A Produção de Verdades Sobre o Corpo Na Modernidade
A Produção de Verdades Sobre o Corpo Na Modernidade
A Produção de Verdades Sobre o Corpo Na Modernidade
Dissertação
Pelotas, 2020.
Bruna dos Santos Leite
Michel Foucault:
Pelotas, 2020.
Banca examinadora:
A presente pesquisa tem como base o pensamento político do filósofo francês Michel
Foucault (1926-1984), no que tange à relação entre poder-corpo-discurso-verdade. O
corpo é marcado pelas relações de poder, que o circunscrevem e o marcam,
apresentando as formas como os indivíduos se relacionam com as regras e as
normas: o corpo existe em sua temporalidade histórica. Nesta perspectiva, objetiva-
se analisar de que maneira, a partir da Modernidade (séc. XVII-XIX), a relação entre
poder e discurso ocasionou a produção de determinadas “verdades” que visavam ao
controle do corpo e do comportamento da população. Conforme o autor, na Europa,
neste período, ocorreram modificações nas relações de poder, que ocasionaram o
surgimento do “biopoder” (poder que se exerce sobre a vida). Nesta perspectiva,
considera-se que o discurso está no fundamento do biopoder, constituindo as
limitações sobre as ações dos indivíduos, por meio de processos de normalização.
Esses procedimentos são realizados pelos dispositivos de biopoder, os quais são
exercidos por meio das disciplinas e das biopolíticas. Este poder centrou-se no
controle do corpo e do comportamento, objetivando que os indivíduos se sujeitem ao
poder, sem que resistam. Entretanto, a pesquisa expõe que Foucault inclui a liberdade
como condição para a existência de relações de poder, caracterizando o dinamismo
dessas relações. Desse modo, a liberdade enquanto prática ético-política mostra-se
importante na constituição dos indivíduos enquanto sujeitos submetidos aos
dispositivos de poder, propiciando aos indivíduos as práticas de liberdade. Por este
motivo, os dispositivos de poder não conseguem se efetivar plenamente nas relações
interpessoais: a liberdade permite que os indivíduos não se sujeitem completamente,
podendo constituir maneiras próprias de relacionar-se consigo mesmo, com seu corpo
e com os outros sujeitos.
LEITE, Bruna. Michel Foucault: the production of “truths” about the body in Modernity.
Advisor: Sônia Maria Schio. 2020. 110f. Dissertation (Masters in Philosophy) – Institute
of Philosophy, Sociology and Politics, Federal University of Pelotas, Pelotas, 2020.
This research is based on the political thought of the french philosopher Michel
Foucault (1926-1984), regarding to the relationship between power-body-discourse-
truth. The body is brand by power relations, which circumscribe and mark it, presenting
the ways in which individuals relate to rules and norms: the body exists in its historical
temporality. In this perspective, the objective is to analyze how, from Modernity (17th-
19th century), the relationship between power and discourse caused the production of
certain “truths” that aimed the control of the body and population's behavior. According
to the author, in Europe, in this period, there were changes in power relationships,
which led to the emergence of “biopower” (power that is exercised over life). In this
perspective, the discourse is at the foundation of biopower, constituting the limitations
on the actions of individuals, through normalization processes. These processes are
realized by biopower dispositifs, which are exercised through disciplines and
biopolitics. This power was centered on the control of the body and behavior, aiming
that individuals subjected themselves to power, without resisting it. However, this
research exposes that Foucault includes freedom as a condition for the existence of
power relations, characterizing the dynamism of these relationships. Thus, freedom as
an ethical-political practice shows to be important in the constitution of individuals as
subjects subjected to power dispositifs, providing to individuals the practices of
freedom. For this reason, the power dispositifs are not able to be fully effective in
interpersonal relationships: freedom allows individuals not to be completely submissive
and may constitute their own ways of relating to themselves, their bodies and other
subjects.
Introdução ................................................................................................................. 12
INTRODUÇÃO
próprio corpo. E se espera que cada um cumpra aquilo que é pretendido. Isso porque
o corpo é circunscrito por dispositivos de poder, que visam ao controle das condutas
sociais.
De acordo com o Filósofo Francês Michel Foucault (1926-1984), na
Modernidade (séc. XVII-XIX) constituiu-se uma forma de poder, que configurou as
relações entre os indivíduos de modo que o ele fosse exercido em dois níveis: (1) nas
macrorrelações de poder, entre os indivíduos, o Estado1 e as instituições; e (2) nas
microrrelações de poder, que ocorrem apenas entre indivíduos. Em sua análise, o
autor afirma que o “biopoder” – isto é, o poder que é exercido sobre a vida – foi
aplicado sobre o corpo, com o objetivo de controlá-lo para que o indivíduo se tornasse
obediente aos comandos e às ordens vindos do exterior (Estado, escola, religião,
família, etc.). Isso possibilita que o exercício de poder conduza o comportamento dos
indivíduos e as interações sociais entre eles.
O poder, para Foucault (1995, 2010a, 2013a), é algo que existe somente em
exercício, ou seja, apenas enquanto os indivíduos estão em relação. O poder
circunscreve as ações dos sujeitos por meio de mecanismos, dispositivos, estratégias
e técnicas. Os dispositivos e as estratégias operam em um determinado nível na vida
dos sujeitos (comportamento), enquanto os mecanismos e as técnicas funcionam em
outro (corpo).
As “técnicas” de poder podem ser compreendidas como os procedimentos para
a realização de uma determinada tarefa ou ação. Neste sentido, por exemplo, quando
Foucault, em Vigiar e Punir, se refere às “técnicas”, ele está expondo um tipo de poder
aplicado ao corpo, que visava a controlá-lo quase como se fosse uma máquina. As
técnicas de poder atuam diretamente sobre os corpos dos sujeitos e estão
intimamente ligadas à disciplina. Cada técnica objetiva um fim: uma técnica para que
os sujeitos aprendam a caminhar; outra para que escrevam com letra cursiva; outra
para que aprendam o volume correto da voz; outra para que se sentem de
1 Foucault aborda a questão do Estado sob outra perspectiva, quando comparado à Tradição da
Filosofia Política, que o definem como necessário para a existência da liberdade e da segurança entre
os indivíduos. Nos artigos Foucault estudo a razão do Estado (FOUCAULT, 2015, p.310-315) e “Ownes
et singulatim”: uma crítica da razão política (FOUCAULT, 2015, p.348-378), ele explica a formação do
Estado, apresentando sua maneira própria de análise, isto é, que se afasta das que foram realizadas
até então, centrando-se nas relações que não estão intermediadas pelo Estado. No curso Em defesa
da sociedade, ele contrapõe-se ao autores da Teoria Política Clássica, como Maquiavel e Hobbes,
afirmando que a teoria da soberania, tal como descrita pelos autores, não é suficiente para explicar as
mudanças que ocorreram a partir da Modernidade (FOUCAULT, 2010a).
14
2 No original: “[...] le dispositif était de nature essentiellement stratégique, ce qui suppose qu’il s’agit là
d’une certaine manipulation de rapports de forces, d’une intervention rationnelle et concertée dans ces
rapports de forces, soit pour les développer dans telle Direction, soit pour les bloquer, ou pour les
stabiliser, les utiliser. Le dispositif est donc toujours inscrit dans um jeu de pouvoir, mais toujours lié
aussi à une ou à des bornes de savoir, qui em naissent mais, tout autant, le conditionnent. C’est ça, le
dispositif: des stratégies de rapports de forces supportant des types de savoir, et supportés par eux.”
3 Em História da Sexualidade 2, Foucault apresenta duas definições sobre a moral: “Por ‘moral’
entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por
intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as
Igrejas, etc. [...] pode-se chamar ‘código moral’ esse conjunto prescritivo. Porém, por ‘moral’ entende-
16
demais práticas sociais. Neste sentido, o corpo é dinâmico, assim como as relações
de poder. Assim, quando os mecanismos de poder se modificam, o mesmo ocorre
com a relação entre indivíduo e seu corpo. Isso porque o corpo apresenta a
subordinação e as rupturas do indivíduo com os dispositivos de poder. O corpo
espelha as assimilações do indivíduo sobre si e sobre a sociedade em que vive.
Sob esta perspectiva, tendo como base o pensamento político de Foucault, a
investigação foi realizada a partir de uma possível reposta a uma pergunta-problema
e seus desdobramentos em hipóteses específicas, que permiti a articulação entre os
principais conceitos que norteiam a pesquisa: poder, corpo, discurso e verdade. Na
hipótese geral, a proposição é a de que, a partir da Modernidade, o biopoder se
configurou como a principal forma de disciplinar o corpo visando a reduzir a resistência
ao poder. As hipóteses específicas afirmam: (I) o biopoder está fundamentado em
discursos que determinam as maneiras de agir dos indivíduos; (II) os discursos,
surgidos a partir da Modernidade, produziram “verdades” que objetivam a
normalização dos corpos; (III) a normalização dos corpos conduz o comportamento
dos indivíduos para que não resistam, o que não é possível devido à necessidade de
liberdade nas relações de poder.
