José Godoy Garcia A Voz Do Modernismo em Goiás Dissertação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

IONICE BARBOSA DE CAMPOS

JOSÉ GODOY GARCIA: A VOZ DO MODERNISMO EM GOIÁS

Uberlândia

2011
IONICE BARBOSA DE CAMPOS

JOSÉ GODOY GARCIA: A VOZ DO MODERNISMO EM GOIÁS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-


graduação em Letras – Curso de Mestrado em teoria
Literária da Universidade Federal de Uberlândia, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Letras, área de concentração: Teoria Literária.

Área de Concentração: Estudos Literários


Orientador: Profº. Dr. Eduardo José Tollendal.

Uberlândia
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

C198j Campos, Ionice Barbosa de, 1986-


José Godoy Garcia [manuscrito] : a voz do modernismo em Goiás. /
Ionice Barbosa de Campos. - Uberlândia, 2011.
117 p.

Orientador: Eduardo José Tollendal.


Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Letras.
Inclui bibliografia.

1. Literatura brasileira - História e crítica - Teses. 2. Garcia, José


Godoy, \d 1918- - Crítica e interpretação - Teses. 3. Modernismo
(Literatura) - Goiás (Estado) - História e crítica. I. Tollendal, Eduardo José
de. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação
em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)(091)
À dona Maria Isabel e ao seu Natanael, meus pais, que me deram a vida e me ensinaram o
caminho que devo andar, seguindo sempre com retidão e perseverança, pelo grande apoio,
desvelo e estímulo de sempre.

Ao José Aguiar, meu irmão, que apesar dos percalços ocorridos na trajetória foi um dos
motivos que me levaram a seguir em frente.

Aos Barbosa e aos Campos, família que sempre minha nunca deixou de me apoiar,
preocupando sempre com o futuro promissor.
AGRADECIMENTOS

A Deus, dono de todo conhecimento e sabedoria perfeita, sem o qual não somos nada. ―Bem
sei eu que tudo podes, e nenhum dos seus pensamentos pode ser impedido‖.

Ao Professor e Orientador José Eduardo Tollendal, pela paciência, orientação e pelo


incentivo, além da confiança e crença em minha vontade de ver realizado este trabalho.

Às professoras Maria Ivonete Santos Silva e Maria Auxiliadora Cunha Grossi, pela leitura
atenta e contribuição durante o exame de qualificação.

À Professora Solange Fiuza Cardoso Yokozawa, professora da graduação, por ter


proporcionado momentos felizes de descoberta, e, principalmente por ter me apresentado a
poesia de José Godoy Garcia, além de ter aceito o convite para participar da banca de defesa.

À Professora Maria Helena de Paula, pela amizade e generosidade de sempre, pela


credibilidade ao ter, na graduação, me incentivado no mundo da pesquisa, e até hoje nunca ter
desistido de mim.

À Professora Ademilde Fonseca, pelo apoio e incentivo que perdurou todo o período do
mestrado, pelo carinho e amizade.

Ao Professor Braz José Coelho, com o meu apreço e admiração, pela importante ajuda na
ampliação de meus horizontes acadêmicos e, especialmente, pelos livros emprestados com
solicitude.

À Sirlene Duarte, que se foi, mas permanece em mim, pela força e incentivo sempre. O afeto
permanece.

Aos demais professores da graduação, na Universidade Federal de Goiás – CAC/UFG,


Antônio Fernandes Júnior, Lívia Abrahão do Nascimento (um exemplo de Fé), Luciana
Borges, Maria Imaculada Cavalcante, Silvana Augusta Barbosa Carrijo, Ulysses Rocha Filho,
com o prazer de ter sido sua aluna, pela amizade conquistada no decorrer do tempo e pela
bondade ao emprestar obras imprescindíveis para a efetivação desse trabalho.

Aos professores e secretário do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária, da


Universidade Federal de Uberlândia, pela contribuição com o aprimoramento intelectual, pela
atenção e disponibilidade.

À Raphaela, amiga de ontem, hoje e sempre a minha sincera amizade e eterna gratidão. ―Não
sabia que era impossível, foi lá e fez‖.

À Luana Duarte e Vanessa Regina, pela sempre presente amizade, nascida nos tempos da
graduação, e até hoje viva e, por dividir as rosas e os espinhos da trajetória de pesquisa.

Aos colegas do Centro de Línguas – CAC/UFG, com os quais compartilhei momentos de


angústia e de conquistas, pela compreensão e estímulo.
Aos meus amigos, por suportarem minhas inquietudes e reclamações excedidas, com quem
pude trocar idéias e frustações ao longo da tessitura do texto e com quem sempre pude contar,
obrigada pela paciência.

Aos meus irmãos em Cristo, Djane, Flávia Freitas, João Paulo, Matheus e Vanuza, meu muito
obrigada pela sincera amizade, pelos ―puxões de orelha‖ e pelas orações.

À Rejane Duarte, ―amiga para chorar‖, pela atenção prestada.

Aos colegas do mestrado, com carinho especial, Andréa, Marli, Marise e Núbia, pelo
acolhimento e pela possibilidade de interlocução.

Aos companheiros de viagem à Uberlândia, pela companhia que tornou menos difícil e
desgastante essa rotineira atividade. E aos que me deram abrigo durante a estadia nessa
cidade.

À Lílian Márcia e Cristiane Santos, respectivamente, pela leitura dedicada quando do relatório
de qualificação e pela solidariedade á minha causa. Pela amizade descoberta e pelos
numerosos favores trocados ao longo deste caminho.

À Jordana Cardoso, pela tradução do resumo para o Inglês e leitura paciente de parte do
trabalho.

Aos membros da Academia Goianiense de Letras, que me acolheram com afeto quando lá
estive para efetivação da pesquisa.

Aos familiares de José Godoy Garcia, que prontamente me atenderam quando os procurei,
pela prestatividade e carinho.

Ao jornalista Salomão Sousa, pela atenção a mim dispensada e pela grande contribuição.

Aos novos amigos conquistados já no final dessa caminhada, mas que se preocuparam e me
deram forças para seguir em frente.

Tenho medo de esquecer alguém. Àqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a
realização deste trabalho, meus agradecimentos.
SUMÁRIO

RESUMO ....................................................................................................................... . 09
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. . 12
1. JOSÉ GODOY GARCIA: O ESCRITOR E SUA OBRA ......................................... . 22
1.1 – Contextos históricos da literatura e do modernismo em Goiás ............................. . 28
2. ROMANCE HISTÓRICO - A NARRATIVA SOCIAL E POLÍTICA DE JOSÉ GODOY
GARCIA ........................................................................................................................ . 36
2.1 – As personagens no romance ................................................................................. . 39
3. FLORISMUNDO PERIQUITO: A ARTE DO CONTO GODOYANO ................... . 53
4. CRÍTICA DA CRÍTICA: A CRÍTICA REALISTA DE GODOY GARCIA ........... . 60
4.1. O foco narrativo visto por Godoy Garcia ............................................................... . 67
5. A VOZ DO MODERNISMO: UM OLHAR SOBRE OS ASPECTOS MODERNISTAS
NA LÍRICA GODOYANA ............................................................................................ . 72
5.1. José Godoy Garcia e a poesia social ........................................................................ . 83
5.2. A poesia prosaica de José Godoy Garcia................................................................. . 90
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 103
ANEXO ......................................................................................................................... 107
RESUMO

Nessa pesquisa, propomo-nos, nos primeiros capítulos, a fazer uma apresentação do poeta e
escritor goiano José Godoy Garcia, considerando que o mesmo ainda não tem o merecido
reconhecimento do público leitor. Nesse caminho, discutimos a participação contributiva do
autor no movimento modernista, considerado anacrônico em Goiás, confirmando o contrário
de nossa primeira hipótese de que o mesmo foi apenas um dos precursores dessa escola
poética. Em consonância com Gilberto Mendonça Teles, inicialmente, pensamos ser Godoy
Garcia um escritor anacrônico e provinciano, no entanto, pautados pela leitura e descoberta de
sua sintonia com a literatura nacional e internacional, deparamo-nos com um autor engajado e
alinhado literária e esteticamente. Para tanto, destacamos aspectos característicos de sua
escrita, enquanto romancista, revelando as peculiaridades de seu romance histórico, na
perspectiva teórica de Vera Follain Figueiredo. Além disso, fizemos uma breve explanação
sobre seu livro de contos e a obra crítica, sem maiores análises, apenas no sentido de mostrar
ao leitor da pesquisa que Godoy Garcia não é só mais um poeta, como pensava, a priori. O
escritor goiano revelou ser também um exímio e atualizado romancista, contista e crítico
literário, tendo em vista as diferentes abordagens temáticas que podemos encontrar em sua
estilística. Em um segundo momento, já no capítulo final, propomos uma leitura mais
pormenorizada de poemas selecionados que evidenciam as temáticas mais expressivas da
poética godoyana, fazendo notar as peculiaridades: modernista, social e poesia prosaica. Foi
na esteira de Antonio Candido, Alfredo Bosi, Emil Staiger e Octavio Paz que entendemos as
características modernistas, os conceitos de literatura e sociedade e o hibridismo dos gêneros
literários. Compreendemos que todas as fases do trabalho contribuíram para atingirmos nosso
maior objetivo, que é mostrar porque José Godoy Garcia merece sair da literatura produzida
em Goiás e entrar para o cenário literário nacional.

PALAVRAS-CHAVE: José Godoy Garcia, modernismo, romance histórico, poesia social.


ABSTRACT

In this research, we intent, in the first chapters to do a presentation of the writer and poet from
Goiás, José Godoy Garcia, considering that he has not got the deserved recognition of the
reading public. In this way, we discuss the contribution of the author participation in the
modernist movement, which is considered anachronistic in Goiás, confirming the opposite of
our initial assumption that it was only a precursor of that school of poetry. In line with
Gilberto Mendonca Teles, initially we thought that Garcia Godoy was a anachronistic and
parochial writer, however, guided by his text reading and finding harmony between his work
and national and international literature, we find an author engaged and aligned literarily and
aestheticly. For this, we highlight the characteristic aspects of his writing, as novelist,
revealing the peculiarities of his historical novel, in the theoretical perspective of Vera
Figueiredo Follain. In addition, we made a brief explanation of his book of short stories and
critical works, without further analysis, only in order to show the reader of this research that
Godoy Garcia is not just a poet, as we thought, a priori. The writer goiano revealed also be
upgraded and a master novelist, short story writer and literary critic, in view of the different
thematic approaches that can be found in his style. In a second step, already in the final
chapter, we propose a more detailed reading of selected poems that highlight the most
significant themes of ―godoyan‖ poetic, making evident the peculiarities: modernist, social
and prosaic poetry. According to Antonio Candido, Alfredo Bosi, Emil Staiger and Octavio
Paz we understand the characteristics of modernist literature and the concepts of society and
the hybridity of literary genres. We understand that all stages of this work have contributed to
achieving our main goal, which is to show why José Godoy Garcia deserves to be known
beyond Goiás and become a part of the national literary scene.

KEY WORDS: José Godoy Garcia, modernism, historical novel, social poetry.
Ainda estarei no fruto de um amanhecer...

Ainda estarei no fruto de um amanhecer


que trás estrela, aquela pura sozinha estrela.
Para me acariciar e também a todos os viventes
(os que dormem, os que estão nas ruas, os
sentenciados nos cárceres, os das estradas,
os inocentes no trabalho de servos)

do novo dia que transparece numa simples alvura


de carne na face da aurora,
que vem para amar a vida. Que vem para ser.
A estrela matutina que beija o mundo qual mãe.

(José Godoy Garcia)


12

INTRODUÇÃO

Escolher o Curso de Letras não foi uma tarefa fácil diante das tantas possibilidades na
área de humanas. O gosto pelos textos literários foi o divisor de águas, que pesou muito na
hora de marcar a opção certa. Escolhido o curso, foi então passar a desfrutar das novas
descobertas, emoções e tantas coisas novas a mim apresentadas. As primeiras aulas de Teoria
da Literatura já me conquistaram e com a ajuda carismática e sensível dos docentes, o gosto
foi acentuado.
Durante todo o curso, tudo o que estava ligado à literatura me era interessante.
Poesias, contos, romances. Foram muitas disciplinas cursadas e conhecimentos sem fim sendo
adquiridos. Muitas leituras, algumas foram puro deleite, outras um pouco mais desgastantes,
mas não menos importantes.
Começamos com a clássica Odisséia, passamos pela Ilíada, voamos até O Idiota,
retornamos ao Morro dos Ventos Uivantes, visitamos A Ilustre Casa de Ramirez. Também
houve os momentos prazerosos ao lado de Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade,
Mário de Andrade, Álvares de Azevedo. Quantos trabalhos, seminários, pesquisas e estágios.
Em 2007, concluí o curso e pensando num tema para o mestrado, solicitei à Professora
Dra. Solange Cardoso Fiúza Yokozawa alguns livros. Agora era necessário escolher um autor
e um tema, já que entre autores conhecidos e renomados e outros ainda desconhecidos ou
esquecidos, deveria escolher aquele que mais me chamasse à atenção. Dentre eles Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Leo Lynce, Afonso Felix de Sousa e José Godoy Garcia. Este
último foi o escolhido para me acompanhar durante o mestrado.
Até então, eu não tinha conhecimento sobre José Godoy Garcia, nem mesmo durante
toda a graduação na Universidade Federal de Goiás. Isto é, a própria universidade parecia não
reconhecer ou ao menos anunciar a trajetória daqueles que de maneira tão sábia contribuíram
para o crescimento da literatura produzida nesse Estado.
A partir daí tive contato, pela primeira vez, com a obra de José Godoy Garcia que a
princípio, talvez levada pelo senso comum, pensei tratar-se de um escritor anacrônico,
provinciano e desconhecido. Gilberto Mendonça Teles em A Poesia em Goiás (1962), ao falar
sobre os autores que se destacaram entre 1942 e 1955, contribuiu para desconstrução desta
imagem. Portanto, ao ler seus poemas de cunho social procurei conhecer um pouco mais sua
obra poética. Conheci, então, sua poesia lírica, seus contos, sua crítica e seu romance.
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Descobri que estava diante de um autor maior do que eu supunha, além de um


intelectual erudito e engajado. Era preciso resgatá-lo para a história da literatura regional e
nacional.
O intuito desta dissertação é trazer à baila e apresentar ao universo acadêmico esse
autor ainda desconhecido, que as instâncias de legitimação como a crítica literária, os jornais,
as editoras, o público e a própria universidade, ainda não conheceram como um dos autores
instigantes do século XX. Para isso seria necessário que suas obras poética, ficcional e crítica
fossem reeditadas por uma editora de nível nacional que se comprometesse a fazer uma
divulgação maior de toda a obra godoyana.
Pouca coisa sobre ele é possível ser encontrada, uma entrevista, um artigo ou outro,
uma nota em dicionário. Encontramos no decorrer da pesquisa apenas uma dissertação
acadêmica sobre o autor, elaborada por Maria Elizete Azevedo Fayad, que se intitula ―Poesia
e Realismo em Rio do Sono de José Godoy Garcia‖.
A partir dessa escassez de material sobre o autor e das minhas apresentações em
eventos científicos, ao perceber que nem mesmo o público acadêmico tinha conhecimento
sobre o mesmo, chegamos à conclusão de que seria necessária uma maior divulgação de sua
obra, ou como disse o orientador, que fizéssemos re(nascer) José Godoy Garcia.
Com certeza, há em sua escrita algo que se possa estudar, avaliar, averiguar. A
primeira ideia foi trabalhar com o social na poesia de José Godoy Garcia, mostrar a outra face
do poeta, aquela que se preocupa com o contexto social e evidencia a escória da sociedade.
Após conhecer a extensão e a complexidade da obra completa, minha dissertação ganhou um
caráter mais historiográfico e biográfico do que descritivo de uma poética.
Faz-se importante destacar que no início da pesquisa víamos José Godoy Garcia
apenas como mais um dos autores provincianos que atuou em Goiás. Como não tínhamos
conhecimento da dimensão de sua obra, o destacávamos como um dos autores precursores do
movimento modernista no Estado. Isto sim é verdade, mas a primeira hipótese não se revelou
verdadeira.
José Godoy Garcia é um escritor que não foi lembrado e reconhecido em Goiás, mas
outros autores o conheceram e ele teve uma influência literária fora dos limites geográficos de
sua região, uma vez que deixou sua província para alcançar diferentes terras em busca de
conhecimentos outros. Dessa forma, apesar de não ter sido lembrado pela Academia Goiana,
José Godoy Garcia foi um importante intelectual.
Esperávamos apresentar um poeta com uma obra relativamente extensa em
quantidade, um autor provinciano e anacrônico. Descobrimos mais tarde que se trata de uma
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das vozes mais autênticas e sintonizadas de Goiás, que por um motivo ou outro, relacionado
ao sistema literário, ainda não foi conhecida.
Encontramos ainda, mudando o direcionamento da pesquisa, um escritor com
influências nacionais e internacionais, publicando obras, na década de 1960, em nível de
autores nacionais de maior envergadura, pela editora Civilização Brasileira. Não fosse ele
merecedor, o grande poeta e crítico Moacyr Félix não teria escrito a apresentação de seu
romance e junto com Ênio Silveira o publicado em 1966. Encontramos aqui um mote que nos
leva a estudar porque houve um silêncio da crítica em relação à obra desse autor, faz-se
necessária uma revisão da recepção crítica godoyana.
Com essa mudança, a nova proposta é apresentar a poética de Godoy Garcia, de forma
que ele não fique mais esquecido nas estantes e bibliotecas, mas possa ser objeto constante de
estudo. Pode parecer ousado, à primeira vista, falar que nosso corpus é toda a obra do autor.
No entanto, faremos um breve itinerário das publicações godoyanas.
Dando continuidade à pesquisa, em agosto de 2009 assisti a uma palestra do jornalista
Alaor Barbosa, na Academia Goianiense de Letras, sobre nosso poeta. Além do acadêmico já
citado, conheci também outros membros da Academia que foram amigos pessoais de José
Godoy Garcia. Nessa ocasião, se fazia presente uma de suas irmãs, Maria das Dores Garcia
Loureiro, hoje com 94 anos e sua sobrinha, Andrea de Barros Godoy Garcia, filha de seu
irmão caçula Galeno Godoy Garcia, agora com 85 anos.
Alaor Barbosa se coloca como o jornalista responsável por apresentar ao meio literário
nacional a poesia de José Godoy Garcia. Gilberto Mendonça Teles diz que foi necessário o
jornalista lançar mão das influências que tinha no meio para dar mérito a Godoy Garcia.
Barbosa explica que a fala de Teles não é verídica. Esse depoimento é encontrado em seu
livro Pequena História da Literatura Goiana (1984), que narra de forma didática e lúdica,
uma vez que é voltado para o ensino de literatura nas escolas, a história da literatura
produzida em Goiás, desde antes mesmo das primeiras obras serem publicadas até meados
dos anos 1980.

Faço questão de contar esses fatos, para você ver o tanto que eu gosto da
poesia de José Godoy Garcia. E também para mostrar que o poeta e crítico
Gilberto Mendonça Teles errou totalmente quando disse, no seu livro ―A
Poesia em Goiás‖, na página 143, que foi preciso eu comentar ―com algum
escritor conhecido‖, no Rio, a poesia de Godoy para eu descobrir o valor
dela. O contrário é que é a verdade: eu é que me esforcei para conseguir
despertar o interesse dos escritores e poetas, meus conhecidos no Rio, pela
poesia de José Godoy Garcia. Hoje em dia, muitos intelectuais do Rio a
conhecem e estimam muito (BARBOSA, 1984, p. 68-69).
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A partir desse comentário de Barbosa percebemos que, independente dos atributos da


poesia, se bons ou ruins, as instâncias de legitimação estão atuando. Nesse caso, o crítico
esforça para ressaltar a qualidade da poesia, porém o contrário poderia acontecer.
Maria Zenilda Grawunder (1997), em seu livro Instituição literária: análise da
legitimação da obra de Dyonelio Machado discorre justamente sobre esse modelo de
autenticação de obras literárias e enfatiza a presença da instauração de instâncias que
propiciem à obra uma posição de sobressair, ou não, às outras. Ao que a autora teoriza:

A produção e a legitimação de um tipo de literatura ou de uma obra é o


resultado da própria estruturação e valores de um conjunto de instâncias que
fazem parte da história individual de escritor e leitor.
Entre as instâncias que cercam escritor e leitor, impõem modelos de
legitimação literária e exercem influência decisiva no processo de criação,
estão a família, o poder político e judiciário, a crítica institucionalizada, a
igreja, escolas, editoras, numa complexa estrutura de relações. São forças
institucionais que codificam e reproduzem modelos e normas que, por sua
vez, orientam opções e sanções em termos de seleção, classificação,
reconhecimento e consagração de textos ou de um tipo de texto
(GRAWUNDER, 1997, p.32).

Reconhecendo as instâncias de legitimação, conforme a explicita Grawunder (1997),


vemos que tanto o crítico Gilberto Mendonça Teles como o jornalista Alaor Barbosa e seus
amigos, influentes ou não, são instâncias de um sistema de legitimação literária que atuam
nacionalmente e se define no eixo Rio-São Paulo configurando como sistema de poder no
campo da literatura e da cultura brasileira.
Revendo as considerações feitas por Gilberto Mendonça Teles, na passagem colocada
por Barbosa, ele se refere à descoberta tardia que este fez de Godoy Garcia, mas é elogioso
com o artigo do jornalista sobre José Godoy Garcia. Alaor Barbosa vê um poeta exímio que
contribuiu efetivamente com a literatura em Goiás e no Brasil e, Teles diz que Godoy Garcia é
o principal poeta do modernismo nesse mesmo estado. Enfim, cada um a sua forma, mais
recatada ou explícita, tanto Teles como Barbosa, contribuem para a legitimação da obra de
Godoy Garcia.
Após essa breve discussão, passaremos agora aos capítulos do trabalho que se divide
da seguinte forma. No primeiro capítulo apresentaremos de modo geral José Godoy Garcia
como escritor, homem público e intelectual, evidenciando o que esperávamos e o que
descobrimos sobre ele. Ademais apresentaremos o levantamento da crítica acadêmica sobre
José Godoy Garcia, ou seja, as publicações existentes que constam sobre o autor.
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Em um segundo capítulo, daremos destaque à produção literária de José Godoy


Garcia, especificamente o romance histórico.
O terceiro capítulo será dedicado a uma breve leitura comentada dos contos do livro
Florismundo Periquito familiarizando o leitor quanto ao conteúdo abordado pelo escritor.
No quarto capítulo faremos a análise da crítica feita por Godoy Garcia, a partir da
leitura de seu livro Aprendiz de Feiticeiro: crítica literária.
Em um quinto capítulo, faremos uma abordagem temática da poética godoyana, no
sentido de apresentar quais foram os temas mais retratados pelo autor e que mais tiveram
efeito em sua produção. Nessa perspectiva, observaremos a presença de temas universais e
específicos, revelados na fase mais madura do escritor.
Para a realização desse capítulo será feita a leitura de toda obra, entretanto
levantaremos apenas os temas mais representativos. Toda a obra lírica de Godoy Garcia é
composta por oito livros de poesia, mas para uma leitura temática de cada produção vimos a
necessidade de um novo trabalho específico, que poderá ser realizado em outro estudo.
Nas obras iniciais do autor há uma busca por contemplar temas locais, prosaicos, do
cotidiano, em conformidade com o projeto modernista. Trata-se de uma poesia conectada com
as linhas de força da modernidade que remete aos conteúdos ligados à natureza, de ordem
mais lírica e bucólica, resgatando a abordagem da infância e da juventude em seus poemas.
Os dois primeiros livros, Rio do Sono e Araguaia Mansidão, respectivamente datados de 1948
e 1972, são os que correspondem a essa perspectiva, podendo ser resumidos nos poemas
―Visão Geral‖ e ―Tudo tem seu Tempo‖.
Nesse mesmo capítulo, decorreremos à análise da poesia política, de teor mais
especificamente social, apresentando uma fase mais amadurecida do escritor, a partir da
publicação de O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho em 1994, retratando a paisagem
urbana no cotidiano moderno dessa humanidade trágica.
Na fase de amadurecimento de sua escrita encontramos um poeta mais nevrálgico,
enfatizando as questões que podem suscitar discussões ―calorosas‖ entre os críticos e
apresentando uma poesia de cunho social um pouco mais elevado, ou sejam, vimos nesse
ponto algo com uma temática valorizando ainda mais os párias, gente humilde que vive na
rua, enfim, o poeta canta a rua e seus moradores.
Por fim, fecharemos com nosso ponto de vista sobre a densidade da obra de Godoy
Garcia, qual foi, realmente, sua contribuição para o universo literário merecendo sair da
literatura de Goiás para entrar na literatura brasileira e porque Goiás esqueceu esse nome
entre sua literatura.
17

Com o intuito de cumprirmos o objetivo de apresentar ao leitor brasileiro que ainda


desconhece o escritor aqui em questão, pretendemos localizar as temáticas mais expressivas
da obra prosaica e poética desse autor, que remetem às questões sociais e de cunho político,
além daquelas voltadas para a infância e recorrentes à memória. Nesse sentido, os objetivos
estão centrados em examinar toda sua produção literária, em sua relação com a sociedade;
levantar e rever a recepção crítica do autor e contribuir para o redimensionamento da fortuna
crítica do poeta.
Um dos questionamentos levantados nesse trabalho é o porquê de José Godoy Garcia
ter sido relegado ao esquecimento pela sociedade goiana e brasileira. Por que ele foi
silenciado e esquecido, mesmo depois da publicação de O Caminho de Trombas em 1966?
Um escritor que teve participação expressiva no engajamento político do país deveria ser
lembrado ao menos em seu Estado.
O Partido Comunista teve uma influência muito grande na vida de José Godoy Garcia
além de ser uma das instâncias de legitimação importante e significativa para sua vida
enquanto homem político. Em entrevista conferida ao Jornal Opção, em 1998, o autor declara
sua participação nessa causa. ―Encarei seriamente a militância no partido. Era um pau para
toda obra [...]. Fui eleito delegado do Partido Comunista de Brasília, no sexto congresso. Eu
já estava engajado na luta contra a guerrilha, que estava sendo planejada‖ (GARCIA, 1998,
ver anexo).
Verificando ainda a participação do autor no desenvolvimento considerado anacrônico
do Modernismo que se deu em Goiânia, é evidente sua atuação ao lado de José Décio Filho e
Domingos Félix de Sousa para, na década de 1940, sintonizar a literatura produzida em Goiás.
José Godoy Garcia não adentrou muito às escolas poéticas. No entanto, suas poesias,
bem como seu engajamento como homem e poeta, dialogam com uma tradição de poesia
modernista. Por isso, muitas vezes era considerado como irreverente, dando as costas para a
ideologia e escrevendo por outro viés.
Enfim, todo seu material foi trazido à luz conforme o momento histórico e a cultura da
época, mas não pautado em um exclusivo cenário de escola literária. Para exemplificar o que
foi exposto podemos citar o próprio romance de José Godoy Garcia. Escrito em uma época
em que imperava um regime militar ditatorial, O Caminho de Trombas (1966) é um livro
denunciador da forma como o governo tratava o povo e sua luta constante para usufruir de
seus direitos.
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Naquele momento, levando em conta o que conhecemos sobre o assunto, não houve
um reconhecimento imediato de seu trabalho por parte dos leitores, mas a crítica,
considerando os editores, talvez tenha dado um crédito maior à obra, publicando-a.
Hoje, após 50 anos da primeira publicação do livro, há ainda aqueles que
desconhecem tal obra e não a viram como o engajamento político e social que é na poética
godoyana. Isso se deve ao fato de que uma nova divulgação da obra de Godoy Garcia tem que
ser realizada, sendo relançada por uma editora que possua maior comercialização e
divulgação, uma vez que os exemplares primeiros já não são fáceis de encontrar. Tais
questões editoriais podem ter contribuído para o não reconhecimento crítico de Godoy.
A leitura e recepção da obra de José Godoy Garcia deve ser revista e atualizada a
partir deste momento, porque muito podemos explorar nela por não vivermos mais um
período de censura, recriminação e expressão de sentimentos e idéias. Tudo o que não era
permitido dizer às claras, tanto na escrita como na fala, na época em que foi escrita a obra de
José Godoy hoje está sendo revelado. Ou seja, o que diziam os velados romances, contos e
poemas daquele momento estão agora sendo lidos e revelados, os leitores têm a sensibilidade
de perceber e explicitar o conteúdo que ficava engarrafado, enrodilhado nas entrelinhas. Para
tal, se exigirá um longo percurso que não concluiremos com esta dissertação.
Tais evidências nos levam a pensar em uma das teses de Jauss (1994), revelando o
horizonte de expectativas, isto é, a maneira como nos colocamos e entendemos o mundo
diante das leituras que realizamos, expressando nosso olhar sobre o texto lido. Esses
horizontes podem mudar, como percebemos que aconteceu, desde a época em que José Godoy
Garcia começou a publicar, em 1940, até hoje.
O julgamento crítico, avaliação e interpretação que seus contemporâneos deram de sua
obra na época em que foi escrita, não a dota de um significado e valor categórico, porque a
próxima geração, o horizonte de expectativa vindouro, pode alterar o valor dado à obra
anteriormente.
Toda época diz o que deve ser dito naquele momento, aquilo que o meio cultural,
social, político e econômico oferecem para ser dito, enquadrados ainda nas leituras que
também se distinguem não só em cada período, mas em cada olhar. Na literatura, o valor
estético de uma obra é medido de acordo com o passar do tempo em que ela foi escrita, da
distância tomada desde o horizonte de expectativas dos primeiros leitores até o momento em
que está passando por uma nova avaliação.
Enfim, em meio a essa discussão vimos que a recepção de uma obra está ligada ao
diálogo estabelecido entre esta e o leitor, vinculando-se, portanto, ao período histórico e
19

constituindo a atualização da obra literária. Dessa forma, encontramos a necessidade de fazer


um resgate da obra de José Godoy Garcia que teve a leitura de sua poética realizada nos anos
1960, apenas por poucas pessoas que a ela tinha acesso, a maioria seus amigos, e depois caiu
no esquecimento.
Agora, percebemos que é o momento de dar um novo olhar para esse autor, já que não
estamos mais ameaçados politicamente, se explicitarmos o conteúdo de sua obra. Sua escrita
pode tomar um novo rumo a partir da perspectiva dos novos leitores, o novo olhar subjetivo
pode mudar o antigo horizonte de expectativa sobre sua obra.
Os autores que se encontram no interior do país acabam sendo deixados de lado e sem
recepção crítica de suas obras por parte dos teóricos das metrópoles e os próprios leitores e
críticos, de Goiás nesse caso. Talvez esse seja um dos fundamentos que deixaram José Godoy
Garcia silenciado por todo esse tempo. Eles não têm o mesmo merecimento daqueles que se
encontram no eixo Rio-São Paulo, não podendo contar com as mesmas instâncias de
legitimação para a efetivação de suas obras.
Nesse prisma, é uma das realizações deste trabalho a verticalização, ou seja, a intenção
de uma divulgação da estética adotada por Godoy Garcia e o conhecimento de sua produção
no mundo acadêmico, por meio do desenvolvimento de uma fortuna crítica que possa ser vista
como fonte de pesquisa, de sua obra literária, pois não existem muitos trabalhos que
evidenciem a obra do autor.
Portanto, chegamos à conclusão de que se faz necessário um estudo um pouco mais
aprofundado da vida e obra de José Godoy Garcia. Em ordem cronológica, a primeira obra
publicada, com financiamento da Bolsa de Publicação ―Hugo de Carvalho Ramos‖, foi em
1948, o livro de poesias Rio do Sono. Tempos depois, em 1966, retorna ao cenário literário
com o romance O Caminho de Trombas, publicado pela Editora Civilização Brasileira e com
apresentação de Moacyr Félix, sobre o qual levantaremos algumas questões em capítulo
específico.
Já em 1972, foi ano do lançamento de Araguaia Mansidão, seu segundo livro de
poesia, publicado pela Editora Oriente, em Goiânia, ressaltando a vida rodeada pela natureza,
com muito sol, chuva, mulheres e estradas. Mais uma vez com publicação da Editora
Oriente/Civilização Brasileira, em 1980 foi lançado o livro intitulado Aqui é a Terra,
reunindo o livro do título em questão, e os outros dois já editados.
Espaçando cinco anos, desde a última obra, surgiu Entre Hinos e Bandeiras (1985), já
publicado pela Thesaurus Editora, de Brasília, que editou todos os outros lançamentos
seguintes. Dois anos depois, em 1987, foi divulgado Os Morcegos e na seqüência, Os
20

Dinossauros dos Sete Mares, ambos, livros de poesia. Florismundo Periquito, o livro de
novela e contos foi publicado em 1990 com capa e ilustração do próprio autor e apresentação
de Victor Alegria.
Em 1994 veio com O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho, mais uma obra
poética versando as tragédias humanas do cotidiano e os sonhos. Com um pequeno intervalo
entre suas produções, surge em 1997 um livro de crítica literária, intitulado Aprendiz de
Feiticeiro: estudos críticos, no qual traz vários artigos sobre obras nacionais e suas
considerações acerca do Modernismo.
Por último, antes de sua morte, José Godoy Garcia ainda organizou uma edição em
caráter de coletânea, em função de seus 50 anos de poesia, uma reunião de todos os livros
poéticos, intitulado Poesia (1999). Incluindo neste, e sendo publicado com os demais, A
Última Nova Estrela, um livro menor, mas não menos importante, caracterizado por conter
poemas sem título. Esta última obra vem acompanhada por uma apresentação do jornalista
Salomão Sousa.
Vale ressaltar que em Poesia temos uma cronologia, constituída pela forma inversa, da
obra poética do autor em questão, que a cada nova publicação aborda alguns temas diferentes,
além de enfatizar os já referidos que mostram os vários momentos da vida do autor. Os
últimos trazem uma carga de amadurecimento de seu olhar sobre a natureza e a paisagem
urbana, conforme é possível ver nos poemas de Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho até
A Última Nova estrela.
Portanto, em Poesia temos a reunião de Os Dinossauros dos Sete Mares (1988), Os
Morcegos (1987), Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho (1994), A Última Nova Estrela
(1999), Araguaia Mansidão (1972), Entre Hinos e Bandeiras (1985), A Casa do Viramundo
(1980) e por último Rio do Sono (1948).
Nesta dissertação, trabalharemos com a literatura e sua relação com a sociedade, a
presença do elemento político na obra; o aspecto prosaico na poesia e o estilo lírico em sua
essência, encontrado na primeira fase da produção poética godoyana.
Ainda evidenciaremos alguns conceitos que dizem respeito à poesia, relacionados à
sua forma livre, levantados por críticos como Otávio Paz e Antonio Candido. Enfim, para
sedimentar esse trabalho, o instrumental teórico ao qual recorremos recebem ainda a
assinatura de Gilberto Mendonça Teles e Alfredo Bosi.
Em meio ao desenrolar dos capítulos estudaremos a possibilidade de afirmação ou
negação da questão levantada por Gilberto Mendonça Teles quando se refere a Godoy Garcia
como um anacrônico, o que pode ser uma meia verdade. E sua participação na atualização da
21

poesia brasileira, bem como procuraremos expor os elementos apresentados pelos poetas
goianos e as questões gerais do grupo de José Godoy Garcia.
22

