Cinema de Poesia Julio Bressane
Cinema de Poesia Julio Bressane
Cinema de Poesia Julio Bressane
Resumo
Trazendo uma breve análise de dois filmes que marcam dois momentos da obra
do cineasta brasileiro Júlio Bressane, O Anjo Nasceu (1969) e Filme de Amor (2003),
retomaremos alguns conceitos pensados por Pier Pasolini (1982) e retrabalhados por
Ismail Xavier (2006) e Adalberto Muller (2006) sobre Cinema de Poesia. Não falamos
em adaptação, pois entendemos que geralmente há uma sobreposição de uma linguagem
em detrimento a outra, falamos de um movimento dialético entre a arte de fazer poesia e
fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer.
Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência
proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido
defendida antes. Luís Buñuel em 1958, alega que é preciso deixar as imagens fluírem
com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize da poesia para
criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem cronológica, os
espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem a expressão
concreta de sua liberdade”.1
Dentre as primeiras impressões, citamos o aspecto descontínuo e fragmentado no
texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos
que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são
colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a
insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos
chamar de incoerência narrativa. Não pretendemos sistematizar as características desse
cinema, mas destacar alguns elementos que evidenciam o gesto poético no fazer
cinematográfico, percebendo-o em formas distintas de recriar a linguagem
1
MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71.
cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do
cinema.
Palabras clave (hasta 4): Cinema de poesia, Julio Bressane, O anjo nasceu, Filme de
amor.
Ponencia
Cinema de Poesia
Começamos este trabalho com uma poesia do poeta brasileiro Manoel de Barros
não para ilustrá-lo, justificá-lo ou favorecê-lo de alguma forma. O que fala o autor tem
bastante relevância para a temática aqui abordada. Interessa-nos a imersão no ar poético,
o caráter evasivo, imprescindível para se pensar poesia, mas importa notar também que
a sua matéria pode vir de coisas desimportantes e sem préstimo e que, por isso, a poesia
nos faz questionar valores, experimentar outras sensações. Sendo assim, a relação
cinema e poesia parece-nos evidente.
Trazendo um pequeno recorte do cinema de Júlio Bressane, retomaremos alguns
conceitos pensados por Pier Pasolini e retrabalhados na contemporaneidade. Não
falamos em diálogo entre literatura e cinema - que busca trocas interessantes entre a arte
de escrever e a arte criar a partir de imagens (e sons) em movimento - nem tampouco
em adaptação, pois geralmente há uma sobreposição de uma linguagem em detrimento a
outra. Entendendo que a poesia ultrapassa a literatura, na medida em que o ato poético
existe independente da sua forma escrita, falamos de um movimento dialético entre a
arte de fazer poesia e fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer.
Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência
proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido
defendida antes. Luís Buñuel, por exemplo, em 1958, alega que é preciso deixar as
imagens fluírem com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize
da poesia para criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem
cronológica, os espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem
a expressão concreta de sua liberdade”.2
Dentre as primeiras impressões do que vem a ser cinema de poesia, podemos
citar o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os
procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária
2
MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71.
do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da
subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na
obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência, uma vez que o
parâmetro não é a coerência em si. Obviamente não temos a intenção de sistematizar as
características desse cinema, mas destacamos alguns elementos que evidenciam como a
poética é reconhecida e “aplicada” para além de sua implicância na linguagem, trata-se
na verdade de um gesto e, portanto, pode estar presente na comunicação oral, escrita,
cinematográfica, musical, etc.
3
PASOLINI, P. P. Empirismo hereje. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. p. 188-9.