As obras de Foucault fundamentais são A Ordem do Discurso, Vigiar e Punir,
História da Sexualidade volumes 1 e 2. Os cursos Em Defesa da Sociedade,
Segurança, Território, População, Nascimento da Biopolítica, O Governo de Si e dos
Outros e A Coragem da Verdade, bem como das coletâneas Microfísica do Poder e
alguns volumes da edição brasileira de Ditos e Escritos são relevantes para o estudo.
Utiliza-se também os outros estudos e entrevistas de Foucault, bem como as obras
de comentadores, que suplementam a argumentação.
O método de abordagem utilizado foi o dialético, que consiste na investigação
dos conceitos, observando-se as modificações históricas, indicando os pontos de
alteração e atualização, bem como os silenciamentos do autor. Complementarmente,
o método hermenêutico, nos auxilia a observar como o autor interpreta as realidades
nas quais os conceitos aparecem e foram desenvolvidos. Desse modo, na
se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhe são
propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente
a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição;
pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores” (FOUCAULT, 2012b, p. 33-34). A
discussão sobre a moralidade adquire relevância quando relacionada às práticas de liberdade reflexiva,
com base na ética, e aos modos de sujeição aos quais os indivíduos estão circunscritos, abordado no
cap. 3.
17
4A referência aos “sujeitos” trata sobre os indivíduos que estão submetidos às relações de poder, ou
seja, aqueles que não estão em exercício de poder. A relação do sujeito com o poder percorre toda
exposição, e se aprofunda no cap. 3.
18
partir da afirmação de que o biopoder tem o discurso como base que orienta as
interações dos indivíduos, determinando aquilo que é “correto” ou “bom”, pode se
compreender de que modo ocorre a produção de verdades, bem como se formam os
discursos que resultam desse processo. Averígua-se, ainda, a articulação entre as
verdades e as formas de exercício de poder, e como se estabelecem verdades que
sejam confiáveis para guiar as ações.
A verdade está intimamente ligada aos dispositivos de poder, pois a produção
de discursos verdadeiros é realizada no interior desses dispositivos. Dito de outra
maneira, os dispositivos formam verdades que funcionam como regras pelas quais os
sujeitos devem se orientar e obedecer. As verdades são produtos de múltiplas
coerções exercidas sobre os indivíduos, visando a confirmar as justificações sobre a
maneira como as relações de poder se organizam na sociedade.
Além disso, a produção de verdades tem como objetivo a normalização dos
corpos. O conceito de “normalização”, neste momento, torna-se central, bem como as
características e os aspectos da sociedade de normalização indicados por Foucault,
que nos apresentam a sujeição dos indivíduos como um dos primeiros efeitos do
biopoder. As análises empreendidas pelo autor indicam que as relações entre os
indivíduos, embora ocorram em uma esfera privada, estão profundamente conectadas
aos macros sistemas de poder. Os dispositivos, ao operarem sobre as relações
interpessoais, definem as maneiras sob as quais os sujeitos elaboram os significados
e os sentidos de suas ações em um âmbito social. Isso implica também nos modos
como eles se relacionam com o próprio corpo, que é perpassado pelos dispositivos
do biopoder. O acesso a essas formas pré-estabelecidas são comunicadas aos
sujeitos por meio de “discursos verdadeiros”, que estão alinhados aos dispositivos de
poder e, por este motivo, aparentam ser inquestionáveis e imutáveis. O resultado
disso é que os corpos se “normalizam”: os indivíduos entendem que sua forma de
viver e apresentar-se no mundo tem que estar adequada ao que está estabelecido.
Sob esta perspectiva, um exemplo interessante é que, no século XVII, as
mulheres usavam longos vestidos, que acentuavam o quadril e enfatizavam os seios,
enquanto os reis usavam calças apertadas e vestidos curtos, além de longas capas
que acentuavam a largura dos ombros (CORBIN et.al., 2008). Podemos verificar que
várias modificações ocorreram em poucos séculos, quando comparado com a
atualidade, na qual as mulheres se vestem com calças apertadas e vestidos curtos, e
os governantes, em geral, usam ternos e gravatas. Por este motivo, o corpo expõe a
19
5 A noção de “cultura” se refere a uma forma mais genérica de compreender este conceito,
considerando que Foucault não explicita este termo. Neste sentido, a cultura é constituída pelos
aspectos formadores de um povo ou sociedade, como as tradições, os costumes, a língua, as relações
sociais e a relação com o meio ambiente. Estes aspectos formadores se diferenciam de uma cultura
para outra, considerando que cada povo se desenvolveu enquanto sociedade de modos distintos. Além
disso, complementa Minayo (2010, p. 31), que a “[...] cultura não é apenas o lugar subjetivo [...] ela é o
locus onde se articulam os conflitos e as concessões, as tradições e as mudanças e onde tudo ganha
sentido, ou sentidos”.
21
Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As
práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência
excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma
tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da
obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos
diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias
mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo
nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”
(FOUCAULT, 2013a, p. 09).
descritas por ele como a passagem de um poder soberano para uma época de
“biopoder”.
O “biopoder” é um conceito que foi elaborado por Foucault (2010a, 2013a), que
significa “poder sobre a vida”. Segundo o autor, o biopoder surgiu no final do século
XVII na Europa Ocidental, onde estavam ocorrendo diversas modificações
econômicas, políticas e sociais, que se estenderam até o século XIX, marcando um
período de transformação das formas como o poder foi exercido sobre a vida dos
indivíduos, acarretando mudanças nas práticas sociais.
Castro (2009, p. 57-59), ao escrever o verbete “biopoder”, afirma que há dois 6
textos fundamentais de Foucault para a compreensão deste conceito: (1) capítulo V
da obra História da Sexualidade I: a vontade de saber, intitulado Direito de morte e
poder sobre a vida; e (2) a aula do dia 17 de março de 1976, do curso Em Defesa da
Sociedade. Nesses textos, o biopoder aparece como o poder que se exerce sobre a
vida dos indivíduos de duas maneiras. Primeiramente, como “disciplina”, ou poder
disciplinar, que atua sobre o corpo de cada um individualmente. Em seguida, como
“biopolítica”, que visa o controle do comportamento social, agindo por meio de
regulamentações que atingem uma determinada população7.
Reportando à Europa Medieval, recordamos que, até o final do século XVII, o
feudalismo era o modo de organização social predominante na Europa, segundo a
6 Destacamos a nota do tradutor da edição utilizada do Vocabulário de Foucault (CASTRO, 2009), que
inclui na lista de referências do verbete “biopoder” os cursos proferidos no Collège de France nos anos
seguintes: Segurança, Território, População (1977-1978), Nascimento da Biopolítica (1978-1979) e Do
governo dos vivos (1979-1980). Estes cursos foram publicados após a 1ª edição da obra de Castro e,
por esta razão, não constam nas indicações do autor. Contudo, estes cursos foram incluídos na análise
desta pesquisa, considerando que outros autores, como Fontana e Bertani (2010), Machado (2017) e
Fonseca (2011), destacam a importância destes cursos na análise do conceito de biopoder. Em uma
obra posterior, Castro (2017), realiza uma análise mais completa sobre a questão do biopoder, tendo
em vista as recentes publicações dos últimos cursos proferidos por Foucault, abrangendo o estudo dos
cursos supracitados, bem como indicando o acréscimo das conferências realizadas no Rio de Janeiro,
em 1974, publicadas com o título O nascimento da medicina social (FOUCAULT, 2017, p.143-170) e O
nascimento do hospital (FOUCAULT, 2017, p. 171-189).
7 Destacamos que o uso do termo “biopolítica” no pensamento de Foucault apresenta variações.
Quando ele inicia o uso deste termo, nos cursos O nascimento da medicina social e O nascimento do
hospital, em 1974, o faz como sinônimo de “biopoder”. Entretanto, no curso Em Defesa da Sociedade
e em História da Sexualidade I, em 1976, Foucault faz uma distinção conceitual entre “biopoder” e
“biopolítica”, que passa a ser compreendida como uma das acomodações do biopoder, que
complementa a disciplina. Ele utiliza essa distinção também no curso de 1978, Segurança, Território e
População. Entretanto, no ano seguinte, no curso O Nascimento da Biopolítica, 1979, que seria
dedicado ao estudo do conceito, o autor faz uma longa análise do sistema econômico liberal e
neoliberal, abandonando o uso do termo “biopolítica”, passando a referir-se à “governamentalidade”,
que é compreendida como o excesso de governo sobre a vida. Estudos atuais, contudo, salientam a
relevância do termo “biopolítica”, que tem sido estudado por autores que derem sequência ao
pensamento foucaultiano, como por exemplo, Giorgio Agamben, Roberto Esposito e Antonio Negri.
