Cinema de Poesia Julio Bressane

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Cinema de Poesia

Atravessamentos e gestos observados na obra de Júlio Bressane.

Autor: Clarissa Nanchery


Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais
Escola de Comunicação e Artes (ECA)
Universidade de São Paulo (USP)

Resumo
Trazendo uma breve análise de dois filmes que marcam dois momentos da obra
do cineasta brasileiro Júlio Bressane, O Anjo Nasceu (1969) e Filme de Amor (2003),
retomaremos alguns conceitos pensados por Pier Pasolini (1982) e retrabalhados por
Ismail Xavier (2006) e Adalberto Muller (2006) sobre Cinema de Poesia. Não falamos
em adaptação, pois entendemos que geralmente há uma sobreposição de uma linguagem
em detrimento a outra, falamos de um movimento dialético entre a arte de fazer poesia e
fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer.
Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência
proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido
defendida antes. Luís Buñuel em 1958, alega que é preciso deixar as imagens fluírem
com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize da poesia para
criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem cronológica, os
espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem a expressão
concreta de sua liberdade”.1
Dentre as primeiras impressões, citamos o aspecto descontínuo e fragmentado no
texto e na organização das imagens, os procedimentos alegóricos, os acontecimentos
que existem além da experiência ordinária do tempo e do espaço, a força com que são
colocadas as sensações, a acentuação da subjetividade, o caráter transcendente, a
insubordinação dos elementos lançados na obra, o que vai além do que poderíamos
chamar de incoerência narrativa. Não pretendemos sistematizar as características desse
cinema, mas destacar alguns elementos que evidenciam o gesto poético no fazer
cinematográfico, percebendo-o em formas distintas de recriar a linguagem

1
MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71.
cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do
cinema.

Palabras clave (hasta 4): Cinema de poesia, Julio Bressane, O anjo nasceu, Filme de
amor.

Ponencia

Cinema de Poesia

Atravessamentos e gestos observados na obra de Júlio Bressane


MATÉRIA DE POESIA
Manoel de Barros

Todas as coisas cujos valores podem ser Os loucos de água e estandarte


disputados no cuspe à distância servem demais
servem para poesia O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia Tudo que explique
o alicate cremoso
Terreno de 10 x 20, sujo de mato - os que e o lodo das estrelas
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas serve demais da conta
servem para poesia
Pessoas desimportantes
Um chevrolé gosmento
dão pra poesia
coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca qualquer pessoa ou escada
são bons para poesia
Tudo que explique
As coisas que não levam a nada a lagartixa da esteira
têm grande importância e a laminação de sabiás
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
é muito importante para a poesia
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar O que é bom para o lixo é bom para a poesia
na poesia ou na geral
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
O que se encontra em ninho de joão-ferreira: a palavra repositório eu conheço bem:
caco de vidro, garampos, tem muitas repercussões
retratos de formatura,
como um algibe entupido de silêncio
servem demais para poesia
sabe a destroços
As coisas que não pretendem, como
por exemplo pedras que cheiram As coisas jogadas fora
água, homens têm grande importância
que atravessam períodos de árvore, - como um homem jogado fora
se prestam para poesia
Aliás é também objeto de poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens da poesia


como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem


- sapatos, adjetivos -
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa


civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Começamos este trabalho com uma poesia do poeta brasileiro Manoel de Barros
não para ilustrá-lo, justificá-lo ou favorecê-lo de alguma forma. O que fala o autor tem
bastante relevância para a temática aqui abordada. Interessa-nos a imersão no ar poético,
o caráter evasivo, imprescindível para se pensar poesia, mas importa notar também que
a sua matéria pode vir de coisas desimportantes e sem préstimo e que, por isso, a poesia
nos faz questionar valores, experimentar outras sensações. Sendo assim, a relação
cinema e poesia parece-nos evidente.
Trazendo um pequeno recorte do cinema de Júlio Bressane, retomaremos alguns
conceitos pensados por Pier Pasolini e retrabalhados na contemporaneidade. Não
falamos em diálogo entre literatura e cinema - que busca trocas interessantes entre a arte
de escrever e a arte criar a partir de imagens (e sons) em movimento - nem tampouco
em adaptação, pois geralmente há uma sobreposição de uma linguagem em detrimento a
outra. Entendendo que a poesia ultrapassa a literatura, na medida em que o ato poético
existe independente da sua forma escrita, falamos de um movimento dialético entre a
arte de fazer poesia e fazer cinema que tudo indica a criação de um terceiro fazer.
Embora o termo cinema de poesia tenha ganhado força a partir da conferência
proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966, a poesia no cinema já havia sido
defendida antes. Luís Buñuel, por exemplo, em 1958, alega que é preciso deixar as
imagens fluírem com “liberdade”, através de uma prática cinematográfica que se utilize
da poesia para criar: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem
cronológica, os espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem
a expressão concreta de sua liberdade”.2
Dentre as primeiras impressões do que vem a ser cinema de poesia, podemos
citar o aspecto descontínuo e fragmentado no texto e na organização das imagens, os
procedimentos alegóricos, os acontecimentos que existem além da experiência ordinária

