Jacques Lacan - o Inconsciente, Do Sentido Do Significante

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 119

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ÉVERTON FERNANDES CORDEIRO

JACQUES LACAN: O INCONSCIENTE, DO SENTIDO DO SIGNIFICANTE


AO GOZO DA LETRA – UM ESTUDO TEÓRICO

Belo Horizonte
2015
ÉVERTON FERNANDES CORDEIRO

JACQUES LACAN: O INCONSCIENTE, DO SENTIDO DO SIGNIFICANTE


AO GOZO DA LETRA – UM ESTUDO TEÓRICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Psicologia.

Área de concentração: Estudos Psicanalíticos

Linha de pesquisa: Conceitos Fundamentais em


Psicanálise e Investigações no Campo Clínico e
Cultura

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Márcia Maria Rosa


Vieira Luchina

Belo Horizonte
2015
Ficha catalográfica

150 Cordeiro, Éverton Fernandes


C794j Jacques Lacan [manuscrito] : o inconsciente, do sentido
2015 do significante ao gozo da letra – um estudo teórico /
Éverton Fernandes Cordeiro. - 2015.
119 f. : il.
Orientadora: Márcia Maria Rosa Vieira Luchina.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de


Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Inclui bibliografia.

1. Psicologia – Teses. 2. Inconsciente - Teses. 3.


Lacan, Jacques, 1901-1981. I. Vieira, Márcia Maria Rosa.
II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
A meus queridos avós,
Pedro Cordeiro Lúcio e Jandira Ferreira Cordeiro,
com apreço e terna gratidão.
AGRADECIMENTOS

A Deus;
A meus pais e minha irmã, pelo apoio; A meus primos, Ivanilda e Júlio, pelo apoio e
acolhida nos momentos difíceis em Belo Horizonte.
À Profa. Dra. Márcia Rosa Rosa Vieira Luchina, que generosamente aceitou orientar
esta dissertação, fazendo-o com rigor e precisão;
Aos professores, Dra. Ana Cristina Figueiredo (IPUB/UFRJ), Dr. Paulo Vidal (UFF) e
Dra. Nádia Laguárdia (UFMG), pelas ricas contribuições em minha qualificação;
Aos professores, Dr. Antônio Teixeira (UFMG) – pelo chamado à verticalidade – e Dr.
Pedro Castilho (UEMG), por terem, ambos, aceitado com generosidade, participar de minha
defesa e pelas preciosas contribuições que nela fizeram e cujas ressonâncias perdurarão;
À Profa. Dra. Laura Lustosa Rubião, pelo saber compartilhado generosamente em uma
disciplina do mestrado e depois dela, aprendizado crucial para a construção dessa dissertação.
À Profa. Msc. Inês Seabra Rocha, pela amizade, apoio nos momentos difíceis e
interlocução teórica, com sugestões de leituras importantes para a escrita desse trabalho; e
pela crença na possibilidade de que um dia, eu também pudesse “subir Bahia e descer
Floresta”;
Aos colegas do mestrado, especialmente, Andréa Eulálio de Paula Ferreira, Juliana
Tassara Berni, Patrícia de Cássia Carvalho, Alberto Mesaque Martins, Gregório Miranda,
pelas alegrias e descontrações, pelos encontros, em que compartilhamos expectativas, projetos
e boas risadas;
Aos colegas de trabalho, especialmente, Maria Flávia Carvalho, Paulo Roberto Lima,
Vanessa Las Casas, Cláudia Stengel, Ramon Panadés, Charles Jackson Monteiro, Flávia
Fernandes, pela oportunidade de aprendizado e compartilhamento dos desafios e das surpresas
da clínica da psicose na urgência do Centro de Referência em Saúde Mental da Pampulha.
A meus professores e amigos, Virgínia Sanábio e Amâncio Borges, pelo aprendizado
na graduação em Psicologia e nos encontros do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise
(CEPP) de Ipatinga/MG, onde tudo começou.
Aos amigos de ontem e de hoje, Jane de Paula Martins, Elen Carla Martins Scarano,
Prof. Dr. Vagno Emygdio Machado Dias, Marcela Fernanda, Prof. Msc. Sérgio Luiz Santos,
Sergio Contreras, Samuel Damásio.
“riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos
por um commodius vicus de recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias.
Sir Tristão, violista d’amores, através o mar breve, não tinha ainda revoltado de
Norte Armórica a este lado do áspero istmo da Europa Menor para loucomover sua
guerra penisolada: nem tinham os calhões do altom sawyerrador pelo rio Oconee
sexagerado aos gorgetos de Laurens County enquanto eles iam dublando os
bebêbados todo o tempo: nem avoz de umachama bramugira mishe mishe a um
tautauf tuèspatruísquio: nem ainda, embora logo mais veniesse, tinha um novelho
exaurido um velho e alquebrando isaac: nem ainda, embora tudo seja feério em
Vanessidade, tinham as sesters sósias se enrutecido com o uníduo nathandjoe. Nem
um galão de papamalte haviam Jhem ou Shen recevado à arcaluz e auroras antes o
barcoíris fora visto circularco sobre a aquaface.
A queda
(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarr-
hounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) de um ex venerável negaciante é recontada
cedo na cama e logo na fama por todos os recantores da cristã idade. A grande queda
do ovalto do muro acarretou em tão pouco lapso o pftjschute de Finnegan, outrora
sólido ovarão, que a humptyhaltesta dele prumptamente manda uma testemunha para
oeste à cata de suas tumptytumtunhas: e o retrospicopontoepouso delas repausa em
pés no parque onde oranjos mofam sobre o verde desde o primoamor ao diablin levou
lívia.”

(James Joyce, Panaroma do Finnegans Wake)


RESUMO

Cordeiro, É. F. (2015). Jacques Lacan: o inconsciente, do sentido do significante ao gozo da


letra – um estudo teórico. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em
Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Esta dissertação pretende explorar o conceito de inconsciente, a partir das elaborações trazidas
por Jacques Lacan, localizando alguns dos giros teóricos, por meio dos quais o psicanalista
francês vai do sentido do significante ao gozo da letra. Nesse percurso, buscou-se investigar
como o referido conceito se coloca a partir das diferenciações operadas por Lacan entre a letra
e o significante. Nos anos 1950, sob o aforismo do inconsciente estruturado como linguagem,
encontramos uma noção de inconsciente condicionada pela cadeia significante. Sob outra
perspectiva, em O Seminário, livro 11, ele será descrito como hiância. Assim, a noção de
inconsciente transindividual ou intersubjetivo, posteriormente retificada em favor da
promoção do inconsciente como discurso advindo do campo do Outro, em uma perspectiva
distanciada da pulsão, dá lugar a um inconsciente pulsátil, pulsional, referindo-se a uma
aliança entre o simbólico e a pulsão, entre o inconsciente estruturado como linguagem e o
gozo. O inconsciente é descrito como homólogo a uma zona erógena, a uma borda que se abre
e se fecha, marcada pela hiância de uma pulsação temporal. Em O Seminário, livro 17, temos
o inconsciente como um saber articulado e não sabido pelo sujeito, mas que o desconcerta
quando encontrado. Após esse primeiro achado, Freud descobre que existe algo além do
princípio do prazer, cujo dado essencial, ele o constata na compulsão à repetição. Nela, não se
trata de um recomeço, mas, de um traço, na medida em que comemora uma irrupção do gozo,
diz Lacan. Nos anos 1970, ao melhor distinguir o campo da letra do campo do significante,
não somente do ponto de vista de sua literalidade e como estrutura localizada do significante,
mas também, como elemento que vincula algo da ordem do gozo, Lacan nos propõe pensar o
inconsciente como letra. Assim, a partir da concepção dos Uns do enxame de significantes no
inconsciente (S1, S1, S1, S1) desarticulados entre si, estar-se-ia, então, sob a perspectiva de
um inconsciente letrificado, não estruturado pela cadeia de significantes, haja vista a
possibilidade de a letra trazer a dimensão da noção de lalíngua que evidencia o gozo
entrevisto no sem sentido dos significantes. Como desdobramento, apresentamos ao fim desse
estudo, uma discussão contemporânea que tem sido construída acerca de dois estatutos do
inconsciente: real e transferencial.

Palavras-chaves: Inconsciente, Significante, Letra, Simbólico, Gozo, Lalíngua, Real.


RÉSUMÉ

Cordeiro, É. F. (2014). Jacques Lacan: l'inconscient, la signification du signifiant à la


jouissance de la lettre - une étude théorique. Thèse, Programme d'études supérieures en
Psychologie, Université Fédérale de Minas Gerais, Belo Horizonte .

Cette étude vise à explorer le concept de l'inconscient à partir des élaborations apportées par
Jacques Lacan, en localisant quelques-uns des tours théoriques parmi lesquels le
psychanalyste français va, avec le concept de l'inconscient, de la signification du signifiant à
la jouissance de la lettre. Dans cette démarche, nous avons cherché à étudier comment le
concept de l'inconscient est posé travers les différenciations effectuées par Lacan entre la
lettre et le signifiant. Dans les années 1950, sous l'aphorisme sur l'inconscient structuré
comme un langage, nous trouvons une notion de l'inconscient conditionnée par la chaîne
signifiante. Dans une autre perspective, dans Le Séminaire, livre 11, l'inconscient ne sera pas
décrit de la façon antérieure, mais comme béance. Ainsi, la notion d'un inconscient
transindividuel ou intersubjectif, plus tard rectifiée pour la promotion de l'inconscient comme
discours provenant du domaine de l'Autre, dans une perspective distanciée de la pulsion, cède
la place à un inconscient pulsatif, pulsionnel, en faisant référence à une alliance entre le
symbolique et la pulsion, entre l'inconscient structuré comme un langage et la jouissance.
L'inconscient est décrit comme homologue à une zone érogène, un bord qui s'ouvre et se
ferme, marqué par l'hiance d'une pulsation temporelle. Dans Le Séminaire, livre 17, nous
avons l'inconscient comme un savoir articulé, non connu par le sujet, mais le déconcertant
lorsque le sujet le trouve. Après cette première constatation, Freud découvre qu'il y a quelque
chose au-delà du principe de plaisir, dont le fait essentiel, il le trouve dans la compulsion de
répétition. Ici, il ne s'agit pas d'un nouveau départ, mais d'un trait, dans la mesure où une
irruption de la jouissance est célébrée, dit Lacan. Dans les années 1970, afin de mieux
distinguer le domaine de la lettre de celui du signifiant, non seulement du point de vue de sa
littéralité et en tant que structure localisée du signifiant, mais aussi comme un élément qui
relie quelque chose de l'ordre de la jouissance, Lacan propose de penser l'inconscient comme
lettre. Ainsi, depuis la conception des Uns de l'essaim de signifiants dans l'inconscient (S1,
S1, S1, S1) désarticulés entre eux, il serait, alors, dans la perspective d'un inconscient comme
lettre, pas structuré par la chaîne de signifiants, étant donnée la possibilité de la lettre apporter
la dimension de la notion de lalangue montrant la jouissance entrevue dans la manque de sens
des signifiants. Dans le prolongement, nous présentons à la fin de cette étude une discussion
contemporaine qui a été construit sur deux status de l'inconscientes: réel et transferenciel.

Mots-clés: Inconscient, Signifiant, Lettre, Symbolique, Jouissance, Lalangue, Réel


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Esquema saussuriano representando a língua, como uma série de subdivisões


contíguas marcadas simultaneamente sobre os planos: das idéias confusas (A) e dos sons
indeterminados (B)....................................................................................................................32
Figura 2: O signo saussuriano unindo conceito e imagem acústica (lado esquerdo) ou
significado e significante (lado direito)....................................................................................33
Figura 3: Subversão do signo saussuriano no algoritmo proposto por Lacan: significante
sobre significado.......................................................................................................................41
Figura 4: Representação gráfica do ponto de estofo................................................................47
Figura 5: A incidência do significante no significado.............................................................49
Figura 6: Fórmula lacaniana da metáfora................................................................................50
Figura 7: Fórmula lacaniana da metonímia.............................................................................51
Figura 8: Discurso do Mestre...................................................................................................72
Figura 9: Matema da transferência extraído de Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o
psicanalista da Escola..............................................................................................................96
Figura 10: Os três anéis R, S, I, ligados pelo sinthoma (∑)...................................................102
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12

1 O INCONSCIENTE SIMBÓLICO EM SUA ESTRUTURA DE LINGUAGEM.........16


1.1 O inconsciente no retorno a Freud......................................................................................16
1.2 De como as histéricas ensinaram o caminho do inconsciente a Freud...............................18
1.3 Do imaginário ao simbólico: do estádio do Espelho ao Édipo...........................................20
1.4 Função da fala e campo da linguagem: a ordem simbólica................................................22
1.5 O inconsciente: discurso do Outro......................................................................................27
1.6 Estruturalismo e linguagem: algumas questões..................................................................29
1.7 O significante e a questão da letra no inconsciente............................................................36
1.8 O inconsciente estruturado como uma linguagem: a primariedade do significante............40
1.9 Metáfora e metonímia: as leis do inconsciente...................................................................47

2 INCONSCIENTE E PULSÃO: SABER E MEMORIAL DE GOZO.............................52


2.1 Da estrutura de linguagem à pulsação temporal do inconsciente: um passo a mais...........52
2.2 Inconsciente e pulsão: uma comunidade topológica...........................................................56
2.3 Do sentido ao não senso dos significantes e a questão da interpretação: a alienação e a
separação...................................................................................................................................59
2. 4 Inconsciente: saber e memorial de gozo............................................................................69

3 UM NOVO ESTATUTO DO INCONSCIENTE: A LETRA MAIS ALÉM DO


SENTIDO.................................................................................................................................78
3.1 Do sentido do significante ao gozo da letra........................................................................78
3.2 Uma metáfora geográfica: a fronteira e o litoral.................................................................83
3.3 Letra e significante: as “nuvens” em Lituraterra................................................................85
3.4 Uma constelação de insígnias: Lacan e o sujeito japonês...................................................90
3.5 O inconsciente, do sentido ao gozo: transferencial e real...................................................94
3.6 Joyce e suas epifanias.......................................................................................................100

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................108

REFERÊNCIAS....................................................................................................................113
INTRODUÇÃO

Esta dissertação pretende explorar o conceito de inconsciente, a partir das elaborações


trazidas pelo psicanalista Jacques Lacan. O título deste trabalho – Jacques Lacan: o
inconsciente, do sentido do significante ao gozo da letra – um estudo teórico – justifica-se na
medida em que se buscou localizar nos textos de Lacan, alguns giros teóricos operados por
ele, por meio dos quais, com o conceito de inconsciente, vai-se do sentido do significante –
anos 1950 – ao gozo da letra – anos 1970. Nesse percurso, o que se colocou como questão
problema foi saber como o conceito de inconsciente se coloca a partir das diferenciações
operadas por Lacan entre letra e significante, eixos norteadores dessa pesquisa.
Nos anos 1950, sob o aforismo do inconsciente estruturado como linguagem,
encontramos uma noção de inconsciente atrelada à cadeia significante (S1 – S2) e às leis da
metáfora e da metonímia, cujos efeitos incidem sobre o sentido do sintoma, do desejo e das
formações do inconsciente. Entretanto, nos derradeiros anos de seu ensino, ao melhor
distinguir o campo da letra daquele do significante, não somente do ponto de vista de sua
literalidade e como estrutura localizada do significante (Milner, 1996), mas também, como
elemento que vincula algo da ordem do gozo, Lacan propõe pensar o inconsciente como letra.
Assim, a partir da concepção dos Uns do enxame de significantes no inconsciente (S1, S1, S1,
S1) desarticulados entre si, estar-se-ia, então, sob a perspectiva de um inconsciente letrificado,
não atrelado ao simbólico, mas ao real, visto que, segundo Lacan (1971/2009), “a escrita, a
letra, está no real, e o significante, no simbólico” (p. 114).
Lacan assim o faz, tendo em vista que a experiência analítica pode ser colocada entre
dois campos: o campo do saber, articulado na cadeia significante, na interpretação dos
sintomas, mas também, o campo do gozo, alheio à interpretação (Mandil, 2003). Assim, na
experiência analítica, quando a interpretação não está aberta a todos os sentidos, “o sujeito
experimenta, nesse intervalo, uma Outra coisa a motivá-lo que não os efeitos de sentido”
(Lacan, 1960/1998k, p. 858). Em vista disso, o inconsciente é um saber, posto que esteja
articulado entre S1 e S2 – articulação da qual resulta o sujeito –, mas é também memorial de
gozo, na medida em que, na repetição, concebida freudianamente como a busca de uma
identidade perceptiva com a experiência de gozo, o sentido daquilo que se repete, é repetido
nos sulcos, nos trilhamentos criados pelos traços significantes da experiência de satisfação
perdida (Bernardes, 2003).
13

Para nos levar à elaboração do presente estudo de cunho teórico, alguns objetivos
foram traçados mais especificamente:
Primeiramente, foi necessário recorrer aos textos iniciais do ensino de Lacan, a partir
dos quais sistematizamos, no primeiro capítulo, que tem como título “O inconsciente
simbólico em sua estrutura de linguagem”, a concepção do inconsciente estruturado como
uma linguagem. Dentre os textos primordiais que marcam esse período capital da afetação de
Lacan no campo psicanalítico, destacam-se Função e campo da fala e da linguagem na
psicanálise (1953), e A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957),
textos construídos sob a égide do estruturalismo linguístico. Nesse sentido, não se pôde furtar
em trazer à discussão algumas dessas referências incidentes no discurso de Lacan. Dentre
elas, além do texto saussuriano de 1916 (Curso de Linguística Geral), a clássica introdução
trazida por Eduardo Prado Coelho (1967), em sua coletânea portuguesa de textos sobre o
estruturalismo – Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e
estruturalismos. Esta última foi de singular auxílio para entender como Lacan se serviu da
contribuição dessa corrente de pensamento em florescência nos meados do século XX, e o
modo pelo qual a subverteu, centralizando novamente a clínica psicanalítica sobre as pedras
angulares do inconsciente e da sexualidade (Lacan, 1953/1998c). Pedras que, ao serem
deixadas de lado pelos pós-freudianos, faziam ruir o edifício psicanalítico, sobre o qual se
assentava uma psicologia que passava ao largo das propostas freudianas iniciais. Disso
decorre o retorno a Freud, proposto por Lacan, fundado sob a primariedade do significante, e
a tese de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
No segundo capítulo, intitulado “Inconsciente e pulsão: saber e memorial de gozo”,
buscou-se seguir as construções de Lacan, contextualizadas em O Seminário, livro 11, de
1964, ano crucial na vida do mestre francês, uma vez que foi definitivamente desligado – leia-
se excomunhão – da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), fundada pelo próprio Freud
em Viena. Sendo assim, Lacan funda sua própria Escola, a Escola Freudiana de Paris, e
profere seus seminários, não apenas a um público formado de analistas e clínicos, mas,
também, de jovens estudantes universitários, filósofos, entre outros intelectuais. Em 1964, ele
profere um seminário, elencando e dissecando o que considera como os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. Buscou-se, então,
apresentar no referido capítulo, os avanços feitos por Lacan ao tratar o conceito de
inconsciente sob uma outra perspectiva. De uma forma inédita, como ressalta Roberto Harari
(1990), Lacan introduz um termo – a hiância – afirmando-o como inerente ao conceito de
inconsciente. Assim, a noção de inconsciente transindividual ou intersubjetivo,
14

posteriormente retificada em favor da promoção do inconsciente como discurso do Outro, em


uma perspectiva distanciada da pulsão, dá lugar a um inconsciente pulsátil, pulsional,
referindo-se a uma aliança entre o simbólico e a pulsão, entre o inconsciente estruturado como
linguagem e o gozo. O inconsciente é, então, descrito como homólogo a uma zona erógena, a
uma borda que se abre e se fecha, marcada pela hiância de uma pulsação temporal.
Referências importantes nesse capítulo foram, dentre outras, a coletânea organizada por
Richard Feldstein, Bruce Fink e Maire Jaanus (1997), dentre os quais, destacamos os textos
de Éric Laurent sobre a alienação e a separação e os de Colette Soler sobre o sujeito e sua
relação com o Outro, textos que se tratam originalmente de seminários proferidos na França,
no âmbito do Departamento de Psicanálise de Paris VIII, sobre os numerosos temas
desenvolvidos por Lacan, em O Seminário, livro 11.
Discutiu-se também, a partir das referências ao VI Colóquio de Bonneval, de 1960, a
polêmica entre os alunos Jean Laplanche e Serge Leclaire, e a questão da interpretação
analítica, que “não está aberta a todos os sentidos” (Lacan, 1964/2008c, p. 242), afirmação
essa, estreitamente relacionada à dimensão de não-senso do significante, também abordada no
referido seminário. De significativa relevância, também, foi a tese de doutorado de Angela
Bernardes Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise, tanto para o primeiro
capítulo, quando lá nos apontou referências relevantes para entender as noções de
transindividualidade e de intersubjetividade atribuídas ao inconsciente, quanto no segundo,
em que retomamos o discorrer da autora a respeito da expressão “memória de gozo”. Tal
expressão, que não foi diretamente formulada por Lacan, deixa-se entrever nas construções de
O Seminário, livro 17, através da memória como uma repetição da experiência de satisfação
perdida, em uma tentativa de tocar o gozo primevo perdido para sempre. Nesse sentido, é
interessante ressaltar que Lacan (1969-1970/1992) passa a se referir ao significante como
“aparelho de gozo” (p. 50) e não como uma estrutura de linguagem. De modo que o
significante, além de ser um saber que trabalha, também é concebido como aparelho de gozo,
produzindo entropia, um ponto de perda como único ponto regular por onde se tem acesso ao
que está em jogo no gozo.
Enfim, no terceiro e último capítulo, que se intitula “Um novo estatuto do
inconsciente: a letra mais além do sentido”, nosso objetivo foi retomar a discussão de Lacan
acerca da letra, nos anos 1970. Ponto de partida para tal foi o texto sobre Lituraterra, na lição
de O Seminário, livro 18. Nesse caso, de modo distinto do que foi tratado em A instância da
letra, Lacan situa a letra enquanto desarticulada de sentido, mas também abordada em sua
conexão com o campo pulsional, com o campo do gozo. Assim, o significante não possibilita
15

responder por tudo o que se passa em uma psicanálise. Ajudou-nos, nesse percurso da
pesquisa, o acesso a ricos trabalhos acadêmicos sobre o assunto. Dentre eles, Ram Mandil
(2003), em Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce, nos apresenta em sua tese, como a letra,
tomada a partir da leitura lacaniana de James Joyce, prepondera sobre o sentido dos
significantes. Os desenvolvimentos de Laura Rubião (2007), em sua tese sobre a leitura que
Lacan faz das comédias, nos permitiu desenvolver a evocação feita por ele das Nuvens de
Aristófanes, em Lituraterra, quando se refere aos significantes como nuvem de semblantes.
Márcia Rosa Vieira (2005), por sua vez, ao discutir em sua tese o sujeito constelar, a partir da
afirmação de Lacan sobre a vertente de identificação do sujeito japonês em um céu constelado
– e não apenas no traço unário – possibilita pensar um inconsciente em seu estatuto de letra,
um inconsciente letrificado, não estruturado pela cadeia de significantes. Isso se deu, tendo
em vista a possibilidade de a letra trazer a dimensão da noção de lalíngua que evidencia “o
fato de que o fenômeno essencial da lalíngua não é o sentido, mas o gozo: é a pulsão, e não a
significação, que move o ser falante” (Vieira, 2005, p. 163). Como desdobramento,
apresentamos, ao fim do capítulo, uma discussão contemporânea, proposta por Jacques-Alain
Miller, acerca de dois estatutos do inconsciente: real e transferencial (Miller, 2009).
16

1 O INCONSCIENTE SIMBÓLICO EM SUA ESTRUTURA DE LINGUAGEM

“O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado,


encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante
desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas
ele desempenha ali o papel fundamental. O que, com efeito,
caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal”
(Lacan, 1955-56/1985, p. 139).

1.1 O inconsciente no retorno a Freud

O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) dedicou o primeiro tempo de seu


ensino à releitura do inconsciente freudiano, em um movimento que ficou conhecido como “o
retorno a Freud”. Segundo Jacques-Alain Miller (1988), em Percurso de Lacan, Lacan data o
começo de seu ensino, propriamente a partir de 1953, de modo que ele considera como seus
antecedentes os textos e os inúmeros artigos sobre pontos importantes da psicanálise e da
psiquiatria, esta última, berço de sua formação. Sendo assim, seu ensino teria como ponto de
partida o relatório do Congresso de Roma de 1953, de sua conferência intitulada Função e
campo da fala e da linguagem em psicanálise – que doravante mencionaremos como Função
e campo. Através dela, Lacan introduz a proposição do inconsciente estruturado como uma
linguagem.
Miller (1988), então, periodiza o ensino de Lacan, demarcando os anos que vão 1953 a
1963 como o período no qual seu ensino de fez na forma de seminários, notadamente sobre os
textos freudianos. Assim, cada ano de seu seminário é dedicado a conceitos ou obras de
Freud. Nessa época, Lacan estabelece, como dimensão essencial da experiência analítica, a
categoria do simbólico, servindo-se dos elementos do Estruturalismo e da Linguística de
Ferdinand de Saussure (Miller, 2003). Essas duas disciplinas permitiram a Lacan a construção
de uma base metodológica que lhe possibilitou sistematizar as construções de fundamento
estruturalista na obra freudiana, através das quais ele pôde formalizar e tornar evidentes as
questões que antes eram “imaginarizadas” ou mal formuladas pelos psicanalistas pós-
freudianos.
Nesse sentido, Lacan propôs que se considerasse seriamente a proposta de Freud,
através de um ensino que fosse capaz de definir, como também distinguir o sujeito do
17

inconsciente, do sujeito da racionalidade cartesiana, “terra natal” do pensamento e da ciência


moderna (Miller, 2003). Se com Freud se operou um descentramento do sujeito da
consciência de si através da descoberta do inconsciente, Lacan renova em seu ensino essa
mesma ruptura, ao apresentar uma resposta crítica aos psicanalistas pós-freudianos pela
subestimação desses às funções da fala e ao campo da linguagem na experiência analítica, e
pela prevalência dada pelos mesmos à função do imaginário, à noção de relações libidinais de
objeto, e pela importância da contratransferência na relação analítica (Lacan, 1953/1998c).
Segundo Dunker (2006), Lacan se mostrou um crítico ferrenho do espírito de conformação e
de adaptação vigentes na psicanálise, e isso resultou em reformulações do tratamento, por
meio de sessões de tempo variável e de periodicidade não convencional, reformulações que
tiveram o intuito de desburocratizar a experiência psicanalítica e resgatar sua radicalidade.
Ao contrário da maioria de seus colegas psicanalistas praticantes, filiados à
Associação Internacional de Psicanálise (IPA), fundada por Freud em Viena, que deslocavam
para o reforço do ego e a análise das resistências os instrumentos de sua prática analítica,
Lacan reinsere a questão do inconsciente, afirmando-o como mola da experiência da
psicanálise, buscando legitimar sua concepção nos próprios conceitos freudianos (Dunker,
2006). Esse aprofundamento era necessário frente à tentação que se apresentava aos
psicanalistas pós-freudianos de abandonar o fundamento da fala, que já se fazia notar desde a
morte de Freud (Lacan, 1953a/1998).
Sabemos também que o contexto dos anos 1950 favorecia a ascendência da corrente
norte-americana da psicanálise, frente a uma Europa devastada pela recém-terminada II
Guerra Mundial (1939-1945). De modo que no Pós-Guerra, por acolher os analistas europeus
refugiados, a psicanálise norte-americana tem sua hegemonia em relação às outras escolas. No
entanto, suas adaptações, em uma assim denominada Psicologia do Ego, a fazia se distanciar
de suas origens freudianas. Lacan se posiciona criticamente frente a essa verve pragmática e
a-histórica presente na psicanálise norte-americana. Ele adverte sobre o quanto a mesma
tendia a adaptar o indivíduo ao seu meio social, com o intuito de buscar um padrão universal
de conduta, em um processo de objetivação do humano, exemplificado através de termos
forjados, tais como o das relações humanas (human relations) e da engenharia humana
(human engineering), cujo fim, a revelia do consentimento de seus praticantes não era outro
senão a exclusão da subjetividade (Lacan, 1953/1998c). Para Lacan, isso se tratava de uma

falha sintomática, por trair uma renegação que não vem desta terra [EUA], onde Freud, por sua tradição,
foi apenas hóspede passageiro, mas do próprio campo cujo encargo ele nos legou e daqueles a quem
18

confiou sua guarda, digo do movimento da psicanálise, onde as coisas chegaram a tal ponto que a
palavra de ordem de um retorno a Freud significa uma reviravolta (Lacan, 1955/1998e, p. 403).

Diante desse cenário se pôde assistir no seio da psicanálise o eclipse de seus termos
mais importantes: o inconsciente e a sexualidade. Termos vívidos da experiência analítica
que, no entanto foram postos de lado no contexto do movimento psicanalítico dos meados do
século XX. Assim, a determinação de Lacan (1955/1998e) de que “o retorno a Freud é um
retorno ao sentido de Freud” (p. 405) consiste num momento crucial em que o destino da
psicanálise e, portanto, do inconsciente, se fazia questionar. Daí o apelo de Lacan
(1953/1998c) de que a técnica analítica “não pode ser compreendida nem corretamente
aplicada, portanto, quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam” (p. 247), de
modo que seu ensino tem o intuito de “demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno
sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala”
(Lacan, 1953/1998c, p. 247).
Lacan vem assinalar um ponto central da obra de Freud, para o qual a descoberta do
inconsciente se tratou de investigar as relações do sujeito com a ordem simbólica. Ele adverte
que desconhecer essa descoberta no seio da comunidade analítica é condenar a psicanálise à
ruína. E, sendo assim, buscou-se resgatar o foco até então prescindido no meio psicanalítico: a
fala do analisante, enquanto o único meio a ser considerado pela psicanálise; função central da
experiência analítica já enunciada no título do Relatório do Congresso de Roma, uma das
conferências capitais do seu ensino. Tratava-se, para Lacan (1953/1998c), de decifrar as
manifestações do inconsciente enquanto fenômenos de linguagem, sendo o tratamento dessas
formações do inconsciente orientado pela ideia de que “o sintoma se resolve por inteiro numa
análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagem
cuja fala deve ser libertada” (p. 270).

1.2 De como as histéricas ensinaram o caminho do inconsciente a Freud

Em Função e Campo, Lacan (1953/1998c) nos recorda que foi a partir da fala do
paciente que a psicanálise foi construída. O método terapêutico inicial criado por Freud, em
parceria com Joseph Breuer, e fundado na experiência de uma fala que produzia efeitos no
sintoma, foi batizado por Bertha Pappenheim – a paciente histérica que ficou conhecida como
Anna O. – de talking cure, cura pela fala, tratamento pela palavra. Nessa ocasião, a
19

descoberta do acontecimento patogênico traumático constituía-se como a causa dos sintomas


histéricos e, na medida em que cada um desses acontecimentos era colocado em palavras, nas
stories da doente, acabavam sendo eliminados. Na Comunicação Preliminar sobre o
Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos, Freud e Breuer (1895/1996a) nos dão a
conhecer esse achado, ao descobrirem que

cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos
trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o
acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e
traduzido o afeto em palavras (p. 42).

Assim, por exemplo, no último caso clínico relatado por Freud nos Estudos sobre
Histeria – o caso de Elizabeth Von R. – recordamos que essa paciente sofria há mais de dois
anos com sintomas de astasia-abasia, apresentando dores nas pernas que lhe dificultavam ficar
em pé e andar. Freud (1895/1996a), ao escutar sua história não entendia a relação de tantas
desgraças e acontecimentos aparentemente normais com o tipo de sofrimento moral somado
aos sintomas motores que a paciente apresentava, uma vez que não existia fundamento para se
suspeitar da presença de qualquer afecção orgânica grave. Elizabeth era a filha mais velha e
preferida do pai, sendo após a morte desse último, o período em que os sintomas se
manifestaram. De modo que uma paciente inteligente e mentalmente normal não podia seguir
adiante e ter um futuro brilhante, desfrutar de sua vida social e de um casamento feliz em
decorrência de seu estado, enquanto via suas irmãs mais novas se casarem, ao mesmo tempo
em que ela própria suportava seus problemas, com ar alegre, no modo da belle indifférence
dos histéricos (Freud, 1895/1996a).
Segundo Joseph Attié (1987), em A questão do simbólico, Freud nota que o
fundamental no caso era a impotência da paciente para seguir em frente. Ele conclui que os
sintomas motores da paciente se desenvolveram após uma trilha específica ter sido aberta para
a conversão. Ou seja, a simbolização não se encontrava no primeiro plano, pois a abasia já se
encontrava lá, como uma paralisia funcional psíquica, sendo posteriormente reforçada pela
simbolização. De modo que, de acordo com o diagnóstico dado por Freud, tratava-se de uma
paralisia funcional simbólica, em que

a paciente criara ou aumentara seu distúrbio funcional por meio da simbolização, que encontrara na
astasia-abasia uma expressão somática para sua falta de uma posição independente e sua incapacidade
de fazer qualquer alteração em suas circunstâncias de vida, e que expressões como ‘não ser capaz de dar
um único passo à frente’ e ‘não ter nada em que se apoiar’ serviram de ponte para esse novo ato de
conversão (Freud, 1895/1996a, p. 197).
20

Freud, então, aponta a existência de uma interseção entre a dor física e a palavra falada
– “ficar pregada no lugar”, “não ter nenhum apoio na vida”, “sentimento de impotência”, etc.
– emitida pela própria paciente. O sintoma de Elizabeth simbolizava o “ficar só, ficar de pé”,
de modo que a solidão, a dificuldade de caminhar, de ficar em pé e o cansaço, encontravam-se
inscritos na paralisia de suas pernas. Sabemos que isso interessa profundamente a Lacan
(1964/2008c), o qual pôde dizer que se o inconsciente se encontra na origem da descoberta de
Freud, foi a partir da sua clínica com a histeria: “o caminho do inconsciente freudiano foram
as histéricas que o ensinaram a Freud” (p. 20). A escuta das histéricas impulsionou Freud a
refletir sobre essa estreita relação entre a linguagem e o sintoma, no sentido de haver uma
causalidade psíquica que indica o papel da representação mental no inconsciente atuando no
corpo.
Ao evidenciar que a psicanálise opera através da fala do analisante, Lacan demonstra,
a partir de Freud, como o inconsciente opera através da linguagem. Assim, Lacan
(1953a/1998) retoma A interpretação dos sonhos, obra-prima de Freud, sobre a qual observa
que o sonho tem a estrutura de uma frase, cuja letra, como um rébus, aponta uma escrita que
reproduz “o emprego fonético e simbólico, simultaneamente, dos elementos significantes 1 que
tanto encontramos nos hieróglifos do antigo Egito quanto nos caracteres cujo uso a China
conserva” (p. 268). Trata-se, então, de esclarecer a função do significante no inconsciente,
função primordial sobre a qual se fundamentou a afirmação de que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem.

1.3 Do imaginário ao simbólico: do estádio do Espelho ao Édipo

Segundo Eduardo Prado Coelho (1967), em Introdução a um pensamento cruel:


estruturas, estruturalidade e estruturalismos, a linguagem seria formada pela somatória de
dois elementos: a língua e a fala. Assim, entende-se por língua o sistema de regras que
estabelecem o uso dos sons, a gramática das formas e dos meios de expressão, estabelecida
socialmente no contrato coletivo e que preexiste a todo ato efetivo de comunicação. A fala,
por sua vez, é a utilização prática, concreta e individual da língua atualizada, que faz a língua
existir no plano das manifestações concretas da linguagem. Para Prado Coelho (1967) “a

1
Sobre o entendimento do que é significante, voltaremos.
21

língua não é um sistema de conteúdos, mas um sistema de formas e de regras” (p. 16), de leis
que ordenam a função da fala. Essas leis estão inseridas em um campo que Lacan denomina
Simbólico.
O Simbólico, junto com o Imaginário e o Real, compõe, para Lacan (1953/2005), a
tríade dos registros essenciais da realidade humana. Como aponta Miller (1988), cada um
desses registros possui um destaque no decorrer do ensino de Lacan. Primeiramente, temos a
predominância do registro imaginário, cuja teoria remonta ao período que antecede a 1953. O
cerne dessa teoria pode ser encontrado na formulação de Lacan do Estádio do Espelho (Lacan,
1949/1998a), cujo texto, escrito para o XVI Congresso da IPA de Marienbad em 1936 e,
posteriormente reformulado em 1949, é considerado o objeto da primeira intervenção de
Lacan no campo da psicanálise (Miller, 1988).
O Estádio do Espelho compreende o período anterior ao Édipo, no qual a criança,
entre os seis e dezoito meses de idade, em decorrência do caráter prematuro de sua formação
neurológica quando de seu nascimento, ainda não possui uma gestalt unificada de seu corpo.
A partir do interesse por sua imagem captada ludicamente no espelho, ou seja, a partir da
visão de um semelhante, a criança finda um período de vivência psíquica da angústia de um
corpo fragmentado, dando lugar à antecipação da vivência de unificação de seu corpo. Assim,
a criança fica assujeitada ao imaginário, confundindo a si mesma com sua imagem no
espelho, uma vez que a imagem é dela, mas, ao mesmo tempo é a de um outro que está em
déficit em relação a ela, tendo em vista seu estado fisiológico, configurando sua situação
constitutiva de desamparo (Miller, 1988).
Lacan observou a existência de uma alienação imaginária que consiste no fato da
criança se identificar com a imagem de um outro, identificação essa que é constitutiva do eu
(moi) no humano. Contudo, essa relação imaginária entre o eu e o outro é fundamentalmente
mortífera, pois presta a uma confusão do eu com o ser do sujeito. De modo que, para que se
produza uma humanização do desejo, faz-se necessário haver uma esquize do sujeito, baseada
na alienação do eu à imagem especular do outro (Maleval, 2009). Assim, a imago, como
Lacan nomeia essa imagem que o eu assume, mostra como a formação do eu (moi) está ligada
a uma função de desconhecimento. O infans2 participa imaginariamente da formação total de
seu corpo ao se ver duplicado pela imagem refletida. Lacan, então, nos fala de uma matriz
simbólica necessária, encarnada pelo Outro que segura a criança e lhe aponta, nomeando a

2
Infans, -antis: sinônimo latino para enfant (francês), infante ou criança (português), que designa aquele que
ainda não fala, vinculando a aquisição da linguagem como a passagem da criança do estado de infans – o que
não fala – para a posição de sujeito falante.
22

imagem do espelho como sendo dela, fazendo assim com que ela perceba que o outro
especular não é real, mas a imagem dela própria. Esse Outro, como instância que nomeia, ao
apontar para a imagem da criança, dizendo a ela “tu és isto!”, constitui essa matriz simbólica
da estruturação do eu, com a qual a criança estabelece uma identificação (Lacan,
1949/1998a). Para Lacan (1949/1998a),

a assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e
na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á, pois
manifestar, numa forma primordial, antes de objetivar na dialética da identificação com o outro e antes
que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (p. 97).

