Cultura Urbanística e Contribuição Modernista

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Cultura Urbanística e Contribuição Modernista:

Brasil, Anos 1930 – 1960


Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes1

1 Este texto busca contribuir para a discussão sobre o papel do chamado “urbanismo
modernista” na construção e consolidação do campo do urbanismo no Brasil, entre 1930 e
1960, mostrando em que cultura profissional ele vai se inserir e com que formas de pensar
a cidade e o urbanismo ele vai interagir. Por “urbanismo modernista” estamos entendendo
aqui as proposições para a cidade funcional defendidas pelas vanguardas européias do
entreguerras e sistematizadas (e, à medida que o tempo avançava, até mesmo contestadas)
dentro dos chamados Congrès Internationaux d’Architecture Moderne - os CIAMs. Neste
sentido, falar em “urbanismo modernista” e em “urbanismo moderno” remete a universos
bem distintos. Ainda que a busca de um desenho racional para a cidade estivesse presente
desde o Renascimento e, principalmente, desde o Iluminismo, e ainda que já se buscasse
ter desde então uma visão global sobre a cidade, será apenas na virada do século XIX para
o século XX que dois elementos centrais vieram configurar o âmbito de uma nova
disciplina: de um lado, sua pretensão científica e, de outro, sua intenção de prever e
controlar o futuro da cidade. Dessa maneira, a expressão “urbanismo moderno” refere-se a
uma gama variada de visões e de propostas relativas à solução dos problemas da cidade do
presente e à idealização daquela do futuro, remetendo, no último século e meio, a um
largo espectro de manifestações, que vão, por exemplo, do sanitarismo ao movimento
Cidade Jardim (em suas diversas manifestações); e do movimento City Beautiful ou do
approach regional e sensível à história de um Patrick Geddes ou Lewis Munford à defesa
da Cidade Funcional feita pelo urbanismo “modernista”.

2 No vasto conjunto da produção brasileira recente sobre história da cidade e do


urbanismo, a história da constituição da disciplina tem tido um particular destaque,
sobretudo a partir de meados dos anos 90. Como se sabe, desde o final dos anos 1980 a
preocupação com a história tem se constituído em uma importante vertente dos estudos

1
PPGAU/FAUFBA. E-mail: [email protected].
2

urbanos, questão sobre a qual detiveram-se alguns pesquisadores2, interessados em


entender o que explica essa produção, quais as principais temáticas trabalhadas, suas
referências teóricas e os recortes espaciais e temporais priorizados. Não restam dúvidas
sobre o papel de catalisação (e, de alguma forma, de incitação) que a Anpur teve nesse
processo – associadamente ao desenvolvimento e consolidação da pós-graduação na área
de Arquitetura e Urbanismo no país - ao acolher, em sua programação bianual, os
Seminários de História da Cidade e do Urbanismo, criados em Salvador em 19903, e ao
incluir em seus encontros nacionais, desde 1991, uma sessão temática dedicada à dimensão
histórica dos processos urbanos.

Um rápido balanço sobre a produção historiográfica veiculada nesses fóruns revela-nos


que, num primeiro momento, a temática da modernização urbana, particularmente no
ciclo de desconstrução da cidade colonial, que tem o seu ápice nas reformas urbanas do
início do século XX, ocuparam com destaque a atenção dos pesquisadores, que
examinaram questões como o movimento de adequação da cidade aos novos padrões de
acumulação, as relações entre modernização e modernidade, as novas representações sobre
a cidade e a vida urbana, as relações entre modernização e emergência de novas formas de
exclusão social, as relações entre modernização, mudança tecnológica e tecnificação da
gestão pública e a questão da habitação. São estudos que concedem uma grande ênfase ao
papel do Estado e das elites no processo de modernização urbana e na criação e difusão de
novas representações urbanas, incluindo aí aquelas desenvolvidas pelos diversos
segmentos profissionais que estavam passando a se dedicar ao estudo da cidade, como os
médicos e engenheiros. A preocupação com a forma urbana, que voltara a interessar os
pesquisadores ainda nos anos 80, passa a agregar uma dimensão histórica nos anos 90 e, a
partir daí, ganham expressão discussões sobre projeto urbano, forma da cidade ideal e
relações arquitetura / cidade. Essa vertente da produção historiográfica confunde-se, em
parte pelo menos, com a vertente da história do urbanismo, embora ambas possuam suas
especificidades.

2
Ver, p. ex., FERNANDES, A.; GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Pesquisa Recente em História
Urbana no Brasil: Percursos e Questões (1993). In: PADILHA, Nino (org.). Cidade e Urbanismo;
História, Teorias e Práticas. Salvador: MAU/UFBa, 1998; p. 13-28; e _________________. História da
Cidade e do Urbanismo no Brasil: Reflexões sobre a Produção Recente. Cienc. Cult., abr./jun. 2004, vol.
56, no. 2, p. 23-25. ISSN0009-6725.
3
As edições subseqüentes deste evento aconteceram em Salvador (1993), São Carlos (1994), Rio de Janeiro
(1996), Campinas (1998), Natal (2000), Salvador (2002) e Niterói (2004).
3

3 A história do urbanismo representa a vertente que provavelmente mais se desenvolveu ao


longo dos anos 1990, com base em pesquisas que discutiam etapas de constituição da
disciplina, paradigmas a partir dos quais ela se construiu, planos e projetos elaborados
para diversas cidades brasileiras, trajetórias profissionais e processos de transferências do
conhecimento na área. Iniciativas como a rede Urbanismo no Brasil, criada em 1992,
constituída por pesquisadores de 8 universidades brasileiras, representou um importante
estímulo para o desenvolvimento dessa linha.

Apesar do grande desenvolvimento dessa vertente da historiografia da cidade e do


urbanismo, é possível constatar que o urbanismo modernista ainda não recebeu suficiente
atenção por parte dos pesquisadores brasileiros, o que fica evidente examinando-se, por
exemplo, um fórum tão especializado como o dos Seminários DOCOMOMO Brasil,
iniciados em 1995, também em Salvador4. O exame dos temários desses eventos aponta
para um reduzido número de trabalhos que se preocupam com a cidade e o urbanismo. São
vários, entretanto, os motivos para lamentar a existência dessa lacuna, dentre eles a
importância atribuída ao urbanismo modernista - principalmente em sua vertente
corbuseana - na constituição de uma cultura urbanística no Brasil; o lugar que a
experiência brasileira ocupa no panorama mundial da história do urbanismo, onde se
destaca o exemplo de Brasília, cujo plano é considerado a concretização maior do
pensamento modernista no urbanismo; e a longevidade dos preceitos basilares desse tipo
de urbanismo – apesar dos questionamento que sofreu nas últimas décadas - a partir do
momento em que eles penetraram na legislação, nas práticas de agências responsáveis pela
definição das políticas urbanas e no próprio ensino.

