Jacques Lacan - o Inconsciente, Do Sentido Do Significante
Jacques Lacan - o Inconsciente, Do Sentido Do Significante
Jacques Lacan - o Inconsciente, Do Sentido Do Significante
Belo Horizonte
2015
ÉVERTON FERNANDES CORDEIRO
Belo Horizonte
2015
Ficha catalográfica
A Deus;
A meus pais e minha irmã, pelo apoio; A meus primos, Ivanilda e Júlio, pelo apoio e
acolhida nos momentos difíceis em Belo Horizonte.
À Profa. Dra. Márcia Rosa Rosa Vieira Luchina, que generosamente aceitou orientar
esta dissertação, fazendo-o com rigor e precisão;
Aos professores, Dra. Ana Cristina Figueiredo (IPUB/UFRJ), Dr. Paulo Vidal (UFF) e
Dra. Nádia Laguárdia (UFMG), pelas ricas contribuições em minha qualificação;
Aos professores, Dr. Antônio Teixeira (UFMG) – pelo chamado à verticalidade – e Dr.
Pedro Castilho (UEMG), por terem, ambos, aceitado com generosidade, participar de minha
defesa e pelas preciosas contribuições que nela fizeram e cujas ressonâncias perdurarão;
À Profa. Dra. Laura Lustosa Rubião, pelo saber compartilhado generosamente em uma
disciplina do mestrado e depois dela, aprendizado crucial para a construção dessa dissertação.
À Profa. Msc. Inês Seabra Rocha, pela amizade, apoio nos momentos difíceis e
interlocução teórica, com sugestões de leituras importantes para a escrita desse trabalho; e
pela crença na possibilidade de que um dia, eu também pudesse “subir Bahia e descer
Floresta”;
Aos colegas do mestrado, especialmente, Andréa Eulálio de Paula Ferreira, Juliana
Tassara Berni, Patrícia de Cássia Carvalho, Alberto Mesaque Martins, Gregório Miranda,
pelas alegrias e descontrações, pelos encontros, em que compartilhamos expectativas, projetos
e boas risadas;
Aos colegas de trabalho, especialmente, Maria Flávia Carvalho, Paulo Roberto Lima,
Vanessa Las Casas, Cláudia Stengel, Ramon Panadés, Charles Jackson Monteiro, Flávia
Fernandes, pela oportunidade de aprendizado e compartilhamento dos desafios e das surpresas
da clínica da psicose na urgência do Centro de Referência em Saúde Mental da Pampulha.
A meus professores e amigos, Virgínia Sanábio e Amâncio Borges, pelo aprendizado
na graduação em Psicologia e nos encontros do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise
(CEPP) de Ipatinga/MG, onde tudo começou.
Aos amigos de ontem e de hoje, Jane de Paula Martins, Elen Carla Martins Scarano,
Prof. Dr. Vagno Emygdio Machado Dias, Marcela Fernanda, Prof. Msc. Sérgio Luiz Santos,
Sergio Contreras, Samuel Damásio.
“riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos
por um commodius vicus de recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias.
Sir Tristão, violista d’amores, através o mar breve, não tinha ainda revoltado de
Norte Armórica a este lado do áspero istmo da Europa Menor para loucomover sua
guerra penisolada: nem tinham os calhões do altom sawyerrador pelo rio Oconee
sexagerado aos gorgetos de Laurens County enquanto eles iam dublando os
bebêbados todo o tempo: nem avoz de umachama bramugira mishe mishe a um
tautauf tuèspatruísquio: nem ainda, embora logo mais veniesse, tinha um novelho
exaurido um velho e alquebrando isaac: nem ainda, embora tudo seja feério em
Vanessidade, tinham as sesters sósias se enrutecido com o uníduo nathandjoe. Nem
um galão de papamalte haviam Jhem ou Shen recevado à arcaluz e auroras antes o
barcoíris fora visto circularco sobre a aquaface.
A queda
(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarr-
hounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) de um ex venerável negaciante é recontada
cedo na cama e logo na fama por todos os recantores da cristã idade. A grande queda
do ovalto do muro acarretou em tão pouco lapso o pftjschute de Finnegan, outrora
sólido ovarão, que a humptyhaltesta dele prumptamente manda uma testemunha para
oeste à cata de suas tumptytumtunhas: e o retrospicopontoepouso delas repausa em
pés no parque onde oranjos mofam sobre o verde desde o primoamor ao diablin levou
lívia.”
Esta dissertação pretende explorar o conceito de inconsciente, a partir das elaborações trazidas
por Jacques Lacan, localizando alguns dos giros teóricos, por meio dos quais o psicanalista
francês vai do sentido do significante ao gozo da letra. Nesse percurso, buscou-se investigar
como o referido conceito se coloca a partir das diferenciações operadas por Lacan entre a letra
e o significante. Nos anos 1950, sob o aforismo do inconsciente estruturado como linguagem,
encontramos uma noção de inconsciente condicionada pela cadeia significante. Sob outra
perspectiva, em O Seminário, livro 11, ele será descrito como hiância. Assim, a noção de
inconsciente transindividual ou intersubjetivo, posteriormente retificada em favor da
promoção do inconsciente como discurso advindo do campo do Outro, em uma perspectiva
distanciada da pulsão, dá lugar a um inconsciente pulsátil, pulsional, referindo-se a uma
aliança entre o simbólico e a pulsão, entre o inconsciente estruturado como linguagem e o
gozo. O inconsciente é descrito como homólogo a uma zona erógena, a uma borda que se abre
e se fecha, marcada pela hiância de uma pulsação temporal. Em O Seminário, livro 17, temos
o inconsciente como um saber articulado e não sabido pelo sujeito, mas que o desconcerta
quando encontrado. Após esse primeiro achado, Freud descobre que existe algo além do
princípio do prazer, cujo dado essencial, ele o constata na compulsão à repetição. Nela, não se
trata de um recomeço, mas, de um traço, na medida em que comemora uma irrupção do gozo,
diz Lacan. Nos anos 1970, ao melhor distinguir o campo da letra do campo do significante,
não somente do ponto de vista de sua literalidade e como estrutura localizada do significante,
mas também, como elemento que vincula algo da ordem do gozo, Lacan nos propõe pensar o
inconsciente como letra. Assim, a partir da concepção dos Uns do enxame de significantes no
inconsciente (S1, S1, S1, S1) desarticulados entre si, estar-se-ia, então, sob a perspectiva de
um inconsciente letrificado, não estruturado pela cadeia de significantes, haja vista a
possibilidade de a letra trazer a dimensão da noção de lalíngua que evidencia o gozo
entrevisto no sem sentido dos significantes. Como desdobramento, apresentamos ao fim desse
estudo, uma discussão contemporânea que tem sido construída acerca de dois estatutos do
inconsciente: real e transferencial.
Cette étude vise à explorer le concept de l'inconscient à partir des élaborations apportées par
Jacques Lacan, en localisant quelques-uns des tours théoriques parmi lesquels le
psychanalyste français va, avec le concept de l'inconscient, de la signification du signifiant à
la jouissance de la lettre. Dans cette démarche, nous avons cherché à étudier comment le
concept de l'inconscient est posé travers les différenciations effectuées par Lacan entre la
lettre et le signifiant. Dans les années 1950, sous l'aphorisme sur l'inconscient structuré
comme un langage, nous trouvons une notion de l'inconscient conditionnée par la chaîne
signifiante. Dans une autre perspective, dans Le Séminaire, livre 11, l'inconscient ne sera pas
décrit de la façon antérieure, mais comme béance. Ainsi, la notion d'un inconscient
transindividuel ou intersubjectif, plus tard rectifiée pour la promotion de l'inconscient comme
discours provenant du domaine de l'Autre, dans une perspective distanciée de la pulsion, cède
la place à un inconscient pulsatif, pulsionnel, en faisant référence à une alliance entre le
symbolique et la pulsion, entre l'inconscient structuré comme un langage et la jouissance.
L'inconscient est décrit comme homologue à une zone érogène, un bord qui s'ouvre et se
ferme, marqué par l'hiance d'une pulsation temporelle. Dans Le Séminaire, livre 17, nous
avons l'inconscient comme un savoir articulé, non connu par le sujet, mais le déconcertant
lorsque le sujet le trouve. Après cette première constatation, Freud découvre qu'il y a quelque
chose au-delà du principe de plaisir, dont le fait essentiel, il le trouve dans la compulsion de
répétition. Ici, il ne s'agit pas d'un nouveau départ, mais d'un trait, dans la mesure où une
irruption de la jouissance est célébrée, dit Lacan. Dans les années 1970, afin de mieux
distinguer le domaine de la lettre de celui du signifiant, non seulement du point de vue de sa
littéralité et en tant que structure localisée du signifiant, mais aussi comme un élément qui
relie quelque chose de l'ordre de la jouissance, Lacan propose de penser l'inconscient comme
lettre. Ainsi, depuis la conception des Uns de l'essaim de signifiants dans l'inconscient (S1,
S1, S1, S1) désarticulés entre eux, il serait, alors, dans la perspective d'un inconscient comme
lettre, pas structuré par la chaîne de signifiants, étant donnée la possibilité de la lettre apporter
la dimension de la notion de lalangue montrant la jouissance entrevue dans la manque de sens
des signifiants. Dans le prolongement, nous présentons à la fin de cette étude une discussion
contemporaine qui a été construit sur deux status de l'inconscientes: réel et transferenciel.
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................108
REFERÊNCIAS....................................................................................................................113
INTRODUÇÃO
Para nos levar à elaboração do presente estudo de cunho teórico, alguns objetivos
foram traçados mais especificamente:
Primeiramente, foi necessário recorrer aos textos iniciais do ensino de Lacan, a partir
dos quais sistematizamos, no primeiro capítulo, que tem como título “O inconsciente
simbólico em sua estrutura de linguagem”, a concepção do inconsciente estruturado como
uma linguagem. Dentre os textos primordiais que marcam esse período capital da afetação de
Lacan no campo psicanalítico, destacam-se Função e campo da fala e da linguagem na
psicanálise (1953), e A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957),
textos construídos sob a égide do estruturalismo linguístico. Nesse sentido, não se pôde furtar
em trazer à discussão algumas dessas referências incidentes no discurso de Lacan. Dentre
elas, além do texto saussuriano de 1916 (Curso de Linguística Geral), a clássica introdução
trazida por Eduardo Prado Coelho (1967), em sua coletânea portuguesa de textos sobre o
estruturalismo – Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e
estruturalismos. Esta última foi de singular auxílio para entender como Lacan se serviu da
contribuição dessa corrente de pensamento em florescência nos meados do século XX, e o
modo pelo qual a subverteu, centralizando novamente a clínica psicanalítica sobre as pedras
angulares do inconsciente e da sexualidade (Lacan, 1953/1998c). Pedras que, ao serem
deixadas de lado pelos pós-freudianos, faziam ruir o edifício psicanalítico, sobre o qual se
assentava uma psicologia que passava ao largo das propostas freudianas iniciais. Disso
decorre o retorno a Freud, proposto por Lacan, fundado sob a primariedade do significante, e
a tese de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
No segundo capítulo, intitulado “Inconsciente e pulsão: saber e memorial de gozo”,
buscou-se seguir as construções de Lacan, contextualizadas em O Seminário, livro 11, de
1964, ano crucial na vida do mestre francês, uma vez que foi definitivamente desligado – leia-
se excomunhão – da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), fundada pelo próprio Freud
em Viena. Sendo assim, Lacan funda sua própria Escola, a Escola Freudiana de Paris, e
profere seus seminários, não apenas a um público formado de analistas e clínicos, mas,
também, de jovens estudantes universitários, filósofos, entre outros intelectuais. Em 1964, ele
profere um seminário, elencando e dissecando o que considera como os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. Buscou-se, então,
apresentar no referido capítulo, os avanços feitos por Lacan ao tratar o conceito de
inconsciente sob uma outra perspectiva. De uma forma inédita, como ressalta Roberto Harari
(1990), Lacan introduz um termo – a hiância – afirmando-o como inerente ao conceito de
inconsciente. Assim, a noção de inconsciente transindividual ou intersubjetivo,
14
responder por tudo o que se passa em uma psicanálise. Ajudou-nos, nesse percurso da
pesquisa, o acesso a ricos trabalhos acadêmicos sobre o assunto. Dentre eles, Ram Mandil
(2003), em Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce, nos apresenta em sua tese, como a letra,
tomada a partir da leitura lacaniana de James Joyce, prepondera sobre o sentido dos
significantes. Os desenvolvimentos de Laura Rubião (2007), em sua tese sobre a leitura que
Lacan faz das comédias, nos permitiu desenvolver a evocação feita por ele das Nuvens de
Aristófanes, em Lituraterra, quando se refere aos significantes como nuvem de semblantes.
Márcia Rosa Vieira (2005), por sua vez, ao discutir em sua tese o sujeito constelar, a partir da
afirmação de Lacan sobre a vertente de identificação do sujeito japonês em um céu constelado
– e não apenas no traço unário – possibilita pensar um inconsciente em seu estatuto de letra,
um inconsciente letrificado, não estruturado pela cadeia de significantes. Isso se deu, tendo
em vista a possibilidade de a letra trazer a dimensão da noção de lalíngua que evidencia “o
fato de que o fenômeno essencial da lalíngua não é o sentido, mas o gozo: é a pulsão, e não a
significação, que move o ser falante” (Vieira, 2005, p. 163). Como desdobramento,
apresentamos, ao fim do capítulo, uma discussão contemporânea, proposta por Jacques-Alain
Miller, acerca de dois estatutos do inconsciente: real e transferencial (Miller, 2009).
16
falha sintomática, por trair uma renegação que não vem desta terra [EUA], onde Freud, por sua tradição,
foi apenas hóspede passageiro, mas do próprio campo cujo encargo ele nos legou e daqueles a quem
18
confiou sua guarda, digo do movimento da psicanálise, onde as coisas chegaram a tal ponto que a
palavra de ordem de um retorno a Freud significa uma reviravolta (Lacan, 1955/1998e, p. 403).
Diante desse cenário se pôde assistir no seio da psicanálise o eclipse de seus termos
mais importantes: o inconsciente e a sexualidade. Termos vívidos da experiência analítica
que, no entanto foram postos de lado no contexto do movimento psicanalítico dos meados do
século XX. Assim, a determinação de Lacan (1955/1998e) de que “o retorno a Freud é um
retorno ao sentido de Freud” (p. 405) consiste num momento crucial em que o destino da
psicanálise e, portanto, do inconsciente, se fazia questionar. Daí o apelo de Lacan
(1953/1998c) de que a técnica analítica “não pode ser compreendida nem corretamente
aplicada, portanto, quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam” (p. 247), de
modo que seu ensino tem o intuito de “demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno
sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala”
(Lacan, 1953/1998c, p. 247).
Lacan vem assinalar um ponto central da obra de Freud, para o qual a descoberta do
inconsciente se tratou de investigar as relações do sujeito com a ordem simbólica. Ele adverte
que desconhecer essa descoberta no seio da comunidade analítica é condenar a psicanálise à
ruína. E, sendo assim, buscou-se resgatar o foco até então prescindido no meio psicanalítico: a
fala do analisante, enquanto o único meio a ser considerado pela psicanálise; função central da
experiência analítica já enunciada no título do Relatório do Congresso de Roma, uma das
conferências capitais do seu ensino. Tratava-se, para Lacan (1953/1998c), de decifrar as
manifestações do inconsciente enquanto fenômenos de linguagem, sendo o tratamento dessas
formações do inconsciente orientado pela ideia de que “o sintoma se resolve por inteiro numa
análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagem
cuja fala deve ser libertada” (p. 270).
Em Função e Campo, Lacan (1953/1998c) nos recorda que foi a partir da fala do
paciente que a psicanálise foi construída. O método terapêutico inicial criado por Freud, em
parceria com Joseph Breuer, e fundado na experiência de uma fala que produzia efeitos no
sintoma, foi batizado por Bertha Pappenheim – a paciente histérica que ficou conhecida como
Anna O. – de talking cure, cura pela fala, tratamento pela palavra. Nessa ocasião, a
19
cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos
trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o
acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e
traduzido o afeto em palavras (p. 42).
Assim, por exemplo, no último caso clínico relatado por Freud nos Estudos sobre
Histeria – o caso de Elizabeth Von R. – recordamos que essa paciente sofria há mais de dois
anos com sintomas de astasia-abasia, apresentando dores nas pernas que lhe dificultavam ficar
em pé e andar. Freud (1895/1996a), ao escutar sua história não entendia a relação de tantas
desgraças e acontecimentos aparentemente normais com o tipo de sofrimento moral somado
aos sintomas motores que a paciente apresentava, uma vez que não existia fundamento para se
suspeitar da presença de qualquer afecção orgânica grave. Elizabeth era a filha mais velha e
preferida do pai, sendo após a morte desse último, o período em que os sintomas se
manifestaram. De modo que uma paciente inteligente e mentalmente normal não podia seguir
adiante e ter um futuro brilhante, desfrutar de sua vida social e de um casamento feliz em
decorrência de seu estado, enquanto via suas irmãs mais novas se casarem, ao mesmo tempo
em que ela própria suportava seus problemas, com ar alegre, no modo da belle indifférence
dos histéricos (Freud, 1895/1996a).
Segundo Joseph Attié (1987), em A questão do simbólico, Freud nota que o
fundamental no caso era a impotência da paciente para seguir em frente. Ele conclui que os
sintomas motores da paciente se desenvolveram após uma trilha específica ter sido aberta para
a conversão. Ou seja, a simbolização não se encontrava no primeiro plano, pois a abasia já se
encontrava lá, como uma paralisia funcional psíquica, sendo posteriormente reforçada pela
simbolização. De modo que, de acordo com o diagnóstico dado por Freud, tratava-se de uma
paralisia funcional simbólica, em que
a paciente criara ou aumentara seu distúrbio funcional por meio da simbolização, que encontrara na
astasia-abasia uma expressão somática para sua falta de uma posição independente e sua incapacidade
de fazer qualquer alteração em suas circunstâncias de vida, e que expressões como ‘não ser capaz de dar
um único passo à frente’ e ‘não ter nada em que se apoiar’ serviram de ponte para esse novo ato de
conversão (Freud, 1895/1996a, p. 197).
20
Freud, então, aponta a existência de uma interseção entre a dor física e a palavra falada
– “ficar pregada no lugar”, “não ter nenhum apoio na vida”, “sentimento de impotência”, etc.
– emitida pela própria paciente. O sintoma de Elizabeth simbolizava o “ficar só, ficar de pé”,
de modo que a solidão, a dificuldade de caminhar, de ficar em pé e o cansaço, encontravam-se
inscritos na paralisia de suas pernas. Sabemos que isso interessa profundamente a Lacan
(1964/2008c), o qual pôde dizer que se o inconsciente se encontra na origem da descoberta de
Freud, foi a partir da sua clínica com a histeria: “o caminho do inconsciente freudiano foram
as histéricas que o ensinaram a Freud” (p. 20). A escuta das histéricas impulsionou Freud a
refletir sobre essa estreita relação entre a linguagem e o sintoma, no sentido de haver uma
causalidade psíquica que indica o papel da representação mental no inconsciente atuando no
corpo.
Ao evidenciar que a psicanálise opera através da fala do analisante, Lacan demonstra,
a partir de Freud, como o inconsciente opera através da linguagem. Assim, Lacan
(1953a/1998) retoma A interpretação dos sonhos, obra-prima de Freud, sobre a qual observa
que o sonho tem a estrutura de uma frase, cuja letra, como um rébus, aponta uma escrita que
reproduz “o emprego fonético e simbólico, simultaneamente, dos elementos significantes 1 que
tanto encontramos nos hieróglifos do antigo Egito quanto nos caracteres cujo uso a China
conserva” (p. 268). Trata-se, então, de esclarecer a função do significante no inconsciente,
função primordial sobre a qual se fundamentou a afirmação de que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem.
1
Sobre o entendimento do que é significante, voltaremos.
21
língua não é um sistema de conteúdos, mas um sistema de formas e de regras” (p. 16), de leis
que ordenam a função da fala. Essas leis estão inseridas em um campo que Lacan denomina
Simbólico.
O Simbólico, junto com o Imaginário e o Real, compõe, para Lacan (1953/2005), a
tríade dos registros essenciais da realidade humana. Como aponta Miller (1988), cada um
desses registros possui um destaque no decorrer do ensino de Lacan. Primeiramente, temos a
predominância do registro imaginário, cuja teoria remonta ao período que antecede a 1953. O
cerne dessa teoria pode ser encontrado na formulação de Lacan do Estádio do Espelho (Lacan,
1949/1998a), cujo texto, escrito para o XVI Congresso da IPA de Marienbad em 1936 e,
posteriormente reformulado em 1949, é considerado o objeto da primeira intervenção de
Lacan no campo da psicanálise (Miller, 1988).
