Dissertação - Vinícius Machado Luz - 2021
Dissertação - Vinícius Machado Luz - 2021
Dissertação - Vinícius Machado Luz - 2021
GOIÂNIA
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PERFORMANCES CULTURAIS - PPGPC
GOIÂNIA
2021
DEDICATÓRIA
Nesta vida não se caminha sozinho, por isso, no decorrer da caminhada, conhecemos
aqueles que verdadeiramente nos acompanham e torcem por nossas vitórias. Portanto, agradeço
primeiramente a Deus, por ter me dado forças e disposição para encarar os inúmeros desafios
dessa jornada.
Agradeço especialmente à minha mãe, Celina Machado Luz, pelo apoio sempre
incondicional, pelas lutas diárias e constante superação das intempéries sempre presentes em
seu caminho. À minha filha, Maria Helena dos Anjos Luz, por existir, por dar luz, cor e sentido
às minhas batalhas diárias. À minha esposa, Hellen dos Anjos Farias Luz, profissional dos
números e das relações humanas, entre candies e cafés, sempre atenta ao que se foi e ao que
está por vir.
Ao meu irmão, Thiago Machado Luz, professor de Física e Matemática, por seu apoio
e incentivo constante, mesmo geograficamente distante. Ao meu pai, Wagner de Oliveira Luz,
agradeço também.
À valiosa orientação da professora Dra. Vânia Dolores Estevam de Oliveira, que
soube conduzir as orientações mesmo em tempos difíceis de pandemia e isolamento social.
Soube aliar o profissionalismo com as boas relações humanas e a preocupação com os seus
orientandos, além de conduzir o Grupo de Extensão em Performances Culturais, Museologia e
Memória Social - GEPEMM, do qual também faço parte.
Em Lagolândia, agradeço a Danilo Camargo, por sua hospitalidade, presteza,
indicações para entrevistas e confiança em abrigar esse pesquisador em sua casa, durante os
dias de realização da pesquisa. A Marco César Teles Camargo, ao qual fui levado por uma
sequência de acontecimentos e coincidências, agradeço por suas orientações, indicações e
apoio com informações relevantes.
Na Universidade Federal de Goiás, UFG, ao professor Wolney Fernandes, da Escola
de Música e Artes Cênicas da UFG, que apresentou e descreveu a Folia de São João. Nascido
em Lagolândia, Wolney experienciou o movimento de Santa Dica por meio de seus pais, avós e
pela vivência e convivência com as festas e tradições do distrito. Agradeço ao professor Dr.
João Guilherme Curado, por sua presteza e disponibilidade, desde a Banca de Qualificação
dessa dissertação, onde o conheci por videoconferência.
À professora Dra. Leda Maria de Barros Guimarães, por apresentar o universo da
cultura popular, desde o primeiro contato, no distante ano de 2003, como aluno de graduação
em Artes Visuais - Habilitação Design Gráfico, na disciplina Arte Popular Brasileira, na
Faculdade de Artes Visuais (FAV), da UFG. Posteriormente, na disciplina Arte e Visualidades
Populares, no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, também na FAV.
Agradeço à professora Dra. Nádia Maria Weber Santos, com a disciplina ―Tópicos
Avançados em Performances Culturais II: ‗Arquétipos, mito e arte nas Performances
Culturais‘‖, com a qual tive o meu primeiro contato com este Programa de Pós-Graduação. A
bibliografia indicada pela professora Nádia, médica e pesquisadora no campo da História e da
Psicologia Analítica, trouxe conceitos importantes de Carl Jung (dentre outras referências), que
possibilitou compreender as manifestações religiosas, no caso da minha pesquisa, também
enquanto representação do universo simbólico, mitológico e arquetípico. Também, pela
indicação da professora Dra. Vânia Dolores Estevam de Oliveira, como orientadora.
Ao professor Dr. Sebastião Rios, na disciplina Performance e Cultura Popular, pelas
leituras e debates de textos de autores que discutem cultura popular, o folclore e as danças
brasileiras, intercaladas por visitas e participação em festejos populares, como as Congadas de
Catalão, a Folia de Reis em Inhumas, o Bumba Meu Boi de Pirenópolis e o Tambor de Crioula
do Maranhão, apresentado na Praça Universitária, em Goiânia. Além das aulas, agradeço
também por sua efetiva participação e contribuição durante a banca de Qualificação.
Sem esquecer, agradeço a minha amiga e colega de mestrado, Suzete Aparecida
Gomes, por sua rápida, porém marcante passagem pelo PPGPC. Trabalhávamos na mesma
instituição, mas nos conhecemos no corredor da FCS, enquanto aguardávamos a entrevista/
prova oral do processo seletivo do Mestrado em Performances Culturais. Infelizmente não
houve tempo para Suzete realizar o sonho de finalizar essa pós-graduação, mas teve a alegria
de viver várias outras vitórias, pessoais e acadêmicas.
Por fim, mas não menos importante, a todos do PPGPC: colegas, professores e
funcionários, pelo tempo dedicado e pela disposição de sempre contribuir. Também, a todas as
pessoas, de todas as épocas, que de algum modo fizeram ou se empenharam em transformar o
mundo em um lugar melhor, por meio de seus ofícios, seus ideais, pela ciência, pela
religiosidade, pelo trabalho voluntário ou pela arte. A beleza reside em dar o seu melhor e
aprender a cada dia e, como bem disse Guimarães Rosa, ―mestre é quem de repente aprende‖.
Para finalizar, como mensagem que fica desse processo, invocando os cantores e
compositores Belchior e Milton Nascimento, com trechos de músicas de suas autorias e/ou
interpretações, cujas letras marcaram várias fases da minha trajetória de vida, três citações bem
evidentes para todo esse período de mestrado: ―amar e mudar as coisas me interessa mais‖, ―o
novo sempre vem‖ e ―os sonhos não envelhecem‖.
