A Produção de Verdades Sobre o Corpo Na Modernidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação

Michel Foucault: a produção de “verdades” sobre o corpo na Modernidade

Bruna dos Santos Leite

Pelotas, 2020.
Bruna dos Santos Leite

Michel Foucault:

a produção de “verdades” sobre o corpo na Modernidade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia, do Instituto de
Filosofia, Sociologia e Política, da Universidade
Federal de Pelotas, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestra em Filosofia.

Orientadora: Profa. Dra. Sônia Maria Schio

Pelotas, 2020.

Bruna dos Santos Leite


Universidade Federal de Pelotas / Sistema de Bibliotecas
Catalogação na Publicação

L533m Leite, Bruna dos Santos


Michel Foucault : a produção de “verdades” sobre o
corpo na modernidade / Bruna dos Santos Leite ; Sônia
Maria Schio, orientadora. — Pelotas, 2020.
110 f. : il.

Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação


em Filosofia, Instituto de Filosofia, Sociologia e Política,
Universidade Federal de Pelotas, 2020.

1. Foucault. 2. Corpo. 3. Poder. 4. Discurso. 5. Verdade.


I. Schio, Sônia Maria, orient. II. Título.
CDD : 100

Elaborada por Simone Godinho Maisonave CRB: 10/1733


Michel Foucault: a produção de “verdades” sobre o corpo na Modernidade

Dissertação aprovada, como requisito parcial, para obtenção do grau de Mestra em


Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia, Sociologia
e Política, Universidade Federal de Pelotas.

Data da Defesa: 04/03/2020

Banca examinadora:

Profa. Dra. Sônia Maria Schio (Orientadora)


Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Profa. Dra. Kelin Valeirão (UFPEL)


Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL)

Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz (UNISINOS)


Doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto (Espanha)
À Albertina (in memoriam),
Lúcia,
Loiva,
Camila, Maria
e Ísis,
as mulheres da minha vida.
AGRADECIMENTOS

Inicialmente, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES) pelo financiamento deste estudo, por meio da concessão da
Bolsa de Mestrado pelo período de 24 meses. Sem este auxílio, a pesquisa teria
encontrado dificuldades, bem como teria demorado mais tempo que o esperado para
ser finalizada. Cabe salientar a importância deste subsídio nas pesquisas em Ciências
Humanas, em especial no cenário atual, devido aos constantes cortes de bolsas de
pesquisa e da diminuição de recursos que afetam o Ensino Público Superior Brasileiro.
Agradeço à Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia (PPG-FIL), ao Instituto de Filosofia, Sociologia e Política
(IFISP), ao corpo docente do PPGFilosofia e à Secretária Mirela Morais, pelo auxílio
e orientações, pela atenção e cordialidade nas reuniões de Colegiado, enquanto
Representante Discente no Colegiado do PPGFil, em 2019, e também pela
colaboração no desenvolvimento das atividades discentes.
Agradeço à Profa. Sônia Schio, minha orientadora, pessoa que admiro e tenho
muito carinho, respeito e gratidão, pelas orientações, pelas aulas, pela pronta
disponibilidade para ler meus textos (mesmo que em cima da hora), pelas palavras de
apoio, essenciais para minha segurança, seja nos textos, seja na vida acadêmica ou
na vida profissional. Agradeço por me mostrar que “a vida não cabe no Lattes”.
Agradeço à minha Banca de Qualificação, composta pelo Prof. Clademir Araldi
e pela Profa. Kelin Valeirão: pela disponibilidade, pelos comentários, questões e
sugestões, que auxiliaram na condução da pesquisa e da escrita. Em especial,
agradeço à Profa. Kelin, por me acompanhar desde a minha chegada, pelos livros
emprestados, pelas aulas, por me dizer “te vira” quando necessário, e por ser uma
professora que admiro e tenho muito carinho.
Agradeço ao Prof. Juliano do Carmo pela confiança em meu trabalho, pelo
carinho e afeto, por me incentivar a conquistar meu espaço e a continuar a estudar. E
também por ser um professor e chefe querido; um amigo que admiro.
Agradeço aos integrantes do Grupo de Estudos Foucault (GEF) e do Grupo de
Estudos Hannah Arendt (GEHAr): pelas indicações de leituras e filmes, pelas
discussões. Algumas questões presentes nessa pesquisa sugiram ou foram
explicadas nesses espaços.
Agradeço aos colegas que estiveram comigo nesta jornada, pelas conversas,
pelas indicações de leituras, pelos cafés e cervejas, pelos abraços e pela parceria.
Em especial, aos colegas que viraram amigos: Lauren, Lucilene, David, Antônio
(Chico Bento), Arlindo, Rossana e William, pois com vocês a vida ficou mais leve,
alegre e divertida.
Agradeço aos amigos e amigas que, mesmo estando longe estiveram perto.
Obrigada por compreenderam as ausências e não deixar que isso enfraquecesse a
nossa amizade.
Agradeço ao meu pai, Pedro, e à minha mãe, Loiva, por me apoiarem e me
incentivarem, por acreditarem em mim, por respeitarem as minhas escolhas, por me
abraçarem e por, muitas vezes, tirarem o peso dos meus ombros. Eu amo vocês.
Agradeço ao meu irmão, Frederico, e às minhas irmãs, Camila e Maria, por
estarem sempre do meu lado, me aconselhando e “segurando a onda”, por me
amarem e me mostrarem que vocês estarão comigo sempre que eu precisar. Amo
vocês.
Agradeço à minha avó, Lúcia, por me ensinar que eu podia ser uma mulher
forte e batalhadora, por reclamar quando eu fico muito tempo sem ligar e por sempre
desejar o melhor para mim. Agradeço ao meu avô (in memoriam).
Agradeço ao meu companheiro, Marcelo, pelas longas conversas depois do
almoço, pelos cafés e louças lavadas; por me ouvir falar sobre a Dissertação todos os
dias nesses últimos dois anos; por ser paciente e por contribuir com perguntas e
críticas. Agradeço por me ajudar a melhorar como ser humano e por seguir esse
caminho comigo. Te amo e obrigada por tudo.
Evito olhar para baixo, para meu corpo, não tanto porque
seja vergonhoso ou impudico mas porque não quero vê-lo. Não
quero olhar para alguma coisa que me determine tão
completamente.

(“O Conto da Aia”, Margaret Atwood)


RESUMO

LEITE, Bruna. Michel Foucault: a produção de “verdades” sobre o corpo na


Modernidade. Orientadora: Sônia Maria Schio. 2020. 110f. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) – Instituto de Filosofia, Sociologia e Política, Universidade Federal de
Pelotas, Pelotas, 2020.

A presente pesquisa tem como base o pensamento político do filósofo francês Michel
Foucault (1926-1984), no que tange à relação entre poder-corpo-discurso-verdade. O
corpo é marcado pelas relações de poder, que o circunscrevem e o marcam,
apresentando as formas como os indivíduos se relacionam com as regras e as
normas: o corpo existe em sua temporalidade histórica. Nesta perspectiva, objetiva-
se analisar de que maneira, a partir da Modernidade (séc. XVII-XIX), a relação entre
poder e discurso ocasionou a produção de determinadas “verdades” que visavam ao
controle do corpo e do comportamento da população. Conforme o autor, na Europa,
neste período, ocorreram modificações nas relações de poder, que ocasionaram o
surgimento do “biopoder” (poder que se exerce sobre a vida). Nesta perspectiva,
considera-se que o discurso está no fundamento do biopoder, constituindo as
limitações sobre as ações dos indivíduos, por meio de processos de normalização.
Esses procedimentos são realizados pelos dispositivos de biopoder, os quais são
exercidos por meio das disciplinas e das biopolíticas. Este poder centrou-se no
controle do corpo e do comportamento, objetivando que os indivíduos se sujeitem ao
poder, sem que resistam. Entretanto, a pesquisa expõe que Foucault inclui a liberdade
como condição para a existência de relações de poder, caracterizando o dinamismo
dessas relações. Desse modo, a liberdade enquanto prática ético-política mostra-se
importante na constituição dos indivíduos enquanto sujeitos submetidos aos
dispositivos de poder, propiciando aos indivíduos as práticas de liberdade. Por este
motivo, os dispositivos de poder não conseguem se efetivar plenamente nas relações
interpessoais: a liberdade permite que os indivíduos não se sujeitem completamente,
podendo constituir maneiras próprias de relacionar-se consigo mesmo, com seu corpo
e com os outros sujeitos.

Palavras-chave: Foucault. Corpo. Poder. Discurso. Verdade.


ABSTRACT

LEITE, Bruna. Michel Foucault: the production of “truths” about the body in Modernity.
Advisor: Sônia Maria Schio. 2020. 110f. Dissertation (Masters in Philosophy) – Institute
of Philosophy, Sociology and Politics, Federal University of Pelotas, Pelotas, 2020.

This research is based on the political thought of the french philosopher Michel
Foucault (1926-1984), regarding to the relationship between power-body-discourse-
truth. The body is brand by power relations, which circumscribe and mark it, presenting
the ways in which individuals relate to rules and norms: the body exists in its historical
temporality. In this perspective, the objective is to analyze how, from Modernity (17th-
19th century), the relationship between power and discourse caused the production of
certain “truths” that aimed the control of the body and population's behavior. According
to the author, in Europe, in this period, there were changes in power relationships,
which led to the emergence of “biopower” (power that is exercised over life). In this
perspective, the discourse is at the foundation of biopower, constituting the limitations
on the actions of individuals, through normalization processes. These processes are
realized by biopower dispositifs, which are exercised through disciplines and
biopolitics. This power was centered on the control of the body and behavior, aiming
that individuals subjected themselves to power, without resisting it. However, this
research exposes that Foucault includes freedom as a condition for the existence of
power relations, characterizing the dynamism of these relationships. Thus, freedom as
an ethical-political practice shows to be important in the constitution of individuals as
subjects subjected to power dispositifs, providing to individuals the practices of
freedom. For this reason, the power dispositifs are not able to be fully effective in
interpersonal relationships: freedom allows individuals not to be completely submissive
and may constitute their own ways of relating to themselves, their bodies and other
subjects.

Keywords: Foucault. Body. Power. Discourse. Truth.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Criança aprendendo a andar .......................................................... p. 54

Figura 2 Jantar de celebração da burguesia ................................................. p. 54

Figura 3 Camponeses ................................................................................... p. 55

Figura 4 Vendedores de peixe ...................................................................... p. 55

Figura 5 A chegada do bebê ......................................................................... p. 56

Figura 6 Higiene e intimidade feminina ......................................................... p. 56


SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................. 12

1. O discurso como fundamento do biopoder e das práticas sociais......................... 22

1.1 O surgimento do biopoder na Modernidade da Europa Ocidental .................... 23


1.2 Disciplina: a fabricação de corpos dóceis (corpo-máquina) ............................. 31
1.3 Biopolítica: controle do comportamento e gestão da vida das populações
(corpo-social).......................................................................................................... 37
1.4 O biopoder está fundamentado nos discursos ................................................. 41
2. O corpo e a produção de “verdades” ..................................................................... 46

2.1 O corpo no pensamento de Foucault ............................................................... 47


2.2 O corpo no centro dos dispositivos de poder modernos................................... 52
2.3 A produção de “verdades” e a formação de discursos ..................................... 64
2.4 A normalização dos corpos .............................................................................. 73
3. A sujeição ao poder e as práticas de liberdade ..................................................... 77

3.1 O poder na perspectiva de foucault .................................................................. 78


3.2 A relação entre a liberdade e o poder .............................................................. 84
3.3 As práticas de liberdade ................................................................................... 87
3.4 A subjetividade do sujeito e as possibilidades de exercício da liberdade ......... 96
Considerações finais ............................................................................................... 100

Referências ............................................................................................................. 104


12

INTRODUÇÃO

A existência humana ocorre por meio de um corpo. O corpo é a possibilidade


de existência de cada um. É ele que propicia aos indivíduos cheirar aromas, provar
comidas dos mais variados sabores, sentir o vento frio na pele e ouvir o canto dos
pássaros. Leva-se o corpo para passear, para trabalhar, para ir ao médico, para
dançar. Os indivíduos, de uma certa maneira, são seus corpos. E, por este motivo, há
“obrigações” com o corpo que devem ser realizadas: é preciso banhá-lo; arrumar os
cabelos, a barba e os pelos; deve-se alimentá-lo; colocá-lo para descansar e dormir;
exercitá-lo para deixá-lo mais bonito, mais forte, com mais vigor; aumentar sua saúde
com remédios, vitaminas, fitoterápicos, chás, ervas, cirurgias plásticas e outros
procedimentos invasivos. Os indivíduos compram roupas para o corpo; o enfeitam
com tatuagens, piercings, brincos, pulseiras, anéis, colares, chapéus, bonés, fitas. O
corpo mostra o “estilo” de cada um, pois se acredita que tudo aquilo que se faz com o
corpo é resultado de escolhas, pois os indivíduos são “livres”.
Antes de questionar se realmente há liberdade e se é possível deliberar
livremente sobre as coisas que são relativas ao corpo, é necessário se compreender
como esse corpo foi constituído e entendido ao longo da História da Humanidade,
quais foram as modificações físicas (e conceituais) e como (ou porque) elas
ocorreram. Tal questionamento é importante para entender de que maneira os
indivíduos se constituem como pessoas que vivem em sociedade e que mantém
relações umas com as outras. Isso porque as interações ocorrem por intermédio do
corpo: precisa-se do corpo para realizar as ações, bem como se precisa dele para
concretizar as relações interpessoais estabelecidas.
Sendo assim, o corpo é entendido como o meio que possibilita a existência
humana. Entretanto, essa existência é marcada por uma série de relações sociais:
desde o nascimento, o indivíduo está inserido em uma sociedade, em um período
específico da História e do tempo, que possui suas características próprias. E essas
características moldam a forma como o corpo vai aparecer e se mostrar, bem como
se constituem as regras e as normas que o circunscrevem. Ou seja, o corpo irá
apresentar as características próprias de seu tempo. Como resultado, há a formação
de determinadas maneiras pelas quais os indivíduos devem se relacionar com seu
13

próprio corpo. E se espera que cada um cumpra aquilo que é pretendido. Isso porque
o corpo é circunscrito por dispositivos de poder, que visam ao controle das condutas
sociais.
De acordo com o Filósofo Francês Michel Foucault (1926-1984), na
Modernidade (séc. XVII-XIX) constituiu-se uma forma de poder, que configurou as
relações entre os indivíduos de modo que o ele fosse exercido em dois níveis: (1) nas
macrorrelações de poder, entre os indivíduos, o Estado1 e as instituições; e (2) nas
microrrelações de poder, que ocorrem apenas entre indivíduos. Em sua análise, o
autor afirma que o “biopoder” – isto é, o poder que é exercido sobre a vida – foi
aplicado sobre o corpo, com o objetivo de controlá-lo para que o indivíduo se tornasse
obediente aos comandos e às ordens vindos do exterior (Estado, escola, religião,
família, etc.). Isso possibilita que o exercício de poder conduza o comportamento dos
indivíduos e as interações sociais entre eles.
O poder, para Foucault (1995, 2010a, 2013a), é algo que existe somente em
exercício, ou seja, apenas enquanto os indivíduos estão em relação. O poder
circunscreve as ações dos sujeitos por meio de mecanismos, dispositivos, estratégias
e técnicas. Os dispositivos e as estratégias operam em um determinado nível na vida
dos sujeitos (comportamento), enquanto os mecanismos e as técnicas funcionam em
outro (corpo).
As “técnicas” de poder podem ser compreendidas como os procedimentos para
a realização de uma determinada tarefa ou ação. Neste sentido, por exemplo, quando
Foucault, em Vigiar e Punir, se refere às “técnicas”, ele está expondo um tipo de poder
aplicado ao corpo, que visava a controlá-lo quase como se fosse uma máquina. As
técnicas de poder atuam diretamente sobre os corpos dos sujeitos e estão
intimamente ligadas à disciplina. Cada técnica objetiva um fim: uma técnica para que
os sujeitos aprendam a caminhar; outra para que escrevam com letra cursiva; outra
para que aprendam o volume correto da voz; outra para que se sentem de

1 Foucault aborda a questão do Estado sob outra perspectiva, quando comparado à Tradição da
Filosofia Política, que o definem como necessário para a existência da liberdade e da segurança entre
os indivíduos. Nos artigos Foucault estudo a razão do Estado (FOUCAULT, 2015, p.310-315) e “Ownes
et singulatim”: uma crítica da razão política (FOUCAULT, 2015, p.348-378), ele explica a formação do
Estado, apresentando sua maneira própria de análise, isto é, que se afasta das que foram realizadas
até então, centrando-se nas relações que não estão intermediadas pelo Estado. No curso Em defesa
da sociedade, ele contrapõe-se ao autores da Teoria Política Clássica, como Maquiavel e Hobbes,
afirmando que a teoria da soberania, tal como descrita pelos autores, não é suficiente para explicar as
mudanças que ocorreram a partir da Modernidade (FOUCAULT, 2010a).
14

determinada maneira; outra para que se vistam conforme o estabelecido socialmente,


etc.
Os “mecanismos” de poder são formados por um conjunto de técnicas que
atuam sobre o sujeito pretendendo um determinado fim. Por exemplo, um conjunto de
técnicas disciplinares são utilizadas nas escolas para que os alunos fiquem sentados
e permanecem “comportados” durante as aulas: são os mecanismos disciplinares que
almejam à “docilização” do aluno; um conjunto de técnicas disciplinares exercidas
sobre as mulheres burguesas formaram os mecanismos heteronormativos da
sociedade patriarcal moderna; o conjunto de técnicas disciplinares que pretendiam a
“cura” das doenças mentais formaram os mecanismos da normalização.
As técnicas e os mecanismos de poder, no entanto, apenas funcionam e se
sustentam na vida dos sujeitos porque estão conectados às “estratégias” de poder.
Foucault (1995, p. 247, grifos do autor) afirma que há três sentidos corretos para o
termo “estratégia”:

[1] Primeiramente, para designar a escolha dos meios empregados para se


chegar a um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um
objetivo. [2] Para designar a maneira pela qual um parceiro, num jogo dado,
age em função daquilo que ele pensa dever ser a ação dos outros, e daquilo
que ele acredita que os outros pensarão ser a dele; em suma, a maneira pela
qual tentamos ter uma vantagem sobre o outro. Enfim, [3] para designar o
conjunto dos procedimentos utilizados num confronto para privar o adversário
dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta; trata-se, então, dos
meios destinados a obter a vitória.

Com relação ao primeiro sentido apresentado por Foucault, as “estratégias”


atuam de modo a organizar e dispor os diferentes mecanismos, por meio de
planejamento dos recursos, visando a máxima utilização e eficiência dos mecanismos
de poder implementados. Nesta perspectiva, o autor indica que são essas as
“estratégias de poder”, pois se referem “[...] ao conjunto dos meios operados para
fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder” (FOUCAULT, 1995, p. 248).
Este tipo de estratégia tem por objetivo constituir modos de ação sobre uma ação
possível. Assim, as estratégias administram as situações e as condições, tornando-as
mais favoráveis na obtenção de determinados resultados. Além disso, elas estão
sempre passíveis de ajustes e adaptações.
O “dispositivo” é o que está no fundamento das estratégias, dos mecanismos e
das técnicas. De acordo com Castro (2009, p. 124), “Foucault falará de dispositivos
disciplinares, dispositivo carcerário, dispositivos de poder, dispositivos de saber,
15

dispositivo de sexualidade, dispositivo de aliança, dispositivo de subjetividade,


dispositivo de verdade, etc”. Agamben (2005) afirma que o termo “dispositivo” tem
uma função técnica no pensamento de Foucault, não adquirindo um sentido particular,
mas funcionando como uma rede que organiza os elementos do poder. Nas palavras
de Foucault (1994, p. 300, tradução nossa),

[...] o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe


que se trata de uma certa manipulação das relações de poder, de uma
intervenção racional e concreta nessas relações de força, que é para
estabilizá-las, utilizá-las. O dispositivo é, portanto, sempre parte de um jogo
de poder, mas sempre vinculado também a um ou aos limites do
conhecimento que dele decorrem, mas que também o condicionam. Este é o
dispositivo: as estratégias de relações de poder que suportam tipos de
conhecimento e são apoiadas por eles. [2]

Complementa Revel (2005) que, ao se concentrar nas formas como o poder


circula entre os indivíduos, Foucault expõe a relevância dos dispositivos em seu
pensamento. Para a autora, os dispositivos “[...] são, por definição, de natureza
heterogênea: trata-se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de
táticas moventes [...]” (REVEL, 2005, p. 39). Além disso, Castro (2009) explica que o
dispositivo se configura enquanto rede de relações que se estabelecem entre os
elementos que o compõe, constituindo também a natureza que forma a ligação entre
esses elementos. A função de cada dispositivo é definida no momento de sua
constituição, determinando os pilares que formaram as estratégias, os mecanismos e
as técnicas utilizadas. Neste sentido, compreendemos que o dispositivo é a base que
sustenta as estratégias, bem como é no dispositivo que o discurso aparece.
Há uma dinâmica que permite a alternância do poder entre os indivíduos, como
se fosse um jogo. Dessa forma, as relações estão em constante transformação e
adaptação, ocasionando a instabilidade. Mesmo que essa dinâmica possa causar
tensão nas relações, elas acabam elaborando as regras de conduta, formando a
moralidade3, influenciando os costumes, constituindo as tradições, os papéis e as

2 No original: “[...] le dispositif était de nature essentiellement stratégique, ce qui suppose qu’il s’agit là
d’une certaine manipulation de rapports de forces, d’une intervention rationnelle et concertée dans ces
rapports de forces, soit pour les développer dans telle Direction, soit pour les bloquer, ou pour les
stabiliser, les utiliser. Le dispositif est donc toujours inscrit dans um jeu de pouvoir, mais toujours lié
aussi à une ou à des bornes de savoir, qui em naissent mais, tout autant, le conditionnent. C’est ça, le
dispositif: des stratégies de rapports de forces supportant des types de savoir, et supportés par eux.”
3 Em História da Sexualidade 2, Foucault apresenta duas definições sobre a moral: “Por ‘moral’

entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por
intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as
Igrejas, etc. [...] pode-se chamar ‘código moral’ esse conjunto prescritivo. Porém, por ‘moral’ entende-
16

demais práticas sociais. Neste sentido, o corpo é dinâmico, assim como as relações
de poder. Assim, quando os mecanismos de poder se modificam, o mesmo ocorre
com a relação entre indivíduo e seu corpo. Isso porque o corpo apresenta a
subordinação e as rupturas do indivíduo com os dispositivos de poder. O corpo
espelha as assimilações do indivíduo sobre si e sobre a sociedade em que vive.
Sob esta perspectiva, tendo como base o pensamento político de Foucault, a
investigação foi realizada a partir de uma possível reposta a uma pergunta-problema
e seus desdobramentos em hipóteses específicas, que permiti a articulação entre os
principais conceitos que norteiam a pesquisa: poder, corpo, discurso e verdade. Na
hipótese geral, a proposição é a de que, a partir da Modernidade, o biopoder se
configurou como a principal forma de disciplinar o corpo visando a reduzir a resistência
ao poder. As hipóteses específicas afirmam: (I) o biopoder está fundamentado em
discursos que determinam as maneiras de agir dos indivíduos; (II) os discursos,
surgidos a partir da Modernidade, produziram “verdades” que objetivam a
normalização dos corpos; (III) a normalização dos corpos conduz o comportamento
dos indivíduos para que não resistam, o que não é possível devido à necessidade de
liberdade nas relações de poder.
As obras de Foucault fundamentais são A Ordem do Discurso, Vigiar e Punir,
História da Sexualidade volumes 1 e 2. Os cursos Em Defesa da Sociedade,
Segurança, Território, População, Nascimento da Biopolítica, O Governo de Si e dos
Outros e A Coragem da Verdade, bem como das coletâneas Microfísica do Poder e
alguns volumes da edição brasileira de Ditos e Escritos são relevantes para o estudo.
Utiliza-se também os outros estudos e entrevistas de Foucault, bem como as obras
de comentadores, que suplementam a argumentação.
O método de abordagem utilizado foi o dialético, que consiste na investigação
dos conceitos, observando-se as modificações históricas, indicando os pontos de
alteração e atualização, bem como os silenciamentos do autor. Complementarmente,
o método hermenêutico, nos auxilia a observar como o autor interpreta as realidades
nas quais os conceitos aparecem e foram desenvolvidos. Desse modo, na

se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhe são
propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente
a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição;
pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores” (FOUCAULT, 2012b, p. 33-34). A
discussão sobre a moralidade adquire relevância quando relacionada às práticas de liberdade reflexiva,
com base na ética, e aos modos de sujeição aos quais os indivíduos estão circunscritos, abordado no
cap. 3.
17

averiguação das hipóteses, expõe-se os pontos de aproximação e distanciamento


com a perspectiva investigada (PAVIANI, 2009; SCHIO, 2019). Além de apontar
considerações ou conclusões que podem contribuir para as pesquisas que estão
sendo realizadas (PAVIANI, 2009). Entretanto, uma observação se faz necessária:
este estudo não objetiva descobrir as estruturas nas quais se fundamentaram as
relações de poder, mas investigar de que maneira essas relações interagem e se
funcionam no cotidiano, bem como se o que resulta dessas interações pode ser visível
no corpo. Em outros termos, como o poder é aplicado no cotidiano das pessoas, ainda
que elas não o percebam, organizando suas condutas e seus modos de pensar e de
agir.
Como método de procedimento, que complementam os de abordagem, foi
utilizado o histórico (LAKATOS; MARCONI, 2008). A abordagem histórica permite
compreender, por meio da contextualização, de que modo ocorrem as relações entre
as instituições e os indivíduos, averiguando os costumes e as maneiras de viver em
sociedade, aclaradas pelos exemplos, que são inúmeros. Assim, será possível expor
os modos como o biopoder articula seus dispositivos sobre a vida dos sujeitos4, de
que maneira seus mecanismos perduram até a atualidade e como ocorre a relação
entre poder e liberdade.
No primeiro capítulo, a hipótese a ser investigada afirma que o biopoder
determina as maneiras de agir dos indivíduos por meio de discursos que o
fundamentam. Nesse contexto, o estudo expõe como, na Europa Ocidental, surgiu um
tipo específico de exercício de poder, denominado por Foucault como biopoder, que
foi inaugurado no período da Modernidade (séc. XVII-XIX). Tal poder objetiva o
controle do corpo por meio de processos individualizantes, que disciplinam os gestos
e as ações dos sujeitos. Além disso, esse poder também é regulamentador e conduz
as práticas sociais hodiernas. Foucault indica que o discurso fundamenta esses
mecanismos de poder, estando na base da constituição dos dispositivos de poder.
Desse modo, o corpo está inserido em uma rede de controles e de dispositivos que o
controlam, com base em discursos que gerenciam as práticas sociais.
No capítulo seguinte, a hipótese aborda os discursos que, surgidos na
Modernidade, produziram “verdades” com o objetivo de “normalizar” os corpos. A

