2020 DioclezioDomingosFaustino VCorr

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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Filosofia
Programa de Pós-graduação em Filosofia

Sobre o “cuidado de si”: Foucault leitor


dos Antigos

[Versão corrigida]

Dioclézio Domingos Faustino

São Paulo
2020
Dioclézio Domingos Faustino

Sobre o “cuidado de si”: Foucault leitor


dos Antigos

[Versão corrigida]

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Filosofia do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor em Filosofia sob a orientação da
Professora Doutora Marilena de Souza Chaui

São Paulo
2020

2
3
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Faustino, Dioclézio Domingos


F268s Sobre o "cuidado de si": Foucault leitor dos
antigos / Dioclézio Domingos Faustino; orientadora
Marilena de Souza Chauí - São Paulo, 2020.
120 f.

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Departamento de Filosofia. Área de concentração:
Filosofia.

1. ética. 2. moral. 3. história. 4. governo. 5.


subjetividade. I. Chauí, Marilena de Souza, orient.
II. Título.

4
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE F FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ENTREGA DO EXEMPLAR CORRIGIDO DA DISSERTAÇÃO/TESE


Termo de Ciência e Concordância do (a) orientador (a)

Nome do (a) aluno (a): Dioclézio Domingos Faustino

Data da defesa: 25/09/2020

Nome do Prof. (a) orientador (a): Marilena de Souza Chauí

Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste EXEMPLAR

CORRIGIDO elaborado em atenção às sugestões dos membros da comissão Julgadora na sessão

de defesa do trabalho, manifestando-me plenamente favorável ao seu encaminhamento e

publicação no Portal Digital de Teses da USP.

São Paulo, 25 / 02 / 2021

_______________________________________
( Assinatura do (a) orientador (a) )

5
6
FAUSTINO, Dioclézio Domingos. Sobre o “cuidado de si: Foucault leitor dos Antigos.
2020. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Filosofia, 2020.

RESUMO

Este estudo pretende mostrar que, na filosofia de Michel Foucault, o cuidado de


si é uma noção que tem antes uma função de crítica da moral e, por conseguinte, de
crítica de um certo modo de produção da subjetividade moderna, que a reivindicação de
um princípio ético. Partimos da constatação de que, segundo Foucault, entre os séculos I
e II de nossa era, há uma descontinuidade na história da moral no Ocidente. Esta
descontinuidade é verificada pela passagem de uma modalidade de relação a si que tinha
forma de um “uso dos prazeres” (entre os gregos da época clássica) para uma forma de
“decifração do desejo” (na filosofia da época imperial romana). E que, em um segundo
momento do curso dessa história, nos séculos IV e V, ocorre uma nova e decisiva inflexão
com o advento das práticas de si cristãs, nas quais o cuidado de si é incorporado ao poder
pastoral e, assim, para cuidar de si mesmo, é preciso fazer uma “renúncia de si”. Assim,
as raízes de nossa (moderna) subjetividade encontram solo neste segundo movimento
porque ele abre o caminho para o que se constituirá na modernidade como uma
“hermenêutica do sujeito” e o consequente privilégio do “conhecimento de si”. O cuidado
de si perpassa todo esse período, isto é, da época grega clássica ao cristianismo primitivo,
e ele funciona como uma espécie de noção crítica que permite que o genealogista da
moral investigue e detecte estas transformações e suas implicações para a constituição da
moral.

PALAVRAS-CHAVES: ética, moral, história, governo, subjetividade.

7
FAUSTINO, Dioclézio Domingos. Sobre o “cuidado de si: Foucault leitor dos Antigos.
2020. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Filosofia, 2020.

ABSTRACT

This study intends to show that, in Michel Foucault’s philosophy, the care of the self is a
notion that has rather a function of criticizing morality and, therefore, criticizing a certain
mode of production of modern subjectivity, than the claim of principle ethical. We start
from the observation that, according to Foucault, between the 1st and 2nd centuries of
our era, there is a discontinuity in the history of morals in the West. This discontinuity is
verified by the passage from a modality of relation to oneself that took the form of a “use
of pleasures” (among the Greeks of the classical era) to a form of “deciphering the desire”
(in the philosophy of the Roman imperial era). And that, in a second moment in the course
of this history, in the 4th and 5th centuries, there is a new and decisive inflection with the
advent of “Christian self-practices”, in which the care of the self is incorporated into
pastoral power and, thus, to take care of yourself, it is necessary to make a “renunciation
of yourself”. The roots of our (modern) subjectivity are more linked to this second
movement because it opens the way for what will be constituted in modernity as a
“hermeneutic of the subject” and the consequent privilege of “knowledge of the self”.
The care of the self runs through this period, that is, from classical Greek times to
primitive Christianity, and it functions as a kind of critical notion that allows the moral
genealogist to investigate and detect these transformations and their implications for the
constitution of moral.

KEYWORDS: ethics, morality, history, government, subjectivity.

8
AGRADECIMENTOS

Estudar filosofia na USP foi uma das melhores escolhas que fiz em minha vida. A
professora Marilena Chaui, sua alegria e amor ao saber são para mim exemplares, assim
como a paixão e o rigor com os quais, em suas aulas, analisava os textos filosóficos foram
para mim uma fonte de entusiasmo e formação. Depois, tê-la como orientadora, foi para
mim uma enorme alegria. Agradeço sua generosidade, carinho e orientação.

Agradeço aos professores Vladimir Pinheiro Safatle e Márcio Alves da Fonseca


pela leitura e questões no examine de qualificação. Ao professor Vladimir pelo diálogo e
questões sempre criativas e desafiadoras.

Aos queridos amigos e amigas do Grupo Espinosanos: a convivência democrática,


colaborativa e a amizade, que são marcas do grupo, foram para mim uma fonte preciosa
de estímulo para meu trabalho. Agradeço em especial aos professores Homero Santiago
e Luís César Oliva. Agradeço imensamente aos colegas do “Seminário Foucault” com os
quais pude ter discussões muito profícuas e estimulantes: Maria Luiza, Mario Marino,
Lucas Vasconcellos, Felipe Fernandes e Lara Pimentel.

Agradeço aos professores Jean-Claude Monod e Frédéric Worms pela acolhida no


meu estágio de doutorado na École Normale Supérieure de Paris. Aos colegas do
Seminário Foucault da ENS, e em especial aos normaliens Lucas Teyssier, Marco Dal
Pozzolo e Matteo Pagan. Agradeço também ao professor Orazio Irrera, pela generosidade
e acolhida no Seminário Foucault na Université de Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. E aos
professores Philippe Sabot e Judith Revel pelos valiosos comentários no encontro do
Centre Michel Foucault de Paris.

Mais uma vez, fiz outros percursos, além do acadêmico, que certamente também
contribuíram para esta minha trajetória. Josfâm Antunes de Macedo e Maria Rita Kehl,
estiveram comigo nestes caminhos. Ao Josfâm pelo entusiasmo, e à Maria Rita pela arte
da escuta.

Agradeço a Marie Márcia Pedroso, Geni Ferreira Lima, Susan Thiery Satake e
Luciana Bezerra Nobréga pela ajuda com burocracias, e muito mais!

Aos amigos e amigas do grupo Mal-estar na Pós-graduação pelo


companheirismo, por propor e discutir questões fundamentais para a nossa formação e
pelas deliciosas tardes de domingo: Ravena Olinda, Lucas Nascimento, Lucila Lang,
Sacha Kontic, Lourenço Fernandes e Bruno Rosa.

Por fazer a minha estadia em Paris muito mais divertida e pelo apoio, agradeço
aos amigos e amigas: Erato Polychronakou, Farah Kammourieh, Gabriel Frizzarin,
Allana Meirelles, João Gonçalves, Eli Borges, Heraldo Galvão, Rosembergue Gonçalves,
Pedro Cruz, Thaíssa Bispo, Martha Costa, Paulo Borges e Maria José. Com saudades,
agradeço especialmente pelos incríveis vendredis soir à la MdB a: Allana, João, Danilo,

9
Heraldo, Rose, Pedro e Erato. Agradeço também à minha querida amiga Juliana Ortegosa
Aggio pelo diálogo e carinho sempre fraternos!

Do lado de cá do Atlântico, Gabryel Pires e Renan Abreu, tornaram meus dias


mais leves e alegres. Do lado de lá, Adrian Fabre e Pierre Berillon fizeram de Paris une
ville des beaux moments, et plus!

Por fim, agradeço à minha família, pelo apoio e carinho. Aos meus irmãos e irmãs:
Dhaylli, Dalvanira, Décio e Diógenes – também pela amizade! Aos meus pais Maria
Lindalva Faustino e Damião Domingos. À minha mãe pela aposta sempre renovada no
conhecimento, pela ternura e amor.

***

Agradeço à FAPESP pela bolsa de doutorado no país e no exterior concedidas para o


financiamento deste trabalho. Processo: 2015/20992-3.

10
“A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada //
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.”
MELO NETO, J. C. de. A educação pela pedra.

“Um dia, perdido para sempre nos labirintos que construo, talvez confundido com o
caminho que procuro, me encontro, obscuro, no outro de mim.” Un jeune chercheur.

“ou plutôt cette essence n’était pas en moi, elle était moi. J’avais cessé de me sentir
médiocre, contingent, mortel.” PROUST, M. Du côté de chez Swann.

11
12
ÍNDICE

INTRODUÇÃO.............................................................................................................14

CAPÍTULO I: Em busca de uma relação perdida: “cuidado de si” e moral....................25

CAPÍTULO II: Moral, ética e história............................................................................40

CAPÍTULO III: Governo, subjetividade e verdade.......................................................52

CAPÍTULO IV: História da moral e destino do “cuidado de si” ....................................90

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................108

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................115

13
INTRODUÇÃO

CUIDADO DE SI E CRÍTICA DA MORAL

14
“Podemos sonhar com o último escritor, com o qual despereceria, sem
que ninguém o percebesse, o pequeno mistério da escrita.”
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir.

I. Cuidado de si como crítica da moral.

A noção de cuidado de si é bastante significativa para a compreensão dos

caminhos que tomou a trajetória intelectual de Michel Foucault, em sua última fase, a

partir dos anos 1980. Além de ocupar o centro das investigações de um de seus mais

célebres cursos proferidos no Collège de France, A hermenêutica do sujeito, essa noção

dá também título ao seu último livro publicado em vida, que se chama exatamente O

cuidado de si. Livro que é o terceiro volume de sua (inacabada) História da sexualidade,

cuja escrita Foucault inicia nos anos 1970, e prossegue até os últimos dias de sua vida,

quando corrige as provas finais dos dois volumes, publicados em junho de 1984, já

internado no Hospital da Pitié-Salpêtrière em Paris. Foucault morrerá dias depois.

Uma história da sexualidade inacabada, mas que continha, desde então, teses e

objetos já bem claros e definidos. O objeto fundamental dessa história da sexualidade,

projetada inicialmente para aparecer em seis volumes, foi expressamente exposto por

Foucault no segundo volume, O uso dos prazeres, como tendo por horizonte a

“genealogia do homem de desejo”. Genealogia esta que, como o próprio Foucault indica,

está no centro do problema da moral; e é da moral que Foucault passa a se ocupar de

maneira mais detida nessa última fase de sua trajetória intelectual.

15
Neste trabalho, pretendo mostrar que, na filosofia de Michel Foucault, o cuidado

de si é uma noção que tem antes uma função de crítica da moral e, por conseguinte, de

crítica de um certo modo de produção da subjetividade moderna, que a reivindicação de

princípio ético. Partimos da constatação de que, segundo Foucault, entre os séculos I e II

de nossa era, há uma descontinuidade na história da moral no Ocidente. Esta

descontinuidade é verificada pela passagem de uma modalidade de relação a si que tinha

forma de um “uso dos prazeres” (entre os gregos da época clássica) para uma forma de

“decifração do desejo” (na filosofia da época imperial romana). E que, em um segundo

momento do curso dessa história, nos séculos IV e V, ocorre uma nova e decisiva inflexão

com o advento das práticas de si cristãs, nas quais o cuidado de si é incorporado ao poder

pastoral e, assim, para cuidar de si mesmo, é preciso fazer uma “renúncia de si”. Assim,

as raízes de nossa (moderna) subjetividade encontram solo neste segundo movimento

porque ele abre o caminho para o que se constituirá na modernidade como uma

“hermenêutica do sujeito” e o consequente privilégio do “conhecimento de si”. O cuidado

de si perpassa todo esse período, isto é, da época grega clássica ao cristianismo primitivo,

e ele funciona como uma espécie de noção crítica que permite que o genealogista da

moral investigue e detecte estas transformações e suas implicações para a constituição da

moral.

Para isso, foi preciso então expor alguns elementos do problema e da história do

cuidado de si (Capítulo I) e das noções que a ela se relacionam. De um lado, as noções

de moral, ética e história (Capítulo II) e, de outro, as noções de governo, subjetividade e

verdade (Capítulo III). E, por fim, foi preciso apresentar alguns elementos da história do

cuidado de si – tendo como tela a experiência dos afrodísia, a cultura de si na época

imperial romana e no cristianismo antigo – em relação com a história da moral (Capítulo

IV) para mostrar a função crítica que o cuidado de si desempenha.

16
II. O “enigma” do último Foucault.

A obra produzida por Michel Foucault nos últimos anos de sua atividade

intelectual, especialmente nos anos de 1980 a 1984, ainda é motivo de intenso debate.

Primeiro, há razões de cunho estritamente prático. Parte considerável dos trabalhos deste

período esteve/e ainda está em curso de estabelecimento, edição e publicação. Exemplo

disso é um curso decisivo deste quinquênio, Subjectivité et verité (1981), que somente foi

publicado faz poucos anos (em 2014); assim como a publicação de uma importante obra

de Foucault deste período: o volume IV da História da sexualidade (As confissões da

carne), publicada em 2018, que embora deixada inacabada, por causa de sua morte

precoce, causa certamente um impacto na recepção e na compreensão dos caminhos

traçados por Foucault ao revelar seus estudos acerca do cristianismo primitivo.

Assim, o chamado “último Foucault” é tido, por grande parte do comentário

especializado, como um “verdadeiro enigma”. Há várias declarações explicitas dos

especialistas nesta direção. Frédéric Gros, por exemplo, em seu livro de introdução à

filosofia de Foucault, escreve um tópico cujo título é exatamente “O enigma do último

Foucault”; o intérprete argumenta que “os últimos estudos de Foucault surpreendem já

por seu quadro de referência histórica: a Antiguidade Greco-romana”1. Isso porque, como

sabemos, as obras foucaultianas anteriores, desde História da Loucura até Vigiar e punir,

se ocupavam do mundo ocidental da Renascença ao século XIX. Este também é o tom,

por exemplo, de uma importante coletânea de artigos de especialistas publicada na

França, onde lemos, em sua apresentação, que: “As pesquisas realizadas por Foucault no

período dos anos 80 permanecem, sob muitos aspectos, indetermináveis. Sobre elas,

deve-se falar de um retorno às questões clássicas do sujeito, da moral, da liberdade? De

1
GROS, F. Michel Foucault, p. 91.

17
um abandono da perspectiva política? De um dandismo estetizante? Os contemporâneos

ficaram profundamente desconcertados pelas análises que, concentradas nas modalidades

da relação a si e na verdade na Antiguidade ou no cristianismo primitivo, parecem borrar

a imagem de um Foucault interessado em descrever e denunciar as formas do poder

moderno.”2 Assim, ainda restam muitos caminhos a percorrer para compreendermos a

trajetória de Foucault. Mas, de antemão, é preciso dizer que não pretendo, nesta pesquisa

que ora apresento, cujo título é “Foucault leitor dos antigos”, analisar em que medida

Foucault possivelmente foi, ou deixou de ser, “fiel” aos filósofos ou doutrinas antigas, ou

seja, não farei uma investigação do “Foucault comentador dos Antigos”. Partirei de uma

análise do “Foucault leitor dos Antigos” e, nesta perspectiva, quero compreender o uso3

que o filósofo francês fez dos textos/autores de maneira interessada, isto é, para tratar de

questões/impasses que seu próprio percurso de alguma maneira o levou; e que é preciso,

portanto, compreender e dar significado para obter-se também uma compreensão de sua

obra e das questões que ela suscita.

III. O cuidado de si a atualidade do problema da moral.

Para esta introdução, me parece útil tratar da atualidade do pensamento Foucault,

e em particular da atualidade do problema da moral em sua filosofia. É preciso dizer que,

nestas primeiras décadas do século XXI, Foucault é um dos filósofos mais lidos do

2
Cf.: LORENZINI, D. et. al. (org.). Michel Foucault : éthique et vérité 1980-1984. Paris, Librairie
Philosophique J. Vrin, 2013.
3
A respeito da noção de uso que é referida ao modo como Foucault ler Antigos, é útil o comentário que dá
sentido a esta noção, e que está na introdução do livro Foucault e a filosofia antiga, p. 8: “(...) trata-se de
uso da filosofia: que uso fazer hoje do platonismo, do estoicismo, do epicurismo? Pois Foucault não escreve
uma história da filosofia antiga, tanto quanto ele não escreve na História da loucura uma história da ciência
psiquiátrica, ou em Vigiar e punir uma história da instituição penitenciária. Portanto, não se tratou de medir
as teses de Foucault à luz da verdade supostamente constituída de uma doutrina. Simplesmente tentar
desvendar o destino do pensamento contemporâneo na leitura dos antigos.”

18
mundo. A história da recepção e do estabelecimento de sua obra já tem vários capítulos,

mas talvez seja necessário dizer que há algumas datas decisivas: somente a partir de 1994

é que começa a publicação dos 4 volumes dos chamados “Ditos e escritos” e, em 1999,

dos 13 volumes dos cursos proferidos pelo filósofo no Collège de France (o que só se

concluiu recentemente, em 2015); ou seja, houve um acréscimo no volume de textos

publicados que mais que dobrou o corpus foucaultiano que era acessível ao grande

público quando Foucault estava em atividade.

Assim, a partir destas publicações, e a possibilidade do acesso que se teve a elas,

a atualidade do pensamento e dos trabalhos de Foucault saltaram aos olhos de seus leitores

e intérpretes neste início de século. Basta percorremos o conjunto dos temas, problemas

e escritos de Foucault para nos darmos conta de que ele trata das questões que estão na

ordem do dia de nosso tempo. Poderíamos mencionar a questão da loucura, do saber

médico, do estatuto das ciências humanas, das prisões, do biopoder, do neoliberalismo,

da sexualidade, da ética, da moral, da estética, da subjetividade, enfim, a lista não é

pequena.

Sem contar o uso que é feito de seu pensamento pelas mais diversas disciplinas,

da economia à psicologia, e também do uso político/militante que é feito de seus trabalhos

no campo das lutas por novas formas de vida e de diversos movimentos sociais e políticos.

O conjunto de sua obra nos oferece, sem dificuldades, um panorama das principais

questões de nosso tempo. Assim, neste sentido, uma pergunta que nos causaria

dificuldade seria outra: o que “não” é atual nos trabalhos e no pensamento de Foucault?

Todavia, talvez seja também interessante tratar aqui não somente da noção de

atualidade como a conhecemos comumente, isto é, como aquilo que “está na ordem do

dia” ou aquilo que faz parte de “nossa conjuntura mais imediata”. Mas tomar atualidade

em um outro sentido. E num sentido que foi, em grande medida, forjado pelo próprio

19
Foucault, a saber, a atualidade como uma temporalidade inaugurada a partir de uma

descontinuidade na história do pensamento, isto é, atualidade como vinculada a uma

época. Assim, será útil tratar, de maneira breve, duas questões: a primeira, é então fazer

uma caracterização conceitual, bastante esquemática, do sentido de atualidade como

marco de uma temporalidade, e propor também, na esteira desse sentido de atualidade, a

seguinte questão: o que seria, como poderíamos pensar, uma “atualidade da questão da

moral” em Foucault?

Então, primeiro, vamos caracterizar essa noção de atualidade a partir de Foucault.

A noção de atualidade foi formulada por Foucault ao longo de seus trabalhos, e

especialmente expressa, no célebre ensaio “O que são as luzes?”4. Um texto que trata,

dentre outras coisas, da noção de modernidade a partir de questões propostas pelo filósofo

alemão, Immanuel Kant.

De início, Foucault menciona três sentido que poderíamos encontrar como

caracterizando a noção de atualidade em relação com o tempo presente: (i) pode-se

representar o presente como pertencendo a uma certa época do mundo, distinta das outras

por algumas características próprias; (ii) pode-se também interrogar o presente para nele

tentar encontrar os sinais que anunciam um acontecimento iminente; e, por fim, há um

(iii) sentido para a noção de atualidade que é analisar o presente como “um ponto de

transição na direção da aurora de um mundo novo”5.

A partir dessa caracterização da atualidade como conectada com o presente,

Foucault desenvolve, a partir da filosofia kantiana, um outro sentido de atualidade que é

de interrogação da relação que os próprios indivíduos estabelecem com esse tempo

presente. Assim, segundo Foucault, Kant, diferente dos filósofos anteriores, teria sido o

4
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumiéres?, pp. 1380-1397. In: FOUCAULT, M. Oeuvres, tome II.
Édition publiée sous la direction de Frédéric Gros. Paris, Collection Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard,
2015.
5
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumiéres?, p. 1381.

20
primeiro a tornar a questão mesma da atualidade como um problema filosófico. E Kant o

fez a partir do estabelecimento desse vínculo entre o indivíduo e seu próprio tempo.

Assim, ainda neste texto O que são as luzes?, Foucault escreve: “pergunto-me se

não podemos então caracterizar a modernidade mais como uma atitude do que como um

período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne

precisamente à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns, uma maneira

de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo,

marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como

aquilo que os gregos chamavam de êthos”6. Assim, a noção de atualidade ganha esse novo

sentido com o próprio advento da modernidade. É verdade que a modernidade é a nossa

atualidade, mas ela é também, além de uma temporalidade marcada por uma

descontinuidade, uma atitude; ou seja, um certo vínculo que os indivíduos estabelecem

com o presente e que forja um êthos. Então, a noção de atualidade ganha corpo filosófico

exatamente quando ela se vincula com essa atitude moderna para a constituição de um

êthos.

Agora, eu passo para o segundo ponto. A questão de uma atualidade no campo da

moral. Que, como veremos, a moral terá, por sua vez, uma relação também com essa

noção de atitude de uma época. Para isso, há uma famosa passagem que está no texto de

número 357 da edição dos Ditos e escritos, cujo título é “Uma estética da existência”. É

uma passagem na qual Foucault, ao esclarecer seu interesse pela Antiguidade nos diz que:

“da Antiguidade ao Cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente busca

de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras.” E, ele

prossegue: “e se eu me interesso pela Antiguidade é porque, por uma série de razões, a

ideia de uma moral como obediência a um código de regras está, atualmente, em vias de

6
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumiéres?, pp. 1387.

