2020 DioclezioDomingosFaustino VCorr
2020 DioclezioDomingosFaustino VCorr
2020 DioclezioDomingosFaustino VCorr
[Versão corrigida]
São Paulo
2020
Dioclézio Domingos Faustino
[Versão corrigida]
São Paulo
2020
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3
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
4
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE F FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Nos termos da legislação vigente, declaro ESTAR CIENTE do conteúdo deste EXEMPLAR
_______________________________________
( Assinatura do (a) orientador (a) )
5
6
FAUSTINO, Dioclézio Domingos. Sobre o “cuidado de si: Foucault leitor dos Antigos.
2020. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Filosofia, 2020.
RESUMO
7
FAUSTINO, Dioclézio Domingos. Sobre o “cuidado de si: Foucault leitor dos Antigos.
2020. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Filosofia, 2020.
ABSTRACT
This study intends to show that, in Michel Foucault’s philosophy, the care of the self is a
notion that has rather a function of criticizing morality and, therefore, criticizing a certain
mode of production of modern subjectivity, than the claim of principle ethical. We start
from the observation that, according to Foucault, between the 1st and 2nd centuries of
our era, there is a discontinuity in the history of morals in the West. This discontinuity is
verified by the passage from a modality of relation to oneself that took the form of a “use
of pleasures” (among the Greeks of the classical era) to a form of “deciphering the desire”
(in the philosophy of the Roman imperial era). And that, in a second moment in the course
of this history, in the 4th and 5th centuries, there is a new and decisive inflection with the
advent of “Christian self-practices”, in which the care of the self is incorporated into
pastoral power and, thus, to take care of yourself, it is necessary to make a “renunciation
of yourself”. The roots of our (modern) subjectivity are more linked to this second
movement because it opens the way for what will be constituted in modernity as a
“hermeneutic of the subject” and the consequent privilege of “knowledge of the self”.
The care of the self runs through this period, that is, from classical Greek times to
primitive Christianity, and it functions as a kind of critical notion that allows the moral
genealogist to investigate and detect these transformations and their implications for the
constitution of moral.
8
AGRADECIMENTOS
Estudar filosofia na USP foi uma das melhores escolhas que fiz em minha vida. A
professora Marilena Chaui, sua alegria e amor ao saber são para mim exemplares, assim
como a paixão e o rigor com os quais, em suas aulas, analisava os textos filosóficos foram
para mim uma fonte de entusiasmo e formação. Depois, tê-la como orientadora, foi para
mim uma enorme alegria. Agradeço sua generosidade, carinho e orientação.
Mais uma vez, fiz outros percursos, além do acadêmico, que certamente também
contribuíram para esta minha trajetória. Josfâm Antunes de Macedo e Maria Rita Kehl,
estiveram comigo nestes caminhos. Ao Josfâm pelo entusiasmo, e à Maria Rita pela arte
da escuta.
Agradeço a Marie Márcia Pedroso, Geni Ferreira Lima, Susan Thiery Satake e
Luciana Bezerra Nobréga pela ajuda com burocracias, e muito mais!
Por fazer a minha estadia em Paris muito mais divertida e pelo apoio, agradeço
aos amigos e amigas: Erato Polychronakou, Farah Kammourieh, Gabriel Frizzarin,
Allana Meirelles, João Gonçalves, Eli Borges, Heraldo Galvão, Rosembergue Gonçalves,
Pedro Cruz, Thaíssa Bispo, Martha Costa, Paulo Borges e Maria José. Com saudades,
agradeço especialmente pelos incríveis vendredis soir à la MdB a: Allana, João, Danilo,
9
Heraldo, Rose, Pedro e Erato. Agradeço também à minha querida amiga Juliana Ortegosa
Aggio pelo diálogo e carinho sempre fraternos!
Por fim, agradeço à minha família, pelo apoio e carinho. Aos meus irmãos e irmãs:
Dhaylli, Dalvanira, Décio e Diógenes – também pela amizade! Aos meus pais Maria
Lindalva Faustino e Damião Domingos. À minha mãe pela aposta sempre renovada no
conhecimento, pela ternura e amor.
***
10
“A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada //
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.”
MELO NETO, J. C. de. A educação pela pedra.
“Um dia, perdido para sempre nos labirintos que construo, talvez confundido com o
caminho que procuro, me encontro, obscuro, no outro de mim.” Un jeune chercheur.
“ou plutôt cette essence n’était pas en moi, elle était moi. J’avais cessé de me sentir
médiocre, contingent, mortel.” PROUST, M. Du côté de chez Swann.
11
12
ÍNDICE
INTRODUÇÃO.............................................................................................................14
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................108
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................115
13
INTRODUÇÃO
14
“Podemos sonhar com o último escritor, com o qual despereceria, sem
que ninguém o percebesse, o pequeno mistério da escrita.”
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir.
caminhos que tomou a trajetória intelectual de Michel Foucault, em sua última fase, a
partir dos anos 1980. Além de ocupar o centro das investigações de um de seus mais
dá também título ao seu último livro publicado em vida, que se chama exatamente O
cuidado de si. Livro que é o terceiro volume de sua (inacabada) História da sexualidade,
cuja escrita Foucault inicia nos anos 1970, e prossegue até os últimos dias de sua vida,
quando corrige as provas finais dos dois volumes, publicados em junho de 1984, já
Uma história da sexualidade inacabada, mas que continha, desde então, teses e
projetada inicialmente para aparecer em seis volumes, foi expressamente exposto por
Foucault no segundo volume, O uso dos prazeres, como tendo por horizonte a
“genealogia do homem de desejo”. Genealogia esta que, como o próprio Foucault indica,
15
Neste trabalho, pretendo mostrar que, na filosofia de Michel Foucault, o cuidado
de si é uma noção que tem antes uma função de crítica da moral e, por conseguinte, de
forma de um “uso dos prazeres” (entre os gregos da época clássica) para uma forma de
momento do curso dessa história, nos séculos IV e V, ocorre uma nova e decisiva inflexão
com o advento das práticas de si cristãs, nas quais o cuidado de si é incorporado ao poder
pastoral e, assim, para cuidar de si mesmo, é preciso fazer uma “renúncia de si”. Assim,
porque ele abre o caminho para o que se constituirá na modernidade como uma
de si perpassa todo esse período, isto é, da época grega clássica ao cristianismo primitivo,
e ele funciona como uma espécie de noção crítica que permite que o genealogista da
moral.
Para isso, foi preciso então expor alguns elementos do problema e da história do
verdade (Capítulo III). E, por fim, foi preciso apresentar alguns elementos da história do
16
II. O “enigma” do último Foucault.
A obra produzida por Michel Foucault nos últimos anos de sua atividade
intelectual, especialmente nos anos de 1980 a 1984, ainda é motivo de intenso debate.
Primeiro, há razões de cunho estritamente prático. Parte considerável dos trabalhos deste
disso é um curso decisivo deste quinquênio, Subjectivité et verité (1981), que somente foi
publicado faz poucos anos (em 2014); assim como a publicação de uma importante obra
carne), publicada em 2018, que embora deixada inacabada, por causa de sua morte
especialistas nesta direção. Frédéric Gros, por exemplo, em seu livro de introdução à
por seu quadro de referência histórica: a Antiguidade Greco-romana”1. Isso porque, como
sabemos, as obras foucaultianas anteriores, desde História da Loucura até Vigiar e punir,
França, onde lemos, em sua apresentação, que: “As pesquisas realizadas por Foucault no
período dos anos 80 permanecem, sob muitos aspectos, indetermináveis. Sobre elas,
1
GROS, F. Michel Foucault, p. 91.
17
um abandono da perspectiva política? De um dandismo estetizante? Os contemporâneos
trajetória de Foucault. Mas, de antemão, é preciso dizer que não pretendo, nesta pesquisa
que ora apresento, cujo título é “Foucault leitor dos antigos”, analisar em que medida
Foucault possivelmente foi, ou deixou de ser, “fiel” aos filósofos ou doutrinas antigas, ou
seja, não farei uma investigação do “Foucault comentador dos Antigos”. Partirei de uma
análise do “Foucault leitor dos Antigos” e, nesta perspectiva, quero compreender o uso3
que o filósofo francês fez dos textos/autores de maneira interessada, isto é, para tratar de
questões/impasses que seu próprio percurso de alguma maneira o levou; e que é preciso,
portanto, compreender e dar significado para obter-se também uma compreensão de sua
nestas primeiras décadas do século XXI, Foucault é um dos filósofos mais lidos do
2
Cf.: LORENZINI, D. et. al. (org.). Michel Foucault : éthique et vérité 1980-1984. Paris, Librairie
Philosophique J. Vrin, 2013.
3
A respeito da noção de uso que é referida ao modo como Foucault ler Antigos, é útil o comentário que dá
sentido a esta noção, e que está na introdução do livro Foucault e a filosofia antiga, p. 8: “(...) trata-se de
uso da filosofia: que uso fazer hoje do platonismo, do estoicismo, do epicurismo? Pois Foucault não escreve
uma história da filosofia antiga, tanto quanto ele não escreve na História da loucura uma história da ciência
psiquiátrica, ou em Vigiar e punir uma história da instituição penitenciária. Portanto, não se tratou de medir
as teses de Foucault à luz da verdade supostamente constituída de uma doutrina. Simplesmente tentar
desvendar o destino do pensamento contemporâneo na leitura dos antigos.”
18
mundo. A história da recepção e do estabelecimento de sua obra já tem vários capítulos,
mas talvez seja necessário dizer que há algumas datas decisivas: somente a partir de 1994
é que começa a publicação dos 4 volumes dos chamados “Ditos e escritos” e, em 1999,
dos 13 volumes dos cursos proferidos pelo filósofo no Collège de France (o que só se
publicados que mais que dobrou o corpus foucaultiano que era acessível ao grande
a atualidade do pensamento e dos trabalhos de Foucault saltaram aos olhos de seus leitores
e intérpretes neste início de século. Basta percorremos o conjunto dos temas, problemas
e escritos de Foucault para nos darmos conta de que ele trata das questões que estão na
pequena.
Sem contar o uso que é feito de seu pensamento pelas mais diversas disciplinas,
no campo das lutas por novas formas de vida e de diversos movimentos sociais e políticos.
O conjunto de sua obra nos oferece, sem dificuldades, um panorama das principais
questões de nosso tempo. Assim, neste sentido, uma pergunta que nos causaria
dificuldade seria outra: o que “não” é atual nos trabalhos e no pensamento de Foucault?
Todavia, talvez seja também interessante tratar aqui não somente da noção de
atualidade como a conhecemos comumente, isto é, como aquilo que “está na ordem do
dia” ou aquilo que faz parte de “nossa conjuntura mais imediata”. Mas tomar atualidade
em um outro sentido. E num sentido que foi, em grande medida, forjado pelo próprio
19
Foucault, a saber, a atualidade como uma temporalidade inaugurada a partir de uma
época. Assim, será útil tratar, de maneira breve, duas questões: a primeira, é então fazer
seguinte questão: o que seria, como poderíamos pensar, uma “atualidade da questão da
moral” em Foucault?
especialmente expressa, no célebre ensaio “O que são as luzes?”4. Um texto que trata,
dentre outras coisas, da noção de modernidade a partir de questões propostas pelo filósofo
representar o presente como pertencendo a uma certa época do mundo, distinta das outras
por algumas características próprias; (ii) pode-se também interrogar o presente para nele
(iii) sentido para a noção de atualidade que é analisar o presente como “um ponto de
presente. Assim, segundo Foucault, Kant, diferente dos filósofos anteriores, teria sido o
4
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumiéres?, pp. 1380-1397. In: FOUCAULT, M. Oeuvres, tome II.
Édition publiée sous la direction de Frédéric Gros. Paris, Collection Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard,
2015.
5
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumiéres?, p. 1381.
20
primeiro a tornar a questão mesma da atualidade como um problema filosófico. E Kant o
fez a partir do estabelecimento desse vínculo entre o indivíduo e seu próprio tempo.
Assim, ainda neste texto O que são as luzes?, Foucault escreve: “pergunto-me se
não podemos então caracterizar a modernidade mais como uma atitude do que como um
período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne
precisamente à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns, uma maneira
de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo,
marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como
aquilo que os gregos chamavam de êthos”6. Assim, a noção de atualidade ganha esse novo
atualidade, mas ela é também, além de uma temporalidade marcada por uma
com o presente e que forja um êthos. Então, a noção de atualidade ganha corpo filosófico
exatamente quando ela se vincula com essa atitude moderna para a constituição de um
êthos.
moral. Que, como veremos, a moral terá, por sua vez, uma relação também com essa
noção de atitude de uma época. Para isso, há uma famosa passagem que está no texto de
número 357 da edição dos Ditos e escritos, cujo título é “Uma estética da existência”. É
uma passagem na qual Foucault, ao esclarecer seu interesse pela Antiguidade nos diz que:
“da Antiguidade ao Cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente busca
de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras.” E, ele
ideia de uma moral como obediência a um código de regras está, atualmente, em vias de
6
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que les Lumiéres?, pp. 1387.
21
desaparecer, já desapareceu. E a esta ausência de uma moral responde, deve responder,
uma busca que é a de uma estética da existência.”7 Um dos pontos que merece relevo
nestas palavras de Foucault é o tom indicativo, aliás raro, com o qual ele justifica seu
itinerário pela Antiguidade greco-romana, e no qual ele aponta o que seria uma saída para
o problema moral em nosso tempo, qual seja: a busca de uma estética da existência.
prazeres a ele relacionados, são objeto de uma preocupação moral?”8. Nesta pergunta,
neste modo mesmo de interrogar, já está presente uma crítica não somente da relação que
se estabelece entres esses elementos, entre sexo e moral, mas também do próprio discurso
que os interroga e que forja a partir deles, portanto, uma moralidade. Assim, é a
moralidade mesma que é posta em questão. E para tratar então do problema da moral,
Foucault o faz a partir de uma investigação cuja referência expressa são os filósofos
antigos. Como via de acesso aos filósofos antigos, Foucault mobiliza a noção estratégica
de cuidado de si. Essa noção faz para Foucault uma ponte entre o mundo antigo e o mundo
moderno. Uma noção rica, e complexa, que Foucault então usa como elemento de crítica
da moral.
Mas é preciso deixar claro que Foucault faz uma crítica a uma certa moral
moderna (em especial aquela que sofre uma inflexão a partir de Kant). Ora, segundo
moderno, não pode operar senão a partir de dentro de sua própria espessura. Ele nos diz
verdade, propor uma moral: mas a razão disso não está em ser ele pura especulação; muito
7
FOUCAULT, M. Dits et écrits, II, no 357, « Une esthétique de l’existence », p. 1550-51.
8
FOUCAULT, M. História da sexulidade II : O uso dos prazeres, p. 16.