A preocupação em estudar a participação da vertente modernista na formação de uma


cultura de área no Brasil, coloca-nos, no mínimo, frente a duas perspectivas que se
complementam: a primeira delas – que apenas tangenciaremos neste texto - refere-se às
articulações internacionais que os arquitetos e urbanistas brasileiros mantiveram com o
meio profissional internacional e, em particular, com os CIAMs; a segunda concerne o
estudo dos mecanismos “internos” de difusão dessas idéias, tentando entender aquelas que
circulavam no meio profissional brasileiro da época, por que canais circulavam, que

4
Trata-se de eventos organizados pelo núcleo brasileiro do International Working Party for Documentation
and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the Modern Movement. As edições
subseqüentes desse evento aconteceram em Salvador (1997), São Paulo (1999), Viçosa (2001) e São Carlos
(2003).
4

referências urbanísticas propunham e como elas vão configurando formas, procedimentos,


métodos de intervenção sobre a cidade5. É sobretudo desta segunda perspectiva que
trataremos a seguir, sem termos, contudo, nenhuma pretensão de exaustividade, mas tão
somente de desenvolvermos uma primeira exploração comparativa de dados produzidos
pela rede Urbanismo no Brasil.

4 Ao longo das três primeiras décadas do século XX estabelece-se o que já poderíamos


considerar uma sólida cultura urbanística no país, representada pela prática fornecida pelo
primeiro ciclo de modernização das cidades. Resumidamente, poderíamos dizer que
naquele momento estava em jogo a adequação das cidades a uma nova ordem econômico-
social, a solução de graves problemas relacionados à saúde pública, a necessidade de re-
adequar a estrutura urbana a formas mecanizadas de transporte de pessoas e mercadorias e
a necessidade de marcar a inserção do Brasil republicano no “concerto das nações
civilizadas”, demonstrando sua efetividade pela adesão a ideais estéticos europeus. As
Escolas Politécnicas – as do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas também aquelas criadas
em várias outras capitais (como Recife, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre), herdeiras
das tradições da École Politechnique de Paris – embora, em graus variados, incorporando
também outras tradições de formação técnica, como a alemã e, a seguir, a americana -, são
os grandes centros irradiadores do pensamento e da experimentação sobre as cidades nesse
período.

Numerosos foram os planos, projetos e intervenções urbanísticas desenvolvidos por


engenheiros nesse período6, destacando-se as importantes experiências representadas pela
construção de uma cidade capital – Belo Horizonte -, cujo projeto, desenvolvido entre
1894 e 1895 por Aarão Reis (e continuado por Francisco de Paula Bicalho) resume boa
parte da cultura técnica, marcada pelo positivismo, e das preocupações de estética urbana
do século XIX; pelo reaparelhamento e modernização de portos marítimos e fluviais (como
no Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906; em Salvador, entre 1905 e 1930; em Recife, entre
1909 e 1926; em Porto Alegre, entre 1911 e 1921); por vastos projetos de saneamento,
empreitada em que se destacou o Escritório Saturnino de Brito, que trabalhou para várias

5
Estas são as duas principais vertentes da pesquisa Urbanismo Modernista no Brasil: Articulações
Internacionais e Formas de Difusão, 1929-1956, atualmente em curso com apoio do CNPq, e na qual se
insere esta comunicação.
6
Para um amplo panorama sobre a questão, ver os artigos e verbetes reunidos em LEME, Maria Cristina da
Silva (org.). Urbanismo no Brasil, 1895-1965. São Paulo: Nobel; FUPAM. 1999. 599 p.
5

cidades brasileiras; por reformas e intervenções em áreas centrais das capitais e principais
cidades (como no Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906; no bairro do Recife, entre 1909 e
1913; no vale do Anhangabaú, em São Paulo, entre 1906 e 1912; na Cidade Alta de
Salvador, entre 1912 e 1916), ou ainda o desenvolvimento de projetos de bairros-jardim
em São Paulo, sob a responsabilidade de (ou a partir da referência a) Raymond Unwin e
Barry Parker, responsáveis pelo projeto da pioneira Letchworth, na Inglaterra. Para além
do caso excepcional da criação de uma cidade capital, como Belo Horizonte, vale a pena
citar também a grande experiência – com pouca visibilidade ainda na bibliografia
especializada – relativa à construção de cidades novas. Conforme lembrado por Carlos
Roberto Monteiro de Andrade na mesa redonda Desafios da Historiografia Ibero-
Americana, no VII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (Salvador, 2002),
é alto o número dessas cidades novas, principalmente no período republicano, e que
funcionaram como laboratórios da urbanística moderna, dos ensinamentos da Civic Art
àqueles da Carta de Atenas. Finalmente, pode-se mencionar ainda o impacto urbanístico de
grandes exposições, como a de 1922, no Rio de Janeiro, comemorativa do centenário da
independência, e que, a exemplo de suas congêneres em outros países, foi estimuladora de
novas visões no campo do urbanismo.

Nesse período, o principal mecanismo de circulação de idéias sobre como intervir na


cidade ainda se dá prioritariamente através do acesso a uma bibliografia estrangeira.
Porém, esse quadro começa a mudar. Para o período 1900-1920, o banco documental
organizado pela rede Urbanismo no Brasil7, contabiliza a ocorrência de 310 livros
publicados nas cidades representadas na rede, número nada desprezível, considerando as
limitações da época. Nesse conjunto destacam-se obras relativas à higiene, esgotamento
sanitário e abastecimento d´água, além de transporte, pavimentação e embelezamento,
representativas das prioridades do período. A notar que já surgem nesse período
publicações sobre habitação proletária.

Ainda nas primeiras décadas do século, os congressos profissionais começam a tornar-se


um fórum privilegiado de circulação de idéias e de apresentação de planos, projetos e
soluções técnicas. Do Congresso Internacional de Engenharia, ocorrido no Rio de
Janeiro, em 1922, o engenheiro Álvaro Palhano, dirá, em um artigo publicado anos mais

7
Disponível em www.urbanismobr.org
6

tarde (1939), que suas conclusões valiam por um programa de trabalho de uma instituição.
Em 1920 é realizado o 1º. Congresso Pan-americano de Arquitetos, em Montevidéu, ao
qual seguem-se um segundo, em 1923, em Santiago, e um terceiro, em 1927, em Buenos
Aires. Ainda não dispomos de muitas informações sobre a participação de brasileiros
nesses eventos, mas com certeza suas propostas e conclusões ecoavam através das páginas
das revistas especializadas. A inclusão da discussão sobre o urbanismo nesses congressos
de Arquitetura sinaliza uma importante mudança: o início da participação dos arquitetos
nas discussões relativas à cidade. No que diz respeito às revistas técnicas, observa-se
também que elas começam a multiplicar-se por essa época. As primeiras, de maior
longevidade e de maior penetração, são as de engenharia, publicadas por associações
profissionais ou instituições de ensino, concentradas no eixo Rio - São Paulo, porém não
restritas a ele8 .