21
desaparecer, já desapareceu. E a esta ausência de uma moral responde, deve responder,

uma busca que é a de uma estética da existência.”7 Um dos pontos que merece relevo

nestas palavras de Foucault é o tom indicativo, aliás raro, com o qual ele justifica seu

itinerário pela Antiguidade greco-romana, e no qual ele aponta o que seria uma saída para

o problema moral em nosso tempo, qual seja: a busca de uma estética da existência.

Há uma outra passagem do volume II da História da sexualidade na qual Foucault

nos propõe a seguinte questão: “por que o comportamento sexual, as atividades e os

prazeres a ele relacionados, são objeto de uma preocupação moral?”8. Nesta pergunta,

neste modo mesmo de interrogar, já está presente uma crítica não somente da relação que

se estabelece entres esses elementos, entre sexo e moral, mas também do próprio discurso

que os interroga e que forja a partir deles, portanto, uma moralidade. Assim, é a

moralidade mesma que é posta em questão. E para tratar então do problema da moral,

Foucault o faz a partir de uma investigação cuja referência expressa são os filósofos

antigos. Como via de acesso aos filósofos antigos, Foucault mobiliza a noção estratégica

de cuidado de si. Essa noção faz para Foucault uma ponte entre o mundo antigo e o mundo

moderno. Uma noção rica, e complexa, que Foucault então usa como elemento de crítica

da moral.

Mas é preciso deixar claro que Foucault faz uma crítica a uma certa moral

moderna (em especial aquela que sofre uma inflexão a partir de Kant). Ora, segundo

Foucault, a moral moderna, uma vez alojada no próprio movimento do pensamento

moderno, não pode operar senão a partir de dentro de sua própria espessura. Ele nos diz

em um texto de As palavras e as coisas: “O pensamento moderno jamais pôde, na

verdade, propor uma moral: mas a razão disso não está em ser ele pura especulação; muito

7
FOUCAULT, M. Dits et écrits, II, no 357, « Une esthétique de l’existence », p. 1550-51.
8
FOUCAULT, M. História da sexulidade II : O uso dos prazeres, p. 16.

22
ao contrário, desde o início e na sua própria espessura, ele é um certo modo de ação.”9 E

para fazer sua crítica da moral, Foucault precisa então fazer uma crítica desse sujeito

moderno. A estratégia de Foucault para a crítica deste sujeito, é a mobilização da noção

de governo e das técnicas de si. O que nasce da crítica do sujeito moderno? O horizonte

para uma nova reposta para o problema da moral na forma de uma estética, não mais do

sujeito, mas de si mesmo, uma estética de si mesmo. Reencontramos assim a questão da

estética.

Neste sentido, a resposta para o problema da moral em Foucault está, portanto,

relacionada ao que ele chamou da constituição de uma “estética da existência”. Mas,

embora tenha deixado valiosas pistas em seus últimos textos, é verdade que ele não

desenvolve esta noção em sua amplitude. Agora, o que nos parece claro, a partir dos textos

que ele nos legou, e aos quais hoje temos acesso: a “estética da existência” se relaciona

ao projeto de uma resposta para o problema da moral que Foucault insiste, em diversas

vezes, em chamar de uma “ontologia crítica de nós mesmos”. Para o problema da moral,

uma estética que é uma “ontologia de nós mesmos”. Foucault percebeu a tensão que havia

em um momento crucial da história da moral no Ocidente, a saber, no período da ética

grega clássica. A ética grega tendia ora para uma política (ética é a ação justa, moral,

conforme as leis da cidade) ora para uma estética (ética é então a ação bela, a vida bela).

Foucault parece ter escolhido a segunda via como possibilidade de resposta às investidas

do poder em nosso tempo.

Assim, o movimento do pensamento de Foucault que visa a uma crítica da moral

abre caminho para uma (nova) reposta para o problema da moralidade como ética. E

crítica aqui deve ser entendida no sentido criado pelo próprio Foucault, a saber, como:

“l’art de n’être pas tellement gouverné”10. Ou seja, como uma recusa determinada de

9
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452-453.
10
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 37.

23
governo. Ética em Foucault, é importante ressaltar, não remete a valores transcendentes,

de bem ou mal, que parte da tradição faz uso para fundamentação de um sistema ético ou

moral. Ética é, antes de mais nada, o resultado de um trabalho de relação a si mesmo, que

forja uma relação a si determinada e que é, ao mesmo tempo histórica, isto é, ancorada

na atualidade, na concretude do tempo presente.

24
CAPÍTULO I

EM BUSCA DE UMA RELAÇÃO PERDIDA:


ÉTICA E “CUIDADO DE SI”

25
“Il s’agit, pour lui, de dégager de la mode ce qu’elle peut
contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du
transitoire.” BAUDELAIRE, C. Le Peintre de la vie moderne.

I. O problema filosófico do cuidado de si: a questão da subjetividade*.

“O que é o sujeito?” – Esta pergunta é feita há séculos pela filosofia e toda a sua

tradição. Travestida por as mais diversas tramas conceituais, ao longo da história da

filosofia, ela nos anima vivamente ainda hoje. Não sem razão, pois, Michel Foucault a

retoma, promovendo, contudo, uma série de deslocamentos e novas problematizações. O

filósofo francês a apresenta sob a forma do problema do cuidado de si – que em grego, é

dito epiméleia heautoû e, pelos romanos, transformado em cura sui. Um traço primeiro,

portanto, da peculiaridade foucaultiana consiste exatamente em buscar em autores greco-

romanos antigos esta noção para tratar dessa pergunta sobre o sujeito11.

*
Nota de tradução e de referência bibliográfica. Todas as traduções citadas neste trabalho foram feitas ou
revisadas (a partir das traduções disponíveis em língua portuguesa) por mim. Nos casos nos quais traduzo
diretamente da língua original, cito a referência do texto também na língua correspondente. Assim, por fim,
indico também as edições dos textos nas línguas originais, na seção Bibliografia, ao final deste trabalho. É
importante lembrar que já existem, no Brasil, várias edições (ou mesmo reimpressões) para um mesmo
texto de Foucault, havendo, muitas vezes, mudanças na paginação dos livros. Assim, indico na bibliografia
a exata edição à qual me refiro para melhor localização das passagens. No caso de textos antigos: neste
capítulo, para referência dos textos de Platão, uso, como é de praxe, o sistema de referência Stephanus, a
saber: título da obra, acompanhado de número que indica a página, seguido de letra que indica a coluna do
texto canônico; exemplo: Primeiro Alcibíades, 103a. Como se sabe, para os textos de Platão, Foucault faz
uso das edições bilíngues (grego/francês) da Collection des Universités de France das edições Les Belles
Lettres; assim, fiz, a partir do texto grego, um trabalho de cotejamento das traduções em francês e português
(a partir da tradução de C. A. Nunes) e, para as passagens que selecionei neste trabalho, não encontrei
divergências significativas.
11
Foucault é muito preciso ao falar da noção de “sujeito”. Quando ele trata desta noção, pela primeira vez,
no curso de 1982 (A hermenêutica do sujeito), referindo-se ao texto grego de Platão, ele faz a ressalva de
que é uma “questão que, consequentemente, não incide sobre a natureza do homem, mas que incide sobre
o que nós hoje – pois a palavra não está no texto grego – chamaríamos de a questão do sujeito”, cf.: A
hermenêutica do sujeito, p. 36-37. Também vale ressaltar alguns dos propósitos de Foucault com essa
problematização, ele diz, em um texto de uma conferência pronunciada no Dartmouth College em 1980,
que: “Esta genealogia [do “si moderno”] que é, há alguns anos, minha obsessão, porque é uma das vias
possíveis para se livrar da filosofia tradicional do sujeito, eu gostaria de apresentá-la em linhas gerais do
ponto de vista das técnicas, disso que eu chamo de técnicas de si”, cf.: L'origine de l'herméneutique de soi,
p. 66.

26
Nas palavras iniciais da primeira lição do curso de 1982, intitulado A

hermenêutica do sujeito12, Foucault nos diz: “A questão que eu gostaria de abordar este

ano é a seguinte: em que forma de história foram tramadas, no Ocidente, as relações, que

não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica habitual, entre estes dois

elementos, o ‘sujeito’ e a ‘verdade’?”13. E é a partir exatamente de um texto de Platão que

Foucault começa a sua investigação14.

De fato, o tema do cuidado de si é tratado por Platão em alguns de seus diálogos

de juventude, nos chamados diálogos socráticos. O diálogo Primeiro Alcibíades15, em

especial, trata este problema de uma maneira mais extensa. O diálogo narra um encontro

de Sócrates e Alcibíades. Alcibíades, jovem aristocrata ambicioso, almeja o posto

supremo do governo de Atenas. Ele pretende, na assembleia, dar conselhos aos atenienses

nos assuntos de guerra e paz da cidade, assuntos que, por sua vez, envolvem as noções de

justo e injusto.

Desse modo, em grande parte do diálogo, persegue-se uma determinação do que

é o justo e o injusto. A investigação se desdobra em analisar o que é o belo e o feio, o

vantajoso e o desvantajoso, o bom e o ruim e o modo como essas noções estão em relação

com o justo e o injusto. Sócrates mostra ao jovem Alcibíades que ele ignora estes

assuntos. Ocorre que exatamente esses assuntos são matéria para o exercício da política.

A partir deste ponto, são caracterizadas as três modalidades de indivíduos: os que sabem,

os que ignoram (e sabem que ignoram) e os que presumem saber (mas de fato não sabem).

Alcibíades é classificado por Sócrates como pertencente a este último grupo e é

12
FOUCAULT, M. L’Herméneutique du sujet: cours au Collège de France (1981-1982). Ed. estabelecida
por F. Gros sob dir. de F. Ewald e A. Fontana. Paris, Gallimard/Le Seuil, 2001. [A hermenêutica do sujeito:
curso dado no Collège de France 1981-1982. Trad. M. A. da Fonseca e S. T. Muchail. São Paulo, WMF
Martins Fontes, 2010, 3a ed.].
13
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 4.
14
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 30.
15
Cf.: PLATÃO. Alcibiade. Texto estabelecido e trad. por M. Croiset. Tomo I. Paris, Société d’Édition
Les Belles Lettres, 1984. [Primeiro Alcibíades. Trad. de C. A. Nunes e rev. de B. Nunes. Belém, 2007, 2º
ed. rev.].

27
exatamente a partir dessa constatação que, adiante, Sócrates introduzirá o tema do

cuidado de si. Este tema é trazido por Sócrates porque, para governar a cidade, são

requeridos certos conhecimentos e certas qualidades que Alcibíades acaba reconhecendo

não possuir, o diálogo os leva a tratar da questão de “como aperfeiçoar-se a si mesmo”16.

Esse aperfeiçoamento estará vinculado ao exercício da epiméleia heautoû, do cuidado de

si mesmo, do ocupar-se de si mesmo.

Este problema, portanto, é introduzido por Sócrates neste contexto que é, ao

mesmo tempo, político, isto é, de requisitos para o governo da cidade, e também ético, no

sentido da adoção de uma postura individual de relação a si mesmo. Sócrates apresenta

o problema nos seguintes termos: “Quem ignora, portanto, as coisas que lhe dizem

respeito, não há de conhecer, também, as dos outros. (...) E se não conhece as dos outros,

não conhecerá também as da cidade. (...) Um homem, nessas condições, nunca poderá

exercer a política.”17

Foucault, por sua vez, especialmente n’A hermenêutica do sujeito, retoma

exatamente este problema apontado por Sócrates nos seguintes termos: “‘ocupar-se de si

mesmo’ está implicado e se deduz da vontade do indivíduo de exercer o poder político

sobre os outros. Não se pode governar os outros, não se pode bem governar os outros,

não se pode transformar seus privilégios em ação política sobre os outros, em ação

racional, se não se está ocupado de si mesmo. Entre privilégio e ação política, eis,

portanto, o ponto de emergência da noção de cuidado de si.”18 Temos, assim, a leitura e

o acento que Foucault desenvolve a partir do texto platônico: cuidado de si e política na

forma do governo dos outros. Leitura que o levará a traçar elementos para suas pesquisas

a partir dos anos 80.

16
PLATÃO, Primeiro Alcibíades, 132b et seq.
17
PLATÃO. Primeiro Alcibíades, 133d-134a.
18
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 35.

28
E, neste mesmo movimento, Foucault coloca o tema do cuidado de si no diapasão

sujeito e verdade. Ele o insere, mais precisamente, em uma “reflexão histórica sobre o

tema das relações entre subjetividade e verdade”19, e assim vai construindo a trama

conceitual com a qual ele investiga essa pergunta pelo sujeito e que o guiará nesse

percurso pela Antiguidade. Na sequência, Foucault indica a amplitude deste tema:

“parece-me que esta noção de epiméleia heautoû acompanhou, enquadrou, fundou a

necessidade de conhecer-se a si mesmo não apenas no momento de seu surgimento no

pensamento, na existência, no personagem de Sócrates. Parece-me que a epiméleia

heautoû (esse cuidado de si, e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um

princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a

cultura grega, helenística e romana.”20

Todavia, Foucault ressalta que o tema do cuidado de si foi ofuscado, ao longo da

história do pensamento ocidental, por um elemento a ele relacionado: o conhecimento de

si. O conhecimento de si, que está associado à conhecida fórmula do preceito délfico

“conhece-te a ti mesmo” (em grego, gnôthi seautón), indicaria que, na história do

pensamento em geral, e na história da filosofia em particular, esta prescrição é que

fundaria o problema da relação do sujeito com a verdade. O conhecimento de si tornara-

se o termo chave para decifrar o binômio sujeito/verdade. Assim, um longo

desenvolvimento histórico-filosófico havia embaralhado as peças deste problema e o

ponto é que o conhecimento de si teria encoberto os outros elementos que constituíam o

cuidado de si. A tarefa inicial de Foucault será, pois, trazer à tona os elementos que

cercam este tema e, para isso, será preciso fazer uma história desta noção.

19
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 3.
20
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 9-10.

29
II. História do cuidado de si: da filosofia grega antiga ao ascetismo cristão.

Foucault retoma, como expus acima, essas questões do Primeiro Alcibíades

extensamente ao longo d’A Hermenêutica do sujeito e, também, em particular no volume

III da História da Sexualidade21. Partindo, portanto, do texto de Platão, e de elementos

da cultura grega antiga, o filósofo francês amplia e percorre toda a história do problema.

Uma noção extremamente rica e de desenvolvimento bastante longo e complexo não só

no âmbito estritamente filósofo, mas também na cultura do Ocidente. Tanto é assim que,

nos séculos I e II d. C, o cuidado de si toma os contornos e as dimensões de uma “cultura

de si”. Foucault defende que a filosofia deste período, que tem pretensões de oferecer-se

como uma “arte da existência”, tem o tema do cuidado de si como um ponto privilegiado

para seu desenvolvimento22.

Pode-se, assim, caracterizar inicialmente ao menos três grandes momentos da

história do problema do cuidado de si23. Primeiro, o “Momento socrático-platônico”

(século V a. C.), que é também o do surgimento da epiméleia heautoû na reflexão

filosófica; um segundo momento é o chamado período da “Idade de ouro da cultura de

si”, que é situado entre os dois primeiros séculos de nossa era; e, por fim, um terceiro

momento, situado entre os séculos IV e V, que é a chamada “Passagem da ascese

filosófica pagã para o ascetismo cristão”. São, portanto, sobre esses três grandes marcos

histórico-filosóficos que Foucault desenvolve suas investigações sobre a história da

subjetividade antiga tendo como tela essa noção da epiméleia heautoû.

21
Cf.: FOUCAULT, M. L’Histoire de la sexualité, T. 3, Le Souci de soi. Paris, Gallimard, Bibliothèque des
Histoires, 1984. [História da sexualidade III: O cuidado de si. Trad. de M. T. da C. Albuquerque; rev. téc.
de J. A. G. Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985, 7a ed.].
22
FOUCAULT, M. História da sexualidade III, p. 50.
23
Edgardo Castro, em seu instrutivo Vocabulário de Foucault, faz justamente um verbete para o “cuidado
de si”. Com correção, ele traça em linhas gerais, e nos limites de uma obra deste gênero, a história desta
noção bem como oferece valiosas indicações da ocorrência deste problema na obra de Foucault. Servi-me
de muitas das indicações dele na elaboração deste tópico de meu trabalho. Cf.: CASTRO, E. Vocabulário
de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores, p. 92-96.

30
De início, Foucault lembra, porém, que esse conjunto técnicas e práticas, essa

“exigência” do cuidado de si mesmo – e que se cristalizou na fórmula do cuidado de si –

é, ela mesma, anterior à formulação filosófica que Platão lhe deu. Ela tem origem, pois,

em práticas muito mais arcaicas da cultura grega. Havia toda uma “tecnologia de si” que

era requerida para o acesso à verdade na Grécia arcaica: ritos de purificação, técnicas de

concentração da alma, técnicas de retiro, exercícios de resistência, dentre outras. Todo

esse conjunto de técnicas e práticas perdurou por muito tempo na cultura grega e podem-

se ver elementos dele em correntes filosóficas como o pitagorismo24.

Na Grécia clássica, há o primeiro tratado sistematizado do cuidado de si elaborado

por Platão. Platão apresenta Sócrates, na Apologia25, como mestre do cuidado de si, como

aquele que tem por ofício fundamental incitar os outros a não se descurarem deles

mesmos26. E no Primeiro Alcibíades, tem-se a formulação a partir do seguinte ponto: “A

questão colocada por Sócrates (...) é: deves ocupar-te de ti; mas o que é este si mesmo

(autó tò autó), pois que é de ti mesmo que deves ocupar-te?”27. Sócrates, neste ponto,

observa Foucault, afasta-se de uma investigação sobre uma natureza do homem em geral

e problematiza esse “si mesmo” em referência ao indivíduo (no caso, Alcibíades).

Foucault ressalta, ainda, o interesse e a peculiaridade do problema posto por Sócrates:

“questão que, consequentemente, não incide sobre a natureza do homem, mas que incide

24
“[...] exemplo [de técnicas de si], a preparação purificadora para o sonho. Uma vez que, para os
pitagóricos, sonhar enquanto se dorme é estar em contato com um mundo divino, o da imortalidade, o do
além da morte, que é também o da verdade, é preciso se preparar para o sonho. É necessário, portanto, antes
do sono, nos entregar a algumas práticas rituais que vão purificar a alma e torná-la capaz,
consequentemente, de entrar em contato com o mundo divino, compreender suas significações, mensagens
e verdades, reveladas sob uma forma mais ou menos ambígua. Então, há um certo número dessas técnicas
de purificação: escutar música, respirar perfumes e, certamente, também praticar o exame de consciência.
Reconstituir o nosso dia todo, lembrarmo-nos das faltas cometidas e, por conseguinte, expurgá-las e delas
nos purificarmos por este mesmo ato de memória, é uma prática cuja paternidade foi sempre atribuída a
Pitágoras.” in FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 45.
25
PLATÃO. Apologie de Socrate. Texto estabelecido e trad. por M. Croiset. Tomo I. Paris, Société
d’Édition Les Belles Lettres, 1984. [Apologia de Sócrates. Introd., trad. e notas de A. Malta. Porto Alegre,
L&PM, 2011].
26
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 6-8.
27
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 36.

31
sobre o que nós hoje – pois a palavra não está no texto grego – chamaríamos de a questão

do sujeito. O que é este sujeito, qual é este ponto sobre o qual deve orientar-se esta

atividade reflexiva, esta atividade refletida, esta atividade que retoma do indivíduo para

ele mesmo? O que é este si [soi]?”28. Esta exigência de cuidado é assim posta por Sócrates

a Alcibíades na direção de uma prática que é ao mesmo tempo ética e política. Ademais,

no Primeiro Alcibíades, o problema do cuidado de si aparece relacionado a três questões

presentes no diálogo: a pedagogia, a política e o conhecimento de si – questões estas que

caracterizarão, portanto, a emergência desta noção no período clássico da cultura grega.

No período posterior, na chamada Idade de Ouro do cuidado de si, esta noção

sofre algumas transformações – precisamente nos séculos I e II de nossa era –, há uma

mudança que consiste em um deslocamento da prática de si do final da juventude para

vida adulta que, como analisa Foucault, traz como consequências: (i) uma função crítica

que desdobra e recobre a função de formação; (ii) uma aproximação com a medicina, que

traz consigo um cuidado que não põe hierarquias entre o cuidado do corpo e da alma –

como Platão o fizera; (iii) uma valoração da velhice. Há também uma ampliação do

alcance dessa prática na cultura. Para caracterizar este período, Foucault mobiliza, além

de obras de correntes filosóficas como estoicismo e epicurismo, textos e autores da

medicina e de outros saberes da época. Isso porque ocorre uma ampliação do alcance

social do cuidado de si para além do âmbito estritamente filosófico29.

28
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 36-37.
29
No vol. III da História da sexualidade, p. 50, Foucault faz um detalhado desenho do desenvolvimento
desta noção nos séculos I e II, ele diz que: “[...] esse tema [do cuidado de si] que, extravasando de seu
quadro de origem e se desligando de suas significações filosóficas primeiras, adquiriu progressivamente as
dimensões e as formas de uma verdadeira ‘cultura de si’. Por essa palavra é preciso entender que o princípio
do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito segundo o qual é preciso ocupar-se consigo
mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou
a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou maneiras de viver; desenvolveu-se
em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas;
ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e
até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e elaboração de um
saber.”

32
Por fim, nos séculos IV e V, a noção de cuidado de si sofre mais uma nova e

decisiva inflexão: é o período do ascetismo cristão30. Com o cristianismo, as práticas de

si são integradas ao exercício do poder pastoral. Há uma integração e uma circularidade

entre conhecimento de si, conhecimento da verdade e cuidado de si. De modo que as

práticas de si têm como função dissipar as “ilusões interiores”; e o conhecimento de si

não é um voltar-se para si, mas uma renúncia de si mesmo.

Agora, delimitado os contornos principais da história desta noção na Antiguidade,

Foucault poderá ler os traços do destino que a Idade Moderna concedeu para esse

problema. Destino este que estará marcado, inicialmente, pela supremacia do

conhecimento de si. Todavia, ao fazer a história do problema, vê-se que este elemento –

o conhecimento de si – foi apenas “mais uma” das técnicas exigidas para o cuidado de si

e não se confundia com ele, tampouco o subsumia31.

É claro, pois, que houve razões e transformações histórico-filosóficas para esta

configuração moderna na qual o conhecimento de si tomou a cena. A tarefa foucaultiana,

doravante, será desvendar estes elementos e fazer emergir a história do problema que o

levará também a uma (nova) história do problema do sujeito.

