efeito do tipo “anti-gravitacional” guardado na energia escura, se
𝑑2𝑎
observarmos que a equação de Friedmann (3.15) teria > 0 somente se a
𝑑𝑡 2
pressão total for negativa. Assim, a energia escura (constante cosmológica ou
algo mais complexo) seria algo como um fluido exótico que fornece esta condi-
ção pouco usual.
Fisicamente a energia escura é usualmente relacionada à energia quân-
tica do vácuo, até ainda antes de 1998. A Física Moderna aponta para o vácuo
como um “objeto” de estudo, na realidade, muito interessante e complexo (de-
veras distinto da entidade “ideal” invocada para se resolver problemas de Física
Básica com o intento de simplificá-los). O vácuo é uma agitada e borbulhante
mistura de partículas que surgem e desaparecem numa escala de tempo tão
curta que não podemos vê-las (Fig. 3.17). Usando das leis da Relatividade Geral e
da Mecânica Quântica, apesar de não observarmos estas partículas virtuais,
sabemos que elas devem estar ali presentes. Seus efeitos são vistos indireta-
mente.

Figura 3.17. Pares de partícula-antipartícula pipocam no vácuo e se aniquilam em tempos Δ𝑡 <



(relação de Incerteza), produzindo uma densidade de energia do vácuo que tem efeitos gravi-
Δ𝐸
tacionais. Porém, o cálculo mais simples mostra que o que “devia” ser medido é 120 ordens de
grandeza maior do que “é medido”, o valor do Λ. Se o calculado fosse o correto, o Universo teria
recolapsado logo mais sem sequer produzir núcleos e estrelas.
A Cosmologia na sala de aula 121

Tomemos como exemplo o espaço dentro de um próton. Sabemos que


prótons são feitos de três quarks, dois up e um down. No entanto, ao somarmos a
massa destes três quarks, obtemos cerca de 10% da massa do próton. A maior
parte da massa do próton vem da energia no processo de criação e destruição de
partículas mencionado no parágrafo anterior. Ora, se sabemos, então, esta
energia para o próton, podemos extrapolar seu valor para o Universo.
No entanto, calculando-se a densidade da energia do vácuo no Univer-
so e comparando com a densidade da constante cosmológica quando o valor
desta é o utilizado para ajustar dados observacionais de supernova Ia, os valores
divergem muito. Na verdade, este não é um desacordo qualquer, mas sim algo
em torno de até 120 ordens de grandeza de diferença, o que faz com que o cálcu-
lo teórico da energia quântica do vácuo seja conhecido como “a pior predição
teórica na história da Física” [12]. Este problema, ou seja, a obtenção de valores
demasiadamente diferentes para a mesma quantidade quando verificados de
duas formas distintas, isto é, teórica e experimentalmente, é conhecido como o
problema da constante cosmológica (Fig. 3.16), e ainda carece de uma solução. Alter-
nativamente, podemos não ter entendido exatamente como funciona a gravita-
ção, ou haver contribuição de dimensões extra (5𝑎 , 6𝑎 etc) que se “metem” no
nosso mundo quadridimensional e provocam diferenças importantes (este
último tipo de teorias se chamam Teorias de Branas, membranas generalizadas
a N dimensões).
O problema da constante cosmológica (a enorme discrepância com a
teoria) acabou por dar origem a um ramo totalmente novo da Física: as teorias
de gravidade modificada. No que consistem estas teorias?
Teorias de gravidade modificada são tentativas de explicar a aceleração
cósmica sem a necessidade de invocar a constante cosmológica, já que esta car-
rega consigo o desacordo com a Teoria Quântica. Para tal, elas modificam as
equações de campo de Einstein da Relatividade Geral, de modo que as equações
resultantes possam prever “naturalmente” o efeito de expansão acelerada não
mais precisando de uma constante cosmológica, mas a partir destes novos ter-
mos que descrevem a geometria do espaço-tempo de uma forma mais comple-
xa do que a proposta por Einstein.
Naturalmente não é fácil “substituir” a Relatividade Geral como teoria
de gravidade, mas levando em conta que Einstein quebrou um paradigma a
descobrir que a gravidade é a curvatura do espaço, de modo que a gravitação
newtoniana passasse a ser apenas um caso especial da Relatividade Geral, obti-
do no limite de campo gravitacional fraco, não podemos descartar a possibilida-
122 A Cosmologia na sala de aula

de de que a Relatividade Geral eventualmente também passe a ser um caso


especial de uma teoria de gravidade mais complexa e completa, que possa pre-
ver a aceleração cósmica sem precisar da “constante cosmológica”. O problema
da constante cosmológica é um indício de que este pode ser o caminho, mas
certamente os inúmeros testes observacionais pelos quais a Relatividade Geral
passou e vem passando ao longo dos últimos mais de cem anos (vide Apêndice
5) são uma enérgica resistência à eventual nova mudança de paradigma.
Vale ressaltar que há também a possibilidade de manter a Relatividade
Geral como teoria de gravidade, no entanto considerar a existência de um outro
componente no Universo, que não seria propriamente a energia do vácuo, mas
ainda assim causaria a aceleração na sua expansão. É o caso da chamada Quin-
tessência (com o nome inspirado em Aristótele). Em modelos de Quintessência, a
dinâmica do Universo é regida por um campo escalar, uma quantidade física
que associa um valor escalar para cada ponto no espaço. Este campo, permean-
do homogênea e isotropicamente o Universo, pode eventualmente trazer o
caráter de aceleração observado recentemente. Naturalmente, não há ainda
comprovações observacionais de que ele exista, de modo que ainda não pode-
mos confirmar que os modelos de Quintessência são, de fato, boas alternativas à
constante cosmológica, e a situação fica parecida à introdução do Inflaton nos
primórdios do Universo, que descreveremos no Capítulo seguinte.

Atividade Didática 4: curvas de rotação e matéria escura3


A forma como a Ciência trabalha para obter seus resultados muitas
vezes parece misteriosa para as pessoas. Não entender como funciona o método
científico pode se tornar um empecilho à compreensão da importância da ciên-
cia na sociedade. Aqui há a oportunidade de mostrar aos alunos um dos méto-
dos para determinar “algo que não se vê” de maneira simples e ainda contextua-
lizar o ensino do tópico de gravitação com uma aplicação real.
Como medimos massas no espaço, se lá não há balanças? Após os alunos
aprenderem sobre a gravitação Newtoniana e as leis de Kepler, pode-se fornecer
os dados da tabela 3.1 para que eles reproduzam a curva de rotação do sistema
solar, apresentada na figura 5. Discuta com os alunos o que este gráfico mostra,
ou seja, um decréscimo da velocidade como função da distância, e a validade da

3 Esta Atividade é adaptada da Referência [14].


A Cosmologia na sala de aula 123

terceira lei de Kepler. Deve ser destacado que o Sol é responsável pela quase
totalidade da massa no sistema solar.
Com os dados da tabela 3.2, os alunos podem calcular a massa do Sol.
Para isso, em se tratando de valores médios, pode-se igualar a força gravitacio-
nal com a centrípeta para um movimento circular uniforme e obter que

𝐺𝑀𝑠𝑜𝑙 𝑚 𝑣2 𝑟 𝑣2
=𝑚 → 𝑀𝑠𝑜𝑙 = ,
𝑟2 𝑟 𝐺

onde 𝐺 é a constante gravitacional e 𝑣 e 𝑟 são dados na tabela. O valor de massa


pode ser calculado para cada linha da tabela e depois feita a média. A massa do Sol
é igual a 1,989 × 1030 𝑘𝑔 e o valor obtido deve ser bastante próximo a isto.
Em um segundo momento, pode-se pedir aos alunos que façam a curva
de rotação de algumas galáxias espirais, conforme dados da tabela 3.2 [13]. É
interessante discutir sobre os tipos de galáxias e o porquê de se escolher galáxias
espirais para esta tarefa.
Ao construir o gráfico, os alunos provavelmente ficarão surpresos e até
inseguros quanto à boa execução da atividade dada a grande diferença em rela-
ção ao visto para o Sistema Solar. Neste momento, é importante estimular que
os estudantes coloquem suas hipóteses do porquê há a discrepância observada.

Tabela 3.2: Dados para distância e velocidade orbital média dos planetas no sistema solar.

Planeta Distância média Velocidade orbital


ao Sol (106 km) média (km/s)
Mercúrio 57.9 47.4
Vênus 108.2 35.0
Terra 149.6 29.8
Marte 227.9 24.1
Júpiter 778.6 13.1
Saturno 1433.5 9.7
Urano 2872.5 6.8
Netuno 4495.1 5.4
124 A Cosmologia na sala de aula

Para estimular a conexão entre o conteúdo de física visto anteriormente


e a resolução do mistério apresentado no caso das galáxias, pode-se usar o simu-
lador “Classic Circular Force Lab” (laboratório de força circular clássica) disponível
no site The Physics Aviary https://bit.ly/3LeZ5XD. Como o simulador está em in-
glês, o professor deve testá-lo com antecedência e dar uma explicação sobre o
seu uso antes de que os alunos possam explorá-lo. Neste simulador, é possível
calcular a velocidade de um objeto em movimento circular uniforme com a vari-
ação do raio de giro, da massa do objeto e da força centrípeta que o mantém em
movimento circular, alterando a massa que proporciona a tração na corda ligan-
do os dois objetos.
Após o uso do simulador, deve ser discutido o que ocorre com a veloci-
dade quando o raio de giro permanece constante mas o valor da massa de tra-
ção é alterado e vice-versa. Então perguntar se eles enxergam alguma relação
entre o visto na simulação e nas curvas de rotação do sistema solar e das galá-
xias. A ideia é que os alunos concluam que nas galáxias deve haver uma distri-
buição de massa que não está concentrada no centro, como no caso do sistema
solar. Além disso, ao olhar as figuras das galáxias e ver que a densidade de maté-
ria luminosa diminui em direção às bordas, chegar a conclusão de que deve ha-
ver matéria não visível nas galáxias atraindo gravitacionalmente os objetos ob-
servados.
O professor pode, então, discutir um pouco sobre matéria escura e
apontar que a análise da curva de rotação das galáxias espirais foi um dos méto-
dos utilizados para obter evidências de sua existência.

Tabela 3.2: Dados para distância e velocidade orbital de objetos em algumas galáxias espirais [12].

NGC 2841
A Cosmologia na sala de aula 125

Raio Velocidade
(kpc) (km/s)
2,75 315
5,5 325
8,25 323
11 308
13,75 299
16,5 296
19,25 289
22 288
24,75 283
27,5 272
30,25 274
33 281
35,75 282
38,5 288
41,25 289

NGC 3198
126 A Cosmologia na sala de aula

Raio Velocidade
(kpc) (km/s)
42,525 68
85,05 82
127,575 99
170,1 103
233,8875 115
318,9375 127
403,9875 127
489,0375 128
574,0875 128
659,1375 131
744,1875 136
829,2375 134
914,2875 134
999,3375 133
1084,3875 136
1169,4375 134

NGC 2403
A Cosmologia na sala de aula 127

Raio Velocidade
(kpc) (km/s)
0,68 55
1,36 92
2,04 110
2,72 123
4,08 142
5,44 147
6,8 152
8,16 156
9,52 157
10,88 153
12,24 153
13,6 154
14,96 153
16,32 150
17,68 149
19,04 148
20,4 146
21,76 147
23,12 148
24,48 148
25,84 149

Atividade Didática 5 : As escalas de tempo no Universo


A esta altura espera-se que o leitor tenha se acostumado com alguns
números extremos que aparecem na Cosmologia (e até mesmo em Astronomia
pura). Dentre alguns exemplos, podemos citar a absurdamente baixa densida-
de crítica atual do Universo (≈ 10−27 𝑘𝑔 𝑚−3 ) e a extraordinariamente ele-
vada idade do Universo (≥ 1010 bilhões de anos).
Com números tão altos, o uso de proporções pode ser válido para um
melhor entendimento e absorção por parte dos alunos. Vamos usar desta fer-
ramenta para apreciar profundamente a idade do Universo 𝑡0 = 13,8 bilhões
de anos.
128 A Cosmologia na sala de aula

A ideia nesta atividade é simplesmente “embutir” a idade do Universo


num ano terrestre, tal que o Big Bang tenha ocorrido à meia-noite do dia 1 de
janeiro e o presente seja 23h59m59s do dia 31 de dezembro, e verificar em que
datas importantes eventos na história do Universo ocorreram, como o final da
Era da Radiação, a formação da Via Láctea e do planeta Terra, o início da Era da
Energia Escura e finalmente a aparição do ser humano4.
Uma simples regra de 3 é o suficiente para a resolução do problema e os
valores da Tabela abaixo serão usados nesta regra. Vale ressaltar que na Tabela
4, os valores utilizados são todos aproximados.

Tabela 4: A cronologia dos eventos mais marcantes na história do Universo, a serem expressados
pelos alunos em frações de um ano terrestre.

Evento Idade do Universo


Final da Era da Radiação 380.000 anos
Formação da Via Láctea 1,9 × 108 𝑎𝑛𝑜𝑠
Formação da Terra 9,26 × 109 𝑎𝑛𝑜𝑠
Início da Era da Energia Escura ~1010 𝑎𝑛𝑜𝑠
Aparição do homem 13,7999 × 1010 anos

Referências
[1] B. Ryden, Introduction to Cosmology (Addison Wesley, San Francisco, USA, 2003).
[2] J.E. Horvath, G. Lugones, M.Porto, S. Scarano Jr. e R. Teixeira, Cosmologia Física (Ed. Livraria da Física, São
Paulo, 2011).
[3] G. Lemaître, Un Univers homogène de masse constante et de rayon croissant rendant compte de la vitesse
radiale des nébuleuses extra-galactiques . Annales de la Société Scientifique de Bruxelles 47, 49 (1927).
[4] vide por exemplo H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica 1 (Editora Edgard Blücher Ltda., RJ, 2013).
[5] A. Einstein, transcrito em A. Pais, Subtle Is the Lord: The Science and the Life of Albert Einstein (Oxford University
Press, UK, 2005).
[6] R.A. Alpher e R.C. Herman, Evolution of the Universe. Nature 162, 774 (1948).
[7] V.C. Rubin, W.K. Ford Jr. e N. Thonnard, Extended rotation curves of high-luminosity spiral galaxies. IV.
Systematic dynamical properties, Sa -> Sc. Astrophys. Jour. Letters 225 L107 (1978).
[8] D.P. Clemens, Massachusetts-Stony Brook Galactic plane CO survey: the galactic disk rotation curve. The
Astrophysical Journal 295, 422 (1985).
[9] K. Freese, Review of Observational Evidence for Dark Matter in the Universe and in upcoming searches for Dark Stars,
EAS Publications Series, 36, p. 113-126, arXiv:0812.4005 (2009).

4
A aparição do ser humano (homo sapiens) na Terra não tem nenhuma importância ou relevância para a linha
de evolução temporal do Universo, mas visando aguçar ainda mais a curiosidade do aluno, sua inserção nesta
atividade é mais do que bem-vinda.
A Cosmologia na sala de aula 129

[10] S. Perlmutter et al., Measurements of 𝛺 and 𝛬 from 42 High-Redshift Supernova. Astrophys. J. 517, 565 (1999).
[11] A. Reiss et al., Observational Evidence from Supernovae for an Accelerating Universe and a Cosmological
Constant . Astron. J. 116, 1009 (1998).
[12] M.P. Hobson et al., General Relativity: an introduction for physicists (Cambridge University Press, Cambridge,
2006).
[13] K. Begeman, HI rotation curve of spiral galaxies, Tese de Doutorado, University of Groningen, Groningen
(2016).
[14] C. A. Cirillo, Matéria Escura: Proposta de uma Unidade de Ensino Potencialmente Significativa para a Introdução de
Física Contemporânea no Ensino Médio, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do ABC, Santo André
(2021).
Capítulo 4

A complexidade no Universo aumenta com o tempo


O Universo atual é mais complexo e cheio de
estrutura que o Universo primordial

A História do Universo
Yakov Zel'dovich (1914-1987), físico russo pioneiro no estudo
da formação da estrutura no Universo

A formação da estrutura no Universo

𝟎 < 𝑧 < 𝟏𝟎
134 A Cosmologia na sala de aula

■ O que observamos no Universo atual


Apresentamos na Introdução os diferentes objetos que existem no
Cosmos. As observações astronômicas têm nos mostrado que o Universo atual
contém estruturas nos comprimentos mais variados. A nossa galáxia, identifica-
da e limitada nos começos do século XX é um exemplo importante, mas sabe-
mos hoje que as galáxias também formam grupos, aglomerados e superaglo-
merados, filamentos e “paredes” com dezenas de milhares de membros. Se o
Universo era quase homogêneo nos primórdios, como é que estas estruturas
apareceram? Compreender os mecanismos que levaram à configuração que
hoje se observa é o principal objetivo dos estudos da formação de estrutura no
Universo.
O estudo da estrutura nas maiores escalas precisou do desenvolvimen-
to de estratégias e tecnologias que demoraram décadas. Em 1983 foi publicado o
primeiro mapeamento da estrutura em larga escala do Cosmos, feito pelo Cen-
tro para Astrofísica de Harvard & Smithsonian (Center for Astrophysics, CfA), com
a distribuição espacial de 2400 galáxias [1].
O segundo mapeamento, conhecido como CfA2 [2], expandiu o núme-
ro de amostras para incluir 18000 galáxias brilhantes no hemisfério norte celes-
te, visto na figura 4.1. Este revelou uma teia cósmica que mostrava que as galá-
xias de fato não se distribuíam de maneira homogênea, mas sim eram agrupa-
das em determinadas regiões, contendo vazios entre elas. Era como se os aglo-
merados de galáxias estivessem distribuídos nas bordas de bolhas invisíveis,
com tamanhos de milhões de anos-luz. Foi também este estudo que fez a des-
coberta da “Grande Muralha” [3], uma das maiores estruturas conhecidas no
Universo. Ela é composta por um superaglomerado de galáxias em uma estrutu-
ra filamentar, cercado pelo vazio do espaço. Como uma estrutura tão gigantesca
poderia ter se formado na evolução do Universo? O que poderia gerar a estrutura
observada, com regiões densamente populadas de galáxias e outras completa-
mente desprovidas de matéria? Essa é a questão chave que será tratada aqui.
A Cosmologia na sala de aula 135

Figura 4.1. Mapa da estrutura em larga escala do Universo produzido pelo CfA2. Cada ponto repre-
senta uma galáxia brilhante no hemisfério norte celeste. As diferentes cores representam as dis-
tâncias medidas, com as mais próximas em vermelho, seguidas das em azul escuro, rosa, azul
claro e verde. Crédito da imagem: Smithsonian Astrophysical Observatory.

Estes mapeamentos representam a distribuição de galáxias tomando


como centro do sistema de coordenadas a Via Láctea. A distância é obtida a partir
do redshift medido das galáxias, considerando-se a lei de Hubble. É possível con-
siderar “fatias” do Universo, em termos de redshifts, ou de velocidades, crescentes.
A figura 4.2 mostra a comparação entre o primeiro e o segundo mapeamento do
CfA, no qual é possível identificar a chamada Grande Muralha diretamente.

Figura 4.2. À esquerda, “fatia do Universo” representando o primeiro mapeamento do CfA, com
cerca de 1100 galáxias em uma região de 6 graus de largura e 130 graus de altura. À direita, a mes-
ma fatia no segundo mapeamento, CfA2. A estrutura densa que se estende de 8 a 17 horas e de
5000 a 10000 km/s é a Grande Muralha, com dimensões de 600x250x30 milhões de anos-luz. A
coordenada radial é o redshift, apresentado em km/s, com o arco externo da figura a uma distân-
cia de cerca de 700 milhões de anos-luz. Crédito da imagem: Smithsonian Astrophysical Obser-
vatory.
136 A Cosmologia na sala de aula

Os mapeamentos mostram, portanto, que é mais fácil encontrar uma


galáxia próxima a outra galáxia e um aglomerado de galáxias próximo a outro
aglomerado. Seria possível relacionar as estruturas que observamos hoje com
anisotropias na distribuição de matéria no passado?
A formação de estrutura deve estar associada à atuação da força gravi-
tacional, a única força de longo alcance que não se anula em escalas cosmológi-
cas, por um processo conhecido como instabilidade gravitacional.
Deste modo, somente é necessário que tenham existido flutuações de
densidade no Universo primordial grandes o suficientes para que o processo de
instabilidade gravitacional tenha atuado de forma a gerar a estrutura vista hoje.
Ao analisar as inomogeneidades na RCF (mais adiante), as variações de tempe-
ratura são da ordem de , o que corresponderia a variações de densidade ∆𝜌/𝜌,
da mesma escala (regiões mais quentes eram mais densas à época da Recombi-
nação). As variações em densidade da matéria bariônica sozinha não seriam
suficientes para reproduzir o observado pois deveriam ser ~1000 vezes maiores.
Mas isso na matéria visível! A formação de galáxias e aglomerados de galáxias
deve ser regida pela distribuição de matéria escura, bem mais abundante que a
matéria ordinária, se formando nos poços de potencial gravitacional por ela
criados. A matéria escura induziu a formação da estrutura “visível” como vere-
mos a seguir.
Como o processo de instabilidade gravitacional apenas amplifica irregu-
laridades, é necessário alguma inomogeneidade para começar. Se a distribuição
inicial fosse aleatória, algumas áreas teriam mais galáxias que outras e regiões
mais densas atrairiam mais galáxias, deixando os volumes menos densos vazios.
Mas isso não seria o suficiente para explicar os vazios observados na distribuição
de matéria do Universo. Os maiores vazios possuem ~100 Mpc de tamanho. Sen-
do a velocidade peculiar das galáxias da ordem de ~102 𝑘𝑚/𝑠, uma galáxia
com velocidade de 600 𝑘𝑚/𝑠, por exemplo, demoraria 160 𝐺𝑎𝑛𝑜𝑠 para atra-
vessar uma grande região vazia. Este tempo é muito maior do que a idade do Uni-
verso! Portanto, as galáxias não se formaram em regiões hoje vazias, posterior-
mente migrando para fora, o padrão observado hoje já existia no Universo pri-
mordial.
A instabilidade gravitacional é o efeito primário que explica o porquê de
hoje o Universo ser mais irregular que no desacoplamento mas existem outros
efeitos também a serem considerados. Em particular, o fato de que a radiação
exerce pressão e que durante a formação das estruturas haverá gradientes de
pressão que se oporão ao colapso gravitacional. Também sumidouros como a
A Cosmologia na sala de aula 137

produção de neutrinos que escapam da região de formação de estruturas e ou-


tros processos astrofísicos, como explosões de supernovas que injetam energia
no sistema, devem ser considerados.
Os estudos sobre a formação de estrutura do Universo dependem, por-
tanto, de diferentes fatores, desde a composição e oscilações no gás quente do
Universo primordial até o próprio processo evolutivo galáctico, com a formação
e morte das estrelas. Deste modo, estes estudos são feitos a partir de complexas
simulações computacionais, nas quais os ingredientes e hipóteses iniciais são
variados e os resultados comparados às observações. O Illustris TNG [4] é um dos
projetos dedicados à simulação da estrutura em larga escala do Universo, com
resultados bastante condizentes entre o modelo cosmológico padrão (ΛCDM) e
os dados simulados, como visto na figura 4.3. As simulações iniciam de quando o
Universo tinha cerca de 300 000 anos até os dias atuais e incluem, além do efeito
gravitacional, a expansão do Universo, a dinâmica dos gases e a formação de
estrelas e buracos negros. No site do projeto Illustris é possível ver imagens e
assistir a vídeos da evolução temporal obtida das simulações.