2
MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina, p. 71.
do tempo e do espaço, a força com que são colocadas as sensações, a acentuação da
subjetividade, o caráter transcendente, a insubordinação dos elementos lançados na
obra, o que vai além do que poderíamos chamar de incoerência, uma vez que o
parâmetro não é a coerência em si. Obviamente não temos a intenção de sistematizar as
características desse cinema, mas destacamos alguns elementos que evidenciam como a
poética é reconhecida e “aplicada” para além de sua implicância na linguagem, trata-se
na verdade de um gesto e, portanto, pode estar presente na comunicação oral, escrita,
cinematográfica, musical, etc.

Contribuições de Pier Pasolini e superações contemporâneas


Em suas reflexões sobre cinema de poesia, Pasolini faz uma crítica a respeito de
autores que, dado o seu amor pacífico e naturalista pelas coisas do mundo, procuram
reproduzir nos seus filmes uma linearidade familiar, “que terá o mais possível uma
duração idêntica à da realidade; outros realizadores são, pelo contrário, favoráveis a
uma montagem que torne essa linearidade o mais possível sintética (pertenço a este
último grupo)”. 3 Uma discussão polêmica travada pelo cineasta e ensaísta diz respeito à
distinção feita entre cinema de prosa e o cinema de poesia. Segundo ele, o primeiro
equivale efetivamente a uma corrente dominante que imprimiu, desde o surgimento do
cinema industrial, convenções narrativas herdadas da língua da comunicação através da
prosa. Já o cinema de poesia está “profundamente alicerçado sobre o exercício do estilo
como inspiração, na maior parte dos casos, sinceramente poética”, “um cinema onde o
verdadeiro protagonista é o estilo.” 4
Para Pasolini, a transmutação da técnica do “discurso indireto livre” (da
literatura) numa “subjetiva indireta livre” é a operação fundamental de passagem à
linguagem de poesia no cinema. Tomando como parâmetro três cineastas
contemporâneos seus – Godard, Bertolucci e Antonioni – Pasolini expõe o quanto já
não se sustentavam os elementos de uma narrativa clássica (a narrativa indireta objetiva,
sob o ponto de vista da câmera, e a narrativa direta subjetiva, do ponto de vista do
personagem) transmutando-se tais elementos numa subjetiva indireta livre em que os
dois tipos de imagens dialogam, de modo a não discernimos o que é visto pela câmera e
o que é visto pelo personagem. Por isso, o cinema de poesia emergente para Pasolini
apresenta um conjunto de filmes duplamente caracterizados: 1) o filme visto é uma