4A referência aos “sujeitos” trata sobre os indivíduos que estão submetidos às relações de poder, ou
seja, aqueles que não estão em exercício de poder. A relação do sujeito com o poder percorre toda
exposição, e se aprofunda no cap. 3.
18

partir da afirmação de que o biopoder tem o discurso como base que orienta as
interações dos indivíduos, determinando aquilo que é “correto” ou “bom”, pode se
compreender de que modo ocorre a produção de verdades, bem como se formam os
discursos que resultam desse processo. Averígua-se, ainda, a articulação entre as
verdades e as formas de exercício de poder, e como se estabelecem verdades que
sejam confiáveis para guiar as ações.
A verdade está intimamente ligada aos dispositivos de poder, pois a produção
de discursos verdadeiros é realizada no interior desses dispositivos. Dito de outra
maneira, os dispositivos formam verdades que funcionam como regras pelas quais os
sujeitos devem se orientar e obedecer. As verdades são produtos de múltiplas
coerções exercidas sobre os indivíduos, visando a confirmar as justificações sobre a
maneira como as relações de poder se organizam na sociedade.
Além disso, a produção de verdades tem como objetivo a normalização dos
corpos. O conceito de “normalização”, neste momento, torna-se central, bem como as
características e os aspectos da sociedade de normalização indicados por Foucault,
que nos apresentam a sujeição dos indivíduos como um dos primeiros efeitos do
biopoder. As análises empreendidas pelo autor indicam que as relações entre os
indivíduos, embora ocorram em uma esfera privada, estão profundamente conectadas
aos macros sistemas de poder. Os dispositivos, ao operarem sobre as relações
interpessoais, definem as maneiras sob as quais os sujeitos elaboram os significados
e os sentidos de suas ações em um âmbito social. Isso implica também nos modos
como eles se relacionam com o próprio corpo, que é perpassado pelos dispositivos
do biopoder. O acesso a essas formas pré-estabelecidas são comunicadas aos
sujeitos por meio de “discursos verdadeiros”, que estão alinhados aos dispositivos de
poder e, por este motivo, aparentam ser inquestionáveis e imutáveis. O resultado
disso é que os corpos se “normalizam”: os indivíduos entendem que sua forma de
viver e apresentar-se no mundo tem que estar adequada ao que está estabelecido.
Sob esta perspectiva, um exemplo interessante é que, no século XVII, as
mulheres usavam longos vestidos, que acentuavam o quadril e enfatizavam os seios,
enquanto os reis usavam calças apertadas e vestidos curtos, além de longas capas
que acentuavam a largura dos ombros (CORBIN et.al., 2008). Podemos verificar que
várias modificações ocorreram em poucos séculos, quando comparado com a
atualidade, na qual as mulheres se vestem com calças apertadas e vestidos curtos, e
os governantes, em geral, usam ternos e gravatas. Por este motivo, o corpo expõe a
19

materialidade (ou efeito) da produção de verdade, formando ele mesmo um discurso


próprio que posiciona o indivíduo no mundo.
No terceiro capítulo, expomos como a normalização dos corpos conduz o
comportamento dos indivíduos para que se sujeitem às técnicas de poder, isto é, para
que não resistam. Neste sentido, a analítica do poder em Foucault é importante para
que se entendam as formas pelas quais o poder opera nas vidas dos indivíduos e em
quais níveis ele se insere. O autor afirma que a liberdade é a condição para a
existência das relações de poder, incluindo-a como um elemento que possibilita a
existência destas tal como ele as entende: como relações que estão propensas a
modificações. A liberdade, em Foucault, aparece sob duas perspectivas, pois o autor
atualiza suas interpretações no decorrer de sua vida. A primeira, sob o ponto de vista
político, como atos de resistência, e a segunda como prática ética.
Nos anos 1970, ele abordou a liberdade de modo “negativo”, ou seja, a partir
do estudo das relações de poder que cerceiam as ações dos indivíduos. Para tanto,
ele afirma que há uma “margem de liberdade”, característica do próprio dinamismo
resultante do jogo de forças do poder. Tal dinâmica, que é oscilante, gera uma tensão
entre os indivíduos, ainda que os mesmos não a percebam. Isso significa que o poder
sempre encontrará resistência: porque o indivíduo submetido poderá,
constantemente, tencionar a relação, e até mesmo modificá-la. Desse modo, é
relevante repensar a interlocução entre o sujeito e o poder, buscando responder como
ocorrem tais resistências.
A liberdade permite um espaço de ação aos indivíduos, momento em que eles
se tornam agentes de si (ativos) e resistem. Nesse contexto, é somente entre
indivíduos livres que os mecanismos de poder poderão operar. Conforme Foucault
(1995), uma vez que a liberdade é suprimida dos sujeitos, as relações se configuram
de outra forma, que modificam os dispositivos, acarretando a inexistência de
dinamismo no jogo de poder. A liberdade, como condição ao poder, configura a
resistência como um modo de prática de liberdade.
Nos anos 1980, a liberdade foi tratada por Foucault como uma prática ética,
resultante da relação dos sujeitos consigo mesmos, por meio da reflexão. Em uma
aproximação com Kant, ele apresenta a possibilidade da ação ética enquanto
expressão de atos de liberdade. Assim, a problematização acerca das possibilidades
dos indivíduos exercerem a liberdade sobre os próprios corpos se mostram
incontornável. Isto é, as formas como os indivíduos podem se constituir enquanto
20

sujeitos livres. A análise do biopoder e da sua articulação com o discurso apresenta o


modo no qual corpo está circunscrito aos dispositivos de poder que incidem sobre os
indivíduos.
Neste sentido, a identidade do indivíduo é constituída a partir das relações que
ele estabelece: com outras pessoas; com o ambiente no qual habita e circula; com as
experiências que vivencia; com as compreensões que apreende sobre o mundo e
sobre si; com as relações de poder e com os efeitos que lhe são produzidos em seu
corpo. Assim, o corpo é uma produção cultural5, social e (também) individual, que se
manifesta na relação do sujeito consigo mesmo, na assimilação das normas, dos
costumes, das regras, das proibições e das técnicas de poder.
O século XXI iniciou com uma quantidade considerável de manifestações, nas
quais diversos grupos estigmatizados e excluídos questionavam os limites impostos
por estas relações, solicitando ações por parte do Poder Público. Louro (2003) afirma
que essas manifestações são reflexos da intensa agenda dos movimentos sociais, os
quais têm conquistado progressivamente, desde os anos 1980, mais espaços para o
diálogo. Essas ações visavam a obter mudanças nas práticas sociais.
Nesse contexto, as relações entre corpo, gênero e sexualidade, por exemplo,
estão sendo rediscutidas e reanalisadas por meio de pesquisas, de publicações
acadêmicas e não acadêmicas e de conversas públicas. Os estudos apontam para a
necessidade de análises regionalizadas, que devem considerar as diversas variáveis
que compõe o contexto social no qual ocorrem as relações interpessoais, tais como:
a política, a economia, a influência da mídia, a saúde pública, a educação e, também,
os mecanismos de poder que estão atuando sobre essas relações. Pode-se acrescer
a esta conjuntura os estudos que observam a influência que as novas tecnologias de
comunicação exercem sobre as relações com a expansão das redes sociais, as
migrações e os problemas ambientais. E, ainda, como se configuram as novas
relações interpessoais com a virtualização cada vez mais intensa das mesmas. Além
disso, a existência de espaços que promovam conversas sobre as formas de

5 A noção de “cultura” se refere a uma forma mais genérica de compreender este conceito,
considerando que Foucault não explicita este termo. Neste sentido, a cultura é constituída pelos
aspectos formadores de um povo ou sociedade, como as tradições, os costumes, a língua, as relações
sociais e a relação com o meio ambiente. Estes aspectos formadores se diferenciam de uma cultura
para outra, considerando que cada povo se desenvolveu enquanto sociedade de modos distintos. Além
disso, complementa Minayo (2010, p. 31), que a “[...] cultura não é apenas o lugar subjetivo [...] ela é o
locus onde se articulam os conflitos e as concessões, as tradições e as mudanças e onde tudo ganha
sentido, ou sentidos”.
21

expressar as sexualidades e as identidades de gênero sinaliza o impacto dessas


novas tecnologias no cotidiano e nas relações sociais.
Diante deste cenário, estudar as relações entre corpo e poder é indispensável
para examinar a produção de “verdades” como um dos primeiros efeitos do biopoder,
que atua sobre os corpos dos indivíduos por meio do discurso. Compreender o corpo,
entretanto, é uma tarefa complexa: é preciso observá-lo por meio de perspectivas
múltiplas e interconexas, como as sociais, culturais, históricas e filosóficas. A relação
entre discurso e verdade nos indica o percurso para a investigação desses
questionamentos, pois essa relação constitui o fundamento dos dispositivos de poder.
Neste sentido, buscamos expor a maneira intrincada de como o biopoder constitui
determinadas relações de poder, fazendo com que elas se perseverem até a
contemporaneidade.
22

1. O DISCURSO COMO FUNDAMENTO DO BIOPODER E DAS PRÁTICAS


SOCIAIS

Os historiadores, arqueólogos, antropólogos e demais estudiosos da História


da Humanidade, em geral, concordam que os humanos vivem em sociedade desde
os primórdios da sua existência. Primeiramente em pequenos grupos, depois
formando bandos maiores, que constituíram tribos, cada vez com maior número de
indivíduos, chegando às sociedades atuais (séc. XXI) com sistemas de relações
humanas altamente complexas, em quase todo o território mundial. Um modo profícuo
para analisar de que maneira as relações estão se constituindo entre os indivíduos
hodiernamente, é estudarmos o que subjaz e fundamenta essas relações e como elas
se refletem na atualidade.
Numa perspectiva foucaultiana, para tal empreendimento, precisamos observar
os movimentos discursivos e as alterações nas relações de poder ao longo da História.
Para Foucault, são estes os elementos que alicerçam as práticas sociais e as
interações humanas. A partir do pensamento dele, há a problematização do discurso
como fundamento do biopoder, bem como de que forma o discurso determina as
maneiras como os indivíduos agem e interagem socialmente.
Desse modo, o biopoder, segundo ele, recebeu um realce, isto, é uma
valorização e uso, em larga escala, a partir da Modernidade (final do séc. XVII ao séc.
XIX). Os desdobramentos do biopoder, denominados “disciplina” e “biopolítica”
constituíram os controles sobre o corpo e o comportamento. Conforme Foucault, as
práticas surgidas naquela época ainda influenciam e determinam os modos como
agimos e nos relacionamos atualmente. Neste sentido, o discurso se articula com os
dispositivos de poder, objetivando a condução das práticas sociais.
23

1.1 O surgimento do biopoder na Modernidade da Europa Ocidental

Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As
práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência
excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma
tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da
obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos
diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias
mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo
nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”
(FOUCAULT, 2013a, p. 09).

De acordo com Foucault, do final do século XVII ao século XIX, ocorreram


alterações significativas nos modos de vida dos indivíduos, caracterizando a
Modernidade. Castro (2009) teoriza que o pensamento de Foucault apresenta cinco
marcos para o início da Modernidade. Primeiro, por uma perspectiva histórico-política,
a Modernidade inicia com a Revolução Francesa de 1789. Em segundo lugar, a
Modernidade pode ser compreendida a partir de uma perspectiva histórico-filosófica,
que foi inaugurada com Descartes (1596-1650) e Kant (1724-1804). Ainda, conforme
Castro (2017), o terceiro marco da Modernidade, considera a questão epistemológica
da relação poder-saber e inicia com a “invenção” (ou “nascimento”) do homem como
objeto de estudo das Ciências Naturais e Humanas. Isso ocorreu no final do século
XVIII, a partir de uma concepção da “analítica da finitude”, que remete à herança
kantiana do autor.
A quarta perspectiva acerca do início da Modernidade é chamada de
“biopoder”, que é o poder que incide sobre os corpos individualmente, por meio das
“disciplinas”, e é igualmente exercido por dispositivos que visam a regulação do
comportamento social, a “biopolítica”. Por fim, o quinto sentido para a época
denominada Modernidade, presente nas obras de Foucault, se relaciona a uma ação
ou atitude diante da realidade que circunscreve os indivíduos. Nessa perspectiva,
Foucault busca “[...] elaborar a partir de Kant uma interpretação da Modernidade
despojada de todo humanismo, quer dizer, sem pressupor nenhuma definição do que
o homem é ou deveria ser” (CASTRO, 2017, p. 39).
A perspectiva de Foucault sobre a Modernidade como biopoder baliza nosso
estudo, pois é quando os dispositivos de poder focalizam o homem (e seu corpo) como
ponto central de seus mecanismos. A bibliografia produzida pelo autor busca nos
proporcionar uma compreensão mais ampla das novidades surgidas neste período e
24

descritas por ele como a passagem de um poder soberano para uma época de
“biopoder”.
O “biopoder” é um conceito que foi elaborado por Foucault (2010a, 2013a), que
significa “poder sobre a vida”. Segundo o autor, o biopoder surgiu no final do século
XVII na Europa Ocidental, onde estavam ocorrendo diversas modificações
econômicas, políticas e sociais, que se estenderam até o século XIX, marcando um
período de transformação das formas como o poder foi exercido sobre a vida dos
indivíduos, acarretando mudanças nas práticas sociais.
Castro (2009, p. 57-59), ao escrever o verbete “biopoder”, afirma que há dois 6
textos fundamentais de Foucault para a compreensão deste conceito: (1) capítulo V
da obra História da Sexualidade I: a vontade de saber, intitulado Direito de morte e
poder sobre a vida; e (2) a aula do dia 17 de março de 1976, do curso Em Defesa da
Sociedade. Nesses textos, o biopoder aparece como o poder que se exerce sobre a
vida dos indivíduos de duas maneiras. Primeiramente, como “disciplina”, ou poder
disciplinar, que atua sobre o corpo de cada um individualmente. Em seguida, como
“biopolítica”, que visa o controle do comportamento social, agindo por meio de
regulamentações que atingem uma determinada população7.
Reportando à Europa Medieval, recordamos que, até o final do século XVII, o
feudalismo era o modo de organização social predominante na Europa, segundo a

6 Destacamos a nota do tradutor da edição utilizada do Vocabulário de Foucault (CASTRO, 2009), que
inclui na lista de referências do verbete “biopoder” os cursos proferidos no Collège de France nos anos
seguintes: Segurança, Território, População (1977-1978), Nascimento da Biopolítica (1978-1979) e Do
governo dos vivos (1979-1980). Estes cursos foram publicados após a 1ª edição da obra de Castro e,
por esta razão, não constam nas indicações do autor. Contudo, estes cursos foram incluídos na análise
desta pesquisa, considerando que outros autores, como Fontana e Bertani (2010), Machado (2017) e
Fonseca (2011), destacam a importância destes cursos na análise do conceito de biopoder. Em uma
obra posterior, Castro (2017), realiza uma análise mais completa sobre a questão do biopoder, tendo
em vista as recentes publicações dos últimos cursos proferidos por Foucault, abrangendo o estudo dos
cursos supracitados, bem como indicando o acréscimo das conferências realizadas no Rio de Janeiro,
em 1974, publicadas com o título O nascimento da medicina social (FOUCAULT, 2017, p.143-170) e O
nascimento do hospital (FOUCAULT, 2017, p. 171-189).
7 Destacamos que o uso do termo “biopolítica” no pensamento de Foucault apresenta variações.

Quando ele inicia o uso deste termo, nos cursos O nascimento da medicina social e O nascimento do
hospital, em 1974, o faz como sinônimo de “biopoder”. Entretanto, no curso Em Defesa da Sociedade
e em História da Sexualidade I, em 1976, Foucault faz uma distinção conceitual entre “biopoder” e
“biopolítica”, que passa a ser compreendida como uma das acomodações do biopoder, que
complementa a disciplina. Ele utiliza essa distinção também no curso de 1978, Segurança, Território e
População. Entretanto, no ano seguinte, no curso O Nascimento da Biopolítica, 1979, que seria
dedicado ao estudo do conceito, o autor faz uma longa análise do sistema econômico liberal e
neoliberal, abandonando o uso do termo “biopolítica”, passando a referir-se à “governamentalidade”,
que é compreendida como o excesso de governo sobre a vida. Estudos atuais, contudo, salientam a
relevância do termo “biopolítica”, que tem sido estudado por autores que derem sequência ao
pensamento foucaultiano, como por exemplo, Giorgio Agamben, Roberto Esposito e Antonio Negri.
25

acepção mais comum de estudo desse período, oriunda da proposta marxiana de


compreensão da história humana. Isso quer dizer que as microrrelações entre os
indivíduos consistiam nas relações entre senhores feudais (que legalmente eram os
donos da terra) e seus vassalos (que eram aqueles que cuidavam e produziam nas
terras). De acordo com Aquino et.al (1978, p. 28),

[...] o feudo [era] rural, autossuficiente, agrário, e onde todos se submetiam a


um suserano (o senhor feudal). Assim, no século X, os reinos apresentavam-
se fragmentados territorialmente, descentralizados politicamente, e onde o rei
tinha poderes de direito, mas de fato não os exercia.

O feudalismo se fundamentava no sistema da propriedade e da produção, ou


seja, as relações não eram entre indivíduos livres: o senhor feudal comandava porque
possuía a posse das terras, bem como possuía o que nela se produzia e, no limite,
era também “dono” dos outros indivíduos que habitavam no feudo. Isso porque os
vassalos constituíam laços de fidelidade com seus senhores, tendo em vista que estes
os protegiam de saques, roubos e até mesmo invasões de terra (comuns nessa
época). No entanto, todos eles (senhor feudal e vassalos) estavam submetidos ao
poder de um soberano (rei), que tinha sobre eles o direito de morte. Em outras
palavras, o soberano tinha o direito de decidir sobre a vida de seus súditos, bem como
o senhor feudal também tinha o mesmo direito sobre a vida de seus vassalos: quem
exerce o poder permite que o outro viva ou determina sua morte de forma legal8.
O sistema social da época era formado por castas hierarquizadas, impedindo a
mobilidade e ascensão social. Desse modo, havia uma hierarquia social, política e
econômica que funcionava verticalmente, na qual o soberano estava no topo do poder
e seus súditos abaixo, organizados (também hierarquicamente) conforme a casta a
qual pertenciam. Com as mudanças sociais, políticas e, principalmente, econômicas
ocorridas no final do século XVII, Foucault percebe uma transformação nas maneiras
como o poder é exercido sobre a vida dos indivíduos.

[...] Por um processo circular, o desenvolvimento econômico, e principalmente


o agrícola do século XVIII, o aumento da produtividade e dos recursos ainda
mais rapidamente do que o crescimento demográfico por ele favorecido,
permitiram que se afrouxassem um pouco [as] ameaças profundas: a era das
grandes devastações da fome e da peste – salvo alguns recrudescimentos –
encerrou-se antes da Revolução Francesa; a morte começava a não mais

8 Direito consuetudinário: as leis e normas legais não estão necessariamente positivadas em


documentos, pois a legislação baseia-se nos costumes. Neste contexto, os reis possuíam o “direito
divino de governar a nação” (AQUINO et.al, 1978, p. 27).
26

fustigar diretamente a vida. Mas, ao mesmo tempo, o desenvolvimento dos


conhecimentos a respeito da vida em geral, a melhoria das técnicas agrícolas,
as observações e medidas visando a sobrevivência dos homens,
contribuíram para esse afrouxamento: um relativo domínio sobre a vida
afastava algumas das iminências da morte. No terreno assim conquistado,
organizando-o e ampliando-o, os processos da vida são levados em conta
por procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-
los (FOUCAULT, 2013a, p. 154-155).

Em complemento, Aquino et.al. (1978, p. 121) expõe que no período de


transição do feudalismo para o capitalismo

[...] [se] desenvolveu [na Europa] o processo de acumulação de capitais, a


liberação da mão-de-obra, o aperfeiçoamento das técnicas e a ampliação dos
mercados, em particular os externos, com especial destaque para as áreas
coloniais. Essas precondições ocorreram no seio da sociedade feudal que se
desagregava na medida em que se desenvolvia o modo de produção
capitalista, ainda não predominante na Europa Ocidental.

Com o início da industrialização e a instalação das primeiras fábricas, a


necessidade de mão-de-obra constante e crescente apresentou melhores
oportunidades aos indivíduos que trabalhavam no campo do que as relações de
vassalagem. Neste período, por exemplo, a Inglaterra adotou medidas para
industrializar o setor agrícola, alterando a estrutura das propriedades devido ao
cercamento do campo, que resultou na expulsão de diversos camponeses, que
acabavam por migrar para as cidades9. Assim, há um deslocamento de pessoas do
campo para as grandes cidades, gerando um crescimento populacional desordenado
em diversas cidades europeias, como Londres, Paris, Berlim e Roma. Os processos
hoje conhecidos como a industrialização e o capitalismo inicial passaram a configurar
novas relações econômicas e sociais, possibilitando a mobilidade econômica e a
ascensão social para certos grupos (donos de fábricas e comerciantes), o que antes
não era possível.
Neste contexto, o aumento populacional se torna um problema, gerando
necessidades de reformas estruturais nas cidades, como o alargamento de ruas e
vias, a organização de bairros e moradias populares (FOUCAULT, 2008b). Além
disso, o crescimento da população urbana, a falta de saneamento básico e condições

9“Paralelamente às inovações tecnológicas e ao surgimento da indústria fabril nos centros urbanos, no


campo operou-se também a afirmação do capitalismo através da Revolução Agrícola, que envolveu a
adoção de uma série de novos métodos e técnicas de cultivo e criação. A estrutura da propriedade
mudou devido ao cercamento dos campos, acarretando a extinção das terras comunais e a expulsão
dos arrendatários agrícolas. A mão-de-obra liberada no campo engrossou as fileiras do nascente
proletariado industrial” (AQUINO et.al, 1978, p. 126).
27

insalubres de higiene provocaram diversas doenças que se alastraram com rapidez,


como foi o caso da peste10 (séc. XVII) e da varíola (sec. XVIII), ocasionando a morte
de milhares de pessoas (FOUCAULT, 2008b, 2013c).
Foucault (2012b, 2013a) acrescenta a este contexto o crescimento da Pastoral
Cristã e o ingresso da Igreja nas microrrelações sociais, por meio da confissão. Com
isso, se visava controlar os indivíduos e suas relações, através da formação de uma
moralidade cristã reguladora, que definia o que era pecado e o que era permitido.
Desse modo, constituíram-se normas para a convivência social e privada, que
determinavam as formas de viver e como as relações deveriam ocorrer, e ainda
estabelecendo as maneiras como o corpo deveria aparecer.
O corpo, nesta perspectiva, precisava ser controlado, pois representava a força
de trabalho para o capitalismo em ascensão, que estava se consolidando como
sistema econômico. Foucault (2013a) afirma que, desse modo, as práticas sexuais,
como a masturbação e a reprodução, por exemplo, se tornaram preocupações para
as instituições que exerciam poder sobre as pessoas, como a Igreja, a escola, os
hospitais e quartéis. Isso ocorreu porque os indivíduos deviam ser produtivos e, por
este motivo, o corpo devia obedecer determinadas regras, ajustando-se para ser mais
eficiente. Ruiz (2007) indica que essa forma de considerar a vida humana pelo
biopoder é meramente instrumental11, pois a vida é útil apenas na medida em que
produz, e se ela é útil (ou seja, produtiva) é importante e, por este motivo, deve ser
cuidada e treinada. Em outras palavras, a vida passou de “fim” para “meio”. O objetivo
é extrair sua potência produtiva.
Foucault (2013a) expõe que o período em que se inicia a repressão sobre o
sexo, no século XVII, é o mesmo em que o sistema capitalista está em ascensão, bem
como a emergência da classe burguesa, que necessitava impor suas necessidades à
sociedade. Ao relacionar a repressão exercida sobre o sexo com o modo de produção
capitalista, o autor questiona:

[...] se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível com uma
colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora
sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse

10 Foucault, ao abordar a “peste” do século XVII, refere-se à lepra (FOUCAULT, 2013c, p.186-214).
11 Muitos acontecimentos dessa utilização da vida como força produtiva podem ser encontrados na
história. Atualmente, por exemplo, diversos pontos e aspectos da proposta de modificação nas leis
trabalhistas brasileiras, bem como a Reforma da Previdência podem ser entendidos como esse modo
do biopoder em considerar a vida humana como recurso.
28

dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe


permitem reproduzir-se? (FOUCAULT, 2013a, p.12).

A burguesia surge na Europa juntamente com o capitalismo, formada por


indivíduos que possuíam os meios de produção e lucravam com o trabalho daqueles
que vendiam sua força (e seu corpo) em troca de salários que garantiriam suas
sobrevivências. É conclusivo que estes indivíduos (burgueses) não faziam parte da
nobreza, não possuíam hábitos requintados e nem eram eruditos, mas possuíam
riquezas em um momento no qual a nobreza estava em decadência (financeira), pois
não exerciam tarefas que gerassem riquezas. A burguesia era majoritariamente
formada por comerciantes que se beneficiaram das Grandes Navegações 12,
importando e exportando produtos, mercadorias e informações, e ainda pelos
proprietários de fábricas. Com o capitalismo industrial exigindo cada vez mais mão-
de-obra, ao mesmo tempo em que a nobreza estava perdendo riquezas, os burgueses
compravam títulos de nobreza, arranjavam casamentos13 com famílias nobres, por
exemplo, para que pudessem ingressar na política, alterando o cenário político e
econômico europeu. Aponta Foucault (2013a, p. 163) que, em decorrência disso,
criou-se

[...] toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da educação,


da hierarquização social, da prosperidade, e uma longa série de intervenções
permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida quotidiana,
receberam cor e justificação em função de proteger a pureza do sangue e
fazer triunfar a raça.

12 Foucault não aborda a questão das grandes navegações que ocorreram nos séculos XV e XVI e
possibilitaram a expansão do mercantilismo, tendo em vista a colonização das Américas, que
proporcionava novos produtos e mercadorias. No início do século XIX, por exemplo, a Inglaterra foi o
país que mais se beneficiou com a abertura dos portos brasileiros. Para uma análise deste contexto,
sugerimos o capítulo Terras ou dinheiro? (AQUINO et.al., 1978, p. 03-102), e o capítulo A senhora dos
mares (GOMES, 2007, p 182-190).
13 Podemos verificar que isso ocorre até hoje, por exemplo, com o casamento do Príncipe William, da

Inglaterra, com Kate Middleton: uma burguesa, filha de um milionário, cuja origem da família é de
carpinteiros e operários. Ou seja, a família Middleton não fazia parte da nobreza britânica. Os pais de
Kate abriram uma empresa que vendia artigos para festas que lucrou muito, fazendo com que a família
enriquecesse. Desse modo, Kate estudou em escolas da alta classe britânica, aprendendo os hábitos,
cortejos e costumes da aristocracia. Mas apenas com o casamento de Kate com o príncipe William que
a família Middleton passou a integrar a aristocracia. Assim, Kate recebeu o título de Duquesa de
Cambridge. Andersen (2016) afirma que, por insistência da mãe, Kate concordou em dividir o
apartamento em que morava durante a faculdade com o príncipe William e que os dois iniciaram um
romance em seguida, mas que foi realizado um arranjo entre a imprensa e a Coroa, que mantiveram a
relação longe dos noticiários por 2 anos. (ANDERSEN, C. Game of Crowns: Elizabeth, Camilla, Kate,
and the Throne. New York: Gallery Books, 2016).
29

Os burgueses estavam preocupados com as próximas gerações de suas


famílias, em garantir bens, riquezas e patrimônio por meio de herança e alianças
políticas com a nobreza. Com a burguesia ingressando cada vez mais nos ambientes
da nobreza, se criou um novo mercado: os burgueses contratavam professores de
“boas maneiras” para que lhes ensinassem (a eles e aos demais membros da família)
os costumes praticados pela nobreza14. Assim, a burguesia buscava sofisticar seus
hábitos e costumes, criando, inclusive, novas tradições. Destaca Foucault (2013a, p.
137) que

a valorização do corpo deve mesmo ser ligada ao processo de crescimento e


estabelecimento da hegemonia burguesa; mas não devido ao valor mercantil
alcançado pela força de trabalho, e sim pelo que podia representar política,
econômica e, também, historicamente, para o presente e para o futuro da
burguesia, a “cultura” do seu próprio corpo. Sua dominação dependia dele
em parte; não era apenas uma questão de economia ou de ideologia, era
também uma questão “física”.

