5 - Planejamento Regional e Urbano - Pós-Graduação

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SUMÁRIO

1 AS TEORIAS URBANAS E O PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL


........................................................................................................... 3

2 ANTECEDENTES: O URBANISMO CIENTÍFICO E AS TEORIAS SOCIAIS


DA CIDADE ........................................................................................................ 4

3 O PLANEJAMENTO URBANO: DA HABITAÇÃO E TRANSPORTES AO


ENFOQUE COMPREENSIVO ......................................................................... 12

4 O PLANEJAMENTO URBANO-REGIONAL: PRODUZINDO O ESPAÇO


DO CAPITAL INDUSTRIAL .............................................................................. 14

5 CRISE E EXPLOSÃO DA CIDADE: A CONSOLIDAÇÃO DO URBANO


......................................................................................................... 18

6 A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO GEOGRÁFICO DESIGUAL . 23

7 O PLANEJAMENTO NO BRASIL E A POLÍTICA NACIONAL DE


DESENVOLVIMENTO REGIONAL .................................................................. 27

7.1 Retomada do planejamento regional brasileiro ......................... 28

7.2 Tipologia da Política Nacional de Desenvolvimento Regional ... 30

7.3 Financiamento da Política Nacional de Desenvolvimento Regional


.................................................................................................. 33

8 DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS ............................................... 34

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 39

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1 AS TEORIAS URBANAS E O PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL

Fonte: myelitedetail.us

A emergência teórica e a relevância da questão urbana no mundo


contemporâneo podem ser tomadas como quase consenso. Expressam a
inevitabilidade da centralidade do fato urbano, quando as redes de informação e de
articulação da economia capitalista ganham dimensão global têm nas cidades seu
principal espaço de comando. Ao mesmo tempo expressa a escala local, da cidade e
das referências sócio-espaciais, presentes e fortalecidas em qualquer escala de vida
ampliada e sempre localizada.
A rede urbana que articula a economia, a sociedade e o espaço-tempo
globalizado organiza também territórios de amplitudes várias, do micro-regional ao
continental. As relações metrópole-satélites, que inspiraram interpretações sobre o
subdesenvolvimento e as relações internacionais, ganham hoje uma imensa
complexidade diante da dimensão multiescalar, fragmentada e mutável
(caleidoscópica, portanto) sob o comando do capital financeiro, particularmente na
periferia do capitalismo, no mundo subdesenvolvido.
As teorias que tentaram explicar a transformação, o crescimento, o sentido e a
função da cidade para informar seus melhoramentos e/ou planejamento, tiveram
grande importância nas intervenções feitas, tanto pelo Estado quanto pela sociedade
em várias manifestações. Essas teorias, pensadas nos países do centro capitalista e

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apropriadas na periferia, muitas vezes representam “ideias fora do lugar” aplicadas
em áreas seletivas e deixando grande parte das cidades como “lugares fora das
ideias” (Maricato, 2000).
Por outro lado, é nas cidades (e no campo, com articulação nas cidades) que
se construíram as forças socioculturais, econômicas e políticas que formaram o Brasil,
produziram seu espaço urbano-regional e ainda o fazem. Das cidades coloniais às
metrópoles atuais, os referenciais teóricos foram sendo redefinidos, adaptados,
recriados para explicar processos sócio-espaciais e informar projetos políticos de
classes e grupos de interesse, dentro e fora do Estado. De outra parte, os “lugares
fora das ideias”, nas suas diversas escalas das cidades ao espaço (incompletamente)
urbanizado dos nossos dias, realimentam também os modos de ver a produção do
espaço urbano e regional no Brasil e forjando assim nosso planejamento urbano e
regional, na relação dialética entre as teorias advindas do capitalismo avançado e sua
releitura entre nós.

2 ANTECEDENTES: O URBANISMO CIENTÍFICO E AS TEORIAS SOCIAIS DA


CIDADE

As intervenções urbanas com pretensões científicas se iniciaram ao final do


século XIX nas grandes metrópoles europeias, com desdobramentos nas colônias e
ex-colônias no resto do mundo. A crise da metrópole industrial espelhava, de fato, a
crise da transformação da sociedade burguesa capitalista que trouxe para o centro do
poder a classe trabalhadora provocando um enorme crescimento e expansão
daquelas metrópoles.
O caso de Barcelona é dos mais conhecidos e importantes. O engenheiro
urbanista Ildefons Cerdà projetou a extensão da cidade para além das muralhas,
demolidas em 1854 – o Eixample, projeto arrojado na infraestrutura sanitária, no
sistema viário e no desenho de quarteirões integrados ao espaço urbano em praças
internas. Treze anos depois, Cerdà publicou sua Teoria Geral da Urbanização onde
consolidou os princípios técnicos da engenharia urbana que informaram por décadas
os melhoramentos nas grandes cidades do mundo no início do século XX.

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Fonte: resumosdelivrosparavestibular.blogspot.com

Entretanto, o caso mais emblemático e que influenciou todo o mundo ocidental


e suas colônias, é a famosa experiência do Barão Georges-Eugène Haussmann, em
Paris, administrador do Sena entre 1853 e 1869, que projetou e implantou o que é
considerado o primeiro plano regulador para uma metrópole moderna. Haussmann se
apoiou, de um lado, nos trabalhos de engenharia urbana desenvolvidos desde o início
do século na Escola Politécnica e que se fortaleceram enormemente a partir da
Revolução de 1848 e de outro, na força política e no interesse de Napoleão III, tão
engajado no processo que a ele muitas vezes tem sido atribuída a autoria do esquema
geral de racionalidade urbanística imposto a Paris, demolindo e construindo milhares
de casas, implantando infraestrutura e parques, abrindo grandes avenidas e dando à
área central da cidade o sentido majestoso e a organização administrativa em vinte
arrondissements que perdura até hoje.
Visto de hoje, o plano Haussmann expressou a forte intervenção do Estado
sobre a parte central de uma metrópole industrial em intensa transformação, que
chegou a 1870 com cerca de dois milhões de habitantes. À época, seu caráter
autoritário e até arbitrário foi criticado por liberais, intelectuais e artistas por sua rigidez
e pela destruição de áreas tradicionais da cidade. O plano, majestoso nos seus
bulevares, avenidas e parques, não se articulava diretamente com a arquitetura
grandiosa da cidade, rompendo assim com a compreensão urbano-arquitetônica
unificada da cidade barroca que a antecedeu nas artes urbanas. Incorporava as

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preocupações higienistas que caracterizavam a cidade moderna: reforma e demolição
de áreas e edificações degradadas em condições sanitárias precárias, além da
ampliação e redefinição dos limites da cidade (como no caso de Barcelona).
No Brasil, foi o plano de Aarão Reis para a Capital de Minas (Bello Horizonte),
na última década do século que aplicou com maior clareza e sucesso os princípios
hausmannianos, acrescidos de elementos barrocos como no plano de Washington
D.C. Em outras capitais estaduais, como Manaus e Belém, Rio de Janeiro e São
Paulo, além de cidades médias como Santos, engenheiros engajados nos
melhoramentos e reformas urbanas, como Saturnino de Brito, Pereira Passos (muito
comparado a Haussmann) e Prestes Maia, entre outros, incorporaram e empregaram
seus ensinamentos nas diversas que fizeram intervenções nas cidades brasileiras4 .
No contexto urbano do capitalismo periférico, os problemas técnicos que ocupavam
médicos e engenheiros sanitaristas ligados às recém implantadas escolas politécnicas
não se confundiam com as questões arquitetônicas e estéticas que preocupavam os
arquitetos das escolas de Belas Artes. Entretanto, alguns engenheiros locais foram
também influenciados por arquitetos urbanistas europeus que valorizavam os
aspectos artísticos das cidades, como Saturnino de Brito, influenciado por Camilo Sitte
(Monteiro de Andrade, 1992).
De fato, as influências que se seguem no Brasil – e no mundo – a partir do
século XX são extremamente variadas e múltiplas em seus princípios, ora
privilegiando aspectos racionais da ação individual articulados com o sentido de
progresso, como nas propostas de Le Corbusier, ora articulados com o resgate do
sentido de comunidade e de cultura das cidades, como em Sitte e nas propostas de
cidades-jardim de Ebenezer Howard. Além dessas duas correntes mais influentes,
que Choay (2000) chamou ‘progressista’ e ‘culturalista’, outras podem ser
identificados, como o ‘naturalismo’ norte-americano de Frank Lloyd Wright, herdeiro
da tradição jeffersoniana, ou o ‘organicismo’ do biólogo Patrick Geddes.
No Brasil, em que pesem os impactos de várias dessas correntes urbanísticas,
como a citada influência de Camilo Sitte, ou a influência das cidades-jardim,
diretamente através de Ebenezer Howard ou indiretamente através de Unwin e
Parker, não há dúvidas sobre a predominância da vertente progressista, capitaneada
entre nós por Le Corbusier. Tanto na arquitetura moderna brasileira, consolidada nos
anos trinta com o projeto do Ministério de Educação e Saúde, no Rio de Janeiro,
quanto no urbanismo progressista representado na nova capital federal construída ao