3
PASOLINI, P. P. Empirismo hereje. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. p. 188-9.
4
I.d. 151
subjetiva indireta livre “por vezes irregular e aproximativa”, cujo realizador aproveita-
se de um “estado de alma psiquicamente dominante do filme”, operando uma
permanente mimese “que lhe permite uma grande liberdade estilística, anômala e
provocativa”; 2) sob esse filme, corre um outro que o realizador “teria feito mesmo sem
o pretexto da mimese visual do seu protagonista”, filme cuja consistência é “inteira e
livremente expressivo-expressionista”.5
Ismail Xavier retoma um conceito interessante, advindo da filosofia, que é a
nomenclatura que define a ciência das causas finais: a teleologia, em que tudo tem uma
lógica conclusiva que deve ser alcançada através de passos encadeados. Acreditamos que a
recusa da narrativa, do naturalismo e da linearidade por Pasolini passam muito mais
pela recusa à teleologia do que à prosa em si, uma vez que muito dos seus próprios
filmes advém de grandes narrativas e a sua opção cinematográfica continua sendo por
contar as histórias (Evangelho Segundo São Mateus, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma,
Medeia, As mil e uma noites etc.), ainda que seu estilo seja um grande protagonista nos
filmes.
Adalberto Muller desmistifica ainda mais a questão e nos provoca a ideia de que,
se uma das marcas fundamentais no cinema de poesia é o protagonismo do estilo, é
preciso dizer que tal cinema não deve estar necessariamente associado a obras de arte
herméticas, sobretudo em relação ao que destacou Pasolini acerca de procedimentos do
cinema de poesia: “contraluzes com reflexos na câmera, movimentos manuais de
câmera, travellings exasperantes, montagens falseadas, raccords irritantes”. Muller
reflete sobre o fato de que estes recursos já não são tão especiais ao cinema de arte e de poesia.
Ocorre que muitos dos procedimentos técnicos do “cinema de poesia” voltaram
à tona no cinema contemporâneo, e não apenas em filmes experimentais, ou de
vanguarda. Pode-se encontrar esses procedimentos em filmes produzidos para
o grande público, e até mesmo em programas televisivos ou em filmes
publicitários, o que contribui para tornar ainda mais difícil uma separação
muito rígida entre o cinema dito “de arte” e o cinema dito “industrial”. Fala-se
hoje de produtos híbridos, nos quais as fronteiras entre o poético e o massivo
tende a diminuir sensivelmente, pelo menos do ponto de vista dos
procedimentos (das estratégias).6

Houve muitos períodos, entretanto, que algumas escolhas do autor pareciam


fazer parte de um gesto contestatório, que fugisse de forma bastante evidente das formas
padronizadas. Gestos de negação um tanto quanto agressiva que se davam através de
uma composição poética radical.

5
PASOLINI, 1982. p. 149
6
MULLER, A.“O cinema segundo Pasolini ou a língua escrita da realidade” Publicado em: Devires
(UFMG), Belo Horizonte, n. 3, 2006.
Os gestos poéticos em Júlio Bressane
De acordo com Ismail Xavier, o período de 1969-70 foi o “momento heróico” da
recusa da teleologia e, nos filmes de Bressane, foi notável (e motivo de polêmica) o
gesto de suspensão abrupta do fluxo das ações, um cinema que fazia ataques
coordenados às instituições7. O cinema de poesia em Julio Bressane surge de rupturas: à
convencionalidade narrativa, ao Cinema Novo, “descartando o pacto com o público “e o
cinema de conscientização”. E ele vai além da separação proposta por Pasolini quando
este afirma que a entrada do cinema na fase de industrialização e a introdução do som
fizeram dele uma ‘língua de prosa narrativa “8, entendendo que a poesia estava na
origem, no cinema mudo.
Se nas imagens a intencionalidade poética surge através de fluxos descontínuos
da imagem e do texto, podemos imaginar que o pensamento musical deve ser
representado com a mesma descontinuidade. No filme O Anjo Nasceu (1969) temos até
uma narrativa identificável: dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de
violência. Santamaria, místico, acredita que assim está se aproximando de um anjo que
lhe limpará a alma. Urtiga, um marginal ingênuo, segue os passos do amigo. Embora a
história não seja considerada plausível temos a impressão de que ela terá um desenlace,
mas as intervenções sonoras nos fazem atentar que se trata de uma experiência radical e
que, portanto, não devemos esperar o seu desenrolar coerente. Essa falta de coerência
narrativa e musical desconcertante e desestabilizadora sem dúvidas marcou o estilo
bressaniano.
Desde as grandes óperas e apresentações teatrais, bem antes do cinema pensar
em existir, a música sempre assumiu o forte papel de influenciar, potencializar ou
alterar carga dramática da narrativa. Sabemos que o timbre, o ritmo, a altura, a melodia,
o contraponto, a harmonia de uma música mexem com nossas sensações e com nosso
imaginário, portanto a escolha de uma música para uma cena nunca será aleatória. As
críticas em torno da escolha de uma trilha musical geralmente destacam o caráter
impositivo das músicas utilizadas, como se o diretor dissesse “agora é a hora de você se