Outras modificações importantes neste contexto são apontadas por Foucault e


se referem ao sistema de leis, tal como a criação de um sistema judiciário
desvinculado da figura do soberano, mas que está estratificada em diversas camadas,
composta por diversas pessoas, cada uma com uma função específica. O autor afirma
que “um poder dessa natureza [...] não tem que traçar a linha que separa os súditos
obedientes dos inimigos do soberano, [mas que] opera distribuições em torno da
norma” (FOUCAULT, 2013a, p. 157). Além disso, o autor indica outras mudanças, a
exemplo do enclausuramento dos loucos para estudá-los, tratá-los e curá-los (2012a,
2001). Citamos ainda a substituição dos suplícios dos condenados por punições que
os enclausuravam em prisões, privando-os de sua liberdade (2013c); bem como a
consolidação da escola como ambiente disciplinar, que também enclausurava
crianças e jovens, durante boa parte de seu dia, em locais fechados (2013c). Narra
Foucault (2010a, p. 31, grifos nossos) que,

[...] nos séculos XVII e XVIII ocorreu um fenômeno importante: o


aparecimento – deveríamos dizer a invenção – de uma nova mecânica do
poder, que tem procedimentos bem particulares, instrumentos totalmente

14A nobreza tinha por costume a realização de cerimônias, celebrações e festas que tinham rituais de
cortejos e mesuras, que também eram exigidos dos burgueses que estavam presentes. Nesta época
aparecem os “Manuais de Civilidade”, que tem por objetivo ordenar e regulamentar as práticas sociais,
conforme indica Arasse (2008, p. 581, grifos nossos): “[...] as boas maneiras manifestam o primado de
uma cultura urbana – seja ela de corte ou burguesa – e de seus valores, onde as noções tradicionais
de linhagem e de coragem são suplantadas pelas noções de honra individual e educação”.
30

novos, uma aparelhagem muito diferente e que, acho eu, é absolutamente


incompatível com as relações de soberania [15]. Essa nova mecânica de
poder incide primeiro sobre os corpos e sobre o que eles fazem, mais do
que sobre a terra e seu produto. É um mecanismo de poder que permite
extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo
de poder que se exerce continuamente por vigilância e não de forma
descontínua por sistemas de tributos e de obrigações crônicas. É um tipo de
poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais
do que a existência física de um soberano, e define uma nova economia de
poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam
as forças sujeitadas e a força e a eficácia daquilo que as sujeita.

Neste sentido, o “biopoder”, enquanto principal forma de exercício de poder,


articula seus mecanismos em diferentes níveis da vida: individualmente sobre o corpo
dos indivíduos, por meio das disciplinas, e coletivamente sobre o comportamento das
populações, por intermédio da biopolítica. A união da disciplina sobre os corpos e da
biopolítica sobre a população constituem “[...] dois polos de desenvolvimento
interligados por todo um feixe intermediário de relações” (FOUCAULT, 2013a, p. 151),
tendo em vista que os dispositivos biopolíticos complementam as técnicas
disciplinares. Destaca Foucault (2013a, p. 155) que

pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o


fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de
tempos em tempos, no caso da morte e da fatalidade: cai, em parte, no campo
do controle do saber e de intervenção do poder.

A existência biológica dos indivíduos passa a ser cuidada e fomentada. Para


isso, “[...] o poder se situa e [se] exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos
fenômenos maciços de população” (FOUCAULT, 2013a, p. 149-150), gerindo e
organizando a vida e as forças produtivas populacionais: “[...] é sobre a vida e ao longo
de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação [...]”
(FOUCAULT, 2013a, p. 151). Segundo Ruiz (2007), os dispositivos de poder na
Modernidade se concentraram na vida humana como espaço para intervenção
pública, por meio da política e do Estado. Por este motivo, Foucault (2013a, p. 153-
154) aponta que o biopoder impulsionou a expansão do sistema capitalista:

Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao


desenvolvimento do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da
inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas,
o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto

15Relações de soberania eram as relações constituídas próprias do feudalismo, conforme expomos


anteriormente.
31

de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe


necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a
vida em geral, sem por isso torná-las mais difíceis de se sujeitar; [...] o
ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do
crescimento de grupos humanos à expansão das forças produtivas e a
repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo
exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. O
investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de
suas forças foram indispensáveis naquele momento. 16

Nesse sentido, o investimento (investissement17) sobre o corpo valorizou a vida,


que precisa ser prolongada. Conforme Foucault, isso se realizou com a
implementação dos dispositivos de biopoder. Ruiz (2007, p. 272) afirma que “a
Modernidade se caracteriza pela intensa racionalização do mundo da vida e pela sua
inserção na lógica dos fins estruturais”. Nesses termos, o biopoder se configurou
enquanto racionalização da vida somado à extração máxima de produtividade
possível (RUIZ, 2007). Isso significa que os dispositivos do biopoder são conduzidos
e organizados de forma que propiciem a expansão de seus mecanismos, de modo
que incidam em todos os níveis da vida dos sujeitos. Sob esta perspectiva, a vida
humana se torna um recurso que pode ser expandido e aproveitado tanto pelo Estado
quanto pelas demais instituições sociais. Na Modernidade, então, o biopoder incide
sobre a vida os indivíduos enquanto (I) disciplinas e como (II) biopolíticas.

1.2 Disciplina: a fabricação de corpos dóceis (corpo-máquina)

A primeira forma de biopoder que aparece no contexto de alterações que


inauguram a Modernidade é o poder disciplinar, ou “disciplina”. Segundo Foucault
(2010a, p. 210), a disciplina foi a “[...] acomodação dos mecanismos de poder sobre o
corpo individual, com vigilância e treinamento [...]”. Isso ocorreu no final do século XVII

16 Nesta passagem, Foucault escreve “bio-poder” com hífen, grafia diferente do que ele usualmente
faz, porém o sentido permanece o mesmo, isto é, como “poder sobre a vida”. Acreditamos que o uso
do hífen é um recurso utilizado pelo autor para enfatizar o “bio” enquanto referência ao biológico, ou
seja, o poder que se exerce sobre a vida na sua forma física, material, orgânica.
17 Investissement: termo citado por Foucault na obra Surveiller et Punir, p. 30, publicada em 1975, pela

editora Gallimard. Destacamos a expressão na língua original, considerando que a expressão


"investimento" nos remete, principalmente, a questão da economia (investir capital, dinheiro, riquezas).
Entretanto, esse termo em francês apresenta outros sentidos, como “manobra para dominar alguém ou
adquirir sua confiança” (GILBERT et.al., 1989, pág. 2734, tradução nossa), que é o entendimento
utilizado por Foucault, ou seja, investir no corpo é conferir-lhe um significado que não é apenas capital,
mas social e cultural, para que se consiga dominá-lo e torná-lo útil.
32

e início do século XVIII, “[...] em nível local, em formas intuitivas, empíricas,


fracionadas, e no âmbito limitado de instituições como a escola, o hospital, o quartel,
a oficina etc.” (FOUCAULT, 2010a, p. 210). Neste sentido, a disciplina se refere aquele
poder que é exercido sobre o corpo de modo individual e singular (FOUCAULT, 2010a,
2013a, 2013c, 2017). O corpo de cada indivíduo é modelado e constituído de acordo
com os objetivos dos mecanismos de poder, que precisam do corpo para produzir. O
autor mostra que as práticas disciplinares tornaram o corpo humano o ponto central
de técnicas e mecanismos específicos, que objetivavam administrar o corpo alheio:

[...] nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos
aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial
dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em
série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais,
de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se
incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do
exercício, do treinamento etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e
de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos
onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de
inspeções, de escrituras, de relatórios [...] (FOUCAULT, 2010a, p. 203, grifos
nossos).

Em outra passagem, Foucault (2013c, p. 133, grifos nossos) compreende que

o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte


do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades,
nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que
no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil,
e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um
trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de
seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
“anatomia política”, que é também uma “mecânica do poder”, está nascendo;
ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se
quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A
disciplina fabrica assim, corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”.

Uma outra maneira de conceber o “corpo dócil” é compreendendo-o enquanto


aquele corpo que “[...] se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se
torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 2013c, p. 132). Assim, o
controle do corpo em seu nível individual visa à docilização para que o corpo se torne
mais útil e mais produtivo, conforme as necessidades e interesses daqueles que
exercem o poder. De acordo com o autor, a docilização do corpo ocorre porque há
33

uma atenção permanente sobre os processos, enfatizando o modo como as práticas


são realizadas em detrimento aos resultados que são obtidos. Em outras palavras,
existe uma coerção ininterrupta sobre o tempo do indivíduo, sobre o espaço que ele
ocupa e sobre os movimentos que ele realiza, permitindo assim “o controle minucioso
das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2013c, p. 133).
Nesta perspectiva, as “disciplinas” consistem em técnicas que atuam no nível
do detalhe, controlando cada gesto e movimento, visando a extrair a máxima eficiência
de cada corpo. As técnicas disciplinares são “[...] sempre minuciosas, muitas vezes
íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo político e
detalhado do corpo, uma nova ‘microfísica’ do poder [...]” (FOUCAULT, 2013c, p. 134).
Por meio das técnicas disciplinares, o corpo se torna maleável, podendo ser ajustado
e aperfeiçoado conforme os interesses da dinâmica em jogo. Giddens (2003, p. 171)
afirma que “as novas formas de disciplina são precisamente talhadas na medida dos
movimentos, gestos e atitudes do corpo individual”. E isso ocorre sem que os
indivíduos percebam, o que possibilitou o desenvolvimento de práticas disciplinares
mais sofisticadas durante a Modernidade.
Nesta perspectiva, é possível adequar o corpo, definindo as maneiras como as
atividades devem ser realizadas, fazendo com que os indivíduos sejam mais
produtivos e eficientes. Os dispositivos disciplinares atravessam todos os espaços
sociais pois, de acordo com Castro (2017, p. 92), “eles deixam de estar circunscritos
aos limites institucionais e se disseminam por toda a sociedade. Ao mesmo tempo,
são também objeto de apropriação por parte do Estado [...]”. Em outros termos, a
disciplina atua para que o corpo do indivíduo seja dirigido por outrem, muitas vezes
desconhecido e não percebido, na imposição de regras, saberes, discursos e
verdades. Castro (2017, p. 93) afirma que, desse modo, é possível ajustar o corpo às
situações específicas, haja vista que os “[...] objetivos podem modificar-se para
adaptar-se a novas exigências”.
Foucault (2013c) analisa diversas instituições, como os quartéis, as escolas, os
asilos e os hospitais psiquiátricos, os quais utilizavam práticas disciplinares para
modelar os corpos, visando torná-los mais produtivos e submissos, levando à
manutenção dos dispositivos de poder. Assinala Castro (2009, p. 112) que “[...] o
objetivo da disciplina é aumentar a força econômica do corpo e, ao mesmo tempo,
reduzir a força política”. Isso só foi possível porque as disciplinas penetraram as
34

relações pessoais, inserindo-se na vida íntima das pessoas. Ruiz (2007, p. 273) afirma
que,

do exército à manufatura, da fábrica à burocracia, todas as instituições


modernas demandam indivíduos treinados nas suas habilidades corporais,
adestrados nas potencialidades dos seus saberes, exigem que sejam
disciplinados no modo como usam o seu tempo, eficientes nas habilidades
encomendadas, ágeis nos serviços exigidos, criativos nas suas funções, que
consigam o máximo de eficiência com o mínimo de gasto.

Neste sentido, a disciplina está presente no cotidiano mesmo que os indivíduos


não tenham ciência de que as relações ocorram dessa maneira. Ela foi (e ainda é)
aplicada cotidianamente: ensinamos as crianças como elas devem se sentar em
determinados ambientes; aprendemos que existem diferentes formas de falar com
determinadas pessoas (por exemplo, aprendemos que devemos ouvir os mais velhos,
por respeito pois eles viveram mais tempo); dizemos às moças que estão mudando o
corpo na adolescência para cobrirem seus corpos (como se fosse vergonhoso mostrar
as mudanças naturais18 em curso). O poder disciplinar age sobre os indivíduos desde
a infância, atuando sobre os corpos para que estes reajam aos dispositivos de poder
de maneiras pré-determinadas. Ou seja, aqueles que estão submetidos à disciplina
sofrem um processo de docilização do corpo.
Ao se referir sobre os controles exercidos sobre a sexualidade das crianças,
Foucault (2013a, p. 34) descreve como exemplo a estrutura dos colégios do século
XVIII:

Visto globalmente, pode-se ter a impressão de que aí, praticamente não se


fala em sexo, entretanto, basta atentar para os dispositivos arquitetônicos,
para os regulamentos da disciplina e para toda a organização interior: lá se
trata continuamente do sexo. [...] O espaço da sala, a forma das mesas, o
arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios (com ou sem
separações, com ou sem cortina), os regulamentos elaborados para a
vigilância do recolhimento do sono, tudo fala da maneira mais prolixa da
sexualidade das crianças.

A disciplina sobre o sexo foi desenvolvida também sobre as relações conjugais.


Afirma Foucault (2013a, p. 44) que, na Modernidade, “o sexo dos cônjuges era

18 “Natural”, nesse contexto, refere-se aos aspectos biológicos e fisiológicos do corpo humano. Nas
meninas, referimo-nos as mudanças hormonais próprias da puberdade que acarretam o início do
período menstrual; o desenvolvimento dos seios, o surgimento de pelos nas axilas, pernas e genitálias;
o aparecimento de espinhas; as mudanças na voz; e o alargamento dos ossos da bacia, que aumentam
os quadris.
35

sobrecarregado de regras e recomendações”, sendo uma prática regulada pelo direito


canônico, pela Pastoral Cristã e pela lei civil, assinalando o que era permitido e o que
era proibido nas relações matrimoniais. “[...] A disciplina tenta reger a multiplicidade
dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos
individuais que devem ser vigiados, treinados e eventualmente punidos” (FOUCAULT,
2010a, p. 204). Dessa forma, o sistema de regras disciplinares cria uma divisão entre
aqueles indivíduos que se adequam às regras e aqueles que não se enquadram.
O poder que se inscreve sobre o corpo elabora padrões e elenca “desvios”, que
são tratados como doenças passíveis de tratamento, a exemplo da
homossexualidade. Esta, no século XIX, passou a ser considerada como
comportamento desvirtuado, “androgenia interior” ou “hermafrodismo da alma”, que
podia ser diagnosticada, medicalizada e curada (FOUCAULT, 2013a, p. 50). Nesse
viés, o poder disciplinar colocou em funcionamento operações distintas: relacionar os
atos, diferenciar os indivíduos, hierarquizar de acordo com as capacidades,
homogeneizar e excluir. Em outras palavras, as disciplinas operam por mecanismos
“[...] de seleção, normalização, hierarquização e centralização” (FOUCAULT, 2010a,
p. 153). Assim, aparecem “crianças demasiado espertas, meninas precoces, colegiais
ambíguos, serviçais e educadores duvidosos, maridos cruéis ou maníacos,
colecionadores solitários, transeuntes com estranhos impulsos [...]” (FOUCAULT,
2013a, p. 47), que não se modelam aos dispositivos disciplinares, fazendo crescer os
casos em tribunais, aumentando a população carcerária e de internos em casas de
correção.
As tecnologias de poder que visam ao controle do corpo, contudo, não se
localizam apenas em instituições políticas ou em ordenamentos estatais: elas atuam
também em outro nível nas relações de poder, pois

trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo


pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de um
modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua
materialidade e suas forças (FOUCAULT, 2013c, p. 29, grifos nossos).

Neste sentido, o corpo está na intersecção dos diversos dispositivos de poder,


e é submetido a limitações, obrigações e proibições que operam sobre ele coerções
36

e controles incessantes. A noção de “corpo-máquina”19 foi concebida visando o “[...]


adestramento [do corpo], na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças,
no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas
de controles eficazes e econômicos [...]” (FOUCAULT, 2013a, p. 151). Isso forneceu
informações que possibilitaram a elaboração de uma “anátomo-política do corpo
humano”20 para a aplicação das técnicas disciplinares.
Desse modo, o corpo materializa os efeitos dos mecanismos de poder que
atuam sobre ele, haja vista que esses dispositivos se exercem por meio de técnicas
disciplinares sobre o corpo. O corpo de um indivíduo apenas tem utilidade nas
relações de poder se ele for, simultaneamente, submisso e produtivo. Isso porque, de
acordo com Foucault (2010a, p. 32), a burguesia estabeleceu essa nova forma de
exercício de poder como “[...] um dos instrumentos fundamentais da implantação do
capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correlativo”, ou seja: o poder
disciplinar. Desse modo, os indivíduos se tornam “sujeitos” quando estão submetidos
aos dispositivos de poder, que ordenam as relações entre eles. Ou seja, ele está
circunscrito em um sistema de sujeição (système d'assujettissement21) que lhe
confere um lugar na sociedade, bem como indica o conjunto de regras e normas nas
quais está inserido.
Podemos indagar por que, diante de relações incessantes e coercitivas, o
sujeito não se insurge contra o poder disciplinar. Foucault (2013a, p. 155) responde
que

o homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num
mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,

19 O filme “Tempos Modernos” (1936, 89min), de Charles Chaplin, ilustra de forma cômica essa
concepção de “corpo-máquina” que opera no nível do detalhe: o personagem Vagabundo é operário
em uma fábrica, realizando seu trabalho de modo mecânico que, ao sair da fábrica, continua
executando os gestos de torcer os parafusos enquanto caminha pela rua.
20 Com este conceito, Foucault reforça seu argumento de que o poder exercido sobre o corpo pelas

disciplinas objetiva a produção de efeitos individualizantes, por meio de um treinamento no nível do


detalhe (FOUCAULT, 2010a, 2013c)
21 Système d'assujettissement: termo citado por Foucault na obra Surveiller et Punir, p. 31, publicada

em 1975, pela editora Gallimard. Destacamos a expressão na língua original, considerando que a
expressão "sujeição" está relacionada à obediência e subordinação (sujeitar-se = obedecer; subordinar-
se), ou seja, o indivíduo se sujeita (obedece) às normas, no qual, aparentemente, há uma deliberação.
Em uma tradução mais literal do francês para o português, o correto seria “assujeitamento”, que na
nossa língua é sinônimo de “sujeição”. Entretanto, este termo na língua francesa apresenta outro
sentido, que nos possibilita ampliar nossa compreensão sobre o que Foucault entende por “sujeição”,
que pode ser compreendida como “o estado que resulta das obrigações as quais estamos submetidos”.
Ou seja, a submissão é um resultado, uma condição, é algo coercitivo e não deliberativo, pois é um
assujeitamento cotidiano e constante.
37

saúde individual e coletiva, forças que podem se modificar, e um espaço em


que se pode reparti-las de modo ótimo.

Neste sentido, o investimento incessante do poder sobre o corpo possibilitou


que os sujeitos se percebessem como possuidores de um corpo, formando espaços
para a resistência22 às técnicas disciplinares. Entretanto, Foucault aponta que, durante
a segunda metade do século XVIII, aparece uma tecnologia de poder que se acopla à
disciplina:

uma tecnologia de poder que não excluía a primeira, que não exclui a técnica
disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e
que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e
incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia
(FOUCAULT, 2010a, p. 203).

Essa nova tecnologia se integra às disciplinas, direcionando seus mecanismos


a multiplicidade dos indivíduos, administrando a coletividade. Essa tecnologia é
descrita por Foucault como “biopolítica”, que trataremos a seguir.

1.3 Biopolítica: controle do comportamento e gestão da vida das populações


(corpo-social)

Complementar à disciplina, desenvolveu-se no século XVIII o que Foucault


denominou por “biopolítica”, que visava não mais ao corpo individualmente, como nas
disciplinas, mas sim o corpo-social, tornando a população como alvo para o
gerenciamento das práticas sociais. Isso quer dizer que a biopolítica consiste em
maneiras de “conduzir condutas”, nas quais o corpo sofre influência dos dispositivos
que objetivam administrar o comportamento dos indivíduos, visando a padronizá-los.
Os dispositivos de poder que agem sobre os corpos são orientados por regras que
norteiam as ações dos indivíduos. Desse modo, a biopolítica atua sobre um grupo de
sujeitos no âmbito de suas relações sociais.
Foucault (2010a) afirma que o desenvolvimento da biopolítica não
desencadeou o fim do poder disciplinar, mas promoveu a união dessas duas formas
de exercício de poder, porque a biopolítica só foi possível devido a existência de

22 Abordaremos a relação entre resistência e poder mais detalhadamente no capítulo 3.


38

dispositivos disciplinares que a antecederam. Isso porque as técnicas disciplinares


prepararam o corpo para os novos dispositivos implementados pela biopolítica, que
objetivavam atuar sobre o “homem-espécie”, por meio de processos de
massificação23:

[...] a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens,


não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que
ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de
conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento,
a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 2010a, p. 204, grifos
nossos).

Neste sentido, a biopolítica desenvolve seus dispositivos para a gestão das


pessoas em conjunto, fixando-se nos fenômenos da natalidade e da mortalidade, da
higiene pública, e se utilizando de dados estatísticos e cálculos matemáticos para
administrar as práticas. Os dispositivos biopolíticos, por exemplo, constituíram
incentivos, por parte do Estado, visando estimular a natalidade quando se precisava
de mais mão-de-obra, bem como controlá-la quando houve escassez de grãos e
cereais na Europa Ocidental, durante o século XVIII (FOUCAULT, 2008b).
Foucault (2010a) destaca ainda que a biopolítica se caracteriza pela inserção
de instituições governamentais nas microrrelações, tendo em vista que se os
mecanismos de poder desenvolvidos pelos altos escalões do Estado efetivam-se,
reproduzem-se e mantém-se, é porque eles estão sendo igualmente reproduzidos no
nível das microrrelações de poder. E isso somente é possível por meio da biopolítica,
pois são esses dispositivos que possibilitam que o Estado atinja as relações
interpessoais, ordenando-as. Isso porque a biopolítica atua sobre os eventos sociais
que se referem à “população”, compreendida como um corpo múltiplo, composto por
diversos membros, não sendo possível contabilizá-los com precisão. Sublinha
Foucault (2013a, p.31), que

uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o
surgimento da “população”, como problema econômico e político: população-
riqueza, população mão-de-obra ou capacidade de trabalho, população e
equilíbrio entre seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os
governos percebem que não têm que lidar simplesmente com sujeitos, nem
mesmo com um “povo”, porém com uma “população”, com seus fenômenos
específicos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de
vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de doenças, forma de

23Medidas que atingem a totalidade de uma população, sociedade e/ou comunidade, sem distinções
sociais, econômicas, culturais, políticas, religiosas etc.
39

alimentação e habitat. Todas essas variáveis situam-se no ponto de


intersecção entre os movimentos próprios da vida e os efeitos particulares
das instituições [...].

Segundo Foucault, a população é um problema social-político-científico-


biológico e de poder, pois há uma massa de sujeitos que precisa ser controlada e
ordenada. “É um novo corpo, um corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças [...]. É
a noção de população” (FOUCAULT, 2010a, p. 206). Os problemas decorrentes de
fenômenos coletivos são observáveis somente a partir dessa noção de massa, pois
“[...] são fenômenos aleatórios e imprevisíveis, se os tomarmos neles mesmos,
individualmente, mas que apresentam, num plano coletivo, constantes [...]” que são
possíveis de estabelecer (FOUCAULT, 2010a, p. 206). Em outras palavras,
observados individualmente, os problemas dos sujeitos não parecem corresponder
aos problemas de uma população, contudo, ao massificar um problema, é possível
verificar que as recorrências individuais são partilhadas por boa parte dos indivíduos,
criando dispositivos de poder que visam corrigi-los coletivamente.
Neste sentido, os indivíduos que estão sujeitos aos dispositivos biopolíticos são
submetidos a eles de uma só vez, todos juntos ao mesmo tempo e não
individualmente, como ocorrem nas disciplinas. Como exemplo, citamos a análise de
Foucault acerca da “histerização do corpo da mulher”, que se consistiu num

[..] tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e
desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo
qual, este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria
intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em
comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve
assegurar), com o espaço familiar (do qual de ser elemento substancial e
funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir através de
uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação):
a Mãe, com sua imagem em negativo que é a “mulher nervosa”, constitui a
forma mais visível de histerização (FOUCAULT, 2013a, p. 115, grifo nosso).

O período de Grande Internação dos “loucos”, realizada durante o século XVIII,


também ilustra o modo como as biopolíticas atingem os membros de uma sociedade,
criando distinções e com objetivos definidos. Foucault (2012a, p. 63, grifos nossos)
narra que:

a loucura só terá hospitalidade doravante entre os muros do hospital, ao lado


de todos os pobres. É lá que a encontraremos ainda no final do século XVIII.
Com respeito a ela, nasceu uma nova sensibilidade: não mais religiosa,
porém moral. Se o louco aparecia de modo familiar na Idade Média, era como
40

que vindo de um outro mundo. Agora, ele vai destacar-se sobre um fundo
formado por um problema de “polícia”, referente à ordem dos indivíduos na
cidade. Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar; agora será
excluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres,
os miseráveis, os vagabundos. A hospitalidade que o acolhe se tornará,
num novo equívoco, a medida de saneamento que o põe fora do caminho.
De fato, ele continua a vagar, porém não mais no caminho de uma estranha
peregrinação: ele perturba o espaço da ordem social. Despojada dos
direitos da miséria e de sua glória, a loucura, com a pobreza e a ociosidade,
doravante surge, de modo seco, na dialética imanente dos Estados.

Foucault indica que, por este motivo, há um interesse da burguesia sobre os


mecanismos de poder que atuam sobre a loucura e a sexualidade. Por estes
exemplos, podemos compreender o que autor caracteriza como a integração das
estratégias disciplinares e biopolíticas. Segundo ele, elas agem de modo simultâneo
para que os indivíduos se submetam aos seus dispositivos, todos ao mesmo tempo,
objetivando, assim, atingir determinado propósito:

[...] o que se deve ver é justamente que não houve a burguesia que pensou
que a loucura deveria ser excluída ou que a sexualidade infantil deveria ser
reprimida, mas os mecanismos de exclusão da loucura, os mecanismos de
vigilância da sexualidade infantil, a partir de certo momento, e por razões que
é preciso estudar, produziram certo lucro econômico, certa utilidade política
e, por esta razão, se viram naturalmente colonizados e sustentados por
mecanismos globais e, finalmente, pelo sistema do Estado inteiro. [...] A
burguesia não se interessa pelos loucos, mas pelo poder que incide sobre os
loucos; a burguesia não se interessa pela sexualidade da criança, mas pelo
sistema de poder que controla a sexualidade da criança. A burguesia não dá
a menor importância aos delinquentes, à punição ou à reinserção deles, que
não têm economicamente muito interesse. Em compensação, do conjunto
dos mecanismos pelos quais o delinquente é controlado, seguido, punido,
reformado, resulta, para a burguesia, um interesse que funciona no interior
do sistema econômico-político geral (FOUCAULT, 2010a, p. 29).

Em vista disso, o desenvolvimento da biopolítica objetivava intervir em


fenômenos sociais, de modo a controlá-los, estimulá-los ou reduzi-los. Como exemplo,
a elaboração de ferramentas estatísticas que permitiam acompanhar as taxas de
natalidade, de mortalidade, de longevidade; a expansão de instituições de assistência
social direcionadas para idosos e enfermos que estão incapacitados de trabalhar24; a
criação de planos de saúde, seguros de vida, de poupanças e de aposentadoria.
Ademais, a biopolítica considera a gerência de nascimentos e de mortes; as taxas de

24 Sublinhamos que, com o desenvolvimento do capitalismo, na Modernidade, e o aumento de fábricas


e indústrias, a velhice e os enfermos tornaram-se um problema de mão-de-obra, pois são considerados
improdutivos. Desse modo, o Estado fomentou a criação de instituições de assistência social vinculadas
aos órgãos governamentais. Antes, a assistência social era realizada pela Igreja, por meio das pastorais
cristãs e demais obras de caridade (FOUCAULT, 2010a).
41

natalidade; o acompanhamento da expectativa de vida das populações e outras


formas de controle social.

Nos mecanismos implementados pela biopolítica, vai se tratar sobretudo, é


claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se
tratar, igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal
indivíduo, na medida em que é indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no
nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais, desses
fenômenos no que eles têm de global. Vai ser preciso modificar, baixar a
morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a
natalidade. E trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores
que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um
equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase,
assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos de previdência
em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de
otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida (FOUCAULT, 2010a, p.
207).

Em contraste com o poder soberano, que exercia o direito de causar a morte


dos indivíduos, a biopolítica visa a incentivar a vida (considerada útil), o “fazer viver”,
estimular a longevidade e a saúde da população. Para isso, os dispositivos se inserem
no nível da vida, para “[...] controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas
deficiências [...]” (FOUCAULT, 2010a, p. 208). A morte passa a fazer parte do âmbito
privado dos sujeitos, pois o poder não se aplica a ela.
Desse modo, o biopoder desenvolve duas tecnologias que se complementam:
uma sobre o corpo, e outra sobre os fenômenos sociais. Essas tecnologias se
apossam da vida em todos os seus aspectos (visando a controlá-los) e em todos os
seus níveis (pessoal, social, econômico, político etc.). De acordo com Fontana e
Bertani (2010, p. 238), essas duas formas de exercício de biopoder constituíram “[...]
dois modos conjuntos de funcionamento do saber/poder, tendo, é verdade, focos,
pontos de aplicação, finalidades e móbeis específicos”. Essa maneira de gestão e de
controle da vida operacionalizado pelos dispositivos de biopoder só foi possível, na
Modernidade, pois os discursos sobre o corpo e sobre a vida se modificaram.