Figura 4.3. Simulação da evolução de uma região do Universo pelo projeto Illustris, de baixo para
cima, indo de redshift 𝑧 = 4 a 𝑧 = 0 (hoje). As quatro colunas destacam, da esquerda para a
direita, a densidade de matéria escura, a densidade do gás, a temperatura do gás e a metalicidade
do gás. Crédito da imagem: Projeto Illustris [4].
138 A Cosmologia na sala de aula

■ Da (quase) homogeneidade a estrutura atual: flutu-


ações primordiais e instabilidade gravitacional

Na descrição do Universo discutida no Capítulo 3 vimos que o conteúdo


está idealizado por fluidos de vários tipos, os quais representam as componen-
tes do mesmo (fótons, bárions, etc.). Esta descrição já supõe assim um alto grau
de homogeneidade destas componentes. Como o Universo que observamos
não é homogêneo, apresentando estrutura em várias escalas (estrelas, galáxias,
aglomerados de galáxias, etc.), precisamos nos referir à questão de como um
Universo homogêneo desenvolveu inomogeneidades (como a nossa própria
galáxia). Esta é a questão da formação de estrutura [5], cujo desenvolvimento
trataremos a seguir.
Sabemos da Física clássica da existência de pequenas flutuações na
densidade de um fluido homogêneo. Por exemplo, a temperatura no ar de um
quarto, sofre estas flutuações devido à dinâmica das moléculas que o compõem,
de amplitude muito pequena. Se fizermos medidas diretas, lados opostos de
um quarto tipicamente terão diferenças de ~ 𝟎, 𝟏 grau. Estas são as chamadas
flutuações termodinâmicas. Mas um fluido pode sofrer perturbações de ampli-
tude muito mais significativa, e estas estarem distribuídas segundo um padrão
(ou espectro) característico do processo físico que perturbou o fluido (Fig. 4.4).
No Universo primordial, a melhor predição da Era Inflacionária (vide depois) é a
de um padrão de flutuações detectado no fundo de radiação RCF que ficou
“congelado” nele, e que também estava “gravado” na densidade de matéria que
veio depois formar a estrutura. Como veremos, isto implica que as “sementes”
(flutuações) que depois iam formar as galáxias e o resto da estrutura observada,
estavam presentes desde muito cedo, quando o Universo tinha uns ≈ 𝟏𝟎−𝟑𝟑 𝒔
de idade. Mas como é que estas flutuações pequenas cresceram no tempo? A
grande responsável do crescimento da estrutura é a própria gravitação.
A Cosmologia na sala de aula 139

Figura 4.4. Perturbações na superfície do mar levam a existência de ondas em várias escalas de
comprimento, desde aquelas que quebram na praia até pequenas ondulações de  cm . Medin-
do o padrão de flutuações poderíamos (com muito esforço), em princípio, reconstruir os processos
que produziram este padrão. É exatamente isto que é feito quando estudamos a estrutura do
Universo e sua possível origem na Era Inflacionária ou qualquer mecanismo alternativo.

O mecanismo básico para amplificar inomogeneidades chamado de


instabilidade gravitacional funciona assim: É sabido que uma distribuição irregular
de matéria é instável sob a influência da gravidade, ficando mais irregular com o
tempo. Uma região mais densa exerce uma maior atração gravitacional sobre
vizinhos, “puxando” mais matéria, o que ocasiona um aumento da força gravita-
cional, “puxando” mais matéria, e assim por diante, em um processo que se re-
troalimenta, exemplificado na figura 4.5. Esta é a essência da instabilidade gravi-
tacional.

Figura 4.5. Representação pictórica do processo de instabilidade gravitacional. Regiões inicial-


mente mais densas atrairão mais fortemente a matéria ao redor do que regiões menos densas,
aumentando a diferença de densidade entre as diferentes regiões. Este processo é o principal
responsável pelos filamentos e espaços vazios observados no Universo.
140 A Cosmologia na sala de aula

A instabilidade gravitacional foi estudada por Jeans no século XIX e se


desenvolve quando uma pequena inomogeneidade (flutuação) na densidade
atrai a matéria das vizinhanças, amplificando-se pelo fato de incorporar mais
massa e assim atrair ainda mais a matéria circundante. Este processo pode ser
calculado de forma exata, tanto no contexto da gravitação Newtoniana quanto
na Relatividade Geral. O modelo newtoniano tem na variável que mede os des-
𝛿𝜌 𝜌−𝜌̅
vios da densidade com respeito à densidade média do fundo, 𝛿 ≡ = ̅
𝜌 𝜌
a sua quantidade principal. A aceleração radial de um elemento de matéria na
borda de uma região esférica que tem raio 𝑟 r e densidade 𝜌̅ + 𝛿𝜌 é dada pela
segunda lei de Newton
4𝜋
𝑟̈ = − 𝐺 𝑟 𝛿𝜌 (4.1)
3

Vamos supor agora que existe uma concha concêntrica de raio R que
envolve esta região esférica . Este R pode ser escolhido para que a densidade
média dentro da concha seja igual à densidade média do fundo 𝜌̅ , ou seja (𝜌̅ +
𝛿𝜌)𝑟 3 = 𝜌̅ 𝑅3 . Um observador externo não distinguirá essa configuração de
qualquer outra região onde não haja inomogeneidade, já que a massa total
encerrada é a mesma. Quando 𝑟 → 𝑅 então 𝛿𝜌 → 0. Se escrevermos o raio da
região inomogênea como 𝑟(𝑡) = 𝑅(1 + 𝜉(𝑡)), onde 𝜉(𝑡) ≪ 1 é um pa-
râmetro para esta diferença, temos de imediato que 𝛿 = 3𝜉, e a equação de
movimento resulta 𝛿̈ = 4𝜋𝜌̅ 𝛿 . Esta é a equação de movimento de um oscila-
dor, e sua solução imediata nos diz que a inomogeneidade cresce segundo

𝛿(𝑡) = 𝛿0 𝑒 √4𝜋𝜌̅ 𝑡
(4.2)

o qual quantifica o crescimento da instabilidade de Jeans.


De forma mais simples o J. Jeans observa inicialmente é que o gás deve
satisfazer o Teorema do Virial, ou seja, repartir a energia entre a energia da gravi-
tação e energia interna da nuvem antes de qualquer colapso. O Teorema do
Virial pode parecer um tecnicismo de cursos de Mecânica para o professor, mas a
Astrofísica que lida com fluidos faz uso permanente desta relação, que precisa
ser satisfeita para qualquer fluido autogravitante que tenha tempo para trocar
energia, e se estabelece antes mesmo do equilíbrio hidrostático. O Teorema do
Virial pode ser justificado invocando a troca de energia pelas interações das par-
tículas do gás, que tende a igualar estas se transcorrer tempo suficiente. Para
A Cosmologia na sala de aula 141

longos tempos teremos 𝐸𝑖𝑛𝑡 ≈ |𝐸𝑔𝑟𝑎𝑣 |. De fato, uma demonstração rigorosa,


mostra que esta relação é mais precisamente

2 𝐸𝑖𝑛𝑡 = |𝐸𝑔𝑟𝑎𝑣 | , (4.3)

ou seja, somente um fator “2” diferente da igualdade exata. As barras do valor


absoluto existem porque a energia gravitacional é sempre negativa, e que a
energia total é negativa somente se a nuvem está ligada.
Consideremos agora uma região esférica de gás com raio genérico 𝜆.
Podemos tomar a energia interna de origem térmica (das partículas que com-
3
poẽm o gás) como aquela para um gás monoatômico: 𝐸𝑖𝑛𝑡 = 𝑁𝑘𝐵 𝑇, onde N
2
é o número de partículas no sistema, 𝑘𝐵 a constante de Boltzmann e T a tempe-
ratura do gás. Podemos ainda relacionar o número de partículas neste sistema
com sua massa total, usando o peso molecular médio, 𝜇 , das partículas, resul-
3 𝑀
tando em 𝐸𝑖𝑛𝑡 = , onde 𝑚𝐻 é a massa do átomo de hidrogênio. Por
2 𝜇𝑚𝐻
3 𝐺𝑀2
outro lado, a energia gravitacional do sistema é 𝐸𝑖𝑛𝑡 = − . Lembrando
5 𝜆
4𝜋
que a massa da esfera também pode ser escrita como 𝑀 = − 𝜌 𝜆3 , a de-
3
pendência do quociente das duas energias em relação ao raio da esfera gasosa é,
portanto,
|𝐸𝑔𝑟𝑎𝑣 |
∝ 𝜆2 . (4.4)
𝐸𝑖𝑛𝑡

Existe um tamanho crítico, que chamaremos de comprimento de Jeans,


𝜆𝐽 , para o qual o quociente acima é 1, dado por

15𝑘𝐵 𝑇 1/2
𝜆𝐽 = ( ) , (4.5)
4𝜋 𝜇𝑚𝐻 𝜌𝐺

Assim, massa de Jeans, contida na esfera, é então

4 5𝑘𝐵 𝑇 3/2 3 1/2


𝑀𝐽 ≡ 𝜋 𝜌𝜆𝐽3 = ( ) ( ) . (4.6)
3 𝜇𝑚𝐻 𝐺 4𝜋𝜌
142 A Cosmologia na sala de aula

Desta forma, vemos que quando 𝜆 é suficientemente pequeno (esferas


pequenas), a energia interna é maior que a gravitacional. Portanto, quando a
esfera começa a contrair, é detida pela energia interna. Em esferas com raios
maiores que 𝜆, ou, de forma equivalente, para massas maiores que 𝑀𝐽 , a gravi-
tação dominará e o sistema poderá colapsar. Somente massas acima da massa
de Jeans (ou suas análogas com outros ingredientes na 𝐸𝑖𝑛𝑡 ) podem colapsar já
que a energia gravitacional domina, o que justifica o dito a respeito da massa
mínima que pode entrar em colapso para formar estrutura anteriormente [6],
com uma escala de tempo que regula o crescimento da instabilidade como o
inverso da raiz na exponencial 𝑡𝐽 = 1/√4𝜋𝜌̅ . Este é o conceito original e im-
portante do trabalho de Jeans.
Agora bem, no contexto cosmológico, e segundo nossa descrição anteri-
or, imediatamente antes da Recombinação a matéria e a radiação estavam forte-
mente acopladas, e por tanto a velocidade do som era essencialmente a corres-
pondente a um gás ultrarrelativístico 𝑐𝑠2 = 𝑐 2 /3 . Quando a Recombinação
finalmente aconteceu, a velocidade do som passou a ser a de um gás ideal 𝑐𝑠2 =
5𝑘𝐵 𝑇/3𝑚. A massa mínima que pode formar estrutura antes da recombinação
é assim enorme (≈ 1014 𝑀ʘ ) já que os fótons estão juntos na mistura, ou seja,
antes da Recombinação não era possível formar pequenas estruturas. Mas com a
mudança no estado do fluido, depois da recombinação a massa capaz de colapsar
ficou muito menor, ≈ 106 𝑀ʘ . Embora o colapso seja em teroria possível após a
Recombinação, as perturbações em escalas entre 106 𝑀ʘ e 1014 𝑀ʘ foram
apagadas pela interação da matéria bariônica com os fótons, e assim não haveria
possibilidade de formação de estrutura porque as flutuações estariam em falta.
Mas aqui aparece uma solução simples, mas inesperada, para este problema: é
que a presença de matéria escura, que não interage com os fótons, pode ter conser-
vado as flutuações, que teriam crescido nela quando o Universo ficou dominado
pela matéria (isto é, até antes da Recombinação). Ou seja, as flutuações existem na
matéria bariônica e na matéria escura. Mas na matéria bariônica não crescem
(pelas interações) enquanto na matéria escura, sim. A matéria escura pode colap-
sar formando poços de potencial gravitacional. Desta forma, o consenso é que a
matéria bariônica “caiu” nas regiões onde já existiam concentrações de matéria
escura quando recombinou. Existe um número considerável de cosmólogos que
não tão somente está convencido da existência da matéria escura, mas também
do seu papel fundamental na formação de estrutura, sem a qual não haveria galá-
xias tal como as conhecemos.
A Cosmologia na sala de aula 143

Um tratamento mais rigoroso precisa utilizar as equações de FRW per-


turbadas, com a presença da matéria escura, e avaliar como o cenário de Jeans
funciona enquanto a densidade ambiente é diluída pela expansão cósmica. O
resultado é que o crescimento do 𝛿(𝑡) já não é exponencial como era na teoria
newtoniana livre, fato atribuível à expansão de Hubble. Também a pressão que
impede o crescimento aparece naturalmente e aponta (de novo) para um papel
importante da matéria escura onde a pressão não influencia e reafirma a visão
qualitativa anteriormente mencionada.
É claro que neste contexto podemos nos perguntar até que ponto temos
certeza da existência da matéria escura. Uma das evidências mais fortes disponí-
veis para a existência dela é fornecida pela observação das curvas de rotação das galá-
xias espirais. Se contarmos diretamente as estrelas e o gás visível, vemos que a partir
de uns 10-15 kpc a massa a adicionar é muito pouca. Assim, as curvas de rotação
deveria ser keplerianas (ou seja, órbitas em torno de uma massa aproximadamente
constante), e diminuiriam com a distância segundo 𝑟 −1/2 ). No entanto, as obser-
vações mostram que as curvas de rotação sobem (ou pelo menos, não caem segun-
do as órbitas keplerianas) até distâncias muitas vezes maiores e onde não são
praticamente observadas estrelas nem gás. Assim, as curvas são interpretadas
como evidência em favor de matéria escura, a mesma que é necessária para expli-
car o crescimento das flutuações já apontado. Este problema da “matéria escura”
(ou alternativamente “luz que falta”) foi levantado há uns 70 anos e motivou a
procura de partículas de matéria exótica em laboratório e outros sistemas astrofí-
sicos, sem resultados concretos enquanto a detecção direta. Um gráfico qualitati-
vo que mostra este comportamento das galáxias é mostrado na Fig. 4.6, construí-
da com um conjunto de cefeidas até distâncias de ≈ 20 𝑘𝑝𝑐 .
Ao linearizar as equações de movimento, temos que evolução posterior
das flutuações quando já cresceram bastante e 𝛿𝜌 ≈ 𝜌 não pode ser estudada.
Este é o regime não linear onde termos 𝛿 2 , 𝛿 3 etc. devem ser considerados e seu
estudo está reservado às simulações numéricas. Contudo, é claro que a maioria
das estruturas reais observadas correspondem a este regime (para elas, 𝛿𝜌 ≫
𝜌), e por isto as simulações resultam tão importantes.
144 A Cosmologia na sala de aula

Figura 4.6. A curva de rotação da Via Láctea obtida com a observação das cefeidas clássicas. A
rotação kepleriana predita pela contagem de matéria deveria produzir uma queda na curva de
rotação para uns 100 𝑘𝑚/𝑠 à direita da figura. As observações de aglomerados e outros marca-
dores mostram que a velocidade de rotação se mantém quase constante a grandes distâncias do
centro. Estas curvas são o tipo de evidência mais antiga em favor da presença de matéria escura
em escalas galácticas. (Crédito: OGLE Collaboration, https://bit.ly/3wyW3t2.)

■ A estrutura e o espectro de potência


Para ligar os conceitos do crescimento das flutuações com as estruturas
reais devemos lidar com amostras que contém grandes números de galáxias.
Sabemos que há uma distribuição (também chamada de espectro) das flutua-
ções, e que está determinada pelos processos físicos no Universo primordial que
contribuem para cada comprimento de onda específico.
Agora bem, da função de correlação das galáxias e outras estruturas
pode-se reconstruir o espectro de potência 𝑃𝑘 , definido como a amplitude das
flutuações em cada frequência ou número de onda 𝑘, e comparar com as predi-
ções dos modelos teóricos. Isto é o que o exemplo das ondas da Fig. 4.4 quer
exemplificar. Espera-se que como a gravitação é uma força de longo alcance, a
formação das estruturas pela instabilidade de Jeans deveria ser feita a partir de
um 𝑃𝑘 em forma de lei de potência, pelo menos dentro de uma faixa de compri-
mentos. Embora esse índice 𝑛 possa ser a priori positivo ou negativo, os modelos
inflacionários em geral prevêem um espectro de potência com 𝑛 = 1, chamado
de espectro de Harrison-Zel’dovich [6]. Uma forma alternativa e mais fácil de apre-
𝛿𝑀
ciar expressa o espectro de potência é em termos da flutuação de massa , in-
𝑀
terpretada como a massa média das estruturas, que resulta do tipo
A Cosmologia na sala de aula 145

𝛿𝑀
= 𝐴𝑀−𝛼 (4.7)
𝑀

A relação entre os índices 𝑛 do 𝑃𝑘 e o índice 𝛼 da eq.(4.7) não é difícil de


1 𝑛
obter, resulta 𝛼 = (1 + ), e por tanto o espectro de Harrison-Zel’dovich
2 3
corresponde a 𝛼 = 2/3 . A razão pela qual este espectro é tão utilizado é dupla:
por um lado, se a formação de estrutura no Universo aconteceu a partir de um
espectro invariante de Harrison-Zel’dovich, tal como discutido em ..., as flutua-
ções têm a mesma amplitude independente da escala L. Por outro lado, veremos
que esse espectro é uma predição genérica dos modelos inflacionários. As medi-
das da RCF de fato favorecem um índice 𝑛 muito próximo de 1, e assim há razões
para esperar que as galáxias e estruturas maiores mostrem evidência do mesmo
espectro que aquele obtido do RCF. Os resultados das medidas mais recentes
são mostrados na Fig.4.7. O espectro de potência da estrutura presente no Uni-
verso também segue a forma de Harrison-Zel’dovich.

Figura 4.7. Resultados medidos do espectro de potência da estrutura do Universo utilizando amostras
de galáxias do SDSS (preto), o RCF (verde) e outros métodos. O eixo horizontal é o número de onda 𝑘 =
2𝜋/𝜆 em unidades da constante de Hubble sem dimensões ℎ = 𝐻 / 70 𝑘𝑚 𝑠 −1 𝑀𝑝𝑐 −1 . A
identidade das flutuações na RCF e na matéria é evidente, tal como era esperado da teoria (Créditos: M.
Tegmark et al. [7]).
146 A Cosmologia na sala de aula

Com os resultados mostrados em este Capítulo a respeito do começo da


formação da estrutura permanece ainda a pergunta da sequência que esta se-
guiu. No cenário da matéria escura (dita “fria”, para indicar que ela já era não
relativística no momento da recombinação), que leva a denominação de CDM
em inglês, vimos que as massas maiores do que ≈ 106 𝑀ʘ são as que cresce-
ram primeiro, e assim as galáxias teriam sido formadas por estruturas menores
que se fusionaram (isto é chamado de cenário bottom-up na literatura especiali-
zada). No entanto, se a matéria escura fosse relativística no momento da re-
combinação, só estruturas muito massivas podem ter começado a colapsar, e
assim as galáxias ter-se-iam formado pela fragmentação de estruturas maiores
(ou cenário top-down). Embora hoje há uma forte preferência pelo primeiro ce-
nário, em boa parte devida a concordância com o espectro de potência da Fig.
4.7, um Universo onde a matéria escura seja relativística não está completamen-
te excluído. Uma das possibilidades seria, por exemplo, um neutrino com massa
um pouco superior à determinada nos experimentos. Esta e outras questões
estão resumidas no processo da procura pela matéria escura em andamento no
Capítulo 3.
Uma última observação relevante a respeito da formação de estrutura é
que, devido às evidências que apontam para a presença de matéria escura em
galáxias e aglomerados, a luz e a massa não tem a mesma distribuição espacial.
Este quociente massa-luminosidade 𝑀/𝐿 é variável com a escala e resulta em
geral >> 1. As galáxias não necessariamente se formaram em regiões onde a
densidade seja alta, mas pode ser que sejam produto só do picos mais altos da
distribuição de densidade.

■ Outras observações da estrutura do Universo


Além do estudo geral, existem fatos concretos que vale a pena mencio-
nar relacionados com o problema da formação de estrutura. Sabemos, por
exemplo, que a mais antiga estrutura conhecida é uma galáxia muito tênue,
denominada MACS1149-JD1, cujo espectro a localiza em 𝑧 > 10. Haverá sem
dúvida muito trabalho para determinar se existem objetos ainda mais distantes,
e também para saber até que ponto esta galáxia é rara, ou se pelo contrário o
Universo com ≈ 1/10 da escala atual já continha estrutura significativa.
A Cosmologia na sala de aula 147

Figura 4.8. A galáxia MACS1149-JD1 detectada pelo telescópio ALMA. Esta galáxia é a mais antiga
(e por tanto, a mais distante) conhecida até hoje, com um redshift medido das suas linhas espec-
trais de 𝑧 > 10. Sua formação deve ter acontecido quando o Universo tinha somente uns 500
milhões de anos. (Créditos: ALMA - ESO, Chile)

O que ninguém esperava até uns 30 anos atrás é que o processo de cres-
cimento das flutuações estivesse ligado à presença de buracos negros supermassi-
vos presentes possivelmente em todas as galáxias. Com efeito, os centros galác-
ticos, tais como a nossa Via Láctea, contém massas entre 106 𝑀ʘ e 109 𝑀ʘ em
regiões espacialmente minúsculas. Como as velocidades das estrelas mais pró-
ximas a eles (nos chamados bojos galácticos) está correlacionada (maior é a
massa estimada, maior a velocidade das estrelas), é claro que a formação da
galáxia teve a ver com eles, que estão aí desde sempre. O “nosso” buraco negro,
na região chamada de Sgr A* no centro galáctico tem 3 × 106 𝑀ʘ aproxima-
damente, mas não se manifesta muito. É dito que está “adormecido”, sem sugar
gás e somente cada tanto produzindo um surto breve de fótons quando alguma
nuvem de gás é engolida [5].
Como a última época que observamos hoje diretamente é a do Desaco-
plamento da matéria com a radiação, que produziu o FCR quando o Universo
ficou transparente em 𝑧 ≈ 1100, e as primeiras estrelas e quasares somente
se formam em 𝑧 ~ 10, existe um longo período onde o Universo não tem fon-
tes de energia “internas”, e só se expande e esfria. Esta é a chamada Era da Escuri-
148 A Cosmologia na sala de aula

dão, já que não há muito a ser observado. Somente quando aparecem as primei-
ras estrelas e quasares o gás do Universo volta e ser parcialmente reionizado
pela radiação destas fontes. É comum se referir a esta época em torno de
𝑧 ~ 10 como a Reionização.

Figura 4.9. A imagem do buraco negro supermassivo no centro da galáxia próxima M87. Um
“mosaico” de dados de vários telescópios em lugares distantes da Terra foi composto para mostrar
a chamada “sombra” do objeto central. As galáxias aparentemente formam-se de forma simbióti-
ca com os buracos negros, que servem de sementes ao gás em queda desde distâncias muito
maiores (Créditos: EHT Team)

Vimos que muito além da escala das galáxias, uma variedade de fila-
mentos, vazios e outras inomogeneidades foi detectada nos maiores levanta-
mentos efetuados (Fig. 4.10). Alguns deles são visíveis a olho nu e podem ser
estudados utilizando simulações numéricas, desde que também são o produto
da evolução não linear. Segundo a idéia da homogeneidade e isotropia, a estru-
tura presente nas maiores escalas deve se “diluir” totalmente muito antes da
escala de Hubble ≈ 5000 𝑀𝑝𝑐. No entanto, há trabalhos que têm discutido
até que ponto isto é verdadeiro nos dados, e proposto que a estrutura não acaba,
sendo auto-similar até os limites da amostra. Estes são os modelos fractais, onde a
estrutura resulta invariante de escala como produto de um mecanismo de auto-
organização. Antes dos primeiros levantamentos padrões totalmente inespera-
dos, como a “Grande Muralha” de Hércules-Corona Borealis (não confundir com
A Cosmologia na sala de aula 149

a Grande Muralha original da Fig. 4.2 que é uma “pequena mureta” 10 vezes
menor em comparação) em escalas de ≈ 3000 𝑀𝑝𝑐 (Fig. 4.11) não eram con-
siderados possíveis, e de fato o próprio Princípio Cosmológico e o tratamento do
Universo atual como um fluido homogêneo e isotrópico acima de uma escala de
comprimento é agora questionado, já que este tipo de estrutura ocupa metade
do raio de Hubble. Para termos uma perspectiva consistente com a discussão
deste texto, devemos lembrar que para apresentar uma estrutura auto-similar
ou periodicidade deve haver mecanismos físicos para produzir perturbações que
levem a esta estrutura. Assim, o estudo da estrutura no Universo precisa conti-
nuar e resolver estas e outras questões de grande interesse cosmológico.