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final da década de cinquenta, essa corrente consolidou, no bojo de suas várias
adaptações e redefinições, o sentido de modernidade que marcou o país no seu
processo inicial de urbanização sob a égide da industrialização substitutiva de
importações, período que se estendeu, com fases distintas, até o golpe militar de
1964.
Entretanto, paralelamente aos ditames e influências do urbanismo dito
científico, de inspiração utópica ou não, as teorias sociais sobre a cidade e
organização do espaço urbano foram se desenvolvendo também entre nós. De um
lado, a tradição da sociologia urbana norte-americana da Escola de Chicago, com
suas variações entre a abordagem cultural e a abordagem dita ‘ecológica’; de outro,
as influências da economia regional e urbana, que se consolidam em torno da Ciência
Regional a partir da contribuição decisiva de Walter Isard.
De fato, a abordagem ecológica é reconhecida como o primeiro esforço teórico
abrangente para uma abordagem social compreensiva da cidade, ganhando força nos
Estados Unidos no período entre as grandes guerras, particularmente em Chicago,
onde o intenso crescimento urbano-industrial produzia grande diferenciação de
concentrações humanas e funcionais no território urbano, gerando o que ficou
conhecido como ‘mosaico urbano’: a justaposição de diversos tipos de usos do solo
formando uma aglomeração metropolitana que se distinguia claramente da cidade
tradicional.
Robert Ezra Park, na Universidade de Chicago, foi o principal estudioso a se
debruçar sobre a problemática da cidade, buscando suas bases teóricas em diversos
campos do conhecimento como a filosofia, a psicologia, a sociologia e a ciência natural
da evolução darwiniana. Park se centrou na transformação das relações de
competição, tomadas como inerentes à sobrevivência do indivíduo em uma
comunidade, e a emergência e construção de consensos e objetivos comuns,
tomadas como elementos da constituição de uma sociedade. O sentido ecológico
desta abordagem se centrava no conceito de área natural desenvolvido por Park,
assumindo que as forças competitivas naturais tendem a produzir um equilíbrio
também ‘natural’ de adaptação social ao ambiente urbano. A identificação de
processos necessários de competição, dominação, sucessão e invasão de áreas
naturais informou o modelo de organização e expansão urbana mais conhecido, com
cinco zonas concêntricas propostas por Ernest Burguess (Park, Burgess, McKenzie,

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& Wirth, 1925) resultando em uma segregação ‘natural’ por valores e interesses
comuns e, no médio prazo, levando ao famoso ‘mosaico urbano’.
O viés especialista implícito nesta abordagem ecológica encontra paralelos na
economia e no planejamento urbano e regional, no qual ações centradas na produção
de formas espaciais e organização do espaço foram tomadas como determinantes
dos processos sociais que deveriam se desenvolver, dando origem ao conhecido vício
especialista. Assim, algumas teorias desenvolvidas no âmbito da economia urbana (e
regional) resgataram estudos encetados desde o século anterior por economistas e
geógrafos alemães como Johann Heinrich Von Thünnen, Walter Christaller, Alfred
Weber e August Lösch que propuseram padrões de organização de redes de cidades
(tomadas como lugares centrais) e da localização de indústrias e das atividades
primárias e terciárias em função dos custos de transportes, de mão de obra e de
energia, entre outros fatores, como também da renda da terra e da centralidade dos
bens e serviços, definindo tamanhos e vantagens da aglomeração de atividades
(economias), assim como a amplitude das várias áreas de mercado. Em todos os
casos, a dimensão espacial foi reduzida a suas referências euclidianas e simplificada
com alto grau de abstração, assim como nos modelos da ecologia urbana.
Paralelamente desenvolvia-se, em íntima associação dentro da própria
Chicago, nova vertente culturalista que tomava a forma urbana como indicadora de
um novo modo de vida, bebendo nos ensinamentos de Simmel e Tönnies, entre
outros. As relações entre comunidade e sociedade continuavam em questão e os
estudos de Simmel sobre a vida mental nas metrópoles modernas (industriais)
relacionavam as dimensões individuais com as formas sociais em construção.
Variações em aspectos como o tamanho do grupo social, a natureza de suas relações
e a heterogeneidade dos seus elementos componentes (em Simmel, a divisão do
trabalho) geravam transformações tanto nos indivíduos quanto nas sociedades que
eles integravam. Dessa forma, as mudanças em curso nas grandes cidades industriais
refletiam as transformações que ocorriam na sociedade capitalista ocidental, ainda
que isto não estivesse inteiramente claro para aqueles estudiosos.

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Fonte: observatoriodasmetropoles.net.br

Louis Wirth, pupilo tanto de Simmel quanto de Park, produziu em 1938 o famoso
artigo teórico – “O urbanismo como modo de vida” (Wirth, 1979) – que, definitivamente,
marcou a corrente da cultura urbana da sociologia americana. Centrando-se nos
aspectos de tamanho, densidade e heterogeneidade, Wirth combinou aspectos da
ecologia humana desenvolvidos por Park com as novas formas de associação
humana e seus impactos no desenvolvimento de uma personalidade urbana,
trabalhados por Simmel. Wirth produziu então dois tipos ideais correspondentes ao
rural e ao urbano, reforçando essa dicotomia e definindo-a em termos de comunidades
distintas dentro de um continuam demarcado por dois polos extremos: de um lado, o
urbano e no limite, a metrópole industrial; de outro, a comunidade rural ou folk. Robert
Redfield (1941), outro aluno de Park, fez pesquisas em Yucatán, no México, e
descreveu os elementos centrais de uma sociedade rural (folk), reforçando assim as
hipóteses de Wirth de que os tipos ideais (de inspiração weberiana) poderiam
descrever a sociedade moderna em transformação, caminhando de uma forma social
(e ecológica) rural em direção a uma forma mais complexa de organização urbana,
própria da grande cidade (apesar de poder conter elementos rurais no seu interior).
A explicação e o referencial teórico da cultura urbana, definindo o urbanismo (e
por oposição, o ruralismo) como um modo de vida, informou as percepções da cidade
e do processo de modernização da sociedade por várias décadas. A urbanização
passou a ser vista cada vez mais como uma necessidade da transformação das

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sociedades em busca de um futuro moderno (e melhor), com aprofundamento da
divisão do trabalho, libertação das amarras da vida rural, sua complexificação e
integração à vida citadina.
Entretanto, talvez a principal herança prático-teórica desse período entre
guerras para o planejamento urbano tenha sido o zoneamento do uso do solo que,
inspirado na famosa Carta de Atenas produzida pelos urbanistas progressistas
europeus, ganhou dimensões mais expressivas quando suportado pelas teorias
sociais e econômicas gestadas nos Estados Unidos. De fato, o zoneamento proposto
em Atenas ainda informa, de modo mais ou menos rígido, a grande maioria dos planos
urbanos realizados no país.
De outra parte, a necessidade crescente de impor uma ‘ordem disciplinaria’
(Boyer, 1983) ao espaço da cidade, de modo a evitar ou minimizar os conflitos
potenciais decorrentes da justaposição no espaço urbano das múltiplas classes,
etnias, credos e culturas sob a égide do capital e hegemonia da burguesia, fizeram
com que as propostas racionalistas ampliassem sua influência no planejamento de
cidades. No limite, buscava-se impor à divisão social do trabalho na cidade a
hierarquia, rigidez e lógica da divisão técnica do trabalho na fábrica. No Brasil, cidades
mono-industriais como Volta Redonda e Ipatinga, entre muitas, espelharam em seu
planejamento esse modelo de urbanismo subordinado à lógica produtiva industrial,
hierarquizando rigidamente os espaços urbanos e os serviços ligados à reprodução
segundo o papel funcional no processo de produção.
A expansão metropolitana advinda do avanço da industrialização e a
consequente urbanização (extensiva), particularmente nos Estados Unidos, mas com
grande influência sobre outros países centrais no pós-guerra, contribuiu para estender
os pressupostos da centralidade urbano-industrial a todo o espaço urbanizado. Diante
disso, a metrópole se fragmentou, segundo imagens sugeridas pela escola de
Chicago, provocando a saída das classes mais ricas do espaço do poder, gerando
uma sub-urbanização despolitizada e abandonada à sua própria sorte. Nos contextos
ricos, como das cidades norte-americanas, essa sub-urbanização significou uma
extensão bipolar da malha urbana que redefiniu o mosaico gerando novas
centralidades ligadas a regiões abastadas e outras atendendo às concentrações de
populações pobres e parcialmente marginalizadas. A extensão das condições urbano-
industriais a essa periferia urbana/metropolitana permitiu a emergência de novas
cidades e de grandes cidades, deixando as áreas centrais tradicionais para ocupação

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da população migrante que buscava se inserir no contexto urbano. Nesse sentido,
confirmava algumas propostas apresentadas pela escola de Chicago.
Em outros contextos, entretanto, como países europeus que viram suas
metrópoles (e rede de cidades) reestruturadas no pós-guerra, a extensão da mancha
urbana e a sub-urbanização geradas pela onda internacional da industrialização
fordista produziu periferias pobres, organizadas na maioria das vezes em grandes
conjuntos habitacionais inspirados no modelo progressista onde se concentraram
populações de imigrantes excluídos do centro da economia e do espaço do poder,
alimentando assim os conflitos que viriam explodir ao final dos anos sessenta e que
ainda se agravam nas grandes cidades.
Em países subdesenvolvidos, de industrialização fordista periférica e
incompleta, como o Brasil, os espaços ‘incompletamente organizados’ (Santos, 1978)
e as periferias urbanas precárias proliferaram com áreas de sub-habitação e ausência
de serviços urbanos e sociais básicos. Essa sub-urbanização precária que se iniciou
nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, com a industrialização
substitutiva de importações, produziu periferias pobres parcialmente integradas à
dinâmica urbana. A expansão do modelo fordista a partir dos anos sessenta,
contrariamente à expectativa de maior inclusão social, resultou no agravamento das
condições de exclusão urbana, como veremos à frente nos desdobramentos no Brasil
do planejamento urbano do pós-guerra.