22
ao contrário, desde o início e na sua própria espessura, ele é um certo modo de ação.”9 E
para fazer sua crítica da moral, Foucault precisa então fazer uma crítica desse sujeito
de governo e das técnicas de si. O que nasce da crítica do sujeito moderno? O horizonte
para uma nova reposta para o problema da moral na forma de uma estética, não mais do
estética.
embora tenha deixado valiosas pistas em seus últimos textos, é verdade que ele não
desenvolve esta noção em sua amplitude. Agora, o que nos parece claro, a partir dos textos
que ele nos legou, e aos quais hoje temos acesso: a “estética da existência” se relaciona
ao projeto de uma resposta para o problema da moral que Foucault insiste, em diversas
vezes, em chamar de uma “ontologia crítica de nós mesmos”. Para o problema da moral,
uma estética que é uma “ontologia de nós mesmos”. Foucault percebeu a tensão que havia
grega clássica. A ética grega tendia ora para uma política (ética é a ação justa, moral,
conforme as leis da cidade) ora para uma estética (ética é então a ação bela, a vida bela).
Foucault parece ter escolhido a segunda via como possibilidade de resposta às investidas
abre caminho para uma (nova) reposta para o problema da moralidade como ética. E
crítica aqui deve ser entendida no sentido criado pelo próprio Foucault, a saber, como:
“l’art de n’être pas tellement gouverné”10. Ou seja, como uma recusa determinada de
9
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452-453.
10
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 37.
23
governo. Ética em Foucault, é importante ressaltar, não remete a valores transcendentes,
de bem ou mal, que parte da tradição faz uso para fundamentação de um sistema ético ou
moral. Ética é, antes de mais nada, o resultado de um trabalho de relação a si mesmo, que
forja uma relação a si determinada e que é, ao mesmo tempo histórica, isto é, ancorada
24
CAPÍTULO I
25
“Il s’agit, pour lui, de dégager de la mode ce qu’elle peut
contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du
transitoire.” BAUDELAIRE, C. Le Peintre de la vie moderne.
“O que é o sujeito?” – Esta pergunta é feita há séculos pela filosofia e toda a sua
filosofia, ela nos anima vivamente ainda hoje. Não sem razão, pois, Michel Foucault a
dito epiméleia heautoû e, pelos romanos, transformado em cura sui. Um traço primeiro,
romanos antigos esta noção para tratar dessa pergunta sobre o sujeito11.
*
Nota de tradução e de referência bibliográfica. Todas as traduções citadas neste trabalho foram feitas ou
revisadas (a partir das traduções disponíveis em língua portuguesa) por mim. Nos casos nos quais traduzo
diretamente da língua original, cito a referência do texto também na língua correspondente. Assim, por fim,
indico também as edições dos textos nas línguas originais, na seção Bibliografia, ao final deste trabalho. É
importante lembrar que já existem, no Brasil, várias edições (ou mesmo reimpressões) para um mesmo
texto de Foucault, havendo, muitas vezes, mudanças na paginação dos livros. Assim, indico na bibliografia
a exata edição à qual me refiro para melhor localização das passagens. No caso de textos antigos: neste
capítulo, para referência dos textos de Platão, uso, como é de praxe, o sistema de referência Stephanus, a
saber: título da obra, acompanhado de número que indica a página, seguido de letra que indica a coluna do
texto canônico; exemplo: Primeiro Alcibíades, 103a. Como se sabe, para os textos de Platão, Foucault faz
uso das edições bilíngues (grego/francês) da Collection des Universités de France das edições Les Belles
Lettres; assim, fiz, a partir do texto grego, um trabalho de cotejamento das traduções em francês e português
(a partir da tradução de C. A. Nunes) e, para as passagens que selecionei neste trabalho, não encontrei
divergências significativas.
11
Foucault é muito preciso ao falar da noção de “sujeito”. Quando ele trata desta noção, pela primeira vez,
no curso de 1982 (A hermenêutica do sujeito), referindo-se ao texto grego de Platão, ele faz a ressalva de
que é uma “questão que, consequentemente, não incide sobre a natureza do homem, mas que incide sobre
o que nós hoje – pois a palavra não está no texto grego – chamaríamos de a questão do sujeito”, cf.: A
hermenêutica do sujeito, p. 36-37. Também vale ressaltar alguns dos propósitos de Foucault com essa
problematização, ele diz, em um texto de uma conferência pronunciada no Dartmouth College em 1980,
que: “Esta genealogia [do “si moderno”] que é, há alguns anos, minha obsessão, porque é uma das vias
possíveis para se livrar da filosofia tradicional do sujeito, eu gostaria de apresentá-la em linhas gerais do
ponto de vista das técnicas, disso que eu chamo de técnicas de si”, cf.: L'origine de l'herméneutique de soi,
p. 66.
26
Nas palavras iniciais da primeira lição do curso de 1982, intitulado A
hermenêutica do sujeito12, Foucault nos diz: “A questão que eu gostaria de abordar este
ano é a seguinte: em que forma de história foram tramadas, no Ocidente, as relações, que
não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica habitual, entre estes dois
especial, trata este problema de uma maneira mais extensa. O diálogo narra um encontro
supremo do governo de Atenas. Ele pretende, na assembleia, dar conselhos aos atenienses
nos assuntos de guerra e paz da cidade, assuntos que, por sua vez, envolvem as noções de
justo e injusto.
vantajoso e o desvantajoso, o bom e o ruim e o modo como essas noções estão em relação
com o justo e o injusto. Sócrates mostra ao jovem Alcibíades que ele ignora estes
assuntos. Ocorre que exatamente esses assuntos são matéria para o exercício da política.
A partir deste ponto, são caracterizadas as três modalidades de indivíduos: os que sabem,
os que ignoram (e sabem que ignoram) e os que presumem saber (mas de fato não sabem).
12
FOUCAULT, M. L’Herméneutique du sujet: cours au Collège de France (1981-1982). Ed. estabelecida
por F. Gros sob dir. de F. Ewald e A. Fontana. Paris, Gallimard/Le Seuil, 2001. [A hermenêutica do sujeito:
curso dado no Collège de France 1981-1982. Trad. M. A. da Fonseca e S. T. Muchail. São Paulo, WMF
Martins Fontes, 2010, 3a ed.].
13
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 4.
14
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 30.
15
Cf.: PLATÃO. Alcibiade. Texto estabelecido e trad. por M. Croiset. Tomo I. Paris, Société d’Édition
Les Belles Lettres, 1984. [Primeiro Alcibíades. Trad. de C. A. Nunes e rev. de B. Nunes. Belém, 2007, 2º
ed. rev.].
27
exatamente a partir dessa constatação que, adiante, Sócrates introduzirá o tema do
cuidado de si. Este tema é trazido por Sócrates porque, para governar a cidade, são
mesmo tempo, político, isto é, de requisitos para o governo da cidade, e também ético, no
o problema nos seguintes termos: “Quem ignora, portanto, as coisas que lhe dizem
respeito, não há de conhecer, também, as dos outros. (...) E se não conhece as dos outros,
não conhecerá também as da cidade. (...) Um homem, nessas condições, nunca poderá
exercer a política.”17
exatamente este problema apontado por Sócrates nos seguintes termos: “‘ocupar-se de si
sobre os outros. Não se pode governar os outros, não se pode bem governar os outros,
não se pode transformar seus privilégios em ação política sobre os outros, em ação
racional, se não se está ocupado de si mesmo. Entre privilégio e ação política, eis,
forma do governo dos outros. Leitura que o levará a traçar elementos para suas pesquisas
16
PLATÃO, Primeiro Alcibíades, 132b et seq.
17
PLATÃO. Primeiro Alcibíades, 133d-134a.
18
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 35.
28
E, neste mesmo movimento, Foucault coloca o tema do cuidado de si no diapasão
sujeito e verdade. Ele o insere, mais precisamente, em uma “reflexão histórica sobre o
tema das relações entre subjetividade e verdade”19, e assim vai construindo a trama
conceitual com a qual ele investiga essa pergunta pelo sujeito e que o guiará nesse
heautoû (esse cuidado de si, e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um
si. O conhecimento de si, que está associado à conhecida fórmula do preceito délfico
cuidado de si. A tarefa inicial de Foucault será, pois, trazer à tona os elementos que
cercam este tema e, para isso, será preciso fazer uma história desta noção.
19
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 3.
20
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 9-10.
29
II. História do cuidado de si: da filosofia grega antiga ao ascetismo cristão.
da cultura grega antiga, o filósofo francês amplia e percorre toda a história do problema.
no âmbito estritamente filósofo, mas também na cultura do Ocidente. Tanto é assim que,
de si”. Foucault defende que a filosofia deste período, que tem pretensões de oferecer-se
como uma “arte da existência”, tem o tema do cuidado de si como um ponto privilegiado
si”, que é situado entre os dois primeiros séculos de nossa era; e, por fim, um terceiro
filosófica pagã para o ascetismo cristão”. São, portanto, sobre esses três grandes marcos
21
Cf.: FOUCAULT, M. L’Histoire de la sexualité, T. 3, Le Souci de soi. Paris, Gallimard, Bibliothèque des
Histoires, 1984. [História da sexualidade III: O cuidado de si. Trad. de M. T. da C. Albuquerque; rev. téc.
de J. A. G. Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985, 7a ed.].
22
FOUCAULT, M. História da sexualidade III, p. 50.
23
Edgardo Castro, em seu instrutivo Vocabulário de Foucault, faz justamente um verbete para o “cuidado
de si”. Com correção, ele traça em linhas gerais, e nos limites de uma obra deste gênero, a história desta
noção bem como oferece valiosas indicações da ocorrência deste problema na obra de Foucault. Servi-me
de muitas das indicações dele na elaboração deste tópico de meu trabalho. Cf.: CASTRO, E. Vocabulário
de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores, p. 92-96.
30
De início, Foucault lembra, porém, que esse conjunto técnicas e práticas, essa
é, ela mesma, anterior à formulação filosófica que Platão lhe deu. Ela tem origem, pois,
em práticas muito mais arcaicas da cultura grega. Havia toda uma “tecnologia de si” que
era requerida para o acesso à verdade na Grécia arcaica: ritos de purificação, técnicas de
esse conjunto de técnicas e práticas perdurou por muito tempo na cultura grega e podem-
por Platão. Platão apresenta Sócrates, na Apologia25, como mestre do cuidado de si, como
aquele que tem por ofício fundamental incitar os outros a não se descurarem deles
questão colocada por Sócrates (...) é: deves ocupar-te de ti; mas o que é este si mesmo
(autó tò autó), pois que é de ti mesmo que deves ocupar-te?”27. Sócrates, neste ponto,
observa Foucault, afasta-se de uma investigação sobre uma natureza do homem em geral
“questão que, consequentemente, não incide sobre a natureza do homem, mas que incide
24
“[...] exemplo [de técnicas de si], a preparação purificadora para o sonho. Uma vez que, para os
pitagóricos, sonhar enquanto se dorme é estar em contato com um mundo divino, o da imortalidade, o do
além da morte, que é também o da verdade, é preciso se preparar para o sonho. É necessário, portanto, antes
do sono, nos entregar a algumas práticas rituais que vão purificar a alma e torná-la capaz,
consequentemente, de entrar em contato com o mundo divino, compreender suas significações, mensagens
e verdades, reveladas sob uma forma mais ou menos ambígua. Então, há um certo número dessas técnicas
de purificação: escutar música, respirar perfumes e, certamente, também praticar o exame de consciência.
Reconstituir o nosso dia todo, lembrarmo-nos das faltas cometidas e, por conseguinte, expurgá-las e delas
nos purificarmos por este mesmo ato de memória, é uma prática cuja paternidade foi sempre atribuída a
Pitágoras.” in FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 45.
25
PLATÃO. Apologie de Socrate. Texto estabelecido e trad. por M. Croiset. Tomo I. Paris, Société
d’Édition Les Belles Lettres, 1984. [Apologia de Sócrates. Introd., trad. e notas de A. Malta. Porto Alegre,
L&PM, 2011].
26
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 6-8.
27
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 36.
31
sobre o que nós hoje – pois a palavra não está no texto grego – chamaríamos de a questão
do sujeito. O que é este sujeito, qual é este ponto sobre o qual deve orientar-se esta
atividade reflexiva, esta atividade refletida, esta atividade que retoma do indivíduo para
ele mesmo? O que é este si [soi]?”28. Esta exigência de cuidado é assim posta por Sócrates
a Alcibíades na direção de uma prática que é ao mesmo tempo ética e política. Ademais,
vida adulta que, como analisa Foucault, traz como consequências: (i) uma função crítica
que desdobra e recobre a função de formação; (ii) uma aproximação com a medicina, que
traz consigo um cuidado que não põe hierarquias entre o cuidado do corpo e da alma –
como Platão o fizera; (iii) uma valoração da velhice. Há também uma ampliação do
alcance dessa prática na cultura. Para caracterizar este período, Foucault mobiliza, além
medicina e de outros saberes da época. Isso porque ocorre uma ampliação do alcance
28
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 36-37.
29
No vol. III da História da sexualidade, p. 50, Foucault faz um detalhado desenho do desenvolvimento
desta noção nos séculos I e II, ele diz que: “[...] esse tema [do cuidado de si] que, extravasando de seu
quadro de origem e se desligando de suas significações filosóficas primeiras, adquiriu progressivamente as
dimensões e as formas de uma verdadeira ‘cultura de si’. Por essa palavra é preciso entender que o princípio
do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito segundo o qual é preciso ocupar-se consigo
mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou
a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou maneiras de viver; desenvolveu-se
em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas;
ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e
até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e elaboração de um
saber.”
32
Por fim, nos séculos IV e V, a noção de cuidado de si sofre mais uma nova e
Foucault poderá ler os traços do destino que a Idade Moderna concedeu para esse
conhecimento de si. Todavia, ao fazer a história do problema, vê-se que este elemento –
o conhecimento de si – foi apenas “mais uma” das técnicas exigidas para o cuidado de si
doravante, será desvendar estes elementos e fazer emergir a história do problema que o
30
Cf.:“Se a noção de cuidado de si, que vemos, portanto, surgir de maneira muito explícita e clara desde o
personagem de Sócrates, percorreu, seguiu, o decurso de toda a filosofia antiga até o limiar do cristianismo,
também reencontraremos esta noção de epiméleia (cuidado) no cristianismo [...]. Desde o personagem de
Sócrates interpelando os jovens para lhes dizer que se ocupem deles mesmos até o ascetismo cristão que dá
início à vida ascética com o cuidado de si, vemos uma longa história da noção de epiméleia heautoû.” in:
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 11. Foucault faz uma análise pormenorizada do conjunto
de técnicas de si do ascetismo cristão, especialmente, na conferência “Cristianismo e confissão”, que
encontramos em: FOUCAULT, M. L'origine de l'herméneutique de soi: conférences prononcées à
Dartmouth College, 1980. Edição estabelecida por H. Fruchaud e D. Lorenzini; intr. e aparato crítico de L.
Cremonesi, A. I. Davidson, O. Irrera. Paris, J. Vrin, 2013).
31
Sobre esse ponto, vale ressaltar o comentário oportuno que Salma Tannus faz no qual ela ressalta que o
“cuidado de si corresponde a linhagem espiritual do pensamento segundo qual o aceso à verdade é
alcançado por atos ou práticas envolvendo e transformando todo o ser do sujeito. Ao conhecimento de si
corresponde o pensamento de tipo representativo segundo o qual o acesso à verdade é privilégio do sujeito
em razão de sua própria e inalterável estrutura, precisamente a de ser sujeito cognoscente.” MUCHAIL, S.