25
[...] se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível com uma
colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora
sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse
10 Foucault, ao abordar a “peste” do século XVII, refere-se à lepra (FOUCAULT, 2013c, p.186-214).
11 Muitos acontecimentos dessa utilização da vida como força produtiva podem ser encontrados na
história. Atualmente, por exemplo, diversos pontos e aspectos da proposta de modificação nas leis
trabalhistas brasileiras, bem como a Reforma da Previdência podem ser entendidos como esse modo
do biopoder em considerar a vida humana como recurso.
28
12 Foucault não aborda a questão das grandes navegações que ocorreram nos séculos XV e XVI e
possibilitaram a expansão do mercantilismo, tendo em vista a colonização das Américas, que
proporcionava novos produtos e mercadorias. No início do século XIX, por exemplo, a Inglaterra foi o
país que mais se beneficiou com a abertura dos portos brasileiros. Para uma análise deste contexto,
sugerimos o capítulo Terras ou dinheiro? (AQUINO et.al., 1978, p. 03-102), e o capítulo A senhora dos
mares (GOMES, 2007, p 182-190).
13 Podemos verificar que isso ocorre até hoje, por exemplo, com o casamento do Príncipe William, da
Inglaterra, com Kate Middleton: uma burguesa, filha de um milionário, cuja origem da família é de
carpinteiros e operários. Ou seja, a família Middleton não fazia parte da nobreza britânica. Os pais de
Kate abriram uma empresa que vendia artigos para festas que lucrou muito, fazendo com que a família
enriquecesse. Desse modo, Kate estudou em escolas da alta classe britânica, aprendendo os hábitos,
cortejos e costumes da aristocracia. Mas apenas com o casamento de Kate com o príncipe William que
a família Middleton passou a integrar a aristocracia. Assim, Kate recebeu o título de Duquesa de
Cambridge. Andersen (2016) afirma que, por insistência da mãe, Kate concordou em dividir o
apartamento em que morava durante a faculdade com o príncipe William e que os dois iniciaram um
romance em seguida, mas que foi realizado um arranjo entre a imprensa e a Coroa, que mantiveram a
relação longe dos noticiários por 2 anos. (ANDERSEN, C. Game of Crowns: Elizabeth, Camilla, Kate,
and the Throne. New York: Gallery Books, 2016).
29
14A nobreza tinha por costume a realização de cerimônias, celebrações e festas que tinham rituais de
cortejos e mesuras, que também eram exigidos dos burgueses que estavam presentes. Nesta época
aparecem os “Manuais de Civilidade”, que tem por objetivo ordenar e regulamentar as práticas sociais,
conforme indica Arasse (2008, p. 581, grifos nossos): “[...] as boas maneiras manifestam o primado de
uma cultura urbana – seja ela de corte ou burguesa – e de seus valores, onde as noções tradicionais
de linhagem e de coragem são suplantadas pelas noções de honra individual e educação”.
30
16 Nesta passagem, Foucault escreve “bio-poder” com hífen, grafia diferente do que ele usualmente
faz, porém o sentido permanece o mesmo, isto é, como “poder sobre a vida”. Acreditamos que o uso
do hífen é um recurso utilizado pelo autor para enfatizar o “bio” enquanto referência ao biológico, ou
seja, o poder que se exerce sobre a vida na sua forma física, material, orgânica.
17 Investissement: termo citado por Foucault na obra Surveiller et Punir, p. 30, publicada em 1975, pela
[...] nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos
aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial
dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em
série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais,
de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se
incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do
exercício, do treinamento etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e
de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos
onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de
inspeções, de escrituras, de relatórios [...] (FOUCAULT, 2010a, p. 203, grifos
nossos).
relações pessoais, inserindo-se na vida íntima das pessoas. Ruiz (2007, p. 273) afirma
que,
18 “Natural”, nesse contexto, refere-se aos aspectos biológicos e fisiológicos do corpo humano. Nas
meninas, referimo-nos as mudanças hormonais próprias da puberdade que acarretam o início do
período menstrual; o desenvolvimento dos seios, o surgimento de pelos nas axilas, pernas e genitálias;
o aparecimento de espinhas; as mudanças na voz; e o alargamento dos ossos da bacia, que aumentam
os quadris.
35
o homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num
mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,
19 O filme “Tempos Modernos” (1936, 89min), de Charles Chaplin, ilustra de forma cômica essa
concepção de “corpo-máquina” que opera no nível do detalhe: o personagem Vagabundo é operário
em uma fábrica, realizando seu trabalho de modo mecânico que, ao sair da fábrica, continua
executando os gestos de torcer os parafusos enquanto caminha pela rua.
20 Com este conceito, Foucault reforça seu argumento de que o poder exercido sobre o corpo pelas
em 1975, pela editora Gallimard. Destacamos a expressão na língua original, considerando que a
expressão "sujeição" está relacionada à obediência e subordinação (sujeitar-se = obedecer; subordinar-
se), ou seja, o indivíduo se sujeita (obedece) às normas, no qual, aparentemente, há uma deliberação.
Em uma tradução mais literal do francês para o português, o correto seria “assujeitamento”, que na
nossa língua é sinônimo de “sujeição”. Entretanto, este termo na língua francesa apresenta outro
sentido, que nos possibilita ampliar nossa compreensão sobre o que Foucault entende por “sujeição”,
que pode ser compreendida como “o estado que resulta das obrigações as quais estamos submetidos”.
Ou seja, a submissão é um resultado, uma condição, é algo coercitivo e não deliberativo, pois é um
assujeitamento cotidiano e constante.
37
uma tecnologia de poder que não excluía a primeira, que não exclui a técnica
disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e
que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e
incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia
(FOUCAULT, 2010a, p. 203).
uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o
surgimento da “população”, como problema econômico e político: população-
riqueza, população mão-de-obra ou capacidade de trabalho, população e
equilíbrio entre seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os
governos percebem que não têm que lidar simplesmente com sujeitos, nem
mesmo com um “povo”, porém com uma “população”, com seus fenômenos
específicos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de
vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de doenças, forma de
23Medidas que atingem a totalidade de uma população, sociedade e/ou comunidade, sem distinções
sociais, econômicas, culturais, políticas, religiosas etc.
39
[..] tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e
desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo
qual, este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria
intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em
comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve
assegurar), com o espaço familiar (do qual de ser elemento substancial e
funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir através de
uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação):
a Mãe, com sua imagem em negativo que é a “mulher nervosa”, constitui a
forma mais visível de histerização (FOUCAULT, 2013a, p. 115, grifo nosso).
que vindo de um outro mundo. Agora, ele vai destacar-se sobre um fundo
formado por um problema de “polícia”, referente à ordem dos indivíduos na
cidade. Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar; agora será
excluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres,
os miseráveis, os vagabundos. A hospitalidade que o acolhe se tornará,
num novo equívoco, a medida de saneamento que o põe fora do caminho.
De fato, ele continua a vagar, porém não mais no caminho de uma estranha
peregrinação: ele perturba o espaço da ordem social. Despojada dos
direitos da miséria e de sua glória, a loucura, com a pobreza e a ociosidade,
doravante surge, de modo seco, na dialética imanente dos Estados.
[...] o que se deve ver é justamente que não houve a burguesia que pensou
que a loucura deveria ser excluída ou que a sexualidade infantil deveria ser
reprimida, mas os mecanismos de exclusão da loucura, os mecanismos de
vigilância da sexualidade infantil, a partir de certo momento, e por razões que
é preciso estudar, produziram certo lucro econômico, certa utilidade política
e, por esta razão, se viram naturalmente colonizados e sustentados por
mecanismos globais e, finalmente, pelo sistema do Estado inteiro. [...] A
burguesia não se interessa pelos loucos, mas pelo poder que incide sobre os
loucos; a burguesia não se interessa pela sexualidade da criança, mas pelo
sistema de poder que controla a sexualidade da criança. A burguesia não dá
a menor importância aos delinquentes, à punição ou à reinserção deles, que
não têm economicamente muito interesse. Em compensação, do conjunto
dos mecanismos pelos quais o delinquente é controlado, seguido, punido,
reformado, resulta, para a burguesia, um interesse que funciona no interior
do sistema econômico-político geral (FOUCAULT, 2010a, p. 29).
[...] não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também
aquilo que é objeto de desejo; [...] o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que
se luta, o poder pelo qual nos queremos apoderar.