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3 O PLANEJAMENTO URBANO: DA HABITAÇÃO E TRANSPORTES AO
ENFOQUE COMPREENSIVO

Fonte: youtube.com

Relatos da problemática habitacional nos países centrais, mas também em


cidades coloniais, inclusive nos Estados Unidos, estavam presentes desde o século
XVIII, antes mesmo da revolução industrial, quando foram observadas ações
reguladoras e restritivas quanto à qualidade da moradia, prevenção contra incêndios
e ocupação de áreas de risco, entre outras. No século XIX, com o advento da cidade
industrial, a questão habitacional ganhou maior centralidade na medida em que
constituía demanda vital dos trabalhadores, surgindo assim políticas habitacionais
específicas, voltadas para a construção de vilas operárias pelas próprias empresas
industriais, mas também pelo Estado, em alguns casos. A questão habitacional
tornou-se objeto central de política nas cidades e o conhecido tratamento do tema por
Engels, em paralelo à análise da situação da classe operária na Inglaterra, o atesta.
A explosão da cidade de Londres sobre suas periferias e os problemas ambientais
(sanitários) e de transportes daí derivados logo se articularam com a questão
habitacional e tentativas para enfrentar esta questão a partir do Estado estavam
presentes na legislação, não apenas na Inglaterra como em vários países onde a
industrialização se manifesta, por todo o século XIX estendendo-se no século XX.

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A habitação, entendida também como uma questão político-ideológica
garantindo a hegemonia burguesa no centro das cidades, espaço da riqueza, do poder
e da ‘festa’, se somou às demandas por áreas e conjuntos habitacionais nas periferias
em apoio ao processo de industrialização que trouxera grandes levas de
trabalhadores para as cidades. Essas periferias urbanas das grandes metrópoles
industriais assistiram assim a grandes investimentos ligados à reprodução coletiva da
força de trabalho, centrada nos dois serviços urbanos principais requeridos pela
produção: a habitação, elemento fundamental para a reprodução da força de trabalho
e transporte público, requerimento central para o acesso ao trabalho. À medida que
as distâncias das periferias ao centro – ou poder-se-ia dizer, do tecido-urbano
industrial periférico à cidade – aumentam, a importância do sistema público de
transportes cresce. Nas metrópoles dos países centrais – e de alguns periféricos,
como a Argentina – o investimento em transporte ferroviário urbano se torna prioritário,
determinante e indutor do processo de expansão urbana e metropolitana.
Em paralelo à expansão do tecido urbano, apoiada na habitação popular e no
transporte público, a valorização dos espaços centrais da cidade torna-se prioritária
para reafirmar o pacto do progresso e da modernidade, complementando a estratégia
de classe da burguesia na sua consolidação no espaço do poder. Os melhoramentos
urbanos, e particularmente, o embelezamento das áreas urbanas centrais com a
construção de grandes parques urbanos e de praças adornadas com arte pública,
equipamentos culturais e prédios públicos de inspiração neoclássica (greco-romana)
e/ou eclética (combinando várias culturas) caracterizou o movimento chamado City
Beautiful por Foglesong (1986), baseando-se no arquiteto Daniel Burnham, expoente
da Escola de Arquitetura de Chicago que, juntamente com Louis Sullivan e outros,
planejou a área central de Chicago.
Entre as influências e ações sobre as grandes cidades que se difundiram no
mundo, com forte participação das experiências norte-americanas, estão as tentativas
de redução do crescimento das cidades que buscaram inspiração nas propostas
culturalistas, em particular, na cidade-jardim howardiana, utilizada em suas versões
mais puras, como também em versão adaptada à cidade mono-industrial (as company
towns) e, finalmente, em suas adaptações como subúrbios anexos às grandes
cidades, segundo a proposição de Unwin e Parker. Exemplos desta tipologia nas
cidades brasileiras e latino-americanas são vários, particularmente em São Paulo e
em cidades mono-industriais, como já citado.

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Entretanto, no Brasil e em outras partes do mundo, os pressupostos
progressistas prevaleceram na organização da cidade grande, materializados no
zoneamento e controle do uso do solo. O zoneamento e a regulação do uso do solo
urbano visavam resolver uma contradição central da cidade capitalista: o conflito entre
a propriedade privada do solo e as demandas coletivas de integração e resposta à
cooperação implícita no espaço urbano. A criação de comissões e/ou órgãos técnicos
de planejamento local respondiam ao caráter supostamente isento e independente
face aos interesses específicos, mascarando de fato o processo de despolitização que
se impôs à cidade e à sua expansão, subordinando-a cada vez mais às necessidades
das várias frações do capital e das classes dominantes.

4 O PLANEJAMENTO URBANO-REGIONAL: PRODUZINDO O ESPAÇO DO


CAPITAL INDUSTRIAL

Fonte: br.pinterest.com

O planejamento urbano e local, que se consolidou com a expansão do


Taylorismo no processo industrial capitalista, buscou construir nas cidades e áreas
urbanas periféricas a organização espacial que melhor atendesse às demandas
crescentes da indústria, que capitaneava o crescimento econômico cada vez mais sob
a égide do Fordismo.

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Entretanto, os anos que sucederam a crise do capitalismo de 1929 viram a
questão urbana ser cada vez mais redefinida em função de uma problemática regional
que recolocava as cidades como os centros, ou nós, de um sistema econômico
organizado em bases regionais e/ou nacionais. Nos Estados Unidos, a experiência do
Vale do Tennessee, institucionalizada na agência regional – a TVA, Tennessee Valley
Authority – serviu como exemplo para outras experiências no mundo, como o
Mezzogiorno no Sul da Itália e o Vale do São Francisco, no Nordeste Brasileiro.
Preocupações com a hierarquia urbana, a rede de cidades e sua inter-relação
tornaram-se correntes, articulando cada vez mais as dimensões urbanas e regionais.
De fato, a emergência da questão regional deslocou o eixo do problema urbano
da esfera social e da organização intra-urbana para a esfera do econômico, tendo o
espaço regional e nacional e a organização interurbana como pontos programáticos
principais. A preocupação com a articulação cidade-região, implícita na experiência
do TVA, ganhou força na Grã-Bretanha com os trabalhos da Comissão Barlow (1937-
40), antes mesmo da guerra. A crise do capitalismo havia evidenciado a problemática
das regiões deprimidas que, no contexto do Fordismo em expansão, constituíam
perda no aproveitamento de recursos humanos e naturais no processo de produção,
além de reduzir ganhos potenciais pela fragilidade do consumo naquelas regiões. A
Comissão Barlow, uma Comissão para a Distribuição Geográfica da População
Industrial que, além de propor recomendações para as fragilidades regionais
britânicas (incluindo a Escócia e País de Gales), identificou uma excessiva
concentração industrial em poucas áreas e regiões e unificou as três escalas do
planejamento espacial: urbana, regional e nacional, ressaltando os problemas da
concentração populacional, econômica e industrial nas metrópoles (Hall, 1989).
A questão urbano-regional havia definitivamente ganhado dimensão
estratégica para o crescimento econômico nacional e o planejamento, tomado de
empréstimo da experiência socialista e adaptado ao receituário keynesiano e à
democracia burguesa17 do capitalismo industrial de Estado, tornou-se instrumento
central para a propulsão do novo ciclo de desenvolvimento prometido ao final da
Segunda Grande Guerra18. A ‘máquina de planejamento do pós-guerra’ (Hall, 1989)
montada na Inglaterra e nos Estados Unidos se espalhou, com base nos organismos
internacionais, por todo o mundo ocidental, com impacto particularmente intenso na
América Latina e no Brasil.

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No Brasil, os esforços preliminares encetados pelo Estado Novo para equipar
o país com uma institucionalidade burocrática racionalizante, planejamento da
ocupação do espaço regional, equipamento de setores nas grandes cidades para a
industrialização substitutiva de importações, e instrumentos financeiros para o
investimento público, entre outras medidas, ganharam dimensão muito mais
expressiva durante a guerra com os Acordos de Washington e principalmente no pós-
guerra, com as ações e apoio técnico dos recém-criados organismos internacionais e
das missões americanas no país.
A influência dos organismos internacionais, particularmente a Cepal–Comissão
Econômica para a América Latina e do Ilpes–Instituto Latino-americano para a
Pesquisa Econômica e Social, sobre o planejamento regional, a criação da Sudene e
a organização do Estado para o planejamento foi significativa em várias partes do
país. Entretanto, a problemática urbana não teve a mesma relevância e referencial
teórico. O concurso para projeto e construção de Brasília, na segunda metade dos
anos 50, realizado nos moldes do urbanismo clássico e restrito aos arquitetos e
engenheiros, espelhou com clareza essa distância entre os problemas do
planejamento urbano-regional e o problema das cidades, que continuava a ser
considerado apenas no caso de grandes projetos públicos, seja na criação de novas
cidades capitais, estaduais ou nacional, seja em grandes projetos na expansão da
fronteira agrícola ou grandes projetos industriais, como os já citados. Tratava-se ainda
de um ‘urbanismo de luxo’ (Monte-Mór, 1980).
Entretanto, já existiam no país outras correntes de planejamento que se
ligavam ao movimento de politização da questão urbana no mundo, particularmente o
Economia e Humanismo, liderado por Henri Lefebvre e o grupo situacionista na
França e que, no Brasil, teve sua expressão maior no grupo Sagmacs – a Sociedade
para a Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais. Com sede
em São Paulo e liderado pelo Padre Lebret, o Sagmacs atuou em várias metrópoles
e cidades médias do país, incluindo cientistas sociais oriundos de várias disciplinas
no planejamento urbano e colocando em pauta as questões que viriam conformar o
debate sobre a repolitização das cidades – e do espaço social – nas décadas
seguintes.
Grupos acadêmicos, como o Cepeu–Centro de Pesquisas e Estudos
Urbanísticos, da Universidade de São Paulo, e instituições nascidas no contexto dos
municípios, como o IBAM–Instituto Brasileiro de Administração Municipal, já vinham