1.4 O biopoder está fundamentado nos discursos

Nesse contexto, podemos questionar: como foi possível que os dispositivos de


biopoder fossem implementados, por meio de disciplinas e de biopolíticas? Segundo
Foucault, o poder opera por meio do discurso. Na sociedade,
42

[...] múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam, constituem o corpo


social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se nem funcionar sem
uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do
discurso verdadeiro (FOUCAULT, 2010a, p. 22).

O discurso é um dos componentes que sustentam os dispositivos de poder. Ele


é formado por diversos elementos e acontecimentos nos quais as verdades
necessárias aos dispositivos de poder são articuladas, com o objetivo de orientar a
maneira como as relações entre os sujeitos devem ocorrer. Foucault (2014a, p. 10)
explicita que o discurso

[...] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também
aquilo que é objeto de desejo; [...] o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que
se luta, o poder pelo qual nos queremos apoderar.

Para ele, na sociedade há uma multiplicidade de componentes que integram os


diversos discursos, uma vez que cada um deles está destinado a uma determinada
estratégia de poder (FOUCAULT, 2013a). Foucault (2014a) apresenta a hipótese de
que há uma produção de discursos nas sociedades que é controlada visando a ter o
controle sobre a aleatoriedade dos acontecimentos:

[...] suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo


tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade (FOUCAULT, 2014a, p. 08-09).

O autor expõe que existe um “jogo de interdições”, no qual se articulam as


estratégias e os mecanismos que se interligam, se fortalecem ou se contrapesam, e
formam “[...] uma grade complexa que não cessa de se modificar” (FOUCAULT,
2014a, p. 09). Como exemplo, Foucault (2014a, p. 11) apresenta a relação com o
discurso do louco na Idade Média: “era através de suas palavras que se reconhecia a
loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca
reconhecidas nem escutadas”. Em outros termos, a distinção do louco, naquele
período, se realizava a partir do discurso que ele proferia aos demais. Aquilo que o
louco dizia não tinha validade, isto é, suas palavras, seus discursos e suas verdades
eram nulas. Ele destaca ainda que as palavras dos loucos, na Medievalidade, eram
43

válidas apenas quando poderiam ser consideradas um tipo de profecia, na qual o


louco (e somente ele, por causa de sua loucura) “enxergava” uma “verdade” que
estava escondida e que, por meio de seu discurso, era revelada (FOUCAULT, 2012a,
2014a).
Foucault (2012a, 2014a) assinala que a Modernidade continuou a definir quem
eram os “loucos”; no entanto, essas distinções passaram a ser realizadas de outras
formas e por novas instituições, que geravam outros (novos) efeitos sobre os sujeitos.
Neste sentido, “ouvir o louco” se tornou central para constituir as distinções entre os
“loucos” e os “sãos” (saudáveis).
Além disso, Foucault (2014a, p. 13) reafirma a importância que o silêncio
adquire neste contexto: “se é necessário o silêncio da razão para curar os monstros,
basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece”. A implicância
disso, na vida cotidiana, foi a continuidade de determinadas formas de exclusão, que
classificavam e excluíam indivíduos, com base apenas naquilo que era dito 25. O
discurso, neste sentido, também administrava os silêncios sobre aquilo que deveria
ser evitado e/ou esquecido (FOUCAUL, 2014a).
Por este motivo, há uma divisão entre os discursos que são aceitos e os
discursos que são descartados. Esses últimos (os rejeitados) passam a representar
afirmações falsas e/ou condutas inapropriadas ou desviantes. Nesta perspectiva, o
discurso

[...] define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto


de signos que deve acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou
imposta das palavras, seus efeitos sobre aqueles aos quais se dirigem, os
limites de seu valor e de coerção (FOUCAULT, 2014a, p. 37).

Em outras palavras, o discurso orienta os sujeitos na sua forma de ser, de agir,


de se relacionar (como se vestir, se portar, falar, o que dizer, com quem conversar, o
que é permitido ou proibido com relação ao corpo, etc.). Segundo o autor
(FOUCAULT, 2014a), isso ocorre porque as sociedades organizam seus discursos

25O filme “The Witch” (2015, 93min) apresenta um enredo no qual uma jovem é acusada de bruxaria
por crianças. A jovem debocha e, brincando com as crianças, imita uma bruxa. A pequena comunidade
onde vive, fortemente religiosa, passa a tratá-la como uma bruxa de fato, atribuindo a ela a
responsabilidade por determinados acontecimentos sem explicação que estão ocorrendo. No filme,
embora a jovem tente mostrar a incongruência das narrativas das crianças, suas palavras e as
verdades que traz em seu discurso são ineficazes em sua defesa, pois ninguém acredita nela. Ao
mesmo tempo em que o enredo expõe a incapacidade dos demais membros da comunidade em
questionar suas crenças, o que acaba por reforçar a convicção sobre a existência da bruxa e a
culpabilidade da jovem.
44

com base em sistemas de exclusão e de interdição dos enunciados. Desse modo,


“sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo
em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa”
(FOUCAULT, 2014a, p. 09).
Foucault (2014a, p. 20) também salienta os que procedimentos internos do
discurso estão relacionados aos acontecimentos e ao acaso, explicitando um outro
âmbito do discurso: “procedimentos internos, visto que são os discursos eles mesmos
que exercem seu próprio controle; procedimentos que funcionam, sobretudo, a título
de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição [...]”. Dito de outra
maneira, o sistema externo de separação e de distinção que é operado pelas
instituições e pelo Estado, também acontece de modo interno nos sujeitos, que
assimilam essas diferenciações e as reproduzem em seus discursos.
Não existe, segundo Foucault (2014a), uma sociedade sem discurso. Ele
acrescenta que há um ordenamento dos discursos, conforme a sua finalidade. Por
vezes, esses discursos se deslocam, “muitos textos maiores se confundem e
desaparecem, e, por vezes, comentários vêm tomar o primeiro lugar. Mas embora
seus pontos de aplicação possam mudar, a função permanece [...]” (FOUCAULT,
2014a, p. 22). De acordo com o autor (FOUCAULT, 2014a), este “princípio de
deslocamento dos discursos” se configura como um “jogo”, isto é, conforme a
dinâmica das relações de poder, os discursos se movimentam: aglutinamento de
discursos; comentários que suprimem o discurso original. Em outros termos, os
discursos se reorganizam na medida em que se alteram as relações de poder e vice-
versa.
Nesta perspectiva, Foucault (2014a) sublinha a dupla função do comentário,
que, por um lado, produz discursos a partir de anotações e de interpretações sobre
um discurso vigente, e, por outro, tem a possibilidade de mostrar aquilo que estava
oculto e/ou silenciado. Além disso, ele ressalta o trabalho do “autor”, compreendido
como “[...] princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas
significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2014a, p. 25). Ou seja, o
autor como portador da verdade.
Foucault (2014a) expõe a dificuldade em se analisar separadamente todos os
elementos que constituem as interdições sobre o discurso e que o produzem. Mas
destaca que, em geral, os diferentes sistemas de interdições que sustentam os
dispositivos de poder,
45

[...] se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes edifícios que
garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de
discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. [...]
são esses os grandes procedimentos de sujeição do discurso (FOUCAULT,
2014a, p. 42).

Neste sentido, o discurso ordena a sociedade, operando sobre normas, leis,


obrigações, proibições. Ele também se manifesta nos contos, nas brincadeiras, na
música, no cinema, na televisão, na literatura, na propaganda, nos jogos, ou seja, em
todos os aspectos da vida dos sujeitos. O discurso faz circular as tecnologias de poder
nas microrrelações, gerenciando seus efeitos que acabam por sustentar seus próprios
dispositivos. Por este motivo, a articulação entre poder e discurso assegura a
reverberação dos efeitos dos dispositivos de poder nos diferentes níveis em que
ocorrem as relações entre os sujeitos. Formam-se, desse modo, redes nas quais as
microrrelações se entrecruzam e se complementam, propiciando que os efeitos de
poder circulem e se mantenham, bem como possibilitando a atualização de suas
estratégias e técnicas quando necessário.
Esse complexo sistema “poder-discurso” delineado por Foucault se mostra
fundamental para a existência e para a continuidade dos dispositivos de biopoder na
vida dos sujeitos. Ainda, de acordo com ele (FOUCAULT, 2013a), o discurso também
se exerce de forma positiva26 sobre a vida dos sujeitos. Do contrário, não seria
possível a reprodução e a atualização dos mecanismos de poder. Desse modo, a
materialidade do corpo está circunscrita pelos discursos que são produzidos nos
dispositivos de poder. Foucault (2010a, p. 26-27) explica que “[...] o poder é algo que
se exerce, que circula, que forma rede [...]. E o poder – pelo menos em certa medida
– transita ou transuma por nosso corpo”.
Neste sentido, a partir da concepção dos discursos sobre o corpo foi possível
a constituição dos dispositivos de biopoder que visavam ao disciplinamento do corpo,
a regulamentação do sexo, o controle sobre a vida matrimonial e familiar, etc. Em vista
disso, o discurso não é somente mais um dos elementos que compõe os dispositivos
de poder, mas o elemento basilar sobre o qual serão elaborados os demais
componentes de seus dispositivos.

26 A forma positiva de exercício de poder está articulada com a produção de verdades. As “verdades”
que são produzidas trazem significação e coerência para as ações dos indivíduos, que orientam seu
agir por meio desses discursos. O capítulo 2 aborda a relação da produção de verdades e os
dispositivos de poder que conduzem as práticas sociais.
46

2. O CORPO E A PRODUÇÃO DE “VERDADES”

Foucault não se ocupou em elaborar uma definição ou um conceito sobre o


“corpo”. Entretanto, por meio da problematização dos usos dele, o autor mostrou, em
seus escritos, a existência de relações e de dispositivos de poder que o
circunscrevem. Nesta perspectiva, os aspectos históricos expostos no capítulo
anterior, sobre o surgimento do biopoder na Modernidade, são ampliados. A
investigação trata da maneira como as relações com o corpo se modificaram durante
os séculos XVII-XIX na Europa, incidindo sobre os modos como os indivíduos se
relacionam e tratam o corpo, bem como as modificações físicas geradas em
decorrência do exercício do poder sobre eles. Além disso, indicaremos os dispositivos
de biopoder que foram implementados na época e difundidos em diversos países, de
modo semelhante.
Neste contexto, o discurso é um elemento basilar que fundamenta o biopoder,
por meio da produção de determinadas “verdades”. Essas “verdades” não são aquelas
elaboradas a partir de enunciados que formam uma “verdade científica” ou “factual”,
mas de um conjunto de enunciados que trazem uma “verdade” que resulta da relação
entre poder e saber, discutido por Foucault em diversos momentos.
Cabe destacar que a relação saber-poder, conforme assinala Foucault, produz
determinados conhecimentos que apoiam a elaboração dessas “verdades”,
objetivando manter e reproduzir determinadas relações de poder. Uma consequência
exemplificada por Courtine (2013), são as diversas manifestações e estudos, surgidos
a partir do século XX, que contestam essas “verdades” que objetivam, a partir do
corpo, constituir os comportamentos e designar os lugares sociais, tais como: os
movimentos feministas, o movimento hippie e os movimentos negros.
47

2.1 O corpo no pensamento de Foucault

Ao tratar do corpo, Foucault não se preocupou em defini-lo, mas em expor sua


centralidade nos dispositivos de poder. Segundo ele, “[...] é sempre do corpo que se
trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição
e da submissão” (FOUCAULT, 2013c, p. 28). Conforme assinala Fonseca (2015, p.15-
16, grifo nosso):

[...] Foucault não fornece um estatuto para o corpo. [...] este autor não volta a
sua atenção para os processos corporais. Pelo contrário, seu olhar se ocupa
em analisar, colher e descrever os discursos que falam e as práticas que
atuam sobre o corpo.

Ela destaca que, embora o corpo apareça com realce nos estudos de Foucault,
há uma ausência em indicar ou em definir o que é este corpo, e “os comentários sobre
o pensamento de Foucault se reservam em grande medida a explorar o poder que
incide sobre o corpo” (FONSECA, 2015, p. 17). Ela complementa que

[...] não se pode dizer que Foucault tenha efetivamente postulado um lugar
para debater a noção de corpo, e isso para evitar estabelecer qualquer
conotação de naturalidade ou existência do corpo independente de sua
constituição pelo saber-poder (FONSECA, 2015, p. 17).

Do mesmo modo, Courtine (2013, pos. 68) disserta sobre o

[...] enigma que constitui o corpo para o pensamento que atravessa de parte
a parte toda a problemática foucaultiana; e que, sob múltiplas modalidades,
a decifração deste enigma ocupa o coração mesmo de seu pensamento
filosófico, talvez tanto quanto ele o inquietava enquanto sujeito.

Em sua obra, ele afirma pensar o corpo com Foucault, dedicando-se a elencar
diversos elementos históricos. Estes, auxiliam na compreensão do período no qual se
desenvolve o biopoder, mas que não foram explicitados por Foucault:

[...] [na análise] se encontrará objetos familiares ao universo de Michel


Foucault, e outros que o são menos: médicos, na Idade Clássica, observam
o rosto humano, e tendem a adivinhar nele as paixões da alma; intelectuais,
nos primeiros decênios do século XIX, decifram o corpo do monstro, e nele
percebem um semelhante. Curiosos se comprimem, no Século das Luzes,
para assistir ao espetáculo de um homem sem braços nem pernas, vestido à
Turca, que rodopia no ar, baioneta calada, sobre o calçadão parisiense; as
multidões da Belle Époque, à Feira do Tronco, se acotovelam sobre a soleira
dos museus de ceras anatômicas, que elas desertarão em breve. Soldados
48

americanos, durante a guerra do Iraque, posam diante de prisioneiros


desnudados (COURTINE, 2013, pos. 84).

O comentador expõe a complexidade da investigação sobre a concepção de


corpo no pensamento de Foucault. A ausência de elementos e de acontecimentos do
contexto e período estudados por Foucault podem, ao serem acrescidos ao estudo,
auxiliar na compreensão das diversas variáveis que circunscreveram o corpo na
Modernidade. Isso não significa afirmar que Foucault desconhecesse tais eventos,
mas que ele procurou captar, em suas investigações, fatos a partir de determinados
elementos que considerou mais relevantes para priorizar, em detrimento de outros.
Por exemplo, na escolha do autor ao estudar certas instituições de poder, como os
asilos, os hospitais psiquiátricos, a Pastoral Cristã, etc. Essa característica é própria
de sua metodologia, como ele mesmo descreve e explica em cada obra.
Fonseca (2015) salienta as diferenças entre o pensamento de Nietzsche e de
Foucault, afirmando que, na perspectiva foucaultiana sobre o corpo, há a ausência na
articulação das questões referentes ao instinto, à vontade de potência e da
animalidade do indivíduo, haja vista que Foucault centra-se no corpo apenas na sua
relação com o saber e com o poder. Ribeiro (2018, p. 153), por seu turno, questiona:
“[...] o corpo sem instinto, o que ele seria?”, afirmando que Foucault fornece uma
leitura sobre o corpo sem mencionar os instintos. Foucault, entretanto, não trata deste
tema, mas o aborda, por exemplo, na produção de desejos, que acontece por meio
do controle dos instintos (FOUCAULT, 2008b).
Resta perguntar o que é o “instinto”, considerando que Foucault contesta a
relação entre saber e poder, em que o conhecimento, inclusive o científico, é
produzido visando a um determinado fim, que não é a busca do conhecimento de
modo epistêmico, mas a fundamentação teórica e científica de determinadas
“verdades”. Como o exemplo de estudos realizados no século XX, que afirmaram que
pessoas negras são intelectual e moralmente inferiores às pessoas brancas pelo
simples fato de seu corpo ter a cor da pele mais escura27; ou ainda quando se
justificou, por muito tempo, a submissão feminina com base em aspectos biológicos28.

27 Indicamos a crítica de Boas (2007) às pesquisas que afirmavam haver diferenças cognitivas entre
europeus brancos e negros, atribuindo a isso a questão da cor da pele. Boas argumenta que, embora
existam essas diferenciações quanto as capacidades cognitivas, isso se deve ao fato de que europeus
negros e brancos vivem em condições distintas que interferem diretamente em sua capacidade de
aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades cognitivas.
28 Para uma introdução sobre a discussão da relação entre o corpo e o gênero, indicamos os estudos

realizados por Beauvoir (1967, 1970), no qual a autora apresenta a discussão histórica sobre como a
49

Esses estudos eram portadores de “verdades” que poderiam ser


“comprovadas” por meio da Biologia, da Medicina e Psiquiatria. Foucault indicou que
essas investigações científicas sugiram, principalmente, como o resultado de
determinados discursos que orientavam os indivíduos em suas maneiras de viver no
mundo. Estes elementos direcionavam a busca por “respostas” que corroborassem
com a forma de viver estabelecida pelas normas vigentes, como, por exemplo, a
manutenção da escravidão ou a reprodução de costumes patriarcais.
Por este motivo, Fonseca (2015) afirma que Foucault se afasta da concepção
de Nietzsche sobre o corpo, deixando-a em aberto, não explicitando-a:

[...] para Foucault, embora o conhecimento seja, pela leitura genealógica,


dispositivos que inventam e emolduram o corpo, ele não liga o conhecimento
aos instintos. Nessa formulação foucaultiana o corpo é desativado de sua
condição de agente e passa a ser locus sobre o qual incidem as técnicas de
poder. A dimensão da externalidade do poder em relação ao corpo, que se
move e atua sobre os corpos resulta dessa leitura (FONSECA, 2015, p.18,
grifo da autora).

Ribeiro (2018, p. 126) também afirma que, na perspectiva foucaultiana, a partir


da genealogia, o corpo se configurou como “[...] o resultado pelo qual a história se
realiza destituído da dimensão instintual originalmente presente em Nietzsche”. Desse
modo, a genealogia foucaultiana busca “[...] os efeitos de uma origem” (RIBEIRO,
2018, p. 145, grifo nosso). Isso porque “em continuidade da ideia de herança, a
procedência denuncia um tipo que é o corpo. Foucault caracteriza a ideia de que a
procedência se denuncia em corpos, se revela no processo fisiológico [...]” (RIBEIRO,
2018, p. 145).
O autor esclarece que Foucault fornece uma interpretação “politizada” acerca
do lugar de enfrentamento, que se refere aos diferentes discursos e normas, que
“batalham” entre si, na constituição do comportamento e das identidades dos
indivíduos. Desse modo, “[...] a fonte dos valores é vista como um espaço de
investimento de forças que exige conhecer um resultado dessa origem. Esse resultado
é o corpo que se produz” (RIBEIRO, 2018, p. 153, grifo do autor). Em outros termos,
Foucault não busca uma origem histórica do corpo como fenômeno biológico-

mulher se constituiu em oposição ao homem e o artigo de Scott (1995), em que a autora expõe a
importância do gênero enquanto categoria para análises sobre o corpo e o contexto histórico-social.
Ainda, destacamos o artigo de Nicholson (2000), no qual a autora apresenta sua análise acerca do
“fundacionismo biológico” e de que modo circunscrever as análises sobre a sociedade sem incluir a
problematização da mulher acabam por difundir discursos que não auxiliam na emancipação da mulher
de sua condição de submissão.
50

instintivo, pois ele procura colocar o corpo em uma dimensão histórica para que seja
possível indicar os processos de controle e os dispositivos de poder que são exercidos
sobre ele.
Ribeiro expõe ainda que, embora Foucault tenha herdado de Nietzsche o termo
“genealogia”, ele elabora seu próprio método genealógico. Isso gerou
questionamentos acerca da temática sobre o corpo no pensamento de Foucault:

o leitor de Nietzsche não estranhará alguém dizer que o corpo é resultado da


confrontação, a marca deixada na história e que o campo de forças é lugar
da confrontação. Mas certamente replicaria: qual corpo? Quais forças? Ou
seja, perguntar-se-iam: promove ou obstrui a vida? (RIBEIRO, 2018, p. 151).

Dessa maneira, “alcançar o corpo exige voltar-se para fora do corpo e analisar
tanto as regras do saber quanto as técnicas de poder que desenham o corpo com
seus efeitos” (FONSECA, 2015, p. 19). Cabe destacar que Foucault não ignorou a
“naturalidade” do corpo, ou melhor, os processos do corpo que são propriamente
biológicos e fisiológicos, mas ele procurou mostrar que as disciplinas e,
posteriormente, as biopolíticas (com maior ênfase e expansão), visavam
primordialmente controlar e modificar o corpo a partir de seus processos biológicos e
fisiológicos.
Neste sentido, Fonseca (2015, p. 31) propõe que o corpo em Foucault “[...] não
[é como] uma coisa disposta ao poder, mas uma instância que conjuntamente realiza
o poder ao materializá-lo no aparecer de uma forma específica”. Sob esta perspectiva,
Ribeiro (2018, p. 145) afirma que o corpo, no pensamento de Foucault, “[...] é visto
como marca ou estigma dos acontecimentos, em que esses critérios de ascendência
ou decadência da vida está diluído, ou seja, o corpo é efeito de luta” 29. Assim,
podemos compreender o movimento teórico de Foucault ao colocar o corpo sempre
em perspectiva contextualizada, no qual a temporalidade é circunscrita de forma física
no corpo. Por este motivo, o corpo é a materialidade das relações de poder próprias
de seu contexto de existência.
Fonseca (2015, p. 19-20) sublinha que “sem os discursos que pretendem
enunciar o corpo e sem as normas e práticas que o regulam, não parece haver lugar
para o corpo”. A partir deste cenário, podemos questionar se é possível pensarmos

29 A discussão sobre o corpo como efeito de lutas, por meio da análise da relação entre corpo e
resistência, será realizada no capítulo 3.
51

na existência de um indivíduo que não esteja “mergulhado” em relações sociais,


culturais, políticas, econômicas, etc.? Ou seja, que ser humano vive fora de alguma
sociedade ou sistema de relações sociais?
Uma possível resposta pode ser encontrada nos escritos de Foucault, ao
afirmar que o corpo

[...] também está diretamente mergulhado num campo político; as relações


de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o
dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais (FOUCAULT, 2013c, p. 28, grifo nosso).

E mais, para Fonseca (2015, p. 16), Foucault não objetivava definir o que é o
corpo, mas analisá-lo com base nos dispositivos de poder que o circunscrevem, que
“[...] afetam e desenham o corpo”. Ela acrescenta que, ao centralizar o poder sobre o
corpo, Foucault nega a existência do corpo fora dos sistemas de poder, bem como a
existência de um saber “neutro” sobre o corpo.
Sob esta perspectiva, a autora afirma que o corpo, para Foucault, é um espaço
no qual convergem diferentes discursos que, quando examinamos com mais atenção,
revelam as “[...] estratégias de produção de sentido e a construção de subjetividade”
(FONSECA, 2015, p. 16). No entanto, ela destaca que Foucault não relaciona a
produção de sentido no próprio corpo, mas o articula com os dispositivos de poder
que atuam sobre ele, por meio das estratégias e das técnicas que lhe são aplicadas.
Neste sentido, o que fundamenta o sistema de regras em cada sociedade são
os discursos produzidos, inclusive aqueles elaborados sobre o corpo. Como os
indivíduos vivem em sociedade (ainda que estejam marginalizados e excluídos
econômica e socialmente), em consequência, não há motivos para pensarmos um
corpo que não esteja circunscrito por discursos. Dessa forma, não há corpo sem
discurso, pois os corpos dos indivíduos estão circunscritos por discursos que os
categorizam e os distinguem, sobretudo de forma implícita ou difusa. Entretanto, o que
podemos conjecturar é a existência de indivíduos que conseguem se emancipar de
determinados discursos (e suas “verdades”) sobre o corpo, fazendo com que eles
elaborem discursos (e verdades) próprios acerca de seu próprio corpo30.
Nesta perspectiva, Harari (2017), afirma que todas as diferenciações sociais,
econômicas, culturais, religiosas, étnicas, etc., são “ficções”. Ele destaca que

30 Abordaremos a relação entre corpo e liberdade no capítulo 3.


52

leis e normas humanas transformaram algumas pessoas em escravos e


outras em senhores. Entre negros e brancos existem algumas diferenças
biológicas objetivas, como cor da pele e tipo de cabelo, mas não há evidência
de que essas diferenças se estendam à inteligência ou à moral. A maioria das
pessoas afirma que sua hierarquia social é natural e justa, enquanto as de
outras sociedades são baseadas em critérios falsos e ridículos. [...] Mas a
hierarquia de ricos e pobres, que autoriza os ricos a viver em bairros distintos
e mais luxuosos, estudar em escolas distintas e de mais prestígio e receber
tratamento médico em instalações distintas e bem equipadas, parece
perfeitamente sensata para muitos norte-americanos e europeus. Mas é um
fato comprovado que a maior parte dos ricos são ricos pelo simples motivo
de terem nascido em uma família rica, enquanto a maior parte dos pobres
continuarão pobres no decorrer da vida simplesmente por terem nascido em
uma família pobre (HARARI, 2017, p. 143).

Em outras palavras, o corpo expõe quem o indivíduo é na sociedade: sua classe


social, seu gênero, sua sexualidade, sua etnia, sua educação, sua concepção política.
O corpo mostra as distinções que o marcam31 e o determinam. Essas diferenciações
são constituídas a partir do contexto histórico, cultural, econômico, social e político,
bem como das relações as quais os indivíduos estão submetidos. Neste sentido, para
analisarmos o corpo, precisamos observá-lo e estudá-lo a partir das mais variadas
fontes, que o atravessam e o circunscrevem, incluindo a contextualização de sua
existência.

2.2 O corpo no centro dos dispositivos de poder modernos

No final do século XVII e início do século XVIII, as sociedades europeias


desenvolveram formas de exercício de poder nas quais seus principais dispositivos se
fixaram no corpo, com as disciplinas e visavam a regulação dos comportamentos
sociais, por meio das biopolíticas, constituindo assim o biopoder (FOUCAULT, 2010a,
2013a). Nossa abordagem abrange as duas acomodações do biopoder, mas se
aprofunda na análise da biopolítica, considerando que esta forma de exercício de
poder se consolidou e se propagou durante os séculos XIX e XX. O fortalecimento e

31Nesta perspectiva, o verbo “marcar” pode ser entendido como sinônimo de “ferretear”, isto é, como
algo que “marca a pele”, formando uma cicatriz que é visível a todos, não sendo possível que o indivíduo
esconda. Como exemplo, citamos: cor da pele e dos olhos; manchas; pintas; sardas; forma do rosto,
olhos e mãos oriundas de doenças genéticas (como a síndrome de Down, a psoríase e a vitiligo, por
exemplo) ou má-formação gestacional; e ainda, as tatuagens e os piercings; a forma e o corte de
cabelos; o uso de brincos e outros adornos, ou mesmo a ausência destes.
53

a disseminação dos dispositivos biopolíticos objetivavam o gerenciamento da


população, a organização das cidades, a maximização da produção capitalista, dentre
outros aspectos já mencionados.
A existência humana ocorre por intermédio de um corpo. Esse corpo é físico,
formado por matéria orgânica, que interage e se relaciona com outros corpos, também
feitos de carne e ossos, que habitam o mesmo espaço territorial. O indivíduo e seu
corpo são uma e mesma coisa, pois o indivíduo precisa de seu corpo para ser e estar
no mundo. Conforme Corbin et.al (2008), o corpo pertence ao domínio do sentir e da
sensibilidade, pois ele está no mundo imediato dos sentidos:

[...] um mundo que varia com as condições materiais, os modos de habitar,


os modos de garantir as trocas, de fabricar objetos, impondo modos
diferentes de experimentar o sensível e de utilizá-lo; um mundo que varia
também com a cultura [...] (CORBIN et.al, 2008, p. 07, grifos nossos).