Os estágios de formação no exterior são outra vertente no processo de circulação de idéias


no meio profissional. Muito revelador dos novos contornos que este estava tomando nos
anos 1920 é o fato de arquitetos que iriam se destacar dentro do espírito moderno, como
Attílio Correia Lima e Paulo Antunes Ribeiro, seguirem, no Exterior, formação já
especificamente na área de Urbanismo, embora em instituição não exatamente defensora
dos ideais vanguardistas, como era o caso do Institut d’Urbanisme da Universidade de
Paris, onde Correia Lima desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso Aménagement et
Extension de la Ville de Niterói. No sul do País, onde era forte a presença cultural alemã, o
caso de Benno Hofman, diplomado pela Escola de Engenharia de Porto Alegre, é bastante
revelador desse processo. Tendo estudado na Alemanha, em 1916, em um de seus artigos,
ele afirma ter “ouvido de suas bocas a sciencia apregoada por Sitte, Hénard, Stübben,
Brown, Saturnino de Brito e muitos outros mestres de renome universal”9

8
É o caso, por exemplo, da Revista do Clube de Engenharia, publicada no Rio de Janeiro a partir de 1887
(com descontinuidades e com outro nome – Engenharia em Revista - ela é publicada até hoje); da Revista
Egatea, publicada pela Escola de Engenharia de Porto Alegre, de 1914 a 1934; a Revista de Engenharia
Mackenzie, publicada em São Paulo, de 1915 a meados dos anos 80; da Revista Brasileira de Engenharia,
publicada no Rio de Janeiro, de 1920 a 1942; do Boletim de Engenharia, publicado pelo Clube de
Engenharia de Pernambuco, de 1923 a 1937. A mais antiga de todas parece ser a Revista de Engenharia, de
São Paulo, que teve duas fases: de 1879 a 1884 e de 1911 a 1913 (Fonte: Banco Documental da Rede
Urbanismo no Brasil: www.urbanismobr.org)
9
SOUZA, Célia Ferraz de. Trajetórias do Urbanismo em Porto Alegre. In: LEME, M. C. da S., op. Cit., p.
91
7

Finalmente, o contato com profissionais estrangeiros, numa tradição que remontava a


Grandjean de Montigny, representa outra forma de disseminação de idéias no campo
profissional. Cabe aqui citar a presença do francês Joseph Antoine Bouvard, de certa forma
um herdeiro da tradição haussmanniana, que após uma longa trajetória internacional
(França, Turquia, Bélgica, Argentina) radica-se em São Paulo, onde se torna vice-
presidente da City, empresa para a qual também trabalhou o já mencionado arquiteto inglês
Barry Parker entre 1917 e 1919. Alfred Agache, do qual falaremos mais adiante, é
provavelmente o urbanista estrangeiro cuja presença teve maior impacto no país durante
esse período. A experiência de com ele terem trabalhado na juventude, não terá deixado de
marcar a formação de profissionais que construíram trajetórias tão diversificadas quanto
Affonso Eduardo Reidy e Arnaldo Gladosh, este último de destacada atuação no Rio
Grande do Sul.

5 O período que vai dos anos 30 ao início dos anos 60 conhecerá importantes mudanças no
panorama urbanístico brasileiro. As principais cidades do país adentram uma dinâmica
mais marcadamente metropolitana, bastante diferenciada daquela do período precedente.
O longo processo de desconstrução da cidade colonial, iniciado na segunda metade do
século XIX, completa-se no decorrer das primeiras décadas do século XX. Nesse sentido,
não deixa de ser revelador o convite do prefeito Antônio Prado Júnior, do Rio de Janeiro,
ao urbanista francês Alfred Agache para trabalhar, entre 1927 e 1930, num novo plano
para a cidade. Trazendo na bagagem a experiência de elaboração de diversos planos
urbanísticos para cidades européias e várias publicações sobre o assunto, o plano de
“remodelação, extensão e embelezamento” proposto por Agache, não foi implantado,
porém serviu de referência para intervenções futuras na cidade, além de ter rendido, para o
seu responsável, convites para atuar em várias outras cidades brasileiras10. Em São Paulo,
Prestes Maia apresenta, pela primeira vez, em 1930, seu Plano de Avenidas, implantado
alguns anos mais tarde e que abrirá a possibilidade de expansão futura da capital paulista.
Em Belo Horizonte, o plano elaborado pela Comissão Construtora ao final do século XIX
já é objeto de um conjunto de críticas, apontando seus limites e deficiências, às quais o
engenheiro Lincoln Continentino tentará responder com um “plano de urbanização” que, se
não chega a ser implantado integralmente, servirá de baliza para várias intervenções. Em
Porto Alegre, Gladosh propõe o Plano Diretor do Município (1938-1943) e em Recife,

10
LEME, M. C. da S. Op. Cit., p. 545-6
8

palco de uma intensa discussão urbanística, registra-se a apresentação de diferentes


propostas para a cidade, como o Plano de Remodelação e Extensão (1932), de Nestor de
Figueiredo; o Plano de Remodelação (1936), de Attílio Corrêa Lima; as Sugestões ao
Plano de Reforma (1943), de Ulhôa Cintra, a que se segue a reforma do bairro de Santo
Antônio, já na década de 40. A passagem da primazia dos planos de saneamento e de
embelezamento, característicos dos primeiros anos do século, para práticas de cooperação
entre diversos profissionais, além de uma preocupação cada vez maior com a gestão
urbana, marca o início de uma acentuada influência norte-americana no campo do
urbanismo e do planejamento. Segundo Sarah Feldman, é este o momento em “...que
múltiplos olhares constroem a teia de incorporação do ideário urbanístico americano no
Brasil”, com a criação de Comissões do Plano em várias cidades e uma nítida vinculação a
um processo mais amplo da reforma administrativa deslanchada por Vargas11.

Embates entre diferentes concepções de urbanismo e de cidade caracterizam o período,


mas também processos mais complexos de circulação e incorporação de diferentes idéias e
propostas no campo do urbanismo.. Dentre os embates, são bastante reveladores aqueles
travados entre Agache e Le Corbusier, em sua primeira visita ao Brasil, em 1929, a
propósito do plano para o Rio de Janeiro; ou a confrontação da proposta deste, em sua
segunda visita, em 1936, e da de Marcello Piacentini e Vittorio Morpurgo para a
Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. No plano dos “confrontos nacionais” entre
diferentes ideários urbanísticos é bastante emblemático aquele ocorrido em 1934, por
ocasião do concurso para a cidade industrial de Monlevade, em Minas Gerais, do qual
participam, dentre outros, Lúcio Costa - autor de uma proposta que, se não pode ser
caracterizada plenamente como sendo de “urbanismo modernista”, pelo menos era bastante
afinada com um “espírito modernista”- e o engenheiro Lincoln Continentino, autor do
projeto vencedor12.