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desenvolvendo estudos e pesquisas sobre as cidades de forma articulada às questões
sociais, políticas e administrativas locais. No Rio Grande do Sul, uma visão ampliada
da problemática municipal surgira, em Porto Alegre, na Secretaria de Governo do
Estado, que produziu dez planos diretores entre 1939 e 1945 (SERFHAU, 1971).
Ainda que restritos a propostas sobre os aspectos físico-urbanísticos, os planos
diretores incorporaram preocupações econômicas e administrativas relativas ao
planejamento e à implantação das ações propostas. De fato, as preocupações
crescentes com os bens públicos e serviços de caráter social fizeram o urbanismo
ampliar sua visão para incorporar a inserção no contexto regional, movendo-se em
direção à ‘planificação espacial’ e aproximando-se cada vez mais da problemática
regional. As preocupações com a dimensão metropolitana seriam uma consequência
lógica desse percurso nas décadas seguintes.
A institucionalização do planejamento urbano e regional no Brasil, a partir do
golpe militar de 1964, se deu com base em questões levantadas ainda no contexto da
problemática traçada nas cidades pelo urbanismo, tendo no centro das suas políticas
a questão da habitação. Apesar da tentativa de vincular a questão da habitação ao
planejamento urbano, subordinando em tese o Banco Nacional da Habitação ao
sistema de planejamento montado pelo Serviço Federal de Habitação e do Urbanismo
– Serfhau, os recursos foram concentrados no BNH, fazendo com que a cabeça do
sistema ficasse extremamente frágil diante de um corpo inchado. A montagem de um
sistema voluntário e compulsório de poupança carreou recursos para investimentos
públicos e privados na produção do espaço urbano e regional e logo se percebeu que
a população pobre do país não tinha recursos para arcar com novas habitações ou
mesmo com o processo de urbanização. De outra parte, o sistema de planejamento
urbano local, montado a partir das demandas municipais, de baixo para cima, opunha-
se frontalmente a todo o sistema de planejamento econômico montado no país de
cima para baixo, a partir da concentração de recursos nas mãos do governo federal
depois da reforma tributária de 1966/67. Estava, assim, fadado ao fracasso já no seu
nascedouro. O “falso problema” da habitação se impôs sobre o “problema” do
urbanismo, ou do planejamento urbano (Bolaffi, 1975), mas foi logo superado pela
impossibilidade econômica da população carente e da política social, baseada em leis
de mercado, de resolver o problema habitacional, deslocando assim os recursos para
a produção do espaço urbano e regional.

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Os investimentos foram então concentrados nas áreas centrais das grandes
cidades do país, particularmente no sudeste, voltando-se para expandir as condições
urbano industriais de produção que permitiriam a expansão do consumo dos bens
duráveis que a produção industrial fordista montava no país. As periferias
metropolitanas e das capitais e cidades médias cresceram enormemente nas décadas
de 60 e 70. Por outro lado, a necessidade de expandir e integrar mercados de bens
duráveis alimentou a expansão urbano-industrial em todo o território nacional,
incluindo a fronteira amazônica (Becker, 1982). As preocupações geopolíticas dos
militares estenderam os sistemas de transportes e de comunicações, assim como
outros braços do Estado por todo o território, incluindo a legislação trabalhista, os
seguros sociais, serviços de saúde e educação, sistema bancário, enfim, todo o
aparato que podemos reunir sob o rótulo de condições gerais de produção. A extensão
dessas condições urbano-industriais virtualmente a todo o espaço nacional criou as
bases para a integração espacial sob a égide do urbano: a urbanização extensiva.

5 CRISE E EXPLOSÃO DA CIDADE: A CONSOLIDAÇÃO DO URBANO

Os anos sessenta mudaram o eixo das interpretações das questões urbanas.


As teorias sociais ligadas à corrente hegemônica da modernização capitalista foram
sendo contestadas pela revolução cultural e pela emergência das múltiplas vozes no
contexto mundial, desde os povos que se libertaram do jugo colonial até os vários
grupos étnicos, religiosos, sexuais e ideológicos que se organizaram para
manifestação política na cidade. De outra parte, a crise do capitalismo manifestada
nos choques do petróleo e na redução dos níveis de acumulação ligados ao modo
fordista de organização da economia trouxe à tona a crise do Estado, erodido em seu
papel regulador das relações capital e trabalho, de provedor da infraestrutura exigida
pelo capital e de suporte à reprodução coletiva da força de trabalho. O Estado do Bem-
Estar, aparentemente consolidado nos países centrais e em processo de
reorganização nos países periféricos, ainda que restrito aos núcleos urbanos
industriais e aos setores modernos da economia, começou a se mostrar inviável e
incapaz de garantir os níveis de conforto e consumo exigidos pelas camadas ricas da
população.

18
Fonte: antigosverdeamarelo.blogspot.com

A crise fiscal do Estado, identificada no início dos anos 70 (O'Connor, 1973,


1987; Poulantzas & Brunhoff, 1976) e logo manifesta nas cidades, particularmente em
Nova York (Castells, 1989), lançou as bases para a redefinição do papel do Estado
na década seguinte. A cidade da prosperidade, do progresso e do desenvolvimento
começou a ser vista como a cidade do capital. Um conjunto de estudos críticos sobre
a cidade, informados pela economia política e, mais particularmente, pelo neo-
marxismo começou a fazer escola entre os estudiosos da questão urbana e regional.
Manuel Castells (1977c) e David Harvey (1975) são considerados os dois principais
autores que deram forma inicial às formulações críticas dos estudos urbanos e
regionais de cunho marxista.
Henri Lefebvre foi sem dúvida outro autor de importância vital nessa área, mas
teve menor influência naqueles anos por não ter tido sua obra traduzida para o inglês
tão precocemente e também por ter sido objeto de crítica inicial pelos dois autores
citados, Castells e Harvey. Entretanto, entre 1968 e 1970, Lefebvre abordou
criticamente a questão urbana de ângulos complementares, reunindo escritos sobre a
transformação ‘do rural ao urbano’, o ‘direito à cidade’, a ‘vida quotidiana no mundo
moderno’ expressa na sociedade hiper-repressiva (no limite, terrorista) do ‘capitalismo
burocrático de consumo dirigido’, na sistematização crítica da ‘cidade do capital’
extraída dos escritos de Marx e Engels e, finalmente, na ‘revolução urbana’ (Lefebvre,
1968, 1971, 1976, 1999a, 1999b).

19
Depois de mostrar o deslocamento da problemática contemporânea do rural
para o urbano; de denunciar a estratégia de classes para exclusão das classes
trabalhadoras do espaço do poder, a cidade; e mostrar o caráter repressivo da
sociedade burocrática de consumo dirigido que se forjara no capitalismo industrial,
Lefebvre concluiu anunciando a sociedade urbana virtual que trazia no seu bojo um
processo revolucionário centrado na práxis urbana, a politização do espaço de vida.
Incompreendido e criticado por seus pares, Lefebvre voltou-se então, em 1972, para
entender como o capitalismo sobrevivia: reproduzindo as relações de produção
através da produção do espaço (Lefebvre, 1978). Como que respondendo aos seus
críticos, em 1974 Lefebvre desloca a questão metafórica da urbanização para se
focalizar no seu cerne: a produção do espaço (Lefebvre, 1991a).
De fato, o processo de urbanização sugerido por Lefebvre, incluindo uma nova
politização em gestação nas cidades logo veio se manifestar obrigando alguns de
seus críticos a correrem atrás dos processos dos quais ele foi arauto. Assim, ainda na
década de 70, Castells (1976; 1977a; 1977b) escrevia sobre os movimentos sociais
urbanos que proliferavam nas cidades, para logo em seguida dedicar-se ao tema da
politização do espaço de forma mais ampla, abrangendo diversos movimentos de
cidadania que se articulavam a partir da questão da reprodução, urbana e ambiental
(Castells, 1983). Harvey também se dedicou à questão da ‘consciência urbana’, não
apenas no período contemporâneo, mas buscando suas raízes no século XIX (Harvey,
1985a, 1985b).
No Brasil, a questão do direito à cidade foi bastante (e precocemente)
apreendida já nos anos 60, ainda que parcialmente reprimida no bojo das discussões
das reformas urbanas e das remoções de favelas e de populações de áreas pobres
degradadas para conjuntos de periferia, dos quais o Cidade de Deus é hoje um caso
exemplar. A revolução urbana, todavia, só recentemente começou a ser apreendida
em sua compreensão maior. Em 1978, Francisco de Oliveira (1978) identificava a
natureza real da urbanização brasileira no seu famoso texto conhecido como ‘o ovo
de Colombo’: trata-se da extensão a todo o espaço nacional das relações de produção
capitalistas. Segundo Oliveira, não havia mais problemas agrários, todos os
problemas nacionais eram agora urbanos.
Os problemas rurais podem ter desaparecido, mas a questão agrária
certamente permanece na medida em que a terra (improdutiva) continua concentrada
nas mãos de poucos e persiste no país uma massa de trabalhadores em busca de

20
terras para cultivo e vida. Entretanto, não são trabalhadores rurais no sentido literal,
mas sim trabalhadores sem-terra, advindos de um contexto urbano, em sua maioria,
e em busca de condições urbanas para sua vida agrária: escolas, saúde, transportes,
comunicações, energia, condições sanitárias, segurança pública, lazer, etc. Em outras
palavras, o campo se urbanizou rapidamente à medida que as condições de produção
urbano-industriais, antes restritas às cidades, se estenderam para além dos limites
legais do espaço urbano e ganharam a dimensão regional e mesmo nacional. Ao fazê-
lo, o tecido urbano no qual essas condições se apoiavam carregou consigo o germe
da polis, da civitas, dando origem ao processo que chamei, em outros trabalhos, de
urbanização extensiva (Monte-Mór, 1994; 2003; 2004). Trata-se de uma metáfora para
indicar que o urbano, tomado agora como um substantivo e não apenas como adjetivo
da cidade, ganhou virtualmente dimensões globais representando todo o espaço
social, ele todo agora equipado com as condições urbano-industriais, prenhe das
relações de produção capitalistas e (re)politizado a partir da práxis gerada nas
centralidades urbanas.
O urbano, aqui visto como um substantivo e não apenas como atributo da
cidade, torna-se assim o terceiro elemento na dialética entre campo e cidade,
contendo elementos de ambas as partes, mas trazendo consigo as especificidades de
um terceiro termo. A contradição cidade-campo tende assim a se dissolver e a se
combinar no urbano, e ao campo se impõe outra contradição, desta feita entre a
urbanização, que privilegia as questões ligadas à reprodução e à lógica imposta pelo
espaço social, produzido, gerido e apropriado acima de tudo como valor de uso
coletivo, e a industrialização, que privilegia as questões da produção e a lógica
imposta pelo espaço abstrato ou econômico, sob o domínio da acumulação e do valor
de troca.
Paralelamente, países periféricos como o Brasil sofreram uma intensa e rápida
urbanização que reestruturou todo seu espaço urbano-regional e com ele, a sociedade
e a própria natureza do espaço social e econômico. A reestruturação se iniciou nas
cidades grandes e médias e particularmente nas metrópoles, no bojo das
transformações na estrutura produtiva ditada pela ‘tríplice aliança’ (Evans, 1979): a
associação entre o Estado, o capital estrangeiro, envolvido na produção de bens de
consumo durável, e o capital nacional, ao qual coube acima de tudo a produção do
espaço centrando-se nos bens intermediários e na própria construção civil.

