Cultura Urbanística e Contribuição Modernista
Cultura Urbanística e Contribuição Modernista
Cultura Urbanística e Contribuição Modernista
1 Este texto busca contribuir para a discussão sobre o papel do chamado “urbanismo
modernista” na construção e consolidação do campo do urbanismo no Brasil, entre 1930 e
1960, mostrando em que cultura profissional ele vai se inserir e com que formas de pensar
a cidade e o urbanismo ele vai interagir. Por “urbanismo modernista” estamos entendendo
aqui as proposições para a cidade funcional defendidas pelas vanguardas européias do
entreguerras e sistematizadas (e, à medida que o tempo avançava, até mesmo contestadas)
dentro dos chamados Congrès Internationaux d’Architecture Moderne - os CIAMs. Neste
sentido, falar em “urbanismo modernista” e em “urbanismo moderno” remete a universos
bem distintos. Ainda que a busca de um desenho racional para a cidade estivesse presente
desde o Renascimento e, principalmente, desde o Iluminismo, e ainda que já se buscasse
ter desde então uma visão global sobre a cidade, será apenas na virada do século XIX para
o século XX que dois elementos centrais vieram configurar o âmbito de uma nova
disciplina: de um lado, sua pretensão científica e, de outro, sua intenção de prever e
controlar o futuro da cidade. Dessa maneira, a expressão “urbanismo moderno” refere-se a
uma gama variada de visões e de propostas relativas à solução dos problemas da cidade do
presente e à idealização daquela do futuro, remetendo, no último século e meio, a um
largo espectro de manifestações, que vão, por exemplo, do sanitarismo ao movimento
Cidade Jardim (em suas diversas manifestações); e do movimento City Beautiful ou do
approach regional e sensível à história de um Patrick Geddes ou Lewis Munford à defesa
da Cidade Funcional feita pelo urbanismo “modernista”.
1
PPGAU/FAUFBA. E-mail: [email protected].
2
2
Ver, p. ex., FERNANDES, A.; GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Pesquisa Recente em História
Urbana no Brasil: Percursos e Questões (1993). In: PADILHA, Nino (org.). Cidade e Urbanismo;
História, Teorias e Práticas. Salvador: MAU/UFBa, 1998; p. 13-28; e _________________. História da
Cidade e do Urbanismo no Brasil: Reflexões sobre a Produção Recente. Cienc. Cult., abr./jun. 2004, vol.
56, no. 2, p. 23-25. ISSN0009-6725.
3
As edições subseqüentes deste evento aconteceram em Salvador (1993), São Carlos (1994), Rio de Janeiro
(1996), Campinas (1998), Natal (2000), Salvador (2002) e Niterói (2004).
3
4
Trata-se de eventos organizados pelo núcleo brasileiro do International Working Party for Documentation
and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the Modern Movement. As edições
subseqüentes desse evento aconteceram em Salvador (1997), São Paulo (1999), Viçosa (2001) e São Carlos
(2003).
4
5
Estas são as duas principais vertentes da pesquisa Urbanismo Modernista no Brasil: Articulações
Internacionais e Formas de Difusão, 1929-1956, atualmente em curso com apoio do CNPq, e na qual se
insere esta comunicação.
6
Para um amplo panorama sobre a questão, ver os artigos e verbetes reunidos em LEME, Maria Cristina da
Silva (org.). Urbanismo no Brasil, 1895-1965. São Paulo: Nobel; FUPAM. 1999. 599 p.