CAPÍTULO 1

JOSÉ GODOY GARCIA: O ESCRITOR E SUA OBRA

José Godoy Garcia foi um poeta importante para a concretização da poesia moderna
em Goiás. Nasceu em Jataí (GO) no ano de 1918. Formou-se em Direito e em 1956 mudou
para Brasília, onde sempre participava de atividades políticas de esquerda. Godoy Garcia
morreu em 2001 com 81 anos de idade e 50 anos de carreira literária.
Passou por várias escolas, desde o primário cursado em sua cidade natal. Tornando-se
órfão aos seis anos de idade, foi criado por uma matriarca e um tio, que juntos conseguiram
formar todos os cinco irmãos para exercerem a profissão de advogados, graças a certa loja
deixada como herança. Aos 12 anos foi estudar em Uberlândia, depois foi para Vila Boa
(antiga capital de Goiás), onde estudou no Colégio Liceu de Goiás juntamente com Bernardo
Élis e J. J. Veiga.
Terminou o Ginásio em 1937 e foi para o Rio de Janeiro, entre 1938 e 1939, período
em que manteve alguma relação com intelectuais da alçada de Portinari e Mário de Andrade.
Foi para Goiânia em 1940, até se transferir para Brasília, na década de 1950, cidade onde
atuou política, profissional e literariamente.
Esses períodos da vida de Godoy Garcia, da adolescência até a ida para o Rio de
Janeiro, são um tanto quanto nevoentos, pois não temos informações exatas sobre o que se
passava com ele enquanto homem público e político.
Apresentou uma vida agitada, exerceu alguns cargos públicos, trabalhou em jornais e
revistas, bem como atuou no partido comunista por muitos anos. Inclusive, em meio às
perseguições que eram feitas na época da ditadura militar, Godoy foi uma dessas vítimas.
Refugiava-se no quintal da casa de parentes e brincava com as crianças, que inocentes
achavam estar sendo prestigiadas com um momento de lazer ao lado do tio.
Foi também um dos integrantes da geração que trouxe à baila a revista Oeste, em
meados de 1942, oferecendo oportunidade de publicação àqueles poetas, jornalistas, escritores
e historiadores que almejavam externar suas opiniões políticas, sociais e culturais
acompanhando o crescimento da nova capital do estado. Lembrando que havia certa restrição
quanto aos assuntos publicados, uma vez que suas edições eram lançadas a partir de interesses
objetivos de quem a financiava.
23

José Godoy Garcia era um crítico por natureza. Sabia se posicionar diante da crítica
acadêmica, da teoria, e, sobretudo, tinha vasto cabedal literário. Por isso, essa sua sempre
certeira opinião de ―franco-atirador‖ quando abordava os temas que lhe diziam respeito. Em
conversa informal com o Jornalista Salomão Sousa, descobrimos que como crítico da crítica
que era escrita sobre si, José Godoy Garcia gostava de delimitar o que o outro escrevia sobre
ele, estava sempre criticando o texto do outro.
Em sua vida intelectual há a marcante presença dos poetas goianos que Godoy
admirava como é o caso de José Décio Filho, Brasigóis Felício, Afonso Felix de Sousa e João
Accioli. Mantinha também uma amizade com o editor Victor Alegria que, inclusive, fez a
apresentação de seu livro de contos Florismundo Periquito.
José Godoy Garcia, apesar de ter estudado no Rio de Janeiro, não teve nenhuma
participação em movimentos estudantis, ou outros dessa ordem. Amadureceu seu pensamento
social nesse período de contato com os intelectuais cariocas e já voltou para Goiás engajado
na luta política. Continuou exercendo atividade jornalística na empresa de seu amigo Batista
Custódio, onde também dava entrevistas, produzia artigos literários e sociais que primavam
pela descrição dos aspectos da população goiana. Diminuiu um pouco o fluxo de sua
produção literária como poeta, romancista e contista quando se engajou na luta do comunismo
em 1945.
Nessa empreitada comunista, seu grupo não obteve êxito em eleger nenhum candidato.
Os amigos de Godoy Garcia que estavam mais engajados nessa causa chegaram a enviar
espingardas e fuzis para as pessoas de Formoso, cidade goiana, onde acontecia uma guerrilha.
Godoy Garcia estava advogando e não quis se arriscar a levar as armas para seus colegas.
Enviaram então Alberto Xavier. Arriscaram muito com isso, porque faziam mesmo para
provocar o governo que depois, em 1964, abriu inquérito contra eles.
O grupo de Goiás, participante do Partido Comunista (PC), era integrado, segundo
José Godoy Garcia, por ―Abrão Isaac Neto, Moacir Berquó, Haroldo de Britto, Sebastião de
Abreu, João da Mata Teixeira, Jonas Aiub, Alberto Xavier, nosso secretário geral e um
intelectual que nos dava orgulho. Ele fazia informes do partido com dez laudas‖ (GARCIA,
1998, ver anexo).
Ainda sobre o engajamento político de José Godoy encontramos um episódio curioso
de sua ligação com a guerrilha entre agricultores e fazendeiros, ocorrido em São Domingos,
em 1951. Esse acontecimento muito se assemelha com os fatos narrados no romance O
Caminho de Trombas, de onde podemos depreender que a narrativa carrega uma carga de
24

romance histórico. Para esclarecer essa hipótese estudaremos melhor no capítulo dois a
questão do romance histórico e suas implicações.
A declaração de Godoy sobre o ocorrido é revelada em uma entrevista concedida por
ele ao Jornal Opção, publicada em junho de 1998 e se dá da seguinte forma:

Em 1951, havia um movimento numa fazenda chamada São Domingos, e o


movimento ficou conhecido como Tiririca. Era um grilo de terras. Então,
fizemos uma luta contra o arrendo e contra o grilo. Contra o grilo era mais
fácil, porque o lavrador já tinha a terra, bastava impedir que fosse tomada
pelos grileiros. No caso do arrendo, era difícil porque o trabalhador era um
servo de gleba.
Conseguimos reduzir a cobrança dos fazendeiros de 30 para 20 por cento do
arrendamento. Essa era uma luta de classes. Já o grilo, não: os próprios
fazendeiros eram contra o grilo, porque o grilo desmoralizava sua classe. Na
Fazenda São Domingos, queríamos uma luta de resistência, mas os
lavradores queriam a luta por intermédio de advogado. Mas eles vieram aqui
e contrataram advogado, só que o advogado não podia fazer nada. Então, fui
lá e convenci um dos membros da direção do partido, Jerônimo Afonso, de
Rio Verde, a recorrer às armas. Pegamos cinco fuzis, alicates e um monte de
coisas. Fui me despedir dos meus filhos e olhei, triste, para eles. Minha
mulher não sabia. Chegamos lá, nosso pessoal era todo jovem, irresponsável,
danava numa falação, numa fumação. Fracassamos. Revolução com jovem e
família não dá. Nem chegamos a trocar tiros com a polícia. Isso foi em 52 ou
53. E os grileiros tomaram conta da fazenda (GARCIA, 1998, ver anexo).

Como homem político também participou da companhia de implantação para a


discussão do projeto de Brasília, por conta disso, foi anistiado. Todo seu envolvimento nesse
campo político está disponível em seu processo de anistia que foi montado. Exerceu sua
profissão de advogado trabalhando com legalização de terras em Brasília, até o ano de sua
morte.
Como escritor, tinha um encanto pela vida, escrevendo poesia lírica e posteriormente
engajada. Salomão Sousa, em conversa informal, afirmou que José Godoy Garcia era um
―poeta ambulante, andava fabulando em todas as circunstâncias‖. Sua obra é rodeada pela
natureza, a aurora é muito presente, dando ideia de clareza, de nascimento, esperança.
Palavra e natureza juntas, o que nos faz lembrar Antonio Candido ao dizer sobre as
três possíveis atitudes estéticas na literatura.

Ou a palavra é considerada maior que a natureza, capaz de sobrepor-lhe as


suas formas próprias; ou é considerada menor que a natureza, incapaz de
exprimi-la, abordando-a por tentativas fragmentárias; ou, finalmente, é
considerada equivalente à natureza, capaz de criar um mundo de formas
ideais que exprimam objetivamente o mundo das formas naturais
(CANDIDO, 1997, p.53).
25

A estética perfilhada por Godoy é essa última, em que a palavra é equivalente à


natureza e juntas andam sempre em movimento, trazendo algo novo, ajustando ao pensamento
das variáveis constantes da dialética, ou seja, está sempre em movimento, nunca está acabada.
Enquanto poeta e escritor, José Godoy Garcia também recebeu atenção por parte de
alguns teóricos, como por exemplo, Salomão Sousa, Gilberto Mendonça Teles, Alaor
Barbosa, Assis Brasil e Gabriel Nascente.
Evidenciamos que, por essa sua atuação artística, política e intelectual Godoy Garcia
pode ser conhecido, ainda que por poucos, não só em Goiás, mas em todo o país, inclusive no
exterior, de onde Vinícius de Moraes escreveu-lhe cartas, segundo nos relata Salomão Sousa e
Curt Meyer-Clason, um importante tradutor que trabalhou com obras de Machado de Assis,
Fernando Sabino, Clarice Lispector, Eça de Queiroz, Pablo Neruda, João Cabral de Melo
Neto, Mario de Andrade, entre outros, traduziu alguns de seus poemas para o alemão. Essa
assertiva nos é dada por Salomão Sousa (1999, p.11) que faz a apresentação do livro Poesia.
Assim, fica evidente que o autor pode ter sido esquecido em Goiás, mas não o foi por
outros nomes da época. José Godoy Garcia estava em Brasília, já nessa época, por volta de
1970, mas não escrevia apenas para os candangos e goianos, ao contrário, escrevia uma
literatura em nível nacional. Era o que Alaor Barbosa tentava mostrar ao evidenciá-lo como
um escritor (poeta) que merecia reconhecimento nacional.
Dessa forma, percebemos que, na verdade, para sua época ele escrevia uma literatura
paralela à literatura produzida no Rio de Janeiro e São Paulo, quiçá alinhava-se a literatura
internacional. Essa ocorrência é perceptível ao vislumbrarmos a aproximação de sua poesia
com as obras de Manuel Bandeira e Mario de Andrade, além da forte contribuição que teve
Langston Hugues e Walt Whitman para a produção poética de Godoy Garcia.
Godoy Garcia foi homenageado por alguns poetas que escreveram poemas sobre ele e
para ele. Brasigóis Felício e Gabriel Nascente foram responsáveis pela escrita de dois desses
poemas. O primeiro intitulado ―Passarinhando‖ e o segundo ―Godoy, a odisséia da terra‖
(NASCENTE, 1978). Nas palavras de Felício ―Poeta Godoy: nos infinitos orbes do vaso
universo fica à vontade com Walt, teu companheiro solar‖ (FELÍCIO, 2010).
Ambos os autores ressaltam que há de se encontrar uma ponta que seja de resquícios
da escrita de Walt Whitman, Manuel Bandeira, Mario Quintana, Mario de Andrade nos
poemas de Godoy Garcia e por isso, o texto poético dedicado a ele é uma combinação
selecionada de poemas dos referidos poetas.
26

O próprio autor revela que seu primeiro livro, publicado depois de oito anos que já
estava em Goiânia, recebeu muita influência de Bernardo Élis, que por sua vez foi
―profundamente influenciado‖ por Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, especialmente, o
segundo. ―É um trabalho semelhante ao do pintor que, para começar, vai aprender com os
mestres, respirando a atmosfera do ateliê, descobrindo concretamente o fazer. O Bernardo
ficava desconfiado, temendo que eu fosse mexer nos poemas dele‖, declara José Godoy
Garcia em entrevista ao Jornal Opção, publicada em junho de 1998.
A fim de que se possa complementar a biografia do autor, existem alguns
apontamentos críticos que foram levantados e os exporemos aqui. Boa parte dessas
referências só diz respeito a rápidos comentários de como foi sua participação como um dos
representantes modernistas em Goiás.
Maria Elizete Azevedo Fayad (2009) reuniu em sua dissertação de mestrado,
defendida na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, todos os comentários encontrados
sobre a poética godoyana. O trabalho da pesquisadora se intitula ―Poesia e Realismo em Rio
do Sono de José Godoy Garcia‖ e é, dos que tivemos contato até o momento, o que tem maior
representatividade sobre a produção do autor em questão.
Fayad analisa Rio do sono (1948), a primeira obra poética de Godoy Garcia. O intuito
de seu trabalho é averiguar a ―lisibilidade realista como recurso transmissor de clareza,
homogeneidade e coerência lingüística da sua lírica‖ (2009, p.5). Para isso, é abordada de
maneira geral a obra de Godoy Garcia e ao final a autora analisa algumas poesias de Rio do
Sono, buscando o realismo. É sobre ele que podemos nos debruçar para melhor
compreendermos e apresentarmos sua obra até então escondida nas estantes dos escritórios e
bibliotecas.
Deste modo, já feito por Fayad (2009, p. 14-15), o levantamento das obras em que
podemos encontrar citações de José Godoy Garcia, transcrevemo-las a seguir: Súmula da
Literatura Goiana, de Augusto Goyano e Álvaro Catelan, (s.d). Nesse livro didático constam
alguns dados biográficos e comentários sobre Rio do Sono; Aspectos da Cultura Goiana
(1971) traz artigos que analisam a poesia de Godoy Garcia a partir do que é mais visível em
sua poética: o tema dedicado às pequenas cidades, infância e mulheres; Enciclopédia de
Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho, resgata a crítica, oferecendo dados biográficos e a
produção de José Godoy Garcia e outros escritores, jornalistas, historiadores e pesquisadors
de um modo geral; Estudos Literários de Autores Goianos e Escritores Literários, de Mário
Ribeiro Martins e Dicionário de Escritores de Brasília, de Napoleão Valadares, trazem
verbetes de identificação sobre o autor; Em Os Pioneiros da Construção de Brasília, de
27

Adirson Vasconcelos, Godoy é reconhecido como cidadão e advogado que participou da


efetivação da mudança da nova Capital Federal e como contista que retratou tais situações em
Florismundo Periquito, seu livro de contos; Estante do escritor goiano, do serviço social do
comércio; Antologia assim é Jataí, do escritor e médico Hugo Ayaviri; Antologia do conto
goiano II, de Vera Maria Tietzmann Silva e Maria Zaira Turchi, (1994), são obras em que
aparecem o nome de Godoy como um dos contistas em evidência; Assis Brasil em A poesia
goiana do século XX, de 1997, apresenta o autor enquanto o poeta que produz poesia livre de
formas fixas e voltada para o social; e em Goiás - meio século de poesia, de Gabriel Nascente,
também está uma poesia de Godoy e considerações que o autor tece sobre o poeta, com alguns
dados biográficos.
Ainda faz parte da Revista do escritor brasileiro, de nº 11 (1996), uma sua entrevista,
concedida a João Carlos Taveira, com o título ―Uma vida dedicada à arte‖. Consta também,
da autoria de Salomão Sousa, um artigo publicado na abertura de Poesias (1999) em que o
escritor relata sua experiência enquanto amigo e produtor literário ao lado de José Godoy
Garcia, intitulado ―A juventude e a dignidade da poesia‖.
Gilberto Mendonça Teles também menciona o autor no compêndio que faz da
literatura produzida em Goiás A poesia em Goiás (1964). E Moema de Castro e Silva Olival
escreveu um breve artigo ―José Godoy Garcia: a linguagem e suas tramas – Florismundo
Periquito, fazendo um percurso pelas páginas do livro de contos Florismundo Periquito.
Consta também um livro em que o autor é mencionado enquanto ―advogado, membro
e assessor jurídico da Comissão goiana de cooperação para a mudança da Capital Federal‖
(FAYAD, 2009, p. 15) e produções literárias antológicas, das quais faz parte um conto de
Godoy Garcia. Sabemos que ele era visto como um autor que produz uma poesia livre das
formas fixas e voltada para o social como explicita Gabriel Nascente (1978).
Recentemente o escritor Salomão Sousa lançou, Momento Crítico (2008), uma obra
que aborda assuntos literários de várias ordens, entre eles estão dois artigos, ―A perene aurora
de José Godoy Garcia‖ e ―José Godoy Garcia é nome amado‖ que representam a vivacidade
da obra e da convivência que o autor manteve com Godoy Garcia. Alaor Barbosa também
escreveu alguns artigos relacionados ao autor e o menciona em um livro didático e
explicativo, sobre o surgimento da história literária em Goiás. A obra se intitula Pequena
História da Literatura Goiana (1799-1983) (1984) e é direcionada especificamente para fins
escolares, de maneira que crianças e adolescentes possam ter acesso à literatura produzida
nesse estado.
28

Faz-se importante ressaltar que Godoy Garcia também foi lembrado por críticos de
maior envergadura, como Sérgio Buarque de Holanda em O Espírito e a Letra: estudos de
crítica literária, no Volume II, em que menciona os autores de Goiás que foram premiados
com a Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos.

1.1 – Contextos históricos da literatura e do modernismo em Goiás

Para fins de contextualização do autor e sua obra, faremos uma breve passagem pelo
percurso histórico do Modernismo brasileiro, discutindo aspectos da literatura em Goiás,
enfatizando aqueles autores que iniciaram o movimento no estado e retratando o modo como
esta tendência estética foi absorvida em Goiás.
Sempre que se diz respeito a um movimento literário, ele chega com atraso nos
estados provincianos. Contextualizando historicamente e recorrendo a datas específicas, da
época da colonização até o período de pós-independência de Goiás, nada ou quase nada, se
lançou que fosse passível de aproveitamento e aceitação. Destaca Alaor Barbosa em um artigo
sobre nossa literatura que

[...] Goiás tem sido uma região periférica. O arcadismo de Minas e do Rio, o
neoclassicismo da época da mineração, por exemplo, se manifestou em
Goiás, porém com um atraso grande no tempo e trazido por um poeta talvez
mineiro, talvez carioca, Bartolomeu Antônio Cordovil. O romantismo já
morria em São Paulo e no Rio de Janeiro quando Félix de Bulhões o praticou
em Goiás; e já morrera fazia muito tempo, quando Joaquim Bonifácio de
Siqueira ainda continuava — fiel — a exercê-lo. E o Modernismo da década
de 1920 só chegou a Goiás vinte anos depois, com Bernardo Élis, José
Godoy Garcia e outros (BARBOSA, 1998).

Dessa forma, é evidente a necessidade de autores que possam preceder aos outros em
seu tempo, de modo que as estéticas e movimentos literários estejam sintonizados
nacionalmente.
Gilberto Mendonça Teles (1964), no livro A Poesia em Goiás, faz um levantamento
considerável dos autores que perpassaram a literatura produzida em Goiás, desde 1726 até
1956. Teles divide sua obra, metodologicamente, em seis períodos, compreendidos da
seguinte forma: 1) de 1726 a 1830; 2) de 1830 a 1903; 3) de 1903 a 1930; 4) de 1930 a 1942;
5) de 1942 a 1956 e 6) de 1956 aos nossos dias (atualidade). Desses períodos enfatizaremos o
quinto que se refere aos autores de 1942 a 1956 e, em meio a esse caminho percorrido, um
caminho de séculos, vamos nos ater ao século XX.
29

Perfazendo esse panorama sobre o modernismo em Goiás, descobrimos que, por volta
de 1903 a 1930, os acontecimentos literários que ocorriam em Goiás eram bem menos
efervescentes. Apenas algumas produções jornalísticas se destacavam com publicações
literárias. Apresentavam, em sua maioria, poemas parnasianos na forma e românticos no
conteúdo e ainda outros em tom simbolista. Contos e romances quase nunca eram publicados
e a crítica literária também só começou a despontar, ainda com pouca representação e
vagarosamente, a partir de 1901, com a publicação do folheto Poetas goianos, de Henrique
Silva (TELES, 1964, p.20).
Em consonância com Teles o momento literário em Goiás, datado de 1903 a 1930, é
caracterizado pela ―intensa atividade intelectual‖ e o grande movimento editorial que publicou
muitos títulos em menos de dez anos. Com inspiração inicial no período romântico, e
passando pelo simbolismo esse ciclo se fecha com a adoção total do enfoque parnasiano.
Dessa forma, Gilberto Mendonça Teles (1964, p.120), ponderando sobre os
acontecimentos em Goiás, avalia também aspectos por ele considerados pré-modernistas.
Esses estão diretamente ligados às condições político-sociais que se desenrolavam no estado
em meados dos anos 1930 a 1942 e que segundo o autor, devem ser estudados ―à parte, antes
do nosso verdadeiro movimento modernista, de 1942 aos nossos dias‖.
Configura-se a partir das datas estabelecidas um período que Teles divide em pré-
modernista e modernista. De 1903 a 1930 há uma espécie de iniciação ao modernismo com o
livro Ontem, de Leo Lynce. O momento abrangido de 1930 a 1942 é o denominado pré-
modernista ―o período de transição em que se percebem influências românticas, parnasianas,
simbolistas e modernistas, principalmente pela adoção do verso livre. Esse é o nosso Pré-
Modernismo‖ (TELES, 1964, p.31) e por fim, de 1942 a 1956 o Modernismo em Goiás.
Teles (1964) esclarece esse aspecto para que não se confunda o advento desse
movimento em Goiás com a publicação do primeiro livro de Leo Lynce (1928), que muitos já
estavam datando como se fosse a chegada do Modernismo nesse estado. O mesmo autor
esclarece que foi por meio de Leo Lynce que puderam conhecer e tomar contato com o
Modernismo nacional, mas não foi aí o começo desse movimento em Goiás, e sim em 1942,
com a participação mais ativa em termos de produção e divulgação de obras do grupo de
Godoy Garcia.

Foi através de Leo Lynce que os goianos tomaram contato, pela primeira
vez, com as grandes contribuições estéticas do Modernismo brasileiro. Não
foi o autor do primeiro verso amétrico, da primeira estrofe arrímica em
Goiás, que isto por si só não constitui a essência mesma do Modernismo.
Referimo-nos à adoção de concepções nacionalistas, de reformulações
30

temáticas e estéticas, de inovações através de uma linguagem valorizada nos


seus múltiplos recursos de expressividade (TELES, 1964, p. 125).

Assim, o lapso de tempo, marcado pelo anacronismo entre a literatura nacional e a


literatura produzida em Goiás, seria bem curto, tendo em vista o intervalo que demorou a
chegar até nós os demais movimentos literários.
Para que possamos entender esse período o autor faz um preâmbulo destacando os
anos de 1930 a 1942 como um ―período eclético‖ denominado por ele de ―pré-modernista‖,
cujos fundamentos estéticos vêm para romper com a tradição dos séculos XVIII e XIX. É a
partir dessa ruptura que se aponta a aurora do Modernismo em Goiás, mostrando uma nova
―geração de poetas à procura de novos meios de expressão, utilizando ainda receosamente os
versos amétricos‖ e, ao mesmo tempo buscando novas imagens. Iniciado com a Revolução de
1930, este é o designado ―Período de Transição‖ (TELES, 1964, p. 113).
Os princípios norteadores expostos por Teles nos levam a entender que quando surgem
em Goiás as primeiras sombras desse movimento moderno, o Modernismo, enquanto escola
literária, já não mais está perfilando a filosofia estética proposta inicialmente.
Nos anos 1940, surgiu um grupo de jovens poetas que revolucionou a poesia em
Goiás. Realizavam reuniões informais em livrarias, bares, praças e em suas próprias casas
para discutirem aspectos da nova poesia e mantinham-se informados, na medida do possível,
sobre as novas tendências. A partir de 1942, aquelas vozes que, isoladamente se compunham
para trazer à baila o novo movimento, se consolidaram em um grupo de vanguarda capaz de
mudar o eixo da literatura em Goiás.
Tal grupo, como já foi explicitado, foi responsável por sintonizar o modernismo em
seu Estado e, dessa forma, quando a terceira fase desse movimento com a Geração de 45
começa a ganhar corpo no Brasil, esses jovens fazem acontecer, um pouco anacronicamente,
o modernismo em Goiás. Trazem as características, principalmente, do modernismo de 1922,
para mais tarde alcançarem as tendências de 1945.
Em consonância com Fayad (2009) vale ressaltar que

a poesia de Godoy Garcia surgiu em um período em que a situação cultural


em Goiânia era de pouco contato com os grandes centros culturais, como
São Paulo e Rio de Janeiro, face ao atraso econômico e ao anacronismo que
marcavam a cultura e a arte, particularmente a literatura, no Estado de Goiás.
No entanto, apesar do isolamento geográfico e da lentidão no progresso
cultural, a estagnação não impediu o aparecimento de talentos em Goiânia.
Godoy Garcia, nesse sentido, puxa a lista dos que viriam a ser os poetas
modernos representativos da literatura goiana: Afonso Felix de Souza
(1948), Antonio Geraldo Ramos Jubé (1950), José Décio Filho (1953),
Gilberto Mendonça Teles (1955), Cora Coralina (1956), Jesus de Barros
31

Boquady (1959) e Yêda Schmaltz (1964) (SOUSA, 1999, p.10, apud


FAYAD, 2009).

Para tanto, eles lançam mão de uma temática regional que, segundo Assis Brasil, ―por
vezes denunciava uma inesperada postura romântica, mas os versos livres e o repúdio ao
soneto davam-lhes crédito modernista‖ (BRASIL, 1997, p.20). Isso nos leva a inferir que
esses autores utilizavam-se dos recursos que tinham no momento para alcançarem
reconhecimento de seus talentos até então escondidos no interior do país.
Com isso, ocorreu também a expansão do regionalismo poético, isto é, a produção de
poetas interioranos não reconhecidos nas capitais, explorando a temática regional, garantindo
seu espaço nas academias e dando lugar ao espaço urbano e rural de um Estado, como Goiás,
por exemplo. Teles afirma:

Só depois que arrebentou a Segunda Guerra Mundial e os poetas se viram


constrangidos a contemplar um mundo angustiado, na expectativa da
liberdade e, ainda, só depois que Goiânia, já consolidada começava a
fornecer condições para o desenvolvimento da literatura, foi que o
modernismo goiano lançou claramente o seu manifesto através de poemas
publicados na revista Oeste, defendido por um pequeno número de
intelectuais, que veio afinal a impor as suas idéias (TELES, 1964, p.121).

A revista Oeste, divulgadora das ideologias estadonovistas, além de poesias, também


publicou contos e ensaios sobre a realidade goiana. Posto isso, para que José Godoy Garcia e
seus contemporâneos tivessem base para sintonizarem a inteligência goiana com a inteligência
nacional, foi necessário primeiro que os outros autores precedentes construíssem um alicerce.
Na revista atuavam também outros intelectuais da época, Felipe Medeiros, Isaac Abrão, José
Bernardo Félix de Sousa, Castro Costa, Paulo Figueiredo e Domingos Félix de Sousa.
Enfim, a revista contribuiu sim para a efetivação e divulgação da obra de Godoy
Garcia e demais poetas, como atenta Teles. Também exerceu influência expoente na literatura
produzida em Goiás, assim como os outros veículos de legitimação. Essa revista surgiu com o
batismo cultural de Goiânia, em meados de 1942, contando com o financiamento do Estado,
através da mediação de Pedro Ludovico Teixeira, ordenando que o governo de Goiás fosse
responsável pelos números iniciais da revista, que durou de 1942 á 1944. Pedro Ludovico foi
um importante político em Goiás que governou o Estado de 1935 a 1937 e ocupou outros
cargos antes e depois dessa data, exercendo muita influência em Goiás. Inclusive foi também
o responsável pela mudança da capital do estado.
Importante se faz ressaltar que Teles, apesar de declarar a revista como um veículo de
consolidação para alguns autores, reconhece que a mesma se configura com um estilo
32

―declaradamente político, de órgão divulgador das ideologias estadovovistas‖ (TELES, 1964,


p. 154).
Gilberto Mendonça Teles destaca outro fator que perpassa esse panorama histórico do
movimento literário em Goiás, após 1942, que diz respeito ao Congresso Nacional de
Intelectuais. Tal encontro foi realizado em janeiro de 1954, e teve a presença marcante de
intelectuais como Pablo Neruda e John dos Passos. Apesar de não termos muitos detalhes
específicos ou depoimentos que ressaltem como foi realizado o evento, este foi um
acontecimento muito importante para a história da literatura em Goiás.
Afirma Teles, em conformidade com A. G. Ramos Jubé, que o Modernismo começou
em Goiás também em 1922, mas que ―somente a partir de 1942 é que se pode notar em nosso
Estado ‗a presença de um grupo atuante e rebelde, que encarava o fenômeno literário com a
seriedade devida e atitude inteligente‘‖ (TELES, 1964, p. 161, apud JUBÉ, s.d.).
A partir dessa afirmação, o pesquisador e crítico anuncia que desse grupo destacam-se
alguns que aderiram completamente aos aspectos poemáticos da escrita de Manuel Bandeira e
Mário de Andrade, como é o caso de José Godoy Garcia, Bernardo Élis e outros que
caminharam nas trilhas de uma segunda fase modernista, seguindo a linha de Carlos
Drummond de Andrade e Augusto Frederico Schmidt, como por exemplo, José Décio Filho e
Domingos Félix de Sousa.
Do que pondera Teles (1964) sobre a produção literária de cada um desses autores e
poetas, podemos evidenciar as características mais pertinentes que dizem respeito à poesia.
Para tanto, faremos uma breve exposição do grupo literário de José Godoy Garcia.
A propósito da obra de Bernardo Élis, os elementos componentes de sua poética eram
voltados ―mais para provocar do que encantar o público leitor‖ (TELES, 1964, p.164).
Escrevia poemas-piada e usava uma linguagem revolucionária que ele aproveitava para
abordar temas regionais, e, muitas vezes, escandalizava os leitores da época. O poema mais
famoso de Bernardo Élis se intitula ―As Tranças de Matilde‖ e é entremeado pelo tom sério
do início e o humor colocado no decorrer do mesmo.

Por causa das tranças de Matilde,


o sacristão deu de ponta
do alto da tôrre da igreja.
E seu Lucas Sapateiro matou a mulher
na madrugada de 2 de abril de 1922.
Além disso, muitas catástrofes menores aconteceram
num dia de procissão do sr. dos Passos,
(cheiro de velas bentas,
as filhas-de-Maria carregando o andor de Senhora das Dores;
33

mãe, eis aqui teu filho!)


o filho do Manèzinho (êta menino impossível!)
arrancou, num bruto safanão,
as fatídicas tranças postiças de Matilde‖.

(ÉLIS, 1955)

Esse poema de Bernardo Élis mostra os traços da primeira fase do Modernismo. É um


poema-piada em tom de prosa, elaborado nos moldes modernistas, com versos brancos, livres,
que jogam com os anseios da época presente. Marcadamente é o poema em que concentra
toda ―concepção e natureza poética de Bernardo Élis‖, como nos diz Gilberto Mendonça
Teles. Observamos no início do poema a seriedade do sacristão e o crime do sapateiro, duas
situações tensas. Já no final o poeta coloca o riso combinado com referência bíblica para dar o
tom de humor: ―mãe, eis aqui teu filho‖, quando descobrem a arte do garoto que ―arrancou,
num bruto safanão,/as fatídicas tranças postiças de Matilde‖.
Sobre José Décio Filho, Teles (1964) reitera que este representa uma poesia ligada à
segunda fase do movimento modernista, mas não deixa de ter sua representatividade no que
concerne ao movimento anacrônico em Goiás. Sua poética é construída a partir de uma
linguagem com ritmo amétrico e natural, constituindo uma peça inteiriça que evidencia os
sentimentos humanos. Porém, marcadamente vinculada a uma tristeza e amargura pessoal.
Também a propósito de Domingos Félix de Sousa, mais um dos escritores da época,
averiguamos sua relevante presença artística na construção e solidificação da poesia
produzida em Goiás. Inclusive, foi o primeiro do grupo a publicar um livro de poesia - A
outra face - em 1947. Esse livro é marcado por um sentido duplo que, por um lado, representa
o mundo castigado pelos destroços da Segunda Guerra Mundial e por outro mostra a face
dilacerada e amargurada do poeta, corroído pelos acontecimentos históricos e tocado de
sentimento cristão.
Sabemos que esse grupo de José Godoy Garcia (Bernardo Élis, José Décio Filho e
Domingos Félix de Sousa) trouxe o Modernismo para Goiás. A poesia foi o caminho que os
guiou primeiramente a expressarem sua arte, ficando alguns aí com sua melhor produção. No
entanto, Bernardo Élis acabou por descobrir na prosa um artifício através do qual melhor se
expressou, recriando a realidade goiana artisticamente.
Em 1948, ano de publicação de Rio do Sono, houve em Goiás um dos acontecimentos
mais importantes do período da história do estado, que foi a criação da bolsa Hugo de
Carvalho Ramos, a qual premiou o livro em questão. Assim como também foram premiados
os livros de outros autores, por exemplo, José Décio Filho com o livro Poemas e Elegias, em
34

1953. Esse foi o grupo que se dedicou a esboçar em Goiás a nova poesia que vinha surgindo.
Alguns conseguiram evidenciar na poesia, buscando novidade de expressão sem deixar as
peculiaridades da Geração de 45. No caso de José Godoy Garcia, vimos que ele buscou uma
abertura distinta, procurou caminhos que o sincronizasse com a poética nacional.
Como reitera Teles (1964) ―o que se deu em Goiânia foi a adesão completa,
principalmente por Bernardo Élis e José Godoy Garcia, aos aspectos poemáticos que
caracterizaram os poemas de Manuel Bandeira e Mário de Andrade, pelo menos até 1930‖
(TELES, 1964, p. 161). Prova disso é a dedicatória do livro Rio do Sono (1948): ―Dedico esse
livro a Mário de Andrade, e aos outros homens, com exceção de Hitler, Mussolini e Franco‖
(GARCIA, 1999, p. 347)
Dessa forma, podemos notar que a característica modernista, sugerida na obra do
autor, vinha sendo apregoada de longa data, reafirmada sempre por outros poetas e escritores
brasileiros. Godoy Garcia estava apenas almejando apresentá-la em seu meio social.
Como nos ressalta Salomão Sousa em uma introdução que faz no livro Poesia (1999),
o poeta em questão foi privilegiado ao ter a oportunidade de frequentar

[...] rodas literárias com Lúcio Cardoso, Rubem Braga, Solano Trindade e
outros. Manteve uma rápida convivência com Portinari, e guarda grande
orgulho disto. Em sua segunda ida ao Rio de Janeiro, assistiu à histórica
conferência de Mário de Andrade no Itamarati (SOUSA, 1999, p. 09).