Já em Função e Campo, ao dizer que “o homem fala, pois, mas porque o símbolo o fez
homem”, Lacan (1953/1998c, p. 278) começa a distinguir o eu em sua dimensão imaginária
(moi) e o sujeito (je) enquanto termo simbólico, privilegiando este último registro. O
simbólico possui duas vertentes, a vertente da fala e a vertente da linguagem (Miller, 1988),
sobre o qual Lacan dirá que a ordem simbólica configura esse campo de linguagem onde o
sujeito está inserido antes mesmo de sua existência biológica. A função da linguagem seria
então fazer passar o sujeito, da existência animal para a existência humana, o campo da
cultura. De modo que, como será visto, quando o inconsciente demonstra sua dependência ao
discurso do Outro, a divisão do sujeito se afirma, ficando a alienação imaginária subordinada
à alienação significante (Maleval, 2009).

1.4 Função da fala e campo da linguagem: a ordem simbólica

Lacan (1953a/1998) se refere ao simbólico na condição de um terceiro termo, a partir


do qual a descoberta freudiana do inconsciente pode se esclarecer em seu fundamento.
Terceira ordem, na visão de Deleuze (1967/1974)3, trata-se, pois, de um elemento estrutural
ou objeto simbólico que se encontra para além da palavra em sua realidade sonora, como
também para além das imagens e dos conceitos associados às palavras. Assim, o simbólico
nesse período constitui para Lacan um elemento da estrutura que se encontra no princípio de
uma gênese (Deleuze, 1967/1974). Ora, de que se trata esta terceira ordem ou este terceiro
termo que vem se denominar ‘simbólico’? Para Lacan, leitor de Freud, o complexo de Édipo

3
Cf. em Em que se pode reconhecer o estruturalismo? de Gilles Deleuze, artigo publicado em 1967. In:
Châtelet, François. (org). História da Filosofia, ideias, doutrinas: o século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1974, pp. 271-303.
23

marca o limite da subjetividade. Ao submeter o sujeito à lei da interdição do incesto


instaurada pela ameaça da castração, o Édipo estrutura o modo como o sujeito se relaciona
com a Lei da castração, com o Outro, ao mesmo tempo em que lhe franqueia a entrada no
campo simbólico.
Para Lacan (1957-1958/1999), em O Seminário, livro 5, As formações do
inconsciente, no primeiro tempo do Édipo, a criança, que tem com a mãe uma relação
privilegiada propiciada pelas interações imediatas dela com a mãe – os cuidados, a satisfação
das necessidades – encontra-se em uma identificação imaginária com a mesma, ocupando o
lugar do falo, significante do desejo da mãe. A mãe ocupa o lugar desse Outro primordial,
caprichoso e sem lei, tesouro pleno dos significantes – para o qual a criança dirige suas
demandas de satisfação, e se encontra assujeitada enquanto um objeto dos caprichos de quem
ela depende.
É no segundo tempo do Édipo que a intervenção do pai na relação imaginária entre
criança e mãe inaugura a entrada do sujeito na ordem simbólica. Lacan (1957-1958/1999)
confere um estatuto de metáfora, a que denomina metáfora paterna, à operação de um terceiro
termo – o Nome-do-Pai – que encarna a Lei simbólica, na condição de um novo significante
que, para a criança, substitui o desejo da mãe. Segundo ele, trata-se “propriamente, no que foi
constituído por uma simbolização primordial entre a criança e a mãe, a colocação substitutiva
do pai como símbolo, ou significante, no lugar da mãe”, o que se configura como “um ponto
axial, um nervo motor, a essência do progresso representado pelo complexo de Édipo”
(Lacan, 1957-1958/1999, p. 186). A metáfora paterna introduz a lei da interdição, barrando a
mãe da reintegração da criança e barrando a criança de ser o objeto do desejo de sua mãe. O
advento do Nome-do-Pai irá possibilitar à criança significar que o desejo da mãe se encontra
em outro lugar que não nela própria. Assim, passa-se de um Outro materno caprichoso e
absoluto – grafado com A (de autre, outro em francês) sem a barra, posto não castrado – para
então operar o Outro como lugar da Lei, barrado pela inscrição da castração simbólica –
grafado como A barrado, . (Lacan, 1957-1958/1999).
Ao metaforizar o desejo da mãe, o Nome-do-Pai opera uma castração simbólica,
recalcando a identificação da criança como falo da mãe e possibilitando à mesma construir
uma significação fálica ao enigma do Desejo da Mãe. É dessa maneira que o falo, na condição
de significante enigmático do desejo materno, permitirá ao sujeito atribuir significações aos
seus significantes, inserindo-o na norma fálica, na partilha dos sexos como homem e mulher.
(Lacan, 1957-1958/1999). A criança acede ao simbólico, passando de uma posição de
alienação ao desejo da mãe – objeto de desejo primordial – para se encontrar em um novo
24

campo de alienação: o campo da linguagem. Ao sujeito, agora cativo da linguagem, é vetado


o acesso imediato ao objeto de desejo primordial perdido para sempre. E, na impossibilidade
de reencontrá-lo, o sujeito poderá investir seu desejo em objetos substitutos, mediados pela
linguagem, em um deslocamento metonímico4 dos significantes.
Assim, a ordem simbólica que estrutura a realidade entre os seres humanos é
inaugurada pela intervenção do Pai, intervenção que dissolve a indistinção e a transitividade
imaginária existente na relação entre a mãe e a criança. Essa ordem, que funda a civilização
através da proibição do incesto, superpõe o reino da cultura ao reino da natureza (Lacan,
1953/1998c). Nesse sentido, Lacan faz referência a Lévi-Strauss, para o qual os grupos
humanos naturais encontrar-se-iam submetidos a certas regras de aliança que ordenam as
relações de parentesco e as trocas de mulheres entre os clãs (Prado Coelho, 1967). A aliança
rege uma ordem preferencial que pressupõe que uma lei determine as posições dos indivíduos
no grupo familiar e os nomes de parentesco. Lacan (1953/1998c) observa que essa lei, assim
como a linguagem, é imperativa em suas formas e inconsciente em sua estrutura.
A interdição do incesto advinda com a ameaça de castração torna, então, possível ao
sujeito se constituir como ele. Nesse lugar de ele a criança é separada da comunicação, ao
mesmo tempo em que é nela integrada. E, dessa maneira, a criança pode perceber que além
dela mesma existe um tu que para ela é o pai (ou a mãe), e que esse tu é também um eu
quando se comunica com a mãe (ou o pai); e, por sua vez, a mãe é um eu quando se dirige ao
pai, de modo que o eu e o tu sejam termos sujeitos à permutação, constituindo-se como
relações nas quais o sujeito entra no circuito da troca (Prado Coelho, 1967).
Concordando com Lévi-Strauss, ao dizer que a proibição do incesto, enquanto Lei
primordial, funda esse momento de passagem do reino animal para o reino da cultura, Lacan
(1953/1998c) atribui ao Nome-do-Pai, agente da castração edípica, o suporte da função
simbólica, idêntica a uma ordem de linguagem que vai constituir o sujeito como algo passível
de ser nomeado. É sob este nome que o sujeito se encontra. Assim, longe de ser por razões
morais, o objetivo da proibição do incesto consistiria em evitar a coincidência entre relações
de parentesco (pai, mãe, irmão, irmã) e relações de aliança (marido, mulher). Coincidência,
cuja confusão tornaria impossível ao indivíduo se localizar, saber quem é e qual sua posição
em relação aos outros (Prado Coelho, 1967).
Assim, a descoberta de Freud, recuperada por Lacan em seu ensino, consiste na
incidência sobre a natureza do homem, das suas relações com a linguagem, sendo a

4
Como aqui estamos discutindo a metáfora paterna enquanto função do simbólico, retornaremos mais adiante
sobre os termos metáfora e metonímia.
25

linguagem um sistema de símbolos – ou significantes, como Lacan dirá mais adiante –


preexistente ao surgimento do sujeito. Esses elementos simbólicos, conforme observa Attié
(1987), não portam um sentido constituído em si mesmo, nem na forma de um simbolismo
arquetípico a la Jung, nem numa simbólica com significados cristalizados e dicionarescos pré-
definidos. Se a simbólica remete ao geral, ao universal de um código, o simbólico remete ao
particular, à mensagem que precisa ser lida, “isto é, decifrada e, aliás, ela não existe antes de
ser decifrada” (Attié, 1987, p. 16). O simbólico consiste no fato de que os elementos
significantes representam o sujeito na medida em que o remetem a outros significantes, numa
cadeia de linguagem ou cadeia simbólica. É por isso que a experiência analítica estrutura seu
dispositivo clínico na fala do analisante, ou seja, nas cadeias significantes produzidas na
associação livre, como via fundamental de acesso ao inconsciente (Burztyn, 2007).
Isso aponta para uma anterioridade própria ao simbólico em relação ao homem. Ou
seja, antes de existir biologicamente no mundo, o sujeito já é concebido e nomeado em uma
ordem anterior a ele mesmo, como diz Lacan (1957/1998g), em “um discurso em cujo
movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma
de seu nome próprio” (p. 498). Pois, antes mesmo de nascer, o sujeito já é falado em um
campo de linguagem, um lugar para ele já lhe está preparado no desejo de seus pais, os quais,
ao falarem sobre criança que vai nascer lhe conferem um nome, uma língua “materna”, um
lugar no universo linguístico, e, portanto, em um campo de símbolos. Símbolos, diz Lacan
(1953a/1998), que

envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles
que irão gerá-lo ‘em carne e osso’; trazem em seu nascimento, com os dons dos astros, senão com os
dons das fadas, o traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a
lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-além de sua própria morte; e, através
deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o verbo absolve seu ser ou o condena – a menos que
ele atinja a realização subjetiva do ser-para-a-morte (p. 280).

Lacan (1953/1998c) ressalta em Função e Campo que os meios dos quais a psicanálise
deve se valer em sua práxis são os da fala, na medida em que a fala “confere um sentido às
funções do indivíduo” (p. 259). O campo é o do discurso concreto, concebido como “campo
da realidade transindividual do sujeito” (Lacan, 1953/1998c, p. 259), assim como também, as
operações concernem às da história naquilo que “ela constitui a emergência da verdade no
real” (Lacan, 1953/1998c, p. 259). Com a noção de realidade transindividual, Lacan
(1953/1998c) ainda enfatiza uma dimensão intersubjetiva associada à função da fala na
experiência analítica. Tal noção implica que a constituição do sujeito se dá pela condição
intersubjetiva do discurso.
26

Em sua tese de doutorado, intitulada Tratar o impossível: a função da fala na


psicanálise, Angela Bernardes (2003) comenta que a noção de intersubjetividade incidente no
pensamento de Lacan nesse período é extraída dos trabalhos de Émile Benveniste (1902-
1976), linguista estruturalista francês. Para Benveniste (1976), é no campo da linguagem que
o homem se constitui enquanto sujeito. Assim, a subjetividade se manifesta na capacidade do
locutor de se propor como “sujeito” no discurso. Diz o linguista que

a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como
eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a “mim”, torna-
se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu (Benveniste, 1976, p. 286).

Nesse sentido, o eu somente pode ser empregado quando em uma alocução existir um
tu no lugar de alocutário, constituindo uma condição de diálogo. O tu, por sua vez, em uma
situação recíproca, pode se designar também como eu quando se dirige ao interlocutor como
tu. Sendo assim, de acordo com Bernardes (2003), a ideia de intersubjetividade encontrada em
Função e Campo consiste na existência de uma função de endereçamento da fala presente na
experiência analítica. Essa autora nos recorda que, desde o texto Intervenção sobre a
transferência de 1951, Lacan já se propunha pensar a experiência analítica como
intersubjetividade, sendo aí colocada uma dimensão de diálogo, sobre o qual ele escreveu que
“numa psicanálise, com efeito, o sujeito propriamente dito constitui-se por um discurso em
que a simples presença do psicanalista introduz, antes de qualquer intervenção, a dimensão do
diálogo” (Lacan, 1951/1998b, p. 215).
Todavia, de acordo com Bernardes (2003), a noção de diálogo em Função e Campo
sofre um remanejamento para a ideia de que a fala traz em si sua resposta, como diz Lacan
(1953/1998c): “o que eu busco na fala é a resposta do outro” (p. 301). Dessa maneira,
compreende-se que o sujeito, ao falar, assume essa intersubjetividade, uma vez que nesse caso
a fala comporta seu interlocutor. Nesse sentido, Lacan (1953/1998c) diz que “não há fala sem
resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ele tenha um ouvinte e que esse
é o cerne de sua função na análise” (p. 249); ou ainda, demonstrando influências
benvenistianas, ao dizer que “a alocução do sujeito comporta um alocutário” (p. 259). Há,
nesse caso, uma antecipação do conceito de grande Outro que Lacan irá formular anos depois
(Lacan, 1958/1998h).
27

1.5 O inconsciente: discurso do Outro

Distinto do outro como alguém a quem se fala numa dimensão dialógica, para a
discussão que aqui nos concerne, o (grande) Outro é concebido como o lugar dos significantes
encontrados pelo sujeito a partir de sua entrada no campo da linguagem. Esta última, como
vertente da ordem simbólica, coloca-se em uma relação de anterioridade ao sujeito, ou como
Garcia-Roza (2007) observa, trata-se de “um conjunto estrutural independente do indivíduo
que fala” (p. 227).
Como aponta Antônio Quinet (2012), a linguagem, compreendida nesse sentido, pode
ser designada como um dos nomes do Outro em Lacan, e assim podemos nos referir ao Outro
da linguagem. Ela é o lugar do inconsciente em Freud, o que possibilitará a Lacan enunciar
repetidas vezes em seu ensino a fórmula “o inconsciente é o discurso do Outro”. Significa,
então, dizer que o inconsciente é o discurso do circuito no qual o sujeito está integrado e do
qual ele é um dos elos, discurso que efetua um pequeno circuito no qual se prendem uma
família inteira, um bando inteiro, uma facção inteira, uma nação inteira ou a metade do globo,
conforme exemplifica Lacan (1954-55/1985):

É o discurso do meu pai, por exemplo, na medida em que meu pai cometeu faltas as quais estou
absolutamente condenado a reproduzir (...). Estou condenado a reproduzi-las porque é preciso que eu
retome o discurso que ele me legou, não só porque sou o filho dele, mas porque não se para a cadeia do
discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem.
Tenho de colocar a outrem o problema de uma situação vital onde existem todas as probabilidades que
ele também venha a tropeçar (p. 118).

É do Outro que o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida. É a escuta
do Outro que faz com que o sujeito saiba, somente no a posteriori5, o que ele próprio, sem
saber, desejava. Dessa maneira, a fórmula lacaniana de que o inconsciente é o discurso do
Outro é um modo de indicar a determinação simbólica do sujeito, afirmando, assim, a ex-
sistência (existência fora) do inconsciente fundada na atualidade que possui em seu presente o
futuro anterior. É no a posteriori que o sujeito se dá conta do que terá sido, sem que o
soubesse de antemão (Vieira, 1998).
Importa ressaltar que o Outro não é alguém, não é o tu do diálogo de Benveniste, mas,
trata-se de um lugar. Uma vez abandonada a lógica intersubjetiva, Lacan (1958/1998h)

5
Segundo o Dicionário de Psicanálise (Roudinesco & Plon, 1998), a posteriori (nachträglich), trata-se de um
termo introduzido por Sigmund Freud, em 1896, visando designar um processo de reorganização ou reinscrição,
através do qual os acontecimentos traumáticos adquirem significação para o sujeito apenas em um a posteriori,
ou seja, em um contexto histórico e subjetivo posterior, que lhes confere uma nova significação (p. 32).
28

introduz a definição de Outro como o lugar do código, onde os significantes se articulam e


determinam o que o sujeito fala, pensa, sente, age, sonha e faz em termos de sintoma. É o
lugar onde se passa a Outra Cena freudiana. Lacan se baseia em Freud (1900/1996d, p. 84)
que, em A interpretação dos sonhos, ao se referir a um trecho da obra de psicofísica do
alemão Gustav T. Fechner, comenta sobre a existência de uma outra cena (ain anderer
Schauplatz) enquanto um lugar psíquico, um outro palco onde se passa o sonho, diferente da
cena da vida representacional de vigília. É nesse lugar – simbólico para Lacan ou psíquico
para Freud – que se colocam para o sujeito a questão de sua existência, de seu sexo, de sua
história, onde a própria condição de sujeito se desenrola: “fóbica, histérica ou obsessiva, a
neurose é uma questão que o ser coloca para o sujeito ‘lá de onde ele estava antes que o
sujeito viesse ao mundo’” (Lacan, 1957/1998g, p. 524).
Desse modo, nada do sujeito escapa ao Outro, comenta Quinet (2008). No entanto, se
o Outro não é alguém, mas o lugar dos significantes, interessa descobrir de onde provém esses
significantes e a quem eles pertencem: ao sujeito que fala? Ao sujeito que escuta? Lacan, ao
dizer que o inconsciente é o discurso do Outro da linguagem, estabelece uma dimensão de
alteridade radical para o sujeito em relação ao simbólico. Os significantes, então, não se
situam nem fora do sujeito, nem dentro dele, mas fazem parte da ordem simbólica que é
também a ordem da cultura. De modo que não existe barreira entre o que é do sujeito e o que
é do simbólico. E, enquanto discurso do Outro, significa dizer que o inconsciente freudiano
não é individual, podendo assim ser compreendida essa dimensão de transindividualidade
atribuída ao inconsciente por Lacan (1953a/1998) que diz: “o inconsciente é a parte do
discurso concreto, como transindividual (trans-individuel) 6, que falta à disposição do sujeito
para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (p. 260).
O sujeito, então, mantém sempre uma relação de alteridade com seu inconsciente, em
cujo discurso sempre falta um elemento para estabelecer-se consciente. Nesse sentido, a
interpretação analítica, como quis Lacan nesse contexto, possibilitaria o retorno do recalcado,
franqueando sua barreira, restabelecendo o sentido, esse capítulo da história do sujeito que
falta, “capítulo censurado”, “marcado por um branco”, “ocupado por uma mentira”, uma vez
que a verdade a ser resgatada se passa em outro lugar, ain anderer Schauplatz, em Outra
Cena:

6
Do original: “L’inconscient est cette partie du discours concret en tant que trans-individuel, qui fait défaut à la
disposition du sujet pour rétablir la continuité de son discours consciente”. Segundo o dicionário enciclopédico
francês Larousse (2012), “transindividual” (trans-individuel) quer dizer, aquilo que excede e ultrapassa a
individualidade, aplicando-se a vários indivíduos ou objetos.
29

O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua historia - ou seja, nós o ajudamos a
perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo número de
“reviravoltas” históricas. Mas, se eles tiveram esse papel, já foi como fatos históricos, isto é, como
reconhecidos num certo sentido ou censurados numa certa ordem. (Lacan, 1953/1998c, p. 263).

Vale ressaltar a definição lacaniana nesse contexto, de um inconsciente atrelado à


história, uma vez que a história se desenrola em um certo ordenamento significante, cujo
termo será discutido logo a seguir. Não é à toa que ele também se refere metaforicamente a
lugares históricos e de arquivo para nos dizer dessa Outra Cena, onde a verdade do
inconsciente pode ser resgatada: nos monumentos, o corpo, enquanto núcleo histérico da
neurose, onde o sintoma nos mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma
inscrição, assim como Freud, nos primórdios da psicanálise, descobriu no corpo das histéricas
o material privilegiado à expressão simbólica de um conflito inconsciente, pelo processo que
ele denominou complacência somática; nos arquivos, nos quais a história do sujeito está
documentada, guardada ou até perdida, nas memórias apagadas da infância, nas fantasias
infantis, nas lembranças encobridoras; na evolução semântica, no aprendizado da língua
“materna”, nos equívocos da fala, nas aquisições das palavras tão particulares ao sujeito que
marcam seu estilo de vida e seu caráter; nas tradições, nos mitos e lendas, significantes
primordiais que construíram essa história naquilo que foi falado do sujeito de maneira heroica
ou maldita; e nos vestígios, que conservam inevitavelmente os esquecimentos, as dúvidas e as
distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e
cujo sentido a exegese do sujeito restabelecerá (Lacan, 1953/1998c).
Sendo assim, temos aqui uma noção de inconsciente totalmente ligada a uma
experiência de significação, a uma decifração historicizada, marcada pelos significantes, a
uma exegese, uma interpretação através da qual o sujeito na experiência linguageira de uma
psicanálise pode descobrir um sentido, e cuja fala permita constituir essa “emergência da
verdade no real” (Lacan, 1953a/1998, p. 259). Desse modo, podemos ver o peso do simbólico
neste momento do ensino de Lacan, cuja função é capturar o que ficou fora de significação.
Prossigamos.

1.6 Estruturalismo e linguagem: algumas questões

Sabemos que Lacan, em seu primeiro ensino, aborda a linguagem enquanto estrutura
do inconsciente. Como vimos, ele é influenciado por Lévi-Strauss, do qual ele retoma a noção
30

de estrutura. Segundo Prado Coelho (1967), por estrutura pode-se entender um conjunto de
elementos quaisquer, entre os quais existem uma ou várias leis de composição ou operações
que os definem com elementos. A estrutura possui um caráter sistemático, em que os
elementos se combinam de tal maneira que, ocorrendo qualquer modificação em um deles,
ocorrerá uma modificação em todos os outros. Isso se deve ao fato de que o valor de cada
elemento não depende somente de si mesmo, mas, sobretudo, da posição que ele ocupa em
relação a todos os outros elementos do conjunto (Prado Coelho, 1967).
Lacan, ao formular que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, concebe,
primeiramente, que o inconsciente é uma estrutura. Ou seja, o inconsciente não se trata de um
fluxo contínuo, não discernível, ou uma reserva de coisas heteróclitas, independentes umas
das outras e reunidas em uma espécie de saco. Nele discernimos elementos e esses elementos
constituem um sistema (Miller, 2012b). Mais tarde, em O Seminário, livro 11, Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise – daqui em diante denominado O Seminário 11 –,
Lacan (1964/2008c) dirá que o inconsciente não é “de modo algum o inconsciente romântico
da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da noite” (p. 31). O seu retorno a Freud
propõe que ao nível do inconsciente existe algo homólogo em todos os pontos ao que se passa
ao nível do sujeito, uma vez que isso fala e funciona de modo tão elaborado quanto o nível
consciente que perde assim seu privilégio (Lacan, 1964/2008c).
Lacan diz que, em A Interpretação dos Sonhos, Freud não faz senão referências aos
jogos dos significantes. Assim, o inconsciente é revisitado por Lacan, sobre o qual afirma não
ser uma sede de instintos, mas lugar de significantes: “o inconsciente não é o primordial nem
o instintivo e, de elementar, conhece apenas os elementos do significante” (Lacan,
1957/1998g, p. 526). Portanto, o inconsciente não é o caótico, não está nas profundezas onde
uma atribuição errônea à psicanálise como psicologia profunda não caberia. Pelo contrário, o
inconsciente, na medida em que em Freud pode ser formulado em termos de representantes
psíquicos, tem um estatuto simbólico, sabendo se organizar através das leis da linguagem que,
a partir de Freud, Lacan busca formalizar como as leis do inconsciente7.
Lacan se apropriou dos elementos da Linguística iniciada pelo suíço Ferdinand de
Saussure (1857-1913). Essa ciência trouxe para os meados do século XX os fundamentos do
Estruturalismo, sistema de pensamento que influenciou toda uma geração de intelectuais de
diversos campos do saber, como o linguista Roman Jakobson, o antropólogo Claude Lévi-

7
Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, logo em suas primeiras páginas, Lacan
assinala: “para-além dessa fala, é toda a estrutura da linguagem que a psicanálise descobre no inconsciente.
Pondo desde logo o espírito prevenido em alerta, porquanto é possível que ele tenha de reavaliar a ideia segundo
a qual o inconsciente é apenas a sede dos instintos” (Lacan, 1957/1998g, p. 498).
31

Strauss, os filósofos Michel Foucault (epistemologia), Louis Althusser (marxismo), Gilles


Deleuze e até mesmo o jovem filósofo e, depois, psicanalista, Jacques-Alain Miller, entre
outros.
Na psicanálise lacaniana, as influências do estruturalismo podem ser notadas,
principalmente, a partir de Função e Campo em 1953. Contudo, podemos dizer que quatro
anos mais tarde serão clarificadas algumas noções importantes do léxico estruturalista
linguístico lacaniano. É no texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud
(1957) – que doravante mencionaremos como A instância da letra –, originalmente uma
conferência proferida para um público de estudantes de Letras, na Sorbonne, que constatamos
como o sistema saussuriano, com seus conceitos de signo, significante, valor linguístico, eixo
sintagmático e de associações, encontram um lugar de peso nesse primeiro ensino de Lacan
(Bernardes, 2003).
Ressalta-se que não há um estruturalismo ideal, um objeto preciso. Cada domínio do
conhecimento fez uso do pensamento estrutural a seu modo, uma vez que, tomado enquanto
método, o estruturalismo se presta sempre ao campo em que está sendo aplicado. Na visão de
Machado (1999), se uma teoria da linguagem como a Linguística saussuriana é usada para
uma grande variedade de domínios do conhecimento, não é devido à linguagem ser um mero
instrumento de expressão de ideias, mas ao fato de que é na linguagem que as ideias
emergem. Segundo essa autora, Saussure não somente rompe com a ideia de que a linguagem
representa a realidade, como também propõe que a língua cria a realidade, ao mesmo tempo
em que ela é criada pelas relações que se estabelecem no interior da própria língua. Assim, o
estruturalismo seria um termo necessário para compreender um certo tipo de atividade,
constituindo-se, portanto, uma forma de linguagem (Prado Coelho, 1967).
Fazendo referência direta à psicanálise lacaniana, Deleuze (1967/1974) afirma que só
existe estrutura daquilo que é linguagem, que “só há estrutura do inconsciente na medida em
que o inconsciente fala e é linguagem. Só há estrutura dos corpos na medida em que se julga
que os corpos falam com uma linguagem que é a dos sintomas” (Deleuze, 1967/1974, p. 272).
Não é nossa intenção exaurir todo o conhecimento das noções estruturalistas, mas apenas
mencionar algumas noções cuja importância torna-se apropriada para entendermos, logo em
seguida, o uso das mesmas por Lacan em sua abordagem estrutural do inconsciente.
Com Saussure, a partir da publicação em 1916, de sua obra póstuma Curso de
Linguística Geral, a Linguística saiu do domínio milenar da filosofia da linguagem para
ganhar seu próprio objeto de estudo: o funcionamento de uma língua. Lacan (1957/1998g)
comenta que o signo linguístico de Saussure constitui o marco do surgimento da linguística
32

como uma disciplina científica. Saussure (1916/2006) concebe a língua não como uma
nomenclatura, ou uma simples lista de termos que corresponderiam a outras tantas coisas, (por
exemplo, a descrição de cavalo remeteria à palavra “cavalo” de maneira natural). Para o
linguista genebrino, esta concepção reduziria a língua a ideias completamente feitas,
preexistentes às palavras, em que o vínculo de um nome a uma coisa fosse dado de uma
maneira muito simples.
No entanto, dessa discordância, Saussure (1916/2006) extrai o fato de que existe uma
entidade linguística constituída da união de dois termos que ele denomina signo linguístico. A
formação do signo é também descrita pelo recorte simultâneo de duas massas flutuantes, a
exemplo de uma nebulosa ou de nuvens: a massa dos sons e a massa dos pensamentos8. No
interior dessas massas, nem os sons, nem os conceitos aparecem como tais antes do corte
próprio da língua (Figura 1).

Figura 1: Esquema saussuriano representando a língua, como uma série de subdivisões contíguas
marcadas simultaneamente sobre os planos: das idéias confusas (A) e dos sons indeterminados (B)
Fonte: Saussure, 1916/2006, p. 130

Ao contrário de unir uma coisa a uma palavra, em uma função nominativa da língua, o
signo linguístico é uma combinação de um conceito com uma imagem acústica ou sonora.
Saussure (1916/2006) diz que essa imagem acústica não é o som material ou físico, mas se
trata da impressão psíquica desse som, ou seja, de uma representação sonora que nos dá o
testemunho de nossos sentidos, uma imagem que é “sensorial e, se chegamos a chamá-la
‘material’, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo de associação, o conceito,
geralmente mais abstrato” (p. 80). Ao conceito denominou-se “significado”, e à imagem
acústica “significante”. Assim, a combinação do significado e do significante forma essa
unidade linguística que Saussure estabelece como signo, graficamente reproduzida como duas

8
“F. de Saussure ilustra com uma imagem que se assemelha as duas sinuosidades das Águas superiores e
inferiores nas miniaturas dos manuscritos do Gênesis. Duplo fluxo onde parece tênue o marco dos finos riscos de
chuva que ali desenham os pontilhados verticais que se supõe limitarem segmentos de correspondência” (Lacan,
1957/1998g, p. 506).
33

faces que se articulam por uma barra que os une e duas flechas opostas, significando que uma
das faces sempre reclama a outra mutuamente, numa ordem fechada e indissociável,
representada por uma elipse que envolve as duas faces (Figura 2):

Figura 2: O signo saussuriano unindo conceito e imagem acústica (lado esquerdo)


ou significado e significante (lado direito)
Fonte: Saussure, 1916/2006, p. 80

Para Saussure (1916/2006) o significado é o conceito, mas também a representação


mental que, no entanto, pode apresentar aspectos muito diversos devido a seu valor conceitual
ser decorrente de sua relação de vizinhança com outros signos. Por exemplo, a palavra
“árvore” (do latim, arbor, -oris) na condição de significante, indica a coisa que ela representa:
o significado de um tronco com suas raízes, seus galhos cobertos de folhas, seus frutos, etc.
Entretanto, também pode ser uma árvore genealógica, pode ser a cruz de Cristo, a árvore que
“ergue sobre um outeiro sem fronde a sombra da cruz” (Lacan, 1957/1998g, p. 507). Diante
do significante “manga”, um sentido advém se, logo em seguida, temos o predicativo “doce”,
ao passo que temos outro sentido, se colocarmos para o significante “manga”, o predicativo
“curta” (Machado, 1999).
Aqui temos, então, imbuída a noção de valor do signo linguístico, com que nos
referimos ao fato da significação de uma palavra não depender somente, nem essencialmente,
da relação significante/significado, mas, também, da relação com todas as outras palavras do
sistema, articuladas em campos semânticos ou cadeias de linguagem, cujos elementos se
encontram em oposição uns com os outros. Isso leva Saussure a afirmar que na língua não
existem elementos positivos, pois cada elemento se define negativamente pelas diferenças que
estabelece com todos os outros elementos do sistema. Segundo Saussure, citado por Prado
Coelho (1967):

A lei fundamental da linguagem é esta: não há nela nada que possa residir num termo, porque os
símbolos linguísticos não estão em relação com o que devem designar, dado que a só designa alguma
coisa com o auxílio de b, assim como b com o auxílio de a, e que ambos só valem pela sua diferença
recíproca, e que nenhum deles vale seja o que for senão por este complexo de diferenças eternamente
negativas (p. 18).
34

Saussure destaca duas características primordiais do signo linguístico. A primeira é a


arbitrariedade do signo, ou seja, o laço que une significado e significante é arbitrário.
Significante e significado não possuem um caráter aleatório dependente da livre escolha do
sujeito. Por exemplo, o significado do conceito “cadeira” não possui nenhuma relação com a
sequência sonora C-A-D-E-I-R-A (significante), a não ser de modo arbitrário, aceito numa
comunidade linguística sobre a qual repousa um hábito coletivo, uma convenção. Assim, o
significante é imotivado, posto que seja arbitrário em relação ao significado, não tendo entre
os dois elementos nenhuma relação natural na realidade (Saussure, 1916/2006).
A segunda característica apontada por Saussure (1916/2006) é o princípio da
linearidade do significante. O significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se
unicamente no tempo, carregando em si as características do tempo, como a extensão, cuja
medida tem uma dimensão linear, onde os significantes acústicos estão dispostos apenas na
linha do tempo e seus elementos se apresentam um após o outro, formando uma cadeia
significante (p. 84). O caráter temporal do significante é representado pela escrita que, através
dos signos gráficos, substitui a sucessão do tempo. Por exemplo: como em uma frase, os
significantes se apresentam em uma ordem linear ou em uma cadeia, onde um se encontra em
oposição ao outro – A, B, C, D, E. Prado Coelho (1967) destaca que a linguagem é concebida
como objeto duplamente constituído, possuindo um caráter dialógico, de maneira que o
diálogo é o único campo onde ela se torna possível. Assim, ela não se reduz a um princípio de
unidade, mas a um sistema articulado e dual, em que a diferença necessária existe como
elemento de origem da linguagem.
O fator temporal do significante ainda implica que a linguagem seja concebida de
modo sincrônico e diacrônico. O primeiro, o eixo das simultaneidades no qual as relações
entre os signos são independentes do fator tempo, é o eixo dinâmico, de movimento, tal como
em um tabuleiro de xadrez, no qual, se uma pedra é deslocada, todo o sistema do jogo é
alterado. Enquanto o eixo das sucessividades, eixo diacrônico, é aquele no qual as
transformações que se verificam na língua são analisadas, na sucessão do tempo, ao longo da
história (Prado Coelho, 1967).
Uma frase se constitui através da sucessão dos signos linguísticos, numa sequência de
palavras, constituída num eixo denominado sintagma, no qual cada palavra é acrescentada à
anterior. O eixo sintagmático está baseado na extensão, na presença sequencial das palavras
que se combinam baseadas em certa relação de contiguidade, constituindo, em última
instância, a metonímia. Cada palavra, na sucessão dos signos, deverá, por sua vez, ser
escolhida dentre as várias palavras possíveis que o contexto linguístico e extralinguístico
35

permite utilizá-las, formando outro eixo, denominado paradigma. O eixo paradigmático se


baseia na associação, na ausência de palavras, cuja seleção será produzida, baseando-se na
equivalência, na semelhança ou dissemelhança, na sinonímia ou antinonímia, formando o
campo da metáfora (Prado Coelho, 1967).
Em Linguística e Comunicação, no capítulo intitulado “Dois aspectos da linguagem e
dois tipos de afasia”, Roman Jakobson (2007) discutiu algumas questões centrais sobre as
afasias, por meio do que ele pretendeu situar quais aspectos da linguagem se encontravam
prejudicados nos diferentes tipos de desordem afásicos. Segundo Menicucci (2008), Jakobson
viu no estudo das afasias uma grande contribuição para o campo da linguística, sobretudo no
que concerne ao funcionamento da linguagem e suas leis, principalmente a metáfora e a
metonímia. O linguista russo aponta a existência de um duplo caráter da linguagem. Segundo
ele, o ato de falar implica em selecionar certas entidades linguísticas e sua combinação em
unidades linguísticas mais complexas, de maneira que selecionamos palavras e as
combinamos em frases, de acordo com o sistema sintático da língua utilizada, em que as
frases são combinadas em enunciados. Contudo, isso não é uma escolha livre de palavras – o
próprio Saussure já advertia – pois o agente que fala, salvo nos raros casos de neologismo, faz
a seleção de palavras a partir de um repertório lexical que seja comum para ele próprio e para
o destinatário da mensagem, a partir de um código que já tem estabelecidas as possibilidades
que poderão ser usadas na língua do agente e do destinatário (Jakobson, 2007).
Para Jakobson (2007), todo signo linguístico implica dois modos de arranjo: a
combinação e a seleção. A combinação implica que todo o signo é composto de signos
constituintes, aparecendo articulados com outros signos, de modo que uma unidade linguística
serve de contexto para unidades mais simples, encontrando seu próprio contexto em uma
unidade mais complexa. Ele afirma que “todo agrupamento efetivo de unidades linguísticas
liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma
operação” (Jakobson, 2007, p. 39). Por sua vez, a seleção entre termos alternativos “implica a
possibilidade de substituir um termo pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e
diferente em outro” (Jakobson, 2007, p. 40), de modo que consistem em duas faces de uma
mesma operação, a seleção e a substituição.
O interesse do linguista pelas afasias se encontra no fato de que os distúrbios da fala
podem afetar, em graus distintos, a capacidade que o indivíduo possui de fazer combinações
e/ou seleções de unidades linguísticas. De fato, prossegue Jakobson (2007), “a questão de
saber qual das duas operações é principalmente afetada se revela ser de primordial
importância para a descrição, análise e classificação das diferentes formas de afasia” (p. 41).
36

Assim, para Jakobson (2007) existem dois tipos de afasia, de acordo com a deficiência
principal encontrada na faculdade de seleção e substituição, analisada segundo o distúrbio da
similaridade; ou na faculdade de combinação e contexto, analisada no distúrbio da
contiguidade. No primeiro caso, há um prejuízo das operações metalinguísticas, enquanto no
segundo a dificuldade se encontra em preservar a hierarquia das unidades linguísticas. Desse
modo, existe uma incompatibilidade entre a metáfora e o distúrbio da similaridade e entre a
metonímia e o distúrbio da contiguidade, dois termos que discutiremos a partir de Lacan
(1957/1998g).