21
Neste sentido, alguns conceitos neo-marxistas oriundos da corrente
estruturalista francesa, de inspiração em Louis Althusser, foram centrais para informar
os processos da produção capitalista do espaço urbano. Manuel Castells contribuiu
com o conceito de meios de consumo coletivo, argumentando que caberia ao espaço
urbano, no capitalismo, a tarefa precípua de reproduzir coletivamente a força de
trabalho, sendo assim os lócus privilegiado dos meios de consumo coletivos,
necessários para o consumo individual (particularmente, no fordismo, poderíamos
hoje acrescentar) (Castells, 1977b, 1977c). Criticado por seus pares por limitar a
função da cidade à reprodução coletiva da força de trabalho, outros autores como
Christian Topalov e Jean Lojkine trouxeram para o debate o conceito de condições
gerais da produção, resgatado de Marx e ampliado para se referir aos valores de uso
complexo exigidos pelo capital e pelo trabalho em suas versões contemporâneas
fordistas. Esses enfoques, e particularmente o conceito de meios de consumo
coletivo, foram muito influentes em toda a América Latina que sofria, em várias de
suas regiões, um intenso processo de urbanização associado à industrialização de
base fordista no qual o Estado jogava um papel fundamental e contraditório (como o
próprio Castells descreveu para partes do território francês).
A compreensão do papel das condições gerais (urbano-industriais) de
produção e de sua extensão ao espaço social como um todo, todavia, foi menos
generalizada e velhas dicotomias como campo-cidade permaneceram (e
permanecem) presentes, às vezes vistas de forma acirrada, principalmente entre
estudiosos centrados nos estudos agrários e que parecem não ter sido capazes de
perceber as grandes transformações do campo no Brasil. De outra parte, estudiosos
da questão metropolitana e urbana muitas vezes não puderam transcender os limites
dos perímetros urbanos para perceber o processo de urbanização na sua dimensão
regional e mesmo nacional, ficando restritos às problemáticas locais.

22
6 A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO GEOGRÁFICO DESIGUAL

Fonte: blogs.oglobo.globo.com

A noção de desenvolvimento geográfico desigual pode ser apreendida como


uma construção teórica cuja origem está nos escritos de Vladimir Lênin sobre o
processo de desenvolvimento capitalista na Rússia, mas que adquire maior significado
pela lei do desenvolvimento desigual e combinado de Leon Trotsky depois da
Revolução de 1905 e ganha, mais recentemente, sua devida espacialização pelos
esforços de geógrafos marxistas como Neil Smith e David Harvey.
A contribuição de Trotsky à teoria marxista resulta da percepção de que o
processo de desenvolvimento do capitalismo na Rússia ampliava-se à totalidade do
sistema capitalista: “a formação social russa era tomada como um subconjunto
periférico do capitalismo mundial, que formava, de forma determinante, sua estrutura
econômica e social.” (LÖWY, 1998, p. 74). Aí, a lei do desenvolvimento desigual e
combinado poderia explicar tanto
 as formas pelas quais o capital modifica a formação dos países
periféricos quanto, consequentemente,
 dar conta de interpretar a lógica das contradições econômicas e sociais
intrínsecas ao modo de produção capitalista.

23
Numa primeira exposição em direção à lei, relativa a aspectos econômicos do
desenvolvimento da Rússia, Trotsky percebe traços desiguais, mas combinados,
oriundos de elementos estrangeiros e modernos predominantes no capital industrial
russo no início do século XX. Sua análise fazia referência à fraqueza da burguesia
russa preexistente que se contrapunha ao elevado peso social e político do
proletariado russo, concentrado em grandes unidades industriais modernas. Quanto
às condições socioculturais Trotsky via sobre o território russo diferentes “estágios da
civilização”, articulando, unindo e combinando, por exemplo, a indústria mais
concentrada da Europa sobre a base da agricultura mais primitiva; isto é: “o processo
de desenvolvimento capitalista, criado pela união das condições locais (atrasadas)
com as condições gerais (avançadas).” (LÖWY, 1998, p. 75). Pois, a necessidade
dessas relações estarem combinadas é própria ao processo de desenvolvimento
capitalista. À reprodução desta lógica cabe à ocupação de novos espaços,
continuamente e infinitamente.
Todavia, tal à singularidade do processo de desenvolvimento na Rússia está o
capital financeiro europeu, cujo caminho percorrido nesse território novo ao capital
não obedeceu a etapas intermediárias – etapas as quais possibilitaram crescimento
“normal” e “orgânico” no oeste europeu – mas deu-se aos “saltos”, ultrapassando
formas como o pequeno ofício e a manufatura, indo manifestar-se diretamente na
grande indústria: símbolo mais avançado e moderno do capital na segunda metade
do século XIX. A peculiar configuração implantada no desenvolvimento do capitalismo
periférico russo revelou um paradoxo, pelo qual se manifestavam ali aspectos mais
avançados do que nas metrópoles capitalistas tradicionais, seja na porcentagem de
operários trabalhando na grande indústria, seja na concentração de grandes fábricas
(aquelas que empregavam mais de mil operários) (LÖWY, 1998).
Em 1930, com a publicação de História da Revolução Russa, Trotsky apresenta
de forma mais completa a lei do desenvolvimento desigual e combinado. A hipótese
para a lei baseia-se na lógica sempre original pela qual se combinam traços atrasados
e avançados de desenvolvimento na formação de nações periféricas. “As sociedades
menos desenvolvidas [com traços atrasados] têm a possibilidade, ou, mais
exatamente, são obrigadas a adotar certos traços avançados saltando as etapas
intermediárias.” (LÖWY, 1998, p. 77). Ou seja, a originalidade do processo de
desenvolvimento capitalista advém, pois, do fato da combinação das diversidades

24
contidas nas etapas de desenvolvimento capitalista obedecer invariavelmente uma
lógica complexa e irregular (TROTSKY, 1980).
Na passagem específica sobre a terminologia, na História da Revolução Russa
(TROTSKY, 1980, p. 25, grifo do autor), se lê:

A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico,


evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países
atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-
se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade
dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada,
chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa
aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas.

O fôlego no estudo do desenvolvimento desigual e combinado das formações


sociais capitalistas que se perdeu após Trotsky ganha ímpeto na intenção de se
formular uma teoria do desenvolvimento geográfico desigual, como já foi dito, mais
recentemente; atribui-se esses exames a geógrafos do lado da crítica marxista,
sobretudo, a partir da década de 1980, como Neil Smith (1988) e David Harvey (1982,
2004, 2006) – embora o tema tenha sido tratado também por outros estudiosos –
colocando a dimensão espacial no centro do debate sobre o desenvolvimento do
modo de produção capitalista (THEIS, 2009; THEIS; BUTZKE, 2012).
Até mesmo para a geografia (tradicional e teorético-quantitativa) a categoria de
espaço havia sido negligenciada – Milton Santos (1986) bem definiu a geografia desse
período como a “viúva do espaço”. Apenas com o surgimento da denominada
geografia crítica da década de 1970 houve uma preocupação explícita em identificar
as categorias de análise do espaço. É no âmbito da mudança de paradigma dos
estudos na geografia que se poderia classificar David Harvey, tendo se debruçado
sobre o espaço na obra de Karl Marx (CORRÊA, 1995). O espaço aparece como o
lugar em que se encontram as diversas contradições sociais, tanto nos países
periféricos como nos do centro do capitalismo. Caberia à manutenção do sistema
capitalista o controle da reprodução social em diferentes níveis espaciais. Aparece,
portanto, como um conceito chave para a compreensão do sistema capitalista: a
acumulação de capital, um processo econômico e político, sempre foi uma questão
geográfica (SMITH, 1988).

[...] as últimas duas décadas testemunharam uma emergente reestruturação


do espaço geográfico mais dramática que qualquer outra já ocorrida. A
desindustrialização e o declínio regional, a gentrificação e o crescimento
extrametropolitano, a industrialização do Terceiro Mundo e uma nova divisão

25
internacional do trabalho, a intensificação do nacionalismo e uma nova
geopolítica da guerra são coisas em desenvolvimento integrado, sintomas de
uma transformação mais profunda na Geografia do Capitalismo (SMITH,
1988, p. 14).

A diferença fundamental entre a lei do desenvolvimento desigual e combinado


e a teoria do desenvolvimento geográfico desigual está na ênfase da primeira em
explicar porque diferentes e irregulares padrões de desenvolvimento em formações
sociais periféricas/ atrasadas podem, combinando-se, vivenciar uma revolução
política. Já a segunda constitui uma tentativa teórico-metodológica de conceber a
natureza geográfica da desigualdade socioeconômica entre regiões e países
produzida pelo capitalismo. “A co-existência, simultânea e dinâmica, de espaços mais
desenvolvidos e menos desenvolvidos é o resultado do desenvolvimento geográfico
desigual”, embora, seja, também, condição para o processo de continuada valorização
do capital (THEIS, 2009, p. 249).
Na teoria do desenvolvimento geográfico desigual, dois elementos são centrais
(HARVEY, 2004): a produção das escalas espaciais e a produção da diferença
geográfica. A produção das escalas espaciais diz respeito à produção de uma
hierarquia de escalas espaciais que organiza as atividades humanas.