Ocorre que, vivendo em um mesmo momento histórico e literário, frequentando


grupos de discussões e assistindo conferências de Mário de Andrade, José Godoy Garcia,
assim como seus colegas escritores da época, não poderia deixar de escrever algo que se
aproximasse da escrita de Mário de Andrade, Manuel Bandeira e outros que lia, inclusive
escritores internacionais, como é o caso de Walt Whitman e Langston Hugues.
Sobre tal perspectiva é o próprio Godoy Garcia quem admite sua influência na escrita
literária, principalmente da primeira fase do modernismo, ressaltando que

[...] minha primeira poesia foi horrível, a poesia de Manoel Bandeira me


influenciou muito, ela é extremamente simples Lá longe o Sertãozinho de
Caxambá... Bandeira era comovente [...]. Escrevi uma poesia como a de
Manoel Bandeira que evocava Recife, e fiz evocando Goiás Velho, foi
publicada com o pseudônimo de Zé da Rua. Os 99% dos assinantes eram de
Goiás Velho, eles devolveram o jornal, foi uma briga desgraçada, não pude
ir a Goiás por 10 anos [...]. Fui influenciado também pela poesia do
americano Langston Hugues. Ele era um grande poeta, então fiz ―Canto ao
Poeta Negro‖, que li em um comício (GARCIA, 1998, ver anexo).
35

A verdade é que todos os escritores e críticos de literatura que se dispõem a falar sobre
as obras produzidas em Goiás afirmam que ela foi retardatária, chegando assim atrasada e
carente. Alguns dos fatores que podem evidenciar tal acontecimento são o atraso na economia
e o isolamento geográfico, contribuindo para que a produção intelectual no Estado não fosse
largamente difundida.
Ao abordarmos sobre José Godoy Garcia descobrimos que este autor estava em
sincronia com os demais, saindo assim das suas barreiras de espaço e tempo buscando outras
fronteiras. Nas produções literárias deste autor goiano é possível perceber a acentuada
abordagem da estética nacional, conferindo, dessa forma, um grau equivalente às outras obras
produzidas em Goiás, como é o caso de Primeira Chuva (1955) de Bernardo Élis e Poemas e
Elegias (1953) de José Décio Filho.
Vimos então, que a tendência estética modernista foi absorvida em Goiás através das
obras de um grupo seleto de autores que se preocuparam em trazer para esse estado, pelo viés
da poesia, obras que dialogavam com aquelas produzidas e divulgadas no eixo Rio-São Paulo.
Em Goiás, Bernardo Élis e José Godoy Garcia, trouxeram ainda que com certo atraso, nas
palavras de Alaor Barbosa, o que havia de novo nas escolas literárias.
Como observamos durante o estudo da obra godoyana há em sua poética uma
reciprocidade com a estética nacional. Encontramos em sua escrita, evidências de um
norteamento sintonizado com as demais produções do eixo Rio-São Paulo, como é o caso da
aproximação com Manuel Bandeira além dos princípios direcionados pela sua leitura
harmoniosa com os poetas americanos, discussão que pormenorizaremos nos capítulos que se
seguem.
36

CAPÍTULO 2

ROMANCE HISTÓRICO - A NARRATIVA SOCIAL E POLÍTICA DE JOSÉ


GODOY GARCIA

O romance intitulado O Caminho de Trombas (1966) possui como uma das questões
centrais o conflito existente entre povo (os comunistas) e governo, além de trazer ao
conhecimento do leitor uma história da terra e dos homens de Goiás. Uma saga que busca
evidenciar as dificuldades enfrentadas por pequenos agricultores com a finalidade de
conquistarem uma miserável sobrevivência e o mínino de direito que possuíam sobre as
lavouras que plantavam. A história narrada tem como pano de fundo o auge do crescimento
de Goiânia, apresentando uma linguagem simples e objetiva, que traz um assunto universal,
que é a divisão das classes sociais, para dentro da história regional.
Após a abordagem realizada no capítulo anterior, e diante da necessidade de fazermos
a avaliação desse romance, encontramos na narrativa um episódio que exemplifica a
contextualização do momento histórico vivido na época da publicação:

Certa feita, porém, um dia, Purcina envolveu-se nos fatos. Estava sempre
freqüentando a igrejinha da Vila Nova. E tudo de bom que Prêto e Damásio
falavam de comunismo, do padre Purcina ouvira justamente o contrário. Não
podia ser. A alma complacente e um tanto bonachona da mulher foi tocada
por aquêle equívoco. Ou o vigário andava zonzo e enganado, ou Prêto e seu
marido andavam doidos. Falou com o padre. Falou com Prêto e com
Damásio. E Purcina assim ficou indo e vindo, sem saber em quem podia
acreditar, se no padre, se no marido e no amigo. Nem de um nem de outro
ela descria. Deus era bom, e bem assim Prêto e Damásio. Dava os peitos
para alimento do filho, ou lavava uma roupa, ou fazia um emplasto,
pensando, sem poder entender (GARCIA, 1966, p.107).

Nesse episódio percebemos que a dúvida surgia nos pensamentos de Purcina, assim
como pairava também sob as demais personagens do romance, exceto daqueles que
certeiramente pensavam que a luta comunista seria a solução para ―livrar o homem dos
males‖, como diz o personagem Prêto Soares. Para melhor entendermos essas questões,
necessário se faz que façamos uma leitura e análise específica do romance, em que
abordaremos os demais temas apresentados no mesmo.
Publicado em 1966, é um romance de grande importância na carreira de José Godoy
Garcia e chama atenção o fato de ter sido editado pela Civilização Brasileira do Rio de
Janeiro, merecendo uma apresentação crítica de Moacyr Félix na orelha do livro.
37

Nessa época, o editor e poeta Moacyr Félix, ao lado de seu amigo e parceiro Ênio
Silveira, responsável pela editora mencionada, já atuava há bastante tempo no cenário literário
e de publicações, sendo o responsável pela Coleção Poesia Hoje, até o ano de 1971, que tinha
o intuito de apresentar autores estreantes no mercado literário. Entre eles, uns já consagrados
e outros não, estava José Godoy Garcia.
Moacyr Félix já vinha desde 1950 perfilhando no caminho dos estudos voltados para
as questões humanitárias e em defesa aos novos olhares sobre as questões sociais. A mesma
proposta de Godoy Garcia. Mas foi acusado, quando do movimento militar de 1964, de
defender uma ―literatura subversiva‖, enquanto seu verdadeiro intento, ao lado de Ênio
Silveira, era apenas o de selecionar obras culturais que abrissem outros caminhos para o
desenvolvimento de novos aspectos na poesia brasileira e literatura em geral.
Dessa forma, em 1966, ano do lançamento de O Caminho de Trombas, Félix sofria
privações e passava por muitas adversidades tendo que fugir das perseguições e inflexíveis
constrangimentos. Também estava o governo no encalço de Ênio Silveira, que teimoso em
concretizar seus ideais não abria mão de sua editora e persistia em tomar os cuidados
necessários para a edição de novas obras.
Para ressaltar o valor dado à obra, Félix faz o seguinte comentário:

Por isto, meu caro leitor, é que me dirijo diretamente a você para dizer-lhe,
sem qualquer rodeio, que êste livro é realmente um dos grandes romances da
nossa literatura contemporânea, fonte de novas formas de indagação de
nossa terra, suscetível apenas de não ser visto assim pelos pedantes, pelos
que andam por aí, de bôca aberta, a engolir o vazio estereotipo da última
―novidade‖ estrangeira despejada sôbre nós (FÉLIX, 1966).

É nesse ínterim que o livro de José Godoy Garcia foi publicado, por isso seu autêntico
valor reconhecido pelo crítico e editor da obra. Por se tratar de um romance que aborda a
temática do cotidiano e toma partido do valor do humanismo. Propostas definidas por Moacyr
Félix e Ênio Silveira nas muitas parcerias de publicações de revistas por eles escolhidas.
Como parte de uma reportagem feita pela equipe de Moacyr Félix, publicada on-line
através de um editorial redigido pelo próprio crítico, no sítio ―Palavrarte‖ 1 (s/d), encontramos
os seguintes dizeres sobre a época e os acontecimentos vivenciados por esses idealistas, que
se dispunham a seguir uma carreira literária e/ou política, engajados em alguma estética ou

1
―Ao tornar-se acessível, por meio de processo on-line, PALAVRARTE se inicia pelas perspectivas de
transcender os limites do livro e do mercado editorial, indo na direção da descoberta de novos valores e relações
com a poesia, em todas as suas instâncias, por um número cada vez maior de pessoas‖ (FÉLIX, s/d).
38

filosofia que não fosse aquela delimitada pelo governo militar na segunda metade da década
de 1960.

Ainda em 1963, Moacyr Félix foi um dos fundadores do Comando de


Trabalhadores Intelectuais (CTI), que teve a adesão no Rio de Janeiro de
mais de quatrocentos intelectuais de todas as áreas das artes, da literatura, da
ciência e das profissões liberais. Em 1964, foi eleito membro do Conselho
Deliberativo deste comando. Desde então, sofrimento, dor e privações de
espaços-tempos feitos de morte ou prisão, ao lado da esperança feita de
afeto, amor e sonhos da utopia no melhor do marxismo sadio, tudo isso o
poeta identificava com as humanizações mais altas do seu cotidiano viver.
Quando pressentia no ar cheiro de ordem de caçar comunistas, ele saía do
seu lar e ia trabalhar por alguns dias em endereços de amigos ou amigas
insuspeitos. (...) Foi também diretor, de 1963 a 1971, da Coleção Poesia
Hoje, da editora Civilização Brasileira, que, juntamente com as coleções
Poesia Sempre e Poesia Viva, publicaria mais de uma centena de poetas,
em sua maioria estreantes de várias partes do país, e alguns já então se
consagrando ou consagrados, como Carlos Nejar, Paulo Henriques Brito,
Manoel de Barros, J. C. Capinam, Salgado Maranhão, Paulo Mendes
Campos, Affonso Romano de Sant‘Anna, Mário Faustino, Joaquim Cardozo,
Dantas Motta, Nauro Machado, Geir Campos, José Godoy Garcia, Fernando
Mendes Viana, Ivan Junqueira (como tradutor dos Quartetos de T. S.
Eliot), entre outros. Nesse meio-tempo, em 1965, foi membro do conselho
diretor, e depois, de fins de 1966 até 1992, foi diretor da coleção
Perpectivas do Homem, que compreendia mais de uma centena de livros de
filosofia, política, sociologia, estética e economia, publicada pela Civilização
Brasileira, então de propriedade do grande editor Ênio Silveira, que a dirigia
em comunhão com o poeta contra o alienante domínio do capitalismo norte-
americano sobre as elites militarizantemente ditatoriais, e em nome de
variadas contribuições culturais como eixos das conscientizações para o
socialismo no existir do homem rumo ao seu ser essencial que é a liberdade
(Equipe – Moacyr Félix /
http://palavrarte.sites.uol.com.br/Equipe/equipe_mfelix.htm).

Em vista desses acontecimentos, percebemos para a história da literatura produzida em


Goiás, um feito editorial de grande importância. Assim é que se insere O Caminho de
Trombas em meio a muitas das importantes e significativas publicações da literatura nacional.
Todo o romance é permeado de fatos verossímeis explicitando o valor empírico da
obra, que pode não ser a realidade tal como é vivida, mas baseada em uma experiência do
próprio autor, como militante que foi do Partido Comunista.
Neste romance podemos encontrar traços e fatores que autenticam a luta pela vida,
pela sobrevivência e pelo mínimo de dignidade do povo da zona rural que busca abrigo na
cidade. A história desse livro tem características de um romance histórico, porque os fatos e
alguns personagens tiveram existência documentada. Como por exemplo, os políticos citados
e os acontecimentos detalhados das discussões entre povo e governo, assim como, o próprio
movimento de guerrilha sucedido em Formoso e Trombas.
39

O romance histórico traz como uma de suas peculiaridades a reconstrução dos


costumes, da fala e das instituições do passado. Na narrativa godoyana são pinceladas essas
questões a todo o momento. A mistura de personagens históricos e de ficção é mais uma das
características do romance histórico destacada em O Caminho de Trombas, juntamente com a
abordagem histórica que mostra os acontecimentos políticos da época de Pedro Ludovico
Teixeira em Goiás. Além disso, no romance há certas particularidades pertencentes ao gênero
regionalista por abordar as questões sociais específicas de Goiás.
Apesar de não ser um romance do gênero autobiográfico, aquele em que o autor é o
personagem principal, O Caminho de Trombas apresenta componentes biográficos: evidencia-
se na narrativa parte da história do autor, porém, sem que ele seja um dos personagens. José
Godoy Garcia narra fatos de sua vida, experiências políticas vivenciadas por ele e, de forma
paralela, usa os subsídios ficcionais para juntos, dar um maior sentido à obra.
Para exemplificar o que foi exposto, caracterizando o romance como uma narrativa
que pinça elementos biográficos, vimos que em meio a tantos outros acontecimentos de sua
vida política, Godoy Garcia destaca que compartilhou ativamente da guerrilha de São
Domingos. Hipoteticamente esta poderia ser uma narrativa autobiográfica, se não oferecesse
mais informações históricas do que biográficas. O autor assim declara em entrevista:

Tinha escrito o Caminho de Trombas, lançado em 1966, dois anos depois da


quartelada. Esse livro mostrava as atividades do Partido Comunista. Era até
provocação. Hoje, não teria coragem de publicá-lo naquelas condições.
Quando começou esse negócio de guerrilha, comecei a participar. Fui eleito
delegado do Partido Comunista de Brasília, no sexto congresso. Eu já estava
engajado na luta contra a guerrilha, que estava sendo planejada. Acho que
esse negócio de seqüestrar embaixador, do Fernando Gabeira, tinha a CIA
por trás. Não era possível. Foi bom demais para a direita (GARCIA, 1998,
ver anexo).

Essa abordagem desenvolvida até aqui explica os componentes históricos e biográficos


encontrados no romance de Godoy. A questão social, o contexto político-histórico da época,
as experiências mencionadas e os recursos ficcionais utilizados, tudo isso contribui para a
elaboração de uma obra voltada para as ―novas formas de indagação de nossa terra‖, como diz
o já citado Moacyr Félix.

2.1 – As personagens no romance

Segundo Antonio Candido (2001) ―Enredo e personagem exprimem, ligados, os


intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o
40

animam‖ (CANDIDO, 2002, p.53-54). Isto é, para termos um romance bem realizado é
preciso que as personagens estejam ―vivas‖ dentro do enredo e, junto a estes elementos
permaneça a ideia, que é o significado, tornando vivas as personagens.
Alguns críticos acreditam que a personagem é apenas um ser fictício, assim como
Massaud Moisés (1978) quando diz que as personagens são identificadas em um texto
prosaico como

[...] os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres


humanos: se estes são pessoas reais, aqueles são ‗pessoas‘ imaginárias; se os
primeiros habitam o mundo que nos cerca, os outros movem-se no espaço
arquitetado pela fantasia do prosador (MOISÉS, 1978, p.396).

Já para Candido (2002), essa ideia é de certa forma paradoxal, uma vez que, existe na
criação literária a questão da verossimilhança, a depender da existência de um ser fictício.
Para tanto, o romance está fundamentado na relação existente ―entre o ser vivo e o ser fictício,
manifestada através da personagem, que é a concretização deste‖ (p.55). Nesse contexto,
encontramos essas ―pessoas imaginárias‖ do romance godoyano colocadas como
representação dos homens reais. Moacyr Félix, na orelha do livro ressalta: ―são retratos de
homens, são vidas, com que a mão do poeta José Godoy alarga o nosso próprio retrato, as
nossas próprias vidas‖.
A partir desse exposto, destacaremos então as personagens encontradas no romance,
situando-as ao conflito central e norteando suas trajetórias. Queremos evidenciar que existem
dezenas de personagens ao longo da narrativa, de forma que cada um exerce um papel
importante e único dentro do contexto.
Uma vez que a abrangência do trabalho proposto não nos permite abordar de maneira
geral, enfatizaremos apenas aquelas personagens que podemos chamar de protagonistas, que
assumem o lugar de líderes do movimento político. Como é o caso de alguns, em específico,
Desidéria e Prêto Soares – os únicos que alcançaram o destino almejado - Gregório Bezerra,
D. Generosa e suas netas e D. Adelfa. As outras, aquelas personagens que seguem as demais,
podem ser assinaladas como as antagonistas, o povo, por exemplo, serão mencionados
conforme o andamento da análise.
Vale lembrar que, em sua maioria, as personagens do romance de José Godoy Garcia
são aquelas consideradas ―de costume‖, porque são apresentadas logo no início suas
características físicas e, principalmente psicológicas, ou seja, são marcadamente distintas
umas das outras. Na visão de Candido (2002), ―As ‗personagens de costumes‘ são, portanto,
41

apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em
suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora‖ (CANDIDO, 2002, p. 61).
O romance apresenta uma estrutura marcada por cinco partes específicas que o autor
divide para mostrar desde os tempos vividos na zona rural, até o encontro final de Desidéria e
Prêto Soares, com destino a Trombas. A primeira parte é sobre ―Os dias de São Domingos‖, o
trabalho de plantação e colheita nas lavouras, os problemas econômicos, a perseguição da
polícia, a dificuldade em estabelecer um diálogo com os fazendeiros, a esperança por uma
safra produtiva, os costumes, as festas daquele tempo e região. Essa etapa se fecha com a
decisão dos grupos de tomarem o caminho da cidade, separados.
Já a segunda parte, ―Os caminhos da cidade‖, inicia-se abordando as primeiras
construções de Goiânia, a instalação dos agricultores na cidade e sua adaptação. É nesse
contexto que conhecemos as personagens urbanas e são apresentadas as formas como o
governo age nas vilas mais novas, para ―seduzir‖ o povo. Também nessa parte se instala a
preocupação do autor em abordar a inquietação do povo com as questões políticas, o
comunismo, o movimento sem-terra, e a esperança de uma reforma agrária.
Destacando uma parte da narrativa percebemos o enfoque que José Godoy Garcia dá a
essa questão política nas personagens, discutindo a vida no campo e na cidade: ―A tarefa de
ajudar as massas do campo, os milhões de homens sem terra, é a nossa. Uni-las, dar-lhes a
mão, dirigi-las para que conquistem a terra, uma vida digna, esta é a nossa tarefa. Sem essa
política o Brasil marca passos na miséria‖ (GARCIA, 1966, p.111). Eis o ápice da segunda
parte, o ponto de vista que valoriza o aspecto histórico do romance. É a partir desse momento
que aqueles homens e mulheres vindos das lavouras para a cidade vão se ver amparados por
uma lei, um fundamento que os protege. É em torno dessa nova utopia que eles passarão a
viver, esperançosos em conquistar um espaço de terra, em ver a reforma agrária. Para finalizar
esse segundo capítulo do romance, há um acordo entre as personagens Desidéria e Prêto
Soares, em que ele volta para os campos de plantação, enquanto ela segue com a vida na
cidade.
A terceira parte do livro, ―A servidão‖, é inaugurada com a marcante data de 1949,
ano em que chegou aos campos a notícia da lei do arrendo, que havia sido promulgada em
1946. João Luzia foi quem anunciou a novidade na ocasião e os agricultores pensaram que
essa seria a garantia deles no arrendamento final da colheita. Prêto Soares havia voltado às
lavouras com seus amigos de São Domingos e juntos, ajudando uns aos outros, fizeram o
trabalho, como percebemos na narrativa:
42

As novas leis do arrendo atingiram tôda a região, chegando além de


Soledade; do Mato Dentro, passando por Brejinho e chegando a Soledade.
De uma fazenda mandavam saber em outra, tomavam conhecimento e
resolução. 1950 foi um ano de porfia (GARCIA, 1966, p.124).

Assim, com grande expectativa por parte dos trabalhadores e muita preocupação dos
fazendeiros, depois de uma longa discussão e brigas entre os mesmos, a colheita foi iniciada e
ao final do capítulo vislumbramos posse de 80% das lavouras que os sitiantes conseguiram
colher para eles, e os 20% dos fazendeiros que não foram colhidos. Assim termina ―A
servidão‖:

Com os poucos dias a safra terminou, e nem Saraiva e nem os seus prepostos
apareceram.
Assim foram os acontecimentos de Brejinho, Mato Dentro e Soledade, até os
meses de março e abril.
O arroz jogado na terra apodrecia, sem que os fazendeiros viessem buscá-lo.
Jogado na terra, dá-se com o arroz algo estranho. O mofo no amarelo
encardido, que se rebenta, banho de sol e orvalho, dá lugar a um brotamento
verde, e assim os montes de cereal largados nas palhadas se cobrem de uma
majestosa camada de fôlhas verdejantes. A terra está em festa, a mente dos
homens prenhe de emoções (Ibidem, p.148).

Nessa passagem final, além da expressiva determinação dos grileiros em colher o que
lhes era de direito e dos fazendeiros em não colher, deixando secar toda a lavoura,
encontramos, ao mesmo tempo, a simplicidade e o lirismo com que o autor descreve o
episódio, uma vez que a leitura desse trecho flui como a de um texto poético e com linguagem
simples, dando à narrativa um caráter mais poético.
Finda essa parte, no capítulo que aborda ―A derrubada do mato‖, encontramos a figura
de Gregório Bezerra, uma personagem histórica que está inscrita nesse romance. Bezerra foi
um comunista que exerceu muitas atividades nesse sentido e, por um período de tempo,
passou por terras goianas. Tal personagem acreditava que abraçando essa causa poderia ajudar
a construir uma

[...] sociedade mais justa e melhor. Em 1930, filiou-se ao Partido Comunista


Brasileiro (PCB) e, em 1935, era um dos líderes do movimento armado,
Aliança Nacional Libertadora (ANL). Participou, como militar rebelde, da
luta armada que tentou implantar o regime comunista no Brasil. Com a
derrota do movimento, foi preso durante três anos, no Recife, e condenado
a 28 anos de prisão, pelo Tribunal de Segurança Nacional (ANDRADE,
2009).

Sua participação na narrativa godoyana vem para apresentar aos ―homens


abandonados nos eitos‖ goianos, que os sonhos poderiam ser alcançados se fossem
43

fertilizados. Trabalhando com uma linguagem passível de compreensão do homem rural,


Godoy Garcia coloca no texto que essa realidade seria possível de florescer, ―tão igual as
chuvas que vinham banhar as terras e searas nas velhíssimas enseaduras do mês de outubro‖
(GARCIA, 1966, p.151).
Com as influentes ideias de Bezerra, os amigos resolveram lutar pela posse das terras e
marcaram data para invadirem o território dos fazendeiros, derrubarem os matos e plantarem
suas sementes. Assim o fizeram, mas os proprietários das terras não ficaram quietos, indo
também buscar seus direitos. Falaram com o delegado, prefeito, tenente e autoridades afins.
No entanto, engajados na tarefa de fazer a derruba do mato e plantar suas lavouras, Prêto
Soares e seus companheiros concluíram seu objetivo.
Em meio a essa empreitada, conseguiram muitas pessoas que se juntassem ao grupo.
Todos com um mesmo propósito: trabalhavam com o corpo e com a mente, para que ao final
do episódio obtivessem um resultado positivo. Havia uma ligação muito forte do homem com
a natureza e, a leitura de mundo, experiência adquirida com os anos de conhecimento popular,
contaram pontos a favor dos sitiantes.
Mais uma vez, viram-se vitoriosos com a tarefa desempenhada e os fazendeiros não
foram buscar nas lavouras as partes da plantação que lhes eram devidas. No entanto, antes que
conseguissem essa bem feitoria houve muita luta com o governo, estratégias calculadas
milimetricamente e algumas agressões físicas por parte da polícia. Sofreram para atingir seus
objetivos. Atingiram. Os louros foram alcançados e ―as notícias correram mundo, narradas de
muitas maneiras e variante. Faziam referência à velha Adelfa, aos males acontecidos com o
vendeiro Manuel Papagaio, à lendária derrubada dos matos, às maldições dos fazendeiros‖
(GARCIA, 1966, p.161).
No romance histórico aqui estudado, há um enfoque na personagem política e
histórica, Gregório Bezerra, porque sua caminhada por Goiás é registrada de forma autêntica.

Certa feita, andara na região de Pires do Rio um patrício por nome Gregório
Bezerra, alma do longínquo Pernambuco e que os caminhos de sua ardente
fé revolucionária trouxeram a Goiás. [...] E na sua fala não foi sem razão
que, entre outros conceitos, Gregório valorizou as ações revolucionárias que
haviam de brotar nas mãos e mentes dos homens, como justas tôdas as
decisões partidas da necessidade. E Gregório Bezerra desfiou um rosário de
ensinamentos, infundindo entusiasmo e alegria. [...] Em Goiás, quem o
conheceu e quem o ouviu, pôde ver e avaliar caminhos novos, ninguém
podia deixar apagar nas mentes o fogo das verdades. A voz tinha sua fonte
nas correntes do povo, as lutas e sonhos que vinham de anos, as esperanças
renovadas. Tantas e tantas coisas expressava o nordestino (Idem, p.151-152).
44

A partir disso é que as demais personagens do romance começaram a encontrar uma


saída para aquilo que vinha os preocupando até o momento. Após a partida de Gregório
Bezerra, com o fervilhar das novas ideias na cabeça, as personagens tomaram uma decisão
corajosa e organizaram a empreitada perigosa.
Depois de percorrerem longos caminhos, enfrentarem muitas batalhas e passarem por
diversas situações difíceis, o enredo caminha para seu desfecho, na quinta parte do romance
―Cirilo, Doraci e Desidéria‖. Muitas vezes os protagonistas da narrativa não encontraram o
que almejavam sendo obrigados a viver sem conforto, ou retornar para a lida no campo, ou
ainda, a buscar outros caminhos, como é o caso de alguns, dos quais, diga-se de passagem,
apenas dois deles chegaram ao destino final: Trombas. Os demais, sentindo reprimidos pelas
forças que os impediam de caminhar em frente, como a polícia, o governo e os patrões,
deixaram-se vencer pelo cansaço.
Após longa caminhada e sofrimentos de jornada, os antigos amigos de São Domingos
se dispersaram e restavam apenas Desidéria, que dormia sozinha à beira de um córrego após o
incêndio propositado pelos homens do governo, no Matadouro, vila onde morava. Desidéria
sonhava apenas em encontrar seu marido, que há muito a tinha deixado para voltar às lavouras
ajudando os amigos lavradores de terra. No amanhecer, quando ela desperta

Pouca gente ainda a seu lado, só mais distante restam algumas famílias.
Segue caminhando instintivamente para os rumos de sua morada, em direção
do Matadouro, de onde ainda sai, em vários pontos, a fumaça retardada.
Encontra Prêto, seu marido.
___ Desidéria!
___ Prêto Soares!
Abraçaram-se.
Nada restava do que era seu.
___ Desidéria, vem comigo?
___ Vou.
Alguns dias depois Prêto Soares e sua mulher tomaram condução e partiram.
Chegaram a Anápolis. Desta cidade pegaram um caminhão e rumaram para
o Norte, via Ceres e Uruaçu. Prêto demandava as terras de Formoso e
Trombas, onde o esperavam. Ele falou à mulher das lutas daquela região. A
estrada sumia sem fim nas chapadas goianas. Ele mostrava, o vento
dobrando as abas de seu chapéu, a grande estrada. Ela olhava. Prêto Soares
ria (GARCIA, 1966, p.207).

É nesse contexto que se fecha a narrativa, com o encontro das únicas duas personagens
que venceram todos os obstáculos impostos no decorrer da trajetória e, enfim, puderam seguir
em frente rumo a Formoso e Trombas, onde provavelmente, haveriam que lutar muito, visto o
que Prêto falou à mulher.
45

Sabemos que o princípio norteador do espaço no romance é caracterizado pela


multiplicidade geográfica, o que concede poder ao escritor em deslocar seus personagens para
um e outro lugar, desde que esteja inserido no contexto. Mesmo sendo um romance,
considerado por muitos, regionalista, ele não demonstra apenas as tragédias e episódios do
campo, narra também o cenário urbano contando a história de um povo que vivia em trânsito
entre os dois espaços.
Para confirmar nossas palavras, lembramos o que o crítico Massaud Moisés pondera
sobre o assunto.

Como o romance nasceu vinculado à Burguesia, o seu cenário típico é o


urbano. De onde o romance regionalista constituir-se uma exceção que
confirma a regra, ou trair o contágio de problemas citadinos. [...] Por outro
lado, os dramas no campo tendem a repetir-se, em função da própria
imutabilidade da paisagem e das estruturas sociais. De onde a importância
dramática do espaço do romance, a ponto de funcionar como extensão das
personagens, ou concretização das suas tendências psicológicas (MOISÉS,
1974, p. 453).

O romance de Godoy Garcia não trai a regra, pois não é preso em apenas um espaço,
ao contrário, são várias as regiões exploradas pelo escritor. Ele descreve fatos ocorridos em
todo entorno de Goiânia, em muitas fazendas e cidades próximas, transitando entre umas e
outras, de forma a evidenciar a pluralidade geográfica. Apenas a estrutura social é a mesma,
afinal é o que ele defende neste romance.
Dessa forma, notamos que esta obra é histórica e geograficamente bem delimitada.
Ambientada no período de crescimento populacional e de estabilidade política de Goiânia,
além de ser demarcada por cidades do entorno que nos remetem aos espaços geográficos
ainda hoje existentes e conhecidos. Assim, no que diz respeito ao espaço, a julgar pelas
características de um romance, esse se faz notar como tal.
Além de Goiânia muitas cidades e rios de Goiás são mencionados como, por exemplo,
Catalão, Pires do Rio, Iporá, Silvânia, Nazário, Jussara, e muitas outras. Em um determinado
momento podemos encontrar uma passagem em que o autor descreve os caminhos percorridos
entre essas cidades goianas deixando, explicitamente, sua visão sobre Goiânia e as demais
cidades circunvizinhas.
O romance de José Godoy Garcia trabalha com o homem do campo, dominado por
uma coletividade política precária e, o homem simples da cidade, que lida com os problemas
sociais. Mostra-se evidente a preocupação sociológico-documental do autor, registrando nessa
obra as temáticas agrária e urbana.
46

Além da demarcação territorial são registradas ainda nessas linhas as marcas do


sofrimento e do desgaste tanto do povo quanto da terra.

A cidade como um coração. As suas estradas podiam contar muitas histórias.


Mas viviam, solenes, ridículas, desgraçadas. A vida se fazia por elas em
todos os rumos. As que demandavam o sudoeste, ligando a cidade de
Mineiros, Alto Araguaia, Jataí, Rio Verde, Iporá. Por elas vinham o gado, o
cereal, aguardente e fumo. A que demandava Anápolis, Jaraguá, Ceres,
Rubiataba, Uruaçu, Porangatu, Peixe: ligando o centro com a Capital, depois
seguindo para o norte. O norte, o osso de peito, a pelanca dos ombros
envelhecidos, a rebarbativa vida, a canastra e o catre velho, o jumento e a
alma sêca do pobre homem sêco. Vinham por essa estrada gente e arroz,
feijão e café das terras das Matas de São Patrício. Do Sul feudal a estrada
moderna trazia o gado zebu e o fazendeiro e o seu genro, emporcalhando a
cidade que encontrava mais uma dolorosa razão para envelhecer. E havia a
estrada das terras férteis de Aurilândia, Firminópolis, Anicuns, Nazário,
Trindade, Inhumas. Os caminhões cortavam essas estradas, dia e noite. O
cereal abarrota os armazéns dos turcos em Campinas e as máquinas nas
circunvizinhanças da estrada de ferro.
Goiânia é uma cidade nova que envelheceu muito depressa. Um
envelhecimento de coisa abandonada no tempo. Cidade de uma vida
solitária, peito de trabalhos destemidos, coração latejante, mente de
fraternidade (GARCIA, 1966, p. 193-194).

Salta-nos aos olhos, nesse trecho, a questão das inferências entre as personagens e
espaço geográfico: o envelhecimento, a vida árdua, ―a alma seca do pobre homem seco‖.
Passando por muitos caminhos vão deixando as marcas do sofrimento e em suas mentes criam
condições que os favorecem enquanto seres humanos, ou seja, para que possam seguir
adiante, as personagens fazem uma junção do lugar onde se encontram com a união existente
entre si.
Psicologicamente cria-se uma base fraterna em que se apóiam e, por onde andarem,
independente das adversidades, sempre verão ―a cidade como um coração‖, um lugar de
repouso. Apoiados à fé, esta marca atrela-se ao fato do espaço geográfico confirmar e
estender as tendências psicológicas das personagens.
Nessa perspectiva, cada figura dramática descrita na narrativa precisava de um espaço
geográfico, histórico e social para desempenhar seus papéis. Todas elas revivem um universo
marcado pelo tempo ou espaço no qual está inserida. Essa junção de espaço e personagem
colabora para a universalidade da obra e alimenta sua conexão com a existência humana e
revolucionária.
Os turcos e os sulistas, vistos na obra como personagens antagonistas, são apontados
para exemplificar a classe dominante, representando, dessa forma, os causadores do mal na
terra, pois a usavam para o desgaste e para solidificar seus próprios negócios.
47

Importante se faz ressaltar ainda, que não apenas o espaço é mencionado aqui. O
tempo também é percebido quando o narrador caracteriza suas marcas deixadas ao longo dos
trajetos dos caminhões e no abandono das coisas nos armazéns. O romance é bem definido
psicológica e cronologicamente.
Além dessa marca do tempo enquanto depredador dos objetos e das pessoas, há o que
diz respeito às épocas de plantio, cuidado e colheita dos grãos. O tempo que direciona os
ventos. E o tempo cronológico das datas encontradas no contexto histórico, em que registram
a participação do povo na luta a favor da lei do arrendamento, em 1949; as referências
temporais ao governo e os acontecimentos de 1950 que ―foi um ano de porfia‖.
As referências aos políticos, como o governador Jerônimo Coimbra Bueno, exercendo
o cargo no estado de 1947 até 1950, nos lembram o caráter histórico do romance. Ele que já
participava de atividades políticas desde 1934 exercendo-as até 1982. Também são citados os
nomes do Deputado Sampaio, Governador Ludovico.