Salientamos que, não apenas a cultura modifica o corpo, conforme afirmação


de Corbin et.al, mas todos os aspectos da sociedade no qual o indivíduo está inserido
podem acarretar mudanças corporais e no modo como os indivíduos percebem e
tratam seus corpos. Pellegrin (2008, p. 161), ao escrever sobre os usos do corpo,
mostra, por exemplo, que

[...] o andar, que nos parece uma atividade propriamente sem história, merece
atenção: ele se aprende de diversas maneiras pelo mundo afora e através
dos tempos. Na França do Antigo Regime, a aprendizagem – tardia – dos
primeiros passos foi por muito tempo facilitada, em todos os meios, pelo
recurso a andadores. Esses laços de tecido, tirado das bordas dos tecidos de
lã, para servir de cordões e costurados às roupas das crianças que
ensaiavam seus primeiros passos, parecem ter induzido um procedimento
que acostuma a criança, depois o adulto, “a jogar-se para frente numa atitude
em que o peito se torna o centro sobre o qual se apoia o peso do corpo”.

A imagem de Juan Pantoja de la Cruz (fig.01) mostra o uso desses laços de


tecido citado por Pellegrin, em contraste com o andador, utilizado na atualidade em
diversas sociedades ocidentais quando as crianças começam a dar seus primeiros
passos.
54

Figura 1

A autora destaca ainda que o calçado inicialmente era usado para cobrir os pés
e auxiliar na mobilidade dos indivíduos e, com o passar dos séculos, se tornou um
adorno que serviu para distinguir ricos e pobres, homens e mulheres, os que moravam
no campo dos que moravam na cidade, etc. Na imagem de Paolo Veronese (fig.02),
é possível observarmos o uso de sapatos pelos nobres, enquanto os serviçais estão
descalços.

Figura 2
55

Pellegrin (2008, p. 162) também relata que “os ricos andam o menos possível
e seus sapatos de tecido ou de couro fino só permitem movimentos contados, isto é,
pouco numerosos e criadores de movimentos de elasticidade calculada”, enquanto os
moradores do campo, e também os mais pobres, usavam tamancos, como podemos
observar nas imagens de Jean-François Millet (fig.03) e Vicenzo Campi (fig.04).

Figura 3

Figura 4
56

Ou ainda, nas estações mais quentes, andavam com os pés descalços, como
na pintura de Hubert Salentin (fig.05).

Figura 5

Em consequência, Pellegrin (2008) aponta que as pernas dos camponeses,


principalmente das mulheres, eram mais grossas e, muitas vezes, estavam sujas por
causa da lama, em contraste com as pernas finas e sapatos delicados das mulheres
nobres e burguesas da cidade, exemplificado na imagem de Louis Léopold Boilly
(fig.06). Esses exemplos simples ilustram como o corpo é marcado por diversas
condições que o determinam conforme a conjuntura no qual ocorre sua existência,
bem como o que se quer mostrar, esconder ou destacar.

Figura 6
57

CORBIN et.al (2008, p. 09) salientam que “[...] o corpo existe em seu invólucro
imediato como em suas referências representativas: lógicas ‘subjetivas’, também elas
variáveis com a cultura dos grupos e os momentos do tempo”. Isso porque o corpo
possui uma existência histórica que é circunscrita e delineada pelos acontecimentos
próprios de seu tempo. Harari (2017) nos expõe diversos exemplos de modificações
que ocorreram com o corpo humano após o início da ingestão de alimentos cozidos,
os quais somente foram possíveis a partir da produção32 do fogo. Ele também relata
como a gestação humana diminuiu de um ano e meio para, em média, nove meses,
com o passar das gerações, tendo em vista que o parto de bebês menores favorecia
a sobrevivência da mãe e do recém-nascido. Além disso, o autor afirma que

[...] como os humanos nascem subdesenvolvidos, eles podem ser educados


e socializados em medida muito maior do que qualquer outro animal. A
maioria dos mamíferos sai do útero como cerâmica vidrada saindo do forno –
qualquer tentativa de moldá-los novamente apenas irá rachá-los ou quebrá-
los. Os humanos saem do útero como vidro derretido saindo de uma
fornalha. Podem ser retorcidos, esticados e moldados com
surpreendente liberdade. É por isso que hoje podemos educar nossos filhos
para serem cristãos ou budistas, capitalistas ou socialistas, belicosos ou
pacifistas (HARARI, 2017, p. 18, grifos nossos). 33

A biopolítica considera o corpo como recurso que, conforme as circunstâncias,


deve ter maximizada a sua eficiência. Este é o “corpo político”, definido por Foucault
(2013c, p. 31) como

[...] o conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas,
de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de
poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo
deles objetos de saber.

A burguesia, segundo Foucault (2013a, 2013c), valorizou o próprio corpo,


intensificando sobre ele os cuidados com relação à saúde e às condições físicas,
elaborando dispositivos que maximizassem a vida. “Ao invés de uma repressão do
sexo das classes exploradas, tratou-se, primeiro, do corpo, do vigor, da longevidade,

32 O autor faz uma distinção entre as ações humanas de “dominar” e “produzir” o fogo. A “dominação”
do fogo corresponde ao período em que os humanos utilizavam o fogo que era naturalmente produzido,
como por exemplo, uma árvore em chamas devido a um raio. Já a “produção” do fogo é um período
posterior, em que os humanos desenvolveram habilidades em produzir, manusear e manter o fogo,
sem depender de fenômenos naturais para sua obtenção. Com isso, a alimentação se modificou devido
ao incremento de alimentos cozidos de modo cotidiano, acarretando o desenvolvimento do cérebro e
demais habilidades cognitivas (HARARI, 2017).
33 Essa discussão também é abordada por Badinter (1986), ao realizar a análise de como se

constituíram as relações entre homens e mulheres.


58

da progenitura e da descendência das classes que ‘dominavam’” (FOUCAULT, 2013a,


p. 134). O “investimento burguês” sobre o corpo ocorreu por meio da constituição de
saberes articulados às práticas de poder. Arasse (2008, p. 565) explica que

[...] a ciência anatômica revoluciona a definição física do organismo humano


e a instituição de regras de comportamento ou “civilidade” fixa, através do
controle de sua manutenção, uma nova representação do corpo socializado.
À primeira vista, essas duas práticas estão o mais distante possível uma da
outra: a anatomia busca, enquanto ciência médica, estabelecer as estruturas
objetivas do corpo e trabalha para esclarecer uma interioridade física
invisível; a civilidade, ciência social do “saber-viver”, dedica-se a estabelecer
as regras de uma retórica da conveniência que trata exclusivamente das
manifestações exteriores, visíveis, do corpo. A contemporaneidade de seu
desenvolvimento histórico convida para considerá-las como práticas
corolárias uma da outra, construindo simultaneamente uma consciência
“moderna” do corpo em sua estrutura física e sociabilidade.

Em decorrência disso, o corpo adquiriu valor político, no qual suas condições


de saúde e de sobrevivência, bem como suas sensações e prazeres passaram a se
relacionar ao quanto os indivíduos estavam dispostos a desembolsar por isso: quanto
maior a quantia gasta, melhores serão as condições de sobrevivência e de saúde. Em
outras palavras, quanto mais caro o produto, mais intensa será a sensação e o prazer.
Neste contexto, Foucault (2013a, p. 134) afirma que, foi na burguesia “[...] que se
estabeleceu, em primeira instância, o dispositivo de sexualidade como nova
distribuição dos prazeres, dos discursos, das verdades e dos poderes”.
Assim, o corpo e o sexo estão intimamente conectados no dispositivo da
sexualidade, principalmente porque a burguesia estava, segundo Foucault (2013a, p.
136),

[...] empenhada em se atribuir uma sexualidade e constituir para si, a partir


dela, um corpo específico, um corpo “de classe” com uma saúde, uma
higiene, uma descendência, uma raça: autossexualização do seu próprio
corpo, encarnação do sexo em seu corpo próprio, endogamia do sexo e do
corpo.

Neste sentido, a valorização do corpo por esse grupo, aliado à produção de


saberes e aos dispositivos de poder, visavam “cultuar”34 o corpo. Foucault expõe que
isso pode ser verificado pelas

34“Cultuar” o corpo no sentido de admirar, apreciar, adornar, adorar, enfocar, enfatizar, dar demasiada
importância.
59

[...] obras publicadas em número tão grande, no fim do século XVIII, sobre a
higiene do corpo, a arte da longevidade, os métodos para ter filhos de boa
saúde e para mantê-los em vida durante o maior tempo possível, os
processos para melhorar a descendência humana; eles atestam, portanto, a
correlação entre essa preocupação com o corpo e o sexo e um certo
“racismo”[35] (FOUCAULT, 2013a, p. 137).

Ainda, em sua análise sobre a sexualidade, Foucault (2013a, p. 118, grifo


nosso) afirma que

o dispositivo de sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas


o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada
vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais
global. [...] a sexualidade está ligada a dispositivos recentes de poder; esteve
em expansão crescente a partir do século XVII; a articulação que a tem
sustentado, desde então, não se ordena em função da reprodução; esta
articulação, desde a origem, vinculou-se a uma intensificação do corpo, à sua
valorização como objeto de saber e como elemento das relações de poder.

A família, durante este período, tornou-se uma instituição que passou a ter
importância fundamental na implementação dos dispositivos de sexualidade. Isso
porque, de acordo com Foucault (2013a), a família deve ser compreendida, naquele
contexto, como uma estrutura que tem como função constituir as sexualidades, os
comportamentos e controlar o corpo dos indivíduos que estão implicados nessas
relações, conforme as determinações dos dispositivos.

A célula familiar, assim como foi valorizada durante o século XVIII, permitiu
que, em suas duas dimensões principais – o eixo marido-mulher e o eixo pais-
filhos – se desenvolvessem os principais elementos do dispositivo de
sexualidade (o corpo feminino, a precocidade infantil, a regulação dos
nascimentos e, em menor proporção, sem dúvida, a especificação dos
perversos) (FOUCAULT, 2013a, p. 119).

Podemos perceber que isso ainda ocorre hodiernamente, pois a família é o


nosso primeiro “lugar social”, no qual estamos inseridos desde nosso nascimento. É
no ambiente familiar e, por intermédio dos outros indivíduos que compõe a família,
que aprendemos as regras, que compreendemos a nossa cultura, os costumes e as
tradições. É também, neste “espaço social”, nesse ambiente de convivência familiar,
que os dispositivos de poder têm sua maior penetrabilidade. Destaca o autor que, “por
sua penetrabilidade e sua repercussão voltada para o exterior, ela [a família] é um dos

35Neste texto, o “racismo” que Foucault cita se refere à questão da higienização das raças que, neste
período, está em “estado embrionário” até a segunda metade do século XIX, desdobrando-se, no século
XX, no nazismo e fascismo (FOUCAULT, 2010a, 2013a,).
60

elementos táticos mais preciosos para esse dispositivo [de sexualidade]”


(FOUCAULT, 2013a, p. 122)
A partir deste dispositivo, Foucault enfatiza a reorganização da família no final
do século XVIII:

os pais, os cônjuges, tornam-se, na família, os principais agentes de um


dispositivo de sexualidade que no exterior se apoia nos médicos e
pedagogos, mais tarde nos psiquiatras, e que, no interior, vem duplicar e logo
“psicologizar” ou “psiquiatrizar” as relações de aliança [36]. Aparecem, então,
estas personagens novas: a mulher nervosa, a esposa frígida, a mãe
indiferente ou assediada por obsessões homicidas, o marido impotente,
sádico, perverso, a moça histérica ou neurastênica, a criança precoce e já
esgotada, o jovem homossexual que recusa o casamento ou menospreza sua
própria mulher (FOUCAULT, 2013a, p. 121-122).

O Estado e as instituições aparecem, nesse contexto, como organizadores


dessas relações conjugais, sustentados por estudos da Pedagogia, da Medicina e da
Economia. O sexo não parou de ser tratado de modo incipiente, e se tornou o produto
de um determinado saber adquirido sobre o corpo. Neste sentido, o dispositivo de
sexualidade atuou de modo que “[...] todo o corpo social e quase cada um de seus
indivíduos eram convocados a porem-se em vigilância” (FOUCAULT, 2013a, p. 127).
A explosão de discursos acerca do corpo e da sexualidade derivadas de diferentes
áreas de saber, que ocorreu com mais expressão no século XIX, indicam o
investimento dos mecanismos de poder (e de saber) sobre o corpo, conforme
exemplifica Foucault:

[...] a análise da hereditariedade colocava o sexo (as relações sexuais, as


doenças venéreas, as alianças matrimoniais, as perversões) em posição de
“responsabilidade biológica” com relação à espécie; não somente o sexo
podia ser afetado por suas próprias doenças mas, se não fosse controlado,
podia transmitir doenças ou criá-las para as gerações futuras; ele aparecia,
assim, na origem de todo um capital patológico da espécie. Daí o projeto
médico, mas também político, de organizar uma gestão estatal dos
casamentos, nascimentos e sobrevivências; o sexo e sua fecundidade devem
ser administrados (FOUCAULT, 2013a, p. 129).

36 Foucault expõe que existiam sistemas de relações entre parceiros sexuais que funcionavam como
dispositivo de aliança: “[...] sistema de matrimônio, de fixação e de desenvolvimento dos parentescos,
de transmissão dos nomes e dos bens. [...] O dispositivo de aliança conta, entre seus objetivos
principais, o de reproduzir uma trama de relações e manter a lei que as rege; [...] o que é pertinente é
o vínculo entre parceiros com status definido; o dispositivo de aliança se articula fortemente com a
economia devido ao papel que pode desempenhar na transmissão ou na circulação de riquezas”
(FOUCAULT, 2013a, p. 117-118). O autor destaca que esse dispositivo foi perdendo a sua importância
visto que, com as novas relações econômicas e políticas, ele se tornou ineficaz diante da complexidade
das relações, sendo substituído pelo dispositivo de sexualidade.
61

O autor observou que o dispositivo da sexualidade não exerceu, inicialmente,


tanta influência nas classes mais pobres como na burguesia. Ele escreveu que, “ao
contrário, as técnicas mais rigorosas foram formadas e, sobretudo, aplicadas em
primeiro lugar com mais intensidade nas classes economicamente privilegiadas e
politicamente dirigentes” (FOUCAULT, 2013a, p. 131). O autor indica, ainda, que os
dispositivos de sexualidade foram disseminados aos operários das fábricas e aos
pobres de forma lenta, em três etapas.

Primeiro, em torno dos problemas da natalidade, quando se descobriu, no fim


do século XVIII, que a arte de enganar a natureza não era privilégio dos
citadinos e dos devassos [...]. Em seguida, quando a organização da família
“canônica” pareceu, em torno da década de 1830, ser um instrumento de
controle político e de regulação econômica indispensável para a sujeição do
proletariado urbano: grande campanha para a “moralização das classes
pobres”. Finalmente, quando se desenvolveu, no fim do século XIX, o controle
judiciário e médico das perversões, em nome de uma proteção geral da
sociedade e da raça (FOUCAULT, 2013a, p. 133).

Desse modo, Foucault expõe que a difusão do dispositivo da sexualidade


atingiu o corpo social como um todo apenas no final do século XIX, destacando que
ele “[...] não recebeu em todo lugar as mesmas formas, nem utilizou em toda parte os
mesmos instrumentos” (FOUCAULT, 2013a, p. 133). Em outras palavras, a
disseminação do dispositivo da sexualidade não aconteceu de modo organizado e
homogêneo: ele ocorreu de diversas maneiras, em diferentes períodos e momentos,
com intensidades distintas entre as classes. Isso ocorreu pois os dispositivos de
biopoder tem como característica a adaptação conforme o contexto no qual ocorrem.
Assim, na medida em que eles foram sendo implementados, também se adaptavam
para serem exercidos sobre o maior número de sujeitos. Além disso, conforme
mostramos anteriormente, a burguesia passou a se interessar sobre a sexualidade
dos pobres apenas quando isso se refletia na economia capitalista.
Foucault (2013a, p. 54) afirma que, de um modo geral, a sociedade burguesa
europeia, a partir do séc. XIX, “[...] é uma sociedade de perversão explosiva e
fragmentada”, em que as formas de poder se manifestaram, principalmente, por meio
dos discursos e das instituições. Esse tipo de poder não tem a forma de lei, nem
efeitos de interdição, mas o corpo é incluído no rol de especificações de como os
indivíduos devem ser e agir (FOUCAULT, 2013a). Dessa maneira, ele organiza os
lugares na sociedade, bem como produz e molda as sexualidades. Neste contexto,
“as condições de vida impostas ao proletariado, sobretudo na primeira metade do
62

século XIX, mostram que se estava longe de tomar em consideração o seu corpo e o
seu sexo [...] (FOUCAULT, 2013a, p. 138).
Isso mudou somente com a ocorrência de conflitos e com o surgimento de
epidemias e de doenças sexualmente transmissíveis, que foram associadas à
prostituição. Além disso, a necessidade crescente de mão de obra estável e
qualificada tornou o corpo (e a sexualidade) do proletariado motivo de preocupação e
vigilância do Estado e das instituições. Neste sentido, Foucault (2013a, p.138) afirma
que

[...] foi necessária, enfim, a instauração de toda uma tecnologia de controle


que permitia manter sob vigilância esse corpo e essa sexualidade que
finalmente se reconhecia neles (a escola, a política habitacional, a higiene
pública, as instituições de assistência e previdência, a medicalização geral
das populações, em suma, todo um aparelho administrativo e técnico
permitiu, sem perigo, importar o dispositivo de sexualidade para a classe
explorada [...].

Em decorrência, ocorreu o desenvolvimento de dispositivos que controlaram os


comportamentos, possibilitando a identificação das condutas consideradas
“desviantes” (ou “anormais”). O autor expõe que as perversões aparecem como
resultado desse poder sobre o corpo. Em outras palavras, a produção das perversões
e anormalidades são os efeitos da relação poder-prazer, que fora exercido sobre o
corpo e sobre a sexualidade por meio de dispositivos de poder complexos e positivos,
aliados às práticas de excitação e de intensificação dos discursos sobre o sexo
(FOUCAULT, 2013a).
Um outro aspecto destacado e estudado por Foucault (2013c) trata das
modificações que ocorreram, também neste período (qual seja, o final do século XVIII
e o início do século XIX), das formas de punição, com o desaparecimento dos
suplícios37. O autor expõe que, na Idade Média, os procedimentos de inquérito
objetivavam: (1) estabelecer a verdade de um crime; (2) determinar seu autor; e (3)
aplicar a sanção. Com base nisso, seria possível estabelecer uma verdade “bem
fundamentada” que garantiria um “bom julgamento” (FOUCAULT, 2013c). Com as
modificações que ocorreram no final do século XVIII, Foucault (2013c) afirma que as
punições não objetivam mais a violência sobre o corpo, mas sim o enclausuramento

37Os suplícios eram uma das formas de punição utilizada na Europa até o século XVIII. Em geral, eram
cerimônias nas quais o soberano realizava demonstrações públicas de seu poder aos súditos. De
acordo com Foucault (2010a, 2013a), o soberano tinha o poder de “fazer morrer”.
63

do corpo e sua docilização. Neste momento, inicia-se a criação de um sistema


judiciário que prevê penalidades e punições de acordo com o delito ou transgressão
praticado. Isto é, começa a se legislar sobre a vida privada dos indivíduos.
Desse modo, “[...] o corpo está preso no interior de poderes muito apertados,
que lhe impõe limitações, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 2013c, p. 132). Sob
esta perspectiva, o corpo, em sua materialidade, apresenta o indivíduo ao mundo 38,
comunicando como ele se relaciona com as regras e normas, se ele “cumpre com
suas obrigações”, e se ele respeita as proibições. Assim, o corpo revela traços da
identidade pessoal, cultural, econômica, política e social dos indivíduos, por meio de
suas vestimentas, dos gestos e posturas, pela maneira de falar, pelo peso e forma
que apresenta, pelo modo de caminhar e sentar-se, etc. Pellegrin (2008, p. 211) expõe
que as vestimentas, por exemplo, “[...] expressavam o mundo sem dizer uma palavra:
linguagem acessível a todos, justificação visual e explicitação das marcas próprias a
uma sociedade fundada no agenciamento orgânico e hierarquizado das diferenças”.
Matthews-Grieco (2008) relata os rituais de sedução e as práticas pré-nupciais
realizadas pelos jovens burgueses e nobres europeus: a corte era realizada pelo
jovem à donzela após o pai dela “dar o consentimento”, por meio de rituais que
incluíam, “[...] presentes, visitas, conversas íntimas, bilhetes carinhosos e expressões
de amor e devoção” (MATTHEWS-GRIECO, 2008, p. 227). Segundo ela, o casamento
das famílias ricas tinha como preocupação a origem das famílias, bem como a
situação financeira e econômica; em geral, os casamentos eram realizados por
contrato e os rituais de sedução eram supervisionados. Os jovens desse período
(século XVIII-XIX) estavam influenciados pelo romantismo, causando problemas,
algumas vezes, na escolha dos parceiros conjugais. O que difere das famílias das
classes médias e baixas que, de acordo com a autora, existia mais liberdade na
escolha matrimonial.
A autora salienta, ainda, que, com relação ao corpo,

38 Arendt (2000) aborda essa questão do corpo que apresenta o indivíduo ao mundo na obra A Vida do
Espírito, Volume 1 – O Pensar, Capítulo 1 – Aparência, em que ela trata da relação entre corpo e alma,
afirmando que aquilo que pensamos pode ser expresso por meio dos gestos, dos olhares, da maneira
como falamos. Além disso, a autora apresenta a problematização do corpo enquanto “auto-
apresentação”, que se constitui em uma escolha ativa e consciente quanto a exibição de determinadas
características do corpo em detrimento de outras. Nesta perspectiva, Arendt alerta para a possibilidade
de fraude e fingimento com relação aquilo que se mostra no corpo, que pode não expressar aquilo que
o indivíduo é, pois pode ser apenas uma construção com determinado fim, e não a exposição daquilo
que o indivíduo é enquanto sujeito das relações de poder.
64

[...] a linguagem corporal também desempenhava um papel importante por


ocasião das frequentações preliminares à corte amorosa. Quando faltavam
palavras, os gestos podiam bastar: piscadas de olho, apertos de mãos, beijos
furtivos, lutas disfarçadas, modos de comunicação simples e fáceis de
compreender podiam significar um interesse particular da parte de um/uma
jovem (MATTHEWS-GRIECO, 2008, p.230).

Podemos observar que estas práticas ainda ocorrem hodiernamente. Estes


exemplos corroboram com nossa análise de que o corpo e a forma como os indivíduos
fazem uso dele estão implicados e circunscritos em dispositivos de poder, que
conduzem as práticas sociais.

2.3 A produção de “verdades” e a formação de discursos

A partir do estudo do biopoder, como aquele que tem como centralidade a vida,
Foucault nos apresenta uma nova forma de operação dele. Conforme Ruiz (2007, p.
270), “o poder e a vida se coimplicam numa espécie de círculo vicioso em que o
Estado se apropria da potência da vida humana para incrementar seu poder, sendo o
poder absoluto do Estado a garantia de preservação da vida”. Neste sentido, a
apropriação da potência da vida humana pelo Estado serviu para promover o seu
poder, ao mesmo tempo em que ele visa a garantir a continuidade da vida. Contudo,
podemos perguntar como isso se legitima.
Ruiz (2007) aponta que o discurso sustenta a tensão entre os indivíduos, o
Estado e as instituições, como a escola, as universidades, a Igreja, os sindicatos, as
fábricas, os hospitais, etc. Isso ocorre porque a lógica desde discurso visa à
preservação da estrutura do Estado e a continuidade dos dispositivos de poder. Estes,
pretendem maximizar a produtividade dos corpos e não visam a melhoria da vida dos
cidadãos.
Nesta perspectiva, Foucault (2017, p. 346) destaca que “vivemos em uma
sociedade que, em grande parte, marcha ‘ao compasso da verdade’ – ou seja, que
produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e
que detêm por esse motivo poderes específicos”. Neste contexto, o discurso adquire
uma função “estratégica”, pois é por meio dele que o poder vai operar (FOUCAULT,
2015, p. 247). Ele afirma que:
65

não há exercício de poder sem uma certa economia dos discursos de verdade
que funcionam nesse poder, a partir e através dele. [...] somos forçados a
produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela
para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos
condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la. [...] Temos de produzir
a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos
de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado,
somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade
é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele
veicula, ele próprio propulsa os efeitos de poder. Afinal de contas, somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a
uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função
de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de
poder (FOUCAULT, 2010a, p. 22, grifos nossos).

As distinções entre “normais” e “anormais”, com base no discurso exemplifica


como se constituiu o que é considerado como verdadeiro ou falso nas sociedades.
Foucault (2014a) afirma que, em muitos casos, as verdades, elaboradas por meio de
um sistema de exclusão, são reforçadas na elaboração dos discursos. Entretanto, ele
expõe que, essas verdades,

[...] de saída, são arbitrárias, ou que, ao menos, se organizam em torno de


contingências históricas; que não são apenas modificáveis, mas estão em
perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de
instituições que as impõem e reconduzem; enfim, que não se exercem sem
pressão, nem sem, ao menos, uma parte de violência (FOUCAULT, 2014a,
p. 13, grifos nossos).

Acrescenta Foucault (2014a) que, se analisarmos apenas a estrutura interna


do discurso que separa o que é verdade do que é falso, não encontraremos
arbitrariedades, nem institucionalização do discurso, nem suas modificações ou
violências. Isso acontece porque o sistema interno do discurso está sustentado por
essas separações. Ou seja, o fundamento está implícito e condicionado a funcionar
desse modo.

Mas se nos situarmos em outra escala, se levantamos a questão de saber


qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade
de verdade que atravessou tantos séculos de nossa história, ou qual é, em
sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber,
então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico,
institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se (FOUCAULT,
2014a, p. 14).

Ele afirma que as mudanças significativas que marcaram a Modernidade foram


produzidas em decorrência do avanço nos estudos científicos e tiveram, como
consequência, novas formas de controle dos enunciados. Em outras palavras, as
66

modificações e as descobertas científicas alteraram a relação entre o discurso e a


verdade nos mais diversos níveis sociais, e não apenas epistemologicamente. Harari
(2017) afirma que os novos conhecimentos adquiridos na Modernidade auxiliaram na
resolução de diversos problemas. Como exemplo, ele expõe que,

à medida que a ciência começou a resolver um problema insolúvel atrás do


outro, muitos se convenceram de que a humanidade poderia superar todo e
cada um dos problemas que a aflige adquirindo e aplicando novos
conhecimentos. A pobreza, a doença, as guerras, a fome, a velhice e a
própria morte não eram o destino inevitável da humanidade. Eram
simplesmente fruto da nossa ignorância (HARARI, 2017, p. 275).

O discurso portador da verdade, neste contexto, passou a ser o discurso


científico, fundamentado em verdades que eram resultado das novas descobertas.
Antes, o discurso verdadeiro era o discurso do soberano: os indivíduos se submetiam
a ele, pois o rei era o portador da verdade, que “[...] pronunciava a justiça e atribuía a
cada um a sua parte [...]” (FOUCAULT, 2014a, p. 14). Ao soberano cabia separar o
que era verdadeiro e o que considerava falso. Muitas vezes, a demonstração da
autoridade da verdade do soberano era realizada por meio de cerimônias ritualizadas.
No início da obra Vigiar e Punir, Foucault apresenta a narração do suplício de
Damiens, no século XVIII: um “espetáculo” público de punição comandado pelo rei
(FOUCAULT, 2013c). Além de afirmar seu poder de governo e de promover a “justiça”,
os suplícios também serviam para que o soberano mostrasse seu discurso. Isto é, o
conjunto de enunciados verdadeiros que justificavam a pena aplicada, ao mesmo
tempo em que reforçava a submissão dos demais indivíduos às suas leis e ao seu
discurso verdadeiro.
Dessa maneira, na Modernidade ocorreu um deslocamento com relação a
quem determinava o que é verdadeiro e qual deveria ser o conjunto de enunciados
verdadeiros que constituiriam o discurso. Foucault (2014a, p. 14-15, grifos nossos)
expõe que,

[...] um século mais tarde, a verdade mais elevada já não residia mais no
que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou
um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de
enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu
objeto, sua relação a sua referência.