O Estádio do Espelho compreende o período anterior ao Édipo, no qual a criança,
entre os seis e dezoito meses de idade, em decorrência do caráter prematuro de sua formação
neurológica quando de seu nascimento, ainda não possui uma gestalt unificada de seu corpo.
A partir do interesse por sua imagem captada ludicamente no espelho, ou seja, a partir da
visão de um semelhante, a criança finda um período de vivência psíquica da angústia de um
corpo fragmentado, dando lugar à antecipação da vivência de unificação de seu corpo. Assim,
a criança fica assujeitada ao imaginário, confundindo a si mesma com sua imagem no
espelho, uma vez que a imagem é dela, mas, ao mesmo tempo é a de um outro que está em
déficit em relação a ela, tendo em vista seu estado fisiológico, configurando sua situação
constitutiva de desamparo (Miller, 1988).
Lacan observou a existência de uma alienação imaginária que consiste no fato da
criança se identificar com a imagem de um outro, identificação essa que é constitutiva do eu
(moi) no humano. Contudo, essa relação imaginária entre o eu e o outro é fundamentalmente
mortífera, pois presta a uma confusão do eu com o ser do sujeito. De modo que, para que se
produza uma humanização do desejo, faz-se necessário haver uma esquize do sujeito, baseada
na alienação do eu à imagem especular do outro (Maleval, 2009). Assim, a imago, como
Lacan nomeia essa imagem que o eu assume, mostra como a formação do eu (moi) está ligada
a uma função de desconhecimento. O infans2 participa imaginariamente da formação total de
seu corpo ao se ver duplicado pela imagem refletida. Lacan, então, nos fala de uma matriz
simbólica necessária, encarnada pelo Outro que segura a criança e lhe aponta, nomeando a
2
Infans, -antis: sinônimo latino para enfant (francês), infante ou criança (português), que designa aquele que
ainda não fala, vinculando a aquisição da linguagem como a passagem da criança do estado de infans – o que
não fala – para a posição de sujeito falante.
22
imagem do espelho como sendo dela, fazendo assim com que ela perceba que o outro
especular não é real, mas a imagem dela própria. Esse Outro, como instância que nomeia, ao
apontar para a imagem da criança, dizendo a ela “tu és isto!”, constitui essa matriz simbólica
da estruturação do eu, com a qual a criança estabelece uma identificação (Lacan,
1949/1998a). Para Lacan (1949/1998a),
a assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e
na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á, pois
manifestar, numa forma primordial, antes de objetivar na dialética da identificação com o outro e antes
que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (p. 97).
Já em Função e Campo, ao dizer que “o homem fala, pois, mas porque o símbolo o fez
homem”, Lacan (1953/1998c, p. 278) começa a distinguir o eu em sua dimensão imaginária
(moi) e o sujeito (je) enquanto termo simbólico, privilegiando este último registro. O
simbólico possui duas vertentes, a vertente da fala e a vertente da linguagem (Miller, 1988),
sobre o qual Lacan dirá que a ordem simbólica configura esse campo de linguagem onde o
sujeito está inserido antes mesmo de sua existência biológica. A função da linguagem seria
então fazer passar o sujeito, da existência animal para a existência humana, o campo da
cultura. De modo que, como será visto, quando o inconsciente demonstra sua dependência ao
discurso do Outro, a divisão do sujeito se afirma, ficando a alienação imaginária subordinada
à alienação significante (Maleval, 2009).
3
Cf. em Em que se pode reconhecer o estruturalismo? de Gilles Deleuze, artigo publicado em 1967. In:
Châtelet, François. (org). História da Filosofia, ideias, doutrinas: o século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1974, pp. 271-303.
23
4
Como aqui estamos discutindo a metáfora paterna enquanto função do simbólico, retornaremos mais adiante
sobre os termos metáfora e metonímia.
25
envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles
que irão gerá-lo ‘em carne e osso’; trazem em seu nascimento, com os dons dos astros, senão com os
dons das fadas, o traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a
lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-além de sua própria morte; e, através
deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o verbo absolve seu ser ou o condena – a menos que
ele atinja a realização subjetiva do ser-para-a-morte (p. 280).
Lacan (1953/1998c) ressalta em Função e Campo que os meios dos quais a psicanálise
deve se valer em sua práxis são os da fala, na medida em que a fala “confere um sentido às
funções do indivíduo” (p. 259). O campo é o do discurso concreto, concebido como “campo
da realidade transindividual do sujeito” (Lacan, 1953/1998c, p. 259), assim como também, as
operações concernem às da história naquilo que “ela constitui a emergência da verdade no
real” (Lacan, 1953/1998c, p. 259). Com a noção de realidade transindividual, Lacan
(1953/1998c) ainda enfatiza uma dimensão intersubjetiva associada à função da fala na
experiência analítica. Tal noção implica que a constituição do sujeito se dá pela condição
intersubjetiva do discurso.
26
a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como
eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a “mim”, torna-
se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu (Benveniste, 1976, p. 286).
Nesse sentido, o eu somente pode ser empregado quando em uma alocução existir um
tu no lugar de alocutário, constituindo uma condição de diálogo. O tu, por sua vez, em uma
situação recíproca, pode se designar também como eu quando se dirige ao interlocutor como
tu. Sendo assim, de acordo com Bernardes (2003), a ideia de intersubjetividade encontrada em
Função e Campo consiste na existência de uma função de endereçamento da fala presente na
experiência analítica. Essa autora nos recorda que, desde o texto Intervenção sobre a
transferência de 1951, Lacan já se propunha pensar a experiência analítica como
intersubjetividade, sendo aí colocada uma dimensão de diálogo, sobre o qual ele escreveu que
“numa psicanálise, com efeito, o sujeito propriamente dito constitui-se por um discurso em
que a simples presença do psicanalista introduz, antes de qualquer intervenção, a dimensão do
diálogo” (Lacan, 1951/1998b, p. 215).
Todavia, de acordo com Bernardes (2003), a noção de diálogo em Função e Campo
sofre um remanejamento para a ideia de que a fala traz em si sua resposta, como diz Lacan
(1953/1998c): “o que eu busco na fala é a resposta do outro” (p. 301). Dessa maneira,
compreende-se que o sujeito, ao falar, assume essa intersubjetividade, uma vez que nesse caso
a fala comporta seu interlocutor. Nesse sentido, Lacan (1953/1998c) diz que “não há fala sem
resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ele tenha um ouvinte e que esse
é o cerne de sua função na análise” (p. 249); ou ainda, demonstrando influências
benvenistianas, ao dizer que “a alocução do sujeito comporta um alocutário” (p. 259). Há,
nesse caso, uma antecipação do conceito de grande Outro que Lacan irá formular anos depois
(Lacan, 1958/1998h).
27
Distinto do outro como alguém a quem se fala numa dimensão dialógica, para a
discussão que aqui nos concerne, o (grande) Outro é concebido como o lugar dos significantes
encontrados pelo sujeito a partir de sua entrada no campo da linguagem. Esta última, como
vertente da ordem simbólica, coloca-se em uma relação de anterioridade ao sujeito, ou como
Garcia-Roza (2007) observa, trata-se de “um conjunto estrutural independente do indivíduo
que fala” (p. 227).
Como aponta Antônio Quinet (2012), a linguagem, compreendida nesse sentido, pode
ser designada como um dos nomes do Outro em Lacan, e assim podemos nos referir ao Outro
da linguagem. Ela é o lugar do inconsciente em Freud, o que possibilitará a Lacan enunciar
repetidas vezes em seu ensino a fórmula “o inconsciente é o discurso do Outro”. Significa,
então, dizer que o inconsciente é o discurso do circuito no qual o sujeito está integrado e do
qual ele é um dos elos, discurso que efetua um pequeno circuito no qual se prendem uma
família inteira, um bando inteiro, uma facção inteira, uma nação inteira ou a metade do globo,
conforme exemplifica Lacan (1954-55/1985):
É o discurso do meu pai, por exemplo, na medida em que meu pai cometeu faltas as quais estou
absolutamente condenado a reproduzir (...). Estou condenado a reproduzi-las porque é preciso que eu
retome o discurso que ele me legou, não só porque sou o filho dele, mas porque não se para a cadeia do
discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem.
Tenho de colocar a outrem o problema de uma situação vital onde existem todas as probabilidades que
ele também venha a tropeçar (p. 118).
É do Outro que o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida. É a escuta
do Outro que faz com que o sujeito saiba, somente no a posteriori5, o que ele próprio, sem
saber, desejava. Dessa maneira, a fórmula lacaniana de que o inconsciente é o discurso do
Outro é um modo de indicar a determinação simbólica do sujeito, afirmando, assim, a ex-
sistência (existência fora) do inconsciente fundada na atualidade que possui em seu presente o
futuro anterior. É no a posteriori que o sujeito se dá conta do que terá sido, sem que o
soubesse de antemão (Vieira, 1998).
Importa ressaltar que o Outro não é alguém, não é o tu do diálogo de Benveniste, mas,
trata-se de um lugar. Uma vez abandonada a lógica intersubjetiva, Lacan (1958/1998h)
5
Segundo o Dicionário de Psicanálise (Roudinesco & Plon, 1998), a posteriori (nachträglich), trata-se de um
termo introduzido por Sigmund Freud, em 1896, visando designar um processo de reorganização ou reinscrição,
através do qual os acontecimentos traumáticos adquirem significação para o sujeito apenas em um a posteriori,
ou seja, em um contexto histórico e subjetivo posterior, que lhes confere uma nova significação (p. 32).
28
6
Do original: “L’inconscient est cette partie du discours concret en tant que trans-individuel, qui fait défaut à la
disposition du sujet pour rétablir la continuité de son discours consciente”. Segundo o dicionário enciclopédico
francês Larousse (2012), “transindividual” (trans-individuel) quer dizer, aquilo que excede e ultrapassa a
individualidade, aplicando-se a vários indivíduos ou objetos.
29
O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua historia - ou seja, nós o ajudamos a
perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo número de
“reviravoltas” históricas. Mas, se eles tiveram esse papel, já foi como fatos históricos, isto é, como
reconhecidos num certo sentido ou censurados numa certa ordem. (Lacan, 1953/1998c, p. 263).
Sabemos que Lacan, em seu primeiro ensino, aborda a linguagem enquanto estrutura
do inconsciente. Como vimos, ele é influenciado por Lévi-Strauss, do qual ele retoma a noção
30
de estrutura. Segundo Prado Coelho (1967), por estrutura pode-se entender um conjunto de
elementos quaisquer, entre os quais existem uma ou várias leis de composição ou operações
que os definem com elementos. A estrutura possui um caráter sistemático, em que os
elementos se combinam de tal maneira que, ocorrendo qualquer modificação em um deles,
ocorrerá uma modificação em todos os outros. Isso se deve ao fato de que o valor de cada
elemento não depende somente de si mesmo, mas, sobretudo, da posição que ele ocupa em
relação a todos os outros elementos do conjunto (Prado Coelho, 1967).
Lacan, ao formular que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, concebe,
primeiramente, que o inconsciente é uma estrutura. Ou seja, o inconsciente não se trata de um
fluxo contínuo, não discernível, ou uma reserva de coisas heteróclitas, independentes umas
das outras e reunidas em uma espécie de saco. Nele discernimos elementos e esses elementos
constituem um sistema (Miller, 2012b). Mais tarde, em O Seminário, livro 11, Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise – daqui em diante denominado O Seminário 11 –,
Lacan (1964/2008c) dirá que o inconsciente não é “de modo algum o inconsciente romântico
da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da noite” (p. 31). O seu retorno a Freud
propõe que ao nível do inconsciente existe algo homólogo em todos os pontos ao que se passa
ao nível do sujeito, uma vez que isso fala e funciona de modo tão elaborado quanto o nível
consciente que perde assim seu privilégio (Lacan, 1964/2008c).
Lacan diz que, em A Interpretação dos Sonhos, Freud não faz senão referências aos
jogos dos significantes. Assim, o inconsciente é revisitado por Lacan, sobre o qual afirma não
ser uma sede de instintos, mas lugar de significantes: “o inconsciente não é o primordial nem
o instintivo e, de elementar, conhece apenas os elementos do significante” (Lacan,
1957/1998g, p. 526). Portanto, o inconsciente não é o caótico, não está nas profundezas onde
uma atribuição errônea à psicanálise como psicologia profunda não caberia. Pelo contrário, o
inconsciente, na medida em que em Freud pode ser formulado em termos de representantes
psíquicos, tem um estatuto simbólico, sabendo se organizar através das leis da linguagem que,
a partir de Freud, Lacan busca formalizar como as leis do inconsciente7.
Lacan se apropriou dos elementos da Linguística iniciada pelo suíço Ferdinand de
Saussure (1857-1913). Essa ciência trouxe para os meados do século XX os fundamentos do
Estruturalismo, sistema de pensamento que influenciou toda uma geração de intelectuais de
diversos campos do saber, como o linguista Roman Jakobson, o antropólogo Claude Lévi-
7
Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, logo em suas primeiras páginas, Lacan
assinala: “para-além dessa fala, é toda a estrutura da linguagem que a psicanálise descobre no inconsciente.
Pondo desde logo o espírito prevenido em alerta, porquanto é possível que ele tenha de reavaliar a ideia segundo
a qual o inconsciente é apenas a sede dos instintos” (Lacan, 1957/1998g, p. 498).
31
como uma disciplina científica. Saussure (1916/2006) concebe a língua não como uma
nomenclatura, ou uma simples lista de termos que corresponderiam a outras tantas coisas, (por
exemplo, a descrição de cavalo remeteria à palavra “cavalo” de maneira natural). Para o
linguista genebrino, esta concepção reduziria a língua a ideias completamente feitas,
preexistentes às palavras, em que o vínculo de um nome a uma coisa fosse dado de uma
maneira muito simples.
No entanto, dessa discordância, Saussure (1916/2006) extrai o fato de que existe uma
entidade linguística constituída da união de dois termos que ele denomina signo linguístico. A
formação do signo é também descrita pelo recorte simultâneo de duas massas flutuantes, a
exemplo de uma nebulosa ou de nuvens: a massa dos sons e a massa dos pensamentos8. No
interior dessas massas, nem os sons, nem os conceitos aparecem como tais antes do corte
próprio da língua (Figura 1).
Figura 1: Esquema saussuriano representando a língua, como uma série de subdivisões contíguas
marcadas simultaneamente sobre os planos: das idéias confusas (A) e dos sons indeterminados (B)
Fonte: Saussure, 1916/2006, p. 130
Ao contrário de unir uma coisa a uma palavra, em uma função nominativa da língua, o
signo linguístico é uma combinação de um conceito com uma imagem acústica ou sonora.
Saussure (1916/2006) diz que essa imagem acústica não é o som material ou físico, mas se
trata da impressão psíquica desse som, ou seja, de uma representação sonora que nos dá o
testemunho de nossos sentidos, uma imagem que é “sensorial e, se chegamos a chamá-la
‘material’, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo de associação, o conceito,
geralmente mais abstrato” (p. 80). Ao conceito denominou-se “significado”, e à imagem
acústica “significante”. Assim, a combinação do significado e do significante forma essa
unidade linguística que Saussure estabelece como signo, graficamente reproduzida como duas
8
“F. de Saussure ilustra com uma imagem que se assemelha as duas sinuosidades das Águas superiores e
inferiores nas miniaturas dos manuscritos do Gênesis. Duplo fluxo onde parece tênue o marco dos finos riscos de
chuva que ali desenham os pontilhados verticais que se supõe limitarem segmentos de correspondência” (Lacan,
1957/1998g, p. 506).
33
faces que se articulam por uma barra que os une e duas flechas opostas, significando que uma
das faces sempre reclama a outra mutuamente, numa ordem fechada e indissociável,
representada por uma elipse que envolve as duas faces (Figura 2):
A lei fundamental da linguagem é esta: não há nela nada que possa residir num termo, porque os
símbolos linguísticos não estão em relação com o que devem designar, dado que a só designa alguma
coisa com o auxílio de b, assim como b com o auxílio de a, e que ambos só valem pela sua diferença
recíproca, e que nenhum deles vale seja o que for senão por este complexo de diferenças eternamente
negativas (p. 18).
34
Assim, para Jakobson (2007) existem dois tipos de afasia, de acordo com a deficiência
principal encontrada na faculdade de seleção e substituição, analisada segundo o distúrbio da
similaridade; ou na faculdade de combinação e contexto, analisada no distúrbio da
contiguidade. No primeiro caso, há um prejuízo das operações metalinguísticas, enquanto no
segundo a dificuldade se encontra em preservar a hierarquia das unidades linguísticas. Desse
modo, existe uma incompatibilidade entre a metáfora e o distúrbio da similaridade e entre a
metonímia e o distúrbio da contiguidade, dois termos que discutiremos a partir de Lacan
(1957/1998g).
ocupa uma posição de comando, um lugar de destaque, de onde a letra tem poder de decisão e
exerce autoridade, de onde rege e legisla (Nancy e Labarthe, 1991). Para os autores, a noção
de letra designa a estrutura da linguagem, na medida em que o sujeito nela está implicado. O
sujeito, definido a partir da hegemonia dada por Lacan ao simbólico, é concebido em sua
literalidade, ou seja, capturado pela letra, ele é efeito da estrutura da linguagem, sendo esta
pré-existente a ele. Essa literalização está ligada à primariedade conferida ao significante, ao
fato do sujeito tomar emprestado da estrutura da linguagem a letra que, como designa Lacan,
é “este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem” (Lacan,
1957/1998, p. 498).
Sabemos que a noção de letra já havia sido abordada por Lacan em outros momentos.
Dois anos antes, em O Seminário sobre A carta roubada (1955), ao comentar sobre o
automatismo de repetição, Lacan diz que ele consiste na insistência da cadeia significante
própria do simbólico. A insistência tem seu correlato na ex-sistência, termo criado por Lacan
para designar um lugar excêntrico, onde convém situar o sujeito do inconsciente representado
por um significante (Lacan, 1955/1998f).
Em Além do Princípio de Prazer (1920/1996k), Freud nos dá um exemplo de seu neto
que, para simbolizar a ausência e a presença de sua mãe, utiliza-se de um carretel amarrado a
um fio. A criança joga o carretel, em um movimento de afastar e de aproximar o brinquedo,
emitindo um som, o par de significantes O e A, respectivamente. Freud interpreta os sons da
criança como referentes às palavras alemãs Fort (para longe) e Da (para perto). De modo que
a criança tenta ao nível da fala situar um par de significantes opostos, através dos quais possa
simbolizar a ausência e a presença da mãe. No jogo do carretel, a criança repete algo que para
ela foi desagradável, o que leva Freud a concluir que o automatismo de repetição pode se
colocar a serviço da pulsão de morte (Freud, 1920/1996k).
Esse exemplo é tomado com o intuito de ilustrar que na cadeia significante temos um
significante que mantém com o outro uma relação de oposição, definindo-se somente pela
diferença, uma mínima oposição simbólica binária grafada como S1 – S2, a qual Miller
(1994) aponta como a herança direta da hipótese estruturalista no ensino de Lacan: “O
significante só se constitui por uma reunião sincrônica e enumerável, na qual qualquer um só
se sustenta pelo princípio de sua oposição a cada um dos demais” (Lacan, 1960/1998l, p.
820). Assim, a excentricidade do sujeito do inconsciente, apontada no termo ex-sistência,
decorre de que o sujeito só pode aparecer como efeito de significação entre o S1 (significante
índice um, significante mestre) e o S2 (significante índice 2), onde compreendemos que um
significante representa o sujeito para outro significante, visto que um significante não pode
38
10
Cf. em “Poe, Lacan e Derrida: o destino da letra”, Dissertação de Mestrado em Filosofia de autoria de Márcia
Maria Rosa Vieira (UFMG, 1998).
39
voltando a nossos policiais, como poderiam eles apoderar-se da carta, eles que a apanharam no lugar
onde estava escondida? Naquilo que reviravam entre os dedos, que outra coisa seguravam eles senão o
que não correspondia à descrição que tinham dela? A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo.
Fizeram-se trocadilhos, no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês. A
espécie de dejeto que os policiais manipulam nesse momento tampouco lhes revela sua outra natureza
por estar apenas meio rasgada. Um sinete diferente sobre um lacre de outra cor, e um outro estilo de
grafismo no sobrescrito são, ali, o mais inquebrantável dos esconderijos (p. 28, grifos nossos).