5
cidades brasileiras; por reformas e intervenções em áreas centrais das capitais e principais
cidades (como no Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906; no bairro do Recife, entre 1909 e
1913; no vale do Anhangabaú, em São Paulo, entre 1906 e 1912; na Cidade Alta de
Salvador, entre 1912 e 1916), ou ainda o desenvolvimento de projetos de bairros-jardim
em São Paulo, sob a responsabilidade de (ou a partir da referência a) Raymond Unwin e
Barry Parker, responsáveis pelo projeto da pioneira Letchworth, na Inglaterra. Para além
do caso excepcional da criação de uma cidade capital, como Belo Horizonte, vale a pena
citar também a grande experiência – com pouca visibilidade ainda na bibliografia
especializada – relativa à construção de cidades novas. Conforme lembrado por Carlos
Roberto Monteiro de Andrade na mesa redonda Desafios da Historiografia Ibero-
Americana, no VII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (Salvador, 2002),
é alto o número dessas cidades novas, principalmente no período republicano, e que
funcionaram como laboratórios da urbanística moderna, dos ensinamentos da Civic Art
àqueles da Carta de Atenas. Finalmente, pode-se mencionar ainda o impacto urbanístico de
grandes exposições, como a de 1922, no Rio de Janeiro, comemorativa do centenário da
independência, e que, a exemplo de suas congêneres em outros países, foi estimuladora de
novas visões no campo do urbanismo.
7
Disponível em www.urbanismobr.org
6
tarde (1939), que suas conclusões valiam por um programa de trabalho de uma instituição.
Em 1920 é realizado o 1º. Congresso Pan-americano de Arquitetos, em Montevidéu, ao
qual seguem-se um segundo, em 1923, em Santiago, e um terceiro, em 1927, em Buenos
Aires. Ainda não dispomos de muitas informações sobre a participação de brasileiros
nesses eventos, mas com certeza suas propostas e conclusões ecoavam através das páginas
das revistas especializadas. A inclusão da discussão sobre o urbanismo nesses congressos
de Arquitetura sinaliza uma importante mudança: o início da participação dos arquitetos
nas discussões relativas à cidade. No que diz respeito às revistas técnicas, observa-se
também que elas começam a multiplicar-se por essa época. As primeiras, de maior
longevidade e de maior penetração, são as de engenharia, publicadas por associações
profissionais ou instituições de ensino, concentradas no eixo Rio - São Paulo, porém não
restritas a ele8 .
8
É o caso, por exemplo, da Revista do Clube de Engenharia, publicada no Rio de Janeiro a partir de 1887
(com descontinuidades e com outro nome – Engenharia em Revista - ela é publicada até hoje); da Revista
Egatea, publicada pela Escola de Engenharia de Porto Alegre, de 1914 a 1934; a Revista de Engenharia
Mackenzie, publicada em São Paulo, de 1915 a meados dos anos 80; da Revista Brasileira de Engenharia,
publicada no Rio de Janeiro, de 1920 a 1942; do Boletim de Engenharia, publicado pelo Clube de
Engenharia de Pernambuco, de 1923 a 1937. A mais antiga de todas parece ser a Revista de Engenharia, de
São Paulo, que teve duas fases: de 1879 a 1884 e de 1911 a 1913 (Fonte: Banco Documental da Rede
Urbanismo no Brasil: www.urbanismobr.org)
9
SOUZA, Célia Ferraz de. Trajetórias do Urbanismo em Porto Alegre. In: LEME, M. C. da S., op. Cit., p.
91
7
5 O período que vai dos anos 30 ao início dos anos 60 conhecerá importantes mudanças no
panorama urbanístico brasileiro. As principais cidades do país adentram uma dinâmica
mais marcadamente metropolitana, bastante diferenciada daquela do período precedente.
O longo processo de desconstrução da cidade colonial, iniciado na segunda metade do
século XIX, completa-se no decorrer das primeiras décadas do século XX. Nesse sentido,
não deixa de ser revelador o convite do prefeito Antônio Prado Júnior, do Rio de Janeiro,
ao urbanista francês Alfred Agache para trabalhar, entre 1927 e 1930, num novo plano
para a cidade. Trazendo na bagagem a experiência de elaboração de diversos planos
urbanísticos para cidades européias e várias publicações sobre o assunto, o plano de
“remodelação, extensão e embelezamento” proposto por Agache, não foi implantado,
porém serviu de referência para intervenções futuras na cidade, além de ter rendido, para o
seu responsável, convites para atuar em várias outras cidades brasileiras10. Em São Paulo,
Prestes Maia apresenta, pela primeira vez, em 1930, seu Plano de Avenidas, implantado
alguns anos mais tarde e que abrirá a possibilidade de expansão futura da capital paulista.