Figura 4.10. Uma imagem do levantamento SDSS contendo 13 bilhões de galáxias [8]. A distribui-
ção das galáxias em larga escala. Esta imagem contém galáxias de todos os tipos, as quais se asso-
ciam em aglomerados, super-aglomerados e filamentos facilmente visíveis a olho nu. O levanta-
mento enxerga uma fração aproximada de 1/20 do Universo atualmente observável.
150 A Cosmologia na sala de aula

Por último gostariamos de destacar que as flutuações que levaram à


formação da estrutura podem ser consideradas desde o ponto de vista do Prin-
cípio Antrópico do Apêndice 1. Isto tem sido enfatizado por M. Rees [9], quem
observou que se a amplitude tivesse sido um pouco menor, o gás primordial
nunca se condensaria em estruturas ligadas, e assim o material enriquecido em
elementos pesados pelas estrelas ficaria disperso no espaço e não permitiria
uma evolução química posterior, com uma sequência de gerações estelares.
Agora, se a amplitude houvesse sido um pouco maior, regiões muito maiores do
que aglomerados de galáxias se formariam muito cedo na história do Universo,
e não se fragmentariam em estrelas, mas formariam vastos buracos negros. O
gás remanescente seria aquecido a temperaturas tais que emitiria raios-X e raios
gama, de tal forma que o material enriquecido em elementos pesados pelas
estrelas seria aprisionado nos buracos negros. Nada disto favoreceria um Uni-
verso onde a vida pudesse florescer.

Figura 4.11. Uma imagem da Grande Muralha de Hércules-Corona Borealis, uma associação de
uma escala comparável à do Universo observado. A suposição de isotropia e homogeneidade do
Princípio Cosmológico é contestada baseada neste tipo de estrutura “que não poderia existir”.
A. Penzias (esquerda) and R. Wilson na antena construída nos Laboratórios Bell
com a qual detectaram pela primeira vez a Radiação Cósmica de Fundo

A radiação cósmica de fundo

z ~1100
152 A Cosmologia na sala de aula

■ O que é a radiação cósmica de fundo?


Voltando no tempo desde o presente até o Big Bang, temos um Universo
que contrai conforme considerarmos estágios primitivos. Acabamos de ver co-
mo se deu a formação da estrutura que observamos hoje, com as estrelas for-
mando galáxias, que fazem parte de estruturas ainda maiores, como os aglome-
rados e superaglomerados. O colapso da matéria para a formação das primeiras
estruturas só pode ocorrer quando o Universo está bastante frio, em temperatu-
ras menores que ~15 K, de modo que a energia interna (principalmente a cinéti-
ca do gás) seja menor do que a sua energia gravitacional. Isso passa a ocorrer
quando o Universo já tem uma idade de ~108 anos. A formação das primeiras
estrelas promove a emissão de luz com energia suficiente para ionizar parte do
gás presente no Universo, resultando na presença de nuvens de gás compostas
por átomos neutros ou ionizados a depender se estão próximos ou não das regi-
ões de formação estelar, na época da Reionização.
Seguindo com nossa descrição da evolução com redshift z crescente,
precisamos avaliar como se comportam os componentes do Universo com a
contração da escala do mesmo, em particular da matéria bariônica que está
sujeita à atuação de todas as forças fundamentais. Já discutimos no capítulo 2
que voltando no tempo, a matéria estará sujeita a temperaturas e densidades
cada vez maiores. Isso fatalmente resultará em mudanças no comportamento
do fluido que permeia o Universo. Esta e as próximas seções são dedicados a
descrever as mudanças de fase da matéria bariônica ao longo da evolução do
Universo.
Antes do começo da formação de estrutura, o Universo era formado por
átomos neutros e permeado pela Radiação Cósmica de Fundo (RCF). Aqui cabe
lembrar que a expansão do Universo “estica” os comprimentos de onda dos fó-
tons, o que os faz terem energias médias cada vez menores (Fig. 4.12). Conse-
quentemente, voltando no tempo, os fótons da RCF passam a ter energias mé-
dias cada vez maiores.
A Cosmologia na sala de aula 153

Figura 4.12. Os fótons emitidos pelas galáxias têm hoje uma frequência mais baixa, já que a ex-
pansão do Universo produziu um “estiramento” do comprimento de onda como visto na imagem.
Assim, o FRC aparece com energias cada vez mais altas quando olharmos para redshifts cada vez
mais altos, fato confirmado em várias observações. (Adaptada de https://bit.ly/3iBq7fA.)

Os núcleos mais abundantes são o hidrogênio e hélio. Estes possuem


um potencial de ionização de 13,6 eV e 24,6 eV, respectivamente, onde o electron-
volt, eV, é a unidade de medida típica da Física Nuclear. Esta é equivalente a
energia que ganha um elétron ao atravessar uma diferença de potencial de 1
Volt. No sistema internacional de unidades, 1 eV 1,6 × 10−19 𝐽 . Deste modo,
a energia de um fóton, que depende da temperatura, precisa estar acima destes
limiares para que este seja capaz de ionizar estes átomos, liberando os elétrons
das órbitas eletrônicas.
Voltando no passado, a temperatura do Universo aumenta até aquela
na qual os fótons puderam interagir com os elétrons atômicos, causando ioniza-
ção do gás e levando a uma mudança de estado do gás de neutro a ionizado, o
que ficou conhecido como Recombinação. Isso ocorreu aproximadamente
380000 anos após o Big Bang, a uma temperatura de 3000 𝐾. Este é o momen-
to onde os fótons deixam de ter energia suficiente para ionizar os átomos. Para
tempos posteriores diz-se que ocorreu um desacoplamento entre a radiação e a
matéria, sendo que o Universo passou de opaco, no qual os fótons sofriam coli-
154 A Cosmologia na sala de aula

sões frequentes com os elétrons, para transparente à radiação, ou seja, os fótons


passaram a viajar “livremente”, sem sofrer interações frequentes com os elétrons
que agora estavam ligados aos núcleos, como mostrado na figura 4.13. A partir
deste momento, a evolução da temperatura destas duas componentes passa a
ser dissociada, sendo que os fótons passaram a sofrer o efeito de redshift cosmo-
lógico, com seus comprimentos de onda aumentando por um fator ~1000 pela
expansão do Universo desde então.

Figura 4.13. Representação pictórica do Desacoplamento entre a radiação e a matéria, também


chamado de Recombinação. No sentido de z crescente, ou seja, voltando no tempo, a temperatu-
ra aumenta até os fótons tenham energia suficiente para que seja possível ionizar os átomos
presentes. A radiação cósmica de fundo tem origem neste evento, já que os fótons a altas tempe-
raturas (direita) eram frequentemente espalhados pelos elétrons, impedindo que estes se ligas-
sem aos núcleos atômicos. Quando a temperatura baixou o suficiente (T ~3000 K), a energia mé-
dia dos fótons é muito baixa para ionizar os átomos, e eles passam a se propagar livremente no
espaço (esquerda).

Deste modo, o Universo fica preenchido por uma radiação “fóssil” de


baixa temperatura, uniforme, vinda de todas as direções, uma radiação cósmica
de fundo (RCF), ou RCF da sigla em inglês cosmic microwave background. A exis-
tência desta radiação foi prevista em 1948 por Alpher e Herman [10]. Os dois
descreveram seu esfriamento com a expansão e previram que o Universo estaria
preenchido por uma radiação de corpo negro com uma temperatura de cerca de
5 K. Pela lei de Wien, o comprimento de onda do pico dessa radiação hoje é mui-
to pequeno, na região das micro-ondas.
A detecção deste remanescente cósmico ocorreu apenas em 1964 por
Penzias e Wilson, quando este queriam comunicar-se com o satélite Telstar mas
não conseguiam se livrar de um ruído contínuo no sinal que vinha de todas as
A Cosmologia na sala de aula 155

direções do espaço (eles tentaram de tudo mesmo para se livrar do sinal, julgan-
do que pudesse ser uma interferência por conta de depósito de matéria orgânica
proveniente de pombos na antena, que limparam estoicamente). Mas o sinal
não sumiu: Penzias e Wilson detectaram uma radiação que preenche o Univer-
so, vinda de todas as direções, com um máximo no comprimento de onda
𝜆𝑚𝑎𝑥 = 1,06 𝑚𝑚. Eles foram agraciados com o prêmio Nobel em 1978 por
esta descoberta. Medidas posteriores em outros comprimentos de onda confir-
maram um espectro de corpo negro com temperatura menor do que 3 𝐾, con-
forme podemos observar na figura 4.14. Este é o melhor exemplo de corpo negro
já observado em qualquer experimento, inclusive nos laboratórios.

Figura 4.14: Dados de diferentes experimentos para o espectro da radiação cósmica de fundo em
um grande intervalo de frequências. A linha representa um corpo negro de temperatura T = 2,73 K,
descrevendo muito bem o espectro ao redor do pico em intensidade, enquanto o ajuste se mostra
menos preciso para comprimentos de onda acima de 10 cm. Figura adaptada da referência [11].

A radiação cósmica de fundo é uma das principais evidências do modelo


cosmológico padrão e veremos que fornece muitas mais informações que somen-
te o fato de que o Universo foi um dia muito quente e denso. Mapear a RCF no céu
permite conhecer as condições físicas das diferentes regiões do Universo sobre a
superfície do último espalhamento da radiação sobre a matéria. Em primeira
vista, esta radiação é homogênea, com a mesma temperatura, ou seja, com o pico
de corpo negro no mesmo comprimento de onda, em 𝑇 = 2,73 𝐾 . No entanto,
com o aprimoramento das medidas e o alcance de precisão cada vez melhores
156 A Cosmologia na sala de aula

para as medidas da RCF, começam a ser observados desvios (flutuações) desta


homogeneidade absoluta, tal como necessário para a formação de estrutura dis-
cutida anteriormente.
Assim, numa escala mais fina, de 10−3 𝐾, começam a aparecer aniso-
tropias devido ao efeito Doppler resultante do movimento do Sol respeito da RCF.
A Terra afasta-se da direção da constelação de Aquário de modo que os fótons da
RCF vindos desta direção são deslocados para comprimentos de ondas maiores,
ou seja, ficam um pouco mais “frios”. O oposto ocorre na direção da constelação de
Leão, na qual os fótons encontram-se deslocados para comprimentos de onda
menores e temperaturas mais elevadas. É possível, portanto, subtrair este efeito
dos dados de modo a buscar as anisotropias da RCF em si, os originais.
A segunda influência observada se dá na casa de 10−6 𝐾, na qual o pla-
no da Via Láctea fica bastante visível nos dados, com uma grande faixa “quente”
entre os dois hemisférios. Este efeito também pode ser subtraído de modo a reve-
lar as anisotropias intrínsecas da RCF, conforme pode ser visto na figura 4.15.

Figura 4.15. Mapas do céu em 53 GHz (λ = 5.7 mm) com o satélite COBE. O primeiro mapa mais à
esquerda mostra as observações na escala de 0 a 4 K, no qual é observada a uniformidade da
radiação cósmica de fundo. No mapa do meio, os dados são mostrados em uma escala de miliKel-
vin para destacar o padrão dipolar associado à movimentação do sistema solar na Via Láctea. O
último mapa é apresentado na escala de microKelvin após a subtração desta componente dipolar
onde fica evidente a contribuição da emissão nesta faixa do espectro do plano da Via Láctea. Crédi-
to da imagem: NASA / COBE Science Team.

O resultado final, após as correções e subtrações necessárias, em uma


escala de temperatura na qual as anisotropias da própria radiação cósmica de
fundo tornam-se visíveis, é apresentado na figura 4.16, conforme dados obtidos
pelo satélite Planck. Regiões mais quentes (vermelhas) eram mais densas na
época da emissão, enquanto regiões mais frias (azuis) eram menos densas. O
desvio observado neste mapa, na comparação com ondas em uma piscina,
equivaleria a ondulações de somente ~0,01 mm!
A Cosmologia na sala de aula 157

Figura 4.16: Mapa detalhado da temperatura da radiação cósmica de fundo vista em todo o céu a
partir de dados do satélite Planck. As flutuações em temperatura são indicadas pelas diferentes
cores (do mais frio – azul escuro – ao mais quente – vermelho) e estão na escala de ± 200 microKel-
vin. Crédito da imagem: ESA e a colaboração Planck.

Ainda é possível obter muitas informações da RCF, além da temperatu-


ra e da distribuição espacial das inomogeneidades. Uma das mais importantes é
precisamente a fração de cada componente do Universo, matéria (bariónica e
escura), radiação e energia escura. Um resumo dos parâmetros cosmológicos
obtidos a partir da RCF podem ser vistos na Tabela 4.1. Podemos ainda analisar o
espectro das flutuações, fazendo um gráfico de contagens de suas aberturas an-
gulares, ou seja, analisar a distribuição dos tamanhos angulares das estruturas
da radiação de fundo, o quanto de flutuação vemos no espectro de temperatura
em escalas angulares diversas, como mostrado na figura 4.17.

Tabela 4.1: Parâmetros cosmológicos advindos dos dados do satélite Planck sobre a radiação
cósmica de fundo [12]. Estas são as componentes definidas depois da eq. (3.37) que perfazem
Ω𝑡𝑜𝑡 = 1 (com erros/desvios muito pequenos).

TRCF H0 Ωb Ωm ΩΛ
(K) (km s−1Mpc−1)
2.7255 ± 0.0006 67.4 ± 0.5 0.0486 ± 0.0010 0.315 ± 0.007 0.689 ± 0.006
158 A Cosmologia na sala de aula

Figura 4.17: Espectro de potência angular da radiação cósmica de fundo a partir de dados do satéli-
te Planck. Os dados são apresentados em vermelho com suas respectivas barras de erro e o melhor
ajuste é apresentado em verde. Note que os primeiros três picos estão muito bem determinados e
são utilizados para a obtenção de informações a respeito das componentes de matéria/energia
que constituem o Universo Ω𝑖 . Crédito da imagem: ESA e a colaboração Planck.

A forma do espectro depende essencialmente das oscilações do gás


quente no Universo primordial (bem antes do desacoplamento, já que desde aí
ficaram “congeladas”) e suas frequências ressonantes. Já as amplitudes, depen-
dem da composição. Entretanto existem muitas variáveis que influenciam essa
distribuição e é necessário comparar os dados com simulações para estudá-las.
Antes da recombinação, fótons, elétrons e prótons formavam um fluido. Flutua-
ções quânticas neste fluido geram flutuações na densidade, em escala bem
pequena. Uma região comprimida era aquecida de uma pequena quantidade
(Δ𝑇/𝑇~10−5 ) até que a pressão de radiação revertesse o movimento. Da
mesma forma, se a densidade diminui com a expansão, esfria. O espectro é,
então, um registro da distribuição dessas estruturas cerca de 380 000 anos de-
pois do Big Bang.
É possível verificar que há muitas estruturas de ~ 1𝑜 de tamanho e
poucas de ~ 0,5𝑜 ou menos. Os estudos de gases quentes revelam as proprie-
dades do gás pelas posições e tamanhos relativos dos picos. A posição do primei-
ro pico nos informa sobre a curvatura do Universo. Dados do satélite WMAP já
revelaram que Ω𝑡𝑜𝑡 = 1,02 ± 0,2 , o que indica que vivemos em um Univer-
A Cosmologia na sala de aula 159

so plano, que contém densidade de matéria/energia igual (dentro das incertezas


experimentais) à densidade crítica. A razão entre as alturas do primeiro e se-
gundo pico nos diz quanto da matéria é bariônica. Os dados indicam que a ma-
téria bariônica contribui com cerca de 5% da densidade crítica, valor compatível
com o estimado através de observações do tipo “contagem” de matéria e tam-
bém com a nucleossíntese primordial. Mas se o Universo possui apenas 5% de
sua composição na forma de matéria bariônica, aquela formada por prótons e
nêutrons com as quais interagimos todos os dias, o que forma os demais 95% !
Um dos componentes “faltantes” consiste na chamada matéria escura. A
altura do terceiro pico do espectro da RCF é sensível à quantidade de matéria
escura e indica uma proporção desta de cerca de 26%. O restante, que seria a
diferença entre o proveniente da análise do primeiro pico e as estimativas base-
adas nos demais, constitui a contribuição da chamada energia escura, cerca de
69% da densidade crítica. O espectro angular da radiação cósmica de fundo
confirma o espectro previsto para o modelo cosmológico padrão e é, portanto,
evidência para todo o modelo ΛCDM.
Temos do FCR evidência totalmente independente que aponta para
uma fração considerável de matéria escura, a matéria ordinária não consegue
chegar perto do valor inferido.
Apesar de serem desvios pequenos, as anisotropias da RCF são uma rica
fonte de informação sobre as condições do Universo primordial. E a grande per-
gunta não é o porquê de haver anisotropias tão pequenas mas o porquê de não
serem grandes! Como a RCF pode ser tão homogênea em escalas tão grandes?!
Este é conhecido como o problema do horizonte.
Os dados indicam que a curvatura espacial do Universo é incrivelmente
pequena, compatível com zero. Como a RCF pode ser tão homogênea em esca-
las tão grandes?! A maior velocidade com a qual uma informação pode ser
transmitida de um ponto a outro no vácuo é a velocidade da luz. Dois eventos
possuem contato causal quando é possível conectá-los por um raio de luz. Deste
modo, o acontecimento de um evento pode influenciar o outro.
O universo “fotografado” pela RCF possuía flutuações de densidade
muito particulares. Regiões separadas HOJE mais de 2𝑜 no céu, nunca podem
ter tido contato causal na época da recombinação. No entanto, a radiação cós-
mica de fundo é homogênea em escalas maiores do que isso. Como este equilí-
brio se estabeleceu entre pontos sem contato causal?
160 A Cosmologia na sala de aula

Um outro questionamento proveniente da análise da RCF é conhecido


como problema da planura. Durante a era dominada pela radiação e pela matéria,
a quantidade 1 – Ω, que expressa o que se pode chamar de parâmetro de densi-
dade da curvatura, não muda de sinal e aumenta em módulo com o tempo. Se
hoje este parâmetro é muito próximo de zero, isso significa que, no passado, Ω
era ainda mais próximo de 1. Por que o Universo era tão plano na época da re-
combinação?
Para o Universo ter sido plano na época da recombinação, deve ter sido
ainda mais plano num passado mais distante. O satélite Planck mediu Ω0 =
1,0023 ± 0,0055, reforçando e refinando a determinação anterior da missão
WMAP. Analisando os instantes iniciais do Universo, isso significa que Ω deve
ter sido compatível com 1 dentro de ~10-15 na época da nucleossíntese primordial
e menor do que 10-61 no final da era de Planck. Se Ω não fosse tão perto de 1 na-
quelas épocas, o Universo poderia ter se desfeito (Ω < 1) ou recolapsado (Ω > 1), e
nós não existiríamos. O que causou aquele “ajuste fino”?
Uma possível solução é a de que o equilíbrio ocorreu em algum momento
anterior do Universo, quando os pontos estavam em contato causal, e algum pro-
cesso ocorreu de modo a não permitir que regiões distantes dentro do sistema
saíssem do equilíbrio. Esta é a proposta dos modelos de Inflação, tal como o suge-
rido em 1980 por Alan Guth e posteriores, que serão tratados na seção???
Assim vemos que a partir da Recombinação, o Universo continua em
expansão e a temperatura segue caindo. Mas agora, com os átomos formados e
os fótons com energia típica insuficiente para promover a ionização da matéria,
as temperaturas destas duas componentes evoluem independentemente uma
da outra. O estado da matéria passa de um gás ionizado em constante interação
com as componentes relativísticas a um gás neutro mais a componente relativís-
tica. Isto até as primeiras estrelas e quasares se formarem depois da Era da Escuri-
dão, que acabou de vez com essa falta de fontes de energia, e abriu o caminho
para o Universo que permitiu a vida biológica.
G. Gamow, um dos pioneiros da nucleossíntese primordial

Os primeiros núcleos

𝒛 ~𝟏𝟎𝟗
162 A Cosmologia na sala de aula

■ A nucleossíntese primordial

A força nuclear forte é a que mantém os núcleos atômicos coesos. Ela é,


relativamente, a força mais intensa entre as quatro interações fundamentais e, em
escala nuclear, atua sobre todos os hádrons, de forma atrativa. Deste modo, ela
atua igualmente sobre prótons e nêutrons e tem um alcance muito curto, da ordem
da dimensão destas partículas, ou seja, na escala de 1 fermi (= 10−13 𝑐𝑚). Nos
núcleos atômicos há um balanço entre as forças nucleares (de atração entre prótons
e nêutrons) e eletromagnéticas (de repulsão entre os prótons) e é possível formar
núcleos além daqueles que conhecemos como os mais abundantes e que se encon-
tram listados na Tabela Periódica, muitos deles instáveis e que decaem gerando
novas configurações.
Em nossa jornada dos dias atuais ao início do Universo, vimos que a re-
combinação permitiu a existência de átomos neutros e antes disso, havia núcleos
atômicos, elétrons e fótons, formando um plasma em constante interação. Apon-
tamos que os átomos formados eram predominantemente compostos por hi-
drogênio e hélio. Mas o porquê disto e de onde provém os demais elementos que
conhecemos?
Para responder a esta pergunta precisamos identificar que, conforme
voltamos no tempo e o Universo esquenta, a energia média dos fótons aumenta
até o ponto em que eles podem interagir com o próprio núcleo atômico. Aqui
cabe apontar as diferentes escalas de energia das quais tratamos. A energia típica
necessária para quebrar uma ligação atômica (ionização), que é mantida pela
interação eletromagnética, é da ordem de algumas dezenas de 𝑒𝑉. Já para alterar
a estrutura de um núcleo atômico, cuja coesão é mantida pela força nuclear forte,
a escala de energia é de cerca de um milhão de vezes maior, da ordem de algu-
mas dezenas de 𝑀𝑒𝑉 (1 𝑀𝑒𝑉 = 106 𝑒𝑉). Deste modo, separar os prótons e
nêutrons que compoẽm os núcleos atômicos requer a interação com fótons bas-
tante energéticos, com energias muito superiores aos daqueles que são capazes
de ionizar o átomo. Assim, para entendermos como se deu a formação dos nú-
cleos atômicos de origem cosmológica, processo conhecido como nucleossíntese
primordial, precisamos voltar no tempo até quando o Universo era bastante jo-
vem, e analisar os primeiros minutos desde o Big Bang.
A Cosmologia na sala de aula 163