25O filme “The Witch” (2015, 93min) apresenta um enredo no qual uma jovem é acusada de bruxaria
por crianças. A jovem debocha e, brincando com as crianças, imita uma bruxa. A pequena comunidade
onde vive, fortemente religiosa, passa a tratá-la como uma bruxa de fato, atribuindo a ela a
responsabilidade por determinados acontecimentos sem explicação que estão ocorrendo. No filme,
embora a jovem tente mostrar a incongruência das narrativas das crianças, suas palavras e as
verdades que traz em seu discurso são ineficazes em sua defesa, pois ninguém acredita nela. Ao
mesmo tempo em que o enredo expõe a incapacidade dos demais membros da comunidade em
questionar suas crenças, o que acaba por reforçar a convicção sobre a existência da bruxa e a
culpabilidade da jovem.
44
[...] se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes edifícios que
garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de
discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. [...]
são esses os grandes procedimentos de sujeição do discurso (FOUCAULT,
2014a, p. 42).
26 A forma positiva de exercício de poder está articulada com a produção de verdades. As “verdades”
que são produzidas trazem significação e coerência para as ações dos indivíduos, que orientam seu
agir por meio desses discursos. O capítulo 2 aborda a relação da produção de verdades e os
dispositivos de poder que conduzem as práticas sociais.
46
[...] Foucault não fornece um estatuto para o corpo. [...] este autor não volta a
sua atenção para os processos corporais. Pelo contrário, seu olhar se ocupa
em analisar, colher e descrever os discursos que falam e as práticas que
atuam sobre o corpo.
Ela destaca que, embora o corpo apareça com realce nos estudos de Foucault,
há uma ausência em indicar ou em definir o que é este corpo, e “os comentários sobre
o pensamento de Foucault se reservam em grande medida a explorar o poder que
incide sobre o corpo” (FONSECA, 2015, p. 17). Ela complementa que
[...] não se pode dizer que Foucault tenha efetivamente postulado um lugar
para debater a noção de corpo, e isso para evitar estabelecer qualquer
conotação de naturalidade ou existência do corpo independente de sua
constituição pelo saber-poder (FONSECA, 2015, p. 17).
[...] enigma que constitui o corpo para o pensamento que atravessa de parte
a parte toda a problemática foucaultiana; e que, sob múltiplas modalidades,
a decifração deste enigma ocupa o coração mesmo de seu pensamento
filosófico, talvez tanto quanto ele o inquietava enquanto sujeito.
Em sua obra, ele afirma pensar o corpo com Foucault, dedicando-se a elencar
diversos elementos históricos. Estes, auxiliam na compreensão do período no qual se
desenvolve o biopoder, mas que não foram explicitados por Foucault:
27 Indicamos a crítica de Boas (2007) às pesquisas que afirmavam haver diferenças cognitivas entre
europeus brancos e negros, atribuindo a isso a questão da cor da pele. Boas argumenta que, embora
existam essas diferenciações quanto as capacidades cognitivas, isso se deve ao fato de que europeus
negros e brancos vivem em condições distintas que interferem diretamente em sua capacidade de
aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades cognitivas.
28 Para uma introdução sobre a discussão da relação entre o corpo e o gênero, indicamos os estudos
realizados por Beauvoir (1967, 1970), no qual a autora apresenta a discussão histórica sobre como a
49
mulher se constituiu em oposição ao homem e o artigo de Scott (1995), em que a autora expõe a
importância do gênero enquanto categoria para análises sobre o corpo e o contexto histórico-social.
Ainda, destacamos o artigo de Nicholson (2000), no qual a autora apresenta sua análise acerca do
“fundacionismo biológico” e de que modo circunscrever as análises sobre a sociedade sem incluir a
problematização da mulher acabam por difundir discursos que não auxiliam na emancipação da mulher
de sua condição de submissão.
50
instintivo, pois ele procura colocar o corpo em uma dimensão histórica para que seja
possível indicar os processos de controle e os dispositivos de poder que são exercidos
sobre ele.
Ribeiro expõe ainda que, embora Foucault tenha herdado de Nietzsche o termo
“genealogia”, ele elabora seu próprio método genealógico. Isso gerou
questionamentos acerca da temática sobre o corpo no pensamento de Foucault:
Dessa maneira, “alcançar o corpo exige voltar-se para fora do corpo e analisar
tanto as regras do saber quanto as técnicas de poder que desenham o corpo com
seus efeitos” (FONSECA, 2015, p. 19). Cabe destacar que Foucault não ignorou a
“naturalidade” do corpo, ou melhor, os processos do corpo que são propriamente
biológicos e fisiológicos, mas ele procurou mostrar que as disciplinas e,
posteriormente, as biopolíticas (com maior ênfase e expansão), visavam
primordialmente controlar e modificar o corpo a partir de seus processos biológicos e
fisiológicos.
Neste sentido, Fonseca (2015, p. 31) propõe que o corpo em Foucault “[...] não
[é como] uma coisa disposta ao poder, mas uma instância que conjuntamente realiza
o poder ao materializá-lo no aparecer de uma forma específica”. Sob esta perspectiva,
Ribeiro (2018, p. 145) afirma que o corpo, no pensamento de Foucault, “[...] é visto
como marca ou estigma dos acontecimentos, em que esses critérios de ascendência
ou decadência da vida está diluído, ou seja, o corpo é efeito de luta” 29. Assim,
podemos compreender o movimento teórico de Foucault ao colocar o corpo sempre
em perspectiva contextualizada, no qual a temporalidade é circunscrita de forma física
no corpo. Por este motivo, o corpo é a materialidade das relações de poder próprias
de seu contexto de existência.
Fonseca (2015, p. 19-20) sublinha que “sem os discursos que pretendem
enunciar o corpo e sem as normas e práticas que o regulam, não parece haver lugar
para o corpo”. A partir deste cenário, podemos questionar se é possível pensarmos
29 A discussão sobre o corpo como efeito de lutas, por meio da análise da relação entre corpo e
resistência, será realizada no capítulo 3.
51
E mais, para Fonseca (2015, p. 16), Foucault não objetivava definir o que é o
corpo, mas analisá-lo com base nos dispositivos de poder que o circunscrevem, que
“[...] afetam e desenham o corpo”. Ela acrescenta que, ao centralizar o poder sobre o
corpo, Foucault nega a existência do corpo fora dos sistemas de poder, bem como a
existência de um saber “neutro” sobre o corpo.
Sob esta perspectiva, a autora afirma que o corpo, para Foucault, é um espaço
no qual convergem diferentes discursos que, quando examinamos com mais atenção,
revelam as “[...] estratégias de produção de sentido e a construção de subjetividade”
(FONSECA, 2015, p. 16). No entanto, ela destaca que Foucault não relaciona a
produção de sentido no próprio corpo, mas o articula com os dispositivos de poder
que atuam sobre ele, por meio das estratégias e das técnicas que lhe são aplicadas.
Neste sentido, o que fundamenta o sistema de regras em cada sociedade são
os discursos produzidos, inclusive aqueles elaborados sobre o corpo. Como os
indivíduos vivem em sociedade (ainda que estejam marginalizados e excluídos
econômica e socialmente), em consequência, não há motivos para pensarmos um
corpo que não esteja circunscrito por discursos. Dessa forma, não há corpo sem
discurso, pois os corpos dos indivíduos estão circunscritos por discursos que os
categorizam e os distinguem, sobretudo de forma implícita ou difusa. Entretanto, o que
podemos conjecturar é a existência de indivíduos que conseguem se emancipar de
determinados discursos (e suas “verdades”) sobre o corpo, fazendo com que eles
elaborem discursos (e verdades) próprios acerca de seu próprio corpo30.
Nesta perspectiva, Harari (2017), afirma que todas as diferenciações sociais,
econômicas, culturais, religiosas, étnicas, etc., são “ficções”. Ele destaca que
31Nesta perspectiva, o verbo “marcar” pode ser entendido como sinônimo de “ferretear”, isto é, como
algo que “marca a pele”, formando uma cicatriz que é visível a todos, não sendo possível que o indivíduo
esconda. Como exemplo, citamos: cor da pele e dos olhos; manchas; pintas; sardas; forma do rosto,
olhos e mãos oriundas de doenças genéticas (como a síndrome de Down, a psoríase e a vitiligo, por
exemplo) ou má-formação gestacional; e ainda, as tatuagens e os piercings; a forma e o corte de
cabelos; o uso de brincos e outros adornos, ou mesmo a ausência destes.
53
[...] o andar, que nos parece uma atividade propriamente sem história, merece
atenção: ele se aprende de diversas maneiras pelo mundo afora e através
dos tempos. Na França do Antigo Regime, a aprendizagem – tardia – dos
primeiros passos foi por muito tempo facilitada, em todos os meios, pelo
recurso a andadores. Esses laços de tecido, tirado das bordas dos tecidos de
lã, para servir de cordões e costurados às roupas das crianças que
ensaiavam seus primeiros passos, parecem ter induzido um procedimento
que acostuma a criança, depois o adulto, “a jogar-se para frente numa atitude
em que o peito se torna o centro sobre o qual se apoia o peso do corpo”.