[...] não se pode entender o que acontece numa dada escala fora das relações
de acomodamento que atravessam a hierarquia de escalas –
comportamentos pessoais (por exemplo, dirigir automóveis) produzem
(quando agregados) efeitos locais e regionais que culminam em problemas
continentais, de, por exemplo, depósitos de gases tóxicos ou aquecimento
global (HARVEY, 2004, p. 108).

A produção da diferença geográfica é resultante, por um lado, da conformação


de um mosaico geográfico ambiental ao redor do mundo e, por outro, pela forma como
essas diferenças geográficas são modificadas pelos processos político-econômicos e
socioecológicos que ocorrem atualmente. Smith (1988) explica que, a acumulação do
capital vai gerar o desenvolvimento geográfico e a taxa de lucro é o que dá direção ao
desenvolvimento. Em consonância com esse movimento, as áreas com altas taxas de
lucro vão se desenvolver e as áreas que apresentam baixas taxas de lucro vão
apresentar baixos índices de desenvolvimento. Marx, numa perspectiva mais
geográfica, observou que “o capital cresce enormemente num lugar, numa única mão,
porque foi, em outros lugares, retirado de muitas mãos” (SMITH, 1988, p. 212).
É importante, compreender o modo pelo qual as diferenças geográficas estão
sendo produzidas. Admitindo que o processo de globalização interferisse também no

26
processo político, essas interferências poderiam se manifestar, por exemplo, no
planejamento do Estado.

7 O PLANEJAMENTO NO BRASIL E A POLÍTICA NACIONAL DE


DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Fonte: furb.br

Os primeiros movimentos de planejar o desenvolvimento no Brasil surgem na


década de 1930. Aí, as tendências convergem à alteração das condições
socioeconômicas de tipo oligárquicas rumo a um Estado propriamente burguês. Isto
fica mais explícito nas práticas de governo com o Plano SALTE (Saúde, Alimentação,
Transporte e Energia) e o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek nas décadas de
1940 e 1950, cujos objetivos miravam a industrialização acelerada do país. A
contribuição de Celso Furtado e da Comissão Mista de técnicos da CEPAL foi
fundamental para difundir no Brasil a Técnica de Planificação que se vinha
trabalhando em diferentes países latino-americanos (FURTADO, 1985).
Embora, um primeiro momento, fora marcado pela euforia da economia
nacional – resultado das altas taxas de crescimento do PIB – as respostas a esses
esforços de planejamento não atenderam totalmente às expectativas uma vez que tais
economias passam a apresentar constante crescimento dos índices inflacionários e
esgotamento do modelo de substituição de importações. Doravante, o planejamento
no Brasil converte-se em planos de controle inflacionário; com o golpe de abril de

27
1964, a participação do Estado intensifica-se e as práticas de planejamento ficam
sujeitas aos desígnios do regime militar até 1985.
Em síntese: o planejamento governamental brasileiro, com seus altos e baixos,
sobretudo, até os anos 1980, assimilou características de um planejamento
substantivo, com a preocupação de promover a acumulação de capital. Com óbvias
inclinações autoritárias, houve momentos de planejamento estratégico; mas, praticou-
se, na maior parte do período aqui considerado, um típico planejamento tradicional
top-down.
O que importa para fins de cumprir os objetivos refere-se ao fato do
planejamento ter se tornado uma peça autoritária e associada às práticas dos regimes
autocráticos no período posterior ao regime militar – é parte da crise do planejamento
latino-americano da década de 1980. Dentre outros prejuízos, subtraiu-se da lógica
do Estado o papel estratégico do planejamento regional na agenda das prioridades do
país, isto é, resultou na descontinuidade do processo de planejamento regional no
Brasil. Por sua vez, a ausência de políticas, sobretudo, regionais de desenvolvimento
ampliou as desigualdades regionais brasileiras, agravando as desigualdades inter e
inter-regionais (FERREIRA, 2007).

7.1 Retomada do planejamento regional brasileiro

A Política Nacional de Desenvolvimento Regional [PNDR] foi instituída pelo


Decreto Nº 6.047 de 22 de fevereiro de 2007 (BRASIL, 2007). No entanto, sua origem
está nas discussões ocorridas a partir de 2003 no âmbito da Secretaria de Políticas
de Desenvolvimento Regional e da Secretaria de Programas Regionais do Ministério
da Integração Nacional [MI] como proposta a uma de suas estratégias políticas. A
atuação do MI através da PNDR representa uma retomada explícita do Governo
Federal às políticas regionais de planejamento.
A PNDR tem como objetivo reduzir as desigualdades de nível de vida entre as
regiões brasileiras e a promoção da equidade no acesso a oportunidades de
desenvolvimento, orientando os programas e ações federais. Dentre as estratégias,
destaca-se o apoio e estímulo a processos e oportunidades de desenvolvimento
regional em múltiplas escalas, convergindo aos propósitos de inclusão social,
produtividade, sustentabilidade ambiental e competitividade econômica (conforme Art.
1º e 2º do Decreto Nº 6.047/2007).

28
Como se vê, bem como prevê sua legislação, a pauta da PNDR é movida tanto
por um enfoque territorial como pela articulação intersetorial. A execução da política
ocorre mediante a promoção e implementação de planos, programas e ações de
desenvolvimento regional, e instrumentos financeiros, os quais devem ter suas
expressões financeiras vinculadas ao Plano Plurianual (PPA) e priorizadas na Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Além da PNDR, une-se às estratégias de políticas de Governo no âmbito do
MI, a criação das chamadas novas Superintendências Regionais de Desenvolvimento,
a reorientação dos Fundos Constitucionais de Financiamento (do Norte – FNO, do
Nordeste – FNE, e do Centro-Oeste – FCO), e dos Fundos de Desenvolvimento
Regional (da Amazônia – FDA, do Nordeste – FDNE, e do Centro-Oeste – FDCO).
A respeito das Superintendências Regionais de Desenvolvimento cabe lembrar
rapidamente do histórico de criação, extinção e do presente movimento de recriação
destas autarquias federais. Tanto a Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia [SUDAM] quanto a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
[SUDENE], criadas, respectivamente, em 1953 (Lei Nº 1.806) e 1959 (Lei Nº 3.692),
foram extintas em 2001 e substituídas pelas Agências de Desenvolvimento da
Amazônia [ADA] e do Nordeste [ADENE]. A origem das Superintendências está no
fortalecimento de instituições que se dedicariam a planejar o desenvolvimento
exclusivamente daquelas regiões. Entretanto, a adoção de políticas neoliberais a partir
da década de 1980 restringiu a intervenção do Estado da economia, diminuindo o
espaço às autarquias federais.
Após os debates que ocorreram em 2007, em diferentes instâncias, ambas as
Superintendências são recriadas. Com a nova SUDAM, extingue-se a ADA, define-se
o Fundo Constitucional do Norte [FNO] e o Fundo de Desenvolvimento Regional da
Amazônia [FDA] como instrumentos de ação da SUDAM. Da mesma forma, com a
nova SUDENE, extingue-se a ADENE, e define-se o Fundo Constitucional do
Nordeste [FNE] e o Fundo de Desenvolvimento Regional do Nordeste [FDNE]
instrumentos de ação da SUDENE
Já a nova Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste [SUDECO]
é um pouco mais recente, sendo regulamentada apenas em 2011, no governo Dilma
Rousseff. Criada em 1967, também foi extinta na década de 1990. A proposta de
recriação da autarquia veio em 2004, ratificada apenas em 2009, junto com o Fundo

29
de Desenvolvimento do Centro Oeste [FDCO]. O Fundo Constitucional do Centro-
Oeste e o FDCO tornam-se os instrumentos de financiamento e ação da SUDECO.

7.2 Tipologia da Política Nacional de Desenvolvimento Regional

A PNDR adotou uma tipologia própria para delimitar os espaços sub-regionais


que seriam prioritários às ações do Governo Federal. Considerou-se uma variável
estática, rendimento domiciliar médio; e outra dinâmica, variação do Produto Interno
Bruto per capita. A primeira mensura e caracteriza o poder de compra, ou a riqueza,
dos habitantes de um determinado território. A variação temporal do PIB per capita
mostra a evolução da produção em diferentes espaços geográficos. O cruzamento
dessas duas variáveis levou a uma tipologia regional definida em quatro conjuntos
territoriais distintos. Os dados foram agregados por microrregiões originando as
chamadas “sub-regiões”, organizadas por:
 alta renda;
 renda baixa/média e dinâmica;
 renda média e pouco dinâmica; e
 renda baixa e pouco dinâmica.
Dentre os quatro grupos de microrregiões geográficas classificadas por meio
dessa tipologia apenas um deles não tende a ser alvo prioritário da PNDR: aqueles
de Alta Renda, nos quais independe o dinamismo de crescimento do PIB, mas
caracterizam as microrregiões geográficas com maior rendimento domiciliar médio.
Segundo diagnóstico da PNDR, estas sub-regiões terão apoio do Ministério da
Integração Nacional em suas propostas de desenvolvimento, mas devem efetuá-las
sem apoio financeiro direto da Política, uma vez que dispõem de recursos suficientes
para reverter o quadro de concentração de pobreza (BRASIL, 2008a).
Desta forma, são três os conjuntos preferenciais de atuação da PNDR nas sub-
regiões:
 microrregiões dinâmicas, as quais possuem alta variação do PIB, mas
com renda domiciliar média classificada como média e baixa;
 microrregiões estagnadas, aquelas com variação do PIB vistas como
média e baixa, e com renda domiciliar por habitante média; e