T. Foucault mestre do cuidado, p.15.
33
III. Cuidado de si e Idade Moderna: ética e história do sujeito.
verdade” no período moderno. Com isso, Foucault quer dizer que “entramos na Idade
Moderna [...] no dia em que admitimos que o que dá o acesso à verdade, as condições
segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade, é o conhecimento e tão somente o
conhecimento”34, sem que seja requerido mudanças ou alterações no ser do sujeito para
punha a “evidência”, tal como aparece efetivamente à consciência, sem nenhuma dúvida
permite a Foucault, ao menos, escrever uma (nova) história do sujeito ou, em termos
que fazer esta (nova) história faz emergir também o problema da ética e da moral, que
32
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 15.
33
Foucault ressalta que a denominação “momento cartesiano” encontra seu sentido em um novo
procedimento de acesso à verdade que se instaura no século XVII, sem que isso signifique que foi
propriamente o filósofo René Descartes seu inventor ou mesmo o primeiro a realizá-lo. Contudo, mesmo
que não tenha sido pronunciado, no manuscrito do início da segunda hora da aula de 6 de janeiro de 1982,
encontra-se escrito uma menção expressa a Descartes e a Kant a propósito da “quebra do vínculo” entre o
acesso à verdade e a exigência de transformação do sujeito : “quando Descartes disse que a filosofia
sozinha se basta para o conhecimento, e quando Kant completou dizendo que, se o conhecimento tem
limites, eles estão todos na própria estrutura do sujeito cognoscente, isto é, naquilo mesmo que permite o
conhecimento”.
34
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 15.
34
esteve estritamente vinculado ao cuidado de si ao longo de toda a história do
desenvolvimento desta noção. Donde, talvez, uma das razões pelas quais Foucault ter
nos diz que “da Antiguidade ao Cristianismo, passa-se de uma moral que era
essencialmente busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema
por uma série de razões, a ideia de uma moral como obediência a um código de regras
responde, deve responder, uma busca que é a de uma estética da existência.”35 Um dos
pontos que, por hora, merece relevo nestas palavras de Foucault é o tom propositivo com
que ele, ao justificar o seu itinerário pela Antiguidade, indica o que seria uma saída para
o problema moral em nosso tempo não seria uma nova moral mas o que ele chama de
uma estética da existência. Todavia, há uma outra declaração de Foucault, neste mesmo
período, em que ele parece ir em outra direção, o filósofo diz: “eu não sou um profeta,
não sou um programador, não tenho nada a dizer [para as pessoas] sobre o que elas têm
de fazer, eu não tenho de lhes dizer: ‘isso é bom para vocês; isso não é bom para vocês’.
Eu tento analisar uma situação no que ela pode ter de complexa, com a função – nesta
isso. Não tenho de lhes dizer: ‘isso é bom para vocês’”36. Aqui, ele se mostra refratário
filosofia.
35
FOUCAULT, M. Dits et écrits, II, no 357, « Une esthétique de l’existence », p. 1550-51 (grifos meus).
36
FOUCAULT, M. L'origine de l'herméneutique de soi, p. 154.
35
IV. Uma história da ética é uma ética?
Diante desses impasses, nos parece que o alcance e o sentido do uso que Foucault
faz dos autores antigos constitui um campo de estudos extremante rico e complexo. Por
conseguinte, o que poderíamos chamar de uma “atualização”37 que Foucault faz dos
autores deste período, e em especial neste ponto das questões de ética e moral, não foi
tom memorial e bastante incisivo, faz uma espécie de retrospecto de seu percurso e de
sua própria obra. Nestas páginas, ele nos oferece valiosas pistas de como se poderão ler
seus escritos, e de seus propósitos ao empreender os estudos que até então fizera. E é
neste tom que, na parte III (Moral e prática de si) desta Introdução, após explicitar e
tratar das ambiguidades da palavra “moral”38, ele diz que tais distinções “não devem ter
apenas efeitos teóricos. Elas têm também suas consequências para a análise histórica”39.
Nesse sentido, Foucault dirá que há, ao menos, três maneiras de se fazer uma
história da moral, e quem se dispuser a fazê-la deve, pois, levar em conta as três realidades
que a palavra moral recobre, o que resultaria, por conseguinte, em: (i) uma história das
moralidades, aquela que estuda em que medida as ações dos indivíduos ou grupos são
conformes ou não às regras ou valores propostos por diferentes instâncias; (ii) uma
história dos códigos, aquela que analisa propriamente os diferentes sistemas de regras e
37
Tomo aqui a noção de “atualização” no sentido em que Paul Veyne a elabora ao se referir a Foucault,
isto é, como uma espécie de herança crítica, ele diz que: “um filósofo é aquele que, a cada nova atualidade,
diagnostica o novo perigo e mostra uma nova questão. Com esta concepção bastante nova da filosofia, a
verdade clássica está morta, embora, da confusão historicista moderna, se extraia a ideia da atualidade” (em
seu precioso artigo Le dernier Foucault et sa morale, p. 274).
38
Cf.: FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 33-34. Devo ao instrutivo artigo de Francis Wolff,
Eros e logos: a propósito de Foucault e Platão, a “sugestão para atentar para estas noções” nesta Introdução
da História da sexualidade II, embora a análise do professor F. Wolff enfatize outros pontos deste texto.
39
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 37.
36
valores que estão em jogo em uma sociedade ou em determinado grupo; e, por fim, (iii)
uma história da maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como
sujeitos de conduta moral, neste caso, a análise histórica incidirá sobre a instauração e o
desenvolvimento das “relações a si”. Foucault enfatiza que esta última modalidade é o
como história das formas da subjetivação moral e das práticas de si, e é, portanto, o que
Nesta direção, há, ainda, uma passagem bastante significativa, e que julgo bastante
decisiva, no texto desta Introdução que, dita em meio a essa série de “declarações
estudos que se seguem [na História da sexualidade], assim como outros que
anteriormente empreendi, são estudos de ‘história’ pelos campos que tratam e pelas
referências que assumem; mas não são trabalhos de ‘historiador’. [...]. Foi um exercício
filosófico: sua aposta foi saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história
pode liberar o pensamento do que ele pensa silenciosamente e lhe permitir pensar de uma
maneira diferente.”41 Sem querer interpretar demasiadamente esta passagem, tem-se aqui
construído na sua trajetória (o que nos oferece, por sua vez, elementos e horizontes para
fazer uma história das formas de subjetivação moral e das práticas de si (cujo problema
40
Cf. História da sexualidade II, p. 37-38. Podemos dizer que Foucault fez essa modalidade de investigação
histórico-filosófica tanto nos volumes II e III da História da sexualidade, como também no seu curso de
1982, A hermenêutica do sujeito.
41
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 16 (grifos meus).
37
exercício que se volta para/e modifica o próprio pensamento. Essas são, digamos, as
linhas gerais. Mas qual é o desenho desta história da ética e em que medida nela pode-se
ler, ou se pode reivindicar, elementos que emergem no rastro deste trabalho histórico-
reconhece o caráter problemático de uma moral de estirpe foucaultiana. Ele escreve que
“Foucault tinha uma concepção da moral tão particular que o problema é: no interior de
sua filosofia, uma moral seria possível?”42. Veyne defenderá que, na esteira da moral
recuperará dela um aspecto, qual seja, “a ideia de um trabalho de si sobre si” e que assim
seria possível “retomar um sentido atual, à maneira dessas colunas de templos pagãos que
vemos muitas vezes reempregadas em edifícios mais recentes”43. Ora, de fato, Foucault,
Frédéric Gros, por sua vez, ao comentar a função da noção do cuidado de si n’A
Hermenêutica do sujeito, ressalta, com cautela, que ela se apresenta como uma peça de
Gros] – que com o cuidado de si, tem-se menos uma escolha ética reivindicada por
42
VEYNE, P. Le dernier Foucault et sa morale, p. 269.
43
Idem, ibidem, p. 274.
44
GROS, F. À propos de l’herméneutique du sujet, p. 150-151.
45
Idem, ibidem, p. 150-151.
38
e o si mesmo a distância de uma obra”46, isto é, haveria nisso a abertura de um certo
espaço subjetivo, e que Foucault o teria trazido à tona ao estudar algumas noções oriundas
o trabalho de si para consigo. Este aspecto, com efeito, é presente na moral greco-
romana, e é também recuperado por Foucault quando ele insiste neste elemento que
constitui o cuidado de si. Mas poderíamos reivindicar algo mais? E, ainda, pode-se
insistir: é possível construir, a partir deste e de outros possíveis elementos, uma resposta
para o problema da ética de cunho propriamente foucaultiano, qual seria seu desenho ou
arquitetura teórica? Parece-me que enfrentar esta questão trará ganhos para compreensão
46
Idem, ibidem, p. 154.
39
CAPÍTULO II
40
“Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”
ANDRADE, C. D. Os ombros suportam o mundo.
proposições que a interpretação de Gilles Deleuze47 fez para esse ponto no pensamento
de Foucault.
Tentarei mostrar que a noção de “moral” deve ser buscada, ao menos do ponto de vista
“história” desenvolvidas nestes textos por Foucault. Comecemos então pelo texto de
1966.
47
Servi-me principalmente do célebre livro de Deleuze sobre Foucault: DELEUZE, G. Foucault. Paris,
Editions de Minuit, 2004 (neste trabalho, cito a tradução, com pequenas correções, e a paginação da edição
brasileira: DELEUZE, G. Foucault. Trad. C. S. Martins. São Paulo, Brasiliense, 2005). Também faço
referência às aulas transcritas (e ainda não editadas em livro na França) do curso “Les formations
historiques”, pronunciado no ano universitário de 1985-1986 na Université de Vincennes, e que estão
disponíveis no site: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/rubrique.php3?id_rubrique=21 (acessado em
novembro de 2016).
41
II. As palavras e as coisas: é possível uma moral na épistémè Moderna?
palavras e as coisas que é, como sabemos, a questão do ser do homem. Antes de anunciar,
no último capítulo desse livro, a célebre e iminente “morte do homem”, Foucault faz uma
extensa análise da própria noção de homem que ele diz ter data recente e está prestes a
desaparecer como “um rosto de areia na orla do mar”, o que não deixará qualquer vestígio.
Antes, contudo, Foucault busca desenhar os contornos dessa figura central que
surge e que, em grande medida, caracteriza a nossa épistémè, isto é, a épistémè Moderna.
Neste ponto, Foucault dirá que a figura do homem não pode apoiar-se em um elemento
também poderá mais residir no que Foucault chama de “inércia objetiva” – ou seja, nisso
“que, por direito, não acede e nem acederá jamais à consciência de si”49.
não conhecido” que é percorrido pela possibilidade de conhecer; ao passo que em Kant,
48
Cf.: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução
de S. T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2007, 9ª ed, p. 417.
49
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 445.
42
a reflexão transcendental, tendo como horizonte a ciência da natureza, poderá ser objeto
Nos dois últimos parágrafos deste tópico, bastante central no livro, Foucault faz
pensamento ele revela esse caráter duplo do próprio pensamento, que é ser “por si mesmo
e na espessura de seu trabalho, ao mesmo tempo saber e modificação do que ele sabe,
reflexão e transformação do modo de ser daquilo sobre o que ele reflete.”51 Assim, a partir
dessa maneira como o pensamento moderno opera, Foucault anuncia também uma
Foucault diz, em uma longa passagem, que “há nisso <ou seja, no modo como o
articulava-se com a ordem do mundo e, descobrindo sua lei, podia deduzir o princípio de
uma sabedoria ou uma concepção da cidade (...); <e> a <ética> moderna <que>, em
contrapartida, não formula nenhuma moral, na medida em que todo imperativo está
50
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 444 et seq.
51
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452.
52
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452.
43
enquanto racional, se dá a si mesmo sua própria lei que é a lei universal.”]; é a reflexão,
mudo, o advento à luz dessa parte de sombra que furta o homem a si mesmo, é a
reanimação do inerte, é tudo isso que constitui, por si só, o conteúdo e a forma da ética
<moderna>. O pensamento moderno jamais pôde, na verdade, propor uma moral: mas a
razão disso não está em ser ele pura especulação; muito ao contrário, desde o início e na
possível; pois, desde o século XIX, o pensamento já ‘saiu’ de si mesmo em seu ser
próprio, não é mais teoria; desde que ele pensa, fere ou reconcilia, aproxima ou afasta,
rompe, dissocia, ata ou reata, não pode impedir-se de liberar e de submeter. (...) O
pensamento, ao nível de sua existência, desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo,
uma ação – um ato perigoso”54. Ora, Foucault expressa com bastante clareza que é, em
Modernidade, ele próprio, já é uma moral uma vez que carrega em si o imperativo de seu
próprio desdobrar-se e também o horizonte de sua ação. Assim, não haveria algo como
Todavia, como sabemos, nos anos 1980, temos um outro cenário. Sobre esse novo
cenário, Deleuze dirá que Foucault “descobre a relação consigo, como uma nova
dimensão irredutível às relações de poder e de saber que constituíram o objeto dos livros
53
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 452-453 (com grifos e explicações no corpo do texto
minhas).
54
Cf.: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 453.
55
DELEUZE, G. Foucault, p. 109.
44
III. História da sexualidade II: a grade de inteligibilidade da moral.
sexualidade (O uso dos prazeres), Foucault desenha um espaço para a moral e oferece
memorial e bastante incisivo, Foucault faz uma espécie de retrospecto de seu percurso
intelectual e de seus trabalhos. Aqui ele nos oferece valiosas pistas de como se poderão
ler seus escritos, e de seus propósitos ao empreender os estudos que até então fizera. E é
neste tom que, na parte III desta Introdução (cujo subtítulo é exatamente Moral e prática
de si), ele trata de maneira relativamente extensa, das ambiguidades da palavra “moral”56,
dizendo que é preciso fazer algumas distinções e que elas “não devem ter apenas efeitos
valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de
igrejas etc.”; o que pode ser expresso por um código moral, ou seja, um conjunto
comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos:
designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente
56
Cf.: páginas 32-33 [p. 33-34] da História da sexualidade II.
57
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 37.
58
N.B.: parte dos desenvolvimentos a seguir, escrevi e trabalhei no Capítulo anterior e agora os retomo à
luz e com o foco especificamente na noção de moral.