A uma temperatura um pouco abaixo de 1012 𝐾, quando o Universo ti-


nha cerca de 10−5 𝑠, os núcleos ainda não estavam formados e a matéria era
composta por muitos fótons, pares elétron-pósitron, neutrinos e antineutrinos,
especialmente dos tipos eletrônicos e muônicos, e prótons e nêutrons, coletiva-
mente chamados de nucleons (componentes dos núcleos), da ordem de 5 nucle-
ons para cada 10−10 fótons.
No Universo primordial, prótons e nêutrons interagiam de modo que
havia reações que levavam de uma a outra partícula. Estas reações que envolvem,
além dos prótons (p) e nêutrons (n), também elétrons (𝑒 − ), pósitrons (𝑒 + ) e neu-
trinos e antineutrinos eletrônicos (𝜈𝑒 e 𝜈̅𝑒 ) encontram-se abaixo:

𝑛 ⇌ 𝑝 + 𝑒 − + 𝜈̅𝑒
𝑛 + 𝑒 + ⇌ 𝑝 + 𝜈𝑒
𝑝 + 𝑒 − ⇌ 𝑛 + 𝜈𝑒 (4.8)

Estas reações eram possíveis e ocorriam facilmente por conta da peque-


na diferença de massa entre prótons e nêutrons, sendo o próton mais leve que o
nêutron por um fator Δ𝑚 × 𝑐 2 = 1,293 𝑀𝑒𝑉, bem menor que kBT ≈ 86 MeV
neste estágio do Universo. Deste modo, as interações fracas convertem uns nos
outros, mas o total de bárions p+n é constante.
Quanto menor a temperatura, menos frequentes as reações de próton
indo a nêutron. A relação entre as densidades das duas componentes em equilí-
brio depende da exponencial da diferença de energias (de modo semelhante à
equação de Arrhenius, usada para estudar reações na química), de modo que
podemos escrever
𝑛𝑛
= exp(−Δ𝑚 𝑐 2 /𝑘𝐵 𝑇) . (4.9)
𝑛𝑝

Quando 𝑇 = 1012 𝐾, a quantidade dos dois prótons e nêutrons é muito


semelhante e a fração acima é de 0,985. No entanto, à época da nucleossíntese,
quando a temperatura é da ordem de 1010 𝐾, esta fração torna-se muito menor
porque a diferença de massa desfavorece os nêutrons e resulta ~ 0,17. Neste mo-
mento, a taxa da interação fraca que governa as reações que levam prótons a nêu-
trons e vice-versa fica mais lenta que a escala de tempo de expansão, 1/𝐻(𝑡). Isso
está associado à própria dinâmica de expansão, já que a energia dos neutrinos (que
164 A Cosmologia na sala de aula

é proporcional à temperatura) ficou abaixo do limite para participarem nestas rea-


ções e a energia média dos fótons (kBT) ficou abaixo de 1,022 MeV, energia necessá-
ria para a geração de pares elétrons-pósitrons. Deste modo, a fração 𝑛𝑛 ⁄𝑛𝑝 fica
“congelada” em 0,17.
A partir deste momento, apenas a reação de decaimento beta 𝑛 → 𝑝 +

𝑒 + 𝜈̅𝑒 com meia-vida (tempo que demora para que metade dos nêutrons sejam
convertidos em prótons) de 𝜏 = 886 𝑠, ainda acontece. Mas quando 𝑇 ~109 𝐾, a
energia dos fótons torna-se baixa o suficiente para que a fotodissociação do deutério
(isótopo do hidrogênio com 1 próton e 1 nêutron) deixe de ser frequente e este núcleo
pode ser formado através da reação de fusão 𝑝 + 𝑛 → 2𝐻 + 𝛾.
Entre o congelamento das reações que levam prótons a nêutrons e o mo-
mento a partir do qual os nêutrons podem ser efetivamente unidos a prótons em
um núcleo atômico, passam-se cerca de 176 s. Neste meio tempo, por conta do de-
caimento beta, a fração fração 𝑛𝑛 ⁄𝑛𝑝 caiu para 0,13, o que significa ter cerca de 7
prótons para cada nêutron. Em uma avaliação rápida e sem muita atenção aos
detalhes, se todos os nêutrons se ligaram a um próton, teremos 6 de 7 prótons iso-
lados, ou seja, 6 prótons do total de 8 nucleons, o que dá cerca de 75% de hidrogênio
formado na nucleossíntese. Os 25% restantes, em iguais quantidades de prótons e
nêutrons, se combinam formando hélio! Esta é uma estimativa muito aproximada
mas já provê valores que não estão muito distantes do observado.
Na verdade, são diversas as reações envolvidas na nucleossíntese pri-
mordial e que resultam em um pouco mais do que apenas prótons e núcleos de
hélio. Uma predição muito mais precisa é hoje obtida a partir da compreensão da
física envolvida na expansão, em saber a densidade bariônica à época da nucleos-
síntese, além de como procedem as reações de fusão nos primórdios do Universo.
Em relação a estes parâmetros, é importante frisar que 1. a análise da radiação
cósmica de fundo, tratada anteriormente, provê uma precisão na casa de alguns
porcentos para a densidade dos bárions e 2. todas as taxas de reações nucleares
que afetam a produção de isótopos com A < 8 são precisamente calculadas ou
foram medidas em laboratório. Deste modo, não há mais parâmetros livres para
a nucleossíntese padrão e as predições para as abundâncias são afetadas pelas
incertezas nas medidas apenas.
Para que uma dada reação ocorra, por exemplo, a fusão de um próton e
um nêutron, é necessário que estas partículas cheguem próximas o suficiente
para que a força nuclear forte passe a atuar, formando um sistema ligado. Deste
A Cosmologia na sala de aula 165

modo, é necessário que 1) haja partículas suficientes para que uma dada reação
ocorra e 2) que a trajetória das partículas as coloquem na “zona de influência” para
que a fusão ocorra, medida pela chamada seção de choque de reação. Assim, a
frequência com a qual uma dada reação ocorrerá depende da densidade das
partículas interagentes, da velocidade relativa entre as partículas (diretamente
relacionada à temperatura) e da seção de choque.
Na nucleossíntese primordial apenas núcleos que contêm poucos nêu-
trons e prótons são formados e apenas 12 reações são de fato importantes, como
mostrado na figura 4.18. Isso ocorre pois, conforme o Universo expande, a tempe-
ratura cai e a densidade de núcleos diminui, o que faz com que a taxa de reações
diminua. Isso somado ao fato de que não existem elementos estáveis com núme-
ro de massa A=5 ou A=8 (5Li, 8Be e 8B são todos elementos instáveis com meias-
vidas curtas) introduz um “atraso” para que as reações rumo a elementos mais
pesados possa ser efetivada nos cerca de 5 minutos que durou todo o processo.
Além de hélio, foram formados montantes microscópicos de deutério, hélio-3,
lítio e berílio.

Figura 4.18. Reações relevantes envolvidas na nucleossíntese primordial. À esquerda, os caminhos


que levam de um elemento a outro, sendo estes apresentados com indicação de número atômico e
de massa, à esquerda do símbolo do elemento, abaixo e acima, respectivamente. À direita, as equa-
ções detalhadas entre os diferentes isótopos. Note a falta de elementos estáveis com A=5 ou A=8 (a
formação do berílio-8 na equação 11 leva a sua rápida dissociação em dois núcleos de hélio-4).

Das 12 reações relevantes para a nucleossíntese primordial, o equilíbrio n


↔ p é calculado a partir da meia-vida do nêutron, sendo também calculada a taxa
de reação de n + p → D + γ que forma o deutério. Já as seções de choque das demais
166 A Cosmologia na sala de aula

10 reações são todas medidas no laboratório. Há mais que 12 reações conectando


os isótopos da figura 4.18 mas estas são irrelevantes ou porque a seção de choque
é muito baixa e/ou porque os reagentes ocorrem em quantidades muito baixas. É
importante notar que o processo que produz He aqui não é o mesmo daquele
que ocorre no interior estelar (representados pela cadeia próton-próton e ciclo
CNO) já que aqui temos nêutrons livres à disposição.

Figura 4.19. A progressão da nucleossíntese primordial. Os “gargalos” em 𝐴 = 5 e 𝐴 = 8 onde não


existem núcleos estáveis impediram a produção de núcleos mais pesados [13].

Quando se comparam as abundâncias calculadas com observações em lo-


cais astronômicos primitivos, a concordância entre os dados e as previsões é alta, com
~76% de hidrogênio, 23 a 24% de hélio, 0,01% de deutério e menos de 0,01% de lítio.
A fração de massa em He prevista é bem próxima do valor observado de
23% a 24%. Já que praticamente todos os nêutrons são incorporados nos núcleos
de hélio durante a nucleossíntese, este resultado não tem dependência forte com a
densidade bariônica exata do Universo na época. As densidades dos outros isóto-
pos formados na nucleossíntese primordial já são mais dependentes deste parâ-
metro, e os cálculos, mais complicados. Por outro lado, a quantidade de deutério,
hélio-3 e lítio permite cálculos mais sofisticados das condições nos primeiros 5 mi-
nutos do Universo. Estes resultados indicam que apenas 5% da densidade crítica é
bariônica, em concordância com os resultados obtidos por outros métodos, como a
A Cosmologia na sala de aula 167

análise da radiação cósmica de fundo. A explicação da composição química do Uni-


verso primordial é um dos grandes sucessos do modelo cosmológico atual.
Apesar de serem criados em menor proporção, a avaliação da taxa de
produção de lítio, berílio ou deutério pode auxiliar na compreensão da evolução
do Cosmos. O lítio, por exemplo, pode ser produzido após a nucleossíntese pri-
mordial pelo processo de espalação (quebra de núcleos maiores em colisões com
outros núcleos no Meio Interestelar), em núcleos ativos de galáxias ou em novas e
destruído no interior das estrelas, dado que o limiar para fotodissociação é baixo.
Como o tempo de vida de estrelas com massa menores que a solar é maior que a
idade atual do Universo, a observação de estrelas muito velhas no halo da Galáxia
proporciona medidas do lítio nas camadas mais externas destes objetos. Estas
medidas indicam abundância independente da metalicidade para valores abaixo
de 10% da metalicidade solar, evidenciando a presença de lítio primordial.

Figura 4.20. Observações dos núcleos primordiais. A faixa vertical colorida indica o valor da densi-
dade bariónica onde todas as abundâncias batem com o observado [14].

O deutério (𝐷 ou 2𝐻 ), formado por um próton unido a um nêutron, tam-


bém é um isótopo muito frágil e é destruído no interior das estrelas, não havendo
produção significativa deste isótopo em nenhum outro evento astrofísico. Portanto,
168 A Cosmologia na sala de aula

para obter medidas de sua abundância primordial, devem-se observar nuvens a


altos redshifts, na linha de visada de quasares distantes (a chamada Lyman-α forest
que soma todas as linhas no caminho com diferentes redshifts). Estas medidas
resultam em uma fração de deutério em relação ao isótopo de hidrogênio compos-
to apenas por um próton de 𝐷⁄𝐻 = (2,53 ± 0,04) × 10−5 . Esse dado possui
uma precisão estimada de 1,6%, muito grande comparada às incertezas associa-
das aos dados de seção de choque relevantes para a formação do deutério, o que
indica a necessidade de aprimoramento destas medidas.
Já o núcleo de hélio contendo iguais números de prótons e nêutrons, tam-
bém conhecido como partícula alfa ( 4𝐻𝑒), é também produzido nas estrelas, cor-
respondendo ao primeiro ciclo nuclear que ocorre no interior destes objetos. Assim, é
necessário buscar objetos astronômicos que sejam bastante primitivos para reduzir a
chance de contaminação da quantidade de hélio proveniente da evolução estelar.
Isto é feito observando-se regiões HII de galáxias azuis compactas, resultando em
uma fração de massa de 0,2499 ± 0,004 . O único outro isótopo estável de hélio,
composto por dois prótons e um nêutron (3He) é tanto produzido quanto destruído
nas estrelas. Deste modo, a dependência da sua abundância com o tempo é pouco
conhecida e é esperado que sua abundância relativa à partícula alfa seja pequena.
Esta é uma fração de difícil observação e dados a partir de medidas da estrutura hiper-
fina em regiões HII na Via Láctea indicam 3𝐻𝑒⁄𝐻 = (0,9 − 1,3) × 10−5 .
A nucleossíntese primordial gerou os elementos mais leves, essencialmen-
te hidrogênio e hélio com algumas concentrações muito pequenas de outros ele-
mentos leves, como lítio e berílio. Ainda assim, cerca de 98% dos elementos do
Universo atual foram formados nesta época, entre 1 ms e 5 minutos depois do Big
Bang. Os demais 2%, ou seja, todos os outros 105 elementos estáveis vistos natu-
ralmente foram formados mais tarde por processos estelares, com exceção do lítio,
berílio e boro que são formados em colisões de raios cósmicos com hidrogênio e
hélio no meio interestelar. A composição química primordial do Universo, essenci-
almente H (~76%), He (23 a 24%), D (0,01%) e Li (< 0,01%), é bem explicada mas
ainda há problemas em aberto, em especial em relação à abundância de lítio e
outros elementos-traço. Ainda se espera maior precisão das predições para equiva-
lerem às das observações para que de fato possamos testar a física do Universo
primordial já que este constitui o instante mais no passado no Universo para o qual,
em princípio, conhecemos toda a física envolvida com a possibilidade de que dife-
renças com as predições possam indicar física nova.
A Cosmologia na sala de aula 169

■ Bariogênese e hadrossíntese: a origem dos prótons e


dos nêutrons
Sabemos hoje que prótons e nêutrons não são partículas fundamentais,
sendo formados por quarks. Assim, seguindo a mesma lógica da formação dos
núcleos e átomos, deve haver uma época na qual os próprios nucleons não esta-
vam formados, sendo que o processo de sua formação recebe o nome de hadros-
síntese ou confinamento dos quarks.
Ainda muito antes dos quarks dominarem a cena, nos primórdios do
Universo, muito quente e denso, favorecia a existência de uma “sopa” cósmica,
composta por partículas elementares dos mais variados tipos (todas as partículas
elementares estão listadas no Apêndice 1, [15]). Estas partículas são aniquiladas
quando se chocam com suas antipartículas, gerando fótons, a todo instante. Por
outro lado, fótons podem dar origem a um par partícula-antipartícula caso sua
energia seja superior ao dobro da massa de repouso de uma dada partícula. Inici-
almente há um equilíbrio entre a matéria e a radiação. A taxa de criação e aniqui-
lação da matéria dependerá bastante da temperatura e densidade locais mas
seria esperado que no Universo primordial iguais quantidades de matéria e anti-
matéria teriam sido produzidas. No entanto, claramente vivemos em um Univer-
so no qual estas duas componentes não existem nas mesmas quantidades. Al-
gum tipo de assimetria nas reações de formação e aniquilação de matéria e anti-
matéria resultou em um excesso de matéria. Este processo é chamado de bariogê-
nese. O processo, ou os processos, que deram origem à assimetria ainda são objeto
de estudo, mas basta que 1 partícula de cada bilhão de partículas no Universo
primordial tenha sobrevivido para termos o Universo que observamos hoje. Pode
parecer muito, muito pouco, mas quando o esperado seria exatamente zero, esta
constitui uma discrepância enorme! E mais importante: fundamental para que
estejamos aqui hoje. A única coisa que parece certa é que a assimetria não se “di-
luiu”, porque toda a estrutura que observamos está feita de matéria. Isto quer
dizer que não poderia ter acontecido antes da Inflação, já que esta última houves-
se estragado o resultado da formação da assimetria.
Quando o Universo tinha entre 0,00001 e 100 segundos, o que corres-
ponde a temperaturas entre 1012 e 109 K, a energia era baixa o suficiente para que a
força forte, de atração entre os quarks, conseguisse formar hádrons, grupos na
forma de bárions (trios de quarks) e mésons (pares quark-antiquark). Neste mo-
170 A Cosmologia na sala de aula

mento temos a formação de prótons e nêutrons mas também de partículas com-


postas mais massivas. Conforme o Universo expande e esfria, pares de partícula-
antipartícula de massa elevada, muito maior que kBT, deixarão de ser produzidos
e com o passar do tempo, partículas instáveis decaíram em componentes de mai-
or meia-vida. Deste modo, em temperaturas mais baixas, apenas as partículas
estáveis (elétron, fóton, próton e neutrinos, além do nêutron, quando no núcleo
atômico) estão presentes.
A hadrossíntese posterior à bariogênese tem sido estudada com intensidade
desde que os experimentos na década de 1970 mostraram que não há quarks
livres, todos eles estão dentro dos hádrons. Com o desenvolvimento da teoria das
interações fortes, ou Cromodinâmica Quântica chegou-se a compreender que a
“carga” dos quarks, chamada de cor não pode existir livre a baixas temperaturas. O
Universo ao esfriar “confinou” a cor e para observar sua presença foi necessário
desenvolver aceleradores que colidissem núcleos pesados, de tal forma de conse-
guir um estado similar ao do plasma de quarks e glúons primordial, que “vive”
frações de segundo antes de voltar a produzir prótons e outros hádrons ordinários
(Fig. 4.21).

Figura 4.21. Esquerda: o diagrama de fases da QCD (análogo ao da água). Na região branca os
hádrons ordinários são preferidos, mas acima de uma temperatura muito alto ou densidade, o
chamado plasma de quarks e glúons é a fase preferida. O Universo esfria na trajetória quase vertical
indicada. Direita: evento no Large Hadron Collider (LHC), um dos instrumentos construídos para
reconstruir as densidade e temperaturas onde o plasma de quarks e glúons possa ser formado
colidindo hádrons ou núcleos pesados.

Em resumo, os prótons e nêutrons tiveram uma origem quando os quarks


que os compõem ficaram “confinados”, e antes disso todas as antipartículas tinham
se aniquilado com as partículas, o que sobrou é produto de algum mecanismo que
produziu uma assimetria em favor das últimas.
Alan Guth, o criador da ideia de Inflação Cósmica em 1981 com um modelo
inflável das flutuações na RCF detectadas pelo satélite WMAP

A Era inflacionária

𝑧 ≈ ∞
172 A Cosmologia na sala de aula

■ O que é a Inflação?
A construção do modelo do Big Bang descrita anteriormente evoluiu
muito nos últimos 50 anos pelo seu poder preditivo e a insistência dos cosmólo-
gos nos aspectos observacionais a serem conferidos. Existiu na prática um deslo-
camento da ênfase da aplicação da Relatividade Geral (primeira metade do
século XX) para os fatos que podem ser observados e interpretados em termos
do modelo cosmológico. A segunda metade do século XX converteu a Cosmolo-
gia numa verdadeira Ciência empírica, com a descoberta dos quasares, a Radia-
ção Cósmica de Fundo, a formação de estrutura e outras observações e desen-
volvimentos associados.
Porém, e como era esperado, com estes avanços, abriram-se novos in-
terrogantes a respeito dos primórdios do Universo que provocaram consequên-
cias importantes para o Cosmos observado hoje. Existe na literatura um grande
volume de trabalhos a respeito dos principais problemas a serem resolvi-
dos/entendidos a este respeito, principalmente associados às características da
Radiação Cósmica de Fundo. Os principais problemas, já apontados quando
tratamos a RCF, podem ser resumidos assim [14, 15]:

1) O problema da planura
Com as medidas mais recentes o Universo parece ter uma geometria
espacial plana, euclidiana. Não há evidência para uma curvatura espa-
cial substancial (ou seja, K=0 na equação XX). Mas isto indica que a cur-
vatura “original” era ainda muito menor, por 100 ordens de grandeza no
passado, já que se extrapolada para tempos 𝑡 → 0 a curvatura devia ser
verdadeiramente minúscula para que hoje seja compatível com zero.
Por que o Universo é tão plano? Este é o chamado problema da planura.

2) O problema do horizonte
A Radiação Cósmica de Fundo tem, com erro mínimo, o mesmo valor
central da temperatura para qualquer direção. Ou seja, é quase total-
mente isotrópico. Mas de direções muito separadas, até opostas, o ma-
terial ao qual ficou transparente e a deixou escapar não tinha contato
causal. Ou seja, seria impossível que os elementos de fluido de um e do
outro lado se comunicassem para finalizar tendo a mesma temperatu-
ra. Se diz que estes estavam fora do horizonte. Como fez o Universo para
A Cosmologia na sala de aula 173

“homogeneizar” a temperatura em regiões desconexas? Este é o cha-


mado problema do horizonte.

3) Ausência de monopolos
Há uns 50 anos acreditava-se fortemente que o Universo devia ter pas-
sado por uma (ou várias) transições de fase onde defeitos eram gerados
nas regiões de interface (isto é o que se observa nos sistemas de labora-
tório). Um destes “defeitos” ou irregularidades é o chamado monopolo,
ou carga magnética unitária, que não existe na natureza e nunca foi de-
tectado. Como é que esses defeitos, se gerados, não estão por aí? Este é o
problema da ausência de monopolos no Universo.

A ideia fundamental devida a Alan Guth é que estes problemas podem


ser resolvidos se o Universo passasse por um estágio onde sua expansão fosse
extremamente rapida. Guth propoe a Era da Inflação como um breve período ≪
1 𝑠, a ser obtido “naturalmente” da Física válida em energias enormes, mas
menores que a Era de Planck (que trataremos a seguir). Nesse momento, não
teria havido matéria nem radiação, toda a densidade de energia do Universo
estaria na forma de um campo escalar (posteriormente denominado campo do
Inflaton) na sua versão mais básica, postulado para provocar um estágio inflacio-
nário, mas que ainda não emerge claramente do Modelo Padrão ou da Física
fundamental a essas energias. Este campo evolui no tempo e dá origem à Era da
Radiação e subsequentes, onde a expansão do Universo é mais convencional.
Para entendermos esta proposta devemos lembrar que as equações
que regem o Universo são a (3.14) e (3.15). Uma expansão exponencial é acelera-
da, ou seja 𝑎¨ > 0. Mas a eq.(3.15) tem um sinal (-) na frente do segundo mem-
bro, assim, a aceleração só é possível se

𝜌 + 3𝑃 < 0 , (4.10)

ou seja, que a densidade de energia e a pressão da componente que provoca a


aceleração satisfaça 𝑃 < −𝜌/3 . É evidente que nenhuma matéria “normal”
(matéria ou radiação) pode fazer isto, desta forma, precisamos ao menos um
campo escalar 𝜙 para produzir uma Era Inflacionária.
174 A Cosmologia na sala de aula

Esse campo do Inflaton tem uma equação de movimento simples, onde


todo o segredo consiste em acertar a forma do chamado potencial de interação
𝑉(𝜙). Esta equação de movimento é

−𝜕𝑉(𝜙)
𝜙¨ + 3𝐻𝜙˙ = . (4.11)
𝜕𝜙

A eq. de Fiedmann (3.14) (com curvatura nula 𝜅 = 0) é para este caso

8𝜋 1
𝐻2 = 2 ( 𝜙˙ 2 + 𝑉(𝜙)) . (4.12)
3𝑚𝑃 2

E a equação da aceleração (3.15) resulta assim

𝑎¨ −8𝜋
= 2 (𝜙˙ 2 − 𝑉(𝜙)) , (4.13)
𝑎 3𝑚𝑃

onde 𝑚𝑃 é a massa de Planck introduzida como valor de referência. Vemos que


a eq.(4.13) pode produzir 𝑎¨ > 0 desde que 𝜙˙ 2 < 𝑉(𝜙). Para estes fins, é ne-
cessário escolher um potencial 𝑉(𝜙), chamado de Inflaton, que seja suficiente-
mente plano antes de cair e se estabilizar num mínimo. A forma do potencial
genérica é mostrada na Fig. 4.22.