Figura 1
A autora destaca ainda que o calçado inicialmente era usado para cobrir os pés
e auxiliar na mobilidade dos indivíduos e, com o passar dos séculos, se tornou um
adorno que serviu para distinguir ricos e pobres, homens e mulheres, os que moravam
no campo dos que moravam na cidade, etc. Na imagem de Paolo Veronese (fig.02),
é possível observarmos o uso de sapatos pelos nobres, enquanto os serviçais estão
descalços.
Figura 2
55
Pellegrin (2008, p. 162) também relata que “os ricos andam o menos possível
e seus sapatos de tecido ou de couro fino só permitem movimentos contados, isto é,
pouco numerosos e criadores de movimentos de elasticidade calculada”, enquanto os
moradores do campo, e também os mais pobres, usavam tamancos, como podemos
observar nas imagens de Jean-François Millet (fig.03) e Vicenzo Campi (fig.04).
Figura 3
Figura 4
56
Ou ainda, nas estações mais quentes, andavam com os pés descalços, como
na pintura de Hubert Salentin (fig.05).
Figura 5
Figura 6
57
CORBIN et.al (2008, p. 09) salientam que “[...] o corpo existe em seu invólucro
imediato como em suas referências representativas: lógicas ‘subjetivas’, também elas
variáveis com a cultura dos grupos e os momentos do tempo”. Isso porque o corpo
possui uma existência histórica que é circunscrita e delineada pelos acontecimentos
próprios de seu tempo. Harari (2017) nos expõe diversos exemplos de modificações
que ocorreram com o corpo humano após o início da ingestão de alimentos cozidos,
os quais somente foram possíveis a partir da produção32 do fogo. Ele também relata
como a gestação humana diminuiu de um ano e meio para, em média, nove meses,
com o passar das gerações, tendo em vista que o parto de bebês menores favorecia
a sobrevivência da mãe e do recém-nascido. Além disso, o autor afirma que
[...] o conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas,
de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de
poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo
deles objetos de saber.
32 O autor faz uma distinção entre as ações humanas de “dominar” e “produzir” o fogo. A “dominação”
do fogo corresponde ao período em que os humanos utilizavam o fogo que era naturalmente produzido,
como por exemplo, uma árvore em chamas devido a um raio. Já a “produção” do fogo é um período
posterior, em que os humanos desenvolveram habilidades em produzir, manusear e manter o fogo,
sem depender de fenômenos naturais para sua obtenção. Com isso, a alimentação se modificou devido
ao incremento de alimentos cozidos de modo cotidiano, acarretando o desenvolvimento do cérebro e
demais habilidades cognitivas (HARARI, 2017).
33 Essa discussão também é abordada por Badinter (1986), ao realizar a análise de como se
34“Cultuar” o corpo no sentido de admirar, apreciar, adornar, adorar, enfocar, enfatizar, dar demasiada
importância.
59
[...] obras publicadas em número tão grande, no fim do século XVIII, sobre a
higiene do corpo, a arte da longevidade, os métodos para ter filhos de boa
saúde e para mantê-los em vida durante o maior tempo possível, os
processos para melhorar a descendência humana; eles atestam, portanto, a
correlação entre essa preocupação com o corpo e o sexo e um certo
“racismo”[35] (FOUCAULT, 2013a, p. 137).
A família, durante este período, tornou-se uma instituição que passou a ter
importância fundamental na implementação dos dispositivos de sexualidade. Isso
porque, de acordo com Foucault (2013a), a família deve ser compreendida, naquele
contexto, como uma estrutura que tem como função constituir as sexualidades, os
comportamentos e controlar o corpo dos indivíduos que estão implicados nessas
relações, conforme as determinações dos dispositivos.
A célula familiar, assim como foi valorizada durante o século XVIII, permitiu
que, em suas duas dimensões principais – o eixo marido-mulher e o eixo pais-
filhos – se desenvolvessem os principais elementos do dispositivo de
sexualidade (o corpo feminino, a precocidade infantil, a regulação dos
nascimentos e, em menor proporção, sem dúvida, a especificação dos
perversos) (FOUCAULT, 2013a, p. 119).
35Neste texto, o “racismo” que Foucault cita se refere à questão da higienização das raças que, neste
período, está em “estado embrionário” até a segunda metade do século XIX, desdobrando-se, no século
XX, no nazismo e fascismo (FOUCAULT, 2010a, 2013a,).
60
36 Foucault expõe que existiam sistemas de relações entre parceiros sexuais que funcionavam como
dispositivo de aliança: “[...] sistema de matrimônio, de fixação e de desenvolvimento dos parentescos,
de transmissão dos nomes e dos bens. [...] O dispositivo de aliança conta, entre seus objetivos
principais, o de reproduzir uma trama de relações e manter a lei que as rege; [...] o que é pertinente é
o vínculo entre parceiros com status definido; o dispositivo de aliança se articula fortemente com a
economia devido ao papel que pode desempenhar na transmissão ou na circulação de riquezas”
(FOUCAULT, 2013a, p. 117-118). O autor destaca que esse dispositivo foi perdendo a sua importância
visto que, com as novas relações econômicas e políticas, ele se tornou ineficaz diante da complexidade
das relações, sendo substituído pelo dispositivo de sexualidade.
61
século XIX, mostram que se estava longe de tomar em consideração o seu corpo e o
seu sexo [...] (FOUCAULT, 2013a, p. 138).
Isso mudou somente com a ocorrência de conflitos e com o surgimento de
epidemias e de doenças sexualmente transmissíveis, que foram associadas à
prostituição. Além disso, a necessidade crescente de mão de obra estável e
qualificada tornou o corpo (e a sexualidade) do proletariado motivo de preocupação e
vigilância do Estado e das instituições. Neste sentido, Foucault (2013a, p.138) afirma
que
37Os suplícios eram uma das formas de punição utilizada na Europa até o século XVIII. Em geral, eram
cerimônias nas quais o soberano realizava demonstrações públicas de seu poder aos súditos. De
acordo com Foucault (2010a, 2013a), o soberano tinha o poder de “fazer morrer”.
63
38 Arendt (2000) aborda essa questão do corpo que apresenta o indivíduo ao mundo na obra A Vida do
Espírito, Volume 1 – O Pensar, Capítulo 1 – Aparência, em que ela trata da relação entre corpo e alma,
afirmando que aquilo que pensamos pode ser expresso por meio dos gestos, dos olhares, da maneira
como falamos. Além disso, a autora apresenta a problematização do corpo enquanto “auto-
apresentação”, que se constitui em uma escolha ativa e consciente quanto a exibição de determinadas
características do corpo em detrimento de outras. Nesta perspectiva, Arendt alerta para a possibilidade
de fraude e fingimento com relação aquilo que se mostra no corpo, que pode não expressar aquilo que
o indivíduo é, pois pode ser apenas uma construção com determinado fim, e não a exposição daquilo
que o indivíduo é enquanto sujeito das relações de poder.
64
A partir do estudo do biopoder, como aquele que tem como centralidade a vida,
Foucault nos apresenta uma nova forma de operação dele. Conforme Ruiz (2007, p.
270), “o poder e a vida se coimplicam numa espécie de círculo vicioso em que o
Estado se apropria da potência da vida humana para incrementar seu poder, sendo o
poder absoluto do Estado a garantia de preservação da vida”. Neste sentido, a
apropriação da potência da vida humana pelo Estado serviu para promover o seu
poder, ao mesmo tempo em que ele visa a garantir a continuidade da vida. Contudo,
podemos perguntar como isso se legitima.
Ruiz (2007) aponta que o discurso sustenta a tensão entre os indivíduos, o
Estado e as instituições, como a escola, as universidades, a Igreja, os sindicatos, as
fábricas, os hospitais, etc. Isso ocorre porque a lógica desde discurso visa à
preservação da estrutura do Estado e a continuidade dos dispositivos de poder. Estes,
pretendem maximizar a produtividade dos corpos e não visam a melhoria da vida dos
cidadãos.
Nesta perspectiva, Foucault (2017, p. 346) destaca que “vivemos em uma
sociedade que, em grande parte, marcha ‘ao compasso da verdade’ – ou seja, que
produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e
que detêm por esse motivo poderes específicos”. Neste contexto, o discurso adquire
uma função “estratégica”, pois é por meio dele que o poder vai operar (FOUCAULT,
2015, p. 247). Ele afirma que:
65
não há exercício de poder sem uma certa economia dos discursos de verdade
que funcionam nesse poder, a partir e através dele. [...] somos forçados a
produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela
para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos
condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la. [...] Temos de produzir
a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos
de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado,
somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade
é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele
veicula, ele próprio propulsa os efeitos de poder. Afinal de contas, somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a
uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função
de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de
poder (FOUCAULT, 2010a, p. 22, grifos nossos).