Em Belo Horizonte, o plano elaborado pela Comissão Construtora ao final do século XIX
já é objeto de um conjunto de críticas, apontando seus limites e deficiências, às quais o
engenheiro Lincoln Continentino tentará responder com um “plano de urbanização” que, se
não chega a ser implantado integralmente, servirá de baliza para várias intervenções. Em
Porto Alegre, Gladosh propõe o Plano Diretor do Município (1938-1943) e em Recife,
10
LEME, M. C. da S. Op. Cit., p. 545-6
8
11
FELDMAN, Sarah. Os Anos 30 e a Difusão do Urbanismo Americano no Brasil. In: Anais do VI
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (CD-ROM). Natal, 2000.
12
LIMA, Fábio José Martins de. Por uma Cidade Moderna: Ideários de Urbanismo em Jogo a Partir do
Concurso para Monlevade, 1931-1943. Tese de Doutoramento apresentada à FAUUSP, 2003.
9
pode-se citar também a temporada brasileira, muito menos conhecida do que as outras, de
Frank Lloyd Wright. Acontecida em 1931, para a participação no júri do concurso do
Farol de Colombo, ela parece ter tido um importante impacto nos meios estudantil e
profissional, além de ter suscitado a publicação de alguns artigos em jornais locais. Não
deixa de ser interessante indagarmo-nos sobre o possível impacto dessa visita, quando nos
lembramos que, na época, a grande preocupação de Wright era com a cidade (naquele
momento ele estava preparando The Disappering City, que seria publicado em 1932)13
A partir dos anos 30, ampliam-se também os outros mecanismos já consolidados de acesso
à atualização e à formação profissionais na área do urbanismo, com a multiplicação dos
fóruns de discussão (congressos) sobre a cidade, a arquitetura, o urbanismo e a habitação;
com o desenvolvimento acentuado do meio editorial especializado (livros e revistas); com
a ação de órgãos de representação profissional; e, finalmente, com a inclusão da disciplina
urbanismo nos cursos de arquitetura e com a estruturação de uma formação específica em
urbanismo.
Com relação aos congressos por onde, na época, circulavam e difundiam-se as idéias
relativas à arquitetura, ao urbanismo, à cidade ou à habitação, alguns merecem um
destaque especial pelo papel que representaram na refelxão sobre o urbanismo. É o caso do
IV Congresso Pan-americano de Arquitetos, realizado no Rio de Janeiro, em 1930, e do
qual participou grande parte dos arquitetos e urbanistas mais expressivos do período, como
Attílio Corrêa Lima, Affonso Eduardo Reidy, Flávio de Carvalho, Lúcio Costa, Prestes
Maia e Armando de Godoy. Nele, Prestes Maia expôs o seu Plano de Avenidas para São
Paulo e Armando de Godoy apresentou uma comunicação (naquela época dizia-se “tese”)
intitulada A Ocupação Racional dos Terrenos nas Cidades, sobre o parcelamento do solo,
já com referência a moldes americanos. O I Congresso de Habitação, realizado em São
Paulo, em 1931, é outro importante marco, com discussões que se referem à legislação
municipal e, o que é muito interessante, com referências à tese apresentada por Ernst May
no II CIAM, ocorrido em Frankfurt, um pouco antes, em 192914. O I Congresso Brasileiro
de Urbanismo, realizado no Rio de Janeiro, em 1940, propiciou um bom panorama das
preocupações urbanísticas do momento. Teve a participação de modernistas, como
13
SANTOS, Paulo. Quatro Séculos de Arquitetura (1977). Rio de Janeiro: IAB, 1981 é uma das poucas fontes sobre a
viagem de Wright ao Brasil. Registre-se, recentemente, o lançamento de IRIGOYEN, Adriana. Wright e Artigas; Duas
Viagens. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
14
Cf. BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998
10
Carmem Portinho, Attílio Corrêa Lima, Affonso Eduardo Reidy e Oscar Niemeyer, mas
não só. Dele também participaram José Estelita, Nestor de Figueiredo e Lincoln
Continentino. Muito reveladora de novas idéias que estavam começando a surgir e que
iriam frutificar nos anos 50 e 60 foi a idéia de um planejamento integrado, defendida pelo
engenheiro Mário de Sousa Martins, que sugeria a criação de um Departamento Nacional
de Urbanismo, com a missão de orientar os estudos e realizações urbanísticas em todo o
território nacional. Propôs diretrizes para os Planos Diretores e, numa escala maior, para os
Planos Regionais de Desenvolvimento, acima dos quais um Plano Nacional teria papel
coordenador. Também nesse congresso Lincoln Continentino apresenta seu Plano de
Urbanização para Belo Horizonte e Francisco Batista de Oliveira, uma proposta de Código
Urbanístico Brasileiro, anteprojeto de lei inspirado nos códigos vigentes na Itália, França e
Inglaterra.