Figura 4.22. O campo escalar do Inflaton 𝜙 e o potencial 𝑉(𝜙) a ele associado. A “rolagem” do
campo na parte plana produz as condições para a Inflação, e acaba quando cai no mínimo locali-
zado em 𝜙 = 𝜙𝐶 . A diferença de energia ΔV vai parar em radiação, produto da dissipação indi-
cada com as oscilações no mínimo.
A Cosmologia na sala de aula 175

Com estas escolhas é fácil mostrar que o fator de escala terá uma ex-
pansão exponencial enquanto o campo Φ role na parte plana do potencial. Nes-
ta região 𝜙¨ ≪ 3𝐻𝜙˙ (de novo lembramos que 𝐻 ≡ 𝑎˙⁄𝑎) e 𝜙˙ 2 ≪ 𝑉(𝜙), e as
eqs. (4.12) e (4.13) são aproximadas por [14, 15]

𝜕𝑉(𝜙)
3𝐻𝜙˙ ≅ − , (4.14)
𝜕𝜙

8𝜋
𝐻2 ≅ 2 𝑉(𝜙) . (4.15)
3𝑚𝑃

E a solução deste conjunto para o fator de escala é 𝑎(𝑡) ≅ 𝑒 3𝐻𝑡 , onde H


é constante. Isto último é fácil de ver da eq. (4.15), se o pontencial 𝑉(𝜙) é quase
𝑎˙
constante, 𝐻 ≡ 𝑎˙⁄𝑎 também. Daqui vemos que = 𝑐𝑡𝑒, ou seja 𝑎˙ = 𝑐𝑡𝑒 × 𝑎
𝑎
com resultado exponencial depois de integrar no tempo.
Com este estágio, que produz um aumento no fator de escala de
~𝑒 em tão somente uns 10−32 𝑠, os três problemas mencionados são resol-
60

vidos. A planura é o que medimos depois do fim da Inflação, e foi para zero pelo
“estiramento” do espaço-tempo. O pedaço do Universo visível esticou tanto que
ficou quase vazio, e todos os monopólos (se produzidos) “saíram do horizonte”
quando o espaço-tempo se expandiu, e hoje é muito improvável achar um se-
quer no volume accessível (vide Atividade Didática). Por último, como a expan-
são foi muito grande, regiões que pareciam causalmente desconectadas esta-
vam, na verdade, em contato e por isso a temperatura de ~3 𝐾 é tão uniforme.
Note-se ainda que nestes modelos o Universo não tinha realmente
uma temperatura antes da Inflação, embora há uma energia de Planck à qual
associamos uma temperatura de 1032 𝐾. A oscilação do campo 𝜙 no mínimo
𝜙 = 𝜙𝐶 é a que produz um banho de fótons e outras partículas leves, re-
esquentando o Universo até uma temperatura muito alta, possivelmente uns
1020 𝐾 ou mais. Esta seria a temperatura “inicial” do que viria ser o RCF, que não
existia antes da Era Inflacionária.
176 A Cosmologia na sala de aula

■ As evidências observadas e as dificuldades da Inflação


Devido a que a Inflação foi “desenhada” para resolver os três problemas
emergentes da planura, os monopólos e o horizonte, não é possível dizer que
estas observações a confirmam. Isto seria uma tautologia. O que resulta impor-
tante é entender quais predições resultam da Era Inflacionária que possam ser
conferidas para validar esta, vide Capítulo 5 e Apêndice 4 [15].
Dito isto, a Inflação prevê uma quantidade muito importante a ser ob-
servada: o espectro das flutuações primordiais. Estas pequenas irregularidades
na temperatura da Radiação Cósmica de Fundo (onde foram preservadas) têm
uma amplitude que pode ser calculada e depois observada diretamente, cole-
tando as “manchas” (excessos e defeitos acima e abaixo da temperatura média)
como função do seu tamanho angular. A decomposição em tamanhos angula-
res ou em multipolos observada pelos instrumentos do satélite Planck é a que
está na Fig. 4.17.
Agora bem, a teoria prediz que todas as escalas contribuem por igual ao es-
pectro. Isto pode ser visto nos índices da potência das flutuações. A invariância de
escala perfeita leva a um índice 𝑛𝑆 = 1. A inferência dos índices a partir do es-
pectro dá o resultado 𝑛𝑆 = 0.98, e pode ser considerada como um sucesso
adicional. De fato, os parâmetros que aparecem no potencial 𝑉(𝜙) podem ser
imediatamente limitados usando as observações do espectro.
Porém, os questionamentos à Inflação como ideia genérica vão muito
mais longe do que a mera crítica a este ou àquele modelo. Em primeiro lugar, há
tantos modelos que é impossível realmente determinar quais trazem a melhor
descrição da Era. Na verdade, a própria construção da Inflação é “de trás para
frente”, não de primeiros princípios. A conexão prometida com a Física funda-
mental nunca foi concretizada, no sentido de que não há consenso ou indicação
clara do que seja o tal “Inflaton” 𝜙. E menos ainda de porquê teria um potencial
𝑉(𝜙) que faça o trabalho que se espera dele. E embora os físicos abominem
condições iniciais arbitrárias, até o caráter dos “problemas” tem sido questiona-
do. Por exemplo, os monopolos e outros “defeitos” podem nunca ter sido produ-
zidos, e assim não haveria necessidade de mandá-los embora. A curvatura pode
ter sido nula no começo por qualquer razão, sem precisar de Inflação para elimi-
ná-la. E a temperatura homogênea não parece também difícil de incorporar.
A Cosmologia na sala de aula 177

Uma polêmica recente envolvendo alguns dos precursores da Inflação


(entre eles vários cientistas que ganharam o Prêmio Nobel) e antagonistas mos-
tra até que ponto é complicado manter a confiança na Inflação. Ijjas, Steinhardt
e Loeb [17] proclamaram a impossibilidade de continuar trabalhando com os
modelos inflacionários, cujas predições podem ser “ajustadas” para explicar
quase qualquer observação. A resposta [18] não parece concordar em absoluto e
declara a Inflação como “provada”, embora ninguém saiba exatamente qual é a
versão real. Na verdade, o estudo do espectro é um argumento forte para o se-
gundo grupo, mas isto não quer dizer que outro modelo sem nenhuma Inflação
não possa ter o mesmo sucesso. De fato, as chamadas “cosmologias com rebo-
te”, onde o Universo chega até uma escala mínima e daí se re-expande vigoro-
samente pretendem ocupar o lugar da Inflação, assim como outras propostas
menos ortodoxas ainda.
Em resumo, a Inflação foi proposta há 40 anos para resolver problemas
que podem nem ser “problemas”, degenerou em uma variedade imensa de
modelos sem embasamento fundamental, ditos ad hoc, e perdeu poder prediti-
vo. Porém, e embora o espectro das flutuações na RCF mostrou a validade de
uma predição genérica ( 𝑛𝑆 ≤ 1), não pode ser considerada no mesmo patamar
que outros desenvolvimentos cosmológicos (por exemplo, a nucleossíntese
primordial). Veremos se no futuro os céticos conseguem substituir a Era Inflaci-
onária por outra proposta mais sólida e preditiva para compor a evolução do
Universo-bebê.

Atividade Didática 6: a Inflação na sala de aula


Já é difícil a introdução para os alunos da ideia da expansão “normal”, de
Hubble. A noção de um estágio onde essa expansão aconteceu de forma muito
mais acelerada é mais desafiadora ainda, mas os fundamentos desta Era Inflaci-
onária e seu papel na solução dos problemas descritos podem ser visualizados
de forma bastante simples. Esta atividade pretende discutir precisamente isso.
O objetivo principal é entender como teria acontecido a Inflação e quais
efeitos “desejáveis” teve para resolver os problemas do horizonte, a planura e a
ausência de monopolos e outros defeitos. Para isto devemos recorrer a um mode-
lo de Universo com 2 dimensões espaciais e um tempo, representados por uma
membrana de borracha. Os elementos da atividade são bem simples, uma bexiga
grande (ou “bexigão” de aniversário), marcadores e uma superfície de vidro.
178 A Cosmologia na sala de aula

A atividade começa com o desenho de um círculo no vidro que repre-


sentará o horizonte cósmico (Cap. 3). A membrana de borracha sem esticar é
marcada com alguns pontos que caibam no horizonte e outros fora, invisíveis
aos observadores interiores nesse momento. O começo da Inflação acontece
quando dois ou três alunos esticam a borracha e os pontos no interior saem do
horizonte porque essa expansão acontece com uma velocidade muito maior do
que a velocidade da luz (a do horizonte). Quando desenhado um segundo hori-
zonte, correspondente a um tempo posterior, este avança para encontrar as
“galáxias” que saíram anteriormente, que voltam a entrar no horizonte e serem
vistas. Note-se que o mais importante é que os alunos vejam o espaço-tempo (a
borracha) que é um objeto físico evoluindo de forma exponencial e o horizonte
cósmico (círculo) um objeto geométrico nesta trama que deixa a nossa porção do
Universo “vazia” e aplana a curvatura inicial pré-Inflação depois deste estágio.
Segue um registro fotográfico da atividade para fixar estas ideias

1) Antes do começo da Inflação, o setor do Universo dentro do horizonte


cósmico (o círculo, se expandindo à velocidade da luz) contém uma den-
sidade de energia 𝑉(𝜙) que nem precisamos especificar. Este é o estado
onde a “bolinha” (Inflaton) está na origem 𝜙 = 0 na Fig. 4.21.
A Cosmologia na sala de aula 179

2) Quando começa a Inflação, o espaço-tempo que estava originalmente


dentro do horizonte se expande exponencialmente como 𝑎(𝑡) ≅ 𝑒 3𝐻𝑡 ,
levando os pontos para muito além do horizonte cosmológico. Este último
continua a avançar com a velocidade da luz, mas agora pode ser conside-
rado “estacionário” (!) em relação ao espaço-tempo (substrato) que estica
muito mais rapidamente. Quase tudo o conteúdo flui para além do hori-
zonte e o espaço-tempo que era interior ao horizonte fica “vazio” e muito
esticado durante a Era Inflacionária. É por isto que a curvatura é zero, de-
vido à breve (mas monstruosa) expansão do espaço-tempo provocada
pela Inflação.
180 A Cosmologia na sala de aula

3) Finalmente, quando a Inflação acaba (e o Inflaton oscila no mínimo


𝜙 = 𝜙𝐶 ), o horizonte cosmológico (que estava na linha pontilhada du-
rante a Inflação), que continua avançando, alcança no futuro as “galáxias”
que haviam saído. É dito que agora estas “entram no horizonte”. O fluxo
de Hubble desde o fim da Inflação é muito mais suave (possivelmente
correspondente à Era da Radiação, já que o Inflaton entrega toda sua
energia para quanta leves, o Universo enche de radiação e “esquenta” de
vez). Esta expansão do tipo lei de potência permite que o horizonte ande e
“alcançe” as galáxias progressivamente ao longo do tempo, embora re-
centemente a aceleração produz um segundo “escape” das galáxias e
vemos cada vez um número menor delas.
Max Planck (1858-1947), quem morreu sem se convencer

A Era de Planck

𝑧 = “∞”
182 A Cosmologia na sala de aula

■ Constantes fundamentais, sistemas de unidades e a


validade das teorias físicas disponíveis
Nas aulas de Física é frequentemente discutida a definição e uso de uni-
dades de medida, as quais permitem expressar quantidades físicas de forma objeti-
va. Os sistemas de unidades são muitas vezes limitados ao SI em uso, e outros
similares. Porém, na Física estas unidades são chamadas de arbitrárias, definidas
por algum critério humano em alguma época. Por exemplo, o pé inglês resultou
do comprimento do pé do Rei Henry I por volta do ano 1100 d.C. e foi padronizado
posteriormente como valendo ~32,8 cm. Este é só um exemplo, mas todos os sis-
temas de unidades em uso quotidiano apresentam esta característica.
Mas esta origem arbitrária não satisfez todos os cientistas, e já no século
XIX houve tentativas de criar um sistema de unidades baseado nas constantes da
natureza, achando combinações delas que tivessem dimensões de comprimen-
to, massa, tempo e temperatura determinadas pela Física fundamental.
O conjunto de unidades de Planck é [19]

ℏ𝐺
𝑙𝑃 = √ 3 = 1,6×1033 cm (comprimento de Planck) (4.16)
𝑐
ℏ𝑐
𝑚𝑃 = √ = 2,17×10-5 g (massa de Planck) (4.17)
𝐺
𝑙𝑃 ℏ ℏ𝐺
𝑡𝑃 = = = √ 5 = 5,4×10-44 s (tempo de Planck) (4.18)
𝑐 𝑚𝑃 𝑐2 𝑐
𝑚𝑃 𝑐 2 ℏ𝑐 5
𝑇𝑃 = =√ 2 = 1,4×1032 K (temperatura de Planck) (4.19)
𝑘𝐵 𝐺𝑘𝐵

Existem outras inúmeras unidades naturais (por exemplo, o irlandês G.


Stoney parece ter sido o primeiro que propôs um sistema deste tipo [20]), das
quais o conjunto de Planck é um exemplo importante porque envolve todas as
constantes fundamentais, incluindo o então “novo”quantum de ação ℏ. Planck
manteve que um sistema de unidades deste tipo seria útil em qualquer situação
física, para qualquer substância e mesmo alheio aos observadores humanos.
Mas por muitas décadas isto não entusiasmou ninguém, e as unidades de
Planck foram uma mera curiosidade.
A Cosmologia na sala de aula 183

Agora bem, enquanto procuravam compatibilizar teorias que se ocu-


pam de diferentes “domínios” (por exemplo, a Mecânica Quântica se ocupa da
microfísica, mas não descreve a gravitação, enquanto a Relatividade Geral é
clássica no sentido de não descrever a microfísica), os pesquisadores percebe-
ram a importância das unidades de Planck, chegando à conclusão que estes
valor marcam o limite de aplicabilidade de cada abordagem. Quando tentamos ir
além dos valores indicados, a Física conhecida não é mais válida, e teorias unifi-
cadas mais gerais são necessárias. Por exemplo, para tempos mais curtos que o
tempo de Planck 𝑡𝑃 , não é possível considerar tempos sem uma teoria quântica
da gravitação, e possivelmente o tempo contínuo que nos é familiar precise ser
substituído por um tempo discreto, em unidades quânticas. De fato, podemos
fazer um esquema colocando as teorias disponíveis no espaço das constantes G,
c e ℏ que as caracterizam (Fig. 4.23).

Figura 4.23. O espaço das teorias físicas construídas até hoje. Cada “plano” contém as teorias onde
a constante relevante é ignorada, colocada igual a zero. Por exemplo, se ignorarmos os efeitos
quânticos (ℏ = 0, o plano projetado à esquerda contém a Gravitação Newtoniana (onde além de
ℏ = 0 há c = 0), a Relatividade Restrita (clássica, mas sem efeitos gravitacionais ou seja, G = 0), a
Relatividade Geral (clássica e com Gravitação, mas sem efeitos quânticos) e a Mecânica Clássica
que dispensa a Relatividade Geral e Restrita (na origem). Já a Teoria Quântica de Campos para
alguns é construída de forma precária nos seus fundamentos, e a Gravitação Quântica está em
desenvolvimento, assim como a “Teoria de Tudo” que é um desafio maiúsculo (e para muitos uma
quimera).
184 A Cosmologia na sala de aula

■ A Cosmologia na Era de Planck

Quando formos “retroceder” no tempo, ou seja, considerar tempos mais


e mais próximos a 𝑡 = 0 (Fig. 4.23) encontraremos fatalmente um momento
onde a escala do Universo, o tempo e a temperatura se aproximam dos valores
de Planck eqs.(4.16-4.19). Esta é a chamada Era de Planck, onde muitos dos fenô-
menos que posteriormente determinam o destino do Universo mais tardio
acontecem, sem que realmente possamos estudá-los a contento. A razão é pre-
cisamente que com as ferramentas que temos, não podemos obter respostas
concretas e satisfatórias como seria desejável pela ausência de teorias confiáveis
válidas nesse regime. Tudo o que podemos fazer é dizer coisas gerais, e sujeitas a
confirmação posterior.
A Era de Planck acontece quando a escala do Universo fica da ordem do
comprimento de Planck 𝑙𝑃 , e a temperatura é da ordem de 1032 𝐾, extrema-
mente próximo da “origem”.
Uma destas questões da Era de Planck, certamente da maior importân-
cia, é da própria origem do Universo. É lugar comum no entendimento humano
que tudo o que existe não pode haver aparecido espontaneamente (ou seja,
precisa de algo ou alguém que o “crie”). Mas na Mecânica Quântica um sistema
pequeno (embora muito denso) das dimensões do Universo de Era de Planck
pode corresponder meramente a uma flutuação. Em outras palavras, o Universo
pode sim “aparecer” do nada desde que sua energia total e outras quantidades
sejam exatamente zero. As flutuações quânticas são inevitáveis em todo siste-
ma físico e permitem esta creatio ex-nihilo (ou criação do nada) sem invocar um
Criador. Alternativamente, é bem possível que o Universo atual tenha começa-
do com uma Era de Planck desde outro estado anterior, muito diferente e incog-
noscível na prática, e no qual a teoria quântica tem um papel fundamental [21].
Mas, na ausência de uma teoria quântica da Gravitação que funcione neste re-
gime extremo, é impossível ter certeza de algo. Na verdade, as chamadas Teorias
de Tudo (Supercordas e Teorias-M) pretendem fornecer não tão somente uma
teoria quântica da Gravitação, mas também da matéria e energia que conhece-
mos, e até da que não conhecemos (tal como a matéria escura e energia escura),
com a pretensão de construir a Física não de forma empírico-indutiva, mas de
forma hipotético-dedutiva começando por alguns princípios matemáticos e
físicos mínimos. Estes permitiriam achar a forma matemática da teoria e dela
A Cosmologia na sala de aula 185

deduzir tanto o que aconteceu na Era de Planck quanto o resto da evolução do


Universo até a Era atual. Não é pouca coisa...
Se efetivamente enxergássemos esse Universo na Era de Planck, prova-
velmente ele seria composto por flutuações espaço-temporais com as da Fig.
4.24. Nós não estamos acostumados a isto, nossas noções espaciais e do tempo
são antes contínuas e monotônicas no caso do tempo. No Universo de Planck
não haveria como “fixar” as coordenadas e nem mesmo impedir que a coorde-
nada tempo volte “para trás”. Esta é a chamada névoa quântica mostrada na figu-
ra 4.24. É importante ressaltar que não temos qualquer evidência direta da exis-
tência da Era de Planck, nem das suas características concretas, tão somente
ideias gerais que podem ser esboçadas.

Figura 4.24. A névoa quântica à escala de Planck. As flutuações nas coordenadas espaciais e no tempo
fariam impossível os eixos dos diagramas da Física Clássica aos quais estamos acostumados.

Contudo, podemos esclarecer que a pergunta recorrente: “o que havia


antes do 𝑡 = 0 ? “ pode não ter sentido físico. O “início” é um ponto singular do
espaço-tempo, não faz sentido se perguntar que havia antes. Como exemplo
deste tipo de situação, consideremos um urso polar que decide andar até o Pólo
Norte (Fig. 4.25). Ao longo do seu caminho vale se perguntar: o que há ao Norte
da sua posição?. Mas quando ele chegar aí, essa pergunta não faz mais sentodo.
Não há nada “ao Norte” do Pólo Norte porque este é um ponto singular das co-
ordenadas espaciais assim denominadas. O tempo “anterior” ao 𝑡 = 0 não exis-
tia mesmo (Santo Agostinho em Confissões já tinha percebido que o tempo não
186 A Cosmologia na sala de aula

existia antes do espaço). Caberia, nas cosmologias com rebote, onde o Universo
chega a uma escala mínima e depois expande de novo, uma avaliação quantita-
tiva do que havia “antes”, mas veremos no próximo Capítulo que a contração do
Universo no futuro não parece ser o caso.

Figura 4.25. Um urso polar que empreende uma viagem até o Pólo Norte da Terra. Há coisas “ao
Norte” da sua posição somente antes dele chegar a seu destino. Quando ele chegar e estiver para-
do no Pólo (marcado com a cruz), a pergunta “o que há ao Norte?” não faz mais sentido.

Referências
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Astrophysical Journal, 253:423-445, (1982) 15; A Survey of Galaxy Redshifts. IV. The Data, The Astrophysical Journal
Supplement Series 52, 89 (1983)
[2] Emilio E. Falco et al., The Updated Zwicky Catalog (UZC), Publications of the Astronomical Society of the Pacific
111, 438 (1999).
[3] M. J. Geller & J. P. Huchra, Mapping the Universe. Science 246, 897 (1989).
[4] https://www.illustris-project.org/
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seu papel na formação e estrutura da Terra. Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20200160 (2020)
A Cosmologia na sala de aula 187

[7] M. Tegmark et al., Cosmological parameters from SDSS and WMAP. Phys. Rev. D 69, 103501 (2004)
[8] K. Abazajian et al., The Second Data Release of the Sloan Digital Sky Survey . Astron. Jour. 128, 502 (2004)
[9] M. Rees, Apenas seis números (Ed. Rocco, São Paulo, 2000)
[10] R.A. Alpher e R.C. Herman, Evolution of the Universe. Nature 162, 774 (1948).
[11] G. F. Smoot e D. Scott, Cosmic Background Radiation. Review of Particle Physics. Eur. Phys. J. C 3, 127 (1998).
[12] The Planck Collaboration, Planck 2018 results VI. Cosmological parameters. A&A 641, A6 (2020).
[13] K. Horvath, P.S. Bretones e J.E. Horvath. Interdisciplinary study of the synthesis of the origin of the chemical ele-
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(2020)
[14] C. Grupen, Big Bang Nucleosynthesis. In: Astroparticle Physics. (Undergraduate Texts in Physics. Springer
2020)
[15] E.W. Kolb and M. Turner, The Early Universe (CRC Press, USA, 1994)
[16] J.A. Vázquez, L.E. Padilla and T. Matos, Inflationary Cosmology: From Theory to Observations, ar-
Xiv:1810.09934v2 (2020)
[17] A. Ijjas, P. Steinhardt and A. Loeb, https://www.scientificamerican.com/article/cosmic-inflation-theory-
faces-challenges/
[18] A.H. Guth et al. (2020) https://blogs.scientificamerican.com/observations/a-cosmic-controversy/
[19] M. Planck, “Über irreversible Strahlungsvorgänge”. Sitzungsberichte der Königlich Preußischen Akademie der
Wissenschaften zu Berlin 5, 440 (1899)
[20] G. Stoney, On The Physical Units of Nature, Phil. Mag. 11, 381 (1881)
[21] H. S. Virk, https://slideplayer.com/slide/12939760/
Capítulo 5

Freeman Dyson (1923-2020), físico inglês que foi um dos primeiros


a levar a sério o problema do futuro longínquo do Universo

A Cosmologia que vem e o futuro do


Universo

𝑧<0
190 A Cosmologia na sala de aula

■ Cosmologia no futuro próximo


Além da nova “janela” das ondas gravitacionais, existem perspectivas de
grande porte na Cosmologia relacionadas a uma nova geração de instrumentos
que ajudará a responder perguntas importantes. Da discussão do Capítulo anteri-
or vemos que o Universo era opaco à radiação (fótons) antes da Recombinação, e
assim existe um limite para “enxergar” os processos utilizando detectores do es-
pectro eletromagnético. Contudo, uma série de instrumentos de última geração
permitirá ir até onde a Física permite, para avaliar tanto processos na Recombina-
ção quanto a “Era Escura” entre a Recombinação e as primeiras galáxias e estrelas,
e obviamente como aconteceu que o Universo desenvolveu a estrutura.
As figuras abaixo mostram alguns destes instrumentos. O Atacama Lar-
ge Millimeter/Submillimeter Array (ALMA) que permite enxergar frequências bai-
xas, em ondas milimétricas e submilimétricas, típicas de regiões frias tais como
as nuvens moleculares é um destes instrumentos. Assim, os detalhes da forma-
ção estelar e planetária, entre outros sistemas de interesse, são observados com
elevada resolução angular e estão sendo compreendidos aos poucos [1].