45
uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores.” E,
por fim, há ainda um jogo entre o que é uma regra de conduta e a conduta medida pela
regra, resultando em um terceiro sentido para a palavra moral que é o sentido de maneira
de conduzir-se, isto é, a “maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito
moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código”, o que
resulta no ponto em que o sujeito moral, passa a mensurar a sua própria conduta
A partir desse quadro, Foucault dirá que há, ao menos, três maneiras de se fazer
uma história da moral, e quem se dispuser a fazê-la deve, pois, levar em conta as três
realidades (anteriormente descritas) que a palavra moral recobre, o que resultaria, por
conseguinte, em: (i) uma história das moralidades, aquela que estuda em que medida as
ações dos indivíduos ou grupos são conformes ou não às regras ou valores propostos por
diferentes instâncias; (ii) uma história dos códigos, aquela que analisa propriamente os
determinado grupo; e, por fim, (iii) uma história da maneira pela qual os indivíduos são
chamados a se constituir como sujeitos de conduta moral, neste caso, a análise histórica
que esta última modalidade é o que propriamente se poderá chamar de uma história da
ética e da ascética, entendidas como história das formas da subjetivação moral e das
práticas de si, e é, portanto, o que ele pretende fazer59. E, como sabemos, Foucault faz
59
Cf. História da sexualidade II, p. 37-38.
46
II e III da História da Sexualidade tem como objeto fazer uma exposição dos modos de
subjetivação da Antiguidade.
Um dos elementos que merece relevo neste quadro conceitual é o fato de que o
filósofo diz que fará uma história da ética ou uma história dos modos de subjetivação
moral. Ora, em que sentido poderíamos entender uma história da ética, ou ainda, em que
terá de fazer mudanças na noção de história para comportar uma investigação sobre a
moral a partir das problematizações que ele faz a partir do volumo II da História da
sexualidade.
para a elucidação desta noção. Foucault diz, ainda na Introdução que: “Os estudos que se
seguem [na História da sexualidade], assim como outros que anteriormente empreendi,
são estudos de ‘história’ pelos campos que tratam e pelas referências que assumem; mas
não são trabalhos de ‘historiador’. [...]. Foi um exercício filosófico: sua aposta foi saber
em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar o pensamento do
que ele pensa silenciosamente e lhe permitir pensar de uma maneira diferente.”60 Tem-se
Foucault declara ter construído suas investigações, o que nos oferece, por sua vez,
filosofia. Ele diz que não fez trabalhado de historiador, mas de filósofo. E fez história no
pensamento ao voltar-se para si instaura uma espécie de inflexão sobre ele mesmo.
O ponto é que, como poderíamos dar lugar à história da ética e em que medida
nela pode-se ler, ou se pode reivindicar, agora, um campo moral no trabalho filosófico
60
FOUCAULT, M. História da sexualidade II, p. 16.
47
desenhado por Foucault? Ao interpretar a obra de Foucault, Deleuze nos oferece pistas
bastante valiosas.
e a formulação de uma moral na obra de Foucault. Ele acentua com bastante clareza esse
ponto: “como o pensar poderia inventar uma moral, se o pensamento não pode encontrar
nada em si mesmo, exceto esse lado de fora do qual provém e que reside nele como ‘o
desdobramento.
Todavia, Deleuze aponta como saída para esse impasse, a incursão de Foucault no
de forças e do saber como forma estratificada, como código de virtude. Por um lado, há
uma ‘relação consigo’ que começa a derivar-se da relação com os outros; por outro lado,
igualmente, uma ‘constituição de si’ começa a derivar do código moral como regra de
saber. Essa derivação, esse deslocamento, devem ser entendidos no sentido de que
e deixar surgir uma relação consigo, constituir um lado de dentro que se escava e
desenvolve segundo uma dimensão própria: a enkrateia, a relação consigo como domínio,
61
Cf.: DELEUZE, G. Foucault, p. 126.
48
‘é um poder que se exerce sobre si mesmo dentro do poder que se exerce sobre os outros’
reflexão.”62
uma estreita relação com a história. Todavia, menos com a história como disciplina, como
histórico que ele busca determinar e expor seus efeitos de saber e poder.
Deleuze dirá63 que em Foucault “há uma pesquisa das condições da formação
histórica, e o que são essas condições de uma formação histórica? O que se diz em uma
época? O que se vê em uma época? [...]. É como se cada época se definisse antes de tudo
por aquilo que ela vê, e faz ver, e por aquilo que ela diz. É dizer que ver, e fazer ver, e
dizer não estão no mesmo nível que se comportar e ter esta ou aquela ideia: um regime
de dizer é a condição de todas as ideias de uma época; um regime de ver é uma condição
de tudo o que faz uma época”. Deleuze acrescenta ainda que Foucault: “trabalha como
que ver ultrapassa o campo da visibilidade, e falar ultrapassa os regimes dos enunciados”.
Com efeito, podemos depreender, Foucault investiga como o asilo, a prisão, a escola, por
62
Cf.: DELEUZE, G. Foucault, p. 107.
63
Cf.: DELEUZE, G. Curso Les formations historiques, aula de 22/10/1985.
49
sobre si mesmo no ponto em que ele faz a história da relação consigo ou dos modos de
Assim, quando Foucault escreve que fará “uma história da ética”, isto é, uma
história dos modos de subjetivação, significa que ele terá que, para pensar o que seria
uma “nova” ética (em termos estritamente foucautianos, uma nova ética nada mais é do
que a invenção de novas formas de relação a si), ele terá que, primeiro, fazer uma crítica
subjetividade moderna). E essa crítica é, e dever ser, histórica: primeiro, porque ele
assim, revelar a que problemas respondem, que jogos de poder estão implicados, a que
acontecimentos correspondem. Então, para isso, ele terá que fazer uma crítica da moral e
nosso tempo. E o caminho, a estratégia, que ele traça é o de uma crítica da moral moderna
através dessa história da ética, que se expressa, então, por uma genealogia das formas de
relação a si. Fazer história como Foucault faz é uma estratégia, é um modo, de fazer
“crítica”. E há nisso uma aposta de que essa crítica, ela mesma, provoque efeitos éticos,
que dela é indissociável uma vez que dá fundamento a essa moral) prepara o caminho
(indispensável) para a construção de uma nova ética. Essa nova ética de Foucault, ele
anunciou: teria a forma de uma “estética da existência”. Como lembra Judith Revel sobre
a relação de Foucault com a história: “A metafísica nos habituou a projetar a “vida outra”
50
história a espessura no interior da qual opera a busca da diferença e a inquietude do
64
REVEL, J. Historicisation, périodisation, actualité. Michel Foucault et l’histoire in: MARMASSE, G.
L’histoire. Paris, Vrin, 2010, p. 207.
51
CAPÍTULO III
52
“Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me a minha mãe, o
meu pai, e todos os meus companheiros”.
HOMERO, Odisseia, IX, vv. 366-67.
Longe disso. Essa recusa o conduziu a traçar caminhos inéditos para a retomada dessa
questão. É assim que podemos compreender que ele defenda que: “o sujeito tem uma
gênese, o sujeito tem uma formação, o sujeito tem uma história; o sujeito não é
se constituir. Assim, como assinalamos acima, a noção de cuidado de si, da qual ele se
ocupa nos últimos anos de sua trajetória intelectual, terá um lugar privilegiado para
“recusa uma certa teoria a priori do sujeito para poder fazer esta análise das relações que
pode haver entre a constituição do sujeito, ou das diferentes formas de sujeito, e os jogos
65
FOUCAULT, M. Dits et Écrits, tome II, texte n°234, «La scène de la philosophie», p. 590.
66
FOUCAULT, M. Dits Ecrits, tome IV, texte n°356, «L'éthique du souci de soi comme pratique de la
liberté», p. 718.
53
é o abandono de uma teoria do sujeito. O que oferece este procedimento? A abertura para
O sujeito, defende Foucault, “não é uma substância. É uma forma, e esta forma
não é, ademais, nem sempre idêntica a ela mesma.”67 Há nestas análises, por sua vez, a
recusa também de uma certa tradição na qual, uma vez estabelecida uma teoria do sujeito,
Foucault escreve que o modo como ele trata tal questão tem uma especificidade, qual
doença, da morte e do crime, a subjetividade não é concebida a partir de uma teoria prévia
não é relacionada com uma antropologia que tenha um valor universal. A subjetividade é
concebida como o que se constitui e se transforma na relação que ela tem com sua própria
ele havia elaborado para tratar do problema do cuidado de si e, ao mesmo tempo, oferece
um precioso mapa do seu itinerário de pesquisas : “Isto significa muito simplesmente que,
no tipo de análise que desde algum tempo busco lhes propor, vocês veem que: relações
67
FOUCAULT, M. Dits Ecrits, tome IV, texte n°356, «L'éthique du souci de soi comme pratique de la
liberté», p. 718.
68
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 13.
54
tudo isso, constitui uma cadeia, uma trama, e que é aí, em torno destas noções, que se
pode, eu penso, articular a questão da política e a questão da ética. Isso posto acerca do
sentido que pretendo dar a esta análise – que pode lhes parecer um pouco repetitiva e
que permitem, em grande medida, elucidar a novidade do tratamento que Foucault efetua
na questão do sujeito através do problema do cuidado de si. Esse tratamento exigiu, pois,
Assim, a partir desse quadro, será preciso elucidar em particular o papel de duas
noções bastante decisivas que permitiram a Foucault construir, por sua vez, a mecânica
a noção de verdade que Foucault elabora para a construção destas noções. Esse percurso
podemos ver desenvolvido em textos do final dos anos 70 e, de maneira mais clara,
especialmente nos cursos de 1980 e 1981, ou seja, os dois cursos que precedem A
privilegiada.
Na primeira aula de Do governo dos vivos, Foucault diz que: “Nos cursos dos dois
últimos anos, procurei esboçar um pouco essa noção de governo, que me parece muito
mais operacional do que a noção de poder, ‘governo’ entendido, claro, não no sentido
estrito e atual de instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas
69
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p 225.
55
estatais, mas no sentido lado, e aliás antigo, de mecanismos e procedimentos destinados
vastos. Mas, segundo Foucault, nos séculos XV-XVI, teria ocorrido uma notável
homens” justamente a partir do desenvolvimento desta ideia pela Igreja Cristã enquanto
No artigo Sujet moral et soi éthique chez Foucault, Frédéric Gros assinala o
caráter peculiar das noções que Foucault cria para investigar o problema do sujeito, e do
sujeito moral em particular: “evocar a filosofia foucaultiana do sujeito é falar de algo que
quase não existe e que, em todo caso, não conhece uma tematização separada. Com isso
quero dizer que conceitos como os de subjetivação, de práticas de si, de relação consigo
mesmo, são muito pouco definidos em e si e por si próprios, e talvez sejam entendidos
mais como grades para a leitura de fenômenos históricos do que como conceitos a serem
70
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 13.
56
filosófica”71.O que, em alguma medida, pode ser lido como uma precariedade do
Foucault em sua relação com a história, que assim passa a ter papel decisivo na
com duas outras noções que ganham decisivo relevo na última fase do pensamento de
de si como desdobramento daquelas duas últimas noções, nos parece que ele ganha um
significado mais consistente e coerente com as pesquisas que Foucault desenvolvera nos
V. Governo e verdade.
privilegiado que permite a Foucault apreender e estabelecer uma segunda grande inflexão
especial o poder pastoral que dele emerge. Essa noção de governo, contudo, se constituiu,
ao longo dos séculos anteriores a essa inflexão (e também tem, claro, desenvolvimentos
nos séculos seguintes), mas ela é mobilizada para constituição da moral deste período. E
71
GROS, F. “Sujet moral et soi éthique chez Foucault”, Archives de Philosophie 2/ 2002 (Tome 65), p.
229.
57
a essa noção de governo se associa também uma noção de “verdade”, que é fundamental,
Tanto é assim que Foucault chega a criar a noção de um “governo pela verdade”,
noção que ele elabora a partir de experiências históricas precisas – mas estamos longe,
pois, de uma noção de governo no qual a ação parte do aparelho de estado e tem como
alvo os “cidadãos”. Para chegar ao desenho dessa noção antiga de governo, Foucault se
descola de uma noção, também fundamental e cara em seu pensamento, que é a noção de
“poder”. O poder tivera, de maneira privilegiada, no centro das análises foucautianas das
mesma em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele
constituiu.”72. É verdade que aqui o poder é tomado no âmbito da análise das populações
alvo o conjunto dos indivíduos tomados como elementos de uma cadeia que aciona e faz
72
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade, p. 26.
73
Cf., sobre esse ponto: “O conceito de governo permite a Foucault repensar o espaço das relações de poder
para além dos paradigmas do Estado e da soberania, para além das formas institucionais de dominação: a
governamentalidade é definida, no curso de 1982-3, como o conjunto de ‘técnicas e procedimentos que
visam conduzir a conduta dos outros’. O campo do governo caracteriza as relações de poder como
numerosos entrelaçamentos complexos de modos de ação sobre as ações dos outros: um jogo estratégico
de dominações e de resistências que não suprime, mas, ao contrário, requer a liberdade dos governados. O
conceito de governo permite assim melhor dar conta do caráter produtivo dos regimes de saber e poder. As
relações de governo não se reduzem a seus efeitos repressivos de assujeitamento, mas engendram formas
específicas e múltiplos discursos, de ação, de relação a si, e constituem assim um campo aberto no qual se
joga com a possibilidade de inverter e construir práticas políticas inéditas.” In: LORENZINI, D. et. al.,
Michel Foucault: éthique et vérité, p. 15.
58
cristianismo antigo, que Foucault extrairá o quadro histórico-conceitual para tratar da
segundo Foucault, o exercício do poder exige “um acréscimo de verdade”74. Foi através
das três grandes práticas cristãs, isto é, o batismo, a penitência e direção de consciência,
uma subjetividade específica. E esta constituição é articulada por uma forma de governo,
que Foucault denomina “governo dos homens pela verdade”. Foucault escreve que há
“um regime de verdade no cristianismo que se organiza tanto em torno do ato de verdade
como ato de fé, mas em torno do ato de verdade como ato de confissão. Regimes bem
diferentes esses, da fé́ e da confissão, pois no caso da fé se trata da adesão a uma verdade
manifestar que se aceita esse conteúdo – é esse o sentido da profissão de fé, do ato da
profissão de fé, enquanto no outro caso, no caso da confissão, não se trata de modo algum
individuais. Pode-se dizer que o cristianismo, em todo caso do ponto de vista que me
interessa aqui, foi perpetuamente permeado por essa extraordinária tensão entre os dois
74
“O exercício do poder como governo dos homens requer não apenas atos de obediência e de submissão,
mas também atos de verdade em que os indivíduos, que são sujeitos na relação de poder, sejam também
sujeitos como atores, espectadores testemunhas ou como objetos no procedimento de manifestação de
verdade? Por que, nessa grande economia das relações de poder, se desenvolveu um regime de verdade
indexado à subjetividade? Por que o poder (e isso há milênios, em nossas sociedades) pede para os
indivíduos dizerem não apenas ‘eis-me aqui, eis-me aqui, que obedeço’, mas lhes pede, além disso, para
dizerem ‘eis o que sou, eu que obedeço, eis o que sou, eis o que vi, eis o que fiz’? É esse o problema,
portanto. É evidente – a maneira como precisei o sujeito assim indica, creio eu, suficientemente – que é do
lado do cristianismo e do cristianismo primitivo que vou procurar estreitar um pouco esse problema
histórico da constituição de uma relação entre o governo dos homens e os atos de verdade, quer dizer, os
atos refletidos de verdade.” FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 76.
75
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 77-78.