30
Cf.:“Se a noção de cuidado de si, que vemos, portanto, surgir de maneira muito explícita e clara desde o
personagem de Sócrates, percorreu, seguiu, o decurso de toda a filosofia antiga até o limiar do cristianismo,
também reencontraremos esta noção de epiméleia (cuidado) no cristianismo [...]. Desde o personagem de
Sócrates interpelando os jovens para lhes dizer que se ocupem deles mesmos até o ascetismo cristão que dá
início à vida ascética com o cuidado de si, vemos uma longa história da noção de epiméleia heautoû.” in:
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 11. Foucault faz uma análise pormenorizada do conjunto
de técnicas de si do ascetismo cristão, especialmente, na conferência “Cristianismo e confissão”, que
encontramos em: FOUCAULT, M. L'origine de l'herméneutique de soi: conférences prononcées à
Dartmouth College, 1980. Edição estabelecida por H. Fruchaud e D. Lorenzini; intr. e aparato crítico de L.
Cremonesi, A. I. Davidson, O. Irrera. Paris, J. Vrin, 2013).
31
Sobre esse ponto, vale ressaltar o comentário oportuno que Salma Tannus faz no qual ela ressalta que o
“cuidado de si corresponde a linhagem espiritual do pensamento segundo qual o aceso à verdade é
alcançado por atos ou práticas envolvendo e transformando todo o ser do sujeito. Ao conhecimento de si
corresponde o pensamento de tipo representativo segundo o qual o acesso à verdade é privilégio do sujeito
em razão de sua própria e inalterável estrutura, precisamente a de ser sujeito cognoscente.” MUCHAIL, S.
T. Foucault mestre do cuidado, p.15.

33
III. Cuidado de si e Idade Moderna: ética e história do sujeito.

Ao fazer o diagnóstico das razões do insucesso e do “apagamento” da noção de

cuidado de si na Idade Moderna (Foucault aqui se reporta ao século XVII32), o filósofo

cunha a expressão “momento cartesiano”33 – uma inflexão que instaurara a “história da

verdade” no período moderno. Com isso, Foucault quer dizer que “entramos na Idade

Moderna [...] no dia em que admitimos que o que dá o acesso à verdade, as condições

segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade, é o conhecimento e tão somente o

conhecimento”34, sem que seja requerido mudanças ou alterações no ser do sujeito para

o acesso à verdade. Ora, segundo Foucault, o procedimento cartesiano nas Meditações

punha a “evidência”, tal como aparece efetivamente à consciência, sem nenhuma dúvida

possível, como ponto de partida do procedimento filosófico; e é, portanto, ao

conhecimento de si, ao menos como forma de consciência, que se refere o procedimento

cartesiano. O momento cartesiano, pois, requalificou filosoficamente o preceito

“conhece-te a ti mesmo” na forma do conhecimento de si e, em contrapartida,

desqualificou o cuidado de si – excluindo-o do campo do pensamento filosófico moderno.

Assim, de início, podemos dizer que a investigação do destino do cuidado de si

permite a Foucault, ao menos, escrever uma (nova) história do sujeito ou, em termos

estritamente foucaultianos, “uma história dos modos de subjetivação”. O ponto crucial é

que fazer esta (nova) história faz emergir também o problema da ética e da moral, que

32
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 15.
33
Foucault ressalta que a denominação “momento cartesiano” encontra seu sentido em um novo
procedimento de acesso à verdade que se instaura no século XVII, sem que isso signifique que foi
propriamente o filósofo René Descartes seu inventor ou mesmo o primeiro a realizá-lo. Contudo, mesmo
que não tenha sido pronunciado, no manuscrito do início da segunda hora da aula de 6 de janeiro de 1982,
encontra-se escrito uma menção expressa a Descartes e a Kant a propósito da “quebra do vínculo” entre o
acesso à verdade e a exigência de transformação do sujeito : “quando Descartes disse que a filosofia
sozinha se basta para o conhecimento, e quando Kant completou dizendo que, se o conhecimento tem
limites, eles estão todos na própria estrutura do sujeito cognoscente, isto é, naquilo mesmo que permite o
conhecimento”.
34
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 15.

34
esteve estritamente vinculado ao cuidado de si ao longo de toda a história do

desenvolvimento desta noção. Donde, talvez, uma das razões pelas quais Foucault ter

insistido na análise do Primeiro Alcibíades de Platão – onde temos claramente a

confluência desses elementos e suas imbricações.

Em uma famosa passagem, Foucault, ao esclarecer seu interesse pela Antiguidade,

nos diz que “da Antiguidade ao Cristianismo, passa-se de uma moral que era

essencialmente busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema

de regras.” E em tom de confissão diz: “e se eu me interesso pela Antiguidade é porque,

por uma série de razões, a ideia de uma moral como obediência a um código de regras

está, atualmente, em vias de desaparecer, já desapareceu. E a esta ausência de uma moral

responde, deve responder, uma busca que é a de uma estética da existência.”35 Um dos

pontos que, por hora, merece relevo nestas palavras de Foucault é o tom propositivo com

que ele, ao justificar o seu itinerário pela Antiguidade, indica o que seria uma saída para

o problema moral em nosso tempo não seria uma nova moral mas o que ele chama de

uma estética da existência. Todavia, há uma outra declaração de Foucault, neste mesmo

período, em que ele parece ir em outra direção, o filósofo diz: “eu não sou um profeta,

não sou um programador, não tenho nada a dizer [para as pessoas] sobre o que elas têm

de fazer, eu não tenho de lhes dizer: ‘isso é bom para vocês; isso não é bom para vocês’.

Eu tento analisar uma situação no que ela pode ter de complexa, com a função – nesta

tarefa de analisar – de permitir, ao mesmo tempo, a recusa, a curiosidade e a inovação. É

isso. Não tenho de lhes dizer: ‘isso é bom para vocês’”36. Aqui, ele se mostra refratário

exatamente a uma pretensão de cunho dogmático ou mesmo propositivo para sua

filosofia.

35
FOUCAULT, M. Dits et écrits, II, no 357, « Une esthétique de l’existence », p. 1550-51 (grifos meus).
36
FOUCAULT, M. L'origine de l'herméneutique de soi, p. 154.

35
IV. Uma história da ética é uma ética?

Diante desses impasses, nos parece que o alcance e o sentido do uso que Foucault

faz dos autores antigos constitui um campo de estudos extremante rico e complexo. Por

conseguinte, o que poderíamos chamar de uma “atualização”37 que Foucault faz dos

autores deste período, e em especial neste ponto das questões de ética e moral, não foi

ainda suficientemente esclarecida, e é preciso, pois, avançar neste campo para

compreendermos o percurso foucaultiano dos últimos anos de sua trajetória intelectual.

Na célebre Introdução ao volume II da História da sexualidade, Foucault, em um

tom memorial e bastante incisivo, faz uma espécie de retrospecto de seu percurso e de

sua própria obra. Nestas páginas, ele nos oferece valiosas pistas de como se poderão ler

seus escritos, e de seus propósitos ao empreender os estudos que até então fizera. E é

neste tom que, na parte III (Moral e prática de si) desta Introdução, após explicitar e

tratar das ambiguidades da palavra “moral”38, ele diz que tais distinções “não devem ter

apenas efeitos teóricos. Elas têm também suas consequências para a análise histórica”39.

Nesse sentido, Foucault dirá que há, ao menos, três maneiras de se fazer uma

história da moral, e quem se dispuser a fazê-la deve, pois, levar em conta as três realidades

que a palavra moral recobre, o que resultaria, por conseguinte, em: (i) uma história das

moralidades, aquela que estuda em que medida as ações dos indivíduos ou grupos são

conformes ou não às regras ou valores propostos por diferentes instâncias; (ii) uma

história dos códigos, aquela que analisa propriamente os diferentes sistemas de regras e

37
Tomo aqui a noção de “atualização” no sentido em que Paul Veyne a elabora ao se referir a Foucault,
isto é, como uma espécie de herança crítica, ele diz que: “um filósofo é aquele que, a cada nova atualidade,
diagnostica o novo perigo e mostra uma nova questão. Com esta concepção bastante nova da filosofia, a
verdade clássica está morta, embora, da confusão historicista moderna, se extraia a ideia da atualidade” (em
seu precioso artigo Le dernier Foucault et sa morale, p. 274).
38
Cf.: FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 33-34. Devo ao instrutivo artigo de Francis Wolff,
Eros e logos: a propósito de Foucault e Platão, a “sugestão para atentar para estas noções” nesta Introdução
da História da sexualidade II, embora a análise do professor F. Wolff enfatize outros pontos deste texto.
39
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 37.

36
valores que estão em jogo em uma sociedade ou em determinado grupo; e, por fim, (iii)

uma história da maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como

sujeitos de conduta moral, neste caso, a análise histórica incidirá sobre a instauração e o

desenvolvimento das “relações a si”. Foucault enfatiza que esta última modalidade é o

que propriamente se poderá chamar de uma história da ética e da ascética, entendidas

como história das formas da subjetivação moral e das práticas de si, e é, portanto, o que

ele pretende fazer40.

Nesta direção, há, ainda, uma passagem bastante significativa, e que julgo bastante

decisiva, no texto desta Introdução que, dita em meio a essa série de “declarações

memoriais”, pode passar despercebida. A passagem a que me refiro é a seguinte: “Os

estudos que se seguem [na História da sexualidade], assim como outros que

anteriormente empreendi, são estudos de ‘história’ pelos campos que tratam e pelas

referências que assumem; mas não são trabalhos de ‘historiador’. [...]. Foi um exercício

filosófico: sua aposta foi saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história

pode liberar o pensamento do que ele pensa silenciosamente e lhe permitir pensar de uma

maneira diferente.”41 Sem querer interpretar demasiadamente esta passagem, tem-se aqui

expressamente, ao menos, uma demarcação do campo em que Foucault declara ter

construído na sua trajetória (o que nos oferece, por sua vez, elementos e horizontes para

empreender o trabalho de interpretação), a saber, o do exercício filosófico.

Embora demarque o campo e o objeto, em que sentido se pode entender esse

empreendimento de Foucault? Inicialmente, como vimos, pode-se dizer que se trata de

fazer uma história das formas de subjetivação moral e das práticas de si (cujo problema

do cuidado de si é um dos pontos privilegiados), e fazer história num sentido de um

40
Cf. História da sexualidade II, p. 37-38. Podemos dizer que Foucault fez essa modalidade de investigação
histórico-filosófica tanto nos volumes II e III da História da sexualidade, como também no seu curso de
1982, A hermenêutica do sujeito.
41
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 16 (grifos meus).

37
exercício que se volta para/e modifica o próprio pensamento. Essas são, digamos, as

linhas gerais. Mas qual é o desenho desta história da ética e em que medida nela pode-se

ler, ou se pode reivindicar, elementos que emergem no rastro deste trabalho histórico-

filosófico construído por Foucault?

Em um notável e belíssimo artigo, Le dernier Foucault et sa morale, Paul Veyne

reconhece o caráter problemático de uma moral de estirpe foucaultiana. Ele escreve que

“Foucault tinha uma concepção da moral tão particular que o problema é: no interior de

sua filosofia, uma moral seria possível?”42. Veyne defenderá que, na esteira da moral

grega, embora reconheça sua morte e a impossibilidade de ressuscitá-la, Foucault

recuperará dela um aspecto, qual seja, “a ideia de um trabalho de si sobre si” e que assim

seria possível “retomar um sentido atual, à maneira dessas colunas de templos pagãos que

vemos muitas vezes reempregadas em edifícios mais recentes”43. Ora, de fato, Foucault,

ao retomar o problema do cuidado de si, insiste no elemento do trabalho de si para a

constituição do sujeito moral.

Frédéric Gros, por sua vez, ao comentar a função da noção do cuidado de si n’A

Hermenêutica do sujeito, ressalta, com cautela, que ela se apresenta como uma peça de

“análise histórica, isto quer dizer – é um primeiro mal-entendido a sublinhar [observa

Gros] – que com o cuidado de si, tem-se menos uma escolha ética reivindicada por

Foucault que um objeto de análise histórica.”44 E prossegue em sua interpretação dizendo

que: “É difícil, ao menos em um primeiro momento, considerar que esta tematização do

cuidado de si se deixe tornar uma hipótese ‘moral de Foucault’”45. No entanto, Gros

insistirá, na sequência, que a subjetivação do cuidado de si é aquilo que “cava entre o si

42
VEYNE, P. Le dernier Foucault et sa morale, p. 269.
43
Idem, ibidem, p. 274.
44
GROS, F. À propos de l’herméneutique du sujet, p. 150-151.
45
Idem, ibidem, p. 150-151.

38
e o si mesmo a distância de uma obra”46, isto é, haveria nisso a abertura de um certo

espaço subjetivo, e que Foucault o teria trazido à tona ao estudar algumas noções oriundas

da filosofia helenística e romana.

Ao menos, das leituras de Paul Veyne e Frédéric Gros, pode-se depreender um

ponto comum de interpretação, a saber, há a recuperação de um elemento da moral antiga:

o trabalho de si para consigo. Este aspecto, com efeito, é presente na moral greco-

romana, e é também recuperado por Foucault quando ele insiste neste elemento que

constitui o cuidado de si. Mas poderíamos reivindicar algo mais? E, ainda, pode-se

insistir: é possível construir, a partir deste e de outros possíveis elementos, uma resposta

para o problema da ética de cunho propriamente foucaultiano, qual seria seu desenho ou

arquitetura teórica? Parece-me que enfrentar esta questão trará ganhos para compreensão

do lugar de Foucault em relação à tradição filosófica e o itinerário dos últimos anos de

sua atividade intelectual.

46
Idem, ibidem, p. 154.

39
CAPÍTULO II

MORAL, ÉTICA E HISTÓRIA

40
“Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”
ANDRADE, C. D. Os ombros suportam o mundo.

I. O caráter problemático de uma moral na filosofia de Foucault.

Como assinalamos acima, não é um ponto pacífico a atribuição de uma moral à

filosofia de Michel Foucault. Assim, para avançarmos na formulação desse problema, é

necessário oferecer alguns elementos para compreendermos a noção e a própria questão

da moral em Foucault. Ademais, ao final deste capítulo, pretendo apresentar algumas

proposições que a interpretação de Gilles Deleuze47 fez para esse ponto no pensamento

de Foucault.

Usaremos, principalmente, dois textos de Foucault: um texto do Capítulo X de As

palavras e as coisas e um outro da Introdução ao volume II da História da Sexualidade.

Tentarei mostrar que a noção de “moral” deve ser buscada, ao menos do ponto de vista

formal, na compreensão de outras duas noções, a saber: as noções de “pensamento” e

“história” desenvolvidas nestes textos por Foucault. Comecemos então pelo texto de

1966.

47
Servi-me principalmente do célebre livro de Deleuze sobre Foucault: DELEUZE, G. Foucault. Paris,
Editions de Minuit, 2004 (neste trabalho, cito a tradução, com pequenas correções, e a paginação da edição
brasileira: DELEUZE, G. Foucault. Trad. C. S. Martins. São Paulo, Brasiliense, 2005). Também faço
referência às aulas transcritas (e ainda não editadas em livro na França) do curso “Les formations
historiques”, pronunciado no ano universitário de 1985-1986 na Université de Vincennes, e que estão
disponíveis no site: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/rubrique.php3?id_rubrique=21 (acessado em
novembro de 2016).

41
II. As palavras e as coisas: é possível uma moral na épistémè Moderna?

Uma das menções mais intrigantes de Foucault à noção de moral é certamente a

presente no capítulo “O homem e seus duplos” de As palavras e as coisas48. Exatamente

no tópico V, “O cogito e o impensado”, ele retoma um dos problemas centrais de As

palavras e as coisas que é, como sabemos, a questão do ser do homem. Antes de anunciar,

no último capítulo desse livro, a célebre e iminente “morte do homem”, Foucault faz uma

extensa análise da própria noção de homem que ele diz ter data recente e está prestes a

desaparecer como “um rosto de areia na orla do mar”, o que não deixará qualquer vestígio.

Antes, contudo, Foucault busca desenhar os contornos dessa figura central que

surge e que, em grande medida, caracteriza a nossa épistémè, isto é, a épistémè Moderna.

Neste ponto, Foucault dirá que a figura do homem não pode apoiar-se em um elemento

como o cogito cartesiano e tampouco conformar-se ao impensado. O homem, Foucault

insiste em várias passagens deste capítulo, é um duplo: empírico e transcendental. Neste

sentido, o “homem” não pode reivindicar, de imediato, a transparência do cogito nem

também poderá mais residir no que Foucault chama de “inércia objetiva” – ou seja, nisso

“que, por direito, não acede e nem acederá jamais à consciência de si”49.

O homem é o lugar do desconhecimento, mas que, por isso mesmo, se dá como

espaço para o conhecimento. Há que se observar, assinala Foucault, que a “reflexão

transcendental moderna” (ou seja, a que se ancora na fenomenologia de Husserl) difere

da questão transcendental em Kant, pois a moderna se ampara na “existência muda do

não conhecido” que é percorrido pela possibilidade de conhecer; ao passo que em Kant,

48
Cf.: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução
de S. T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2007, 9ª ed, p. 417.
49
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 445.

42
a reflexão transcendental, tendo como horizonte a ciência da natureza, poderá ser objeto

de conhecimento dado pela experiência50.

Nos dois últimos parágrafos deste tópico, bastante central no livro, Foucault faz

uma espécie de conclusão e aponta algumas implicações da instauração da figura do

homem no pensamento moderno e no campo da épistémè. Uma consequência primeira é

que, alojado na espessura do pensamento, o homem “importa” um imperativo que

“perturba” o próprio pensamento. Nas diversas formas em que o homem aparece ao

pensamento ele revela esse caráter duplo do próprio pensamento, que é ser “por si mesmo

e na espessura de seu trabalho, ao mesmo tempo saber e modificação do que ele sabe,

reflexão e transformação do modo de ser daquilo sobre o que ele reflete.”51 Assim, a partir

dessa maneira como o pensamento moderno opera, Foucault anuncia também uma

consequência, à primeira vista surpreendente, para o problema da moral na Modernidade,

a saber: “o pensamento moderno jamais pôde, na verdade, propor uma moral”52.

Foucault diz, em uma longa passagem, que “há nisso <ou seja, no modo como o

pensamento operar em nossa época> alguma coisa profundamente ligada à nossa

modernidade; afora as morais religiosas, o Ocidente só conheceu, sem dúvida, duas

formas de ética: a <ética> antiga (sob a forma do estoicismo ou do epicurismo) <que>

articulava-se com a ordem do mundo e, descobrindo sua lei, podia deduzir o princípio de

uma sabedoria ou uma concepção da cidade (...); <e> a <ética> moderna <que>, em

contrapartida, não formula nenhuma moral, na medida em que todo imperativo está

alojado no interior do pensamento e de seu movimento para captar o impensado [Acresce-

se a este texto a nota 2, da p. 452: “Entre as duas <éticas, a antiga e a moderna>, o

momento kantiano constitui um ponto de juntura: é a descoberta de que o sujeito,

50
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 444 et seq.
51
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452.
52
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452.

43
enquanto racional, se dá a si mesmo sua própria lei que é a lei universal.”]; é a reflexão,

é a tomada de consciência, é a elucidação do silencioso, a palavra restituída ao que é

mudo, o advento à luz dessa parte de sombra que furta o homem a si mesmo, é a

reanimação do inerte, é tudo isso que constitui, por si só, o conteúdo e a forma da ética

<moderna>. O pensamento moderno jamais pôde, na verdade, propor uma moral: mas a

razão disso não está em ser ele pura especulação; muito ao contrário, desde o início e na

sua própria espessura, ele é um certo modo de ação.”53

E, Foucault, ainda prossegue: “Para o pensamento moderno, não há moral

possível; pois, desde o século XIX, o pensamento já ‘saiu’ de si mesmo em seu ser

próprio, não é mais teoria; desde que ele pensa, fere ou reconcilia, aproxima ou afasta,

rompe, dissocia, ata ou reata, não pode impedir-se de liberar e de submeter. (...) O

pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo,

uma ação – um ato perigoso”54. Ora, Foucault expressa com bastante clareza que é, em

seu próprio desenvolvimento, na medida em que ele opera, que o pensamento, na

Modernidade, ele próprio, já é uma moral uma vez que carrega em si o imperativo de seu

próprio desdobrar-se e também o horizonte de sua ação. Assim, não haveria algo como

um campo moral separado cujo modo e funcionamento pudesse reivindicar um princípio

exterior ao próprio pensamento.

Todavia, como sabemos, nos anos 1980, temos um outro cenário. Sobre esse novo

cenário, Deleuze dirá que Foucault “descobre a relação consigo, como uma nova

dimensão irredutível às relações de poder e de saber que constituíram o objeto dos livros

precedentes: é preciso então efetuar uma reorganização do conjunto”55. Vejamos, pois,

alguns aspectos do texto dos anos 1980, O uso dos prazeres.

53
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452-453 (com grifos e explicações no corpo do texto
minhas).
54
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 453.
55
DELEUZE, G. Foucault, p. 109.

44
III. História da sexualidade II: a grade de inteligibilidade da moral.

Como dissemos anteriormente, na Introdução ao volume II da História da

sexualidade (O uso dos prazeres), Foucault desenha um espaço para a moral e oferece

inclusive um “quadro de inteligibilidade” para analisá-la. Neste texto, adotando um tom

memorial e bastante incisivo, Foucault faz uma espécie de retrospecto de seu percurso

intelectual e de seus trabalhos. Aqui ele nos oferece valiosas pistas de como se poderão

ler seus escritos, e de seus propósitos ao empreender os estudos que até então fizera. E é

neste tom que, na parte III desta Introdução (cujo subtítulo é exatamente Moral e prática

de si), ele trata de maneira relativamente extensa, das ambiguidades da palavra “moral”56,

dizendo que é preciso fazer algumas distinções e que elas “não devem ter apenas efeitos

teóricos. Elas têm também suas consequências para a análise histórica”57..

Foucault escreve que moral58, em um primeiro sentido, é (i) “um conjunto de

valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de

aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as

igrejas etc.”; o que pode ser expresso por um código moral, ou seja, um conjunto

prescritivo de regras e valores “explicitamente formulados em uma doutrina coerente e

em um ensinamento explícito” dirigido aos indivíduos e grupos. Em um segundo sentido,

continua Foucault, moral é a moralidade dos comportamentos, isto é, (ii) “o

comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos:

designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente

a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a

56
Cf.: páginas 32-33 [p. 33-34] da História da sexualidade II.
57
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 37.
58
N.B.: parte dos desenvolvimentos a seguir, escrevi e trabalhei no Capítulo anterior e agora os retomo à
luz e com o foco especificamente na noção de moral.