A presença de urbanistas estrangeiros de variadas correntes ajuda a alimentar o meio


profissional brasileiro com diferentes visões de cidade e de urbanismo. Além da presença
de Agache, que residiu no país por duas ocasiões, ou ainda da de Le Corbusier,
concentrada nas visitas de 1929 e 1936, mas com potente impacto no meio dos arquitetos,

11
FELDMAN, Sarah. Os Anos 30 e a Difusão do Urbanismo Americano no Brasil. In: Anais do VI
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (CD-ROM). Natal, 2000.
12
LIMA, Fábio José Martins de. Por uma Cidade Moderna: Ideários de Urbanismo em Jogo a Partir do
Concurso para Monlevade, 1931-1943. Tese de Doutoramento apresentada à FAUUSP, 2003.
9

pode-se citar também a temporada brasileira, muito menos conhecida do que as outras, de
Frank Lloyd Wright. Acontecida em 1931, para a participação no júri do concurso do
Farol de Colombo, ela parece ter tido um importante impacto nos meios estudantil e
profissional, além de ter suscitado a publicação de alguns artigos em jornais locais. Não
deixa de ser interessante indagarmo-nos sobre o possível impacto dessa visita, quando nos
lembramos que, na época, a grande preocupação de Wright era com a cidade (naquele
momento ele estava preparando The Disappering City, que seria publicado em 1932)13

A partir dos anos 30, ampliam-se também os outros mecanismos já consolidados de acesso
à atualização e à formação profissionais na área do urbanismo, com a multiplicação dos
fóruns de discussão (congressos) sobre a cidade, a arquitetura, o urbanismo e a habitação;
com o desenvolvimento acentuado do meio editorial especializado (livros e revistas); com
a ação de órgãos de representação profissional; e, finalmente, com a inclusão da disciplina
urbanismo nos cursos de arquitetura e com a estruturação de uma formação específica em
urbanismo.

Com relação aos congressos por onde, na época, circulavam e difundiam-se as idéias
relativas à arquitetura, ao urbanismo, à cidade ou à habitação, alguns merecem um
destaque especial pelo papel que representaram na refelxão sobre o urbanismo. É o caso do
IV Congresso Pan-americano de Arquitetos, realizado no Rio de Janeiro, em 1930, e do
qual participou grande parte dos arquitetos e urbanistas mais expressivos do período, como
Attílio Corrêa Lima, Affonso Eduardo Reidy, Flávio de Carvalho, Lúcio Costa, Prestes
Maia e Armando de Godoy. Nele, Prestes Maia expôs o seu Plano de Avenidas para São
Paulo e Armando de Godoy apresentou uma comunicação (naquela época dizia-se “tese”)
intitulada A Ocupação Racional dos Terrenos nas Cidades, sobre o parcelamento do solo,
já com referência a moldes americanos. O I Congresso de Habitação, realizado em São
Paulo, em 1931, é outro importante marco, com discussões que se referem à legislação
municipal e, o que é muito interessante, com referências à tese apresentada por Ernst May
no II CIAM, ocorrido em Frankfurt, um pouco antes, em 192914. O I Congresso Brasileiro
de Urbanismo, realizado no Rio de Janeiro, em 1940, propiciou um bom panorama das
preocupações urbanísticas do momento. Teve a participação de modernistas, como

13
SANTOS, Paulo. Quatro Séculos de Arquitetura (1977). Rio de Janeiro: IAB, 1981 é uma das poucas fontes sobre a
viagem de Wright ao Brasil. Registre-se, recentemente, o lançamento de IRIGOYEN, Adriana. Wright e Artigas; Duas
Viagens. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
14
Cf. BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998
10

Carmem Portinho, Attílio Corrêa Lima, Affonso Eduardo Reidy e Oscar Niemeyer, mas
não só. Dele também participaram José Estelita, Nestor de Figueiredo e Lincoln
Continentino. Muito reveladora de novas idéias que estavam começando a surgir e que
iriam frutificar nos anos 50 e 60 foi a idéia de um planejamento integrado, defendida pelo
engenheiro Mário de Sousa Martins, que sugeria a criação de um Departamento Nacional
de Urbanismo, com a missão de orientar os estudos e realizações urbanísticas em todo o
território nacional. Propôs diretrizes para os Planos Diretores e, numa escala maior, para os
Planos Regionais de Desenvolvimento, acima dos quais um Plano Nacional teria papel
coordenador. Também nesse congresso Lincoln Continentino apresenta seu Plano de
Urbanização para Belo Horizonte e Francisco Batista de Oliveira, uma proposta de Código
Urbanístico Brasileiro, anteprojeto de lei inspirado nos códigos vigentes na Itália, França e
Inglaterra.

Sem se descuidar das questões relacionadas à formação, esses congressos tinham um


cunho marcadamente profissional e constituíam-se em arenas privilegiadas onde eram
apresentadas propostas técnicas para solução de problemas específicos, propostas de
planos e propostas de legislação. A partir dos anos 30 nota-se uma tendência à
multiplicação desses encontros, que acontecem em várias cidades, e se voltam para
discussões cada vez mais especializadas (como, por exemplo, gestão municipal, viação,
transporte). Iniciam-se nos anos 40 os Congressos Brasileiros de Arquitetos, e realizam-
se congressos voltados para a reestruturação dos cursos de Engenharia e Urbanismo e até
mesmo encontros promovidos por estudantes de Arquitetura (como o 1º. Congresso
Brasileiro de Estudantes de Arquitetura, realizado em Salvador, em 1953). Além dos
congressos seriados a nível nacional e internacional, acontecem também aqueles de âmbito
local, porém com grande impacto sobre os desdobramentos urbanísticos posteriores, como
foi o caso da Semana de Urbanismo, em Salvador, em 1937, organizada pela Comissão
do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador. A importância desses congressos na
difusão do ideário modernista tornou-se grande, como deixa perceber o depoimento de
Eduardo Kneese de Mello, ao relatar como ele, ao participar do V Congresso Pan-
Americano de Arquitetos, realizado em Montevidéu, em 1940, chega “eclético” e sai
“convertido” à arquitetura moderna15...