59
VI. Verdade e subjetividade.
Foucault. Das poucas vezes em que ele se diz filósofo é exatamente a propósito de tratar
da questão da verdade: “E em vão digo que não sou um filósofo, se é de fato da verdade
que me ocupo, eu sou, apesar de tudo, um filósofo.”76 E se a verdade é uma questão que
não foi negligenciada na trajetória de Foucault e o torna, a partir de suas próprias palavras,
e do cuidado de si.
Assim, a noção de verdade em Foucault não pode ser deixada de lado quando
problema da ética. Porque Foucault investiga e elabora uma noção de verdade com
verdade que opera por trás da elaboração da noção de subjetividade e que tem, por sua
No curso Do governo dos vivos ele diz de maneira enfática os propósitos deste seu
empreendimento: “uma história da verdade que não seria feita do ponto de vista das
entendidas não só como relação de conhecimento de si, mas também como exercício de
76
FOUCAULT, M. Dits et écrits, III, p. 30 (grifos meus).
60
si sobre si, elaboração de si sobre por si, transformação de si por si”77. Isto é, a maneira
como o indivíduo estabelece um certo vínculo com a verdade e que, assim, tem efeitos
para uma elaboração subjetiva. E não se pode deixar de notar a originalidade de Foucault
que, para elaborar esta noção de verdade, investiga e busca elementos no cristianismo, e
1980, do curso Do governo dos vivos para tratar detidamente da questão da verdade e que,
Para tratar da questão da verdade sob este prisma, Foucault formula uma noção
fundamental para o seu argumento, a saber, a noção de “regime de verdade”. Ele diz que
determina a forma desses atos e estabelece para esses atos condições de efetivação e
efeitos específicos. Em linhas gerais, podemos dizer que um regime de verdade é o que
Vejamos.
De início, como uma espécie de analogia, ele faz referência à existência dos
77
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 105.
78
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 85.
61
que esses indivíduos, dessa maneira, são constrangidos a obedecer a estas autoridades e
jurisdição, os indivíduos são obrigados a se submeter às leis que dele decorre; há, assim,
uma efetiva força que constrange esta obediência sob pena de sanções a estes indivíduos.
A partir destes dois casos, Foucault defende que poderíamos também formular algo como
um “regime de verdade”. Neste caso, deveríamos levar em conta o modo como a verdade
opera, isto é, como ela também tem a força, a característica fundamental, de constranger
os indivíduos a atos ou palavras que a sua própria manifestação exige. Ou seja, a verdade
pode ser tratada não apenas sob o prisma de seus procedimentos formais de constituição
pensamento e neste caso, poderíamos dizer claramente junto com o seu autor, para a
verdadeiro não são a mesma coisa quando tratados sob o prisma de seus efeitos. Que o
em vez de outra.
O que está em jogo neste problema, neste modo de abordar questão da verdade, é
que mesmo nos raciocínios rigorosos ou em algo cuja evidência seja indubitável, mesmo
nestes casos, é preciso que haja um elemento outro que é decisivo, uma certa afirmação
tácita, para que a verdade possa alcançar os seus efeitos; este é elemento é o engajamento
62
(“engagement”)79. Um certo engajamento daquele que está exatamente fazendo operar a
própria verdade. O que Foucault recupera nesta análise é o papel que desempenha aquele
que se ocupa da verdade e que, para isso, dele é exigido uma certa atitude, qual seja, um
certo comprometimento, ou seja, como ele próprio sendo testemunha da verdade que ele
mesmo enuncia.
Foucault usa como exemplo desta relação entre subjetividade e verdade, uma
suposta disputa entre dois lógicos na qual um deles, incialmente, sustenta a falsidade de
uma proposição, ao passo que o outro a afirma como verdadeira80. Ao final da discussão,
o primeiro acaba por reconhecer que, de fato, a proposição é mesmo verdadeira. Ele então
poderá dizer: “é verdade, logo me inclino”, ou seja, reconheço como verdadeira tal
proposição que antes tinha por falsa. Neste ato, ao declarar sua conclusão, podemos
analisar num primeiro momento, que o lógico a faz não exatamente por ser lógico, mas
porque verifica que a proposição obedece, ao final das contas, às regras de construção, à
proposição é manifesta; desse modo, é por causa da estrutura específica da Lógica que a
79
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89.
80
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89 et seq.
63
Todavia, Foucault observa um outro aspecto desta declaração. Ao dizer de uma
proposição, porque não é “por lógica” que ele introduz o sentido deste “logo”, mas é
exatamente por ele próprio ser um lógico. Ou seja, é porque neste momento ele faz
convidado a se constituir, como operador num certo número de práticas ou como parceiro
num certo tipo de jogo”81. E, assim, mesmo neste caso, onde poderíamos dizer que há
lógico é possível, ainda assim, escandir estes dois aspectos em que podemos perceber um
regime de verdade operando. Foucault diz que, embora possamos verificar esta operação,
Há um outro caso que Foucault analisa para a defesa da existência dos “regimes
que está em jogo83. Trata-se do célebre cogito da quarta parte do Discurso do Método de
René Descartes: “E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo era tão firme e tão
certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a
abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia
81
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89.
82
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 89.
83
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90 et seq.
64
que procurava.”84. Para Foucault, a sentença cartesiana “penso, logo existo” pressupõe
uma outra afirmação não manifesta que lhe daria igualmente sustentação, qual seja: “é
“penso, logo existo” temos uma evidência teórica indubitável, resultante da cadeia
expressão mesma do verdadeiro e sua força intrínseca, constrangente, e que tem sua
legitimidade resultante da sua estrutura de raciocínio teórico verdadeiro. Todavia, por sua
vez, haveria também um “logo” implícito, que é exatamente o que remete ao “regime de
verdade”, e que está em operação, uma vez que ele não se reduz ao valor intrínseco do
verdade. E para que esse regime de verdade seja aceito, o sujeito que raciocina tem que
ser qualificado de certa maneira.”85 . Isto é, que este sujeito se incline quando se tratar da
verdade, donde Foucault defender que esteja em operação o pressuposto: é verdade, logo
me inclino. E por conta desta segunda afirmação que subjaz ao cogito é exatamente onde
se verifica a existência do regime de verdade: “há, no entanto, uma condição para que a
máquina funcione e para que o ‘logo’ do ‘penso, logo existo’ tenha valor probante. Tem
que haver um sujeito que possa dizer: quando for verdadeiro, e evidentemente verdadeiro,
eu me inclinarei”86. Somente assim, a verdade faz operar a sua força e produzir o seu
84
DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 54. In: Coleção Os pensadores, vol. XV, 1973.
85
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90.
86
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90.
65
Por fim, Foucault acrescenta que a existência de um regime de verdade, cuja
implicações. Uma delas é que a loucura deverá ser excluída. Não pode haver louco num
determinado regime de verdade porque não pode haver o caso de não aceitação do
verdadeiro. Foucault diz: “não pode haver voz da loucura em filosofia ou em qualquer
outro sistema racional. Não pode haver louco, isto é, não pode haver gente que não aceita
o regime de verdade”87.
verdade subjetiva como “regime de verdade” porque ele funciona como um sistema que
vincula, e isso de maneira institucionalizada; ele exige, pois, atos, práticas, que atestem
este vínculo.
formação primitiva, não do ponto de vista de sua economia dogmática, mas sob o prisma
do que se pode denominar como “atos de verdade”. Philippe Chevalier bem nota esta
requisitado pelo poder e pela ciência para exercer-se. E esse suplemento do lado da
87
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 90.
66
verdade reencontra-se do lado do sujeito: a verdade exige para realizar-se em mim mesmo
um determinado número de atos para que eu possa a ela ascender; e esses atos excedem
portanto, essa: qual a relação com a verdade que nasce com o cristianismo para que,
alguns séculos mais tarde, todos tenham sido obrigados a dizer sua verdade?”88.
conta os tipos de atos que os sustentam, desenhando uma certa “morfologia” específica
para cada um deles. Desse modo, haveria um regime de verdade que gravita em torno dos
atos de fé (“les actes de foi”), aqueles cuja origem são a adesão a uma verdade revelada,
e um outro que gira em torno dos atos de confissão (“les actes d’aveu”), isto é, do
reconhecimento das faltas, que manifestam uma verdade oculta. E é em relação a este
cristianismo.
Portanto, o que interessa para análise de Foucault são as práticas deste segundo
regime porque elas expressam de maneira privilegiada este vínculo que o indivíduo
mantém com a verdade e os seus efeitos subjetivos. A propósito dos “atos de confissão”,
antigas pagãs uma vez que estas, com o “exame de consciência” visavam tão somente um
88
CHEVALIER, P. O cristianismo como confissão em Foucault, p. 53. In: CANDIOTTO, C. & SOUZA,
P. (Orgs.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
67
controle de si e das paixões da alma, ao passo que, no cristianismo, entra em causa a
verdade daquele que confessa, o que ele é propriamente: “é preciso encontrar todo um
regime de verdade no qual o cristianismo, desde a sua origem, ou em todo caso desde o
século II, impôs aos indivíduos manifestar em verdade o que são, e não simplesmente na
forma de uma consciência de si.”89. Portanto, foi através das três grandes práticas, a saber:
a dizer a verdade de si mesmo e, pois, a constituir este vínculo explícito entre o ato de
que consolidou como uma forma de governo dos homens pela verdade.
exposição, embora declare um certo “embaraço” com o título de sua intervenção, ele
anuncia claramente, sem mais, o tema do qual ele pretende tratar na ocasião, a saber, a
questão “o que é a crítica?”. Ele acentua, ademais, que é disso que falará nesta intervenção
muito se ocupou do problema da “crítica”. Todavia, a menção a Immanuel Kant deve ser
tomada com bastante cautela. Ora, trata-se, como se poderá ver no desenvolvimento deste
89
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 94.
68
texto, não de uma retomada estrita de um problema oriundo da filosofia kantiana – e nem
mesmo da “crítica” no sentido estrito que o filósofo alemão dará para a construção de seu
edifico filosófico nas Críticas. Porque ver-se logo que a questão “o que é a crítica?” dará
um período anterior a Kant. A menção a Kant é feita, pois, podemos interpretar, menos
Foucault diz que seria preciso, pois, “dizer algumas palavras em torno desse
projeto que não deixa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia,
próximo dela, contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia futura, no lugar talvez
séculos XV-XVI) uma certa maneira de pensar, de dizer, de agir igualmente, uma certa
relação com o que existe, com o que se sabe, o que se faz, uma relação com a sociedade,
com a cultura, uma relação com os outros também, e que se poderia chamar, digamos, de
atitude crítica90”. Contudo, a noção de “atitude crítica”, tomada por esse viés “histórico”,
o próprio Foucault ressalta, tem uma conotação assaz vaga e dispersa na história do
Ocidente e que se poderia datar inclusive em um período ainda mais remoto que o
contorno, enfim, de “unidade”, a partir desses elementos, de uma noção que sempre
elementos, a “crítica” não poderia existir senão em relação a algo e a algo diferente dela
90
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 34.
69
mesma. Em uma palavra: a crítica é antes um “instrumento”, um meio para uma verdade
que ela mesma não resolveria ou seria. Tendo como efeito o fato de que a crítica esteja
Por outro lado, a atividade da crítica, diz Foucault, também reivindica para si,
quase sempre, um rigor útil (ou um valor) bem como um imperativo, e um imperativo
bem mais geral do que aquele de “afastar o erro”. E, finalmente, há algo na crítica que
se “aparenta à virtude”. E Foucault declara que “de uma certa maneira, o que gostaria de
Assim, a operação histórico-filosófica que Foucault faz para dar conta dos
contornos e fazer a história dessa noção de “atitude crítica” – tomada como uma “virtude”
– consiste em analisar uma outra noção que, em alguma medida, a ela se opõe e, em todo
caso, não pode dela ser dissociada: trata-se da noção de governo, e especificamente do
E, para isso, Foucault se volta incialmente para analisar a noção de “governo dos
homens” justamente a partir do desenvolvimento desta ideia na Igreja Cristã enquanto ela
desenvolve, pois, a ideia de que “cada indivíduo, qualquer que seja a idade, status, e de
uma ponta a outra de sua vida – até os detalhes de suas ações –, devia ser governado e
devia deixar-se governar, ou seja, dirigir a sua salvação por alguém com o qual se una
91
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 35.
92
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 36.
70
Esta atividade de direção que visa à salvação, em uma relação de obediência a
alguém, se efetiva, por sua vez, em uma “tripla” relação à verdade, a saber: “[i] verdade
entendida como dogma; [ii] verdade também na medida em que esse direcionamento
enfim, [iii] na medida em que esse direcionamento se desdobra como uma técnica
ancorada nessa relação à verdade, que na Igreja grega era chamada technê technôn e na
Igreja romana latina ars artium, era precisamente a arte de governar os homens.
restrita aos grupos espirituais nas sociedades medievais, mas, a partir do século XV, há
uma “verdadeira explosão” desta arte tanto para o âmbito laico (expansão para a
sociedade civil do tema da arte de governar os homens e dos métodos para realizá-la)
como para um domínio mais variado, tais quais: como governar as crianças, como
governar os pobres, uma família, uma casa, etc. Desse modo, a questão “como governar?”
toma uma grande amplitude nos séculos XV e XVI que resulta, nesta época, em uma
multiplicação das artes de governar: a arte pedagógica, a arte política, a arte econômica
defende que não se pode dissociar, em contrapartida, a questão: “como não ser
93
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 35-36.
94
Trataremos de maneira mais detida desta noção a seguir (no Excurso 1), mas vale a pena acrescentar, de
início comentário de D. Lorenzini a propósito desta noção criada por Foucault: “Foucault empreende,
portanto, a partir de 1978 um trabalho ulterior de clarificação conceitual e inaugura o estudo do que ele
chama “governamentalidade”, uma noção que ele define de maneira suficientemente geral para nela incluir,
entre outros, os mecanismos anátomo e biopolíticos (...). Isso, notadamente, graças a uma genealogia de
71
governado?”. Embora essa rejeição não surja como um ponto de inteira oposição,
constituindo algo como uma recusa absoluta de governo. Não se trata disso. O que se
pode localizar nesta época é algo como “não ser governado dessa maneira, por esses, em
nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não
dessa forma, não para isso, não por eles"95. Ou seja, a recusa incide sobre, e põe em
possível identificar um outro, que Foucault identifica e chama de “atitude crítica”, que o
limitaria, buscaria a justa medida e buscava transformá-lo; o que, desse modo, o torna, ao
mesmo tempo adversário e parceiro. Assim, teria surgido na Europa, nesta época, algo
como uma forma cultural geral que é, a um só tempo, uma atitude moral e política, e que
reivindica não ser governado de uma certa maneira e a um certo preço. O que leva
Foucault a cunhar, em forma de uma definição para a noção de crítica que ele mesmo
forja, a seguinte fórmula: l’art de n’être pas tellement gouverné. Ou seja: a “atitude
crítica” como uma recusa determinada de governo. Assim, temos que o governo, a
***
longa duração do conceito de governo que obriga a remontar não somente à pastoral cristã, mas também
ainda antes do Cristianismo dos primeiros séculos e também à Antiguidade grega, helenística e romana.”