Neste sentido, os saberes desenvolvidos na Modernidade estavam alicerçados


em sistemas de exclusão que organizavam as práticas científicas. A busca por
67

“verdades” ocorreu, nesse contexto, por meio de pressão e de coerção por parte das
instituições, gerando a elaboração de discursos verdadeiros que passaram a reger a
sociedade:

como se para nós a vontade de verdade e suas peripécias fossem


mascaradas pela própria verdade em seu desenrolar necessário. E a razão
disso é, talvez, esta: é que o discurso verdadeiro não é mais, com efeito,
desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o
poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro,
o que está em jogo, senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a
necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode
reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade,
essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer
não pode deixar de mascará-la. Assim, só aparece aos nossos olhos uma
verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente
universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como
prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que ponto a ponto,
em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e
recolocá-la em questão contra a verdade [...] (FOUCAULT, 2014a, p. 19-20).

A problemática que se verifica no biopoder é que a verdade está


intrinsecamente ligada aos dispositivos sobre os quais ela deve operar. Com relação
às disciplinas, Foucault (2014a, p. 28-29, grifos nossos) explica que

[...] uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de


métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de
regras e definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma
espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se
dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu
ser seu inventor. [...] o que é suposto no ponto de partida, não é um sentido
que precisa ser redescoberto, nem uma identidade que deve ser repetida; é
aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados. Para que
haja disciplina, é preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de
formular indefinidamente, proposições novas.

Neste sentido, as disciplinas não precisam ser analisadas em sua origem para
serem válidadas e colocadas em práticas, bem como não necessitam que “iluminem”
aquilo que está oculto. No entanto, precisam dos elementos necessários para a
concepção (infinita) de novos enunciados considerados verdadeiros. Desse modo,
elas não são conjuntos de verdades sobre determinada coisa, mas são elaboradas a
partir de elementos verdadeiros e falsos, bem como de erros e acertos, “[...] que têm
funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes indissociável daquele
das verdades” (FOUCAULT, 2014a, p. 30).
Sob esta perspectiva, “no interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda
68

uma teratologia [39] do saber” (FOUCAULT, 2014a, p. 31). Para que um enunciado
seja considerado verdadeiro e seja incluído no discurso de uma determinada
disciplina, ele precisa cumprir critérios e satisfazer certas condições, que se compõem
em um horizonte teórico mais ou menos definido, tendo em vista que as disciplinas se
dirigem de forma direta e objetiva sobre o corpo. “Em resumo, uma proposição deve
preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma
disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se [...] ‘no
verdadeiro’.” (FOUCAULT, 2014a, p. 32).
As disciplinas funcionam com base no controle da produção de discursos e são
reforçadas e ampliadas com o uso de regras. As proposições e os enunciados devem
se submeter a essas regras para que a “verdade” ou a “falsidade” sejam identificadas.
O objetivo é o aumento da força produtiva de cada sujeito, considerando o efeito
multiplicador delas.
Tal qual a disciplina, a biopolítica também possui seus discursos e verdades,
os quais visam a garantir a operação de seus dispositivos, que orientam as práticas
dos sujeitos. Foucault (2013a) argumenta que a confissão40 foi amplamente utilizada
pela Pastoral Cristã com o objetivo de conduzir as condutas por meio do discurso.
Para isso, por exemplo, “a interdição de certas palavras, a decência das expressões,
todas as censuras do vocabulário [...]” transformaram as formas de comunicação,
tornando a linguagem “[...] moralmente aceitável e tecnicamente útil” (FOUCAULT,
2013a, p. 27). Em outros termos, o ritual de confessar propicia que o discurso daquele
que comete o pecado seja modelado e adestrado de duas maneiras. A primeira, pela
forma como o “pecador” deve relatar seus atos falhos, ou seja, como ele verbaliza a
narrativa de sua ação (constrói sua “verdade”). E, a segunda forma é por meio das
penalidades e sanções que lhe são aplicadas devido ao pecado cometido. Ou seja, a
interdição do discurso, como por exemplo: a proibição do uso de alguns termos, o
pudor em se falar sobre determinados assuntos e o constrangimento exercido sobre
a linguagem.

39 O termo “teratologia” se refere a área da medicina relacionada ao estudo das malformações e


anomalias genéticas e congênitas. Também podem ser considerados os estudos sobre as
“monstruosidades” e os “monstros” do corpo. No sentido utilizado por Foucault, se refere às
anormalidades que foram excluídas na constituição dos saberes.
40 “Confissão” é o ritual cristão no qual o fiel se dirige ao confessor e narra seus pecados e suas falhas

que estão em desacordo com as regras da Igreja. Esse ritual tem como objetivo (1) que o pecador
admita sua culpa perante a Deus, por meio do ato de confessar para seu representante na Terra (o
confessor) e (2) que se aplique uma punição conforme o pecado cometido.
69

Neste sentido, podemos entender que a biopolítica opera por meio da


“economia política da verdade”. A verdade, desse modo, pode ser caracterizada a
partir de cinco aspectos:

[1] a “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas instituições


que o produzem; [2] está submetida a uma constante incitação econômica e
política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto
para o poder político); [3] é um objeto, de várias formas, de uma imensa
difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de
informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande, não
obstante algumas limitações rigorosas); [4] é produzida e transmitida sob o
controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns aparelhos políticos ou
econômicos (universidade, Exército, escritura, meios de comunicação);
enfim, [5] é objeto de debate político e de confronto social (as lutas
“ideológicas”) (FOUCAULT, 2017, p. 52).

Assim, a verdade está associada aos sistemas de poder “[...] que a produzem
e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2017,
p. 54), funcionando de modo circular e cíclico. Neste contexto, a expansão da Pastoral
Cristã acentuou a relação entre a moralidade e o sexo na Modernidade. Machado
(2017, p. 30), explica que o poder pastoral se desenvolveu a partir do século XVI, mas
que se fortaleceu após a Reforma (1517) e a Contrarreforma (1545), caracterizando-
se “[...] pelo projeto de dirigir os homens, nos detalhes de sua vida, do nascimento até
a morte, para obrigá-los a um comportamento capaz de levá-los à salvação”. Isso
gerou a elaboração de determinados conjuntos de verdades, aliado à Medicina e à
Pedagogia, que serviam como fundamento dos dispositivos biopolíticos desenvolvidos
na época:

reconhece-se [...] as obsessões que a medicina e a pedagogia alimentaram,


a partir dos séculos XVII e XVIII, em torno do puro dispêndio sexual – aquele
onde não existe fecundidade nem parceiro; o esgotamento progressivo do
organismo, a morte do indivíduo, a destruição de sua raça e, finalmente, o
dano causado a toda a humanidade, foram, regularmente, ao longe de uma
literatura loquaz, prometido para aqueles que abusassem do seu sexo.
Esses medos induzidos parecem ter constituído a herança “naturalista” e
“científica”, no pensamento médico do século XIX, de uma tradição cristã
que colocava o prazer no campo da morte e do mal (FOUCAULT, 2012b, p.
23).

Nesse viés, Machado (2017, p. 31) entende que

trata-se, portanto, de um poder que não se exerce sobre um território, mas


sobre uma multiplicidade de indivíduos, velando sobre cada um deles em
particular. E Foucault se dedica a mostrar como esse poder se exerce sobre
70

o indivíduo com o objetivo de conhecimento exaustivo de sua interioridade,


da produção de sua verdade subjetiva, através das técnicas de confissão, do
exame da consciência, da direção espiritual.

O poder, desse modo, constitui seus dispositivos com base no que os sujeitos
dizem, sentem e naquilo que esperam dos outros e de si mesmos (FOUCAULT, 2017).
A produção de verdades, desse modo, constitui discursos que, em consequência,
organizam a sociedade de modo integral, isto é, se aplicam a todos os indivíduos
coletivamente. Como exemplo, Foucault cita as estratégias que apareceram na
França, a partir dos anos 1825-1830, que objetivavam a permanência dos operários
nas primeiras indústrias pesadas, ou seja, naquelas que fabricavam produtos para
outros setores, como siderúrgicas, metalúrgicas e produtos químicos:

pouco a pouco se forma em torno de tudo isso um discurso, o da filantropia,


o discurso da moralização da classe operária. Depois, as experiências se
generalizam, graças a uma rede de instituições, de sociedades que propõem,
conscientemente, programas de moralização da classe operária. Aí se vai
enxertar o problema do trabalho feminino, da escolarização das crianças e da
relação entre eles. Entre a escolarização das crianças, que é uma medida
central, tomada em nível parlamentar, e esta ou aquela forma de iniciativa
totalmente local tomada a respeito, por exemplo, do alojamento dos
operários, podem-se encontrar todos os tipos de mecanismos de apoio
(sindicatos patronais, câmaras de comércio, etc.) que inventam, modificam,
reajustam, segundo as circunstâncias do momento e do lugar, a ponto de se
obter um estratégia global, coerente e racional (FOUCAULT, 2017, p. 375).

Sob esta perspectiva, as propostas que pareciam expressar uma preocupação


do Estado com o bem-estar dos cidadãos, se mostraram malevolentes. Isso porque,
por exemplo, o incentivo à escolarização infantil, o estímulo ao trabalho feminino e a
criação de sindicatos, dentre outras medidas, estavam fundamentadas na concepção
de que se deve maximizar a produtividade dos corpos. A produção de verdades,
então, opera para que este objetivo seja “mascarado” pelo discurso de benefícios
sociais. Destacamos que estes benefícios acabaram se concretizando e gerando
benesses na vida dos indivíduos. Em contrapartida, a sujeição aos dispositivos de
poder se tornou mais eficaz. Isso porque a produção de verdades gera efeitos sobre
o sujeito, efeitos que são visíveis no corpo e alteram a forma como eles pensam e se
relacionam consigo mesmos, com os demais indivíduos e com o ambiente no qual
vivem.
Para além disso, e de um modo mais acentuado, a seleção de enunciados
considerados verdadeiros estabelece as condições nas quais os sujeitos se
71

relacionam e vivem suas vidas. Isso é devido à imposição de “[...] certo número de
regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles” (FOUCAULT,
2014a, p. 35). Ou seja, algumas normas impostas pelo biopoder estão mais “abertas”
a alterações, enquanto outras são impenetráveis. O conjunto de restrições que
fundamenta esse sistema qualifica os indivíduos que podem falar, define os momentos
para que esta ação acorra, determina a posição que os sujeitos ocupam em seu ato
de fala e, ainda, preconizam um conjunto de enunciados verdadeiros e adequados ao
dispositivo de poder.
Ao abordar a questão da verdade, Ribeiro (2018) indica que Foucault coloca
sobre a verdade um efeito suspensivo, em especial sobre a busca por uma origem
dessas verdades:

a pesquisa de origem é uma armadilha montada pelo modelo da verdade. A


verdade é sempre um efeito de verdade que consiste em oferecer um saber
presente finalizado. Ele se apresenta como possibilidade de veridicção do
discurso, mas este mesmo discurso nunca possui completamente a própria
verdade (RIBEIRO, 2018, p. 142-143).

Foucault se recusa a buscar uma origem primeira ou metafísica. Ele afirma que,
se existe uma origem, devemos buscá-la na História (FOUCAULT, 2017). Isso porque,
“a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 2017, p. 52). Dessa forma, o
autor se coloca em oposição às “[...] análises tradicionais que tentam encontrar sob o
acaso de aparência e de superfície, sob a brutalidade visível dos corpos e das paixões,
uma racionalidade fundamental, permanente, vinculada por essência ao justo e ao
bem” (FOUCAULT, 2010a, p. 228).
Até o final dos anos 1970, a questão da produção da verdade e dos discursos
que são formados a partir desse processo, foram analisados por Foucault como os
modos de intervenção e de separação entre indivíduos, constituindo distinções e
estabelecendo hierarquizações sociais. Entretanto, podemos identificar que há uma
modificação na abordagem de Foucault com relação a verdade, que se explicita nos
cursos proferidos no Collège de France a partir dos anos 1980. Segundo ele,

sob o título geral de “Subjetividade e verdade”, trata-se de começar uma


investigação sobre os modos instituídos de conhecimento de si e sobre sua
história: como o sujeito se estabeleceu, em diferentes momentos e em
diferentes contextos institucionais, como um objeto de conhecimento
possível, desejável e até indispensável? Como a experiência que se pode
72

fazer de si mesmo e o saber que se forma dela foram organizados por meio
de alguns esquemas? Como seus esquemas foram definidos, valorizados,
recomendados, impostos? (FOUCAULT, 2014b, p. 349).

O deslocamento realizado na análise sobre a verdade tem como norteador o


estudo das “técnicas de si”. Estas são compreendidas enquanto

[...] procedimentos, como existem provavelmente em toda civilização, que são


propostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou
transformá-la em função de certo número de fins, e isso graças a relações de
domínio de si sobre si ou de conhecimento de si. Em suma, trata-se de
recolocar o imperativo “conhecer-se a si mesmo”, que nos parece tão
característico de nossa civilização, na interrogação mais vasta e que lhe
serve de contexto mais ou menos explícito: O que fazer de si mesmo? Que
trabalho operar sobre si? Como “se governar” exercendo ações em que se é
em si mesmo o objeto dessas ações, o domínio no qual elas se aplicam, o
instrumento ao qual elas recorrem e o sujeito age? (FOUCAULT, 2014b, p.
349).

Gros afirma que Foucault, no curso proferido em 1984 no Collège de France,


intitulado A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II (FOUCAULT, 2011),
apresenta o desenvolvimento do conceito de verdade, “[...] decididamente original e
que encontra [...] na filosofia antiga uma inscrição maior, largamente ocultada pelo
regime moderno dos discursos e dos saberes” (GROS, 2011, p. 304). Neste curso,
Foucault (2011) analisa a “parresía”, conceito dos filósofos gregos antigos que
significa “dizer a verdade”, por meio de atos de “fala franca”, isto é, de ter a coragem
de dizer a verdade sem medo dos riscos e das consequências daquilo que é dito.
Entretanto, esse “dizer a verdade” constitui uma relação entre indivíduos cujo vínculo
entre aquele que fala e aquele que escuta deve ser forte e necessário. Desse modo,
o “jogo parresiástico” se constitui a partir da coragem da verdade daquele que fala
juntamente com a coragem da verdade daquele que ouve, isto é, o ouvinte precisa
aceitar o que é dito (FOUCAULT, 2011).
A relação entre os indivíduos, com base nesse “jogo” de dizer a verdade, exige
a prática, ou seja, precisa ser realizado constantemente. Isso porque, explica Foucault
(2011), nesta relação, um sujeito conhece o outro e, ao mesmo tempo, limita o outro,
bem como a si mesmo. Assim, a parresía analisada no campo político, corresponde
às “[...] relações de poder e de seu papel no jogo entre o sujeito e a verdade”
(FOUCAULT, 2011, p. 09). A verdade, articulada com a política, compreendida
enquanto relação entre sujeitos, se estende para a constituição do sujeito moral.
Nesta perspectiva, conforme Foucault (2012b, p. 34), “conduzir-se” é
73

[...] a maneira pela qual [o indivíduo] deve constituir a si mesmo como sujeito
moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o
código. Dado um código de ação, e para um determinado tipo de ações (que
se pode definir por seu grau de conformidade ou divergência em relação a
esse código), existem diferentes maneiras de “se conduzir” moralmente,
diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente
como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação.

Em outras palavras, os indivíduos constituem sua moralidade a partir das


maneiras como interagem com as regras e com as normas. Foucault afirma que a
variedade com que os indivíduos se constituem como sujeitos morais é devido aos
diversos “modos de subjetivação”, que consistem nessas maneiras pelas quais “[...] o
indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se reconhece como ligado à
obrigação de pô-lo em prática” (FOUCAULT, 2012b, p. 35). Nesta perspectiva,
entendemos que isso pode ser aprimorado por meio do “jogo parresiástico”, pois a
prática de dizer a verdade de modo franco conduz à reflexão das ações realizadas.
Este é o percurso teórico delineado por Foucault acerca da verdade e das suas
formas de produção. Inicialmente, ele analisou as verdades resultantes da relação
entre poder e saber, que conduziram as práticas sociais, pois estavam articulados aos
dispositivos de biopoder. A verdade, por esta perspectiva, adquire seu modo negativo,
considerando que opera limitações, proibições e obrigações, principalmente sobre o
corpo. Porém, posteriormente, ele também procurou estabelecer de que modo os
indivíduos constituem a si mesmos, elaborando verdades para si, que formam sua
moralidade e conduzem suas práticas sociais. Esse modo positivo da produção de
verdades está relacionado ao sujeito e à sua coragem em assumir, para si e para os
outros, o seu discurso verdadeiro.

2.4 A normalização dos corpos

A produção de verdades, tal como analisada por Foucault, seja em sentido


negativo ou positivo, gera efeitos sobre o corpo. Posto que as verdades estão
fundamentadas em sistemas de distinções, o corpo expõe essa materialidade. A união
das disciplinas e das biopolíticas, por meio do biopoder, formou o que ele denominou
por “sociedade de normalização”, ou seja, uma sociedade que é ordenada a partir das
normas que elaboram distinções entre os indivíduos. Neste sentido, ele expõe que
74

o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente


pela consciência ou ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina [por exemplo] é
uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2017, p. 144, grifos nossos).

Isso pode ser verificado quando observamos como as relações com o corpo
foram modificadas no decorrer do tempo nas sociedades europeias. Assim, podemos
retomar o pensamento do autor quando ele afirma que o biopoder não se desenvolveu
da mesma maneira em todos os lugares, sequer no mesmo momento. Dessa forma,
ele apresenta como exemplo as distinções entre a constituição da sociedade de
normalização alemã e francesa. Na Alemanha,

[...] será efetivamente posta em aplicação no final do século XVIII e começo


do século XIX. [...] Aparece a ideia de uma normalização do ensino médico
e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e
atribuição dos diplomas. A medicina e o médico são, portanto, o primeiro
objeto de normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se
começa por aplicá-la ao médico (FOUCAULT, 2017, p. 148-149).

Em outros termos, os processos de normalização alemães tinham como


objetivo o controle da produção dos saberes médicos. E, por este motivo, foi
implementado nos ambientes de ensino da medicina. Na França,

[...] a normalização das atividades, no nível do Estado, dirigiu-se, a princípio,


à indústria militar. Normalizou-se primeiro a produção dos canhões e dos
fuzis, em meados do século XVIII, a fim de assegurar a utilização por qualquer
soldado de qualquer tipo de fuzil, a reparação de qualquer canhão em
qualquer oficina etc. Depois de ter normalizado os canhões, a França
normalizou os professores. As primeiras Escolas Normais, destinadas a dar
a todos os professores o mesmo tipo de formação e, por conseguinte, o
mesmo nível de qualificação, apareceram em torno de 1775, antes de sua
institucionalização em 1790 ou 1791. A França normalizou seus canhões
e seus professores, a Alemanha normalizou seus médicos (FOUCAULT,
2017, p. 149, grifo nosso).

Outro exemplo de como a “normalização” objetiva a condução do


comportamento e está relacionada à Medicina, à Pedagogia e à Pastoral Cristã, é
analisado por Foucault a partir das práticas contraceptivas que eram realizadas no
século XVIII, articuladas a uma biopolítica de estímulo à natalidade e de que modo
isso influenciou (1) a prática de amamentação pelas mulheres e (2) as relações
sexuais dos casais com bebês lactentes:
75

[...] havia uma espécie de circuito que fazia com que as crianças nascessem
uma após as outras. Com efeito, a tradição médica e popular dizia que uma
mulher, quando estivesse aleitando, não tinha mais o direito de manter
relações sexuais, do contrário o leite estragaria. Então as mulheres,
sobretudo as ricas, para poderem recomeçar a ter relações sexuais e assim
segurar seus maridos, enviavam seus filhos para a ama de leite. Havia uma
verdadeira indústria do aleitamento. As mulheres pobres faziam isso para
ganhar dinheiro. Mas não havia nenhum meio de verificar como a criança
estava sendo criada, nem mesmo se a criança estava viva ou morta. De tal
forma que as amas de leite, e sobretudo os intermediários entre as amas e
os pais, continuavam a receber pensão de um bebê que já tinha morrido.
Algumas amas tinham um índice de dezenove crianças mortas em vinte que
lhe haviam sido confiadas. Era terrível! Foi para evitar essa desordem, para
restabelecer um pouco de ordem, que se encorajam as mães a aleitar seus
filhos. Imediatamente acabou a incompatibilidade entre a relação sexual e o
aleitamento, mas com a condição, é claro, de que as mulheres não ficassem
grávidas imediatamente depois (FOUCAULT, 2017, p. 405).

A conclusão que Foucault expressa, na maior parte de seus estudos, é a de


que o indivíduo é um dos efeitos do biopoder. Conforme Fonseca (2011, pos. 1305),
“o sujeito não é dado definitivamente na história, mas constitui-se no interior dela. [...]
antes de origem e fonte, o sujeito é produto e efeito”. Dito de outra forma, a
individualidade é constituída a partir das formas como as normalizações incidem sobre
seu corpo e, consequentemente, sobre si mesmo. Como os discursos são elaborados
com base em um conjunto de produção de verdades que atuam diretamente sobre os
corpos dos sujeitos, os modos de sujeição, tal como indicados por Foucault,
necessariamente ocorrem na relação do sujeito com as normas e com o seu corpo.
Ou seja, não há como o indivíduo elaborar seus modos de pensar, de sentir e de agir
no mundo sem considerar a materialidade de seu corpo, as regras necessárias a
cumprir com ele e o que está disposto (ou não) a fazer. Por este motivo, os dispositivos
de poder modernos estão centrados no corpo: ele é produtivo, seja pela força física
para o trabalho, seja pela capacidade intelectual em produzir conhecimento ou
governar os indivíduos.
Contudo, se considerarmos a proposta foucaultiana de constituição de relações
nas quais o indivíduo constitui a si mesmo e seu corpo por meio de “jogos de verdade”,
podendo assim refletir sobre as normas e constituir sua moralidade na relação com o
outro, poderíamos questionar se é possível, desse modo, a cada um exercer a
liberdade sobre o próprio corpo. Foucault afirma que as relações entre os indivíduos
se constituem: (1) entre sujeitos livres, (2) são circunscritas por dispositivos de poder,
e (3) se há poder, haverá resistência, pois (4) as relações são dinâmicas. Em outros
76

termos, a liberdade se relaciona com o biopoder, influenciando na relação do indivíduo


consigo mesmo, com seu corpo e nas suas relações sociais.
77

3. A SUJEIÇÃO AO PODER E AS PRÁTICAS DE LIBERDADE

A produção de “verdades” sobre os corpos forma os discursos que estão no


fundamento dos dispositivos de poder. Por meio desses dispositivos, o poder é
exercido nas relações interpessoais e visa à normalização dos corpos e dos
comportamentos. Desse modo, investigamos de que maneira o poder organiza seus
dispositivos para que os indivíduos se sujeitem às técnicas de poder, mas sem
manifestar resistência. Para compreendermos a relação entre o sujeito, os dispositivos
de poder e a possibilidade de agir com liberdade, precisamos retomar a analítica do
poder no pensamento foucaultiano. Nela, o autor concebe o poder de modo dinâmico,
que se exerce entre indivíduos por meio de suas ações.
A liberdade, assim como o poder, é exercida por meio de práticas. Nesta
perspectiva, ela se mostra, em um primeiro momento, como necessária para a
existência das relações de poder, enquanto “resistência” (anos 1970). Mas, a partir
dos anos 1980, Foucault modifica seu entendimento acerca da liberdade, incluindo a
reflexão ética em seu estudo. Há, então, duas abordagens foucaultianas sobre a
liberdade: “liberdade política” e “liberdade ética”. Destacamos que a liberdade, mesmo
enquanto ética, tem como objetivo a resistência ao poder, mas que ocorre somente
de modo refletido (isto é, após o pensamento crítico).
Neste contexto, a relação do sujeito com as possibilidades de práticas de
liberdade acontece quando eles se constituem enquanto indivíduos circunscritos por
essa relação dinâmica entre poder e liberdade. A resistência se mostra como uma
primeira forma de exercício da liberdade, ainda que cerceada pelos dispositivos de
poder que tendem a normalizar as condutas dos sujeitos. Além disso, a liberdade ética
nem sempre é atingida pois está sempre em devir, ao exigir a reflexão de cada um
dos indivíduos.
78

3.1 O poder na perspectiva de Foucault

A análise foucaultiana sobre o poder apresenta um outro viés de abordagem


sobre o tema quando relacionado as teorias tradicionais, que o concebem como direito
de um soberano ou como competência do Estado. Foucault afirmou diversas vezes
que ele não fizera uma teoria sobre o poder. Questionou, ainda, a necessidade em
elaborá-la:

Será preciso uma teoria do poder? Uma vez que uma teoria assume uma
objetivação prévia, ela não pode ser afirmada como uma base para um
trabalho analítico. Porém, este trabalho analítico não pode proceder sem uma
conceituação dos problemas tratados, conceituação esta que implica um
pensamento crítico – uma verificação constante (FOUCAULT, 1995, p. 232).

O destaque fornecido pelo autor em seus estudos parte da noção de que o


poder se organiza em dispositivos. Ele afirmou que

o poder não existe. [...] a ideia de que existe, em determinado lugar, ou


emanando de um determinado ponto, algo que é o poder, me parece baseada
em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de certo número
considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações
mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos
coordenado (FOUCAULT, 2017, p. 369).

Nesse contexto, de acordo com Machado (2017, p. 07),

a questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de


Michel Foucault. Surgiu em determinado momento de suas pesquisas,
assinalando uma reformulação de objetivos teóricos e políticos que, se não
estavam ausentes dos primeiros livros, ao menos não eram explicitamente
colocados [...].

Além disso, o mesmo comentador explicita que, por não haver uma teoria geral
do poder em Foucault, suas análises

[...] não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza,
uma essência que ele procuraria definir por suas características gerais
universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente
formas díspares, heterogêneas, em constante transformação (MACHADO,
2017, p. 12).

Machado (2017, p. 12) afirma ainda que “o poder [para Foucault] não é um
objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, [é] constituída
79

historicamente”. Desse modo, objetivando não elaborar uma teoria do poder, Foucault
analisou os modos como o poder se exerceu em determinado período, explicitando
que determinadas práticas, mesmo sem terem sido orientadas pelo Estado, ocorrem
cotidianamente nas relações interpessoais. Neste sentido, Foucault (2015, p. 226)
explica que,

na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por


conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de
algum modo. Se é verdade que essas pequenas relações de poder são com
frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado
ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em
sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só
podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder.

Nesta perspectiva, o poder não se refere apenas às instituições ou ao Estado,


mas a um tipo de poder específico que perpassa as relações sociais, denominado por
Foucault (2013c, 2017) como “microrrelações de poder”. O autor destaca a existência
de poder nessas microrrelações para mostrar que elas fundamentam as relações em
um nível macro, isto é, aquelas nas quais há o intermédio do Estado e das instituições.
Desse modo, Foucault orienta seus estudos problematizando não o poder e a sua
conceituação, mas questionando seus dispositivos e como eles se formam e como
entram em funcionamento, bem como mostrar quais estratégias utilizam. Ainda, ele
analisa as relações de poder não somente pelo aspecto econômico, no qual há uma
tendência de considerar apenas em termos negativos e repressivos como efeito do
capitalismo.
Foucault aprofunda sua investigação destacando a necessidade de realizar
análises regionalizadas sobre o poder, expondo o contexto no qual elas ocorrem,
visando mostrar onde “[...] o poder, em suas extremidades, em seus últimos
lineamentos, [...] se torna capilar [...]” (FOUCAULT, 2010a, p. 24-25). Rojas (2011)
afirma que a microfísica do poder, em Foucault, é uma situação na qual não há uma
impossibilidade agressiva mas, por se tratar de uma relação, ocorre mediante o
desenvolvimento social do indivíduo, em que ele adquire certas disciplinas, muitas
vezes sem perceber, isto é, sem estar ciente.
Essas microrrelações são as relações hodiernas: família, parentes, amizades,
relações amorosas, casamentos, vizinhança, relações de trabalho, em ambientes
sociais e públicos. Essas relações não precisam de uma instituição ou do Estado para
as mediar, pois ocorrem no fluxo da vida. Contudo, elas são ordenadas e conduzidas
80

conforme as regras que estão estabelecidas pelos dispositivos de poder para o


convívio entre os sujeitos. Essas regras são fundamentadas por discursos que formam
os dispositivos de biopoder41.
De acordo com Foucault (2017), as microrrelações configuram o poder
enquanto um exercício no qual um indivíduo governa e controla outro(s) indivíduo(s).
Em outras palavras, o poder existe apenas quando ele se exerce por meio de ações
que visam administrar o corpo e a vida do(s) outro(s). Isso acontece de forma
espontânea no cotidiano dos indivíduos, podendo apresentar práticas positivas, como
por exemplo, quando os pais ensinam hábitos de higiene corporal aos filhos, tais como
tomar banho e escovar os dentes, para que evitem doenças e cáries. Ou ainda,
negativas, quando um estudante burla as regras e “cola” em uma prova, para não ser
reprovado.
Neste sentido, a preocupação de Foucault foi a de analisar o poder como
práticas que são fixadas e consideradas habituais nas relações entre os indivíduos,
afirmando que

em toda parte onde há poder, o poder se exerce. Ninguém, para falar com
propriedade, é seu titular; e, no entanto, ele se exerce sempre em uma certa
direção, com uns de um lado e outros de outro; não se sabe ao certo quem o
tem; mas se sabe quem não o tem (FOUCAULT, 2015, p. 42-43).