1.7 O significante e a questão da letra no inconsciente

No texto A Instância da Letra, Lacan (1957/1998g) aborda o inconsciente freudiano


com o suporte encontrado na linguística de Saussure e Jakobson. Como aponta Miller (1996),
Lacan descobre uma dimensão de escritura na própria fala (parole), de letra (gramma) na
fonia. O texto aponta que o escutado é apreensível, estruturável pela abordagem linguística. É
o que Lacan (1957/1998g) localiza na fala, para além da qual, “é toda uma estrutura de
linguagem que a experiência analítica descobre no inconsciente” (p. 498). O próprio título do
texto nos aponta certo ordenamento do conceito de inconsciente, que não pode ser concebido
como o lugar da desordem pulsional, da sede dos instintos, mas que se sistematiza, possuindo
um saber articulado, que se presentifica quando se escuta e quando se fala. Esse saber é
encontrado na lógica do significante, isto é, na letra9 que no inconsciente possui estatuto de
instância, de razão: a razão que foi descoberta desde Freud.
O uso do termo “instância” (do latim instare, estar em pé) no texto de Lacan, na
acepção de Nancy e Labarthe (1991), possui um sentido que pode remontar ao sistema
jurídico, referindo-se a uma solicitação que pressiona e que se faz com insistência, um
argumento, um processo que é fixado como autoridade judiciária e que, no francês moderno,
quer dizer autoridade com poder de decisão. Nessa acepção, a instância da letra supõe,
portanto, a autoridade da letra no inconsciente, a insistência da letra que, no inconsciente
9
Requer ao leitor a atenção para o fato de que, nesse momento do ensino de Lacan, contextualizado pelo texto A
instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, os termos “significante” e “letra” ainda são, muitas
vezes, intercambiáveis, tal como veremos na discussão que se segue. Todavia, Lacan caminhará para uma
distinção mais clara dos termos “significante” e “letra”, localizando na materialidade da letra o estatuto de real,
concernente ao gozo, em contraposição ao simbólico do significante. Nesse sentido, remetemos o leitor ao
terceiro capítulo de nosso estudo.
37

ocupa uma posição de comando, um lugar de destaque, de onde a letra tem poder de decisão e
exerce autoridade, de onde rege e legisla (Nancy e Labarthe, 1991). Para os autores, a noção
de letra designa a estrutura da linguagem, na medida em que o sujeito nela está implicado. O
sujeito, definido a partir da hegemonia dada por Lacan ao simbólico, é concebido em sua
literalidade, ou seja, capturado pela letra, ele é efeito da estrutura da linguagem, sendo esta
pré-existente a ele. Essa literalização está ligada à primariedade conferida ao significante, ao
fato do sujeito tomar emprestado da estrutura da linguagem a letra que, como designa Lacan,
é “este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (Lacan,
1957/1998, p. 498).
Sabemos que a noção de letra já havia sido abordada por Lacan em outros momentos.
Dois anos antes, em O Seminário sobre A carta roubada (1955), ao comentar sobre o
automatismo de repetição, Lacan diz que ele consiste na insistência da cadeia significante
própria do simbólico. A insistência tem seu correlato na ex-sistência, termo criado por Lacan
para designar um lugar excêntrico, onde convém situar o sujeito do inconsciente representado
por um significante (Lacan, 1955/1998f).
Em Além do Princípio de Prazer (1920/1996k), Freud nos dá um exemplo de seu neto
que, para simbolizar a ausência e a presença de sua mãe, utiliza-se de um carretel amarrado a
um fio. A criança joga o carretel, em um movimento de afastar e de aproximar o brinquedo,
emitindo um som, o par de significantes O e A, respectivamente. Freud interpreta os sons da
criança como referentes às palavras alemãs Fort (para longe) e Da (para perto). De modo que
a criança tenta ao nível da fala situar um par de significantes opostos, através dos quais possa
simbolizar a ausência e a presença da mãe. No jogo do carretel, a criança repete algo que para
ela foi desagradável, o que leva Freud a concluir que o automatismo de repetição pode se
colocar a serviço da pulsão de morte (Freud, 1920/1996k).
Esse exemplo é tomado com o intuito de ilustrar que na cadeia significante temos um
significante que mantém com o outro uma relação de oposição, definindo-se somente pela
diferença, uma mínima oposição simbólica binária grafada como S1 – S2, a qual Miller
(1994) aponta como a herança direta da hipótese estruturalista no ensino de Lacan: “O
significante só se constitui por uma reunião sincrônica e enumerável, na qual qualquer um só
se sustenta pelo princípio de sua oposição a cada um dos demais” (Lacan, 1960/1998l, p.
820). Assim, a excentricidade do sujeito do inconsciente, apontada no termo ex-sistência,
decorre de que o sujeito só pode aparecer como efeito de significação entre o S1 (significante
índice um, significante mestre) e o S2 (significante índice 2), onde compreendemos que um
significante representa o sujeito para outro significante, visto que um significante não pode
38

significar-se a si mesmo (Lacan, 1960/1998l, p. 833) e que “o mínimo de significantes é dois”


(Miller, 1994, p. 92).
A ordem simbólica, como a razão que surge desde o pensamento freudiano, é uma
ordem constituinte do sujeito. Sendo assim, a cadeia simbólica ou cadeia significante teria
aqui a função de ligar e coordenar os outros registros contaminados com as incidências do
imaginário. A lei simbólica, calcada na cadeia de significantes e nos seus deslocamentos, rege
os efeitos psicanalíticos determinantes da estrutura do sujeito – foraclusão na psicose,
recalque na neurose e denegação na perversão (Lacan, 1955/1998f).
Lacan (1955/1998f) se serve de uma história, por meio da qual demonstra a
determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante, o qual Lacan
equivale à noção de letra. A letra, encontramo-la sendo portadora de duas naturezas:
significante e matéria – a letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo. A história consiste no
conto A Carta Roubada, do escritor estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849). Sobre o
conto, Lacan (1955/1998f) chama a atenção para um detalhe referente a “um resto que
analista algum há de desprezar, preparado como está para reter tudo o que é da alçada do
significante, ainda que nem sempre saiba o que fazer com isso” (p. 15). Nesse sentido, Lacan
atribui à experiência analítica o que Vieira (1998)10 designa com um “efeito postal”, que se
constitui no endereçamento do significante na transferência, sendo o analista o emissário
desses significantes, na condição de “cartas/letras roubadas que, ao menos por um tempo,
ficam com ele en soufrence sem serem retiradas, na transferência” (p. 9).
O cerne do conto de Poe está no fato de como os policiais parisienses, servindo-se dos
meios técnico-científicos prévios de investigação de que dispunham, não conseguiram
encontrar nos aposentos do Ministro D. a carta cujo conteúdo comprometia a rainha, de quem
ele a havia roubado. Segundo Lacan (1955/1998f), o investigador Dupin, consultado para
desvendar o mistério do roubo, deduz que, devido ao fato do Ministro ser, além de um
matemático, também um poeta, ele não está longe de ser louco. Se os inspetores de polícia
raciocinam matematicamente como um jogador, o Ministro D. reúne em si mesmo as
qualidades de matemático e de poeta. Assim, uma vez que a polícia, ao supor que um objeto
possa estar escondido apenas em locais como gavetas, tampos desmontáveis, forros
descosidos, chapas por trás de espelhos, espessuras de encadernação de livros, etc.,
desconhece o intelecto do homem em questão (Vieira, 1998).

10
Cf. em “Poe, Lacan e Derrida: o destino da letra”, Dissertação de Mestrado em Filosofia de autoria de Márcia
Maria Rosa Vieira (UFMG, 1998).
39

Poeta e matemático, o Ministro D. soube deixar o outro na errância, na medida em que


fez prevalecer a superioridade do poeta no que se refere à matéria de esconderijo, indo o poeta
além do que o raciocínio matemático e científico pudesse supor (Lacan, 1955/1998f). E desse
modo, o astuto Ministro enganou a inteligência policial, alterando a carta, virando-a do
avesso, desconfigurando-a da descrição inicial formal dada pela rainha aos policiais. A carta
alterada passa despercebida pelo raciocínio da polícia, como “um bilhete esgarçado que
parece abandonado no vão de um medíocre porta-cartas de cartolina” (p. 16), ou como se
referiu o investigador Dupin, “abaixo do nariz de todo o mundo, de forma a melhor evitar que
qualquer porção desse mundo a percebesse” (Poe, 1996, p. 88). Comenta Lacan (1955/1998f):

voltando a nossos policiais, como poderiam eles apoderar-se da carta, eles que a apanharam no lugar
onde estava escondida? Naquilo que reviravam entre os dedos, que outra coisa seguravam eles senão o
que não correspondia à descrição que tinham dela? A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo.
Fizeram-se trocadilhos, no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês. A
espécie de dejeto que os policiais manipulam nesse momento tampouco lhes revela sua outra natureza
por estar apenas meio rasgada. Um sinete diferente sobre um lacre de outra cor, e um outro estilo de
grafismo no sobrescrito são, ali, o mais inquebrantável dos esconderijos (p. 28, grifos nossos).

A palavra lettre na língua francesa, e a palavra letter na língua inglesa, podem ter o
significado, tanto de carta, quanto de letra. No trocadilho assinalado, ao tratar a carta como
portadora de uma mensagem e ao mesmo tempo dejeto, lixo (litter), Lacan se refere a uma
dupla essência da carta/letra: a primeira ligada ao significante, e a segunda em sua dimensão
de matéria, de resto, de lixo. Essa outra natureza está no fato de que, após ter alcançado sua
destinatária – a rainha – cumprindo assim sua função de mensageira, a carta/letra tem uma
outra essência: não estando somente do lado da mensagem, enquanto elemento de um sistema
significante, a carta/letra também possui uma materialidade, e, por isso, é manuseável,
podendo ser esquecida, rasgada, guardada, adulterada ou tratada como detrito, resto ou pedaço
de papel escrito (Mandil, 2003).
Lacan faz uso da expressão a letter, a litter (uma carta, uma letra, um lixo), referindo-
se a James Joyce (1882-1941), o que não é por acaso, uma vez que esse escritor irlandês
tratou sua escrita como restos de letras, como riscos literários ininteligíveis, rompendo com o
padrão linear literário tradicional. Assim, no conto, a carta/letra roubada passa despercebida,
adulterada como um lixo (litter), pelo fato de não corresponder à descrição dada pela rainha
aos policiais, ou seja, por não se encaixar numa cadeia pré-determinada de sentido. A carta
não responde aos policiais, uma vez que eles não a convocam no lugar em que sua forma
modificada seria capaz de atender (Mandil, 2003, p. 28).
A letra é, nesse sentido, designada como materialidade do significante. Materialidade
que “é singular em muitos pontos, o primeiro dos quais é não suportar ser partida”, diz Lacan
40

(1955/1998f, p. 26), mostrando que, mesmo sendo picada em pedaços, a carta/letra continuará
a ser aquilo que é. Pois o significante é uma unidade, é único e, por sua natureza simbólica,
constitui-se um símbolo de uma ausência. Lacan entende que os policiais, se não acharam a
carta/letra, é devido ao fato deles possuírem uma noção imutável da realidade. E, por isso, não
perceberam que o modo como eles buscaram a carta, transformou-a em um objeto que está ou
não em algum lugar. Viram a carta como objeto e não como significante. Pois, enquanto
símbolo de uma ausência, o significante difere dos objetos e, sendo assim, a carta/letra
enquanto significante “estará e não estará onde estiver, onde quer que vá”, como aquilo que
simboliza uma ausência, como o que falta em seu lugar. Sobre isso, Lacan (1955/1998f)
comenta:

É a imbecilidade realista, que não se limita a se dizer que nada, por mais que uma mão venha a enterrá-
lo nas entranhas do mundo, jamais estará escondido ali, uma vez que outra mão poderá encontrá-lo, e
que o que está escondido nunca é outra coisa senão aquilo que falta em seu lugar, como é expresso na
ficha de arquivo de um volume quando ele está perdido na biblioteca. E este, de fato, estando na
prateleira ou na estante ao lado estaria escondido, por mais visível que parecesse. É que só se pode dizer
que algo falta em seu lugar, à letra, daquilo que pode mudar de lugar, isto é, do simbólico. Pois, quanto
ao real, não importa que perturbação se possa introduzir nele, ele está sempre e de qualquer modo em
seu lugar, o real o leva colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso (p. 28).

Ao final do conto, a carta/letra recuperada por Dupin dos aposentos do Ministro, ao ser
entregue à polícia, tem sua importância reduzida. O que restou do significante depois de se
despir de sua mensagem para a rainha, torna-o sem valor no que se refere a seu texto, à sua
mensagem. Quando a carta/letra sai do poder do Ministro, dela resta somente um significante
sem significação, uma letra em sua materialidade (Vieira, 1998).

1.8 O inconsciente estruturado como uma linguagem: a primariedade do significante

Em A instância da letra, Lacan (1957/1998g) opera uma subversão no signo


saussuriano, atribuindo a ele traços característicos que irão distinguir um novo algoritmo.
Nesse texto é dado relevo à vertente significante da letra, de mensagem, de cadeia de sentido,
não havendo no geral, uma distinção entre letra e significante. A letra, que nesse contexto tem
instância no inconsciente, é colocada por Lacan (1957/1998g) como suporte material do
significante, esse “suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem”
(p. 498), e que na criação da significação é tida como uma das vertentes do efeito significante.
41

A letra é vertente do significante somente quando se encontra articulada em uma cadeia,


portando significação.
O texto indica, já a partir de seu título, o fato de Freud inaugurar na história das ideias
uma nova razão. Assim, no inconsciente rege uma razão que se atribui às leis da linguagem.
De modo que é ao significante que é conferido essa instância no inconsciente. Isso significa
que, no inconsciente, o significante encontra a sua supremacia, sua primariedade, justamente
quando Lacan realiza a subversão do signo, invertendo a relação significado e significante do
signo de Saussure (Figura 3).
Se, para o linguista genebrino, o signo é representado pelo significado, a barra e, sob
ela, o significante, para Lacan, o significante passa para cima da barra e o significado para
baixo, fazendo desaparecer o paralelismo existente entre os termos escritos sobre e sob a
barra. Nesse sentido, o significante não atende à função de representar o significado, sendo
uma ilusão pensar “que o significante tem que responder por sua equivalência a título de uma
significação qualquer” (Lacan, 1957/1998, p. 501).

Figura 3: Subversão do signo saussuriano no algoritmo proposto por Lacan:


significante sobre significado
Fonte; Lacan, 1957/1998g, p. 500

A elipse do signo saussuriano também é extinta, desconfigurando a unidade estrutural


do signo. A concepção de duas faces do signo é substituída pela concepção de duas etapas do
algoritmo, no sentido de que há um incessante deslizar do significante sobre o significado
(Lacan, 1957/1998g). A barra, que em Saussure era um elemento articulador e indissociável
das duas faces do signo, é acentuada em Lacan, ao mesmo tempo em que a relação recíproca
simbolizada pelas setas deixa de existir. Para Lacan, a barra reforçada equivale ao próprio
recalque, à resistência à significação, tornando-se um elemento de separação e não de
indissociabilidade entre significante e significado. Assim, a produção da significação
caracterizada pela transposição da barra, que relaciona significado e significante, não é
evidente como pensava Saussure. Lacan enfatiza a pura função do significante, independente
do significado, de modo que ao significante é conferida uma autonomia no que se refere a
qualquer significação dada a priori (Nancy e Labarthe, 1991).
42

Para Lacan esta pura função do significante implica que ele funcione como algoritmo,
ou seja, não tendo sentido nenhum. Sendo um vocábulo tomado emprestado da matemática
pela psicanálise, o algoritmo possibilita que seja possível trabalhar com algumas letras,
fazendo entre elas alguma articulação que permite obter por suas fórmulas, efeitos produtivos
de conhecimento, de sentido (Harari, 1990). Essa ausência de sentido do algoritmo está ligada
ao funcionamento autônomo da cadeia significante na medida em que esta é concebida como
uma cadeia de marcas diferenciais. Essas marcas por si mesmas não marcam nada além de
suas posições recíprocas, e são as relações ou as combinações entre elas que se fabricam
finalmente um sentido, sendo que este não se define por nenhuma mira de um conteúdo
prévio ou de um significado, seja ele empírico ou de verdade (Nancy e Labarthe, 1991).
“Ora, [diz Lacan] a estrutura do significante está, como se diz comumente da
linguagem, em ele ser articulado” (Lacan, 1957/1998, p. 504). Para Lacan, o inconsciente é
constituído pelo desfiladeiro dos significantes, que deslizam sem cessar em uma cadeia
associativa, não se detendo em significados. Ao subverter o signo saussuriano, separando
significado e significante, Lacan garante uma posição de comando – daí, instância – do
significante em produzir significados, a partir das relações que ele tem, não com o significado,
mas com outros significantes, formando a cadeia de linguagem (S1 – S2) que constitui o
inconsciente. Isso porque, em se tratando do inconsciente freudiano, interessa-se muito mais
pelo significante do que pelo significado. Pois, de fato, o significado não é outra coisa a não
ser outro significante, não existindo um significado fixo de nenhum significante, visto que o
significado pode remeter a outros, conforme as associações feitas pelo sujeito. Por exemplo,
ao tomarmos um significante e nele fixarmos um significado e em seguida formos definir este
último, encontraremos um outro significante e assim por diante (Quinet, 2008).
Nesse sentido, a interpretação analítica, não se interessa pelo significado, o léxico, o
sentido universal de um símbolo onírico, ou o sentido a priori de um sintoma. Nisso, a
psicanálise rompe com a função sígnica e cristalizada de um sintoma, para localizar na fala do
sujeito sua função significante que representa o sujeito para outro significante. Assim, por
exemplo, se durante a análise surge, na associação do paciente, o significante “cadeira”,
advindo de um sonho, em cujo relato esta palavra se impôs com sua imagem usual: uma
cadeira feita de determinado material, com três ou quatro pés, com sua função mobiliária, para
o inconsciente, o significante “cadeira” remete ao sujeito: uma cadeira de uma cena da
infância do sujeito, em torno da qual ocorreram determinadas coisas que marcaram sua vida
pulsional; a mãe, que deixa cair da cadeira seu filho ainda bebê; a cadeira de balanço do pai
agonizante do paciente. Tudo depende da articulação do significante com outro significante na
43

associação livre do sujeito, e não da articulação sígnica saussuriana entre significado e


significante.
Tomamos, nesse sentido, uma vinheta clínica extraída da literatura (Lima, 2014). Uma
paciente traz à análise uma fala, “Eu não consigo concluir nada que começo”, um ponto de
certeza, em torno do qual sua vida tinha se estruturado. Pois, de fato, a paciente é marcada por
interrupções. São cursos interrompidos, relações afetivas não resolvidas, endividamentos, e a
razão principal que a leva ao analista: uma tese de doutorado que já se prolongava por anos,
colocando sua vida profissional em risco. Autorizado pelo movimento iniciado pela paciente
na transferência, de buscar um lugar onde endereçar sua fala e nela o seu sintoma para que
pudesse ser decifrado, foi possível ao analista ir construindo sua história. A paciente era fruto
de um amor proibido, sendo que, quando tinha dois anos de idade, seu pai fora assassinado
por seu avô materno, devido ao pai não ter respeitado as ordens do avô para não mais se
encontrar com a mãe da paciente. Em decorrência desse assassinato, ela ficou sem o pai e sem
o avô que, embora desempenhasse as funções paternas, foi preso e passou vários anos na
cadeia (Lima, 2014).
Segundo o analista, pontos inconclusos constituíam a história da paciente, a partir de
então. Pontos que se repetiam com certa insistência a cada sessão, em que o analista escutava
significantes diferentes cada vez que a paciente os repetia. Assim, à frase inicial “Eu não
consigo concluir nada que começo” se seguiam uma cadeia de significantes: “Eu não consigo
terminar...”, “Eu não consigo concluir...”, “Eu não consigo encerrar...”, até que um dia, a
paciente, chegando à sessão muito angustiada, se deita no divã e exclama: “Não adianta! Eu
não consigo arrematar nada!”. Era a primeira vez que ela utilizava o significante arrematar.
Antes que a paciente dissesse mais alguma coisa, o analista logo intervém dizendo: “Como?
Não consegue a ré matar?” – no sentido de matar a ré, a culpada, uma posição que a paciente
assumia, levando às últimas consequências (Lima, 2014).
Na sessão seguinte a essa interpretação, a paciente se deita no divã e começa a dizer:
“não entendi nada do que aconteceu. Não vá me dizer que aquela estória de ‘matar a ré’ tem a
ver com a morte de meu pai...”. Para o analista que relatou o caso, uma operação se fez no a
posteriori, tornando possível se dar conta de que houve uma mudança subjetiva, uma vez que
as intervenções anteriores, alusivas a esse fato que marcou a vida da paciente, não surtiam
efeito. Foi necessário que o analista fizesse um corte para fazer surgir o sujeito das
significações preestabelecidas pelo Outro (Lima, 2014).
É isso o que Freud percebeu e que Lacan revisita com o significante: os sonhos, os
sintomas, os lapsos são todos da ordem do deslize, do chiste, dos equívocos da língua, dos
44

trocadilhos, e funcionam muito mais na base do jogo dos significantes do que na base dos
significados. Nesse sentido, a função da psicanálise seria conferir novos significados a
significantes, a acontecimentos da vida do sujeito que se repetem, como também analisar a
importância de certos significados, que constituem significantes-mestres, norteadores do
modo de viver do sujeito (Quinet, 2008).
O que Lacan propõe é que o discurso é dissociado de um sentido que compreenderia
uma intencionalidade consciente do sujeito. Tal dissociação pode ser verificada na mensagem
dissociada de significado que aparece, por exemplo, na análise dos sonhos que, como Freud já
havia anunciado, pressupõe uma desvinculação de toda forma pré-estabelecida de um sentido
universal. Como uma carta enigmática (rébus), a decifração segue uma lógica própria
construída de acordo com uma perspectiva de um significante não possuir a priori um
significado. Ao contrário, é por estar desligado de sentido e por causa disso, possuir amplas
possibilidades de ser ligado em novos contextos, que o significante é capaz de produzir uma
nova significação (Miranda, 2007).
Ao significante, Lacan (1957/1998g) atribui algumas propriedades. Uma delas é o fato
dos significantes se constituírem como unidades da estrutura de linguagem no inconsciente.
Essas unidades formam a cadeia significante, na medida em que são localizadas enquanto
elementos diferenciais uns dos outros, compondo a estrutura “segundo as leis de uma ordem
fechada” (Lacan, 1957/1998g, p. 504). Esses elementos diferenciais correspondem aos
fonemas na linguística e não devem ser concebidos em sua constância fonética ou em sua
variabilidade, mas sim, enquanto par de opostos ou, na acepção de Lacan (1957/1998g), um
sistema sincrônico dos pareamentos diferenciais que irão diferenciar as palavras em uma dada
língua.
Lacan (1957/1998g) considera haver um substrato topológico – localizado – dos
fonemas, à semelhança das letras nos caracteres móveis de imprensa – como os Didots e
Garamonds – sobre os quais flui um elemento essencial da fala. Esses caracteres de
impressão, Lacan vai denominá-los letra, designando-a como suporte, uma estrutura
essencialmente localizada do significante. Portanto, o inconsciente pode ser concebido como
um espaço tipográfico, um espaço de letras que estão articuladas umas às outras, constituindo-
se de acordo com linhas e pequenos quadrados que obedecem a leis topológicas (Lacan, 1957-
1958/1999). Sendo assim, a falta, o lapso ou a troca na tipografia, que é o espaço do
45

inconsciente11 e, portanto, lugar da cadeia de significantes e de letras, resultaria nas formações


do inconsciente, nos lapsos, nos chistes, nos esquecimentos e nos sintomas (Vieira, 2005).
Como veremos a seguir, são a metáfora e a metonímia as leis que compreendem esta
ordem fechada de composição da cadeia significante. Quinet (2008) comenta que essa ordem
fechada constitui o automatismo de repetição em sua estreita relação com a insistência da letra
no inconsciente. Concebe-se, então, que as cadeias significantes possuem uma amarração
umas nas outras, à semelhança de “anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de
anéis” (Lacan, 1957/1998, p. 505). De modo que o inconsciente é constituído por esses anéis
de cadeias significantes articulados como colares que se conectam entre si, em que um
significante pode fazer também parte de outra cadeia significante que, por sua vez, se conecta
a outros significantes, apresentando assim a sobredeterminação de toda formação do
inconsciente (Quinet, 2008).
A articulação significante pode ser descrita de acordo com os dois eixos saussurianos,
anteriormente já expostos: o eixo do sintagma (horizontal), das oposições, nas quais está
exposta a cadeia significante, numa sequência ordenada, que preza a combinação e a
contiguidade, em última instância, o campo da metonímia; e o eixo do paradigma (vertical),
das escolhas, da possibilidade de substituição de um termo por outro semelhante, que preza a
seleção, a similaridade, em última instância, o campo da metáfora. Para Nancy e Labarthe
(1991), a atenção de Lacan dada ao funcionamento da pura estrutura significante se mantém
além do ponto onde, estritamente do ponto de vista linguístico, as condições de possibilidade
fornecidas pela estrutura cedem o lugar à produção do sentido. Assim é que, dentro da
dimensão horizontal (sintagmática) ou linear do discurso, Lacan destaca não a realização ou
afivelamento do sentido, mas a perpétua antecipação do significante em relação ao sentido
(Nancy & Labarthe, 1991).
O significante se antecipa ao sentido, tendendo sempre a precipitar a significação,
desdobrando como que adiante dele sua dimensão. Lacan (1957/1998g) destaca esta
propriedade do significante, fazendo uso de frases incompletas, mostrando que no momento
em que a frase é interrompida antes do termo significativo é que a antecipação do sentido se
faz, produzindo assim um efeito significante justamente naquele ponto em que param de
colocar signos e suspendem o sentido: a frase “Eu nunca..., A verdade é que..., Talvez,

11
“Pode haver, na cadeia dos significantes, um significante ou uma letra que falta, que sempre falta na
tipografia. O espaço do significante, o espaço do inconsciente, é realmente um espaço tipográfico, que é preciso
tratar de definir como se constituindo de acordo com linhas e pequenos quadrados, e correspondente a leis
topológicas” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 153).
46

também... Nem por isso ela deixa de fazer sentido, e um sentido ainda mais opressivo na
medida em que se basta ao se fazer esperar” (p. 505).
A subversão da estrutura do signo se dá em benefício da autonomia do significante que
desliza sem cessar sobre o significado. Lacan justifica ser o significante e o significado de
ordens distintas, constituindo dois fluxos, cuja relação entre eles é tênue, sempre fluída e
prestes a se desfazer (Lacan, 1957/1998g). Assim, se existe um deslizamento incessante do
significante sobre o significado, e se o significado não cessa de se esquivar de ser presa do
significante num movimento que não para, é preciso compreender como se dá o efeito de
significação ou de sentido.
A resposta a esta operação de significação se encontra no que Lacan designou como
ponto de basta ou ponto de estofo (point de capiton). Trata-se de uma operação que é
provocada pelo analista que faz uma pontuação, no momento em que o significante para,
detendo o deslizamento que, caso contrário, seria indeterminado e infinito de significação
(Lacan, 1960/1998l). Para que se efetive uma significação, num dado momento, é preciso que,
de lugar em lugar, o significante interrompa o deslizamento do significado, através de um
fenômeno de ancoragem que fornece lugar à pontuação, “onde a significação constitui-se
como um produto acabado” (Lacan, 1960/1998l, p. 820).
O ponto de estofo é a operação de associação de um significado a um significante na
cadeia do discurso. No momento em que o analista pontua à analisante: “Como? Não
consegue a-ré-matar?”, há uma precipitação de sentido na sentença, uma amarração do
significante, não ao significado arrematar, mas a toda uma dimensão de culpa, de condenação
recalcadas no inconsciente de uma filha (a ré) que se colocava como causa da morte de seu
pai. O ponto de estofo é esse ponto de ancoragem do significante, sendo encontrado, segundo
Lacan (1960/1998l), “na função diacrônica da frase, na medida em que ela só fecha sua
significação com seu último termo, sendo cada termo antecipado na construção dos outros e,
inversamente, selando-lhe o sentido por seu efeito retroativo” (p. 820).
Lacan (1960/1998l) representa graficamente a operação do ponto de estofo,
apresentando dois vetores: o da cadeia significante SS’; e o vetor Δ$ que materializa o ponto
de estofo, “colcheteando” em dois pontos a cadeia significante S→S’, e produzindo uma
divisão no sujeito falante entre o dito e o dizer (Figura 4). Vê-se assim, que a obtenção de
sentido se dá de maneira retroativa, no a posteriori, sendo somente ao fim da frase que se
obtém a significação da mensagem articulada ao significante.
47

Figura 4: Representação gráfica do ponto de estofo


Fonte: Lacan, 1960/1998l, p. 819

1.9 Metáfora e metonímia: as leis do inconsciente

Sem dúvida, Lacan (1957/1998g) se refere à Jakobson, ao comentar o trabalho do


linguista sobre as afasias. Ele recorda que as lesões que ocorrem nos hemisférios cerebrais, e
que conferem à função da linguagem seu centro mental, proporcionam déficits que se
distribuem segundo “duas vertentes do efeito significante do que aqui chamamos de letra, na
criação da significação” (Lacan, 1957/1998g, p. 498). Se a linguagem abordada por Lacan não
é tomada sob o ponto de vista das “diversas funções somáticas e psíquicas que a desservem no
sujeito falante” (Lacan, 1957/1998g, p. 498), é para falar de sua estrutura e da função das duas
vertentes do efeito significante no inconsciente, que Lacan extrai dos déficits afásicos as
relações com a metáfora e a metonímia. Já foi visto que os distúrbios analisados por Jakobson
em Linguística e Comunicação consistem nos distúrbios da similaridade e da contiguidade.
Assim, ocorreria uma incapacidade entre a metáfora e o distúrbio da similaridade, e entre a
metonímia e o distúrbio da contiguidade. São essas duas figuras da retórica que Lacan irá
discutir em A Instância da Letra.
Lacan (1957/1998g) encontra na metáfora e na metonímia as duas formas de
articulação dos significantes, designadas por ele como as leis do inconsciente. Ele designa por
significância o momento da operação significante, o significante no seu momento ativo,
produtivo. A significância é o momento em que o significante passa para o estágio de
significado e, como consequência, passa a carregar-se de significação. Trata-se, portanto da
tradução do termo alemão Bedeutung (significação) encontrado na Traumdeutung (A
Interpretação dos Sonhos) de Freud, em que o prefixo be marca o ato ou a operação de dar
sentido, de tornar significante (Nancy e Labarthe, 1991).
48

Lacan (1957/1998g) relê A Interpretação dos Sonhos, sobre a qual constata que Freud
não fornece outra coisa senão as leis do inconsciente. Certamente, é com os recursos da
linguística que Lacan realiza essa leitura, podendo, então, afirmar que o trabalho do sonho
segue as leis do significante e que para além dos sonhos, “a experiência psicanalítica não é
outra coisa senão estabelecer que o inconsciente não deixa fora de seu campo nenhuma de
nossas ações” (Lacan, 1957/1998g, p. 518).
Texto freudiano de fundamental importância, para Lacan (1957/1998g), A
Interpretação dos Sonhos recupera toda a dimensão de estrutura literante – fonemática – em
que se articula e se analisa o significante no discurso do sonhador. Por isso, é necessário
entender o sonho ao pé da letra, como uma carta enigmática (rébus), em que as figuras não
naturais do barco sobre o telhado ou do homem de cabeça de vírgula, evocados no exemplo de
Freud (1900/1996e), apontam que as imagens do sonho apenas devem ser retidas por seu
valor de significante. Valor que nos indica que a imagem não tem nada a ver com sua
significação, mas, a exemplo dos hieróglifos do Egito, aponta-nos que se está diante de uma
escrita em que até a pretensa figura ideogramática é uma letra. Nesse sentido, Lacan busca
identificar em todos os elementos do trabalho do sonho, os elementos ou as funções da
própria letra. Isso consiste em que se substitua a decodificação pela decifração, reconhecendo
que, no sonho, ao invés de uma simples pantomima ou um mundo de imagens simbólicas,
trata-se de um verdadeiro sistema de escrita (Nancy & Labarthe, 1991).
É por isso que Freud de certa forma antecipa as formalizações da linguística de
Saussure em muitos aspectos, conforme Lacan (1957/1998) chama a atenção:

Peço desculpas por parecer estar eu soletrando o texto de Freud; não o faço apenas para mostrar o que
se ganha ao simplesmente não recortá-lo, mas para poder situar em balizas primárias, fundamentais e
nunca revogadas, o que aconteceu na psicanálise. Desde a origem, desconheceu-se o papel constitutivo
do significante no status que Freud fixou de imediato para o inconsciente, e segundo as mais precisas
modalidades formais. E isso por duas razões, das quais a menos percebida, naturalmente, é que essa
formalização não bastava, por si só, para que se reconhecesse a instância do significante, já que, quando
da publicação da Traumdeutung, antecipava-se em muito às formalizações da linguística, para as quais
sem dúvida poderíamos demonstrar que, por seu simples peso de verdade, ela abriu caminho (p. 516,
grifo nosso).