Viver significa lutar
(Sêneca)
RESUMO
This dissertation presents the Revelry of Saint John in the city of Lagolândia (district of
Pirenópolis, state of Goias, Brazil), by using its cultural performances. The Revelry of Saint
John with characteristics that remained little know, until now, has the particularity of being
performed by proximately 24 women, known as "maidens", apparently, also unique in the
country. This manifestation, likewise, other religious/cultural celebrations from the region,
arises from the initiative of a religious and political leader in the first half of the XX century,
Benedita Cipriano Gomes, popularly known as Saint Dica. This research arose from the
problem that there is a religious rite staged for decades in the region, with its unique rules and
characteristics, dictated by the feminine, with the hypothesis that those manifestations occur by
motivations linked to memory and identity of the place, which surpass the religious and
devotional slant. This study follows the line of research Spaces, Materiality and Theatricalities,
the temporal and spatial aspect, with emphasis on the characters and how they interact,
modifying the relationship and spaces (buildings, streets, houses...) through their performances,
of their female bodies and their relations with the history of the place and the language as an
act, surpassing the religious and devotional slant. The main authors that give sustenance to this
study are some of the main world references, while discussion and approach of the
performances, from the popular culture, Anthropology and of the rites, such as Richard
Schechner (2002, 2006 and 2012), Milton Singer (1985) and Victor Turner (1974, 1978 and
2005), among others. The survey had some restrictions imposed by the COVID-19 pandemic,
in 2020; however, there was no loss regarding its objectives, which intended to show the
characteristics of the party and its unique nature of the festivity in the region. Therefore, it was
possible to present a result within what was proposed, with material registered during the
project period. As a part of the conclusion, it was possible the comprehension of Revelry of
Saint John as a festivity linked to the memory and the legacy of its founder, the Saint Dica.
Keywords: Cultural performances. The revelry of Saint John. Lagolândia. Saint Dica.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - À meia noite as mulheres circulam a fogueira no ritual que dá início à Folia ..............18
Figura 3 - Pela manhã, o grupo de donzelas faz o Giro pelas casas do distrito entoando músicas
e coletando esmolas (donativos) ...............................................................................................22
Figura 11 - Batalhão do exército da Santa Dica em Uberlândia – MG, seguindo para a Revolução
de 1932, em 24 de agosto do mesmo ano ..................................................................................45
Figura 12 - O prédio da escola pública do distrito leva o nome de Santa Dica, Benedita Cipriano
Gomes ......................................................................................................................................46
Figura 14 -Túmulo de Santa Dica, situado na praça, em frente à casa onde residiu até a sua morte.
…………………………………………………………………....…..……….......................... 48
Figura 16 - Casa de Santa Dica, fachada e parte interna, com detalhe de galhos da gameleira que
cobre o túmulo .......................................................................................................................... 50
Figura 17 - Salão de festas Mário Mendes e a igreja Imaculada Conceição - locais onde se realiza
a maior parte das festas religiosas do distrito ............................................................................ 54
Figura 18 - Margem do Rio do Peixe, aos fundos da casa de Dica - Local utilizado para os
batismos noturnos..................................................................................................................... 60
Figura 19 - Batismo de crianças às margens do Rio do Peixe, no fundo da casa de Dica ..........62
Figura 20 - Giro diurno entre as casas dos moradores ................................................................63
Figura 21 - Detalhe do caderno de músicas com trecho da música mais entoada durante o Giro,
o ―agradecimento das esmolas‖ ................................................................................................64
Figura 22 - Parte externa de uma das casas durante o Giro diurno da Folia de São João ........... 67
Figura 23 - Folia de São João, em 2002, uniforme lembra a farda militar .................................73
Figura 24 - Bandeirinhas - Festa de São João, em Touros (RN), em junho de 1980 ..................76
Figura 25 - ―Chegada‖ - Primeiro hino do caderno de músicas da Folia de São João ................83
Figura 30 - Interior da casa de Santa Dica após término do ritual noturno detalhe para vela acesa
.............................................................................................................................................. 101
Figura 31 - Café da manhã servido antes do início do Giro, no Salão Mário Mendes .............. 102
Figura 35 - Parada em uma das casas: música entoada antes de entrar ..................................... 105
Figura 38 - Interior da Capela de N. Senhora do Livramento, uma das paradas do Giro ...........106
Figura 39 - Brasas da fogueira de São João, no dia 23 de junho, no início do trajeto das
Folioas..................................................................................................................... 108
Figura 40 - Quadra de Esportes onde se realiza a Festa Junina, que antecede as voltas das Folioas
em torno da fogueira ............................................................................................................... 108
Figura 42 - Pela manhã, o Grupo de Mulheres já se encontra no Salão Mário Mendes, para o café
da manhã ...............................................................................................................................110
Figura 43 - Parte externa de uma das residências, durante o Giro ........................................... 110
Figura 45 - Momento da entrada do Grupo de Folioas: os homens entram por último ............ 111
INTRODUÇÃO...........................................................................………………......…...…....18
1 UM LUGAR CHAMADO LAGOLÂNDIA.............................………………......…...…....26
1.1 ENTRE A HISTÓRIA CULTURAL, A MEMÓRIA E A IDENTIDADE ............................ 26
1.1.1 A memória, a identidade e o gênero no grupo em análise…..……..............…....................... 28
1.2 BREVE HISTÓRIA DA CIDADE DE PIRENÓPOLIS E O SURGIMENTO
DE SANTA DICA .............................................................................................................................. 29
1.2.1 Santa Dica …..………........…........…........…...............................….........…...…................... 33
1.2.2 O movimento messiânico de Santa Dica …..………………………....................................... 35
1.2.2.1 Um outro movimento …..………...……………...…................................................................ 40
1.2.3 A participação de Dica nas revoluções …..……….........…..........…....................................... 42
1.2.3.1 Participação na Revolução de 1930 …..………...........….........................................................43
1.2.3.2 Participação na Revolução Constitucionalista de 1932…..…….............................................. 44
1.2.4 Lagolândia nos dias atuais …..……….......…........…........…...........…................................... 46
1.2.5 A casa da Santa Dica nos dias atuais …..…..................…........…........................................... 49
1.3 UMA COMUNIDADE DE FESTAS: FESTAS EM QUASE TODOS OS MESES
DO ANO .............................................................................................................................…..50
1.3.1 A Folia de Reis em Lagolândia................................................................................................. 51
1.3.2 A Festa do Doce ....................................................................................................................... 52
1.3.3 Festa da Nossa Senhora da Imaculada Conceição e outras festividades ................................. 54
2 A FOLIA DE SÃO JOÃO EM LAGOLÂNDIA ……..……..…….…............................... 56
2.1 BREVE HISTÓRICO DE SÃO JOÃO ….….......…........…........….............….…................. 58
2.2 BREVE ENREDO: DAS VOLTAS NA FOGUEIRA E OS BATISMOS AO GIRO
DIURNO ….….......................................................................................................................................61
2.3 DIFERENTES INTERPRETAÇÕES…..……….…....…...........................….….................... 65
2.3.1 As casas do Giro…..………............……......…...........…....................…................................ 66
2.4 AS FESTAS JUNINAS E OS SANTOS CATÓLICOS …..................................................... 68
2.5 A MEMÓRIA E O CATOLICISMO POPULAR DE DICA ........………..........…..….......... 71
2.6 A ORIGEM DA FESTA EM LAGOLÂNDIA E DO GRUPO DE MULHERES ................. 74
2.6.1 As mulheres do grupo.....……….........…........…........…........…........…................................ 77
2.6.2 A relação de Dica com a virgindade.…..…………........…......…...............…..........….......... 79
2.6.3 A comunidade e a festa …..……........…........….................….......................…......................81
2.7 OS PREPARATIVOS E A MÚSICA ….…........…......…........…....…….............................. 82
3 AS PERFORMANCES DAS MULHERES NA FOLIA DE SÃO JOÃO EM
LAGOLÂNDIA ……...........................................................................................................................88
3.1 UMA PERFORMANCE RECONFIGURADA …..........…......…............…...........…...........89
3.2. A LIMINARIDADE E O RITUAL - CONCEITOS E INTERPRETAÇÕES .........................93
3.3 A LIMINARIDADE NA CULTURA COMO PERFORMANCE ............................…..........96
4 A FESTA EM IMAGENS …………………….…….…...…..….....…….............................98
4.1 O RELATO ETNOGRÁFICO …..………..…......................…...............................................98
4.2 BREVE NARRATIVA VISUAL ....…………........…........…..........…................…............ 107
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...…....…..………................................................................. 114
REFERÊNCIAS.…...…....…...…....…...…....….…....…......................................................117
APÊNDICES.......................................................................... .........................................125
ANEXOS..........................................................................................................................133
Além de conhecer a história de Santa Dica e seu ideário, para compreender a Folia de
São João fez-se imprescindível abordar e contextualizar a história de São João Batista -
personagem central da festividade. Para tanto, foi necessário recorrer a relatos, passagens
bíblicas e a alguns trabalhos de pesquisa já realizados sobre o tema.