[...] um século mais tarde, a verdade mais elevada já não residia mais no
que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou
um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de
enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu
objeto, sua relação a sua referência.
“verdades” ocorreu, nesse contexto, por meio de pressão e de coerção por parte das
instituições, gerando a elaboração de discursos verdadeiros que passaram a reger a
sociedade:
Neste sentido, as disciplinas não precisam ser analisadas em sua origem para
serem válidadas e colocadas em práticas, bem como não necessitam que “iluminem”
aquilo que está oculto. No entanto, precisam dos elementos necessários para a
concepção (infinita) de novos enunciados considerados verdadeiros. Desse modo,
elas não são conjuntos de verdades sobre determinada coisa, mas são elaboradas a
partir de elementos verdadeiros e falsos, bem como de erros e acertos, “[...] que têm
funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes indissociável daquele
das verdades” (FOUCAULT, 2014a, p. 30).
Sob esta perspectiva, “no interior de seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda
68
uma teratologia [39] do saber” (FOUCAULT, 2014a, p. 31). Para que um enunciado
seja considerado verdadeiro e seja incluído no discurso de uma determinada
disciplina, ele precisa cumprir critérios e satisfazer certas condições, que se compõem
em um horizonte teórico mais ou menos definido, tendo em vista que as disciplinas se
dirigem de forma direta e objetiva sobre o corpo. “Em resumo, uma proposição deve
preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma
disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se [...] ‘no
verdadeiro’.” (FOUCAULT, 2014a, p. 32).
As disciplinas funcionam com base no controle da produção de discursos e são
reforçadas e ampliadas com o uso de regras. As proposições e os enunciados devem
se submeter a essas regras para que a “verdade” ou a “falsidade” sejam identificadas.
O objetivo é o aumento da força produtiva de cada sujeito, considerando o efeito
multiplicador delas.
Tal qual a disciplina, a biopolítica também possui seus discursos e verdades,
os quais visam a garantir a operação de seus dispositivos, que orientam as práticas
dos sujeitos. Foucault (2013a) argumenta que a confissão40 foi amplamente utilizada
pela Pastoral Cristã com o objetivo de conduzir as condutas por meio do discurso.
Para isso, por exemplo, “a interdição de certas palavras, a decência das expressões,
todas as censuras do vocabulário [...]” transformaram as formas de comunicação,
tornando a linguagem “[...] moralmente aceitável e tecnicamente útil” (FOUCAULT,
2013a, p. 27). Em outros termos, o ritual de confessar propicia que o discurso daquele
que comete o pecado seja modelado e adestrado de duas maneiras. A primeira, pela
forma como o “pecador” deve relatar seus atos falhos, ou seja, como ele verbaliza a
narrativa de sua ação (constrói sua “verdade”). E, a segunda forma é por meio das
penalidades e sanções que lhe são aplicadas devido ao pecado cometido. Ou seja, a
interdição do discurso, como por exemplo: a proibição do uso de alguns termos, o
pudor em se falar sobre determinados assuntos e o constrangimento exercido sobre
a linguagem.
que estão em desacordo com as regras da Igreja. Esse ritual tem como objetivo (1) que o pecador
admita sua culpa perante a Deus, por meio do ato de confessar para seu representante na Terra (o
confessor) e (2) que se aplique uma punição conforme o pecado cometido.
69
Assim, a verdade está associada aos sistemas de poder “[...] que a produzem
e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2017,
p. 54), funcionando de modo circular e cíclico. Neste contexto, a expansão da Pastoral
Cristã acentuou a relação entre a moralidade e o sexo na Modernidade. Machado
(2017, p. 30), explica que o poder pastoral se desenvolveu a partir do século XVI, mas
que se fortaleceu após a Reforma (1517) e a Contrarreforma (1545), caracterizando-
se “[...] pelo projeto de dirigir os homens, nos detalhes de sua vida, do nascimento até
a morte, para obrigá-los a um comportamento capaz de levá-los à salvação”. Isso
gerou a elaboração de determinados conjuntos de verdades, aliado à Medicina e à
Pedagogia, que serviam como fundamento dos dispositivos biopolíticos desenvolvidos
na época:
O poder, desse modo, constitui seus dispositivos com base no que os sujeitos
dizem, sentem e naquilo que esperam dos outros e de si mesmos (FOUCAULT, 2017).
A produção de verdades, desse modo, constitui discursos que, em consequência,
organizam a sociedade de modo integral, isto é, se aplicam a todos os indivíduos
coletivamente. Como exemplo, Foucault cita as estratégias que apareceram na
França, a partir dos anos 1825-1830, que objetivavam a permanência dos operários
nas primeiras indústrias pesadas, ou seja, naquelas que fabricavam produtos para
outros setores, como siderúrgicas, metalúrgicas e produtos químicos:
relacionam e vivem suas vidas. Isso é devido à imposição de “[...] certo número de
regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles” (FOUCAULT,
2014a, p. 35). Ou seja, algumas normas impostas pelo biopoder estão mais “abertas”
a alterações, enquanto outras são impenetráveis. O conjunto de restrições que
fundamenta esse sistema qualifica os indivíduos que podem falar, define os momentos
para que esta ação acorra, determina a posição que os sujeitos ocupam em seu ato
de fala e, ainda, preconizam um conjunto de enunciados verdadeiros e adequados ao
dispositivo de poder.
Ao abordar a questão da verdade, Ribeiro (2018) indica que Foucault coloca
sobre a verdade um efeito suspensivo, em especial sobre a busca por uma origem
dessas verdades:
Foucault se recusa a buscar uma origem primeira ou metafísica. Ele afirma que,
se existe uma origem, devemos buscá-la na História (FOUCAULT, 2017). Isso porque,
“a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 2017, p. 52). Dessa forma, o
autor se coloca em oposição às “[...] análises tradicionais que tentam encontrar sob o
acaso de aparência e de superfície, sob a brutalidade visível dos corpos e das paixões,
uma racionalidade fundamental, permanente, vinculada por essência ao justo e ao
bem” (FOUCAULT, 2010a, p. 228).
Até o final dos anos 1970, a questão da produção da verdade e dos discursos
que são formados a partir desse processo, foram analisados por Foucault como os
modos de intervenção e de separação entre indivíduos, constituindo distinções e
estabelecendo hierarquizações sociais. Entretanto, podemos identificar que há uma
modificação na abordagem de Foucault com relação a verdade, que se explicita nos
cursos proferidos no Collège de France a partir dos anos 1980. Segundo ele,
fazer de si mesmo e o saber que se forma dela foram organizados por meio
de alguns esquemas? Como seus esquemas foram definidos, valorizados,
recomendados, impostos? (FOUCAULT, 2014b, p. 349).
[...] a maneira pela qual [o indivíduo] deve constituir a si mesmo como sujeito
moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o
código. Dado um código de ação, e para um determinado tipo de ações (que
se pode definir por seu grau de conformidade ou divergência em relação a
esse código), existem diferentes maneiras de “se conduzir” moralmente,
diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente
como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação.
Isso pode ser verificado quando observamos como as relações com o corpo
foram modificadas no decorrer do tempo nas sociedades europeias. Assim, podemos
retomar o pensamento do autor quando ele afirma que o biopoder não se desenvolveu
da mesma maneira em todos os lugares, sequer no mesmo momento. Dessa forma,
ele apresenta como exemplo as distinções entre a constituição da sociedade de
normalização alemã e francesa. Na Alemanha,
[...] havia uma espécie de circuito que fazia com que as crianças nascessem
uma após as outras. Com efeito, a tradição médica e popular dizia que uma
mulher, quando estivesse aleitando, não tinha mais o direito de manter
relações sexuais, do contrário o leite estragaria. Então as mulheres,
sobretudo as ricas, para poderem recomeçar a ter relações sexuais e assim
segurar seus maridos, enviavam seus filhos para a ama de leite. Havia uma
verdadeira indústria do aleitamento. As mulheres pobres faziam isso para
ganhar dinheiro. Mas não havia nenhum meio de verificar como a criança
estava sendo criada, nem mesmo se a criança estava viva ou morta. De tal
forma que as amas de leite, e sobretudo os intermediários entre as amas e
os pais, continuavam a receber pensão de um bebê que já tinha morrido.