Lacan faz referência ao processo de transposição (entstellung) apontado por Freud no


trabalho do sonho (traumarbeit) como a precondição geral da função do sonho, fazendo
corresponder ao que Saussure depois designou como o deslizamento do significado sobre o
significante, sempre em ação inconsciente no discurso (Lacan, 1957/1998g). Desse
deslizamento, Lacan concebe que o significante, para fazer emergir um efeito de significação,
entra no significado, ou seja, é como se, de tempos em tempos, significante e significado
49

parassem de deslizar e se unissem para formar uma significação, como visto na pontuação do
analista na operação do ponto de estofo.
Lacan (1957/1998g) define uma tópica do inconsciente freudiano, ilustrada na fórmula
de uma função que, segundo Nancy e Labarthe (1991), pode ser lida como: a função do
significante é pôr um termo sobre uma barra resistente à significação (Figura 5):

Figura 5: A incidência do significante no significado


Fonte: Lacan, 1957/1998g, p. 518

Nessa fórmula, Lacan nos mostra que é na incidência do significante no significado


que podemos constatar os efeitos de significação. Esta se dá através de uma co-presença no
significado não apenas de elementos da cadeia do eixo horizontal, mas das contiguidades no
eixo vertical, ou seja, das possibilidades de transposição da barra resistente à significação.
Lacan afirma que há duas vertentes da incidência do significante no significado, localizadas
por ele no texto de Freud (1900/1996e): a condensação (Verdichtung), que segue a estrutura
de superposição de significantes, em que ganha campo a metáfora; e o deslocamento
(Verschiebung), que realiza um transporte da significação, demonstrando pela metonímia um
meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura (Lacan, 1957/1998g).
Lacan utiliza a noção de metáfora para mostrar que o mecanismo de condensação, no
qual Freud (1900/1996e) localiza uma figura composta que desponta no sonho, sem dúvida,
trata-se de uma superposição de significantes, isto é, de uma substituição de um significante
por outro. Lacan (1957/1998g) ilustra isso a partir de um verso do poema Booz adormecido,
de Victor Hugo: “Seu feixe não era avaro nem odiento...” (Victor Hugo, citado por Lacan,
1957/1998g, p. 510). Tal verso produz o que se denomina como “uma criação metafórica”,
“uma centelha poética”, que consiste na substituição de uma palavra por outra. Mas, podemos
constatar que essa centelha criadora de uma metáfora não brota da presentificação de dois
significantes, ou seja, não há duas imagens acústicas atualizadas simultaneamente. O efeito
metafórico só brota entre dois significantes, sendo que um deles substitui o outro assumindo o
seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua
conexão com o resto da cadeia. No poema de Victor Hugo, o verso remete à história bíblica
de Booz e faz referência à sua fecundidade. Pois, embora já fosse de idade avançada, Booz foi
capaz de gerar filhos em sua mulher. Sendo assim, “seu feixe” ganha outra significação, pois
50

sua presença no verso, substitui metaforicamente o órgão sexual do personagem hebreu


(Lacan, 1957/1998g).
A substituição de significantes pode ser escrita de forma simplificada como um
significante (S’) sobre outro (S), separados pela barra. Desse modo, podemos ver que o efeito
de poesia operado na metáfora, deixa o significado em suspenso, como no exemplo de Lacan,
em que o sentido do “feixe” de Booz não foi claramente dado, mas emergiu como efeito de
significação: (S’)Feixe/(S)Pênis. Lacan escreve a metáfora com uma fórmula, como a que
segue (Figura 6):

Figura 6: Fórmula lacaniana da metáfora


Fonte: Lacan, 1957/1998g, p. 519

Na figura acima, Lacan (1957/1998g) formula que a função significante de


substituição de um significante por outro é congruente ( ̴̳ ) à ultrapassagem da barra na
emergência da significação, um mais de sentido indicado pelo sinal positivo (+). A barra
existente entre os significantes S’ e S equivale ao próprio recalcamento, de modo que o
significante S’ substitui o significante S recalcado (sob a barra), sendo contudo, mantida entre
eles uma relação de similaridade.
A estrutura metafórica de articulação entre dois significantes é própria do sintoma, que
é definido como um nó de significação, no qual a falta de um significado exato indica que se
trata de uma articulação de significantes que continuam a deslizar (Quinet, 2008). O sintoma-
metáfora é determinado pela substituição de um significante corporal no lugar de um outro
significante recalcado, sendo que esta substituição torna a significação inacessível ao sujeito
do inconsciente. O significante recalcado constitui um enigma do trauma sexual, sendo o
significante substituto, aquele que, na cadeia significante, faz metáfora, fixando um sintoma,
um esquecimento, uma formação do inconsciente (Lacan, 1957/1998g).
Na metonímia – segunda lei do inconsciente – a articulação de um significante ao
outro se dá por deslizamento. O exemplo dado por Lacan é a expressão: “trinta velas”. Nessa
expressão, no lugar da palavra “barco”, temos a palavra “vela”, que é a parte de um barco.
Assim, a metonímia consiste em tomar a parte pelo todo – toma-se uma parte do barco, a vela,
para fazer referência ao barco como um todo – por meio da articulação significante,
51

implicando, nesse caso, na falta de significação própria à cadeia significante, que faz com que
haja um constante reenvio de significação, de significante em significante, característica da
associação livre. A fórmula proposta por Lacan para a metonímia é a que se segue (Figura 7):

Figura 7: Fórmula lacaniana da metonímia


Fonte: Lacan, 1957/1998g, p. 519

A fórmula da metonímia nos indica que a função de conexão do significante com o


outro significante (S...S’) é congruente à não cristalização de um significado, de modo que o
sinal negativo (-) representa aí a resistência à significação, o menos de sentido, mantendo a
barra que retém o significado fora do alcance do significante. O envio da significação sempre
a outro significante da cadeia metonímica corresponde à característica do desejo marcado pela
falta. Segundo Lacan (1958/1998i), a metonímia incide no campo do desejo, como

o efeito possibilitado por não haver nenhuma significação que não remeta a outra significação, e no qual
se produz o denominador mais comum entre elas, ou seja, o pouco de sentido [...] que se revela no
fundamento do desejo” (p. 628-629).

O significado assim mantido fora do alcance do significante pode, então, designar o


objeto do desejo como falta-a-ser, por aquilo que não se tem, por ser o desejo sempre o
desejo de outra coisa. Através dessa falta, o desejo é condenado a funcionar como o
remetente, ao longo do encadeamento, da metonímia dessa falta (Nancy e Labarthe, 1991).
52

2 INCONSCIENTE E PULSÃO: SABER E MEMORIAL DE GOZO

“...o sujeito experimenta, nesse intervalo,


uma Outra coisa a motivá-lo
que não os efeitos de sentido...”
(Lacan, 1960/1998k, p. 858).

2.1 Da estrutura de linguagem à pulsação temporal do inconsciente: um passo a mais

No primeiro capítulo, percorremos o momento em que Lacan concebe o inconsciente


como uma cadeia de significantes ordenada pelas leis da linguagem – metáfora e metonímia.
Ao observar as retificações dadas ao conceito do inconsciente no ensino de Lacan, Miller
(2011) destaca que a noção de inconsciente como transindividual ou intersubjetivo,
posteriormente retificada em favor da promoção do inconsciente como discurso advindo do
campo do Outro, encontrar-se-ia na perspectiva de um inconsciente distanciado da pulsão12.
Nesse sentido, segundo Miller (2011), Lacan pretendeu mostrar que o registro pulsional
estaria dominado pelo registro do inconsciente, de modo que o pulsional seria aquilo que
deveria ser traduzido pelo significante. Em O Seminário 11, Lacan (1964/2008c) irá
apresentar uma nova abordagem do conceito de inconsciente, na qual podemos constatar, não
um distanciamento, mas uma aliança entre o simbólico e a pulsão, entre o inconsciente
estruturado como linguagem e o gozo. Lacan recentraliza o inconsciente sobre uma
descontinuidade (Miller, 2000), descrevendo-o como homólogo a uma zona erógena, uma
borda que se abre e se fecha, um inconsciente pulsátil, marcado pela hiância de uma pulsação
temporal.
Para Lacan, o termo hiância13 vem a ser inerente ao conceito de inconsciente, posto
que este seja marcado pela descontinuidade que essa noção traduz. Ao discutir que é próprio

12
“Que el inconsciente se descifre supone que es articulable em términos de significante y significado y que, por
ende, hay que atribuir-le una estructura de lenguage. Por un lado tenemos la técnica del desciframiento del
inconsciente, por el otro, la teoria de los instintos, hasta de las pulsiones. Lacan elige com punto de partida en
Freud la perspectiva del inconsciente contra la de las pulsiones, si me permiten, y pretende demostrar que el
registro pulsional está dominado por el del inconsciente” (Miller, 2011, p. 218).
13
Segundo Harari (1990), hiância é um neologismo criado por Tomás Segóvia, tradutor dos Escritos de Lacan
para o espanhol. O termo francês béance foi traduzido por hiância, embora o que se encontra no dicionário é o
termo hiato, fenda, abertura, sendo do mesmo campo semântico dizer que há versos hiantes, onde se encontram
hiatos.
53

de um conceito portar em si alguma coisa de anticonceitual, de descontínuo e indefinido,


Lacan (1964/2008c) define a hiância como um furo que marca essa descontinuidade, aquilo
que sempre deixa algo sem poder ser explicado, produzindo um intervalo entre a causa e o
efeito. Assim, entre a causa e o seu efeito existe uma hiância onde algo claudica como
explicação, restando o indeterminado, o vazio e o indefinido que não quer dizer nada. Decorre
desse vazio, o fato de Lacan atribuir ao conceito do inconsciente um estatuto de hiância, de
vacilação ou de fenda, estando no intervalo da fenda situado o vazio, com um efeito de corte
marcado por essa hiância (Lacan, 1964/2008c).
Desse modo, dizer que o inconsciente determina a neurose – como a causa das marés é
atribuída às fases da lua ou a febre atribuída aos miasmas – implicaria a existência de um furo
que faz com que o inconsciente seja “nem ser nem não-ser”, mas que abrigue algo da ordem
do não realizado (Lacan, 1964/2008c, p. 37). Assim, o inconsciente se manifesta no hiato da
fenda, onde alguma coisa em um curto período de tempo se manifesta, sendo por um instante
trazido à luz por sua abertura – por exemplo, o lapso que escapole – para depois se fechar,
dando à apreensão um caráter evanescente (Lacan, 1964/2008c).
Lacan articula com a função do tempo a estrutura de hiância, de modo que ele traz a
noção de um inconsciente marcado por uma pulsação temporal. Uma vez que em um
momento o inconsciente se abre e produz um efeito de verdade para o sujeito analisante, e em
outro o inconsciente se fecha, deixando algo evadir-se para logo em seguida se evanescer.
Nesse sentido, diz Lacan (1964/2008c),

reencontramos aqui a estrutura escandida desse batimento da fenda (...) O aparecimento evanescente
entre um instante de ver em que algo é sempre elidido se não perdido da intuição mesma, e esse
momento elusivo em que, precisamente, a apreensão do inconsciente não conclui, em que se trata
sempre de uma recuperação lograda (p. 39).

Se o inconsciente é concebido como algo da ordem do evasivo, a estrutura tem aí a


função de cercá-lo, enfatizando-se, desse modo, sua condição de estrutura temporal. O
inconsciente evasivo é inconsistente e, sendo frágil no plano ôntico, ele tem um estatuto ético,
pois na abertura da hiância, nos furos do saber, ele se manifesta. Foi crendo nisso que Freud
buscou, em sua experiência com a clínica da neurose, aquilo que o desejo denuncia nos
tropeços da língua, nos sonhos, nos lapsos, nos chistes e nos sintomas (Lacan, 1964/2008c).
Lacan acentua na condição pulsativa do inconsciente, a necessidade de um
desvanecimento que lhe parece ser de algum modo inerente ao inconsciente. Ao invés de
suturar a hiância através de uma psicologização do inconsciente, tal como proposto pelas
terapias desenvolvidas pelos “ortopedeutas” pós-freudianos do “ego”, os quais Lacan critica
54

veemente, a psicanálise deve visar introduzir no domínio da causa a lei do significante.


Entretanto, entendemos que a estrutura da linguagem, como estrutura temporal, não deixa de
estar sujeita aos furos e às fendas. O que Lacan vem tratar, nesse sentido, é de situá-la como
uma ordem lógica, visando colocar em forma de significante, o real que aparece na forma do
lapso evadido pela fenda do inconsciente. Lacan (1964/2008c) diz que o real é da ordem de
um trauma, “na forma do que nele há de inassimilável”, trauma esse concebido “como
devendo ser tamponado pela homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento
definido pelo princípio do prazer” (p. 60), subjetivação que se opera pela estrutura da
linguagem que não confere ao inconsciente senão uma qualificação significante, um
ordenamento, acessível por seus efeitos de sentido, objetivável enquanto formações do
inconsciente.
Em O Seminário 11, o inconsciente é concebido como aquilo que aparece nas falhas
do discurso e não na ordem da linguagem. O inconsciente é da ordem daquilo que se
manifesta como vacilação, colocando em relevo as falhas, os tropeços, a claudicação. Cito
Lacan (1964/2008c):

Eu lhes soletrei, ponto por ponto, o funcionamento do que nos foi produzido primeiro por Freud como
fenômeno do inconsciente. No sonho, no ato falho, no chiste – o que é que chama atenção primeiro? É o
modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase
pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que
vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como
intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido
pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a exploração
freudiana encontra o que se passa no inconsciente (p. 32).

Lacan faz uma comparação dessa estrutura de pulsação temporal hiante do


inconsciente com a imagem da nassa. Sendo esse objeto um artifício de pesca, cuja estrutura
no fundo pode se entreabrir, a nassa é uma espécie de funil com uma tampa móvel na parte
inferior, que vem a ser distinta do alforje, da sacola (Lacan, 1964/2008c, p. 142). O
inconsciente, então, seria pensado como a nassa, diferenciando-se de um sistema fechado, ao
modo de uma sacola ou de um alforje, de onde se poderiam retirar elementos heteróclitos,
conteúdos e instintos. Se o inconsciente não se caracteriza como um alforje, um interior, um
fundo dentro do qual se encontraria a sua essência ou substância, é porque ele se trata de uma
pulsação de bordas na superfície, que determina seus movimentos de abertura e fechamento.
A nassa pressupõe esse momento de abertura – sendo que é no seu fundo que se realiza a
pesca do peixe – e seu posterior fechamento, enquanto a imagem do alforje pressupõe o
inconsciente como algo reservado, fechado em seu interior, onde o acesso se dá somente a
partir de fora (Lacan, 1964/2008c).
55

A característica de abertura e de fechamento trazida pela nassa delineia uma estrutura


de bordas mutativas, apontando para o furo que decorre de sua abertura. Sendo assim, a nassa
representaria o inconsciente como pulsação temporal, fundamentado em uma estrutura que se
abre e se fecha. Pulsação essa que caracteriza a presença de um ritmo, de um impulso seguido
de sua ausência e, novamente a presença de outro impulso. A esse respeito, Harari (1990)
comenta que a ausência de impulso não é infinita, pois o terceiro momento limita, fazendo
uma borda no segundo e, sendo assim, “dizer pulsação temporal é em um certo sentido uma
redundância. Se a pulsação não se desenvolvesse no tempo, não seria possível” (p. 71).
A hiância que implica furo, também implica vacilação, uma vez que o estatuto do
sujeito se abole no momento em que se abre a “nassa” do inconsciente. O sujeito fica em
estado de vacilação, atropelado pelo significante deixando cair o estatuto de sua certeza, o “eu
sou o que sou”, “eu sou como sou”, “eu digo somente o que quero dizer”, “eu sei aquilo que
me passa”, “quem melhor que eu para saber de mim mesmo”, etc. Tudo isso se desmorona
quando o aniquilamento que provoca o aparecimento do inconsciente faz vacilar o sujeito
quanto à sua certeza. A psicanálise, seguindo a descoberta de Freud e sua clínica com as
histéricas, teria por finalidade enunciar o desejo que se manifestou de modo evasivo ou
driblando a barreira da censura, reestabelecendo a continuidade daquilo que ficou descontínuo
sob a forma do esquecimento, do censurado, do não dito. Esse reestabelecimento de
continuidade é caracterizado como um primeiro movimento de localização de determinados
cortes, onde a hiância do inconsciente está situada. É nesse lugar de fenda e de
descontinuidade, que se observa a abertura pela qual se filtra a ordem do desejo (Harari,
1990).
Se o inconsciente alude àquilo que resiste, ao recalcado, seu aparecimento, portanto,
não é simples e nem “direto”. O recalcado retorna, provocando um efeito de surpresa, um
lapso, um escorregão que caracteriza o momento de abertura. A abertura do inconsciente é
essa presença fugaz, como momentos de cintilação, analisados através de uma intervenção
escandida do analista. Entretanto, o analista não está autorizado a fazer do inconsciente um
sentido co-extensivo, presente em todo o tempo, pois não se trata de um outro sentido das
palavras que serve ao analista para jogar com elas14 (Harari, 1990). Trata-se antes de
relacioná-las com o fato de que o sujeito fica como que atropelado pelo significante, pelo fato
de não trazer essas palavras todas consigo quando, no momento de abertura do inconsciente, o
campo do Outro faz sua aparição na forma daquilo que Lacan denomina de discurso do Outro.

14
Remeto o leitor à discussão feita na sessão 2.3 desse capítulo.
56

A pulsação temporal motiva a inserção do significante, por meio do qual se permite


ver no inconsciente os efeitos da fala sobre o sujeito. Enquanto estrutura de linguagem, o
significante captura o evasivo, o real que escapole, mas que se insere logo, como significante
quando do fechamento do inconsciente (Lacan, 1964/2008c). Por meio da interpretação do
analista operada na transferência, o inconsciente se fecha, desaparecendo em um certo ponto
do enunciado do sujeito. É nesse sentido que Lacan qualifica a neurose como a testemunha, “a
cicatriz do inconsciente” (Lacan, 1964/2008c, p. 27). O fechamento do inconsciente é o
momento que marca o ponto da resistência, em que o fenômeno da transferência se apresenta
como amor ou ódio ao analista, ou como transferência negativa. Desde Freud (1912/1996h),
sabemos que a transferência, em sua intensidade e persistência, se ela se torna o motor de uma
análise, paradoxalmente, também se constitui efeito e expressão da resistência. É nesse
sentido que Lacan (1964/2008c) evidencia que, “longe de ser a passagem de poderes ao
inconsciente, a transferência é, ao contrário, seu fechamento” (p. 129), pois ela marca um
modo pelo qual a comunicação do inconsciente se interrompe, tornando a se fechar.

2.2 Inconsciente e pulsão: uma comunidade topológica

A introdução do conceito de pulsão é trazida indiretamente por Lacan, a partir da


articulação com o conceito fundamental da transferência. Lacan (1964/2008c) define a
transferência como “a atualização da realidade do inconsciente” (p. 144), atualização através
da qual se acede à realidade do inconsciente, tal como Freud a encontrou em suas pacientes,
abrindo caminho para que o dispositivo transferencial pudesse ser pensado através da relação
entre o analista e analisante na direção do tratamento. Quando o analisante é chamado a
associar livremente, desencadeia-se o movimento de pulsação temporal do inconsciente, que
se abre e fecha, atualizando – pondo em ato (mise en acte) – a realidade do inconsciente.
Nesse sentido, Lacan qualifica seu ensino como transferencial, uma vez que ele eleva o
inconsciente aos efeitos da fala sobre o sujeito, numa “dimensão em que o sujeito se
determina no desenvolvimento dos efeitos da fala, em consequência do que, o inconsciente é
estruturado como uma linguagem” (Lacan, 1964/2008c, p. 147).
À medida que o inconsciente se atualiza na transferência, sua realidade se define
enquanto realidade sexual. Como nos diz Lacan (1964/2008c), “a transferência é aquilo que
manifesta na experiência a atualização da realidade do inconsciente, no que ela é sexualidade”
57

(p. 171). Assim, é através da sexualidade, considerada como “estritamente consubstancial à


dimensão do inconsciente” (Lacan, 1964/2008c, p. 147), que Lacan articula o inconsciente
com a pulsão. Nesse sentido, ele situa a sexualidade nos desfiles do significante (la sexualité
dans les défilés du signifiant). Como ressalta Pissetta (2012), o termo francês défilé, ao ser
traduzido para o espanhol como desfiladero, comporta o sentido de passagem estreita, de
garganta ou passo. Em português, a acepção do termo desfile sugere, por sua vez, o sentido de
sucessão, de encadeamento e desenrolamento. Isso nos possibilita compreender a proposta de
Lacan, de que a sexualidade não somente se imiscui na sucessão dos significantes, mas
também, marca um espaço que dispõe intervalos, nas alternâncias dos significantes (sobre isso
haveremos de retornar na discussão da sessão 2.3 desse capítulo).
Segundo Marie Hélène Brousse (1997), ao afirmar a realidade do inconsciente como
realidade sexual, Lacan diferencia a sexualidade no campo biológico e no campo social.
Enquanto a sexualidade biológica se orientaria para a reprodução ou para a necessidade do ser
vivo no que concerne à transmissão da vida e da espécie, a sexualidade social estaria
orientada pela busca de filiação ou aliança, na transmissão de um nome, na passagem de um
significante do indivíduo a outro, fazendo introduzir o sujeito na combinatória de significantes
(Brousse, 1997). Nesse sentido, fazendo referência a Lévi-Strauss, Lacan (1964/2008c) afirma
que o estruturalismo está integrado à realidade sexual do inconsciente, apontando uma
afinidade dos enigmas da sexualidade com o jogo dos significantes (p. 148-149).
É nesse jogo dos significantes que Lacan introduz a pulsão, articulando a sexualidade
humana com a estrutura de linguagem. A imersão do sujeito na linguagem tem como
consequência uma barra posta pelo significante naquilo que se refere à necessidade biológica
do ser, inserindo o sujeito no circuito da pulsão. A pulsão é, nesse sentido, o resultado da
operação do significante, da demanda do Outro sobre a necessidade do pequeno infans, o que
acarreta, contudo, a produção de um resto, de algo que escapa a essa operação, e que se refere
à ordem do desejo (Brousse, 1997).
Lacan (1964/2008c) distingue a pulsão do instinto, que marca a grande confusão de
tradução, na obra de Freud, do termo alemão Trieb (pulsão) para o inglês Instinct (instinto),
como se os dois termos fossem iguais. Distingue-se então um campo dos instintos e um
campo pulsional. Temos o primeiro como o campo das necessidades (Not), daquilo que é
indispensável à autopreservação, e o segundo o da exigência pulsional (Bederfünis). Os dois
campos são reais, na medida em que sua fonte está no corpo, como nos diz Freud
(1915/1996i), sendo à pulsão conferida uma dimensão limítrofe de algo que se origina no
corpo e alcança o psíquico. A pulsão se difere, assim, da necessidade, “justamente porque
58

nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão” (Lacan, 1964/2008c, p.
165).
Desse modo, Lacan diferencia o prazer da pulsão do prazer instintual, tendo no
princípio do prazer a regra do instinto mais profundo. Porém, o instinto sob o qual a
necessidade repousa é desprovido de erotismo, tratando-se de um real neutro, como diz Lacan
(1964/2008c), um real dessexualizado, “o real neutro é o real dessexualizado” (p. 182). E
ainda acrescenta: “Que haja um real, isto não é absolutamente duvidoso. Que o sujeito só
tenha relação construtiva com esse real na dependência estreita do princípio do prazer, do
princípio do prazer não acossado pela pulsão” (Lacan, 1964/2008c, p. 182).
Jaanus (1997) comenta essa passagem, dizendo que isso não significa que o real seja
desprovido de prazer, mas que o princípio do prazer, em seu estado inalterado e não acossado
pela pulsão é homeostático, não erótico. Antes de o sujeito ser marcado pela linguagem, há
um real de onde se origina o corpo, o orgânico, mas que é da ordem de um instinto
dessexualizado. Nesse sentido, o comer porque se tem fome é uma coisa, como diz Lacan
(1964/2008c), “a fera sai de sua cova querens quem devoret, e quando ela encontrou o que ela
tem para morder, ela está satisfeita, ela digere” (p. 163). De outro modo, o comer em um
sonho – como Aninha, a filha de Freud15, em seu sonho com torta, morangos, ovos e outras
guloseimas – não se trata pura e simplesmente de necessidade: “O sonho só é possível em
razão da sexualização desses objetos – pois, vocês podem notar, Aninha só alucina os objetos
proibidos” (Lacan, 1964/2008c, p. 153). O “comer com os olhos” exige uma satisfação que se
encontra para além do campo da necessidade, pois implica erotização, e é nesse sentido que a
pulsão implica ser erótica. E o erotismo não pode ser encontrado senão na sexualidade nos
desfiles do significante.
A necessidade do bebê, no caso da fome, por exemplo, possui um objeto
biologicamente relacionado a ela – o leite. Contudo, como o bebê está situado em um meio
linguístico, sabe-se que sua mãe é um ser falante, dele já falou antes que ele próprio nascesse,
e continuará a falar depois, no tempo em que fornece ao bebê os objetos de sua necessidade.
O uso que a mãe faz dos significantes afeta a alimentação da necessidade da criança. Na
condição de um Outro primordial, a mãe amamenta o bebê de uma maneira específica, em
determinadas ocasiões, decorrentes da regulação de suas presenças e ausências. Desse modo,
a necessidade é satisfeita, na medida em que o pequeno ser humano lidou com a demanda do

15
Referência ao sonho de Anna, filha de Freud, aos dezenove meses de idade, um dos vários exemplos relatados
por ele no capítulo 3 de A interpretação dos sonhos, no qual sustenta a afirmação de que “o sonho é a realização
de um desejo” (Freud, 1900/1996d, p. 164).
59

Outro. É nesse sentido que a pulsão se torna uma consequência da articulação da demanda do
Outro na linguagem, demanda que, sendo originária da articulação significante, não
corresponde à necessidade biológica. Algo se deixa escapar da correlação entre necessidade e
demanda que permite compreender a pulsão, e que se refere ao campo do desejo que, como
Lacan determina (1964/2008c), é “o ponto nodal pelo qual a pulsação do inconsciente está
ligada à realidade sexual” (p. 152). Sendo assim, Lacan vai mostrar como o desejo se situa na
dependência da demanda. Demanda essa, ele explica, que,

por se articular em significantes, deixa um resto metonímio que corre debaixo dela, elemento que não é
indeterminado, que é uma condição ao mesmo tempo absoluta e impegável, elemento necessariamente
em impasse, insatisfeito, impossível, desconhecido, elemento que se chama desejo. É isto que faz
junção com o campo definido por Freud como o da instância sexual, no nível do processo primário
(Lacan, 1964/2008c, p. 152).

Assim, é na articulação do inconsciente com a pulsão que Lacan retoma a aliança entre
o significante e o gozo, mostrando que o gozo não está em excesso em relação ao simbólico,
que o haveria de significantizá-lo na linguagem, mas é conexo, desfilando ao funcionamento
dos significantes. Nesse sentido, Lacan faz uma homologia entre o funcionamento do corpo
do vivente e o inconsciente estruturado como linguagem, propondo que a pulsão forma com o
inconsciente uma comunidade topológica, apontando, assim, a existência de algo em comum
entre os dois campos, naquilo que concerne à condição de ambas as estruturas serem
susceptíveis de abertura e fechamento. O inconsciente é homólogo às zonas erógenas, nas
quais a pulsão opera por sua estrutura de borda, bordas que funcionam em termos de abertura
e fechamento (Harari, 1990). Sendo assim, Lacan afirma que o inconsciente, enquanto hiância
e pulsação temporal, consiste naquilo “que algo no aparelho do corpo é estruturado da mesma
maneira, é em razão da unidade topológica das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel
no funcionamento do inconsciente” (Lacan, 1964/2008c, p. 178).

2.3 Do sentido ao não senso dos significantes e a questão da interpretação: a alienação e


a separação

Em O Seminário 11, Lacan introduz um esquema topológico com o intuito de dar


conta de como o sujeito se constitui. Em primeiro lugar, ele opõe dois campos em relação à
entrada do inconsciente: o campo do ser, onde se situa o sujeito, e o campo do sentido, lugar
do Outro. O campo do Outro “é o lugar em que se situa a cadeia significante que comanda
60

tudo o que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que
aparecer” (Lacan, 1964/2008c, p. 200). O sujeito só existe, na medida em que, no campo do
Outro surge o significante. Desse modo, o Outro é também representado como a cadeia
significante (S1 → S2), pois são necessários pelo menos dois significantes para definir sua
estrutura. O sujeito, então, não se trata de uma substância, mas de efeito de significante. Nesse
sentido, o Outro se situa como sendo a primeira causação do sujeito: “Se o pegamos em seu
nascimento no campo do Outro, a característica do sujeito do inconsciente é de estar, sob o
significante que desenvolve suas redes, suas cadeias e sua história, num lugar determinado”
(Lacan, 1964/2008c, p. 204). Assim, antes da submissão do sujeito pelo Outro, não há sujeito,
o sujeito é nada, um conjunto vazio, um sujeito por vir:

Se lhes falei do inconsciente como do que se abre e se fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo
pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito é esse surgimento que, justo
antes, como sujeito, não era nada, mas que apenas aparecido, se coagula em significante (Lacan,
1964/2008c, p. 194).

Entretanto, o fato de o sujeito não existir antes do Outro, não quer dizer que não exista
nada. Isso aponta para a existência de um ser vivo que só se torna sujeito quando, chamado ao
campo do Outro se coagula em significante. Lacan quer mostrar como o sujeito enquanto
efeito de linguagem e de fala está relacionado ao ser vivo. Trata-se, portanto, de ligar o sujeito
sem substância, posto que efeito de linguagem no Outro, ao gozo do ser que, como refere
Colette Soler (1997), é a “única substância em jogo na psicanálise” (p. 57).
Nota-se que Lacan (1964/2008c) situa em um mesmo lugar o sujeito e a pulsão,
afirmando que “é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se encontra manifesta
essencialmente a pulsão” (p. 200). Caracterizada por sua parcialidade, a pulsão não pode ser
representada em sua totalidade, uma vez que não há objeto específico de seu alvo, ou seja,
aquilo em relação ou através do qual a pulsão atinge sua finalidade, visto que o objeto é o que
tem de mais variável na pulsão (Freud, 1915/1996i). No que tange à sexualidade, ela não se
apresenta no psiquismo em sua tendência reprodutiva. Há um logro nessa tentativa, uma vez
que, “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou ser
de fêmea” (Lacan, 1964/2008c, p. 200). Nesse sentido, Lacan atribui o caminho da
constituição do sujeito, da partilha dos sexos como homem ou mulher, ao campo do Outro, no
que ele constitui o roteiro edipiano: “o que se deve fazer, como homem ou como mulher, o ser
humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro” (Lacan, 1964/2008c, p. 200).
Assim, a pulsão parcial é representante no psiquismo das consequências da sexualidade. Mas,
61

a sexualidade não está representada no psiquismo por si mesma em sua realização plena, uma
vez que se articula ao inconsciente por uma relação do sujeito com a falta.
Lacan traça duas dimensões dessa falta que se recobrem: uma falta simbólica e uma
falta real. A falta simbólica refere-se àquela que é da ordem de um defeito central e que tem a
ver com o advento do sujeito em relação ao Outro, “pelo fato de que o sujeito depende do
significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro” (Lacan, 1964/2008c, p.
201). Para Éric Laurent (1997), esse defeito central de que se trata está relacionado com a
impossibilidade de o sujeito poder ser inteiramente representado no Outro, pelo fato de existir
sempre um resto que define o ser sexualmente definido do sujeito. O que está em jogo para o
sujeito do inconsciente na sua relação com o Outro é responder à questão de seu ser (Soler,
1997), uma vez que, no seu advento ao campo da linguagem, o sujeito perde o seu ser, para se
encontrar na incerteza do fato de ser dividido pela linguagem. Como nos diz Lacan
(1964/2008c),

pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma
metade de si mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável
metonímia da fala (p. 184).

Assim, o caráter fundamentalmente parcial das pulsões vem introduzir uma dimensão
de falta, marcando o sujeito como dividido ($) entre a cadeia S1 – S2. Isso vem retomar a
outra falta destacada por Lacan, a falta real, anterior ao próprio sujeito, e que está ligada ao
surgimento do ser vivente pelo tipo de reprodução sexuada. Enquanto os seres assexuados –
como a ameba – se autoreproduzem pelo processo de cissiparidade, que não envolve os
gametas masculinos e femininos – e, assim podem se perpetuar vivos e invariáveis na espécie,
apresentando um caráter de imortalidade –, a reprodução sexuada necessita da união de
gametas de dois progenitores – macho e fêmea – para formar um ser vivo. No caso da
reprodução sexuada, haveria, então, uma perda do ser vivo de sua parte de vivo, ficando os
progenitores projetados para a morte, apontando a existência de algo de morte no campo da
sexualidade (Harari, 1990). Lacan diz que se trata de uma falta real, uma vez que “ela se
reporta a algo de real que é o que o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte
individual” (Lacan, 1964/2008c, p. 201).
Disso decorre a crítica de Lacan à busca de complemento no outro, enquanto metade
sexual que complementa o ser no amor, calcada no mito da divisão originária dos seres
humanos, de Aristófanes16. Para Lacan (1964/2008c), a experiência analítica, ao contrário,

16
Aristófanes, dramaturgo e comediante grego, que figura entre os personagens do diálogo platônico O
Banquete. O mito de Aristófanes, tratado nessa obra, faz referência à história da natureza humana constituída
62

substitui a procura pelo sujeito, “não do complemento sexual, mas da parte para sempre
perdida dele mesmo, constituída pelo fato de ele ser apenas um vivo sexuado, e não mais ser
imortal” (p. 201). Para Lacan, o objeto a caracteriza essa parte perdida do sujeito, que ele
procura encontrar no amor. Segundo ele, trata-se de um objeto privilegiado, do qual o sujeito
se separa, em uma automutilação17, para poder se constituir, deixando cair algo de si. A
automutilação comporta que uma parte do corpo caia, se desprenda e seja cedida. Nessa
queda, evoca-se uma falta, que é encarnada pelo objeto a, objeto da pulsão.
A partir da leitura de Freud, Lacan elenca quatro objetos que caracterizam as pulsões
parciais: a pulsão oral, a pulsão anal, a pulsão escópica e a pulsão invocante, sendo seus
respectivos objetos, o seio, as fezes, o olhar e a voz. Cada pulsão tem, além de seu objeto, a
sua respectiva zona erógena, localizada no corpo em forma de borda. São zonas de privilégio,
nas quais predominam uma estrutura de hiância. É nesse sentido que “a abertura e o
fechamento marcam a presença prevalente de certos orifícios, onde a experiência do que é
inconsciente e a zona erógena têm em comum esta condição hiante” (Harari, 1990, p. 114).
Entretanto, o objeto a não se refere àquilo que a psicanálise anglo-saxônica,
encabeçada pelos discípulos de Karl Abraham, denomina de relações de objeto (relação oral,
anal, entre outras), tratando-se, antes da relação do sujeito com a falta de objeto. Freud
(1918/1996j), em sua análise do Homem dos Lobos, quando vê no ato de ceder as fezes em
favor do outro, nos fala de um protótipo de castração, enquanto uma primeira ocasião na qual
um indivíduo “partilha um pedaço do seu próprio corpo com a finalidade de ganhar os favores
de qualquer outra pessoa a quem ame” (p. 92); ou também, no mesmo texto, ao fazer da
equação simbólica fezes – bebê – pênis, Freud se refere a “uma unidade, um conceito
inconsciente (...), conceito de um ‘pequeno’ que se separa do corpo de alguém” (p. 92). Em

inicialmente por uma unidade e sua posterior divisão por Zeus: “É então de há tanto tempo que o amor de um
pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de
dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque
cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento” (Platão,
1991, p. 60).
17
Na lição de 12 de fevereiro de 1964, em O Seminário, livro 11, ao se referir ao jogo do carretel da brincadeira
do Fort-Da do neto de Freud, relatada por este em Além do Princípio do Prazer (1920), Lacan diz que “a hiância
introduzida pela ausência [da mãe] desenhada, e sempre aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no
qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele
próprio por um fio que ele segura – onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a automutilação a partir
da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva (...) Se é verdade que o significante é a primeira
marca do sujeito, como não reconhecer aqui (...) que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, carretel, é
ali que devemos designar o sujeito. A este objeto daremos ulteriormente seu nome de álgebra lacaniana – o a
minúsculo”(Lacan, 1964/2008c, pp. 66-67). Na última lição do mesmo seminário, em 24 de junho de 1964,
Lacan, em tom poético, fala de uma mutilação, ao se referir ao objeto a: “Eu te amo,/Mas, porque
inexplicavelmente/Amo em ti algo/mais do que tu – o objeto a minúsculo,/Eu te mutilo” (Lacan, 1964/2008c, p.
255).
63

relação ao pênis, a castração não ocorre no real, não havendo uma separação do órgão. Trata-
se antes de algo que aparece separável, mas que na verdade não se separa, definido a partir do
simbólico e não como uma perda efetiva, em que um pedaço seria amputado do corpo. O
objeto a, trata-se de uma perda e da tentativa de reencontro com isso que se perdeu. A relação
não é com algo novo, mas se realiza sempre sobre a marca ou traço de um objeto constituído
como perdido (Harari, 1990).
Através das noções de alienação e separação, Lacan propõe duas operações
respectivamente relacionadas à constituição do sujeito e do objeto, mostrando como o sujeito
é efeito da cadeia significante e como a própria operação simbólica revela o gozo do objeto
(Zucchi, 2007). Nesse sentido, Lacan dá um passo adiante na formulação de sua tese principal
de que o inconsciente é estruturado como linguagem, pois, se a estrutura de significantes era
primeiramente concebida, a partir do corte linguístico, ela é agora articulada como função
topológica da borda, onde “a relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num
processo de hiância” (Lacan, 1964/2008c, p. 202). O Outro opera como produtor de sentidos
(S1 → S2). No entanto, como o Outro é marcado por uma relação de falta simbólica com o
sujeito, os sentidos que dele advém são incompletos e inconclusos. Assim, na intersecção
entre sujeito e Outro, há um lugar comum, um intervalo entre os dois campos, lugar em que se
pode evocar uma zona de relação, como zona de pulsação, onde se inscreve o que já não
comporta sentido, o não senso, S1 isolado, enquanto traço unário18 (Harari, 1990).
A alienação se refere ao momento em que o sujeito, ao se constituir como efeito de
significantes, identifica-se e se aliena ao campo do Outro. Entretanto, como o ser do sujeito
não pode ser totalmente coberto pelo sentido dado pelo Outro, pois, como foi discutido, há

18
Lacan fez uso do termo einziger Zug como traço unário, encontrado no texto freudiano Psicologia de Grupo e
Análise do Ego (1921/1996), onde Freud se refere a uma identificação substituta do laço do indivíduo com o
objeto, como uma identificação parcial, limitada porque ele toma somente um traço (einziger Zug) da pessoa
objeto. Sobre o traço unário, na lição de 22 de novembro de 1961 de O Seminário 9, L’Identification (inédito),
Lacan diz que “nós nos encontramos em tudo aquilo que se pode chamar a bateria do significante, confrontada a
esse traço único, a esse einziger Zug que já conhecemos, na medida em que, a rigor, ele poderia ser substituído
por todos os elementos do que constitui a cadeia significante, suportá-la, essa cadeia por si só, e simplesmente
por ser sempre o mesmo [“nous nous trouvons là dans tout ce qu'on peut appeler la batterie du signifiant,
confrontés à ce trait unique, à cet einziger Zug que nous connaissons déjà, pour autant qu'à la rigueur il
pourrait être substitué à tous les éléments de ce qui constitue la chaîne signifiante, la supporter cette chaîne à
lui seul, et simplement d'être toujours le même”] (Lacan 1961-1962, p. 26). Por sua vez, em O Seminário 11,
Lacan diz: “O primeiro significante é o entalhe, com o qual se marca, por exemplo, que o sujeito matou um
animal, mediante o que ele não se embrulhará em sua memória quando tiver matado mais dez. Ele não terá que
se lembrar de qual é qual, e é a partir desse traço unário que ele os contará. O traço unário, o próprio sujeito a ele
se refere, e de começo ele se marca como tatuagem, o primeiro dos significantes. Quando esse significante, esse
um, é instituído – a conta é um um. É ao nível, não do um, mas do um um, ao nível da conta, que o sujeito tem
que se situar como tal. Com o que os dois uns, já, se distinguem. Assim se marca a primeira esquize que faz com
que o sujeito como tal se distinga do signo em relação ao qual, de começo, pôde constituir-se como sujeito”
(Lacan, 1964/2008c, p. 140).
64

sempre uma perda, um defeito central constituinte da falta simbólica, tem-se instaurada uma
espécie de batalha entre a vida e a morte, entre o ser e o sentido. Pois se o sujeito escolhe o
ser, ele perde o sentido, mas, se escolhe o sentido, perde o ser, desvanecendo-se, no sentido de
uma afânise, não do desejo, como propôs Ernest Jones, mas como aporia, no sentido de um
fading, de um desaparecimento enquanto sujeito. A alienação, trata-se, portanto, de uma
escolha forçada, que tem na união lógica a operação subjacente que comporta que,
independente de qual escolha, tenha-se consequentemente um “nem um, nem outro” (Lacan,
1964/2008c).
Ao escolher forçadamente o sentido que não advém senão do campo do Outro, pelo
significante que faz surgir o sujeito de sua significação, o ser é eclipsado, desaparece frente ao
significante que, se o faz surgir, também o petrifica como S1, um significante unário. O
significante só funciona como tal, diz Lacan (1964/2008c), “reduzindo o sujeito em instância
a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o
chama a funcionar, a falar, como sujeito” (p. 203). O sujeito que não fala, mas que “isso fala
dele”, agora faz apelo ao Outro sobre o sentido de seu ser, sentido que requer um segundo
significante (S2) que forneça ao primeiro (S1) uma significação (Lacan, 1960/1998k). Desse
modo, o sujeito se divide em uma estrutura binária da cadeia significante, S1 – S2, como nos
explica Lacan (1964/2008c):

Podemos localizá-lo em nosso esquema dos mecanismos originais da alienação, esse


Vorstellungsrepräsentanz [representante da representação] nesse primeiro acasalamento significante
que nos permite conceber que o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o
significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro
significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito. Donde, divisão do sujeito –
quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading,
como desaparecimento. Há então, se assim podemos dizer, questão de vida e morte entre o significante
unário e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu desaparecimento. O
Vorstellungsrepräsentanz é o significante binário (p. 213).