E seguiram-se as arrumações. E enquanto arrumavam mesas, bancos, traias


de cozinha, café com pão e manteiga, molhe de lápis e papéis, grupos se
organizavam fortuitos, casos e mais casos, Prêto e Damásio arredios. Um
jovem de boné, cigarro alerta nos lábios, sambava, e numa roda falava de
Noel Rosa e Ataulfo Alves (Idem, p.109-110).

Se adequando ao tema desenrolado na obra percebemos a presença marcante do fator


político e social: a luta diária dos agricultores buscando seus direitos. Eles tinham apreço pela
cidade grande, mas ao mesmo tempo se sentiam acuados, porque o governo estava os
rodeando a fim de que não se sentissem à vontade ali.
No entanto, o povo, conduzido pelos seus líderes de movimento político, se organiza e
une em passeata para reivindicar seus direitos, tal como sabemos ter ocorrido a revolta da
classe operária e agrária. Assim descreve o narrador:

Às horas de folga não se podia conversar alto. Contavam casos e riam


abafando a voz.
Rico, o que era esperado, por fim:
__ Em Goiás, é campo, companheiros. Devemos, e isto é de importância
fundamental, compreender, assimilar de uma vez por tôdas: devemos forjar a
frente única operário-camponesa.
Não existe ninguém senão nós, como vanguarda, capaz de despertar o país
para a grande revolução agrária que devemos fazer. Tôdas as classes e
camadas interessadas nesta revolução precisam ser despertas.
A tarefa de ajudar as massas do campo, os milhões de homens sem terra, é a
nossa. Uni-las, dar-lhes a mão, dirigi-las para que conquistem a terra, uma
vida digna, esta a nossa tarefa. Sem esta política o Brasil marca passos na
miséria (GARCIA, 1966, p. 110-111).
48

Ocorre que o governo é astuto e sábio, sabe enganar o povo e iludi-los, ao ponto de os
moradores da vila, vindos do campo, se sentirem satisfeitos com as respostas obtidas. Mas
não por muito tempo. Logo viram que estavam sendo enganados e passaram a lutar
novamente por seus direitos. O que está implícito nessas linhas que vão além do conflito povo
X governo são as relações de dominação entre capital e trabalho, de que o governo é mero
agente.
Mais uma vez percebemos o entremeado de dados contextualizados historicamente no
romance. Citações políticas e sociais desempenham o papel de dar uma verossimilhança aos
fatos em que o autor discorre sobre as lutas incansáveis dos meeiros com os fazendeiros, até
conseguirem colher o arroz que haviam plantado, obtendo para eles 80% de arrendamento.
Nesse sentido, após a conquista realizada, os fazendeiros acuados ou mesmo por
desleixo, não voltam às lavouras para colher sua parte na plantação, ficando toda a roça de
arroz para o desfrute dos pássaros. Aqui aparece a presença marcante, que Godoy sempre traz
em sua poética, das águas, dos ventos, das chuvas, do sol e tudo o que está ligado à natureza.

Assim chegaram ao fim da limpa, em tôdas as palhadas. O fazendeiro não


apareceu. Era esperar as chuvas para os novos plantios. As chuvas sempre
vinham. Mesmo retardadas, mas vinham. A semente era jogada na terra.
Sentiam-se fortes, como a árvore farta das regras da chuva, as velhas árvores
de cedro, vigorosas (GARCIA, 1966, p. 162).

Aqui, enfatizando o caráter político da narrativa demonstramos o discurso


revolucionário imposto através das causas que levaram os moradores de São Domingos a
lutarem por seus direitos. O autor cria uma ideologia ao apontar os motivos da revolução –
quando o povo descobre que está sendo trapaceado pelo governo – e mostra soluções contra o
capitalismo quando aponta o socialismo como meio para fugir da subordinação política. Ele
mostra que o capitalismo não parece vir resolver as questões sociais e revela que o socialismo
tem que vir e se mostrar na nova ordem social.
No que diz respeito às características de um romance histórico, abordaremos esse
conceito na perspectiva de Vera Follain de Figueiredo, que bebeu nas águas de G. Lukács, o
grande teórico do romance histórico, para quem esse gênero nasceu de uma vez e por inteiro
com a obra de Walter Scott. Para a estudiosa, esse tipo de romance passou por um período de
esquecimento, mas voltou a ser abordado recentemente, sofrendo assim, algumas
transformações. Para que possamos definir esse conceito, apreciemos a idéia da autora:

O romance histórico surge, no século passado, numa atmosfera em que uma


série de transformações sociais, políticas e econômicas, ocorridas na Europa,
49

fazem com que o homem comum, as massas populares se sintam num


processo ininterrupto de mudanças com conseqüências diretas sobre a vida
de cada indivíduo (FIGUEIREDO, 2011, p.1).

Nessa perspectiva, em oposição à ideologia do senso comum que se contenta em achar


que o romance histórico é aquele norteado apenas pelos fatos históricos em si, colocamos que
a definição vai além dessa fronteira. Na verdade, o romance histórico associa sentimento
nacional e legitimação universal, além de aliar-se às questões culturais e de ordem sócio-
político-econômicas. Nesse sentido, o escritor busca, principalmente na história, o passado,
como uma fonte de inspiração, visto que ele pode entender o que ocorreu, para então dar
seguimento à sua narrativa. Em conformidade com a teoria de Lukács, o romance transforma
algum aspecto da vida passada, com a finalidade de apresentar uma realidade social e cultural
mais abrangente, em função do mundo ficcional. Assim, o romance histórico é capaz de
recriar a particularidade histórica de uma época através da ficção.
Verificamos por ora o percurso seguido por José Godoy Garcia e encontramos em sua
escrita essas características do romance histórico, como proposto pelos desenvolvimentos
teóricos de Figueiredo. N‘O Caminho de Trombas percebemos o aspecto histórico (década de
1960 – revolução agrária em Goiás); econômico (questão o arrendamento de terras) e político
(ditadura militar), enfim, a obra é permeada por todos os elementos constituintes deste tipo de
romance, também denominado ―romance de resistência‖.
Acresce afirmar o pensamento de Vera Follain numa abordagem mais recente sobre a
teoria de Renato Ortiz, ressaltando que o romance histórico brasileiro foi levado a ―trabalhar
mais com o esquecimento do que com a memória‖ (1994, p.139) para, a partir daí confirmar
as lembranças determinadas pelo escritor e apagar os indícios daquelas menos almejadas.
Em relação à obra de José Godoy Garcia confirma a tese, posto que, partindo de sua
experiência e memória individual, o romancista seleciona os episódios temporais para tecer a
ficção narrativa, relativizando a visão de história.
Em seu texto, Figueiredo aborda vários tipos de romance histórico, entre eles, o
hispano-americano - tomado também como ―romance de resistência‖ e caracterizado por
várias abordagens (Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Carlos
Fuentes e outros); o novo e com características diferentes da apresentada inicialmente
(Antônio Callado, Érico Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro J.J. Veiga, Márcio Souza, Ana
Miranda, José Roberto Torero, Rubem Fonseca) e o pós-moderno, que usa a história apenas
como um pretexto, intentando, na verdade, fazer rir ou lucrar com vendas (José Roberto
Torero).
50

Vale conferir que a vida de José Godoy Garcia nos mostra como o engajamento
político e ideológico influenciou na tessitura de seu romance. Ele lançou mão da ficção para
idealizar um ato revolucionário. A narrativa de José Godoy Garcia carrega um peso maior no
sentido de ser uma obra de denúncia, vindo a ter um engajamento explícito.
Ademais, existe uma proximidade entre a literatura de Godoy Garcia e a sua atuação
política. Sua vida, bem como o romance aqui analisado, contribuiu com a luta pelo
enaltecimento da revolução, da qual ele participou. Dessa maneira, cabe ressaltar o valor
dessa revolução político-agrária na produção dessa obra literária, especificamente, ou apenas
ponderando o papel do escritor goiano engajado em um contexto revolucionário.
Lembramos ainda que a revolução de Trombas e Formoso foi coordenada pelo Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e faz parte da história das lutas populares em Goiás, em meio a
qual José Godoy Garcia figurou como um de seus protagonistas.
Embora a literatura produzida por Godoy Garcia tenha uma relação com a abordagem
política e sociológica, também não podemos esquecer-nos de seu vínculo com o Ser humano.
É através da ficção que o autor mostra sua leitura de mundo e pondera seu ponto de vista
acerca da sociedade, assinalando os aspectos positivos e/ou negativos.
Desse modo, o escritor confere ao narrador a responsabilidade de apresentar a
sociedade ou grupo ao qual ele pertence. Explica-se: é através da voz do narrador que o autor
deixa transparecer seu ponto de vista sobre o assunto abordado. Contudo, não há meios de
desligar a literatura da relação existente entre escritor e contexto, de maneira que se pode
empregar a obra literária como veículo de iluminação, para que o leitor perceba as injustiças e
abusos, sob os quais ele está sujeito.
É sugestivo ainda observar que, tecendo sobre La consagración de la primavera, de
Alejo Carpentier, Eduardo José Tollendal (1997) evidencia que esta é uma narrativa
revolucionária e, portanto, denunciativa. Em sua análise Tollendal menciona que ―os fatos
narrados são relacionados à história de uma sociedade e à sua história no contexto universal‖
e, dando seguimento ao pensamento crítico diz que ―trata-se do momento de afirmação de
uma sociedade que vê seu fazer histórico destacar-se aos olhos do mundo como referência
para utopia das transformações sociais‖ (TOLLENDAL, 1997, p.235).
Diante dessa assertiva, notamos que o romance de José Godoy Garcia é pautado pelas
mesmas definições aqui expostas, ou seja, é moldado nas diretrizes do romance
revolucionário, porque é constituído pela narração de episódios ocorridos durante certo
período da ditadura militar, em Goiás.
51

Um romance revolucionário é aquele que vai além dos horizontes de contexto


histórico, ele se desenvolve junto à massa social, define suas indecisões e anseios e, acima de
tudo, evidencia a vida dos párias da sociedade. É um romance que tematiza a vida dos
miseráveis. Homens simples, mas que se vêem diante das situações mais degradantes e
infelizes, como é o caso de uma das personagens d’O Caminho de Trombas. Miguelão, por
exemplo, se viu humilhado após ajudar o governo, quando denunciou à polícia seus vizinhos
que construíam casas na vila do Matadouro. Ele percebeu depois que os políticos não o
ajudariam no que precisava e só queriam aproveitar de sua ambição, enquanto aspirava um
cargo público.
Não tendo mais interesse em ―seus serviços‖, os fiscais desapareceram, deixando-o
sem amparo algum. Sua antiga cobiça deu lugar a um sentimento vazio e ―Miguelão se
amoitou no seu rancho. A esperança de emprêgo se foi e as bóias, sem que a mulher soubesse
por quê, eram recebidas sem exigências‖ (GARCIA, 1966, p.103).
Para definir o conceito do termo romance revolucionário Tollendal faz uso das
palavras de Carpentier, nomeando o romance como ―aquele em que se narram ‗las hazañas
militares extraordinarias de un superhéroe apoyado por un grupo relativamente pequeno de
amigo leales, en un período histórico de gran significacíon nacional‘‖ (TOLLENDAL, 1997,
p.235).
Valendo-se de todos os subsídios aqui expostos, verificamos que esta obra retrata as
inquietações do autor mediante os acontecimentos sociais e definem a proposta temática da
estilística godoyana, ratificando sua inquietude diante dos acontecimentos que envolvem o ser
humano, enquanto ser revolucionário.
Diante desses fatos, José Godoy Garcia cria esse romance histórico, que apresenta o
popular, a partir de uma memória individual, uma história revolucionária. Tanto na estrutura
quanto na estética. Estruturalmente, porque não há um seguimento linear e, apesar de o tempo
ser cronológico, as histórias de cada personagem podem ser narradas individualmente.
Esteticamente, a obra se mostra revolucionária porque vimos seu engajamento tornando a
história em um romance dinâmico, produtivo e bem organizado, para uma publicação na
década de 1960.
Para um autor que veio de Goiás e publicou um romance desse teor em 1966, pela
Civilização Brasileira, havemos de concordar que Godoy Garcia estava bem sintonizado com
a literatura nacional e até mesmo latino-americana. Nesse contexto, evidenciamos um autor
atualizado e não anacrônico, como o havíamos pensado, no início da pesquisa.
52

Há ainda, em Caminhos de Trombas uma forte ligação entre o homem e a natureza, é


uma harmonia que conduz toda a obra e se estende de capítulo em capítulo. Não apenas no
romance, mas em toda poética de José Godoy Garcia, evidencia-se tal conteúdo. A narrativa
mostra a beleza e a essência da natureza ao mesmo tempo em que destaca os valores moral e
social. O narrador retrata a realidade a partir do lírico, da poesia e mostra nas personagens
traços e atitudes cotidianas para revelar a essência da sobrevivência e da civilização daquele
povo. Essas personagens são exemplo de conduta, que o autor procurou mostrar para
evidenciar a união e a vontade de vencer de um grupo social que juntos lutavam por um
mesmo objetivo. Serem libertos dos limites sócio-político-econômicos impostos a eles.
Esse é o único romance de José Godoy Garcia e, como já vimos, ele carrega um teor
social, político e humanitário muito grande. Assim, faz-se toda obra literária de José Godoy
Garcia, em geral buscando mostrar ao leitor o magnetismo existente entre o homem e a
natureza, entremeado pela ação da cultura, conhecimentos populares e um toque subjetivo.
Existem ainda outros tantos aspectos que se fazem notar no romance, mas que não
dedicaremos maiores leituras sobre os mesmos por questões de limitação no estudo realizado.
No entanto, pesquisas posteriores podem se comprometer a avaliar com mais afinco tais
elementos.
53

CAPÍTULO 3

FLORISMUNDO PERIQUITO: A ARTE DO CONTO GODOYANO

O livro de contos de José Godoy Garcia, intitulado Florismundo Periquito, cumpre a


função de consolidar a carreira do autor como prosador. Uma obra peculiar representando os
sertões de Goiás, que narra histórias de famílias, nos fazendo lembrar os contos Braz José
Coelho, por se tratar de narrativas que remetem ao tema rural, da natureza e do humano.
Encontramos tais fundamentos históricos nos contos escritos por Braz José Coelho e
publicados em seu livro Os cães e a rede.
O conto pode ser considerado como um gênero literário, de certa forma de arriscada
definição, pois é pautado pela prosa, mas voltado para si mesmo, como em um círculo, nesse
aspecto muito se aproximando da poesia. Sua essência está em reunir, nas palavras de Júlio
Cortázar, a vida e a expressão da vida, através das imagens. Para este autor

Um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e


a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for
permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese
viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor
de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência
(CORTÁZAR, 1993, p.150-151).

Deste modo, o bom autor de um conto deve conseguir realizar esse encontro da melhor
forma, para que a partir daí também o leitor possa ser envolvido nessa áurea artística, uma vez
que o leitor é o elo final do processo criador.
Um conto não deve ser rodeado de fatores que tiram o foco central, que despercebam o
tema. Não é como o romance que se ―dá ao luxo‖ de ter elementos parciais e acumulativos
que contribuem para o desfecho ou clímax da narrativa. Ao contrário, a captura do momento
certo deve acontecer, assim como em uma fotografia, em que o fotógrafo seleciona uma
imagem significativa que desperte no seu espectador a sensibilidade de interpretação.
Assim são os contos de José Godoy Garcia. O autor parece saber quando o leitor é
capaz de seguir com ele, no mesmo ritmo da captação da realidade e escolher um tema para
começar a desvendá-lo. Temas estes que, muitas vezes, giram em torno da revelação da
essência da condição humana.
Essas pequenas narrativas godoyanas merecem atenção por estarem inscritas na ordem
dos contos populares. Antonio Carlos Hohlfeldt (1988, p.14) afirma, nas águas de Câmara
Cascudo, que um conto revela ―informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social.
54

É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos‖.


Assim, a prosa contista de José Godoy Garcia revela esse caráter documental e social através
de um posicionamento do autor, para captar a sensibilidade do leitor, definindo, assim, o
caráter estético da obra.
Sendo elaborados de acordo com as características que definem esse gênero, alguns
elementos dos contos que encontramos em Florismundo Periquito podem também ser vistos
na poesia e no romance de José Godoy Garcia. Um exemplo de tal afirmação: encontramos no
conto que dá título ao livro uma relação intertextual com o poema ―O menino que não sabia
morrer‖; o mesmo acontece com outro conto, ―Neco e Joza‖, que é parte do romance O
Caminho de Trombas.
Perfazendo um caminho rápido sobre os contos do livro, de maneira geral, vimos que
são narrativas retratando fatos do cotidiano em cidades pequenas e interioranas, onde a
população vive em decadência social. Ao todo são onze contos que trazem, ao dizer do autor,
―historietas simples, ou simplórias‖, mas que sabemos não ser apenas isso. Carregam um
significado ontológico perceptível a cada página lida.
Faremos agora uma breve sinopse de todos os contos, uma leitura inicial para que o
leitor deste trabalho saiba o que é retratado na obra. Deter-nos-emos um pouco mais no conto
―Florismundo Periquito‖ que dá título ao livro.
―Acontecimento‖ é o primeiro conto dessa publicação relatando, já de imediato, fatos
do cotidiano em uma vila. Um carpinteiro chamado Jerônimo, que todos conhecem, sai pelas
ruas, nu. Para a população do local isso é uma afronta, todos ficam chocados, as mulheres
horrorizadas observam. Uma delas, a doceira que estava ao seu lado, desmaia e é socorrida
pelos outros. ―O ridículo do homem nu pela rua punha tamanho maior em todas as coisas‖
(GARCIA, 1990, p.11), esse é o fragmento que abre o conto e permite seu desenrolar. Aqui, o
clic da fotografia é a inocência do homem que andava nu e da mulher que caminhava ao seu
lado, ou seja, o foco principal do conto, o que o autor capta para passar ao leitor, é a
simplicidade psicológica do ser humano.
―Santa Dica de Goiás‖ tem como tema a religiosidade e a devoção. Benedita é
considerada santa porque não queria que ninguém matasse nem mentisse. Chamava os
espíritos e falava para o povo sobre seu passado, presente e futuro, mas como acontece em
todo lugar, havia os que não gostavam da santa e queriam acabar com sua farsa, até mesmo o
padre e o bispo tramavam contra ela.
No decorrer do conto, a santa se apaixona por um forasteiro (Mário) e o povo começa
a descrer, principalmente os homens que gostavam dela. Agora não havia mais milagres
55

porque a santa não rezava mais, os homens ficaram revoltados, pois Benedita deitou-se com
Mário, tornou-se mulher, já não era mais santa.
Todos os homens queriam dormir com ela, mas ela os rejeitava. Como não rezava
mais, o povo começou a perecer sem água, sem chuva para as plantações e Dica não tinha
mais o poder, ou o ―dom‖ de fazer chover nem pedir chuva, apesar da insistência dela e das
outras devotas. Nesse contexto, percebemos o toque de defesa em prol das mulheres que José
Godoy Garcia sempre carrega em suas obras e também não deixa de lado a questão política e
social, porque a polícia estava cercando o povo de Lagolândia e eles não tinham mais quem os
defendesse, certos estavam do fracasso.
Os anjos não mais os ouviram e os tiros estouraram, muita gente morreu afogada
tentando atravessar o rio. Dica e Mário fugiram, passando por Minas Gerais, retornando a
Goiás e, por fim, seguiram para o Rio de Janeiro, onde viram o fim de seus dias tentando a
sorte no jogo do bicho. Uma ironia e um paradoxo se instalam aqui, uma santa que virou
―bicheira‖ e um forasteiro que se instalou em um lugar, mas não parou de aplicar golpes nas
pessoas.
―A solidão de Santa Brígida‖ é um conto que traz uma forte carga política e social,
pois narra a história de um pobre homem deficiente que foi enganado por políticos em época
de eleição. Salu era um homem que vivia com uma velha cega e uma menina, Maria,
esquecidos à beira de um rio. Ele ia à cidade comprar mantimentos, e sempre ficava triste
nessa ocasião ―porque tem o papo grande e as pessoas o ridicularizavam‖, estava sempre
pensativo. Em uma de suas caminhadas encontrou-se com um político que lhe fez uma
proposta de fazer sua cirurgia para retirada do papo, se ele fosse para a cidade. Salu, ignorante
no assunto, aceitou a proposta, mas descobriu tarde demais que foi enganado. Morreu sem ser
operado e deixou a velha cega e a menina sozinhas no mundo. Os políticos nada sofreram e
continuaram a aplicar golpes no povo.
―A moça Creuzina‖ tem como núcleo a construção de Brasília retratando uma situação
muito chocante e de forte teor social. As máquinas ―engolem‖ as pessoas. Indo para a capital
federal, coincidentemente, com as primeiras máquinas, a moça Creuzina, seu pai e seu irmão
se instalaram nos ranchos das construtoras. No entanto, sua família era ambiciosa e
materialista e ela estava sozinha sem poder contar com ajuda.
A moça se viu cercada por um homem mal encarado e desafiador. Não tendo outra
saída, entregou-se a ele, descobrindo em seu gesto, ao mesmo tempo, o prazer e a mágoa no
que fazia, até que encontrou a felicidade – se é que assim podemos chamar uma vida tão
sofrida – ao lado de um candango. Depois deste acontecimento, foi abandonada pelo parceiro
56

e acabou sendo picada por uma cobra em meio ao matagal. Então, ali, sozinha, abandonada
que foi e sem saber que estava grávida, morreu. No outro dia foi carregada por um trator que
fazia a limpeza do local. Uma felicidade que chega ao fim, quase que antes mesmo de
começar.
―Os retratos‖. Outro conto que permeia a construção de Brasília. Uma família pobre é
acuada a vender suas terras há muito conquistadas pelos seus antepassados para um grupo
empresarial. A condição imposta pelos compradores da propriedade rural, usando o poder do
dinheiro para convencer Casemiro e sua esposa, era que a venda fosse feita de porteira
fechada, não podendo os presentes donos retirar nem mesmo os retratos da parede que têm
valor sentimental.
O casal precisou deixar as terras sem levar nada além das roupas do corpo. Sem outra
saída, pois de um jeito ou de outro, suas terras dariam lugar à construção da nova capital,
saíram Casemiro e sua mulher rumo ao Paraná, apenas com o dinheiro da venda e sem os
retratos de tanta estima. Este conto ―retrata‖ a submissão da classe operária àquela dominante,
uma forma que Godoy Garcia utiliza para denunciar a distância que há entre povo e liderança.
―Justiniano Pamplona‖, também de caráter urbano, já denuncia a ―roubalheira‖ de
dinheiro público desde a construção da nova capital federal. Os próprios operários roubavam
o governo. O fervilhar da construção é a cada dia mais acentuado. Pamplona, temente a Deus,
procurava não dar margens aos erros e pecados, policiava-se e tinha certa resistência ao seu
amigo Alziro que se mostrava muito ambicioso.
Trajava sempre um grande paletó, que representa ao final do conto as contas fantasmas
e cofres falsos do dinheiro que roubava para enriquecer-se à custa do governo. O personagem
Justiniano Pamplona passa a ocupar-se do desvio do dinheiro público e por não ter sido
reconhecida sua idoneidade, decidiu então roubar o Planalto na folha de pagamento,
acrescentando nomes de pessoas que não existiam.
A mulher desconfiava da ação do marido, mas foi obrigada a se calar, amuou-se, o
marido acabou ficando rico, não teve punição, pois sua ação não foi descoberta. Apenas sua
própria consciência o acusava, tinha momentos de loucura, via as almas dos homens que
inventava.
―O velho e o novo‖ narra um acontecimento em uma pequena cidade, onde moças do
circo se insinuam para um velho que ―se viu enrodilhado, os olhos abertos diante daquele
enredo maravilhoso da vida. Ele caiu...‖ (GARCIA, 1990, p.63) e morreu colado ao corpo da
moça. Esta ao perceber que o velho estava morto sentiu-se culpada pensando em como matara
o velho. Era dia de finados. A multidão que passava ali para ir ao cemitério ficou assombrada
57

com o fato. A moça foi apedrejada e morta. Com um ―gesto inesperado‖, o padre ―caminhou
em direção a moça e atirou as flores que levava. As flores espalharam-se.‖ (GARCIA, 1990,
p.65). Como é possível perceber, o conto remete, de certa maneira, à historia bíblica de Maria
Madalena, prostituta que os fariseus queriam morta à pedradas.Nessa historieta, mais uma
vez, Godoy Garcia exalta a mulher rejeitada.
―O dia da Pátria‖ retrata a fidelidade aos amigos e a injúria da polícia. Houve um
incidente na cidade ao se cruzar um cortejo fúnebre com um desfile militar, no dia da Pátria.
A polícia foi desafiadora com um dos soldados que via o corpo de seu irmão no caixão, sendo
levado pelos civis. Ao desobedecer às ordens superiores foi morto a tiros pelo próprio capitão.
Não apenas o ―soldado desobediente‖, mas houve também outras vítimas.
Aqui José Godoy Garcia narra fatos que podem ter acontecido realmente, colocando
seu ponto de vista e fazendo crítica à situação da época. O soldado foi mais uma das vítimas
da brutalidade policial que queria demonstrar poder e autoridade sobre os demais militares e
civis, ou seja, reflete a obsessão pelo poder. Este conto é mais uma amostra dos conflitos
políticos e sociais vistos naquele tempo e, por que não dizer, até hoje.
―Bento Terra, o velho e o negro‖ é um conto que revela a paisagem ―parada‖ de uma
cidade abandonada. Um caminhante encontra um velho em uma estação da esquecida cidade
e, durante uma conversa informal, lembra de um negro que fabricava cachaça. Traz um estilo
de recordação, memória individual e coletiva, pois de certa forma, era a memória de toda a
cidade.
Aparentemente apresentando um enredo curto, este conto é complexo como os demais,
pois dentro da temática godoyana ele também manifesta uma preocupação com o ser
ontológico, atribuindo à cidade, que representa o homem, caráter de um tempo esquecido, de
sofrimento e abandono. Já o homem que ―fazia a pinga‖ pode ser interpretado como a parte
que transmitia alguma felicidade, porém esta era passageira, uma vez que o efeito do álcool
no corpo é transitório.
―Florismundo Periquito‖ é um conto que pode também ser caracterizado como uma
novela, assim revela o próprio autor. Fló, como era chamado pelos de sua família, fingia-se de
morto, ou talvez, nem ele mesmo se dava conta disso, ―era um menino que não sabia morrer‖
(GARCIA, 1990, p.75). Saga de uma família grande, constituída por pai, mãe, dez filhos
vivos e seis que já haviam morrido. Um conto que fala da água e da terra, valorizando sempre
o elemento vivo que corre nos rios e fecunda a terra, a água é sempre destaque na narrativa.
Fló vivia em um saco, carregado sempre pelos outros membros da família que, por sua
vez, achavam que ele morreria logo e pensavam que assim seria até melhor. Em toda história,
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percebemos certo questionamento levantado acerca do riso de Fló. Seria seu riso o fio da vida
que não o deixava morrer? Fló era deficiente, limitado em viver sua vida plenamente, mas ele
ouvia, falava e pensava. Sua característica peculiar é o riso contagiante. Um de seus irmãos
sempre dizia que talvez ele nunca morresse porque estava sempre rindo.
Após a morte de alguns membros da família Zé Periquito seguiu caminho com os
outros. Trabalhou em outras terras, e de tempo em tempo via partir seus filhos, morrendo de
um a um, ou ficando para trás como Manoel e Perubina. Nas desventuras do caminho Fló
quase morreu, mas deram-lhe um banho nas águas do rio e suas forças foram revigoradas pela
natureza.
Uma viagem que durou meses, alguns de fartura e outros de miséria, chegou ao fim
com a morte do pai, restando apenas ele e sua irmã Cinira, que logo pereceu e ele ficou
sozinho no mundo.
Esse conto, sendo o mais significativo dentro do livro, vem abordando um tema
bastante peculiar e delicado que contextualiza um paradoxo. Enquanto existe no garoto uma
aparente deficiência física e mental, são as outras personagens que não sabem se comportar
nesse mundo indefinido e cheio de preocupações. A luta pela vida de todos os personagens
desse conto pode ter sido vã, porém o espírito de luta que se acende constantemente em Fló
foi o que lhe garantiu a sobrevivência.
―Florismundo Periquito‖, em relação aos demais contos, se sobressai por mesclar em
sua tessitura todos os elementos abordados na temática geral da poética godoyana. Nele
encontramos a relação do homem com a natureza e o social, o campo e a cidade. É uma
narrativa que, segundo Salomão Sousa (2009) ―reafirma a humanidade, salva a dignidade do
ser humano‖.
Um poema do mesmo autor que se faz destacar por estar contextualizado com esse
conto intitula-se ―O menino que não sabia morrer‖. O poema faz parte do livro Os Morcegos
(1987) e foi publicado antes do livro de contos. Assim, podemos notar que ele é uma espécie
de prólogo do conto ―Florismundo Periquito‖. O poema é um resumo da novela, o que nos
leva a pensar que mesmo não sendo a intenção do autor, há uma forte intertextualidade entre
os mesmos.
Enquanto todas as outras pessoas, aparentemente sadias, estavam preocupadas com as
saúde do menino doente, ele assistia à morte de todos. Não se preocupava com nada, apenas
sonhava, pensava no futuro e gostava de rir. Esse era o seu remédio, o riso. Tanto no poema,
quanto no conto.
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Os elementos encontrados no conto e no poema facultam uma gama de possibilidades


de análises e leituras comentadas. Entre eles, os que mais se destacam é a presença do riso,
fonte de vida do garoto; os sonhos e pensamentos, que o faziam viajar; além da pureza da
terra e da água encontradas no conto.
Enfim, a obra em prosa de José Godoy Garcia está bem próxima à poética, pois o
grande tema da escrita godoyana é relacionar o Ser humano às diversas vertentes, como a
social e a política. Há, principalmente na prosa, uma guerra declarada entre as classes sociais,
na maioria das vezes representada pela dicotomia: governo e povo.
Suas técnicas de narrativa e linguagem simples ao relatar os fatos históricos, conferem
à obra um caráter verossímil. Há uma linearidade que conduz o leitor a entrar na narrativa e se
sentir parte da história, tal é a forma com que as palavras são colocadas no texto e maneira
como a leitura flui. As personagens são apresentadas com diálogos, ações, pensamentos,
conflitos regionais e culturais.
Esta breve leitura já nos permite depreender em sua totalidade a essência humanística
que se instala nos contos. Futuramente, contudo, seria necessário um estudo detalhado e
crítico no intuito de apresentar ao mundo acadêmico um estudo mais completo que a obra de
José Godoy Garcia merece.
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CAPÍTULO 4

CRÍTICA DA CRÍTICA - A CRÍTICA REALISTA DE GODOY GARCIA

José Godoy Garcia escreveu e publicou, no ano de 1997, em meio à sua atuação como
escritor, um livro intitulado Aprendiz de Feiticeiro: crítica literária, no qual ele comenta
obras de autores como Bernardo Élis, Machado de Assis, Hugo de Carvalho Ramos, entre
outros. E ainda faz um rápido levantamento sobre o movimento modernista. Segundo o autor,
o título do livro dispensa explicação.
Visto que o meio crítico é entremeado de apontamentos que ora saúdam, ora reprovam
os autores e suas obras, e não apresentam uma linha a ser seguida, podendo ser inconstante
sem ser desmerecida, podemos entrever que há fundamento para a não explicação do título
dessa obra.
O autor é apenas mais um aprendiz, sujeito também às críticas, uma vez que é escritor
de textos literários. Para ele, a crítica é como um processo de conhecimento, por meio do qual
traz uma significativa contribuição para o desenvolvimento da obra. Godoy ainda ressalta a
representativa contribuição de alguns críticos em sua escrita.
Podemos verificar, ao ler essa obra de José Godoy Garcia, que o mesmo é bastante
incisivo e determinado ao defender suas idéias sobre cada assunto que propõe abordar. Na
introdução de sua obra Godoy diz que

Escrevia artigos, dava entrevistas; os artigos eram sempre sobre literatura,


certos aspectos da vida social de Goiás, sobre as obras de nossos escritores
(...), e me mostrava mais agressivo, em dados momentos, ridicularizava as
academias, de homens e de mulheres, esses pandas que se abriam
acanalhadamente aos ditadores fardados (GARCIA, 1997, p. 08).

No entanto, ao ser questionado sobre o assunto, como um autor que seguiu ―trilhas
tortuosas‖ ao fazer crítica literária, ele defende seu ponto de vista e diz achar o ―adjetivo
preconceituoso‖, pois nunca um livro de crítica é tortuoso, embora, no Brasil, exista uma elite
que sempre olha com suspeição esse tipo de livro. Sua crítica é apresentada como instrumento
criador, que apenas levanta idéias e problemas (FAYAD, 2009, p.4).
No caminho percorrido por Godoy Garcia para sua análise literária ele toma sua
posição de crítico e se distancia ao máximo do escritor. Enfatiza temas que ele vê
desnecessários nas obras de escritores como Machado de Assis, Domingos Carvalho Silva,
além de alguns escritores goianos, seus amigos até, mas que ele não se deixa levar pela
admiração pessoal. É, na verdade, uma questão de estilo literário, pois o que ele condena é
61

tomar partido de um movimento literário apenas para publicar uma obra e não fazer jus à
filosofia empregada pelo movimento. É nesse sentido que o autor questiona o posicionamento
dos demais escritores, uma vez que, muitos querem apenas fazer a arte pela arte.
Godoy Garcia intenciona nessa sua caminhada ―chamar a atenção sobre filosofias
estéticas‖, é isso o que ele faz ao analisar as obras de Machado de Assis e Hugo de Carvalho
Ramos. Partimos do pressuposto que as filosofias estéticas, nessa obra, são vistas enquanto
movimento literário, a saber: o romantismo de Machado de Assis e o realismo/naturalismo de
Ramos. Para tanto, o autor se aliou, em Goiás, a um grupo de pensadores que realizavam
críticas de fundamentos filosóficos marxistas, ou seja, permeou ―o meio turvo e
inconsubstancial das letras universitárias e desses velhíssimos e sempre novos-ricos analistas
e estruturalistas, das letras turvas‖ (GARCIA, 1997, p.10).
O leitor verá que a obra foi criada visando alcançar valores humanos, tocar, em
profundidade o homem e não apenas ao bel prazer da escrita, para usar uma linguagem
qualquer, não será arte pela arte. As questionadoras opiniões de Godoy Garcia vêm nesse tom:

Não é próprio da arte literária uma exploração da linguagem e dos percalços


pitorescos, gratuitos, absurdos ou sociológicos do meio. A criação de tipos
correspondentes ao conflito real é a mais fiel representação da verdade
ficcional. Esta verdade é sempre a representação da totalidade em que se
apresenta a vida em seu mundo recriado. As grandiosas e significativas obras
literárias da humanidade não são representadas por sua linguagem
isoladamente; esta se perde no tempo, mas os conflitos e a criação dos
grandes tipos humanos, estes significam isoladamente a obra artística e
singular. [...] a linguagem não é buscada em si mesma na imanência absurda
de um estilo e dos volteios dos sintagmas e das camadas fônicas. A vida não
é pitoresca, nem casuística, nem exibe uma essência gráfica, lingüística. A
arte, para ser o reflexo dela e uma elaboração do espírito, há de alcançar a
forma, sim, artística, e essa forma poderá ser a expressão do grotesco, do
dramático, do lírico, do épico, seja numa escultura, seja na música, na ficção
(GARCIA, 1997, p.13-14).