A palavra lettre na língua francesa, e a palavra letter na língua inglesa, podem ter o
significado, tanto de carta, quanto de letra. No trocadilho assinalado, ao tratar a carta como
portadora de uma mensagem e ao mesmo tempo dejeto, lixo (litter), Lacan se refere a uma
dupla essência da carta/letra: a primeira ligada ao significante, e a segunda em sua dimensão
de matéria, de resto, de lixo. Essa outra natureza está no fato de que, após ter alcançado sua
destinatária – a rainha – cumprindo assim sua função de mensageira, a carta/letra tem uma
outra essência: não estando somente do lado da mensagem, enquanto elemento de um sistema
significante, a carta/letra também possui uma materialidade, e, por isso, é manuseável,
podendo ser esquecida, rasgada, guardada, adulterada ou tratada como detrito, resto ou pedaço
de papel escrito (Mandil, 2003).
Lacan faz uso da expressão a letter, a litter (uma carta, uma letra, um lixo), referindo-
se a James Joyce (1882-1941), o que não é por acaso, uma vez que esse escritor irlandês
tratou sua escrita como restos de letras, como riscos literários ininteligíveis, rompendo com o
padrão linear literário tradicional. Assim, no conto, a carta/letra roubada passa despercebida,
adulterada como um lixo (litter), pelo fato de não corresponder à descrição dada pela rainha
aos policiais, ou seja, por não se encaixar numa cadeia pré-determinada de sentido. A carta
não responde aos policiais, uma vez que eles não a convocam no lugar em que sua forma
modificada seria capaz de atender (Mandil, 2003, p. 28).
A letra é, nesse sentido, designada como materialidade do significante. Materialidade
que “é singular em muitos pontos, o primeiro dos quais é não suportar ser partida”, diz Lacan
40
(1955/1998f, p. 26), mostrando que, mesmo sendo picada em pedaços, a carta/letra continuará
a ser aquilo que é. Pois o significante é uma unidade, é único e, por sua natureza simbólica,
constitui-se um símbolo de uma ausência. Lacan entende que os policiais, se não acharam a
carta/letra, é devido ao fato deles possuírem uma noção imutável da realidade. E, por isso, não
perceberam que o modo como eles buscaram a carta, transformou-a em um objeto que está ou
não em algum lugar. Viram a carta como objeto e não como significante. Pois, enquanto
símbolo de uma ausência, o significante difere dos objetos e, sendo assim, a carta/letra
enquanto significante “estará e não estará onde estiver, onde quer que vá”, como aquilo que
simboliza uma ausência, como o que falta em seu lugar. Sobre isso, Lacan (1955/1998f)
comenta:
É a imbecilidade realista, que não se limita a se dizer que nada, por mais que uma mão venha a enterrá-
lo nas entranhas do mundo, jamais estará escondido ali, uma vez que outra mão poderá encontrá-lo, e
que o que está escondido nunca é outra coisa senão aquilo que falta em seu lugar, como é expresso na
ficha de arquivo de um volume quando ele está perdido na biblioteca. E este, de fato, estando na
prateleira ou na estante ao lado estaria escondido, por mais visível que parecesse. É que só se pode dizer
que algo falta em seu lugar, à letra, daquilo que pode mudar de lugar, isto é, do simbólico. Pois, quanto
ao real, não importa que perturbação se possa introduzir nele, ele está sempre e de qualquer modo em
seu lugar, o real o leva colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso (p. 28).
Ao final do conto, a carta/letra recuperada por Dupin dos aposentos do Ministro, ao ser
entregue à polícia, tem sua importância reduzida. O que restou do significante depois de se
despir de sua mensagem para a rainha, torna-o sem valor no que se refere a seu texto, à sua
mensagem. Quando a carta/letra sai do poder do Ministro, dela resta somente um significante
sem significação, uma letra em sua materialidade (Vieira, 1998).
Para Lacan esta pura função do significante implica que ele funcione como algoritmo,
ou seja, não tendo sentido nenhum. Sendo um vocábulo tomado emprestado da matemática
pela psicanálise, o algoritmo possibilita que seja possível trabalhar com algumas letras,
fazendo entre elas alguma articulação que permite obter por suas fórmulas, efeitos produtivos
de conhecimento, de sentido (Harari, 1990). Essa ausência de sentido do algoritmo está ligada
ao funcionamento autônomo da cadeia significante na medida em que esta é concebida como
uma cadeia de marcas diferenciais. Essas marcas por si mesmas não marcam nada além de
suas posições recíprocas, e são as relações ou as combinações entre elas que se fabricam
finalmente um sentido, sendo que este não se define por nenhuma mira de um conteúdo
prévio ou de um significado, seja ele empírico ou de verdade (Nancy e Labarthe, 1991).
“Ora, [diz Lacan] a estrutura do significante está, como se diz comumente da
linguagem, em ele ser articulado” (Lacan, 1957/1998, p. 504). Para Lacan, o inconsciente é
constituído pelo desfiladeiro dos significantes, que deslizam sem cessar em uma cadeia
associativa, não se detendo em significados. Ao subverter o signo saussuriano, separando
significado e significante, Lacan garante uma posição de comando – daí, instância – do
significante em produzir significados, a partir das relações que ele tem, não com o significado,
mas com outros significantes, formando a cadeia de linguagem (S1 – S2) que constitui o
inconsciente. Isso porque, em se tratando do inconsciente freudiano, interessa-se muito mais
pelo significante do que pelo significado. Pois, de fato, o significado não é outra coisa a não
ser outro significante, não existindo um significado fixo de nenhum significante, visto que o
significado pode remeter a outros, conforme as associações feitas pelo sujeito. Por exemplo,
ao tomarmos um significante e nele fixarmos um significado e em seguida formos definir este
último, encontraremos um outro significante e assim por diante (Quinet, 2008).
Nesse sentido, a interpretação analítica, não se interessa pelo significado, o léxico, o
sentido universal de um símbolo onírico, ou o sentido a priori de um sintoma. Nisso, a
psicanálise rompe com a função sígnica e cristalizada de um sintoma, para localizar na fala do
sujeito sua função significante que representa o sujeito para outro significante. Assim, por
exemplo, se durante a análise surge, na associação do paciente, o significante “cadeira”,
advindo de um sonho, em cujo relato esta palavra se impôs com sua imagem usual: uma
cadeira feita de determinado material, com três ou quatro pés, com sua função mobiliária, para
o inconsciente, o significante “cadeira” remete ao sujeito: uma cadeira de uma cena da
infância do sujeito, em torno da qual ocorreram determinadas coisas que marcaram sua vida
pulsional; a mãe, que deixa cair da cadeira seu filho ainda bebê; a cadeira de balanço do pai
agonizante do paciente. Tudo depende da articulação do significante com outro significante na
43
trocadilhos, e funcionam muito mais na base do jogo dos significantes do que na base dos
significados. Nesse sentido, a função da psicanálise seria conferir novos significados a
significantes, a acontecimentos da vida do sujeito que se repetem, como também analisar a
importância de certos significados, que constituem significantes-mestres, norteadores do
modo de viver do sujeito (Quinet, 2008).
O que Lacan propõe é que o discurso é dissociado de um sentido que compreenderia
uma intencionalidade consciente do sujeito. Tal dissociação pode ser verificada na mensagem
dissociada de significado que aparece, por exemplo, na análise dos sonhos que, como Freud já
havia anunciado, pressupõe uma desvinculação de toda forma pré-estabelecida de um sentido
universal. Como uma carta enigmática (rébus), a decifração segue uma lógica própria
construída de acordo com uma perspectiva de um significante não possuir a priori um
significado. Ao contrário, é por estar desligado de sentido e por causa disso, possuir amplas
possibilidades de ser ligado em novos contextos, que o significante é capaz de produzir uma
nova significação (Miranda, 2007).
Ao significante, Lacan (1957/1998g) atribui algumas propriedades. Uma delas é o fato
dos significantes se constituírem como unidades da estrutura de linguagem no inconsciente.
Essas unidades formam a cadeia significante, na medida em que são localizadas enquanto
elementos diferenciais uns dos outros, compondo a estrutura “segundo as leis de uma ordem
fechada” (Lacan, 1957/1998g, p. 504). Esses elementos diferenciais correspondem aos
fonemas na linguística e não devem ser concebidos em sua constância fonética ou em sua
variabilidade, mas sim, enquanto par de opostos ou, na acepção de Lacan (1957/1998g), um
sistema sincrônico dos pareamentos diferenciais que irão diferenciar as palavras em uma dada
língua.
Lacan (1957/1998g) considera haver um substrato topológico – localizado – dos
fonemas, à semelhança das letras nos caracteres móveis de imprensa – como os Didots e
Garamonds – sobre os quais flui um elemento essencial da fala. Esses caracteres de
impressão, Lacan vai denominá-los letra, designando-a como suporte, uma estrutura
essencialmente localizada do significante. Portanto, o inconsciente pode ser concebido como
um espaço tipográfico, um espaço de letras que estão articuladas umas às outras, constituindo-
se de acordo com linhas e pequenos quadrados que obedecem a leis topológicas (Lacan, 1957-
1958/1999). Sendo assim, a falta, o lapso ou a troca na tipografia, que é o espaço do
45
11
“Pode haver, na cadeia dos significantes, um significante ou uma letra que falta, que sempre falta na
tipografia. O espaço do significante, o espaço do inconsciente, é realmente um espaço tipográfico, que é preciso
tratar de definir como se constituindo de acordo com linhas e pequenos quadrados, e correspondente a leis
topológicas” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 153).
46
também... Nem por isso ela deixa de fazer sentido, e um sentido ainda mais opressivo na
medida em que se basta ao se fazer esperar” (p. 505).
A subversão da estrutura do signo se dá em benefício da autonomia do significante que
desliza sem cessar sobre o significado. Lacan justifica ser o significante e o significado de
ordens distintas, constituindo dois fluxos, cuja relação entre eles é tênue, sempre fluída e
prestes a se desfazer (Lacan, 1957/1998g). Assim, se existe um deslizamento incessante do
significante sobre o significado, e se o significado não cessa de se esquivar de ser presa do
significante num movimento que não para, é preciso compreender como se dá o efeito de
significação ou de sentido.
A resposta a esta operação de significação se encontra no que Lacan designou como
ponto de basta ou ponto de estofo (point de capiton). Trata-se de uma operação que é
provocada pelo analista que faz uma pontuação, no momento em que o significante para,
detendo o deslizamento que, caso contrário, seria indeterminado e infinito de significação
(Lacan, 1960/1998l). Para que se efetive uma significação, num dado momento, é preciso que,
de lugar em lugar, o significante interrompa o deslizamento do significado, através de um
fenômeno de ancoragem que fornece lugar à pontuação, “onde a significação constitui-se
como um produto acabado” (Lacan, 1960/1998l, p. 820).
O ponto de estofo é a operação de associação de um significado a um significante na
cadeia do discurso. No momento em que o analista pontua à analisante: “Como? Não
consegue a-ré-matar?”, há uma precipitação de sentido na sentença, uma amarração do
significante, não ao significado arrematar, mas a toda uma dimensão de culpa, de condenação
recalcadas no inconsciente de uma filha (a ré) que se colocava como causa da morte de seu
pai. O ponto de estofo é esse ponto de ancoragem do significante, sendo encontrado, segundo
Lacan (1960/1998l), “na função diacrônica da frase, na medida em que ela só fecha sua
significação com seu último termo, sendo cada termo antecipado na construção dos outros e,
inversamente, selando-lhe o sentido por seu efeito retroativo” (p. 820).
Lacan (1960/1998l) representa graficamente a operação do ponto de estofo,
apresentando dois vetores: o da cadeia significante SS’; e o vetor Δ$ que materializa o ponto
de estofo, “colcheteando” em dois pontos a cadeia significante S→S’, e produzindo uma
divisão no sujeito falante entre o dito e o dizer (Figura 4). Vê-se assim, que a obtenção de
sentido se dá de maneira retroativa, no a posteriori, sendo somente ao fim da frase que se
obtém a significação da mensagem articulada ao significante.
47
Lacan (1957/1998g) relê A Interpretação dos Sonhos, sobre a qual constata que Freud
não fornece outra coisa senão as leis do inconsciente. Certamente, é com os recursos da
linguística que Lacan realiza essa leitura, podendo, então, afirmar que o trabalho do sonho
segue as leis do significante e que para além dos sonhos, “a experiência psicanalítica não é
outra coisa senão estabelecer que o inconsciente não deixa fora de seu campo nenhuma de
nossas ações” (Lacan, 1957/1998g, p. 518).
Texto freudiano de fundamental importância, para Lacan (1957/1998g), A
Interpretação dos Sonhos recupera toda a dimensão de estrutura literante – fonemática – em
que se articula e se analisa o significante no discurso do sonhador. Por isso, é necessário
entender o sonho ao pé da letra, como uma carta enigmática (rébus), em que as figuras não
naturais do barco sobre o telhado ou do homem de cabeça de vírgula, evocados no exemplo de
Freud (1900/1996e), apontam que as imagens do sonho apenas devem ser retidas por seu
valor de significante. Valor que nos indica que a imagem não tem nada a ver com sua
significação, mas, a exemplo dos hieróglifos do Egito, aponta-nos que se está diante de uma
escrita em que até a pretensa figura ideogramática é uma letra. Nesse sentido, Lacan busca
identificar em todos os elementos do trabalho do sonho, os elementos ou as funções da
própria letra. Isso consiste em que se substitua a decodificação pela decifração, reconhecendo
que, no sonho, ao invés de uma simples pantomima ou um mundo de imagens simbólicas,
trata-se de um verdadeiro sistema de escrita (Nancy & Labarthe, 1991).
É por isso que Freud de certa forma antecipa as formalizações da linguística de
Saussure em muitos aspectos, conforme Lacan (1957/1998) chama a atenção:
Peço desculpas por parecer estar eu soletrando o texto de Freud; não o faço apenas para mostrar o que
se ganha ao simplesmente não recortá-lo, mas para poder situar em balizas primárias, fundamentais e
nunca revogadas, o que aconteceu na psicanálise. Desde a origem, desconheceu-se o papel constitutivo
do significante no status que Freud fixou de imediato para o inconsciente, e segundo as mais precisas
modalidades formais. E isso por duas razões, das quais a menos percebida, naturalmente, é que essa
formalização não bastava, por si só, para que se reconhecesse a instância do significante, já que, quando
da publicação da Traumdeutung, antecipava-se em muito às formalizações da linguística, para as quais
sem dúvida poderíamos demonstrar que, por seu simples peso de verdade, ela abriu caminho (p. 516,
grifo nosso).
parassem de deslizar e se unissem para formar uma significação, como visto na pontuação do
analista na operação do ponto de estofo.
Lacan (1957/1998g) define uma tópica do inconsciente freudiano, ilustrada na fórmula
de uma função que, segundo Nancy e Labarthe (1991), pode ser lida como: a função do
significante é pôr um termo sobre uma barra resistente à significação (Figura 5):
implicando, nesse caso, na falta de significação própria à cadeia significante, que faz com que
haja um constante reenvio de significação, de significante em significante, característica da
associação livre. A fórmula proposta por Lacan para a metonímia é a que se segue (Figura 7):
o efeito possibilitado por não haver nenhuma significação que não remeta a outra significação, e no qual
se produz o denominador mais comum entre elas, ou seja, o pouco de sentido [...] que se revela no
fundamento do desejo” (p. 628-629).
12
“Que el inconsciente se descifre supone que es articulable em términos de significante y significado y que, por
ende, hay que atribuir-le una estructura de lenguage. Por un lado tenemos la técnica del desciframiento del
inconsciente, por el otro, la teoria de los instintos, hasta de las pulsiones. Lacan elige com punto de partida en
Freud la perspectiva del inconsciente contra la de las pulsiones, si me permiten, y pretende demostrar que el
registro pulsional está dominado por el del inconsciente” (Miller, 2011, p. 218).
13
Segundo Harari (1990), hiância é um neologismo criado por Tomás Segóvia, tradutor dos Escritos de Lacan
para o espanhol. O termo francês béance foi traduzido por hiância, embora o que se encontra no dicionário é o
termo hiato, fenda, abertura, sendo do mesmo campo semântico dizer que há versos hiantes, onde se encontram
hiatos.
53
reencontramos aqui a estrutura escandida desse batimento da fenda (...) O aparecimento evanescente
entre um instante de ver em que algo é sempre elidido se não perdido da intuição mesma, e esse
momento elusivo em que, precisamente, a apreensão do inconsciente não conclui, em que se trata
sempre de uma recuperação lograda (p. 39).
Eu lhes soletrei, ponto por ponto, o funcionamento do que nos foi produzido primeiro por Freud como
fenômeno do inconsciente. No sonho, no ato falho, no chiste – o que é que chama atenção primeiro? É o
modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase
pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que
vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar – algo que aparece como
intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido
pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a exploração
freudiana encontra o que se passa no inconsciente (p. 32).
14
Remeto o leitor à discussão feita na sessão 2.3 desse capítulo.
56
nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão” (Lacan, 1964/2008c, p.
165).
Desse modo, Lacan diferencia o prazer da pulsão do prazer instintual, tendo no
princípio do prazer a regra do instinto mais profundo. Porém, o instinto sob o qual a
necessidade repousa é desprovido de erotismo, tratando-se de um real neutro, como diz Lacan
(1964/2008c), um real dessexualizado, “o real neutro é o real dessexualizado” (p. 182). E
ainda acrescenta: “Que haja um real, isto não é absolutamente duvidoso. Que o sujeito só
tenha relação construtiva com esse real na dependência estreita do princípio do prazer, do
princípio do prazer não acossado pela pulsão” (Lacan, 1964/2008c, p. 182).
Jaanus (1997) comenta essa passagem, dizendo que isso não significa que o real seja
desprovido de prazer, mas que o princípio do prazer, em seu estado inalterado e não acossado
pela pulsão é homeostático, não erótico. Antes de o sujeito ser marcado pela linguagem, há
um real de onde se origina o corpo, o orgânico, mas que é da ordem de um instinto
dessexualizado. Nesse sentido, o comer porque se tem fome é uma coisa, como diz Lacan
(1964/2008c), “a fera sai de sua cova querens quem devoret, e quando ela encontrou o que ela
tem para morder, ela está satisfeita, ela digere” (p. 163). De outro modo, o comer em um
sonho – como Aninha, a filha de Freud15, em seu sonho com torta, morangos, ovos e outras
guloseimas – não se trata pura e simplesmente de necessidade: “O sonho só é possível em
razão da sexualização desses objetos – pois, vocês podem notar, Aninha só alucina os objetos
proibidos” (Lacan, 1964/2008c, p. 153). O “comer com os olhos” exige uma satisfação que se
encontra para além do campo da necessidade, pois implica erotização, e é nesse sentido que a
pulsão implica ser erótica. E o erotismo não pode ser encontrado senão na sexualidade nos
desfiles do significante.
A necessidade do bebê, no caso da fome, por exemplo, possui um objeto
biologicamente relacionado a ela – o leite. Contudo, como o bebê está situado em um meio
linguístico, sabe-se que sua mãe é um ser falante, dele já falou antes que ele próprio nascesse,
e continuará a falar depois, no tempo em que fornece ao bebê os objetos de sua necessidade.
O uso que a mãe faz dos significantes afeta a alimentação da necessidade da criança. Na
condição de um Outro primordial, a mãe amamenta o bebê de uma maneira específica, em
determinadas ocasiões, decorrentes da regulação de suas presenças e ausências. Desse modo,
a necessidade é satisfeita, na medida em que o pequeno ser humano lidou com a demanda do
15
Referência ao sonho de Anna, filha de Freud, aos dezenove meses de idade, um dos vários exemplos relatados
por ele no capítulo 3 de A interpretação dos sonhos, no qual sustenta a afirmação de que “o sonho é a realização
de um desejo” (Freud, 1900/1996d, p. 164).
59
Outro. É nesse sentido que a pulsão se torna uma consequência da articulação da demanda do
Outro na linguagem, demanda que, sendo originária da articulação significante, não
corresponde à necessidade biológica. Algo se deixa escapar da correlação entre necessidade e
demanda que permite compreender a pulsão, e que se refere ao campo do desejo que, como
Lacan determina (1964/2008c), é “o ponto nodal pelo qual a pulsação do inconsciente está
ligada à realidade sexual” (p. 152). Sendo assim, Lacan vai mostrar como o desejo se situa na
dependência da demanda. Demanda essa, ele explica, que,
por se articular em significantes, deixa um resto metonímio que corre debaixo dela, elemento que não é
indeterminado, que é uma condição ao mesmo tempo absoluta e impegável, elemento necessariamente
em impasse, insatisfeito, impossível, desconhecido, elemento que se chama desejo. É isto que faz
junção com o campo definido por Freud como o da instância sexual, no nível do processo primário
(Lacan, 1964/2008c, p. 152).