Algumas amas tinham um índice de dezenove crianças mortas em vinte que
lhe haviam sido confiadas. Era terrível! Foi para evitar essa desordem, para
restabelecer um pouco de ordem, que se encorajam as mães a aleitar seus
filhos. Imediatamente acabou a incompatibilidade entre a relação sexual e o
aleitamento, mas com a condição, é claro, de que as mulheres não ficassem
grávidas imediatamente depois (FOUCAULT, 2017, p. 405).
Será preciso uma teoria do poder? Uma vez que uma teoria assume uma
objetivação prévia, ela não pode ser afirmada como uma base para um
trabalho analítico. Porém, este trabalho analítico não pode proceder sem uma
conceituação dos problemas tratados, conceituação esta que implica um
pensamento crítico – uma verificação constante (FOUCAULT, 1995, p. 232).
Além disso, o mesmo comentador explicita que, por não haver uma teoria geral
do poder em Foucault, suas análises
[...] não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza,
uma essência que ele procuraria definir por suas características gerais
universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente
formas díspares, heterogêneas, em constante transformação (MACHADO,
2017, p. 12).
Machado (2017, p. 12) afirma ainda que “o poder [para Foucault] não é um
objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, [é] constituída
79
historicamente”. Desse modo, objetivando não elaborar uma teoria do poder, Foucault
analisou os modos como o poder se exerceu em determinado período, explicitando
que determinadas práticas, mesmo sem terem sido orientadas pelo Estado, ocorrem
cotidianamente nas relações interpessoais. Neste sentido, Foucault (2015, p. 226)
explica que,
em toda parte onde há poder, o poder se exerce. Ninguém, para falar com
propriedade, é seu titular; e, no entanto, ele se exerce sempre em uma certa
direção, com uns de um lado e outros de outro; não se sabe ao certo quem o
tem; mas se sabe quem não o tem (FOUCAULT, 2015, p. 42-43).
Foucault (2010a) afirma ainda que o poder deve ser considerado como exercido
em rede, em cadeia, pois ele circula, transita, se move entre os indivíduos. Nos termos
de Foucault (1995, p. 242):
está além dos indivíduos, mas que está presente no cotidiano, coordenando as ações
entre os sujeitos, organizando as relações. Foucault (1995, p. 243) expõe que,
de fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não
age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria
ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou
presentes. [...] Uma relação de poder, [...], se articula sobre dois elementos
que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o
outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e
mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante da relação
de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções
possíveis.
Por este motivo, ele salienta que as relações de poder são produtivas e não
somente repressivas, apresentando a questão: “se o poder fosse somente repressivo,
se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?”
(FOUCAULT, 2017, p. 44). Neste sentido, as relações de poder devem ser produtivas:
para que os indivíduos submetidos ao poder ajam conforme o esperado. Assim, o
exercício do poder se configura como
[...] um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo
de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele
incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, toma mais
ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é
sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto
eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT,
1995, p. 243).
é verdade, parece-me, que o poder “já está sempre ali”; que nunca estamos
“fora”, que não há “margens” para a cambalhota daqueles que estão em
ruptura. Mas isso não quer dizer que se deva admitir uma forma incontornável
de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca se possa estar
“fora do poder” não quer dizer que se está inteiramente capturado na
armadilha.
De acordo com Sampaio (2011), o poder não está situado em apenas uma
esfera da sociedade: ele se espalha entre as instituições e os indivíduos, circulando
entre os micros e macros poderes, causando ações e reações entre os sujeitos. Desse
42Segundo Fonseca (2011, pos. 1492), “a biopolítica do corpo e a biopolítica da população compõem
a espécie de relações de poder que marcam a atualidade.”
83
Desse modo, ele destaca a necessidade dos sujeitos serem livres para que o
poder seja exercido, configurando-se como relações de força. Do contrário, serão
apenas relações em que um indivíduo tem a posse sobre o corpo do outro, como
exemplificado pelo autor, nas relações de escravidão. Nessas relações, o poder opera
de outra forma, não havendo liberdade nos termos teorizados por ele. A liberdade
articulada como condição para o poder permite que qualquer indivíduo possa exercer
o poder em alguns momentos.
Este condicionante do poder, apresentado por Foucault, tornou mais complexa
a análise do que o autor compreende por liberdade. De acordo com Sampaio (2011,
p. 226), a liberdade como condição para o poder “[...] introduz a liberdade quase como
um imperativo das relações de poder, ainda que, paradoxalmente, estas produzam
efeitos que a limite ou a incite”. Entretanto, a autora destaca que “[...] a presença da
liberdade é útil para dissociar a ideia das relações de poder balizadas como campo
de construção de obediência” (SAMPAIO, 2011, p. 227), além de facilitar a
compreensão das modificações que ocorrem nas relações de poder. Sob esta
85
Branco (2008) indica que a preocupação de Foucault, a partir dos anos 1980,
está relacionada às formas de produção de subjetividade, e ele o faz a partir da
relação entre a ética e a política. Iniciando com Kant, a partir do texto sobre o
“Esclarecimento” (KANT, 1985), Foucault relaciona a maioridade e o Esclarecimento
com a questão da liberdade. Branco (2008, p. 210-211) constata que
Branco (2001) afirma ainda que, neste momento, as análises de Foucault não
estão preparadas para considerar as qualidades ou as capacidades humanas de
reflexão e de crítica para a constituição de concepções éticas e políticas. Dito de outra
maneira, nesses escritos, os indivíduos não conseguem “escapar” dos mecanismos
de poder. O comentador indica que, no início dos anos 1970, Foucault “[...] procura
discernir os procedimentos inerentes às relações entre saber e poder, num projeto
que, apesar de prioritariamente epistemológico, tem que se amparar numa nova
concepção de poder [...]” (BRANCO, 2001, p. 239). Sob esta perspectiva, a liberdade
aparece em seu primeiro sentido, como “liberdade política”. Castro (2009, p. 246),
afirma que
Em outras palavras, os indivíduos que agem livremente são aqueles que (1)
não estão impedidos de agir conforme sua deliberação, vontade ou desejo; e aqueles
que (2) não estão coagidos a adotar apenas uma conduta pré-determinada, possuindo
um “leque” de opções para sua ação. Os dispositivos de poder, entretanto, são
constantes e se desenvolvem de modo ininterrupto, “[...] produzindo reduzidas lacunas
onde poderiam se desenvolver atitudes de resistência ou desobediência” (SAMPAIO,
2011, p. 223). A dificuldade das ações de enfrentamento ou de resistência reside na
sutileza pela qual os dispositivos de poder transitam entre os sujeitos, operando por
meio de uma rede integrada de conexões, encaminhamentos, delimitações e
complementaridades (SAMPAIO, 2011). Nesta perspectiva, a liberdade pode parecer
intangível e impraticável, pois o poder está mediando todas as relações humanas.
89
43 Na obra 1984, de George Orwell, publicada originalmente em 1949, por exemplo, o autor narra uma
sociedade distópica, mostrando que as práticas de liberdade e de resistência são controladas pelo
Grande Irmão. A narrativa apresenta exemplos de situações em que a resistência é controlada e
utilizada para o aperfeiçoamento e a atualização dos dispositivos de poder.
90
[...] para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre,
dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade. [...] Isso significa
que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência,
pois se não houvesse possibilidade de resistência – de resistência violenta,
de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação –, não
haveria de forma alguma relações de poder. [...] se há relações de poder em
todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado. [...] Em inúmeros
casos, as relações de poder estão de tal forma fixadas que são
perpetuamente dessimétricas e que a margem de liberdade é extremamente
limitada.
o índice da liberdade, todavia, não é para ser entendido como uma petição
de princípio meramente teórica; deve ser elucidado no plano das lutas sociais,
44Branco (2001) indica o movimento do Sindicato da Solidariedade, na Polônia, no final dos anos 1970,
o Solidarność, que organizou protestos não violentos devido à estagnação salarial e alta dos preços
dos alimentos, como um dos fatores que ocasionou a mudança na perspectiva de Foucault. Além disso,
Branco (2001) também indica a Revolução Iraniana, de 1979, que modificou o país, passando de uma
monarquia autocrática para uma república islâmica teocrática. Destacamos que Foucault escreveu
artigos e concedeu entrevistas sobre a revolução no Irã. Alguns desses textos estão reunidos na
coleção Ditos e Escritos, volumes V e VI, da edição brasileira, dentre os quais indicamos: É inútil
revoltar-se? (vol. V), Com que sonham os iranianos? (vol. VI) e Michel Foucault e o Irã (vol. VI).
91
45Neste contexto, há uma distinção entre “pensar”, como o ato de “formar ideias” ou de “raciocinar”
sobre alguma ação ou situação; enquanto “refletir” se refere ao pensamento com base em uma crítica
ou julgamento sobre a ação ou situação que foi anteriormente pensada.
92
um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim
só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento. Mas
renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência,
significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade.