A manifestação da Folia consiste na homenagem a São João Batista que, segundo o
relato bíblico, era filho de Isabel (prima de Maria, mãe de Jesus). Seu nascimento veio de uma
gestação inesperada, pois sua mãe já tinha idade avançada e era considerada estéril. Na
ocasião de seu nascimento, foi acesa uma grande fogueira, com o objetivo de avisar a José e
Maria (então grávida de Jesus Cristo) sobre o seu parto.
São João Batista tem grande importância na história do cristianismo. Segundo a
Bíblia, ele teria sido o responsável pelo batismo de Jesus no ritual das águas. No texto bíblico,
as principais referências a João Batista foram feitas no livro de Lucas, cujo texto diz: ―eu, na
verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, do
qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; este vos batizará com o Espírito Santo e
com fogo‖ (Lucas, 3,16).
Embora situado como primo de Jesus Cristo e responsável por seu batismo, as
manifestações populares de devoção a esse santo católico, como a Folia de São João, não
fazem parte do catolicismo litúrgico. Estão inseridas no que se chama de Catolicismo
Popular.
[...] um conjunto de representações e práticas religiosas autoproduzidas pelas
classes subalternas, usando o código do catolicismo oficial. Isso significa que
o Catolicismo Popular incorpora elementos do catolicismo oficial – os
significantes – mas lhes dá uma significação própria, que pode inclusive opor-
se à significação que lhes é oficialmente atribuída pelos especialistas. O
resultado é que o mesmo código religioso é diferentemente interpretado pelas
classes sociais de maneira que, sob uma unidade formal, escondem-se, de
fato, diversas representações e práticas religiosas (OLIVEIRA, 1985, p.135).
suas análises, foram, consequentemente, canceladas. Mesmo assim, de acordo com material
anteriormente colhido foi possível realizar o estudo, como demonstra a figura 3.
FIGURA 3 - PELA MANHÃ, O GRUPO DE DONZELAS FAZ O GIRO PELAS CASAS DO DISTRITO
ENTOANDO MÚSICAS E COLETANDO ESMOLAS (DONATIVOS)
Para realizar a análise dos rituais que envolvem as Performances Culturais da folia
feminina de São João, a abordagem utilizada foi a pesquisa exploratória, pela necessidade de
aprofundamento e compreensão do grupo social de mulheres, passando por sua organização,
formação histórica e motivações.
De acordo com Gil (2002), a pesquisa exploratória tem por objetivo:
Proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais
explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm
como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de
intuições. Seu planejamento é, portanto, bastante flexível, de modo que
possibilite a consideração dos mais variados aspectos relativos ao fato
estudado. Na maioria dos casos, essas pesquisas envolvem: (a) levantamento
bibliográfico; (b) entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas
com o problema pesquisado [...]. (Gil, 2002, p. 41).
CAPÍTULO I
Nesse novo contexto, o homem comum passa a fazer parte das narrativas, visto que
se torna um sujeito importante e atuante, surgindo o conceito das mentalidades, pois o nível
cultural passou a ser entendido como uma forma de determinação primária da sociedade
(PESAVENTO, 2003). Porém, esse conceito não é preciso.
A mentalidade era uma maneira de ser, um conjunto de valores partilhados,
não-racionais, não-conscientes e, de uma certa forma, extraclasse. Falava-se
de permanências mentais e de sentimentos que atravessavam épocas e
culturas, partilhados por diferentes extratos sociais, mas sem que houvesse um
trabalho de aprofundamento teórico do conceito. (PESAVENTO, 2003, p.
31).
27
Desse modo, a História Cultural traz novas correntes historiográficas com mudanças
epistemológicas e nos métodos empregados, que objetivam revelar e, muitas vezes, dar
relevância ao secundário.
No caso da Folia de São João de Lagolândia, a História Cultural se faz pela
abordagem do comportamento humano, individual ou em grupo. É a capacidade de interpretar
papéis e seguir padrões comportamentais, com ―temas, figuras, motivos, símbolos, estilos e
sentimentos‖ (BURKE, 1992, p.15) e, dessa forma, compreender o que se chama de ―espírito
de uma época‖ (BURKE, 1992, p.16).
Esse ―espírito de uma época‖, por sua vez, pode ser resgatado também por meio do
que se chama de memória, muitas vezes, abordado unicamente por seus aspectos físicos ou
cognitivos, tem a sua construção enquanto fenômeno pessoal, coletivo ou social.
Contudo, ―a princípio a memória pode parecer um fenômeno de cunho pessoal, pois
cada indivíduo possui lembranças sobre sua trajetória de vida‖ (AMORIM, 2012, p. 108). No
entanto, para Halbwachs (1990),
Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali
eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com
outros meios. [...] Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos
a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social
(HALBWACHS, 1990, p. 51).