Assim, é na articulação do inconsciente com a pulsão que Lacan retoma a aliança entre
o significante e o gozo, mostrando que o gozo não está em excesso em relação ao simbólico,
que o haveria de significantizá-lo na linguagem, mas é conexo, desfilando ao funcionamento
dos significantes. Nesse sentido, Lacan faz uma homologia entre o funcionamento do corpo
do vivente e o inconsciente estruturado como linguagem, propondo que a pulsão forma com o
inconsciente uma comunidade topológica, apontando, assim, a existência de algo em comum
entre os dois campos, naquilo que concerne à condição de ambas as estruturas serem
susceptíveis de abertura e fechamento. O inconsciente é homólogo às zonas erógenas, nas
quais a pulsão opera por sua estrutura de borda, bordas que funcionam em termos de abertura
e fechamento (Harari, 1990). Sendo assim, Lacan afirma que o inconsciente, enquanto hiância
e pulsação temporal, consiste naquilo “que algo no aparelho do corpo é estruturado da mesma
maneira, é em razão da unidade topológica das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel
no funcionamento do inconsciente” (Lacan, 1964/2008c, p. 178).
tudo o que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que
aparecer” (Lacan, 1964/2008c, p. 200). O sujeito só existe, na medida em que, no campo do
Outro surge o significante. Desse modo, o Outro é também representado como a cadeia
significante (S1 → S2), pois são necessários pelo menos dois significantes para definir sua
estrutura. O sujeito, então, não se trata de uma substância, mas de efeito de significante. Nesse
sentido, o Outro se situa como sendo a primeira causação do sujeito: “Se o pegamos em seu
nascimento no campo do Outro, a característica do sujeito do inconsciente é de estar, sob o
significante que desenvolve suas redes, suas cadeias e sua história, num lugar determinado”
(Lacan, 1964/2008c, p. 204). Assim, antes da submissão do sujeito pelo Outro, não há sujeito,
o sujeito é nada, um conjunto vazio, um sujeito por vir:
Se lhes falei do inconsciente como do que se abre e se fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo
pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito é esse surgimento que, justo
antes, como sujeito, não era nada, mas que apenas aparecido, se coagula em significante (Lacan,
1964/2008c, p. 194).
Entretanto, o fato de o sujeito não existir antes do Outro, não quer dizer que não exista
nada. Isso aponta para a existência de um ser vivo que só se torna sujeito quando, chamado ao
campo do Outro se coagula em significante. Lacan quer mostrar como o sujeito enquanto
efeito de linguagem e de fala está relacionado ao ser vivo. Trata-se, portanto, de ligar o sujeito
sem substância, posto que efeito de linguagem no Outro, ao gozo do ser que, como refere
Colette Soler (1997), é a “única substância em jogo na psicanálise” (p. 57).
Nota-se que Lacan (1964/2008c) situa em um mesmo lugar o sujeito e a pulsão,
afirmando que “é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se encontra manifesta
essencialmente a pulsão” (p. 200). Caracterizada por sua parcialidade, a pulsão não pode ser
representada em sua totalidade, uma vez que não há objeto específico de seu alvo, ou seja,
aquilo em relação ou através do qual a pulsão atinge sua finalidade, visto que o objeto é o que
tem de mais variável na pulsão (Freud, 1915/1996i). No que tange à sexualidade, ela não se
apresenta no psiquismo em sua tendência reprodutiva. Há um logro nessa tentativa, uma vez
que, “no psiquismo não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou ser
de fêmea” (Lacan, 1964/2008c, p. 200). Nesse sentido, Lacan atribui o caminho da
constituição do sujeito, da partilha dos sexos como homem ou mulher, ao campo do Outro, no
que ele constitui o roteiro edipiano: “o que se deve fazer, como homem ou como mulher, o ser
humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro” (Lacan, 1964/2008c, p. 200).
Assim, a pulsão parcial é representante no psiquismo das consequências da sexualidade. Mas,
61
a sexualidade não está representada no psiquismo por si mesma em sua realização plena, uma
vez que se articula ao inconsciente por uma relação do sujeito com a falta.
Lacan traça duas dimensões dessa falta que se recobrem: uma falta simbólica e uma
falta real. A falta simbólica refere-se àquela que é da ordem de um defeito central e que tem a
ver com o advento do sujeito em relação ao Outro, “pelo fato de que o sujeito depende do
significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro” (Lacan, 1964/2008c, p.
201). Para Éric Laurent (1997), esse defeito central de que se trata está relacionado com a
impossibilidade de o sujeito poder ser inteiramente representado no Outro, pelo fato de existir
sempre um resto que define o ser sexualmente definido do sujeito. O que está em jogo para o
sujeito do inconsciente na sua relação com o Outro é responder à questão de seu ser (Soler,
1997), uma vez que, no seu advento ao campo da linguagem, o sujeito perde o seu ser, para se
encontrar na incerteza do fato de ser dividido pela linguagem. Como nos diz Lacan
(1964/2008c),
pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma
metade de si mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável
metonímia da fala (p. 184).
Assim, o caráter fundamentalmente parcial das pulsões vem introduzir uma dimensão
de falta, marcando o sujeito como dividido ($) entre a cadeia S1 – S2. Isso vem retomar a
outra falta destacada por Lacan, a falta real, anterior ao próprio sujeito, e que está ligada ao
surgimento do ser vivente pelo tipo de reprodução sexuada. Enquanto os seres assexuados –
como a ameba – se autoreproduzem pelo processo de cissiparidade, que não envolve os
gametas masculinos e femininos – e, assim podem se perpetuar vivos e invariáveis na espécie,
apresentando um caráter de imortalidade –, a reprodução sexuada necessita da união de
gametas de dois progenitores – macho e fêmea – para formar um ser vivo. No caso da
reprodução sexuada, haveria, então, uma perda do ser vivo de sua parte de vivo, ficando os
progenitores projetados para a morte, apontando a existência de algo de morte no campo da
sexualidade (Harari, 1990). Lacan diz que se trata de uma falta real, uma vez que “ela se
reporta a algo de real que é o que o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte
individual” (Lacan, 1964/2008c, p. 201).
Disso decorre a crítica de Lacan à busca de complemento no outro, enquanto metade
sexual que complementa o ser no amor, calcada no mito da divisão originária dos seres
humanos, de Aristófanes16. Para Lacan (1964/2008c), a experiência analítica, ao contrário,
16
Aristófanes, dramaturgo e comediante grego, que figura entre os personagens do diálogo platônico O
Banquete. O mito de Aristófanes, tratado nessa obra, faz referência à história da natureza humana constituída
62
substitui a procura pelo sujeito, “não do complemento sexual, mas da parte para sempre
perdida dele mesmo, constituída pelo fato de ele ser apenas um vivo sexuado, e não mais ser
imortal” (p. 201). Para Lacan, o objeto a caracteriza essa parte perdida do sujeito, que ele
procura encontrar no amor. Segundo ele, trata-se de um objeto privilegiado, do qual o sujeito
se separa, em uma automutilação17, para poder se constituir, deixando cair algo de si. A
automutilação comporta que uma parte do corpo caia, se desprenda e seja cedida. Nessa
queda, evoca-se uma falta, que é encarnada pelo objeto a, objeto da pulsão.
A partir da leitura de Freud, Lacan elenca quatro objetos que caracterizam as pulsões
parciais: a pulsão oral, a pulsão anal, a pulsão escópica e a pulsão invocante, sendo seus
respectivos objetos, o seio, as fezes, o olhar e a voz. Cada pulsão tem, além de seu objeto, a
sua respectiva zona erógena, localizada no corpo em forma de borda. São zonas de privilégio,
nas quais predominam uma estrutura de hiância. É nesse sentido que “a abertura e o
fechamento marcam a presença prevalente de certos orifícios, onde a experiência do que é
inconsciente e a zona erógena têm em comum esta condição hiante” (Harari, 1990, p. 114).
Entretanto, o objeto a não se refere àquilo que a psicanálise anglo-saxônica,
encabeçada pelos discípulos de Karl Abraham, denomina de relações de objeto (relação oral,
anal, entre outras), tratando-se, antes da relação do sujeito com a falta de objeto. Freud
(1918/1996j), em sua análise do Homem dos Lobos, quando vê no ato de ceder as fezes em
favor do outro, nos fala de um protótipo de castração, enquanto uma primeira ocasião na qual
um indivíduo “partilha um pedaço do seu próprio corpo com a finalidade de ganhar os favores
de qualquer outra pessoa a quem ame” (p. 92); ou também, no mesmo texto, ao fazer da
equação simbólica fezes – bebê – pênis, Freud se refere a “uma unidade, um conceito
inconsciente (...), conceito de um ‘pequeno’ que se separa do corpo de alguém” (p. 92). Em
inicialmente por uma unidade e sua posterior divisão por Zeus: “É então de há tanto tempo que o amor de um
pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de
dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque
cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento” (Platão,
1991, p. 60).
17
Na lição de 12 de fevereiro de 1964, em O Seminário, livro 11, ao se referir ao jogo do carretel da brincadeira
do Fort-Da do neto de Freud, relatada por este em Além do Princípio do Prazer (1920), Lacan diz que “a hiância
introduzida pela ausência [da mãe] desenhada, e sempre aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no
qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele
próprio por um fio que ele segura – onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a automutilação a partir
da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva (...) Se é verdade que o significante é a primeira
marca do sujeito, como não reconhecer aqui (...) que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, carretel, é
ali que devemos designar o sujeito. A este objeto daremos ulteriormente seu nome de álgebra lacaniana – o a
minúsculo”(Lacan, 1964/2008c, pp. 66-67). Na última lição do mesmo seminário, em 24 de junho de 1964,
Lacan, em tom poético, fala de uma mutilação, ao se referir ao objeto a: “Eu te amo,/Mas, porque
inexplicavelmente/Amo em ti algo/mais do que tu – o objeto a minúsculo,/Eu te mutilo” (Lacan, 1964/2008c, p.
255).
63
relação ao pênis, a castração não ocorre no real, não havendo uma separação do órgão. Trata-
se antes de algo que aparece separável, mas que na verdade não se separa, definido a partir do
simbólico e não como uma perda efetiva, em que um pedaço seria amputado do corpo. O
objeto a, trata-se de uma perda e da tentativa de reencontro com isso que se perdeu. A relação
não é com algo novo, mas se realiza sempre sobre a marca ou traço de um objeto constituído
como perdido (Harari, 1990).
Através das noções de alienação e separação, Lacan propõe duas operações
respectivamente relacionadas à constituição do sujeito e do objeto, mostrando como o sujeito
é efeito da cadeia significante e como a própria operação simbólica revela o gozo do objeto
(Zucchi, 2007). Nesse sentido, Lacan dá um passo adiante na formulação de sua tese principal
de que o inconsciente é estruturado como linguagem, pois, se a estrutura de significantes era
primeiramente concebida, a partir do corte linguístico, ela é agora articulada como função
topológica da borda, onde “a relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num
processo de hiância” (Lacan, 1964/2008c, p. 202). O Outro opera como produtor de sentidos
(S1 → S2). No entanto, como o Outro é marcado por uma relação de falta simbólica com o
sujeito, os sentidos que dele advém são incompletos e inconclusos. Assim, na intersecção
entre sujeito e Outro, há um lugar comum, um intervalo entre os dois campos, lugar em que se
pode evocar uma zona de relação, como zona de pulsação, onde se inscreve o que já não
comporta sentido, o não senso, S1 isolado, enquanto traço unário18 (Harari, 1990).
A alienação se refere ao momento em que o sujeito, ao se constituir como efeito de
significantes, identifica-se e se aliena ao campo do Outro. Entretanto, como o ser do sujeito
não pode ser totalmente coberto pelo sentido dado pelo Outro, pois, como foi discutido, há
18
Lacan fez uso do termo einziger Zug como traço unário, encontrado no texto freudiano Psicologia de Grupo e
Análise do Ego (1921/1996), onde Freud se refere a uma identificação substituta do laço do indivíduo com o
objeto, como uma identificação parcial, limitada porque ele toma somente um traço (einziger Zug) da pessoa
objeto. Sobre o traço unário, na lição de 22 de novembro de 1961 de O Seminário 9, L’Identification (inédito),
Lacan diz que “nós nos encontramos em tudo aquilo que se pode chamar a bateria do significante, confrontada a
esse traço único, a esse einziger Zug que já conhecemos, na medida em que, a rigor, ele poderia ser substituído
por todos os elementos do que constitui a cadeia significante, suportá-la, essa cadeia por si só, e simplesmente
por ser sempre o mesmo [“nous nous trouvons là dans tout ce qu'on peut appeler la batterie du signifiant,
confrontés à ce trait unique, à cet einziger Zug que nous connaissons déjà, pour autant qu'à la rigueur il
pourrait être substitué à tous les éléments de ce qui constitue la chaîne signifiante, la supporter cette chaîne à
lui seul, et simplement d'être toujours le même”] (Lacan 1961-1962, p. 26). Por sua vez, em O Seminário 11,
Lacan diz: “O primeiro significante é o entalhe, com o qual se marca, por exemplo, que o sujeito matou um
animal, mediante o que ele não se embrulhará em sua memória quando tiver matado mais dez. Ele não terá que
se lembrar de qual é qual, e é a partir desse traço unário que ele os contará. O traço unário, o próprio sujeito a ele
se refere, e de começo ele se marca como tatuagem, o primeiro dos significantes. Quando esse significante, esse
um, é instituído – a conta é um um. É ao nível, não do um, mas do um um, ao nível da conta, que o sujeito tem
que se situar como tal. Com o que os dois uns, já, se distinguem. Assim se marca a primeira esquize que faz com
que o sujeito como tal se distinga do signo em relação ao qual, de começo, pôde constituir-se como sujeito”
(Lacan, 1964/2008c, p. 140).
64
sempre uma perda, um defeito central constituinte da falta simbólica, tem-se instaurada uma
espécie de batalha entre a vida e a morte, entre o ser e o sentido. Pois se o sujeito escolhe o
ser, ele perde o sentido, mas, se escolhe o sentido, perde o ser, desvanecendo-se, no sentido de
uma afânise, não do desejo, como propôs Ernest Jones, mas como aporia, no sentido de um
fading, de um desaparecimento enquanto sujeito. A alienação, trata-se, portanto, de uma
escolha forçada, que tem na união lógica a operação subjacente que comporta que,
independente de qual escolha, tenha-se consequentemente um “nem um, nem outro” (Lacan,
1964/2008c).
Ao escolher forçadamente o sentido que não advém senão do campo do Outro, pelo
significante que faz surgir o sujeito de sua significação, o ser é eclipsado, desaparece frente ao
significante que, se o faz surgir, também o petrifica como S1, um significante unário. O
significante só funciona como tal, diz Lacan (1964/2008c), “reduzindo o sujeito em instância
a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o
chama a funcionar, a falar, como sujeito” (p. 203). O sujeito que não fala, mas que “isso fala
dele”, agora faz apelo ao Outro sobre o sentido de seu ser, sentido que requer um segundo
significante (S2) que forneça ao primeiro (S1) uma significação (Lacan, 1960/1998k). Desse
modo, o sujeito se divide em uma estrutura binária da cadeia significante, S1 – S2, como nos
explica Lacan (1964/2008c):
Por sua vez, a separação, enquanto operação lógica que representa a intersecção entre
o sujeito e o Outro – entre o ser e o sentido – requer que o sujeito, assujeitado ao campo do
Outro, queira se separar da cadeia significante. Diferente da alienação cujo destino vacila
entre a petrificação e o sentido, a separação é da ordem do querer, como nos diz Lacan
(1964/2008c), “é por isso que ele [sujeito] precisa sair disso, tirar-se disso, e no tirar-se disso,
no fim, ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso”
(p. 184). A separação, então, supõe essa vontade de sair, que se calca numa vontade de saber
o que se é para além daquilo que o Outro diz, para além daquilo que se inscreve no Outro
65
sobre o sujeito que, conforme destaca Lacan (1960/1998k), “experimenta nesse intervalo, uma
Outra coisa a motivá-lo que não os efeitos de sentido” (p. 858).
O que eu sou no desejo do Outro? – tal poderá se constituir a questão que trará o
sujeito ao ponto de separação, como nos aponta Soler (1997). Entretanto, essa autora destaca
que a resposta a ser encontrada não poderia ser dada pelo Outro, uma vez que aquilo que dele
se pode capturar são os significantes conhecidos pelo sujeito em seu processo de alienação, e
também o vazio, referindo-se a esse ponto de intervalo entre significantes, ao qual Lacan se
refere, que se repete e constitui a “estrutura mais radical da cadeia significante, (...) o lugar
assombrado pela metonímia, veículo, ao menos como o ensinamos, do desejo” (Lacan,
1960/1998k, p. 858). Portanto, existe “Outra coisa”, e que se situa na ordem do ser, no campo
da pulsão, em última instância, no campo do gozo. É o gozo que responde à questão daquilo
que o sujeito é para além do significante, como comenta Soler (1997),
o intervalo, intersecção ou vazio entre sujeito e Outro não é tão vazio quanto parece, mas é uma lacuna
onde alguma coisa entra. É o objeto a, na medida em que o objeto a não é sempre de ordem lógica, mas
tem também uma consistência corpórea, e também na medida em que o objeto a é um plus de jouir,
como diz Lacan: um gozo a mais (p. 65).
Laurent (1997), em seu comentário, nos traz uma vinheta clínica interessante de um
menino nomeado pelo Outro como “menino mau”, representado como “menino mau” em
relação ao ideal de sua mãe. Nesse caso, comenta Laurent, “menino mau” opera como o
significante-mestre, funcionando para o sujeito como uma linha mestra durante toda a vida do
mesmo. Assim, o sujeito se identifica como “menino mau” e se comporta como tal, numa
identificação que o petrifica nesse significante-mestre.
Isolada uma das identificações do sujeito pela qual ele se encontra alienado ou
petrificado, é necessário encontrar a fantasia que acompanha essa identificação, a fantasia que
traz algum gozo por detrás desse significante “menino mau”. Isso nos mostra que o sujeito,
além de ser da ordem do significante, é também ser sexuado e, como “menino mau”,
experimenta outra coisa, obtendo algum gozo em relação a esse significante. Há um resto
concernente ao objeto em jogo na fantasia, que proporciona ao sujeito gozar desse
significante, objeto que constitui a outra parte do sujeito, um segundo modo de definir sua
falta, parte perdida do sujeito pela qual ele se constitui. Nesse caso, o sujeito tenta inscrever
no texto de sua fantasia uma representação do gozo no interior do Outro, tentando definir a si
próprio por meio dessa fantasia, cuja fórmula pode ser escrita como $◊a (Laurent, 1997). A
escritura da fantasia não concerne ao fato de que o sujeito esteja confrontado a um objeto,
mas, como comenta Harari (1990), permite compreender de que modo o objeto “é o lugar-
66
tenente do próprio sujeito; é o próprio sujeito como parte amputada de si. Ele não está
defrontado – como se fosse uma dimensão referida a um outro distante e distinto – senão que
o sujeito chega a ser esse objeto a” (Harari, 1990, p. 20).
Segundo Laurent (1997), com a discussão das categorias da constituição do sujeito,
Lacan pretendeu fazer um mapeamento do percurso de uma análise, do qual se podem derivar
implicações para o manejo da interpretação no tratamento analítico. Desse modo, Lacan
(1964/2008c) nos reporta à discussão ocorrida no VI Colóquio, promovido em 1960, pelo
psiquiatra Henri Ey, na cidade de Bonneval, dedicado ao tema do inconsciente freudiano.
Dentre psiquiatras, filósofos, psicólogos e psicanalistas, encontravam-se presentes Lacan e
seus dois eminentes discípulos, Serge Leclaire e Jean Laplanche. Estes últimos apresentaram
um artigo intitulado O inconsciente: um estudo psicanalítico19, através do qual queriam
demonstrar como uma análise do inconsciente poderia ser elaborada segundo as teses
lacanianas. No entanto, o artigo manifestou uma divergência entre os autores. E Lacan, por
sua vez, apresentou uma discussão sobre o mesmo artigo em um texto que se encontra
também publicado nos Escritos e intitulado Posição do Inconsciente no Colóquio de
Bonneval (Lacan, 1960/1998k).