15
Cf. SAMPAIO, Maria Ruth do Amaral. A influência da Arquitetura Moderna em Alguns Conjuntos Habitacionais
Construídos pelos IAPS em São Paulo.
11
No que diz respeito aos periódicos, o dado novo aqui é o aparecimento de revistas na área
de arquitetura18, cujo espaço concedido ao urbanismo irá se ampliando à medida que vai
aumentando o envolvimento dos arquitetos nesse campo. A destacar a atuação da Revista
da Diretoria de Engenharia, criada em 1932 pela Prefeitura do então Distrito Federal, na
pessoa da engenheira Carmem Portinho. De grande longevidade (só foi extinta em 1993),
ela teve outras denominações ao longo do tempo19. Não contemplava só assuntos
referentes ao Rio de Janeiro, mas também sobre outras cidades, além de discussões sobre
urbanismo em geral. Foi provavelmente a revista brasileira que publicou o maior número
de artigos especializados sobre a cidade e o urbanismo, com grande abertura para o que se
passava em outros países e particular sensibilidade às idéias modernistas, advindas das
posições defendidas por sua criadora e por uma boa parte de seus colaboradores.
No que diz respeito à criação de órgãos de representação profissional, pode-se dizer que,
após as lutas para a regulamentação profissional, entre os anos 20 e o início dos anos 30,
eles concederão um espaço crescente às discussões relativas à cidade e ao urbanismo,
como é o caso da Sociedade Mineira de Engenharia, através de sua Revista Mineira de
16
Trata-se de uma edição do Diretório Acadêmico da Escola de Belas Artes.
17
Fonte: A CARTA de Atenas. Guimarães, Admar Braga. In: www.urbanismobr.org
18
Como Arquitetura, Engenharia, Decoração, Urbanismo (BH, 1935); Arquitetura e Engenharia (BH,
1946); Arquitetura e Urbanismo (RJ, 1936); Revista de Arquitetura (RJ, 1934); e Habitat (SP, 1950)
19
Revista Municipal de Engenharia e Revista de Engenharia do Estado da Guanabara.
13
Engenharia. O Instituto dos Arquitetos do Brasil, criado em 1921, terá importante papel
na difusão da arquitetura e do urbanismo do Movimento Moderno desde o final da década.
Com relação ao desenvolvimento de uma formação específica na área de urbanismo no
Brasil, sabe-se que na curta gestão de Lúcio Costa à frente da ENBA, em 1930, ele convida
Attílio Correia Lima, então recém-chegado do Institut d’Urbanisme de Paris, para
organizar a cadeira de Urbanismo no curso de Arquitetura, experiência que, de resto, não
foi adiante. Por volta do início dos anos 50, entretanto, três cursos de especialização em
urbanismo já haviam sido criados: no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Porto
Alegre.