30
 microrregiões de baixa renda, que também possuem variação do PIB
classificada como média e baixa, mas apresentam renda domiciliar por
habitante baixa.
Mirando-se apenas uma das variáveis, são preferenciais todas as sub-regiões
que apresentam nível da renda domiciliar por habitante médio e baixa.
Por outro lado, a proposta da PNDR entende que cada conjunto de
microrregiões geográficas da tipologia contêm particularidades às estratégias de
desenvolvimento dos programas sub-regionais. Aquelas de baixa renda, por exemplo,
possuem indicadores que resultam em espaços com maiores desequilíbrios inter e
intrarregionais.
O conjunto de ações propostas pela PNDR converge a um quadro de diretrizes
mais amplas com objetivo de reduzir as desigualdades regionais. Do diagnóstico da
realidade regional brasileira emerge a necessidade de uma atuação em múltiplas
escalas geográficas, articulando, processos de desenvolvimento regional a partir da
escala nacional, estratégias macrorregionais, com os espaços sub-regionais em
escalas inferiores.
A instância nacional refere-se a uma escala mais ampla, definindo critérios
gerais de atuação no território, identificando as sub-regiões prioritárias da PNDR (as
quais serão vistas a seguir), bem como o espaço de demais políticas do Governo
Federal que compartilhem objetivos de redução das desigualdades regionais. Aqui,
dois instrumentos são fundamentais: a Câmara de Políticas de Integração Nacional e
Desenvolvimento Regional (composta por Ministros de Estado e Secretário Especial)
e o Comitê de Articulação Federativa (composto Ministros de Estado e entidades
nacionais de representação de municípios), ambos instituídos em 2003.
Desta forma, a implementação da PNDR conta com programas nacionais nas
macrorregiões e sub-regiões brasileiras, além das de áreas especiais de
planejamento, com aporte financeiro do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional
e dos Fundos Constitucionais.
Na escala macrorregional, primeiramente, cabe lembrar o esforço do MI na
proposta de criação das novas Superintendências de desenvolvimento –
anteriormente citadas, SUDAM, SUDENE e SUDECO – as quais se beneficiam da
recente reorientação dos Fundos Constitucionais de Desenvolvimento e dos Fundos
de Desenvolvimento Regional, ambos com objetivos pertinentes àquelas
macrorregiões.
31
A elaboração de planos e ações de desenvolvimento à escala macrorregional
é especialmente relevante por meio dos Planos Estratégicos de Desenvolvimento
Regional: na macrorregião Norte, Plano Amazônia Sustentável [PAS]; no Centro-
Oeste, Plano de Desenvolvimento do Centro-Oeste [PCO]; e no Nordeste, Plano de
Desenvolvimento do Nordeste [PDNE].
No âmbito da escala sub-regional a implementação da PNDR ocorre nas sub-
regiões oriundas da Tipologia da PNDR, especificamente naquelas correspondentes
às regiões Dinâmicas, Estagnadas e de Baixa Renda. Aí se encontram ações
predominantemente operacionais.
Ademais, foram desenvolvidos programas de promoção do desenvolvimento
regional baseados em mesorregiões herdadas do PPA 2000-2003, do governo de
Fernando Henrique Cardoso: as Mesorregiões Diferenciadas. Aí, para o PPA 2004-
2007, primeiro, apoiou-se aquelas mesorregiões mais consolidadas e, posteriormente,
se rediscutiu aquelas mais incipientes ou que apresentassem delineamento
geográfico divergente com os critérios da PNDR.
Com relação às zonas especiais de planejamento, em escala intermediária, a
PNDR procurou fortalecer programas já propostos no PPA 2004-2007, tais como o
Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Semi-Árido [CONVIVER] e
o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira. No caso do CONVIVER,
similar às macrorregiões, elaborou-se o Plano Estratégico de Desenvolvimento
Sustentável do Semi-Árido [PDSA] (BRASIL, 2003a; 2008a).
Ademais, com intuito de fortalecer zonas específicas à problemática urbano-
regional, a PNDR teve como base de trabalho as Regiões Integradas de
Desenvolvimento [RIDE]. A RIDE do Polo de Juazeiro e Petrolina, criada em 2001,
compreende quatro municípios do Estado de Pernambuco e quatro do Estado da
Bahia. A RIDE da Grande Teresina-Timon, também criada em 2001, é composta 12
municípios do Estado do Piauí e um do Estado do Maranhão. Por fim, na RIDE do
Entorno do Distrito Federal estão 19 municípios do Estado de Goiás e três do Estado
de Minas Gerais.
Quanto à implementação, cabe observar ainda os programas nacionais de
promoção do desenvolvimento regional que atuam tanto na escala macrorregional
quanto nas sub-regiões, os chamados PROMESO [Programa de Sustentabilidade de
Espaços Sub-Regionais], PROMOVER [Programa de Promoção e Inserção
Econômica de Sub-Regiões] e PRODUZIR [Programa Organização Produtiva de

32
Comunidades Pobres]. O PROMESO procura valorizar as iniciativas oriundas das
forças sociais organizadas nas sub-regiões: “articula ações de capacitação,
mobilização de atores sociais, infraestrutura, crédito e assistência para o
desenvolvimento do potencial endógeno das mesorregiões diferenciadas.” (BRASIL,
2008a, p. 17). Já o PROMOVER apoia e identifica vocações econômicas locais
estruturando arranjos produtivos locais e cadeias produtivas que refletem as
potencialidades das bases produtivas sub-regionais. No PRODUZIR, resultado da
parceria do MI com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação, o objetivo é combater o desemprego e subemprego em comunidades de
baixa renda nos territórios priorizados pela PNDR (BRASIL, 2008a).

7.3 Financiamento da Política Nacional de Desenvolvimento Regional

O tema do financiamento da PNDR é debatido no âmbito do Senado Federal


desde 2003 por meio da criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. O
propósito é adequar os instrumentos de financiamento do Governo Federal às
múltiplas escalas de atuação da PNDR na redução das desigualdades regionais.
No inteiro teor da Proposta de Emenda à Constituição Nº 41 de 2003 (BRASIL,
2003b), cujo texto tratou da alteração do Sistema Tributário Nacional, propõe-se nova
redação ao artigo 159 da Constituição Federal, entregando, dos 49% do imposto sobre
renda (IRPJ) e produtos industrializados (IPI), 2% ao Fundo Nacional de
Desenvolvimento Regional, para aplicação em regiões menos desenvolvidas do país.
A PEC 41/2003 foi transformada na Emenda Constitucional Nº 42 de 2003 (BRASIL,
2003c). A alteração no artigo representaria receita anual estimada em R$2 bilhões
para o financiamento de Programas da PNDR, no entanto, sua promulgação não
privilegiou o FNDR.
O financiamento da PNDR também está em discussão por meio do Projeto de
Lei Nº 2.812 de 2003, cuja proposta trata das regras de financiamento nas regiões
Nordeste, Norte e Centro-Oeste por meio do BNDES. Atualmente o Projeto de Lei
aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Mais recentemente outra Proposta de Emenda à Constituição procura alterar o
Sistema Tributário Nacional: a PEC Nº 233 de 2008 (BRASIL, 2008b). Novamente,
pretende-se a criação do FNDR, agora, destinando 4,8% dos impostos citados, ao
FNDR, seguindo as diretrizes da PNDR para aplicação em áreas menos

33
desenvolvidas do país, assegurando no mínimo 95% desses recursos às regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A proposta encontra-se apensada à Proposta de
Emenda à Constituição Nº 31 de 2007 com tema afim; pronta para Pauta no Plenário,
mas ainda não votada.
Embora os debates sobre a criação de um Fundo Nacional de Desenvolvimento
Regional apontem para que este esteja no centro da estrutura financeira da Política
Nacional de Desenvolvimento Regional, outros instrumentos de gestão dos recursos
federais foram aperfeiçoados e ajustados à execução dos propósitos da PNDR. Na
escala macrorregional o financiamento da PNDR conta com fundos regionais: os
Fundos Constitucionais do Norte [FNO], do Nordeste [FNE] e do Centro-Oeste [FCO];
os Fundos de Desenvolvimento Regional da Amazônia [FDA], do Nordeste [FDNE] e
do Centro-Oeste [FDCO]; os Fundos de Investimentos Regionais da Amazônia
[FINAM], do Nordeste [FINOR] e de Recuperação Econômica do Estado do Espírito
Santo [FUNRES]; além dos incentivos fiscais para o fomento do setor produtivo
(BRASIL, 2008a).
Os recursos federais também são complementados pelos estados federativos
e municípios, mas devido à desproporção das desigualdades regionais enfrentadas é
fundamental a PNDR dispor de recursos adequados ao cumprimento dos objetivos
propostos. Daí a efetividade da Política Nacional de Desenvolvimento Regional
depender da criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional.