Os discípulos de Lacan tomaram uma posição que se afastava da proposta de seu
mestre, no que se refere à afirmação radical deste último sobre a estrutura do inconsciente
como linguagem. Nesse sentido, eles afirmaram que o inconsciente estaria no lado oposto ao
da linguagem, de modo que a linguagem seria característica do processo secundário, sendo o
sistema pré-consciente o que estaria relacionado à linguagem20. E assim, implicava dizer que
não é a linguagem a condição do inconsciente, conforme defendia Lacan, mas “o inconsciente
é a condição da linguagem” (Laplanche & Leclaire, 1969, p. 136), desencadeando assim a
polêmica do Colóquio. O comentário de Lacan que se seguiu à exposição de seus discípulos,
vem reafirmar sua tese inicial de que o inconsciente é estruturado como linguagem,
criticamente contrária à dos primeiros: “o inconsciente é aquilo que dizemos, se quisermos
ouvir o que Freud apresenta em suas teses”, reitera Lacan (1960/1998k, p. 844). Ou ainda: “O
inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que opera para constituir o sujeito (...),
não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo
(ou a virtude) da consciência” (p. 844). Nesse sentido, Lacan desloca a concepção do
19
Ver segunda parte, O inconsciente e a linguagem, o artigo mencionado de Laplanche e Leclaire, seguido dos
comentários de Merleau-Ponty, Green, Minkovsky, Lefebvre e de Jacques Lacan. In: Ey, H. (1960). O
inconsciente: VI Colóquio de Boneval. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
20
“Freud falou explicitamente da linguagem, mas o que ele põe em relação com a linguagem é essencialmente o
pré-consciente e o processo que o caracteriza: o processo secundário que precisamente opõe seus diques e
subterfúgios ao livre jogo da energia libidinal” (Laplanche & Leclaire, 1969, p. 136).
67
Por conseguinte, não podemos deixar de incluir nosso discurso sobre o inconsciente na própria tese que
o enuncia, a de que a presença do inconsciente, por se situar no lugar do Outro, deve ser buscada, em
todo discurso, em sua enunciação (Lacan, 1960/1998k, p. 848).
Lacan (1964/2008c) faz uma referência ao caso de Philippe, trazido por Leclaire no
artigo do Colóquio. Tratava-se de um neurótico obsessivo com a idade aproximada de trinta
anos, que relata um sonho com um unicórnio (licorne, em francês), sonho do qual Leclaire
extrai uma série de interpretações, a partir de três lembranças da infância do paciente. Isolam-
se os significantes – os termos Lili, praia, areia, licorne, dentre outros – trazidos pelo texto
manifesto do sonho e pelas cadeias associativas do paciente, constituintes dos elementos da
cadeia inconsciente a ser descoberta. Assim se descobre o desejo de Philippe, complexo à
análise e composto de representações heterogêneas que parecem resumir o edifício heteróclito
que constitui aquilo que Laplanche e Leclaire (1960/1969) denominam como a “fantasia-
monumento do desejo do paciente” (p. 134).
Os sintomas de Philippe estariam ligados ao fato de ele ter sido definido como “pobre
Philippe”. “Pauvre Philippe”, assim era o modo com que sua mãe o nomeava sempre.
Leclaire enfatiza uma ligação entre os significantes pauvre (pobre) e licorne, a partir da
ênfase sonora das letras au (o) de pauvre (pobre) e do o da palavra licorne. Demonstra ainda
que era ao som de “pauvre Philippe” ligado à voz da mãe que o embalava, que o paciente foi
adormecido no momento em que se seguiu o sonho com o unicórnio. Leclaire faz uma
interpretação em que o unicórnio representaria o falo materno e, ao mesmo tempo, a recusa
por Philippe da castração materna, garantindo, através do sonho, que a mãe não era pobre,
mas viril, do ponto de vista fálico, assim representada pelo chifre do unicórnio. Do ponto de
vista do sentido, Leclaire faz uma conexão entre o sintoma obsessivo de Philippe e o sonho
central, podendo o paciente ser definido em termos de uma cadeia de letras, que ele isola –
Poôr (d) J’e – Li (Poordjeli) – a partir do nome completo do paciente, Philippe Georges
Elhuyani, “nome que ilustra de um golpe o parentesco essencial entre o fantasma fundamental
e o nome do sujeito” (Laplanche & Leclaire, 1960/1969, p. 201). Na sequência de letras se
incluem “pobre Philippe”, o eu “je” do sujeito e o “li” de licorne, Lili, Philippe e lit (leito).
Enfim, todos esses termos podiam ser incluídos e absurdamente justapostos nessa cadeia de
significantes-mestres que definiriam a vida do paciente (Laurent, 1997).
68
a alienação tem por consequência que a interpretação não tem de modo algum sua última instância no
fato de ela nos fornecer as significações da via onde caminha o psíquico que temos diante de nós. Esta
importância é apenas o prelúdio. A interpretação não visa tanto ao sentido quanto [mas a] reduzir os
significantes a seu não-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do
sujeito (Lacan, 1964/2008c, p. 207)21.
21
“L’aliénation a pour conséquence que l’interprétation n’a point son dernier ressort en ce qu’elle nous livre les
significations de la voie où chemine le psychique que nous avons devant nous. Cette portée n’est que de prélude.
L’interprétation ne vise pas tellement le sens que de réduire les signifiants dans leur non-sens pour que nous
puissons retrouver les determinants de tout ela conduite du sujet” (Lacan, 1964/1973, p. 192).
22
O esquema da metáfora, manipulada por Laplanche e Leclaire, a partir da fórmula original de Lacan –
considerada equivocada por este –, “vem ilustrar essa passagem de maneira surpreendente: ao nível da
linguagem pré-consciente, a distinção do significante (as palavras) e do significado (as imagens) existe. Ao nível
da linguagem inconsciente, não existe senão imagens, a um tempo e indissoluvelmente em função de
significantes e de significados. Num sentido, pode-se dizer que a cadeia inconsciente é puro sentido, mas pode-se
69
Lacan (1964/2008c) chama a atenção a esse respeito, afirmando ser falso dizer, como foi dito
por Laplanche, que todas as interpretações são possíveis, “que a interpretação está aberta a
qualquer sentido, sob pretexto de que só se trata da ligação de um significante a um
significante e, consequentemente, uma ligação louca” (p. 242). Ao contrário, Lacan reitera: “a
interpretação não está aberta a todos os sentidos” (Lacan, 1964/2008c, p. 242).
Lacan adota de Freud o termo kern, que significa núcleo, um caroço enquanto um
significante isolado (S1) em seu sentido mais profundo e separado do sentido advindo do
significante binário (S1 – S2). Assim, ele se refere não ao fato de que a interpretação seja ela
mesma um não senso, mas que se trata de uma significação que tem por efeito fazer surgir um
significante irredutível. Faz-se necessário interpretar no nível dos significantes, mas que essa
interpretação não está aberta a todo e qualquer sentido, a um meaning of meaning, pois a
interpretação é sempre uma significação aproximada, “o que está lá é rico e complexo quando
se trata do inconsciente do sujeito, e destinado a fazer surgir elementos significantes
irredutíveis, non-sensical, feitos de não-senso” (Lacan, 1964/2008c, p. 242-243).
O trabalho de Leclaire sobre “o sonho da licorne” ilustra para Lacan que a
interpretação significativa caminha para o não senso dos significantes. Assim, quando
Leclaire fornece, a propósito de Philippe, a fórmula Poordjeli, fazendo conexão entre duas
sílabas da palavra licorne, ele introduz em sua sequência toda uma cadeia em que se anima,
em que se torna vivo o desejo do sujeito, apontando para algo que vai mais longe, para além
do sentido dos significantes (Laurent, 1997). A esse propósito, cito Lacan (1964/2008c):
A interpretação não é aberta a todos os sentidos. Ela não é de modo algum não importa qual. É uma
interpretação significativa, e que não deve faltar. Isto não impede que não seja essa significação que é,
para o advento do sujeito, essencial. O que é essencial é que ele veja, para além dessa significação, a
qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está, como sujeito, assujeitado (p. 243).
dizer também que ela é puro significante, puro não-sentido, ou então aberta a todos os sentidos” (Laplanche &
Leclaire, 1969, p. 143).
70
seu ensino não se tratará mais uma função de transindividualidade, ou relacionada à fala ou à
linguagem, como o propusera nos anos 195023. No contexto de O Seminário 17, Lacan (1969-
1970/1992) nos falará de “um discurso sem palavras” (p. 11), que subsiste sem palavras, uma
vez que as palavras só se organizam em certas relações fundamentais instauradas pela
linguagem e sem a qual elas não poderiam se manter. O instrumento da linguagem criaria
essas relações estáveis, no interior das quais se inscreveria algo mais amplo e que iria mais
além das enunciações efetivas, além das palavras. Segundo Lacan (1969-1970/1992),
os discursos em apreço nada mais são do que articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o
status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem
a palavra, que [a palavra] vem em seguida alojar-se neles (p. 177).
23
Em Função e Campo, Lacan afirma que o discurso do sujeito é o falar através dos símbolos do sintoma, uma
vez que o sintoma também é uma fala à espera de ser dita: “Para liberar a fala do sujeito, nós o introduzimos na
linguagem de seu desejo, ou seja, na linguagem primeira, na qual, para além do que ele nos diz dele, ele já nos
fala sem saber. E, principalmente, nos fala os símbolos do sintoma” (Lacan, 1953/1998, p. 294).
71
articula à repetição a ex-sistência, como elemento excêntrico, sob a forma de anulação, não
preso à cadeia simbólica, posto que seja um lugar vazio, onde se situa o sujeito ($) (Miller,
2005). Encontramos em Lacan (1959-60/2008b) a afirmação de que a estrutura da memória é
feita da articulação do par de significantes24 (S1 – S2), esse esquema mínimo que também
constitui a repetição. Sendo assim, o nascimento do sujeito reside em que o $ seja ex-sistente
à repetição, à articulação S1 – S2, situando-se no vazio que se encontra repercutido na
sequência da cadeia significante, de modo que, “se a repetição é memória, o sujeito é
esquecimento”, conclui Miller (2005, p. 180):
S1 – S2 (Memória)
$ (Esquecimento)
agente → trabalho
verdade produção
24
“Em outros termos, a estrutura engendrada pela memória não deve mascarar para vocês, em nossa experiência,
a estrutura da própria memória, dado que ela é feita de uma articulação significante” (Lacan, 1959-60/2008b, p.
267).
72
articulados entre si, de modo a formar uma cadeia ou uma rede significante. Assim, como
vimos, no matema do Discurso do Mestre temos o saber (S2) ocupando o lugar do trabalho do
escravo que, segundo Lacan (1969-1970/1992), “invisivelmente, é que constitui um
inconsciente não revelado, que dá a conhecer se essa vida vale a pena que se fale dela” (p.
31):
uma identidade perceptiva que esta última teria deixado, indicando uma tendência do aparelho
a repetir a percepção ligada à primeira satisfação.
A vivência de satisfação vinculada à imagem do objeto que se perdeu deixa, então,
uma marca mnêmica no aparelho psíquico de tal maneira que introduz o sujeito no circuito
pulsional, ao fazê-lo passar de um estado de demanda para o de desejo, do grito à fala, à
palavra, ao significante, marcando o corpo do vivente como ser falante (Bernardes, 2003).
Nesse sentido, podemos dizer que a memória freudiana introduz uma dimensão não
homeostática de prazer, de modo que o movimento que Freud denomina de desejo (Wunsch)
se afasta dos propósitos biológicos, não dizendo respeito à necessidade e à adaptação da
espécie. Lacan retoma no texto freudiano a discussão sobre a repetição no ser falante,
afirmando que nela não se trata de um efeito de memória no sentido biológico, mas no fato de
que “a repetição tem uma certa relação com aquilo que, desse saber, é o limite – e que se
chama gozo” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 13).
Lacan formula que a própria função da repetição é a dialética que ela mantém com o
gozo, isso que se encontra no limite do saber. Nesse sentido, o lugar de saber no discurso do
mestre – posto um saber velado, um saber que não se sabe – diz respeito ao funcionamento do
inconsciente regido por algo mais do que o princípio do prazer. Ao matemizar o Discurso do
Mestre, Lacan (1969-1970/1992) concebe o termo S2 como “o reino do significante, o
significante repetido em dois níveis, S1 e S1 outra vez” (p. 84). Assim, o S2 que constitui o
campo do saber articulado na cadeia significante consiste, na verdade, em uma repetição do
S1, que mostra uma tendência à repetição da primeira experiência de satisfação que marcou o
encontro com o objeto. Esse encontro constitui a própria motivação da repetição inconsciente
que, como ressalta Miller (2005), se não reencontra o objeto perdido, pelo menos toca o gozo
desse objeto: “a repetição aparece, de certo modo, como a memória do objeto perdido” (p.
182). Assim, quando S1 se repete, ele não é mais S1, e sim S2, pois se trata de uma repetição
de gozo, que implica, contudo, um reencontro com a falta de gozo. Como aponta Quinet
(2009), “essa repetição que não cessa forma a própria rede de significantes – eis o saber
inconsciente (S2), o qual se constitui, portanto, através da repetição do S1 comemorando o
gozo” (p. 31).
O encontro fracassado com o objeto perdido aponta para a impossibilidade do gozo
pleno e para uma perda inerente de gozo que a experiência original do sujeito implica. Lacan
(1969-1970/1992) diz que o que entra no circuito da repetição só pode estar relacionado à
perda, na medida em que “na própria repetição há desperdício de gozo” (p. 48). Para isso, ele
75
recorre à termodinâmica e nos fala de uma entropia25 para se referir à perda de gozo que a
repetição introduz, através da qual “vemos aparecer a função do objeto perdido, disso que [diz
Lacan] eu chamo a” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 50).
Lacan faz aqui, como sugere Miller (2005), uma “sínfise”26 do significante e do gozo.
De modo que o desejo, assim como o gozo aparecem como metonímicos, situando-se como
“alguma coisa embaixo” da cadeia significante, a correr sob ela. Esse lugar metonímico, como
lugar do intervalo, trata-se dessa ex-sistência, desse lugar que, tanto do ponto de vista do
desejo quanto do gozo são nomeados de modos distintos. Em relação ao desejo, trata-se do
efeito do significante, sendo esse último a causa, de modo que ao agir no nível do significante,
são obtidos os efeitos ao nível do desejo. Em relação ao gozo, ao contrário do efeito do
desejo, o lugar da ex-sistência se trata de uma motivação da repetição significante e de uma
finalidade da mesma. Se no nível do desejo temos o significante representando o sujeito para
um outro significante, no nível do gozo, o objeto a encarna aquilo que aparece como elemento
inassimilável e heterogêneo à repetição que ele condiciona (Miller, 2005).
Se na definição freudiana da atividade psíquica de um investimento do traço mnêmico,
já pudemos encontrar uma leitura lacaniana da repetição de uma vivência de gozo, que
implica algo que se encontra para além do princípio do prazer, é, contudo, no texto de 1920,
Além do princípio de prazer, que Lacan localiza um segundo tempo considerado acerca da
repetição em Freud. Ao examinar os sonhos traumáticos, a repetição na transferência e os
jogos infantis, Freud (1920/1996k) se questiona sobre como é possível que o aparelho
psíquico, na medida em que é comandado pelo princípio de prazer enquanto tendência a se
manter livre dos estímulos, esteja à procura de repetir situações que provoquem a dor e o
desprazer. Em primeiro lugar, ele constata uma tentativa do aparelho em elaborar a
experiência traumática, com o intuito de manter um controle sobre o estímulo excessivo. É o
caso dos sonhos traumáticos recorrentes nas pessoas acometidas por neuroses de guerra e
outras neuroses traumáticas. Nesse sentido, a função da repetição visa fazer uma “ligação”
psíquica de energia livre, com o intuito de passar a um domínio retroativo da situação
traumática. Todavia, ao considerar a repetição na transferência, Freud (1920/1996k) constatou
que há uma tendência à compulsão à repetição inerente ao campo pulsional, e que traz por si
mesma uma satisfação que se encontra além do próprio princípio do prazer. Foi a constatação
25
Segundo Houaiss (2001), por entropia pode-se conceber a quantidade de energia ou de calor que se perde num
sistema físico ou termodinâmico quando ocorrem mudanças de um estado a outro desse sistema, donde,
tendência ao estado de inércia, degradação, desordem de um sistema. Pode também significar uma volta ou
retorno sobre si mesmo, “ensimesmar-se”.
26
Para se referir à junção entre significante e gozo, Miller (2005) fala de uma sínfise, um conceito da anatomia,
que significa linha de junção e fusão entre dois ossos originalmente distintos (Houaiss, 2001).
76
clínica de uma compulsão à repetição, o que levou Freud a formular a pulsão de morte como
tendência à morte, ao retorno ao inanimado27. É nesse sentido que Lacan (1969-1970/1992)
situa o gozo, dizendo que “o caminho para a morte nada mais é do que aquilo que se chama
gozo” (p. 17).
É o gozo, termo designado em sentido próprio, que necessita a repetição. Na medida em que há busca
do gozo como repetição que se produz o que está em jogo no franqueamento freudiano – o que nos
interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é propriamente aquilo que se dirige
contra a vida. É no nível da repetição que Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura
do discurso, a articular o instinto de morte (Lacan, 1969-1970/1992, p. 47).
O ponto de inflexão, no texto de Freud de 1920, que interessa a Lacan, foi o fato de a
descoberta freudiana ter soletrado e escandido o inconsciente como um saber articulado, um
saber não sabido pelo sujeito, mas que o desconcerta quando o sujeito o encontra. Após esse
primeiro achado, que consiste em que os sujeitos falem e que ao falar tropecem, Freud é
conduzido a descobrir que existe algo além do princípio do prazer, cujo dado essencial, ele o
constata na compulsão à repetição. Esta, não se trata de um recomeço, mas, segundo Lacan
(1969-1970/1992), denota “um traço na medida em que comemora uma irrupção do gozo” (p.
81). Ao se referir à articulação de saber na cadeia significante (S1 – S2), Lacan (1969-
1970/1992) ressalta que,
basta darmos a esse traço unário a companhia de um outro traço, S2 após S1, para que, sendo
significantes também lícitos, possamos situar o que vem a ser seu sentido, por outro lado sua inserção
no gozo, do Outro – disso pelo qual ele [o saber] é o meio do gozo (p. 53, grifo nosso).
27
“Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não
podemos fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos instintos e talvez da vida
orgânica em geral que até o presente não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente
acentuado. Parece, então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior
de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas,
ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à
vida orgânica” (Freud, 1920/1996, p. 47).
77
conexão existente entre o simbólico e a satisfação pulsional “na medida em que [o gozo]
ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, às tensões usuais da vida” (p. 50).
É interessante ressaltar como Lacan (1969-1970/1992) passa a se referir ao
significante como “aparelho de gozo” (p. 50) e não como uma estrutura de linguagem. Nesse
sentido, enquanto aparelho de gozo, o significante é um saber que trabalha, mas que produz
entropia, esse ponto de perda como único ponto regular por onde se tem acesso ao que está
em jogo no gozo. Ponto, diz Lacan (1969-1970/1992), no qual “se traduz, se arremata e se
motiva o que pertence à incidência do significante no destino do ser falante” (p. 53),
incidência, que tem pouco a ver com sua fala ou com sua palavra, mas com “a estrutura, que
se aparelha” (p. 53). Assim, o sentido que se estrutura como linguagem é efeito do
significante que se aparelha como gozo. Decorre disso esse jogo de palavras que a língua
francesa permite, por meio do qual Lacan aponta que “o ser humano, que sem dúvida é assim
chamado porque nada mais é que o húmus da linguagem, só tem que se emparelhar [de
s’appareiller, acasalar], digo, se apalavrar [s’apparoler, assonância com parole, palavra, fala]
com esse aparelho [appareil]”28 (p. 53). Notemos aqui, que a definição de húmus, à qual
Lacan atribui o ser humano – húmus da linguagem – tem a ver com resto, substância, uma vez
que a palavra húmus denota algo que, no solo, trata-se de uma substância escura resultante da
decomposição parcial pelos micro-organismos, de matérias vegetais e animais (Larousse,
2012), acepção aproximada da letra enquanto matéria, resto e dejeto (litter), como se poderá
ver no próximo capítulo desse estudo.
28
“No original: “L’être humain… qu’on appelle ainsi sans doute parce qu’il n’est que l’humus du langage [
Rires ] …n’a qu’à s’apparoler à cet appareil-là” (Lacan, 1969-1970/2009, p. 65).
78
se algo chamado inconsciente pode ser semidito como estrutura linguageira, é para que finalmente se
nos apareça o relevo do efeito de discurso que até então nos parecia impossível, ou seja, o mais-de-
gozar29. Será que isso significa, seguindo uma de minhas formulações, que, na medida em que era como
impossível, ele funcionava como real? Abro a questão porque, na verdade, nada implica que a irrupção
do discurso do inconsciente, por mais balbuciante que continue a ser, implique seja o que for, naquilo
que a precedia, que estivesse submetido à sua estrutura. O discurso inconsciente é uma emergência, é a
emergência de uma certa função do significante. O fato de ele haver existido até então como insígnia é
justamente a razão de eu o haver situado para vocês no princípio do semblante. Mas as consequências
de sua emergência, isso é que deve ser introduzido para que alguma coisa mude — algo que não pode
29
Na teoria lacaniana sobre o gozo encontram-se vertentes que diversificam o modo de satisfação pulsional
concernente ao gozo: conforme essa satisfação esteja franqueada pelo Complexo de Édipo e pela castração,
temos o gozo fálico; a vertente do gozo concernente ao objeto a, o objeto mais-de-gozar; ou ao Outro, como
gozo suplementar, ou gozo Outro (Vieira, 2005).