Nesse sentido, há uma divisão de papéis clara, que define a função de cada um, na família e
na sociedade.
Nas folias, como é o caso da Folia de Reis, a predominância masculina pode
representar um tipo de perpetuação das relações e comportamentos, entre homens e mulheres,
na sociedade. Já a Folia de São João, com os seus aspectos peculiares, cria uma nova
identidade, por ser um grupo com crenças, gênero, ritos e memórias em comum entre e com
marcada diferença em relação ao grupo de Folia de Reis, predominantemente masculino.
Entendendo, aqui, a identidade e a identificação enquanto:
na linguagem do senso comum, a identificação é construída a partir do
reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são
partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo
ideal (HALL, 2000. p. 106 ).
Por meio desse reconhecimento, evocado pela memória, ―as identidades parecem
invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a
manter uma certa correspondência‖ (HALL, 2000, p. 109).
A identidade do grupo, portanto, tem sua coesão a partir de sua relação de gênero,
aliada à religião e está intimamente ligada ao sentido de pertencimento ao local de origem,
Lagolândia, e a história de sua precursora, fundadora dos costumes e líder local.
dos Emboabas1. Porém, ―mesmo sendo ele o ‗descobridor‘ [das minas]2, (...) não é
considerado o fundador do arraial, ficando o crédito para Manuel Rodrigues Tomar‖ (PAIVA;
MARTINS, 2010, p. 32). A figura 4, apresenta um recorte da cidade, já em 1886. Lembrando
que, nessa época, a região de Goiás estava subordinada à Capitania de São Paulo.
Já, a partir de meados do séc. XIX e até o início do século XX, após o fim do Ciclo
do Ouro, o cenário do antigo arraial de Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte,
agora com o nome de Pirenópolis (Cidade dos Pireneus), mantinha, assim como grande parte
da região de Goiás, as suas atividades econômicas voltadas para o comércio e a produção
agrícola.
Goiás viveu um longo período de transição. Desaparecera uma economia
mineradora de alto teor comercial. Nascia uma economia agrária, fechada, de
subsistência, produzindo apenas algum excedente para a aquisição de gêneros
essenciais, como o sal, ferramentas, etc. (PALACÍN, 1994, p. 48).
Segundo Paiva e Martins (2010), essa produção, porém, não tinha grande
representação no total do país. De acordo com Vasconcellos (1991, p. 73),
entre os 49 municípios de que se compunha o Estado de Goiás até 1930, o de
Pirenópolis não se encontra entre os vinte maiores produtores agrícolas. Sua
1
A Guerra dos Emboabas foi um confronto travado entre bandeirantes paulistas e os emboabas (portugueses e
imigrantes de outras regiões do Brasil), de 1707 a 1709, pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas
de ouro na região do atual estado de Minas Gerais.
2
Coube a Urbano do Couto, e o crédito dado a Manuel Rodrigues Tomar - Esboço Histórico de Pirenópolis
(Jarbas Jayme, 1971).
31
.
Fonte: IHGG (Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)
nacional na propriedade de terras. Desse modo, no início do séc. XX, o poder político tinha
concentração nos moldes da chamada República Velha.
Nesse sentido, a dinâmica social e as relações econômicas e políticas do estado de
Goiás, no período da República Velha e, por consequência do Coronelismo, delineiam a
realidade e a mentalidade da época, fundamentais para compreender as hierarquias e o
panorama nos quais a cidade de Pirenópolis estava inserida.
De acordo com Frederico Oliveira da Paixão e Margot Riemann Costa e Silva
(2013), a República Velha, ou Primeira República, é marcada, no âmbito federal, pela política
―Café com Leite3‖, na qual, os candidatos de São Paulo (grandes produtores de café) e de
Minas Gerais (criadores de gado bovino e produtores de leite) se revezavam no poder,
mediante o apoio dos coronéis. Esse período é compreendido entre 1889, com a Proclamação
da República, a 1930.
O estado de Goiás, distante da capital federal, naquela época sediada na cidade do
Rio de Janeiro, era considerado de localização periférica no âmbito político, o que abria
espaço para o poder dos coronéis locais. Os coronéis, e as suas relações militares, mantinham
seus status e poderes por meio da propriedade sobre a terra, da dependência política e na
manutenção do atraso.
Os coronéis eram fazendeiros, grandes proprietários de terras, que detinham o
poder econômico, social, político e militar da região. Eram apoiados e
envolvidos na política estadual e até federal, em contrapartida, garantiam
apoio eleitoral aos candidatos indicados pelos governantes por força do voto
de cabresto, estes por sua vez, davam ―carta branca‖ (total liberdade) a estes
fazendeiros em seus domínios. A manutenção do poder baseava-se na
adequada manipulação do orçamento e pela reprodução do atraso4, assim,
mantinha-se a população em situação de dependência frente os chefes
políticos, além de evitar-se fiscalizações e intervenções federais que pusessem
em risco o poder local. (PAIXÃO e SILVA, 2013, p. 219).
3
Política Café com Leite: Alternância e predominância do poder nacional por parte das oligarquias de São Paulo
e de Minas Gerais, durante o período chamado de República Velha.
4
Atraso, segundo Palacin (1994), entendido como isolamento e falta de infraestrutura.
33
Nesse contexto social e político, em 1905, nasce em uma das fazendas da região, a
36 quilômetros de Pirenópolis, na fazenda ―Mozondó‖, Benedita Cipriano Gomes, que mais
tarde passaria a ser conhecida como Santa Dica. Filha mais velha de oito irmãos, seus pais,
Benedito Cipriano Gomes e Benedita Pereira de Siqueira, tinham uma pequena parcela da
fazenda, onde trabalhavam como agricultores e possuíam um engenho de cana, onde
produziam rapadura (VASCONCELLOS, 1991). Era um trabalho de subsistência, pois,
apesar de possuírem terras, não tinham quase nenhum dinheiro.
As terras da Fazenda Mozondó, localizada na área rural de Pirenópolis, Goiás,
situavam-se próximas ao Rio do Peixe e pertenciam em grande parte à família
Cipriano Gomes, oriunda da cidade de Itu, São Paulo (JAYME, 1973 apud
CURADO, 2009).
Segundo Rezende (2011), o pai tivera um sonho no qual era avisado por um anjo de
que sua filha nasceria com uma missão muito especial, e que deveriam ajudá-la a cumprir.