8 DISCURSOS CONTEMPORÂNEOS

As transformações que as áreas urbanas e os espaços regionais vêm sofrendo


com o processo contemporâneo conhecido como globalização, em que a compressão
temporal e espacial dos processos sociais e a articulação quase sincrônica de
fragmentos seletivos se impõe, integrando-os em escalas diversas, tem gerado uma
multiplicidade de discursos sobre as cidades e os espaços regionais a elas
articulados. Novamente, a grande maioria dos discursos tem surgido nos países
capitalistas centrais, com destaque para os Estados Unidos que constituem o
referencial maior para as transformações e manifestações atuais. Sua pertinência,
aplicação e/ou eventual adaptação aos problemas que o capitalismo contemporâneo
provoca no Brasil (e em outros países periféricos) dependerá também da forma como

34
forem compreendidos pelos vários agentes da produção do espaço, tratados e
elaborados nos discursos acadêmicos e eventualmente incorporados às políticas
públicas.
O discurso mais relevante, diz respeito ao processo de globalização que se
apoia no sistema de cidades mundiais e globais. John Friedmann talvez tenha sido o
primeiro autor a tratar especificamente da cidade mundial como uma hipótese,
dialogando com outros autores como Immanuel Wallerstein que, nos anos 70
construiu a hipótese de um sistema-mundo (Wallerstein, 1974), Andrew Gunder Frank,
Samir Amin, entre outros. De fato, François Perroux, em seu “Economia do Século
XX”, já propunha nos anos 60, que se pensasse a economia mundial a partir de
sistemas polarizados em sua teoria do espaço econômico (Perroux, 1961). Friedmann
identificou grandes concentrações urbanas que chamou ‘cidades mundiais’,
polarizadoras dos espaços econômicos, as multinacionais como atores privilegiados
organizadores da divisão internacional do trabalho dentro de uma hierarquia urbana
mundial que desloca a articulação do crescimento econômico e da acumulação
capitalista do nível nacional para o nível internacional. Entretanto, as cidades mundiais
de Friedmann, diferentemente da proposta teórica perrouxiana e as colocações hoje
feitas sobre a economia globalizada, tratam ainda de economia nacionais articuladas
e não de fragmentos sub e supranacionais globalmente articulados.
Assim, Saskia Sassen (1991) foi quem, nos anos noventa, melhor e mais
amplamente sistematizou o paradigma das cidades globais. Identificando Nova York,
Londres e Tokyo como as três grandes cidades que comandam os espaços
econômicos integrados em suas respectivas áreas de influência articulando
fragmentos de espaços nacionais e regionais através das redes também globalizadas
de cidades, descolando-as assim das economias nacionais ou de um caráter
internacional. Definiu as cidades globais como centros de comando dessa economia
globalizada (e fragmentada), que constituem também os principais centros de
inovação na produção e consumo de novos produtos, articulando-se entre si em um
processo mais cooperativo do que competitivo.
Segundo Soja (2000), trata-se de fato da ‘globalização do espaço da cidade’
sob o signo da ‘Cosmopolis’, tornado possível pela sincronicidade dos processos
espaciais de nossos dias. Neste sentido, Castells (1989), ao descrever os processos
contidos na ‘cidade informacional’ onde o espaço de fluxos se impõe sobre o espaço
de lugares e estabelece novos nexos, gera novos atores, novos poderes, e produz

35
novas lógicas de organização social e econômica articulando os fragmentos dos
espaços globalizados. A dinâmica da acumulação capitalista se modifica nessa cidade
globalmente pensada ou organizada segundo os interesses distantes, em suas
manifestações locais.
No Brasil, diversas tentativas de discussão das implicações entre o global e o
local têm sido discutidas. Entre essas, uma resenha bibliográfica apresenta diversos
enfoques sobre esse conceito e as implicações da cidade global para o entendimento
da questão local (Compans, 1999) e outro estudo discute os possíveis
desdobramentos, implicações e alternativas para São Paulo como cidade mundial
(Marques & Torres, 2000). Entretanto, muito há que se caminhar no sentido de
entender o papel de São Paulo, e mesmo Rio de Janeiro nessa articulação mundial
e/ou global.
Entretanto, os impactos da nova ordem mundial no espaço urbano e regional
são também retratados, e em alguns aspectos com maior clareza, nos estudos que
buscam entender a reorganização do espaço a partir da reestruturação da metrópole
industrial pós fordista que, segundo Soja (2000), espelha a ‘reestruturação da
economia geopolítica do urbanismo’. Trata-se de entender, a partir deste objeto
ambíguo e difuso que é a pós metrópole, um espaço urbano-regional que guarda a
especificidade de uma urbanidade metropolitana, mas que muito já se distanciou da
ideia ou conceito de cidade. Acredito que o conceito de ‘área urbana’ reflete melhor o
processo extensivo de urbanização relativamente concentrada contido na ideia de
pós-metrópole.
A metrópole industrial pós-fordista se apoia, antes de tudo, na premissa de que
a manufatura ainda importa e, portanto, a indústria ainda comanda o intenso processo
de (re)organização do espaço (ou da economia geopolítica do espaço urbano). Não
se trata, portanto, de metrópoles terciárias, como em parte sugere o discurso anterior,
da cidade global, centro terciário de comando e gestão de partes do espaço
econômico mundial. A metrópole pró-fordista é também a ‘metrópole flexível’, com
múltiplas interdependências locais imóveis articulados a forças reestruturadoras locais
e distantes. Trata-se também de incluir discursos que implicam relações cidade-região
e, nesse aspecto, autores como Michael Storper (Storper, 1997; Storper & Scott, 1992)
e Allen Scott (Scott, 1988, 1993), da chamada ‘escola californiana’ também de Edward
Soja (Scott & Soja, 1996), insistem em entender a organização geo-econômica (e geo-
política) do espaço a partir dessas relações ampliadas entre centralidade urbana e

36
articulação regional. Jane Jacobs (1985) é outra autora que discute a economia
urbana a partir das articulações urbano-regionais, afirmando que a metrópole
contemporânea só pode se desenvolver aprofundando as relações de
complementaridade e a divisão do trabalho com seu entorno.
O resultado desse processo extensivo da urbanização sobre seu entorno
remete a outro discurso consentâneo, que privilegia a estruturação espacial e Soja
chama Exopolis. Trata-se da explosão da metrópole sobre seu entorno, muito à
semelhança do processo duplo de explosão/implosão descrito por Lefebvre (1999b)
em sua ‘revolução urbana’: a cidade, invadida pela indústria, implode sobre sua
centralidade e explode na forma de tecido urbano sobre seu entorno. A fragmentação
da metrópole – e por extensão, da cidade – e a emergência de subúrbios autônomos
– as edge cities descritas por Garreau (1991), ou o urbanismo pós-moderno descrito
por Ellin (1996), podem ser trazidos para este contexto, entre outras abordagens
semelhantes. Multipolarização, hibridismo sócio espacial, reificação de diferenças,
construção de heterotopias e múltiplas e por vezes surpreendentes articulações
cidade-campo e cidade-região marcam este discurso e modo de pensar o espaço
(pós)metropolitano contemporâneo.
Neste sentido, essa urbanização reestruturada pela (pós)metrópole é também
a ‘metrópole fractal’, onde o mosaico se reestrutura, flexibiliza e se transforma em
caleidoscópio, com fragmentos multi-articulados, em escalas diversas e intensidades
variadas. A cada mudança conjuntural expressiva, com tendência a se mostrar
estrutural, na taxa de juros, na conjuntura política nacional ou local, no comércio
exterior ou no preço da energia, as peças saem do lugar, se reorganizam e novo
desenho aparece no espaço urbano-regional. Assim também, como sugerido em
outros modelos e discursos que privilegiam a aspectos da segregação sócio-espacial
e fragmentação da área urbana em polaridades diversas, por vezes opostas e em
conflito real ou virtual, o espaço social resultante é também central e periférico, cada
vez mais complexo em suas múltiplas centralidades e interdependências próximas e
distantes.
A exópolis e/ou a metrópole fractal se delineia entre nós a cada dia com maior
clareza e força, na medida em que a reestruturação do espaço econômico e social se
aprofunda. Não são apenas as metrópoles que assim se comportam, mas o espaço
resultante da urbanização extensiva mostra também essas articulações múltiplas, na
periferia das regiões mais ricas e antigas do sudeste brasileiro ou na fronteira de

37
recursos onde cidades nascem e crescem com rapidez já em estreita
interdependência, articulação e especialização complementar a outras cidades
médias e pequenas na sua área de interação imediata, próxima ou mesmo remota. A
existência de um serviço urbano e/ou social em outra cidade na micro-região pode
significar uma opção por investir em outro tipo de serviço de seja complementar,
aprofundando as articulações inter-municipais sob a forma de consórcios,
associações e outros instrumentos de gestão.
Mas metrópoles, a periferização da pobreza nas décadas anteriores dá lugar a
uma periferização crescente das populações ricas e médias, fechando-se em
condomínios, buscando simulacros do campo e mesmo da cidade, em unidades semi-
autônomas, que recriam em negativo o ‘arquipélago carcerário’ de outro discurso
contemporâneo (Davis, 1990, 1998). A ‘sociedade (hiper)repressiva’ descrita por
Lefebvre (Lefebvre, 1991b) ao final dos anos 60, tendo como horizonte a ‘sociedade
terrorista’, ganha forma acabada na pós-metrópole do início do novo século.
Entre nós, ricos e pobres fecham seus espaços de vida, aumentam sua
segregação sócio-espacial e aprofundam as lutas de classes travestidas de vários
matizes na cidade, no campo, nas florestas, nos espaços de fluxos das drogas, das
armas, do dinheiro lavado. A cidade do espetáculo, a cidade-empresa neo-liberal, a
cidade que busca se inserir no circuito do capital financeiro, do capital do
entretenimento, do turismo, dos grandes espetáculos esportivos, das grandes
exposições e dos parques temáticos, da construção de novos imaginários da cidade
e da vida futura, se perde também em células fechadas onde as heterotopias são
impossíveis e apenas a vida entre iguais é segura. A cidade do simulacro, das
simulações, das articulações distantes no espaço e no tempo é cada dia mais virtual,
não apenas no sentido da representação do espaço social nas imagens
‘fotoshopadas’ das telinhas da televisão e/ou do computador, mas virtual no sentido
lefebvriano, isto é, do futuro que já está contido no presente, que o informa e que lhe
dá a forma atual. A modificação desse virtual, tanto no sentido do resgate da utopia
quanto no processo das lutas políticas que herdamos da repolitização do espaço
urbano e da vida quotidiana, implica o avanço nas reivindicações do direito à cidade
e à cidadania, extensiva no país, e eventualmente, no espaço globalizado. A
compreensão do processo de produção do espaço urbano no qual virtualmente todos
vivemos é um dos primeiros passos mais importantes para a emancipação do homem-
cidadão contemporâneo.

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