79
mudar, porque isso não é possível. Ao contrário, é por um discurso centrar-se como impossível, por seu
efeito, que ele teria alguma chance de ser um discurso que não fosse semblante (p. 21).
por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo que ela é, no meio de um discurso, o suporte;
um significante não se transmite e nada se transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se
encontra, o sujeito para um outro significante (Milner, 1996, p. 104-105).
É na sétima lição de O Seminário 18, que a letra retorna à discussão, e retorna a partir
de um jogo de palavras de Lacan, que também dá título a um artigo de sua autoria em uma
edição da revista Littérature sobre o tema literatura e psicanálise. Lacan joga com a palavra
Literatura e diz Lituraterra, sendo esta criação significante da ordem de um Witz (chiste), para
só depois ir buscar legitimação etimológica: “não me submeto forçosamente à etimologia
quando me deixo levar pelo jogo de palavras com que às vezes se cria o chiste” (Lacan,
1971/2009, p. 105).
Lacan recorre ao léxico citando três radicais latinos: lino, litura, que significam
cobertura, rasura, correção, e liturarius, indicando um escrito coberto de rasuras; termos que
são distintos de littera, letra, origem latina da palavra literatura. Em sua pesquisa, Rego
81
(2005) também constatou lino, -is, livi, indicando o ato de aplicar gordura sobre, untar,
rasurar, o que também nos sugere manchar, sujar. Para o termo litura, encontrou-se o radical
grego lito, que significa pedra; litus, oris, borda, beira do mar, rio, costa, margem; e litura, æ,
significando rasura, mancha, correção, mancha que é produzida pela água em um escrito,
borrão, apagamento do que foi feito. Rego (2005) também encontrou duas variações de litura.
Uma sendo litoralis, que vem significar litoral, beira do mar e litorarius, litorâneo; e outra
sendo liturarius, que significa rasurado.
De acordo com Rego (2005), Lacan trabalha sucessivamente com três acepções do
termo Lituraterra: a literatura tomada como lituraterra “não passa de uma acomodação de
restos” (Lacan 1971/2009, p. 106), de lixo (litière de la lettre) – primeira acepção; situando-se
“entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral” (Lacan 1971/2009, p. 110) – segunda
acepção; e a letra como rasura ou apagamento – terceira acepção.
Fazendo opor literatura e lituraterra, Lacan traz esse outro campo semântico, litter,
para se referir ao lixo, ao resto, ao irredutível que se pode atribuir à letra, lituraterra.
Legitimando-se nos étimos que encontrou no auspicioso dicionário de Ernout e Meillet, Lacan
se compara ao escritor irlandês James Joyce, quando parte do equívoco dos jogos de
linguagem que levaram o escritor irlandês a deslizar de a letter para a litter, isto é, de uma
carta/letra para um lixo.
Esse dicionário, portanto, reportando-nos a ele, me é auspicioso, por se fundamentar no mesmo ponto
de partida de que comecei, num primeiro movimento, partida no sentido de recomeço, entendam,
partida do equívoco com que Joyce – é de James Joyce que estou falando – desliza de a letter para a
litter, de uma carta/letra, traduzo, para um lixo (Lacan, 1971/2009, pp. 105-106).
30
Litière: no texto de Lacan, este termo se encontra mais próximo do sinônimo de liteira, enquanto lugar de
depósito de dejetos, restos, e por isso a tradução liteiralixo, “matéria feita de partículas absorventes, destinadas a
recolher dejetos de animais” (Larousse, 2012).
82
Lacan retoma O Seminário sobre A Carta Roubada, de 1955, do qual resgata a outra
natureza da carta/letra, que não a dos efeitos de sua mensagem. A carta que circula na trama
do conto e que transmite o conteúdo de sua mensagem – conteúdo enigmático, uma vez que o
conto não revela para o leitor o texto de sua mensagem – produz efeitos31 naqueles que a
detêm em seu poder. Nesse sentido, Lacan nos mostra que a letra, que em A instância da letra
se encontra como suporte material do significante ou estrutura localizada do significante, tem
também um valor de matéria que a distingue do significante que ela carrega. Assim, em
Lituraterra, Lacan (1971/2003c) aponta para o fato da letra não se tratar de uma metáfora da
epístola:
É esse o relato bem-feito do que distingue a carta do próprio significante que ela carrega. O que não
equivale a fazer metáfora da epístola. É que o conto [A Carta Roubada] consiste em que se transmita
como um passe de mágica a mensagem, com que a carta faz peripécias sem ela (p. 17).
Ao afirmar que, em O Seminário sobre a Carta Roubada, não fez da letra metáfora da
epístola, Lacan (1971/2009) aponta para o fato da carta se tratar de epístola mensageira, de
uma missiva, de um significante, “na medida em que ela [a carta/letra] o carrega em seu
envelope, já que se trata de uma carta no sentido da palavra epístola” (p. 107) e não letra.
Entretanto, mesmo a carta sendo mensagem e a letra aquilo que não se lê, posto que seja
desprovida de mensagem, a carta no conto faz peripécias sem a mensagem, produzindo efeitos
nos seus detentores, sem que a mensagem seja dada a conhecer. Ao mesmo tempo, não se
pode confundir letra com o significante, assevera Lacan, pois o fato de não se colocar como
uma metáfora da epístola também faz da carta/letra, não um efeito metafórico – de uma
substituição de um significante por outro que implique um mais de sentido – mas uma
carta/letra na qual se produz um apagamento da mensagem e dos efeitos significantes que ela
veicula, situando-a em sua materialidade desarticulada da vertente de sentido.
No entanto, não bastou a Lacan reafirmar a letra como materialidade, estrutura
tipográfica localizada do significante, ou um significante esvaziado de sentido. No contexto
de 1970, Lacan tratou de abordar a letra em sua conexão com o campo pulsional, o campo do
gozo (Vieira, 2005). Nesse sentido, segundo Mandil (2003), ao promover a letra sobre o
31
Segundo Almada (2014), em sua dissertação de mestrado Lacan, Poe e os efeitos de feminizacão pela
carta/letra: semblante, silêncio e gozo, trata-se de efeitos denominados de “feminização pela carta/letra”, cuja
noção Lacan extrai de seu retorno ao conto A Carta Roubada, no contexto em que profere O Seminário 18 e
escreve Lituraterra. Segundo a autora, Lacan apresenta duas interpretações para esses efeitos de feminização:
uma orientada pelo semblante fálico, da castração, que marca um limite do semblante, e outra que prioriza a
noção de letra, da impossibilidade enquanto ponto de silêncio nos semblantes.
83
significante, interessa a Lacan o fato do significante não possibilitar responder por tudo o que
se passa em uma psicanálise.
Segundo Mandil (2003), ao mesmo tempo em que mostra sua distinção, Lacan busca
articular as duas dimensões da letra, e o faz a partir de uma metáfora geográfica. Com o termo
litoral, ele diferencia aquilo que é da dimensão da fronteira. Se a fronteira serve para designar
uma separação entre dois territórios que, no entanto, se apresentam homogêneos para aquele
que os transpõe, sendo eles separados apenas por uma falha geográfica, o litoral, por sua vez,
trata-se de um campo inteiro que serve de fronteira para outro campo completamente
estrangeiro e que não tem com o mesmo nenhum denominador comum. Nesse caso, não se
trata de pensar dois territórios separados por fronteira. A metáfora do litoral visa separar dois
campos, dois domínios heterogêneos e estrangeiros, por não haver reciprocidade entre os
mesmos: o campo do saber e o campo do gozo. Lacan se interessa também pelo fato de que o
litoral, ao mesmo tempo em que separa mar e terra, conjuga esses dois campos, fazendo
existir, na descontinuidade da passagem de um campo ao outro, um furo. É nessa condição de
litoral que Lacan (1971/2003c) situa a letra, sendo esta o elemento que enlaça os dois campos
descontínuos e distintos da experiência analítica: o saber articulado na cadeia significante e o
gozo.
“Será que a letra não é o literal a ser fundado no litoral?” – indaga Lacan (1971/2009,
p. 109). A letra tende a ser o litoral, prestando-se tanto ao gozo quando ao saber, de modo que
diante desse questionamento, Lacan situa a letra como aquilo que faz borda no furo do saber,
ou seja, a letra enquanto aquilo que desenha, que faz contorno ao buraco do saber, daquilo que
escapou ao discurso do semblante. Assim, como aponta Rego (2005), a letra se encontra como
litoral do furo que há no limite daquilo que a cadeia significante pode produzir de significado.
É nesse limite da interpretação que surge a questão do gozo que envolve a operação analítica,
sobre o qual, Lacan (1971/2009) ressalta ser curioso constatar
como a psicanalise se obriga, como que de modo próprio, a reconhecer o sentido daquilo que a letra, no
entanto, diz ao pé da letra, seria o caso de dizer, quando todas as suas interpretações se resumem ao
gozo. Entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral (pp. 109-110).
84
Segundo Lacan (1971/2009), o fato da letra se constituir como litoral não impede de
que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem, no qual a letra tem instância. Para
ele o que é necessário saber é como o inconsciente – efeito de linguagem – comanda essa
função da letra introduzida como lituraterra. Ele diz que a letra introduzida como instrumento
apropriado à inscrição de um discurso que não fosse do semblante não se torna imprópria para
servir ao que outrora ele próprio havia colocado em A instância da Letra, como podendo
designar a palavra tomada no lugar de outra, implicando um efeito de sentido via metáfora, ou
da palavra que leva à outra, via metonímia. A letra, diz Lacan (1971/2009), “simboliza
facilmente, portanto, todos esses efeitos de significante, mas isso de modo algum impõe que
ela, a letra, seja primária nesses mesmos efeitos para os quais me serve de instrumento” (p.
110). Assim, para Lacan não se trata de uma estruturação temporal, que seja primária ou
secundária, mas, como aponta Rego (2005), trata-se de uma outra estruturação que seria
topológica, onde algo na linguagem convoca o literal para o litoral. Nesse sentido, Lacan
(1971/2009) ressalta que
nada do que escrevi, com a ajuda de letras, sobre as formações do inconsciente, para resgatá-las daquilo
com que Freud as enuncia mais simplesmente, como fatos de linguagem, nada permite confundir, como
se tem feito, a letra com o significante. O que escrevi com a ajuda de letras sobre as formações do
inconsciente não autoriza a fazer da letra um significante, e a lhe atribuir, ainda por cima, uma primazia
em relação ao significante (p. 110).
Lacan considera importante fazer a diferença entre a escrita e a impressão, e por isso,
faz restrições quanto aos modelos de Freud no seu “Projeto para uma Psicologia Científica”,
de 1895, como havia sendo considerado por determinado discurso universitário32 como
fundamento de uma escrita. Nesse texto, Freud (1895/1996b) nomeia como facilitações ou
trilhamentos (Bahnungen) as rotas de impressão que possibilitam a incidência de memória nos
neurônios ψ. Ao contrário, Lacan prefere tirar proveito da Carta 52 a Fliess (Freud
(1896/1996c), onde encontra sob o termo cunhado por Freud de WZ (Wahrnehmungszeichen,
signos de percepção), aquilo que Freud pôde encontrar “de mais próximo do significante na
época em que Saussure ainda não o tinha trazido à luz” (Lacan 1971/2009, p. 111).
32
Em sua tese, Rego (2005) comenta que se trata de uma discussão velada de Lacan com Jacques Derrida.
Derrida reconhece no Projeto de 1895 o essencial de suas concepções sobre a escrita, o que Lacan vem
discordar.
85
Lacan nos fala de sua viagem ao Japão. Embora não fosse a primeira, ele assinala um
momento dessa segunda viagem, quando, no seu retorno, ao colher uma nova rota, viu pela
janela do avião, por entre as nuvens, a planície siberiana. No que concerne ao que Lacan nos
traz em O Seminário 18, essa visão só foi possível devido a ele ter, de certa maneira,
experimentado no Japão, no contato com a escrita japonesa, essa litoralidade da letra (Rego,
2005). A visão, Lacan a descreve:
E foi assim que me apareceu, irresistivelmente, numa circunstância a ser guardada na memória, isto é,
entre as nuvens, o escoamento das águas, único traço a aparecer, por operar ali ainda mais do que
indicando o relevo nessa latitude, naquilo que é chamado de planície siberiana, uma planície realmente
desolada, no sentido próprio, de qualquer vegetação, a não ser por reflexos, reflexos desse escoamento,
que empurram para a sombra aquilo que não reluz (Lacan, 1971/2009, p. 113).
Lacan vê por entre as nuvens do avião o escoamento das águas como o único traço que
aparece no relevo siberiano. Como um efeito de litoral, os reflexos desse escoamento criam
um campo separado que não reluz. O fato de o avião furar as nuvens faz com que os filetes de
água apareçam e desapareçam. Para Lacan, o escoamento constitui algo como um buquê,
através do qual ele distingue o traço primário e aquilo que ele apaga. Podendo significar tanto
um conjunto, um juntado, como também um espalhamento a partir de um centro, à
semelhança do delta de um rio, ambas as acepções para buquê são possíveis (Rego, 2005). No
entanto, a palavra buquê marca dois tempos na gênese do sujeito, o traço primário e o que o
apaga, a marca característica do traço unário e o apagamento da marca, sendo que “é pelo
apagamento do traço que o sujeito é designado”, recorda Lacan (1971/2005, p. 113). Portanto,
Lacan adverte que é necessário que se faça distinção da rasura e do traço, sendo este último
primário à rasura.
A letra seria colocada como rasura: “rasura de traço algum que seja anterior, é isso que
do litoral faz terra” (Lacan, 1971/2009, p. 113). Distintamente de um traço primário e a rasura
que o apaga e de cuja conjunção se origina o sujeito, Lacan separa a rasura do traço e diz que
a façanha de uma caligrafia consistiria em produzir sozinha, definitivamente, uma rasura sem
a anterioridade do traço, litura pura, rasura pura, cuja função seria “reproduzir a metade com
que o sujeito subsiste” (Lacan, 1971/2009, p. 113), sua metade outra, objeto perdido, lá onde
o sujeito subsiste sempre em busca dessa metade sem par. A letra como rasura seria análoga a
uma terra coberta de lituras, a “uma sucessão de traços que se recobrem, cada um deles
buscando em seu gesto, como tentativa de aproximação, a palavra apropriada para designar
86
aquilo que se quer dizer” (Mandil, 2003, p. 50). Aproximação daquilo que se coloca como o
irrepresentável, o impossível de se escrever. Se se faz uma referência à caligrafia,
introduzindo nessa dimensão uma rasura sozinha, isso pode nos sugerir a inexistência de um
referencial gramatical, do Outro que ordene a escrita, normatizando o que se errou ao
escrever, para ser corrigido? Nesse sentido, localiza-se um questionamento da ordem do
discurso e do semblante, trazido por Lacan, ao evocar Aristófanes e sua comédia As nuvens33,
no sentido de que este comediante rompe com os semblantes:
O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir
por entre as nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que Aristófanes me
conclama a descobrir o que acontece com o significante, ou seja, o semblante por excelência, se é de sua
ruptura que chove esse efeito em que se precipita o que era matéria em suspensão (Lacan, 1971/2009,
pp. 113-114, grifo nosso).
Laura Lustosa Rubião (2007), em sua tese Lacan leitor de comédias: contribuições a
uma ética do Bem-dizer, observa que a evocação de Lacan por Aristófanes, ao citar As Nuvens
– nuvens de Aristófanes – pretende “demonstrar a conexão entre o significante e o semblante,
cuja ruptura deixa entrever os efeitos de gozo” (p. 139). Cito Lacan (1971/2003c) do texto
Lituraterra, que segue nesse sentido, ao perguntar se a ruptura da nuvem dos semblantes que
dissolve o que constituía forma, fenômeno, meteoro, e sobre a qual a ciência opera ao
perpassar o aspecto, “não será também por dar adeus ao que dessa ruptura daria em gozo que
o mundo, ou igualmente o imundo, tem ali pulsão para figurar a vida?” (p. 22). O significante
é o semblante por excelência, diz Lacan. E, nesse sentido, a imagem das nuvens faz alusão à
esfera do significante, na textura vaporosa, volátil e instável que a nuvem representa. A
menção de Lacan das nuvens de Aristófanes segue nessa direção, quando nessa peça, segundo
Rubião (2007), as nuvens representam a particularidade mutante das palavras que servem para
tudo. A alusão entre as nuvens e o domínio dos semblantes pode ser claramente constatada no
fato das nuvens tocarem no campo do parecer, criando as pareidolias que podemos encontrar
33
A peça As Nuvens, de Aristófanes, apresentada no festival das Grandes Dionísias, no ano de 423 a.C., faz uma
crítica contra os sofistas – confundidos com o próprio Sócrates –, contra a pedagogia e a ética dos mesmos,
evidenciando as consequências negativas do modo de agir desses pensadores. A peça narra a história de
Strepsíades, “um velho fazendeiro às voltas com suas dívidas em grande parte contraídas pelo filho perdulário,
fanático por cavalos. Decidido a encontrar uma solução para seus problemas, procura Sócrates que presidia o
“pensatório”, espécie de escola propagadora dos conhecimentos sofísticos ou da arte de fazer a ‘pior causa
parecer a melhor’, por meio do ingresso em um ‘moinho de palavras’. Sócrates e seus discípulos não veneram os
deuses olímpicos, mas sim as nuvens, representadas na peça por um coro de mulheres. Saber fazer com as
palavras é o que demandava o velho campesino à escola socrática. Mas, não tendo demonstrado habilidade
suficiente para tanto, envia, a contragosto, o filho Fidipides em seu lugar. Este é apresentado aos pensamentos
justo e injusto, que travam um debate, do qual sai o último vencedor. Strepsíades consegue livrar-se de seus
credores por meio dos ensinamentos obtidos pelo filho, mas há uma reviravolta ao final, pois este é capaz de
provar, lançando mão dos mesmos ensinamentos, que é justo espancar o pai e o faz. Revoltado, Strepsíades
decide atear fogo no pensatório” (Rubião, 2007, p. 124).
87
34
Em Radiofonia, Lacan faz o seguinte comentário: “Volto primeiro ao corpo do simbólico, que convém
entender como nenhuma metáfora. Prova disso é que nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido
ingênuo, isto é, aquele sobre o qual o ser que nele se apoia não sabe que é a linguagem que lho confere, a tal
ponto que ele não existiria, se não pudesse falar (...) é incorporada que a estrutura faz o afeto, nem mais nem
menos, afeto a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser, só tendo ali ser de fato, por ser dito de algum
lugar” (Lacan, 1970/2003b, p. 406).
35
“Diré, pues, que en la perspectiva de Lacan (...) no se debe dudar en separar el ser de lo real, y en situar el
ser del lado del semblante” (Miller, 2011, p. 12).
88
sujeito como inseparável da configuração da linguagem na qual está imerso e da qual depende
a apreensão de seu ser (Miller, 2011)36.
Sobre as nuvens, Miller (2011) aponta um fato interessante no que se refere ao campo
dos fenômenos celestes. Chamando a atenção dos antigos, esses fenômenos eram utilizados
para numerosas funções propriamente simbólicas, sendo através deles feita a leitura do
destino dos grandes homens, das cidades e de cada indivíduo. Lacan faz alusão a essas nuvens
na lição sobre Lituraterra, embora seja destacado que, em Radiofonia (Lacan, 1970/2003b),
ele já havia se utilizado do termo nuvens para ilustrar o gozo separado do corpo
significantizável, ou seja, o corpo mortificado pelos significantes37. No sentido dado em
Radiofonia, Miller (2011) comenta que “o significante marca a carne. Fica sobre a terra esse
cadáver que é o corpo do ser falante deslibidinizado – para introduzir o termo de Freud – e,
segundo a imagem de Lacan, desprendem-se dele nuvens de gozo”38 (Miller, 2011, pp. 228-
229). Um ano depois, na lição sobre Lituraterra, Lacan volta a se utilizar da palavra nuvem,
contudo, com o intuito de ilustrar a relação do significante com o gozo a partir do que se lhe
apresentou da planície siberiana em seu retorno do Japão, um apólogo do gozo, no entanto,
avesso ao que trouxera em Radiofonia.