6 É dentro do quadro geral dessa cultura profissional que se desenvolve desde a segunda
metade do século XIX e que apresenta claros sinais de consolidação ao longo da primeira
metade do século XX, que devem ser analisadas as contribuições advindas das visitas de
Le Corbusier, e através delas, a penetração do pensamento que estava sendo formulado
pelo mainstream dos CIAMs. Visitando o Brasil logo após a realização do 1º. CIAM em
La Sarraz, Suiça (junho de 1928), e estabelecendo desde então laços duradouros com os
arquitetos brasileiros - os quais, como se sabe, não foram destituídos de tensão20 -, é
compreensível que Le Corbusier tenha se tornado um elemento-chave na divulgação local
das discussões e proposições apresentadas nesses congressos.
20
Referência fundamental sobre essas relações é SANTOS, Cecília Rodrigues do et alii. Le Corbusier e o
Brasil. São Paulo: Tessela; Projeto, 1987. 301 p.
14
alvo de várias (e cada vez mais contundentes) críticas. Na perspectiva de Eric Mumford21,
essas críticas teriam se iniciado nos Estados Unidos, país onde sempre foi complicada a
organização de um grupo nacional dos CIAMs, apesar do clima favorável propiciado pela
política urbana do New Deal e do grande número de participantes europeus desses
congressos que para lá se dirigiram com a eclosão do conflito mundial. Ainda segundo
Mumford, foi fria a acolhida que o meio profissional americano reservou ao livro Can Our
Cities Survive?, em que Josep Lluis Sert, então tentando se estabelecer nos EUA, oferece
sua versão dos resultados do célebre congresso de 193322.
21
Cf. MUMFORD, Eric. The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1969. Cambridge, MA; London, UK. The MIT
Press, 2000. É principalmente a ele que estou recorrendo no rápido apanhado sobre a história dos CIAMs, feito a seguir,
ainda que tenha me servido também de outras contribuições, como FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da
Arquitetura Moderna. SP: Martins Fontes, 1997 e TAFURI, Manfredo; DAL CO, Francesco. Modern Architecture.
Milano: Electa, 1986.
22
Cf. MUMFORD, op.cit.
23
Cf. MUMFORD, op. cit., p. 175
15
É possível que essas críticas tenham ecoado na escolha do tema do congresso seguinte, o
CIAM 8, ocorrido novamente na Inglaterra, em Hoddesdon, em 1951, e que trouxe para
discussão o “coração da cidade”, The Heart of the City, como tema aglutinador de
interesses específicos. Esta preocupação expressava a realidade da reconstrução das
cidades européias bombardeadas durante a guerra; a criação das new towns inglesas; e a
rápida suburbanização nos EUA. Talvez se possa dizer que esse congresso tenha sido o
mais significativo do pós-guerra, ao buscar discutir o espaço público, as perspectivas de
uma arquitetura social fora do socialismo, e a preocupação com os centros históricos e a
monumentalidade como possibilidade de reconstrução da urbanidade na segunda metade
do século XX.
Uma questão que ainda permanece em aberto é a maneira como os arquitetos e urbanistas
brasileiros se colocavam frente a essas discussões - na hipótese, é claro, de a elas terem
acesso. De certa maneira isto ocorria, pelo menos no que concerne a algumas delas, ainda
16
que de forma muito restrita, através de publicações como a já citada Revista da Diretoria
de Engenharia, que concedia espaço para a divulgação de matérias sobre o CIAM, o
CIRPAC, o grupo MARS, etc.24 Por outro lado, o fato de o “grupo carioca” de arquitetos
estar mais afinado com o mainstream do CIAM, a partir de suas relações com Le Corbusier
e Giedion, já balisa o tipo de discussão a que se tinha acesso no Brasil. Alguns trabalhos
recentes, contudo, têm contribuído para a discussão sobre os questionamentos a esse
ideário, a partir, por exemplo, da situação privilegiada propiciada pelo concurso para o
plano de Brasília25.