45
uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores.” E,

por fim, há ainda um jogo entre o que é uma regra de conduta e a conduta medida pela

regra, resultando em um terceiro sentido para a palavra moral que é o sentido de maneira

de conduzir-se, isto é, a “maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito

moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código”, o que

resulta no ponto em que o sujeito moral, passa a mensurar a sua própria conduta

constituindo-se como sujeito ético a partir da operação de quatro elementos: a

determinação da substância ética, o modo de sujeição, a elaboração do trabalho ético e a

teleologia de suas ações.

A partir desse quadro, Foucault dirá que há, ao menos, três maneiras de se fazer

uma história da moral, e quem se dispuser a fazê-la deve, pois, levar em conta as três

realidades (anteriormente descritas) que a palavra moral recobre, o que resultaria, por

conseguinte, em: (i) uma história das moralidades, aquela que estuda em que medida as

ações dos indivíduos ou grupos são conformes ou não às regras ou valores propostos por

diferentes instâncias; (ii) uma história dos códigos, aquela que analisa propriamente os

diferentes sistemas de regras e valores que estão em jogo em uma sociedade ou em

determinado grupo; e, por fim, (iii) uma história da maneira pela qual os indivíduos são

chamados a se constituir como sujeitos de conduta moral, neste caso, a análise histórica

incidirá sobre a instauração e o desenvolvimento das “relações a si”. Foucault enfatiza

que esta última modalidade é o que propriamente se poderá chamar de uma história da

ética e da ascética, entendidas como história das formas da subjetivação moral e das

práticas de si, e é, portanto, o que ele pretende fazer59. E, como sabemos, Foucault faz

uma extensa investigação das “práticas de si” na Antiguidade greco-romana. Os volumes

59
Cf. História da sexualidade II, p. 37-38.

46
II e III da História da Sexualidade tem como objeto fazer uma exposição dos modos de

subjetivação da Antiguidade.

Um dos elementos que merece relevo neste quadro conceitual é o fato de que o

filósofo diz que fará uma história da ética ou uma história dos modos de subjetivação

moral. Ora, em que sentido poderíamos entender uma história da ética, ou ainda, em que

sentido Foucault usa a noção de história na História da Sexualidade? De fato, Foucault

terá de fazer mudanças na noção de história para comportar uma investigação sobre a

moral a partir das problematizações que ele faz a partir do volumo II da História da

sexualidade.

De início, há uma passagem bastante significativa, e que julgo bastante decisiva

para a elucidação desta noção. Foucault diz, ainda na Introdução que: “Os estudos que se

seguem [na História da sexualidade], assim como outros que anteriormente empreendi,

são estudos de ‘história’ pelos campos que tratam e pelas referências que assumem; mas

não são trabalhos de ‘historiador’. [...]. Foi um exercício filosófico: sua aposta foi saber

em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento do

que ele pensa silenciosamente e lhe permitir pensar de uma maneira diferente.”60 Tem-se

aqui, ao menos nesta passagem, expressamente, uma demarcação do campo em que

Foucault declara ter construído suas investigações, o que nos oferece, por sua vez,

elementos e horizontes para empreender o trabalho de interpretação, a saber, o campo da

filosofia. Ele diz que não fez trabalhado de historiador, mas de filósofo. E fez história no

sentido de um exercício que se volta para/e modifica o próprio pensamento. Aqui, o

pensamento ao voltar-se para si instaura uma espécie de inflexão sobre ele mesmo.

O ponto é que, como poderíamos dar lugar à história da ética e em que medida

nela pode-se ler, ou se pode reivindicar, agora, um campo moral no trabalho filosófico

60
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 16.

47
desenhado por Foucault? Ao interpretar a obra de Foucault, Deleuze nos oferece pistas

bastante valiosas.

IV. A moral: uma “dobra” do pensamento na Modernidade?

Deleuze indica esse mesmo problema entre a configuração da épistémè Moderna

e a formulação de uma moral na obra de Foucault. Ele acentua com bastante clareza esse

ponto: “como o pensar poderia inventar uma moral, se o pensamento não pode encontrar

nada em si mesmo, exceto esse lado de fora do qual provém e que reside nele como ‘o

impensado’?”61. De fato, Foucault, havia formulado anteriormente que a própria

espessura do pensamento moderno comportaria também o horizonte para seu

desdobramento.

Todavia, Deleuze aponta como saída para esse impasse, a incursão de Foucault no

pensamento de autores antigos: “A novidade dos gregos aparece <em Foucault>

posteriormente, aproveitando de um ‘deslocamento’ duplo: ‘quando os exercícios que

permitem governar-se a si mesmo’ se deslocam ao mesmo tempo do poder como relação

de forças e do saber como forma estratificada, como código de virtude. Por um lado, há

uma ‘relação consigo’ que começa a derivar-se da relação com os outros; por outro lado,

igualmente, uma ‘constituição de si’ começa a derivar do código moral como regra de

saber. Essa derivação, esse deslocamento, devem ser entendidos no sentido de que

[acentua Deleuze] a relação consigo adquire independência. ” E Deleuze ainda explica:

“É como se as relações do lado de fora se dobrassem, se curvassem para formar um forro

e deixar surgir uma relação consigo, constituir um lado de dentro que se escava e

desenvolve segundo uma dimensão própria: a enkrateia, a relação consigo como domínio,

61
Cf.: DELEUZE, G. Foucault, p. 126.

48
‘é um poder que se exerce sobre si mesmo dentro do poder que se exerce sobre os outros’

(quem poderia pretender governar os outros se não governa a si próprio?), a ponto de a

relação consigo torna-se “princípio de regulação interna” em relação aos poderes

constituintes da política, da família [...], deslocamento operando uma dobra, uma

reflexão.”62

Como sabemos, Foucault manteve, ao longo de toda a sua trajetória intelectual,

uma estreita relação com a história. Todavia, menos com a história como disciplina, como

empiricidade. Interessava-lhe, como vimos, a história como modo de produzir saber

próprio da Modernidade, ou seja, a historização que advém do fim do primado da

representação na Idade Clássica. Ora, são as condições de possibilidades do

acontecimento que Foucault investiga, e não a facticidade do acontecimento. É o a priori

histórico que ele busca determinar e expor seus efeitos de saber e poder.

Deleuze dirá63 que em Foucault “há uma pesquisa das condições da formação

histórica, e o que são essas condições de uma formação histórica? O que se diz em uma

época? O que se vê em uma época? [...]. É como se cada época se definisse antes de tudo

por aquilo que ela vê, e faz ver, e por aquilo que ela diz. É dizer que ver, e fazer ver, e

dizer não estão no mesmo nível que se comportar e ter esta ou aquela ideia: um regime

de dizer é a condição de todas as ideias de uma época; um regime de ver é uma condição

de tudo o que faz uma época”. Deleuze acrescenta ainda que Foucault: “trabalha como

um filósofo e não como um historiador. Ver e falar determinam condições na medida em

que ver ultrapassa o campo da visibilidade, e falar ultrapassa os regimes dos enunciados”.

Com efeito, podemos depreender, Foucault investiga como o asilo, a prisão, a escola, por

exemplo, se tornaram lugares de visibilidade na Modernidade. Ora, para concluir

provisoriamente este problema, a moral se alojaria, então, neste voltar-se do pensamento

62
Cf.: DELEUZE, G. Foucault, p. 107.
63
Cf.: DELEUZE, G. Curso Les formations historiques, aula de 22/10/1985.

49
sobre si mesmo no ponto em que ele faz a história da relação consigo ou dos modos de

subjetivação, onde configuram-se, portanto, as formas históricas de sua inteligibilidade.

Assim, quando Foucault escreve que fará “uma história da ética”, isto é, uma

história dos modos de subjetivação, significa que ele terá que, para pensar o que seria

uma “nova” ética (em termos estritamente foucautianos, uma nova ética nada mais é do

que a invenção de novas formas de relação a si), ele terá que, primeiro, fazer uma crítica

dos modos de subjetivação que orientam a constituição de nossa subjetividade (a

subjetividade moderna). E essa crítica é, e dever ser, histórica: primeiro, porque ele

precisa relevar a historicidade mesma das noções de moral e da própria noção de

subjetividade para poder apreender as continuidades e descontinuidades dessas noções e,

assim, revelar a que problemas respondem, que jogos de poder estão implicados, a que

acontecimentos correspondem. Então, para isso, ele terá que fazer uma crítica da moral e

do sujeito modernos, isto é, do modo como uma “filosofia do sujeito” é predominante em

nosso tempo. E o caminho, a estratégia, que ele traça é o de uma crítica da moral moderna

através dessa história da ética, que se expressa, então, por uma genealogia das formas de

relação a si. Fazer história como Foucault faz é uma estratégia, é um modo, de fazer

“crítica”. E há nisso uma aposta de que essa crítica, ela mesma, provoque efeitos éticos,

isto é, de invenção e transformação da relação a si.

A genealogia de Foucault, ao fazer uma crítica da moral (e do sujeito moderno,

que dela é indissociável uma vez que dá fundamento a essa moral) prepara o caminho

(indispensável) para a construção de uma nova ética. Essa nova ética de Foucault, ele

anunciou: teria a forma de uma “estética da existência”. Como lembra Judith Revel sobre

a relação de Foucault com a história: “A metafísica nos habituou a projetar a “vida outra”

em uma transcendência que em tudo se opunha à história. Foucault, ao contrário, faz da

50
história a espessura no interior da qual opera a busca da diferença e a inquietude do

presente: tarefa filosófica, ética e política, de fato.”64

64
REVEL, J. Historicisation, périodisation, actualité. Michel Foucault et l’histoire in: MARMASSE, G.
L’histoire. Paris, Vrin, 2010, p. 207.

51
CAPÍTULO III

GOVERNO, SUBJETIVIDADE E VERDADE

52
“Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me a minha mãe, o
meu pai, e todos os meus companheiros”.
HOMERO, Odisseia, IX, vv. 366-67.

I. Do governo ao cuidado de si.

É conhecida a recusa de Foucault a uma “filosofia do sujeito”. Mas essa recusa

não o levou, como talvez se poderia deduzir, a um abandono do problema do sujeito.

Longe disso. Essa recusa o conduziu a traçar caminhos inéditos para a retomada dessa

questão. É assim que podemos compreender que ele defenda que: “o sujeito tem uma

gênese, o sujeito tem uma formação, o sujeito tem uma história; o sujeito não é

originário."65 Embora fale do sujeito, Foucault não o toma como fundamento do

conhecimento e tampouco como ponto de ancoragem a partir do qual a liberdade poderia

se constituir. Assim, como assinalamos acima, a noção de cuidado de si, da qual ele se

ocupa nos últimos anos de sua trajetória intelectual, terá um lugar privilegiado para

investigação da questão do sujeito.

Em “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”, Foucault explica que:

“recusa uma certa teoria a priori do sujeito para poder fazer esta análise das relações que

pode haver entre a constituição do sujeito, ou das diferentes formas de sujeito, e os jogos

de verdade, as práticas de poder”66. O ponto de partida do tratamento da questão do sujeito

65
FOUCAULT, M. Dits et Écrits, tome II, texte n°234, «La scène de la philosophie», p. 590.
66
FOUCAULT, M. Dits Ecrits, tome IV, texte n°356, «L'éthique du souci de soi comme pratique de la
liberté», p. 718.

53
é o abandono de uma teoria do sujeito. O que oferece este procedimento? A abertura para

um outro tipo de investigação que se descola da tradição.

O sujeito, defende Foucault, “não é uma substância. É uma forma, e esta forma

não é, ademais, nem sempre idêntica a ela mesma.”67 Há nestas análises, por sua vez, a

recusa também de uma certa tradição na qual, uma vez estabelecida uma teoria do sujeito,

põe-se a questão de como é possível determinadas formas de conhecimento. No curso

Subjetividade e verdade, o problema do sujeito – e, agora, tomado a partir da questão da

subjetivação – aparece exatamente sob o prisma da relação subjetividade-verdade; assim,

Foucault escreve que o modo como ele trata tal questão tem uma especificidade, qual

seja: “a questão ‘subjetividade e verdade’ através dos problemas históricos da loucura, da

doença, da morte e do crime, a subjetividade não é concebida a partir de uma teoria prévia

e universal do sujeito, não é relacionada com uma experiência originária ou fundadora,

não é relacionada com uma antropologia que tenha um valor universal. A subjetividade é

concebida como o que se constitui e se transforma na relação que ela tem com sua própria

verdade. Não há teoria do sujeito independente da relação com a verdade.”68

Neste sentido, vale mencionar uma passagem da aula de 17 de fevereiro de 1982,

do curso A hermenêutica do sujeito, na qual Foucault enuncia um conjunto de noções que

ele havia elaborado para tratar do problema do cuidado de si e, ao mesmo tempo, oferece

um precioso mapa do seu itinerário de pesquisas : “Isto significa muito simplesmente que,

no tipo de análise que desde algum tempo busco lhes propor, vocês veem que: relações

de poder – governamentalidade – governo de si e dos outros – relação de si para consigo,

67
FOUCAULT, M. Dits Ecrits, tome IV, texte n°356, «L'éthique du souci de soi comme pratique de la
liberté», p. 718.
68
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 13.

54
tudo isso, constitui uma cadeia, uma trama, e que é aí, em torno destas noções, que se

pode, eu penso, articular a questão da política e a questão da ética. Isso posto acerca do

sentido que pretendo dar a esta análise – que pode lhes parecer um pouco repetitiva e

meticulosa – do cuidado de si e da relação de si para consigo.”69 Esse quadro reúne noções

que permitem, em grande medida, elucidar a novidade do tratamento que Foucault efetua

na questão do sujeito através do problema do cuidado de si. Esse tratamento exigiu, pois,

a criação de novas noções e articulações.

Assim, a partir desse quadro, será preciso elucidar em particular o papel de duas

noções bastante decisivas que permitiram a Foucault construir, por sua vez, a mecânica

do problema do cuidado de si, a saber, as noções de governo e subjetividade, bem como

a noção de verdade que Foucault elabora para a construção destas noções. Esse percurso

podemos ver desenvolvido em textos do final dos anos 70 e, de maneira mais clara,

especialmente nos cursos de 1980 e 1981, ou seja, os dois cursos que precedem A

hermenêutica do sujeito – curso no qual o problema do cuidado de si é tratado de maneira

privilegiada.

II. Das artes de governar: o governo de si.

Na primeira aula de Do governo dos vivos, Foucault diz que: “Nos cursos dos dois

últimos anos, procurei esboçar um pouco essa noção de governo, que me parece muito

mais operacional do que a noção de poder, ‘governo’ entendido, claro, não no sentido

estrito e atual de instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas

69
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p 225.

55
estatais, mas no sentido lado, e aliás antigo, de mecanismos e procedimentos destinados

a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos

homens." 70 Esse deslocamento é decisivo porque levará Foucault, em um momento

posterior, a novas investigações tanto sobre o problema da constituição da subjetividade

como a incursões na antiguidade greco-romana e na experiência do cristianismo

primitivo. O problema e a noção de governo têm um alcance histórico-filosófico bastante

vastos. Mas, segundo Foucault, nos séculos XV-XVI, teria ocorrido uma notável

amplificação. O que interessa a Foucault incialmente é analisar a noção de “governo dos

homens” justamente a partir do desenvolvimento desta ideia pela Igreja Cristã enquanto

ela realiza especificamente a atividade pastoral.

IV. Sujeito moral e cuidado de si.

No artigo Sujet moral et soi éthique chez Foucault, Frédéric Gros assinala o

caráter peculiar das noções que Foucault cria para investigar o problema do sujeito, e do

sujeito moral em particular: “evocar a filosofia foucaultiana do sujeito é falar de algo que

quase não existe e que, em todo caso, não conhece uma tematização separada. Com isso

quero dizer que conceitos como os de subjetivação, de práticas de si, de relação consigo

mesmo, são muito pouco definidos em e si e por si próprios, e talvez sejam entendidos

mais como grades para a leitura de fenômenos históricos do que como conceitos a serem

explorados de forma perfeitamente autônoma e na sua dimensão propriamente

70
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 13.

56
filosófica”71.O que, em alguma medida, pode ser lido como uma precariedade do

arcabouço conceitual foucaultiano, se mostra, em um outro sentido, como a novidade de

Foucault em sua relação com a história, que assim passa a ter papel decisivo na

construção de novas noções.

Neste sentido, a noção de cuidado de si deve ser compreendida em estreita relação

com duas outras noções que ganham decisivo relevo na última fase do pensamento de

Foucault, a saber, as noções de governo e subjetividade. Ao ler o problema do cuidado

de si como desdobramento daquelas duas últimas noções, nos parece que ele ganha um

significado mais consistente e coerente com as pesquisas que Foucault desenvolvera nos

últimos anos no Collège de France, em especial o itinerário desenvolvido exatamente nos

cursos Do governo dos vivos e Subjetividade e verdade.

V. Governo e verdade.

No curso Do Governo dos vivos, a noção de governo aparece como um elemento

privilegiado que permite a Foucault apreender e estabelecer uma segunda grande inflexão

na história da moral no Ocidente que ocorre na passagem dos séculos IV e V de nossa

era, e que tem como cenário histórico e doutrinário a experiência do cristianismo, e em

especial o poder pastoral que dele emerge. Essa noção de governo, contudo, se constituiu,

ao longo dos séculos anteriores a essa inflexão (e também tem, claro, desenvolvimentos

nos séculos seguintes), mas ela é mobilizada para constituição da moral deste período. E

71
GROS, F. “Sujet moral et soi éthique chez Foucault”, Archives de Philosophie 2/ 2002 (Tome 65), p.
229.

57
a essa noção de governo se associa também uma noção de “verdade”, que é fundamental,

e a ela se relaciona e a legitima.

Tanto é assim que Foucault chega a criar a noção de um “governo pela verdade”,

noção que ele elabora a partir de experiências históricas precisas – mas estamos longe,

pois, de uma noção de governo no qual a ação parte do aparelho de estado e tem como

alvo os “cidadãos”. Para chegar ao desenho dessa noção antiga de governo, Foucault se

descola de uma noção, também fundamental e cara em seu pensamento, que é a noção de

“poder”. O poder tivera, de maneira privilegiada, no centro das análises foucautianas das

décadas de 60 e 70. E é célebre a tese de Foucault, no curso de 1976, Em defesa da

sociedade, de que “o indivíduo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na medida

mesma em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele

constituiu.”72. É verdade que aqui o poder é tomado no âmbito da análise das populações

e a ela se dirige. Estamos no contexto da Modernidade e as técnicas de governo tem como

alvo o conjunto dos indivíduos tomados como elementos de uma cadeia que aciona e faz

operar o próprio poder.

Contudo, anos mais tarde, em suas pesquisas no Collège de France, e no curso Do

governo dos vivos em especial, Foucault propõe um deslocamento em relação à noção de

poder e passa a elaborar a noção de governo73. E é do lado do cristianismo, e do

72
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade, p. 26.
73
Cf., sobre esse ponto: “O conceito de governo permite a Foucault repensar o espaço das relações de poder
para além dos paradigmas do Estado e da soberania, para além das formas institucionais de dominação: a
governamentalidade é definida, no curso de 1982-3, como o conjunto de ‘técnicas e procedimentos que
visam conduzir a conduta dos outros’. O campo do governo caracteriza as relações de poder como
numerosos entrelaçamentos complexos de modos de ação sobre as ações dos outros: um jogo estratégico
de dominações e de resistências que não suprime, mas, ao contrário, requer a liberdade dos governados. O
conceito de governo permite assim melhor dar conta do caráter produtivo dos regimes de saber e poder. As
relações de governo não se reduzem a seus efeitos repressivos de assujeitamento, mas engendram formas
específicas e múltiplos discursos, de ação, de relação a si, e constituem assim um campo aberto no qual se
joga com a possibilidade de inverter e construir práticas políticas inéditas.” In: LORENZINI, D. et. al.,
Michel Foucault: éthique et vérité, p. 15.

58
cristianismo antigo, que Foucault extrairá o quadro histórico-conceitual para tratar da

noção de governo, e da noção de “governo pela verdade” em particular. No cristianismo,

segundo Foucault, o exercício do poder exige “um acréscimo de verdade”74. Foi através

das três grandes práticas cristãs, isto é, o batismo, a penitência e direção de consciência,

que o cristianismo obrigou os homens a dizer a verdade de si mesmo e a constituir, assim,

uma subjetividade específica. E esta constituição é articulada por uma forma de governo,

que Foucault denomina “governo dos homens pela verdade”. Foucault escreve que há

“um regime de verdade no cristianismo que se organiza tanto em torno do ato de verdade

como ato de fé, mas em torno do ato de verdade como ato de confissão. Regimes bem

diferentes esses, da fé́ e da confissão, pois no caso da fé se trata da adesão a uma verdade

intangível e revelada, na qual o papel do indivíduo, portanto o ato de verdade, o ponto de

subjetivação está essencialmente na aceitação desse conteúdo e na aceitação de

manifestar que se aceita esse conteúdo – é esse o sentido da profissão de fé, do ato da

profissão de fé, enquanto no outro caso, no caso da confissão, não se trata de modo algum

de aderir a um conteúdo de verdade mas de explorar, e explorar infindamente, os segredos

individuais. Pode-se dizer que o cristianismo, em todo caso do ponto de vista que me

interessa aqui, foi perpetuamente permeado por essa extraordinária tensão entre os dois

regimes de verdade, o regime da fé e o regime da confissão.”75

74
“O exercício do poder como governo dos homens requer não apenas atos de obediência e de submissão,
mas também atos de verdade em que os indivíduos, que são sujeitos na relação de poder, sejam também
sujeitos como atores, espectadores testemunhas ou como objetos no procedimento de manifestação de
verdade? Por que, nessa grande economia das relações de poder, se desenvolveu um regime de verdade
indexado à subjetividade? Por que o poder (e isso há milênios, em nossas sociedades) pede para os
indivíduos dizerem não apenas ‘eis-me aqui, eis-me aqui, que obedeço’, mas lhes pede, além disso, para
dizerem ‘eis o que sou, eu que obedeço, eis o que sou, eis o que vi, eis o que fiz’? É esse o problema,
portanto. É evidente – a maneira como precisei o sujeito assim indica, creio eu, suficientemente – que é do
lado do cristianismo e do cristianismo primitivo que vou procurar estreitar um pouco esse problema
histórico da constituição de uma relação entre o governo dos homens e os atos de verdade, quer dizer, os
atos refletidos de verdade.” FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 76.
75
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 77-78.