Lacan apresenta uma doutrina do significante como uma meteorologia, termo que
Miller (2011) distingue da mecânica estrutural do significante. Esta última se refere à
concepção do significante como claro e distinto, isolado pela linguística e utilizado por Lacan
como elemento fundamental da linguagem. É assim, ressalta Miller (2011), que Lacan “deu
lugar a uma mecânica da qual dependem, por exemplo, as fórmulas da metáfora e da
metonímia, a substituição significante e a conexão” (p. 229), em que, inclusive, se encontra
em destaque a expressão cadeia significante. Na lição sobre Lituraterra, Lacan se distancia da
36
“A mi entender, este es el sentido exacto de la condensación lacaniana parêtre [parecer-ser], escrita con
acento circunflejo en la primera e (...) El valor de esta condensación es que inscribe al ser del lado del
semblante y no del lado de lo real; el ser no se opone al parecer [paraître], sino que se confunde com él. Y es
también el valor de esa outra condensación contemporánea que opera Lacan al hablar de parlêtre
[hablanteser], con acento circunflejo (...) Parlêtre no es simplesmente una abreviación de la expresión être
parlant [ser hablante], esta condensación atribuye al hombre – término genérico – un ser de semblante, le
atribuye el parecer” (Miller, 2011, p. 12).
37
“O corpo, a levá-lo a sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-la numa
sequência de significantes. A partir dessa marca, ele é suporte da relação, não eventual, mas necessária, pois
subtrair-se dela continua a ser sustenta-la. Desde tempos imemoriais, Menos-Um designa o lugar que é dito do
Outro (com a inicial maiúscula) por Lacan. Pelo Um-a-Menos faz-se a cama para a intrusão que avança a partir
da extrusão: é o próprio significante. Não é o que se dá com toda carne. Somente das que são marcadas pelo
signo que as negativiza elevam-se, por se separarem do corpo, as nuvens, águas superiores, de seu gozo,
carregadas de raios para redistribuir corpo e carne” (Lacan, 1970/2003b, 407).
38
“El término aparece en “Radiofonia” para ilustrar el goce separado del corpo significantizado; esto es, el
significante marca la carne. Queda sobre la tierra este cadáver que es el cuerpo del ser hablante deslibidinizado
– para intruducir el término de Freud – y, según la imagen de Lacan, se desprenden de él nubes de goce”
(Miller, 2011, pp. 228-229).
89
uma nuvem de onde começa a produzir-se um gotejamento. Esse gotejamento percebido por entre as
nuvens, que oculta um espetáculo de algum modo anulado, impressiona como se chovessem rasuras,
riscaduras. É como se se reencontrasse um dos primeiros esquemas de Saussure, que implica também,
como antes da distinção dos elementos, um esquema nebuloso (Miller, 2011, p. 229) 39.
39
“Este [significante] es como una nube de donde empieza a producirse un goteo. Este goteo percebido por
entre las nubes, que oculta un espetáculo de algún modo anulado, impressiona como si llovieran tachaduras. Es
como si se reencontrava uno de los primeiros esquemas de Saussure, que implica también, como antes de la
distinción de los elementos, un esquema nebuloso” (Miller, 2011, p. 229). Sobre a referência ao esquema da
nebulosa de Saussure, remetemos o leitor à Figura 1 desta dissertação.
90
questiona o fato de Lacan se referir ao termo constelação e não cadeia, e também trocar o
termo significante pelo termo insígnia. A seu entender, Lacan introduz uma oposição entre
cadeia e constelação, de modo que, com a expressão “constelação de insígnias”, ele concebe
um modo diferente de identificação, distinto dos traços que se agrupam na cadeia de
significantes, cuja articulação se abrevia em S1 – S2. Neste último caso, prevalece-se um
encadeamento que é da ordem de uma representação do sujeito, em que o significante
representa o sujeito para outro significante, e o sujeito surge dividido nessa representação.
Isso pode ser visto, como Vieira (2005) nos recorda, no caso da Rainha do conto A carta
roubada, dividida como está entre o que a carta suscita nela (S1) e a sua relação com o Rei
(S2).
Por outro lado, ao se referir à constituição do Ideal do Eu como uma constelação de
insígnias, Lacan aponta para a redução do Outro como sistema significante. Nesse caso, no
entender de Miller (2012a), “o significante vale como insígnia sempre e quando estiver solto,
isto é, fora do sistema” (p. 149)40. Esse autor nos dá o exemplo da insígnia do diploma ou
título. Um diploma ou título é um significante que forma parte do sistema, que é feito para
representar o sujeito diante desse sistema. No entanto, ele somente adquire valor de insígnia
ao ser extraído desse sistema, quando não funciona com esse estatuto, quando funciona como
redutor do Outro.
A expressão constelação de insígnias implica, então, que o sujeito se tome pelo Um,
por uma substância, como Lacan também se refere ao “campo em que ele [o sujeito] se
hipostasia41 no Ideal do Eu” (Lacan, 1960/1998j, p. 686). Miller (2012a) assinala o termo
hipostasia, dizendo que, ao abordar a identificação a partir das insígnias constelares, Lacan
não está se referindo a uma representação, mas a uma posição de substância, de hipóstase do
sujeito, naquilo que essa identificação o conduz a crer que ele não está articulado com nada,
não é efeito entre S1 e S2, mas que é Um sozinho. Nesse sentido, ao voltarmos ao conto A
Carta Roubada, podemos constatar que a carta mensageira, em sua condição de letter,
também apresenta algo que excede à representação e ao sentido, portando algo da ordem da
clandestinidade (a letter, a litter), de matéria substancial, do enigma e do gozo, em última
instância. Como Vieira tão bem considera (2005):
40
“Con el término insignia, y estabelecido el ideal del yo como una constelación de insignias, Lacan apunta,
precisamente, a la reducción del Outro en tanto sistema significante. Por eso no hay que confundir-se: el
significante vale como insignia siempre y cuando esté suelto, es decir, fuera del sistema” (Miller, 2012a, p. 149).
41
De hipóstase: sinônimo de realidade permanente, concreta e fundamental; substância; substância primeira (São
Tomás de Aquino), ente individual, caracterizado por sua concretude, unidade, delimitação e determinação.
Segundo a reflexão moderna e contemporânea, trata-se de equívoco cognitivo que se caracteriza pela atribuição
de existência concreta e objetiva (isto é, uma existência substancial) a uma realidade fictícia, abstrata ou
meramente restrita à incorporalidade do pensamento humano (Houaiss, 2001).
92
ao apresentar o Ideal do Eu como uma constelação de insígnias, Lacan deixa indicado que os traços que
o sujeito toma emprestados ao Outro podem funcionar como significantes civilizadores que, além de
representá-lo, fazem com que seja reconhecido pelo Outro, mas podem também se soltar do sistema
significante, serem extraídos da cadeia significante, e se transformarem em insígnias que existem tout
seul, absolutamente sós (...) Redutores do Outro, esses significantes soltos (desencadeados, portanto!)
operam fora do sistema simbólico na sua face representativa e comunicativa, fundada na lógica
simbólica. Neste sentido, eles operam como letra (pp. 98-99).
O estatuto do significante fora da cadeia e solto do sistema, opera como letra enquanto
uma unidade no campo da linguagem que, por não ser diferencial, não se refere a outras
unidades. Por isso, a letra se situa como um significante tout seul, sozinho, que, como tal, não
significa nada, sendo capturada fora dos efeitos de sentido.
A referência à constelação de insígnias vem se situar no giro que Lacan opera ao
elevar o significante à dimensão de letra, que não faz cadeia, mas enxame (essaim) de
significantes-mestres, S1s, (“ésses” uns, homofônico a essaim, no francês): S1, S1, S1, S1,
S1, S1. Em O Seminário, livro 20, Mais Ainda, Lacan (1972-1973/1985) irá dizer que o S1 é
Um-entre-outros, e não para com os outros no sentido de serem articulados. Para ele, trata-se
“de saber se é qualquer um, se levanta um S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame
significante, um enxame que zumbe” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 196).
Para Lacan (1972-1973/1985), esse Um dos S1s do enxame, encarna na lalíngua
(lalangue) como algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, e mesmo todo o
pensamento, “é o de que se trata no que chamo de significante-mestre. É o significante Um”
(p. 196). Com esse novo termo, lalíngua, Lacan inaugura um novo aparelho conceitual que,
conforme nos situa Soler (2012) em Lacan, o inconsciente reinventado, origina-se de lalação
(do latim lallare), que significa cantarolar para adormecer, ao mesmo tempo em que se pode
remeter ao arrulho da criança que ainda não fala, mas que já emite sons. Essa lalação infantil é
o som disjunto de qualquer sentido, contudo, não disjunto do estado de contentamento da
criança. Sendo assim, lalíngua evoca a língua que é emitida antes da linguagem estruturada
sintaxicamente, onde o sentido ainda não se encontra e não tem a ver com o dicionário,
qualquer que seja, fazendo faltar em seu campo uma ordem, um tratamento das palavras e do
sentido que se convenciona a elas.
Se o ponto de partida de Lacan foi a função da fala e o campo da linguagem como
mensagem endereçada ao Outro, com o termo lalíngua, ele coloca a linguagem como derivada
e não primária. No entender de Miller (2000), a linguagem seria secundária e, portanto,
derivada de lalíngua, que antecederia à linguagem, por constituir a fala antes de seu
ordenamento gramatical e lexicográfico, servindo para coisas inteiramente diferentes da
comunicação, sem um caráter dialógico, posto que opere enquanto gozo. Lacan (1972-
93
1973/1985) vai dizer que, “se a comunicação se aproxima do que se exerce efetivamente no
gozo da lalíngua, é que ela [a comunicação] implica a réplica, dito de outro modo, o diálogo.
Mas lalíngua, será que ela serve primeiro para o diálogo? (...) nada é menos garantido que
isso” (p. 188-189). Se o gozo era secundário em relação à estrutura de linguagem que tinha a
função de metabolizá-lo em significantes, com lalíngua, o gozo ganha um estatuto primário.
Como afirma Lacan (1972-1793/1985), “se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o
inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a linguagem, de começo, ela não existe. A
linguagem é o que se tenta saber concernente à função da lalíngua” (p. 189).
Assim, o significante Um encarnado em lalíngua, tal como Lacan (1972-1973/1985)
vai dizer, justifica-se, na medida em que uma constelação de insígnias não é igual a uma
cadeia de significantes, mas a um enxame que faz com que de um para outro o significante se
solte e configure a insígnia como um significante sozinho, solto, ímpar, un tout seul. Nesse
sentido, consoante Vieira (2005), a ruptura da linearidade da cadeia significante terá como
consequência um outro estatuto do sujeito, pois se na perspectiva linear existe um movimento
de associação, de conexão e representação (S1 – S2), na perspectiva constelar ou do enxame
de significantes ocorre um movimento de dissociação que introduz com a noção de letra, uma
desconexão, uma desarticulação entre os significantes (S1/ /S2) no inconsciente. Assim, a
letra vem se atrelar à lalíngua, na medida em que ela subsiste lá onde o isso fala, no
inconsciente que consiste, nesse caso, em “que o ser, falando, goze e, acrescento, não queira
saber de mais nada. Acrescento que isto quer dizer – não saber de coisa alguma” (Lacan,
1972-1973/1985, p. 143).
Segundo Vieira (2005), a concepção de letra traz a dimensão de lalíngua – essa
lalação que não deixa de comportar uma satisfação – como uma escritura essencialmente
aluvionária, um depósito de sedimentos, “húmus da linguagem”, como já nos apontou Lacan
(1969-1970/1992, p. 53), que evidencia “o fato de que o fenômeno essencial da lalíngua não é
o sentido, mas o gozo: é a pulsão, e não a significação, que move o ser falante” (Vieira, 2005,
p. 163). Nesse sentido, teríamos um outro modo de conceber o inconsciente? Se articulado em
cadeia (S1 – S2), um significante representa o sujeito para outro significante, a outra forma
seria a da existência dos Uns do enxame no inconsciente (S1, S1, S1, S1), que se inscrevem
como letra? Nesse sentido, temos um inconsciente discursivo que é capturado na linguagem
falada e, por outro lado, um inconsciente escritural (escriturado, letrificado), que se sustenta
“ali onde só há S1, letra que se repete” (Vieira, 2005, p. 164).
94
Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – já não tem
nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos [se tem a] certeza de estar no
inconsciente. O que se sabe, consigo [...] Notemos que a psicanálise, desde que ex-siste, mudou.
95
Inventada por um solitário, teorizador incontestável do inconsciente (que só é o que se crê, digo: O
inconsciente, seja, o real – caso se acredite em mim), ela é agora praticada aos pares. (p. 567)42.
É Miller (2009) quem nos recorda que tal texto – o último da coletânea dos Outros
Escritos – Lacan o escreveu imediatamente após proferir, no decorrer dos anos 1975 e 1976,
O Seminário, livro 23, O Sinthoma – daqui em diante denominado O Seminário 23 – de modo
que o texto, nos diz Miller, “merece ser lido de perto” (p. 12). Embora seja ressaltado que o
sem-sentido foi desde sempre posto em função por Lacan, como percorremos anteriormente o
próprio O Seminário 11 aqui prefaciado, o que chama a atenção é a disjunção entre o
inconsciente e a interpretação, em uma exclusão entre o que Miller (2009) vai destacar como
função da interpretação e função inconsciente (p. 12). O que se coloca em vacilação é o que se
acredita saber da articulação do inconsciente, de modo que, segundo Miller (2009), na
enunciação do Prefácio, Lacan segue no sentido avesso de sua tese anterior do desejo
inconsciente como sua interpretação, marcante, por exemplo, em O Seminário, livro 6, O
Desejo e sua Interpretação.
Se, para Lacan, o desejo é algo a ser colocado no cerne da teoria e da experiência
analítica, trata-se de fazer um enlaçamento entre o desejo e a interpretação. Tendo como
energia psíquica a libido a ser investida nas marcas mnêmicas deixadas pela primeira
experiência de satisfação, o desejo marca a dependência do sujeito dos significantes advindos
do Outro que o constitui na linguagem. E assim, a experiência analítica fundada na fala, deve
se esforçar por fazer emergir algo além da demanda do sujeito, sendo aí situado o desejo
inconsciente como sua interpretação. No entanto, no Prefácio, Lacan, ao contrário, marca uma
separação, ao fazer uma desconexão entre o significante do lapso e o significante da
interpretação (Miller, 2009). O lapso que, enquanto uma das formações do inconsciente,
outrora implicava uma dimensão de significação e se situava no domínio dos efeitos de
sentido da interpretação significante, no enunciado de Lacan (1976/2003d), quando já se
encontra desprovido de sentido, é aquilo que atesta estar no inconsciente, que não suporta,
nesse caso, uma articulação significante. Miller (2009) chama a atenção para o fato de que,
nessa frase pode ficar imperceptível, por ser colocado na abertura – na abertura desse texto [por se tratar
de um prefácio], mas no fechamento do Seminário sobre Joyce –, o fato de ela [a frase] admitir, se a
lermos tal como o faço aqui, que S1 não representa nada, ele não é um significante representativo. Isso
ataca o que consideramos como o próprio princípio da operação psicanalítica, uma vez que a psicanálise
tem seu ponto de partida no estabelecimento mínimo S1 – S2 da transferência (p. 13).
42
“Quand l’esp d’un laps, soit puisque je n’écris qu’en français : l’espace d’un lapsus, n’a plus aucune portée
de sens (ou interprétation), alors seulement on est sûr qu’on est dans l’inconscient [...] Notons que la
psychanalyse a, depuis qu’elle ex-siste, changé. Inventée par un solitaire, théoricien incontestable de
l’inconscient (qui n’est ce qu’on croit, je dis : l’inconscient, soit réel, qu’à m’en croire), elle se pratique
maintenant en couple”.
96
opera a conexão da transferência, quando não há conexão entre S1 e S2. Miller (2009) chama
a atenção para uma distinção a ser feita entre o sujeito que consiste no saber dos significantes
e o sujeito para quem esse saber é suposto. Assim, Miller destaca um termo, o qual refere ter
sido tomado emprestado de Sartre por Lacan – o em-si e o para-si – que indica o status do
sujeito por vir a ser suposto a esse saber. Miller (2009) detém com interesse o pedaço da frase
referente ao “se tem certeza”, “o que se sabe, consigo (on le sait, soi)”, o qual não seria o
inconsciente que Lacan pôde articular no registro da intersubjetividade ou no da inter-
significância (S1–S2), mas se trata de um se (on) que se sabe consigo, sozinho, cortado,
referindo-se a um inconsciente que não faz amizade, pois “não há amizade que esse
inconsciente suporte” (Lacan, 1976/2003d, p. 267). De acordo com Miller (2009), essa
amizade, que não existe enquanto suporte do inconsciente, “é a expressão genérica com a qual
designamos o laço entre o Um e o Outro” (p. 16), posta em xeque nesse texto de Lacan. Ele
argumenta que “escandir o espaço de um lapso, solicitar a atenção, poderia passar por um
movimento amistoso, de ajuda à associação livre. Nesse texto, porém, a amizade é rechaçada
por Lacan (...) isso toma um outro valor” (Miller, 2009, p. 16).
Outro ponto que também chama a atenção, no Prefácio, refere-se à palavra histoeria.
Ao se referir ao dispositivo do passe43 como o momento de verificação da historisterização da
análise, Lacan (1976/2003d) diz que, depois de uma análise, “o analista só se historisteriza
por si mesmo” (p. 568). Esse neologismo lacaniano comporta uma associação entre as
palavras histeria e história. Sendo assim, o termo histoeria porta a dimensão de uma história,
uma vez que a história requer uma relação do Um com o Outro, cuja articulação se estabelece
no domínio do simbólico, de modo que “a simbolização é uma condição de existência para a
realidade”, e que “o que não está escrito no simbólico in-existe” (Miller, 2009, p. 34). Do
mesmo modo, na histeria, tem-se o Um articulado ao saber advindo do campo do Outro (S1–
S2), a possibilitar a simbolização de um sintoma no nível do corpo, transparecendo a
incidência no inconsciente, do discurso e do desejo do Outro. A histoeria se encontraria,
portanto, no âmbito do inconsciente transferencial, enquanto discurso do Outro, que se
articula na cadeia significante (Miller, 2009).
Ao dizer que somente se está no inconsciente, quando o espaço de um lapso já não
comporta nenhum impacto de sentido ou interpretação, e que não existe amizade que esse
43
“Passe”: termo inventado por Lacan em 1967. Refere-se à passagem que marca o fim de uma análise e também
a opção feita pelo analisando de se propor a se tornar psicanalista. O passe designa um processo de travessia que
consiste em que o analisando (passante) exponha a analistas (passadores), que prestarão contas disso a um júri
dito de credenciamento, aqueles dentre os elementos de sua história que sua análise o levou a considerar como
suscetíveis de dar conta de seu desejo de se tornar analista (Roudinesco & Plon, 1998).
98
44
Bejahung: termo extraído do texto freudiano A negação”(1925), com o qual Lacan se refere à constituição da
ordem simbólica na estruturação subjetiva, na medida em que seu processo consiste em afirmar primordialmente
um elemento significante no sentido do simbólico, e daí o termo ser traduzido como afirmação primordial.
Segundo Lacan, para que um sujeito não queira saber de algo no sentido do recalque, é necessário que esse algo
tenha vindo à luz pela simbolização primordial. E no mesmo movimento em que algo é introduzido no sujeito,
algo é expulso e resta fora. É aí que se constitui o real, “na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora
da simbolização” (Lacan, 1954/1998b, citado por Guerra, 2007).
45
Para Freud (1925/1996c), a negação consiste em um mecanismo com qual o sujeito se serve para enunciar um
conteúdo recalcado, de modo que ele não seja aceito na consciência. Por exemplo, quando o paciente, ao relatar
um sonho, retorqui: “o senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe”, Freud precisa
que se emende isso para: “Então, é a mãe dele”. Desse modo, toma-se a liberdade de desprezar a negação e de
fazer a escolha somente do tema geral da associação. Admite-se o recalcado pela suspensão de seu conteúdo,
porém o recalque se mantém pela partícula de negação (não) no enunciado.
46
Vide Capítulo 1 desse trabalho, especialmente a sessão 1.5.
99
47
Freud, em A Interpretação dos Sonhos, considera o inconsciente como “a verdadeira realidade psíquica em sua
natureza mais íntima”. Para ele, o inconsciente “nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e
é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações
de nossos órgãos sensoriais.” (Freud, 1900/1996e, p. 637). Ou seja, a realidade psíquica não se trata de uma
realidade externa dos fatos ocorridos, de uma cena real, mas de uma Outra Cena, do modo com o qual o sujeito
se posiciona frente a essa realidade e a incorpora em sua fantasia, em suas lembranças, e nos relatos de sua
história.
100
48
Para aprofundamento sobre O Seminário 23, remetemos o leitor aos textos de Harari (2002) Como se chama
James Joyce?: a partir do Seminário Le Sinthome de J. Lacan; Las dos clínicas de Lacan: introducción a la
clínica de los nudos (Mazzuca, Schejtman & Zlotnik, 2000); Os escritos fora de si: Joyce, Lacan e a Loucura
(Laia, 2001); Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce (Mandil, 2003); A estabilização psicótica na perspectiva
101
três funções que só existem uma para outra em seu exercício no ser que, ao fazer nó, julga ser homem.