Por sua vez, a separação, enquanto operação lógica que representa a intersecção entre
o sujeito e o Outro – entre o ser e o sentido – requer que o sujeito, assujeitado ao campo do
Outro, queira se separar da cadeia significante. Diferente da alienação cujo destino vacila
entre a petrificação e o sentido, a separação é da ordem do querer, como nos diz Lacan
(1964/2008c), “é por isso que ele [sujeito] precisa sair disso, tirar-se disso, e no tirar-se disso,
no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso”
(p. 184). A separação, então, supõe essa vontade de sair, que se calca numa vontade de saber
o que se é para além daquilo que o Outro diz, para além daquilo que se inscreve no Outro
65

sobre o sujeito que, conforme destaca Lacan (1960/1998k), “experimenta nesse intervalo, uma
Outra coisa a motivá-lo que não os efeitos de sentido” (p. 858).
O que eu sou no desejo do Outro? – tal poderá se constituir a questão que trará o
sujeito ao ponto de separação, como nos aponta Soler (1997). Entretanto, essa autora destaca
que a resposta a ser encontrada não poderia ser dada pelo Outro, uma vez que aquilo que dele
se pode capturar são os significantes conhecidos pelo sujeito em seu processo de alienação, e
também o vazio, referindo-se a esse ponto de intervalo entre significantes, ao qual Lacan se
refere, que se repete e constitui a “estrutura mais radical da cadeia significante, (...) o lugar
assombrado pela metonímia, veículo, ao menos como o ensinamos, do desejo” (Lacan,
1960/1998k, p. 858). Portanto, existe “Outra coisa”, e que se situa na ordem do ser, no campo
da pulsão, em última instância, no campo do gozo. É o gozo que responde à questão daquilo
que o sujeito é para além do significante, como comenta Soler (1997),

o intervalo, intersecção ou vazio entre sujeito e Outro não é tão vazio quanto parece, mas é uma lacuna
onde alguma coisa entra. É o objeto a, na medida em que o objeto a não é sempre de ordem lógica, mas
tem também uma consistência corpórea, e também na medida em que o objeto a é um plus de jouir,
como diz Lacan: um gozo a mais (p. 65).

Laurent (1997), em seu comentário, nos traz uma vinheta clínica interessante de um
menino nomeado pelo Outro como “menino mau”, representado como “menino mau” em
relação ao ideal de sua mãe. Nesse caso, comenta Laurent, “menino mau” opera como o
significante-mestre, funcionando para o sujeito como uma linha mestra durante toda a vida do
mesmo. Assim, o sujeito se identifica como “menino mau” e se comporta como tal, numa
identificação que o petrifica nesse significante-mestre.
Isolada uma das identificações do sujeito pela qual ele se encontra alienado ou
petrificado, é necessário encontrar a fantasia que acompanha essa identificação, a fantasia que
traz algum gozo por detrás desse significante “menino mau”. Isso nos mostra que o sujeito,
além de ser da ordem do significante, é também ser sexuado e, como “menino mau”,
experimenta outra coisa, obtendo algum gozo em relação a esse significante. Há um resto
concernente ao objeto em jogo na fantasia, que proporciona ao sujeito gozar desse
significante, objeto que constitui a outra parte do sujeito, um segundo modo de definir sua
falta, parte perdida do sujeito pela qual ele se constitui. Nesse caso, o sujeito tenta inscrever
no texto de sua fantasia uma representação do gozo no interior do Outro, tentando definir a si
próprio por meio dessa fantasia, cuja fórmula pode ser escrita como $◊a (Laurent, 1997). A
escritura da fantasia não concerne ao fato de que o sujeito esteja confrontado a um objeto,
mas, como comenta Harari (1990), permite compreender de que modo o objeto “é o lugar-
66

tenente do próprio sujeito; é o próprio sujeito como parte amputada de si. Ele não está
defrontado – como se fosse uma dimensão referida a um outro distante e distinto – senão que
o sujeito chega a ser esse objeto a” (Harari, 1990, p. 20).
Segundo Laurent (1997), com a discussão das categorias da constituição do sujeito,
Lacan pretendeu fazer um mapeamento do percurso de uma análise, do qual se podem derivar
implicações para o manejo da interpretação no tratamento analítico. Desse modo, Lacan
(1964/2008c) nos reporta à discussão ocorrida no VI Colóquio, promovido em 1960, pelo
psiquiatra Henri Ey, na cidade de Bonneval, dedicado ao tema do inconsciente freudiano.
Dentre psiquiatras, filósofos, psicólogos e psicanalistas, encontravam-se presentes Lacan e
seus dois eminentes discípulos, Serge Leclaire e Jean Laplanche. Estes últimos apresentaram
um artigo intitulado O inconsciente: um estudo psicanalítico19, através do qual queriam
demonstrar como uma análise do inconsciente poderia ser elaborada segundo as teses
lacanianas. No entanto, o artigo manifestou uma divergência entre os autores. E Lacan, por
sua vez, apresentou uma discussão sobre o mesmo artigo em um texto que se encontra
também publicado nos Escritos e intitulado Posição do Inconsciente no Colóquio de
Bonneval (Lacan, 1960/1998k).
Os discípulos de Lacan tomaram uma posição que se afastava da proposta de seu
mestre, no que se refere à afirmação radical deste último sobre a estrutura do inconsciente
como linguagem. Nesse sentido, eles afirmaram que o inconsciente estaria no lado oposto ao
da linguagem, de modo que a linguagem seria característica do processo secundário, sendo o
sistema pré-consciente o que estaria relacionado à linguagem20. E assim, implicava dizer que
não é a linguagem a condição do inconsciente, conforme defendia Lacan, mas “o inconsciente
é a condição da linguagem” (Laplanche & Leclaire, 1969, p. 136), desencadeando assim a
polêmica do Colóquio. O comentário de Lacan que se seguiu à exposição de seus discípulos,
vem reafirmar sua tese inicial de que o inconsciente é estruturado como linguagem,
criticamente contrária à dos primeiros: “o inconsciente é aquilo que dizemos, se quisermos
ouvir o que Freud apresenta em suas teses”, reitera Lacan (1960/1998k, p. 844). Ou ainda: “O
inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que opera para constituir o sujeito (...),
não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo
(ou a virtude) da consciência” (p. 844). Nesse sentido, Lacan desloca a concepção do
19
Ver segunda parte, O inconsciente e a linguagem, o artigo mencionado de Laplanche e Leclaire, seguido dos
comentários de Merleau-Ponty, Green, Minkovsky, Lefebvre e de Jacques Lacan. In: Ey, H. (1960). O
inconsciente: VI Colóquio de Boneval. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
20
“Freud falou explicitamente da linguagem, mas o que ele põe em relação com a linguagem é essencialmente o
pré-consciente e o processo que o caracteriza: o processo secundário que precisamente opõe seus diques e
subterfúgios ao livre jogo da energia libidinal” (Laplanche & Leclaire, 1969, p. 136).
67

inconsciente relacionada à consciência, para situá-la em relação ao lugar do Outro como


causação do sujeito. De modo que o analista participa do conceito do inconsciente, posto que
na experiência analítica ele constitui o seu destinatário:

Por conseguinte, não podemos deixar de incluir nosso discurso sobre o inconsciente na própria tese que
o enuncia, a de que a presença do inconsciente, por se situar no lugar do Outro, deve ser buscada, em
todo discurso, em sua enunciação (Lacan, 1960/1998k, p. 848).

Lacan (1964/2008c) faz uma referência ao caso de Philippe, trazido por Leclaire no
artigo do Colóquio. Tratava-se de um neurótico obsessivo com a idade aproximada de trinta
anos, que relata um sonho com um unicórnio (licorne, em francês), sonho do qual Leclaire
extrai uma série de interpretações, a partir de três lembranças da infância do paciente. Isolam-
se os significantes – os termos Lili, praia, areia, licorne, dentre outros – trazidos pelo texto
manifesto do sonho e pelas cadeias associativas do paciente, constituintes dos elementos da
cadeia inconsciente a ser descoberta. Assim se descobre o desejo de Philippe, complexo à
análise e composto de representações heterogêneas que parecem resumir o edifício heteróclito
que constitui aquilo que Laplanche e Leclaire (1960/1969) denominam como a “fantasia-
monumento do desejo do paciente” (p. 134).
Os sintomas de Philippe estariam ligados ao fato de ele ter sido definido como “pobre
Philippe”. “Pauvre Philippe”, assim era o modo com que sua mãe o nomeava sempre.
Leclaire enfatiza uma ligação entre os significantes pauvre (pobre) e licorne, a partir da
ênfase sonora das letras au (o) de pauvre (pobre) e do o da palavra licorne. Demonstra ainda
que era ao som de “pauvre Philippe” ligado à voz da mãe que o embalava, que o paciente foi
adormecido no momento em que se seguiu o sonho com o unicórnio. Leclaire faz uma
interpretação em que o unicórnio representaria o falo materno e, ao mesmo tempo, a recusa
por Philippe da castração materna, garantindo, através do sonho, que a mãe não era pobre,
mas viril, do ponto de vista fálico, assim representada pelo chifre do unicórnio. Do ponto de
vista do sentido, Leclaire faz uma conexão entre o sintoma obsessivo de Philippe e o sonho
central, podendo o paciente ser definido em termos de uma cadeia de letras, que ele isola –
Poôr (d) J’e – Li (Poordjeli) – a partir do nome completo do paciente, Philippe Georges
Elhuyani, “nome que ilustra de um golpe o parentesco essencial entre o fantasma fundamental
e o nome do sujeito” (Laplanche & Leclaire, 1960/1969, p. 201). Na sequência de letras se
incluem “pobre Philippe”, o eu “je” do sujeito e o “li” de licorne, Lili, Philippe e lit (leito).
Enfim, todos esses termos podiam ser incluídos e absurdamente justapostos nessa cadeia de
significantes-mestres que definiriam a vida do paciente (Laurent, 1997).
68

Para Lacan (1964/2008c), a intervenção de Leclaire, ao isolar a sequência advinda da


licorne, não se tratava de discutir a relação do paciente à sua dependência significativa como
foi colocado pelo aluno, mas justamente, de mostrar o “caráter irredutível e insensato da
cadeia de significantes” (p. 207). De modo que o que para Leclaire constituía o fim do
processo interpretativo, para Lacan, tratava-se apenas do prelúdio:

a alienação tem por consequência que a interpretação não tem de modo algum sua última instância no
fato de ela nos fornecer as significações da via onde caminha o psíquico que temos diante de nós. Esta
importância é apenas o prelúdio. A interpretação não visa tanto ao sentido quanto [mas a] reduzir os
significantes a seu não-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do
sujeito (Lacan, 1964/2008c, p. 207)21.

Nesse sentido, uma vez que se isolam os significantes-mestres na vida do sujeito,


Lacan nos chama à atenção para nos atermos à outra dimensão, àquilo que se refere ao modo
pelo qual o sujeito define a si mesmo, não pela lógica fálica, do sentido, mas pelo que há de
remanescente da operação fálica, ou seja, os seus objetos parciais, o objeto a como uma
logicização do objeto parcial (Laurent, 1997). Trata-se, então, de saber, nos diz Lacan
(1964/2008c), “em que campo se passa as diferentes coisas com as quais temos que nos haver
no campo da análise” (p. 239), a saber: no nível de um primeiro campo as coisas do Ich (isso)
que demarcam o campo das pulsões, e as outras, distintas do primeiro, que ocorrem no campo
do Outro, dos efeitos da cadeia significante. Dá-se um passo a mais no campo da experiência
analítica, na medida em que o sujeito precisa ser conduzido através de um outro labirinto, que
não se trata daquele de suas identificações, mas o dos seus modos de gozo, no nível das
pulsões (Ich), pelos quais o sujeito transforma o outro que ama em um objeto de gozo
(Laurent, 1997, p. 40).
No contexto da predominância da metáfora e da metonímia na teorização do
inconsciente estruturado como linguagem, Laplanche também havia ressaltado no referido
artigo que, se a metáfora é produzida pela substituição de um significante por outro e, por sua
vez, a metonímia constitui a ligação dos significantes em um mesmo nível, qualquer efeito de
sentido produzido na fórmula poderia ser admitido, abrindo-se um caminho sem restrições ao
meaning of meaning, quanto aos aspectos metafóricos e metonímicos da interpretação22.

21
“L’aliénation a pour conséquence que l’interprétation n’a point son dernier ressort en ce qu’elle nous livre les
significations de la voie où chemine le psychique que nous avons devant nous. Cette portée n’est que de prélude.
L’interprétation ne vise pas tellement le sens que de réduire les signifiants dans leur non-sens pour que nous
puissons retrouver les determinants de tout ela conduite du sujet” (Lacan, 1964/1973, p. 192).
22
O esquema da metáfora, manipulada por Laplanche e Leclaire, a partir da fórmula original de Lacan –
considerada equivocada por este –, “vem ilustrar essa passagem de maneira surpreendente: ao nível da
linguagem pré-consciente, a distinção do significante (as palavras) e do significado (as imagens) existe. Ao nível
da linguagem inconsciente, não existe senão imagens, a um tempo e indissoluvelmente em função de
significantes e de significados. Num sentido, pode-se dizer que a cadeia inconsciente é puro sentido, mas pode-se
69

Lacan (1964/2008c) chama a atenção a esse respeito, afirmando ser falso dizer, como foi dito
por Laplanche, que todas as interpretações são possíveis, “que a interpretação está aberta a
qualquer sentido, sob pretexto de que só se trata da ligação de um significante a um
significante e, consequentemente, uma ligação louca” (p. 242). Ao contrário, Lacan reitera: “a
interpretação não está aberta a todos os sentidos” (Lacan, 1964/2008c, p. 242).
Lacan adota de Freud o termo kern, que significa núcleo, um caroço enquanto um
significante isolado (S1) em seu sentido mais profundo e separado do sentido advindo do
significante binário (S1 – S2). Assim, ele se refere não ao fato de que a interpretação seja ela
mesma um não senso, mas que se trata de uma significação que tem por efeito fazer surgir um
significante irredutível. Faz-se necessário interpretar no nível dos significantes, mas que essa
interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido, a um meaning of meaning, pois a
interpretação é sempre uma significação aproximada, “o que está lá é rico e complexo quando
se trata do inconsciente do sujeito, e destinado a fazer surgir elementos significantes
irredutíveis, non-sensical, feitos de não-senso” (Lacan, 1964/2008c, p. 242-243).
O trabalho de Leclaire sobre “o sonho da licorne” ilustra para Lacan que a
interpretação significativa caminha para o não senso dos significantes. Assim, quando
Leclaire fornece, a propósito de Philippe, a fórmula Poordjeli, fazendo conexão entre duas
sílabas da palavra licorne, ele introduz em sua sequência toda uma cadeia em que se anima,
em que se torna vivo o desejo do sujeito, apontando para algo que vai mais longe, para além
do sentido dos significantes (Laurent, 1997). A esse propósito, cito Lacan (1964/2008c):

A interpretação não é aberta a todos os sentidos. Ela não é de modo algum não importa qual. É uma
interpretação significativa, e que não deve faltar. Isto não impede que não seja essa significação que é,
para o advento do sujeito, essencial. O que é essencial é que ele veja, para além dessa significação, a
qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está, como sujeito, assujeitado (p. 243).

2. 4 Inconsciente: saber e memorial de gozo

Em O Seminário, livro 17, O Avesso da Psicanálise – daqui em diante denominado O


Seminário 17, Lacan visa discutir as relações do discurso com o gozo. Discurso que não se
refere à enunciação, mas ao laço social, enquanto efeito radical da linguagem, onde as
enunciações se inscrevem. Assim, o discurso que foi se reformulando ao longo do percurso de

dizer também que ela é puro significante, puro não-sentido, ou então aberta a todos os sentidos” (Laplanche &
Leclaire, 1969, p. 143).
70

seu ensino não se tratará mais uma função de transindividualidade, ou relacionada à fala ou à
linguagem, como o propusera nos anos 195023. No contexto de O Seminário 17, Lacan (1969-
1970/1992) nos falará de “um discurso sem palavras” (p. 11), que subsiste sem palavras, uma
vez que as palavras só se organizam em certas relações fundamentais instauradas pela
linguagem e sem a qual elas não poderiam se manter. O instrumento da linguagem criaria
essas relações estáveis, no interior das quais se inscreveria algo mais amplo e que iria mais
além das enunciações efetivas, além das palavras. Segundo Lacan (1969-1970/1992),

os discursos em apreço nada mais são do que articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o
status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem
a palavra, que [a palavra] vem em seguida alojar-se neles (p. 177).

Na formalização dos discursos, Lacan toma como ponto de partida a articulação


significante, na forma fundamental de um significante que se articula a outro, resultando dessa
articulação a emergência do sujeito naquilo que o significante funciona como representante do
sujeito junto a outro significante. Nesse sentido, tem-se um significante primeiro (S1) que, ao
intervir no campo definido como o campo já estruturado de um saber – o significante S2 –
tem como efeito o sujeito dividido ($), um sujeito suposto, ausente ou ex-sistente, “na medida
em que representa esse traço específico, a ser distinguido do indivíduo vivo” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 12). Ao mesmo tempo desse trajeto onde o sujeito emerge como efeito de
articulação significante marcado pela linguagem, alguma coisa se produz enquanto perda e cai
enquanto resto. É o que Lacan designa como objeto a, função do objeto perdido na origem do
desejo, como formulou Freud, e como tentamos traçar em nossa discussão.
Segundo Miller (2005), aqui Lacan nos apresenta o simbólico sob um outro ponto de
vista. Ao formalizar o Discurso do Mestre, situando o saber no lugar do trabalho do escravo, o
significante se desloca da autonomia inicial para a heteronomia, passando a ser servo e não
senhor. Nesse sentido, o simbólico se encontrará “a serviço do gozo” (Miller, 2005, p. 178).
Comentamos no primeiro capítulo que, no início do seu ensino, Lacan reconhece que o
princípio do automatismo de repetição está pautado no que ele designa como a insistência da
cadeia significante. E, por outro lado, ele situa o sujeito do inconsciente como correlato à ex-
sistência, tratando-se de um lugar excêntrico à cadeia significante (Lacan, 1955/1998f). O
termo insistência visa situar a relação da repetição, enquanto simbólica, com a ex-sistência,
termo esse que exclui, e ao mesmo tempo liga a repetição ao seu esquematismo. Assim, Lacan

23
Em Função e Campo, Lacan afirma que o discurso do sujeito é o falar através dos símbolos do sintoma, uma
vez que o sintoma também é uma fala à espera de ser dita: “Para liberar a fala do sujeito, nós o introduzimos na
linguagem de seu desejo, ou seja, na linguagem primeira, na qual, para além do que ele nos diz dele, ele já nos
fala sem saber. E, principalmente, nos fala os símbolos do sintoma” (Lacan, 1953/1998, p. 294).
71

articula à repetição a ex-sistência, como elemento excêntrico, sob a forma de anulação, não
preso à cadeia simbólica, posto que seja um lugar vazio, onde se situa o sujeito ($) (Miller,
2005). Encontramos em Lacan (1959-60/2008b) a afirmação de que a estrutura da memória é
feita da articulação do par de significantes24 (S1 – S2), esse esquema mínimo que também
constitui a repetição. Sendo assim, o nascimento do sujeito reside em que o $ seja ex-sistente
à repetição, à articulação S1 – S2, situando-se no vazio que se encontra repercutido na
sequência da cadeia significante, de modo que, “se a repetição é memória, o sujeito é
esquecimento”, conclui Miller (2005, p. 180):

S1 – S2 (Memória)
$ (Esquecimento)

Todavia, em O Seminário 17, a função de ex-sistência à insistência da cadeia


significante não se trata mais de vazio, nem de anulação significante, visto que ela traz
alguma coisa que se coloca resistente à anulação: o objeto a, que encarna o gozo, como um
resto inassimilável que se situa para além do vazio. Sobre isso, Miller (2005) afirma que “o
que é ex-sistente à insistência significante não é simplesmente o nada, o vazio, a rasura. O que
é ex-sistente é um resto de gozo” (p. 181).
Lacan formaliza o matema do Discurso do Mestre, como a matriz para os outros três
discursos existentes, que ele propõe: Discurso da Histérica, Discurso Universitário e Discurso
do Analista. Utiliza-se dos quatro termos já introduzidos – S1, S2, a, $ – situando-os em
quatro lugares com funções fixas:

agente → trabalho
verdade produção

A composição dos outros discursos, a partir do Discurso do Mestre, dar-se-á pelos


lugares fixos, numa permutação circular e ordenada dos termos no sentido horário. Interessa-
nos nessa discussão ressaltar que o Discurso do Mestre é formalizado na articulação de um
significante (S1) a outro (S2), do inconsciente (Figura 8). O S1, o significante mestre, é
aquele que está no comando, e o que representa o sujeito para outro significante, o S2. Esse
último, denominado por Lacan de saber, constitui o lugar onde os outros significantes estão

24
“Em outros termos, a estrutura engendrada pela memória não deve mascarar para vocês, em nossa experiência,
a estrutura da própria memória, dado que ela é feita de uma articulação significante” (Lacan, 1959-60/2008b, p.
267).
72

articulados entre si, de modo a formar uma cadeia ou uma rede significante. Assim, como
vimos, no matema do Discurso do Mestre temos o saber (S2) ocupando o lugar do trabalho do
escravo que, segundo Lacan (1969-1970/1992), “invisivelmente, é que constitui um
inconsciente não revelado, que dá a conhecer se essa vida vale a pena que se fale dela” (p.
31):

Figura 8: Discurso do Mestre


Fonte: Lacan, 1969-1970/1992, p. 12

O inconsciente permite situar o desejo, o que constitui para Lacan (1969-1970/1992) o


primeiro passo dado por Freud na articulação do inconsciente. Passo que ele localiza em A
interpretação dos sonhos, em que Freud (1900/1996e) elabora a teoria do aparelho psíquico
como aparelho de desejo, calcado na experiência de satisfação. Freud nos mostra que, no
período da vida de um recém-nascido existiria inicialmente um aparelho, cujo esforço seria
manter-se livre de estímulos, tanto quanto fosse possível, à semelhança de um aparelho
reflexo, seguindo o princípio de que qualquer excitação sensorial que incidisse sobre ele
poderia ser prontamente descarregada por uma via motora. Tal processo de funcionamento
mental, conhecido como processo primário, é regido pelo princípio do prazer e tem o objetivo
de preservar o organismo de toda situação que cause desprazer configurado no aumento das
quantidades de excitação, ao mesmo tempo em que visa à obtenção de prazer que advém com
a descarga e a redução das excitações, mantendo um estado de homeostase (Freud,
1911/1996f).
Sabe-se, a partir disso que, quando o bebê sente fome, ele chora, grita, esperneia, visto
que existe uma necessidade cuja excitação interna caminha para uma ação motora. A
necessidade não cessa por si só, a não ser através de um auxílio externo, comumente trazido
pela mãe ao amamentar o bebê, o que faz cessar o estímulo. Assim, o grito possui para o bebê
uma função de sinal ao Outro materno. Esse último, ao fazer uma ação específica, fornece ao
bebê um objeto para sua satisfação. Esse estado primitivo é o que Freud denominou de
experiência de satisfação. Um componente dessa experiência de satisfação passa, então, a
existir como uma percepção específica – por exemplo, a nutrição que se segue à fome. A
partir da experiência de satisfação do bebê, fica registrada no sistema de memória (Mnem) a
imagem mnêmica da percepção da nutrição fornecida pela mãe, associada ao traço mnêmico
73

da excitação produzida pela necessidade de alimento. Assim, todas as vezes que se


desencadeia um estado de tensão, quando o repouso psíquico do bebê é abalado por
necessidades internas, ocorre o reinvestimento de uma moção psíquica na imagem mnêmica
da percepção que proporcionou ao recém-nascido a experiência de satisfação. Freud chama de
desejo (Wunsch) esse movimento de repetição de investimento das imagens mnêmicas da
percepção de um objeto real que uma vez trouxera satisfação ao bebê, e de realização de
desejo o reaparecimento dessa percepção. No entanto, a imagem mnêmica é reativada mesmo
que a presença real desse objeto não ocorra, produzindo uma alucinação como um caminho
mais curto à satisfação (Freud, 1900/1996e).
Essa primeira atividade psíquica calcada no processo primário teria como objetivo
formar uma “identidade perceptiva” a partir do interior do aparelho, uma repetição da
percepção vinculada à satisfação da necessidade, como algo que fosse idêntico à experiência
de satisfação. No entanto, a experiência alucinada de satisfação frustra o bebê, uma vez que
não põe fim à sua necessidade, fazendo persistir nele o estado de desprazer, que constitui um
acontecimento traumático. Sabemos que, para que esse estado não persistisse foi preciso que o
aparelho psíquico se desenvolvesse e estabelecesse um critério de verificação da realidade que
impedisse o processo de produção alucinatório. Esse outro princípio – o princípio da realidade
– é, então, introduzido com o intuito de testar se as percepções são reais ou não. Assim, ele
detém o processo de regressão, impedindo que ele se complete, de modo que o investimento
não possa ser feito sobre a imagem mnêmica, mas busque outros caminhos que levem ao
estabelecimento de uma identidade perceptiva a partir do exterior do aparelho psíquico
(Freud, 1900/1996e).
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/1996f) retorna a essa
questão, quando discute sobre a pulsão parcial, definindo-a como a busca de um prazer
apoiado num prazer já experimentado quando da primeira satisfação da necessidade. Ele a
exemplifica com o ato de chupar o dedo (o “chuchar”) com deleite, determinado pela busca de
um prazer já vivido e agora rememorado. No ato de chupar o dedo, os lábios da criança se
comportam como uma zona erógena – oral – cuja sensação prazerosa se originou da satisfação
que ela experimentou através da estimulação conferida pelo “fluxo cálido de leite” na
amamentação. Para Freud (1905/1996f), “a atividade sexual apoia-se primeiramente numa das
funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas” (p. 171).
Nesse sentido, conforme Cosentino (1992), citado por Bernardes (2003), a relação entre o
impulso libidinal e a satisfação de uma necessidade diz respeito à marca mnêmica, ou seja,
74

uma identidade perceptiva que esta última teria deixado, indicando uma tendência do aparelho
a repetir a percepção ligada à primeira satisfação.
A vivência de satisfação vinculada à imagem do objeto que se perdeu deixa, então,
uma marca mnêmica no aparelho psíquico de tal maneira que introduz o sujeito no circuito
pulsional, ao fazê-lo passar de um estado de demanda para o de desejo, do grito à fala, à
palavra, ao significante, marcando o corpo do vivente como ser falante (Bernardes, 2003).
Nesse sentido, podemos dizer que a memória freudiana introduz uma dimensão não
homeostática de prazer, de modo que o movimento que Freud denomina de desejo (Wunsch)
se afasta dos propósitos biológicos, não dizendo respeito à necessidade e à adaptação da
espécie. Lacan retoma no texto freudiano a discussão sobre a repetição no ser falante,
afirmando que nela não se trata de um efeito de memória no sentido biológico, mas no fato de
que “a repetição tem uma certa relação com aquilo que, desse saber, é o limite – e que se
chama gozo” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 13).
Lacan formula que a própria função da repetição é a dialética que ela mantém com o
gozo, isso que se encontra no limite do saber. Nesse sentido, o lugar de saber no discurso do
mestre – posto um saber velado, um saber que não se sabe – diz respeito ao funcionamento do
inconsciente regido por algo mais do que o princípio do prazer. Ao matemizar o Discurso do
Mestre, Lacan (1969-1970/1992) concebe o termo S2 como “o reino do significante, o
significante repetido em dois níveis, S1 e S1 outra vez” (p. 84). Assim, o S2 que constitui o
campo do saber articulado na cadeia significante consiste, na verdade, em uma repetição do
S1, que mostra uma tendência à repetição da primeira experiência de satisfação que marcou o
encontro com o objeto. Esse encontro constitui a própria motivação da repetição inconsciente
que, como ressalta Miller (2005), se não reencontra o objeto perdido, pelo menos toca o gozo
desse objeto: “a repetição aparece, de certo modo, como a memória do objeto perdido” (p.
182). Assim, quando S1 se repete, ele não é mais S1, e sim S2, pois se trata de uma repetição
de gozo, que implica, contudo, um reencontro com a falta de gozo. Como aponta Quinet
(2009), “essa repetição que não cessa forma a própria rede de significantes – eis o saber
inconsciente (S2), o qual se constitui, portanto, através da repetição do S1 comemorando o
gozo” (p. 31).
O encontro fracassado com o objeto perdido aponta para a impossibilidade do gozo
pleno e para uma perda inerente de gozo que a experiência original do sujeito implica. Lacan
(1969-1970/1992) diz que o que entra no circuito da repetição só pode estar relacionado à
perda, na medida em que “na própria repetição há desperdício de gozo” (p. 48). Para isso, ele
75

recorre à termodinâmica e nos fala de uma entropia25 para se referir à perda de gozo que a
repetição introduz, através da qual “vemos aparecer a função do objeto perdido, disso que [diz
Lacan] eu chamo a” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 50).
Lacan faz aqui, como sugere Miller (2005), uma “sínfise”26 do significante e do gozo.
De modo que o desejo, assim como o gozo aparecem como metonímicos, situando-se como
“alguma coisa embaixo” da cadeia significante, a correr sob ela. Esse lugar metonímico, como
lugar do intervalo, trata-se dessa ex-sistência, desse lugar que, tanto do ponto de vista do
desejo quanto do gozo são nomeados de modos distintos. Em relação ao desejo, trata-se do
efeito do significante, sendo esse último a causa, de modo que ao agir no nível do significante,
são obtidos os efeitos ao nível do desejo. Em relação ao gozo, ao contrário do efeito do
desejo, o lugar da ex-sistência se trata de uma motivação da repetição significante e de uma
finalidade da mesma. Se no nível do desejo temos o significante representando o sujeito para
um outro significante, no nível do gozo, o objeto a encarna aquilo que aparece como elemento
inassimilável e heterogêneo à repetição que ele condiciona (Miller, 2005).
Se na definição freudiana da atividade psíquica de um investimento do traço mnêmico,
já pudemos encontrar uma leitura lacaniana da repetição de uma vivência de gozo, que
implica algo que se encontra para além do princípio do prazer, é, contudo, no texto de 1920,
Além do princípio de prazer, que Lacan localiza um segundo tempo considerado acerca da
repetição em Freud. Ao examinar os sonhos traumáticos, a repetição na transferência e os
jogos infantis, Freud (1920/1996k) se questiona sobre como é possível que o aparelho
psíquico, na medida em que é comandado pelo princípio de prazer enquanto tendência a se
manter livre dos estímulos, esteja à procura de repetir situações que provoquem a dor e o
desprazer. Em primeiro lugar, ele constata uma tentativa do aparelho em elaborar a
experiência traumática, com o intuito de manter um controle sobre o estímulo excessivo. É o
caso dos sonhos traumáticos recorrentes nas pessoas acometidas por neuroses de guerra e
outras neuroses traumáticas. Nesse sentido, a função da repetição visa fazer uma “ligação”
psíquica de energia livre, com o intuito de passar a um domínio retroativo da situação
traumática. Todavia, ao considerar a repetição na transferência, Freud (1920/1996k) constatou
que há uma tendência à compulsão à repetição inerente ao campo pulsional, e que traz por si
mesma uma satisfação que se encontra além do próprio princípio do prazer. Foi a constatação
25
Segundo Houaiss (2001), por entropia pode-se conceber a quantidade de energia ou de calor que se perde num
sistema físico ou termodinâmico quando ocorrem mudanças de um estado a outro desse sistema, donde,
tendência ao estado de inércia, degradação, desordem de um sistema. Pode também significar uma volta ou
retorno sobre si mesmo, “ensimesmar-se”.
26
Para se referir à junção entre significante e gozo, Miller (2005) fala de uma sínfise, um conceito da anatomia,
que significa linha de junção e fusão entre dois ossos originalmente distintos (Houaiss, 2001).
76

clínica de uma compulsão à repetição, o que levou Freud a formular a pulsão de morte como
tendência à morte, ao retorno ao inanimado27. É nesse sentido que Lacan (1969-1970/1992)
situa o gozo, dizendo que “o caminho para a morte nada mais é do que aquilo que se chama
gozo” (p. 17).

É o gozo, termo designado em sentido próprio, que necessita a repetição. Na medida em que há busca
do gozo como repetição que se produz o que está em jogo no franqueamento freudiano – o que nos
interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é propriamente aquilo que se dirige
contra a vida. É no nível da repetição que Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura
do discurso, a articular o instinto de morte (Lacan, 1969-1970/1992, p. 47).

O ponto de inflexão, no texto de Freud de 1920, que interessa a Lacan, foi o fato de a
descoberta freudiana ter soletrado e escandido o inconsciente como um saber articulado, um
saber não sabido pelo sujeito, mas que o desconcerta quando o sujeito o encontra. Após esse
primeiro achado, que consiste em que os sujeitos falem e que ao falar tropecem, Freud é
conduzido a descobrir que existe algo além do princípio do prazer, cujo dado essencial, ele o
constata na compulsão à repetição. Esta, não se trata de um recomeço, mas, segundo Lacan
(1969-1970/1992), denota “um traço na medida em que comemora uma irrupção do gozo” (p.
81). Ao se referir à articulação de saber na cadeia significante (S1 – S2), Lacan (1969-
1970/1992) ressalta que,

basta darmos a esse traço unário a companhia de um outro traço, S2 após S1, para que, sendo
significantes também lícitos, possamos situar o que vem a ser seu sentido, por outro lado sua inserção
no gozo, do Outro – disso pelo qual ele [o saber] é o meio do gozo (p. 53, grifo nosso).