LORENZINI, D. Étique et politique de soi, p. 52.
95
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique?, p. 37.
72
EXCURSO I:
para sua compreensão. Estas noções têm especial elucidação no curso Nascimento da
biopolítica. Ademais, esse curso mostra-se estratégico por duas razões: (i) tanto porque é
o último curso antes da passagem de Foucault para o tratamento mais detido de temas da
antiguidade greco-romana (o que passa a acontece com o curso Do governo dos vivos)
73
I. A análise “economista” do não econômico e sua generalização a partir do homo
oeconomicus.
(Foucault diz em francês que se trata de uma “analyse économiste” e não de uma “anlyse
économique”, exatamente porque ele quer ressaltar que se trata, como veremos, de uma
mudança de objetos de análise, que não são próprios do campo econômico estrito97) a
uma série, portanto, de objetos, de campos, de comportamentos ou condutas que não eram
a generalização da noção de homo oeconomicus a todo indivíduo, “ator”, quando ele age
não somente em vistas ao econômico, mas também em outros âmbitos: quando ele se
96
Cf.: FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Trad. de E. Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008
[p. 365-395]. Também consultei o texto da edição francesa: FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique:
cours au Collège de France (1978-1979). Ed. estabelecida por M. Senellart sob dir. de F. Ewald e A.
Fontana. Paris, Gallimard/Le Seuil, 2004 [p. 271-294]. Como assinalei antes, fiz revisão de todas as
passagens que citei da tradução brasileira e, algumas vezes, fiz pequenas alterações. Assim, dou a indicação
da edição francesa do livro.
97
Na aula precedente (de 21 de março de 1979), Foucault havia precisado este ponto ao dizer que é “grâce
à ce schéma d'analyse, cette grille d'intelligibilité, on va pouvoir faire apparaître dans des processus non
économiques, dans des relations non économiques, dans des comportements non économiques, un certain
nombre de relations intelligibles qui ne seraient pas apparues comme cela – une sorte d’analyse économiste
du non-économique. C'est ce que font [les néolibéraux] pour un certain nombre de domaines.”: Nascimento
da biopolítica, p. 334 (grifos meus).
74
O texto diretor destas “análises economistas” seria o livro Humam Action (1940)
do economista austríaco Ludwig Von Mises, bem como artigos de outros economistas
qualquer que seja, que implique, claro, uma alocação ótima de recursos raros a fins
alternativos, o que é a definição mais geral do objeto da análise econômica tal como foi
definida, grosso modo, pela escola neoclássica.”98 Aqui, Foucault busca mostrar o modo
como opera o raciocínio neoliberal que encontra filiação, portanto, na escola neoclássica
de economia (do século XIX). E como ele opera? Uma vez que há recursos raros
O ponto é que este modo de operar neoliberal, ou seja, esta alocação de recursos
raros para fins determinados, será generalizado a toda conduta finalizada e, por fim, a
toda conduta dita racional. O raciocínio neoliberal propõe, portanto, como questão: “será
que afinal de contas, a economia não é a análise das condutas racionais, e será que toda
conduta racional, qualquer que seja, não decorreria de algo como uma análise
econômica?” . Ora, aceita as premissas, a consequência se impõe: “por que não definir
98
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 366 (grifos meus).
75
toda conduta racional, todo comportamento racional, qualquer que seja, como objeto
mais poderá ser avançado para uma maior extensão e generalização deste tipo de análise.
Em autores como Gary Becker, por exemplo, teríamos uma radicalização desta
operação. Para este autor, o objeto da análise econômica pode se estender para além das
condutas racionais e podem inclusive se aplicar também a condutas não racionais. Becker
diz, enfatiza Foucault, “no fundo, a análise econômica poderá perfeitamente encontrar
cláusula de que a reação desta conduta não é aleatória em relação ao real, [...] em outras
palavras, ‘que aceite a realidade’”. Ora, qual é exatamente uma das marcas do homo
modificações nas variáveis do meio”. Eis, portanto, agora, o encontro entre a análise
econômica das condutas e a figura do homo oeconomicus que a ela se liga. E, assim, a
De tudo isso, que consequências teremos? Foucault admite, todavia, que “os
economistas, claro, estão longe de endossar, mas isso apresenta certo número de
interesses”100. E ele diz expressamente que tais análises têm “um interesse prático, por
assim dizer, na medida em que, quando você define o objeto da análise econômica como
pode perfeitamente integrar à economia toda uma série de técnicas.”101 Esse é, pois, o
99
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 368.
100
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 368 (acréscimos explicativos entre colchetes meus).
101
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 368.
76
quadro inicial do problema a partir da atualidade do neoliberalismo americano do século
XX.
século XX. Vejamos. No século XVIII, o homo oeconomicus “funcionava como o que se
oeconomicus é, do ponto de vista de uma teoria do governo, aquele em que não se deve
aquele que aceita a realidade, que responde sistematicamente às variáveis do meio e, por
enfatizar que: “De parceiro intangível do laissez-faire, o homo oeconomicus aparece [no
102
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 369.
77
século XX] como o correlativo de uma governamentalidade103”. Eis o problema histórico-
o seguinte: será que, desde o século XVIII, tratava-se com o homo oeconomicus
de um governo possível ou será que o homo oeconomicus já não era um certo tipo
103
Em um texto da coletânea Dits et écrits, cujo título é exatamente “La «gouvernementalité»”, Foucault,
a certa altura, diz expressamente o que ele entende por esta noção, ele escreve que: “Par ce mot de
«gouvernementalité», je veux dire trois choses. Par gouvernementalité, j'entends l'ensemble constitué par
les institutions, les procédures, analyses et réflexions, les calculs et les tactiques qui permettent d'exercer
cette forme bien spécifique, bien que complexe, de pouvoir, qui a pour cible principale la population, pour
forme majeure de savoir, l'économie politique, pour instrument technique essentielles dispositifs de
sécurité. Deuxièmement, par «gouvernementalité», j'entends la tendance, la ligne de force qui, dans tout
l'Occident, n'a pas cessé de conduire, et depuis fort longtemps, vers la prééminence de ce type de pouvoir
qu'on peut appeler le «gouvernement» sur tous les autres: souveraineté, discipline; ce qui a amené, d'une
part, le développement de toute une série d'appareils spécifiques de gouvernement et, d'autre part, le
développement de toute une série de savoirs. Enfin, par gouvernementalité, je crois qu'il faudrait entendre
le processus ou, plutôt, le résultat du processus par lequel l'État de justice du Moyen Âge, devenu aux XVe
et XVIe siècles État administratif, s'est trouvé petit à petit «gouvernementalisé».” Dits Ecrits, Tome III,
texte no 239 (grifos meus).
104
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 369.
78
de sujeito que permitia justamente que uma arte de governar se regulasse de
meu modo de colocar essa questão já lhes dá a resposta, e é disso portanto que
gostaria de lhes falar, do homo oeconomicus como parceiro, como vis-à-vis, como
XVIII.”105
Este trecho é, como vemos, uma peça especialmente decisiva para compreender
contemporâneo, e o que neles pode aparecer como defesa de uma certa liberdade
contra uma certa leitura que possa possivelmente atribuir a Foucault, ao pensamento
já mesmo no século XVIII, se tratava, com o homo oeconomicus, de garantir uma esfera
105
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 369-370 (grifos e acréscimos entre colchetes meus).
79
liberdade assegurada sob essa figura, sob esse “átomo”, diante do “pesado” poder de um
governo possível. Foucault diz expressamente que este não é, não foi, o propósito; ao
contrário, deve-se ler o homo oeconomicus “como parceiro, como vis-à-vis, como
elemento de base da nova razão governamental tal como se formula no século XVIII”.
para uma nova arte de governar, que teria a economia como princípio. Então, nem
foi um tanto mais sofisticada: uma assimilação, uma introjeção na arte de governar de
princípios da economia, criando, portanto, algo que Foucault formula como uma nova
E este novo modo de governar, essa nova razão governamental, opera com
entre o indivíduo, o poder soberano e o poder econômico. Ora, são exatamente com estes
três elementos – o homo oeconomicus, o poder soberano e o poder econômico – que essa
razão opera e calcula de modo a gerir essas diferenças adotando um princípio único de
governo que as englobe. Não é que estes elementos desaparecem. Eles são assimilados
por essa nova forma de governo. Essa, me parece ser, portanto, a tese de Foucault e o que
noção de homo oeconomicus e sua relação com a constituição de uma nova razão
governamental. Assim, ele fará o seguinte percurso: [i] investigar as raízes do homo
oeconomicus na teoria do sujeito tal como ela é aplicada no empirismo inglês dos séculos
80
XVII-XVIII; em seguida, fará [ii] distinções entre o homo oeconomicus, o sujeito de
e do filósofo Mandeville; em seguida – o que ocupará a maior parte de sua análise – [iii]
o exercício do poder político do soberano, que será feita a partir de autores como
fará [iv] uma análise das consequências da “limitação” do poder soberano pelo homo
governo dos fisiocratas franceses, à teoria da “mão invisível” de Adam Smith. Esse é, em
Foucault recorre, incialmente, aos empiristas ingleses dos séculos XVII-XVIII, Locke e
Hume analisando a teoria do sujeito tal como ela é “efetivamente aplicada na filosofia
106
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 370.
81
pela primeira vez na filosofia ocidental um sujeito que não seria definido nem por sua
liberdade, nem pela oposição alma e corpo, tampouco “pela presença de um foco ou
núcleo de concupiscência marcado pela queda ou pecado”; e sim “um sujeito que aparece
O que seria esse “irredutível” no sujeito do empirismo inglês? Para explicitar esse
um indivíduo fazer uma determinada escolha em vez de outra, haverá, ao final das contas,
um elemento irredutível, ou seja, um elemento para além do qual não se poderá ir porque
ele seria o elemento limitador de uma série investigativa. Hume dirá que o “caráter
não remete a nenhum juízo, raciocínio ou cálculo. Fazer algo para evitar a dor é um
se relaciona com o primeiro. Em que ele consiste? Não é que não se possa transmitir ou
substituir uma escolha por outra: “poder-se-ia perfeitamente dizer que, se alguém prefere
a saúde à doença, também pode preferir a doença à morte e, neste caso, optar pela doença”
ou “escolher estar ele mesmo doente em vez de outra pessoa”. Mas, mesmo nestes casos,
a escolha recai sobre “um sentimento pessoal de dor ou não dor, de doloroso e agradável”
e que, no final das contas, será o princípio de minha escolha. Assim, esse par,
107
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 371.
82
é como “ponto de partida de um interesse ou lugar de uma mecânica de interesse”.
Embora haja, diz Foucault, uma série de discussões sobre o funcionamento dessa
mecânica, o que é fundamental é que “o interesse aparece, e isso pela primeira vez, como
uma forma de vontade, uma forma de vontade ao mesmo tempo imediata e absolutamente
do sujeito de interesse.
jurídica”. Poder-se-ia perguntar: “se essa forma de vontade que chamamos interesse [do
sujeito de interesse] pode ser considerada do mesmo tipo de vontade jurídica ou se pode
e, mais uma vez, de Hume. Em primeiro lugar, Blackstone, observa Foucault, ao tratar da
questão do contrato primitivo, do contrato social, diz que os indivíduos que estabelecem
o contrato o fazem porque tinham interesse – isso pelo fato de no estado de natureza tais
interesse mais depurado, que se tornou calculador, racionalizado, etc.”110 Sobre esse
mesmo ponto, no entanto, Hume faz outra interpretação. O sujeito de direito não se
superpõe ao sujeito de interesse: se faz contrato por interesse, porém, uma vez
estabelecido, ele só é respeitado porque se tem interesse em que haja contrato, pois o
108
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 372.
109
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 372.
110
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 373.
83
vínculo com os outros garante que os meus próprios interesses não sejam lesados. Para
ou constrangido ao ter se tornado sujeito de direito e, assim, ele irá obedecer ao contrato.
Hume, todavia, dirá que se o contrato já não apresenta interesse, nada pode obrigar a
político, algo que o sujeito de direitos, na figura do homem jurídico, não poderia colocar.
uma infinidade de coisas, de ordem natural e política, que no fim das contas está ligada a
“um curso do mundo que o extrapola lhe escapa por toda parte”111; a segunda
característica é que, apesar desse caos aparente, “vemos, entretanto, por uma lei geral do
mundo moral, os esforços de cada um por si mesmo servir ao bem de todos”. Desse
modo, conclui Foucault, ao mesmo tempo em que o interesse desse indivíduo lhe escapa,
porque está ligado a uma massa de elementos de que ele mesmo não pode dar conta, esse
111
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 377.
84
interesse “vai se ver ligado a toda uma série de efeitos positivos que farão com que tudo
Foucault acrescenta que, neste cenário, embora o homo oeconomicus esteja situado numa
desqualificam seu interesse, tampouco desqualificam o cálculo que ele pode fazer para
fundam e dão consistência ao cálculo propriamente individual que o liga “da melhor
maneira possível ao resto do mundo”. Em suma, o homo oeconomicus “vai dever o caráter
positivo de seu cálculo a tudo o que, precisamente, escapa de seu cálculo”113. Com o
desenho dessa espécie de “zona cinza” na qual está imerso e em que o homo oeconomicus
invisível”.
para que o seu produto tenha o maior valor possível, “pensa apenas em seu próprio ganho;
nesse e em muitos outros casos, ele é conduzido por uma mão invisível para alcançar um
fim que não está em absoluto nas suas intenções.”114 Este trecho, cerne da problemática
da “mão invisível”, seria, diz Foucault, o correlato ao que ocorre com o homo
oeconomicus e alude a “essa espécie de mecânica bizarra que faz funcionar o homo
oeconomicus como sujeito de interesse individual no interior de uma totalidade que lhe
112
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 377-378.
113
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 378.
114
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 378-379. N.B.: texto de Riquezas das nações citado
literalmente por Foucault.
85
escapa, mas funda a racionalidade das suas escolhas egoístas”115. Ainda avançando neste
tema da “mão invisível”, para melhor explicá-la, Foucault faz uma menção ao “Deus” de
Malebranche. Isso porque a “mão invisível”, no pensamento de Smith, pode ser lida como
[i] um otimismo econômico mais ou menos ponderado e também [ii] vê-se nela o resto
seria um pouco como o Deus de Malebranche, cuja extensão inteligível seria povoada,
mundo econômico escape a cada um dos atores econômicos em sua ação particular,
haveria “uma espécie de olhar, olhar de alguém cuja mão invisível, segundo a lógica desse
olhar e segundo o que esse olhar vê, ata os fios de todos os interesses dispersos”117. O que
levará, diz Foucault, a que se possa dizer, na esteira do pensamento de Smith, que “graças
são uns egoístas consumados, e são raros, entre eles, os que se preocupam com o bem
geral, porque, quando eles começam a se preocupar com o bem geral, é nesse momento
exercício do poder político por parte de qualquer agente político e mesmo do soberano –
isso porque, também para o soberano, o mundo econômico “é e deve ser necessariamente
obscuro”. Obscuro em dois sentidos: [i] porque a mecânica econômica implica que cada
um siga seu próprio interesse, há que se deixar, pois, cada um fazer; [ii] e porque é
115
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 379.