4
I.d. 151
subjetiva indireta livre “por vezes irregular e aproximativa”, cujo realizador aproveita-
se de um “estado de alma psiquicamente dominante do filme”, operando uma
permanente mimese “que lhe permite uma grande liberdade estilística, anômala e
provocativa”; 2) sob esse filme, corre um outro que o realizador “teria feito mesmo sem
o pretexto da mimese visual do seu protagonista”, filme cuja consistência é “inteira e
livremente expressivo-expressionista”.5
Ismail Xavier retoma um conceito interessante, advindo da filosofia, que é a
nomenclatura que define a ciência das causas finais: a teleologia, em que tudo tem uma
lógica conclusiva que deve ser alcançada através de passos encadeados. Acreditamos que a
recusa da narrativa, do naturalismo e da linearidade por Pasolini passam muito mais
pela recusa à teleologia do que à prosa em si, uma vez que muito dos seus próprios
filmes advém de grandes narrativas e a sua opção cinematográfica continua sendo por
contar as histórias (Evangelho Segundo São Mateus, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma,
Medeia, As mil e uma noites etc.), ainda que seu estilo seja um grande protagonista nos
filmes.
Adalberto Muller desmistifica ainda mais a questão e nos provoca a ideia de que,
se uma das marcas fundamentais no cinema de poesia é o protagonismo do estilo, é
preciso dizer que tal cinema não deve estar necessariamente associado a obras de arte
herméticas, sobretudo em relação ao que destacou Pasolini acerca de procedimentos do
cinema de poesia: “contraluzes com reflexos na câmera, movimentos manuais de
câmera, travellings exasperantes, montagens falseadas, raccords irritantes”. Muller
reflete sobre o fato de que estes recursos já não são tão especiais ao cinema de arte e de poesia.
Ocorre que muitos dos procedimentos técnicos do “cinema de poesia” voltaram
à tona no cinema contemporâneo, e não apenas em filmes experimentais, ou de
vanguarda. Pode-se encontrar esses procedimentos em filmes produzidos para
o grande público, e até mesmo em programas televisivos ou em filmes
publicitários, o que contribui para tornar ainda mais difícil uma separação
muito rígida entre o cinema dito “de arte” e o cinema dito “industrial”. Fala-se
hoje de produtos híbridos, nos quais as fronteiras entre o poético e o massivo
tende a diminuir sensivelmente, pelo menos do ponto de vista dos
procedimentos (das estratégias).6
5
PASOLINI, 1982. p. 149
6
MULLER, A.“O cinema segundo Pasolini ou a língua escrita da realidade” Publicado em: Devires
(UFMG), Belo Horizonte, n. 3, 2006.
Os gestos poéticos em Júlio Bressane
De acordo com Ismail Xavier, o período de 1969-70 foi o “momento heróico” da
recusa da teleologia e, nos filmes de Bressane, foi notável (e motivo de polêmica) o
gesto de suspensão abrupta do fluxo das ações, um cinema que fazia ataques
coordenados às instituições7. O cinema de poesia em Julio Bressane surge de rupturas: à
convencionalidade narrativa, ao Cinema Novo, “descartando o pacto com o público “e o
cinema de conscientização”. E ele vai além da separação proposta por Pasolini quando
este afirma que a entrada do cinema na fase de industrialização e a introdução do som
fizeram dele uma ‘língua de prosa narrativa “8, entendendo que a poesia estava na
origem, no cinema mudo.
Se nas imagens a intencionalidade poética surge através de fluxos descontínuos
da imagem e do texto, podemos imaginar que o pensamento musical deve ser
representado com a mesma descontinuidade. No filme O Anjo Nasceu (1969) temos até
uma narrativa identificável: dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de
violência. Santamaria, místico, acredita que assim está se aproximando de um anjo que
lhe limpará a alma. Urtiga, um marginal ingênuo, segue os passos do amigo. Embora a
história não seja considerada plausível temos a impressão de que ela terá um desenlace,
mas as intervenções sonoras nos fazem atentar que se trata de uma experiência radical e
que, portanto, não devemos esperar o seu desenrolar coerente. Essa falta de coerência
narrativa e musical desconcertante e desestabilizadora sem dúvidas marcou o estilo
bressaniano.