Lacan (1969-1970/1992) se refere ao traço unário, ao pequeno bastão, esse elemento


da escrita que se encontra na origem do significante, em última instância, do saber pelo qual
os analistas se interessam. Lacan o aporta para se referir à repetição como “identificação do
gozo” (p. 48). Sendo assim, tem-se tanto o sentido da repetição como busca de identidade
perceptiva com a experiência de gozo, quanto o sentido de que aquilo que se repete, repete-se
nos sulcos, nos trilhamentos criados pelos traços significantes da experiência de satisfação
perdida (Bernardes, 2003). É assim que a repetição ligada ao traço unário é saber que se
origina com o significante, mas é também aquilo que constitui uma comemoração, um
memorial de gozo. Com esse verbo comemorar, Lacan (1969-1970/1992) sintetiza bem a

27
“Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não
podemos fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos instintos e talvez da vida
orgânica em geral que até o presente não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente
acentuado. Parece, então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior
de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas,
ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à
vida orgânica” (Freud, 1920/1996, p. 47).
77

conexão existente entre o simbólico e a satisfação pulsional “na medida em que [o gozo]
ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, às tensões usuais da vida” (p. 50).
É interessante ressaltar como Lacan (1969-1970/1992) passa a se referir ao
significante como “aparelho de gozo” (p. 50) e não como uma estrutura de linguagem. Nesse
sentido, enquanto aparelho de gozo, o significante é um saber que trabalha, mas que produz
entropia, esse ponto de perda como único ponto regular por onde se tem acesso ao que está
em jogo no gozo. Ponto, diz Lacan (1969-1970/1992), no qual “se traduz, se arremata e se
motiva o que pertence à incidência do significante no destino do ser falante” (p. 53),
incidência, que tem pouco a ver com sua fala ou com sua palavra, mas com “a estrutura, que
se aparelha” (p. 53). Assim, o sentido que se estrutura como linguagem é efeito do
significante que se aparelha como gozo. Decorre disso esse jogo de palavras que a língua
francesa permite, por meio do qual Lacan aponta que “o ser humano, que sem dúvida é assim
chamado porque nada mais é que o húmus da linguagem, só tem que se emparelhar [de
s’appareiller, acasalar], digo, se apalavrar [s’apparoler, assonância com parole, palavra, fala]
com esse aparelho [appareil]”28 (p. 53). Notemos aqui, que a definição de húmus, à qual
Lacan atribui o ser humano – húmus da linguagem – tem a ver com resto, substância, uma vez
que a palavra húmus denota algo que, no solo, trata-se de uma substância escura resultante da
decomposição parcial pelos micro-organismos, de matérias vegetais e animais (Larousse,
2012), acepção aproximada da letra enquanto matéria, resto e dejeto (litter), como se poderá
ver no próximo capítulo desse estudo.

28
“No original: “L’être humain… qu’on appelle ainsi sans doute parce qu’il n’est que l’humus du langage [
Rires ] …n’a qu’à s’apparoler à cet appareil-là” (Lacan, 1969-1970/2009, p. 65).
78

3 UM NOVO ESTATUTO DO INCONSCIENTE: A LETRA MAIS ALÉM DO


SENTIDO

“Como, é claro, não estou certo


de que meu discurso seja entendido,
será preciso eu destacar uma oposição.
A escrita, a letra, está no real,
e o significante, no simbólico.
Desse jeito, isso lhes poderia servir de estribilho”
(Lacan, 1971/2009, p. 114).

3.1 Do sentido do significante ao gozo da letra

Na trajetória de Lacan, O Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse


semblante, proferido em 1971 – daqui em diante denominado O Seminário 18 – examina a
possibilidade de haver um discurso que não fosse da ordem do semblante. Podendo significar
aparência, ao mesmo tempo fenômeno, prestando-se a muitas significações, Lacan confere ao
termo semblante (semblant), um estatuto de equívoco concernente à própria ordem
significante: “Esse semblante é o significante em si” (Lacan, 1971/2009, p. 14). Assim, como
observa Cláudia Moraes Rego (2005) em sua tese Traço, letra e escrita na/da psicanálise, a
procura de Lacan por um discurso que não fosse da ordem do semblante é o intento de fugir
ou de se livrar da polissemia e da plurivocidade que vigora na ordem significante. Desse
modo, Lacan irá situar a letra, não como um efeito dos discursos, mas como um modo de
abordar o real enquanto impossível. Para Lacan (1971/2009),

se algo chamado inconsciente pode ser semidito como estrutura linguageira, é para que finalmente se
nos apareça o relevo do efeito de discurso que até então nos parecia impossível, ou seja, o mais-de-
gozar29. Será que isso significa, seguindo uma de minhas formulações, que, na medida em que era como
impossível, ele funcionava como real? Abro a questão porque, na verdade, nada implica que a irrupção
do discurso do inconsciente, por mais balbuciante que continue a ser, implique seja o que for, naquilo
que a precedia, que estivesse submetido à sua estrutura. O discurso inconsciente é uma emergência, é a
emergência de uma certa função do significante. O fato de ele haver existido até então como insígnia é
justamente a razão de eu o haver situado para vocês no princípio do semblante. Mas as consequências
de sua emergência, isso é que deve ser introduzido para que alguma coisa mude — algo que não pode

29
Na teoria lacaniana sobre o gozo encontram-se vertentes que diversificam o modo de satisfação pulsional
concernente ao gozo: conforme essa satisfação esteja franqueada pelo Complexo de Édipo e pela castração,
temos o gozo fálico; a vertente do gozo concernente ao objeto a, o objeto mais-de-gozar; ou ao Outro, como
gozo suplementar, ou gozo Outro (Vieira, 2005).
79

mudar, porque isso não é possível. Ao contrário, é por um discurso centrar-se como impossível, por seu
efeito, que ele teria alguma chance de ser um discurso que não fosse semblante (p. 21).

Pode-se localizar, nesse contexto, o movimento de Lacan de se caminhar para além do


inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem e capturado nos efeitos da cadeia
significante, em direção ao real que tem como seu expoente a letra desarticulada de sua
vertente de sentido? Em sua tese Os efeitos da Letra: Lacan leitor de Joyce, Ram Mandil
(2003) observa que o retorno das elaborações de Lacan centradas na letra, no início dos anos
1970, caminha no sentido de tornar possível orientar as construções de pontos importantes da
experiência analítica. Para o referido autor, a letra, que se encontrava subordinada ao campo
da fala e à ordem do significante articulado, vai, a partir de um outro estatuto, tornar-se uma
referência central no último período do ensino de Lacan, no qual se pode verificar uma
promoção da escrita e da letra em contraposição ao significante (Mandil, 2003).
Entretanto, as relações entre a letra e o significante nem sempre foram passíveis de
uma definição precisa (Milner, 1996; Mandil, 2003). Embora em O Seminário sobre A Carta
Roubada possamos encontrar na letra uma função de transmissão (letter) de uma mensagem,
ao mesmo tempo em que há nela outra natureza, inerente a uma materialidade (litter), nesse
contexto, segundo Miller (1996), a letra está relacionada à sua vertente significante. Lacan se
serve do conto de Poe para estender suas teorizações acerca do significante. Assim, ao
comentar que a singularidade da carta/letra “é por poder sofrer um desvio que ela tem um
trajeto que lhe é próprio” (Lacan, 1955/1998f, p. 33), Lacan encontra na não funcionalidade
do significante, o fato dele não se limitar à sua função de transportador de uma mensagem
(Mandil, 2003).
Dois anos depois, em A instância da letra, Lacan (1957/1998g) retorna ao tema, sendo
a letra aí pensada sob a primariedade do significante, enquanto elemento tipográfico. A letra
equivale a uma estrutura fonemática, por meio da qual Lacan visa trazer para o primeiro plano
das reflexões psicanalíticas a primazia da ordem simbólica, sobretudo no que se refere ao
campo da fala (Mandil, 2003). Para Jean-Claude Milner (1996), em A instância da letra
Lacan emprega duas noções: a literalidade da letra e o sentido do significante que estão
reciprocamente relacionados. Todavia, observa o autor, “as noções de letra e de significante
se obscurecem mutuamente; nem o caráter significante nem o caráter literal da matemática
poderiam receber status inteiramente determinado” (Milner, 1996, p. 97).
No início dos anos 1970, percebe-se uma progressão no ensino de Lacan, no sentido
de distinguir as noções de letra e de significante. Essa distinção, discutida por Milner (1996)
em A Obra Clara, constitui um dos pivôs daquilo que esse autor denomina como Segundo
80

Classicismo lacaniano. No Primeiro Classicismo, temos o período que segue, principalmente,


à Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Discurso de Roma, 1953), e os
desdobramentos concernentes à ênfase na estrutura de linguagem do inconsciente, na qual o
significante e a fala ganham relevância. No entanto, a imprecisão das noções de letra e
significante caracteriza uma das instabilidades desse período que, como destaca Milner
(1996), vem estabelecer esse segundo classicismo, como um segundo momento no qual Lacan
tenta transmitir a psicanálise através dos matemas, levando em conta a operação de
literalização promovida pela lógica e pelas matemáticas.
Consoante Milner (1996), se a distinção entre letra e significante pode ter ficado
confusa no Lacan dos anos 1950, ela se acentua e se aperfeiçoa ao longo do Segundo
Classicismo, no início dos anos 1970. De modo que esse autor destaca os principais elementos
dessa distinção. O significante, sendo somente relação, representa “para” e é aquilo por meio
do qual ele representa. Assim, ele só se define pela oposição, não adquirindo valor senão por
sua combinatória, encarnando o campo das relações de diferença com outros significantes. E,
sendo somente relação de diferença, o significante é sem positividade, sem qualidade e não
idêntico a si. Ao contrário, a letra é definida por sua identidade consigo mesma, por ser capaz
do princípio de identidade, sendo positiva em sua ordem. Milner (1996) destaca que a letra é
qualificada, no sentido de ter uma fisionomia, de encarnar uma materialidade, um suporte
sensível, um referente. Diferente do significante que só existe em oposição a outro, a letra,
com suas qualidades e identidade, pode ser rasurada, apagada, abolida. E sendo deslocável, é
manipulável, empunhável, transmissível, e,

por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo que ela é, no meio de um discurso, o suporte;
um significante não se transmite e nada se transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se
encontra, o sujeito para um outro significante (Milner, 1996, p. 104-105).

É na sétima lição de O Seminário 18, que a letra retorna à discussão, e retorna a partir
de um jogo de palavras de Lacan, que também dá título a um artigo de sua autoria em uma
edição da revista Littérature sobre o tema literatura e psicanálise. Lacan joga com a palavra
Literatura e diz Lituraterra, sendo esta criação significante da ordem de um Witz (chiste), para
só depois ir buscar legitimação etimológica: “não me submeto forçosamente à etimologia
quando me deixo levar pelo jogo de palavras com que às vezes se cria o chiste” (Lacan,
1971/2009, p. 105).
Lacan recorre ao léxico citando três radicais latinos: lino, litura, que significam
cobertura, rasura, correção, e liturarius, indicando um escrito coberto de rasuras; termos que
são distintos de littera, letra, origem latina da palavra literatura. Em sua pesquisa, Rego
81

(2005) também constatou lino, -is, livi, indicando o ato de aplicar gordura sobre, untar,
rasurar, o que também nos sugere manchar, sujar. Para o termo litura, encontrou-se o radical
grego lito, que significa pedra; litus, oris, borda, beira do mar, rio, costa, margem; e litura, æ,
significando rasura, mancha, correção, mancha que é produzida pela água em um escrito,
borrão, apagamento do que foi feito. Rego (2005) também encontrou duas variações de litura.
Uma sendo litoralis, que vem significar litoral, beira do mar e litorarius, litorâneo; e outra
sendo liturarius, que significa rasurado.
De acordo com Rego (2005), Lacan trabalha sucessivamente com três acepções do
termo Lituraterra: a literatura tomada como lituraterra “não passa de uma acomodação de
restos” (Lacan 1971/2009, p. 106), de lixo (litière de la lettre) – primeira acepção; situando-se
“entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral” (Lacan 1971/2009, p. 110) – segunda
acepção; e a letra como rasura ou apagamento – terceira acepção.
Fazendo opor literatura e lituraterra, Lacan traz esse outro campo semântico, litter,
para se referir ao lixo, ao resto, ao irredutível que se pode atribuir à letra, lituraterra.
Legitimando-se nos étimos que encontrou no auspicioso dicionário de Ernout e Meillet, Lacan
se compara ao escritor irlandês James Joyce, quando parte do equívoco dos jogos de
linguagem que levaram o escritor irlandês a deslizar de a letter para a litter, isto é, de uma
carta/letra para um lixo.

Esse dicionário, portanto, reportando-nos a ele, me é auspicioso, por se fundamentar no mesmo ponto
de partida de que comecei, num primeiro movimento, partida no sentido de recomeço, entendam,
partida do equívoco com que Joyce – é de James Joyce que estou falando – desliza de a letter para a
litter, de uma carta/letra, traduzo, para um lixo (Lacan, 1971/2009, pp. 105-106).

Sobre Joyce, Lacan (1971/2009) comenta um fato da biografia do escritor, em que, ao


lhe ter sido oferecida por um mecenas, uma “psicanálise” com Jung, ele não ganharia nada,
uma vez que, ao fazer da letra liteiralixo (litière de la lettre 30), Joyce vai direto “ao melhor
que se pode esperar da psicanálise em seu término” (Lacan, 1971/2003c, p. 15). Ao dizer que
Joyce faz lixo da letra, Lacan aponta para um modo singular de operação da escrita como
resto irredutível às dimensões de sentido, de modo que sua literatura seria “o primeiro
exemplo de um uso da letra que não seria do semblant porque estaria exatamente rompendo
com a função de encobrimento que é a essência da ordem significante” (Rego, 2005, p. 210).
Assim, Lacan traz uma ideia da escrita como impossível e como resto (litter) inassimilável.

30
Litière: no texto de Lacan, este termo se encontra mais próximo do sinônimo de liteira, enquanto lugar de
depósito de dejetos, restos, e por isso a tradução liteiralixo, “matéria feita de partículas absorventes, destinadas a
recolher dejetos de animais” (Larousse, 2012).
82

Lacan retoma O Seminário sobre A Carta Roubada, de 1955, do qual resgata a outra
natureza da carta/letra, que não a dos efeitos de sua mensagem. A carta que circula na trama
do conto e que transmite o conteúdo de sua mensagem – conteúdo enigmático, uma vez que o
conto não revela para o leitor o texto de sua mensagem – produz efeitos31 naqueles que a
detêm em seu poder. Nesse sentido, Lacan nos mostra que a letra, que em A instância da letra
se encontra como suporte material do significante ou estrutura localizada do significante, tem
também um valor de matéria que a distingue do significante que ela carrega. Assim, em
Lituraterra, Lacan (1971/2003c) aponta para o fato da letra não se tratar de uma metáfora da
epístola:

É esse o relato bem-feito do que distingue a carta do próprio significante que ela carrega. O que não
equivale a fazer metáfora da epístola. É que o conto [A Carta Roubada] consiste em que se transmita
como um passe de mágica a mensagem, com que a carta faz peripécias sem ela (p. 17).

Ao afirmar que, em O Seminário sobre a Carta Roubada, não fez da letra metáfora da
epístola, Lacan (1971/2009) aponta para o fato da carta se tratar de epístola mensageira, de
uma missiva, de um significante, “na medida em que ela [a carta/letra] o carrega em seu
envelope, já que se trata de uma carta no sentido da palavra epístola” (p. 107) e não letra.
Entretanto, mesmo a carta sendo mensagem e a letra aquilo que não se lê, posto que seja
desprovida de mensagem, a carta no conto faz peripécias sem a mensagem, produzindo efeitos
nos seus detentores, sem que a mensagem seja dada a conhecer. Ao mesmo tempo, não se
pode confundir letra com o significante, assevera Lacan, pois o fato de não se colocar como
uma metáfora da epístola também faz da carta/letra, não um efeito metafórico – de uma
substituição de um significante por outro que implique um mais de sentido – mas uma
carta/letra na qual se produz um apagamento da mensagem e dos efeitos significantes que ela
veicula, situando-a em sua materialidade desarticulada da vertente de sentido.
No entanto, não bastou a Lacan reafirmar a letra como materialidade, estrutura
tipográfica localizada do significante, ou um significante esvaziado de sentido. No contexto
de 1970, Lacan tratou de abordar a letra em sua conexão com o campo pulsional, o campo do
gozo (Vieira, 2005). Nesse sentido, segundo Mandil (2003), ao promover a letra sobre o

31
Segundo Almada (2014), em sua dissertação de mestrado Lacan, Poe e os efeitos de feminizacão pela
carta/letra: semblante, silêncio e gozo, trata-se de efeitos denominados de “feminização pela carta/letra”, cuja
noção Lacan extrai de seu retorno ao conto A Carta Roubada, no contexto em que profere O Seminário 18 e
escreve Lituraterra. Segundo a autora, Lacan apresenta duas interpretações para esses efeitos de feminização:
uma orientada pelo semblante fálico, da castração, que marca um limite do semblante, e outra que prioriza a
noção de letra, da impossibilidade enquanto ponto de silêncio nos semblantes.
83

significante, interessa a Lacan o fato do significante não possibilitar responder por tudo o que
se passa em uma psicanálise.

3.2 Uma metáfora geográfica: a fronteira e o litoral

Segundo Mandil (2003), ao mesmo tempo em que mostra sua distinção, Lacan busca
articular as duas dimensões da letra, e o faz a partir de uma metáfora geográfica. Com o termo
litoral, ele diferencia aquilo que é da dimensão da fronteira. Se a fronteira serve para designar
uma separação entre dois territórios que, no entanto, se apresentam homogêneos para aquele
que os transpõe, sendo eles separados apenas por uma falha geográfica, o litoral, por sua vez,
trata-se de um campo inteiro que serve de fronteira para outro campo completamente
estrangeiro e que não tem com o mesmo nenhum denominador comum. Nesse caso, não se
trata de pensar dois territórios separados por fronteira. A metáfora do litoral visa separar dois
campos, dois domínios heterogêneos e estrangeiros, por não haver reciprocidade entre os
mesmos: o campo do saber e o campo do gozo. Lacan se interessa também pelo fato de que o
litoral, ao mesmo tempo em que separa mar e terra, conjuga esses dois campos, fazendo
existir, na descontinuidade da passagem de um campo ao outro, um furo. É nessa condição de
litoral que Lacan (1971/2003c) situa a letra, sendo esta o elemento que enlaça os dois campos
descontínuos e distintos da experiência analítica: o saber articulado na cadeia significante e o
gozo.
“Será que a letra não é o literal a ser fundado no litoral?” – indaga Lacan (1971/2009,
p. 109). A letra tende a ser o litoral, prestando-se tanto ao gozo quando ao saber, de modo que
diante desse questionamento, Lacan situa a letra como aquilo que faz borda no furo do saber,
ou seja, a letra enquanto aquilo que desenha, que faz contorno ao buraco do saber, daquilo que
escapou ao discurso do semblante. Assim, como aponta Rego (2005), a letra se encontra como
litoral do furo que há no limite daquilo que a cadeia significante pode produzir de significado.
É nesse limite da interpretação que surge a questão do gozo que envolve a operação analítica,
sobre o qual, Lacan (1971/2009) ressalta ser curioso constatar

como a psicanalise se obriga, como que de modo próprio, a reconhecer o sentido daquilo que a letra, no
entanto, diz ao pé da letra, seria o caso de dizer, quando todas as suas interpretações se resumem ao
gozo. Entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral (pp. 109-110).
84

Segundo Lacan (1971/2009), o fato da letra se constituir como litoral não impede de
que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem, no qual a letra tem instância. Para
ele o que é necessário saber é como o inconsciente – efeito de linguagem – comanda essa
função da letra introduzida como lituraterra. Ele diz que a letra introduzida como instrumento
apropriado à inscrição de um discurso que não fosse do semblante não se torna imprópria para
servir ao que outrora ele próprio havia colocado em A instância da Letra, como podendo
designar a palavra tomada no lugar de outra, implicando um efeito de sentido via metáfora, ou
da palavra que leva à outra, via metonímia. A letra, diz Lacan (1971/2009), “simboliza
facilmente, portanto, todos esses efeitos de significante, mas isso de modo algum impõe que
ela, a letra, seja primária nesses mesmos efeitos para os quais me serve de instrumento” (p.
110). Assim, para Lacan não se trata de uma estruturação temporal, que seja primária ou
secundária, mas, como aponta Rego (2005), trata-se de uma outra estruturação que seria
topológica, onde algo na linguagem convoca o literal para o litoral. Nesse sentido, Lacan
(1971/2009) ressalta que

nada do que escrevi, com a ajuda de letras, sobre as formações do inconsciente, para resgatá-las daquilo
com que Freud as enuncia mais simplesmente, como fatos de linguagem, nada permite confundir, como
se tem feito, a letra com o significante. O que escrevi com a ajuda de letras sobre as formações do
inconsciente não autoriza a fazer da letra um significante, e a lhe atribuir, ainda por cima, uma primazia
em relação ao significante (p. 110).

Lacan considera importante fazer a diferença entre a escrita e a impressão, e por isso,
faz restrições quanto aos modelos de Freud no seu “Projeto para uma Psicologia Científica”,
de 1895, como havia sendo considerado por determinado discurso universitário32 como
fundamento de uma escrita. Nesse texto, Freud (1895/1996b) nomeia como facilitações ou
trilhamentos (Bahnungen) as rotas de impressão que possibilitam a incidência de memória nos
neurônios ψ. Ao contrário, Lacan prefere tirar proveito da Carta 52 a Fliess (Freud
(1896/1996c), onde encontra sob o termo cunhado por Freud de WZ (Wahrnehmungszeichen,
signos de percepção), aquilo que Freud pôde encontrar “de mais próximo do significante na
época em que Saussure ainda não o tinha trazido à luz” (Lacan 1971/2009, p. 111).

32
Em sua tese, Rego (2005) comenta que se trata de uma discussão velada de Lacan com Jacques Derrida.
Derrida reconhece no Projeto de 1895 o essencial de suas concepções sobre a escrita, o que Lacan vem
discordar.
85

3.3 Letra e significante: as “nuvens” em Lituraterra

Lacan nos fala de sua viagem ao Japão. Embora não fosse a primeira, ele assinala um
momento dessa segunda viagem, quando, no seu retorno, ao colher uma nova rota, viu pela
janela do avião, por entre as nuvens, a planície siberiana. No que concerne ao que Lacan nos
traz em O Seminário 18, essa visão só foi possível devido a ele ter, de certa maneira,
experimentado no Japão, no contato com a escrita japonesa, essa litoralidade da letra (Rego,
2005). A visão, Lacan a descreve:

E foi assim que me apareceu, irresistivelmente, numa circunstância a ser guardada na memória, isto é,
entre as nuvens, o escoamento das águas, único traço a aparecer, por operar ali ainda mais do que
indicando o relevo nessa latitude, naquilo que é chamado de planície siberiana, uma planície realmente
desolada, no sentido próprio, de qualquer vegetação, a não ser por reflexos, reflexos desse escoamento,
que empurram para a sombra aquilo que não reluz (Lacan, 1971/2009, p. 113).

Lacan vê por entre as nuvens do avião o escoamento das águas como o único traço que
aparece no relevo siberiano. Como um efeito de litoral, os reflexos desse escoamento criam
um campo separado que não reluz. O fato de o avião furar as nuvens faz com que os filetes de
água apareçam e desapareçam. Para Lacan, o escoamento constitui algo como um buquê,
através do qual ele distingue o traço primário e aquilo que ele apaga. Podendo significar tanto
um conjunto, um juntado, como também um espalhamento a partir de um centro, à
semelhança do delta de um rio, ambas as acepções para buquê são possíveis (Rego, 2005). No
entanto, a palavra buquê marca dois tempos na gênese do sujeito, o traço primário e o que o
apaga, a marca característica do traço unário e o apagamento da marca, sendo que “é pelo
apagamento do traço que o sujeito é designado”, recorda Lacan (1971/2005, p. 113). Portanto,
Lacan adverte que é necessário que se faça distinção da rasura e do traço, sendo este último
primário à rasura.
A letra seria colocada como rasura: “rasura de traço algum que seja anterior, é isso que
do litoral faz terra” (Lacan, 1971/2009, p. 113). Distintamente de um traço primário e a rasura
que o apaga e de cuja conjunção se origina o sujeito, Lacan separa a rasura do traço e diz que
a façanha de uma caligrafia consistiria em produzir sozinha, definitivamente, uma rasura sem
a anterioridade do traço, litura pura, rasura pura, cuja função seria “reproduzir a metade com
que o sujeito subsiste” (Lacan, 1971/2009, p. 113), sua metade outra, objeto perdido, lá onde
o sujeito subsiste sempre em busca dessa metade sem par. A letra como rasura seria análoga a
uma terra coberta de lituras, a “uma sucessão de traços que se recobrem, cada um deles
buscando em seu gesto, como tentativa de aproximação, a palavra apropriada para designar
86

aquilo que se quer dizer” (Mandil, 2003, p. 50). Aproximação daquilo que se coloca como o
irrepresentável, o impossível de se escrever. Se se faz uma referência à caligrafia,
introduzindo nessa dimensão uma rasura sozinha, isso pode nos sugerir a inexistência de um
referencial gramatical, do Outro que ordene a escrita, normatizando o que se errou ao
escrever, para ser corrigido? Nesse sentido, localiza-se um questionamento da ordem do
discurso e do semblante, trazido por Lacan, ao evocar Aristófanes e sua comédia As nuvens33,
no sentido de que este comediante rompe com os semblantes:

O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir
por entre as nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que Aristófanes me
conclama a descobrir o que acontece com o significante, ou seja, o semblante por excelência, se é de sua
ruptura que chove esse efeito em que se precipita o que era matéria em suspensão (Lacan, 1971/2009,
pp. 113-114, grifo nosso).

Laura Lustosa Rubião (2007), em sua tese Lacan leitor de comédias: contribuições a
uma ética do Bem-dizer, observa que a evocação de Lacan por Aristófanes, ao citar As Nuvens
– nuvens de Aristófanes – pretende “demonstrar a conexão entre o significante e o semblante,
cuja ruptura deixa entrever os efeitos de gozo” (p. 139). Cito Lacan (1971/2003c) do texto
Lituraterra, que segue nesse sentido, ao perguntar se a ruptura da nuvem dos semblantes que
dissolve o que constituía forma, fenômeno, meteoro, e sobre a qual a ciência opera ao
perpassar o aspecto, “não será também por dar adeus ao que dessa ruptura daria em gozo que
o mundo, ou igualmente o imundo, tem ali pulsão para figurar a vida?” (p. 22). O significante
é o semblante por excelência, diz Lacan. E, nesse sentido, a imagem das nuvens faz alusão à
esfera do significante, na textura vaporosa, volátil e instável que a nuvem representa. A
menção de Lacan das nuvens de Aristófanes segue nessa direção, quando nessa peça, segundo
Rubião (2007), as nuvens representam a particularidade mutante das palavras que servem para
tudo. A alusão entre as nuvens e o domínio dos semblantes pode ser claramente constatada no
fato das nuvens tocarem no campo do parecer, criando as pareidolias que podemos encontrar

33
A peça As Nuvens, de Aristófanes, apresentada no festival das Grandes Dionísias, no ano de 423 a.C., faz uma
crítica contra os sofistas – confundidos com o próprio Sócrates –, contra a pedagogia e a ética dos mesmos,
evidenciando as consequências negativas do modo de agir desses pensadores. A peça narra a história de
Strepsíades, “um velho fazendeiro às voltas com suas dívidas em grande parte contraídas pelo filho perdulário,
fanático por cavalos. Decidido a encontrar uma solução para seus problemas, procura Sócrates que presidia o
“pensatório”, espécie de escola propagadora dos conhecimentos sofísticos ou da arte de fazer a ‘pior causa
parecer a melhor’, por meio do ingresso em um ‘moinho de palavras’. Sócrates e seus discípulos não veneram os
deuses olímpicos, mas sim as nuvens, representadas na peça por um coro de mulheres. Saber fazer com as
palavras é o que demandava o velho campesino à escola socrática. Mas, não tendo demonstrado habilidade
suficiente para tanto, envia, a contragosto, o filho Fidipides em seu lugar. Este é apresentado aos pensamentos
justo e injusto, que travam um debate, do qual sai o último vencedor. Strepsíades consegue livrar-se de seus
credores por meio dos ensinamentos obtidos pelo filho, mas há uma reviravolta ao final, pois este é capaz de
provar, lançando mão dos mesmos ensinamentos, que é justo espancar o pai e o faz. Revoltado, Strepsíades
decide atear fogo no pensatório” (Rubião, 2007, p. 124).
87

no intercâmbio de suas imagens. Ao mesmo tempo, Rubião (2007) também destaca o


componente de violência de que a nuvens são dotadas, marcando assim a interrupção do seu
processo de transmutação, podendo gerar raios, trovoadas estrondosas, tempestades. Na peça
de Aristófanes “[a nuvem] é o elemento dramático que vincula dois campos heterogêneos: o
do campo do pensamento (etéreo, volátil) e o do corpo na sua materialidade escatológica de
resto e dejeto” (Rubião, 2007, p. 137).
Em seu curso intitulado De la naturaleza de los semblantes, Miller (2011) entende que
as sutilezas da categoria do termo semblante surgida tardiamente no percurso do ensino de
Lacan, constituem um passo no caminho dos nós borromeanos abordados por ele nos anos pós
1971. A seu entender, o semblante não pertence unicamente ao campo do engano e das
aparências, mas ao campo da verdade, de modo que “o ser falante está condenado ao
semblante”34 (Miller, 2011, p. 10). O comentador de Lacan localiza na teorização do Estádio
do Espelho, já o fato de que o eu depende do semelhante, e que o laço entre o eu e o
semelhante passa por uma relação com o semblante, sob a forma da aparência. De modo que
semblante e semelhante possuem a mesma raiz, similis, que cruzada com simul (conjunto) no
latim, formou o termo simulacro. Se, com os nós borromeanos, Lacan permite ver como
equivalentes os termos simbólico, imaginário e real, o semblante se coloca nesse meio
caminho como uma categoria contrária, antônima ao real. Assim, pergunta Miller (2011) se o
ser se situa do lado do semblante ou do lado do real. Nesse sentido, ele entende que, na
perspectiva de Lacan, “não se deve duvidar em separar o ser do real, e situar o ser do lado do
semblante” (p. 12)35.
Para Miller (2011) esse é o sentido do neologismo parêtre – que faz assonância com
paraître (aparecer) – através do qual Lacan condensa parecer e ser (être), indicando-nos uma
conjunção entre o ser do gozo e o parecer do semblante. Nesse sentido, ao se precipitarem, os
semblantes revelam algo da verdade do sujeito, no que concerne ao substrato do seu ser, ao
seu gozo. Miller segue nessa direção ao mostrar outra condensação de Lacan, o parlêtre – que
conjuga os termos falar (parler), ser (être) e parecer (parêtre) – com a qual Lacan alude ao

34
Em Radiofonia, Lacan faz o seguinte comentário: “Volto primeiro ao corpo do simbólico, que convém
entender como nenhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido
ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apoia não sabe que é a linguagem que lho confere, a tal
ponto que ele não existiria, se não pudesse falar (...) é incorporada que a estrutura faz o afeto, nem mais nem
menos, afeto a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser, só tendo ali ser de fato, por ser dito de algum
lugar” (Lacan, 1970/2003b, p. 406).
35
“Diré, pues, que en la perspectiva de Lacan (...) no se debe dudar en separar el ser de lo real, y en situar el
ser del lado del semblante” (Miller, 2011, p. 12).
88

sujeito como inseparável da configuração da linguagem na qual está imerso e da qual depende
a apreensão de seu ser (Miller, 2011)36.
Sobre as nuvens, Miller (2011) aponta um fato interessante no que se refere ao campo
dos fenômenos celestes. Chamando a atenção dos antigos, esses fenômenos eram utilizados
para numerosas funções propriamente simbólicas, sendo através deles feita a leitura do
destino dos grandes homens, das cidades e de cada indivíduo. Lacan faz alusão a essas nuvens
na lição sobre Lituraterra, embora seja destacado que, em Radiofonia (Lacan, 1970/2003b),
ele já havia se utilizado do termo nuvens para ilustrar o gozo separado do corpo
significantizável, ou seja, o corpo mortificado pelos significantes37. No sentido dado em
Radiofonia, Miller (2011) comenta que “o significante marca a carne. Fica sobre a terra esse
cadáver que é o corpo do ser falante deslibidinizado – para introduzir o termo de Freud – e,
segundo a imagem de Lacan, desprendem-se dele nuvens de gozo”38 (Miller, 2011, pp. 228-
229). Um ano depois, na lição sobre Lituraterra, Lacan volta a se utilizar da palavra nuvem,
contudo, com o intuito de ilustrar a relação do significante com o gozo a partir do que se lhe
apresentou da planície siberiana em seu retorno do Japão, um apólogo do gozo, no entanto,
avesso ao que trouxera em Radiofonia.
Lacan apresenta uma doutrina do significante como uma meteorologia, termo que
Miller (2011) distingue da mecânica estrutural do significante. Esta última se refere à
concepção do significante como claro e distinto, isolado pela linguística e utilizado por Lacan
como elemento fundamental da linguagem. É assim, ressalta Miller (2011), que Lacan “deu
lugar a uma mecânica da qual dependem, por exemplo, as fórmulas da metáfora e da
metonímia, a substituição significante e a conexão” (p. 229), em que, inclusive, se encontra
em destaque a expressão cadeia significante. Na lição sobre Lituraterra, Lacan se distancia da

36
“A mi entender, este es el sentido exacto de la condensación lacaniana parêtre [parecer-ser], escrita con
acento circunflejo en la primera e (...) El valor de esta condensación es que inscribe al ser del lado del
semblante y no del lado de lo real; el ser no se opone al parecer [paraître], sino que se confunde com él. Y es
también el valor de esa outra condensación contemporánea que opera Lacan al hablar de parlêtre
[hablanteser], con acento circunflejo (...) Parlêtre no es simplesmente una abreviación de la expresión être
parlant [ser hablante], esta condensación atribuye al hombre – término genérico – un ser de semblante, le
atribuye el parecer” (Miller, 2011, p. 12).
37
“O corpo, a levá-lo a sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-la numa
sequência de significantes. A partir dessa marca, ele é suporte da relação, não eventual, mas necessária, pois
subtrair-se dela continua a ser sustenta-la. Desde tempos imemoriais, Menos-Um designa o lugar que é dito do
Outro (com a inicial maiúscula) por Lacan. Pelo Um-a-Menos faz-se a cama para a intrusão que avança a partir
da extrusão: é o próprio significante. Não é o que se dá com toda carne. Somente das que são marcadas pelo
signo que as negativiza elevam-se, por se separarem do corpo, as nuvens, águas superiores, de seu gozo,
carregadas de raios para redistribuir corpo e carne” (Lacan, 1970/2003b, 407).
38
“El término aparece en “Radiofonia” para ilustrar el goce separado del corpo significantizado; esto es, el
significante marca la carne. Queda sobre la tierra este cadáver que es el cuerpo del ser hablante deslibidinizado
– para intruducir el término de Freud – y, según la imagen de Lacan, se desprenden de él nubes de goce”
(Miller, 2011, pp. 228-229).
89

referência à cadeia, ao propor a nuvem, virando pelo avesso a metáfora e a metonímia a


propósito do significante. Ao contrário, a nuvem é um elemento que não se distingue e de
onde não se pode reconhecer a possibilidade de isolar elementos discretos. Nesse sentido,
segundo Miller (2011), Lacan reintroduz o significante agora como

uma nuvem de onde começa a produzir-se um gotejamento. Esse gotejamento percebido por entre as
nuvens, que oculta um espetáculo de algum modo anulado, impressiona como se chovessem rasuras,
riscaduras. É como se se reencontrasse um dos primeiros esquemas de Saussure, que implica também,
como antes da distinção dos elementos, um esquema nebuloso (Miller, 2011, p. 229) 39.

O significante, que antes se encontrava na terra mortificando o corpo, agora se


configura como nuvem em suspensão, no céu a precipitar. Por sua vez, na terra, o que existe é
a vegetação de reflexos e depressões, os barrancos que sulcam na terra o gozo e o significado
que chovem do significante. Se o significante localizado na nuvem ilustra supostamente o que
o simbólico tem em comum com o semblante, no campo do real se abrem sulcos, prontos para
darem acolhida ao gozo (Lacan, 1971/2009). Na lição sobre Lituraterra, Lacan identifica com
a escritura e com a letra, esses sulcos cavados pela precipitação de gozo quando a nuvem dos
semblantes se rompe. É nesse sentido que se encontra a evocação de Lacan das nuvens de
Aristófanes. Lacan (1971/2003c) considera o lugar da letra no litoral entre a ordem simbólica
e o real. As nuvens carregadas de chuva, enquanto campo simbólico, são nuvens de
significantes, tidas como o semblante por excelência, algo de nebuloso que não se captura,
mas que comporta o elemento que escorre – o gozo – elemento esse que, retornando à nuvem,
faz parte de sua mesma natureza. Isso aponta para uma dimensão de gozo que a linguagem
comporta e não apenas de sentido ou interpretação significante. O que se rompe e se precipita
sobre a terra faz sulcos, escrita, ravinas, imagem exemplar das ranhuras das letras que passam
a veicular a substância gozante: “o que se evoca de gozo ao se romper um semblante, é isso
que no real se apresenta como ravinamento das águas” (Lacan, 1970/2003b, p. 22).