59
VI. Verdade e subjetividade.

Como sabemos, a questão da verdade é um dos problemas centrais da filosofia de

Foucault. Das poucas vezes em que ele se diz filósofo é exatamente a propósito de tratar

da questão da verdade: “E em vão digo que não sou um filósofo, se é de fato da verdade

que me ocupo, eu sou, apesar de tudo, um filósofo.”76 E se a verdade é uma questão que

não foi negligenciada na trajetória de Foucault e o torna, a partir de suas próprias palavras,

um filósofo, ela também não é sem importância no tratamento da questão da subjetividade

e do cuidado de si.

Assim, a noção de verdade em Foucault não pode ser deixada de lado quando

queremos compreender o alcance e o significado do cuidado de si e sua relação com o

problema da ética. Porque Foucault investiga e elabora uma noção de verdade com

propósitos expressos de explicar a questão da subjetividade. Há, assim, uma noção de

verdade que opera por trás da elaboração da noção de subjetividade e que tem, por sua

vez, implicações na compreensão da prática do cuidado de si.

No curso Do governo dos vivos ele diz de maneira enfática os propósitos deste seu

empreendimento: “uma história da verdade que não seria feita do ponto de vista das

relações de objetividade, ou das estruturas de objetividade, ou das estruturas de

intencionalidade. Tratar-se-ia de esboçar uma história da verdade que tomaria como

ponto de vista os atos de subjetividade, ou ainda as relações do sujeito consigo mesmo,

entendidas não só como relação de conhecimento de si, mas também como exercício de

76
FOUCAULT, M. Dits et écrits, III, p. 30 (grifos meus).

60
si sobre si, elaboração de si sobre por si, transformação de si por si”77. Isto é, a maneira

como o indivíduo estabelece um certo vínculo com a verdade e que, assim, tem efeitos

para uma elaboração subjetiva. E não se pode deixar de notar a originalidade de Foucault

que, para elaborar esta noção de verdade, investiga e busca elementos no cristianismo, e

em especial na sua forma do cristianismo antigo, para abordar esta questão.

É assim que Foucault dedica uma das aulas, exatamente a de 6 de fevereiro de

1980, do curso Do governo dos vivos para tratar detidamente da questão da verdade e que,

sem dúvida, é proveitoso seguir de perto o desenvolvimento de sua argumentação nesta

lição para compreendermos os termos nos quais ele a formula.

Para tratar da questão da verdade sob este prisma, Foucault formula uma noção

fundamental para o seu argumento, a saber, a noção de “regime de verdade”. Ele diz que

um regime de verdade é “o que constrange os indivíduos a atos de verdade, o que define,

determina a forma desses atos e estabelece para esses atos condições de efetivação e

efeitos específicos. Em linhas gerais, podemos dizer que um regime de verdade é o que

determina as obrigações dos indivíduos quanto aos procedimentos de manifestação do

verdadeiro”78. Esta é a definição que guiará Foucault na elaboração deste problema.

Vejamos.

De início, como uma espécie de analogia, ele faz referência à existência dos

“regimes políticos” e dos “regimes penais”. No primeiro caso, um regime político se

caracteriza, fundamentalmente, pelo conjunto de procedimentos, de ações, que exercem

autoridades e instituições sobre os indivíduos em um determinado território; o ponto é

77
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 105.
78
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 85.

61
que esses indivíduos, dessa maneira, são constrangidos a obedecer a estas autoridades e

instituições. Do mesmo modo, em um sistema penal, no qual há uma determinada

jurisdição, os indivíduos são obrigados a se submeter às leis que dele decorre; há, assim,

uma efetiva força que constrange esta obediência sob pena de sanções a estes indivíduos.

A partir destes dois casos, Foucault defende que poderíamos também formular algo como

um “regime de verdade”. Neste caso, deveríamos levar em conta o modo como a verdade

opera, isto é, como ela também tem a força, a característica fundamental, de constranger

os indivíduos a atos ou palavras que a sua própria manifestação exige. Ou seja, a verdade

pode ser tratada não apenas sob o prisma de seus procedimentos formais de constituição

e elaboração, mas também a partir de seus efeitos.

Da formulação da noção de “regime de verdade” decorre uma tese original para o

pensamento e neste caso, poderíamos dizer claramente junto com o seu autor, para a

filosofia de Foucault a respeito do próprio conceito de verdade. O que o filósofo defende,

e nisso reside exatamente o ponto de sua originalidade, é que, primeiro, a verdade e o

verdadeiro não são a mesma coisa quando tratados sob o prisma de seus efeitos. Que o

verdadeiro é, neste sentido, um caso da verdade. Um caso da verdade quando ela se

manifesta e, assim, exerce os efeitos de coerção, de obrigação, de atos em uma direção

em vez de outra.

O que está em jogo neste problema, neste modo de abordar questão da verdade, é

que mesmo nos raciocínios rigorosos ou em algo cuja evidência seja indubitável, mesmo

nestes casos, é preciso que haja um elemento outro que é decisivo, uma certa afirmação

tácita, para que a verdade possa alcançar os seus efeitos; este é elemento é o engajamento

62
(“engagement”)79. Um certo engajamento daquele que está exatamente fazendo operar a

própria verdade. O que Foucault recupera nesta análise é o papel que desempenha aquele

que se ocupa da verdade e que, para isso, dele é exigido uma certa atitude, qual seja, um

certo comprometimento, ou seja, como ele próprio sendo testemunha da verdade que ele

mesmo enuncia.

VII. A força do verdadeiro.

Foucault usa como exemplo desta relação entre subjetividade e verdade, uma

suposta disputa entre dois lógicos na qual um deles, incialmente, sustenta a falsidade de

uma proposição, ao passo que o outro a afirma como verdadeira80. Ao final da discussão,

o primeiro acaba por reconhecer que, de fato, a proposição é mesmo verdadeira. Ele então

poderá dizer: “é verdade, logo me inclino”, ou seja, reconheço como verdadeira tal

proposição que antes tinha por falsa. Neste ato, ao declarar sua conclusão, podemos

analisar num primeiro momento, que o lógico a faz não exatamente por ser lógico, mas

porque verifica que a proposição obedece, ao final das contas, às regras de construção, à

gramática, aos axiomas próprios da disciplina da Lógica e que assim a verdade da

proposição é manifesta; desse modo, é por causa da estrutura específica da Lógica que a

verdade da proposição pode ser verificada, assegurada e declarada; é a própria expressão

do verdadeiro que é a garantia da afirmação deste conclusão.

79
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89.
80
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89 et seq.

63
Todavia, Foucault observa um outro aspecto desta declaração. Ao dizer de uma

determinada proposição “é verdade, logo me inclino”, a introdução deste “logo” não é

resultado do constrangimento do verdadeiro que está presente na estrutura de verdade da

proposição, porque não é “por lógica” que ele introduz o sentido deste “logo”, mas é

exatamente por ele próprio ser um lógico. Ou seja, é porque neste momento ele faz

propriamente lógica. Em outras palavras, “é porque ele mesmo se constituiu, ou foi

convidado a se constituir, como operador num certo número de práticas ou como parceiro

num certo tipo de jogo”81. E, assim, mesmo neste caso, onde poderíamos dizer que há

uma inteira sobreposição entre a constatação e a declaração da verdade de um raciocínio

lógico é possível, ainda assim, escandir estes dois aspectos em que podemos perceber um

regime de verdade operando. Foucault diz que, embora possamos verificar esta operação,

“na lógica, o regime de verdade e a autoindexação do verdadeiro são identificados, de

sorte que o regime de verdade não aparece como tal.”82

Há um outro caso que Foucault analisa para a defesa da existência dos “regimes

de verdade” que, explicita ou implicitamente, operam quando é o problema da verdade

que está em jogo83. Trata-se do célebre cogito da quarta parte do Discurso do Método de

René Descartes: “E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo era tão firme e tão

certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a

abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia

81
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89.
82
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89.
83
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90 et seq.

64
que procurava.”84. Para Foucault, a sentença cartesiana “penso, logo existo” pressupõe

uma outra afirmação não manifesta que lhe daria igualmente sustentação, qual seja: “é

verdade, logo me inclino”.

Assim, em primeiro lugar, tomando a significação do “logo” no raciocínio do

“penso, logo existo” temos uma evidência teórica indubitável, resultante da cadeia

argumentativa, é verdade; é o que se poderia chamar do “logo” explícito, isto é, a

expressão mesma do verdadeiro e sua força intrínseca, constrangente, e que tem sua

legitimidade resultante da sua estrutura de raciocínio teórico verdadeiro. Todavia, por sua

vez, haveria também um “logo” implícito, que é exatamente o que remete ao “regime de

verdade”, e que está em operação, uma vez que ele não se reduz ao valor intrínseco do

verdadeiro que o cogito faz emergir.

Assim, Foucault defende que é preciso haver “a aceitação de um certo regime de

verdade. E para que esse regime de verdade seja aceito, o sujeito que raciocina tem que

ser qualificado de certa maneira.”85 . Isto é, que este sujeito se incline quando se tratar da

verdade, donde Foucault defender que esteja em operação o pressuposto: é verdade, logo

me inclino. E por conta desta segunda afirmação que subjaz ao cogito é exatamente onde

se verifica a existência do regime de verdade: “há, no entanto, uma condição para que a

máquina funcione e para que o ‘logo’ do ‘penso, logo existo’ tenha valor probante. Tem

que haver um sujeito que possa dizer: quando for verdadeiro, e evidentemente verdadeiro,

eu me inclinarei”86. Somente assim, a verdade faz operar a sua força e produzir o seu

efeito de constrangimento ao manifestar-se.

84
DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 54. In: Coleção Os pensadores, vol. XV, 1973.
85
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90.
86
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90.

65
Por fim, Foucault acrescenta que a existência de um regime de verdade, cuja

organização se fundamentará no elemento de constrangimento do verdadeiro, terá outras

implicações. Uma delas é que a loucura deverá ser excluída. Não pode haver louco num

determinado regime de verdade porque não pode haver o caso de não aceitação do

verdadeiro. Foucault diz: “não pode haver voz da loucura em filosofia ou em qualquer

outro sistema racional. Não pode haver louco, isto é, não pode haver gente que não aceita

o regime de verdade”87.

VII. Regime de verdade e Cristianismo.

O cristianismo é um caso privilegiado por Foucault para analisar o problema da

verdade subjetiva como “regime de verdade” porque ele funciona como um sistema que

opera uma generalização da força, do constrangimento, em relação àquele que a ele se

vincula, e isso de maneira institucionalizada; ele exige, pois, atos, práticas, que atestem

este vínculo.

Assim, de início, é importante ressaltar que Foucault toma o cristianismo, em sua

formação primitiva, não do ponto de vista de sua economia dogmática, mas sob o prisma

do que se pode denominar como “atos de verdade”. Philippe Chevalier bem nota esta

especificidade ao problematizar o tratamento de Foucault a respeito do cristianismo: “há

algo na manifestação da verdade que representa um ‘suplemento’ em relação ao que é

requisitado pelo poder e pela ciência para exercer-se. E esse suplemento do lado da

87
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90.

66
verdade reencontra-se do lado do sujeito: a verdade exige para realizar-se em mim mesmo

um determinado número de atos para que eu possa a ela ascender; e esses atos excedem

a simples aquiescência intelectual (‘é verdade’) ou a submissão a um poder exterior (ser

forçado a dizer ‘é verdade’). A questão nova, colocada [por Foucault], em 1980, é,

portanto, essa: qual a relação com a verdade que nasce com o cristianismo para que,

alguns séculos mais tarde, todos tenham sido obrigados a dizer sua verdade?”88.

Assim, segundo Foucault, o cristianismo elaborou ao menos dois grandes

“regimes de verdade” em seu interior e que, embora não sejam inteiramente

independentes um do outro, podem ser analisados de forma separada quando se leva em

conta os tipos de atos que os sustentam, desenhando uma certa “morfologia” específica

para cada um deles. Desse modo, haveria um regime de verdade que gravita em torno dos

atos de fé (“les actes de foi”), aqueles cuja origem são a adesão a uma verdade revelada,

e um outro que gira em torno dos atos de confissão (“les actes d’aveu”), isto é, do

reconhecimento das faltas, que manifestam uma verdade oculta. E é em relação a este

segundo regime que se poderá encontrar claramente a operação do regime de verdade no

cristianismo.

Portanto, o que interessa para análise de Foucault são as práticas deste segundo

regime porque elas expressam de maneira privilegiada este vínculo que o indivíduo

mantém com a verdade e os seus efeitos subjetivos. A propósito dos “atos de confissão”,

é importante ressaltar a especificidade do cristianismo primitivo em relação às filosofias

antigas pagãs uma vez que estas, com o “exame de consciência” visavam tão somente um

88
CHEVALIER, P. O cristianismo como confissão em Foucault, p. 53. In: CANDIOTTO, C. & SOUZA,
P. (Orgs.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

67
controle de si e das paixões da alma, ao passo que, no cristianismo, entra em causa a

verdade daquele que confessa, o que ele é propriamente: “é preciso encontrar todo um

regime de verdade no qual o cristianismo, desde a sua origem, ou em todo caso desde o

século II, impôs aos indivíduos manifestar em verdade o que são, e não simplesmente na

forma de uma consciência de si.”89. Portanto, foi através das três grandes práticas, a saber:

o batismo, a penitência e a direção de consciência, que o cristianismo obrigou os homens

a dizer a verdade de si mesmo e, pois, a constituir este vínculo explícito entre o ato de

dizer a verdade de si e a constituição de sua própria subjetividade. Tal articulação é aquilo

que consolidou como uma forma de governo dos homens pela verdade.

VIII. A arte da recusa determinada de governo.

No texto O que é a crítica?, que é fruto de uma conferência pronunciada na

Sorbonne, diante da Société française de philosophie, Foucault aponta alguns

desdobramentos importantes para a questão do governo. Já no primeiro momento de sua

exposição, embora declare um certo “embaraço” com o título de sua intervenção, ele

anuncia claramente, sem mais, o tema do qual ele pretende tratar na ocasião, a saber, a

questão “o que é a crítica?”. Ele acentua, ademais, que é disso que falará nesta intervenção

e que é disso que “sempre quis falar” ao longo de sua trajetória.

E, logo em seguida, se refere ao filósofo que, evidentemente, na Modernidade,

muito se ocupou do problema da “crítica”. Todavia, a menção a Immanuel Kant deve ser

tomada com bastante cautela. Ora, trata-se, como se poderá ver no desenvolvimento deste

89
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 94.

68
texto, não de uma retomada estrita de um problema oriundo da filosofia kantiana – e nem

mesmo da “crítica” no sentido estrito que o filósofo alemão dará para a construção de seu

edifico filosófico nas Críticas. Porque ver-se logo que a questão “o que é a crítica?” dará

lugar à investigação e delimitação da noção de “atitude crítica” – que remonta, aliás, a

um período anterior a Kant. A menção a Kant é feita, pois, podemos interpretar, menos

como filiação e mais como estratégia.

Foucault diz que seria preciso, pois, “dizer algumas palavras em torno desse

projeto que não deixa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia,

próximo dela, contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia futura, no lugar talvez

de toda filosofia possível”. E, Foucault prossegue, “entre a alta empresa kantiana e as

pequenas atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome de crítica, me parece

que houve no Ocidente moderno (a datar, grosseiramente, empiricamente, desde os

séculos XV-XVI) uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa

relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade,

com a cultura, uma relação com os outros também, e que se poderia chamar, digamos, de

atitude crítica90”. Contudo, a noção de “atitude crítica”, tomada por esse viés “histórico”,

o próprio Foucault ressalta, tem uma conotação assaz vaga e dispersa na história do

Ocidente e que se poderia datar inclusive em um período ainda mais remoto que o

indicado. Ele menciona também uma possível objeção à tentativa de desenho, de

contorno, enfim, de “unidade”, a partir desses elementos, de uma noção que sempre

esteve votada “à dispersão, à dependência, à pura heteronomia”. E, assim, diante desses

elementos, a “crítica” não poderia existir senão em relação a algo e a algo diferente dela

90
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 34.

69
mesma. Em uma palavra: a crítica é antes um “instrumento”, um meio para uma verdade

que ela mesma não resolveria ou seria. Tendo como efeito o fato de que a crítica esteja

sempre em função do que constitui positivamente os saberes (a literatura, a filosofia, a

ciência, a política, a moral, etc.).

Por outro lado, a atividade da crítica, diz Foucault, também reivindica para si,

quase sempre, um rigor útil (ou um valor) bem como um imperativo, e um imperativo

bem mais geral do que aquele de “afastar o erro”. E, finalmente, há algo na crítica que

se “aparenta à virtude”. E Foucault declara que “de uma certa maneira, o que gostaria de

lhes falar é da atitude crítica como uma virtude em geral.”91

Assim, a operação histórico-filosófica que Foucault faz para dar conta dos

contornos e fazer a história dessa noção de “atitude crítica” – tomada como uma “virtude”

– consiste em analisar uma outra noção que, em alguma medida, a ela se opõe e, em todo

caso, não pode dela ser dissociada: trata-se da noção de governo, e especificamente do

“governo dos homens”.

E, para isso, Foucault se volta incialmente para analisar a noção de “governo dos

homens” justamente a partir do desenvolvimento desta ideia na Igreja Cristã enquanto ela

realiza especificamente a atividade pastoral. Estranha à cultura antiga, a Igreja Cristã

desenvolve, pois, a ideia de que “cada indivíduo, qualquer que seja a idade, status, e de

uma ponta a outra de sua vida – até os detalhes de suas ações –, devia ser governado e

devia deixar-se governar, ou seja, dirigir a sua salvação por alguém com o qual se una

em uma relação global e, ao mesmo tempo, meticulosa, detalhada, de obediência”92.

91
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 35.
92
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 36.

70
Esta atividade de direção que visa à salvação, em uma relação de obediência a

alguém, se efetiva, por sua vez, em uma “tripla” relação à verdade, a saber: “[i] verdade

entendida como dogma; [ii] verdade também na medida em que esse direcionamento

implica um certo modo de conhecimento particular e individualizante dos indivíduos; e,

enfim, [iii] na medida em que esse direcionamento se desdobra como uma técnica

reflexiva comportando regras gerais, conhecimentos particulares, preceitos, métodos de

exame, confissões, entrevistas, etc.”93. E essa atividade de direção de consciência,

ancorada nessa relação à verdade, que na Igreja grega era chamada technê technôn e na

Igreja romana latina ars artium, era precisamente a arte de governar os homens.

Segundo Foucault, incialmente, esta arte de governar permaneceu limitada e

restrita aos grupos espirituais nas sociedades medievais, mas, a partir do século XV, há

uma “verdadeira explosão” desta arte tanto para o âmbito laico (expansão para a

sociedade civil do tema da arte de governar os homens e dos métodos para realizá-la)

como para um domínio mais variado, tais quais: como governar as crianças, como

governar os pobres, uma família, uma casa, etc. Desse modo, a questão “como governar?”

toma uma grande amplitude nos séculos XV e XVI que resulta, nesta época, em uma

multiplicação das artes de governar: a arte pedagógica, a arte política, a arte econômica

etc., bem como nas instituições de governo.

Em face dessa governamentalização94 característica do século XVI, Foucault

defende que não se pode dissociar, em contrapartida, a questão: “como não ser

93
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 35-36.
94
Trataremos de maneira mais detida desta noção a seguir (no Excurso 1), mas vale a pena acrescentar, de
início comentário de D. Lorenzini a propósito desta noção criada por Foucault: “Foucault empreende,
portanto, a partir de 1978 um trabalho ulterior de clarificação conceitual e inaugura o estudo do que ele
chama “governamentalidade”, uma noção que ele define de maneira suficientemente geral para nela incluir,
entre outros, os mecanismos anátomo e biopolíticos (...). Isso, notadamente, graças a uma genealogia de

71
governado?”. Embora essa rejeição não surja como um ponto de inteira oposição,

constituindo algo como uma recusa absoluta de governo. Não se trata disso. O que se

pode localizar nesta época é algo como “não ser governado dessa maneira, por esses, em

nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não

dessa forma, não para isso, não por eles"95. Ou seja, a recusa incide sobre, e põe em

questão exatamente, o modo de governar que se constituiu/estava se constituindo.

Assim, ao lado desse movimento de ampliação da governamentalização, é

possível identificar um outro, que Foucault identifica e chama de “atitude crítica”, que o

limitaria, buscaria a justa medida e buscava transformá-lo; o que, desse modo, o torna, ao

mesmo tempo adversário e parceiro. Assim, teria surgido na Europa, nesta época, algo

como uma forma cultural geral que é, a um só tempo, uma atitude moral e política, e que

reivindica não ser governado de uma certa maneira e a um certo preço. O que leva

Foucault a cunhar, em forma de uma definição para a noção de crítica que ele mesmo

forja, a seguinte fórmula: l’art de n’être pas tellement gouverné. Ou seja: a “atitude

crítica” como uma recusa determinada de governo. Assim, temos que o governo, a

subjetividade e a verdade, permitem a Foucault constituir uma resposta para a questão da

relação a si e ao outros como uma atitude crítica.

***

longa duração do conceito de governo que obriga a remontar não somente à pastoral cristã, mas também
ainda antes do Cristianismo dos primeiros séculos e também à Antiguidade grega, helenística e romana.”
LORENZINI, D. Étique et politique de soi, p. 52.
95
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 37.

72
EXCURSO I:

Governo, governamentalidade e o homo oeconomicus

As noções de governo e governamentalidade merecem um tratamento específico

para sua compreensão. Estas noções têm especial elucidação no curso Nascimento da

biopolítica. Ademais, esse curso mostra-se estratégico por duas razões: (i) tanto porque é

o último curso antes da passagem de Foucault para o tratamento mais detido de temas da

antiguidade greco-romana (o que passa a acontece com o curso Do governo dos vivos)

quanto porque (ii) há extensos desenvolvimentos para a apreensão da noção de

governamentalidade. E a análise do homo oeconomicus é o caso paradigmático

exatamente do “indivíduo governamentalizado” por excelência, e decisivo para

compreendermos, pois, a própria noção de governamentalidade e de governo.

73
I. A análise “economista” do não econômico e sua generalização a partir do homo

oeconomicus.

Nas últimas aulas do curso Nascimento da biopolítica96, Foucault apresenta o

problema do governo sob o prisma da noção de homo oeconomicus. Noção

interessantíssima para compreendermos como ele desenvolve tanto a própria noção de

governo e uma outra a que ela se relaciona, a saber, a noção de governamentalidade.