116
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 379.
117
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 379.
118
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 380 (grifos meus).
86
impossível ao soberano ter sobre o mecanismo econômico um ponto de vista que totalize
ponto, para explicá-lo um pouco mais, Foucault cita o historiador e filósofo escocês Adam
Ferguson, que diz: “Quanto mais o indivíduo ganha por sua própria conta, mais aumenta
a massa da riqueza nacional. [...] Todas as vezes que a administração, por refinamentos
profundos, aplica uma mão ativa nesse objeto, mais não faz que interromper o andamento
das coisas e multiplicar as causas de queixas. Todas as vezes que o comerciante esquece
seus interesses para se consagrar a projetos nacionais, o tempo das visões e das quireras
fundamental: ele não poderia não se enganar nessa tarefa de administrar a complexidade
de um mundo econômico e por isso dela o soberano deve ser desencarregado porque para
essa tarefa ser realizada de maneira “conveniente” não haveria nenhuma sabedoria
Foucault, por fim, discute uma oposição à “teoria da mão invisível” de Adam
Smith que se delineia na mesma época: trata-se da posição dos fisiocratas franceses que
fizeram análises sobre o mercado e seus mecanismos que “provavam” que o governo, o
119
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 382. Texto da citação literal, feita por Foucault, de
História da Sociedade Civil de Adam Ferguson.
120
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 383.
87
Estado, o soberano, não deviam de forma alguma “intervir na mecânica de interesses que
fazia com as mercadorias fossem para onde encontrassem mais facilmente compradores
e pelo melhor preço. A fisiocracia era, portanto, uma crítica severa a toda regulação
observa Foucault, embora os fisiocratas defendessem essa livre ação dos agentes
econômicos, era delineada por princípios bem particulares e em clara oposição, ao menos
o soberano poderá, em nome desse saber total – adquirido graças a esse Quadro
econômicos. Um terceiro ponto, por fim, é que um bom governo deverá “explicar aos
diferentes agentes econômicos, aos diferentes sujeitos, como a coisa acontece por que
acontece e o que devem fazer para maximizar seu lucro”123. Portanto, conclui Foucault,
121
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 386-387.
122
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 387.
123
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 388.
88
para os fisiocratas, o princípio do laissez-faire deverá coincidir com a existência de um
soberano “tanto mais despótico, tanto menos tolhido por tradições, hábitos, regras, leis
fundamentais, quanto sua única lei seja a da evidência, a de um saber bem erigido e bem
Foucault enfatiza que a teoria da mão invisível de Adam Smith é o exato contrário
disso: não é possível, em princípio, haver poder soberano, nos termos postos pelos
fisiocratas, exatamente porque não pode haver evidência econômica. E, assim, a ciência
teoria liberal) “nunca se apresentou como devendo ser a linha de conduta, a programação
economia, deve-se governar ouvindo os economistas, mas não se pode permitir, está fora
governamental”126.
Tudo nos leva a esse raciocínio. Ou seja: o homo oeconomicus carrega nele mesmo a
124
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 388.
125
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 389.
126
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica, p. 389.
89
CAPÍTULO IV
90
“Ce qui m’intéresse en ce moment, c’est d’échapper à la mécanique, de
savoir si l’inévitable peut avoir une issue.”
CAMUS, A. L’Étranger.
recusa. Em primeiro lugar, a recusa de uma moral que é derivada de uma subjetividade
segundo lugar, a recusa de uma “filosofia do sujeito” que teria como elemento de
hermenêutica de si, na qual ele diz que “esta genealogia, que é, há alguns anos, minha
obsessão é uma das vias possíveis para se livrar da filosofia tradicional do sujeito.”127
recusa são um tanto sinuosas e estão longe de serem óbvias. Foucault sabe disso, e chega
127
FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi, p. 66 [grifos meus]. A esse respeito ele também
declara em uma entrevista que: “ce que j'ai voulu essayer de montrer, c'est comme le sujet se constituait
lui-même, dans telle ou telle forme déterminée, comme sujet fou ou sujet sain, comme sujet délinquant ou
comme sujet non délinquant, à travers un certain nombre de pratiques qui étaient des jeux de vérité, des
pratiques de pouvoir, etc. Il fallait bien que je refuse une certaine théorie a priori du sujet pour pouvoir faire
cette analyse des rapports qu'il peut y avoir entre la constitution du sujet ou des différentes formes de sujet
et les jeux de vérité, les pratiques de pouvoir, etc” in: FOUCAULT, M. L'éthique du souci de soi comme
pratique de la liberté, in Dits et écrits, tome II, texto n°356, p. 1537.
91
mesmo a dizer que “pode-se objetar que, para estudar as relações entre sujeito e verdade,
epiméleia heautoû para a qual a historiografia da filosofia, até o presente, não concedeu
problemas clássicos da história da filosofia, e o modo como até então, para Foucault, esse
sujeito”129. O que ele pretende fazer é, em vez disso, expor os elementos desta construção
e, assim, fazer emergir os efeitos de uma problematização da história do sujeito, uma vez
que, observa Foucault: “a maior parte dos historiadores preferem uma história dos
processos sociais e a maior parte dos filósofos preferem um sujeito sem história”130.
crucial na história da moral no Ocidente, assim como teria havido momentos decisivos
escapar de um ponto de inflexão que teria também uma data e um acontecimento a ele
associado, e é assim que se pode interrogar: “o que aconteceu no primeiro século de nossa
era, no ponto de viragem do que chamamos de uma ética pagã e uma moral cristã? Na
história de nossa moral, esse problema histórico está associado a toda questão geral ou a
toda questão política referente à nossa moral, como a questão da fundação da física
matemática está associada a toda reflexão sobre a ciência, como a questão da Revolução
128
Cf.: FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito, p. 4.
129
A respeito da recusa foucaultina de uma “filosofia do sujeito”, o instigante artigo de J.-C. Monod, La
méditation cartésienne de Foucault, p. 345, informa que “abordant la question du soi et du sujet (...),
Foucault prend soin de rappeler ce qui l’avait tenu, jusqu’alors, à distance de ce thème : soit la façon dont
le sujet était pris en charge par la « philosophie du sujet » telle qu’elle était « dominante » en France et dans
toute l’Europe continentale « dans les années qui précédaient, et plus encore après, la Seconde Guerre
mondiale».
130
FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi, p. 35.
92
Francesa está associada a toda reflexão política.”131 De início, sabemos que é neste
verdadeira expansão desta prática, que se ampliou por diversos âmbitos da existência132.
Mas também houve a invenção de uma nova maneira de relação a si, e em especial uma
Esse modo de relação a si que surge neste momento de inflexão a que Foucault
se refere tem como forma de operação um elemento decisivo que é o “governo”. Mas a
noção de “governo” que nela está em jogo pode parecer a nós – modernos – estranha.
Trata-se de uma noção antiga de governo. Foucault tratará dela em suas pesquisas e, de
início, nos diz que nela “governo é entendido, claro, não no sentido estrito e atual de
instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas estatais, mas no
homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens.”133 Trata-se,
assim, de uma noção de governo cuja agência produz uma forma que forjará um modo de
os homens se conduzirem. Vê-se que não se trata de algo como uma força de “repressão”
Esta ordem instalada neste momento de inflexão tem também como elemento de
daquilo que se firmará como uma “decifração do desejo” em vez do “uso que se fazia dos
131
Cf.: FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p.19. Também sobre esse corte ver, em especial:
FOUCAULT, M. L’origine de l’herméneutique de soi, p. 42.
132
Ver a esse respeito, em especial, o capítulo II, “A cultura de si”, do volume III da História da sexualidade
no qual Foucault descreve a expansão da cultura de si no início de nossa era.
133
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p.13.
93
deixar arrebatar pelo movimento do desejo que me leva e me prende ao prazer? Para esta
problemática: como me revelar, para mim mesmo e para meus próximos, como sujeito de
desejo e ao prazer, como elementos de um trabalho de mensuração, cuja medida deve ser
encontrada para a constituição de uma relação a si, para uma assimilação e “apagamento”
II. O momento dos séculos I e II: a nossa era, em direção à nossa subjetividade.
sexual não foi mais o prazer, com a estética de seu uso, mas o desejo e a sua hermenêutica
algumas justificações.
Contudo, a história da passagem de uma ética pagã para uma moral cristã encontra
bastante claro ao estabelecer esta inflexão no interior da ética pagã do início de nossa era.
134
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 292, nota a [p. 260].
135
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 319.
94
Na filosofia pagã greco-romana deste período verifica-se que aquilo que “outrora
inflexão, a invenção de uma nova relação a si que manterá o indivíduo em uma ligação
permanente com a sua atividade sexual e, por conseguinte, essa atividade sexual passa a
constituir uma dimensão da sua própria subjetividade. O que, na época clássica grega,
estava disseminado em atos diversos, heterogêneos, cuja regulação se dava pelo uso que
deles o indivíduo fazia, em uma relação com os outros, toma agora a forma de uma relação
Por que a relação do sexo com a moral? A análise da moral toma um sentido
inteiramente particular em Foucault pois, para fazê-la, ele toma, de início, como um dos
casos privilegiados a análise da nossa relação ao sexo137. Não sem razão! A relação ao
“carne”, revela uma forma de subjetivação também particular que exige uma relação a si
136
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 256 (grifos meus).
137
De um outro ângulo, e por outras perspectivas filosóficas, o sexo é também presente e frequente nos
tratados de moral. É possível, em uma leitura mais atenta, encontrar em alguma medida a tematização do
sexo em filosofias morais do Ocidente. Kant, por exemplo, em suas Lições de ética, também problematiza
o sexo e é extremante severo à consumação do impulso sexual, reservando este ato ao casamento (aliás,
como faz boa parte da tradição moral antiga). Nessas suas Lições de ética, p. 361, ele diz que: “Uma vez
que o impulso sexual não é uma inclinação que um ser humano tem por outro enquanto pessoa, mas uma
inclinação para o seu sexo, ele é um principium de degradação da humanidade, a origem da predileção de
um gênero a outro e da desonra desse gênero a partir da satisfação da inclinação. O desejo de um homem
por uma mulher não diz respeito a ela como um ser humano, mas ao fato de que é uma mulher. Por
conseguinte, a humanidade da mulher lhe é indiferente e apenas o sexo é o objeto de sua inclinação. A
humanidade aqui é, portanto, colocada de lado”.
95
do discurso produzido sobre o sujeito em torno dessas experiências é feito do exterior,
determina justamente aquele que é louco, delinquente ou doente. Ao passo que, no caso
próprio sujeito. Foucault assinala essa diferença decisiva ao dizer que “no caso da
considerável, como discurso obrigatório do sujeito sobre si mesmo. Isso quer dizer que
não se organizou a partir de algo que se apresentasse como observação e exame, em razão
de regras aceitas de objetividade, e sim foi em torno da prática da confissão que o discurso
assim, na instituição de uma relação a si que é observada, e que toma forma e solidez
posterior, na experiência cristã da carne (na passagem do século IV e V d.C.), mas que é,
por sua vez, totalmente estranha ao que se constituiu como experiência grega dos
afrodisia na época clássica grega. Foucault escreve que “é um fato que os gregos não
deram testemunho, nem no seu pensamento histórico, nem na sua reflexão prática, de um
assemelhasse às longas listas de atos possíveis que serão encontrados nos penitenciais,
138
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 14-15.
96
nos manuais de confissão ou nos livros de psicopatologia; nenhum quadro que sirva para
decifração.”139.
O uso dos prazeres é o princípio em torno qual essa experiência é forjada. Mas o
que são mesmo os aphrodísia140, em que esta experiência se distingue da relação ao sexo
experiência que diz respeito aos prazeres em geral e ao sexo em particular. Foucault
adverte, porém, que não encontraríamos facialmente nos gregos, tampouco nos latinos,
paixões”; o que, por outro lado, não se tratava, evidentemente, de uma ausência de
vocabulário para designar as “coisas relativas ao sexo”; há um vasto léxico para os atos
139
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 51.
140
O nosso dicionário Houaiss, naturalmente moderno, traz entre outros, o sentido corrente para o termo,
já transliterado, “afrodisia”. O sentido é oriundo da Psicopatologia que o define como: “aumento,
especialmente patológico, da excitabilidade sexual.” O que é absolutamente estranho à cultura grega
clássica!
141
Foucault lembra que “é evidente que os gregos dispõem de uma série de palavras para designar diferentes
gestos ou atos que nós chamamos ‘sexuais’. Eles dispõem de um vocabulário para designar práticas
precisas; possuem termos mais vagos que se referem, de forma geral, ao que chamamos “relação”,
“conjunção” ou “relações sexuais”: como sunousia, homilia, plesiasmos, niixis, ocheia. Porém, a categoria
geral sob a qual todos esses gestos, atos e práticas são subsumidos é muito mais difícil de apreender.” In:
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 47.
97
aphrodision, onde o elemento central, problemático, será elaborar as condições e
modalidades, encontrar a justa medida desse “uso”, e isso relativo ao indivíduo em vistas
de uma elaboração de si. E “uso” não no sentido de uma fruição banal, mas de uma prática
regrada na qual há algum tipo de regulação; não se trata de uma liberdade suprema que
liberdade que abre e que me constrange a fazer um certo cálculo diante do que está a
apresentada exatamente a partir dos elementos que ele havia formulado para a
que: “Os elementos desse campo – a ‘substância ética’ – eram formados por aphrodisia,
isto é, atos determinados pela natureza, associados por ela a um prazer intenso, e aos quais
ela conduz através de uma força sempre suscetível de excesso e de revolta. O princípio
segundo o qual devia-se regrar essa atividade, o ‘modo de sujeição’, não era definido por
devia exercer sobre si, a ascese necessária, tinha a forma de um combate a ser sustentado,
de uma vitória a ser conquistada estabelecendo-se uma dominação de si sobre si, segundo
98
o modelo de um poder doméstico ou político. Enfim, o modo de ser ao qual se acedia por
corte amorosa).
curiosamente, não lê um trecho que ele próprio havia preparado para a exposição na
última parte da aula daquele dia. O trecho, aliás, tem um tom eminentemente conclusivo
curioso ainda porque será a segunda vez que ele decide omitir a leitura deste mesmo
trecho: um mês antes, no mesmo curso, na aula de 25 de fevereiro daquele ano, ele
os editores, felizmente, o publicaram na edição póstuma do curso. Ele revela, nada mais
nada menos, a formulação de uma tese decisiva para o projeto que Foucault anunciará
anos mais tarde, em 1984, quando virá a público, de uma só vez, os volumes II e III da
História da sexualidade: feito então que “quebrará” o chamado “silêncio de oito anos”
142
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 112-113 (grifos meus).