Em Aprendiz de Feiticeiro (1997), Godoy Garcia adota um posicionamento crítico que


vai ao encontro das idéias de Lukács, localizadas em Ensaios sobre literatura (1965),
especificamente no texto ―Narrar ou descrever?‖, quando ele fala do real histórico e do
particular e se coloca contra o experimentalismo e a arte pela arte.
Logo em seguida, no mesmo capítulo que analisa ―O Realismo como transfiguração
essencial na obra de Hugo de Carvalho Ramos‖, Godoy Garcia (1997, p.14) faz crítica ao
naturalismo, uma vez que esse não valoriza o homem, na sua essência, mas mostra-o como
uma figura sem forma.
62

Além disso, para ele o naturalismo ―fazia uma cópia servil da realidade‖ e distorcia as
idéias ao descrever paisagens e pessoas, e ainda usava uma linguagem destituída de
sonoridade ―propensa às verdades científicas e aos retratos‖. Isto é, na posição que o autor
toma nesse contexto, o naturalismo não foi uma fonte maior de inspiração para aqueles
adeptos à idéia de transcrever, em uma obra literária, fatos que tomam um caminho mais
humanista.
Ao fazer suas considerações sobre a obra de Hugo de Carvalho Ramos, Godoy Garcia
ressalta que este nunca foi um regionalista, porque a posição que o autor tem do regionalismo
é que ele vem a ser uma variante do naturalismo, o qual ele repudia. Em consonância com o
crítico, podemos verificar que existem alguns autores que distorcem o significado desse termo
e ele é visto de forma muito exaltada nacionalmente, opondo-se ao estrangeirismo. E mesmo
aqueles que se dizem progressistas se deixam levar por essa onda de encarar

o regionalismo como um caminho de verdadeiro caminho nacional, onde a


verdadeira cultura nativa se contrapõe ao estrangeirismo, este quase sempre
daninho e influente em nossa formação e criações várias. O único registro de
novidade deste regionalismo era o da linguagem caipira; este mesmo
linguajar, que as negreiras caravelas acadêmicas de Portugal e do Brasil não
consentem para o desenvolvimento de uma sintaxe brasileira. Questão não
literária (GARCIA, 1997, p.16).

O meio e a linguagem são questões ligadas ao regionalismo. Ao menos é o que


evidencia José Godoy Garcia ao levantar essa questão, confirmando através das palavras de
Bernardo Élis, o que diz Fritz Teixeira de Salles ao elencar que ―‗O regionalismo representa
uma forma literária no Brasil tradicional, não urbanizado, refletindo uma sociedade não
industrializada‘‖ (GARCIA, apud. SALLES, 1997, p.16).
Em contrapartida com o meio social urbano usando como referencial a linguagem do
código comum, ―o regionalismo representa uma forma literária do Brasil tradicional, não
urbanizado, refletindo uma sociedade não industrializada‖ e que está fundamentada na
particularidade dialetal do contexto que faz uso de uma linguagem singular-rural.
Apesar de sabermos da diferença entre os conceitos de língua e linguagem, que essa é
a realização daquela, Godoy Garcia parece não as distinguir e sempre que fala em uma e outra
é no mesmo sentido. Sempre está ligado ao fato de ser a expressão pela qual o autor expõe sua
opinião, por meio de palavras, sendo assim, especificamente ele se refere à linguagem verbal.
Ele não se preocupa com o conceito, mas com a prática.
O crítico goiano discorda da posição dos autores mencionados de que a linguagem
utilizada na ficção urbana ou naquela ―não industrializada‖ seja diferente por influência do
63

meio. Tudo estaria certo, se a diferença fosse localizada apenas no enfoque ficcional, mas não
na essência do fenômeno, que será avaliado pelos analistas do estilo e da linguagem.
Dessa forma, fica explícita a intenção do autor em colocar o meio e a linguagem em
segundo plano, quando se dá a criação de uma obra, e trazer à luz a capacidade de recriar a
trama envolvendo o homem (rural ou urbano) na sociedade.
Para ele ―a língua e o meio não influem nas exigências de uma obra ficcional realista.
Ainda aqui a temática, rural ou urbana, pode não alcançar substancialmente a forma, esta que
só um realismo autêntico, assim em sua profundidade poderá decidir‖ (p.17). Conclui-se que
José Godoy Garcia, ao fazer uma análise crítica volta, sua atenção também para o homem, em
sua essência, e não observa apenas a forma, a linguagem e o meio em que são produzidas as
obras.
Tanto que, ao abordar a obra ficcional Tropas e Boiadas de Carvalho Ramos, ressalta
que depois de setenta e três anos de publicação ainda não houve alguém com maior interesse
por discutir no aspecto crítico-analítico, essa obra com foco na essência humana, na totalidade
da obra. Apenas houve quem discutisse questões estilísticas, de regionalismo, linguagem e
―documentarismo‖. O autor então protesta que não houve quem se voltasse para o

envolvimento dramático das ações e personagens, os atos exacerbados de


ódio e domínio do Coronel, os enlevos apaixonados de uma moça, as
condições de vida sob o guante de um verdadeiro regime escravocrata, toda a
marca de uma realidade que foi apanhada viva na totalidade, nada disso
interessou aos espíritos desavisados dos estudiosos, sempre atentos ao estilo
do narrador (Ibidem. p.17).

Aqui temos a preocupação visível de Godoy Garcia com os seres humanos, com a
condição humana, seu engajamento na defesa do proletariado, almejando abrir um espaço
para que a voz do povo pudesse ser ouvida. Ele se preocupa com o real, com o fator interno da
ficção, e toma partido do personagem central da obra de H.C.R., Benedito dos Dourados, que
foi um herói e mártir.
Dando continuidade à análise crítica, Godoy Garcia faz um rápido preâmbulo da
novela de H.C.R. Gente da Gleba. Na análise, a linguagem é o primeiro tema abordado. Ele a
caracteriza como límpida e clássica, continua defendendo sua posição contra o naturalismo e
louva o estilo hugeano de enredar o ser humano à trama, fazendo entender que o autor da obra
ficcional ―não só viu, mas analisou e compreendeu‖ o homem.
Após um breve resumo da obra, iniciando pelo ponto nodal e fazendo suas
especulações, José Godoy Garcia fala do tempo da narrativa e da narração em si, dividindo a
trama em duas partes essenciais. O autor ainda contextualiza a história da novela com os fatos
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vividos na época, explica a questão do Coronelismo e aborda a relação patrão versus


empregado tomando como exemplo a convivência do Coronel e Benedito dos Dourados, que
caracteriza uma valoração do ―homem-empregado‖ frente ao ―homem-patrão‖.
Sendo essa uma das questões que Godoy Garcia trabalha e defende em sua própria
obra literária, podemos apontar o livro de contos Florismundo Periquito para ressaltar que ele
também exalta em sua narrativa a nobreza do homem pobre que foi desterrado, a
determinação do pai de família que de tudo lança mão para conquistar seu espaço social, a
humildade da mulher que é caluniada por se envolver em adultério e prostituição. Isto é, ele
deixa transparecer em sua crítica aquilo que também lança mão em sua escrita.
Particularmente, nessa obra de H.C.R. a intenção do escritor, ao valorizar o homem, é

criar uma figura de herói e mártir, e de pôr à mostra e de fixar o momento de


declínio do poderio escravocrata. A novela é uma saga trágica da vida dos
trabalhadores nas fazendas de Goiás e do Brasil dos fins do século passado e
começo do nosso século XX (GARCIA, 1997, p.23).

Nesse sentido, observa-se que há uma característica de moderno no pensamento de


Godoy Garcia e na construção literária de H.C.R., pois o personagem central da narrativa é
um anti-herói. Já não é mais um Ulysses ou um Odisseu que enfrenta toda e qualquer
peripécia para regressar triunfante ao seu lar e assumir novamente seu posto de herói. Ao
contrário, Benedito dos Dourados é traído, capturado, preso e morto pelos jagunços do
Coronel que, diga-se de passagem, não teve a decência de realizar, ele mesmo, a façanha.
O termo moderno aqui utilizado é no sentido que coloca Compagnon (1996), de
assinalar o que é presente, atual e contemporâneo do que se fala e não apenas o novo. Não se
está falando do velho, do passado retrógrado, mas trata-se da modernidade no sentido do
presente, usado pelo escritor apresentando um matiz moderno.
E o heroísmo do empregado, de ser um mártir, só é reconhecido por aqueles que
lutavam pela ―cidadania e buscavam um movimento histórico de conquistas de direitos
elementares‖ (GARCIA, 1997, p.22). Godoy Garcia fundamenta-se nas teorias de George
Lukács para explicar o realismo que, segundo ele, é o que entrava em conflito com o
naturalismo nessa espada cortante da ficção, naquela época. Transcrevendo a citação:

É uma tendência que consiste nos registros das técnicas expressivas etc., mas
numa intenção voltada para a essência humana real e substancial, que é
conservada no processo histórico. A essa essência está relacionado o
problema do realismo, entendido ‗realismo‘ não como conceito ‗estilístico‘,
mas como arte de qualquer época; e, o que é essencial, como arte que liga os
problemas do tempo ao desenvolvimento da humanidade, relacionando-as
assim indissoluvelmente (LUKÁCS, 1969, apud GARCIA, 1997, p. 23).
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Nesse sentido, tal conflito pode ser explicado como uma antítese da estética porque o
realismo nesse contexto configura-se como arte de qualquer época, é um realismo ontológico
e que evidencia destacar fatos empíricos. Esse realismo não é visto aqui enquanto escola
literária e o naturalismo está no registro da história voltada para o homem.
José Godoy Garcia levanta questionamentos que ora elogiam e ora condenam o
naturalismo. O que observa ele, em geral, é que uma obra precisa ser estudada dentro de um
contexto literário e não em um mundo à parte, mutilado. Isto é, a obra se naturalista, deve ser
vista em todos os ângulos dessa definição, com os elementos favoráveis e os contrários. Nesse
caso, investigando a história do homem.
Outra questão ponderada por Godoy Garcia diz respeito ao traço humanístico da
escrita: a relação entre a linguagem e a escrita. Não aquela linguagem que conduz à forma,
sempre ponderada ao ser analisada pelo leitor que observa sintática, estética e estruturalmente
a obra. Mas a linguagem que conduz e busca o ―núcleo‖ humanístico, aquela que é vista pelo
leitor que procura refletir e analisar semanticamente sobre questões interiores, questões
ontológicas.
É importante ressaltar que José Godoy Garcia sempre volta ao posicionamento de
defesa do autor (Hugo de Carvalho Ramos) apenas como um ficcionista e não o rotula como
regionalista ou documentarista, por mais que essas obras estejam impregnadas de fatos reais e
históricos, por mais que ele defenda as pormenorizadas descrições de Hugo em sua novela.
Para não deixar seu autor desamparado ele reitera que ―o grande mestre de Hugo foi
Balzac. O escritor goiano pegou a trilha certa, suas raízes estão na terra e na tradição da
novela clássica. Estas raízes que encontramos na obra de Hugo dominaram não servilmente
sua mente criadora‖ (GARCIA, 1997, p.28) e garante que o autor está bem amparado no
escritor europeu, visto que este não descreve lugares aleatoriamente, mas sim, conforme ele
cita Lukács, ―cria o ambiente indispensável ao desenvolvimento da catástrofe‖ (LUKÁCS,
1965 apud GARCIA, 1997, p.29).
Godoy Garcia faz crítica a alguns autores que escreveram sobre a obra hugeana e não
se intimida ao debater com os mesmos. Nesse ângulo, ele questiona com Proença e Gilberto
Mendonça Teles por denominarem H.C.R. um regionalista e documentarista.
No entanto, revê suas considerações acerca da posição de Teles que se coloca em
outro lugar nesse contexto, quando este utiliza um sentido diferente de ―regionalista‖, de
maneira que respalda Hugo como um ―renovador da prosa regionalista brasileira‖ e ainda
66

exalta o conteúdo lingüístico de sua obra. Fato esse que Godoy Garcia também concorda e
destaca sempre, por isso, não questiona.
Há um posicionamento crítico negativo do autor sobre as considerações feitas pela
professora Darcy França D‘onófrio da obra de H.C.R. em que ela define a novela como uma
―verdadeira obra-prima‖. A crítica vem para alertá-la de que as definições não podem ser
dadas em caráter passional, ou seja, o leitor-crítico não pode ser induzido/seduzido pelas
imagens da luz e das trevas (dicotomia dia/noite), que é o recurso utilizado por H.C.R. em sua
obra, segundo a professora. José Godoy Garcia adverte voltado para a busca da essência
humana e não da forma ou valor conteudístico do texto, porquanto,

não se pode colocar assim o sentido real conclusivo da realização do feito


artístico! A realização foi obra artística verdadeira não por sua técnica; mas
foi obra artística verdadeira por ter alcançado a forma dramática de tamanha
intensidade. Esta forma dramática alcançada, ela o foi não pela técnica e
habilidade na montagem, mas fundamentalmente, pelo conflito básico das
vidas envolvidas no drama (GARCIA, 1997, p.34).

Sobre os personagens na ação ficcional, o autor revela que não os pode perder de
vista, já que a técnica é sempre dependente do conflito básico e da forma, no sentido de que
não se cria obra de arte apenas com a técnica, mas é também necessário subordinar o conflito
básico, ao envolvimento das figuras na ação.
É nessa direção que o autor encontra uma deixa para fazer sua crítica àqueles que
primam pela técnica e estrutura do texto, uma vez que, para ele, não basta ―que sejamos, um
‗hábil montador‘‖ para se obter uma obra literária de valor. Nessa perspectiva, Godoy Garcia
coloca que ―os estruturalistas, os liberais, os lingüistas, os estilísticos, estão por fora,
consciente ou inconscientemente, do que vem a ser uma obra de arte‖ (GARCIA, 1997, p.34).
O estudo crítico de Aprendiz de Feiticeiro, sob o olhar do realismo na obra de H.C.R.,
se fecha retomando e enfatizando a questão humanista, isto é, reafirmando a ligação entre o
homem e a linguagem, em que o autor se posiciona alegando que na obra em questão não foi
utilizada a linguagem pela linguagem, ou apenas exibiram-se técnicas arbitrárias. Logo, elogia
H.C.R. ao falar que sua obra unifica a riqueza da literatura brasileira por recriar um ‗mundo
próprio‘ que chama atenção para uma realidade do momento histórico vivido.
Nesse contexto, ele introduz também sua idéia do que vem a ser a arte literária
enquanto exercício da escrita, que não deve estar presa somente à linguagem porque se perde
no tempo. José Godoy ressalta que, verdadeiramente, deve-se ter a criação da obra pautada
nos valores humanos, no homem.
67

É nesse sentido que percebemos o porquê do autor não ter se rendido a nenhuma
escola ou movimento literário específico, ele não se submetia às regras impostas, produzia
como e quando lhe era conveniente. Assim, mesmo quando escrevia no período do
experimentalismo, o criticava.
Dessa maneira, o que ressalta Godoy Garcia é que ao colocar a importância do fato
histórico junto à linguagem no desenrolar de uma obra literária, o autor dá a ela chance de não
se perder no tempo e estar sempre atual, independente do momento. Se a linguagem não está
preocupada com as regras estilísticas e gráficas, ou seja, a estrutura, e sim voltada para a
forma artística, que é a expressão do gênero (lírico, épico ou dramático), então a obra será um
reflexo da vida.
Após essa exposição do artigo crítico de José Godoy Garcia sobre o realismo presente
na obra de Hugo de Carvalho Ramos e tecidas as considerações necessárias, passaremos agora
a observar seu posicionamento referente à obra machadiana, no que diz respeito ao foco
narrativo.

4.1 O foco narrativo visto por Godoy Garcia

Entendemos que o foco narrativo é uma das características mais marcantes no


desenrolar de uma narrativa ao considerarmos que é a partir desse ponto que o leitor terá sua
cota de participação na interpretação do texto. Sabemos também que mesmo uma variedade
de leitores, em cada nova leitura, não poderá dar cabo a essa gama significativa de sentidos
que é o olhar sobre ângulos diferentes em uma obra.
Assim sendo, Godoy Garcia analisa a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis,
colocando-se no lugar de quem olha a narrativa a partir do ponto de vista de Capitu. O autor
enumera várias sugestões que nos norteiam a repensar o olhar sobre tal obra, no que diz
respeito à traição (ou não) da mulher, uma vez que a história é narrada sob o ponto de vista de
Bentinho e não de Capitu. É certo que se a obra fosse escrita enfocando a visão da mulher,
teríamos uma narrativa distinta da que encontramos.
Como na análise anterior, Jose Godoy faz um rápido resumo da obra,
contextualizando-a com os costumes da época. Fala um pouco sobre cada personagem, dando
ênfase aos centrais e passando também pelos secundários.
Logo o crítico sai em defesa de seu ponto de vista, ressaltando que ―decididamente o
romance quer ser o romance de Bento Santiago. [...] Mas a história da mulher Capitu, da
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cidadã, que não foi explicitamente contada, nem Capitu teve vez para se narrar, é a verdadeira
história do romance Dom Casmurro‖ (GARCIA, 1997, p.40-42).
E é a partir desse ponto, também, que surge a discussão em torno da mudança da
classe social de Capitolina (passa da classe média para a classe alta). Se à Capitu não foi dada
a chance de se pronunciar dentro do romance, ao menos ela soube manobrar-se firmemente
nessa ascensão e tomar um lugar favorecido socialmente, diga-se de passagem, superior ao
que vivia anteriormente. Margeando a perspectiva de Godoy Garcia, ―essa luta de Capitu
corresponde a um processo típico de obedecer a determinações vivas de um jogo de interesse
que é da essência vital da sociedade‖ (Ibidem, p. 43). Ela quis ―vencer na vida‖ e para o autor
tal atitude não é condenável, pronunciando que esse era mesmo o caminho mais correto a
seguir, posto que isso é ―uma norma, até de caráter ético, da sociedade‖ (GARCIA, 1997,
p.43). Nesta ocasião temos um posicionamento que defende o lado desfavorecido da
sociedade, tal como nos contos e poesias godoyanos, tomando os párias como seus
protegidos.
Mais uma vez enfatizando o desejo de ter Capitu como o centro do romance, física e
psicologicamente, humanamente completa, o autor diz que haveria até mesmo de mudar o
título do livro. Porém, sua intenção não é de alterar a estrutura da obra, nem seu título, Godoy
explica que:

Dom Casmurro é, neste ponto, o romance de Capitu; e haver-se-ia até de


mudar o título do livro. Dirá o meu querido leitor: Mas estás querendo
modificar a substância da referida obra e até o seu título? Não é bem assim.
Estou tratando de problemas leais ao entrecho, ainda que não tenham sido
esclarecidos no mesmo e que ficam em suspenso; só estou pensando em
mudar o ângulo, e seguir a narração não do ponto de vista dos interesses e do
condicionamento psicológico de Bento (GARCIA, 1997, p.44).

Então, se a história fosse narrada por Capitu, teríamos a mesma impressão psicológica
de Bentinho? Concordaríamos com ele em relação ao adultério? É provável que não e
haveríamos de reavaliar nossas conclusões. Ou não! Pois aí saberíamos se houve realmente o
fator extraconjugal e tomaríamos partido, dessa vez com certeza, de Capitu ou Bentinho. Mas
esse não seria um romance machadiano.
A próxima crítica godoyana diz respeito à ação do livro que, segundo ele, é destituído
dessa energia vital, ou se há, só se inicia no capítulo XIII, até então existem apenas descrições
das personalidades dos personagens. Godoy Garcia não concorda com o modelo escolhido por
Machado de Assis ao escrever a obra e alfineta-o ponderando que não basta que o romance
seja de cunho estilístico e
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carregue uma trama que, se magistralmente ambígua, é escamoteada no seu


corpo, como um possível herói numa batalha que morre de dor de barriga,
frustra-se o épico, o trágico, colocando no centro e substância da obra a
infidelidade, arranjada por um Otelo solitário e senhor de uma escravocracia
em ruínas. Quer firmar-se como uma traição à infância (GARCIA, 1997,
p.45).

Quando Godoy diz magistralmente ambígua ele deixa transparecer que Machado tem
uma vivacidade estilística ao escrever, mas que só isso não basta, deve haver também
acontecimentos que transmitem a energia vital da ação.
Assim, o autor coloca a ação como o centro da narrativa, evidenciando que tudo que
acontece deve ser ladeado de atos, fatos relevantes e ligados efetivamente ao homem.
Voltamos então a falar da relação entre a arte e o homem, mas com ação e não apenas
situações triviais. Para José Godoy Garcia, nem mesmo os fatores psicológicos alteram a
validade da obra se esta for desprovida de ação. E ele diz que a obra machadiana é em tudo
desprovida de dinamicidade, assemelhando-se a uma crônica.
E sua maior crítica vem ao considerar o romance quase como uma crônica, por dizer
que não há nele ação. Dessa feita, podemos discutir o ponto de vista de Godoy Garcia sobre
Dom Casmurro em que ele, ora eleva a obra a um patamar positivo, quando deixa
transparecer a questão do foco narrativo em si, ponderando que a obra está aberta a
especulações e ora a rebaixa, deixando transparecer que Machado foi ambíguo ao deixar no
final a dúvida, para o leitor desavisado.
Defendendo a posição do sujeito narrador, ou seja, o foco narrativo, Godoy Garcia
(1997, p.46) conclui que este ―é sempre um ângulo que pode desfigurar uma trama ficcional e
desnaturar a intenção e o fôlego realista de uma obra‖. Nesse sentido, a ambiguidade
instaurada na obra machadiana é vista como um ponto a favor do escritor para dar mérito à
narrativa, pois confere ao leitor a possibilidade de concordar ou não com o ângulo escolhido.
E volta à defesa de Capitu quando fala que o crítico Barreto Filho foi levado pelas
elucubrações de Bentinho a acreditar no adultério, somente pelas circunstâncias. Usando seus
conhecimentos sobre a Ciência do Direito, o autor explica que só isso não é o bastante para
julgar o ―crime‖ de Capitu.
Continua a discussão no capítulo quando Barreto Filho coloca que Capitu é ―falsa
como a vida‖ e Godoy Garcia rebate que isso é uma conclusão errônea do crítico que acarreta
um irracionalismo desmedido da ―controvérsia fundada por Machado com respeito ao seu
famoso romance. [...] A condenação a Capitu tem o tamanho dos sentimentos irracionalistas
do crítico‖ (Idem, p.47).
70

Para embasar sua posição, José Godoy busca as raízes iluministas revelando que o
homem nasce bom, depois é que adquire a maldade e é apresentado à sociedade das classes,
sendo levado a se firmar nos valores das tradições das sociedades primitivas. Ele diz que são
equivocadas todas as informações de Filho e entra com a discussão do social porque este
afirma que Machado de Assis irá abolir o social do homem e dar ênfase à essência humana.
O que sabemos não ser possível, uma vez que não podemos deixar de fora os fatores
que norteiam o Ser humano. Não existiria esse sem o social, a cultura, a religião, a ideologia,
todos os fatores externos, que dependem da posição em que se encontra o sujeito para tomar
partido em determinada situação.
Por isso, concordamos com José Godoy Garcia quando ele questiona se alguém pode
eliminar todos esses fatores, para ficar só com o especificamente social. E nesse ponto, ele
examina o que seria esse especificamente humano, separado de todo e qualquer aspecto
exterior, e responde em seguida que o humano não pode ser designadamente um único fator
(humano, cultural ou social),

[...] é e será um humano próprio de cada um, seja humanista, revolucionário


ou um ser comum como qualquer outro plantado no seio da sociedade. Será
ontológico ou revolucionário quando contém em si um especificamente novo
no processo de descoberta e desenvolvimento do homem (GARCIA, 1997,
p.47).

Enfim, após fazer todas as suas críticas aos estudiosos citados que falaram sobre o
romance de Machado de Assis, Godoy Garcia deixa transparecer nitidamente sua posição no
caso. Ele é totalmente a favor de Capitu e patrono de sua causa. É nesse contexto que
encontramos o crítico e o escritor (poeta e prosador) saindo em defesa, mais uma vez, do
social e da escória da sociedade; das classes menos favorecidas, nesse caso, da mulher que é
vista por ele como injustiçada. Esse é o seu ponto de vista, o foco narrativo que defende ao se
posicionar dentro da obra.
O ápice da defesa vem no seguinte momento:

Capitu, no romance, é dado simbólico da luta de um ser humano da classe


média mais baixa para se elevar e para desentulhar-se de uma vida doméstica
e social mais que degradante em todos os sentidos. [...] Nós todos,
brasileiros, temos uma dívida para com essa mulher capaz e, por todos os
títulos, honrada! (Ibidem, p.50).

Sobre o romance em si, Godoy Garcia diz que é uma tragédia frustrada, um drama que
em seu pequeno mundo não se glorifica. O autor então trata esse romance apenas como mais
um livro para ficar na estante, um belo romance que faz parte da história literária brasileira.
71

Ele carrega a mão para criticar negativamente uma obra já canonizada e de peso tão grande,
foi um pouco ousado.
Fica-nos a impressão de que para o autor, bastava enfatizar a essência humana na
personagem Capitu e teríamos a mais gloriosa das obras machadianas. Mas com todo o
posicionamento voltado para Bentinho, isso não se deu, e o que temos é ―um belo livro‖,
conclui ele.
Godoy Garcia não se estende mais na análise crítica desse livro, como o fez na obra de
Hugo de Carvalho Ramos, quis apenas deixar sua contribuição relativa ao ponto de vista, ou
seja, o lugar em que o autor de Dom Casmurro escolheu ficar para descrever a narrativa.
Afirmando o autor goiano que esta é sempre uma escolha que pode desfigurar e desnaturar
uma obra.
Ainda em Aprendiz de Feiticeiro José Godoy Garcia realiza outras seis análises
literárias, de romances e teatro, além de se posicionar em relação ao modernismo, ao pós-
modernismo e a criação literária. Abordamos aqui somente os dois primeiros artigos do livro,
a fim de especificar o conteúdo e o ponto de vista da abordagem crítica godoyana. Por
questões de delimitação do objetivo dessa pesquisa, não faremos a leitura comentada dos
demais capítulos.
72

CAPÍTULO 5

A VOZ DO MODERNISMO: UM OLHAR SOBRE OS ASPECTOS MODERNISTAS


NA LÍRICA GODOYANA

A produção de José Godoy Garcia foi muito voltada para os livros de poesia, as quais
nos remetem à difusão do modernismo. Portanto, explanaremos um pouco mais sobre o
modernismo para compreender com maior clareza a obra de Godoy.
No mundo e no Brasil, surge uma onda em que grupos de artistas decidem
―revolucionar‖ a escrita da poesia, a pintura e, porque não dizer, a arte em geral. Daí provém
todos os movimentos e manifestações que conhecemos hoje, desde as vanguardas européias
até o pós-modernismo. Em nosso país, especificamente, surgem movimentos como o
Modernismo, o Manifesto Antropofágico e vários outros que influenciaram na decisão de
revolucionar a arte como um todo e, dentro dela a escrita da poesia. Tais movimentos são
efervescentes nas metrópoles, sendo mais tarde levados para os outros estados do país.
Posto isso, verificamos que os artistas e todos aqueles que optaram por seguir uma
corrente modernista deveriam, então, desenvolver uma função heróica de iniciar o processo de
mudanças e não apenas compreender e adotar o espírito da época. Deparamos com um dos
pontos-chave da história modernista em sua totalidade – a exploração estética.
Para Alfredo Bosi (2006), em História Concisa da Literatura Brasileira, o
Modernismo no Brasil, especificamente em sua fase heróica (1922-1930), baseia-se em um
rompimento com o estilo acadêmico e com as teorias artísticas e temáticas anteriores. Isto
vem sendo feito desde as primeiras conferências proferidas na Semana de 1922. Para o crítico,
o Modernismo, enquanto movimento ou escola literária, apresenta diversos cenários, de
maneira que não podemos generalizá-lo, uma vez que existiam vários grupos antagônicos
tentando resolver as questões da arte moderna. Assim, diante de uma gama de probabilidade
temática e da valorização nacional, os autores envolvidos neste movimento procuraram
reconstruir esteticamente a arte, proporcionando-lhe criações diferentes.
Bosi descreve os desdobramentos da semana do modernismo da seguinte maneira:

[...] a Semana foi, ao mesmo tempo, o ponto de encontro das várias


tendências que desde a I Guerra vinham se firmando em São Paulo e no Rio,
e a plataforma que permitiu a consolidação de grupos, a publicação de livros,
revistas e manifestos, numa palavra, o seu desdobrar-se em viva realidade
cultural (BOSI, 2006, 340).
73

Foi nesse momento que os grupos começaram a se consolidar e definir uma estética e
uma ideologia precisa, com a finalidade de explicar e justificar as obras que vinham nascendo
das alianças formadas pelos subgrupos. Essa necessidade de solidificar e definir os novos
rumos da estética nacional desfazendo os laços com os moldes literários antigos atribuiu ao
Modernismo dessa primeira fase certa medida radical. Foi Mário de Andrade quem assegurou
acerca deste assunto ao abordar sobre a violência com que se processou a ruptura com o
passado.

E foi da proteção desses salões que se alastrou pelo Brasil o espírito


destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente
específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o
movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós
mesmos, porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a
liberdade da criação (ANDRADE, in Schwartz, 2002-2003, p.478).

Esse espírito destruidor apontado por Mário de Andrade apresentava como finalidade,
a priori, a ruptura com as estéticas anteriores. Opondo-se à exatidão da sintaxe predominante
nos movimentos literários antecedentes, os poetas modernistas preferiram valorizar uma
gramática menos rígida, aproximando-se da linguagem oral.
Em um segundo momento, o objetivo da ―destruição‖ modernista era de organizar um
terreno em que fosse possível reconstruir a cultura brasileira, desempenhar criticamente uma
revisão na história e nas tradições culturais do país eliminando o apego aos valores
estrangeiros. Essa intenção de abordar temas cotidianos também deixou que os poemas
refletissem sobre a realidade brasileira. Apesar desse caráter de destruição causado pela
ruptura, ―a poesia, a ficção, a crítica saíram inteiramente renovadas do Modernismo‖ (BOSI,
2006, p. 383).
Em consonância com Bosi, podemos lembrar a herança deixada pelo modernismo,
como salientada por Mário de Andrade em sua conferência ―O Movimento Modernista‖
(1942), esse legado nos é dado com: ―o direito permanente à pesquisa estética; a atualização
da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional‖
(BOSI, 2006, p. 383).
Os movimentos literários aconteciam em épocas e lugares diferentes, ou seja, em cada
lugar o movimento acontecia distintamente, porém a essência era a mesma, lutavam por um
novo modelo de desenvolvimento na arte, vinculado ao contexto histórico de cada país. David
Harvey (2003), em consonância com Bradbury e McFarlane, pautando sobre o modernismo
em geral alega que:
74

O Modernismo parece bem diferente a depender de onde e quando nos


localizamos. Porque, embora o movimento como um todo tivesse uma
atitude internacionalista e universalista definida, muitas vezes buscada e
concebida deliberadamente, também havia um forte apego à idéia de ‗uma
arte de vanguarda internacional de elite mantida numa frutífera relação com
um forte sentido de lugar‘ (HARVEY, 2003, p. 33).