Há de se lembrar também – até mesmo porque este é um ponto que está a exigir maior
aprofundamento - que a presença dos brasileiros no CIAM sempre foi muito restrita,
apesar de Le Corbusier ter convidado Gregori Warchavchik para ser o representante do
Brasil naquele grupo desde 1929, e apesar de Oscar Niemeyer ter sido um dos poucos
sócios individuais que o CIAM teve. Tem-se notícia de poucas ocasiões em que algum
brasileiro estivesse presente em um congresso. Sabe-se que no CIAM 5 (Paris, 1937),
Warchavchik e Costa constam como delegados e que, no CIAM 7, o arquiteto Flávio
Régis representou o Brasil. O registro da exibição de projetos brasileiros no CIAM também
é muito limitado, existindo referências à exposição, no congresso de Bergamo, do projeto
de Pedregulho e de um outro conjunto habitacional no Rio, de autoria de Flávio Régis26.
24
Cf. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 82
25
P. ex.: GONZALES, Célia Helena Castro. O Projeto de Rino Levi para Brasília: Imagem e
Representação. VI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, Natal, 2000.
26
Cf. MUMFORD, op.cit.
27
Op. Cit.
17
configuração da cultura urbanística brasileira do século XX. Resta ver como isto teria
acontecido.
Em comum, todos esses exemplos têm o fato de se referirem a propostas para zonas livres
(ou com precária e rarefeita ocupação) e aí se encontra talvez a primeira e mais óbvia
28
BONDUKI, Nabil. Op. Cit., p. 170
29
Op. Cit., p. 134
18
explicação para o fato de que, apesar da importância que o urbanismo modernista teve na
constituição de uma cultura urbanística no país, as realizações que com ele se identificam
plenamente acabam sendo em número relativamente restrito. A total independência que os
pressupostos desse tipo de urbanismo pretendia estabelecer com relação às pré-existências
limitava sua aplicação em áreas construídas, principalmente aquelas densamente ocupadas,
como os centros de cidade, devido à completa reformulação que elas implicavam, com
tudo o que isso representava de custos financeiros e sociais. Mesmo sua inserção em áreas
livres no centro – como aquelas propiciadas pelo desmonte dos morros do Castelo e de
Santo Antonio, no Rio de Janeiro - não deixava de apresentar entraves, como no caso dos
planos não realizados (ainda que devido a um conjunto de fatores), que Reidy para elas
elabora, respectivamente, em 1938 e 1948.
30
Estudando esse processo em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, Maria Cristina da Silva Leme
trabalha com algumas hipóteses interessantes, cf. comunicação A Circulação de Idéias e Modelos na
Formação do Urbanismo em São Paulo, nas Primeiras Décadas do Século XX, apresentada no VIII
Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Niterói, 2004.
19
O pensamento de vários urbanistas do período revela com clareza esse processo: é o caso,
por exemplo, de Antonio Baltar, no Recife, que vai beber tanto na fonte do movimento
Economia e Humanismo, liderado pelo Padre Lebret, quanto nos ensinamentos do CIAM32.
Ou no de Adalberto Szilard, que, no Rio de Janeiro, entre os anos 40 e 50, vai tentar
conciliar e estabelecer uma síntese entre propostas tão diversas quanto as de Le Corbusier,
Eero Saarinen, Gaston Bardet, Frank Lloyd Wright ou Werner Hegemann, em busca de
um referencial para a intervenção na cidade existente33. Mesmo no âmbito de alguns
arquitetos modernistas pode-se observar o polimorfismo de um ideário que eles souberam
enriquecer (ou problematizar) pelo contato entre diferentes formas de ver a cidade, como a
do então jovem Rino Levi que, nos anos 20, busca estruturar um pensamento crítico com
relação à cidade brasileira a partir de uma leitura das idéias corbuseanas, dos princípios da
Edilizia cittadina, de Piacentini, e dos ensinamentos de Gustavo Giovannni sobre arte e
técnica34. Ainda no âmbito dos modernistas, também não deixa de ser revelador um certo
“descompasso” entre a visão de arquitetura antenada com o pensamento vanguardista que
Attilio Correa Lima demonstra em seu projeto arquitetônico para a Estação de Hidroaviões
(1938), no Rio de Janeiro, onde explora a potencialidade dos vãos livres, dos pilotis, da
cortina de vidro, da integração espaço interno / espaço externo, e de uma pioneira
integração da arquitetura com jardins externos de plantas tropicais; e as ressonâncias
tradicionais de seu projeto para Niterói ou para Goiânia.