Isso parece se confirmar, desde a primeira passagem da vida que dá a menina Benedita
notoriedade e a torna uma curandeira conhecida e respeitada na região, com poder político e
um imenso grupo de seguidores. O fato é o seu suposto caso sobrenatural de ―ressurreição‖,
aos sete anos de idade. Conforme Vasconcelos (2011), acometida de um mal desconhecido,
cai gravemente enferma:
Após tentar os recursos locais, chás e simpatias, é tida como morta ao final de
três dias de prostração. Ressuscita, no entanto, ao lhe ser dado o tradicional
banho dos defuntos. A notícia deste fato se espalha, primeiramente na
vizinhança para, em seguida, ganhar o município, o estado e o país
(VASCONCELLOS, 2011, p. 79).
A biografia de Santa Dica, nos anos que se seguem, será descrita nos próximos
subcapítulos, de acordo com a sequência de fatos pertinentes à presente pesquisa, sobre a
prática performática de mulheres na Folia de São João. Contudo, faz-se necessário ressaltar
35
que, segundo Paiva (2003), nesse período, cerca de 98% da população de Goiás era
analfabeta, com base nos dados do Censo de 1920. A medicina convencional (alopática),
nessa mesma época, também não era acessível ao sertanejo.
[...] Os médicos eram uma raridade e quando estavam disponíveis o preço da
consulta não era acessível a todos, assim como a medicação manipulada nas
antigas farmácias. Além do mais havia resquícios, principalmente entre os
sertanejos, de que os médicos não eram bem vistos pela Igreja. A maioria
deles recorria a rezas e promessas objetivando a cura. (CURADO, 2009, p. 3).
Os fenômenos religiosos são estudados por ciências que, atualmente, saem dos
domínios da Teologia. A História, a Antropologia e a Sociologia também abarcam o tema,
pois estão envoltas nas complexidades das relações humanas. Por essa complexidade, também
podemos compreender alguns fenômenos como movimentos sociais, sendo o caso do
Messianismo.
Segundo a definição de Pontes (1992, p. 15), o conceito de messianismo tem
assumido as mais variadas acepções. No sentido vulgar ou corriqueiro, significa ―a crença na
existência de um personagem ou de uma doutrina que, por suas qualidades intrínsecas ou
mágicas levará a sociedade humana a uma situação paradisíaca‖. Por meio desse mesmo
autor, há uma compreensão de que:
Tais movimentos têm em comum o fato de se manifestarem sempre em
momentos de graves crises sócio-políticas, assumem quase sempre um caráter
revolucionário e, em sua essência, se constituem numa resposta dos povos
oprimidos (PONTES, 1992, p. 11).
Nesse mesmo período, o então Rio do Peixe, que rodeava a fazenda Mozondó, foi
renomeado por Santa Dica para Rio Jordão. ―Um grande número de fiéis [...] fizeram dali a
37
sua habitação permanente e para lá foram em busca de viver com segurança sob a proteção
dos anjos‖ (VASCONCELLOS, 1991, p. 82). O autor afirma, ainda, que havia a crença
popular baseada na magia religiosa, de um reduto onde os anjos vinham falar com sua
representante na terra, Santa Dica. A população local passa a seguir as ordens da líder, com
suas próprias leis, muitas vezes em desacordo com a lei civil.
As novas leis emanadas da autoridade carismática são obedecidas sem
qualquer questionamento e sua obediência significa a legitimação da nova
liderança que procede de uma nova leitura ou reinterpretação ao povo do
mundo sertanejo. (VASCONCELLOS, 1991, p. 95, grifos nossos)
São leis, ideias e novos ideais que surgem no reduto (VASCONCELLOS, 1991),
fazendo com que o trabalho e as relações com a terra passem a ser pensados de uma forma
diferente de até então.
Ela [Dica] descrê que a terra seja propriedade daqueles que têm título dela. A
terra é de Deus, teria afirmado a santa, e assim, sendo propriedade de Deus,
deveria ser empregada para o trabalho coletivo daqueles que vivem como
irmãos. Seu produto deverá pertencer a todos, recebendo cada um segundo a
sua necessidade. (VASCONCELLOS, 1991, p. 96)
5
Os jornais da época relataram a formação de uma comunidade com leis e ordenamento próprio, liderado por
Dica. Segundo Rezende (2009), havia a acusação de que Dica incentivava o não pagamento de impostos.
38
Após o conflito, na semana seguinte, segundo o ―processo 651 (1925: 76v), Dica foi
encontrada e presa em Raizama, atual município de Alto Paraíso‖ (GOMES FILHO, 2012 , p.
127), sendo libertada somente no ano seguinte, quando, de acordo com dados do mesmo
processo, em 13 de julho de 1926, pressionado pela população, o Superior Tribunal de Justiça
de Goiás declarou improcedentes as denúncias contra os acusados, ordenando a soltura dos
mesmos. Contudo, ―foi proibida [...] de retornar ao reduto. No mesmo ano [...] mudou-se, com
alguns seguidores, para o Rio de Janeiro, onde [...] passou a ser conhecida em várias partes do
Rio e São Paulo‖ (GOMES FILHO, 2012, 127).
Dica volta a Goiás acompanhada pelo jornalista Mário Mendes, natural do Rio
Grande do Norte6 e repórter do jornal A Reação, onde foi designado para escrever sobre ela
(BRAGANÇA, 2019). Segundo sua irmã, Bernarda Cipriano, ―no caminho, ele [Mário
Mendes] passou a gostar dela e ela a gostar dele. E ele tomou conta dela. Ela já chegou
6
O estado do Rio Grande do Norte é amplamente mencionado em conversas com moradores do distrito.
39
grávida‖. Mais tarde, ainda de acordo com Bernarda, após o nascimento da criança, Dica teria
se casado com o jornalista Mário Mendes.
Meu pai tinha muito ciúme dela, quando ela era nova, e quando ele chegou,
meu pai ficou muito bravo, bravo demais. Eles apanharam ela, o pessoal que
morava aqui, [...] levaram ela pra baixo de Minaçu… Minaçu não, Uruaçu. Lá
ela ficou, guardando a gravidez até ganhar a criança. Ela ganhou a criança lá.
Aí, quando eles trouxeram ela, pra apresentar ao meu pai, pra ela casar com
ele, ele não tinha trazido os documentos. [...] Meu pai fez ele buscar os
documentos pra ver se ele era casado, né? Aí, deu que ele era casado, viúvo e
tinha um casal [de filhos] (informação verbal7).