Especialmente na aula de 28 de Março de 1979, Foucault aponta, desde o início, um

problema teórico e metodológico que haveria no fato de os economistas neoliberais (tanto

da Escola de Chicago, quanto da Escola Austríaca) aplicarem uma “analise economista”

(Foucault diz em francês que se trata de uma “analyse économiste” e não de uma “anlyse

économique”, exatamente porque ele quer ressaltar que se trata, como veremos, de uma

mudança de objetos de análise, que não são próprios do campo econômico estrito97) a

uma série, portanto, de objetos, de campos, de comportamentos ou condutas que não eram

exatamente comportamentos ou condutas de mercado. E essa operação tinha como centro

a generalização da noção de homo oeconomicus a todo indivíduo, “ator”, quando ele age

não somente em vistas ao econômico, mas também em outros âmbitos: quando ele se

casa, comete um crime, cuida de seus filhos etc.

96
Cf.: FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Trad. de E. Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008
[p. 365-395]. Também consultei o texto da edição francesa: FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique:
cours au Collège de France (1978-1979). Ed. estabelecida por M. Senellart sob dir. de F. Ewald e A.
Fontana. Paris, Gallimard/Le Seuil, 2004 [p. 271-294]. Como assinalei antes, fiz revisão de todas as
passagens que citei da tradução brasileira e, algumas vezes, fiz pequenas alterações. Assim, dou a indicação
da edição francesa do livro.
97
Na aula precedente (de 21 de março de 1979), Foucault havia precisado este ponto ao dizer que é “grâce
à ce schéma d'analyse, cette grille d'intelligibilité, on va pouvoir faire apparaître dans des processus non
économiques, dans des relations non économiques, dans des comportements non économiques, un certain
nombre de relations intelligibles qui ne seraient pas apparues comme cela – une sorte d’analyse économiste
du non-économique. C'est ce que font [les néolibéraux] pour un certain nombre de domaines.”: Nascimento
da biopolítica, p. 334 (grifos meus).

74
O texto diretor destas “análises economistas” seria o livro Humam Action (1940)

do economista austríaco Ludwig Von Mises, bem como artigos de outros economistas

dos anos 60 e 70 publicados principalmente no Journal of Political Economy (revista de

“ciências econômicas” editada por economistas da Universidade de Chicago).

A generalização do uso da noção de homo oeconomicus ganha amparo, portanto,

nesta operação realizada pelos neoliberais americanos. E Foucault a explicita

apresentando um de seus aspectos decisivos, a saber: “a mais importante questão em jogo

é sem dúvida o problema da identificação do objeto da análise econômica a toda conduta,

qualquer que seja, que implique, claro, uma alocação ótima de recursos raros a fins

alternativos, o que é a definição mais geral do objeto da análise econômica tal como foi

definida, grosso modo, pela escola neoclássica.”98 Aqui, Foucault busca mostrar o modo

como opera o raciocínio neoliberal que encontra filiação, portanto, na escola neoclássica

de economia (do século XIX). E como ele opera? Uma vez que há recursos raros

disponíveis, o neoliberal os mobilizará de maneira a atender fins determinados e essa

mobilização se efetuará pela “escolha estratégica de meios, de caminhos e de

instrumentos” em vista a alcançar esses fins pretendidos.

O ponto é que este modo de operar neoliberal, ou seja, esta alocação de recursos

raros para fins determinados, será generalizado a toda conduta finalizada e, por fim, a

toda conduta dita racional. O raciocínio neoliberal propõe, portanto, como questão: “será

que afinal de contas, a economia não é a análise das condutas racionais, e será que toda

conduta racional, qualquer que seja, não decorreria de algo como uma análise

econômica?” . Ora, aceita as premissas, a consequência se impõe: “por que não definir

98
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 366 (grifos meus).

75
toda conduta racional, todo comportamento racional, qualquer que seja, como objeto

possível de uma análise econômica?”. E a reposta é evidente. Contudo, ainda um passo a

mais poderá ser avançado para uma maior extensão e generalização deste tipo de análise.

Em autores como Gary Becker, por exemplo, teríamos uma radicalização desta

operação. Para este autor, o objeto da análise econômica pode se estender para além das

condutas racionais e podem inclusive se aplicar também a condutas não racionais. Becker

diz, enfatiza Foucault, “no fundo, a análise econômica poderá perfeitamente encontrar

seus pontos de ancoragem e sua eficácia se a conduta de um indivíduo corresponder à

cláusula de que a reação desta conduta não é aleatória em relação ao real, [...] em outras

palavras, ‘que aceite a realidade’”. Ora, qual é exatamente uma das marcas do homo

oeconomicus? É, pois, “aquele que aceita a realidade”, que “aceita sistematicamente às

modificações nas variáveis do meio”. Eis, portanto, agora, o encontro entre a análise

econômica das condutas e a figura do homo oeconomicus que a ela se liga. E, assim, a

economia, conclui Foucault, “poderá, portanto, se definir como a ciência da

sistematicidade das respostas às variáveis do meio”99.

De tudo isso, que consequências teremos? Foucault admite, todavia, que “os

economistas, claro, estão longe de endossar, mas isso apresenta certo número de

interesses”100. E ele diz expressamente que tais análises têm “um interesse prático, por

assim dizer, na medida em que, quando você define o objeto da análise econômica como

conjunto de respostas sistemáticas de um indivíduo às variáveis do meio, percebe que

pode perfeitamente integrar à economia toda uma série de técnicas.”101 Esse é, pois, o

99
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 368.
100
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 368 (acréscimos explicativos entre colchetes meus).
101
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 368.

76
quadro inicial do problema a partir da atualidade do neoliberalismo americano do século

XX.

II. Homo oeconomicus, um átomo de liberdade?

Todavia, há “uma controversa” histórico-conceitual. Foucault observa que esta

mesma noção de homo oeconomicus encontrava outra definição no século XVIII. E em

um sentido que se contrapunha a Gary Becker e em certa medida à definição corrente no

século XX. Vejamos. No século XVIII, o homo oeconomicus “funcionava como o que se

poderia chamar de um elemento intangível em relação ao exercício do poder. [...] O homo

oeconomicus é, do ponto de vista de uma teoria do governo, aquele em que não se deve

mexer. Deixa-se o homo oeconomicus fazer. É o sujeito do laissez-faire.”102

Ocorre que agora – isto é, no século XX –, o homo oeconomicus aparece como

aquele que aceita a realidade, que responde sistematicamente às variáveis do meio e, por

fim, acrescenta Foucault, “aquele que é eminentemente governável.” Donde, Foucault

enfatizar que: “De parceiro intangível do laissez-faire, o homo oeconomicus aparece [no

102
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 369.

77
século XX] como o correlativo de uma governamentalidade103”. Eis o problema histórico-

conceitual e o evidente paradoxo consequente104.

Com isso, estamos no cerne do problema central do homo oeconomicus. Veja-se

uma passagem – um tanto longa, é verdade – na qual podemos encontrar a explicitação

do problema e formulação da tese foucaultiana.

“Creio que esse paradoxo [do homo oeconomicus: ou como um elemento

eminentemente governável ou como elemento intangível de um governo] permite

identificar o problema de que eu queria lhes falar um pouco e que é precisamente

o seguinte: será que, desde o século XVIII, tratava-se com o homo oeconomicus

de erguer diante de qualquer governo possível um elemento essencial e

incondicionalmente irredutível por ele? Será que, ao definir o homo oeconomicus,

se tratava de indicar qual zona será definitivamente inacessível a toda ação do

governo? Será que o homo oeconomicus é um átomo de liberdade diante de todas

as condições, de todas as empresas, de todas as legislações, de todas as proibições

de um governo possível ou será que o homo oeconomicus já não era um certo tipo

103
Em um texto da coletânea Dits et écrits, cujo título é exatamente “La «gouvernementalité»”, Foucault,
a certa altura, diz expressamente o que ele entende por esta noção, ele escreve que: “Par ce mot de
«gouvernementalité», je veux dire trois choses. Par gouvernementalité, j'entends l'ensemble constitué par
les institutions, les procédures, analyses et réflexions, les calculs et les tactiques qui permettent d'exercer
cette forme bien spécifique, bien que complexe, de pouvoir, qui a pour cible principale la population, pour
forme majeure de savoir, l'économie politique, pour instrument technique essentielles dispositifs de
sécurité. Deuxièmement, par «gouvernementalité», j'entends la tendance, la ligne de force qui, dans tout
l'Occident, n'a pas cessé de conduire, et depuis fort longtemps, vers la prééminence de ce type de pouvoir
qu'on peut appeler le «gouvernement» sur tous les autres: souveraineté, discipline; ce qui a amené, d'une
part, le développement de toute une série d'appareils spécifiques de gouvernement et, d'autre part, le
développement de toute une série de savoirs. Enfin, par gouvernementalité, je crois qu'il faudrait entendre
le processus ou, plutôt, le résultat du processus par lequel l'État de justice du Moyen Âge, devenu aux XVe
et XVIe siècles État administratif, s'est trouvé petit à petit «gouvernementalisé».” Dits Ecrits, Tome III,
texte no 239 (grifos meus).
104
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 369.

78
de sujeito que permitia justamente que uma arte de governar se regulasse de

acordo com o princípio da economia – a economia em ambos os sentidos da

palavra: economia no sentido de economia política e economia no sentido de

restrição, autolimitação, frugalidade do governo? Não é preciso lhes dizer que

meu modo de colocar essa questão já lhes dá a resposta, e é disso portanto que

gostaria de lhes falar, do homo oeconomicus como parceiro, como vis-à-vis, como

elemento de base da nova razão governamental tal como se formula no século

XVIII.”105

Este trecho é, como vemos, uma peça especialmente decisiva para compreender

como Foucault pensa o liberalismo clássico e, por conseguinte, o neoliberalismo

contemporâneo, e o que neles pode aparecer como defesa de uma certa liberdade

individual, de uma redoma em que, embora circunscrita, estariam salvaguardadas as

liberdades individuais. Neste trecho, ao apresentar o problema do aparecimento do homo

oeconomicus, Foucault oferece elementos de sua posição já na própria formulação do

problema. E esta sutileza da formulação foucaultiana, deve ser enfatizada, e em especial

contra uma certa leitura que possa possivelmente atribuir a Foucault, ao pensamento

foucaultiano, a defesa de um tipo de “liberdade” que encontraria fundamento, ou mesmo

filiação, no regime liberal clássico ou contemporâneo.

A formulação foucaultiana consiste precisamente no seguinte ponto: se, de fato,

já mesmo no século XVIII, se tratava, com o homo oeconomicus, de garantir uma esfera

sobre a qual a ação do governo não incidiria e, portanto, a construção de um reduto de

105
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 369-370 (grifos e acréscimos entre colchetes meus).

79
liberdade assegurada sob essa figura, sob esse “átomo”, diante do “pesado” poder de um

governo possível. Foucault diz expressamente que este não é, não foi, o propósito; ao

contrário, deve-se ler o homo oeconomicus “como parceiro, como vis-à-vis, como

elemento de base da nova razão governamental tal como se formula no século XVIII”.

O ponto é que a invenção do homo oeconomicus foi, na verdade, um elemento

para uma nova arte de governar, que teria a economia como princípio. Então, nem

garantia de liberdade individual e tampouco invasão da economia no governo. A operação

foi um tanto mais sofisticada: uma assimilação, uma introjeção na arte de governar de

princípios da economia, criando, portanto, algo que Foucault formula como uma nova

razão governamental. E essa razão governamental, embora não se confunda com o

liberalismo clássico, encontra nele ancoragem.

E este novo modo de governar, essa nova razão governamental, opera com

mecanismos que dissolvem algo que poderíamos chamar de possíveis “antagonismos”

entre o indivíduo, o poder soberano e o poder econômico. Ora, são exatamente com estes

três elementos – o homo oeconomicus, o poder soberano e o poder econômico – que essa

razão opera e calcula de modo a gerir essas diferenças adotando um princípio único de

governo que as englobe. Não é que estes elementos desaparecem. Eles são assimilados

por essa nova forma de governo. Essa, me parece ser, portanto, a tese de Foucault e o que

ele irá principalmente mostrar principalmente nas últimas aulas do curso.

Para isso, Foucault apresentará elementos para a construção de uma história da

noção de homo oeconomicus e sua relação com a constituição de uma nova razão

governamental. Assim, ele fará o seguinte percurso: [i] investigar as raízes do homo

oeconomicus na teoria do sujeito tal como ela é aplicada no empirismo inglês dos séculos

80
XVII-XVIII; em seguida, fará [ii] distinções entre o homo oeconomicus, o sujeito de

interesse e o sujeito de direitos a partir da análise de textos de juristas como Blackstone

e do filósofo Mandeville; em seguida – o que ocupará a maior parte de sua análise – [iii]

investigará a relação entre o homo oeconomicus, o problema liberal da “mão invisível” e

o exercício do poder político do soberano, que será feita a partir de autores como

Condorcet, Adam Smith, Adam Ferguson e menção a Malebranche e, logo em seguida,

fará [iv] uma análise das consequências da “limitação” do poder soberano pelo homo

oeconomicus; e, por fim, [v] apresentará um contraponto, a partir da concepção de

governo dos fisiocratas franceses, à teoria da “mão invisível” de Adam Smith. Esse é, em

linhas gerais, o roteiro da incursão de Foucault sobre o tema do homo oeconomicus.

Daqui em diante, procurarei apresentar os contornos e as principais articulações

conceituais deste percurso proposto por Foucault.

III. Elementos para problematização e história da noção de homo oeconomicus e a

invenção de uma nova razão governamental.

III. 1. – A teoria do sujeito e o sujeito de interesse no empirismo inglês.

Para fazer uma problematização do aparecimento da noção de homo oeconomicus,

Foucault recorre, incialmente, aos empiristas ingleses dos séculos XVII-XVIII, Locke e

Hume analisando a teoria do sujeito tal como ela é “efetivamente aplicada na filosofia

empírica inglesa”106. O empirismo inglês expresso em Locke, observa Foucault, traria

106
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 370.

81
pela primeira vez na filosofia ocidental um sujeito que não seria definido nem por sua

liberdade, nem pela oposição alma e corpo, tampouco “pela presença de um foco ou

núcleo de concupiscência marcado pela queda ou pecado”; e sim “um sujeito que aparece

como sujeito de escolhas individuais [sujet de choix individuels] ao mesmo tempo

irredutíveis [irréductibles] e intransmissíveis [intransmissibles]107.

O que seria esse “irredutível” no sujeito do empirismo inglês? Para explicitar esse

elemento “irredutível”, temos o exemplo dado por Hume: ao se investigar as razões de

um indivíduo fazer uma determinada escolha em vez de outra, haverá, ao final das contas,

um elemento irredutível, ou seja, um elemento para além do qual não se poderá ir porque

ele seria o elemento limitador de uma série investigativa. Hume dirá que o “caráter

doloroso ou não-doloroso” de uma escolha constitui um “irredutível” no sentido de que

não remete a nenhum juízo, raciocínio ou cálculo. Fazer algo para evitar a dor é um

princípio e para o qual não caberia avançar em investigações, em indagações. O outro

elemento do sujeito é o caráter “intransmissível” de sua escolha, que em grande medida

se relaciona com o primeiro. Em que ele consiste? Não é que não se possa transmitir ou

substituir uma escolha por outra: “poder-se-ia perfeitamente dizer que, se alguém prefere

a saúde à doença, também pode preferir a doença à morte e, neste caso, optar pela doença”

ou “escolher estar ele mesmo doente em vez de outra pessoa”. Mas, mesmo nestes casos,

a escolha recai sobre “um sentimento pessoal de dor ou não dor, de doloroso e agradável”

e que, no final das contas, será o princípio de minha escolha. Assim, esse par,

irredutibilidade e intransmissibilidade, relacionado ao sujeito de escolhas constitui,

conclui Foucault, o “interesse” que se cristalizará no chamado “sujeito de interesse”: que

107
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 371.

82
é como “ponto de partida de um interesse ou lugar de uma mecânica de interesse”.

Embora haja, diz Foucault, uma série de discussões sobre o funcionamento dessa

mecânica, o que é fundamental é que “o interesse aparece, e isso pela primeira vez, como

uma forma de vontade, uma forma de vontade ao mesmo tempo imediata e absolutamente

subjetiva”108. Eis um primeiro aspecto da noção de homo oeconomicus revelado a partir

do sujeito de interesse.

Na sequência, Foucault observa que se poderia pôr um problema de conciliação,

ou assimilação, em relação à questão, também presente no século XVIII, da “vontade

jurídica”. Poder-se-ia perguntar: “se essa forma de vontade que chamamos interesse [do

sujeito de interesse] pode ser considerada do mesmo tipo de vontade jurídica ou se pode

ser articulada a ela.”109

Para isso, Foucault analisa o pensamento do jurista britânico William Blackstone

e, mais uma vez, de Hume. Em primeiro lugar, Blackstone, observa Foucault, ao tratar da

questão do contrato primitivo, do contrato social, diz que os indivíduos que estabelecem

o contrato o fazem porque tinham interesse – isso pelo fato de no estado de natureza tais

interesses estarem ameaçados. Assim, a vontade jurídica que aí se forma e “o sujeito de

direito que se constitui através do contrato é no fundo o sujeito de interesse, mas de um

interesse mais depurado, que se tornou calculador, racionalizado, etc.”110 Sobre esse

mesmo ponto, no entanto, Hume faz outra interpretação. O sujeito de direito não se

superpõe ao sujeito de interesse: se faz contrato por interesse, porém, uma vez

estabelecido, ele só é respeitado porque se tem interesse em que haja contrato, pois o

108
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 372.
109
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 372.
110
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 373.

83
vínculo com os outros garante que os meus próprios interesses não sejam lesados. Para

os juristas, o respeito ao contrato é devido à obrigação na qual o sujeito se acha submetido

ou constrangido ao ter se tornado sujeito de direito e, assim, ele irá obedecer ao contrato.

Hume, todavia, dirá que se o contrato já não apresenta interesse, nada pode obrigar a

continuar a obedecê-lo: logo, interesse e vontade jurídica não se substituem, tampouco o

sujeito de direito se superpõe ao sujeito de interesse.

III. 2. – O homo oeconomicus e o exercício do poder político do soberano.

Na sequência, Foucault observa que há uma radical novidade que o homo

oeconomicus coloca para o fundamento do poder e para o exercício legítimo do poder

político, algo que o sujeito de direitos, na figura do homem jurídico, não poderia colocar.

Para mostrar essa novidade e essa diferença, Foucault recorre, inicialmente, a

Condorcet e a Adam Smith. Condorcet, em Os progressos do espírito humano, ao analisar

o interesse de um indivíduo isolado do sistema geral de uma sociedade, apresenta duas

características desse interesse: a primeira é que o interesse desse indivíduo depende de

uma infinidade de coisas, de ordem natural e política, que no fim das contas está ligada a

“um curso do mundo que o extrapola lhe escapa por toda parte”111; a segunda

característica é que, apesar desse caos aparente, “vemos, entretanto, por uma lei geral do

mundo moral, os esforços de cada um por si mesmo servir ao bem de todos”. Desse

modo, conclui Foucault, ao mesmo tempo em que o interesse desse indivíduo lhe escapa,

porque está ligado a uma massa de elementos de que ele mesmo não pode dar conta, esse

111
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 377.

84
interesse “vai se ver ligado a toda uma série de efeitos positivos que farão com que tudo

o que lhe é proveitoso vá ser proveitoso ao outros”, de maneira que a “a convergência de

interesses vem assim reforçar e sobrepor-se a essa disparidade indefinida de acidentes”112.

Foucault acrescenta que, neste cenário, embora o homo oeconomicus esteja situado numa

série de elementos involuntários, indefinidos e não totalizáveis, tais elementos não

desqualificam seu interesse, tampouco desqualificam o cálculo que ele pode fazer para

alcançá-lo da melhor maneira possível; ao contrário, “esses elementos indefinidos” é que

fundam e dão consistência ao cálculo propriamente individual que o liga “da melhor

maneira possível ao resto do mundo”. Em suma, o homo oeconomicus “vai dever o caráter

positivo de seu cálculo a tudo o que, precisamente, escapa de seu cálculo”113. Com o

desenho dessa espécie de “zona cinza” na qual está imerso e em que o homo oeconomicus

se movimenta, Foucault irá a Adam Smith e, especialmente, ao problema da “mão

invisível”.

Em a Riquezas das nações, Smith, ao falar das estratégias de lucro que o

comerciante visa ao preferir o sucesso da indústria nacional ao da indústria estrangeira

para que o seu produto tenha o maior valor possível, “pensa apenas em seu próprio ganho;

nesse e em muitos outros casos, ele é conduzido por uma mão invisível para alcançar um

fim que não está em absoluto nas suas intenções.”114 Este trecho, cerne da problemática

da “mão invisível”, seria, diz Foucault, o correlato ao que ocorre com o homo

oeconomicus e alude a “essa espécie de mecânica bizarra que faz funcionar o homo

oeconomicus como sujeito de interesse individual no interior de uma totalidade que lhe

112
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 377-378.
113
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 378.
114
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 378-379. N.B.: texto de Riquezas das nações citado
literalmente por Foucault.

85
escapa, mas funda a racionalidade das suas escolhas egoístas”115. Ainda avançando neste

tema da “mão invisível”, para melhor explicá-la, Foucault faz uma menção ao “Deus” de

Malebranche. Isso porque a “mão invisível”, no pensamento de Smith, pode ser lida como

[i] um otimismo econômico mais ou menos ponderado e também [ii] vê-se nela o resto

de um pensamento teológico da ordem natural. Assim, “a mão invisível de Adam Smith

seria um pouco como o Deus de Malebranche, cuja extensão inteligível seria povoada,

não de linhas, de superfícies e de corpos, mas povoada de comerciantes, de mercados, de

navios, de carroças e de grandes estradas”116. Ao fim, embora a totalidade do processo do

mundo econômico escape a cada um dos atores econômicos em sua ação particular,

haveria “uma espécie de olhar, olhar de alguém cuja mão invisível, segundo a lógica desse

olhar e segundo o que esse olhar vê, ata os fios de todos os interesses dispersos”117. O que

levará, diz Foucault, a que se possa dizer, na esteira do pensamento de Smith, que “graças

a Deus as pessoas só se preocupam com seus interesses, graças a Deus os comerciantes

são uns egoístas consumados, e são raros, entre eles, os que se preocupam com o bem

geral, porque, quando eles começam a se preocupar com o bem geral, é nesse momento

que as coisas começam a não dar certo.”118

Um ponto fundamental é que haverá, evidentemente, consequências para o

exercício do poder político por parte de qualquer agente político e mesmo do soberano –

isso porque, também para o soberano, o mundo econômico “é e deve ser necessariamente

obscuro”. Obscuro em dois sentidos: [i] porque a mecânica econômica implica que cada

um siga seu próprio interesse, há que se deixar, pois, cada um fazer; [ii] e porque é

115
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 379.
116
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 379.
117
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 379.
118
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 380 (grifos meus).