No Brasil, alguns movimentos foram mais fundamentais e característicos por serem os


primeiros, outros mais condensados e exigentes por já carregarem uma ―experiência‖ dos
anteriores. Porém, todos munidos de ideais e propostas que achavam adequados para o
momento, por exemplo: o Modernismo de 22 e os demais que a este seguiram. Todos esses
foram movimentos que contribuíram para a consolidação da nova poesia brasileira.
Nesse contexto, nos deparamos com a obra de Godoy Garcia, publicada em Goiás a
partir de 1948, quando já se manifestavam os primeiros raios da influência da Geração de 45,
com características próprias da poesia do Modernismo de 1922, fato que nos leva a ponderar
sobre sua relação com esse movimento.
Em linhas gerais, o Modernismo no Brasil iniciou uma tendência de transmissão de
emoção e realidade do país, desde 1922, quando os poetas engajados na nova estética,
começaram a divulgar amplamente suas obras e mostrar, através da impressa (revistas e
jornais) a que vieram. Dessa forma, um pouco mais estabilizadas as idéias, em 1945, esse
movimento começou a tomar maior representatividade, quando também entramos na era
industrial e houve um progresso econômico-social acelerado.
Na verdade, toda essa agitação pode ser considerada mais do que uma densa revolução
artística, pois anuncia uma nova visão do homem ao sentir e interpretar a essência da vida.
Por conseguinte, o espírito modernista é o resultado das novas e ambíguas experiências que o
ser humano vivencia na cidade. A partir desse pressuposto, o homem se questiona sobre os
prazeres oferecidos pela cidade e a antiga paz desfrutada em companhia da natureza, uma vez
que ele não experimentava sensações de desconforto, solidão e anseios psicológicos.
Poetas da envergadura de Baudelaire e Whitman, em sua época, já expressavam tais
sentimentos poéticos, no entanto, eram de certa forma presos às regras determinantes das
escolas literárias vigentes. Mas, nem por isso, deixaram de ser reconhecidos como
representantes dessa bandeira, além do que, Baudelaire, já em 1863, anunciava a modernidade
como sendo ―o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o
eterno e o imutável‖ (HARVEY, 2003, p. 21, apud BAUDELAIRE, 1863).
Dessa forma, depois que se deu o início a tal estilo poético, os escritores vêm cada vez
mais se revelando e tecendo poesias que são até mesmo concebidas como marginais por não
75

terem um conteúdo considerado de valor, no aspecto de que as poesias estariam à margem do


meio social no qual deveriam estar integradas, nas leis e normas convencionais.
Ainda no século XX, encontramos a escritura dessas poesias um tanto quanto
modificadas; ela, que antes deveria seguir toda uma métrica e regras precisas, a partir do
movimento modernista já não é mais vista assim. Dessa forma, as poesias assumem o caráter
de tratar a realidade e estão concentradas no âmbito de revelar o que está implícito, o que
muitos acham irrelevante. E é nesse contexto que está ligada uma das temáticas encontradas
na obra de José Godoy Garcia – conforme veremos, no tópico que remete à poesia social.
Como uma particularidade geral da poesia moderna, podemos dizer que ela tem seu
caráter de simultaneidade, condensação, imagens vívidas e fusão de elementos diversos.
Também se observa uma constante mudança em busca de algo novo e moderno, no sentido de
apresentar sempre uma ruptura com o antigo para dar ênfase à modernidade.
Sobrepujava nos modernistas uma ânsia maior de serem atuais, exprimir o cotidiano,
dar status de literatura aos acontecimentos da civilização a eles contemporânea. Segundo
Antonio Candido ―tomaram por temas as coisas cotidianas, descrevendo-as com palavras de
todo dia, combatendo a literatura discursiva e pomposa, o estilo retórico e sonoro com que
seus antecessores abordavam as coisas mais simples‖ (CANDIDO, 2003, p.10).
De acordo com Candido (2003), especificamente na poesia, ―as conquistas do
Modernismo foram definitivas, embora nem sempre tenham durado as suas técnicas e
posições extremadas‖ (CANDIDO, 2003, p.18), porque com o passar do tempo, como não
almejavam uma forma fixa de fazer poesia, novas conquistas e novos modelos foram
surgindo.
Assim, evidencia-se que na poesia moderna não existem temas mais ou menos
poéticos, ao contrário, todo tema é aprazível. Faz-se importante mencionar essa característica
para explicar que os poetas de cunho modernista não se preocupavam muito em escolher um
assunto que agradasse ao leitor ou que lhes proporcionasse maior aceitação. Escreviam,
conforme eram impulsionados. Já nos dizia Mário de Andrade que ―A impulsão lírica é livre,
independe de nós, independe de nossa inteligência. [...] Todos os assuntos são vitais. Não há
temas poéticos. Não há épocas poéticas‖ (ANDRADE, s.d., p. 208-209).
As particularidades temáticas de uma obra são muitas vezes o ponto crucial para a
análise da mesma. Geralmente, o tema está impregnado à obra, assim como o eu - lírico
constitui parte da voz do poema. Sob a perspectiva godoyana, elencamos ao menos três temas
característicos que podem ser vistos com maior frequência, além dos universais.
76

O tema é localizado ao se perceber em determinada obra a repetição ou valoração de


um assunto específico com significações dos elementos particulares constituintes da obra.
Tais elementos são vistos positiva ou negativamente pelo autor e colocados à prova no
momento da leitura, pois o leitor pode também simpatizar-se ou não com o tema. Segundo
Tomachevski

A maioria das obras poéticas é construída a partir da simpatia ou da antipatia


sentida pelo autor, a partir de um juízo de valor sobre o material proposto à
nossa atenção. [...] O leitor deve ser orientado na sua simpatia, nas suas
emoções (TOMACHEVSKI, 1965, p. 158-159).

No caso de José Godoy Garcia, é evidenciado no decorrer de seus poemas, sua


familiarização e a valoração que o mesmo oferece ao homem (da escória social) e à natureza,
tratando então dos temas com simpatia. Algumas de suas poesias nos lembram Manuel
Bandeira. Esse foi um poeta marcadamente importante para a produção poética de Godoy
Garcia, visto que há uma clara evidência de sua participação na obra godoyana.
Assim como Bandeira elegeu o verso livre como sua forma de expressão lírica
habitual, Godoy também o fez. Existe ainda, na obra desses autores uma simplicidade métrica,
a recusa aos costumes então em voga e uma forma direta que se enquadra também na prosa.
No poema de Bandeira ―Minha grande ternura‖ é possível ver essa proximidade:

Minha grande ternura

Minha grande ternura


Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura


Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura


Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura


Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura


Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo. (BANDEIRA, 2005, p.108)
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Um texto que canta a natureza, o orvalho, os pássaros e as mulheres que já foram


bonitas. É um poema com ritmo mais prosaico, se aproximando do discurso que remete à
prosa, conta uma história, narra um fato. Não perdeu seu tom lírico e saudoso, através do qual
o eu poetante dá ênfase aos elementos da natureza e aos sentimentos nobres.
Desde seu primeiro livro, Rio do Sono (1948), Godoy Garcia questionava os
problemas civis, admirava a beleza exímia da terra, do céu e da água, sem deixar de dar
crédito às questões sociais. Godoy Garcia sempre pensou nos limites humanos, na
urbanização e na escória. Um poeta modernista que canta todos esses elementos e com uma
gama de poemas tão peculiares, não poderia ser tomado apenas como um dos que resolveram
o problema do anacronismo em Goiás. Prova disso é o poema ―São Sebastião vai se casar‖.

Sebastião da Silva
é primo do clarinetista
da Banda.
Por isso a Banda comparece
por influência do primo
ao casório de Sebastião.
Há muitos negros reunidos
e todos estão bem vestidos
Sebastião de roupa branca, sapato
branco, de pele levemente empoada,
riso que é feito de menino naqueles
lábios,
e Sebastião está,
como se diz: rindo com os lábios de
cima.
Quando vão para a igreja
eles vão a pé e a bandinha toca um
dobrado: Sebastião parece um anjo,
Sebastião é um santo que foi à guerra
e voltou cheio de glória.
A música enche a alma do negro
e ele caminha, com a noiva de véu,
carregado de um eterno e inocente
heroísmo.

(GARCIA, 1980, p.70)

Esse poema escrito com versos livres traz como tema um casamento. Situação simples,
se pensarmos em termos convencionais. No entanto, essa é a preferência do poeta:
personagens modestos, inclusive no nome do personagem. E não apenas no nome, Sebastião é
um homem simples, humilde e tem um primo que ―toca na banda‖. Só por isso a banda foi se
apresentar em seu casamento.
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Através da figura de Sebastião da Silva, o poeta desenha o perfil dos homens pobres
que foram para a guerra e tiveram a sorte de voltar vivos, ou seja, regressaram com a ilusão de
serem vitoriosos. A ilusão configura-se a partir da imagem de inocência, de anjo, que é como
se apresenta o negro Sebastião com ―roupa e sapatos brancos‖ e sorriso de criança, ―[...] riso
que é feito de menino naqueles lábios‖.
Sebastião faz parte da classe social baixa, vai para a guerra e volta para se casar com
sua noiva que está de véu, ―carregado de um eterno e inocente/heroísmo‖. Entendemos aqui
que Sebastião foi usado por uma sociedade injusta que o fez acreditar ser herói quando, na
verdade, era mais uma vítima do sistema, uma vez que os homens escolhidos para irem à
guerra eram os mais humildes, inocentes, negros e pobres, que não tinham posse alguma. Por
essa razão é que Sebastião sorria como um garoto, assemelhando um anjo, santo, pela sua
humildade e inocência de achar que era um herói, não passando de um joguete nas mãos da
injusta engrenagem social.
No poema transcrito José Godoy canta o negro, deixando transparecer sua preferência
pelos marginalizados socialmente, faz isso de forma que, ao poetizar deixa transcender os
limites regionais (goianos), atingindo o universal. O poeta rescinde com os moldes clássicos
que canta o homem apaixonado, intelectual e não o servil, o pária.
Inicialmente, a maior carga poética encontrada em Godoy Garcia vem com a herança
modernista, que é retratar o cotidiano de forma coloquial, trazendo ao fundo, questionamentos
referentes ao ser social ponderando em uma linguagem clara e simples. Identificado como
―poeta do povo‖, os temas mais recorrentes em suas obras são os que remetem à calmaria das
pequenas cidades, que trazem uma carga de significados quando o poeta percorre suas ruas,
becos e praças; a sua preferência em ir ao encontro dos simples, observando as crianças, as
mulheres (moças, virgens e prostitutas), os párias, os bêbados e toda classe marginalizada que
sofre preconceitos.
Em ―Depois do almoço numa cidade pequena‖ Godoy Garcia fala da vida ―pacata‖ de
um vilarejo.

Cogumelos
brotando
no muro.

Cachorro
deitado
dormindo.

Homem de roupa
79

de brim lavado
olhando as horas
à porta da casa
comercial.

Bananeira
no sol escaldante.
Grito de mulher
perto da cozinha.

Meninos
e animais
__ em ruídos distantes.

Depois do almoço
na cidade pequena
a vida ressona...

(GARCIA, 1980, p. 38)

No decorrer do poema é possível perceber sua ligação com o ser humano e a


sensibilidade do autor em colocar isso como se estivesse fazendo a descrição de uma pintura
com breves palavras. É visto aqui o cotidiano provinciano, relatado de forma simples e em
tom coloquial, mas que desperta no leitor certa curiosidade em saber o que está implícito
nessas linhas. Dessa forma, ele está valorizando o homem da cidade pequena e enfatizando o
aspecto social que o envolve, pois retrata as pessoas que trazem um comportamento típico e
que vivem em um meio que lhes proporciona o prazer de se virem em segurança.
―Depois do almoço numa cidade pequena‖ ainda pode ser lido por um viés filosófico,
pois não deixa de tocar na busca pelo ontológico, movido pelo ―eu‖. Ainda que esse elemento
esteja implícito, vimos a busca pela essência do ser humano, isto é, a busca pela calmaria e a
paz, quando ao final do poema o eu-lírico diz: ―Depois do almoço/na cidade pequena/a vida
ressona...‖.
Esse poema pode ser lido em perspectiva comparativa com ―Cidade Qualquer‖ de
Carlos Drummond de Andrade, que muito se assemelha e lembra o mesmo.

Cidadezinha qualquer

Casas entre bananeiras


mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.


Um cachorro vai devagar.
80

Um burro vai devagar.


Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

(ANDRADE, 1979)

O poema de Carlos Drummond de Andrade, assim como o de Godoy Garcia fala sobre
uma cidade pequena, usando um o substantivo ―cidade‖ no diminutivo e outro, acompanhado
por um adjetivo: cidade pequena. Já os elementos lexicais: qualquer e numa, respectivamente
encontrados no poema de Drummond e Godoy, indicam um sentido de lugar sem importância,
esquecido e banal. O que corrobora ainda mais com a imagem de um lugar de calmaria.
Observando o terceiro verso da primeira estrofe, encontramos revelada a subjetividade
bucólica do eu poetante que é branda e serena, aflorando o sentimento de amor e paz na
naturalidade da vida campestre, longe das imagens prediais e massas cinzentas que a
paisagem urbana oferece. Aí encontramos em Drummond, o mesmo espírito de exaltar a
liberdade da vida rural e pura que encontramos em Godoy Garcia.
O que diverge um pouco entre a ideia de cada um dos poemas é o seu desfecho.
Enquanto em Drummond temos um eu - lírico que ―acorda‖ para a vida real e rompe com toda
a divagação, seguindo viagem: ―Eta vida besta, meu Deus‖. Em Godoy Garcia temos um eu -
lírico que continua em sintonia com a natureza e calmaria, dando lugar à subjetividade
onírica, especialmente, pelo usa das reticências: ―Depois do almoço/na cidade pequena/a vida
ressona...‖.
Ambos são poemas que nos levam a idealizar um quadro, uma pintura, que envolve o
homem, trabalhador rural, enquanto descansa após o almoço, à varanda da casa, andando pela
rua, ou ―à porta da casa comercial‖. Esses textos evidenciam a busca pelo ontológico que está
sempre presente na poesia de Godoy Garcia, sua preocupação com as pessoas simples. Não
sendo apenas o homem sua preocupação, também há a presença dos animais e da natureza nos
dois poemas: o cachorro e as plantas – destacando as ―bananeiras‖.
Vale também ressaltar alguns fatos relevantes que dizem respeito ao contexto histórico
da produção de Godoy Garcia, a partir de seu primeiro livro de poesias. Desta feita, podemos
então acentuar que o fim da Segunda Guerra Mundial e a ditadura de Getúlio Vargas eram os
acontecimentos históricos que mais se destacavam na época, além da Geração de 45 que
atuava. Subtende-se que esses fatos, junto ao ideal modernista, foi o que levou José Godoy
Garcia a dar ênfase na defesa dos párias em seus poemas de cunho social.
Nesse período de modernismo brasileiro, época em que os literatos começaram a se
opor à poesia que vinha sendo escrita até então, iniciou-se o período da composição da poesia
81

em versos mais livres. Essas passaram a ser compostas no sentido de conterem poucas rimas e
serem voltadas para a prosa, com o intuito de não ―obedecerem‖ às regras pré-estabelecidas,
no que diz respeito ao metro e às sílabas.
O verso livre, sabemos, vem sendo utilizado desde o século XIX pelos poetas
simbolistas que intentavam produzir uma poesia com ritmo próprio e sonoridade peculiar,
hoje largamente utilizado pelos poetas considerados modernos a fim de darem uma roupagem
nova aos poemas. Portanto, deixando de ser heterométricos, passaram a adquirir uma unidade
semântica e rítmica diferente, porém não perderam a musicalidade que a poesia nunca deixa
de integrar. De acordo com Octavio Paz (2006) é uma unidade rítmica e para Antonio
Candido (2003) ele não é metrificado e, por isso, rítmico.
Assim, verifica-se que os versos livres não obedecem a nenhum esquema. Não há uma
metrificação, mas tem um ritmo que segundo Paz (2006)

[...] é inseparável da frase, não é composto só de palavras soltas, nem é só


medida ou quantidade silábica, acentos e pausas: é imagem e sentido. Ritmo,
imagem e significado se apresentam simultaneamente em uma unidade
indizível e compacta: a frase poética, o verso (PAZ, p. 13).

Isto é, a unidade compacta se caracteriza pela junção de cada um dos elementos do


poema. O ritmo, a imagem e o significado são unidades separadas que, ao serem colocados no
texto, de forma coerente, garantem a unidade total do poema. Assim, juntos, definirão o ritmo
e o sentido nos versos.
Tudo isso se deve a construção do texto literário que se dá de forma diferente do texto
científico. No poema, existe uma seleção sintática e sonora possibilitando um sentido mais
elaborado e que compete uma plurissignificação no texto, ou seja, a unidade consiste nessas
escolhas e sempre é possível percebê-la no todo, no verso.
Como possível fonte de exemplificação para vermos como se dá na poética de Godoy
Garcia esse predicado teórico, nos deparamos com o poema ―Os sonhos do Lázaro‖, do livro
Os Morcegos.

Este ano não quero comprar sementes,


não quero tomar emprestado não.
Se o tempo ajudar, a safra for boa, tudo bem.
Se não tiver sorte, não colher nada,
não fico devendo nada a ninguém

(GARCIA, 1999, p.79)


82

No poema disposto em cinco versos, encontramos estes desprendidos da forma fixa.


Não há uma rima explícita, mas é possível percebermos a sonoridade e o ritmo, pois existem
outros recursos, como a assonância encontrada nas repetições do vocábulo ―e‖ e a aliteração
que localizamos com a reprodução se sons consonantais como [m], [n] e [s]. Aparentemente,
temos apenas um fato corriqueiro, uma historieta simples de um agricultor, porém, a escolha
das palavras, a conjugação dos verbos no infinitivo e sua colocação no verso são os elementos
que oferecem sentido e força para essa unidade compacta e indizível, expressa nos versos para
marcar o ritmo.
As poesias do autor em questão, escritas em meados da década de 1940, nos apontam
imagens mais amenas, da natureza, das estradas, das chuvas. Não tinha um veio político tão
intenso como as produzidas anos depois, por volta de 1970. Isso porque estavam condizentes
com a época em que foram escritas e alinhadas ao meio cultural e político do momento,
contando ainda com a experiência vivida pelo autor, na militância política.
No que diz respeito à assertiva de que a lírica é pautada pela métrica e pela
musicalidade, devemos lembrar de que os movimentos literários, paulatinamente, ganham
novas teorias e podem não obedecer sempre às mesmas regras. Anterior ao movimento
modernista, a maioria dos poemas eram pautados na primazia do metro e do ritmo, que
caminhavam paralelamente e, via de regra, as poesias não fugiam ao verso metrificado e
elaborado cautelosamente, com a preocupação de não ―fugir à norma‖ estabelecida.
No que tange a sua carga de ligação com o Modernismo brasileiro é oportuno ressaltar
que a obra de José Godoy Garcia observa o cotidiano e pauta pelo tom coloquial.
Muitos dos poemas modernistas apresentam um ritmo não no sentido que este era
visto pela poesia clássica, em que deveriam aparecer intervalos regulares e apresentar uma
forma fixa, dependendo da metrificação do poema, mas sim no sentido de terem um conteúdo,
assim como pondera Paz (2006) ao evidenciar que o ritmo não se apresenta sozinho e não é
uma medida, mas conteúdo qualitativo e concreto.
O ritmo também, ainda na concepção de Paz, é colocado no poema de forma
espontânea, por se manifestar plenamente, além de ser ele condição do poema. Também na
perspectiva desse autor e considerando o que ele aborda sobre a questão do metro e do ritmo,
vimos que o mesmo valoriza mais o ritmo do que a métrica, que segundo ele é apenas
―medida‖. Ao que ele pondera sobre o assunto:

Metro e ritmo não são a mesma coisa. Os antigos retóricos diziam que o
ritmo é o pai da métrica. [...] O ritmo é inseparável da frase; não é composto
só de palavras soltas, nem é só medida ou quantidade silábica, acentos e
83

pausas: é imagem e sentido. Ritmos, imagem e significado se apresentam


simultaneamente em uma unidade indizível e compacta: a frase poética, o
verso (PAZ, 2006, p.13).

Retomando a idéia de que cada arte traz um significado diferente a um objeto,


evidenciamos que um tema selecionado por um poeta, pode ser o mesmo. No entanto, as suas
obras serão pautadas por vias distintas.
Nesse ínterim é que evidenciamos três aspectos cruciais na obra de José Godoy
Garcia, sendo eles o resgate à memória da infância e da natureza, em seus primeiros livros,
com valor sentimental, perfazendo aí um caminho de temas universais; a poesia em tom
prosaico, evidente em grande parte da obra e o aspecto social que permeia toda poética
godoyana, ora mais sutil e ora mais assinalada.
Para melhor compreendermos o exposto até o momento, após apresentar algumas
evidências modernistas, passemos às leituras comentadas dos poemas de José Godoy Garcia,
nas quais levantaremos outras duas temáticas mais expressivas em sua poética, sendo elas: o
teor social e a marca prosaica junto à lírica.

5.1 José Godoy Garcia e a poesia social

Há distintos questionamentos no que tange à poesia social que se tornam essenciais


para que possamos compreender como esse aspecto se faz presente na poesia de Godoy.
Inicialmente, é digno entender qual o significado dessa palavra que tanto já mencionamos
nesse texto. O que é social? E o que vem a ser poesia social? Existem vários conceitos que
respondem a essa pergunta.
Em uma primeira instância, facultamos a esse adjetivo a possibilidade de estar ligado
ou ser algo relativo à sociedade em geral, principalmente no que diz respeito às relações
humanas e à posição convencional em que o elemento social está inserido, além de sua
aproximação com a História. No contexto da poesia, entendemos que o social é tudo que está
ligado e tudo o que se coloca na escrita do texto literário, ou seja, todos os elementos são
sociais, não se pode separá-los no momento da criação.
Assim, em um contexto poético tais avaliações podem e devem ser refeitas. O social
está sempre presente em nosso meio, até porque não podemos fugir a essa verdade, pois
somos rodeados incessantemente pelos elementos que nos direcionam para o fator social. A
percepção e a leitura que temos de mundo é uma resposta a isso, uma vez que é a partir do
meio em que estamos inseridos que nossa ideia de sociedade é formada.
84

Todos os fatores internos e externos que envolvem instituições como a Família, a


Igreja, a Cultura e a História estão diretamente ligados ao nosso desenvolvimento de
raciocínio social e psicológico. Por isso, a Literatura tem o poder de perpassar por todos esses
caminhos e levar até a poesia os elementos fundamentais para o desenvolvimento de poéticas
que mesclam entre a linguagem lírica e a social.
Toda poesia é social, já que transporta essa carga de elementos que são indissociáveis
da linguagem poética. No entanto, existem aquelas sobre as quais transmitem e explicitam o
conteúdo externo de forma mais elevada. Um engajamento nas causas políticas, como é o
exemplo de José Godoy Garcia, pode definir explicitamente sua veia poética social.
Essa é a que podemos chamar poesia social, que carrega um legado modernista de
exprimir os sentimentos e dar vazão àquilo que sufoca, tendendo a revelar ao máximo o papel
do elemento externo a fim de torná-lo interno. Nas palavras de Candido (1965, p.4) ―o externo
(no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que
desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno‖.
De tal modo, é que estes componentes externos serão basilares para a produção de
sentido na constituição da criação poética. Eles não serão apenas matérias aleatórias e signos
colocados em disposição métrica favorável à estética da obra de arte, mas sim impregnados do
sentido essencial na poesia.
Segundo os desenvolvimentos teóricos de Antonio Candido, o crítico assegura que a
criação literária está pautada nos aspectos de ordem social, posto que uma obra não possa
nascer sem fundamentos, sendo necessário que esteja ligada a algum contexto histórico. Para
Candido, ―a obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam a
sua posição‖, gerando assim, no leitor, uma "inquietação no tocante à relação literatura e
sociedade. Neste caso, pode-se dizer que a obra desempenha certa função social decorrente de
sua própria natureza‖ (CANDIDO, 1965, p.17). Vale ressaltar que o termo sociedade, no viés
de Candido, tem relação com os acontecimentos históricos, uma vez que a sociedade nada
mais é, do que a História, propriamente dita.
Com efeito, na poética de José Godoy Garcia, podemos encontrar esses subsídios, que
enredam e perpassam por toda a obra, quando o poeta dá voz aos seres marginalizados pela
sociedade e, consequentemente, vivem na escória social, constituindo um cenário histórico.
São eles os moradores das pequenas cidades, os bêbados, os negros, as prostitutas e as
crianças abandonadas.
O poeta também usa um leque abrangente de acontecimentos históricos verídicos para
relatar fatos marcantes na sociedade e que na visão do autor, precisam ser externados. Por
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isso, são encontradas nas linhas poéticas traçadas por Godoy Garcia características dos
eventos regionais de maior peso na representatividade de Goiás e na construção de Brasília.
Para exemplificar o que foi exposto até aqui, destaquemos o poema Goiânia, 87 de
José Godoy Garcia:

Foi em Goiânia, 87, onde a negra


luz do césio veio com sua umbela de átomo,
nervura de ódio e crime ferir a linfa
e medula da vida mentindo solopando
a dignidade do chão minando sua água
azul alume abrindo a boca da morte.
Foi em Goiânia, a feérica gazela!
1987, onde o césio vaga-lume
indiferente ao rumor da vida
ao fogo e à inveja do câncer
em sua vergôntea de tédio
veio tecer sua intriga.
Meus puros amigos, Mané, Siron,
Domingos, Lígia-Maria, Cairo,
os poetas, Vadica de flor e filhos,
essa gente bela, essa saúde de Cristo,
esse pisar, essa valorosa tribo,
que é terra e fonte.
Césio-137, que fibra, que saga,
que farsa, que invencibilidade!
Onde quer que durma, onde quer que
enlace seu dorso de lã, onde quer que assassine o morto
livre não ficará, nem o vivo da morte ficará,
o morto lixo, onde quer que reine,
seu ser é morte; enterrado, é morte,
na Serra é morte, em Goiânia
no mundo não ficará.
Um dia saberemos tirar sua mão
do crime? Seu lixo onde? Em
Goiânia no mundo não ficará.
Onde? Onde será?
Na tumba do Führer? No ócio
do crime? Na demência do Cão?
Onde será? Na Calábria? Na caveira
do tédio? na cadeia da cobra?
No latifúndio danado? Onde? Onde será?

(GARCIA, 1999, p.28)

Neste poema fica explícita a crítica que o autor faz à sociedade vigente da época, a
mesma censura que encontramos nos poemas de autores como, por exemplo, Drummond e
Mário de Andrade, mas que é colocada implicitamente. No poema de Godoy Garcia está
colocada de forma resumida a história do acidente com o Césio-137, este foi o maior acidente
radioativo ocorrido no Brasil e o maior do mundo, sucedido fora das usinas nucleares. A partir
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dessa informação, podemos entender porque tanta revolta e sentimento de perda, tristeza, nas
palavras do poeta. Uma substância química que emite um brilho azul florescente, como um
―vaga-lume‖, transformou-se na ―negra luz‖ que ―feriu a linfa [...] abrindo a boca da morte‖ e
deixou tanta infelicidade.
Mário de Andrade também faz sua crítica ao escrever ―O Cortejo‖, publicado em
Paulicéia Desvairada (1922), em que demonstra toda sua indignação frente aos homens
―iguais e desiguais‖ de São Paulo.

O cortejo
Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro."

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,


Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.

(ANDRADE, 1922)

Aqui vimos que o autor não elucida um acontecimento específico, fala de maneira
geral, sem se remeter a um fato histórico, ressalta apenas o contexto conturbado em que se
encontra sua cidade. ―Hiperboliza‖ São Paulo como uma boca de mil dentes que morde e
mastiga os homens, por serem eles ―fracos, baixos e magros‖, se mostrando todos iguais, sem
reagirem ao regime dominante.
Já no poema de Godoy Garcia ele denuncia a barbaridade que foi o acontecimento de
um fato tão marcante na cidade em que morava naquela ocasião. Ele fala das várias vítimas
que sofreram com o acidente, o poema traz à luz a questão da preocupação com o que virá a
acontecer posteriormente a isso. Essa característica está colocada no poema nos primeiros
versos, com a marca do tempo verbal no gerúndio, em que demonstra o sentimento agudo do
poeta. ―[...] e medula da vida mentindo solopando / a dignidade do chão minando sua água /
azul alume abrindo a boca da morte‖. A tristeza do eu-lírico é evidente, ele sabe que a boca
da morte está aberta e continuará fazendo vítimas.
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A entonação, a estilística fônica do poema, tudo isso nos conduz a uma análise que
deixa transparecer os sentimentos subjetivos do poeta, transcritos nos versos que não têm
pontuação delimitada, é um jorrar constante de palavras. A falta de pausas traz a rapidez com
que é consumida a vida, lembra o fogo que consome tudo, tão rapidamente. As exclamações
no final do poema mostram a preocupação com o futuro. Tantas perguntas sem respostas,
procurando uma saída para o problema. Onde ficarão, onde se encontrarão todas as vítimas
desse anunciado acidente? Certamente nos piores lugares, nos mais baixos e desprezíveis, nas
tumbas, nos lixos, nas tocas. Há aqui uma denúncia, um grito de socorro, mas que muitos não
querem ouvir, visto que o eu-lírico não obteve resposta alguma, ninguém o ouviu.
É possível verificar neste texto algumas características da prosa por tratar-se da
narração de uma história de fatos reais. No entanto, sua essência é o gênero lírico, tanto que se
evidencia certa musicalidade no decorrer do mesmo e também é marcado por algumas rimas e
aliterações, além da própria linguagem poética. Fato que para o senso comum, prova ter sido
traçado nos moldes ditos convencionais de um poema.
Nesta análise depreendemos que nos primeiros versos é como se o poeta estivesse a
relatar o fato, relatar o que aconteceu e logo em seguida ele presta sua solidariedade aos
amigos que foram vítimas daquele elemento radioativo tão cruel que deixou sua marca
―ferindo a linfa‖ e armazenando vítimas, muitas das quais morreram naqueles dias ou
sofreram consequências graves e contraíram doenças a partir do contato com o elemento
químico.
Essa linfa nos remete à pureza e à inocência daquelas vítimas. Visto que nas palavras
de um poeta, todo e qualquer signo linguístico se torna em um significado único,
evidenciamos que essa palavra pode ser caracterizada como a ―água‖, uma água que estava
parada e indefesa e era a ―medula da vida‖, ou seja, de uma importância vital para o processo
de desenvolvimento daqueles que passaram por um momento tão difícil, sem ter a consciência
do que posteriormente viria a acontecer com eles.
Nesse sentido, verificamos que esse é o fio condutor que o poeta usa para denunciar a
calamidade em que vivia a sociedade já no final da década de 1980, ocasião do acidente, é
uma forma distinta de se fazer uma acusação ao elemento social enquanto uma ―comunidade‖.
Fato é que o autor está criticando aquela ocasião, e as indagações finais são os recursos
utilizados por ele para isso, o momento pede que seja feito algo e o poeta o faz através de suas
poesias de cunho social, com as indagações colocadas.
Para dar continuidade à leitura da temática social encontrada na obra de José Godoy
Garcia, propomos então fazer uma leitura do poema ―Os Párias‖, no qual o homem continua
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levando em consideração seus costumes e insanidades, sem protestar os fatos ocorridos ao


longo de sua trajetória. O fator que marca esse acontecimento pode ser notado no decorrer de
sua poética, em que o autor enfatiza elementos de feição negativa, intentando descrever fatos
empíricos que evidenciem tudo aquilo que venha rebaixar, pormenorizar, desgastar e alienar a
essência humana.
―Os párias‖, inclusive, é o poema de José Godoy Garcia que ele mesmo considera ser
o seu melhor. Assim ele declara em entrevista (1998) e também registra, de próprio punho,
em um dos exemplares do livro Aqui é a Terra. Seguem abaixo os versos do poema ―Os
párias‖, encontrado em Poesia:

Caiu um olho
O homem ficou sem ele.

Caiu um dente.
O homem ficou sem ele.

Caiu a filha.
O homem passou vergonha.

Caiu a vergonha.
Vai pedir dinheiro emprestado no bordel.

(GARCIA, 1999, p.362)

Aqui, encontramos a necessidade do poeta em exteriorizar sua reflexão acerca da


posição social dos desvalidos e as verdadeiras questões que os envolvem. Assim, o eu-lírico
se alia aos homens miseráveis em suas tormentas, como o fez o ancião do poema que vive à
sombra de suas filhas e como fazem aqueles que vivem à margem da sociedade.
Este homem é um exemplo de herói moderno, que vive para os outros, esquece seus
próprios sonhos para dar lugar ao sonho do outro. E, paradoxalmente, é também exemplo da
decomposição social do ser humano. A disposição do poema em versos dísticos é importante
para a análise, uma vez que corroboram para que possamos entender a decaída do homem.
Desde o olho, primeira coisa que ele perde, até a vergonha. A perda do olho pode ser
lida como a visão, ou seja, ele não via mais, ou não queria ver o que estava acontecendo ao
seu redor, com sua filha. Por isso, não se preocupou em ficar sem ele, não quis mais buscar
seus ideais e preferiu deixar sua filha seguir com os dela.
Assim também, como não se preocupou ao ficar sem dente, sem a filha e, por fim, sem
a vergonha, já que o mais importante ele não conseguiria de volta. Despudorado, a única saída
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que lhe restou foi procurar a filha para pedir dinheiro emprestado, isto é, foi preciso que
passasse por essa humilhação para, a partir daí conseguir seu sustento.
Em entrevista, Godoy Garcia explica a origem do poema, o que o levou a escrevê-lo

Ele mostra o processo de decomposição social de um ser humano. E se


baseou num episódio real. Em Jataí, um homem teve a filha deflorada por
um dentista. Ele queria matar o dentista, mas não matou. Anos depois, em
Goiânia, depois que vim do Rio de Janeiro, encontrei esse homem na porta
do hotel da Maria Branca, em Campinas. Lá dentro encontrei as duas filhas
dele. A mais nova me disse: ―Meu pai veio me pedir dinheiro emprestado‖.
Fiquei pensando naquilo. Esse homem era uma pessoa íntegra. De repente se
transformou nisso. Quando fui fazer esse poema, se fosse utilizar a estética
romântica, ele ficaria muito grande. Então, nessa luta com a palavra, fui até
mesmo irresponsável, e comecei o poema assim: ―Caiu um olho. / O homem
ficou sem ele. / Caiu um dente. / O homem ficou sem ele. / Caiu a filha. / O
homem passou vergonha. / Caiu a vergonha. / Vai pedir dinheiro emprestado
no bordel‖. É lógico que essa forma chateia, mas achei bom isso. Queria
uma pedra bruta. Uma vez, uma mulher foi recitar esse poema aqui. No
verso final, fez toda aquela dramatização romântica. Um horror. Eu estava
exatamente fugindo da dramatização (GARCIA, 1998, ver anexo).

Faz-se necessário ainda, apresentar uma hipótese relevante, que diz respeito ao fazer
poético do Modernismo ser entendido por Alfredo Bosi (1997) como resistência. Para ele,
poesia é um discurso que resiste, apesar do meio hostil. E analisando a linguagem dos
poemas, nessa condição, verificamos que ela pode tornar-se partidária, uma vez que não se
presta a comunicar algo, a repetir o que já foi dito, ao contrário, evidencia o que está oculto.
Tratando-se da poesia social de José Godoy Garcia percebemos que nela há uma
sensibilidade e uma importância característica da época em que foi escrita. Traz à lembrança
Drummond, Bandeira e a explícita alusão a Langston Hughes, no poema ―Canto ao poeta
irmão de Harlem‖.

Li, Langston Hughes,


- eu li o teu poema ―O negro fala dos rios‖ -
E perante todos, neste instante de lutas,
(não quero o silêncio, que é forma de luta de covardes),
eu quero falar de negros.
Escrevam o meu nome no fichário da polícia.
Mandem informações à polícia secreta ianque.
Eu me chamo José Godoy Garcia, descendente da pátria
de Pepe Dias, o mais valente dos valentes da Espanha.
E Lorca, o mais poeta dos guerrilheiros.
Oh filho da raça negra.
[...]
A tua cantiga não é de paz, Langston Hughes,
é canto de guerra.
[...] é preciso que suportemos os fantasmas porque senão jamais
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eles serão destruídos,


de nada vale a batalha individual dos matadores de baratas,
será preciso uma desinfecção geral.