15
Cf. SAMPAIO, Maria Ruth do Amaral. A influência da Arquitetura Moderna em Alguns Conjuntos Habitacionais
Construídos pelos IAPS em São Paulo.
11

No que diz respeito às publicações, o período 1930-1960 apresenta significativas


mudanças. Para o período 1930-1939, uma ampla maioria (em torno de 68%) dos livros
repertoriados no banco documental da rede Urbanismo no Brasil com a palavra “cidade”
em seu título ou na descrição de seu conteúdo são obras técnicas em línguas estrangeiras
(principalmente em inglês, o que é bstante revelador, mas também em francês, italiano,
alemão, espanhol), relacionadas sobretudo à infra-estrutura (saneamento, viação,
transportes). Dentre os destaques que mostram o enriquecimento da bibliografia brasileira,
vale citar a publicação de propostas urbanísticas para diferentes cidades brasileiras (como a
de Agache para o Rio de Janeiro, em 1930; e o Plano de Urbanização para Belo
Horizonte, de Lincoln Continentino, em 1938); a preocupação com a produção de manuais
de difusão, como Noções Elementares de Urbanismo, de Francisco Baptista de Oliveira,
publicado em Juiz de Fora; ou ainda das Normas Gerais de Construção e Urbanismo para
as Cidades do Interior, publicada pelo Departamento das Municipalidades de São Paulo,
em 1939, numa clara manifestação da interiorização das preocupações com o urbanismo.
Em Salvador, a Comissão do Plano de Urbanismo, que organizara a Semana de
Urbanismo, em 1937, publica em livro as diversas contribuições apresentadas nesse
evento, as quais tornam-se referenciais no plano local. No período de 1940 a 1949 decai a
percentagem de obras estrangeiras repertoriadas pelo citado banco documental (são agora
em torno de 44%), mas parece haver uma ampliação das obras publicadas no Brasil, que
passam a incluir, além de temas relacionados à infra-estrutura, diversos títulos sobre
administração municipal, legislação, serviços públicos, etc. Começam a surgir traduções de
obras estrangeiras de caráter bem pontual (p.ex., Os Transportes Coletivos e sua
Reorganização na Alemanha, publicada em 1941). É nessa época (1944) que se inicia a
publicação das Obras Completas de Saturnino de Brito, pela Imprensa Nacional ou que
Josué de Castro publica Fatores de Localização da Cidade do Recife (1948). Dentre os
urbanistas, Prestes Maia destaca-se com a produção de diversos trabalhos. Na década de 50
constata-se uma diminuição considerável do percentual de obras estrangeiras (24%) e
algumas mudanças importantes, como o aparecimento da dimensão metropolitana e
regional e a preocupação com o meio ambiente urbano. Em 1957 começa a ser publicada
pelo IBGE a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Destaque especial para uma
produção regional, inclusive com densidade teórica, de que Salvador e Recife são bons
exemplos. Podemos citar as Conferências sobre Planejamento Urbano, de Antônio
Bezerra Baltar, publicadas pela Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, em 1957;
e, do mesmo autor, as Teses e Conferências sobre Problemas de Urbanismo e Área
12

Metropolitana, publicadas no Recife em 1956. É também quando são publicados os


primeiros livros de Milton Santos, O Centro da Cidade do Salvador e a Rede Urbana do
Recôncavo, ambas de 1959. Referência especial, porque dizendo diretamente respeito ao
tema central deste trabalho, é a publicação, também em Salvador, de uma edição
comentada da Carta de Atenas, pelo arquiteto Admar Braga Guimarães, em 195516. O
objetivo do organizador do trabalho é divulgar esse documento e situá-lo dentro das
preocupações dos CIAMs, tendo sido o mesmo traduzido da Town Planning Chart,
apensada ao livro Can Our Cities Survive, de Josep Lluis Sert. “Interessantes são as notas
e comentários que o autor introduz ao longo do texto, especificando, para a realidade de
Salvador, os conceitos e orientações emitidos na carta, ao mesmo tempo em que discorre
sobre o EPUCS, o plano elaborado para a cidade entre 1942 e 1941. Como anexos,
encontram-se a Declaração de Princípios do EPUCS, o decreto-lei Municipal no. 701, que
regulamenta o plano e uma relação dos congressos e publicações dos CIAMs”17.

No que diz respeito aos periódicos, o dado novo aqui é o aparecimento de revistas na área
de arquitetura18, cujo espaço concedido ao urbanismo irá se ampliando à medida que vai
aumentando o envolvimento dos arquitetos nesse campo. A destacar a atuação da Revista
da Diretoria de Engenharia, criada em 1932 pela Prefeitura do então Distrito Federal, na
pessoa da engenheira Carmem Portinho. De grande longevidade (só foi extinta em 1993),
ela teve outras denominações ao longo do tempo19. Não contemplava só assuntos
referentes ao Rio de Janeiro, mas também sobre outras cidades, além de discussões sobre
urbanismo em geral. Foi provavelmente a revista brasileira que publicou o maior número
de artigos especializados sobre a cidade e o urbanismo, com grande abertura para o que se
passava em outros países e particular sensibilidade às idéias modernistas, advindas das
posições defendidas por sua criadora e por uma boa parte de seus colaboradores.

No que diz respeito à criação de órgãos de representação profissional, pode-se dizer que,
após as lutas para a regulamentação profissional, entre os anos 20 e o início dos anos 30,
eles concederão um espaço crescente às discussões relativas à cidade e ao urbanismo,
como é o caso da Sociedade Mineira de Engenharia, através de sua Revista Mineira de

16
Trata-se de uma edição do Diretório Acadêmico da Escola de Belas Artes.
17
Fonte: A CARTA de Atenas. Guimarães, Admar Braga. In: www.urbanismobr.org
18
Como Arquitetura, Engenharia, Decoração, Urbanismo (BH, 1935); Arquitetura e Engenharia (BH,
1946); Arquitetura e Urbanismo (RJ, 1936); Revista de Arquitetura (RJ, 1934); e Habitat (SP, 1950)
19
Revista Municipal de Engenharia e Revista de Engenharia do Estado da Guanabara.
13

Engenharia. O Instituto dos Arquitetos do Brasil, criado em 1921, terá importante papel
na difusão da arquitetura e do urbanismo do Movimento Moderno desde o final da década.
Com relação ao desenvolvimento de uma formação específica na área de urbanismo no
Brasil, sabe-se que na curta gestão de Lúcio Costa à frente da ENBA, em 1930, ele convida
Attílio Correia Lima, então recém-chegado do Institut d’Urbanisme de Paris, para
organizar a cadeira de Urbanismo no curso de Arquitetura, experiência que, de resto, não
foi adiante. Por volta do início dos anos 50, entretanto, três cursos de especialização em
urbanismo já haviam sido criados: no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Porto
Alegre.

6 É dentro do quadro geral dessa cultura profissional que se desenvolve desde a segunda
metade do século XIX e que apresenta claros sinais de consolidação ao longo da primeira
metade do século XX, que devem ser analisadas as contribuições advindas das visitas de
Le Corbusier, e através delas, a penetração do pensamento que estava sendo formulado
pelo mainstream dos CIAMs. Visitando o Brasil logo após a realização do 1º. CIAM em
La Sarraz, Suiça (junho de 1928), e estabelecendo desde então laços duradouros com os
arquitetos brasileiros - os quais, como se sabe, não foram destituídos de tensão20 -, é
compreensível que Le Corbusier tenha se tornado um elemento-chave na divulgação local
das discussões e proposições apresentadas nesses congressos.