Desde as grandes óperas e apresentações teatrais, bem antes do cinema pensar
em existir, a música sempre assumiu o forte papel de influenciar, potencializar ou
alterar carga dramática da narrativa. Sabemos que o timbre, o ritmo, a altura, a melodia,
o contraponto, a harmonia de uma música mexem com nossas sensações e com nosso
imaginário, portanto a escolha de uma música para uma cena nunca será aleatória. As
críticas em torno da escolha de uma trilha musical geralmente destacam o caráter
impositivo das músicas utilizadas, como se o diretor dissesse “agora é a hora de você se
7
XAVIER, Ismail. Revista Alceu. v. 6. n. 12. 2006. “Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma
poética”. p. 5. Disponível em: <http://www.publique.rdc.puc-
rio.br/revistaalceu/media/alceu_n12_Xavier.pdf> Acesso em: 13 de julho de 2011
8
PASOLINI, 1982, p. 190.
emocionar”, “agora é hora de você sentir medo”, “sentir pena”, “sentir que é livre” etc.,
como se houvesse um contrato pré-estabelecido.
De fato a música tende o controlar as emoções, colocando todos os espectadores
numa mesma redoma sonoro-sensitiva. E ao mesmo tempo a música nos protege. Se
pensarmos nas projeções dos primeiros filmes acompanhadas por um piano ou
orquestração, notamos que a música tende a suavizar, a aliviar o impacto das imagens
que pairam como fantasmas num ambiente etéreo, numa tela branca. É como se
fizéssemos um “pacto de proteção” através da intervenção sonora. Mas ao autor que
realiza uma obra considerada cinema de poesia certamente interessa mais recriar,
restabelecer pactos, “desnaturalizar” as emoções promovidas pela música.
Em O anjo nasceu a falta de obviedade sonora trata-se de uma criação poética.
Nas primeiras cenas, após longos planos silenciosos de ilustrações do fundo do mar,
surge a imagem de um dos bandidos ferido e, na sequência, duas mulheres mortas. Tudo
isso está embalado pelo som de um samba “Agora é cinza”,
Você partiu
Saudades me deixou, eu chorei
O nosso amor foi uma chama
Que o sopro do passado desfaz
Agora é cinza
Tudo acabado e nada mais
[...]
O episódio é mostrado em fragmentos muito entrecortados e de trás para frente,
quase como um videoclipe. Assim fica explícito, logo no primeiro contato, que o
espectador irá se debater com as escolhas tomadas pelo autor.
9
XAVIER, 2006. p.23
10
Revista Cinemais, número 6, julho/agosto de 1997, páginas 7 a 42.
Menina no espelho III
A lição de guitarra
Nu com gato
Nu na banheira.
As primeiras imagens do filme mostram que o que se vê é objeto de uma
criação, integra-se o fora de quadro para dentro do quadro, absorvendo a sua
exterioridade material, como se o diretor fizesse a opção de voltar a câmera para o
próprio ato de criar o cinema: a filmagem, os ruídos dos bastidores, que nada têm a ver
com a imagem subseqüente: os três personagens na praia num dia ensolarado e com
uma representação quase teatral por ser muito marcada.
Ismail Xavier já havia destacado a presença dos bastidores, com o diretor
tomando providências, a aparição da claquete ao longo da obra de Bressane, o que
mudou de função e sentido conforme o momento. Conforme termo apresentado por Noel
Burch, no período entre 1969-70, a presença do bastidor ficou associada a “estruturas de
agressão”, que funcionava como um toque de subversão. Em O anjo nasceu e Matou a família
e foi ao cinema (1969), essa subversão podia estar associada “à desconstrução, à denúncia da
representação e do ilusionismo. Já em O rei do baralho (1973), por exemplo, os bastidores
mostrados na abertura do filme têm outra função. Fazem parte da estrutura em mosaico, já
definem desde o início o que será a regra do jogo em todo o filme”.11
Acreditamos, no entanto, que mais do que buscar uma funcionalidade dentro do período
de criação do cineasta, esta prática equivale a um “cacoete” proposital do autor, uma marca que
ele quer sempre reiterar, seu estilo, sua poesia. Essa prática, que evidencia os aspectos não-
diegéticos e não-lineares do fazer cinematográfico, traz à tona uma discussão
metalinguística, metafílmica, pondo em questão o próprio filme. Em Filme de Amor tal
discussão não está somente no plano das escolhas imagéticas, o questionamento do ato
de criar está presente na fala e nos gestos dos personagens – que ensaiam, que são
observados de um mesmo ângulo, em cores e em preto e branco, e isso nos provoca a
sensação de que cada take, foi aproveitado, como versos aleatórios, que não precisam de
coerência entre si, não são analisados se estão corretos ou errados para compor a poesia.