7
XAVIER, Ismail. Revista Alceu. v. 6. n. 12. 2006. “Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma
poética”. p. 5. Disponível em: <http://www.publique.rdc.puc-
rio.br/revistaalceu/media/alceu_n12_Xavier.pdf> Acesso em: 13 de julho de 2011
8
PASOLINI, 1982, p. 190.
emocionar”, “agora é hora de você sentir medo”, “sentir pena”, “sentir que é livre” etc.,
como se houvesse um contrato pré-estabelecido.
De fato a música tende o controlar as emoções, colocando todos os espectadores
numa mesma redoma sonoro-sensitiva. E ao mesmo tempo a música nos protege. Se
pensarmos nas projeções dos primeiros filmes acompanhadas por um piano ou
orquestração, notamos que a música tende a suavizar, a aliviar o impacto das imagens
que pairam como fantasmas num ambiente etéreo, numa tela branca. É como se
fizéssemos um “pacto de proteção” através da intervenção sonora. Mas ao autor que
realiza uma obra considerada cinema de poesia certamente interessa mais recriar,
restabelecer pactos, “desnaturalizar” as emoções promovidas pela música.
Em O anjo nasceu a falta de obviedade sonora trata-se de uma criação poética.
Nas primeiras cenas, após longos planos silenciosos de ilustrações do fundo do mar,
surge a imagem de um dos bandidos ferido e, na sequência, duas mulheres mortas. Tudo
isso está embalado pelo som de um samba “Agora é cinza”,
Você partiu
Saudades me deixou, eu chorei
O nosso amor foi uma chama
Que o sopro do passado desfaz
Agora é cinza
Tudo acabado e nada mais
[...]
O episódio é mostrado em fragmentos muito entrecortados e de trás para frente,
quase como um videoclipe. Assim fica explícito, logo no primeiro contato, que o
espectador irá se debater com as escolhas tomadas pelo autor.

Mesmo a trilha musical contradizendo as imagens em grande parte do filme, os


recursos sonoros diegéticos são muito explorados e esse procedimento sugere que
imagens são factíveis, embora tudo pareça muito absurdo. O autor nos põe, assim,
diante de um conflito. É bastante manifesto o ruído do carro, das cadeiras riscando o
chão, da água caindo no copo, a risada escandalosa do bandido Urtiga na sala de cinema
ou o som agonizante dos gritos de dor que Santamaria sente com a sua perna machucada
dentro do carro. Nesta última (longa) cena, a imagem não nega o som e vice-versa, no
entanto ela é sucedida por um plano geral do carro seguindo pela estrada deixando um
grito de dor infinito sendo substituído por uma canção ingênua diante do que estamos
vendo: Peguei um Ita no Norte, de Dorival Caymmi.