Em boa parte da bibliografia sobre a história da arquitetura e do urbanismo no Brasil, o


reconhecimento da importância que nela tiveram os CIAMs quase nunca é acompanhada
de referências à dinâmica das discussões que caracterizaram esses encontros e às tensões
que os atravessaram, sobretudo a partir do imediato pós-guerra, e que levaram à sua
dissolução, no final dos anos 50. Balizar essa dinâmica torna-se interessante na medida em
que abre a perspectiva de uma indagação (de resto não aprofundada neste texto) sobre seus
eventuais ecos no meio profissional brasileiro. No processo histórico em que esses
congressos se constituem e se desagregam, a Segunda Guerra Mundial representa um
divisor de águas de fundamental importância. Do fim da guerra, em 1945, ao final dos anos
50, assiste-se ao processo que leva os CIAMs da posição de vanguarda, que eles ocuparam
no pré-guerra, à condição de establishment, num movimento em que eles vão se tornando

20
Referência fundamental sobre essas relações é SANTOS, Cecília Rodrigues do et alii. Le Corbusier e o
Brasil. São Paulo: Tessela; Projeto, 1987. 301 p.
14

alvo de várias (e cada vez mais contundentes) críticas. Na perspectiva de Eric Mumford21,
essas críticas teriam se iniciado nos Estados Unidos, país onde sempre foi complicada a
organização de um grupo nacional dos CIAMs, apesar do clima favorável propiciado pela
política urbana do New Deal e do grande número de participantes europeus desses
congressos que para lá se dirigiram com a eclosão do conflito mundial. Ainda segundo
Mumford, foi fria a acolhida que o meio profissional americano reservou ao livro Can Our
Cities Survive?, em que Josep Lluis Sert, então tentando se estabelecer nos EUA, oferece
sua versão dos resultados do célebre congresso de 193322.

No início da década de 40, a grande questão que os CIAMs se colocavam política e


estratégicamente era a reconstrução das cidades destruídas pela guerra, problema que
deveria ser enfrentado tão logo terminasse o conflito. No imediato pós-guerra, porém,
começam a ganhar rápido espaço as críticas à falta de significado da arquitetura moderna e
à sua falta de apelo para “o homem da rua”, desenvolvendo-se, a partir daí, preocupações
contextualistas em várias direções, visando uma “humanização do funcionalismo” e uma
“acomodação” da nova arquitetura à tradição. No primeiro congresso realizado no pós-
guerra, o CIAM 6, em Bridgwater (Inglaterra), em 1947, a discussão sobre o funcional
parece já ceder um espaço maior às questões estéticas, além de começarem a surgir
dúvidas sobre as possibilidades de concretização de uma realidade social melhor a partir de
intervenções urbanísticas. É nesse momento que o descontentamento das novas gerações
com as posições dominantes no CIAM encontra expressão na crítica do jovem Aldo Van
Eyck, de que o “CIAM sabe que a tirania do senso comum cartesiano chegou ao seu
estágio final”23. É também nesse congresso que o grupo inglês MARS – Modern
Architectural Research distancia-se do espírito dos CIAMs de antes da guerra. Dois anos
depois, a realização do 7o. congresso, em Bérgamo, Itália, confirma a instalação de uma
séria crise. A preocupação com a restauração dos centros históricos na Itália do pós-guerra
ganhava fôlego e alimentava as críticas, embora os projetos expostos ainda fossem
fortemente influenciados por Le Corbusier. Bruno Zevi, em uma carta enviada aos

21
Cf. MUMFORD, Eric. The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1969. Cambridge, MA; London, UK. The MIT
Press, 2000. É principalmente a ele que estou recorrendo no rápido apanhado sobre a história dos CIAMs, feito a seguir,
ainda que tenha me servido também de outras contribuições, como FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da
Arquitetura Moderna. SP: Martins Fontes, 1997 e TAFURI, Manfredo; DAL CO, Francesco. Modern Architecture.
Milano: Electa, 1986.
22
Cf. MUMFORD, op.cit.
23
Cf. MUMFORD, op. cit., p. 175
15

participantes do congresso, critica a incapacidade do CIAM acompanhar as mudanças e


enfrentar o desafio de se pensar historicamente.

É possível que essas críticas tenham ecoado na escolha do tema do congresso seguinte, o
CIAM 8, ocorrido novamente na Inglaterra, em Hoddesdon, em 1951, e que trouxe para
discussão o “coração da cidade”, The Heart of the City, como tema aglutinador de
interesses específicos. Esta preocupação expressava a realidade da reconstrução das
cidades européias bombardeadas durante a guerra; a criação das new towns inglesas; e a
rápida suburbanização nos EUA. Talvez se possa dizer que esse congresso tenha sido o
mais significativo do pós-guerra, ao buscar discutir o espaço público, as perspectivas de
uma arquitetura social fora do socialismo, e a preocupação com os centros históricos e a
monumentalidade como possibilidade de reconstrução da urbanidade na segunda metade
do século XX.

O CIAM 9, realizado em Aix-en-provence (França), em 1953, foi o maior congresso em


termos de assistência, porém a cisão de gerações já estava claramente instalada. A
consciência de novas realidades locais estava expressa pelas tendências representadas pelos
Smithsons, pelos grupos da África do Norte e pelo Team X. A idéia de uma
“resignificação urbana”, propondo a cidade como idéia do citadino, revela bem o tom das
preocupações ali colocadas. Naquele momento, entretanto, o fim do CIAM já estava
próximo. Os jovens ingleses e os holandeses do Team X, a quem coube a organização do
congresso seguinte - que acabou acontecendo em Dubrovnik, em 1956, e não em Argel,
como tinha sido inicialmente pensado -, colocavam ênfase na recusa do legado que o
CIAM carregava, identificando-o como “ciência demais contra a emoção”. Le Corbusier,
que não participa do congresso, envia uma carta, perguntando-se “crise ou evolução? A
nova geração assume agora o comando”. O fim definitivo do CIAM só viria, entretanto, 3
anos depois, em Otterlo (Holanda), no CIAM 59, no qual holandeses e italianos são os
principais responsáveis por contundentes críticas ao tipo de urbanismo defendido pelo
mainstream do CIAM, baseando-se, para isto, num questionamento sobre o papel que a
cultura e o contexto deveriam desempenhar no projeto urbano.

Uma questão que ainda permanece em aberto é a maneira como os arquitetos e urbanistas
brasileiros se colocavam frente a essas discussões - na hipótese, é claro, de a elas terem
acesso. De certa maneira isto ocorria, pelo menos no que concerne a algumas delas, ainda
16

que de forma muito restrita, através de publicações como a já citada Revista da Diretoria
de Engenharia, que concedia espaço para a divulgação de matérias sobre o CIAM, o
CIRPAC, o grupo MARS, etc.24 Por outro lado, o fato de o “grupo carioca” de arquitetos
estar mais afinado com o mainstream do CIAM, a partir de suas relações com Le Corbusier
e Giedion, já balisa o tipo de discussão a que se tinha acesso no Brasil. Alguns trabalhos
recentes, contudo, têm contribuído para a discussão sobre os questionamentos a esse
ideário, a partir, por exemplo, da situação privilegiada propiciada pelo concurso para o
plano de Brasília25.