86
impossível ao soberano ter sobre o mecanismo econômico um ponto de vista que totalize

cada um dos elementos e permita combiná-los artificial ou voluntariamente. E neste

ponto, para explicá-lo um pouco mais, Foucault cita o historiador e filósofo escocês Adam

Ferguson, que diz: “Quanto mais o indivíduo ganha por sua própria conta, mais aumenta

a massa da riqueza nacional. [...] Todas as vezes que a administração, por refinamentos

profundos, aplica uma mão ativa nesse objeto, mais não faz que interromper o andamento

das coisas e multiplicar as causas de queixas. Todas as vezes que o comerciante esquece

seus interesses para se consagrar a projetos nacionais, o tempo das visões e das quireras

está próximo.”119 Ao final, retomando o pensamento de Smith, Foucault acrescenta que

o soberano, ao interferir no econômico, cometeria erros por uma razão essencial e

fundamental: ele não poderia não se enganar nessa tarefa de administrar a complexidade

de um mundo econômico e por isso dela o soberano deve ser desencarregado porque para

essa tarefa ser realizada de maneira “conveniente” não haveria nenhuma sabedoria

humana e nenhum conhecimento que bastasse : “a racionalidade econômica vê-se não só

rodeada por, mas fundada sobre a cognoscibilidade da totalidade do processo”120.

III. 3. – O “Quadro econômico” dos fisiocratas e a “Mão invisível” de A. Smith.

Foucault, por fim, discute uma oposição à “teoria da mão invisível” de Adam

Smith que se delineia na mesma época: trata-se da posição dos fisiocratas franceses que

fizeram análises sobre o mercado e seus mecanismos que “provavam” que o governo, o

119
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 382. Texto da citação literal, feita por Foucault, de
História da Sociedade Civil de Adam Ferguson.
120
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 383.

87
Estado, o soberano, não deviam de forma alguma “intervir na mecânica de interesses que

fazia com as mercadorias fossem para onde encontrassem mais facilmente compradores

e pelo melhor preço. A fisiocracia era, portanto, uma crítica severa a toda regulação

administrativa pela qual se exercia o poder do soberano sobre a economia.”121. Todavia,

observa Foucault, embora os fisiocratas defendessem essa livre ação dos agentes

econômicos, era delineada por princípios bem particulares e em clara oposição, ao menos

quanto à forma, à teoria smithiana.

Primeiro ponto é que, para os fisiocratas, o território inteiro de um país é, no

fundo, de propriedade do soberano ou, ao menos, o soberano é coproprietário; em

consequência, ele será também coprodutor, donde a legitimidade da cobrança dos

impostos; e, assim, ao soberano caberá, por princípio e por direito, o título de

coproprietário das terras e coprodutor dos produtos. Um segundo ponto é que os

fisiocratas postulam a existência de um “Quadro econômico” que “possibilita

acompanhar com exatidão o circuito da produção e da constituição da renda, dá ao

soberano a possibilidade de conhecer exatamente tudo o que acontece no interior de seu

país e o poder, por conseguinte, de controlar todos os processos econômicos”122; assim,

o soberano poderá, em nome desse saber total – adquirido graças a esse Quadro

Econômico–, aceitar livre e racionalmente o princípio da liberdade dos agentes

econômicos. Um terceiro ponto, por fim, é que um bom governo deverá “explicar aos

diferentes agentes econômicos, aos diferentes sujeitos, como a coisa acontece por que

acontece e o que devem fazer para maximizar seu lucro”123. Portanto, conclui Foucault,

121
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 386-387.
122
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 387.
123
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 388.

88
para os fisiocratas, o princípio do laissez-faire deverá coincidir com a existência de um

soberano “tanto mais despótico, tanto menos tolhido por tradições, hábitos, regras, leis

fundamentais, quanto sua única lei seja a da evidência, a de um saber bem erigido e bem

construído que ele compartilhará com os agentes econômicos”124.

Foucault enfatiza que a teoria da mão invisível de Adam Smith é o exato contrário

disso: não é possível, em princípio, haver poder soberano, nos termos postos pelos

fisiocratas, exatamente porque não pode haver evidência econômica. E, assim, a ciência

econômica (tomando como começo da economia política a teoria de Adam Smith e a

teoria liberal) “nunca se apresentou como devendo ser a linha de conduta, a programação

completa do que se poderia ser a racionalidade governamental”125.

E, aqui, Foucault faz uma precisão fundamental: “deve-se governar com a

economia, deve-se governar ouvindo os economistas, mas não se pode permitir, está fora

de cogitação, não é possível que a economia seja a própria racionalidade

governamental”126.

Contudo, é imediata a questão: o que, então, ela seria? Essa racionalidade

governamental não se fundamentaria no cálculo de interesse do homo oeconomicus?

Tudo nos leva a esse raciocínio. Ou seja: o homo oeconomicus carrega nele mesmo a

expressão dessa governamentalidade.

124
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 388.
125
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 389.
126
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 389.

89
CAPÍTULO IV

HISTÓRIA DA MORAL E O DESTINO DO CUIDADO DE SI

90
“Ce qui m’intéresse en ce moment, c’est d’échapper à la mécanique, de
savoir si l’inévitable peut avoir une issue.”
CAMUS, A. L’Étranger.

I. Uma dupla recusa: este sujeito, esta moral.

A noção de cuidado de si parece, assim, permitir a Foucault operar uma dupla

recusa. Em primeiro lugar, a recusa de uma moral que é derivada de uma subjetividade

cuja história encontra raízes no cristianismo primitivo, na passagem do século IV ao

século V, e que encontra expressão em nossa Modernidade. E também permite, em

segundo lugar, a recusa de uma “filosofia do sujeito” que teria como elemento de

sustentação a negação da historicidade da noção mesma de sujeito ao transformá-la em

fundamento do conhecimento e também, por consequência, em fundamento da moral. A

recusa de uma “filosofia do sujeito” é bastante clara em Foucault, e é expressa com

especial ênfase em uma célebre conferência de 1980, no quadro da série As origens da

hermenêutica de si, na qual ele diz que “esta genealogia, que é, há alguns anos, minha

obsessão é uma das vias possíveis para se livrar da filosofia tradicional do sujeito.”127

As investigações que permitiram Foucault promover essa dupla operação de

recusa são um tanto sinuosas e estão longe de serem óbvias. Foucault sabe disso, e chega

127
FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi, p. 66 [grifos meus]. A esse respeito ele também
declara em uma entrevista que: “ce que j'ai voulu essayer de montrer, c'est comme le sujet se constituait
lui-même, dans telle ou telle forme déterminée, comme sujet fou ou sujet sain, comme sujet délinquant ou
comme sujet non délinquant, à travers un certain nombre de pratiques qui étaient des jeux de vérité, des
pratiques de pouvoir, etc. Il fallait bien que je refuse une certaine théorie a priori du sujet pour pouvoir faire
cette analyse des rapports qu'il peut y avoir entre la constitution du sujet ou des différentes formes de sujet
et les jeux de vérité, les pratiques de pouvoir, etc” in: FOUCAULT, M. L'éthique du souci de soi comme
pratique de la liberté, in Dits et écrits, tome II, texto n°356, p. 1537.

91
mesmo a dizer que “pode-se objetar que, para estudar as relações entre sujeito e verdade,

é sem dúvida um tanto paradoxal e passavelmente sofisticado escolher a noção de

epiméleia heautoû para a qual a historiografia da filosofia, até o presente, não concedeu

maior importância.”128. As relações entre sujeito e verdade é, como sabemos, um dos

problemas clássicos da história da filosofia, e o modo como até então, para Foucault, esse

problema foi tratado resultaria em grande medida na afirmação de uma “filosofia do

sujeito”129. O que ele pretende fazer é, em vez disso, expor os elementos desta construção

e, assim, fazer emergir os efeitos de uma problematização da história do sujeito, uma vez

que, observa Foucault: “a maior parte dos historiadores preferem uma história dos

processos sociais e a maior parte dos filósofos preferem um sujeito sem história”130.

A moral também tem uma história. E houve um momento, defende Foucault,

crucial na história da moral no Ocidente, assim como teria havido momentos decisivos

no domínio da história da política e da história da ciência. No caso da moral, não se pode

escapar de um ponto de inflexão que teria também uma data e um acontecimento a ele

associado, e é assim que se pode interrogar: “o que aconteceu no primeiro século de nossa

era, no ponto de viragem do que chamamos de uma ética pagã e uma moral cristã? Na

história de nossa moral, esse problema histórico está associado a toda questão geral ou a

toda questão política referente à nossa moral, como a questão da fundação da física

matemática está associada a toda reflexão sobre a ciência, como a questão da Revolução

128
Cf.: FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 4.
129
A respeito da recusa foucaultina de uma “filosofia do sujeito”, o instigante artigo de J.-C. Monod, La
méditation cartésienne de Foucault, p. 345, informa que “abordant la question du soi et du sujet (...),
Foucault prend soin de rappeler ce qui l’avait tenu, jusqu’alors, à distance de ce thème : soit la façon dont
le sujet était pris en charge par la « philosophie du sujet » telle qu’elle était « dominante » en France et dans
toute l’Europe continentale « dans les années qui précédaient, et plus encore après, la Seconde Guerre
mondiale».
130
FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi, p. 35.

92
Francesa está associada a toda reflexão política.”131 De início, sabemos que é neste

período em que há aquilo se chamou de um alargamento da cultura de si, houve uma

verdadeira expansão desta prática, que se ampliou por diversos âmbitos da existência132.

Mas também houve a invenção de uma nova maneira de relação a si, e em especial uma

nova maneira de relação aos prazeres.

Esse modo de relação a si que surge neste momento de inflexão a que Foucault

se refere tem como forma de operação um elemento decisivo que é o “governo”. Mas a

noção de “governo” que nela está em jogo pode parecer a nós – modernos – estranha.

Trata-se de uma noção antiga de governo. Foucault tratará dela em suas pesquisas e, de

início, nos diz que nela “governo é entendido, claro, não no sentido estrito e atual de

instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas estatais, mas no

sentido lato, e aliás antigo, de mecanismos, procedimentos destinados a conduzir os

homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens.”133 Trata-se,

assim, de uma noção de governo cuja agência produz uma forma que forjará um modo de

os homens se conduzirem. Vê-se que não se trata de algo como uma força de “repressão”

ou “imposição” que viria de um “exterior”, em vez disso, trata-se da introdução de um

elemento de regulação na própria relação do individuo consigo mesmo.

Esta ordem instalada neste momento de inflexão tem também como elemento de

constituição uma relação a si que é ancorada em uma subjetividade forjada a partir

daquilo que se firmará como uma “decifração do desejo” em vez do “uso que se fazia dos

prazeres”. Ou seja, ressalta Foucault: “Passou-se da problemática antiga: como não me

131
Cf.: FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p.19. Também sobre esse corte ver, em especial:
FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi, p. 42.
132
Ver a esse respeito, em especial, o capítulo II, “A cultura de si”, do volume III da História da sexualidade
no qual Foucault descreve a expansão da cultura de si no início de nossa era.
133
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p.13.

93
deixar arrebatar pelo movimento do desejo que me leva e me prende ao prazer? Para esta

problemática: como me revelar, para mim mesmo e para meus próximos, como sujeito de

desejo?”134. Há nesta cesura, vê-se, uma importante modificação: de uma relação ao

desejo e ao prazer, como elementos de um trabalho de mensuração, cuja medida deve ser

encontrada para a constituição de uma relação a si, para uma assimilação e “apagamento”

desses elementos que, doravante, serão objetos de um incessante trabalho de decifração e

interpretação para o próprio sujeito.

II. O momento dos séculos I e II: a nossa era, em direção à nossa subjetividade.

Ao localizar nos séculos I e II de nossa era um momento crucial na história da

moral no Ocidente, Foucault identifica uma descontinuidade neste período no qual a

conduta instituída em relação ao sexo ilustra de maneira privilegiada. Esta

descontinuidade revela que “o que foi colocado no cerne da problematização da conduta

sexual não foi mais o prazer, com a estética de seu uso, mas o desejo e a sua hermenêutica

purificadora”135. Essa lenta e complexa transformação é apresentada e analisada por

Foucault mais detidamente no volume II da História da sexualidade e no curso

Subjetividade e verdade. Uma análise bastante inovadora e que precisa, ademais, de

algumas justificações.

Contudo, a história da passagem de uma ética pagã para uma moral cristã encontra

uma inflexão inicial no interior propriamente da chamada “ética pagã”. Foucault é

bastante claro ao estabelecer esta inflexão no interior da ética pagã do início de nossa era.

134
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 292, nota a [p. 260].
135
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 319.

94
Na filosofia pagã greco-romana deste período verifica-se que aquilo que “outrora

caracterizava os aphrodísia (uma relação de si com os outros) agora vai interiorizar-se ou

projetar-se no próprio sujeito e tornar-se essencialmente relação de si consigo. Portanto:

subjetivação da atividade sexual ou passagem de uma subjetivação que tinha a forma de

atos para uma subjetivação em forma de relação permanente de si consigo.”136 Há nesta

inflexão, a invenção de uma nova relação a si que manterá o indivíduo em uma ligação

permanente com a sua atividade sexual e, por conseguinte, essa atividade sexual passa a

constituir uma dimensão da sua própria subjetividade. O que, na época clássica grega,

estava disseminado em atos diversos, heterogêneos, cuja regulação se dava pelo uso que

deles o indivíduo fazia, em uma relação com os outros, toma agora a forma de uma relação

permanente e exclusiva consigo mesmo.

Por que a relação do sexo com a moral? A análise da moral toma um sentido

inteiramente particular em Foucault pois, para fazê-la, ele toma, de início, como um dos

casos privilegiados a análise da nossa relação ao sexo137. Não sem razão! A relação ao

sexo que a nossa modernidade chamou de “sexualidade”, e os cristãos do século IV de

“carne”, revela uma forma de subjetivação também particular que exige uma relação a si

inteiramente específica. Em pesquisas anteriores, como sabemos, também foram objetos

de estudos de Foucault a loucura, o crime, a doença; nesses casos, o elemento essencial

136
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 256 (grifos meus).
137
De um outro ângulo, e por outras perspectivas filosóficas, o sexo é também presente e frequente nos
tratados de moral. É possível, em uma leitura mais atenta, encontrar em alguma medida a tematização do
sexo em filosofias morais do Ocidente. Kant, por exemplo, em suas Lições de ética, também problematiza
o sexo e é extremante severo à consumação do impulso sexual, reservando este ato ao casamento (aliás,
como faz boa parte da tradição moral antiga). Nessas suas Lições de ética, p. 361, ele diz que: “Uma vez
que o impulso sexual não é uma inclinação que um ser humano tem por outro enquanto pessoa, mas uma
inclinação para o seu sexo, ele é um principium de degradação da humanidade, a origem da predileção de
um gênero a outro e da desonra desse gênero a partir da satisfação da inclinação. O desejo de um homem
por uma mulher não diz respeito a ela como um ser humano, mas ao fato de que é uma mulher. Por
conseguinte, a humanidade da mulher lhe é indiferente e apenas o sexo é o objeto de sua inclinação. A
humanidade aqui é, portanto, colocada de lado”.

95
do discurso produzido sobre o sujeito em torno dessas experiências é feito do exterior,

por um outro que, sob os auspícios da reprodução da ordem, do saber e do poder,

determina justamente aquele que é louco, delinquente ou doente. Ao passo que, no caso

do funcionamento do dispositivo da sexualidade, o discurso é exigido e produzido pelo

próprio sujeito. Foucault assinala essa diferença decisiva ao dizer que “no caso da

sexualidade, o discurso verdadeiro foi institucionalizado, pelo menos em parte

considerável, como discurso obrigatório do sujeito sobre si mesmo. Isso quer dizer que

não se organizou a partir de algo que se apresentasse como observação e exame, em razão

de regras aceitas de objetividade, e sim foi em torno da prática da confissão que o discurso

verdadeiro sobre a sexualidade se organizou”138.

III. Os afrodisia: o uso, a quantificação.

Esse modo de subjetivação que emerge da relação ao sexo tem consequências,

assim, na instituição de uma relação a si que é observada, e que toma forma e solidez

posterior, na experiência cristã da carne (na passagem do século IV e V d.C.), mas que é,

por sua vez, totalmente estranha ao que se constituiu como experiência grega dos

afrodisia na época clássica grega. Foucault escreve que “é um fato que os gregos não

deram testemunho, nem no seu pensamento histórico, nem na sua reflexão prática, de um

cuidado insistente em delimitar o que eles entendiam, exatamente, pelos aphrodisia –

quer se tratasse de fixar a natureza da coisa designada, de delimitar a extensão de seu

campo, ou de estabelecer o catálogo de seus elementos. Em todo caso nada que se

assemelhasse às longas listas de atos possíveis que serão encontrados nos penitenciais,

138
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 14-15.

96
nos manuais de confissão ou nos livros de psicopatologia; nenhum quadro que sirva para

definir o legítimo, o permitido ou o normal, e a descrever a vasta família dos gestos

proibidos. Nada, também, que se assemelhe ao cuidado – tão característico da questão da

carne ou da sexualidade – em revelar sob o inofensivo ou o inocente a presença insidiosa

de uma potência de limites incertos e múltiplas máscaras. Nem classificação nem

decifração.”139.

O uso dos prazeres é o princípio em torno qual essa experiência é forjada. Mas o

que são mesmo os aphrodísia140, em que esta experiência se distingue da relação ao sexo

que se construirá posteriormente? De início, pode-se dizer que se trata de um campo de

experiência que diz respeito aos prazeres em geral e ao sexo em particular. Foucault

adverte, porém, que não encontraríamos facialmente nos gregos, tampouco nos latinos,

uma noção que, como a de “sexualidade” ou “carne”, acomodasse em um só sentido um

conjunto de elementos e fenômenos tão diversos como os que caracterizam essas

experiências, tais como “comportamentos, sensações, imagens, desejos, instintos e

paixões”; o que, por outro lado, não se tratava, evidentemente, de uma ausência de

vocabulário para designar as “coisas relativas ao sexo”; há um vasto léxico para os atos

relativos ao sexo entre os gregos141.

Os aphrodísia expressaram, assim, um quadro de relação a si, e ao sexo em

particular, cujo ponto de convergência é exatamente o uso dos prazeres, chesis

139
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 51.
140
O nosso dicionário Houaiss, naturalmente moderno, traz entre outros, o sentido corrente para o termo,
já transliterado, “afrodisia”. O sentido é oriundo da Psicopatologia que o define como: “aumento,
especialmente patológico, da excitabilidade sexual.” O que é absolutamente estranho à cultura grega
clássica!
141
Foucault lembra que “é evidente que os gregos dispõem de uma série de palavras para designar diferentes
gestos ou atos que nós chamamos ‘sexuais’. Eles dispõem de um vocabulário para designar práticas
precisas; possuem termos mais vagos que se referem, de forma geral, ao que chamamos “relação”,
“conjunção” ou “relações sexuais”: como sunousia, homilia, plesiasmos, niixis, ocheia. Porém, a categoria
geral sob a qual todos esses gestos, atos e práticas são subsumidos é muito mais difícil de apreender.” In:
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 47.

97
aphrodision, onde o elemento central, problemático, será elaborar as condições e

modalidades, encontrar a justa medida desse “uso”, e isso relativo ao indivíduo em vistas

de uma elaboração de si. E “uso” não no sentido de uma fruição banal, mas de uma prática

regrada na qual há algum tipo de regulação; não se trata de uma liberdade suprema que

poderia facilmente transformar-se em “abuso”; o “uso”, neste sentido, é um espaço de

liberdade que abre e que me constrange a fazer um certo cálculo diante do que está a

minha disposição. Também não se trata aqui de recomendação ou interdição, de bem e

mal, de permitido ou proibido, enfim, de uma esconjuração ou exortação dos prazeres.

Apresenta-se, antes, como um trabalho pela busca do momento, da ocasião e da

quantidade desses prazeres e da modalidade que o sujeito constituirá na relação a eles.

Foucault elabora uma grade de inteligibilidade que permite apreender e

caracterizar o modo de subjetivação oriundo da experiência grega dos aphrodísia, e ela é

apresentada exatamente a partir dos elementos que ele havia formulado para a

investigação da história da moral, a saber: a substância ética, o modo de sujeição, a

formas de elaboração de si e a teologia moral. Assim, na experiência grega apreende-se

que: “Os elementos desse campo – a ‘substância ética’ – eram formados por aphrodisia,

isto é, atos determinados pela natureza, associados por ela a um prazer intenso, e aos quais

ela conduz através de uma força sempre suscetível de excesso e de revolta. O princípio

segundo o qual devia-se regrar essa atividade, o ‘modo de sujeição’, não era definido por

uma legislação universal, determinando os atos permitidos e os proibidos; mas ao

contrário, por um savoir-faire, uma arte que prescrevia as modalidades de um uso em

função de variáveis diversas (necessidade, momento, status). O trabalho que o indivíduo

devia exercer sobre si, a ascese necessária, tinha a forma de um combate a ser sustentado,

de uma vitória a ser conquistada estabelecendo-se uma dominação de si sobre si, segundo

98
o modelo de um poder doméstico ou político. Enfim, o modo de ser ao qual se acedia por

meio desse domínio de si caracterizava-se como uma liberdade ativa, indissociável de

uma relação estrutural, instrumental e ontológica com a verdade.”142 Este quadro é

montado a partir de textos de autores principalmente do campo da medicina e da filosofia.

Nele comparecem fundamentalmente textos de Xenofonte, Platão e Aristóteles. E, esse

quadro, é feito a partir da prática de si identificadas na cultura grega: a dietética (a prática

do regime da saúde), a econômica (a prática da gestão da casa) e a erótica (prática da

corte amorosa).

IV. O homem de desejo: objeto de desejo.

Na última aula do curso de 1981, Subjetividade e verdade, Foucault,

curiosamente, não lê um trecho que ele próprio havia preparado para a exposição na

última parte da aula daquele dia. O trecho, aliás, tem um tom eminentemente conclusivo

e aponta desdobramentos importantes no interior da obra do filósofo. O fato é mais

curioso ainda porque será a segunda vez que ele decide omitir a leitura deste mesmo

trecho: um mês antes, no mesmo curso, na aula de 25 de fevereiro daquele ano, ele

também havia decido não expor essa espécie de “conclusão”, e também de

“direcionamento”, de suas pesquisas até então. O trecho, todavia, é uma preciosidade, e

os editores, felizmente, o publicaram na edição póstuma do curso. Ele revela, nada mais

nada menos, a formulação de uma tese decisiva para o projeto que Foucault anunciará

anos mais tarde, em 1984, quando virá a público, de uma só vez, os volumes II e III da

História da sexualidade: feito então que “quebrará” o chamado “silêncio de oito anos”

142
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 112-113 (grifos meus).