11
XAVIER, 2006. p.11.
mas que só fazem algum sentido para o espectador se ele se permite a vivenciar as
sensações provocadas.
Outro ponto interessante de se observar diz respeito aos posicionamentos e
movimentos de câmera elegidos por Bressane. O “olhar” que ele lança é especial, a tal
ponto que, mesmo numa percepção pouco atenta nos perguntamos: “onde estava essa
câmera?”, “que movimento o ator estava fazendo para surgir na tela assim”?
12
XAVIER, 2006. p.10.
. .
Bressane descarta então o princípio clássico de que tudo deve girar em torno da
cena e se reserva o direito de se afastar a câmera, deixá-la atenta ou não aos
personagens, pois estes equivalem apenas a uma parte dos elementos que compõem o
filme. “Há um espaço de reflexão que não depende das ações, embora possa estar
referido a elas, espaço que se enriquece pelo estilo disjuntivo” 13 de um olhar que não é
pautado apenas pelo movimento dos personagens.
Voltando ao Filme de Amor, gostaríamos de finalizar a análise ressaltando a
criação de um universo muito particular pelo qual os três personagens são absorvidos.
Sabemos que eles não pertencem à casa onde estão, pois acompanhamos, no começo do
filme, todos na praia, depois no trem, andando pelas ruas até chegarem lá. Mas é curioso
observar que nós nos acostumamos com aquele estado de evasão e transcendência no
qual eles mergulharam e, ao saírem e voltarem às suas vidas cotidianas – como
cabeleireiro, manicure e ascensorista de elevador – o que causa estranhamento é
justamente essa realidade tão comum. Por conta disso é que a criação poética de evasão
em Bressane é tão forte, ele consegue nos envolver no estado catártico que ele mesmo
cria.
Observamos então alguns gestos poéticos realizados por Júlio Bressane, mas
sem a intenção de categorizar a maneira como cria seus filmes, muito menos com o
objetivo de sistematizar determinados procedimentos que podem ou não ser
considerados cinema de poesia. Como exercício de análise, foi interessante perceber que
o gesto poético está presente em formas distintas de recriar a linguagem
cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do
cinema. De maneira geral o que se estabelece como poético depende muito da
sensibilidade do autor em captar esses mecanismos distintos e levá-los para dentro da
obra. De fato, a concepção moderna de poesia está essencialmente enraizada no
indivíduo, na subjetividade. Adalberto Muller aponta para a definição hegeliana de
poesia como forma artística na qual o espírito (a interioridade) se manifesta com maior
grau de liberdade em relação à exterioridade. A poesia se realiza, antes de em qualquer
outro meio de expressão, no espaço interior, mas ao ser exteriorizada toma formas até
certo ponto autônomas, por isso entendemos que o cinema de poesia é uma expressão
dialética por natureza, pois depende da dedicação inicial do gesto poético do autor, mas
ao ser realizada cinematograficamente extrapola sua idealização. O próprio Bressane
afirmou que a arte é como um organismo vivo que escreve a si mesmo, mais criadora do
13
XAVIER, 2006. p.9.
artista que criação dele, “e o cinema, nesse sentido, é devastador; você faz, imagina que
controla e o que de fato controla deve significar uns cinco por cento do filme”.14
14
Revista Cinemais “Cinema de poesia” nº 33, janeiro/março de 2003.
Bibliografia
HEGEL, G.W.F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp,
1999.
PASOLINI, P. P. Empirismo hereje. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim,
1982.