Figura 5.1. Acima: o arranjo ALMA no deserto de Atacama, Chile, onde o céu quase nem contém vapor
d'água e permite estudos muito detalhados em ondas milimétricas e submilimétricas. Abaixo: um
exemplo de ciência possível, a detecção da formação de uma “Lua” (ampliada à direita) em torno do
exoplaneta jovem PDS 70c, similar a Júpiter, a 400 anos-luz de distância. Este tipo de observação mostra
a elevada resolução angular mencionada no texto. Créditos: ALMA (ESO /NAOJ/ NRAO)/ Benisty et al.
A Cosmologia na sala de aula 191

De fato, as primeiras galáxias e estrelas são um alvo preferencial para


um dos instrumentos fundamentais que acabou de ser lançado, o telescópio
James Webb (imagem no Apêndice 7), otimizado para detecções no infraverme-
lho. Os processos de formação das galáxias a 𝑧 ≥ 10 e outras questões tais
como a presença de poeira “primordial”, os núcleos ativos de galáxias (AGNs em
inglês) e sua história etc. serão estudados e ligados à evolução do Universo des-
crita no Capítulo 4. Outros instrumentos de alto desempenho tais como o Extre-
mely Large Telescope (ELT) complementarão esta visão dos primeiros objetos este-
lares e estruturas do Universo (Fig. 5.2).

Figura 5.2. O ELT (em construção) terá espelhos segmentados com diâmetro de quase 40 m. Deve
permitir detectar magnitudes limites extremas nas bandas ópticas durante 320 noites por ano.
Note-se a escala dos carros na parte inferior.

Os levantamentos em larga escala permitirão também o estudo dos li-


mites da estrutura, e uma resposta para os questionamentos ao Princípio Cos-
mológico. Paralelamente, há assinaturas da matéria escura e da energia escura
que podem revelar questões importantes: quando começou a Era da Energia
Escura exatamente? A equação de estado é igual à da constante cosmológica, ou
algo mais complexo? O Dark Energy Survey (DES) em andamento é um exemplo
deste tipo de iniciativas.
Do ponto de vista da teoria será necessário executar simulações de
grande porte e alta complexidade para compreender os resultados a ser obser-
vados e predizer efeitos novos. Possivelmente será necessária uma reviravolta
192 A Cosmologia na sala de aula

teórica para explicar o porque da matéria escura e energia escura de primeiros


princípios. De momento existem propostas várias, mas sem consenso algum.
Finalmente os sinais não-eletromagnéticos devem ter também um
papel fundamental na Cosmologia. O fundo cósmico de neutrinos parece ainda
indetectável, mas as ondas gravitacionais podem contribuir bastante para o
estudo do Universo primordial.
Uma das formas de estudar a Cosmologia passa pelo estudo de binárias
em distâncias cosmológicas. A operação dos interferômetros construídos conti-
nuará, mas já vimos que nas binárias, segundo a eq. (A4.8), a luminosidade emi-
tida em ondas gravitacionais é proporcional ao inverso do semi-eixo 𝑎 elevado à
quinta potência. Isto quer dizer que a maior parte dos sistemas binários existen-
te está longe da fusão final, emitindo em frequências baixas, já que pela Terceira
𝐺𝑀
Lei de Kepler Ω2 = 3 . O projeto eLISA
𝑎
Para a ter sucesso na detecção destes sistemas e eventos muito antes da
fusão final com um interferômetro, este precisará de uns braços extremamente
longos (porque a frequência de oscilação é inversamente proporcional ao com-
primento) e perturbações extremamente baixas. Assim, a melhor solução é a de
construir um interferômetro espacial. A Fig. 5.3 mostra o projeto eLISA (evolved Laser
Interferometer Space Antenna) em estudo pela Agência Espacial Europeia. eLISA é
um interferômetro com um satélite “mãe” e dois “filhos” em formação de triân-
gulo equilátero de ~1 milhão de quilômetros de lado orbitando a uns 50 milhões
de quilômetros da Terra que conseguiria detectar binárias com emissão em ≈
10−2 𝐻𝑧 através do monitoramento da mudança nas posições relativas das
espaçonaves com o tempo (Fig. 5.3). A precisão necessária para estas medidas
requer medir a posição de cada satélite com erro de ≈ 10−14 𝑐𝑚, o qual parece
razoável com a tecnologia disponível. O interferômetro espacial não levará espe-
lhos nos satélites “filhos”, já que o feixe laser seria fraco demais para ser refletido,
mas o sinal será retransmitido por cada um destes de forma ativa. Ao momento
os testes estão se realizando e a missão está planejada para operação efetiva
depois de 2030 [2]. Outras missões e experimentos que visam medir as frequên-
cias mais baixas são mostrados na Fig. 5.4.
A Cosmologia na sala de aula 193

Figura 5.3. A órbita prevista do interferômetro eLISA para minimizar perturbações solares e obter
uma cobertura ampla do céu.

Figura 5.4. Curvas de sensibilidade obtidas pelo interferômetro LIGO e algumas das projetadas
(eLISA em roxo). O primeiro evento anunciado, GW150914, é a estrela vermelha.
194 A Cosmologia na sala de aula

Há uma série de fenômenos cosmológicos que podem ter deixado sua


marca na forma de ondas gravitacionais, além das fusões de buracos negros de ≈
30 𝑀ʘ mencionadas no Apêndice 4. As fusões destes buracos binários são, em si
próprias, de grande interesse, porque os sinais são “sirenes padrão” (analogamente
às supernovas Ia, mas com “som” em frequências audíveis). Assim, uma amostra de
~100-200 fusões permitirá calcular a constante de Hubble com erros de ~1% no
futuro próximo.
Como vimos no final do Capítulo 4, a gravitação fica muito mais fraca que o
resto das interações elementares muito rapidamente. Espera-se que este desaco-
plamento produza um Fundo de Ondas Gravitacionais “análogo” ao FCR, mas mui-
tíssimo mais difícil de detectar. A frequência das ondas também sofreu o redshift
mostrado na Fig. 4.12 , e resultaria detectável com a rede Square Kilometer Array (SKA,
Fig. 5.5) dependendo da sua amplitude. Outros eventos vários podem aparecer nos
detectores, também deslocados para frequências muito baixas (miliHz ou menos)
pela expansão, que dependem da existência de defeitos topológicos, mini-buracos
negros primordiais e outros objetos e processos ainda não confirmados. Finalmente
a Inflação possui uma assinatura bem definida: os modelos mais simples geram
perturbações gaussianas, e as perturbações que não seguem esta forma são muito
dependentes do modelo de Inflação. Assim, as ondas gravitacionais cosmológicas
podem ser pensadas como um “filtro” para saber se os modelos são viáveis. Natu-
ralmente há outras possibilidades para o Universo muito primitivo que dispensam a
Inflação, e os dados também serão utilizados para estudá-las.

Figura 5.5. O arranjo de 1 𝑘𝑚2 SKA em construção na Austrália, com a participação de pesquisa-
dores de 10 países e permitirá uma grande resolução angular em ondas de rádio.
A Cosmologia na sala de aula 195

■ O futuro do Universo
Toda a evidência disponível e as ideias que explicam o Universo como o
maior sistema físico têm sido apresentadas nos Capítulos anteriores. Vivemos
num Universo evoluído, “frio” (a temperatura média é de ~ 3 𝐾), cheio de estru-
turas (galáxias, aglomerados de galáxias etc.) onde existe ainda 10-15% de gás
disponível para formar estrelas, e onde estes e outros processos (jatos por exem-
plo) geram e injetam energia que por sua vez modifica as vizinhanças. Temos
provas diretas de todas estas afirmações, e astrônomos trabalhando para en-
tender como funciona cada um destes elementos e como se relacionam entre si.
É assim inevitável a tentação de tentar enxergar que futuro tem o Uni-
verso [3, 4], já que se sua evolução desde o 𝑡 = 0 até hoje é cognoscível, tam-
bém podemos avaliar o que acontecerá depois. Mas há um perigo aqui: para isto
devemos supor que não haverá elementos novos de importância, isto é, que
“todas as cartas estão na mesa”. A descoberta da expansão acelerada há meros
25 anos nos adverte contra um excesso de confiança. Mas com esta ressalva,
podemos discutir o Universo futuro usando o que é conhecido hoje e o marco
conceitual e físico desenvolvido.
A extrapolação do que sabemos hoje do Universo indica que virão aí qua-
tro Eras diferentes em sucessão. Cada uma delas se caracteriza por algum fato
marcante que ajuda na sua denominação, e que descreveremos logo a seguir.

Era das estrelas

As estrelas são a fonte de energia fundamental do Universo há bastante


tempo. A denominação da Era das estrelas se refere assim, não à dinâmica do fator
de escala, mas a esta característica de produção de energia. A Era das estrelas está
superposta à Era da Matéria e a Era da Energia Escura, já que a transição da primei-
ra para a segunda aconteceu em 𝑧 ≤ 1 e as estrelas aparecem no começo da
formação da estrutura em 𝑧 ≈ 10.
A teoria da Evolução Estelar mostra que o tempo de vida das estrelas
quando realizam a fusão de hidrogênio em hélio, o principal e mais longo estágio
da vida estelar, conhecido como Sequência Principal, é 𝜏𝑆𝑃 ∝ 1/𝑀3 , com 𝑀 a
massa da estrela. As estrelas um pouco menores que o Sol nem saíram da Se-
quência Principal num tempo de Hubble. Portanto, o mínimo da duração da Era
1
das estrelas está determinado pela estrela de menor massa (≈ de massa solar).
10
196 A Cosmologia na sala de aula

Levando em conta que algumas destas estrelas estão se formando hoje, vemos
que a duração deve ser um fator 1000 vezes a idade atual do Universo. Este tempo
é longo o suficiente quanto para pensar que o gás remanescente nas galáxias será
finalmente consumido pela formação estelar.
Como consequência, todos os bárions do Universo estarão presos nas es-
trelas, e estas quando completarem seus ciclos de vida produzirão anãs brancas
(se tinham até ~ 8 𝑀ʘ na Sequência Principal) ou estrelas de nêutrons/buracos
negros (se excedem esse valor). Desta forma, terá início a Era da degenerescência.

Era da degenerescência

O fato dos elétrons nas anãs brancas e dos nêutrons na estrelas de nêu-
trons estarem no regime quântico ou degenerado, dá o nome a esta Era cósmica
(os buracos negros não precisam de matéria que os sustente, são “gravitação
pura”). Com o Universo composto por estes remanescentes e sem gás, as galá-
xias começam a “desmanchar” por efeito dos processos de relaxação dinâmica.
Este último processo se refere ao encontro de duas estrelas, nos quais geralmen-
te uma adquire uma velocidade alta, de escape da galáxia, enquanto a outra é
freada e acaba sendo capturada pelo buraco negro supermassivo do centro.
Assim, o Universo vira um “gás” de estrelas degeneradas que escapam em ≈
1020 𝑎𝑛𝑜𝑠, e um número enorme de buracos negros de bilhões de massas
solares (Fig. 5.6).

Figura 5.6. As estruturas de galáxias se dissolvem em um “gás” de estrelas degeneradas e buracos


negros gigantes em ≈ 1020 𝑎𝑛𝑜𝑠.

Em tempos ainda mais longos, da ordem de 𝜏 > 1033 𝑎𝑛𝑜𝑠, os nêu-


trons e prótons das estrelas do “gás” podem ainda decair, desmanchando em
léptons segundo

𝑝 → 𝑒+ + 𝜋0 . (5.1)
A Cosmologia na sala de aula 197

Este processo de decaimento do próton viola a conservação do número


de bárions, e somente pode acontecer se a uma escala de energia muito alta
(possivelmente 1015 𝐺𝑒𝑉 ou maior), houver uma unificação que mistura bá-
rions e léptons, permitindo este processo. Por um bom tempo, esta injeção de
energia nos interiores dos remanescentes degenerados os manterá “quentes”, e
além disso a fusão de anãs brancas e outros processos modificará a quantidade
de remanescentes originais, mas não discutiremos aqui esta era “intermediária”
de longa duração.
Já houve um bom número de experimentos que procurou evidência em
tanques de água deste decaimento, sem resultados positivos. Assim, sabemos
que para energias baixas o processo é muito improvável, mas é possível que se
houver suficiente tempo os prótons e nêutrons poderiam decair. Por volta de
1037 𝑎𝑛𝑜𝑠 todos os bárions do Universo teriam decaído, ou sumido dentro dos
buracos negros gigantes.

Era dos buracos negros

Quando os bárions não mais existam no Universo, os únicos objetos


com estrutura serão os buracos negros. Porém, nem os buracos negros estão
isentos de decair. Em um trabalho célebre [4], S. Hawking demonstrou que os
buracos negros evaporam pela emissão de radiação em um tempo que é inver-
samente proporcional a sua massa. Como estamos falando de massas gigantes-
cas, este processo do “sumiço” dos buracos negros leva um tempo ainda mais
inimaginável, ≈ 10100 𝑎𝑛𝑜𝑠. No entanto, o Universo continua se expandindo
e esfriando, e os fótons que surgem da evaporação dos buracos negros são con-
tinuamente deslocados para energias insignificantes, sendo a única coisa que
sobra no Universo a menos da energia do vácuo Λ (da qual nem sabemos se
pode decair...).

Era do Big Rip

O fim deste processo de expansão acelerada é violento e fatal: a acelera-


ção da expansão produz um fenômeno incrível: o horizonte cosmológico defini-
do no começo do Capítulo 3 se aproxima de nós cada vez mais, e perdemos conta-
to causal com o resto do Universo, e nos instantes “finais” uma singularidade
198 A Cosmologia na sala de aula

chamada de Big Rip (ou Grande Ruptura em inglês) acabará com todo o Universo
conhecido. Não temos ideia do que segue, se é que algo segue.

■ Considerações finais
A história do “fim” do Universo pode sofrer alterações se descobrirmos
fatos relevantes, ou mesmo novos ingredientes na “sopa cósmica”. Já dissemos
que até 1997 ninguém duvidava que a fração da densidade total em termos da
densidade crítica Ω𝑡𝑜𝑡 tinha um valor ≈ 0,2, mas a descoberta da expansão
acelerada e as medidas do FRC mostraram em pouco tempo que Ω𝑡𝑜𝑡 ≅ 1 [5].
Assim, o Universo não é “aberto”, seguramente também não é “fechado” e seu
valor corresponde à fronteira crítica, a curvatura é próxima de zero e se a relação
das energias se mantém, seguirá expandindo-se aceleradamente até o Big Rip.
Sem saber disto, mas pensando no que aconteceria com um Universo
que expandisse eternamente, Freeman Dyson publicou em 1979 um trabalho
muito original [6] no qual mostrou que as civilizações poderiam sobreviver e
trocar informação num Universo arbitrariamente frio, a caminho da “morte
térmica” (por isto Dyson é considerado um “precursor” deste tema). Há mais
para fazer neste campo, incluindo o papel dos Universos paralelos (se houver), a
Cosmologia de Branas e outras ideias radicais. O nosso objetivo aqui foi o de
pintar um panorama do que hoje sabemos para fins de exposição em sala de
aula, fazendo da Cosmologia, uma das mais antigas questões da Humanidade,
tema presente na Educação contemporânea.

Referências
[1] J.E. Horvath, As estrelas na sala de aula (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2019)
[2] A. Blaut, Parameter estimation accuracies of Galactic binaries with eLISA, Astropart. Phys. 101, 17 (2018)
[3] F. Adams and G. Laughin, A Dying Universe: The Long Term Fate and Evolution of Astrophysical Objects, Reviews of
Modern Physics 69, 337 (1997)
[4] S. Hawking, Black hole explosions? Nature 248, 30 (1974)
[5] J.E. Horvath et al., Cosmologia Física (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2006)
[6] F. Dyson, Time without end: Physics and Biology in an open Universe, Reviews of Modern
Physics 51, 447 (1979)
Apêndices
Apêndice A

Abdus Salam, Steven Weinberg e Sheldon Glashow, três


figuras fundamentais para a construção do Modelo Padrão.

O Modelo Padrão das partículas


elementares
Na Física clássica estamos acostumados a pensar em termos de “forças”.
Na Mecânica pensamos na força entre dois objetos macroscópicos; por exem-
plo, a força da gravidade entre duas massas 𝑚1 e 𝑚2 que adota a conhecida
𝐺𝑚 𝑚
forma 𝐹 = − 12 2. Na Química é frequente a utilização de conceitos tais
𝑟
como forças interatômicas, forças intermoleculares, etc., que são em última instân-
cia de origem eletromagnética. Muitas destas forças são deriváveis de um poten-
cial (função escalar), e expressam como elementos de matéria se atraem ou re-
pelem. Estas imagens têm um fundamento clássico, mas uma pergunta impor-
tante é: o que entendemos por interação ao nível mais elementar? Em outras
palavras, o que acontece entre as próprias partículas, indo além do conceito clássi-
co mais aplicável a “pedaços” macroscópicos de matéria.
No mundo microscópico das partículas elementares as ideias que te-
mos a respeito da matéria macroscópica falham de forma ostensiva. Obviamen-
te não há nada de “errado” com a Física clássica, já que há vários séculos que o
202 A Cosmologia na sala de aula

mundo físico é explorado utilizando-a com sucesso. Mas é exagerado pensar


que os conceitos desenvolvidos no mundo clássico poderão ser aplicados no
mundo das partículas elementares sem mais. Esta extrapolação é um dos moti-
vos de inúmeros problemas e “paradoxos” que pairam até hoje na descrição do
mundo elementar. A Mecânica Quântica nos começos do século 20 resolveu mui-
tas destas contradições sem realmente esclarecer sua natureza exata, já que a
chamada interpretação do formalismo quântico requerida para que faça sentido
não é em absoluto satisfatória, e ainda é motivo de discussão e pesquisa. Esta
interpretação é consensual e muito clara em outros casos (por exemplo, a Mecâ-
nica clássica), onde o significado dos conceitos relevantes e seu papel na descri-
ção física não tem ambiguidades, mas não é o caso do formalismo quântico.
Uma discussão deste problema nos levaria muito longe do objetivo aqui pre-
tendido, e somente mencionamos esta situação por completeza (vide as Refs. [1]
para uma discussão aprofundada destes problemas).
Quando aplicadas as ideias quânticas ao mundo real, a construção de
um quadro coerente do Universo físico levou a reconhecer a existência de quatro
interações elementares: o eletromagnetismo, a gravitação (ainda sem uma
versão quântica apropriada), as interações fortes (responsáveis pela ligação do
núcleo) e as interações fracas (responsáveis pelo decaimento beta e outros pro-
cessos que envolvem neutrinos). Devido a que uma mesma partícula pode ter
mais de uma “carga”, pode participar em várias destas interações, por exemplo,
os quarks dentro de um próton têm carga elétrica, mas também carga forte
(chamada de “cor”) e fraca. Assim, são capazes de interagir trocando fótons, glú-
ons e bósons massivos. Um resumo das interações fundamentais e suas princi-
pais características se mostra na Tabela 1 [2].
Tabela 1. Partículas elementares, que formam o Modelo Padrão da física de partículas. Os férmions
são as partículas que constituem a matéria, enquanto os bósons são responsáveis pelas interações
entre elas, cada um associado a interações específicas, como apontado na tabela. As massas indi-
cadas são as de repouso. Cada partícula possui sua antipartícula, com igual massa mas carga elétri-
ca oposta, completando, assim, a descrição das partículas elementares como entendemos hoje.

FÉRMIONS
Partícula Símbolo Massa (MeV/c2) Carga elétrica
Neutrino do elétron νe <1 0
Elétron e- 0,511 -1
Neutrino do múon νμ < 0,17 0
Múon μ 105,66 -1
A Cosmologia na sala de aula 203

Neutrino do tau ντ < 18,2 0


Tau τ 1,7768×103 -1
Quark Up u ~2,2 2/3
Quark Down d ~4,7 -1/3
Quark Charm c ~1,28×103 2/3
Quark Estranho s ~96 -1/3
Quark Top t ~173,1×103 2/3
Quark Bottom b 4,18×103 -1/3

BÓSONS
Partícula Massa Força Alcance Força Carga Observações
(MeV/c2) relativa elétrica
à força
forte
Gráviton 0 Gravidade Infinito 10-38 0 Conjectura
Fóton 0 Eletromag- Infinito 10-2 0 Observado dire-
netismo tamente
W+ ~80,39 Fraca Menor 10-13 +1 Observados dire-
W- ~80,39 que -1 tamente
Z0 ~91,19 10-16 cm 0
Gluon 0 Forte Menor 1 0 Permanentemente
que confinado
10-13 cm
Higgs O bóson de Higgs, com uma massa de ~124.97GeV e detectado em
2012, provê massa inercial para as demais partículas.

Referências
[1] O. Pessoa Jr., Conceitos de Física Quântica, (V. 1 e V.2). (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2005)
(vide o curso online https://opessoa.fflch.usp.br/FMQ-18)
[2] M.C. Abdalla, O discreto charme das partículas elementares. (Ed. Livraria da Física, São Paulo,
2016)
Apêndice B

Escalas de comprimento no Universo

Figura B1. O conteúdo de nosso Universo, desde os menores objetos à escala de Planck até o limite do
quasar mais distante observado, está contido neste diagrama ilustrado com exemplos concretos
(reproduzido de J.E. Horvath et al., Cosmologia Física (Ed. Livraria da Física, São Paulo, 2006).
Apêndice C

Brandon Carter (em pé, à direita) junto a Stephen Hawking em foto


da época das primeiras formulações do Princípio Antrópico.

O Princípio Antrópico

■ O que é o Princípio Antrópico?


A Cosmologia do século XX se desenvolveu em boa medida utilizando
como fundamento axiomático o chamado Princípio Cosmológico, segundo o qual
o Universo é o mesmo em qualquer direção que olharmos e não possui um “cen-
tro” nem localizações privilegiadas (tecnicamente, é dito que o Universo é espa-
cialmente homogêneo e isotrópico. Note-se que na direção temporal há sim um
“tempo privilegiado”, a origem 𝑡 = 0. A isotropia e homogeneidade se referem
à parte espacial). Esta afirmação é uma extrapolação do Universo observado
somada a uma hipótese a respeito das características gerais que parece razoável,
mas que decorre de bases metafísicas (vide, por exemplo, [1]). Sempre há nas
208 A Cosmologia na sala de aula

ciências elementos não totalmente justificáveis que são adotados pela sua sim-
plicidade, elegância e outros critérios indemonstráveis (“Eu não entendo por quê
é dito que uma teoria é considerada bela se não for verdadeira”, diria Niels Bohr se
opondo a este tipo de considerações).
Uma destas considerações desenvolvida no século XX é o chamado
Princípio Antrópico, ideia que vincula a evolução do Universo (mais precisamente,
da Física que a determina) com a presença de vida (humana ou não) [2]. Descre-
veremos agora os fundamentos deste Princípio e sua relação com a Cosmologia
que emerge da sua validade.
A origem deste tipo de argumento começou com a observação de A.
Eddington, retomada e elaborada pouco mais tarde por P. Dirac, de que existem
relações entre as forças da Natureza que se expressam por grandes números
adimensionais. Por exemplo, a razão da forca gravitacional para a força eletro-
magnética entre um próton e um elétron é

𝑒2
≈ 1040 . (C1)
𝐺 𝑚𝑝 𝑚𝑒

Eddington pensava que uma teoria abrangente das interações da Natu-


reza faria que esta e outras relações ficassem explicadas, já que na sua visão não
poderiam se dever ao acaso. Em 1937 P. Dirac elaborou esta questão na sua hipó-
tese dos grandes números. A Cosmologia do Universo em expansão já havia sido
formulada, e Dirac observou que o quociente da idade do Universo ao raio de
um elétron e o número de prótons no Universo observado resultam em núme-
ros similares
𝑐𝑡
≈ 1040 , (C2)
𝑒 2 /𝑚𝑒 𝑐 2

𝑐 3𝑡
≈ 1080 . (C3)
𝐺 𝑚𝑝

A hipótese de Dirac é que dois grandes números adimensionais quaisquer


da Natureza estão ligados por relações matemáticas simples. Agora bem, como a
idade do Universo cresce, a hipótese de Dirac implica que a constante 𝐺 e outras
quantidades também deveriam ser funções do tempo. Esta hipótese foi contestada
na base dos registros paleontológicos que mostram a existência de vida nos oceanos
há ~ bilhões de anos: uma constante gravitacional muito diferente da atual impedi-
A Cosmologia na sala de aula 209

ria que a vida existisse como registrado. Mas estava aberta a porta para vincular a
Cosmologia aceita com suas consequências para a vida biológica.