39
“Este [significante] es como una nube de donde empieza a producirse un goteo. Este goteo percebido por
entre las nubes, que oculta un espetáculo de algún modo anulado, impressiona como si llovieran tachaduras. Es
como si se reencontrava uno de los primeiros esquemas de Saussure, que implica también, como antes de la
distinción de los elementos, un esquema nebuloso” (Miller, 2011, p. 229). Sobre a referência ao esquema da
nebulosa de Saussure, remetemos o leitor à Figura 1 desta dissertação.
90

3.4 Uma constelação de insígnias: Lacan e o sujeito japonês

Não apenas a viagem ao Japão, mas as particularidades da língua japonesa serviram a


Lacan para mostrar que o sujeito japonês é um sujeito dividido pela linguagem, como em toda
a parte, mas que “um de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro,
com a fala” (Lacan, 1971/2003c, p. 24). Nesse sentido, como observa Márcia Maria Rosa
Vieira (2005) em sua tese Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro, tem-
se, não um sujeito dividido entre o dito e o dizer, entre o enunciado e a enunciação ou entre o
significante S1 articulado ao S2, mas “um sujeito que se satisfaz oscilando entre o escrito e o
falado, entre a letra e o significante” (Vieira, 2005, p. 93).
Não passou despercebido a Lacan (1971/2009) o fato de a língua japonesa ser uma
língua especializada por nela estar incluído um funcionamento caligráfico de uma escrita que
constrói uma parceria entre a pintura ideogramática e a letra. Segundo Vieira (2005), antes da
importação dos ideogramas chineses de onde a escrita japonesa se originou, a língua japonesa
já existia como língua falada. Chama a atenção de Lacan o fato de que em japonês, a escrita
pode ser lida com duas pronúncias diferentes: “como on-yomi, sua pronúncia em caracteres, o
caractere se pronuncia distintamente como tal, e como kun-yomi, a maneira como se diz em
japonês o que ele quer dizer” (Lacan, 1971/2003c, p. 24). Vieira (2005) nos explica que a
pronúncia on-yomi se refere à escrita chinesa antiga e, kun-yomi, a leitura que dela fazem os
japoneses. O termo yomi significa leitura e o termo on, designa a leitura que se faz de um
caractere chinês, sua língua de origem, ao passo que o termo kun, trata-se de uma tradução do
caractere chinês para a língua japonesa, uma tradução que traz o campo da significação.
Segundo Vieira (2005), “em outros termos, a leitura on-yomi provém da cifração e é
da ordem do Um, enquanto a leitura kun-yomi, além de ser decifrativa, se endereça ao Outro”
(p. 96), tendo por consequência o fato de que o sujeito japonês escreve uma coisa e fala outra.
Nesse caso, a letra, que serve como apoio ao significante, é promovida como um referente que
muda o estatuto do sujeito. Assim, Lacan diz que o sujeito para sua identificação fundamental
pode se apoiar, não apenas no traço unário das identificações advindas do campo do Outro,
mas num “céu constelado” (Lacan, 1971/2003c, p. 24).
Vale notar que Lacan já havia feito menção à constelação, em um texto de 1960. Na
Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, ao discutir sobre a identificação, Lacan se
refere à “constelação dessas insígnias que constitui para o sujeito o Ideal do Eu” (Lacan,
1960/1998j, p. 686). No seu curso Los Signos del Goce (Ce qui fait insigne), Miller (2012a)
91

questiona o fato de Lacan se referir ao termo constelação e não cadeia, e também trocar o
termo significante pelo termo insígnia. A seu entender, Lacan introduz uma oposição entre
cadeia e constelação, de modo que, com a expressão “constelação de insígnias”, ele concebe
um modo diferente de identificação, distinto dos traços que se agrupam na cadeia de
significantes, cuja articulação se abrevia em S1 – S2. Neste último caso, prevalece-se um
encadeamento que é da ordem de uma representação do sujeito, em que o significante
representa o sujeito para outro significante, e o sujeito surge dividido nessa representação.
Isso pode ser visto, como Vieira (2005) nos recorda, no caso da Rainha do conto A carta
roubada, dividida como está entre o que a carta suscita nela (S1) e a sua relação com o Rei
(S2).
Por outro lado, ao se referir à constituição do Ideal do Eu como uma constelação de
insígnias, Lacan aponta para a redução do Outro como sistema significante. Nesse caso, no
entender de Miller (2012a), “o significante vale como insígnia sempre e quando estiver solto,
isto é, fora do sistema” (p. 149)40. Esse autor nos dá o exemplo da insígnia do diploma ou
título. Um diploma ou título é um significante que forma parte do sistema, que é feito para
representar o sujeito diante desse sistema. No entanto, ele somente adquire valor de insígnia
ao ser extraído desse sistema, quando não funciona com esse estatuto, quando funciona como
redutor do Outro.
A expressão constelação de insígnias implica, então, que o sujeito se tome pelo Um,
por uma substância, como Lacan também se refere ao “campo em que ele [o sujeito] se
hipostasia41 no Ideal do Eu” (Lacan, 1960/1998j, p. 686). Miller (2012a) assinala o termo
hipostasia, dizendo que, ao abordar a identificação a partir das insígnias constelares, Lacan
não está se referindo a uma representação, mas a uma posição de substância, de hipóstase do
sujeito, naquilo que essa identificação o conduz a crer que ele não está articulado com nada,
não é efeito entre S1 e S2, mas que é Um sozinho. Nesse sentido, ao voltarmos ao conto A
Carta Roubada, podemos constatar que a carta mensageira, em sua condição de letter,
também apresenta algo que excede à representação e ao sentido, portando algo da ordem da
clandestinidade (a letter, a litter), de matéria substancial, do enigma e do gozo, em última
instância. Como Vieira tão bem considera (2005):
40
“Con el término insignia, y estabelecido el ideal del yo como una constelación de insignias, Lacan apunta,
precisamente, a la reducción del Outro en tanto sistema significante. Por eso no hay que confundir-se: el
significante vale como insignia siempre y cuando esté suelto, es decir, fuera del sistema” (Miller, 2012a, p. 149).
41
De hipóstase: sinônimo de realidade permanente, concreta e fundamental; substância; substância primeira (São
Tomás de Aquino), ente individual, caracterizado por sua concretude, unidade, delimitação e determinação.
Segundo a reflexão moderna e contemporânea, trata-se de equívoco cognitivo que se caracteriza pela atribuição
de existência concreta e objetiva (isto é, uma existência substancial) a uma realidade fictícia, abstrata ou
meramente restrita à incorporalidade do pensamento humano (Houaiss, 2001).
92

ao apresentar o Ideal do Eu como uma constelação de insígnias, Lacan deixa indicado que os traços que
o sujeito toma emprestados ao Outro podem funcionar como significantes civilizadores que, além de
representá-lo, fazem com que seja reconhecido pelo Outro, mas podem também se soltar do sistema
significante, serem extraídos da cadeia significante, e se transformarem em insígnias que existem tout
seul, absolutamente sós (...) Redutores do Outro, esses significantes soltos (desencadeados, portanto!)
operam fora do sistema simbólico na sua face representativa e comunicativa, fundada na lógica
simbólica. Neste sentido, eles operam como letra (pp. 98-99).

O estatuto do significante fora da cadeia e solto do sistema, opera como letra enquanto
uma unidade no campo da linguagem que, por não ser diferencial, não se refere a outras
unidades. Por isso, a letra se situa como um significante tout seul, sozinho, que, como tal, não
significa nada, sendo capturada fora dos efeitos de sentido.
A referência à constelação de insígnias vem se situar no giro que Lacan opera ao
elevar o significante à dimensão de letra, que não faz cadeia, mas enxame (essaim) de
significantes-mestres, S1s, (“ésses” uns, homofônico a essaim, no francês): S1, S1, S1, S1,
S1, S1. Em O Seminário, livro 20, Mais Ainda, Lacan (1972-1973/1985) irá dizer que o S1 é
Um-entre-outros, e não para com os outros no sentido de serem articulados. Para ele, trata-se
“de saber se é qualquer um, se levanta um S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame
significante, um enxame que zumbe” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 196).
Para Lacan (1972-1973/1985), esse Um dos S1s do enxame, encarna na lalíngua
(lalangue) como algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, e mesmo todo o
pensamento, “é o de que se trata no que chamo de significante-mestre. É o significante Um”
(p. 196). Com esse novo termo, lalíngua, Lacan inaugura um novo aparelho conceitual que,
conforme nos situa Soler (2012) em Lacan, o inconsciente reinventado, origina-se de lalação
(do latim lallare), que significa cantarolar para adormecer, ao mesmo tempo em que se pode
remeter ao arrulho da criança que ainda não fala, mas que já emite sons. Essa lalação infantil é
o som disjunto de qualquer sentido, contudo, não disjunto do estado de contentamento da
criança. Sendo assim, lalíngua evoca a língua que é emitida antes da linguagem estruturada
sintaxicamente, onde o sentido ainda não se encontra e não tem a ver com o dicionário,
qualquer que seja, fazendo faltar em seu campo uma ordem, um tratamento das palavras e do
sentido que se convenciona a elas.
Se o ponto de partida de Lacan foi a função da fala e o campo da linguagem como
mensagem endereçada ao Outro, com o termo lalíngua, ele coloca a linguagem como derivada
e não primária. No entender de Miller (2000), a linguagem seria secundária e, portanto,
derivada de lalíngua, que antecederia à linguagem, por constituir a fala antes de seu
ordenamento gramatical e lexicográfico, servindo para coisas inteiramente diferentes da
comunicação, sem um caráter dialógico, posto que opere enquanto gozo. Lacan (1972-
93

1973/1985) vai dizer que, “se a comunicação se aproxima do que se exerce efetivamente no
gozo da lalíngua, é que ela [a comunicação] implica a réplica, dito de outro modo, o diálogo.
Mas lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? (...) nada é menos garantido que
isso” (p. 188-189). Se o gozo era secundário em relação à estrutura de linguagem que tinha a
função de metabolizá-lo em significantes, com lalíngua, o gozo ganha um estatuto primário.
Como afirma Lacan (1972-1793/1985), “se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o
inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a linguagem, de começo, ela não existe. A
linguagem é o que se tenta saber concernente à função da lalíngua” (p. 189).
Assim, o significante Um encarnado em lalíngua, tal como Lacan (1972-1973/1985)
vai dizer, justifica-se, na medida em que uma constelação de insígnias não é igual a uma
cadeia de significantes, mas a um enxame que faz com que de um para outro o significante se
solte e configure a insígnia como um significante sozinho, solto, ímpar, un tout seul. Nesse
sentido, consoante Vieira (2005), a ruptura da linearidade da cadeia significante terá como
consequência um outro estatuto do sujeito, pois se na perspectiva linear existe um movimento
de associação, de conexão e representação (S1 – S2), na perspectiva constelar ou do enxame
de significantes ocorre um movimento de dissociação que introduz com a noção de letra, uma
desconexão, uma desarticulação entre os significantes (S1/ /S2) no inconsciente. Assim, a
letra vem se atrelar à lalíngua, na medida em que ela subsiste lá onde o isso fala, no
inconsciente que consiste, nesse caso, em “que o ser, falando, goze e, acrescento, não queira
saber de mais nada. Acrescento que isto quer dizer – não saber de coisa alguma” (Lacan,
1972-1973/1985, p. 143).
Segundo Vieira (2005), a concepção de letra traz a dimensão de lalíngua – essa
lalação que não deixa de comportar uma satisfação – como uma escritura essencialmente
aluvionária, um depósito de sedimentos, “húmus da linguagem”, como já nos apontou Lacan
(1969-1970/1992, p. 53), que evidencia “o fato de que o fenômeno essencial da lalíngua não é
o sentido, mas o gozo: é a pulsão, e não a significação, que move o ser falante” (Vieira, 2005,
p. 163). Nesse sentido, teríamos um outro modo de conceber o inconsciente? Se articulado em
cadeia (S1 – S2), um significante representa o sujeito para outro significante, a outra forma
seria a da existência dos Uns do enxame no inconsciente (S1, S1, S1, S1), que se inscrevem
como letra? Nesse sentido, temos um inconsciente discursivo que é capturado na linguagem
falada e, por outro lado, um inconsciente escritural (escriturado, letrificado), que se sustenta
“ali onde só há S1, letra que se repete” (Vieira, 2005, p. 164).
94

3.5 O inconsciente, do sentido ao gozo: transferencial e real

Considerando a colocação de dois estatutos do inconsciente – um inconsciente


discursivo e um inconsciente letrificado – buscaremos brevemente apresentar uma discussão
acerca de dois modos de concepção do inconsciente a partir de Lacan, situando teoricamente
as indagações que se têm verificado no campo teórico sobre a passagem de uma concepção do
inconsciente calcado na estrutura de linguagem e nos efeitos de sentido articulados na cadeia
significante, para aquela do gozo da letra que desarticula o sentido e se coloca como real.
Partimos, assim, da afirmação de que “será preciso [diz Lacan] eu destacar uma oposição. A
escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico” (Lacan, 1971/2009, p. 114). Pois
bem, trata-se de duas noções do inconsciente, que autores psicanalistas contemporâneos tem
atualmente discutido, a partir de interpretações dos textos de Lacan: o inconsciente
transferencial e o inconsciente real (Miller, 2009; Soler, 2012).
É preciso esclarecer que o termo “inconsciente real” não é uma expressão encontrada
diretamente no texto de Lacan. Tal noção deriva de uma formulação en passant, elaborada em
1976, quando Lacan escreve para a edição inglesa, um prefácio ao Seminário 11, por ele
proferido doze anos antes. Já discutimos, no capítulo anterior, algumas das consequências que
àquela época – 1964 – atravessaram o conceito de inconsciente ali tratado como pulsação
temporal, homólogo a uma zona erógena, e formando com a pulsão, uma comunidade
topológica. Do mesmo modo, as ressonâncias do VI Colóquio de Bonneval (1960) se fizeram
notar naquele mesmo seminário, no qual Lacan, ao formular e discutir as duas operações
lógicas da constituição do sujeito – alienação e separação – colocava em questão o uso que
então se fazia da interpretação analítica. Assim, quando ele advertia categoricamente que a
interpretação não estava aberta a todos os sentidos, implicava argumentar a existência de uma
fixação pela vertente do gozo encarnado pela pulsão, fixação esta que reduz os significantes
que apresentam o sujeito, ao seu não senso, ao sem sentido do significante (Lacan,
1964/2008c).
Doze anos depois, em 1976, no Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 – daqui em
diante denominado Prefácio – Lacan (1976/2003d) vai então dizer que:

Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – já não tem
nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos [se tem a] certeza de estar no
inconsciente. O que se sabe, consigo [...] Notemos que a psicanálise, desde que ex-siste, mudou.
95

Inventada por um solitário, teorizador incontestável do inconsciente (que só é o que se crê, digo: O
inconsciente, seja, o real – caso se acredite em mim), ela é agora praticada aos pares. (p. 567)42.

É Miller (2009) quem nos recorda que tal texto – o último da coletânea dos Outros
Escritos – Lacan o escreveu imediatamente após proferir, no decorrer dos anos 1975 e 1976,
O Seminário, livro 23, O Sinthoma – daqui em diante denominado O Seminário 23 – de modo
que o texto, nos diz Miller, “merece ser lido de perto” (p. 12). Embora seja ressaltado que o
sem-sentido foi desde sempre posto em função por Lacan, como percorremos anteriormente o
próprio O Seminário 11 aqui prefaciado, o que chama a atenção é a disjunção entre o
inconsciente e a interpretação, em uma exclusão entre o que Miller (2009) vai destacar como
função da interpretação e função inconsciente (p. 12). O que se coloca em vacilação é o que se
acredita saber da articulação do inconsciente, de modo que, segundo Miller (2009), na
enunciação do Prefácio, Lacan segue no sentido avesso de sua tese anterior do desejo
inconsciente como sua interpretação, marcante, por exemplo, em O Seminário, livro 6, O
Desejo e sua Interpretação.
Se, para Lacan, o desejo é algo a ser colocado no cerne da teoria e da experiência
analítica, trata-se de fazer um enlaçamento entre o desejo e a interpretação. Tendo como
energia psíquica a libido a ser investida nas marcas mnêmicas deixadas pela primeira
experiência de satisfação, o desejo marca a dependência do sujeito dos significantes advindos
do Outro que o constitui na linguagem. E assim, a experiência analítica fundada na fala, deve
se esforçar por fazer emergir algo além da demanda do sujeito, sendo aí situado o desejo
inconsciente como sua interpretação. No entanto, no Prefácio, Lacan, ao contrário, marca uma
separação, ao fazer uma desconexão entre o significante do lapso e o significante da
interpretação (Miller, 2009). O lapso que, enquanto uma das formações do inconsciente,
outrora implicava uma dimensão de significação e se situava no domínio dos efeitos de
sentido da interpretação significante, no enunciado de Lacan (1976/2003d), quando já se
encontra desprovido de sentido, é aquilo que atesta estar no inconsciente, que não suporta,
nesse caso, uma articulação significante. Miller (2009) chama a atenção para o fato de que,

nessa frase pode ficar imperceptível, por ser colocado na abertura – na abertura desse texto [por se tratar
de um prefácio], mas no fechamento do Seminário sobre Joyce –, o fato de ela [a frase] admitir, se a
lermos tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante representativo. Isso
ataca o que consideramos como o próprio princípio da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise
tem seu ponto de partida no estabelecimento mínimo S1 – S2 da transferência (p. 13).

42
“Quand l’esp d’un laps, soit puisque je n’écris qu’en français : l’espace d’un lapsus, n’a plus aucune portée
de sens (ou interprétation), alors seulement on est sûr qu’on est dans l’inconscient [...] Notons que la
psychanalyse a, depuis qu’elle ex-siste, changé. Inventée par un solitaire, théoricien incontestable de
l’inconscient (qui n’est ce qu’on croit, je dis : l’inconscient, soit réel, qu’à m’en croire), elle se pratique
maintenant en couple”.
96

Sabemos que o inconsciente é mobilizado a partir da transferência que o causa, na


medida em que atualiza sua realidade e articula a representação do sujeito entre S1 e S2.
Destaca-se aqui a condição do sujeito enquanto suposto saber, uma vez que, sendo efeito de
significantes, não pode ser substancializado, não sendo suposto senão “pelo significante que o
representa para outro significante” (Lacan, 1967/2003a, p. 253) na cadeia simbólica. É o
próprio Lacan que, na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola,
destaca a transferência no começo da psicanálise. Cito-o: “No começo da psicanálise está a
transferência”, e segue dizendo que “o sujeito suposto saber é, para nós, o eixo a partir do
qual se articula tudo o que acontece com a transferência” (Lacan, 1967/2003a, p. 253).
Lacan (1967/2003a) escreve o matema da transferência (Figura 9), por meio da qual,
“o suposto desse sujeito coloca o saber em seu lugar de adjacência da suposição” (p. 253):

Figura 9: Matema da transferência extraído de


Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola
Fonte: Lacan, 1967/2003a, p. 253

No matema da transferência temos, na primeira linha, situado o significante S de um


sujeito que implica, na forma de um endereçamento ao Outro, um significante qualquer,
escrito com um Sq, supondo outras coisas mais, em termos de sentido. Assim, a cadeia
mínima S1 – S2 é homóloga ao matema lacaniano, na medida em que “S1 é o significante da
transferência em seu laço com S2, um significante qualquer” (Miller, 2009, p. 13). Abaixo da
barra, temos o s representando, como resultado, o sujeito em posição de significado, que
implica, dentro dos parênteses, “o saber, supostamente presente, dos significantes que estão
no inconsciente, significação esta que faz as vezes do referencial ainda latente na relação
terceira que o liga ao par significante-significado” (Lacan, 1967/2003a, p. 254). É nesse
sentido que Miller (2009) propõe que o inconsciente, tomado no status de posição suposta do
sujeito, mostra-se como um inconsciente transferencial, um inconsciente que pode ser
interpretado, que pode ser lido, uma vez que “é pela transferência que tornamos presente,
mobilizamos e lemos o inconsciente” (p. 14) ao longo da experiência analítica.
Na frase inicial do Prefácio, Miller (2009) nos faz notar uma negação do inconsciente
do ponto de vista transferencial, quando o espaço de um lapso já não tem nenhum efeito de
interpretação ou de sentido, isto é, tem-se a certeza de estar no inconsciente, quando não se
97

opera a conexão da transferência, quando não há conexão entre S1 e S2. Miller (2009) chama
a atenção para uma distinção a ser feita entre o sujeito que consiste no saber dos significantes
e o sujeito para quem esse saber é suposto. Assim, Miller destaca um termo, o qual refere ter
sido tomado emprestado de Sartre por Lacan – o em-si e o para-si – que indica o status do
sujeito por vir a ser suposto a esse saber. Miller (2009) detém com interesse o pedaço da frase
referente ao “se tem certeza”, “o que se sabe, consigo (on le sait, soi)”, o qual não seria o
inconsciente que Lacan pôde articular no registro da intersubjetividade ou no da inter-
significância (S1–S2), mas se trata de um se (on) que se sabe consigo, sozinho, cortado,
referindo-se a um inconsciente que não faz amizade, pois “não há amizade que esse
inconsciente suporte” (Lacan, 1976/2003d, p. 267). De acordo com Miller (2009), essa
amizade, que não existe enquanto suporte do inconsciente, “é a expressão genérica com a qual
designamos o laço entre o Um e o Outro” (p. 16), posta em xeque nesse texto de Lacan. Ele
argumenta que “escandir o espaço de um lapso, solicitar a atenção, poderia passar por um
movimento amistoso, de ajuda à associação livre. Nesse texto, porém, a amizade é rechaçada
por Lacan (...) isso toma um outro valor” (Miller, 2009, p. 16).
Outro ponto que também chama a atenção, no Prefácio, refere-se à palavra histoeria.
Ao se referir ao dispositivo do passe43 como o momento de verificação da historisterização da
análise, Lacan (1976/2003d) diz que, depois de uma análise, “o analista só se historisteriza
por si mesmo” (p. 568). Esse neologismo lacaniano comporta uma associação entre as
palavras histeria e história. Sendo assim, o termo histoeria porta a dimensão de uma história,
uma vez que a história requer uma relação do Um com o Outro, cuja articulação se estabelece
no domínio do simbólico, de modo que “a simbolização é uma condição de existência para a
realidade”, e que “o que não está escrito no simbólico in-existe” (Miller, 2009, p. 34). Do
mesmo modo, na histeria, tem-se o Um articulado ao saber advindo do campo do Outro (S1–
S2), a possibilitar a simbolização de um sintoma no nível do corpo, transparecendo a
incidência no inconsciente, do discurso e do desejo do Outro. A histoeria se encontraria,
portanto, no âmbito do inconsciente transferencial, enquanto discurso do Outro, que se
articula na cadeia significante (Miller, 2009).
Ao dizer que somente se está no inconsciente, quando o espaço de um lapso já não
comporta nenhum impacto de sentido ou interpretação, e que não existe amizade que esse

43
“Passe”: termo inventado por Lacan em 1967. Refere-se à passagem que marca o fim de uma análise e também
a opção feita pelo analisando de se propor a se tornar psicanalista. O passe designa um processo de travessia que
consiste em que o analisando (passante) exponha a analistas (passadores), que prestarão contas disso a um júri
dito de credenciamento, aqueles dentre os elementos de sua história que sua análise o levou a considerar como
suscetíveis de dar conta de seu desejo de se tornar analista (Roudinesco & Plon, 1998).
98

inconsciente suporte, Lacan faz vacilar a articulação do inconsciente na palavra e na história


com a produção de sentido. O inconsciente, nesse caso, não comporta uma interpretação, uma
vez que S1 está sozinho, não articulado em uma cadeia de significantes e, por conseguinte,
não se encontra no domínio da história (histoeria). Desse modo, existe no inconsciente uma
dimensão de história marcada pela articulação da cadeia significante e uma dimensão real, do
isolamento do significante da cadeia e que testemunha um rompimento da história do sujeito
(Miller, 2009). Isso faz retornar a uma variante do “significante no real”, fora da cadeia, pelo
qual Lacan, ainda nos anos 1950, definiu inicialmente, em referência ao fenômeno maior da
psicose, a alucinação.
No texto Resposta ao comentário de Jean Hippolite sobre a Verneinung de Freud,
Lacan (1954/1998b) trata da função da alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos, por
meio do qual ele nos mostra como a alucinação põe em questão o primário da constituição da
simbolização, denominada de afirmação primordial (Bejahung44). A alucinação seria, então,
apresentada como um fenômeno que escaparia ao domínio da história do sujeito (Miller,
2009).
Lacan (1954/1998b) discute o processo da simbolização primária na constituição
subjetiva, servindo-se do texto A Negação – Die Verneinung45 – de Freud (1925/1996l),
indicando que, para que algo entre na história, é preciso que um elemento – que nesse caso é a
castração – seja simbolizado primariamente (Bejahung) pelo sujeito. Todavia, a alucinação,
enquanto um fenômeno elementar da psicose é, ao contrário, o retorno de um conteúdo que
escapou a essa simbolização primária, não tendo sido incorporado à história do sujeito no
nível do simbólico. Assim, a alucinação se contrapõe a todo processo de estruturação do
inconsciente que o constitui como articulado à história do sujeito, já apresentado por Lacan
(1953/1998a) em Função e Campo46. De modo que o psicótico, diz Lacan, é testemunha
(mártir) do inconsciente, que se mostra a céu aberto, ao passo que o neurótico dá um

44
Bejahung: termo extraído do texto freudiano A negação”(1925), com o qual Lacan se refere à constituição da
ordem simbólica na estruturação subjetiva, na medida em que seu processo consiste em afirmar primordialmente
um elemento significante no sentido do simbólico, e daí o termo ser traduzido como afirmação primordial.
Segundo Lacan, para que um sujeito não queira saber de algo no sentido do recalque, é necessário que esse algo
tenha vindo à luz pela simbolização primordial. E no mesmo movimento em que algo é introduzido no sujeito,
algo é expulso e resta fora. É aí que se constitui o real, “na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora
da simbolização” (Lacan, 1954/1998b, citado por Guerra, 2007).
45
Para Freud (1925/1996c), a negação consiste em um mecanismo com qual o sujeito se serve para enunciar um
conteúdo recalcado, de modo que ele não seja aceito na consciência. Por exemplo, quando o paciente, ao relatar
um sonho, retorqui: “o senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe”, Freud precisa
que se emende isso para: “Então, é a mãe dele”. Desse modo, toma-se a liberdade de desprezar a negação e de
fazer a escolha somente do tema geral da associação. Admite-se o recalcado pela suspensão de seu conteúdo,
porém o recalque se mantém pela partícula de negação (não) no enunciado.
46
Vide Capítulo 1 desse trabalho, especialmente a sessão 1.5.
99

testemunho encoberto de sua existência, convocando à decifração, a uma restauração


autêntica do sentido que ele testemunha e que partilha no discurso dos outros (Lacan, 1955-
56/2008).
A alucinação coloca em cena esse estatuto de um elemento que não se submete às leis
da cadeia significante, restando errático, do lado de fora da simbolização (Lacan, 1954/1998).
Nesse sentido, através do termo Verwerfung, Lacan, nos anos 1950, distingue aquilo que em
Freud se diferencia do mecanismo do recalque (Verdrängung) na neurose, e que se apresenta
como expulsão, supressão e rejeição de uma simbolização, operação traduzida por ele como
foraclusão (forclusion), noção operadora da estrutura psicótica (Lacan, 1955-56/2008; Lacan,
1958/1998h). Em O Seminário, livro 3, As psicoses, Lacan (1955-56/2008) afirma que “tudo
o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real” (p. 21).
Isto é, aquilo que, no processo de estruturação do sujeito, não sofreu uma afirmação
(Bejahung) primordial no conjunto de significantes, resta do lado de fora da simbolização,
excluído da realidade psíquica47. O que foi excluído da simbolização, não podendo retornar na
história do sujeito, no domínio do inconsciente – que porta em si o recalque e o retorno do
recalcado – retorna no sem sentido do real. De modo que se tem como consequência a não
assunção pelo sujeito ao inconsciente estruturado como linguagem, o qual, nesse caso,
permanece excluído, uma vez que, de acordo com Lacan (1955-56/2008), para o sujeito
psicótico, o inconsciente “aparece no real” (p. 21).
É a partir do registro do real que Lacan pôde esclarecer os fenômenos psicóticos e a
sua evolução, lembrando-se que real não significa realidade, mas demarca uma separação do
domínio do simbólico. Assim, para Lacan (1955-56/2008) o inconsciente se faz presente na
psicose, mas não funciona. O inconsciente na psicose porta um significante, mas que se
coloca como exterior ao sujeito, uma vez que, sendo dado primitivamente ao sujeito, não
entrou no encadeamento de sua história, ficando, portanto, solto no real, como um significante
puro.

47
Freud, em A Interpretação dos Sonhos, considera o inconsciente como “a verdadeira realidade psíquica em sua
natureza mais íntima”. Para ele, o inconsciente “nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e
é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações
de nossos órgãos sensoriais.” (Freud, 1900/1996e, p. 637). Ou seja, a realidade psíquica não se trata de uma
realidade externa dos fatos ocorridos, de uma cena real, mas de uma Outra Cena, do modo com o qual o sujeito
se posiciona frente a essa realidade e a incorpora em sua fantasia, em suas lembranças, e nos relatos de sua
história.
100

3.6 Joyce e suas epifanias

Se em O Seminário sobre A Carta Roubada, bem como no texto Lituraterra,


constatamos Lacan fazendo referências a James Joyce, ora sobre os trocadilhos que se fizeram
no cenáculo do escritor – a letter, a litter – (Lacan, 1955/1998), ora ao dizer que, ao fazer lixo
da letra, Joyce vai direto ao melhor que se pode esperar de uma psicanálise em seu término
(Lacan, 1971/2003c), verificamos que se tratam de referências sutis, que, no entanto, não
serão sem consequências para a teoria e a clínica que se despontam a partir do último período
do ensino de Lacan. De fato, sabemos que em 1975 e 1976, Lacan profere um de seus
seminários mais complexos, O Seminário 23, dedicado a Joyce. Por outro lado, como ressalta
Vieira (2005), quando Lacan se encontra com a língua japonesa, podendo assim afirmar que o
sujeito japonês se apoia num céu constelado para sua identificação, além de apenas no traço
unário, isso não seria despropositado, de modo que o sujeito das insígnias constelares lhe abre
passagem para suas “últimas elaborações, nas quais a cadeia significante e o enxame de letras
desembocam na escritura topológica” (p. 165).
Pois bem, se o Prefácio foi redigido logo depois de O Seminário 23, por que ele
“merece ser lido de perto” (Miller, 2009, p. 12)? Qual a relação entre o espaço de um lapso
que já não comporta sentido ou interpretação e o teor do seminário sobre Joyce, tendo em
vista que referências a esse escritor perpassam sutilmente alguns dos textos de Lacan? Quais
as consequências disso para a interpretação analítica e para o estatuto da letra no
inconsciente? Avancemos um pouco mais.
Em O Seminário 23, Lacan vai se servir da topologia do nó borromeano para traçar
uma perspectiva notável no último tempo de seu ensino, comumente conhecido como a
clínica do sinthoma ou a clínica borromeana – que pode ainda ser denominado, com Miller
(2003), o Último Ensino de Lacan, ou ainda, o período da Desconstrução, se nos ativermos à
proposta de Milner (1996). Não é nossa intenção dissecarmos O Seminário 23, nem as
questões topológicas, nem as questões joycianas nele contidas, pois há quem os faça muito
bem48, mas resta-nos tecer alguns comentários acerca do teor que concerne à letra, em seu
outro estatuto que não o sentido do significante.

48
Para aprofundamento sobre O Seminário 23, remetemos o leitor aos textos de Harari (2002) Como se chama
James Joyce?: a partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan; Las dos clínicas de Lacan: introducción a la
clínica de los nudos (Mazzuca, Schejtman & Zlotnik, 2000); Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a Loucura
(Laia, 2001); Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce (Mandil, 2003); A estabilização psicótica na perspectiva
101

Segundo Lacan (1975-1976/2007), a palavra sinthoma (de sinthome, no francês)


remete à antiga forma de escrita francesa da palavra symptôme, de origem grega. Por sua vez,
o nó borromeano, originário do brasão da família dos Borromeos no Século XV, serviu como
recurso topológico aos desenvolvimentos da matemática de Guilbaud. Tal nó enlaça três aros
de cordas de barbante equivalentes, apresentando a característica de que o rompimento de um
dos aros implica na liberação de todos os outros. Pode-se construir uma cadeia borromeana
com mais de três nós, desde que se respeitem a característica acima descrita (Kaufmann,
1996). De modo que Lacan utiliza três aros de barbante, nomeando cada um deles,
respectivamente, como Real, Simbólico e Imaginário (RSI), sendo a configuração do nó
borromeano a representação estável do enlaçamento desses três registros. No entanto, em O
Seminário 23, Lacan considera um erro pensar que o nó borromeano de três seja uma norma
em relação aos três registros como

três funções que só existem uma para outra em seu exercício no ser que, ao fazer nó, julga ser homem.
A perversão [perversion] não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas
sim, porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto [nó] que, nessa ocasião, é o
sinthoma (Lacan, 1975-1976/2007, p. 20-21).

Lacan (1975-1976/2007) afirma que “é preciso supor tetrádico o que faz o laço
borromeano” (p. 21). Desse modo, pode-se compreender o que Lacan denomina como
perversão, no sentido de ser somente uma père version (em direção ao pai) do nó, termo que,
na língua francesa, é homofônico com perversion. Assim, Lacan se refere à existência, não
apenas do Nome-do-Pai, mas de uma pluralização dos nomes-do-pai, dos quais cada sujeito se
serve para estabelecer o laço enigmático de RSI. “O pai [diz Lacan] é um sinthoma ou um
sintoma, se quiserem” (p. 21), e sendo assim, o Nome-do-Pai constitui esse quarto nó capaz
de enlaçar os três registros: O real, registro do que Lacan (1975-1976/2007, p. 49) denomina
como ex-sistência, ou seja, do que está fora de toda e qualquer significação; o simbólico,
registro que faz furo no real, insistindo em uma significação; e o imaginário, registro que
fornece consistência à imagem corporal, conferindo uma identificação do sujeito com o corpo.
Assim, Lacan (1975-1976/2007) faz equivaler o Nome-do-Pai ao estatuto de um dos nomes
do sinthoma: NP ≡ ∑ (Figura 10).

borromeana: criação e suplência (Guerra, 2007); e Sinthome: ensayos de clínica psicoanalítica nodal
(Schejtman, 2013) – sendo os quatro últimos trabalhos, originalmente, teses de doutorado.
102

Figura 10: Os três anéis R, S, I, ligados pelo sinthoma (∑)


Fonte: Lacan, 1975-1976, p. 15

Lacan recorre à topologia dos nós para ler e formalizar o que se passa com Joyce. A
arte desse escritor, que, como já dissera, vai de a letter para a litter, será aquilo que, para
Lacan, constitui um paradigma do sinthoma, pois se trata de uma suplência da firmeza fálica,
ou seja, do fato de Joyce não ter se servido do Nome-do-Pai. Em sua lição de 17 de fevereiro
de 1976, Lacan considerou que o sentido é algo que está situado no campo entre o imaginário
e o simbólico. O sinthoma seria um artifício com o qual se lança mão para reparar o erro da
cadeia borromeana. Assim, se na ocorrência de um erro, o simbólico vier se soltar, o meio de
reparação é o que se denomina como sinthoma, uma vez que, segundo Lacan (1975-
1976/2007), “trata-se, de alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real
continuarem juntos, ainda que, devido a dois erros, nenhum mais segure o outro” (p. 91).
Lacan (1975-1976/2007) relaciona o sinthoma de Joyce com uma carência radical da
função paterna para esse escritor. Não se trata da carência de um pai real, mas da operação do
que ele denomina como Verwerfung de fato, que testemunha a demissão do Nome-do-Pai.
Assim, a solução apresentada nesse caso é o que Lacan chama de nome próprio. Ou seja,
Joyce, ao fazer com sua escrita um nome próprio, opera uma compensação da carência do
Nome-do-Pai:

Por que não conceber o caso de Joyce nos termos seguintes? Seu desejo de ser um artista que fosse
assunto de todo o mundo, do máximo de gente possível, em todo caso, não é exatamente a compensação
do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi
negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas, à Igreja diplomática? (...) Não
há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no
fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de
coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha
(Lacan, 1975-1976/2007, p. 86).

Assim, a arte da escritura de Joyce vem a ser o nome próprio de seu sinthoma. E, se é
o Nome-do-Pai aquele que nomeia e permite sustentar a realidade psíquica, na falta dele é
preciso inventar, como Joyce o fez, um nome próprio, uma invenção sinthomática, artifício
103

singular “que dá à arte da qual se é capaz um valor notável” (Lacan, 1975-1976/2007, p. 59).
Lacan, de um modo jocoso, comenta que:

Como ele [Joyce] tinha o pau um pouco mole, se assim posso dizer, foi sua arte que supriu sua firmeza
fálica. E é sempre assim. O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho de
pau em questão, com a função do falo. E é nisso que sua arte é o verdadeiro fiador de seu falo (Lacan,
1975-1976/2007, p. 16).