Há de se lembrar também – até mesmo porque este é um ponto que está a exigir maior
aprofundamento - que a presença dos brasileiros no CIAM sempre foi muito restrita,
apesar de Le Corbusier ter convidado Gregori Warchavchik para ser o representante do
Brasil naquele grupo desde 1929, e apesar de Oscar Niemeyer ter sido um dos poucos
sócios individuais que o CIAM teve. Tem-se notícia de poucas ocasiões em que algum
brasileiro estivesse presente em um congresso. Sabe-se que no CIAM 5 (Paris, 1937),
Warchavchik e Costa constam como delegados e que, no CIAM 7, o arquiteto Flávio
Régis representou o Brasil. O registro da exibição de projetos brasileiros no CIAM também
é muito limitado, existindo referências à exposição, no congresso de Bergamo, do projeto
de Pedregulho e de um outro conjunto habitacional no Rio, de autoria de Flávio Régis26.

Na realidade, as dificuldades dos brasileiros com relação ao CIAM começavam dentro de


casa, pela própria complicação em se organizarem internamente como um grupo nacional,
apesar da expectativa favorável que os dirigentes desses encontros tinham com relações a
isso. Tal fato só ocorre em meados dos anos 1940, quando Oscar Niemeyer, na qualidade
de presidente escolhido pelos colegas, comunica ao Secretário-Geral Giedion que o grupo
brasileiro havia finalmente se constituído, embora isto aparentemente não tenha
significado um maior envolvimento dos brasileiros com os congressos posteriores27. Em
que pese o relativo distanciamento dos arquitetos e urbanistas brasileiros da cena principal
em que ocorriam esses debates que pretendiam mudar a feição, a produção e o uso do
espaço construído, foi inegável o impacto que o ideário disseminado pelos CIAMs teve na

24
Cf. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 82
25
P. ex.: GONZALES, Célia Helena Castro. O Projeto de Rino Levi para Brasília: Imagem e
Representação. VI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, Natal, 2000.
26
Cf. MUMFORD, op.cit.
27
Op. Cit.
17

configuração da cultura urbanística brasileira do século XX. Resta ver como isto teria
acontecido.

8 Claro que, de um lado, existem aqueles projetos urbanísticos de inequívoca filiação ao


ideário modernista, dentre os quais poderíamos citar vários conjuntos habitacionais, campi
universitários, centros administrativos, além de planos de cidades novas, de que são bons
exemplos os projetos que participaram do concurso de Brasília. Nabil Bonduki lembra
oportunamente que, mesmo aqueles conjuntos habitacionais glorificados por suas
qualidades particulares, como o de Pedregulho, de autoria de Affonso Eduardo Reidy, no
Rio de Janeiro, não devem ser considerados como obras de exceção, mas sim situados no
contexto de um ciclo de projetos habitacionais, que propiciaram a renovação da cultura
arquitetônica e urbanística no Brasil28. Segundo Bonduki, parte significativa dos arquitetos
envolvidos com a produção de habitação social no Brasil adotou os pressupostos do
Movimento Moderno, em busca de “economia, prática, técnica e estética” – conforme
justificado em texto de 1940 pelo arquiteto Carlos Frederico Ferreira, autor do Realengo,
primeiro conjunto habitacional construído no Brasil e que coordenou o setor de arquitetura
do IAPI até 196429. Os campi universitários foram também um pioneiro e longevo campo
de experimentação das idéias funcionalistas, através de um amplo conjunto de projetos
pelo país afora, desde a polêmica em torno da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro,
em meados dos anos 30, até aqueles construídos mais recentemente, com particular
concentração nos anos 70, em função da multiplicação de universidades públicas pelas
diversas regiões do país. O projeto de Oscar Niemeyer para o Instituto Tecnológico de
Aeronáutica- CTA (1947), em São José dos Campos, também poderia ser enquadrado
nessa categoria. Um bom exemplo dos centros administrativos inspirados no mesmo
ideário e criados distante dos centros tradicionais das cidades, é o de Salvador, criado na
década de 70 e objeto de uma primeira proposta de Lúcio Costa. Sem querer multiplicar
exemplos, ainda poderíamos incluir nessa lista sumária alguns parques (como o Aterro do
Flamengo, no Rio de Janeiro) ou áreas de expansão residencial (como o projeto de Costa
para a Barra da Tijuca, também no Rio).

Em comum, todos esses exemplos têm o fato de se referirem a propostas para zonas livres
(ou com precária e rarefeita ocupação) e aí se encontra talvez a primeira e mais óbvia

28
BONDUKI, Nabil. Op. Cit., p. 170
29
Op. Cit., p. 134
18

explicação para o fato de que, apesar da importância que o urbanismo modernista teve na
constituição de uma cultura urbanística no país, as realizações que com ele se identificam
plenamente acabam sendo em número relativamente restrito. A total independência que os
pressupostos desse tipo de urbanismo pretendia estabelecer com relação às pré-existências
limitava sua aplicação em áreas construídas, principalmente aquelas densamente ocupadas,
como os centros de cidade, devido à completa reformulação que elas implicavam, com
tudo o que isso representava de custos financeiros e sociais. Mesmo sua inserção em áreas
livres no centro – como aquelas propiciadas pelo desmonte dos morros do Castelo e de
Santo Antonio, no Rio de Janeiro - não deixava de apresentar entraves, como no caso dos
planos não realizados (ainda que devido a um conjunto de fatores), que Reidy para elas
elabora, respectivamente, em 1938 e 1948.

A complexidade de problemas locais que devem ser enfrentados em todas as suas


dimensões (técnicas, econômicas, legais, etc.), e que exigem, portanto, respostas
“adaptadas” a cada caso e, se possível “referenciadas” a soluções bem sucedidas, aliada às
especificidades da própria cultura profissional já estabelecida em um determinado local,
parecem acabar marcando os limites da inserção de novas idéias no campo do urbanismo.
Longe de ser um “fenômeno brasileiro”, ou circunscrito ao âmbito das dificuldades
enfrentadas pelo ideário modernista, a complexidade do processo de circulação de idéias e
modelos urbanísticos parece ter uma clara dimensão internacional30.

No caso específico do papel que o ideário modernista desempenhou na configuração da


cultura urbanística no Brasil, a produção historiográfica recente tem nos sugerido que, mais
do que face a processos “contraditórios” na formação dessa cultura, estaríamos diante de
processos marcados pela “mescla” e pelo “hibridismo”, representado pelo recurso
simultâneo a diferentes fontes de referência. Nesse sentido, é revelador o exame da
proposta do EPUCS – Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador,
experiência pioneira desenvolvida na capital baiana entre 1946 e 1952, que nos mostra
como, no embasamento da mesma, encontramos uma forte presença do pensamento de
Patrick Geddes, através da preocupação com um extenso survey sobre as condições gerais
da cidade, do de Burgess, através da formulação centrada na cidade mononuclear e

30
Estudando esse processo em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, Maria Cristina da Silva Leme
trabalha com algumas hipóteses interessantes, cf. comunicação A Circulação de Idéias e Modelos na
Formação do Urbanismo em São Paulo, nas Primeiras Décadas do Século XX, apresentada no VIII
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Niterói, 2004.
19

concêntrica; no de Eugène Hénard, no que diz respeito à lógica radioconcêntrica, bem


como na Cidade Radiosa de Le Corbusier, particularmente no que diz respeito a uma
grande estação de tranbordo central31 .