(GARCIA, 1999, p. 393-395)

Este é um poema no qual Godoy Garcia canta ao poeta negro um canto de


solidariedade e, mesmo sabendo que está longe, o poeta faz seu apelo protestando pela união e
luta dos homens. Porque a poesia tem que ser expressa, tem que se fazer ouvir. Essa é a forma
dela sobreviver ao mundo hostil e surdo, colocado por Bosi, lembrando que ―o canto dever ser
um ‗grito de alarme‘‖, como queriam os alemães. A forma simples e breve em que são
colocadas as palavras nos versos livres, o diálogo com outro poeta e a denúncia, comprovam a
veia poética modernista de Godoy Garcia e seu engajamento social.

5.2 A poesia prosaica de José Godoy Garcia

No que tange aos oito livros de poesia de José Godoy Garcia encontramos os mais
diversos poemas. Desde aqueles que evidenciam fortes traços da poesia tradicional com
rimas, ritmo e estrofes, até os que trazem evidentes peculiaridades modernas como é o caso de
―Poema‖, que tem apenas dois versos: ―De madrugada as águas/dormem‖ (GARCIA, 1999, p.
22).
Observamos que há uma marca singular em sua produção assinalada pela
característica discursiva e social, isto é, Godoy aborda muito o cotidiano, a vida urbana e
rural, as etnias e a política, entre outros temas que chamam a atenção para a questão social,
que na verdade, passou a ser mais explorada no Brasil pelos artistas na terceira fase do
Romantismo.
Para isso ele recorre ao discurso épico, no sentido do conteúdo do texto ser uma
narrativa que enfatiza o que se vai dizer, de forma que fique explícita sua idéia. Essa
perspectiva está vinculada ao fazer poético de Godoy Garcia, que se aproxima da escrita
prosaica, isto é, em tom narrativo. Essa alusão ao discurso épico diz respeito, inicialmente, a
forma como nos é apresentada a história, pois tem um tom coloquial e é estruturado com
versos livres, menos formais e com combinações de diversas medidas silábicas.
O discurso épico utilizado pelo autor pode ainda ser visto no que diz respeito à
linguagem conotativa de apresentar a capacidade de sugerir idéias, visões e imagens e não só
apresenta conteúdo subjetivo, sendo ―contaminado‖ por elementos objetivos, como por
exemplo, a narração de uma história ou a descrição de um objeto. É preciso entender que os
91

poetas modernistas usavam de uma linguagem própria e significativa para se expressarem.


Candido (1964) nos traz à luz uma explicação para essa assertiva quando pondera que

os modernistas usavam desde o verso livre marcadamente ritmado, dotado de


harmonia e melodia, até o verso livre prosaico, isto é, quase se confundindo
com o ritmo da prosa, para mostrar que a poesia está na essência do que é
dito e na sugestão, ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos
formais‖ (CANDIDO, 1964, p. 20).

Com esse exemplo, evidencia-se a aproximação da escrita godoyana com as


características modernas, que não estão relacionadas apenas ao fato de o autor estar ligado à
geração modernista. Isso se justifica pelo fato de Godoy Garcia ter escrito poesias sem
metrificações e rimas, mas com ritmo. Como é o caso de um pequeno poema, sem título, do
livro A Última Nova Estrela, no qual o poeta escreve um pensamento de menino:

Se eu tivesse um canivete, uma manga,


uma árvore bonita e uma estrada longe chegando,
quem sabe eu poderia ter ainda,
uma infância, nas mãos?

(GARCIA, 1999, p. 187)

Sem forma fixa, apenas com termos selecionados coesa e coerentemente, em uma
linguagem prosaica, temos uma poesia constituída de sentido. E é moderna também, porque
foi elaborada sob o olhar acentuado de um poeta que quis dar maior significação a uma
personagem lírica, ao se lembrar da infância.
Dessa forma, uma das marcas da escrita de José Godoy Garcia se dá com a junção da
prosa e da poesia, em que mesmo a estrutura sendo poética, há narrativa, como é o caso de
Espécie de Balada da Moça de Goiatuba, do livro Rio do Sono2:

Espécie de balada da Moça de Goiatuba

Em Goiatuba
tem uma moça
que coração

2
Texto transcrito conforme a edição de 1980 (GARCIA, José Godoy. Aqui é a Terra. Rio do Sono. Araguaia
Mansidão. Goiânia, Oriente, 1980, p. 18). Vale ressaltar que o poema toma dimensão estrutural diferente na
edição de 1999.
92

grande ela tem

Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem.

A moça de lá
é só chamar vem

De Goiatuba
eu guardo
muitas recordações

De lá eu guardo
muitas recordações

Lá tem rua
que parece bicho
querendo se esconder
por detrás do mato

Lá tem homem
que lutou na revolução

Lá tem farmacêutico
que sabe latim

Lá tem padre que mora


com mulher na rua de cima
e de tarde sobe de lanterna na mão

Lá tem cadeia
Assombrada
e tem louco nas grades rindo
feito bicho com fome

Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
93

bom ela tem

A moça de lá
desde menina
serve aos homens
com sabedoria

Toda moça no mundo


aprende que corpo
não se pode mostrar
vestido deve vestir
vergonha deve sentir
amor deve esconder
sonho pode sonhar

A moça de lá
não aprendeu a sonhar

A moça de Goiatuba
é como a fonte
que dá de beber
é como a árvore
que dá frutos
é como a noite
que dá as estrelas
Ela só não compreende porque os homens
têm coisa com ela

Um dia indagou:
_ ―Por que ocêis me mandam
deitar no chão?‖

_ ―Eu visto meu vestido,


eu ponho colar bonito,
eu enfeito os meus cabelos
com flor
Eu estou bonita
com o meu vestido
eu estou bonita
94

com essa flor


vocês me mandam tirar vestido,
ocês são bobos?

Lá em Goiatuba
tem uma moça
que coração grande ela tem.

A moça de lá
é só chamar vem.

(GARCIA, 1980, p.18)

Esse poema nos é apresentado, como o título já revela, em forma de balada. As


baladas fazem parte de um gênero clássico, que está ligado à oralidade e muitas vezes narram
uma história, concentrada em apenas uma personagem, marcada por um único episódio. É o
que se dá nesse contexto, evidenciando o hibridismo dos gêneros apresentados por Staiger
(1997).
Toda obra possui esse hibridismo dos gêneros. E em vários poemas de Godoy Garcia,
como por exemplo, ―Espécie de Balada da Moça de Goiatuba‖, encontramos o ―eu poético‖
narrando uma história, o que nos leva a identificar a presença do elemento prosaico/épico na
poesia.
Ao que entendemos, esse elemento é uma junção de características dos dois gêneros
para dar origem a uma poesia que não chega a ser uma narrativa em prosa, mas carrega em
seu interior particularidades da prosa, como por exemplo, uma personagem central e um
enredo. Quanto ao hibridismo dos gêneros, verificamos que há um fundamento concreto. Isso
ocorre porque não podemos separar definitivamente o lírico do épico, visto que ambos são
gêneros discursivos, tendo a palavra como seu instrumento maior de realização. Nessa
direção, percorrem a mesma via e a diferença está apenas na forma de ―colocar a palavra no
papel‖, ora prosaica, ora poeticamente.
Vale lembrar que, quando nos reportamos aos termos prosaica e poeticamente, este
está empregado no sentido da disposição, da forma, de um poema elaborado com estruturas,
fixas ou não; em versos; composto por estrofes e ritmo próprio, mas não necessariamente,
com rimas. Enquanto aquele está voltado para uma composição não menos inspirada, mas não
tão ―exigentes‖ no que diz respeito ao conteúdo e à forma.
95

Este poema é constituído por um refrão, para reforçar a principal idéia: ―em Goiatuba /
tem uma moça / que coração grande ela tem‖ e algumas rimas. É também separado por
estrofes, algumas mais breves e outras mais longas, um poema que não fala de amor ou da
lua, temas muito comuns nesse tipo de produção, mas retrata a realidade da vida de uma moça
interiorana que se mostra inocente e ignorante ao que os homens desejam dela e, por isso eles
abusam da mesma.
A prosa evidencia-se aqui com o enredo e a fala de personagens, no momento em que
a voz lírica levanta questionamentos sobre o comportamento dos homens, em relação a ela. Já
os versos, a essência do gênero lírico, são claramente vistos em todo o poema, inclusive com
uma sonoridade e ritmo perceptíveis.
Dessa forma, as duas vertentes do mesmo rio, pois se trata de dois gêneros que têm
como instrumento a linguagem verbal, corroboram para o entrosamento no paralelo entre o
gênero lírico e o dramático. Isso se dá no poema por serem colocadas algumas características
de um texto dramático no poema. Algumas dessas peculiaridades dizem respeito à descrição
da cidade e dos acontecimentos vivenciados na mesma além da colocação do diálogo entre a
―moça‖ e os homens.
Na verdade o que há é um monólogo, pois ela questiona e não tem resposta. Assim são
distribuídos os versos: ―Um dia indagou:/_ ‗Por que ocêis me mandam/deitar no chão?‘/_ ‗Eu
visto meu vestido,/eu ponho colar bonito,/eu enfeito os meus cabelos/com flor/Eu estou
bonita/com o meu vestido/eu estou bonita/com essa flor/vocês me mandam tirar vestido,/ocês
são bobos?‘‖.
Aqui podemos perceber ainda um paradoxo, uma vez que o eu-lírico é indagador, mas
ao mesmo tempo passivo. Existe um questionamento em relação à posição dos homens, uma
revolta por parte do ser poetante, contudo não é tomada nenhuma posição a fim de reverter o
fato, e ele acaba cedendo aos chamamentos masculinos.
Nessa mesma passagem do poema, ele ainda expõe claramente o que faz a moça e
como é o seu comportamento com e diante dos homens. Dá-nos a idéia de que ela é uma
pessoa muito sofrida, porque parece viver para fazer as vontades alheias e não as suas
próprias, ela é uma moça que não tem sonhos próprios, desejos a serem realizados, é
desprovida de qualquer malícia, não sabe nem mesmo porque os homens a procuram e a
mandam tirar o vestido.
E tudo o que faz é como se fosse realizado de maneira automática, assim como
Macabéa, personagem do livro A Hora da Estrela de Clarice Lispector. ―A moça de lá / não
aprendeu a sonhar / A moça de Goiatuba / é como a fonte / que dá de beber / é como a árvore /
96

que dá frutos / é como a noite / que dá as estrelas‖. Tanto Macabéa quanto a moça de
Goiatuba, que nem mesmo tem um nome, são personagens que, a priori, não têm muita
importância ou significação para a sociedade, mas que carregam uma expressiva característica
de muitas mulheres que viveram e vivem, ainda hoje, em nosso meio.
José Godoy Garcia coloca no poema essa peculiaridade, pois não apenas nesse poema,
como em outros, o autor traz à nossa memória o tema da mulher que está sempre presente em
sua obra. A mulher tem um papel muito importante na poética godoyana, sua caracterização
se dá através dos inúmeros momentos em que nos deparamos com a figura feminina nos
poemas.
Não há indícios de que o poeta tenha seguido uma poética pautada pelos estudos
culturais, ou algo semelhante, que trace um perfil imutável. O que podemos notar é que há
sempre uma defesa explícita dessa causa, talvez pautado pela sua própria convivência com
muitas delas.
Mas não se trata de qualquer mulher, e existe aí outro paradoxo, pois ele sempre se
posiciona em defesa da ―mulher do povo‖ (prostituta) sendo usada pelos homens, se
humilhando e sendo exposta e ridicularizada, mas também sai em defesa das moças virgens
que acabam se deixando encantar pelos homens. Para exemplificar tomemos ―Mulher do
Povo‖ ainda do livro Rio do Sono.
Nesse poema, que também narra a história de uma moça, a mulher é vista apenas
como um objeto que dormia com soldados e bêbados a troco de nada. E o poeta nos conta isso
de maneira simples, versificando, como se estivesse simplesmente descrevendo o que ocorria
com a ―mulher do povo‖.
Este último poema citado nos faz lembrar um texto de Cora Coralina, ―Todas as
Vidas‖, em que a poetiza, também conhecida por narrar histórias – longas histórias – em seus
poemas, canta as mulheres de forma a trazer para a poesia um elemento prosaico e moderno
que é a narração. Não que a narração seja uma característica do moderno, até porque ela é
inerente ao homem em todos os tempos, mas no sentido de ser ―poesia narrada‖, isto é, uma
narrativa em prosa.
Cabe observar que um poema com características prosaicas deve ter em sua tessitura
elementos de coesão que o levem a essa definição de prosaico. Apesar de se tratar de uma
poesia, ela não pode ser destituída de valores significativos e semânticos, e como bem nos
alerta Emil Staiger (1997, p. 39): ―A unidade e coesão do clima lírico é de suma importância
num poema, pois o contexto lógico, que sempre esperamos de uma manifestação lingüística,
quase nunca é elaborado em tais casos, ou o é apenas imprecisamente‖.
97

Nesse caso, o prosaísmo se dá por ser o poema constituído do elemento objetivo


concreto, que é a narração de uma história. Dessa forma, seguindo seu tom prosaico, pautado
pelos elementos épicos, a voz lírica deixa transparecer no poema alguns fatos do contexto
histórico daquele momento, e assim, ainda que em apenas dois versos, diz que ―Lá tem
homem / que lutou na revolução‖. Consequência ou não dos atos revolucionários, ou por se
tratar de uma cidade pequena, onde as pessoas são muito supersticiosas, é exposto no poema o
traço religioso.
Essa marca está explícita em apenas um verso, mas que é carregado de uma entonação
muito forte, com a palavra ―Assombrada‖, que se refere à cadeia da cidade onde se via loucos
pendurados nas grades como se fossem bichos com fome. Tal característica é apresentada de
forma a evidenciar um comportamento peculiar de cidades interioranas onde a tendência em
mitificar um acontecimento é muito forte. Dessa forma, o termo assombrada vem reforçar a
idealização de uma lenda que fala das almas perdidas a vagarem em torno da cadeia, nas celas
frias e escuras de uma prisão.
A situação do padre no poema é retratada de forma leve, com humor, à maneira
modernista. O eu poetante diz que ele mora com uma mulher da rua de cima e essa mulher,
pode ser a mesma moça que dorme com todos os outros homens, pois ela é colocada no
poema como o ser que dá prazer, a água que mata a sede, as estrelas que iluminam a noite.
E, além disso, é ela quem ―serve os homens com sabedoria‖, isto é, esta voz lírica
feminina encontrada no texto sabe bem o que todos querem com ela, apesar de se fazer de
desentendida, ao questioná-los. Mas ela quer ser como as outras moças recatadas que se
escondem nos moldes da sociedade ao vestirem seus vestidos bonitos e enfeitarem com rosas
seus cabelos, deixando evidenciar a vaidade característica da mulher, que é colocada pela
ideologia dominante.
Alfredo Bosi (1993, p.142) fala que é essa ideologia que hoje dá nome e sentido às
coisas. Para o crítico ―a extrema divisão do trabalho manual e intelectual, a Ciência e, mais do
que esta, os discursos ideológicos e as faixas domesticadas do senso comum preenchem hoje
o imenso vazio deixado pelas mitologias‖. Dessa forma, a ideologia que aqui nos referimos é
essa empregada pelos sujeitos de uma determinada sociedade, no caso a população brasileira
em sua maioria, que enxergam o mundo a partir de uma concepção histórica e está ligada
diretamente aos fatores discursivos da igreja, ou da família, por exemplo. Sendo estas
instituições que sempre trouxeram nas mãos um elevado poder de persuasão e domínio
exacerbado.
98

No decorrer da narrativa, ou seja, do poema, antes de falar, na ―moça de Goiatuba‖, o


autor primeiro pincela sobre a moral e os bons costumes, novamente voltando para o tema da
cultura que deve ser seguida e as regras que devem ser obedecidas, ele diz que: ―Toda moça
no mundo/aprende que corpo/não pode mostrar/vestido deve vestir/vergonha deve sentir/amor
deve esconder/sonho pode sonhar‖.
Assim, essa questão do padre morar com uma mulher e da moça servir aos homens
não chega a ser, necessariamente, uma sátira à moral uma vez que o poeta não está
questionando no sentido de puni-los, mas apenas lembra um assunto que a tradicionalmente
não é aceito. Não é da alçada de José Godoy Garcia levantar esse tipo de questionamento de
forma negativa, pois a essência e o estereótipo humano enquanto ser marginalizado e
rebaixado é uma das ocorrências que ele sempre defende em sua obra.
E no que tange ao poema em questão, podemos enfatizar que ele é dotado dessa
peculiar característica, que o torna um poema prosaico constituído de unidade e coesão líricas.
Tal situação se dá, uma vez que o poeta se preocupou em passar para o leitor todas as
informações necessárias de maneira clara e coerente, fazendo assim com que a história da
moça de Goiatuba fosse recebida abertamente e sem maiores limitações sintáticas.
Este poema é muito representativo na literatura de Goiás, podemos dizer que já foi até
mesmo popularizado. Ele está para nossa literatura, assim como o poema ―José‖, está para a
literatura brasileira. Para Alaor Barbosa, em artigo publicado pela coluna ―Jornalismo
Cultural‖, na Revista Bula:

O seu ritmo e simplicidade, malícia e amoralidade já se incorporaram ao


patrimônio poético dos goianos. Tal como o nome de Drummond lembra
―pedra no caminho‖, José de Alencar a ―virgem dos lábios de mel‖,
Monteiro Lobato, Jeca Tatu — assim o poema da moça de Goiatuba se liga a
Godoy Garcia como algo de característico. [...] É o poema clássico e típico
não só da poesia de Godoy, mas da poesia moderna de Goiás. Afonso Félix
de Souza e Jesus Jayme fizeram paródias desse poema, o que lhe demonstra
a enorme força expressional (BARBOSA, 2008).

No tocante à sua forma peculiar de criação, José Godoy Garcia além de escrever
―poesia em prosa‖ ainda defende o que a sociedade prega que é errado. Exemplo disso
encontramos no que diz respeito à moça de Goiatuba, em que o eu poetante nutre sentimentos
positivos para com a mesma, ele fala dos sentimos e de seu bom coração. É então revelado
mais uma característica de poesia moderna, em que o poeta canta os seres negados pela
ideologia.
99

Estes são agora colocados no lugar do herói épico que já perdeu seu lugar na
sociedade atual e passa a ser o herói moderno, conceituado como o homem comum, operário
e, seu ato heróico consiste em sobreviver nesse caos instaurado na atualidade. Resultado dessa
destreza, é que esse herói passa a não mais se dar conta de seu heroísmo, tornando-se vítima
de seus próprios feitos. O exemplo da moça referida no poema basta para percebermos isso,
pois ela é uma pessoa inocente, cobrada pela sociedade, que deixa de viver sua vida e seus
sonhos para garantir a felicidade e desejo dos homens.
Essa mulher, como tantas outras, e a maioria dos personagens esboçados por José
Godoy Garcia vivem esse ato heroico, eles se sacrificam pela felicidade dos outros. E
percebemos que não só eles, mas toda a essência humana atual vive sob o reflexo dessa
deficiência.
Antes de concluirmos essa leitura, é importante demonstrar que em entrevista José
Godoy Garcia menciona alguns fatos relevantes que podem contribuir para sua análise.
Segundo ele:

A minha ―moça de Goiatuba‖ é uma moça serva, era o regime de serva que
estava chegando em Goiás. Ela tinha sua liberdade de serva de gleba, por
isso tinha que ser chamada. [...] A minha moça de Goiatuba é evoluída numa
etapa social. Ficava bonita, se mostrava para os homens. Era uma mulher
que estava começando a se perceber, quase como uma cidadã (1998, ver
anexo).

Justamente o que depreendemos desse texto: uma mulher submetida às vontades


alheias, com limitações de serva que está começando a descobrir o mundo e, com isso, novos
horizontes, ou seja, uma moça que para se descobrir mulher teve que passar por uma
experiência tão simbólica. Ademais, salientamos o pensamento feminino da época através da
declaração do autor, quando explica que foi proibido de entrar na cidade, naquela ocasião.
Procurado e indagado por um grupo de moças em Goiatuba, foi necessário que se
defendesse das mesmas dizendo a elas que ―‗A moça não tem nada demais. Os homens é que
não prestavam‘. Então, elas se contentaram e foram embora‖. É curioso esse acontecimento, e
ao mesmo tempo, é a partir dele que vimos moças que começavam a questionar seus direitos,
fazendo jus ao que afirma Godoy Garcia, que a moça do poema é evoluída socialmente.
Rejeitando a distinção entre temas poéticos e não poéticos, resgatando o herói
moderno, uma tendência coletiva dos modernistas, Godoy Garcia opta pela poetização do que
até então permanecera fora das esferas poéticas e, automaticamente, fora das margens sociais.
Através desse e outros poemas de Godoy percebemos sua resistência ao mundo hostil
e surdo que hoje vivemos, pois o poeta concede autoridade ao eu-lírico para demonstrar sua
100

revolta frente aos impasses da ideologia dominante. Essa resistência é aquela que Alfredo
Bosi (1993) concebe ao corroborar que a poesia moderna tem sido uma aversão simbólica aos
discursos ideológicos. Dessa forma, vimos que o autor, por meio de seus poemas, deixa falar
aquilo que a ideologia, entendida como falsa consciência, esconde.
Uma vez constatada a falta de relação com os valores sociais instaurados na ordem
capitalista, a poesia se faz instrumento de resistência. A poesia social é uma das maneiras de
fazer valer essa atitude. Com esta, o poeta reage à falta de harmonia com a sociedade,
oscilando sempre entre fazer crítica ao contexto histórico, ou simplesmente desprezando-o,
deixando transparecer seu desinteresse pelos fatos que não dizem respeito ao fazer poético.
O poeta em questão vem com sua poesia social romper com as tradições antigas para
dar início, paradoxalmente, a tradição moderna em Goiás. E é na perspectiva literária poética
que este sujeito fragmentado enxergará a luz no fim do túnel e descobrirá o sustento para
lançar-se frente à sociedade a que pertence e que ao mesmo tempo o rejeita pelo seu
comportamento transgressor.
Na verdade o que o poeta quer é quebrar as regras impostas e trazer uma nova
concepção de fazer poesia que logo se renovará. Assim, ele levanta uma reflexão que ao
mesmo tempo destrói e cria; nega e afirma. Essa tradição é um mover cíclico que apresenta a
modernidade como um fator capaz de fundir o tempo e apagar as oposições entre o que
passou e o que é. Dessa forma, amparado por essa tradição e também pelo horizonte de
expectativa, sobre o qual falamos nos primeiros capítulos, o poeta está apto a transcrever tudo
o que sente, sem se importar com a antiga reminiscência.
As pessoas não dão importância para aquilo que não é pregado pela ideologia, ou seja,
que segue a tradição clássica imposta desde o surgimento do gênero lírico e que muitos ainda
acreditam prevalecer. E nos poemas deste autor, evidencia-se a aversão do mesmo frente ao
mundo da ideologia dominante, em que ele propõe uma nova forma de ver a realidade, mas
que essa parte da sociedade procura evitar, pois a ameaça.
Godoy não se importa com a posição do leitor que só vê poesia onde há regras, rimas e
temas ―poéticos‖. Assim, ele encontra seu heroísmo na escória social e passa a desvendar a
riqueza e o que há de bom nas ―vidas obscuras‖, ou seja, nos sujeitos marginalizados. Nos
poemas citados no interior desse trabalho, as personagens que o autor ―canta‖ são aquelas que
se opõem ao ideal de mulher, as que não são reconhecidas socialmente.
101

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No desenvolver desta pesquisa, notamos que, ao longo de toda sua obra, José Godoy
Garcia, ao elaborar seus poemas e expor neles um conteúdo bastante peculiar e inerente ao ser
humano, evidencia a necessidade de um olhar social sobre essa questão. Trilhamos alguns
caminhos da poética godoyana e vimos que José Godoy Garcia preocupava-se com variados
problemas que estão ligados ao social, à política e, principalmente, ao ser humano. Além
disso, tentamos mostrar que o autor em questão praticava com muito rigor o processo de
escrita de suas narrativas.
O que intentamos buscar neste trabalho foi a importância crucial desse poeta para a
literatura produzida em Goiás. Inicialmente, nossa hipótese era trabalhar com a ideia de que o
autor era provinciano e anacrônico, mas descobrimos no caminho percorrido que, trata-se de
um nome que deve ser reenquadrado nos meios literários, merecedor de sair da literatura
regional para a nacional.
Ao analisarmos a poética de José Godoy Garcia verificamos que sua forma de
escrever, em constante mudança de ritmo, mas pautada por um caminho linear de saudar os
párias é a tônica maior de sua escrita. Tanto na prosa, quanto na poesia, a peculiar presença
das questões sociais, políticas e ontológicas se mostram evidentes.
Estudos futuros, com leituras mais detalhadas e específicas podem alcançar maiores
resultados na crítica godoyana, pois há ainda muito a ser depreendido de sua obra. Além
disso, comprovamos a necessidade que temos de incluir fontes maiores para pesquisa sobre
esse autor, de forma que, pretendemos contribuir para sanar tal deficiência.
A partir de nossas análises, chegamos à conclusão que a Universidade e a Academia,
como instâncias de legitimação, deveriam proporcionar um espaço maior para a divulgação
das obras de autores considerados regionais, para a partir daí, serem submetidos ao horizonte
de expectativa dos novos leitores.
Ainda no que tange a um dos aspectos de maior representatividade desenvolvidos
neste trabalho, que diz respeito ao anacronismo do movimento modernista em Goiânia e a
participação de Godoy Garcia, notamos que ele foi um autor sintonizado com a literatura
nacional e internacional, desde o início de sua carreira. Destarte, a primeira impressão que
tivemos desse autor, embasada nos lineamentos teóricos de Gilberto Mendonça Teles, não se
mostrou verdadeira, pois descobrimos veredas que foram trilhadas além daquelas impostas
pelo momento literário vivido. Isto é, José Godoy Garcia não ficou apenas em Goiás,
estagnado por sua limitação geográfica, ele foi além das fronteiras impostas.
102

Ao longo de nosso trabalho, procuramos demonstrar, através de vários ângulos, como


o autor inovou o panorama da literatura produzida em Goiás ao inserir no âmbito do processo
de construção de sua estética os mecanismos modernistas e inovadores. Ressaltamos que,
como se trata de um trabalho de características biográfica e historiográfica, pudemos contar
com as afirmações do próprio autor, em entrevistas e textos críticos, e também com os fatos
históricos, para sedimentarmos teoricamente nossa pesquisa.
Por fim, esperamos ter localizado José Godoy Garcia como um escritor que contribuiu
com a literatura produzida em Goiás, e com isso reforça o cenário literário nacional,
destacando que autor e obra são muito mais importantes do que supúnhamos inicialmente.
103

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<http://books.google.com.br/books?id=BRgTXzWw2SsC&printsec=frontcover#v=onepage&
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TELES. Gilberto Mendonça. A poesia em Goiás. Goiânia: Ed. UFG, 1964.

TOLLENDAL, Eduardo José. Nas fronteiras do romance da revolução. In: ________ Arte
Revolucionária, Forma Revolucionária: a literatura política de Jorge Amado e Alejo
Carpentier. Tese (Doutorado em Letras) – Curso de Teoria Literária do Instituto de Estudos
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TOMACHEVSKI, Boris. Sobre o verso. In: ________ TOMACHEVSKI, B. et al. Teoria da


Literatura: formalistas russos. 4. ed. Trad. Zilberman et al. Porto Alegre, Globo, 1978.

ZILBERMAN, Regina. Hans Robert Jauss e a estética da recepção: contribuições aos estudos
literários. In: ________ (org.) JOSÉ ALBANO VOLKMER. et al. Retratos de cooperação
científica e cultural: 40 anos do Instituto Cultural Brasileiro-Alemão. Porto Alegre:
EDIPURCRS, 1999, p. 147-156.
ANEXO

ENTREVISTA RECEBIDA POR CORREIO ELETRÔNICO

De: Euler de França Belém ([email protected])


Para: Ionice Barbosa de Campos ([email protected])
Em: 22/09/2010 às 00h17min.

Há dois tipos de franco-atiradores intelectuais. O primeiro, e mais conhecido, é aquele que


atira a esmo, não se preocupando com o conteúdo de seus petardos. O segundo é diferente:
atira firme, até com rudeza, mas tem formação, conhecimento. José Godoy Garcia era desta
estirpe de franco-atiradores. O poeta não era um crítico acadêmico, mas conhecia a crítica
acadêmica, a teoria, e, sobretudo, tinha amplo conhecimento de literatura. Hoje, aprende-se a
fazer crítica lendo os críticos. O método deveria ser diferente. O aprendiz de crítico deveria
começar lendo literatura, pois, quando lesse a crítica dessa literatura, poderia checar seus
acertos e desacertos. Godoy Garcia, o Zé Trovoada ou Zé Tempestade, mais do que Zé
Chuva, era um grande leitor e um crítico corajoso, que não temia as patotas. Nesta entrevista
ao Jornal Opção — publicada em junho de 1998 —, Godoy mostra-se, até mesmo, um
intérprete inteligente da história. O leitor deve verificar atentamente o que diz de Pedro
Ludovico Teixeira e da radicalização da esquerda nos fins da década de 60. Sua interpretação
da guerrilha não é nada ortodoxa para um homem de esquerda. Por incrível que pareça, na
entrevista, Godoy Garcia está muito sensato. Ele gostava de ser meio insensato,
surpreendente. O poeta José Godoy Garcia morreu em 20 de junho de 2001.

ENTREVISTA / José Godoy Garcia


O lirismo militante
Poeta que canta a vida como pedra bruta, o escritor José Godoy Garcia é também um crítico e,
com ironia certeira, deflagra sua guerrilha cultural.
Com sua voz grave e gestos teatrais, o poeta José Godoy Garcia acaba de fazer 80 anos. A
cerrada barba branca parece compensar a calva que esconde com o indefectível boné, herdado
da geração de Bernardo Élis. Mas José Godoy Garcia não transparece a idade que tem. Com o
riso sempre pronto, tudo ele trata com irreverência, desde a sua própria poesia até as obras de
ícones da literatura, passando, é claro, pelas ferinas observações a respeito da literatura
goiana. Recentemente, reuniu essas críticas no livro Aprendiz de Feiticeiro, que publicou em
1997, em Brasília. Mas seu ofício é fazer poesia. E as últimas estão em O Flautista e o Mundo
Sol Verde e Vermelho, lançado pela brasiliense Thesaurus. Esse livro é dedicado a antigos
colegas de militância política: Alberto Xavier de Almeida, Haroldo de Britto Guimarães (que
morreu neste ano) e Cairo Campos.
No livro, o ―Zé Garcia Chuva‖, como ele se intitula, convida o leitor: ―Não abra este livro ao
acaso. Há uma pedra bruta, uma sede de ser igual a uma música, uma árvore, um corpo‖. Na
vida, o cidadão José Godoy Garcia é um cascalho com sede — franco e ávido em relação a
tudo que o cerca. Natural de Jataí, onde nasceu em 1918, José Godoy Garcia mora em
Brasília, desde o final da década de 50. Estreou na literatura, em 1948, com Pedra do Sono,
um livro de poesia que é tido como um marco do modernismo de 22 em Goiás, juntamente
com Primeira Chuva, de Bernardo Élis, publicado três anos antes. ―Esse meu primeiro livro
foi arranjado pelo Domingos Félix de Sousa‖, conta o próprio Godoy Garcia. ―Depois, fiz
umas modificações, e ele foi publicado.‖
A geração da qual faz parte José Godoy Garcia teve como um de seus marcos a revista Oeste,
criada em julho de 1942, e a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, instituída em 1944, que
premiou Ermos e Gerais, de Bernardo Élis, a primeira obra do regionalismo do Brasil Central,
que antecipou a obra de Guimarães Rosa. Rio do Sono, de José Godoy Garcia, foi publicado
pela bolsa, prêmio que continua revelando novos autores a cada ano. ―Dei um trabalho danado
para o pessoal da Revista dos Tribunais, em São Paulo, que imprimia os livros da bolsa. Cada
vez que as provas voltavam, eu mexia nos poemas, tentava acrescentar outros. O Oscar
Sabino Júnior, que organizava a bolsa, ficava com muita raiva‖, lembra o poeta.
Depois disso, José Godoy Garcia quase abandonou a literatura. A sedução do Partido
Comunista, em 1945, e o processo de democratização, logo a seguir, levou quase toda a sua
geração para a militância política. ―Encarei seriamente a militância no partido. Era um pau
para toda obra‖, conta José Godoy Garcia, que, nesta época, já era advogado, depois de uma
passagem pelo Rio de Janeiro. Seu segundo livro só apareceu em 1966 — o romance O
Caminho de Trombas, inspirado diretamente nas lutas do Partido Comunista. Godoy Garcia
tinha participado da guerrilha quase lendária de Zé Porfírio, em Trombas e Formoso. ―Levei
fuzis para os camponeses‖, conta, rindo-se dos muitos fracassos de sua aventura guerrilheira.
Araguaia Mansidão, o terceiro livro de Godoy Garcia, apareceu em 1972, seguido por A Casa
de Viramundo, de 1980. Em 1980, José Godoy Garcia reuniu seus poemas no livro Aqui É
Terra, que teve o selo da Civilização Brasileira. Entre Hinos e Bandeiras (1985), Os Morcegos
(1986) e Os Dinossauros dos Sete Mares (1988) foram seus outros livros antes de O Flautista
e o Mundo Sol Verde e Vermelho, todos de poesia. Mas, em 1990, José Godoy Garcia fez sua
segunda incursão pela prosa, com o livro de contos Florismundo Periquito. Para o poeta
brasiliense Salomão Sousa, neste livro de contos, Godoy Garcia ―reafirma a humanidade,
salva a dignidade do ser humano‖.
Em visita ao Jornal Opção, na segunda-feira, 8, o poeta José Godoy Garcia fez um balanço de
sua geração e da militância política no Partido Comunista. Crítico ferrenho de tudo que lhe
parece oligarquia, não trilhou o costumeiro caminho de quase todas as personalidades
históricas do Estado quando têm que avaliar as figuras de Pedro Ludovico e Totó Caiado.
Geralmente, os elogios são distribuídos igualitariamente entre as duas oligarquias, quando o
analista não pende claramente para o lado de sua preferência. Já o poeta prefere ―equilibrar‖
as virulentas críticas que faz a ambos. Essa crueza de análise ele reserva, também, para seus
colegas de literatura. Da entrevista participaram o jornalista A.C. Scartezini, corresponde do
Jornal Opção em Brasília, o poeta Salomão Sousa, o jornalista Vassil de Oliveira e o crítico
Antônio Ramos Jubé.
José Maria e Silva — O seu livro de crítica literária, Aprendiz de Feiticeiro, traz avaliações
muito contundentes a respeito da crítica literária que vem sendo praticada nas universidades.
Trata-se de um livro polêmico, entretanto foi recebido com indiferença em Goiás. A que se
deve esse silêncio em torno dele?
O meu livro tem um nível crítico e um aprofundamento filosófico que o torna difícil para
resenhas de jornal. Mas sou otimista. Acho que, aos poucos, ele será lido e compreendido. No
Brasil, o que é justo demora a vingar, mas não morre. A Universidade de Brasília, por
exemplo, encomendou 50 exemplares. No livro há uma crítica a um professor da UnB, o
Laércio Nora Bacelar. Nesse livro, eu carrego na teoria. Mas procurei fazer isso com base nas
obras. Ao invés de escrever um tratado de estética, preferi aplicar a teoria, concretamente, a
determinados livros, como O Tronco, de Bernardo Élis, e os contos de Hugo de Carvalho
Ramos, o romance Pium, de Eli Brasiliense. Até me chamo, neste livro, de ―novo rico‖ da
literatura, por carregar na teoria. Mas isso é necessário. E não é necessário apenas num Goiás
seco deste, mas no Brasil. O Brasil está absolutamente fora do ângulo de uma pesquisa, de um
caminho, sobre este mundo de hoje.