■ A formulação do Princípio Antrópico


Depois da discussão da hipótese de Dirac, o interesse pela relação entre
as constantes fundamentais e a vida biológica ressurgiram, nos trabalhos de
Withrow (1955), sugerindo que as condições na Terra precisavam ser tais que a
emergência da humanidade fosse possível. Uma formulação mais abrangente e
influente se deve a R. Dicke [3], quem explicitamente relaciona os “grandes nú-
meros” com fatores biológicos. Em particular, Dicke formula a noção que a idade
do Universo não pode ser arbitrariamente grande ou pequena, estabelece a
idade das estrelas mais massivas como limite inferior para a biologia emergir, já
que esta precisa de carbono que não é produzido no Big Bang (de forma memo-
rável, Dicke escreve que “é bem sabido que o carbono é necessário para produzir
físicos...”) e desfaz a ideia de que os “grandes números” mudam com o tempo
cósmico. Collins e Hawking (1973) utilizam um raciocínio “antrópico” para expli-
car por quê o Universo é isotrópico: segundo eles somente alguns modelos do
Universo permitem a existência de observadores [4]
Pouco tempo depois, e no trabalho de Brandon Carter [5] o Princípio An-
trópico recebe seu nome atual e é explicitado e discutido com relação à Cosmolo-
gia relativística. Carter discute em detalhe duas formas diferentes, hoje conheci-
das como o Princípio Antrópico “fraco” e o “forte”, com as seguintes definições

Fraco: nossa localização no Universo é necessariamente privilegiada pa-


ra ser compatível com a nossa presença como observadores.

Forte: a constituição física do Universo (as suas constantes fundamen-


tais) devem permitir a emergência de vida em algum momento da sua
evolução.

Carter está propositalmente reagindo ao que ele considera “um dogma


excessivo”, o Princípio Copernicano. Contrariamente a este último, Carter obser-
va que precisamos ter algum privilégio na localização (e no tempo) para discu-
tirmos o Universo como observadores. Note-se que o Princípio “fraco” é uma
afirmação local, e o “forte” uma global a respeito do Universo. Posteriormente,
Carter refina sua posição e afirma que nunca quis propor um antropocentrismo
“selvagem”, mas tão somente destacar que há um grau de “privilégio” para es-
210 A Cosmologia na sala de aula

tarmos aqui discutindo o Cosmos. Também reafirma que o Princípio se aplica a


qualquer civilização, não somente à humanidade.
Esta formulação permitiu a Carr e Rees (1979) discutir como a vida no
Universo depende criticamente das constantes fundamentais: variações peque-
nas na constante da gravitação e outras não permitiriam, por exemplo, que hou-
vesse estrelas no Universo e os observadores (nós) não poderiam aparecer [6]. A
lista de variações é grande, e a conclusão é que o Universo é incrivelmente “sin-
tonizado” para abrigar vida. De fato, pouco tempo depois, S. Weinberg publicou
[7] o que até hoje é uma das predições mais interessantes do Princípio Antrópi-
co: se a constante cosmológica Λ fosse grande demais, o Universo não teria co-
mo formar estrutura. Assim, o limite superior dela é próximo ao valor “observa-
do”, não Λ ≈ 10120 como indicado pelos cálculos mais simples da Teoria de
Campos [8].
O livro de Barrow e Tipler [2] contribuiu muito para a popularização e
adoção do Princípio Antrópico, até mesmo para sua reformulação nos termos
seguintes:

Fraco: os valores observados das constantes físicas e quantidades cos-


mológicas não são igualmente prováveis, estão restritos à faixa que
permita locais no Universo onde a vida baseada no carbono possa se de-
senvolver, num Universo que é velho o suficiente quanto para ter pro-
duzido este elemento.

Forte: o Universo deve ter propriedades que possibilitem a emergência


de vida em algum momento da sua evolução.

A discussão em torno desta reformulação e o valor real do Princípio An-


trópico foi e continua sendo grande, e a confusão também. A versão de Carter do
Princípio Antrópico “forte” parece bastante com a versão “fraca” de Barrow e
Tipler. Para muitos, isto já é mesmo excessivo, mas é óbvio que também exis-
tem extensões muito mais “fortes” ainda, onde as coisas se invertem e é afirma-
do que o Universo foi “desenhado” para que a humanidade exista. Contudo, e à
margem destas exagerações, devemos dizer que o Princípio Antrópico sempre
levou a respostas bem razoáveis e novas quando aplicado criteriosamente aos
problemas do Cosmos.
Assim, e embora não tenha o mesmo status que, por exemplo, o Princí-
pio da Conservação da Energia, existe um lugar importante para ele no contexto
cosmológico e muitas pesquisas são norteadas por ele.
A Cosmologia na sala de aula 211

Referências
[1] R. de Andrade Martins, O Universo: Teorias Sobre sua Origem e Evolução (Livraria da Física, São Paulo, 2012)
[2] J.D. Barrow and F. Tipler, The Anthropic Cosmological Principle, (Oxford University Press, UK, 1986)
[3] R. H. Dicke, Dirac's Cosmology and Mach's Principle. Nature 192, 440 (1961)
[4] C. B. Collins and S. W. Hawking, Why is the universe isotropic?, Astrophys. J. 180, 317 (1973)
[5] B. Carter, Large Number Coincidences and the Anthropic Principle in Cosmology, in: Confrontation of Cosmological
Theories with Observational Data, M. S. Longair, ed. (Dordrecht: Reidel, 1974), p. 291
[6] B.J. Carr and M.J. Rees, The anthropic principle and the structure of the physical world, Nature 278, 605 (1979)
[7] S. Weinberg, Anthropic Bound on the Cosmological Constant. Phys. Rev. Lett. 59, 2607 (1987)
[8] S.E. Rugh and H. Zinkernagle, The quantum vacuum and the Cosmological Constant problem, hep-th/0012253v1
(2000)
Apêndice D

Dois buracos negros fusionam em distâncias cosmológicas


e emitem ondas gravitacionais detectáveis na Terra
(Créditos: SciTechDaily February 9, 2020)

Ondas gravitacionais
■ As ondas gravitacionais são uma predição da teoria
da Relatividade Geral
Os cursos de Física tratam da propagação de ondas em fluidos, eletro-
magnéticas e outros. De forma muito geral, uma onda é uma solução da cha-
mada equação da onda, e existem inúmeras possibilidades da física dos fenôme-
nos ondulatórios. Ou seja, a equação da onda pode conter uma variedade de
termos, mas os principais são a derivada segunda com respeito do tempo e a
derivada segunda respeito de alguma dimensão espacial. A equação da onda
trata de forma igualitária as coordenadas espaciais e temporal, e na sua forma
mais simples resulta
214 A Cosmologia na sala de aula

𝜕2 1 𝜕2
( 2 − ) 𝐴=0. (D1)
𝜕𝑡 𝑣 2 𝜕𝑥 2

A onda de amplitude 𝐴 da eq. (D1) se propaga com velocidade 𝑣.


Um caso bem estudado na Física e na Engenharia é o das ondas eletro-
magnéticas. Os campos magnético 𝐵 ⃗ e elétrico 𝐸⃗ cumprem equações de onda
em vácuo e se propagam com velocidade (da luz) 𝑐, desde que produzidos por
cargas elétricas aceleradas.
No entanto, na teoria da gravitação, a fonte do campo gravitacional é a
massa-energia em aceleração (ou seja, a massa ou energia cumpre o papel da
“carga” do campo gravitacional). Mas há algumas diferenças muito importantes
com as ondas eletromagnéticas: enquanto os campos elétrico e magnético são
vetores, com uma direção e um módulo, a gravitação é descrita por um objeto
mais complexo chamado de tensor, e que pode ser representado por uma matriz
em um determinado sistema de coordenadas (de fato, os escalares são também
tensores de grau 0, e os vetores, tensores de grau 1...). Além disso, fisicamente
sabemos que duas cargas elétricas opostas formam um dipolo, mas o dipolo não
existe na gravitação: o sinal da massa (ou energia) é único, e sempre podemos
passar ao sistema de centro de massa para anular as diferenças. Não pode assim
haver radiação dipolar na gravitação, e o modo mais baixo deve corresponder
ao seguinte, o quadrupolo [1].
A forma usual de escrever uma equação de onda para a gravitação é a
de supor que existe uma pequena perturbação ℎ que descreve as deformações
do espaço-tempo em cima de um espaço-tempo fixo.
De forma análoga ao problema eletromagnético, podemos substituir
nas equações de Einstein e de forma geral, adotando a direção do eixo 𝑥, obter a
propagação da perturbação ℎ como

𝜕2 1 𝜕2
( 2 − ) ℎ=0 (D2)
𝜕𝑡 𝑣 2 𝜕𝑥 2

que pode ser decomposta geometricamente em duas formas ou modos como


mostra a Fig. D1.
A Cosmologia na sala de aula 215

Fig. D1. Os modos de polarização chamados de ℎ+ e ℎ× . A direção de propagação (eixo 𝑥) é per-


pendicular ao plano da página. A deformação é tal que o modo (+), à esquerda, “puxa” a matéria na
direção vertical enquanto a comprime horizontalmente, e o modo (×) faz o mesmo, mas desloca-
do de 45° quando a onda passa. Qualquer deformação geral pode ser decomposta nestes dois
modos e as amplitudes ℎ+ e ℎ× determinadas.

Em 1918 Einstein seguiu este caminho do cálculo da evolução da pertur-


bação ℎ mencionado acima e conseguiu mostrar que esta resulta proporcional à
segunda derivada temporal do momento quadrupolar Q de uma distribuição de
massa acelerada, ou seja ℎ𝜇𝜈 ∝ 𝑄̈ . Assim, a potência emitida (luminosidade)
em ondas gravitacionais é proporcional à terceira derivada de Q

⃛,
𝐿𝐺𝑊 ∝ 𝑄 (D3)

mas ele próprio duvidou por vários anos a respeito da realidade deste resultado. A
discussão se estendeu por mais de 30 anos, até que foi mostrado que as ondas
realmente deviam existir, que não eram um resultado fictício sem realidade física.
Podemos supor que os movimentos na fonte que levam a emissão das
ondas acontecem em uma escala de tempo característica 𝜏, uma medida de
quanto leva uma massa para se deslocar dentro do sistema. Por outro lado, o
momento quadrupolar é aproximadamente o produto da massa M pelo qua-
drado da dimensão do sistema 𝑅2 . Substituindo

𝑀𝑅2 𝑀𝑣 2 𝐸𝑁𝐸
⃛ ≈
𝑄 ≈ ≈ , (D4)
𝜏3 𝜏 𝜏
216 A Cosmologia na sala de aula

onde 𝑣 é a velocidade das massas em movimento e 𝐸𝑁𝐸 é a energia que existe


na parte não esférica deste. Como para um sistema auto-gravitante temos ainda
2𝜋
que 𝜏 ≈ √𝑅3 ⁄𝐺𝑀 , e com ele uma frequência característica 𝜈 = = 2𝜋𝑓,
𝜏
a luminosidade produzida é

𝐺4 𝑀 5 𝐺 𝑀 2 𝑐5 𝑅 2 𝑣 6
𝐿𝐺𝑊 ~ ( ) ~ ( ) 𝑣6 ~ ( 𝑆) ( ) , (D5)
𝑐5 𝑅 𝑐5 𝑅 𝐺 𝑅 𝑐

2𝐺𝑀
onde 𝑅𝑆 = é o chamado raio de Schwarzschild. Desta fórmula resulta evi-
𝑐2
dente que as maiores luminosidades serão produzidas por objetos compactos,
nos quais 𝑅 ≈ 𝑅𝑆 se movimentando com velocidades relativísticas (𝑣 ≈ 𝑐).
Devemos agora estudar o tipo de eventos reais que podem ser candidatos à
detecção.

■ Que fenômenos produzem a radiação gravitacional?


Tendo estimado a luminosidade em ondas gravitacionais de forma
geral, é importante determinar quais sistemas e eventos são os mais frequentes,
e também a amplitude das perturbações a serem detectadas para um evento a
uma distância 𝑟. O valor desta amplitude é da ordem de

𝐺 𝐸𝑁𝐸 𝐺 𝜖𝐸𝐾
ℎ ≈ ≈ , (D6)
𝑐4 𝑟 𝑐4 𝑟

com 𝜖 a fração da energia cinética 𝐸𝐾 emitida em ondas. Inserindo valores típi-


cos, temos

𝐸𝐺𝑊 1/2 1 𝑘𝐻𝑧 𝜏 −1/2 15 𝑀𝑝𝑐


ℎ ≈ 10−22 ( 2) ( )( ) ( ). (D7)
10−4 𝑀 ʘ𝑐 𝑓𝐺𝑊 1 𝑚𝑠 𝑟

A escolha da distância 𝐷 = 15 𝑀𝑝𝑐 corresponde ao valor central para


o aglomerado de galáxias de Virgo, onde ao menos 10 000 galáxias estão localiza-
das. Este conjunto de galáxias deveria dar origem a ~ dezenas de eventos por
ano, ao menos na visão original dos pesquisadores que começaram a pensar em
detectar as ondas [2].
A Cosmologia na sala de aula 217

A estimativa da eq.(D7), no entanto, supõe implicitamente um “surto”


de emissão de curta duração (~ 𝑚𝑠) e frequência característica de ~ 1 𝑘𝐻𝑧 .
Mas é também possível considerar fontes de emissão contínua, com frequências
que mudem lentamente com o tempo. De fato, todas as binárias compactas
conhecidas são deste tipo, já que a órbita produz um momento quadrupolar
variável. Consideremos um sistema binário genérico com massas 𝑀1 e 𝑀2 e
semi-eixo 𝑎, tal como mostrado na Fig D2.

Fig. D2. Uma binária compacta genérica com massas 𝑀1 e 𝑀2 e semi-eixo 𝑎 = 𝑎1 + 𝑎2 .

A frequência da órbita Ω pode ser determinada das medidas e uso da


𝐺𝑀
Terceira Lei de Kepler Ω2 = 3 . Já a frequência da onda gravitacional resulta o
𝑎
dobro da frequência orbital. Desta forma, a emissão no decorrer do tempo da
radiação gravitacional faz a órbita encolher a uma taxa facilmente calculável.
3 𝑎̇
Como a freqüência orbital aumenta segundo , o tempo de coalescência da
2𝑎
binária a partir de um semi-eixo inicial 𝑎0 é

5 𝑐5 𝑎04
𝜏𝐶 = . (D8)
256 𝐺3 𝜇𝑀4

Finalmente, usando as expressões anteriores, a amplitude adimensio-


nal das ondas produzidas resulta

𝑀 2/3 𝜇 𝑓𝐺𝑊 2/3 15 𝑀𝑝𝑐


ℎ ≈ 5 × 10−22 ( ) ( )( ) ( ), (D9)
2.8 𝑀ʘ 0.7 𝑀ʘ 100 𝐻𝑧 𝑟
218 A Cosmologia na sala de aula

onde os números correspondem a uma binária simétrica de duas massas de


1.4 𝑀ʘ .
Vemos que uma binária localizada no aglomerado de Virgo produziria
um sinal comparável ao surto da eq. (D7). Mas como algumas binárias muito
mais próximas são conhecidas, a possibilidade de detectá-las, pelo menos indi-
retamente, foi imediatamente considerada medindo o decaimento da órbita
pela emissão das ondas gravitacionais.
Em 1974, uma época na qual a pesquisa de objetos relativísticos ganhou
um enorme impulso, J. Taylor e R. Hulse descobriram um sistema binário muito
particular: enquanto uma das componentes é um pulsar, a outra também é um
objeto compacto de massa similar. Embora não são detectadas pulsações da
companheira, ela foi finalmente identificada como uma segunda estrela de
nêutrons. Isto foi possível porque a binária foi observada com precisão, por
exemplo, os pulsos atrasam ou adiantam dependendo do momento em que o
pulsar se afasta ou aproxima ao observador, a velocidade radial também é me-
dida e resulta possível determinar a geometria do sistema. A órbita é bastante
excêntrica e inclinada em ~45o com respeito à linha de visada. O pulsar binário
é assim um “relógio” com precisão enorme em órbita em torno de uma compa-
nheira com um campo gravitacional forte, representado na Fig. D3 [3].

Fig. D3. Uma representação pictórica do PSR 1913+16 e sua companheira, uma segunda estrela de
nêutrons. Os parâmetros da órbita inferidos estão indicados em amarelo.

É imediato o cálculo da radiação gravitacional do PSR 1913+16, emitida


com frequência 𝑓𝐺𝑊 = 1.1 × 10−5 𝐻𝑧 e amplitude ℎ ~ 10−23 . Estes valo-
res são muito baixos e sua detecção direta, impossível hoje. Mas como o sistema
A Cosmologia na sala de aula 219

é muito bem medido, pode-se calcular a taxa de mudança do semi-eixo 𝑎̇ , a qual


resulta em uma diminuição do período orbital de

Δ𝑃𝑜𝑟𝑏 = −7,6 × 10−5 𝑠/𝑎𝑛𝑜 , (D10)

valor muito maior do que a precisão atingida nas medições pelos erros e incerte-
zas várias. Assim o monitoramento do pulsar binário permitiu determinar a
mudança acumulada e pôde ser comparado com a predição teórica, tal como
mostrado na Fig. D4.
Hulse e Taylor receberam o Prêmio Nobel de Física em 1993 pela desco-
berta do pulsar binário e os trabalhos que mostraram o acordo com a predição
da Relatividade Geral. Desvios menores de 0,1% desta ainda são possíveis, mos-
trando o escasso espaço que há para teorias alternativas, ao menos do ponto de
vista da radiação gravitacional produzida por binárias. Estes resultados foram
melhorados quando descoberto em 2003 o sistema PSR J0737-3039A/B com
período orbital de 2,4 horas, e onde as duas estrelas de nêutrons pulsam, o de-
caimento de acordo com a Relatividade Geral foi confirmado com uma precisão
10 vezes maior, da ordem de ~0.01%, e vários outros efeitos relativísticos me-
didos pela primeira vez.

Fig. D4. A comparação dos dados obtidos (pontos) com a predição da RG, mostrando que o acu-
mulado em 20 anos segue esta com uma precisão de ~0,1%, longe da linha horizontal que
indicaria o caso em que a órbita não decai em absoluto (isto em claro desacordo com os dados).
220 A Cosmologia na sala de aula

■ Os detectores de ondas gravitacionais: interferôme-


tros e massas ressonantes
Com a ideia central da deformação do espaço-tempo e a previsão dos
sistemas que emitiriam ondas gravitacionais, foi possível definir os princípios dos
detectores construídos desde a segunda metade do século 20 e que permitiram
que hoje as ondas sejam uma realidade para a Ciência. Existem duas formas dife-
rentes de detectar diretamente a passagem das ondas: uma é conseguir a deposição
de energia transportada pelas ondas em uma massa e medir as oscilações nela
induzidas; a outra é monitorar massas estáticas cujo movimento seja perturbado
pela passagem das ondas, mas sem absorver energia alguma. Os detectores des-
tes dois tipos são chamados massas ressonantes e interferômetros, respectivamente.

Fig. D5. Esquerda: Joe Weber trabalhando com suas barras ressonantes em meados da década de
1960. Direita: imagem do detector Auriga, na Itália, uma das barras operadas 30 anos depois com
melhoras na transdução eletro-mecânica, na suspensão e na supressão do ruído térmico por estarem
operadas 𝑇 ≪ 1 𝐾, atingindo sensibilidades de até ℎ ~ 10−19 no centro da (estreita) banda de
operação. Créditos: esquerda, European Physical Journal History e direita, https://bit.ly/3NmSCvF.

Na década de 1960, J. Weber e outros trataram de construir massas que ab-


sorvessem energia das ondas e começassem a vibrar, utilizando alumínio de alto
fator de qualidade Q (este último número adimensional mede a energia perdida
em cada ciclo de oscilação, não confundir com o momento quadrupolar do mesmo
nome) e atingiam um nível de sensibilidade ℎ ~ 10−15 . Este último valor é surpre-
endentemente bom (equivale a detectar uma amplitude da ordem do raio de um
próton com uma barra com 𝐿~ 1.5 𝑚 !) mas ainda foi insuficiente para observar
eventos reais, já que a operação dos detectores era feita a temperatura ambiente e o
A Cosmologia na sala de aula 221

ruído térmico muito difícil de controlar e limitador da sensibilidade da antena. Por


várias ocasiões J. Weber anunciou detecções positivas, mas nunca puderam ser
confirmadas por outros grupos [4]. Mas o seu trabalho pioneiro permitiu hoje cons-
truir detectores avançados com sensibilidade ordens de grandeza maior (Fig. D5).
A construção de interferômetros de banda larga, por sua vez, demorou
muito mais tempo já que havia inúmeros obstáculos tecnológicos para superar.
O princípio básico é o de monitorar a posição de espelhos onde a luz de um laser
incide e volta. O feixe de luz original é dividido em dois que seguem trajetórias
ortogonais (Fig. D6). Depois de retornar, as frentes de onda do laser são coloca-
das para interferir. Se os espelhos oscilaram pela passagem de uma onda gravi-
tacional, observa-se um padrão de interferência variável nos detectores. Os inter-
ferômetros atuais usam duas cavidades de Fabry-Perot, uma em cada braço,
para que a luz do laser seja obrigada a ir e voltar um número enorme de vezes, e
assim o comprimento efetivo do braço aumenta muitíssimo além do compri-
mento real ~ 4 𝑘𝑚, chegando a dimensões efetivas maiores de 1000 𝑘𝑚
(similarmente às casas de espelhos dos parques de diversões, onde as imagens
são multiplicadas com espelhos paralelos, [5])

Fig. D6. Esquerda: os interferômetros modernos. O laser do canto inferior esquerdo emite um
feixe dividido no centro, as massas (discos) penduradas carregam espelhos que reciclam a luz (nos
braços A e B), até que finalmente interferem no fotodetector à direita. Direita: O interferômetro
LIGO em Stanford mostrando os braços e as facilidades onde se aloja a detecção e os laboratórios
anexos.