Dica ―permaneceu em matrimônio até final da década de 1940, a partir da qual seu
marido [...] a teria vendido a um sócio, Francisco Luís Teixeira, o Chico Teixeira (GOMES
7
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
8
Escritura referente à Fazenda Sapezal e Mozondó, Livro 1, folha 59.
40
FILHO, 2012, p. 128). Não foi a primeira a vez que o marido assim procedeu, conforme
Rezende:
Observando o interesse do sócio por sua bela esposa, Mário a vende para este,
pela quantia de 50 contos de réis. Não foi a única vez que o marido a vendera,
anteriormente já fora por duas vezes, como mercadoria que iria ser usada para
dar prestígio a aquele que a possuísse. Porém, Dica não aceitou. E novamente
era o que Mário Mendes achava que a esposa iria fazer. Entretanto, Dica já
cansada das trapalhadas do marido, resolve submeter-se a venda. [...]
(REZENDE, 2011, p. 45).
Com esse segundo marido ―Dica permaneceu casada [...] até sua morte em 1970‖
(GOMES FILHO, 2012, p. 128), em Goiânia, ―ao passar por uma cirurgia de intestino,
quando acabou não resistindo e morreu antes do final da operação (REZENDE, 2011, p. 52).
Quanto ao primeiro marido, Mário Mendes, embora fossem oficialmente casados,
chama a atenção as tentativas de venda de seu cônjuge. Em pesquisas realizadas sobre a
situação da mulher na primeira metade do século XX, bem como no período colonial e, mais
especificamente no estado do Rio Grande do Norte, de onde Mário Mendes era natural, não
foram encontrados casos semelhantes, de vendas (ou tentativas de venda) de esposas.
No período colonial, a condição da mulher, no olhar dos homens que eram herdeiros
dos valores portugueses, era de um ser inferior (RIBEIRO, 2000), embora, no caso específico
de Mário Mendes, seja possível pressupor que as tentativas de venda não tivessem relação
com heranças culturais ou históricas.
Nesse cenário, durante a chamada grande seca9, na celebração de uma missa, no ano
de 1889, ao receber a hóstia das mãos do Padre Cícero, essa teria se transformado em sangue
na boca de uma das devotas. O fenômeno teria se repetido outras vezes e ficou conhecido
como o ―Milagre de Juazeiro‖.
[...] Maria de Araújo era uma das várias devotas que se encontravam na
capela de Joaseiro para assistir à missa e acompanhar os rituais que se
celebravam [...]. Foi uma das primeiras a receber a comunhão. De repente,
caiu por terra e a imaculada hóstia branca que acabava de receber tingiu-se de
sangue (DELLA CAVA, 1976, p, 45).
Porém, a pedido do Padre Cícero, o milagre foi investigado por uma comissão da
Igreja, que não comprovou o fato. Contudo, não houve consenso entre a Igreja e os devotos. A
Igreja proibiu, em relatório, que Padre Cícero pregasse sobre os milagres, "que ainda não
tinham sido comprovados" (DELA CAVA, 1976, p. 56).
Se o ―Milagre de Juazeiro‖ for considerado como evento fundador da peregrinação e
da notoriedade de Padre Cícero e, por outro lado, Juazeiro como lugar de salvação,
Lagolândia e o ―reduto dos anjos‖ pode, também, em época distinta, ser reconhecida como
lugar de salvação, tendo como evento fundador o caso de retorno à vida de Santa Dica, depois
de ser dada como morta.
Os acontecimentos da vida de Dica, assim como a sua influência social e política, se
comparados à historiografia de Padre Cícero10, em escalas diferentes, ajudam a compreender
o caso messiânico de Goiás, que atraiu devotos em torno de uma figura central, respeitada
pelas classes mais pobres e motivo de desconfiança ou perseguição da Igreja e do Estado. A
9
Período de grande estiagem no nordeste brasileiro, no final do século XIX, que teria sido responsável pela
morte de aproximadamente 500.000 pessoas.
10
Padre Cícero chegou a ser prefeito de Juazeiro do Norte e Vice-Governador do estado do Ceará.
42
11
Houveram tentativas de entrevistas com duas filhas, que residem em Goiânia, porém, não foram realizadas
devido ao isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, além da impossibilidade de realização online.
12
A reprodução original está em Famílias Pirenopolinas, volume 4, de Jarbas Jayme (1973).
43
13
Informação no Portal da Assembleia Legislativa de Goiás (ALEGO):
https://portal-legado.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/1907
44
Santa Dica reuniu um grupo de 150 homens que ficou conhecido como ―pés com
palha e pés sem palha‖. ―Ninguém sabia marchar [...], então a líder mandou fazer cordões de
palha de milho e amarrar no pé direito de cada soldado e a orientação partia de Dica: pé com
palha (batia o pé direito), pé sem palha (batia o pé esquerdo)‖ (REZENDE, 2011, p. 94).
[...] [o exército] voltou sem nenhuma baixa, resultado atribuído à liderança de
Benedicta. Um episódio famoso foi quando seu exército precisava passar pela
ponte de Jaraguá, em São Paulo que estava minada. Ela ordenou que um de
seus soldados a atravessasse de olhos vendados, e como nenhuma bomba
detonou, toda tropa também atravessou a ponte com os olhos tapados, sendo
que a ponte veio a ruir após passar o último soldado (SILVA, 2005, p. 18).
14
O prédio da escola pública abriga duas instituições de ensino: pela manhã é municipal e, no período da tarde,
estadual.
15
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
16
Informações encontradas no endereço: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/pirenopolis/panorama
47
cabeça voltada para a igreja, e os pés para frente do casarão, como se um dia fosse se levantar
e quisesse permanecer para sempre em vigília‖ (REZENDE, 2011, p. 52).
Com o passar do tempo, o distrito não mudou muito. Atualmente, Lagolândia conta
com uma praça central, rodeada por casas, algumas em estilo que remetem à arquitetura
colonial, com um busto de Dica, rodeado por flores, e o seu túmulo à sombra de uma
gameleira, com raízes que brotam de seu sepulcro (Figuras 14 e 15), onde, de um lado está a
sepultura de seu segundo marido, Chico Teixeira e, do outro, apesar de não ter nenhuma
lápide, segundo informações de sua sobrinha Brigitt Cipriano, estaria sepultado o seu tio,
irmão de Dica, Benvindo Cipriano.