99
desde a publicação de A vontade de saber. O texto do trecho não pronunciado, e que os

manuscritos então nos permitem agora saber, é o seguinte: “É essa questão do sujeito de

desejo que vai permear o Ocidente de Tertuliano a Freud. [...] Mas faltaria mostrar como

no cristianismo foram elaboradas tanto a subjetivação dos aphrodísia quanto a

objetivação do sujeito do desejo. Assim, aparece no Ocidente o sujeito de desejo como

objeto de conhecimento. Passou-se da problemática antiga: como não me deixar arrebatar

pelo movimento do desejo que me leva e me prende ao prazer? Para esta outra

problemática: como me revelar, para mim mesmo e para meus próximos, como sujeito de

desejo ?”143 .

Temos assim uma versão do problema que, em 1984, aparecerá de forma

econômica, e em grande medida enigmática, na célebre Introdução de O uso dos prazeres

na qual ele explica descolamentos decisivos que tivera de fazer para levar adiante o

projeto de uma (nova) história da sexualidade, e que tinha assim como horizonte o estudo,

ambicioso e inovador, de como “o homem ocidental fora levado a se reconhecer como

sujeito de desejo”144, ou seja, a tarefa seria de fazer “uma genealogia do homem de

desejo” – o que revelaria, ademais, a estratégia foucaultiana de escapar, de início, das

“armadilhas” das “teorias do desejo” que, à época, partiam das noções comumente

aceitas, e bem assentadas, isto é, a noção mesma de desejo e de sujeito desejante (sujet

désirant) e, assim, tomam como evidente o que, para Foucault, deveria ser tomado como

problemático. O conteúdo deste texto omitido por duas vezes durante as aulas do curso,

e finalmente apresentado em livro, podemos dizer, aparece de maneira quase formular,

ao ser apresentado como um projeto de “uma genealogia do homem de desejo”.

143
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 260.
144
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 12.

100
O “problema do desejo”, todavia, é tratado – e, desta vez, exposto – de maneira

expressa ao longo da parte final desta mesma aula de 1 de abril de 1981. O que nos permite

melhor compreender o conteúdo filosófico do trecho e a tese que ele implica. Trata-se do

desejo tomado em sua acepção antiga, oriundo da filosofia grega, e que está presente,

pois, na obra dos dois maiores filósofos da época clássica: Platão e Aristóteles. É, assim,

do desejo como “epithumía” que se trata: tema caro e central nas éticas de Platão e de

Aristóteles. Em Platão, em sua fase socrática, a epithumía aparece como o desejo que

arrebata os “muitos” porque, ao final, eles não possuem o conhecimento verdadeiro que

os levaria a agir de maneira virtuosa, ética. Em Aristóteles, por sua vez, a epithumía é o

tipo de desejo que nos põe no limite da semelhança com os animais que, embora

desprovidos de razão, também o possuem. E todo o trabalho ético será então de como

controlá-la, de como não agir por epithumía, pois ao nos deixamos ser arrebatados pela

força desse desejo nos assemelharíamos aos animais, uma vez que a epithumía encontra-

se exatamente, segundo a filosofia aristotélica, na parte desprovida de razão da alma

humana145. Assim, todo o problema reside em um controle da epithumía seja fortalecendo

a parte racional da alma, seja pelo exercício da temperança para não permitir que ela nos

arrebata. A epithumía é, por sua vez, um desejo, a partir dessa psicologia moral grega,

que tem como objeto, dentre outras coisas, o nosso impulso pelo sexo.

Segundo Foucault, a ética grega clássica é vivida sob o regime dos aphrodísia, no

qual, portanto, a chave de regulação é dada pelo viés do “uso”, da quantidade, do

momento, da medida enfim que se deve alcançar para melhor servir-se, ao final das

contas, dos prazeres que deles advém. Sob eles, em seu funcionamento, estavam

conjugados “corpo, alma, prazer, desejo, sensação” formando o que Foucault chama de

145
Sobre esse ponto ver, especialmente: ARISTÓTELES. Ética nicomaquéia, livros III e VII.

101
um “bloco paroxístico”, isto é, um conjunto bastante heterogêneo de elementos em

relação, mas que expressavam certa unidade.

Outro quadro é o que se configurará, segundo Foucault, com a surgimento do

sujeito de desejo no momento dos séculos I e II d.C. Em Marco Aurélio e Epiteto, por

exemplo, toda a problemática se centrará na pergunta: o que desejo? Todos os outros

elementos que outrora compunham a heterogênea e complexa experiência grega dos

aphrodísia será reduzida ao problema do desejo e sua hermenêutica. Essa transformação

ocorrerá por um duplo movimento.

Primeiro, Foucault observa que “para Epiteto e Marco Aurélio, serei efetivamente

senhor de mim, serei efetivamente puro, a enkráteia estará realizada para mim não

quando, [como] Sócrates, eu puder, desejando Alcibíades, renunciar ao ato sexual com

ele, mas quando não desejar, mesmo que os veja, nem a mais bela mulher nem o mais

belo rapaz.”146Trata-se, como vemos, de uma operação de outra natureza, radicalmente

oposta à experiência grega. Esse desejo, a epithumía, não será mais alvo da busca de uma

medida de uso, mas de um permanente combate. Em segundo lugar, esse combate irá

instituir uma nova relação a si, ou seja, uma relação permanente do indivíduo com a sua

atividade sexual, que estará desse modo no centro das preocupações da relação ao sexo

que doravante se estabelecerá.

E, assim, Foucault poderá firmar uma via nova para a sua história da sexualidade,

a saber, não “uma história da sexualidade que tivesse como fio condutor [a questão]:

como e em quais condições o desejo foi reprimido? Ao contrário, é preciso mostrar como

o desejo, em vez de ter sido reprimido, é um algo que pouco a pouco foi sendo extraído

e emergindo de uma economia dos prazeres e dos corpos; como foi efetivamente extraído

146
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 259.

102
dela; como e de que modo, em torno e a propósito dele, cristalizaram-se todas as

operações e todos os valores positivos ou negativos referentes ao sexo. Foi o desejo que,

sozinho, acabou confiscando tudo o que outrora estava reunido na unidade que era a dos

desejos, dos prazeres e dos corpos.”147 Não se trataria, pois, de uma repressão do desejo,

da epithumía, mas de uma extração, e uma transformação do desejo em elemento central

da relação ao sexo. E o desejo é assim tomado e transformado em uma instância

estritamente subjetiva, na medida em que ele é incorporado à própria subjetividade do

indivíduo transformando-o, portanto, em um sujeito de desejo.

V. Da renúncia de si e a “experiência da carne” à hermenêutica do sujeito.

“Mas foi o cristianismo que, de certo modo, cindiu ou desdobrou o problema da

relação sexual com a verdade e, nesse desdobramento, mostrou a questão da verdade do

desejo como aquela que o indivíduo precisava responder previamente para poder ter

acesso, além de todo desejo sexual, à verdade mesma. E foi assim que se viu tecida no

cristianismo essa relação entre a subjetividade e a verdade a propósito do desejo, que é

tão característica não só do cristianismo, mas de toda nossa civilização e de todo nosso

modo de pensar.”148 Essa será, ao final de contas, uma das teses fundamentais que

veremos emergir do curso de 1981, Subjetividade e verdade, na esteira dos problemas

que haviam sido tratados acerca da história do cristianismo no curso do ano anterior. Essa

relação que se constitui, e que será doravante necessária e permanente, entre a relação

147
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 260.
148
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 143.

103
que o próprio indivíduo constitui consigo mesmo e a verdade, e que terá como elemento

central uma hermenêutica do desejo. Tarefa para a qual o cristianismo primitivo não

cessará de empregar todo o seu aparato institucional, suas interdições e exortações, enfim,

empregar técnicas e instituir práticas em vistas a uma decifração e governo do desejo. É

verdade, como vimos acima, que essa hermenêutica teve um nascedouro anterior, mas é

com a experiência do cristianismo que ela ganha um novo sentido e papel na constituição

de uma nova subjetividade.

Em um primeiro momento talvez parece sobremaneira surpreendente o

aparecimento consistente e o papel que o cristianismo passa a ocupar nas pesquisas de

Foucault a partir dos anos 1980. A quase totalidade do curso Do governo dos vivos, do

ano acadêmico de 1979-1980, é dedicado em larga medida à história e as práticas do

mundo cristão em sua época primitiva.

Contudo, o interesse de Foucault pelo cristianismo é menos pela história de suas

doutrinas, e mais pelas práticas que ele inventou e instaurou, e dentre essas, aquelas que

se integram ao que se poderia chamar de uma “história das práticas de si”, e que

interessam, portanto, ao projeto foucaultiano de fazer uma “história das relações a si”;

história essa que releva, por sua vez, como sabemos, os elementos e o modo como as

subjetividades no Ocidente são forjadas. As inúmeras, e complexas, “práticas de si” que

o Cristianismo instituiu a longo de sua história compõem, assim, um acontecimento

histórico-filosófico incontornável para Foucault. Tanto assim que ele declara que é “a

partir do momento em que a cultura de si foi tomada pelo Cristianismo, ela foi colocada

a serviço do exercício do poder pastoral, na medida em que a epimeleia heautou se tornou

essencialmente a epimeleia tôn allôn – o cuidado dos outros – que era o trabalho do pastor.

Mas, uma vez que a salvação do indivíduo é canalizada – ao menos, em parte – pela

104
instituição pastoral que toma como objeto o cuidado das almas, o cuidado clássico de si

não desapareceu; ele foi integrado e perdeu muito de sua autonomia.”149

Contudo, tomado a partir do ângulo mais amplo de uma história da moral e de

suas interdições, Foucault observa que muito pouco mudou no conjunto das leis e

proibições que vigoram nos tratados de moralistas pagãos dos séculos I e II, o que o

cristianismo traz como novidade é, com efeito, no campo propriamente das relações a si,

e essas modificações teriam sido efetuadas por uma nova relação entre subjetividade e

verdade. Em As confissões da carne, Foucault escreve que “há um núcleo prescritivo

relativamente constante no Cristianismo. Este núcleo é antigo. E ele foi formado antes do

Cristianismo. Ele é claramente atestado por autores pagãos da época helenísticas e

romanas”150 . Mas em que ponto, então, o cristianismo constituiu uma inflexão na história

da subjetividade?

Dentre os elementos que mostram essa inflexão, um dos pontos fundamentais que

norteará a constituição da subjetividade cristã, e que é ausente na história anterior das

relações a si, é exatamente o princípio da renúncia de si. Foucault escreve: “É na medida

em que devo renunciar inteiramente a minhas próprias vontades substituindo minha

vontade pela vontade de outro, é porque devo renunciar a mim, que devo produzir a

verdade de mim mesmo, e só produzirei a verdade de mim mesmo porque estarei

trabalhando para essa renúncia a mim.” E mais adiante, ele conclui: “E esse vínculo entre

produção de verdade e renúncia a si parece-me ser o que poderíamos chamar de esquema

da subjetividade cristã, digamos mais exatamente o esquema da subjetivação cristã, um

procedimento de subjetivação que se formou e se desenvolveu historicamente no

149
FOUCAULT, M. À propos de la généalogie de l'éthique : un aperçu du travail en cours, Dits et Ecrits,
texto n°326, p. 1228.
150
FOUCAULT, M. Les aveux de la chair, p. 365.

105
cristianismo e que se caracteriza de uma maneira paradoxal pelo vínculo obrigatório entre

mortificação de si e produção da verdade de si mesmo.”151. Há, pois, essa noção de

verdade que passa a desempenhar um papel também decisivo nessa nova prática de si e

que terá consequências, portanto, para a história do cuidado de si e seu consequente

apagamento.

Para Foucault, portanto, a grande novidade que a experiência do cristianismo nos

mostra é que, contrariamente ao que se poderia suspeitar, ela não estabeleceu nenhum

novo conjunto significativo de interdições – as interdições a respeito do casamento, do

amor aos rapazes, a relação aos prazeres enfim –, elas já estavam presentes na moral da

época imperial romana dos séculos I e II e são assim repostas pela moral cristã. Desse

modo: nada de novo no que se refere à moral do código.

A novidade é, pois, na no âmbito da moral subjetiva. O cristianismo faz da

“relação ao sexo” o centro mesmo de gravidade em torno do qual orbitará uma nova

relação a si. Em outras palavras: não nos tornamos sujeitos sexuais senão a partir do

cristianismo.

Assim, ao estabelecer a ligação do indivíduo ao seu desejo, ao transformá-lo, pois,

em “sujeito de desejo”, é através do conhecimento que o sujeito terá de seu próprio desejo

que ele poderá constituir-se a si mesmo. Todo o esforço, emprego de práticas e técnicas,

visarão então uma decifração do desejo. É então a primazia do conhecimento de si que

começa a nascer, e que, como sabemos, fará escola na Modernidade e terá sua

consolidação no momento cartesiano152.

151
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 280.
152
Na Notícia bibliográfica consagrada à História da sexualidade I e II, da edição Bibliothèque de la
Pléiade, p. 1530, F. Gros, seguindo D. Defert, nos dá preciosas informações sobre o itinerário de pesquisas
de Foucault, ele escreve que “no início dos anos 1979, Foucault relê os primeiros Padres da Igreja. Um
novo projeto então está emergindo: encontrar nos Padres cristãos dos primeiros séculos de nossa era a
elaboração primitiva de um sujeito do desejo. Foucault pretende, portanto, retomar a história da

106
sexualidade, mas fazendo um recuo de uma boa dezena de séculos, para estabelecer ‘uma genealogia do
homem de desejo’. O curso pronunciado no Collège de France em 1980 (Do governo dos vivos) testemunha
essas novas disposições.”

107
CONSIDERAÇÕES FINAIS

CUIDADO DE SI E MODERNIDADE

108
“sa vie, singulière comme toute vie réellement subjectivée, a existé, pleinement,
porteuse d’un sens dont la signification et l’usage avaient valeur universelle”.
BADIOU, Alain. Tombeau d’Olivier.

I. Cuidado de si e a Modernidade.

A leitura de Foucault é que, portanto, o cuidado de si pode ser tomado como um

fio condutor para pensar a história da subjetividade que vai da filosofia grega clássica ao

ascetismo cristão e que, assim, nos permite a compreensão deste problema na

Modernidade. Como sabemos, o problema anunciado no início de A hermenêutica do

sujeito é a relação entre sujeito e verdade; ele é expressamente formulado por Foucault

já primeira aula do curso. Problema que ele extrai a partir de investigações histórico-

filosóficas que ele fizera nos anos precedentes acerca da história da moral sexual do

Ocidente e cuja experiência dos afrodísias é um exemplo privilegiado por seu alcance

histórico. O cuidado de si que, neste período, é tomado como uma atitude, uma conversão

para si mesmo, e que se efetiva por uma série de exercícios e de técnicas específicas de

uma relação para consigo mesmo, se revela, deste modo, como um capítulo decisivo para

a compreensão da história da subjetividade no Ocidente.

O cuidado de si é um princípio de conduta e, também, um conjunto de regras que

dele decorre. Ele foi também um princípio fundamental que caracterizou a atitude

filosófica ao longo da cultura grega, helenística e romana (e, também, a espiritualidade

cristã). O que na cultura helenística e romana se tornou, nas palavras de Foucault, “um

109
princípio geral de toda conduta racional”, e não somente estritamente filosófica, e que

formou “um fenômeno cultural de conjunto”153. Também, é preciso ressaltar, que o

cuidado de si foi presente não só em práticas pagãs, mas também perdurou na prática do

ascetismo cristão (quando, por exemplo, Gregório de Nissa, no Tratado da virgindade,

exalta a liberação do matrimônio e a efetivação da vida monástica pelo celibato é através

da evocação do princípio do cuidado de si que ele se justifica, sendo assim uma espécie

de matriz do ascetismo cristão). O cuidado de si se constitui, pois, ao mesmo tempo, como

uma noção, uma prática e também uma instituição. Esta é a recuperação da história da

subjetividade feita por Foucault e que o conhecimento de si na Modernidade em grande

medida apagou.

No entanto, o cuidado de si, pode soar, à primeira vista, em nosso tempo, como

uma espécie de egoísmo ou individualismo. Ora, devemos lembrar que ele tem seu ápice

exatamente no contexto do nascimento de uma das morais mais austeras que o Ocidente

já produziu, que é o estoicismo (especialmente nos séculos I e II d.C.). Assim, o ocupar-

se de si, ou o voltar-se para si mesmo, tem sua significação precisamente numa prática

austera, num determinado tipo de atenção, e mesmo de vigilância, sobre si mesmo, e que

visa uma transformação de si; e, ademais, muitas dessas práticas requerem

necessariamente uma relação efetiva aos outros para sua efetivação154.

Na chamada “Idade de ouro” do cuidado de si, nos séculos I e II, uma das

mutações importantes que ele sofre enquanto prática é o de ser uma atividade cujo fim é

a própria relação que o indivíduo estabelece consigo mesmo. Diferente da época clássica

cujo fim do cuidado do si era o governo da cidade – e ele era, portanto, dirigido à elite

aristocrática grega que almejava transformar seus privilégios econômicos em exercício

153
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 9-10.
154
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 106.

110
político. Um outro ponto é a generalização do cuidado de si como uma prática que visa a

inteira vida do indivíduo, e que se prestava a uma espécie de “arte de viver” e também se

dirigia a um público geral como uma prática autônoma, autofinalizada e plural.155

II. Relação a si e governamentalidade.

É verdade que Foucault faz, por diversas vezes, digressões ao longo das

exposições de seus cursos do Collège de France. Contudo, uma digressão muito

significativa de A hermenêutica do sujeito é especialmente reveladora. Esta digressão,

um tanto longa, é significativa porque nela Foucault aponta a marca da atualidade de seu

trabalho e, ao mesmo tempo, faz um retrospecto das noções e problemas que até então

investigara em seu itinerário de pesquisa. Este mapa nos dá, pois, uma indicação

privilegiada do papel da noção de “cuidado de si” ao longo desta última fase de sua

trajetória intelectual.

“(...) E talvez nesta série de empenhos para reconstituir uma ética de si, nesta série
de esforços mais ou menos estanques, fixados neles mesmos, neste movimento
que hoje nos leva, ao mesmo tempo, a nos referir incessantemente a esta ética de
si sem, contudo, jamais fornecer-lhe qualquer conteúdo, eu penso que há que se
suspeitar de algo que seria uma impossibilidade de constituir hoje uma ética de si,
quando talvez seja uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável,
se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao
poder político senão na relação de si para consigo. Se vocês quiserem, em outros
termos, o que eu quero lhes dizer é o seguinte: se considerarmos a questão do
poder, do poder político, situando-a na questão mais geral da governamentalidade
– entendida a governamentalidade como um campo estratégico de relações de
poder, no sentido mais amplo do termo, e não meramente político –, entendida,

155
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 79.

111
pois, como um campo estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel,
transformável, reversível –, então, a reflexão sobre a noção de
governamentalidade, penso eu, não pode deixar de passar, teórica e praticamente,
pelo âmbito de um sujeito que seria definido pela relação de si para consigo.
Enquanto a teoria do poder político como instituição refere-se, ordinariamente, a
uma concepção jurídica do sujeito de direito, parece-me que a análise da
governamentalidade – isto é, a análise do poder como conjunto de relações
reversíveis – deve referir-se a uma ética do sujeito definido pela relação de si para
consigo. Isto significa muito simplesmente que, no tipo de análise que desde
algum tempo busco lhes propor, vocês veem que: relações de poder –
governamentalidade – governo de si e dos outros – relação de si para consigo,
tudo isso, constitui uma cadeia, uma trama, e que é aí, em torno destas noções,
que se pode, eu penso, articular a questão da política e a questão da ética. Isso
posto acerca do sentido que pretendo dar a esta análise – que pode lhes parecer
um pouco repetitiva e meticulosa – do cuidado de si e da relação de si para consigo
(...).”156

De início, é preciso ressaltar, o modo como ele põe o problema de seu curso como

marca de seu tempo, da atualidade, e ele o insere no “movimento que hoje nos leva, ao

mesmo tempo, a nos referir incessantemente a esta ética de si sem, contudo, jamais

fornecer-lhe qualquer conteúdo”. E é a partir de um diagnóstico do campo político que

ele afirma que a tarefa de constituir uma ética de si faz-se urgente e necessária como

forma de resistência. A relação de si para consigo seria uma espécie de ponto de

salvaguarda, de ancoragem, para mobilidade, reversibilidade e transformação frente ao

poder político da atualidade.

O problema do poder político e da relação a si é tomado, assim, a partir de uma

noção fundamental no pensamento de Foucault, a saber, a noção de governamentalidade

(governamentalidade entendida como o campo de forças que se institui nas relações de

156
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 225 (grifos meus).

112
poder e resistência). Ele contrapõe à esta relação com a governamentalidade, a

perspectiva jurídica do sujeito de direito. A noção de governamentalidade permite uma

análise dessa relação a si que está no cerne dessa ética que Foucault defende como tarefa;

e, como sabemos, a noção de governamentalidade revela uma série de elementos nos

quais aparecem como termos centrais os contornos do governo e do governado.

O ponto é que transportando o problema de uma ética de si para a grade de

inteligibilidade da governamentalidade, Foucault pode introduzir este problema num

percurso de investigações que ele vinha realizando em sua trajetória de pesquisas no

Collège de France. O que lhe permite, portanto, inseri-la num conjunto de noções que,

ele mesmo diz, formam uma cadeia, a saber: “relações de poder –governamentalidade –

governo de si e dos outros – relação de si para consigo”. De modo que o cuidado de si

aparece na esteira desta cadeia. E, assim, o cuidado de si aparece como podendo fazer

aparecer a tensão que a ética encerra como poder político.

Como dissemos anteriormente, Foucault defende que há um momento de

descontinuidade na moral Ocidental localizado entre os séculos I e II de nossa era. Esta

descontinuidade é justificada pela verificação de uma inflexão resultante de uma nova

relação a si constituída neste período. Essa nova forma de relação a si é elaborada, por

sua vez, por uma nova relação do sujeito aos prazeres e ao desejo: passa-se de uma forma

de modalidade de “uso dos prazeres” para uma forma de “decifração do desejo”.

A partir desse quadro, e tomando a tensão que Foucault aponta ainda em nossa

atualidade, o papel da noção de cuidado de si se apresenta, pois, crítico e promove uma

dupla função: ele permite identificar essas cesuras e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica

da moral. Isto é: revela a genealogia da subjetividade ocidental, e a forma de governo a

ela associada, ao capturar os seus momentos de inflexão, e assim poder operar igualmente

113
uma dupla recusa: recusa desta moral, e recusa desta forma de subjetividade. E, desse

modo, abre um novo horizonte para que possamos pensar o problema da ética.

114
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