99
desde a publicação de A vontade de saber. O texto do trecho não pronunciado, e que os
manuscritos então nos permitem agora saber, é o seguinte: “É essa questão do sujeito de
desejo que vai permear o Ocidente de Tertuliano a Freud. [...] Mas faltaria mostrar como
pelo movimento do desejo que me leva e me prende ao prazer? Para esta outra
problemática: como me revelar, para mim mesmo e para meus próximos, como sujeito de
desejo ?”143 .
na qual ele explica descolamentos decisivos que tivera de fazer para levar adiante o
projeto de uma (nova) história da sexualidade, e que tinha assim como horizonte o estudo,
“armadilhas” das “teorias do desejo” que, à época, partiam das noções comumente
aceitas, e bem assentadas, isto é, a noção mesma de desejo e de sujeito desejante (sujet
désirant) e, assim, tomam como evidente o que, para Foucault, deveria ser tomado como
problemático. O conteúdo deste texto omitido por duas vezes durante as aulas do curso,
143
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 260.
144
FOUCAULT, M. O uso dos prazeres, p. 12.
100
O “problema do desejo”, todavia, é tratado – e, desta vez, exposto – de maneira
expressa ao longo da parte final desta mesma aula de 1 de abril de 1981. O que nos permite
melhor compreender o conteúdo filosófico do trecho e a tese que ele implica. Trata-se do
desejo tomado em sua acepção antiga, oriundo da filosofia grega, e que está presente,
pois, na obra dos dois maiores filósofos da época clássica: Platão e Aristóteles. É, assim,
do desejo como “epithumía” que se trata: tema caro e central nas éticas de Platão e de
Aristóteles. Em Platão, em sua fase socrática, a epithumía aparece como o desejo que
arrebata os “muitos” porque, ao final, eles não possuem o conhecimento verdadeiro que
os levaria a agir de maneira virtuosa, ética. Em Aristóteles, por sua vez, a epithumía é o
tipo de desejo que nos põe no limite da semelhança com os animais que, embora
desprovidos de razão, também o possuem. E todo o trabalho ético será então de como
controlá-la, de como não agir por epithumía, pois ao nos deixamos ser arrebatados pela
força desse desejo nos assemelharíamos aos animais, uma vez que a epithumía encontra-
a parte racional da alma, seja pelo exercício da temperança para não permitir que ela nos
arrebata. A epithumía é, por sua vez, um desejo, a partir dessa psicologia moral grega,
que tem como objeto, dentre outras coisas, o nosso impulso pelo sexo.
Segundo Foucault, a ética grega clássica é vivida sob o regime dos aphrodísia, no
momento, da medida enfim que se deve alcançar para melhor servir-se, ao final das
contas, dos prazeres que deles advém. Sob eles, em seu funcionamento, estavam
conjugados “corpo, alma, prazer, desejo, sensação” formando o que Foucault chama de
145
Sobre esse ponto ver, especialmente: ARISTÓTELES. Ética nicomaquéia, livros III e VII.
101
um “bloco paroxístico”, isto é, um conjunto bastante heterogêneo de elementos em
sujeito de desejo no momento dos séculos I e II d.C. Em Marco Aurélio e Epiteto, por
Primeiro, Foucault observa que “para Epiteto e Marco Aurélio, serei efetivamente
senhor de mim, serei efetivamente puro, a enkráteia estará realizada para mim não
quando, [como] Sócrates, eu puder, desejando Alcibíades, renunciar ao ato sexual com
ele, mas quando não desejar, mesmo que os veja, nem a mais bela mulher nem o mais
oposta à experiência grega. Esse desejo, a epithumía, não será mais alvo da busca de uma
medida de uso, mas de um permanente combate. Em segundo lugar, esse combate irá
instituir uma nova relação a si, ou seja, uma relação permanente do indivíduo com a sua
atividade sexual, que estará desse modo no centro das preocupações da relação ao sexo
E, assim, Foucault poderá firmar uma via nova para a sua história da sexualidade,
a saber, não “uma história da sexualidade que tivesse como fio condutor [a questão]:
como e em quais condições o desejo foi reprimido? Ao contrário, é preciso mostrar como
o desejo, em vez de ter sido reprimido, é um algo que pouco a pouco foi sendo extraído
e emergindo de uma economia dos prazeres e dos corpos; como foi efetivamente extraído
146
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 259.
102
dela; como e de que modo, em torno e a propósito dele, cristalizaram-se todas as
operações e todos os valores positivos ou negativos referentes ao sexo. Foi o desejo que,
sozinho, acabou confiscando tudo o que outrora estava reunido na unidade que era a dos
desejos, dos prazeres e dos corpos.”147 Não se trataria, pois, de uma repressão do desejo,
desejo como aquela que o indivíduo precisava responder previamente para poder ter
acesso, além de todo desejo sexual, à verdade mesma. E foi assim que se viu tecida no
tão característica não só do cristianismo, mas de toda nossa civilização e de todo nosso
modo de pensar.”148 Essa será, ao final de contas, uma das teses fundamentais que
que haviam sido tratados acerca da história do cristianismo no curso do ano anterior. Essa
relação que se constitui, e que será doravante necessária e permanente, entre a relação
147
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 260.
148
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade, p. 143.
103
que o próprio indivíduo constitui consigo mesmo e a verdade, e que terá como elemento
central uma hermenêutica do desejo. Tarefa para a qual o cristianismo primitivo não
cessará de empregar todo o seu aparato institucional, suas interdições e exortações, enfim,
verdade, como vimos acima, que essa hermenêutica teve um nascedouro anterior, mas é
com a experiência do cristianismo que ela ganha um novo sentido e papel na constituição
Foucault a partir dos anos 1980. A quase totalidade do curso Do governo dos vivos, do
doutrinas, e mais pelas práticas que ele inventou e instaurou, e dentre essas, aquelas que
se integram ao que se poderia chamar de uma “história das práticas de si”, e que
interessam, portanto, ao projeto foucaultiano de fazer uma “história das relações a si”;
história essa que releva, por sua vez, como sabemos, os elementos e o modo como as
histórico-filosófico incontornável para Foucault. Tanto assim que ele declara que é “a
partir do momento em que a cultura de si foi tomada pelo Cristianismo, ela foi colocada
essencialmente a epimeleia tôn allôn – o cuidado dos outros – que era o trabalho do pastor.
Mas, uma vez que a salvação do indivíduo é canalizada – ao menos, em parte – pela
104
instituição pastoral que toma como objeto o cuidado das almas, o cuidado clássico de si
suas interdições, Foucault observa que muito pouco mudou no conjunto das leis e
proibições que vigoram nos tratados de moralistas pagãos dos séculos I e II, o que o
cristianismo traz como novidade é, com efeito, no campo propriamente das relações a si,
e essas modificações teriam sido efetuadas por uma nova relação entre subjetividade e
relativamente constante no Cristianismo. Este núcleo é antigo. E ele foi formado antes do
romanas”150 . Mas em que ponto, então, o cristianismo constituiu uma inflexão na história
da subjetividade?
Dentre os elementos que mostram essa inflexão, um dos pontos fundamentais que
vontade pela vontade de outro, é porque devo renunciar a mim, que devo produzir a
trabalhando para essa renúncia a mim.” E mais adiante, ele conclui: “E esse vínculo entre
149
FOUCAULT, M. À propos de la généalogie de l'éthique : un aperçu du travail en cours, Dits et Ecrits,
texto n°326, p. 1228.
150
FOUCAULT, M. Les aveux de la chair, p. 365.
105
cristianismo e que se caracteriza de uma maneira paradoxal pelo vínculo obrigatório entre
verdade que passa a desempenhar um papel também decisivo nessa nova prática de si e
apagamento.
mostra é que, contrariamente ao que se poderia suspeitar, ela não estabeleceu nenhum
amor aos rapazes, a relação aos prazeres enfim –, elas já estavam presentes na moral da
época imperial romana dos séculos I e II e são assim repostas pela moral cristã. Desse
“relação ao sexo” o centro mesmo de gravidade em torno do qual orbitará uma nova
relação a si. Em outras palavras: não nos tornamos sujeitos sexuais senão a partir do
cristianismo.
em “sujeito de desejo”, é através do conhecimento que o sujeito terá de seu próprio desejo
que ele poderá constituir-se a si mesmo. Todo o esforço, emprego de práticas e técnicas,
começa a nascer, e que, como sabemos, fará escola na Modernidade e terá sua
151
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos, p. 280.
152
Na Notícia bibliográfica consagrada à História da sexualidade I e II, da edição Bibliothèque de la
Pléiade, p. 1530, F. Gros, seguindo D. Defert, nos dá preciosas informações sobre o itinerário de pesquisas
de Foucault, ele escreve que “no início dos anos 1979, Foucault relê os primeiros Padres da Igreja. Um
novo projeto então está emergindo: encontrar nos Padres cristãos dos primeiros séculos de nossa era a
elaboração primitiva de um sujeito do desejo. Foucault pretende, portanto, retomar a história da
106
sexualidade, mas fazendo um recuo de uma boa dezena de séculos, para estabelecer ‘uma genealogia do
homem de desejo’. O curso pronunciado no Collège de France em 1980 (Do governo dos vivos) testemunha
essas novas disposições.”
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CUIDADO DE SI E MODERNIDADE
108
“sa vie, singulière comme toute vie réellement subjectivée, a existé, pleinement,
porteuse d’un sens dont la signification et l’usage avaient valeur universelle”.
BADIOU, Alain. Tombeau d’Olivier.
I. Cuidado de si e a Modernidade.
fio condutor para pensar a história da subjetividade que vai da filosofia grega clássica ao
sujeito é a relação entre sujeito e verdade; ele é expressamente formulado por Foucault
já primeira aula do curso. Problema que ele extrai a partir de investigações histórico-
filosóficas que ele fizera nos anos precedentes acerca da história da moral sexual do
Ocidente e cuja experiência dos afrodísias é um exemplo privilegiado por seu alcance
histórico. O cuidado de si que, neste período, é tomado como uma atitude, uma conversão
para si mesmo, e que se efetiva por uma série de exercícios e de técnicas específicas de
uma relação para consigo mesmo, se revela, deste modo, como um capítulo decisivo para
dele decorre. Ele foi também um princípio fundamental que caracterizou a atitude
cristã). O que na cultura helenística e romana se tornou, nas palavras de Foucault, “um
109
princípio geral de toda conduta racional”, e não somente estritamente filosófica, e que
cuidado de si foi presente não só em práticas pagãs, mas também perdurou na prática do
da evocação do princípio do cuidado de si que ele se justifica, sendo assim uma espécie
uma noção, uma prática e também uma instituição. Esta é a recuperação da história da
medida apagou.
No entanto, o cuidado de si, pode soar, à primeira vista, em nosso tempo, como
uma espécie de egoísmo ou individualismo. Ora, devemos lembrar que ele tem seu ápice
exatamente no contexto do nascimento de uma das morais mais austeras que o Ocidente
se de si, ou o voltar-se para si mesmo, tem sua significação precisamente numa prática
austera, num determinado tipo de atenção, e mesmo de vigilância, sobre si mesmo, e que
Na chamada “Idade de ouro” do cuidado de si, nos séculos I e II, uma das
mutações importantes que ele sofre enquanto prática é o de ser uma atividade cujo fim é
a própria relação que o indivíduo estabelece consigo mesmo. Diferente da época clássica
cujo fim do cuidado do si era o governo da cidade – e ele era, portanto, dirigido à elite
153
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 9-10.
154
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 106.
110
político. Um outro ponto é a generalização do cuidado de si como uma prática que visa a
inteira vida do indivíduo, e que se prestava a uma espécie de “arte de viver” e também se
É verdade que Foucault faz, por diversas vezes, digressões ao longo das
um tanto longa, é significativa porque nela Foucault aponta a marca da atualidade de seu
trabalho e, ao mesmo tempo, faz um retrospecto das noções e problemas que até então
investigara em seu itinerário de pesquisa. Este mapa nos dá, pois, uma indicação
privilegiada do papel da noção de “cuidado de si” ao longo desta última fase de sua
trajetória intelectual.
“(...) E talvez nesta série de empenhos para reconstituir uma ética de si, nesta série
de esforços mais ou menos estanques, fixados neles mesmos, neste movimento
que hoje nos leva, ao mesmo tempo, a nos referir incessantemente a esta ética de
si sem, contudo, jamais fornecer-lhe qualquer conteúdo, eu penso que há que se
suspeitar de algo que seria uma impossibilidade de constituir hoje uma ética de si,
quando talvez seja uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável,
se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao
poder político senão na relação de si para consigo. Se vocês quiserem, em outros
termos, o que eu quero lhes dizer é o seguinte: se considerarmos a questão do
poder, do poder político, situando-a na questão mais geral da governamentalidade
– entendida a governamentalidade como um campo estratégico de relações de
poder, no sentido mais amplo do termo, e não meramente político –, entendida,
155
Cf.: FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 79.
111
pois, como um campo estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel,
transformável, reversível –, então, a reflexão sobre a noção de
governamentalidade, penso eu, não pode deixar de passar, teórica e praticamente,
pelo âmbito de um sujeito que seria definido pela relação de si para consigo.
Enquanto a teoria do poder político como instituição refere-se, ordinariamente, a
uma concepção jurídica do sujeito de direito, parece-me que a análise da
governamentalidade – isto é, a análise do poder como conjunto de relações
reversíveis – deve referir-se a uma ética do sujeito definido pela relação de si para
consigo. Isto significa muito simplesmente que, no tipo de análise que desde
algum tempo busco lhes propor, vocês veem que: relações de poder –
governamentalidade – governo de si e dos outros – relação de si para consigo,
tudo isso, constitui uma cadeia, uma trama, e que é aí, em torno destas noções,
que se pode, eu penso, articular a questão da política e a questão da ética. Isso
posto acerca do sentido que pretendo dar a esta análise – que pode lhes parecer
um pouco repetitiva e meticulosa – do cuidado de si e da relação de si para consigo
(...).”156
De início, é preciso ressaltar, o modo como ele põe o problema de seu curso como
marca de seu tempo, da atualidade, e ele o insere no “movimento que hoje nos leva, ao
mesmo tempo, a nos referir incessantemente a esta ética de si sem, contudo, jamais
ele afirma que a tarefa de constituir uma ética de si faz-se urgente e necessária como
156
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito, p. 225 (grifos meus).
112
poder e resistência). Ele contrapõe à esta relação com a governamentalidade, a
análise dessa relação a si que está no cerne dessa ética que Foucault defende como tarefa;
Collège de France. O que lhe permite, portanto, inseri-la num conjunto de noções que,
ele mesmo diz, formam uma cadeia, a saber: “relações de poder –governamentalidade –
aparece na esteira desta cadeia. E, assim, o cuidado de si aparece como podendo fazer
relação a si constituída neste período. Essa nova forma de relação a si é elaborada, por
sua vez, por uma nova relação do sujeito aos prazeres e ao desejo: passa-se de uma forma
A partir desse quadro, e tomando a tensão que Foucault aponta ainda em nossa
dupla função: ele permite identificar essas cesuras e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica
ela associada, ao capturar os seus momentos de inflexão, e assim poder operar igualmente
113
uma dupla recusa: recusa desta moral, e recusa desta forma de subjetividade. E, desse
modo, abre um novo horizonte para que possamos pensar o problema da ética.
114
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