Peguei um Ita no norte


Pra vim pro Rio morar
Adeus meu pai, minha mãe
Adeus Belém do Pará
Ai, ai, ai, ai
Adeus Belém do Pará
Ai, ai, ai, ai
Adeus Belém do Pará
Vendi meus troços que eu tinha
O resto dei pra "aguardá"
Talvez, eu volte pro ano
Talvez eu fique por lá
Este mesmo longuíssimo plano final (tem quase 10 minutos de duração) terá
ainda como trilha musical o som desordenado de uma bateria com sax e piano, o
barulho de um monitor cardíaco, instrumentos de corda, enfim, sons muito controversos
com um plano fixo magnânimo que nos levam a pensar em inúmeros desfechos para a
dupla de marginais.
Como apontou Ismail Xavier, neste primeiro momento do cinema bressaniano
havia o cenário do ressentimento, onde personagens em desespero assumiam o crime
como forma de reação catártica, personagens desesperançosos que se desestruturam a
partir das suas próprias ações ou se encolhem ainda mais. Havia também a evocação
constante do samba como sublimação e promessa de superação do exílio em sociedade,
ou seja, as justaposições entre música e imagem, em princípio, incoerentes podem ter
uma congruência implícita.
Embora haja evidências de que o Cinema Marginal não tenha surgido apenas
como um enfretamento ao Cinema Novo, estamos falando do momento mais importante
da cinematografia nacional e não há como negar que havia uma arena de disputa
cultural, sobretudo com a estandardização que o Cinema Novo vinha conquistando, o
que era ironizado pelo Cinema Marginal. Queremos destacar então que esse primeiro
momento da obra bressaniana era marcado por um enfretamento direto, cujo opositor
era identificável. Mas devemos notar também que os grandes nomes desse movimento,
Bressane e Sganzerla, já na época discordavam da expressão Cinema Marginal, já que
não faziam um cinema com propósito de ficar à margem dos circuitos exibidores, mas o
contrário: os circuitos exibidores e a censura o marginalizaram Nesse sentido, Bressane
não carregava consigo um estilo propriamente marginal, mas estava experimentando ali
seu gesto poético, contestatório sim, porém mais do que isso, começava a mostrar suas
próprias marcas poéticas.
Permitimo-nos a fazer uma análise muito breve que pode ser considerada
prematura, por se concentrar em apenas dois filmes, mas que já nos revelam muitos
indícios do cinema de poesia bressaniano. Destacamos então um filme realizado mais de
trinta anos depois de O Anjo Nasceu, o Filme de Amor (2003), que não utiliza os
mesmos procedimentos do primeiro, não enfrenta as mesmas questões culturais, mas
ainda assim podemos encontrar pontos de congruência: o estado de transcendência da
história ou dos personagens é um deles; no primeiro o transe se dá pelo crime, no
segundo, pelo prazer. Acreditamos que as marcas de poesia de Bressane são notáveis
desde seus primeiros filmes e extrapolam objetivos contestatórios dentro do espaço e do
tempo, em relação a determinados comportamentos e movimentos.
Em Filme de Amor, três amigos de vidas muito simples se reúnem numa casa
vazia movidos pelo desejo inconsciente de transcender sua existência para se entregar
ao prazer e divagar sobre o amor. Trata-se de uma fábula popular livremente inspirada
no Mito das Três Graças associadas ao amor, à beleza e ao prazer e que reflete o triplo
benefício das graças: dar, receber e retribuir, simbolismo que é o princípio de todo
sentimento amoroso, desde a antiguidade. Os personagens vivem assim uma espécie de
intervalo de suas vidas medíocres para entrarem em contato com um episódio aleatório
de fruição. Há uma abordagem muito mais sofisticada com relação à experiência
estética dos personagens, em detrimento ao filme de 1969 (mais atrelado à degradação
individual e a desestrutura social). Nesta fase mais contemporânea, os personagens são
pautadas pela grandeza e não pelo acanhamento, pela invenção e não pelo recalque;
capazes, portanto, de transfigurar horror e sofrimento em experiência de criação a
serviço da vida9. Mas a o estado de transe dos personagens, a iniciativa do autor de
enfrentar o espectador, de sugerir-lhe sensações por meio de imagens e sons com que
nós nos conciliamos, rejeitamos, ou ressignificamos e a mistura de diferentes
referências e manifestações artísticas são marcas que não se dissolveram ao longo de
trinta anos da obra de Bressane. Entendemos que a justaposição desses gestos
cinematográficos só é possível no cinema de poesia, ou melhor, que o filme que se
permite ousar a partir de expressões subjetivas alegóricas e justapostas caracterizam
esse cinema de poesia.
Em algumas entrevistas concedidas por Julio Bressane, o cineasta deixa claro
que fazer cinema é uma questão de necessidade pessoal, um instrumento de
autotransformação e que este ato exige leitura, armazenamento, pois toda arte é alusiva
“e quanto mais repetição, quanto mais parecença, quanto mais citação, mais forte é o
10
objeto artístico” . Filme de Amor parece ser uma síntese de tudo isso, suas
inquietações e o desejo de expressão estão presentes e percebemos o quanto o
armazenamento cultural foi determinante para a composição da obra, que tem inspiração
em um mito da antiguidade clássica e cuja organização imagética faz explícita
referência aos quadros de Balthus que retratam a sensualidade, o que nos leva ao
encontro do erótico de forma sutil e muito trabalhada.