José Maria e Silva — O senhor não acha que, apesar dos muitos equívocos que comete, as
universidades produzem bons trabalhos críticos?
As universidades estão pesquisando, o que já é alguma coisa. Mas elas escamoteiam a história
da arte. Elas não estudam o romantismo, o naturalismo, o positivismo, não estudam nada
disso. Elas pegam a obra literária e a destrincham como se destrinchassem um frango para
vender no mercado, separando o coração, o peito, as coxas. Agora mesmo a professora Darci
França Denófrio, que é uma mulher extraordinária no Brasil, escreveu um livro sobre o
Miguel Jorge e diz que é um absurdo o crítico encarar um livro em sua totalidade e que cada
um deve se encarregar de um pedacinho. Reconheço que, nesse estudo, ela já avança ao
estudar os personagens, algo que a universidade não faz, uma vez que se ocupa só da
linguagem, da montagem. Então, a Darci Denófrio diz que ninguém pode ver uma obra inteira
sozinho. É natural. Quando a obra é muito grande ela pode ser vista por vários ângulos. Mas o
crítico não pode fazer uma leitura deliberadamente parcial, porque isso desnatura a obra. Uma
obra de arte, uma obra de ficção, é algo profundo. É um mundo à parte, que não pode ser
mutilado. O crítico tem que buscar a totalidade da obra, ainda que cada crítico, seguindo este
caminho, possa chegar a resultados diferentes.

Ramos Jubé — Como o senhor avalia o trabalho crítico de Oscar Sabino em Goiás?
Extraordinário. Ele veio de Belo Horizonte jovem, no final da Segunda Grande Guerra, em
1945. Estamos, há uns três anos, labutando com a literatura. Ele chegou falando em
Heidegger, um filósofo que era novidade para nós. No pós-guerra, Heidegger era um filósofo
que toda elite ocidental, nas universidades antimarxistas ou que não se pautavam pelo
marxismo, discutiam. Karl Jaspers também. Heidegger, apesar de ter sido um nazista de
carteirinha, como reitor da Universidade de Berlim, teve uma importância filosófica muito
grande, como base de todo o existencialismo. Em Minas, havia uma intelectualidade mais
estruturada, toda uma fundamentação idealista, cristã. O Oscar Sabino Júnior estudou lá
durante três, quatro anos, e trouxe todas essas novidades. Eu também andava me preocupando
com essas questões, mas sob um ângulo marxista. O Sabino Júnior era um rapaz
extremamente sério, honrado, incapaz de mentir. Muito autêntico, franco. Como secretário da
entidade, ele foi um pé de boi na Associação Brasileira de Escritores, fundada em 1944.

José Maria e Silva — Nessa época é que foi criada a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos. Como
foi a criação da bolsa?
O Bernardo Élis conseguiu, com o Venerando de Freitas, que era prefeito de Goiânia, a
criação da Bolsa de Publicação Hugo de Carvalho Ramos. E se não fosse o Oscar Sabino
Júnior, ela teria virado uma anarquia. A gente ficava mudando o livro premiado a vida toda, e
o pessoal da Revista dos Tribunais, em São Paulo, que imprimia a obra, ficava com muita
raiva. Eu mesmo fazia isso, e ele brigava comigo. Mas eu o admirava muito, devido à
lealdade dele. Só que o livro dele acabou ficando meio decepcionante. Ele foi um crítico bom,
tinha mais audácia, mas foi modificando, modificando, até ficar borocochô. O Oscar Sabino
Júnior sofreu muito com o modernismo. As pessoas diziam: ―Aquele Primeira Chuva, do
Bernardo, é uma porcaria‖. E achavam um escândalo a ―pedra no caminho‖ do Drummond. O
Oscar ficava duas, três horas, explicando esse poema. Ele estudava, procurava se embasar. Foi
o primeiro a estudar Sainte-Beuve aqui. Na época, Sainte-Beuve dominava a crítica brasileira,
menos Sérgio Buarque de Holanda, que tinha uma tintura de marxismo. Álvaro Lins vivia
procurando caminho. Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, pendia para a religiosidade
e se armava dos grandes filósofos católicos franceses, como Jacques Maritain.

Ramos Jubé — Ele é considerado um crítico modernista.


Sem dúvida, apoiou o movimento. Inclusive, Mário de Andrade reclamava para o
modernismo um conteúdo filosófico e religioso, para encaixar Tristão de Athayde. Alceu
Amoroso Lima foi um grande crítico do romance nordestino, juntamente com o Prudente de
Morais Neto, que era bem mais conservador que ele. Alceu Amoroso Lima acabou sendo o
homem do papa João XXIII, da esquerda progressista, de esquerda.

Scartezini — Seu poema A Moça de Goiatuba foi produto de um desafio entre poetas. Um
grupo de poetas se desafiou para ver quem conseguia produzir um poema em cima do tema.
Como é essa história?
Confesso que não sei disso. O Jesus de Aquino Jaime fez um poema baseado na Moça de
Goiatuba. E, apesar de não ter a força poética do Afonso Félix de Sousa, ele tem uma coisa
grandiosa que é o ritmo. O decassílabo e o alexandrino gastaram o ritmo. E a grande
conquista do modernismo foi o verso livre, que abriu uma liberdade imensa para o ritmo. É o
ritmo que leva ao sentimento. Mas o Afonso nunca percebeu o ritmo, porque ele saiu do ritmo
velho. Então, em sua Moça de Goiatuba, ele escamoteou o ritmo. A minha ―moça de
Goiatuba‖ é uma moça serva, era o regime de serva que estava chegando em Goiás. Ela tinha
sua liberdade de serva de gleba, por isso tinha que ser chamada. Antes, Jorge de Lima tinha
feito a Nega Fulô, que era escrava. A minha moça de Goiatuba é evoluída numa etapa social.
Ficava bonita, se mostrava para os homens. Era uma mulher que estava começando a se
perceber, quase como uma cidadã. Mas vem o Afonso e me faz uma poesia que volta à Nega
Fulô, à negra escrava. Já a poesia de Jesus Aquino Jaime sobre a moça de Goiatuba é muito
prosaica.

Ramos Jubé — Sua poesia é muito voltada para a forma. E a Moça de Goiatuba tem um
andamento de redondilha, da balada.
Pode ser, mas eu não fui estudar balada. No meu último livro, O Flautista e o Mundo Sol
Verde e Vermelho, pus muitos sonetos, mas não tem rima nem cesura.

José Maria e Silva — Por que o senhor não podia entrar em Goiatuba?
Por causa desse poema, as pessoas faziam um inferno, dizendo que eu não poderia entrar em
Goiatuba. Na primeira e na segunda vez que fui a Goiatuba, tive receio, mas ninguém me
conheceu. Na terceira vez, fui pegar uns dados com um advogado do Partido Comunista, na
casa dele. Estava lá no escritório dele, batendo à máquina, quando ouvi um zum-zum na sala
ao lado. Eram umas 30 moças que vinham do colégio e ficaram sabendo que estava lá o
homem que havia escrito ―contra as moças de Goiatuba‖. Então, eu disse que nunca havia
escrito contra as moças de Goiatuba, mas elas perguntaram meu nome e disseram: ―Foi o
senhor mesmo‖. Na hora, eu disse: ―Está havendo um equívoco. Nos Estados Unidos, há duas
cidades com o mesmo nome de Goiás: Anápolis e Goiatuba. Eu estudei nos Estados Unidos
muito tempo, então fiz um poema sobre a Goiatuba de lá‖. Eu nunca fui aos Estados Unidos,
mas, na hora, qualquer resposta servia. Uma moça estranhou: ―Mas até as ruas daqui da
cidade são iguais à do poema‖. Aí eu disse: ―A moça não tem nada demais. Os homens é que
não prestavam‖. Então, elas se contentaram e foram embora.

Scartezini — Quando o senhor veio para Goiânia?


Saí de Goiás Velho como estudante, terminei o ginásio em 37, e fui para o Rio de Janeiro no
ano seguinte. Fiquei até o início de 40, quando vim para Goiânia. Já em Goiás Velho eu era
curioso com esse negócio de literatura. Saiu um poema de Bernardo Élis, no jornal do Liceu, e
eu lia aquele poema, comprei livro de Jorge Amado, li os livros do Gabinete de Leitura, que
tinha todos os livros modernistas, menos poesia. Na época, se combatia muito o verso livre
em Goiás. Todo mundo em Goiás Velho era intelectual, fazia versos. E os intelectuais não
eram tímidos, participavam, eram agressivos. Mas tinham uma mentalidade extremamente
conservadora. O Totó Caiado organizou uma oligarquia e tinha os seus áulicos. Luís do
Couto, exibindo o anel no dedo, participava dos saraus, declamando seus poemas românticos.
Vim para Goiânia em 1940. Aqui tivemos contato com o verso livre e a obra de poetas como
Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo. O Bernardo Élis foi profundamente influenciado por
Cassiano. Primeira Chuva, do Bernardo Élis, me influenciou muito. Eu datilografei esse livro
para ele. Foi muito importante. É um trabalho semelhante ao do pintor que, para começar, vai
aprender com os mestres, respirando a atmosfera do ateliê, descobrindo concretamente o
fazer. O Bernardo ficava desconfiado, temendo que eu fosse mexer nos poemas dele.

José Maria e Silva — O crítico Gilberto Mendonça Teles afirma que o senhor e Bernardo
Élis são os grandes defensores do modernismo de 22 em Goiás. Mas alega que, quando o
senhor publicou Rio do Sono, o livro se mostrou desatualizado.
Essa crítica dele é típica da geração de 45. Quem está atualizado? Não tem nada atualizado. O
modernismo está aí até hoje. A atualização da Geração de 45 foi trazer de volta o soneto. Mas
no seu livro, A Nova Poesia em Goiás, o Gilberto reproduz um poema meu que é o melhor
que fiz na vida, ―Os Párias‖, que depois mudou de título. Ele mostra o processo de
decomposição social de um ser humano. E se baseou num episódio real. Em Jataí, um homem
teve a filha deflorada por um dentista. Ele queria matar o dentista, mas não matou. Anos
depois, em Goiânia, depois que vim do Rio de Janeiro, encontrei esse homem na porta do
hotel da Maria Branca, em Campinas. Lá dentro encontrei as duas filhas dele. A mais nova me
disse: ―Meu pai veio me pedir dinheiro emprestado‖. Fiquei pensando naquilo. Esse homem
era uma pessoa íntegra. De repente se transformou nisso. Quando fui fazer esse poema, se
fosse utilizar a estética romântica, ele ficaria muito grande. Então, nessa luta com a palavra,
fui até mesmo irresponsável, e comecei o poema assim: ―Caiu um olho. / O homem ficou sem
ele. / Caiu um dente. / O homem ficou sem ele. / Caiu a filha. / O homem passou vergonha. /
Caiu a vergonha. / Vai pedir dinheiro emprestado no bordel‖. É lógico que essa forma chateia,
mas achei bom isso. Queria uma pedra bruta. Uma vez, uma mulher foi recitar esse poema
aqui. No verso final, fez toda aquela dramatização romântica. Um horror. Eu estava
exatamente fugindo da dramatização.

Ramos Jubé — Como o senhor avalia a poesia de José Décio Filho?


Goiás, naquele tempo, por volta da década de 40, teve uma conquista muito grande. Produziu
um poeta como José Décio Filho e um ficcionista do porte de Bernardo Élis. O José Décio,
com limitações humanas terríveis, deixou uma poesia extraordinária.

José Maria e Silva — O senhor me parece que é um dos primeiros a reconhecer a


importância do obra de Heleno Godoy como ficcionista. O senhor considera a obra dele a
melhor produzida pelo Grupo de Escritores Novos (Gen)?
Sem dúvida. É a única que vai sobrar. A obra do Miguel Jorge é muito problemática.
Ninguém lê o Miguel Jorge. Ele é muito esotérico, ilegível. Ele e o Carlos Fernando
Magalhães entraram por um caminho muito contorcido, vanguardista. Mas eu não dou conta
de ler a obra do Miguel, não. Alguém tem que ler aquilo e fazer uma crítica. Eu já estava em
Brasília, quando o Gen começou. Mas fui convidado para fazer uma conferência para eles,
sobre conteúdo e forma. Então, perguntei a eles por que se reuniam. Foi uma pergunta à qual
eu dei muita importância. Perguntei a eles: ―Vocês se reúnem para discutir literatura?‖. Isso é
um negócio primário, mas é muito gostoso. O Miguel Jorge me respondeu: ―Não sabemos,
não‖. Mas eu dizia a eles que se eles tinham um objetivo precisavam entrar no conflito, ser
contra alguém, ter consciência. Acho que quase todo mundo do Gen desapareceu como
escritor. Para mim, o melhor de todos eles é o Heleno Godoy. Quando veio o Movimento
Práxis, o Miguel Jorge não quis entrar. E o Heleno entrou. Esse movimento é uma
manipulação da linguagem. Manipula-se a realidade greve, por exemplo, e se fica nisso, em
torno da linguagem greve. Isso faz com que esse tipo de literatura e outras espécies de
vanguardismos semelhantes, desde Joyce, sejam estáticos, parados.

José Maria e Silva — O senhor aponta Heleno Godoy como o único que vai ficar dessa
geração do Gen. Mas a obra de Miguel Jorge é muito estudada. Talvez ele tenha a fortuna
crítica mais rica do Estado, equiparável à de Bernardo Élis.
E daí? Coelho Neto também já foi a maior fortuna crítica do Brasil. Hoje, ninguém fala mais
nele. Humberto Campos, quando eu era jovem, era um homem popular, pelo sucesso de sua
literatura. Hoje, desapareceu. O Lima Barreto era tido com um homem que escrevia mal, um
cachaceiro. Hoje, foi recuperado como o grande escritor que é. Agora, é preciso ter critérios
no julgamento da obra literária. Aristóteles tinha seus critérios, Antonio Candido tem os dele.
E esse é um patrimônio que não pode ser jogado fora, assim como as demais ciências não
jogam fora suas conquistas.

José Maria e Silva — Em seu livro Aprendiz de Feiticeiro, o senhor aponta senões em vários
críticos goianos. Diz que Gilberto Mendonça Teles se preocupa excessivamente com a
linguagem, que José Fernandes é hermético, que Darci França Denófrio erra ao defender uma
leitura parcial da obra literária. Quais os postulados críticos que o senhor defende?
Nesse livro, critico também o Laércio Nora Bacelar, da UnB, que parte de uma lingüística
extremamente ortodoxa. Ele afirma: ―Cada objeto estético contém em si o princípio de sua
interpretação‖. É a imanência, um equívoco. Há milhões de objetos estéticos, então há
milhões de teorias de interpretação, porque cada um traz um tipo de interpretação próprio.
Não pode ser assim. O crítico tem que estabelecer conexões. Um romance, por exemplo, não
pode fugir à história. Nenhuma obra da humanidade pode fugir à história, senão fica absurdo.

José Maria e Silva — Como o senhor avalia a crítica produzida nas universidades?
As universidades não estudam nada. Estudar o ser humano, o negócio de ser humano, o jogo
da consciência humana, é algo profundo, é preciso ir além nesse estudo. E as universidades
nem se preocupam com a história do romantismo, do simbolismo, do parnasianismo. Então,
como é que se chegou ao modernismo?

José Maria e Silva — O Domingos Félix também não tinha esse papel?
O Domingos Félix de Sousa foi muito útil para a literatura goiana. Meu primeiro livro, por
exemplo, se deve a ele. Foi o Domingos quem pegou poesias minhas que estavam esparsas e
colocou em forma de livro. Tanto que custei a tomar o livro como meu. É claro que tirei
alguns poemas do livro, fiz algumas mudanças. Até tirei alguns poemas do livro, que achei
meio cristãos, e ele ficou um pouco contrariado comigo por isso.

Scartezini — O senhor diria que o Domingos Félix de Sousa acabou sendo vítima da
permanência em Goiânia? Por outro lado, sua mudança de Goiânia contribuiu para sua
evolução?
Acho que o problema foi outro. Com o início da redemocratização, eu entrei para o Partido
Comunista e abandonei a literatura. O Haroldo de Britto fez o mesmo, e ele tinha tudo para
ser um grande nome da poesia brasileira. O próprio Domingos não fez mais nada. Ele não era
do Partido Comunista, mas era muito ligado a nós. Casou, foi advogar, ficou disperso, a
exemplo do Bernardo Élis, que também se casou e ficou lá, na casinha dele. Só eu ainda fazia
alguma coisa. Eu trouxe o Domingos Carvalho da Silva, um dos expoentes da Geração de 45,
e o Mário Donato. Então, eles falaram para o Gilberto Mendonça Teles: ―Você é da Geração
de 45‖. O Gilberto Mendonça Teles nem sabia disso. Fizemos um congresso de escritores em
Goiânia. Depois disso, ocorreu um marasmo na literatura. Aí veio o Gen, um movimento que
está aí e ainda precisa ser julgado. Quando ele surgiu, nos julgou. Escreveram que da geração
mais velha sobravam apenas Bernardo Élis e eu. Eles criticavam duramente o Domingos Félix
de Sousa. O Heleno Godoy acusou o Domingos de ter ajudado a filha dele, a Maria Lúcia
Félix, a escrever o primeiro livro dela. Ela era adolescente na época, uma menina. Mas isso
nunca aconteceu. O Domingos Félix é um sujeito extraordinário. Naquela época, ele apoiava
todas as iniciativas de goianos. Ele nos achava tímidos, e tinha razão, então fazia tudo para
nos incentivar.
―Pedro Ludovico foi uma cópia dos Caiados‖

Scartezini — Há uma história política de Goiás atrás de seus poemas?


Isso é muito difícil de avaliar. O Bernardo me achava muito refinado. Fui um dos primeiros a
conhecer o contraponto, o fluxo de consciência de Joyce, os vanguardismos, Proust. Enquanto
outros escritores, como o próprio Bernardo, foram se inteirar da realidade do sertão.
Particularmente, preferi cuidar do humano. Mas o Rio do Sono só tem uma parte que foi
escrita depois de eu ter ingressado no Partido Comunista.

José Maria e Silva — Qual era o grau de ingerência do Partido Comunista na obra dos
senhores que militavam no partido?
Houve uma reunião, no partido, da qual não participei, em que os membros do partido
estudaram a obra de Hugo de Carvalho Ramos, e a opinião do Haroldo de Britto foi decisiva.
Ele disse que a literatura de Hugo era superior à de Bernardo Élis. E publicaram esse
veredicto. O Bernardo aceitava. E teve gente que achava que o artigo era coisa minha. Mas
não era.

Ramos Jubé — Fale da sua atuação na revista Oeste, fundada em julho de 1942 e que
congregou muitos intelectuais da época.
Atuavam na revista o Felipe Medeiros, o Isaac Abrão, o José Bernardo Félix de Sousa, o
Castro Costa, um enfant terrible do Estado Novo. E veio o Paulo Figueiredo, um integralista,
versado em filosofia e nos figurões da direita internacional da política e da literatura. Ele veio
de Minas. Depois veio, de Mato Grosso, o Domingos Félix de Sousa, que passou a atuar na
revista, mas não assinava os artigos. A revista Oeste era um veículo de propaganda de Pedro
Ludovico, um negócio de adulação, horrível. A revista Oeste não teve influência nenhuma.
Em toda província, havendo uma revista, o pessoal só pensa em escrever conto ou fazer
poesia, mais nada. Não há debate intelectual. Na revista, o Índio Artiaga, que era muito
improvisado, publicava propaganda de Goiás, falando de suas riquezas naturais. A maioria
das revistas dessa época tinha dois, três números e acabava. O Popular dava um espaço mais
constante para a literatura.

José Maria e Silva — Como era a relação dos intelectuais do Estado com Pedro Ludovico?
Tinha gente que dizia: ―Doutor Pedro é tão bom‖. E eu dizia: ―Um homem parado é muito
bom mesmo. Vocês vão no Jóquei com ele e ficam bebendo, no bate-papo, o homem fica
romântico. Quero ver é na segunda-feira, terça-feira, no dia-a-dia. No movimento do dia-a-
dia, o pau come. Pedro Ludovico é truculento, corrupto, pega a terra do Estado dá para a
família‖. Ele encheu a mata da lontra com a família. Ele ajeitava seus grupos e, depois, dizia
que não queria nada para si. Arranjou cartórios para toda a família. Mas ele era político, isso é
normal.

Scartezini — Como era a relação dele com os escritores? Ele pertenceu à academia?
Ele não tinha relação nenhuma, ele nem dava bola para os escritores. O Colemar Natal e Silva
inventou esse negócio de Academia Goiana de Letras e botou Pedro Ludovico como
presidente. Mas o Pedro foi até coerente. Ele disse: ―Eu não sou escritor‖.

Scartezini — A Bolsa de Publicação Hugo de Carvalho Ramos foi um instrumento de


controle nas mãos dele?
Ele não tinha nada com a bolsa, apesar de ter sido, na prática, o prefeito de Goiânia. Ele quem
administrava o nada que havia aqui. Mudou a capital, construiu um cinema, fez os prédios da
Fazenda, do Tribunal e da polícia. Mas ele não tinha nenhuma pretensão intelectual. Ele lia o
Pietro Ubaldi, que tinha entrado em voga como intelectual, era um escritor italiano,
espiritualista. Pedro Ludovico citava Ubaldi.

Scartezini — Fora a UDN, quem fazia oposição a Pedro Ludovico?


Ninguém fazia oposição a Pedro Ludovico. Os Caiados não faziam oposição a Pedro
Ludovico, que foi eleito, em 1935, com os votos da situação e da oposição. Em 1944, eu, o
Willmar Guimarães e o José Décio fizemos um jornal de oposição em Anápolis. Abriram
inquérito contra nós. E o Willmar foi preso. Na época, o Willmar ainda era um embrião de
Tenório Cavalcanti.

Scartezini — O que mudou com a redemocratização de 46?


Eu larguei a literatura e entrei no Partido Comunista. O Bernardo Élis continuou na literatura,
mas foi candidato nosso a deputado estadual, mas não elegemos candidato nenhum, apesar de
sermos um grupo aguerrido, que participou da luta de Formoso. Ficamos desmoralizados com
a família, lutando, maltrapilhos, não conseguíamos fazer nem um vereador.

José Maria e Silva — Quem eram as pessoas do Partido Comunista em Goiás?


Abrão Isaac Neto, Moacir Berquó, Haroldo de Britto, Sebastião de Abreu, João da Mata
Teixeira, Jonas Aiub, Alberto Xavier, nosso secretário geral e um intelectual que nos dava
orgulho. Ele fazia informes do partido com dez laudas.

José Maria e Silva — Como foi a participação dos senhores na guerrilha de Trombas e
Formoso?
Mandamos fuzis para o pessoal da associação de lá. O Alberto Xavier foi quem levou as
armas, umas espingardas e uns fuzis. Com o golpe de 64, o regime militar resolveu abrir
inquérito sobre Formoso, uma coisa do passado. E nessa época eu estava advogando, não
queria saber de pegar em armas. Tanto que, quando começou a se falar em resistência armada
ao novo regime em Brasília, eu me opus frontalmente. Costumava dizer para os
companheiros: ―A esquerda radical vai levar a direita radical ao comando do regime‖. Para
mim, era claro. A direita radical não iria entregar o poder com o Costa e Silva. Queria
continuar. Faltava o pretexto. Então, a esquerda radical apareceu: ―Eu me apresento, com a
guerrilha‖. Aí inventaram a Guerrilha do Araguaia, uma aventura que não significou nada,
uma porcaria, mas que resultou numa coisa horrenda. Depois disso, já no tempo do general
Ernesto Geisel, começaram a chegar em nós. Era uma limpeza de área. Porque havia gente
daqui que cobrava: Hélio de Brito, Eli Mesquita, o Lincoln de Almeida, uma tropa de choque
de direita. O Olympio Jaime, da Arena, um conservador consciente, chegou a contar em
jornal: ―Nós, para provocar uma intervenção no governo do Mauro Borges, chegamos a
pensar em matar o Eli Mesquita, nosso companheiro, que é um chato, e jogar a culpa no
Mauro‖. Achei engraçado demais (risos).

José Maria e Silva — Qual foi a primeira guerrilha da qual o senhor participou?
Em 1951, havia um movimento numa fazenda chamada São Domingos, e o movimento ficou
conhecido como Tiririca. Era um grilo de terras. Então, fizemos uma luta contra o arrendo e
contra o grilo. Contra o grilo era mais fácil, porque o lavrador já tinha a terra, bastava impedir
que fosse tomada pelos grileiros. No caso do arrendo, era difícil porque o trabalhador era um
servo de gleba.
Conseguimos reduzir a cobrança dos fazendeiros de 30 para 20 por cento do arrendamento.
Essa era uma luta de classes. Já o grilo, não: os próprios fazendeiros eram contra o grilo,
porque o grilo desmoralizava sua classe. Na Fazenda São Domingos, queríamos uma luta de
resistência, mas os lavradores queriam a luta por intermédio de advogado. Mas eles vieram
aqui e contrataram advogado, só que o advogado não podia fazer nada. Então, fui lá e
convenci um dos membros da direção do partido, Jerônimo Afonso, de Rio Verde, a recorrer
às armas. Pegamos cinco fuzis, alicates e um monte de coisas. Fui me despedir dos meus
filhos e olhei, triste, para eles. Minha mulher não sabia. Chegamos lá, nosso pessoal era todo
jovem, irresponsável, danava numa falação, numa fumação. Fracassamos. Revolução com
jovem e família não dá. Nem chegamos a trocar tiros com a polícia. Isso foi em 52 ou 53. E os
grileiros tomaram conta da fazenda.

José Maria e Silva — Como o senhor avalia a figura de Pedro Ludovico e a mudança da
capital que ele empreendeu?
O grande feito de Pedro Ludovico não foi Goiânia, porque, naquela época, se construíam
cidades planejadas aos montes. Era época da urbanização. Aqui, Pedro Ludovico fez quatro
prédios e virou herói. Fizeram Belo Horizonte, mas lá não tem herói nenhum. Mato Grosso
não mudou a capital, mas ficou mais progressista que Goiás. E era a mesma origem de Goiás.
Não existe isso de mudar e de desenvolver. Mudança não é uma medida econômica, mas
imobiliária. O grande feito de Pedro Ludovico foi ter participado da Revolução de 30, para
lutar contra uma oligarquia terrível contra o povo goiano, os Caiados. E qual o pior defeito
dele? Ter causado, em seu governo, todos os males que existiam antes de 30. Tudo o que os
Caiados faziam de truculência, de banditismo, de atentado contra a vida humana e a liberdade,
Pedro Ludovico repetiu. E numa outra época.

José Maria e Silva — E em relação à honestidade pessoal dele?


Ah, é. Ele não tinha nenhuma ambição pessoal. Fazia para os filhos. Todo mundo só faz para
os filhos. As forças que mandam em Goiás continuam sendo as velhas oligarquias. O regime
militar enriqueceu os fazendeiros demais, com empréstimos por um prazo de 12 anos,
carência de cinco anos e juros de sete por cento ao ano. Foram dados bilhões aos fazendeiros.
Mas eles não mudam a economia. A urbanização do Estado é que trouxe mudanças. Deu-se o
surgimento de uma burguesia, da pequena propriedade urbana, e o desenvolvimento de uma
intelectualidade de classe média. O Marx e o Lênin apostavam na classe operária. Mas eu não
concordo com isso. As camadas médias foram determinantes para a Revolução Russa.

Scartezini — Quando foi sua mudança para Brasília, por que foi para lá e como foi sua
militância em Brasília?
Eu era advogado da associação de Itauçu e resolvi ir para Brasília. Procurei o Randal do
Espírito Santos, que era gerente do Banco do Brasil, e perguntei a ele se queria ser meu sócio
num escritório de advocacia. Ele não quis ser meu sócio, mas emprestou 100 mil réis para que
eu começasse o escritório. Antes, loteei um terreno em Goiânia, para um português que era
simpatizante do partido. Eu recebia por mês e passava o dinheiro desse loteamento, que se
chamava Boa Sorte, para o partido. Ficava com uma parte, para a sobrevivência. Nessa época,
por volta de 57, partido só tinha despesa, muita despesa. A gente fazia um plano de finanças,
mas esse plano não tinha 20 por cento de êxito. Mesmo assim, se fazia outro plano logo em
seguida. A gente fazia um jornal, vendia meia dúzia de exemplares. E ficávamos parados,
esperando a revolução mundial, sei lá.

Scartezini — O que mudou, em Brasília, na sua militância?


Em Brasília, eu estava trabalhando na literatura, exclusivamente, e na advocacia, para
sobreviver. Tinha escrito o Caminho de Trombas, lançado em 1966, dois anos depois da
quartelada. Esse livro mostrava as atividades do Partido Comunista. Era até provocação. Hoje,
não teria coragem de publicá-lo naquelas condições. Quando começou esse negócio de
guerrilha, comecei a participar. Fui eleito delegado do Partido Comunista de Brasília, no sexto
congresso. Eu já estava engajado na luta contra a guerrilha, que estava sendo planejada. Acho
que esse negócio de seqüestrar embaixador, do Fenando Gabeira, tinha a CIA por trás. Não
era possível. Foi bom demais para a direita.

POEMAS DE JOSÉ GODOY GARCIA

A humildade dos homens que tiram retratos


— a pobreza de espírito dos homens que tiram retrato,
as mãos caídas,
o rosto firme,
a roupa nova.

A humildade dos que devem,


a humildade dos que precisam de emprego,
a humildade dos que não esperam mais nada na vida,
acham que tudo é uma bobagem,
tiveram grandes decepções.

A humildade dos que estão morrendo,


a humildade dos que dão os primeiros passos na vida,
a humildade do sapateiro que encontra o freguês na rua,
a humildade do funcionário que encontra o chefe no baile,
a humildade dos que passam na rua e voltam para dar uma esmola,
a humildade dos que não sabem se expressar
e uma palavra às vezes dá desgosto.

A humildade da menina que sai de casa


e encontra o namorado e realiza os sonhos.
A humildade ainda dessa menina que chega em casa e vai dormir.

A humildade do preso olhando o homem que passa no largo.


A humildade das mulheres de má vida
que vão ao cinema e se portam honradamente,
passam pelas garotas de dezessete anos
e sentem-se imundas...

Dentro, bem dentro de nós todos,


a mesma angústia, essa percepção que não se define
ao contato das mãos, mas resiste ao vento, às chuvas,
aos dissabores e, principalmente,
aos inumeráveis equívocos a que sempre
estamos sujeitos...

(Do Rio do Sono, 1948, ―Visão Geral‖)

Eu andava pelo oceano e a terra e suas estrelas


me enredavam, pedi ao meu sonho para me sonhar.
Onde andaria a lua e onde estaria miserável o sol
para me trazerem o som da vida e não sabia eu onde
ela estaria. Seria no amanhecer a minha solitária
ventura; seria no amanhecer contra a escura noite
de um mar indormido e perverso com as suas estrelas
endormecidas e perversas; seria um amanhecer quando
com certeza eu aportaria numa enseada. Ela viria
me encontrar, estaria em minha terra à minha espera.
O seu corpo se uniria ao meu, como a luz do sol
se uniria a uma terna árvore de flores e sonhos.
E tudo aconteceu assim: de manhã, nessa manhã de
uma brisa cheia de fervor de primavera, lá estava
ela, com sua veste vermelha e sua terna cabeleira
e coração ardente e de um sonho palpável em sua
alma pura como as brisas e ondas remansosas.
Nesse amanhecer, ela se uniu a mim, os nossos pés
na areia e os nossos corpos, como dois faróis iluminados
pela manhã, se juntaram e eu me lembrei
minha vida passada, meus amores já esquecidos, as
mãos da vida nos entrelaçando. Nunca mais esquecerei
desta mulher mar e desta mulher terra, moça estival,
moça amorosa e ardente, moça minha, mulher em som
e acabando, mulherzinha de Cristo, fêmea mansa.
Quando eu vi a laranja vermelha no vestido
da moça eu logo pensei que
podia ser a moça que tinha vindo certa
madrugada me acordar na estrada.

(De O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho, 1994, sem título)

Quem são os autores citados

Martin Heidegger (1889-1976) — Alemão, Martin Heidegger é autor de O Ser e o Tempo,


uma das obras basilares do existencialismo. É considerado o principal filósofo da filosofia
existencialista. Foi acusado de ter sido nazista.

Karl Jaspers (1883-1969) — Filósofo alemão, foi um dos principais representantes da


filosofia existencialista.

Sainte-Beuve (1804-1869) — Francês, Charles Augustin Sainte-Beuve foi, inicialmente,


poeta romântico, depois, dedicou-se à crítica. Defendia um método crítico calcado na
fundamentação histórica.

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