Esta técnica interferométrica permite detectar oscilações extremamente


pequenas, de fato a amplitude no centro da banda larga é ∆𝑙 = ℎ𝑙 ~ 10−17 𝑐𝑚
(!) para um comprimento de braço de 𝑙 = 4 𝑘𝑚. Isto é 0,0001 do diâmetro de
um próton. Embora os interferômetros sejam sensíveis a toda a forma da onda,
em cada faixa o ruído dominante que complica a detecção é de origem diferente.
222 A Cosmologia na sala de aula

A operação do sistema LIGO/Virgo deu o primeiro resultado positivo em


setembro de 2015. Os dois interferômetros em operação detectaram simultane-
amente um evento, chamado de GW150914. A probabilidade de um engano ou
falha instrumental foi estimada de 1 por milhão ou menos. Desta forma, a As-
tronomia de Ondas Gravitacionais nasceu de vez.
Quando analisados os dados obtidos, este primeiro evento foi associado
com uma fusão de dois buracos negros, cuja soma das massas era de 𝑀1 +
𝑀2 ≈ 70 𝑀ʘ . As massas individuais resultaram ser 𝑀1 = 36 ±54 𝑀ʘ e
𝑀2 = 29 ±44 𝑀ʘ . Somente dois buracos negros poderiam ter originado esta
colisão. Vários eventos similares seguiram (por exemplo, GW151226). Da mesma
análise da forma da onda emerge que o buraco negro “filho” da primeira colisão
ficou com uma massa de 𝑀2 = 62 ±44 𝑀ʘ e, portanto, 3 ±0.5 0.5 𝑀ʘ foram
radiadas nas ondas gravitacionais. A velocidade destes buracos negros perto do
momento da colisão superou a metade da velocidade da luz. Finalmente, da
luminosidade observada foi possível calcular a distância-luminosidade ao even-
160
to (Capítulo 3), a qual resultou em 440 ±180 𝑀𝑝𝑐, ou seja, uma escala cosmo-
lógica. Além de ser o primeiro evento registrado na história da Astrofísica, os
resultados mostraram que a visibilidade de eventos semelhantes atinge uma
fração ≈ 1/10 do Universo observável.

Fig. D7. Os eventos detectados positivamente pela colaboração LIGO no final de 2018. O
GW150914 é o primeiro acima à esquerda. Note-se a diferença com as massas típicas dos buracos
negros conhecidos na galáxia (em lilás) [6].
A Cosmologia na sala de aula 223

A Fig. D7 mostra graficamente o conjunto de observações, que cresce


permanentemente. Além de não ser esperado que a fusão de buracos negros
seja tão frequente, chama a atenção que os buracos negros detectados têm
massas maiores que aquelas determinadas nas binárias próximas a nós. De fato,
os progenitores que colidem são majoritariamente de massas ≥ 20 𝑀ʘ . Isto
faz pensar que no Universo jovem as estrelas que deram origem a esses buracos
negros tinham massas muito grandes, o qual é consistente com as ideias da
Evolução Estelar que prevê massas típicas de ≥ 100 𝑀ʘ para essa população.
Esta observação mostra como é importante a abertura de uma nova janela para
o Universo com a detecção do GW150914 aqui discutida. A fusão de duas estre-
las de nêutrons GW170817 foi observada em 2017, e levou à detecção de um sur-
to eletromagnético observado por mais de 70 instrumentos em bandas do IR,
visível e raios gama. Este tipo de evento é menos frequente, mas muito impor-
tante para determinar o comportamento da matéria superdensa nos interiores
das estrelas de nêutrons, embora as fusões de buracos negros são mais impor-
tantes para a Cosmologia

Referências
[1] J.E. Horvath, Astrofísica de Altas Energias: uma Première (São Paulo, Edusp 2019)
[2] K. Thorne, Gravitational-wave research: Current status and future prospects
Rev. Mod. Phys. 52, 285 (1980).
[3] J.M. Weisberg e J.H. Taylor, The Relativistic Binary Pulsar B1913+16: Thirty Years of Observations and Analy-
sis . In: ASP Conference Series 328, 25 (2005)
[4] V. Trimble, Biographical Encyclopedia of Astronomers, edited by Hockey, Thomas; Trimble, Virginia; Williams,
Thomas R.; Bracher, Katherine; Jarrell, Richard A.; Marché, Jordan D., II; Palmeri, JoAnn; Green, Daniel W. E..
(New York, NY: Springer New York, 2014), p. 2301
[5] P.R. Saulson, Interferometric gravitational wave detectors. Int. Jour. Mod. Phys. D 27, 1840001 (2018).
Apêndice E

A equipe que mediu a deflexão da luz no eclipse de Sobral em 1919


Créditos: Divulgação/Observatório Nacional RJ

Testes observacionais da Teoria da


Relatividade Geral

Publicada em 1915, a Teoria da Relatividade Geral de Einstein trouxe uma


completamente nova visão da força da gravidade. Para Einstein a gravidade é en-
tendida como a curvatura do espaço-tempo.
Como qualquer outra teoria que visa descrever fenômenos físicos, a Teoria
da Relatividade Geral precisa ser testada observacional e experimentalmente com o
intuito de verificar se, de fato, ela descreve bem os fenômenos gravitacionais.
Algumas peculiaridades fizeram com que a Relatividade Geral fosse consi-
derada, a princípio, uma teoria que dificilmente poderia ser experimentada. Sabe-
mos que a gravitação newtoniana funciona impecavelmente na descrição de fenô-
menos gravitacionais terrestres. A Relatividade Geral passa a ser importante em
regimes extremamente distintos de nosso cotidiano, como em escalas cosmológi-
cas, em pulsares e fontes de ondas gravitacionais, por exemplo, onde a gravitação é
226 A Cosmologia na sala de aula

muito mais intensa. Nas escalas do Sistema Solar, os efeitos relativísticos são extre-
mamente pequenos, embora, sim, mensuráveis.
Um destes efeitos mensuráveis está presente nas órbitas planetárias.
Conforme as Leis de Kepler, todos planetas orbitam o Sol numa elipse. Portanto,
há um ponto nessas órbitas em que o planeta encontra-se o mais próximo possí-
vel do Sol. Este ponto é chamado periélio.
Já bem antes do advento da Relatividade Geral, observava-se que con-
forme Mercúrio orbita o Sol, seu periélio avança de uma pequena quantia (vide
figura abaixo). Há uma discrepância de 43 segundos de arco por século entre a
predição newtoniana e a precessão observada [1].

Figura E1: O avanço do periélio de Mercúrio em cada órbita, um efeito que ja foi atribuido ao nunca
detectado planeta Vulcano, mas que na verdade decorre do movimento analisado utilizando a
Relatividade Geral. Fonte: https://go.nasa.gov/3qz5sx2.

Note, a partir da figura, que a cada órbita completa pelo planeta Mercú-
rio, o seu periélio avança progressivamente. Apesar do enorme sucesso em ex-
plicar o movimento dos planetas no Sistema Solar, a gravitação newtoniana não
consegue explicar tal avanço no periélio de Mercúrio, o que levou à hipótese de
existência de um planeta interno (“Vulcano”) à sua órbita, conforme explicado
no Capítulo 3, que a perturbaria, e explicaria essa aparente anomalia no movi-
mento de Mercúrio.
Por outro lado, a Relatividade Geral explica o avanço no periélio de Mer-
cúrio sem a necessidade de um planeta adicional, mas a partir puramente de
A Cosmologia na sala de aula 227

seu formalismo e suas consequências. Conforme Mercúrio se move em sua órbi-


ta em direção ao periélio, ele se aproxima do “poço” gravitacional do Sol e seu
movimento nessa região de maior curvatura do espaço-tempo causa o avanço
do periélio na exata quantia observada. Resulta um sucesso da Relatividade
Geral explicar este efeito sem nenhum elemento ad hoc.
Na verdade, o primeiro teste observacional da Relatividade Geral se-
quer foi o descrito acima, mas antes o da deflexão da luz. Para Einstein, a própria
luz segue trajetórias curvas quando viaja próxima a um objeto massivo, tal que
quanto maior for a massa, maior a deflexão no raio de luz com respeito à trajetó-
ria reta. A figura abaixo ilustra o fenômeno de deflexão da luz, predito na Relati-
vidade Geral.

Figura E2: Deflexão da luz de uma estrela distante.

É muito interessante que o próprio Einstein já tinha publicado trabalhos


onde levava a sério a quantização da luz, e criado o conceito de fóton ou quan-
tum da luz. Porém, o fóton não possui massa, e assim seria impossível que fosse
atraído pela gravitação newtoniana. A teoria newtoniana prediz uma deflexão
porque supõe que a luz está formada de corpúsculos com massa. Na Relatividade
Geral, a massa não é necessária porque a trajetória da luz segue a curvatura,
independentemente do quantum (fóton) ter massa ou não. Assim, observar a
deflexão da luz pode descartar o efeito newtoniano porque o valor predito na
Relatividade Geral é o dobro daquele, se ainda for mantida a ideia da massa da
partícula da luz. Todas as medidas desta massa posteriores corroboraram resul-
tados compatíveis com zero, de fato se alguma massa tiver o fóton ela seria 20
ordens de grandeza, ou mais, menor que a do elétron.
228 A Cosmologia na sala de aula

O próprio Einstein percebeu que durante um eclipse, as imagens das estre-


las muito próximas ao disco solar iam ficar visíveis, sem serem ofuscadas. E elas seri-
am as que apresentam o maior desvio (Fig. E2). O efeito do desvio existe sempre,
mas poucos segundos de arco mais longe da borda do Sol seria indetectável com a
precisão da época. Para testar tal previsão da Relatividade Geral, um comitê de físi-
cos experimentais (e alguns teóricos) de diferentes nações usufruiu de um eclipse
solar que ocorreu em 29 de maio de 1919. Os locais escolhidos para se observar o
eclipse foram as Ilhas Príncipe, na costa oeste da África, e a cidade de Sobral - CE, no
Brasil. Os resultados apontaram para uma concordância com as predições teóricas
da Relatividade Geral (embora houve vários fatores subjetivos e problemas sérios
com os dados, vide [2]). Hoje este desvio é medido não tão somente durante os
eclipses, mas em outras situações similares, em uma ampla série de comprimentos
de onda (o desvio não depende destos últimos, e isto também é conferido) e consti-
tui uma evidência forte em favor da Relatividade Geral.
Podemos tambem apresentar as medidas do pulsar de Hulse-Taylor do
Apêndice 4 como outro teste observacional superado pela Teoria da Relatividade
Geral de Albert Einstein. Já vimos que o pulsar de Hulse-Taylor ou PSR B1913+16 é
um sistema binário de estrela de nêutrons sendo que uma delas é um pulsar, uma
estrela de nêutrons com alta rotação e altamente magnetizada, que emite pulsos
eletromagnéticos a partir de seus polos magnéticos, e a outra estrela de nêutrons
que não pulsa e tem uma massa similar. O decaimento da órbita do sistema binário
com o passar dos anos mostrou-se em completo acordo com as predições teóricas
de emissão de ondas gravitacionais da Relatividade Geral. De acordo com a Relati-
vidade Geral, este sistema binário emite ondas gravitacionais conforme orbita no
entorno de um centro de massa e esta emissão faz com que a órbita do sistema
decaia com o tempo, deixando pouco espaço para desvios ou teorias alternativas,
como discutido em mais detalhe no Apêndice 4.
Existem mais testes realizados e outros a serem aplicados, para conferir
efeitos que somente existem na Relatividade Geral e teorias similares, e que podem
levar inclusive a diferenciar aquela destas últimas. Somente a modo de exemplo
mostramos o atraso dos pulsos quando transitam um campo gravitacional (chama-
do de Shapiro delay). A gravitação provoca uma distorção do tempo quando aje num
fenômeno periódico. Para conferir foi necessário procurar um “relógio” super-
preciso (no caso, o pulsar PSR J1614-2230) em torno de uma companheira que pro-
duza um campo gravitacional intenso (este pulsar orbita junto a uma anã branca) e
cuja órbita tenha uma inclinação pequena com respeito à linha de visada, de tal
forma a comparar os pulsos quando os dois estão alinhados (conjunção) ou a 90𝑜
A Cosmologia na sala de aula 229

(quadratura). No primeiro caso, a demora será máxima, e no segundo zero. A Fig. E3


mostra o sistema e os resultados das medidas superpostos à curva calculada. Na
gravitação de Newton, não há distorção do tempo pela gravitação e os pulsos não
atrasam nem adiantam. É claro que este não é o caso e que a predição da Relativida-
de Geral é muito bem sucedida [3].
Em soma, a Relatividade Geral foi e está sendo testada permanentemente,
e está mais próxima de nós do que percebemos. Os efeitos relativisticos sao impor-
tantes até no nosso dia-a-dia, com a localizaçao por GPS dependendo de correçoes
relativisticas aos tempos dos satélites em órbita, e que sem isso essa tecnologia seria
inútil.

Figura E3. Acima: uma representação do sistema que contém o pulsar PSR J1614-2230 e a compa-
nheira anã branca. Abaixo: em vermelho as medidas das diferenças de tempos de chegada e a
predição da Relatividade Geral (linha cheia). O resultado para a gravitação newtoniana seria a
linha horizontal de ordenada zero [3]. Note-se que o atraso é máximo na conjunção e mínimo na
quadratura do sistema, tal como esperado.

Referências
[1] S. Weinberg, Gravitation and Cosmology: Principles and Applications of the General Theory of Relativity (Wiley &
Sons, NY, 2013)
[2] J.A. Sales de Lima e R.C. Santos, Do Eclipse Solar de 1919 ao Espetáculo das Lentes Gravitacionais . Revista
Brasileira Ensino Física 41, e20190199 (2019)
[3] P. Demorest et al., A two-solar-mass neutron star measured using Shapiro delay. Nature 467, 1081 (2010)
Apêndice F

O Pensador, de Auguste Rodin, símbolo da reflexão humana

As perguntas mais frequentes da Cosmologia


(e as respostas que temos hoje)

1) O Universo teve realmente um começo ?


Se consideramos como ele era quando extrapolamos para 𝑡 → 0, o Universo
era muito diferente do que é hoje, cada vez mais quanto mais perto da “singu-
laridade”. Não sabemos se “antes” disso estava em outro estado, se é uma flu-
tuação, e nem mesmo se a pergunta tem sentido físico.

2) Se expande realmente o Universo ?


Não só se expande, de acordo com os dados dos últimos 25 anos parece que o
faz cada vez mais rápido. As Cosmologias de estado estacionário não conse-
guem explicar grande parte das observações, e o grau de precisão das medidas
cosmológicas tem aumentado muitíssimo, sem que a esmagadora maioria dos
cosmólogos duvide da expansão.
232 A Cosmologia na sala de aula

3) É o Universo “aberto” ou “fechado” ? Ou seja, qual é a sua geometria espacial ?


Segundo as medidas atuais, a soma das densidades das componentes é igual à
densidade crítica, ou seja Ωtot = 1. Assim, o Universo é “aberto” (a curvatura
espacial é próxima de zero). Mais ainda, a aceleração da expansão por efeito do
Λ ou alguma forma mais complexa da energia escura deverá provocar a descone-
xão causal de todos os observadores no futuro longínquo.

4) Que idade tem o Universo ?


Se aceitamos as evidências de uma Cosmologia CDM, e sem precisar entender o
porquê disto, a idade é de 13,7 bilhões de anos com incerteza de algumas cente-
nas de milhões de anos, para mais ou para menos.

5) O que é o fundo de radiação cósmica (FRC) ?


É um “brilho” muito tênue que se observa chegar desde todas as direções e que
foi originado no momento onde o Universo ficou transparente à radiação, a
energia dos fótons diminuindo posteriormente só pela expansão. Há muita in-
formação do Universo primordial nessa radiação.

6) O Universo está feito de quê ?


Isto é um grande problema. Segundo as observações e supondo a realidade da
matéria escura e energia escura, mais de 95% do conteúdo do Universo parece
estar feito delas (Capítulo 3). Não temos ideia da natureza de nenhuma delas,
somente de algumas das suas propriedades. Não é impossível, mas sim muito
difícil, que se façam desnecessárias como aconteceu com o éter.

7) Quando se formou o tipo de matéria que nos constitui ?


Os prótons e nêutrons dos quais estamos feitos se formaram quando seus consti-
tuintes (os quarks e glúons) se “confinaram” para formá-los, quando o Universo
tinha mais ou menos 1 microssegundo de idade. Mais tarde, a temperatura permi-
tiu a formação de núcleos a partir dos prótons e nêutrons (mas só os núcleos mais
leves, até o lítio). A predição da nucleossíntese primordial é considerada uma das
confirmações mais firmes das ideias do Big Bang.
A Cosmologia na sala de aula 233

8) Há antimatéria no Universo atual ?


Não há evidência de quantidades substanciais de antimatéria, o Universo, por al-
guma razão, é assimétrico. A matéria e antimatéria se aniquilaram, mas algo da
primeira (um excesso de matéria) sobrou para formar cientistas que estudam estes
eventos.

9) Como se formou a estrutura que observamos no Universo ?


A chamada estrutura (galáxias, aglomerados, etc.) do Universo “frio” atual formou-
se pela ação da gravitação que fez crescer as pequenas inomogeneidades presen-
tes no Universo primordial, possivelmente desde a Inflação. A estrutura já aparece
em 𝑧~10, ou seja quando o Universo tinha menos de 1/10 da escala atual.

10) Como vai acabar o Universo ?


Segundo o que sabemos, deve acabar expandindo-se ad-infinitum enquanto todas
as fontes de energia se esgotam e perdemos contato causal com frações cada vez
maiores dele (vide Capítulo 5).
Apêndice G

O telescópio espacial James Webb, recentemente lançado. Este sofisticado


instrumento trará uma visão detalhada das primeiras estrelas e galáxias no
Cosmos, entre outras informações importantes.

A Cosmologia no contexto da Ciência,


Tecnologia e Sociedade

■ Por que estudar o Cosmos?


Não é incomum que cada vez que é mostrado algum instrumento ou
projeto que pretende contribuir para o conhecimento da natureza, em particu-
lar a origem e evolução do Cosmos, alguém diga algo como “com esse dinheiro
poderiam alimentar XX crianças” ou coisa similar. O autor pode ser desde al-
guém próximo até um Ministro de Economia. Contrapor o estudo do Universo
às necessidades sociais, como se deixar de estudar o primeiro resolvesse os pro-
blemas nos leva à questão central: por quê estudar o Cosmos?
A primeira razão, excludente e fundamental, é que somos seres huma-
nos. A curiosidade, o desejo de saber como tudo começou e como chegamos até
aqui é tão antiga como o mundo mesmo. Para muitos antropólogos, por exem-
plo, forma parte da definição do ser humano. Mas este fato fica às vezes preteri-
236 A Cosmologia na sala de aula

do perante a urgência e a dimensão dos problemas que a própria Humanidade


criou no seu longo caminho. E resulta muito evidente para nós que as soluções
precisam envolver a Ciência, não se afastar e abdicar dela. Não é possível resol-
ver problemas complexos voltando a uma perspectiva primitiva, porque o nú-
mero de seres humanos no planeta passou de 7 bilhões e o pensamento de gru-
pos pequenos que viviam quase isolados somente vai agravar o que já é ruim.
Além desta razão mandatória, a de querer saber como são as coisas, é curi-
oso que precisemos justificar despesas em Ciências numa sociedade totalmente
tecnológica. Todos (ou quase todos) os habitantes vivos dependem hoje da Tecno-
logia de forma ostensiva, direta ou indiretamente. Porém, a conexão dos estudos
“inúteis” da Cosmologia com a vida diária das pessoas passa despercebido. Há várias
décadas, os cientistas do European Organization for Nuclear Research (CERN) calcu-
laram que por cada euro investido em pesquisas fundamentais, voltavam 3-4 euros
na forma de produtos e patentes que se aplicavam à sociedade inteira e melhora-
vam sua vida. Estimamos que o mesmo deve ser aplicável à Cosmologia. Mas para
sustentar esta afirmação, listaremos aqui alguns produtos e processos de alta Tecno-
logia que se originaram das pesquisas na Astronomia e Cosmologia [1]

• os telefones celulares carregam câmaras com dispositivos CCD (Charged


Coupled Device) utilizados pela primeira vez na Astronomia em 1976
• a linguagem gráfica IDL (Interactive Data Language) é utilizada para estudar
colisões de automóveis, jazidas de petróleo e muito mais, embora foi de-
senvolvido para visualizar simulações astronômicas
• a Tomografia computadorizada amplamente utilizada na medicina foi de-
senvolvida pelo astrônomo Larry Altschuler e colaboradores que original-
mente a utilizavam para estudar a Coroa solar
• os satélites do Global Positioning System (GPS) utilizam quasares e galáxias
distantes para calcular posições com acurácia
• os escâneres de raios X em muitos aeroportos do mundo são adaptações
das câmaras de raios X utilizadas nos primeiros instrumentos de raios X de-
senvolvidos pela Astronomia

Outros desenvolvimentos vários poderiam ser acrescentados, utilizados no


setor aeroespacial, detectores e outros. Embora não tenhamos calculado nenhum
coeficiente de retorno financeiro como no caso do CERN, os exemplos apontados
são suficientes para fundamentar a afirmação do retorno dos investimentos. Mais
ainda, a dinâmica de como a Ciência pretende novos estudos que resultam “impos-
A Cosmologia na sala de aula 237

síveis” mas que depois de suficiente elaboração e inovação podem ser efetivados é
um exemplo maiúsculo da relação entre a Ciência e a Tecnologia que vem se desen-
volvendo há décadas, se não séculos. Nos estudos cosmológicos, é muito impressio-
nante comparar a instrumentação e desenvolvimento nos últimos 50-60 anos. A
Segunda Guerra Mundial pode ser identificada como um fator essencial nos desen-
volvimentos tecnológicos que levaram, por exemplo, à descoberta do FRC. Mas por
30 anos detectar as flutuações foi impossível até que em 1992 o satélite COBE anun-
ciou sua descoberta [2]. Hoje, estudos com instrumentos como o satélite Planck e
muitos outros estão disponíveis, o qual exemplifica essa “ida e volta” da Ciência para
a Tecnologia e vice-versa, com desdobramentos importantes para o resto da socie-
dade na forma de processos e produtos.
Há ainda um aspecto muito característico da Ciência, e da Cosmologia em
particular, que merece destaque: enquanto hoje existe uma pressão pela colaboração
internacional e a globalização das atividades, as Ciências são um exemplo de atividade
global que sempre foi colaborativa e está “globalizada” desde os tempos da Biblioteca
de Alexandria pelo menos. Não há “reserva de mercado” no conhecimento puro, tal
como produzido pelos grupos de cosmólogos que estão compostos por centenas de
membros de todas as origens e nacionalidades, e financiados por consórcios de vários
países. Chegar a um destes grupos, pequeno ou grande, é muito difícil mas não por-
que existam reservas. Antes pelo fato que a Ciência é complexa e requer uma dedica-
ção, tenacidade e determinação incomuns, além de inteligência e talento.
Finalmente poderemos apreciar a resposta que um de nós deu para um jo-
vem economista num voô SP-Rio anos atrás. Quando perguntado (sic) “Qual é o
valor de mercado do produto que emerge do Instituto de Astronomia da USP?”, a
resposta na forma de contra-pergunta foi mais ou menos “qual é o valor da poesia de
Drummond?, ou de um tradutor de farsí? ou da obra de Epicuro?”. Não estamos
seguros que o economista haja compreendido que o dinheiro e o mercado servem,
se tanto, para alimentar e viabilizar os sonhos e desejos da Humanidade, e não ao
contrário. Subordinar todo a seu valor econômico e mais nada seria uma tragédia da
qual dificilmente nos recuperaríamos. Isto é para nós a principal mensagem da
Cosmologia dentro do contexto da Ciência, a Tecnologia e a Sociedade.

Referências
[1] M. Rosenberg, P. Russo, G. Blandon e L.L. Christensen, Astronomy in Everyday Life
https://www.iau.org/public/themes/astronomy_in_everyday_life/
[2] G. Smoot et al., Structure in the COBE Differential Microwave Radiometer First-Year Maps. Astrophys J 396, L1 (1992)

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