9
XAVIER, 2006. p.23
10
Revista Cinemais, número 6, julho/agosto de 1997, páginas 7 a 42.
Menina no espelho III

A lição de guitarra

Nu com gato
Nu na banheira.
As primeiras imagens do filme mostram que o que se vê é objeto de uma
criação, integra-se o fora de quadro para dentro do quadro, absorvendo a sua
exterioridade material, como se o diretor fizesse a opção de voltar a câmera para o
próprio ato de criar o cinema: a filmagem, os ruídos dos bastidores, que nada têm a ver
com a imagem subseqüente: os três personagens na praia num dia ensolarado e com
uma representação quase teatral por ser muito marcada.
Ismail Xavier já havia destacado a presença dos bastidores, com o diretor
tomando providências, a aparição da claquete ao longo da obra de Bressane, o que
mudou de função e sentido conforme o momento. Conforme termo apresentado por Noel
Burch, no período entre 1969-70, a presença do bastidor ficou associada a “estruturas de
agressão”, que funcionava como um toque de subversão. Em O anjo nasceu e Matou a família
e foi ao cinema (1969), essa subversão podia estar associada “à desconstrução, à denúncia da
representação e do ilusionismo. Já em O rei do baralho (1973), por exemplo, os bastidores
mostrados na abertura do filme têm outra função. Fazem parte da estrutura em mosaico, já
definem desde o início o que será a regra do jogo em todo o filme”.11
Acreditamos, no entanto, que mais do que buscar uma funcionalidade dentro do período
de criação do cineasta, esta prática equivale a um “cacoete” proposital do autor, uma marca que
ele quer sempre reiterar, seu estilo, sua poesia. Essa prática, que evidencia os aspectos não-
diegéticos e não-lineares do fazer cinematográfico, traz à tona uma discussão
metalinguística, metafílmica, pondo em questão o próprio filme. Em Filme de Amor tal
discussão não está somente no plano das escolhas imagéticas, o questionamento do ato
de criar está presente na fala e nos gestos dos personagens – que ensaiam, que são
observados de um mesmo ângulo, em cores e em preto e branco, e isso nos provoca a
sensação de que cada take, foi aproveitado, como versos aleatórios, que não precisam de
coerência entre si, não são analisados se estão corretos ou errados para compor a poesia.

Em determinada cena, a personagem Hilda (interpretada por Bel Garcia)


questiona também a própria linguagem: “Os idiomas, nós sabemos, não são sinônimos.
Uma língua é uma maneira de sentir o mundo, um modo único de sentir o mundo. Pelas
coisas audíveis e visíveis, chegamos às coisas inaudíveis e invisíveis.” A frase parece
sugerir o pensamento bressaniano, que nos defronta com imagens e sons para nos
provocar sensações e, de fato, o filme constitui-se como um grande bloco de sensações
que revela as percepções vividas pelos personagens em meio a divagações verbalizadas,

11
XAVIER, 2006. p.11.
mas que só fazem algum sentido para o espectador se ele se permite a vivenciar as
sensações provocadas.
Outro ponto interessante de se observar diz respeito aos posicionamentos e
movimentos de câmera elegidos por Bressane. O “olhar” que ele lança é especial, a tal
ponto que, mesmo numa percepção pouco atenta nos perguntamos: “onde estava essa
câmera?”, “que movimento o ator estava fazendo para surgir na tela assim”?

É notável que o cineasta brinca com os planos e com os movimentos de câmera e


o faz desafiando o espectador, pois age com mais liberdade face à diegese, “(...) pois a
câmera, em Bressane, diverge. E o mundo diegético se fragmenta, podendo chegar a
uma presença radicalmente residual . A câmera perambula, cria seu próprio interesse, ou
12
se assume como extensão do corpo” , criando uma coreografia própria. Neste ponto
encontramos um diálogo com a operação pasoliniana de linguagem de poesia no cinema
a partir da subjetiva indireta livre, considerando a indiscernibilidade diante do ponto de
vista de uma câmera. Vemos em Filme de Amor que o olhar da câmera, o olhar do
personagem e as suas sensações se confundem dependendo do posicionamento e
movimento da câmera criados.
A propósito, em O Anjo Nasceu, embora as tomadas sejam mais objetivas e
explorem menos o universo subjetivo dos personagens, a câmera assume seu objeto de
interesse, como se “olhasse” cenas que ela mesma escolhesse, de forma um tanto quanto
independente da trajetória dos personagens. Esse procedimento fica muito explícito
quando, no momento em que os criminosos estão com as suas futuras vítimas - todos
sentados à mesa, eles ironizando a situação na qual as vítimas se encontram, surge em
corte seco, sem nenhuma explicação, a cena de um casal de noivos sendo fotografados
num parque, com crianças correndo, música alta. A sequência dura mais de dois
minutos e é sucedida, também sem nenhuma explicação, pela imagem dos criminosos e
das vítimas em outro cenário.