O pensamento de vários urbanistas do período revela com clareza esse processo: é o caso,
por exemplo, de Antonio Baltar, no Recife, que vai beber tanto na fonte do movimento
Economia e Humanismo, liderado pelo Padre Lebret, quanto nos ensinamentos do CIAM32.
Ou no de Adalberto Szilard, que, no Rio de Janeiro, entre os anos 40 e 50, vai tentar
conciliar e estabelecer uma síntese entre propostas tão diversas quanto as de Le Corbusier,
Eero Saarinen, Gaston Bardet, Frank Lloyd Wright ou Werner Hegemann, em busca de
um referencial para a intervenção na cidade existente33. Mesmo no âmbito de alguns
arquitetos modernistas pode-se observar o polimorfismo de um ideário que eles souberam
enriquecer (ou problematizar) pelo contato entre diferentes formas de ver a cidade, como a
do então jovem Rino Levi que, nos anos 20, busca estruturar um pensamento crítico com
relação à cidade brasileira a partir de uma leitura das idéias corbuseanas, dos princípios da
Edilizia cittadina, de Piacentini, e dos ensinamentos de Gustavo Giovannni sobre arte e
técnica34. Ainda no âmbito dos modernistas, também não deixa de ser revelador um certo
“descompasso” entre a visão de arquitetura antenada com o pensamento vanguardista que
Attilio Correa Lima demonstra em seu projeto arquitetônico para a Estação de Hidroaviões
(1938), no Rio de Janeiro, onde explora a potencialidade dos vãos livres, dos pilotis, da
cortina de vidro, da integração espaço interno / espaço externo, e de uma pioneira
integração da arquitetura com jardins externos de plantas tropicais; e as ressonâncias
tradicionais de seu projeto para Niterói ou para Goiânia.

A reflexão sobre os mecanismos de circulação de idéias e modelos no meio profissional


brasileiro na primeira metade do século XX revela-nos os complexos e polimórficos
caminhos de uma cultura urbanística sempre em busca de respostas possíveis à incessante
transformação das cidades, num processo no qual diferentes formas de entender a cidade

31
FERNANDES, Ana; SAMPAIO, Heliodório; GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes. A Constituição do
Urbanismo Moderno na Bahia (1900-1960). In: CARDOSO, Luiz Antonio Fernandes; OLIVEIRA, Olívia Fernandes
de (orgs.). (Re)Discutindo o Modernismo: Universalidade e Diversidade do Movimento Moderno em Arquitetura e
Urbanismo no Brasil, p. 201-213
32
PONTUAL, Virgínia. A Cidade e o Bem Comum: O Engenheiro Antônio Bezerra Baltar no Recife dos anos 50.
Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR, v. 2, p.797-809
33
REZENDE, Vera F. O Urbanismo Modernista na Cidade do Rio de Janeiro: Idéias, Projetos e Realizações. IV
Seminário DOCOMOMOMO Brasil. Viçosa, 2002.
34
Cf. ANELLI, Renato. Arquitetura e Cidade na Obra de Rino Levi
20

podiam se associar na estruturação do pensamento de um determinado autor ou no


delineamento de uma determinada intervenção.

Apesar de pouco numerosos, os exemplos acima citados sugerem-nos como, no caso


brasileiro, o “polimorfismo” do urbanismo modernista parece incluir tanto adesões claras e
extremamente coerentes com o pensamento corbuseano, como nos exemplos de Affonso
Eduardo Reidy e de Lúcio Costa (o que não exclui, evidentemente, a riqueza da
contribuição e das interpretações individuais desses arquitetos), quanto situações em que a
incorporação parcial de idéias defendidas pelo Movimento Moderno trabalhava
articuladamente a outras formas de compreensão da cidade e de premissas para a
intervenção, configurando aproximações diversas, parciais, fragmentárias do ideário
propagado pelos CIAMs, em aliança com outras tendências.

Isto nos faz pensar que o Movimento Moderno tenha marcado muito mais as cidades
brasileiras através da arquitetura do que através do redesenho segundo os princípios
urbanísticos que defendia35. Porém, talvez a forma mais eficaz e duradoura com que os
princípios do urbanismo modernista tenham interferido e configurado o espaço das cidades
brasileiras seja a partir do momento em que, entre os anos 50 e 70, eles penetram na
legislação urbana e pautam as políticas de agentes como o BNH, o SERFHAU e as
COHABs36, que contribuirão, de maneira decisiva, para a generalização e empobrecimento
de princípios urbanísticos que, aplicados de forma indiscriminada e burocratizada, servirão
tanto para o esvaziamento de certas áreas da cidade, quanto para a criação de vastas e
desoladas periferias.

Concluindo, poderíamos dizer que, se no início deste texto falávamos que a expressão
“urbanismo moderno” remete a uma polifonia de propostas sobre a cidade, sem dúvida
aquela de “urbanismo modernista” não é menos destituída de ambigüidades, na medida em

35
Alguns trabalhos recentes têm apontado nessa direção, como os trabalhos desenvolvidos por Vera Rezende
e por Marlice Azevedo, respectivamente, para o Rio de Janeiro e para Niterói, e que mostram como, nessas
cidades, a arquitetura vai “construir” a cidade moderna.. Em um trabalho sobre a modernização urbana de
Belo Horizonte, Juliana Nery também discutiu como a verticalização da arquitetura e sua adesão aos
princípios modernistas será, durante as gestões de JK à frente da Prefeitura e, posteriormente, do Governo do
Estado, a ocasião para conferir “modernidade” a uma cidade, que, pelo seu traçado, já nascera “moderna”
(NERY, Juliana Cardoso. Configurações da Metrópole Moderna: os Arranha-céus de Belo Horizonte,
1940/1960. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal da Bahia, 2002.
36
DEL RIO, Vicente; GALLO, Haroldo. The Legacy of Modern Urbanism in Brazil; Paradigm Turned
Reality or Unfinished Project?. DOCOMOMO Journal 23, 2000, p. 23-27
21

que ela tanto pode encobrir posições bastante diferenciadas face às mesmas questões –
como no caso das discussões travadas no interior dos próprios CIAMs – quanto
escamotear as complexas configurações do pensamento e de prática urbanística em boa
parte do século XX, de que a experiência brasileira pode ser considerada um bom exemplo.

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