31
FERNANDES, Ana; SAMPAIO, Heliodório; GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes. A Constituição do
Urbanismo Moderno na Bahia (1900-1960). In: CARDOSO, Luiz Antonio Fernandes; OLIVEIRA, Olívia Fernandes
de (orgs.). (Re)Discutindo o Modernismo: Universalidade e Diversidade do Movimento Moderno em Arquitetura e
Urbanismo no Brasil, p. 201-213
32
PONTUAL, Virgínia. A Cidade e o Bem Comum: O Engenheiro Antônio Bezerra Baltar no Recife dos anos 50.
Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR, v. 2, p.797-809
33
REZENDE, Vera F. O Urbanismo Modernista na Cidade do Rio de Janeiro: Idéias, Projetos e Realizações. IV
Seminário DOCOMOMOMO Brasil. Viçosa, 2002.
34
Cf. ANELLI, Renato. Arquitetura e Cidade na Obra de Rino Levi
20
Isto nos faz pensar que o Movimento Moderno tenha marcado muito mais as cidades
brasileiras através da arquitetura do que através do redesenho segundo os princípios
urbanísticos que defendia35. Porém, talvez a forma mais eficaz e duradoura com que os
princípios do urbanismo modernista tenham interferido e configurado o espaço das cidades
brasileiras seja a partir do momento em que, entre os anos 50 e 70, eles penetram na
legislação urbana e pautam as políticas de agentes como o BNH, o SERFHAU e as
COHABs36, que contribuirão, de maneira decisiva, para a generalização e empobrecimento
de princípios urbanísticos que, aplicados de forma indiscriminada e burocratizada, servirão
tanto para o esvaziamento de certas áreas da cidade, quanto para a criação de vastas e
desoladas periferias.
Concluindo, poderíamos dizer que, se no início deste texto falávamos que a expressão
“urbanismo moderno” remete a uma polifonia de propostas sobre a cidade, sem dúvida
aquela de “urbanismo modernista” não é menos destituída de ambigüidades, na medida em
35
Alguns trabalhos recentes têm apontado nessa direção, como os trabalhos desenvolvidos por Vera Rezende
e por Marlice Azevedo, respectivamente, para o Rio de Janeiro e para Niterói, e que mostram como, nessas
cidades, a arquitetura vai “construir” a cidade moderna.. Em um trabalho sobre a modernização urbana de
Belo Horizonte, Juliana Nery também discutiu como a verticalização da arquitetura e sua adesão aos
princípios modernistas será, durante as gestões de JK à frente da Prefeitura e, posteriormente, do Governo do
Estado, a ocasião para conferir “modernidade” a uma cidade, que, pelo seu traçado, já nascera “moderna”
(NERY, Juliana Cardoso. Configurações da Metrópole Moderna: os Arranha-céus de Belo Horizonte,
1940/1960. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal da Bahia, 2002.
36
DEL RIO, Vicente; GALLO, Haroldo. The Legacy of Modern Urbanism in Brazil; Paradigm Turned
Reality or Unfinished Project?. DOCOMOMO Journal 23, 2000, p. 23-27
21
que ela tanto pode encobrir posições bastante diferenciadas face às mesmas questões –
como no caso das discussões travadas no interior dos próprios CIAMs – quanto
escamotear as complexas configurações do pensamento e de prática urbanística em boa
parte do século XX, de que a experiência brasileira pode ser considerada um bom exemplo.