12
XAVIER, 2006. p.10.
. .

Da mesma maneira alegórica, como se a câmera quisesse respirar novos ares, há


uma cena em que a dupla Santamaria e Urtiga estão caminhando, a câmera acompanha
até certo ponto essa trajetória, mas depois pára e nos deixa diante de um plano geral do
alto do morro, durante cerca de meio minuto. Somos levados a constituir assim um
espaço que, no filme, aparece desativado. O espectador olhando aquela paisagem
daquele determinado ponto faz com que aquele espaço não esteja mais vazio e o tempo
dedicado a olhar tal cena não seja apenas um plano longo, estamos participando da cena.

Bressane descarta então o princípio clássico de que tudo deve girar em torno da
cena e se reserva o direito de se afastar a câmera, deixá-la atenta ou não aos
personagens, pois estes equivalem apenas a uma parte dos elementos que compõem o
filme. “Há um espaço de reflexão que não depende das ações, embora possa estar
referido a elas, espaço que se enriquece pelo estilo disjuntivo” 13 de um olhar que não é
pautado apenas pelo movimento dos personagens.
Voltando ao Filme de Amor, gostaríamos de finalizar a análise ressaltando a
criação de um universo muito particular pelo qual os três personagens são absorvidos.
Sabemos que eles não pertencem à casa onde estão, pois acompanhamos, no começo do
filme, todos na praia, depois no trem, andando pelas ruas até chegarem lá. Mas é curioso
observar que nós nos acostumamos com aquele estado de evasão e transcendência no
qual eles mergulharam e, ao saírem e voltarem às suas vidas cotidianas – como
cabeleireiro, manicure e ascensorista de elevador – o que causa estranhamento é
justamente essa realidade tão comum. Por conta disso é que a criação poética de evasão
em Bressane é tão forte, ele consegue nos envolver no estado catártico que ele mesmo
cria.
Observamos então alguns gestos poéticos realizados por Júlio Bressane, mas
sem a intenção de categorizar a maneira como cria seus filmes, muito menos com o
objetivo de sistematizar determinados procedimentos que podem ou não ser
considerados cinema de poesia. Como exercício de análise, foi interessante perceber que
o gesto poético está presente em formas distintas de recriar a linguagem
cinematográfica, seja através da música, da pintura ou com mecanismos próprios do
cinema. De maneira geral o que se estabelece como poético depende muito da
sensibilidade do autor em captar esses mecanismos distintos e levá-los para dentro da
obra. De fato, a concepção moderna de poesia está essencialmente enraizada no
indivíduo, na subjetividade. Adalberto Muller aponta para a definição hegeliana de
poesia como forma artística na qual o espírito (a interioridade) se manifesta com maior
grau de liberdade em relação à exterioridade. A poesia se realiza, antes de em qualquer
outro meio de expressão, no espaço interior, mas ao ser exteriorizada toma formas até
certo ponto autônomas, por isso entendemos que o cinema de poesia é uma expressão
dialética por natureza, pois depende da dedicação inicial do gesto poético do autor, mas
ao ser realizada cinematograficamente extrapola sua idealização. O próprio Bressane
afirmou que a arte é como um organismo vivo que escreve a si mesmo, mais criadora do

13
XAVIER, 2006. p.9.
artista que criação dele, “e o cinema, nesse sentido, é devastador; você faz, imagina que
controla e o que de fato controla deve significar uns cinco por cento do filme”.14

14
Revista Cinemais “Cinema de poesia” nº 33, janeiro/março de 2003.
Bibliografia

BERNARDET, J-C, XAVIER, I. & PEREIRA, M . O desafio do cinema. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

HEGEL, G.W.F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp,
1999.

MACIEL,M.E. A memória das coisas. Rio de Janeiro: Lamparina.

MULLER, A.“O cinema segundo Pasolini ou a língua escrita da realidade” in Devires


(UFMG), Belo Horizonte, n. 3, 2006. p. 88-105.

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