FIGURA 14 - TÚMULO DE SANTA DICA, SITUADO NA PRAÇA, EM FRENTE À
CASA ONDE RESIDIU ATÉ A SUA MORTE
A sua antiga casa, em frente à praça, ainda atrai fiéis e pesquisadores, com
atendimentos realizados por Divina Soares da Silva, que se autoproclama sucessora de Santa
Dica. Segundo informações obtidas em conversas com moradores, esse posto teria sido dado a
49
ela, ainda criança, pela própria Dica, ―em conversa com os anjos‖.
Conforme se observa, a vida de Benedita Cipriano Gomes, a Santa Dica, foi marcada
por acontecimentos, alguns históricos e políticos, que ultrapassam o caráter, percebido por
muitos, de mera curandeira. Com o seu falecimento, em 1970, e o fim da emancipação
política de Lagolândia, três anos antes, o distrito passa por um longo processo de decadência.
Somente em 1999 [...] esta situação começa a mudar. O distrito foi asfaltado,
a rede fluvial de esgotos foi construída e feita a reforma e ampliação da escola
local, que leva o nome de sua fundadora: Benedita Cipriano Gomes.
(REZENDE, 2011, p. 122)
Contudo, a memória que cerca o local remete ao passado marcado pelo movimento
messiânico que se instaurou ali. Atualmente, a antiga casa de Santa Dica ainda serve como
atrativo de fiéis, com atendimentos de cura, realizados no local. Dessa forma, o distrito não se
desvincula da presença de sua fundadora e, conforme define Geertz (2008), a religião, ou
religiosidade, se estrutura em sistemas simbólicos:
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3)
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo
essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e
motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 2008, p. 67).
Assim, a casa, como significado do símbolo [Santa Dica], pode ser uma
representação tangível de memórias ―de noções, abstrações da experiência fixada em formas
perceptíveis, incorporações concretas de ideias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças‖
(GEERTZ, 2008, p. 68) relacionadas à história da líder que viveu ali.
Essa dimensão simbólica, que se evidencia, também, pelo túmulo situado na praça, à
frente da casa, juntamente com a memória dos moradores locais, perfaz um sistema social
centralizado em padrões culturais, como define o autor, "modelos", ―cujas relações uns com
os outros ‗modelam‘ as relações entre as entidades, os processos ou o que quer que seja nos
sistemas [...] social ou psicológico‖ (GEERTZ, 2008, p. 69).
Esses sistemas sociais e psicológicos permanecem, mesmo com o passar do tempo. O
distrito revive, todos os anos, festas tradicionais iniciadas pela fundadora do distrito. A Folia
de São João, objeto dessa dissertação, tem como ponto de saída a casa de Santa Dica (Figura
16), à meia noite do dia 24 de junho, dia de São João.
50
Essa característica peculiar, no entanto, pode ser compreendida por meio do chamado
catolicismo popular, definido aqui, conforme Roberto Cardoso de Oliveira (1970), como
expressão e relacionamento direto e pessoal entre o homem e o sagrado, escapando ao
controle da Igreja, enquanto instituição.
51
O ritual, conforme descreve Brandão (2010), pode ser visto como ―um meio de
comunicação entre o humano e o sagrado‖, trazendo consigo significados que formam a
identidade da comunidade. ―[...] Esse parece ser o ponto de vista de Victor Turner, para quem
o ritual realiza comportamentos formais codificados, separado dos da vida rotineira e que se
referem a crenças em seres e poderes místicos‖ (BRANDÃO, 2010, p. 20).
A partir dessas compreensões, a maior parte dos significados das festas em Lagolândia
remetem ao sagrado, ao mágico e ao religioso. Por essa razão, segundo Curado (2011), para a
finalidade de compreensão, é possível relacionar, temporalmente, o período da realização das
festas do distrito com as fases do ano. Para tanto, há uma ―divisão empírica dos anciãos
goianos, de maneira a agrupá-las em período das ‗águas‘ e período da ‗seca‘‖ (CURADO,
2011, p. 103).
Dessa forma, as principais festividades religiosas, de acordo com a sequência
cronológica em que acontecem (CURADO, 2011), são: a Folia de Reis, com início no dia 31
de dezembro e término em 6 de janeiro; a Folia de São João, em 24 de junho (tema da
presente pesquisa); a Festa do Divino Pai Eterno, no terceiro final de semana de julho
(REZENDE, 2011, p. 141); e a Festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, entre os dias
sete e oito de dezembro de cada ano (REZENDE, 2011, p. 142), dentre outras.
A Folia de Reis é realizada por ―foliões do sexo masculino [...], o caminho vai de
Lagolândia até o povoado de Placas Vicentina e Região do Fundão‖ (REZENDE, 2011, p.
137). Essa Folia em Lagolândia, também iniciada por Santa Dica, ―apresenta características
semelhantes às da folia da cidade de Jaraguá. A prece recitada pelos foliões antes de cada
refeição foi ensinada pelos Guias‖ (REZENDE, 2011, p. 138), entidades espirituais com as
quais Dica alegava conversar.
52
Em Lagolândia, bem como em qualquer local onde é celebrada, a Folia de Reis tem
uma liturgia própria, que não faz parte da liturgia oficial da Igreja Católica, apesar de a
origem do festejo estar ligada ao evento bíblico da visita e adoração dos Reis Magos ao Jesus
menino e à colonização católica do país. Durante a conversa com o professor Marcos César,
ele explicou algumas das características da Folia de Reis em Lagolândia, como o ―Caetano‖ e
a ―Catarina‖:
[...] em outras folias da região, tem essas figuras também, muitas vezes com
outros nomes, que é a figura do palhaço. [...] Caetano e Catarina. É um casal.
[...] São só dois palhaços na folia daqui da região (informação verbal17).
17
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
18
Dias de Conselhos dos Guias: dias destinados ao aconselhamento, por parte das entidades espirituais com que
Santa Dica alegava conversar, ou seja, nas sessões de consultas.
53
Esse período, marcado pela presença dos Padres Redentoristas em Goiás e a ameaça
constante de intervenção da Igreja, provocou mudanças em Lagolândia. Conforme a História
Cultural, que traz abordagens em que o homem comum passa a fazer parte das narrativas, já
referenciada nessa pesquisa, de acordo com o relato do professor Marcos César:
[...] na época, o grande foco de Goiás eram os Padres Redentoristas de
Trindade e, paralelo a isso, esses padres combatiam a bruxaria no estado de
Goiás. Eles batiam de frente. [...] E Lagolândia passou a ser ameaçada pelos
Padres Redentoristas, porque aqui tinha uma bruxa, que estava conseguindo
trazer gente pra cá. Então, o que ela fez? Foi até aos padres [...]. O pai dela
então disse que construiria uma igreja católica em Lagolândia, se eles não se
envolvessem com a Dica (Informação verbal20).