Foucault (2010a) afirma ainda que o poder deve ser considerado como exercido
em rede, em cadeia, pois ele circula, transita, se move entre os indivíduos. Nos termos
de Foucault (1995, p. 242):

o exercício do poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros”


individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros. O que
quer dizer, certamente, que não há algo como o “poder” ou “do poder” que
existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou
distribuído: só há poder exercido por “uns” sobre os “outros”; o poder só existe
em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso
que se apoia sobre estruturas permanentes.

Sob esta perspectiva, ele explicita a necessidade de abordar as formas como


se realizam as relações de poder, considerado que este apenas se manifesta nas
ações entre os indivíduos. A investigação dele mostrou que o poder não é algo que

41 Sobre a relação entre o discurso e o biopoder, vide cap. 1.


81

está além dos indivíduos, mas que está presente no cotidiano, coordenando as ações
entre os sujeitos, organizando as relações. Foucault (1995, p. 243) expõe que,

de fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não
age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria
ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou
presentes. [...] Uma relação de poder, [...], se articula sobre dois elementos
que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o
outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e
mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante da relação
de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções
possíveis.

Por este motivo, ele salienta que as relações de poder são produtivas e não
somente repressivas, apresentando a questão: “se o poder fosse somente repressivo,
se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?”
(FOUCAULT, 2017, p. 44). Neste sentido, as relações de poder devem ser produtivas:
para que os indivíduos submetidos ao poder ajam conforme o esperado. Assim, o
exercício do poder se configura como

[...] um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo
de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele
incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, toma mais
ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é
sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto
eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT,
1995, p. 243).

Desse modo, o poder funciona por meio de técnicas, mecanismos, estratégias


e dispositivos, que atuam nos diferentes níveis da vida dos sujeitos. As técnicas e os
mecanismos de poder operam no nível do corpo, correspondendo ao poder disciplinar,
o qual detalha o corpo para controlá-lo. Ao mesmo tempo em que as estratégias e os
dispositivos ocorrem em um nível social, buscando efetivar determinados
comportamentos. Eles regulamentam também as práticas sociais, alinhando-se com
a biopolítica.
Reiterando, o biopoder tem como base o discurso, e este está alocado nos
dispositivos. As “verdades” produzidas pelo discurso formam um conjunto de
enunciados que sistematizam os dispositivos, tornando-os sutis e, desse modo, mais
eficazes. O dispositivo opera de modo sutil, para que os indivíduos não se apercebam
enquanto submissos às normas e às regulamentações do poder, fazendo com que
eles mantenham e reproduzam a sua condição de sujeição.
82

Esse poder que se aplica ao corpo do indivíduo perpassa o corpo social e


circunscreve todas as relações dos sujeitos. Desse modo, os indivíduos sujeitados
(aqueles que estão submetidos aos dispositivos de poder) se constituem como um
efeito do biopoder, sem o saber. A subordinação de um indivíduo ao governo de
outrem, assimilando os discursos dos dispositivos de poder, reproduzindo-os
socialmente, forma a sujeição. Desse modo, os indivíduos se constituem como
“sujeitos sujeitados”, pois estão constantemente sendo modelados pelos dispositivos
de poder, em especial os biopolíticos, que têm se tornado mais eficientes ao longo da
História42.
A configuração do poder, enquanto exercício de uns sobre os outros, em que
as ações controlam as ações futuras, gera a sensação de que o poder está sempre
presente na vida dos indivíduos. Conforme Foucault (2015, p. 243),

é verdade, parece-me, que o poder “já está sempre ali”; que nunca estamos
“fora”, que não há “margens” para a cambalhota daqueles que estão em
ruptura. Mas isso não quer dizer que se deva admitir uma forma incontornável
de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca se possa estar
“fora do poder” não quer dizer que se está inteiramente capturado na
armadilha.

Isso porque os dispositivos e os mecanismos de poder atuam de forma sutil e


constante. O discurso que os fundamenta penetra as relações interpessoais de forma
tão profunda, circunscrevendo quase totalmente a vida dos indivíduos, dificultando
que cada um deles compreenda o modo como as relações ocorrem. Por este motivo,
há um exercício de poder constante e “invisível”: eles estão impregnados na forma
como os indivíduos constituem as suas relações. Segundo Foucault (1995, p. 245-
246),

[...] as relações de poder se enraízam profundamente no nexo social; e [...]


elas não reconstituem acima da “sociedade” uma estrutura suplementar com
cuja obliteração radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de
qualquer maneira, viver de modo que seja possível a alguns agirem sobre a
ação dos outros.

De acordo com Sampaio (2011), o poder não está situado em apenas uma
esfera da sociedade: ele se espalha entre as instituições e os indivíduos, circulando
entre os micros e macros poderes, causando ações e reações entre os sujeitos. Desse

42Segundo Fonseca (2011, pos. 1492), “a biopolítica do corpo e a biopolítica da população compõem
a espécie de relações de poder que marcam a atualidade.”
83

modo, o poder se configura na capacidade de, sem o uso da violência, conduzir as


condutas dos indivíduos. Ele é uma força produtiva que converte o corpo e o
comportamento para se fazer aquilo que se deseja; é sempre exercido por uma
relação entre pessoas que exercem poder umas sobre as outras (ROJAS, 2011).
No entanto, Foucault salienta que as relações são dinâmicas. Ou seja, há a
possibilidade das relações de poder se alterarem, fazendo com que o poder opere
como um “jogo” entre os indivíduos. Essa dinâmica em forma de “jogo” permite que
os indivíduos submetidos ao poder possam exercê-lo em outro momento ou contexto.
Em outras palavras, o sujeito que está submetido ao poder sempre pode exercê-lo.
Essa característica das relações faz com que o poder oscile, indicando a necessidade
de liberdade nas relações de poder.
Foucault (2013a) mostra que o poder opera de dois modos sobre os indivíduos:
(1) ele é exercido de forma negativa, por meio de regras, interdições e censuras,
constituindo indivíduos sujeitados, que obedecem à “mecânica do poder”; e (2) ele é
exercido de forma positiva, produzindo saberes, formas de relacionar-se, desejos e
sexualidades. Isso porque o poder atua no limite da liberdade: “o poder, como puro
limite traçado à liberdade, pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua
aceitabilidade” (FOUCAULT, 2013a, p. 97). A resistência aos dispositivos de poder
impossibilita que ele se exerça apenas de forma repressiva. Para que o poder se
efetive, se mantenha e se atualize, ele precisa ser exercido de maneira positiva, isto
é, precisa ser produtivo.
Assim, o poder necessita produzir algum sentido e significado na vida dos
sujeitos, de modo que eles acreditem serem livres, mesmo quando estão apenas
reproduzindo os discursos e as práticas de poder existentes. Em outras palavras, é
porque existe um espaço para a liberdade que o poder circula entre os sujeitos, nas
relações. Neste sentido, a liberdade está articulada com o poder enquanto condição
para que as relações ocorram.
84

3.2 A relação entre a liberdade e o poder

A dinâmica do poder, conforme concebida por Foucault, é assegurada por meio


da liberdade. Ela é necessária para que ocorram as relações de poder, ao mesmo
tempo em que está sujeitada a ele. Foucault (1995, p. 244, grifos nossos) explica que,

quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as


ações dos outros, quando as caracterizamos pelo “governo” dos homens, uns
pelos outros – no sentido mais extenso da palavra, incluímos um elemento
importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”,
enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos
que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas,
diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer.
Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a
escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado
(trata-se então de uma relação física de coação) – mas apenas quando ele
pode se deslocar e, no limite, escapar. Não há, portanto, um confronto entre
poder e liberdade, numa relação de exclusão (onde o poder se exerce, a
liberdade desaparece); mas um jogo muito mais complexo: neste jogo, a
liberdade aparecerá como condição de existência do poder (ao mesmo
tempo sua precondição, uma vez que é necessário que haja liberdade para
que o poder se exerça, e também seu suporte permanente, uma vez que se
ela se abstraísse inteiramente do poder que sobre ela se exerce, por isso
mesmo desapareceria, e deveria buscar um substituto na coerção pura e
simples da violência); porém, ela aparece também como aquilo que só poderá
se opor a um exercício de poder que tende, enfim, a determiná-la
inteiramente.

Desse modo, ele destaca a necessidade dos sujeitos serem livres para que o
poder seja exercido, configurando-se como relações de força. Do contrário, serão
apenas relações em que um indivíduo tem a posse sobre o corpo do outro, como
exemplificado pelo autor, nas relações de escravidão. Nessas relações, o poder opera
de outra forma, não havendo liberdade nos termos teorizados por ele. A liberdade
articulada como condição para o poder permite que qualquer indivíduo possa exercer
o poder em alguns momentos.
Este condicionante do poder, apresentado por Foucault, tornou mais complexa
a análise do que o autor compreende por liberdade. De acordo com Sampaio (2011,
p. 226), a liberdade como condição para o poder “[...] introduz a liberdade quase como
um imperativo das relações de poder, ainda que, paradoxalmente, estas produzam
efeitos que a limite ou a incite”. Entretanto, a autora destaca que “[...] a presença da
liberdade é útil para dissociar a ideia das relações de poder balizadas como campo
de construção de obediência” (SAMPAIO, 2011, p. 227), além de facilitar a
compreensão das modificações que ocorrem nas relações de poder. Sob esta
85

perspectiva, no pensamento de Foucault, a liberdade pode ser compreendida em


termos políticos e éticos. Castro (2009, p. 246) explica que

[...] o conceito foucaultiano de liberdade surge com base na análise das


relações entre sujeitos e na relação do sujeito consigo mesmo, as quais se
denominam, em termos gerais, poder. E isso de uma dupla maneira: nas
relações de poder que se estabelecem entre diferentes sujeitos e nas
relações de poder que o sujeito pode estabelecer consigo mesmo.

Isso decorre dessa relação na qual a liberdade será sempre insubmissa ao


poder (FOUCAULT, 1995). Foucault (2015, p. 377) afirma que “se um indivíduo pode
permanecer livre, por mais limitada que possa ser sua liberdade, o poder pode sujeitá-
lo ao governo. Não há poder sem recusa ou revolta em potencial”. Em consequência,
os sujeitos sofrem de um “agonismo” que, segundo Foucault (1995, p. 245), é “[...]
uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta; trata-se,
portanto, menos de uma oposição de termos que se bloqueiam mutuamente do que
de uma provocação permanente”. Branco (2008, p. 206) indica que esse “embate
agonístico” entre liberdade e poder acarreta a formação de “[...] contextos éticos e
políticos sempre provisórios”, garantindo, dessa forma, a dinâmica que constitui as
relações de poder.
Nesta perspectiva, Foucault compreende a liberdade do mesmo modo como o
poder: é uma prática que se exerce por meio de ações. Dessa forma, onde existe
poder, existe também a possibilidade da liberdade. A estreita relação entre liberdade
e poder faz com que “toda experiência, seja exercício de liberdade, seja de dominação
nas relações de poder, ocorre tão somente em ato. O poder e as resistências ao poder
[...] são faces diversas da mesma moeda, em contraste permanente” (BRANCO, 2008,
p. 206). Além disso, a dinâmica resultante da articulação entre liberdade e poder pode
ser considerada como uma das maneiras que o poder utiliza para se manter: pois está
sempre circulando entre os indivíduos, fazendo-os ora sujeitos a ele, ora o exercendo.
Sampaio (2011, p. 225) esclarece que, na perspectiva foucaultiana, “[...] para o
funcionamento do poder que, em seu exercício, conta com a racionalidade, com a
razão mesma para manter sua dominação”, do mesmo modo, as práticas de liberdade
estão intimamente ligadas à racionalidade. Conforme Foucault (2011), o uso da razão
possibilitou tanto a elaboração dos dispositivos de poder que circunscrevem as ações
dos indivíduos, quanto o exercício da liberdade, seja por meio de atos de resistência,
seja por meio de práticas éticas refletidas.
86

Sampaio (2011, p. 226) afirma que

a liberdade [para Foucault] não existe no sentido natural, como se esse


caráter primitivo indicasse a noção do que é bom. A existência da liberdade
está impregnada pelo fato de que homens e mulheres são sempre criaturas
sociais. E, ainda, no lugar da liberdade analisada como um conceito negativo,
ou seja, como situação de submissão à coação externa, a liberdade é
pensada como positividade, isto é, como poder efetivo de mudar.

Em outros termos, a possibilidade de mudança nas práticas sociais, em que o


indivíduo é agente desta modificação, existe devido à brecha da liberdade. Sampaio
(2011) destaca que a liberdade não necessita de condições prévias para ocorrer,
como a “tomada de consciência”, por exemplo. Em parte, o argumento da autora se
sustenta, no sentido de que a liberdade se realiza sem que os indivíduos precisem
cumprir determinados requisitos. Por outro lado, a compreensão (ou
“conscientização”) dos indivíduos sobre os dispositivos de poder, circunscrevendo as
suas ações e organizando as suas relações, é importante para a reflexão ética e
política. Isso porque, a liberdade se expressa não apenas em atos “contra” o poder,
como as resistências, mas elas também visam a melhorar a qualidade das interações
humanas: por exemplo, nas ações respeitosas (como não furar a fila, ou não
interromper a pessoa que está falando), na cordialidade e urbanidade para com os
outros (cumprimentos e pedidos de escusas), além de práticas de não-violência.
Nesta perspectiva, Sampaio (2011, p. 227) expõe que

a liberdade não seria um sentimento ou um estado de espírito; mas


fundamentalmente, efetividade política e social. [...] a liberdade não é um
meio para um fim, no sentido que não haveria lugar terminal aonde ir, nem
um tempo que lhe dispensaria existir. [...] A liberdade é a vida ética de
constituição de si e do mundo.

Branco (2008) indica que a preocupação de Foucault, a partir dos anos 1980,
está relacionada às formas de produção de subjetividade, e ele o faz a partir da
relação entre a ética e a política. Iniciando com Kant, a partir do texto sobre o
“Esclarecimento” (KANT, 1985), Foucault relaciona a maioridade e o Esclarecimento
com a questão da liberdade. Branco (2008, p. 210-211) constata que

a novidade de Foucault face a Kant [...] está na percepção de que o


esclarecimento e a maioridade não devem ser entendidos como um período
da história ou como uma etapa do espírito humano; ao contrário, Foucault
define o esclarecimento como um fato agonístico, a partir do qual o
87

esclarecimento é percebido como sendo uma “atitude da modernidade”, que


comporta riscos e acarreta temores [...].

Em outros termos, a relação entre liberdade e Esclarecimento é o “ponto de


virada” da análise de Foucault sobre a liberdade. Essa “virada” consiste em uma
mudança em seus estudos sobre os modos de sujeição, no qual a liberdade passa a
ser abordada por ele como uma atitude ética na relação do sujeito consigo mesmo e
com os outros. Neste sentido, ele recorre à constituição do sujeito para problematizar
as “práticas de liberdade”.
Ainda de acordo com Branco (2008), ao problematizar a liberdade dessa forma,
Foucault se dirige às “práticas de liberdade” que se situam nas “fronteiras” das regras
e das normas estabelecidas. Essas “práticas fronteiriças” de liberdade estão mais
propícias a provocar mudanças e alterações nas relações entre os sujeitos. Conforme
o comentador, é porque elas estão na fronteira, “no limiar”, porque estão “[...] num
campo estratégico de luta, toda transformação mostra-se parcial e circunscrita [...]”
(BRANCO, 2008, p. 212). Desse modo, a perspectiva foucaultiana da liberdade
aparece enquanto contrapeso ao poder, abrindo brechas para alterações nas
interações interpessoais.

3.3 As práticas de liberdade

A liberdade enquanto condição para a existência do poder não está relacionada


à liberdade considerada como um direito ou um bem, no qual o indivíduo pode ser
privado da mesma, como por exemplo, quando ele é condenado à prisão. A liberdade,
sob a perspectiva foucaultiana, é uma ação. Antes mesmo de ser um direito, ela é
uma prática ética e política, na qual os sujeitos podem agir de acordo a própria
deliberação, e não apenas adequados ao que é esperado deles.
No pensamento de Foucault, a liberdade aparece de dois modos.
Primeiramente como condição para o poder e, em seguida, como prática ética. Castro
(2009) explica que, na perspectiva foucaultiana, as relações entre os indivíduos
configuram a “liberdade política”, e a relação do sujeito consigo mesmo se refere à
“liberdade ética”. De acordo com Branco (2001), nos estudos foucaultianos
88

considerados “arqueológicos” (anos 1960), a política tem como tarefa funcional o


controle. A ética, nesta perspectiva,

[...] é tão somente uma consequência imaginária lógica do controle do


funcionamento econômico-social, fundada na perspectiva, cínica ou ingênua,
dos tecnocratas e assemelhados, que fingem, ou acreditam agir em nome do
bem comum (BRANCO, 2001, p. 239).

Branco (2001) afirma ainda que, neste momento, as análises de Foucault não
estão preparadas para considerar as qualidades ou as capacidades humanas de
reflexão e de crítica para a constituição de concepções éticas e políticas. Dito de outra
maneira, nesses escritos, os indivíduos não conseguem “escapar” dos mecanismos
de poder. O comentador indica que, no início dos anos 1970, Foucault “[...] procura
discernir os procedimentos inerentes às relações entre saber e poder, num projeto
que, apesar de prioritariamente epistemológico, tem que se amparar numa nova
concepção de poder [...]” (BRANCO, 2001, p. 239). Sob esta perspectiva, a liberdade
aparece em seu primeiro sentido, como “liberdade política”. Castro (2009, p. 246),
afirma que

[...] as práticas de liberdade em sentido político, partindo da ideia de que o


exercício de poder é uma maneira de “conduzir condutas”, podem ser
qualificadas como livres aquelas formas de relação entre sujeitos que,
negativamente, não estão bloqueadas e, positivamente, aquelas em que se
dispõe de um campo aberto de possibilidades, isto é, [de] relações que são
suscetíveis de modificação.

Em outras palavras, os indivíduos que agem livremente são aqueles que (1)
não estão impedidos de agir conforme sua deliberação, vontade ou desejo; e aqueles
que (2) não estão coagidos a adotar apenas uma conduta pré-determinada, possuindo
um “leque” de opções para sua ação. Os dispositivos de poder, entretanto, são
constantes e se desenvolvem de modo ininterrupto, “[...] produzindo reduzidas lacunas
onde poderiam se desenvolver atitudes de resistência ou desobediência” (SAMPAIO,
2011, p. 223). A dificuldade das ações de enfrentamento ou de resistência reside na
sutileza pela qual os dispositivos de poder transitam entre os sujeitos, operando por
meio de uma rede integrada de conexões, encaminhamentos, delimitações e
complementaridades (SAMPAIO, 2011). Nesta perspectiva, a liberdade pode parecer
intangível e impraticável, pois o poder está mediando todas as relações humanas.
89

No entanto, Foucault explicita que as práticas de liberdade política se realizam


nas relações interpessoais por meio de “atos de resistência”. Ele destaca o uso do
termo “resistências”, no plural, considerando que

[...] resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias,


improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas,
violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas
ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico
das relações de poder (FOUCAULT, 2013a, p. 106).

As resistências existem sempre onde há poder, “forçando” seus limites. Os atos


de resistência elaboram descontinuidades para que os indivíduos submissos possam
alterar, se quiserem (e conseguirem), a dinâmica imposta pelo “jogo de forças” do
poder. Neste sentido, as resistências, ao reter, limitar e enfrentar os dispositivos, se
tornam a expressão da liberdade. O indivíduo que age em resistência ao poder, o faz
porque entende como ocorrem as relações de poder e, no exercício da sua liberdade,
“se revolta”, isto é, se recusa a reproduzir os sistemas de poder: ele “rompe” (ou
“altera”) as formas como as relações ocorrem.
Um resultado possível dos atos de resistência é a atualização dos dispositivos
de poder. Branco (2001, p. 243) afirma que “a criatividade das estratégias e das lutas
[...] decorrem das artimanhas da liberdade”. As resistências, desse modo, garantem o
exercício da liberdade. Mas, ao mesmo tempo, elas mostram as falhas nas estratégias
e nos mecanismos de poder, possibilitando a atualização dos dispositivos. Quando os
sujeitos resistem, ou seja, praticam a liberdade, eles indicam as lacunas e as falhas
dos dispositivos, mostrando os pontos que estão mais propensos a enfrentamentos.
Desse modo, as resistências “obrigam” o poder ao aperfeiçoamento. Assim, elas
permitem que os dispositivos retornem às práticas sociais de modos mais elaborados,
atualizados e aperfeiçoados. Sob esta perspectiva, sem as resistências, dificilmente
os dispositivos de poder se atualizariam, pois é por meio da liberdade como resistência
que os indivíduos que exercem o poder podem verificar seus limites e, com isso,
podem elaborar novas estratégias43.

43 Na obra 1984, de George Orwell, publicada originalmente em 1949, por exemplo, o autor narra uma
sociedade distópica, mostrando que as práticas de liberdade e de resistência são controladas pelo
Grande Irmão. A narrativa apresenta exemplos de situações em que a resistência é controlada e
utilizada para o aperfeiçoamento e a atualização dos dispositivos de poder.
90

No final dos anos 1970, a partir de movimentos ocorridos na Polônia e no Irã44,


Foucault revisou a própria concepção de poder e de resistência, afirmando que, sob
determinadas condições, é possível que as resistências possam modificar o
fundamento dos sistemas de poder (BRANCO, 2001). Essa nova possibilidade
direcionou os estudos de Foucault, a partir de 1978, para as questões da analítica do
poder que ainda não tinham sido investigadas por ele. Conforme Branco (2001, p.
242),

ele passa a estudar o papel das resistências, em todas as suas dimensões,


na trama complexa das relações de poder na atualidade, seus antecedentes
históricos e suas perspectivas de êxito. Seu interesse passa a ser os
combates e as lutas inerentes às relações de poder, e não a descrição das
grandes articulações institucionais e políticas que formam as grandes
estruturas de poder e que persistem num largo espaço de tempo. Desde
então, Foucault passa a considerar que as resistências ao poder devem ser
entendidas como aquelas que visam à defesa da liberdade.

Nesse viés, Foucault (2006, p. 276-277) afirma que,

[...] para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre,
dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade. [...] Isso significa
que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência,
pois se não houvesse possibilidade de resistência – de resistência violenta,
de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação –, não
haveria de forma alguma relações de poder. [...] se há relações de poder em
todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado. [...] Em inúmeros
casos, as relações de poder estão de tal forma fixadas que são
perpetuamente dessimétricas e que a margem de liberdade é extremamente
limitada.

A reorganização da análise de Foucault, com relação às resistências como


práticas de liberdade, modifica o “lugar” do sujeito na investigação do autor, que passa
a considerá-lo a partir da liberdade como realização da ética. Ainda conforme Branco
(2001, p. 243),

o índice da liberdade, todavia, não é para ser entendido como uma petição
de princípio meramente teórica; deve ser elucidado no plano das lutas sociais,

44Branco (2001) indica o movimento do Sindicato da Solidariedade, na Polônia, no final dos anos 1970,
o Solidarność, que organizou protestos não violentos devido à estagnação salarial e alta dos preços
dos alimentos, como um dos fatores que ocasionou a mudança na perspectiva de Foucault. Além disso,
Branco (2001) também indica a Revolução Iraniana, de 1979, que modificou o país, passando de uma
monarquia autocrática para uma república islâmica teocrática. Destacamos que Foucault escreveu
artigos e concedeu entrevistas sobre a revolução no Irã. Alguns desses textos estão reunidos na
coleção Ditos e Escritos, volumes V e VI, da edição brasileira, dentre os quais indicamos: É inútil
revoltar-se? (vol. V), Com que sonham os iranianos? (vol. VI) e Michel Foucault e o Irã (vol. VI).
91

precárias, contingentes, móveis. O campo da liberdade é o da práxis, é o da


ética encarnada.

A partir dos anos 1980, Foucault considera a liberdade em relação ao “cuidado


de si” como fundamento das práticas éticas que constituem a subjetividade dos
indivíduos. Essas práticas estão ligadas à discussão que se inicia com a análise da
Aufklärung de Kant, momento que Foucault aborda a liberdade enquanto constituição
ética dos sujeitos. Essa forma de liberdade emerge da relação do sujeito consigo
mesmo e com os outros, configurando-se a partir de um “esclarecimento” de si e sobre
sua condição de sujeito. Brezolin e Valeirão (2015) destacam que a influência de Kant
no pensamento de Foucault não é regular, formando

[...] uma presença dividida e divisora. Divisão perfeitamente visível nos


primeiros momentos, desde os primeiros momentos. Por um lado, percebe-
se, interpreta-se um Kant, um Kant póstumo, quebrando a unidade do sujeito,
vislumbrando um já aí originário operando “fora do trabalho visível da
consciência”: algo como a relação ou correlação fundamental entre o mundo
e o sujeito/homem, onde decorre todo um jogo de formas, estruturas, sínteses
que não são estritamente da ordem da subjetividade, [...]. Por outro lado, não
se deixa de procurar e encontrar o Kant vivo ou morto do seu tempo: o Kant
que obscurece “o antigo sol ao fundo” (BREZOLIN; VALEIRÃO, 2015, p. 208).

Kant (1984) afirma que os indivíduos impõem a eles mesmos determinados


princípios que funcionam como leis ou normas, que lhes orientam na hora de agir. Por
meio de um processo racional, ou seja, depois de pensar e de refletir 45, um indivíduo
pode conceber uma norma para orientar e conduzir suas ações. Kant revela que, ao
fazer isso, o indivíduo forma uma “máxima moral”. Ele define que:

princípios práticos são proposições que contém uma determinação geral da


vontade, a qual inclui em si várias regras práticas. São subjetivos, ou
máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como válida
unicamente para a sua vontade; mas são objetivos, ou leis práticas, quando
essa condição é reconhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de
todo ser racional (KANT, 1984, p. 29).