Para Soler (1998), em O filho necessário, Lacan reconhece na forma joyciana de


escrita, uma literatura que desordena o sentido. A escrita de Joyce aponta para a existência de
um paradoxo entre o que é a arte da literatura, que pressupõe uma articulação entre a letra e o
sentido, e a arte da “riscadura” (Soler, 1998, p. 93) que Joyce empreende no decurso de sua
obra. Assim, nos escritos de Joyce, o que se encontra é uma arte que deprecia o símbolo
condensador de sentido. Há mais “riscadura” – coisa estranha, nas palavras de Lacan – do que
escrita a se ler, mais lituraterra que literatura. Contudo, não se trata de uma escrita qualquer,
mas de uma invenção, trabalho progressivo (work in progress) com a letra, que vai se
afastando e se desarticulando da língua inglesa – língua materna do escritor – seguindo na
contramão da significação e da via do sentido, para desembocar no sem sentido dos
significantes, em uma tentativa sempre frustrada de tocar o impossível (Bulcão, 2008).
Se o equívoco, segundo Lacan (1975-1976/2007), constitui-se uma arma contra o
sinthoma, sendo “preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” (p. 18), a
interpretação analítica do sintoma pressupõe a existência de um significante recalcado, que,
nesse equívoco da fala do sujeito o faz emergir. Diferentemente, Joyce se utiliza do equívoco
para fazer existir (ex-sistir) o inconsciente fora do campo da interpretação, do significante
articulado ao outro na cadeia simbólica. De modo que, ao subtrair a letra da cadeia de sentido,
Joyce a desconecta do inconsciente, fixando-a pelo gozo (Soler, 1998).
A relação de Joyce com sua própria escrita aponta para a existência de uma aversão do
escritor ao que é evidente, à metáfora produtora de efeitos de sentido (Soler, 1998). Isso pode
ser constatado no que Joyce denomina como epifanias, fazendo referência à técnica de tomar
uma manifestação, uma cena ou uma frase para isolá-las de qualquer contexto, de modo que
elas se apresentam frequentemente como formas fragmentárias de diálogos, como
significantes puros, isolados de toda significação, instantes descontínuos, resíduos de
palavras, de imagens, de cenas e de sonhos, ressonâncias e ecos (Millot, 1993). As epifanias
joycianas foram coletadas separadamente em cadernos, na forma de pequenos fragmentos de
textos, isolados do contexto narrativo, e que ocorrem na terceira pessoa, sendo sua
transmissão feita em tom impessoal, estático, “o que permitirá seu enxerto posterior ao longo
104

das obras de Joyce, sobretudo em Um retrato do artista quando jovem” (Mandil, 2003, p. 124-
125), como será visto.
Em seu artigo Epifanias, Catherine Millot (1993) comenta que, se as epifanias ocupam
na obra de Joyce um lugar singular, conferindo-lhe um traço que testemunha uma experiência
inefável ou espiritual inaugural “sobre a qual fundou a certeza de sua vocação de escritor” (p.
144), elas são também um buraco negro no universo joyciano, pois marcam um não-senso
radical dos significantes. O termo, emprestado da liturgia católica, não intitula simplesmente
os poemas em prosa dos escritos de Joyce, uma vez que, no entender dessa autora, não se
tratam de poemas, mas, ao modo de “aerólitos, pedras caídas de outro mundo”, constituem-se
frases anódinas que “cativam muito mais por seu caráter enigmático que por seu valor
poético” (p. 144). Representam “um fracasso cuja razão deve ser interrogada: se valem como
traço de uma ocorrência espiritual, parecem representar mais seu resíduo, seu dejeto do que
sua expressão” (p. 145), ou seja, sua liteiralixo.
Nesse sentido, Millot (1993) faz uma comparação entre a experiência espiritual dos
místicos e as epifanias de Joyce. Para ela, o encontro com um real, que em si mesmo é opaco
e resistente ao sentido, e que se impõe como incontestável e incontornável, chegando ao
sujeito como que vindo de fora, numa estranheza radical com tudo o que foi vivido antes, é
algo em comum nos dois casos. Contudo, tal ocorrência, a partir de então, exige ser
simbolizada, historicizada, integrada ao tecido dos dizeres, onde cada um tem seu lugar de
sujeito. O místico é esse que se esforça por inscrever sua experiência em um discurso
religioso, que seja susceptível de lhe fornecer um sentido. Contudo, comenta Millot (1993),

a particularidade, sempre singular, do vivido não se esgota aí e requer ainda a invenção de um dizer
novo, no seio mesmo do discurso onde ele aí se inscreve, a fim de transmitir essa singularidade que
insiste. É assim que os místicos fazem obras de poeta: quando inventam as metáforas que produzirão,
no lugar desse real, um sentido novo que o fará aceitável por aqueles que ainda permanecem fechados
para essa ordem de experiência (p. 145).

No entanto, fazer obra de poeta não se refere apenas ao fato de que místicos e poetas
compartilhem este trabalho metafórico de produzir sentidos, mas, trata-se do fato de que o
poeta também está implicado nessa tarefa de simbolização de um real irredutível. Assim, a
“vocação” do poeta e do religioso se coaduna no sentido de se originar de um encontro com o
real, real “que faz apelo à simbolização, apelo recebido como que vindo do Outro, e
experimentado como exigência, ou mesmo escolha” (Millot, 1993, p. 145).
Por outro lado, se as epifanias joycianas se referem, como bem comenta Soler (1998),
a uma “técnica que vai do dois, o dois necessário na escrita mínima para definir um contexto
– ou seja, S1-S2 – até o só um isolado (...), Joyce para construir suas epifanias rompe o
105

contexto de sentido e extrai esse objeto, isolando-o como S1” (p. 97). Assim, à diferença dos
místicos que fazem obra de poeta – como as Moradas de Santa Teresa de Ávila49 ou a Noite
Escura de São João da Cruz50 – Joyce, de modo singular, não faz das epifanias nenhuma
metáfora do encontro com o real que lhe ocorre. Ao contrário, trata-se de “resíduos
metonímicos, balizas, marcos sem memória, restos obscuros de uma conflagração muda.
Significações mortas onde não circula nenhum sentido novo, estas cenas, fragmentos de
diálogo, parecem os testemunhos cegos e inúteis do indizível” (Millot, 1993, p. 145). São
letras, enxames, cujo caráter trivial confina com o não-senso, pois o contexto do incidente
relatado é suprimido. Destaca-se um ponto essencial que se refere ao fato de que as frases
relatadas são interrompidas, ou repetidas até fazer as palavras se evacuarem se seu sentido
vazio e banal, impossibilitando haver um afivelamento da significação, visando, assim, um
efeito de não-senso. Sobre o assunto, Mandil (2003) comenta:

Podemos dizer que esse caráter destacável das epifanias, passíveis de deslocamentos e recombinações,
confere-lhes um estatuto de letra. Projetando nossa visão, encontramos aqui uma linha que, partindo das
epifanias, chegará à profusão de jogos de letras de Finegans Wake51 Nesse sentido, não seria exagero
afirmar que a letra, em Joyce, resulta de uma depuração máxima do fragmento epifânico (p. 127).

Um exemplo da manifestação epifânica em Joyce – dentre as onze epifanias que


compreendem somente uma das obras autobiográficas do escritor, o Retrato artista quando
jovem – pode ser encontrado na Revista Letra Freudiana – Retratura de Joyce: uma
perspectiva lacaniana (1993), com tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, como
apresentamos a seguir.
Epifania (solta) escrita em 1901 ou 1902:

[Bray: na sala de visitas da casa em Martello Terrace]


Sr Vance – (vem com uma vara) ... Oh, a senhora sabe, ele terá que pedir perdão, senhora Joyce.
Sra Joyce – Oh, está bem ... Você está ouvindo isso, Jim?
Sr Vance – Ou então – se ele não pedir as águias virão e arrancarão seus olhos.

49
Teresa de Jesus (Espanha, 1515-1577), mística católica, fundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços.
Dentre seus escritos espirituais, encontra-se a metáfora do “Castelo interior ou Moradas”, em que a autora traça
os estágios, como várias moradas de um castelo, em que a alma deve percorrer para chegar à perfeição e ao
encontro com Deus, que se encontra no centro do castelo. Nas “Sextas Moradas”, por exemplo, Teresa destaca
como a divindade suspende a alma na oração, através de arroubamentos, êxtases ou raptos (De Jesus, 2006).
50
João da Cruz (Espanha, 1542-1591), padre e místico católico, também fundador, com Teresa, da Ordem dos
Carmelitas Descalços. Dentre seus vários escritos e poemas, “Noite Escura” é um poema em que o autor
descreve o modo com que a alma deve percorrer o árido caminho espiritual – a noite do sentido e a noite do
espírito – para “chegar à perfeita união de amor com Deus” (Da Cruz, 2002, p. 438).
51
Finnegans Wake é o último romance de James Joyce, publicado em 1939. Tornou-se um dos marcos da
literatura contemporânea, pelo fato de ter sido escrito em fluxo de consciência, em uma linguagem composta
pela fusão de outras palavras, tanto da língua inglesa, quanto de outras línguas, sendo de difícil tradução para
outras línguas, devido à multiplicidade de equívocos e significados que as palavras comportam. Na epígrafe
dessa dissertação, apresentamos um fragmento desta última obra literária de Joyce, em uma tentativa de tradução
para o português empreendida pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos (2001) na obra conhecida como
“Panaroma do Finnegans Wake”.
106

Sra Joyce – Oh, mas eu estou certa de que ele vai pedir perdão.
Joyce – (embaixo da mesa, para si mesmo)
Arrancar seus olhos,
Pedir perdão,
Pedir perdão,
Arrancar seus olhos.
Pedir perdão,
Arrancar seus olhos,
Arrancar seus olhos,
Pedir perdão (Joyce, 1993, p. 113-114)52.

Em um contexto do Retrato do Artista quando jovem, escrito em 1916, sobre um


incidente autobiográfico que ocorrera entre os anos 1887 e 1891, podemos localizar o
“enxerto” da mesma epifania. Trata-se de um texto em primeira pessoa, em cuja cena Stephen
Dedalus – alter ego do escritor – diz que vai se casar com a pequena Eileen, quando os dois
crescerem:

Disse e se escondeu debaixo da mesa. Sua mãe ficou zangada:


– Stephen! Peça já desculpas.
Dante ameaçou:
– Ahn! Se não pedir, as águias virão arrancar-lhe os olhos.
Arranca os olhos desse freguês!
Então você diz isso outra vez?
Ah! Você vai dizer outra vez?
Arranca os olhos desse freguês!
Então você diz isso outra vez?
Arranca os olhos desse freguês!
Arranca os olhos desse freguês!
Ah! Ele não diz mais outra vez! (Joyce, 1916/1987, p. 22).

Se, de acordo com Lacan (1975-1976/2007), houve no caso de Joyce uma Verwerfung
de fato, uma demissão radical do Pai, do Nome-do-Pai, Lacan interroga em que se pode
reconhecer a loucura de Joyce. Afinal, Joyce seria louco? As epifanias joycianas, em termos
lacanianos, tratam-se dessa desconexão da cadeia significante, que isola o significante como
letra, desarticulado de sentido, isto é, um significante no real. Contudo, Joyce tem uma

52
“[Bray: in the parlour of the house in Martello Terrace]
Mr. Vance – (comes in with a stick)...O, you know, he’ll have to apologise, Mrs. Joyce.
Mrs. Joyce – O yes... Do you hear that, Jim?
Mr. Vance – Or else – if he doesn’t the eagles’ll come and pull out his eyes.
Mrs. Joyce – O, but I’m sure he will apologise.
Joyce – (under the table, to himself)
– Pull out his eyes,
Apologise,
Apologise,
Pull out his eyes.
Apologise,
Pull out his eyes,
Pull out his eyes,
Apologise.” (Joyce, 1993, p. 113-114).
107

solução distinta de um desencadeamento psicótico clássico. Suas epifanias, seu trato com a
letra, vem constituir uma experiência singular, sinthomática (Cordeiro & Guedes, 2014), que
não chega a habitar o ser com o sentido metafórico dos poetas ou o delírio dos psicóticos
clássicos, mas, trata-se de um fazer letra, um saber fazer com aquilo que se coloca como real,
em um texto que “se reduz ao real da letra como sentido esvaziado, esvaziamento este que
prepara a cama, o caminho do gozo de Joyce” (Millot, 1993, p. 147), o caminho do gozo da
letra.
108

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos


e com o estilo que seu endereçamento impõe,
levar o leitor a uma consequência
em que ele precise colocar algo de si”
(Lacan, 1966/1998m, p. 11).

Procurou-se nesse trabalho traçar um percurso teórico, a partir das elaborações de


Jacques Lacan sobre o inconsciente. E, nesse percurso, buscamos localizar alguns pontos em
que Lacan, ao construir sua teoria do inconsciente, caminha, do sentido do significante ao
gozo da letra. O que nos norteou foi a elaboração da tese do inconsciente estruturado como
uma linguagem, nos anos 1950, bem como o retorno do mesmo, nos anos 1970, sobre as
questões da letra, em sua vertente de materialidade, disjunta da vertente de sentido, mas
também fixando algo da ordem da pulsão, do gozo não passível de articulação pela via da
cadeia significante.
Vimos que no ensino dos anos 1950, marcado pelo retorno a Freud, Lacan funda uma
abordagem inédita do inconsciente freudiano, ressaltando um ponto importante da obra do
mestre de Viena. Trata-se de investigar as relações do sujeito com a ordem simbólica,
buscando, nesse sentido, resgatar a fala do sujeito enquanto função princeps da experiência
analítica. Para tal, Lacan se serviu do estruturalismo linguístico, inaugurado por Ferdinand de
Saussure e revigorado, nos meados do século XX, pela antropologia de Lévi-Strauss. Com
esses recursos em mãos, ele pôde formalizar o inconsciente freudiano, evidenciando nele uma
estrutura de linguagem. Na busca de esclarecer a função da estrutura de linguagem no
inconsciente, Lacan subverte o signo da teoria saussuriana da linguística, destacando no
inconsciente a função primordial do significante. Assim, o sujeito do inconsciente não é
substância, mas efeito da articulação de um significante que o representa para outro
significante. Tal articulação é dada de maneira ordenada pelas leis do significante – a
metáfora e a metonímia – abordadas por Lacan como as leis do inconsciente. Através da
metáfora e da metonímia, ele lê a incidência da condensação e do deslocamento na formação
dos sonhos, estrada real, já enunciada por Freud, de acesso ao inconsciente.
Para Lacan, o significante articulado na cadeia mínima (S1 – S2) é a condição do
inconsciente freudiano. Assim, o relevo é dado à vertente de sentido que a letra comporta ao
109

ser articulada em uma cadeia de significantes, como mensagem a ser decifrada nos
desfilamentos dos significantes produzidos pelo sujeito na associação livre, nos lapsos da
língua e nos sintomas que denunciam o desejo inconsciente.
Pois bem, se Lacan pretendeu mostrar que o inconsciente é ordenado através das leis
da linguagem, submetendo, de certa forma, o registro da pulsão ao domínio do registro do
inconsciente, em O Seminário, livro 11, ele dá um passo a mais, apresentando um novo modo
de se conceber esse que é um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Assim, Lacan situa
não um distanciamento, mas uma aliança entre o simbólico e a pulsão, entre o inconsciente
estruturado como linguagem e o gozo, de modo que ele centraliza novamente o inconsciente,
não sobre a continuidade da ordem significante, mas sobre a descontinuidade que se mostra
nas falhas do discurso, nos furos dos saber. Nesse contexto, o inconsciente está situado em
uma estrutura de hiância, sendo descrito como homólogo a uma zona erógena, a uma borda
que se abre e se fecha, em uma pulsação temporal.
O inconsciente, atualizado na transferência, possui como realidade consubstancial à
sua dimensão, a sexualidade. Sexualidade, que não implica complemento, mas uma relação do
sujeito com a falta encarnada pelo objeto a, objeto da pulsão, enfatizada em sua parcialidade,
sendo a um só tempo, causa de desejo e objeto mais-de-gozar. É nesse contexto que, através
das operações lógicas da alienação e da separação, Lacan discute como o sujeito é efeito da
cadeia de significantes, onde o Outro opera como produtor de sentidos (S1 – S2). Mas, por ser
o Outro marcado por uma falta, os sentidos que dele advém são incompletos e inconclusos.
Isso nos mostra que, na relação do sujeito com o Outro existe um intervalo, uma zona de
relação marcada por uma pulsação na qual se inscreve o sem sentido, o S1 isolado, enquanto
traço unário. Assim, Lacan discute como a interpretação analítica deve levar ao caráter
irredutível e insensato da cadeia de significantes. Desse modo, a interpretação não se abre a
todos os sentidos, uma vez que deve visar reduzir os significantes do sujeito a seu caráter de
não-senso.
Ao formalizar os discursos, em O Seminário, livro 17, um dos pontos que interessa a
Lacan é o fato da descoberta freudiana ter soletrado e escandido o inconsciente como um
saber articulado, um saber não sabido pelo sujeito, mas que o desconcerta quando o sujeito o
encontra. Após esse primeiro achado, que consiste em que os sujeitos falem, e que ao falar
tropecem, Freud foi conduzido a descobrir que existe algo além do princípio do prazer, cujo
dado essencial ele o constatou na compulsão à repetição. Nela, não se trata de um recomeço,
mas, segundo Lacan, de “um traço na medida em que comemora uma irrupção do gozo”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 81). Assim, tem-se tanto o sentido da repetição, como busca de
110

identidade perceptiva com a experiência de gozo, quanto o sentido de que aquilo que se
repete, repete-se nos sulcos, nos trilhamentos criados pelos traços significantes da experiência
de satisfação perdida. É assim que a repetição, ligada ao traço unário, é saber que se origina
com o significante, mas é também aquilo que constitui uma comemoração, em que temos o
inconsciente com memorial de gozo, “na medida em que o gozo ultrapassa os limites
impostos, sob o termo prazer, às tensões usuais da vida” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 50).
No texto Lituraterra, no contexto da procura por um discurso que não fosse da ordem
do semblante, em O Seminário, livro 18, Lacan retomará a letra, não como efeito dos
discursos, mas como um modo de abordar o real como impossível. Assim, Lacan caminha
para além do inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem, e para além do sentido
capturado nos efeitos da articulação significante, indo em direção ao real de um inconsciente
letrificado, que tem como seu expoente o significante sozinho e desarticulado de sua vertente
de sentido. Não bastou a Lacan, contudo, abordar a letra como materialidade, estrutura
tipográfica localizada do significante ou um significante esvaziado de sentido. A experiência
analítica põe em questão a letra em sua dimensão de mensageira, de sentido, de modo que o
significante não possibilita responder por tudo o que se passa em uma análise. Sendo assim, a
materialidade da letra tem sua conexão com o campo pulsional, com o campo do gozo, que
resta não simbolizável. Se o significante, por ser articulado, encontra-se no campo simbólico,
a letra está no real (Lacan, 1971/2009).
A conhecida viagem ao Japão, como também o encontro dele com a língua e o sujeito
japonês – um sujeito que se apoia em um céu constelado para constituir sua identificação –
faz Lacan introduzir uma oposição entre a cadeia de significantes e a noção de constelação.
Com a expressão “constelação de insígnias” (Lacan, 1960/1998j, p. 686), ele concebe um
modo diferente de identificação, distinto dos traços que se agrupam na cadeia de significantes,
cuja articulação mínima se abrevia em S1 – S2. Se nesse último caso, o que prevalece é um
encadeamento da ordem de uma representação do sujeito, em que o significante representa o
sujeito para outro significante, restando o sujeito dividido nesta representação, ao fazer
referência à constituição do Ideal do Eu como uma constelação de insígnias, Lacan apontará
para a redução do Outro como sistema significante. O significante vale como insígnia sempre
e quando está solto, isto é, fora do sistema.
O inconsciente se apresenta, nesse contexto, não como estruturado como uma
linguagem, mas como letra, como enxame de significantes, S1s desencadeados, uma vez que
constituem uma constelação de insígnias letrificadas, signos do gozo. É nesse sentido que o
inconsciente é real? Essa pergunta foi nos suscitada no decorrer de nossa pesquisa, na medida
111

em que encontramos na literatura psicanalítica contemporânea a menção de dois estatutos do


inconsciente: um inconsciente transferencial, atravessado pelo sentido dos significantes e o
outro, denominado inconsciente real, atravessado pela letra que fixa o gozo, em que o S1,
disjunto do S2, configura o sem sentido do significante, o enxame de letras que discutimos no
último capítulo desse estudo. Discussão, cujos ecos e desdobramentos não deixam de nos
interrogar, tal como mostramos ao retomar panoramicamente o que Lacan fala de Joyce em O
Seminário, livro 23. Ao construir suas epifanias sob o non sense da letra, seria esse escritor o
paradigma de um inconsciente real? Se não encontramos uma referência direta sobre o
inconsciente real em Lacan, Miller (2009) nos traz tal noção em um comentário sobre o
Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. De modo que o inconsciente real estaria no
momento em que o espaço de um lapso já não comporta nenhum impacto de sentido ou
interpretação, já não articula S1 e S2, já não faz amizade, nem laço transferencial que supõe
um sujeito suposto saber.
Todavia, se nos ativermos a esses dois estatutos do inconsciente, a nosso entender, isso
não implicaria a existência de dois inconscientes, no sentido de que o “inconsciente real” se
contraporia ao inconsciente estruturado como uma linguagem. Entende-se, com o enunciado
de Lacan e as construções de Miller (2009), aquilo que enuncia – já – os limites da
interpretação no transcurso de uma análise, fazendo vacilar o sentido do sintoma, restando
algo do sintoma que escapa a uma interpretação, mas que comporta o que é da ordem de um
gozo não significantizável, fixado pela letra, um significante no real. Isso nos permite
compreender o enunciado de Lacan em Lituraterra, ao dizer que Joyce, com sua letra, vai
“direto ao melhor que se pode esperar de uma psicanálise em seu término” (Lacan,
1971/2003c, p. 15).
Se Miller nos chama a atenção para ler o Prefácio de perto, pelo fato de ter sido escrito
ao fim do seminário sobre Joyce, qual a relação de Joyce com o inconsciente real, uma vez
que Lacan diz que Joyce, por meio de seu sinthoma, é “desabonado do inconsciente” (Lacan,
1975/2007, p. 160)? Desabonado, isto é, não assinante, ou seja, aquele que não avaliza mais,
que cancela um pacto contratual, que desacredita de alguma coisa. Sendo assim, isso
implicaria dizer que Joyce está desligado do inconsciente? Se assim o fosse, e se seu
desligamento fosse do inconsciente estruturado como linguagem, ao fazer lixo da letra,
conforme Lacan mencionou, Joyce se ligaria ao inconsciente real?
Outro ponto a ficar no horizonte de nossa investigação é o fato de Lacan dizer que a
linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua (Lacan, 1972-1973/1985). Esta última,
como foi visto, não é dada ao diálogo, uma vez que não é ordenada pelas leis da linguagem,
112

pela gramática, mas pelo monólogo dos uns do enxame de significantes, sendo, por isso
concebida do ponto de vista do real que implica “ausência de lei, pois o real não tem ordem”
(Lacan, 1975-1976/2007, p. 133). Se a linguagem, ao modo da qual o inconsciente é
estruturado, é uma elucubração de saber sobre o real da lalíngua, por que ainda denominar de
inconsciente o “inconsciente real”? Tal questionamento surge, uma vez que Lacan (1975-
1976) trata o real como distinto da verdade e do saber veiculados pela cadeia significante.
Com isso, ele diferencia o campo do inconsciente do campo do real, ao afirmar que “a
instância do saber renovada por Freud, quero dizer renovada sob a forma de inconsciente, não
supõe obrigatoriamente de modo algum o real de que me sirvo” (Lacan, 1975-1976, p. 128).
Assim, o real vem ser nesse sentido, uma invenção de Lacan (1975-1976/2007) “porque [diz
ele] se impôs a mim” (p. 128), colocando-se como uma reação à articulação freudiana do
inconsciente, inconsciente através do qual a descoberta de Freud faz um furo no discurso da
razão cartesiana centrada na consciência, furo ao qual, por conseguinte, o ensino de Lacan e
seu real vêm reagir como resposta sintomática. A partir disso, resta-nos interrogar o fato de
que a apresentação de Miller (2009) sobre o inconsciente real conjuga o inconsciente e o real
em uma mesma expressão, noções que, no entanto, o próprio Lacan diferenciou em seu
seminário sobre o sinthoma.
Nesse sentido, o ponto em que aportamos no presente estudo, certamente, não é o
ponto final da discussão sobre o conceito de inconsciente. O que buscamos nesse texto foi
apontar que o sentido do significante e o gozo da letra constituem balizas norteadoras a nos
mostrar importantes giros na abordagem lacaniana do inconsciente. Entretanto, Lacan ainda
fará novos giros. E assim, os pontos de interrogação levantados nessas considerações (não)
finais nos remetem a novas investigações que poderão ser contempladas em um
prosseguimento futuro de pesquisa.
Contudo, isso não seria possível se não tivéssemos podido traçar o caminho de Lacan,
com Lacan, seguindo seus textos de perto, soletrando alguns pontos teóricos cruciais do seu
ensino, ainda considerado por muitos, de difícil compreensão, mas que, devido a seu próprio
hermetismo, transmite um fascínio e deslumbra os que se deixam levar por sua letra. Nesse
sentido, o estudo por nós apresentado pode estar situado entre dois pontos: como um convite à
leitura, endereçado àqueles que pouco compreendem Lacan, e, para aqueles outros, já
familiarizados com o “lacanês”, como um convite à pesquisa e aos desdobramentos que o
texto de Lacan ainda convoca.
113

REFERÊNCIAS

Almada, F. C. L. (2014). Lacan, Poe e os efeitos de feminizacão pela carta/letra: semblante,


silêncio e gozo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
UFMG, Belo Horizonte.

Attié, J. (1987). A questão do simbólico. Transcrição: publicação do seminário do campo


freudiano, vol. 3. Salvador: Fator Editora.

Benveniste, É. (1976). Problemas de linguística geral. São Paulo: Companhia Editora


Nacional.

Bernardes, Angela. (2003). Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise. Rio de


Janeiro: Garamond.

Brousse, M. H. (1997). A pulsão I. In R. Feldstein; B. Fink & M. Jaanus (Org.). Para ler o
seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.

Bulcão, M. S. M. (2008). Sintoma e sinthoma: duas vertentes na arte de James Joyce. Escola
Letra Freudiana. Recuperado em 20 de novembro de 2014, de
http://escolaletrafreudiana.com.br/UserFiles/110/File/carteis2008/sc005.pdf.

Bursztyn, D. C. (2007). O tratamento da histeria: um enigma para a psiquiatria, um desafio


para a psicanálise. Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação em Psicanálise, UERJ,
Rio de janeiro.

Campos, A. & Campos, H. (2001). Panaroma do Finnegans Wake. 4. ed. São Paulo:
Perspectiva.

Cordeiro, É. F. & Guedes, P. F. M. (2014). O estatuto do inconsciente na clínica sinthomática


das chamadas psicoses ordinárias. Revista Subjetividades, 14(2), 241-255, Fortaleza.
Recuperado em 31 de janeiro de 2015, de
http://www.unifor.br/images/pdfs/subjetividade/2014_2_artigo5.pdf.

Deleuze, G. (1974). Em que se pode reconhecer o estruturalismo? In F. Châtelet (Org.).


História da Filosofia, ideias, doutrinas: o século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Texto originalmente publicado em 1967).

Dunker, C. I. L. (2006). Aspectos históricos da psicanálise pós-freudiana. In A. M. Jacó-


Vilela; A. A. L. Ferreira & F. T. Portugal (Org.). História da Psicologia: Rumos e
Percursos. Rio de Janeiro: Nau.

Freud, S. (1996a). Estudos sobre histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1895).
114

Freud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago.
(Texto originalmente publicado em 1895).

Freud, S. (1996c). Carta 52. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago. (Texto originalmente
publicado em 1896).

Freud, S. (1996d). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 4). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1900).

Freud, S. (1996e). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 5). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1900).

Freud, S. (1996f). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago.
(Texto originalmente publicado em 1905).

Freud, S. (1996g). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In Edição


Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12).
Rio de Janeiro: Imago. (Texto originalmente publicado em 1911).

Freud, S. (1996h). A dinâmica da transferência. In Edição Standard Brasileira das Obras


Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1912).

Freud, S. (1996i). Os instintos e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1915).

Freud, S. (1996j). História de uma neurose infantil. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1918).

Freud, S. (1996k). Além do princípio de prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Texto
originalmente publicado em 1920).

Freud, S. (1996l). A negação. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas


Completas de Sigmund Freud (Vol. 19). Rio de Janeiro: Imago. (Texto originalmente
publicado em 1925).

Garcia-Roza, L. A. (2007). Freud e o inconsciente. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Guerra, A. M. C. (2007). A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e


suplência. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
UFRJ, Rio de Janeiro.
115

Harari, R. (1990). Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Campinas:
Papirus.

Harari, R. (2002). Como se chama James Joyce?: A partir do seminário le sinthome de J.


Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Houaiss, A. & Villar, M. S. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de


Janeiro: Objetiva.

Jaanus, M. (1997). A desmontagem da pulsão. In R. Feldstein; B. Fink & M. Jaanus (Org.).


Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Jakobson, R. (2007). Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In Linguística e


comunicação. 24. ed. São Paulo: Cultrix.

João da Cruz, S. (2002). Noite escura. In São João da Cruz: obras completas. 7. ed.
Petrópolis: Vozes.

Joyce, J. (1987). Retrato do artista quando jovem. (J. G. Vieira Trad.). Rio de Janeiro:
Ediouro. (Texto originalmente publicado em 1916).

Joyce, J. (1993). Epifanias. Revista Letra Freudiana (B. S. Pinheiro, trad.). Ano 12, n. 13. Rio
de Janeiro: Dumará.

Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1985). O seminário livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1954-1955).

Lacan, J. (1985). O seminário livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário
originalmente proferido em 1972-1973).

Lacan, J. (1992). O seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Seminário originalmente proferido em 1969-1970).

Lacan, J. (1998a). O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é
revelada na experiência analítica. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto
originalmente publicado em 1949).

Lacan, J. (1998b). Intervenção sobre a transferência. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Texto originalmente publicado em 1951).

Lacan, J. (1998c). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1953).

Lacan, J. (1998d). Resposta ao comentário de Jean Hippolite sobre a verneinung de Freud. In


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1954).
116

Lacan, J. (1998e). A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud em psicanálise. In


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1955).

Lacan, J. (1998f). O seminário sobre a carta roubada. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Texto originalmente publicado em 1955).

Lacan, J. (1998g). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1957).

Lacan, J. (1998h). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1958).

Lacan, J. (1998i). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1958).

Lacan, J. (1998j). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da


personalidade. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente
publicado em 1960).

Lacan, J. (1998k). Posição do inconsciente no Colóquio de Bonneval. In Escritos. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1960).

Lacan, J. (1998l). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1960).

Lacan, J. (1998m). Abertura da coletânea dos escritos. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. (Texto originalmente publicado em 1966).

Lacan, J. (1999). O seminário livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1957-1958).

Lacan, J. (2003a). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In


Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em
1967).

Lacan, J. (2003b). Radiofonia. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto
originalmente publicado em 1970).

Lacan, J. (2003c). Lituraterra. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto
originalmente publicado em 1971).

Lacan, J. (2003d). Prefácio à edição inglesa do seminário 11. In Outros escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. (Texto originalmente publicado em 1976).

Lacan, J. (2005). O simbólico, o imaginário e o real. In Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar. (Texto originalmente publicado em 1953).

Lacan, J. (2007). O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
(Seminário originalmente proferido em 1975-1976).
117

Lacan, J. (2008a). O seminário livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Seminário
originalmente proferido em 1955-1956).

Lacan, J. (2008b). O seminário livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Seminário originalmente proferido em 1959-1960).

Lacan, J. (2008c). O seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.


ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1964).

Lacan, J. (2009). O seminário livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário originalmente proferido em 1971).

Laia, S. (2001). Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a loucura. Belo Horizonte:
Autêntica/FUMEC.

Laplanche, J. & Leclaire, S. (1969). O inconsciente: um estudo psicanalítico. In H. Ey. (Org.).


O inconsciente: VI Colóquio de Bonneval. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

Larousse. (2012). Le petit Larousse illustré 2013. Paris: Larousse.

Laurent, É. (1997). Alienação e separação I. In R. Feldstein; B. Fink & M. Jaanus (Org.).


Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Laurent, É. (1997). Alienação e separação II. In R. Feldstein; B. Fink & M. Jaanus (Org.).
Para ler o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lima, C. R. (2014). A interpretação em Lacan. Biblioteca online da Escola Brasileira de


Psicanálise. Recuperado em 01 de julho de 2014, de http://ebp.org.br/wp-
content/uploads/2012/08/Celso_Renno_A_interpretacao_em_Lacan1.pdf.

Machado, O. M. R. (1999). O diagnóstico em psicanálise: da clínica dos fenômenos à clínica


da estrutura. Dissertação de Mestrado, IPUB/UFRJ, Rio de Janeiro.

Maleval, J. C. (2009). La forclusión del Nombre del Padre: el concepto y su clínica. Buenos
Aires: Paidós.

Mandil, R. (2003). Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro: Contra Capa.

Mazzuca, R.; Schejtman, F. & Zlotnik, M. (2000). Las dos clínicas de Lacan: introducción a
la clínica de los nudos. Buenos Aires: Tres Haches.

Menicucci, J. G. (2008). A metáfora delirante na clínica das psicoses: limites e impasses.


Revista Cartas de Psicanálise, (4), 3, 2. Ipatinga: Centro de Estudos e Pesquisa em
Psicanálise.

Miller, J. A. (1994). S’truc dure. In Matemas II. Buenos Aires: Manantial Ediciones.
118

Miller, J. A. (1996). O escrito na palavra. Opção Lacaniana: Revista brasileira internacional


de psicanálise, (16), 94-102. São Paulo: Eólia.

Miller, J. A. (1998). Percurso de Lacan: uma introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1988.

Miller, J. A. (2000). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana: Revista brasileira


internacional de psicanálise, (26-27), 6-45. São Paulo: Eólia.

Miller, J. A. (2003). O último ensino de Lacan. Opção Lacaniana: Revista brasileira


internacional de psicanálise, (35), 6-24. São Paulo: Eólia.

Miller, J. A. (2005). Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.

Miller, J. A. (2009). Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar.

Miller, J. A. (2011). De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós.

Miller, J. A. (2012a). Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós.

Miller, J. A. (2012b). O monólogo da aparola. Opção Lacaniana online nova série, (9), 3.
Recuperado em 20 de julho de 2014, de http://www.opcaolacaniana.com.br/-
pdf/numero_9/O_monologo_da_aparola.pdf.

Millot, C. (1993). Epifanias. Revista Letra Freudiana, (13), 12. Rio de Janeiro: Dumará.

Milner, J. C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Miranda, C. E. S. (2007). O significante lacaniano e o significante saussureano, a metáfora e a


metonímia: contribuições à clínica psicanalítica. Revista Cartas de Psicanálise, (2), 2,
2. Ipatinga: Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise.

Nancy, J. L.; Labarthe, P. L. (1991). O título da letra: uma leitura de Lacan. São Paulo:
Escuta.

Pissetta, M. A. A. M. (2012). Inconsciente e transferência: perspectivas na clínica. Estud.


psicol., (29) 1, 95-103, Campinas. Recuperado em 20 de outubro de 2014, de
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v29n1/a11v29n1.pdf.

Platão. (1991). O banquete. In Coleção Os Pensadores. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural.

Poe, E. A. (1996). A carta roubada. In Os assassinatos na Rua Morgue e a carta roubada. 2.


ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Prado Coelho, E. (1967). Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e


estruturalismos. In Estruturalismo: antologia de textos teóricos. Lisboa: Portugália
Editora.
119

Quinet, A. (2008). A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 3. ed. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar.

Quinet, A. (2009). O campo do gozo e seus discursos. In Psicose e laço social: esquizofrenia,
paranoia e melancolia. 2. ed. Jorge Zahar.

Quinet, A. (2012). Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Rego, C. M. (2005). Traço, letra e escrita na/da psicanálise. Tese de Doutorado,


Departamento de Psicologia PUC-Rio, Rio de Janeiro.

Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Rubião, L. L. (2007). Lacan leitor de comédias: contribuições a uma ética do bem-dizer. Tese
de Doutorado, Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte.

Saussure, F. (1916). Curso de linguística geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix.

Schejtman, F. (2013). Sinthome: ensayos de clínica psicoanalítica nodal. Olivos: Grama


Ediciones.

Soler, C. (1997). O sujeito e o Outro I. In R. Feldstein; B. Fink & M. Jaanus (Org.). Para ler
o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.

Soler, C. (1997). O sujeito e o Outro II. In R. Feldstein; B. Fink & M. Jaanus (Org.). Para ler
o seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.

Soler, C. (1998). O filho necessário. In A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra


Capa.

Soler, C. (2012). Lacan, o inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Teresa de Jesus, S. (2006). Castelo interior ou moradas. 13. ed. São Paulo: Paulus.

Vieira, M. M. R. (2005). Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro. Tese
de Doutorado, Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte.

Vieira, M. M. R. (1998). Poe, Lacan e Derrida: o destino da letra. Dissertação de Mestrado,


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte.

Zucchi, M. A. (2007). O destino da anatomia: o inconsciente e sua relação com o corpo nos
sintomas contemporâneos. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, UFRJ, Rio de Janeiro.

Você também pode gostar