É possível, neste contexto, perceber o “fio condutor” que Foucault utiliza para
sua investigação ética: se para sair da menoridade o indivíduo precisa fazer o uso de
sua razão, então ele deve praticar a parresía; e, para praticá-la ele precisa do outro,
pois é este outro que lhe aponta os limites, que lhe retém e lhe circunscreve,
auxiliando-o na constituição de seus próprios princípios, ocasionando o cuidado de si.
Assim, o indivíduo ao cuidar de si, também cuida do outro, pois o jogo parresiástico
se constitui em uma dupla função de fala e escuta, que incide na formação ética dos
indivíduos (FOUCAULT, 2011).
Sampaio explica que a liberdade ética se refere às ações conforme as
experiências dos indivíduos e a sua subjetividade. Ela indica que “a experiência plena
da liberdade [...] dá-se no encontro com o outro; longe de ser uma experiência solitária
com o próprio eu, realiza-se na associação com outrem” (SAMPAIO, 2011, p.225).
Nesta perspectiva, para Foucault (2010b), a ética é uma relação do indivíduo consigo
mesmo, afirmando a inexistência de um sujeito transcendental. Ou seja, os indivíduos
não constituem sua moralidade por meio de uma lei universal apriorística, mas nas
práticas de si e nas relações sociais, enfatizando que não há algo transcendente ao
sujeito que, por meio do uso da razão, ele vai “atingir”. Fonseca (2011, pos. 1803, grifo
nosso) expõe que, para o pensamento de Foucault, “naquilo que denominamos moral,
há [...] o comportamento efetivo das pessoas, há os códigos e há esse tipo de relação
consigo mesmo que é a ética”. Em outras palavras, a ética define o sujeito moral.
94
46 No original: “[...] los cuerpos no sólo son la materia prima donde se inscribe o asienta el orden social,
al disciplinarlos, sino uno de los recursos que lo puntualizam, expresan y reproducen [...]”.
98
Desse modo, Rojas expressa que o poder da normalização, que atua sobre o
corpo, não o força nem o inabilita; porém os efeitos que podem ser verificados incidem
sobre as distinções entre o que é “normal” e “anormal”. Nessa mesma perspectiva,
Ribeiro (2018) afirma que o corpo, para Foucault, não resulta da hierarquia de
impulsos, pois ele é o efeito dos ajustes disciplinares suscitados pela sujeição dos
corpos nos processos de subjetivação. Isso porque o poder “passa” pelo corpo
(FOUCAULT, 2010a).
A partir dos estudos sobre o poder, “[...] Foucault se dá conta da complexidade
do fenômeno do poder, o qual não reside numa simples relação de forças entre
elementos, átomos, agentes que exercem poder, mas passa por uma relação de si a
si no próprio sujeito” (SANTOS, 2009, p. 19). Destarte, a preocupação com a ética
aparece no final dessa mesma década, com o aprofundando do estudo da constituição
ética dos sujeitos. Santos (2009, p. 19) afirma que Foucault, então, realiza suas
análises no “espaço das relações do sujeito consigo próprio numa ‘auto constituição’”.
O objetivo de Foucault é complementar os estudos anteriores acerca do saber e do
poder, e o faz por meio do estudo das práticas de si que constituem os distintos modos
de subjetivação. Ruiz (2003) chama a atenção para o modo como essas práticas,
denominadas por ele de “práticas éticas”, estão relacionadas à constituição das
subjetividades. Em seus próprios termos,
47 No original: “[...] en la medida que los sujetos se individualizam, el poder se desindividualiza, corre
por todos los canales de circulación posible colocando mayor énfasis sólo en aquellos que
desobedecen o se alejan de la norma, por ende, la observación y la vigilancia, provienen de más allá
del propio sistema de consumo.”
48 No original: “la práctica ética incide en las dos direcciones: a) ella define el estilo de existencia de la
persona; b) a través de ella se construye la subjetividade de esa persona. La práctica ética del sujeto
concretiza un modo de vivir los valores, y ese mismo modo de vida del sujeto construye los rasgos
identitários de la subjetividad. Esta doble incidencia de la ética como práctica que implementa un estilo
de vida y a su vez define un modo de subjetivación, es lo que denominamos ética como práctica de
subjetivación.”
99
Ruiz (2003, p. 137, tradução nossa) afirma ainda que as práticas éticas se
mostram por meio da “[...] capacidade criativa do sujeito que institui sentido para o
mundo, criando, por sua vez, um mundo de sentidos para tudo o que vive e para si
mesmo”49. Por este motivo, os processos de formação da subjetivação dos indivíduos
estão circunscritos por elementos históricos, próprios de seu contexto, acrescidos das
reflexões que os sujeitos conseguem realizar sobre si mesmos e sobre o mundo no
qual vivem.
Conforme Branco (2001), para Foucault, as resistências e as práticas de
liberdade são lutas que buscam a autonomia do sujeito da sua condição de
assujeitamento, tanto política quanto eticamente. Por isso, a ênfase foucaultiana não
recai apenas no Estado e nas instituições de poder: ele as contrapesa com as relações
interpessoais. Isso porque, para que os sujeitos constituam para si mesmos outros
modos de subjetivação (que não necessariamente circunscritos apenas pelos
dispositivos de poder), as relações éticas e políticas que estabelecem, precisam
estimular o desenvolvimento da autonomia, para que eles exerçam a liberdade. Desse
modo, a resistência não se configura apenas no sentido negativo, de enfrentamento
direto ao poder, mas também em sentido positivo, como prática de liberdade na qual
há uma “autoelaboração” da própria subjetividade.
Embora os dispositivos de poder objetivem que os indivíduos se moldem e não
resistam ao poder, a condição da liberdade impossibilita o “enquadramento total” dos
sujeitos. Desse modo, a normalização que pretendem esses dispositivos também é
constituída pelos processos de “subjetivação do sujeito”, que é formado tanto pelos
dispositivos de poder e de normalização, quanto pelas práticas de liberdade.
49No original: “[...] capacidad creativa del sujeto que instituye sentido para el mundo, creando, a su vez,
un mundo de sentidos para todo lo que vive y para sí mismo”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
autor indica a liberdade como a condição para a existência das relações de poder que
caracterizam o biopoder. O poder possui como contrapeso a liberdade, de modo que
os indivíduos ora exercem o poder, ora exercem a liberdade. A liberdade, então, pode
ser exercida por meio das resistências, bem como por meio de práticas éticas
refletidas. Ainda, há a possibilidade de uma terceira forma de exercício da liberdade,
no qual, deliberadamente, o indivíduo opta por exercer o poder ou se submeter a ele.
Isso porque o poder tem como objetivo que seus mecanismos sejam efetivados e
repetidos, para sua manutenção, sem a necessidade de concordância dos sujeitos.
Desse modo, o indivíduo se constitui enquanto “sujeito assujeitado”, pois
quando nasce, ele está inserido em uma sociedade na qual estão em funcionamento
determinados mecanismos de poder. Ao mesmo tempo em que os sujeitos possuem
uma margem de ação para as práticas de liberdade. Neste sentido, a constituição de
si é circunscrita por processos que limitam o sujeito, ao mesmo tempo em que o
possibilitam agir com liberdade, mesmo que limitada. Por este motivo, os modos de
subjetivação – compreendidos como as formas pelas quais cada um elabora e forma
sua individualidade – são constituídos por exercícios de poder e práticas de liberdade.
Assim, na formação de suas subjetividades, cada sujeito mostra no próprio corpo as
maneiras como se relaciona com as normas, as regras, as obrigações e as proibições.
As práticas de liberdade, sejam elas como atos de resistência, sejam como
práticas éticas refletidas, podem melhorar a relação dos indivíduos com o poder,
constituindo maneiras de viver com mais qualidade, em especial, nos relacionamentos
interpessoais. Se é verdadeiro afirmar que os dispositivos de biopoder visam a que os
indivíduos não resistam, devido à liberdade enquanto condição ao poder, essa “meta”
do poder nunca se efetivará completamente. Isso porque a “brecha” imposta pela
liberdade nas relações se mostra mais profícua à constituição de modos mais
correspondentes à multiplicidade dos indivíduos.
Em consequência, isso se reflete no corpo. Para exemplificar, os movimentos
sociais, em ascendência no Ocidente desde os anos 1960 (principalmente os negros,
os feministas e os homossexuais), têm questionado cada vez mais as relações de
poder que circunscrevem os corpos. Esses movimentos visam, em um primeiro
momento, ao esclarecimento sobre a própria condição de sujeito, apresentando
questões referentes ao corpo como um “gatilho de exclusões”. Em um segundo
momento, eles objetivam que modificações concretas sejam realizadas nas práticas
sociais. Por este motivo, esses movimentos configuram não apenas o debate político
103
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