As máximas são princípios subjetivos, concernentes à individualidade dos


sujeitos. Embora sejam proposições fundamentais, por serem subjetivas, dizem
respeito apenas ao indivíduo que as formulou para si mesmo, pois representam as
regras por meio das quais o indivíduo age. Kant (1984) afirma ainda que as máximas

45Neste contexto, há uma distinção entre “pensar”, como o ato de “formar ideias” ou de “raciocinar”
sobre alguma ação ou situação; enquanto “refletir” se refere ao pensamento com base em uma crítica
ou julgamento sobre a ação ou situação que foi anteriormente pensada.
92

determinam o querer. Em outros termos, as máximas são regras de vida que o


indivíduo constitui para si na condução do seu agir.
Para o Kant (1984, 1986), os indivíduos possuem a capacidade para
reconhecer aquilo que é bom por meio da razão e, ao reconhecer algo como bom,
eles passam a agir racionalmente conforme aquilo que é determinado como bom pela
razão. Sob a perspectiva kantiana, o indivíduo reconhece aquilo que é bom, assim
como os princípios morais, por meio do processo racional. Entretanto, como o homem
é afetado pelas necessidades sensíveis, a lei moral deve ser imperativa (pois se
impõe: é um dever) e categórica (pois é incondicionada, isto é, colocada como
obrigatória pela razão) (KANT, 1984).
Foucault compreende esse processo de modo diferente, pois determinar algo
como bom não depende apenas do sujeito, mas de uma relação entre sujeitos e das
condições históricas de sua existência. A perspectiva de Foucault acresce à análise o
conceito de “parresía”, que consiste no ato de “fala franca”. Em definição, a “parresía”
é “[...] dizer-a-verdade sobre si mesmo, [...] [em] uma atividade conjunta, uma
atividade com os outros, e mais precisamente uma atividade com o outro, uma prática
a dois” (FOUCAULT, 2011, p. 06). Ainda, segundo ele (FOUCAULT, 2011), o ato de
dizer-a-verdade sobre si mesmo, possui uma dupla determinação: (1) tem efeito sobre
a individualidade dos sujeitos e (2) forma um modo de ser e de comportar-se. O
indivíduo se torna um sujeito moral na medida em que efetiva a parresía. Em outros
termos, a prática do dizer-a-verdade se torna fundamental para a constituição dos
indivíduos. Desse modo, na relação com o outro, é possível determinar o que é bom
e aquilo que é correto, constituindo assim, normas e princípios que regem as ações
dos sujeitos éticos.
Sobre Kant e a Aufklärung, Foucault afirma que essa questão se refere à
necessidade em se pensar a atualidade por meio do processo kantiano de autonomia,
no qual o indivíduo sai de uma situação de menoridade para uma de maioridade.
Desse modo, o autor vincula Kant a aquilo que ele vai abordar sobre o governo de si
e dos outros, evocando a passagem em que Kant se refere ao “nós”. De acordo com
Foucault (2010b, p. 14),

[...] já não será simplesmente, ou já não será de modo algum, a questão do


seu pertencimento a uma doutrina ou a uma tradição que vai se colocar [...],
já não será tampouco a questão do seu pertencimento a uma comunidade
humana em geral, mas será a questão do seu pertencimento a um presente,
vamos dizer, do seu pertencimento a um certo “nós”, a um “nós” que se refere,
93

de acordo com uma extensão mais ou menos ampla, a um conjunto cultural


característico da sua própria atualidade. É esse “nós” que deve se tornar,
para o filósofo, ou que está se tornando para o filósofo, o objeto da sua
reflexão. E, com isso, se afirma a impossibilidade de o filósofo eludir a
interrogação de seu pertencimento singular a esse “nós”.

Ao expor o “nós”, Foucault pretende ilustrar o movimento descrito por Kant no


qual o indivíduo, para atingir a maioridade, deve indagar-se acerca da atualidade que
o circunscreve. Os indivíduos se situam em um estado de menoridade quando eles
não têm a capacidade para governar a si mesmos, ou simplesmente não querem fazê-
lo, preferindo submeter-se ao governo de outrem a tomar suas próprias decisões.
Conforme Kant (1985, p. 110),

um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim
só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento. Mas
renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência,
significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade.

É possível, neste contexto, perceber o “fio condutor” que Foucault utiliza para
sua investigação ética: se para sair da menoridade o indivíduo precisa fazer o uso de
sua razão, então ele deve praticar a parresía; e, para praticá-la ele precisa do outro,
pois é este outro que lhe aponta os limites, que lhe retém e lhe circunscreve,
auxiliando-o na constituição de seus próprios princípios, ocasionando o cuidado de si.
Assim, o indivíduo ao cuidar de si, também cuida do outro, pois o jogo parresiástico
se constitui em uma dupla função de fala e escuta, que incide na formação ética dos
indivíduos (FOUCAULT, 2011).
Sampaio explica que a liberdade ética se refere às ações conforme as
experiências dos indivíduos e a sua subjetividade. Ela indica que “a experiência plena
da liberdade [...] dá-se no encontro com o outro; longe de ser uma experiência solitária
com o próprio eu, realiza-se na associação com outrem” (SAMPAIO, 2011, p.225).
Nesta perspectiva, para Foucault (2010b), a ética é uma relação do indivíduo consigo
mesmo, afirmando a inexistência de um sujeito transcendental. Ou seja, os indivíduos
não constituem sua moralidade por meio de uma lei universal apriorística, mas nas
práticas de si e nas relações sociais, enfatizando que não há algo transcendente ao
sujeito que, por meio do uso da razão, ele vai “atingir”. Fonseca (2011, pos. 1803, grifo
nosso) expõe que, para o pensamento de Foucault, “naquilo que denominamos moral,
há [...] o comportamento efetivo das pessoas, há os códigos e há esse tipo de relação
consigo mesmo que é a ética”. Em outras palavras, a ética define o sujeito moral.
94

Distanciando-se de Kant, a perspectiva foucaultiana sustenta que o indivíduo


não irá se colocar em um lugar metafísico por meio de um processo de transcendência
da razão para a constituição de seus princípios morais, mas que irá constituí-los com
todos os atravessamentos inerentes à vida. Por meio desse processo, o sujeito atenta
para si mesmo, mensurando aquilo que é capaz de realizar; o quão é dependente dos
outros (isto é, o quanto é capaz de se governar), medindo a extensão de seus atos.
Neste sentido, a “liberdade ética” constitui “práticas reflexivas de liberdade”, em que a

[...] disponibilidade de diferentes condutas, reações ou comportamentos


situa-se em um campo que se define por sua reflexividade; com efeito, trata-
se de condutas, comportamentos e reações pelas quais o sujeito se constitui
a si mesmo, dá-se uma forma (CASTRO, 2009, p. 247).

Entretanto, o exercício da liberdade sempre portará a possibilidade de


transgressão. Essa possibilidade pela liberdade propicia o rompimento com aquilo que
está estabelecido, pois não se reduz à reprodução das relações tais como estão
configuradas. Além disso, por ser uma prática ética resultante de uma reflexão, a
liberdade proporciona que o sujeito mesmo realize a atualização das regras. Nesta
perspectiva, as práticas de liberdade, elaboradas a partir de uma noção ética, formam
sujeitos capazes de lidar melhormente com as determinações dos dispositivos de
poder. Aqui, a liberdade é entendida “[...] no sentido positivo de um poder que se
exerce sobre si. [...] ser livre significa ser senhor de si e dos seus atos” (FONSECA,
2011, pos. 1895). Isso possibilita a elaboração de regras e de normas com base no
pensamento crítico-reflexivo sobre estas, constituindo outras moralidades. Desse
modo, as práticas de liberdade constituem indivíduos que resistem aos dispositivos
de poder. E ainda, elas propiciam espaços para que os sujeitos criem suas próprias
formas de exercício de poder com base na relação com o outro, permitindo práticas
éticas de liberdade mais preocupadas com os sujeitos e com as questões sociais e
políticas.
Por fim, há uma outra possibilidade que resulta da articulação entre a liberdade
e o poder, que se refere aqueles sujeitos que, deliberadamente, optam por exercer o
poder e por manter os dispositivos. Se a liberdade permite o enfrentamento, a
resistência e as práticas reflexivas, também viabiliza que os sujeitos possam exercer
o poder de forma ciente, que se verifica por meio de suas ações e as consequências
geradas. Isso porque, para que os dispositivos de poder operem sobre os indivíduos
95

e, principalmente, se mantenham e se reproduzam, devem existir indivíduos que,


mesmo que se apercebam circunscritos por dispositivos de poder, ainda assim,
escolham segui-los. Estas podem ser compreendidas enquanto práticas de poder e
de sujeição, que organizam as relações, ainda que de modo consciente.
Os dispositivos de poder são elaborados para serem discretos, e existem
aqueles indivíduos que formam, pensam, elaboram e criam esses dispositivos. Essa
parcela de indivíduos, em geral, está em posição de exercício de poder
constantemente, por isso, reproduzem as relações de modo ciente e deliberado.
Usualmente, são indivíduos que estão ligados às instituições de macro-poder e, da
mesma forma, estão em posição de poder nas microrrelações.
Desse modo, a articulação entre liberdade e poder é explícita na perspectiva
de Foucault. E ela, ainda, abre um conjunto de possibilidades de pesquisa e de
reflexão crítica. Por exemplo, com relação à realidade atual brasileira: há a exposição
do funcionamento de diversos dispositivos de poder. Entretanto, uma parcela
considerável da população prefere não reagir (e não “resistir”), optando pela
manutenção das relações de poder e sujeição da forma como estão: calam-se diante
da perda de direitos trabalhistas; apoiam reformas previdenciárias que não estão
adequadas às condições de sobrevivência dos indivíduos; defendem o armamento
civil como maneira de reduzir a insegurança; concordam com a diminuição dos
investimentos em educação pública; se resignam diante do aumento do preço dos
alimentos e da gasolina; se conformam com os altos índices de desemprego; não se
assustam com o crescimento da criminalidade. Momento oportuno para questionar se
isso é realmente deliberação, uma vez que Kant afirma que a atitude de menoridade
é agir conforme o que o outro manda fazer. Mas, quando deliberadamente
escolhemos estar submissos? Isso não poderia ser considerado um exercício de
liberdade? Ou a liberdade é sempre se opor ao poder? Quais as consequências dessa
atitude: para o sujeito e para a sociedade?
As respostas para estas questões se inscrevem no horizonte, tanto teórico
quanto da ação cotidiana. Apesar disso, compreendemos que a relação entre
liberdade e poder não pode ser reduzida a uma simples escolha entre duas opções
(pois podem existir mais alternativas), ou ainda ao desejo (pois ele pode ser somente
um produto dos dispositivos de poder). De acordo com Sampaio (2011, p. 227), a
perspectiva foucaultiana oferece uma compreensão da liberdade que “[...] se expressa
na ação mesma (enquanto se age)”.
96

Neste sentido, a separação apresentada entre “liberdade política” e “liberdade


ética” pode ser útil apenas para fins metodológicos de análise do pensamento de
Foucault. Isso porque os sujeitos que agem não estabelecem essa distinção no
momento da ação. Em outros termos, elas ocorrem de modo simultâneo, pois a
liberdade é uma ação ético-política que se efetiva nas ações e nas relações entre os
indivíduos. Para Foucault, não se trata da liberdade do sujeito em relação aos
dispositivos de poder, pois ele nunca irá “se livrar” deles. Mas antes, de que os
indivíduos utilizem de sua liberdade na própria relação com o poder, que sempre pode
ser alterada e atualizada. Nesse viés teórico, o poder enquanto produtivo, devido à
liberdade, também propicia práticas de liberdade que podem coibir menos e serem
mais adequadas às vidas dos indivíduos implicados na relação.

3.4 A subjetividade do sujeito e as possibilidades de exercício da liberdade

De acordo com Branco (2008, p. 203), “uma percepção constante de Foucault


foi a de que, do século XVII em diante, a disciplinarização e a normalização dos
indivíduos e das populações tornou-se um fato social e político decisivo [...]”. Para ele,
a Modernidade tornou mais complexo “[...] o arsenal de técnicas disciplinares e
procedimentos de normalização, [formando] um conjunto formidável de saberes [que]
foi posto a serviço da produção de subjetividades e individualidades” (BRANCO, 2008,
p. 204). Nesse contexto, Rojas (2011) afirma que, para Foucault, a constituição da
subjetividade passa por um processo de “normalização”, ou seja, de adequação do
indivíduo às regras e às normas que ordenam a sociedade, ao mesmo tempo em que
elas também operam e incidem na constituição da subjetividade dos indivíduos.
Para Foucault, as diversas ciências que surgiram na Modernidade e que tinham
o “homem” como objeto, constituíram saberes produtivos, pois contribuíram “[...] para
o processo de construção de individualidades conformadas às estruturas de poder
consolidadas” (BRANCO, 2008, p. 204). Nos anos 1970, Foucault dedicou suas
análises às relações de poder em termos político-normativos, não detalhando a
questão moral e ética das relações entre os sujeitos. Neste período, o problema
investigado foi o das formas como o poder é exercido nas relações entre indivíduo-
Estado e, no final da década, das relações entre indivíduo-indivíduo. Ele, então,
97

orientou os estudos abordando os discursos que, ao longo da História, constituíram


os indivíduos como sujeitos, não se atendo à relação do indivíduo com ele mesmo na
assimilação e na reprodução desses discursos, que o formam como um indivíduo
ético.
Branco (2008, p. 209) destaca ainda que, “em Foucault, inexiste a essência do
homem, homem do homem, natureza humana, origem determinada e fixa ou
finalidade em conformidade com o modo de ser constante do ser humano”. Para
Foucault, o indivíduo “[...] nada mais é que uma série de ocorrências transitórias, num
campo de lutas sempre aberto” (BRANCO, 2008, p. 210). Por este motivo, os controles
exercidos sobre os indivíduos têm como resultado a constituição de sujeitos
assujeitados às regras e às normas, que padronizam a formação das subjetividades,
constituindo indivíduos “auto-identificados” pelos modelos de comportamento
estabelecidos preliminarmente (BRANCO, 2001). Foucault, entretanto, recusa a
impossibilidade dos sujeitos contraporem os controles exercidos, fazendo com que a
formação das subjetividades sejam atravessadas pela relação entre poder e práticas
de liberdade, bem como circunscritas pelos processos de normalização.
Salienta Rojas (2011, p. 565, tradução nossa) que os processos de
normalização ocorrem no corpo, e “[...] ao discipliná-los, os corpos não somente são
a matéria-prima no qual se inscreve e se estabelece a ordem social, mas um dos
recursos que o pontuam, o expressam e o reproduzem [...]”46. De acordo com Ribeiro
(2018), na genealogia empreendida por Foucault nos anos 1970, as investigações
sobre o sujeito e o poder adquiriu centralidade, apresentando uma “genealogia dos
corpos históricos”. Foucault (2017), afirma que o corpo é marcado pelos
acontecimentos históricos. Ainda para Ribeiro (2018, p. 127, grifo do autor), em
Foucault, o sujeito “[...] tem sua efetividade na luta que os corpos são na história”.
Neste sentido, a genealogia foucaultiana “[...] é vista de antemão, como suspensão
sistemática dos começos, especialmente dos começos da própria subjetividade”
(RIBEIRO, 2018, p. 134). Rojas (2011, p. 569, tradução nossa) destaca que,

[...] na medida em que os sujeitos se individualizam, o poder se


desindividualiza, corre por todos os canais de circulação possíveis, colocando
maior ênfase apenas naqueles que desobedecem ou se afastam da norma,

46 No original: “[...] los cuerpos no sólo son la materia prima donde se inscribe o asienta el orden social,
al disciplinarlos, sino uno de los recursos que lo puntualizam, expresan y reproducen [...]”.
98

portanto, a observação e a vigilância derivam de algo além do próprio sistema


de consumo. [47]

Desse modo, Rojas expressa que o poder da normalização, que atua sobre o
corpo, não o força nem o inabilita; porém os efeitos que podem ser verificados incidem
sobre as distinções entre o que é “normal” e “anormal”. Nessa mesma perspectiva,
Ribeiro (2018) afirma que o corpo, para Foucault, não resulta da hierarquia de
impulsos, pois ele é o efeito dos ajustes disciplinares suscitados pela sujeição dos
corpos nos processos de subjetivação. Isso porque o poder “passa” pelo corpo
(FOUCAULT, 2010a).
A partir dos estudos sobre o poder, “[...] Foucault se dá conta da complexidade
do fenômeno do poder, o qual não reside numa simples relação de forças entre
elementos, átomos, agentes que exercem poder, mas passa por uma relação de si a
si no próprio sujeito” (SANTOS, 2009, p. 19). Destarte, a preocupação com a ética
aparece no final dessa mesma década, com o aprofundando do estudo da constituição
ética dos sujeitos. Santos (2009, p. 19) afirma que Foucault, então, realiza suas
análises no “espaço das relações do sujeito consigo próprio numa ‘auto constituição’”.
O objetivo de Foucault é complementar os estudos anteriores acerca do saber e do
poder, e o faz por meio do estudo das práticas de si que constituem os distintos modos
de subjetivação. Ruiz (2003) chama a atenção para o modo como essas práticas,
denominadas por ele de “práticas éticas”, estão relacionadas à constituição das
subjetividades. Em seus próprios termos,

a prática ética incide em duas direções: a) ela define o estilo de existência da


pessoa; b) por meio dela se constitui a subjetividade dessa pessoa. A prática
ética do sujeito concretiza um modo de viver os valores, e esse mesmo modo
de vida do sujeito constitui os traços identitários da subjetividade. Esta dupla
incidência da ética como prática que implementa um estilo de vida e, por sua
vez, define um modo de subjetivação, é o que denominamos ética como
prática de subjetivação (RUIZ, 2003, p. 136, tradução nossa). [ 48]

47 No original: “[...] en la medida que los sujetos se individualizam, el poder se desindividualiza, corre
por todos los canales de circulación posible colocando mayor énfasis sólo en aquellos que
desobedecen o se alejan de la norma, por ende, la observación y la vigilancia, provienen de más allá
del propio sistema de consumo.”
48 No original: “la práctica ética incide en las dos direcciones: a) ella define el estilo de existencia de la

persona; b) a través de ella se construye la subjetividade de esa persona. La práctica ética del sujeto
concretiza un modo de vivir los valores, y ese mismo modo de vida del sujeto construye los rasgos
identitários de la subjetividad. Esta doble incidencia de la ética como práctica que implementa un estilo
de vida y a su vez define un modo de subjetivación, es lo que denominamos ética como práctica de
subjetivación.”
99

Ruiz (2003, p. 137, tradução nossa) afirma ainda que as práticas éticas se
mostram por meio da “[...] capacidade criativa do sujeito que institui sentido para o
mundo, criando, por sua vez, um mundo de sentidos para tudo o que vive e para si
mesmo”49. Por este motivo, os processos de formação da subjetivação dos indivíduos
estão circunscritos por elementos históricos, próprios de seu contexto, acrescidos das
reflexões que os sujeitos conseguem realizar sobre si mesmos e sobre o mundo no
qual vivem.
Conforme Branco (2001), para Foucault, as resistências e as práticas de
liberdade são lutas que buscam a autonomia do sujeito da sua condição de
assujeitamento, tanto política quanto eticamente. Por isso, a ênfase foucaultiana não
recai apenas no Estado e nas instituições de poder: ele as contrapesa com as relações
interpessoais. Isso porque, para que os sujeitos constituam para si mesmos outros
modos de subjetivação (que não necessariamente circunscritos apenas pelos
dispositivos de poder), as relações éticas e políticas que estabelecem, precisam
estimular o desenvolvimento da autonomia, para que eles exerçam a liberdade. Desse
modo, a resistência não se configura apenas no sentido negativo, de enfrentamento
direto ao poder, mas também em sentido positivo, como prática de liberdade na qual
há uma “autoelaboração” da própria subjetividade.
Embora os dispositivos de poder objetivem que os indivíduos se moldem e não
resistam ao poder, a condição da liberdade impossibilita o “enquadramento total” dos
sujeitos. Desse modo, a normalização que pretendem esses dispositivos também é
constituída pelos processos de “subjetivação do sujeito”, que é formado tanto pelos
dispositivos de poder e de normalização, quanto pelas práticas de liberdade.

49No original: “[...] capacidad creativa del sujeto que instituye sentido para el mundo, creando, a su vez,
un mundo de sentidos para todo lo que vive y para sí mismo”.
100

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa analisou os modos pelos quais, a partir da Modernidade, foram


elaborados os discursos que produziram “verdades” sobre os corpos, com o objetivo
de controlar as condutas dos indivíduos. O estudo, fundamentado no pensamento de
Michel Foucault e em sua analítica do poder, expôs que o biopoder tem como objetivo
a formação de indivíduos que não resistam aos dispositivos desse poder. Tais
dispositivos são desenvolvidos e aplicados sobre as relações interpessoais,
permitindo o exercício da liberdade de forma exígua.
O primeiro capítulo inicia a discussão a partir da afirmação de que o biopoder
tem como base o discurso e, em consequência, ele também fundamenta as práticas
sociais. Apresenta de que modo o biopoder, entendido como o poder que se exerce
sobre a vida, foi desenvolvido na Europa Ocidental no final do século XVII, indicando
os elementos do contexto histórico destacados por Foucault, complementando-os
quando necessário. Neste sentido, se tornou relevante expor as duas principais
acomodações do biopoder nas práticas sociais, primeiramente como disciplina, no
controle dos corpos e nos processos de docilização do mesmo. Em seguida, a
biopolítica é acoplada à disciplina, desenvolvendo estratégias de poder que atuam
sobre as populações ou a um grupo social específico (como, por exemplo, as
mulheres, as crianças, os loucos, os homossexuais, os idosos, etc.).
Neste percurso, tornou-se explícito que a função do discurso no biopoder é
central, pois são estes discursos que fundamentam os dispositivos de biopoder. Por
meio da produção de “verdades” são elaboradas as justificativas para que se efetivem
os dispositivos de biopoder nos mais diversos níveis da vida dos sujeitos, formando o
discurso. A biopolítica, neste contexto, tornou-se uma das maneiras mais eficientes
de controle dos indivíduos, pois gera efeitos coletivos que são aplicados em massa.
Em outros termos, a biopolítica, embora se dirija a um conjunto de sujeitos, tem
sua efetivação na individualidade de cada pessoa, que se observa no comportamento
em um nível social, na interação entre eles. Por este motivo, as biopolíticas são
consolidadas, ao longo do século XX, como a principal maneira de exercício do poder.
Isso pode ser identificado em decorrência do processo de alteração e de atualização
dos dispositivos biopolíticos que, fundamentados por discursos, incluem, na base de
101

formação do dispositivo, as técnicas e os mecanismos disciplinares necessários para


sua efetivação. Ou seja, ao longo dos anos, as disciplinas foram vinculadas aos
discursos que fundamentam os dispositivos biopolíticos, propiciando a ampliação das
biopolíticas a partir do século XX. Neste sentido, é possível afirmar que o discurso
está na base do biopoder que, por meio das biopolíticas, gerencia as práticas sociais.
Neste contexto, o segundo capítulo aborda a centralidade do corpo no discurso
e no poder. Essa “importância” do corpo nos dispositivos de poder decorre por ele ser
produtivo, não somente de um modo econômico, como mão de obra, mas porque o
corpo produz saberes, identidades e subjetividades: ele produz vida. O controle do
corpo, então, se torna essencial para os dispositivos de poder, para que estes possam
extrair o máximo desse corpo.
Assim, a produção de verdades, por meio da constituição e do controle dos
enunciados, objetiva a “normalização” dos corpos. E essa pode ser entendida como
os processos por meio dos quais o indivíduo é submetido ao poder, visando a modelar
o corpo e, consequentemente o comportamento. A normalização ocorre a partir de
procedimentos de diferenciação entre o que é considerado “normal” e, tudo aquilo que
não se enquadra, que é considerado “anormal” (ou seja, pervertido, depravado, a ser
eliminado ou corrigido). Segue-se uma hierarquização entre as “normalidades” e as
“anormalidades”. Por fim, são realizados os ajustes (ou enquadramento) das
anormalidades e, em alguns (vários) casos, a exclusão (ou a eliminação) dos
“anormais”. Para que isso ocorra, a produção de verdades desempenha uma
importante função: ela é necessária para que os processos de normalização sejam
aceitos e reproduzidos pelos indivíduos sujeitados e pelos seus pares. Isso constitui
uma “rede de assujeitamento”, na qual os indivíduos assujeitados pressionam (e, em
certos casos, impõem) os outros para que sigam as mesmas regras e ajam da mesma
maneira.
Foucault afirmou, em diversos momentos, que o poder “marca” o corpo,
circunscrevendo-o. Neste sentido, a relação entre verdade e poder se mostra e se
materializa nos corpos dos sujeitos. Diante dessa relação e do modo coercitivo como
o poder opera sobre os corpos, a questão sobre a liberdade do corpo torna-se
irremediável.
Considerando a relação entre liberdade e poder, no terceiro capítulo constam
os efeitos que esta relação acarreta aos indivíduos e sobre os seus corpos. A analítica
do poder, em Foucault, é indispensável para essa abordagem, considerando que o
102

autor indica a liberdade como a condição para a existência das relações de poder que
caracterizam o biopoder. O poder possui como contrapeso a liberdade, de modo que
os indivíduos ora exercem o poder, ora exercem a liberdade. A liberdade, então, pode
ser exercida por meio das resistências, bem como por meio de práticas éticas
refletidas. Ainda, há a possibilidade de uma terceira forma de exercício da liberdade,
no qual, deliberadamente, o indivíduo opta por exercer o poder ou se submeter a ele.
Isso porque o poder tem como objetivo que seus mecanismos sejam efetivados e
repetidos, para sua manutenção, sem a necessidade de concordância dos sujeitos.
Desse modo, o indivíduo se constitui enquanto “sujeito assujeitado”, pois
quando nasce, ele está inserido em uma sociedade na qual estão em funcionamento
determinados mecanismos de poder. Ao mesmo tempo em que os sujeitos possuem
uma margem de ação para as práticas de liberdade. Neste sentido, a constituição de
si é circunscrita por processos que limitam o sujeito, ao mesmo tempo em que o
possibilitam agir com liberdade, mesmo que limitada. Por este motivo, os modos de
subjetivação – compreendidos como as formas pelas quais cada um elabora e forma
sua individualidade – são constituídos por exercícios de poder e práticas de liberdade.
Assim, na formação de suas subjetividades, cada sujeito mostra no próprio corpo as
maneiras como se relaciona com as normas, as regras, as obrigações e as proibições.
As práticas de liberdade, sejam elas como atos de resistência, sejam como
práticas éticas refletidas, podem melhorar a relação dos indivíduos com o poder,
constituindo maneiras de viver com mais qualidade, em especial, nos relacionamentos
interpessoais. Se é verdadeiro afirmar que os dispositivos de biopoder visam a que os
indivíduos não resistam, devido à liberdade enquanto condição ao poder, essa “meta”
do poder nunca se efetivará completamente. Isso porque a “brecha” imposta pela
liberdade nas relações se mostra mais profícua à constituição de modos mais
correspondentes à multiplicidade dos indivíduos.
Em consequência, isso se reflete no corpo. Para exemplificar, os movimentos
sociais, em ascendência no Ocidente desde os anos 1960 (principalmente os negros,
os feministas e os homossexuais), têm questionado cada vez mais as relações de
poder que circunscrevem os corpos. Esses movimentos visam, em um primeiro
momento, ao esclarecimento sobre a própria condição de sujeito, apresentando
questões referentes ao corpo como um “gatilho de exclusões”. Em um segundo
momento, eles objetivam que modificações concretas sejam realizadas nas práticas
sociais. Por este motivo, esses movimentos configuram não apenas o debate político
103

atual, mas também atuam em demandas sociais, econômicas, culturais e históricas


do Ocidente.
O corpo, desse modo, se mostra sempre permeável aos ajustes e às
modelações resultantes das atualizações dos dispositivos e dos discursos do poder.
Em contrapartida, o corpo também sempre estará propenso a outras possibilidades
de constituição, com base nas práticas de liberdade. Desse modo, novas relações
com o corpo e com os dispositivos de poder, que visam a normalizá-lo, podem ser
constituídas. A recusa às formas de controle sobre o corpo, que objetivam sua
docilização, bem como a atualização de certos paradigmas sobre o que é considerado
“normal” e “anormal”, colaboram para que os sujeitos adquiram mais autonomia sobre
seu corpo. Outro exemplo: atualmente a profissão de tatuador tem sido valorizada,
devido ao status que a tatuagem adquiriu socialmente: ela passou de uma prática
realizada por “povos bárbaros” ou por prisioneiros, para a expressão da identidade
dos sujeitos.
No entanto, outras questões relativas ao corpo ainda carecem de
considerações para o debate público, tais como: as políticas públicas de controle de
natalidade; a legalização do aborto; a regulamentação das práticas de eutanásia; a
legislação sobre casamento, a constituição familiar e a adoção por casais
homoafetivos, dentre outros. A perspectiva foucaultiana se mostra profícua para a
reflexão e para a crítica acerca desses assuntos, em especial, com relação à
concepção de biopolítica.
Desse modo, será possível aos indivíduos constituírem relações em que sejam
menos “sujeitos” e mais “agentes”; que as ações possam ser mais espontâneas e
menos determinadas; que o uso de brincos, colares, pulseiras e saias balonês possam
ser o resultado de práticas de liberdade, e não de propagandas e estímulos ao
consumo. Enfim, que os corpos possam passear livremente, não importando a cor da
pele nem a sexualidade. Que, como afirmou Foucault, os corpos possam “pavonear”.
104

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