A perversão [perversion] não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas
sim, porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto [nó] que, nessa ocasião, é o
sinthoma (Lacan, 1975-1976/2007, p. 20-21).
Lacan (1975-1976/2007) afirma que “é preciso supor tetrádico o que faz o laço
borromeano” (p. 21). Desse modo, pode-se compreender o que Lacan denomina como
perversão, no sentido de ser somente uma père version (em direção ao pai) do nó, termo que,
na língua francesa, é homofônico com perversion. Assim, Lacan se refere à existência, não
apenas do Nome-do-Pai, mas de uma pluralização dos nomes-do-pai, dos quais cada sujeito se
serve para estabelecer o laço enigmático de RSI. “O pai [diz Lacan] é um sinthoma ou um
sintoma, se quiserem” (p. 21), e sendo assim, o Nome-do-Pai constitui esse quarto nó capaz
de enlaçar os três registros: O real, registro do que Lacan (1975-1976/2007, p. 49) denomina
como ex-sistência, ou seja, do que está fora de toda e qualquer significação; o simbólico,
registro que faz furo no real, insistindo em uma significação; e o imaginário, registro que
fornece consistência à imagem corporal, conferindo uma identificação do sujeito com o corpo.
Assim, Lacan (1975-1976/2007) faz equivaler o Nome-do-Pai ao estatuto de um dos nomes
do sinthoma: NP ≡ ∑ (Figura 10).
borromeana: criação e suplência (Guerra, 2007); e Sinthome: ensayos de clínica psicoanalítica nodal
(Schejtman, 2013) – sendo os quatro últimos trabalhos, originalmente, teses de doutorado.
102
Lacan recorre à topologia dos nós para ler e formalizar o que se passa com Joyce. A
arte desse escritor, que, como já dissera, vai de a letter para a litter, será aquilo que, para
Lacan, constitui um paradigma do sinthoma, pois se trata de uma suplência da firmeza fálica,
ou seja, do fato de Joyce não ter se servido do Nome-do-Pai. Em sua lição de 17 de fevereiro
de 1976, Lacan considerou que o sentido é algo que está situado no campo entre o imaginário
e o simbólico. O sinthoma seria um artifício com o qual se lança mão para reparar o erro da
cadeia borromeana. Assim, se na ocorrência de um erro, o simbólico vier se soltar, o meio de
reparação é o que se denomina como sinthoma, uma vez que, segundo Lacan (1975-
1976/2007), “trata-se, de alguma coisa que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real
continuarem juntos, ainda que, devido a dois erros, nenhum mais segure o outro” (p. 91).
Lacan (1975-1976/2007) relaciona o sinthoma de Joyce com uma carência radical da
função paterna para esse escritor. Não se trata da carência de um pai real, mas da operação do
que ele denomina como Verwerfung de fato, que testemunha a demissão do Nome-do-Pai.
Assim, a solução apresentada nesse caso é o que Lacan chama de nome próprio. Ou seja,
Joyce, ao fazer com sua escrita um nome próprio, opera uma compensação da carência do
Nome-do-Pai:
Por que não conceber o caso de Joyce nos termos seguintes? Seu desejo de ser um artista que fosse
assunto de todo o mundo, do máximo de gente possível, em todo caso, não é exatamente a compensação
do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi
negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas, à Igreja diplomática? (...) Não
há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no
fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? Essa é a palavra que resulta de um monte de
coisas que ele escreveu. É a mola própria pela qual o nome próprio é, nele, alguma coisa estranha
(Lacan, 1975-1976/2007, p. 86).
Assim, a arte da escritura de Joyce vem a ser o nome próprio de seu sinthoma. E, se é
o Nome-do-Pai aquele que nomeia e permite sustentar a realidade psíquica, na falta dele é
preciso inventar, como Joyce o fez, um nome próprio, uma invenção sinthomática, artifício
103
singular “que dá à arte da qual se é capaz um valor notável” (Lacan, 1975-1976/2007, p. 59).
Lacan, de um modo jocoso, comenta que:
Como ele [Joyce] tinha o pau um pouco mole, se assim posso dizer, foi sua arte que supriu sua firmeza
fálica. E é sempre assim. O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho de
pau em questão, com a função do falo. E é nisso que sua arte é o verdadeiro fiador de seu falo (Lacan,
1975-1976/2007, p. 16).
das obras de Joyce, sobretudo em Um retrato do artista quando jovem” (Mandil, 2003, p. 124-
125), como será visto.
Em seu artigo Epifanias, Catherine Millot (1993) comenta que, se as epifanias ocupam
na obra de Joyce um lugar singular, conferindo-lhe um traço que testemunha uma experiência
inefável ou espiritual inaugural “sobre a qual fundou a certeza de sua vocação de escritor” (p.
144), elas são também um buraco negro no universo joyciano, pois marcam um não-senso
radical dos significantes. O termo, emprestado da liturgia católica, não intitula simplesmente
os poemas em prosa dos escritos de Joyce, uma vez que, no entender dessa autora, não se
tratam de poemas, mas, ao modo de “aerólitos, pedras caídas de outro mundo”, constituem-se
frases anódinas que “cativam muito mais por seu caráter enigmático que por seu valor
poético” (p. 144). Representam “um fracasso cuja razão deve ser interrogada: se valem como
traço de uma ocorrência espiritual, parecem representar mais seu resíduo, seu dejeto do que
sua expressão” (p. 145), ou seja, sua liteiralixo.
Nesse sentido, Millot (1993) faz uma comparação entre a experiência espiritual dos
místicos e as epifanias de Joyce. Para ela, o encontro com um real, que em si mesmo é opaco
e resistente ao sentido, e que se impõe como incontestável e incontornável, chegando ao
sujeito como que vindo de fora, numa estranheza radical com tudo o que foi vivido antes, é
algo em comum nos dois casos. Contudo, tal ocorrência, a partir de então, exige ser
simbolizada, historicizada, integrada ao tecido dos dizeres, onde cada um tem seu lugar de
sujeito. O místico é esse que se esforça por inscrever sua experiência em um discurso
religioso, que seja susceptível de lhe fornecer um sentido. Contudo, comenta Millot (1993),
a particularidade, sempre singular, do vivido não se esgota aí e requer ainda a invenção de um dizer
novo, no seio mesmo do discurso onde ele aí se inscreve, a fim de transmitir essa singularidade que
insiste. É assim que os místicos fazem obras de poeta: quando inventam as metáforas que produzirão,
no lugar desse real, um sentido novo que o fará aceitável por aqueles que ainda permanecem fechados
para essa ordem de experiência (p. 145).
No entanto, fazer obra de poeta não se refere apenas ao fato de que místicos e poetas
compartilhem este trabalho metafórico de produzir sentidos, mas, trata-se do fato de que o
poeta também está implicado nessa tarefa de simbolização de um real irredutível. Assim, a
“vocação” do poeta e do religioso se coaduna no sentido de se originar de um encontro com o
real, real “que faz apelo à simbolização, apelo recebido como que vindo do Outro, e
experimentado como exigência, ou mesmo escolha” (Millot, 1993, p. 145).
Por outro lado, se as epifanias joycianas se referem, como bem comenta Soler (1998),
a uma “técnica que vai do dois, o dois necessário na escrita mínima para definir um contexto
– ou seja, S1-S2 – até o só um isolado (...), Joyce para construir suas epifanias rompe o
105
contexto de sentido e extrai esse objeto, isolando-o como S1” (p. 97). Assim, à diferença dos
místicos que fazem obra de poeta – como as Moradas de Santa Teresa de Ávila49 ou a Noite
Escura de São João da Cruz50 – Joyce, de modo singular, não faz das epifanias nenhuma
metáfora do encontro com o real que lhe ocorre. Ao contrário, trata-se de “resíduos
metonímicos, balizas, marcos sem memória, restos obscuros de uma conflagração muda.
Significações mortas onde não circula nenhum sentido novo, estas cenas, fragmentos de
diálogo, parecem os testemunhos cegos e inúteis do indizível” (Millot, 1993, p. 145). São
letras, enxames, cujo caráter trivial confina com o não-senso, pois o contexto do incidente
relatado é suprimido. Destaca-se um ponto essencial que se refere ao fato de que as frases
relatadas são interrompidas, ou repetidas até fazer as palavras se evacuarem se seu sentido
vazio e banal, impossibilitando haver um afivelamento da significação, visando, assim, um
efeito de não-senso. Sobre o assunto, Mandil (2003) comenta:
Podemos dizer que esse caráter destacável das epifanias, passíveis de deslocamentos e recombinações,
confere-lhes um estatuto de letra. Projetando nossa visão, encontramos aqui uma linha que, partindo das
epifanias, chegará à profusão de jogos de letras de Finegans Wake51 Nesse sentido, não seria exagero
afirmar que a letra, em Joyce, resulta de uma depuração máxima do fragmento epifânico (p. 127).
49
Teresa de Jesus (Espanha, 1515-1577), mística católica, fundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços.
Dentre seus escritos espirituais, encontra-se a metáfora do “Castelo interior ou Moradas”, em que a autora traça
os estágios, como várias moradas de um castelo, em que a alma deve percorrer para chegar à perfeição e ao
encontro com Deus, que se encontra no centro do castelo. Nas “Sextas Moradas”, por exemplo, Teresa destaca
como a divindade suspende a alma na oração, através de arroubamentos, êxtases ou raptos (De Jesus, 2006).
50
João da Cruz (Espanha, 1542-1591), padre e místico católico, também fundador, com Teresa, da Ordem dos
Carmelitas Descalços. Dentre seus vários escritos e poemas, “Noite Escura” é um poema em que o autor
descreve o modo com que a alma deve percorrer o árido caminho espiritual – a noite do sentido e a noite do
espírito – para “chegar à perfeita união de amor com Deus” (Da Cruz, 2002, p. 438).
51
Finnegans Wake é o último romance de James Joyce, publicado em 1939. Tornou-se um dos marcos da
literatura contemporânea, pelo fato de ter sido escrito em fluxo de consciência, em uma linguagem composta
pela fusão de outras palavras, tanto da língua inglesa, quanto de outras línguas, sendo de difícil tradução para
outras línguas, devido à multiplicidade de equívocos e significados que as palavras comportam. Na epígrafe
dessa dissertação, apresentamos um fragmento desta última obra literária de Joyce, em uma tentativa de tradução
para o português empreendida pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos (2001) na obra conhecida como
“Panaroma do Finnegans Wake”.
106
Sra Joyce – Oh, mas eu estou certa de que ele vai pedir perdão.
Joyce – (embaixo da mesa, para si mesmo)
Arrancar seus olhos,
Pedir perdão,
Pedir perdão,
Arrancar seus olhos.
Pedir perdão,
Arrancar seus olhos,
Arrancar seus olhos,
Pedir perdão (Joyce, 1993, p. 113-114)52.
Se, de acordo com Lacan (1975-1976/2007), houve no caso de Joyce uma Verwerfung
de fato, uma demissão radical do Pai, do Nome-do-Pai, Lacan interroga em que se pode
reconhecer a loucura de Joyce. Afinal, Joyce seria louco? As epifanias joycianas, em termos
lacanianos, tratam-se dessa desconexão da cadeia significante, que isola o significante como
letra, desarticulado de sentido, isto é, um significante no real. Contudo, Joyce tem uma
52
“[Bray: in the parlour of the house in Martello Terrace]
Mr. Vance – (comes in with a stick)...O, you know, he’ll have to apologise, Mrs. Joyce.
Mrs. Joyce – O yes... Do you hear that, Jim?
Mr. Vance – Or else – if he doesn’t the eagles’ll come and pull out his eyes.
Mrs. Joyce – O, but I’m sure he will apologise.
Joyce – (under the table, to himself)
– Pull out his eyes,
Apologise,
Apologise,
Pull out his eyes.
Apologise,
Pull out his eyes,
Pull out his eyes,
Apologise.” (Joyce, 1993, p. 113-114).
107
solução distinta de um desencadeamento psicótico clássico. Suas epifanias, seu trato com a
letra, vem constituir uma experiência singular, sinthomática (Cordeiro & Guedes, 2014), que
não chega a habitar o ser com o sentido metafórico dos poetas ou o delírio dos psicóticos
clássicos, mas, trata-se de um fazer letra, um saber fazer com aquilo que se coloca como real,
em um texto que “se reduz ao real da letra como sentido esvaziado, esvaziamento este que
prepara a cama, o caminho do gozo de Joyce” (Millot, 1993, p. 147), o caminho do gozo da
letra.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ser articulada em uma cadeia de significantes, como mensagem a ser decifrada nos
desfilamentos dos significantes produzidos pelo sujeito na associação livre, nos lapsos da
língua e nos sintomas que denunciam o desejo inconsciente.
Pois bem, se Lacan pretendeu mostrar que o inconsciente é ordenado através das leis
da linguagem, submetendo, de certa forma, o registro da pulsão ao domínio do registro do
inconsciente, em O Seminário, livro 11, ele dá um passo a mais, apresentando um novo modo
de se conceber esse que é um dos conceitos fundamentais da psicanálise. Assim, Lacan situa
não um distanciamento, mas uma aliança entre o simbólico e a pulsão, entre o inconsciente
estruturado como linguagem e o gozo, de modo que ele centraliza novamente o inconsciente,
não sobre a continuidade da ordem significante, mas sobre a descontinuidade que se mostra
nas falhas do discurso, nos furos dos saber. Nesse contexto, o inconsciente está situado em
uma estrutura de hiância, sendo descrito como homólogo a uma zona erógena, a uma borda
que se abre e se fecha, em uma pulsação temporal.
O inconsciente, atualizado na transferência, possui como realidade consubstancial à
sua dimensão, a sexualidade. Sexualidade, que não implica complemento, mas uma relação do
sujeito com a falta encarnada pelo objeto a, objeto da pulsão, enfatizada em sua parcialidade,
sendo a um só tempo, causa de desejo e objeto mais-de-gozar. É nesse contexto que, através
das operações lógicas da alienação e da separação, Lacan discute como o sujeito é efeito da
cadeia de significantes, onde o Outro opera como produtor de sentidos (S1 – S2). Mas, por ser
o Outro marcado por uma falta, os sentidos que dele advém são incompletos e inconclusos.
Isso nos mostra que, na relação do sujeito com o Outro existe um intervalo, uma zona de
relação marcada por uma pulsação na qual se inscreve o sem sentido, o S1 isolado, enquanto
traço unário. Assim, Lacan discute como a interpretação analítica deve levar ao caráter
irredutível e insensato da cadeia de significantes. Desse modo, a interpretação não se abre a
todos os sentidos, uma vez que deve visar reduzir os significantes do sujeito a seu caráter de
não-senso.
Ao formalizar os discursos, em O Seminário, livro 17, um dos pontos que interessa a
Lacan é o fato da descoberta freudiana ter soletrado e escandido o inconsciente como um
saber articulado, um saber não sabido pelo sujeito, mas que o desconcerta quando o sujeito o
encontra. Após esse primeiro achado, que consiste em que os sujeitos falem, e que ao falar
tropecem, Freud foi conduzido a descobrir que existe algo além do princípio do prazer, cujo
dado essencial ele o constatou na compulsão à repetição. Nela, não se trata de um recomeço,
mas, segundo Lacan, de “um traço na medida em que comemora uma irrupção do gozo”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 81). Assim, tem-se tanto o sentido da repetição, como busca de
110
identidade perceptiva com a experiência de gozo, quanto o sentido de que aquilo que se
repete, repete-se nos sulcos, nos trilhamentos criados pelos traços significantes da experiência
de satisfação perdida. É assim que a repetição, ligada ao traço unário, é saber que se origina
com o significante, mas é também aquilo que constitui uma comemoração, em que temos o
inconsciente com memorial de gozo, “na medida em que o gozo ultrapassa os limites
impostos, sob o termo prazer, às tensões usuais da vida” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 50).
No texto Lituraterra, no contexto da procura por um discurso que não fosse da ordem
do semblante, em O Seminário, livro 18, Lacan retomará a letra, não como efeito dos
discursos, mas como um modo de abordar o real como impossível. Assim, Lacan caminha
para além do inconsciente enquanto estruturado como uma linguagem, e para além do sentido
capturado nos efeitos da articulação significante, indo em direção ao real de um inconsciente
letrificado, que tem como seu expoente o significante sozinho e desarticulado de sua vertente
de sentido. Não bastou a Lacan, contudo, abordar a letra como materialidade, estrutura
tipográfica localizada do significante ou um significante esvaziado de sentido. A experiência
analítica põe em questão a letra em sua dimensão de mensageira, de sentido, de modo que o
significante não possibilita responder por tudo o que se passa em uma análise. Sendo assim, a
materialidade da letra tem sua conexão com o campo pulsional, com o campo do gozo, que
resta não simbolizável. Se o significante, por ser articulado, encontra-se no campo simbólico,
a letra está no real (Lacan, 1971/2009).
A conhecida viagem ao Japão, como também o encontro dele com a língua e o sujeito
japonês – um sujeito que se apoia em um céu constelado para constituir sua identificação –
faz Lacan introduzir uma oposição entre a cadeia de significantes e a noção de constelação.
Com a expressão “constelação de insígnias” (Lacan, 1960/1998j, p. 686), ele concebe um
modo diferente de identificação, distinto dos traços que se agrupam na cadeia de significantes,
cuja articulação mínima se abrevia em S1 – S2. Se nesse último caso, o que prevalece é um
encadeamento da ordem de uma representação do sujeito, em que o significante representa o
sujeito para outro significante, restando o sujeito dividido nesta representação, ao fazer
referência à constituição do Ideal do Eu como uma constelação de insígnias, Lacan apontará
para a redução do Outro como sistema significante. O significante vale como insígnia sempre
e quando está solto, isto é, fora do sistema.
O inconsciente se apresenta, nesse contexto, não como estruturado como uma
linguagem, mas como letra, como enxame de significantes, S1s desencadeados, uma vez que
constituem uma constelação de insígnias letrificadas, signos do gozo. É nesse sentido que o
inconsciente é real? Essa pergunta foi nos suscitada no decorrer de nossa pesquisa, na medida
111
pela gramática, mas pelo monólogo dos uns do enxame de significantes, sendo, por isso
concebida do ponto de vista do real que implica “ausência de lei, pois o real não tem ordem”
(Lacan, 1975-1976/2007, p. 133). Se a linguagem, ao modo da qual o inconsciente é
estruturado, é uma elucubração de saber sobre o real da lalíngua, por que ainda denominar de
inconsciente o “inconsciente real”? Tal questionamento surge, uma vez que Lacan (1975-
1976) trata o real como distinto da verdade e do saber veiculados pela cadeia significante.
Com isso, ele diferencia o campo do inconsciente do campo do real, ao afirmar que “a
instância do saber renovada por Freud, quero dizer renovada sob a forma de inconsciente, não
supõe obrigatoriamente de modo algum o real de que me sirvo” (Lacan, 1975-1976, p. 128).
Assim, o real vem ser nesse sentido, uma invenção de Lacan (1975-1976/2007) “porque [diz
ele] se impôs a mim” (p. 128), colocando-se como uma reação à articulação freudiana do
inconsciente, inconsciente através do qual a descoberta de Freud faz um furo no discurso da
razão cartesiana centrada na consciência, furo ao qual, por conseguinte, o ensino de Lacan e
seu real vêm reagir como resposta sintomática. A partir disso, resta-nos interrogar o fato de
que a apresentação de Miller (2009) sobre o inconsciente real conjuga o inconsciente e o real
em uma mesma expressão, noções que, no entanto, o próprio Lacan diferenciou em seu
seminário sobre o sinthoma.
Nesse sentido, o ponto em que aportamos no presente estudo, certamente, não é o
ponto final da discussão sobre o conceito de inconsciente. O que buscamos nesse texto foi
apontar que o sentido do significante e o gozo da letra constituem balizas norteadoras a nos
mostrar importantes giros na abordagem lacaniana do inconsciente. Entretanto, Lacan ainda
fará novos giros. E assim, os pontos de interrogação levantados nessas considerações (não)
finais nos remetem a novas investigações que poderão ser contempladas em um
prosseguimento futuro de pesquisa.
Contudo, isso não seria possível se não tivéssemos podido traçar o caminho de Lacan,
com Lacan, seguindo seus textos de perto, soletrando alguns pontos teóricos cruciais do seu
ensino, ainda considerado por muitos, de difícil compreensão, mas que, devido a seu próprio
hermetismo, transmite um fascínio e deslumbra os que se deixam levar por sua letra. Nesse
sentido, o estudo por nós apresentado pode estar situado entre dois pontos: como um convite à
leitura, endereçado àqueles que pouco compreendem Lacan, e, para aqueles outros, já
familiarizados com o “lacanês”, como um convite à pesquisa e aos desdobramentos que o
texto de Lacan ainda convoca.
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