19
Zeitgeist: Termo alemão que tem por significado o espírito de uma época ou, características genéricas de um
determinado período de tempo.
20
Entrevista concedida por: CAMARGO, Marcos César Teles de. 50:17 min. [nov. 2019]. Entrevistador:
Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
54
que ‗falar a língua de quem‘? A língua dela. Então foi o pai dela que fez a
igreja, porque fez um acordo. Então, se você pega a Festa do Doce, as
Folias… Tudo foi criado pela Dica, que mantém a ligação da igreja com a
Dica (Informação verbal21).
Como origem, alguns moradores e o professor Marcos César contam que Dica era
devota do Divino Pai Eterno, mas tinha dificuldade de participar da festa de Trindade.
Segundo relato do professor João Guilherme Curado, a presença de Dica na cidade de
Trindade não era bem-vista, ela teria sido hostilizada pelos padres Redentoristas. Para evitar
conflitos, ela inicia sua própria festa, que não coincide com a de lá, pois pessoas do distrito
frequentam a festa de Trindade a cada ano. Por essa razão, teria instituído a própria festa do
Divino Pai Eterno, em seu reduto. Quanto à escolha do doce, existem três versões.
[...] contam que [...] à veneração aos Santos Anjos, que sendo crianças
apreciavam os doces, outra explicação é que os doces representam a vida que
nos espera no céu, longe das amarguras da vida terrena. Ainda encontramos
uma terceira versão, em que os doces servidos são para lembrar o maná caído
do céu, mandado por Deus, para alimentar o povo judeu que padecia de fome
no meio do deserto. (REZENDE, 2011, p. 142).
Os doces da festa são produzidos por voluntários, com ingredientes doados pela
comunidade e distribuídos gratuitamente para os participantes do festejo e visitantes.
(REZENDE, 2011, p. 143). A festa consiste na procissão, reza do terço e novena. Segundo
Curado (2011, p. 125), a missa ―ocorre no dia 8 de dezembro pela manhã e é a única
celebração que dispõe da participação do padre‖.
A Festa é realizada em Lagolândia desde a década de 1920 (REZENDE, 2011), pois,
segundo a autora, a imagem da padroeira teria sido a primeira escultura sacra a chegar à
região. Ressalte-se que, conforme descreve Curado (2011), Nossa Senhora da Imaculada
Conceição, seguindo o sincretismo religioso brasileiro, é associada à divindade Oxum,
entidade relacionada a religiões de matriz africana.
[...] enquanto a celebração acontece do outro lado do distrito, no Salão, uma
farta comida é preparada para ser distribuída para todos os presentes, pois a
Imaculada Conceição é relacionada à fertilidade e Oxum é reconhecida pelos
seus dons culinários (BERKENBROCK, 1997, apud CURADO, 2011, p.
126).
Além desses, o calendário de festas do distrito possui outros eventos, que acontecem
durante quase todos os meses do ano, como já relatado, todos instituídos por Dica. Sua
sobrinha, Brigitt Cipriano Rocha, acredita que há uma motivação para a realização das festas
no distrito. De acordo com o seu relato:
[...] a casa de vó Dica sempre foi uma casa de festa. Então, as pessoas
estavam trabalhando e se divertindo e, aí, você poderia saber o que as pessoas
queriam, o que achavam que era necessário… Então, qual era o melhor local?
a festa, né. Além de ser agradável… você ia conversando informalmente
(informação verbal22).
De acordo com Rezende (2011), essas outras festividades, além das já descritas,
como a Festa de São Sebastião, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, também fazem
parte do calendário de eventos de Lagolândia.
Já a Folia de São João, remonta à peregrinação de São João Batista, ―[...] com
consagrações na fogueira de São João e nas águas do Rio do Peixe, uma espécie de batizado
que representa aquele que Jesus recebeu [...]‖ nas águas do Rio Jordão (REZENDE, 2011, p.
139). Por se tratar do objeto dessa dissertação, essa festividade será abordada em capítulo
específico, a seguir.
22
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
56
CAPÍTULO II
Neste capítulo há uma busca pela compreensão da festividade da Folia de São João,
que se estabelece no calendário de festas de Lagolândia. Para tanto, fez-se necessário,
primeiramente, entender o termo folia e as características das festas que levam esse nome e,
posteriormente, adentrar um olhar sobre a cultura junina.
De acordo com Brandão (1985), por todo o país, existem diversas festas católicas
populares dedicadas a santos padroeiros, ―festejos com leilões e danças no terreno da igreja ou
capela e, finalmente, um ou dois dias de grandes festas no fim de semana ao padroeiro‖, no
caso das folias:
[...] Folias de Santos Reis, Folias do Divino Espírito Santo, Folias de São
Sebastião, Folias de outros santos são grupos errantes de devotos cantores e
instrumentistas que angariam bens (dinheiro ou ―prendas‖) para a festa do
Santo (BRANDÃO, 1985, p. 137).
Segundo Eraldo Peres (2010, p. 27), ―Folia é festa [...]. O termo remete aos
cancioneiros e danças do renascimento europeu. Estas manifestações chegaram ao Brasil,
provavelmente trazidas pelos Jesuítas, como instrumento de catequização‖ e, por essa razão,
de acordo com Brandão (2010), passam a fazer parte da cultura popular.
A Igreja Católica apropria-se de elementos de um saber popular - cantos,
danças, versos, autos - que ela reescreve e dota de outras funções, como a
catequese de índios e, mais tarde, de negros escravos trazidos da África.
(BRANDÃO, 2010, p. 43).
Segundo Carlos Rodrigues Brandão (2010, p. 35), desde o início, a folia ―oscilou
entre a dança profana e o rito sagrado, [...] entre a praça, a nave da igreja, e os caminhos da
roça, do sertão‖. No entanto, aos poucos, de acordo com o autor, a Folia perdeu seu caráter
inicial de ―pedagogia catequética‖.
A igreja romanizada dos fins do século XIX lutou por varrer dos templos e
das procissões a tradição católica anterior - Ibérica e colonizadora - de
representar a religião através da memória dramatizada dos fatos religiosos,
com diálogos, cantos e danças (BRANDÃO, 2010, p. 40).
23
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
58
Para situar a pesquisa e o leitor, foi necessário descrever o rito que acontece em
Lagolândia, desde as voltas em torno da fogueira até o encerramento no dia seguinte, com a
chamada ―recolhida‖. Para tanto, fez-se necessário recorrer, além da bibliografia, ao relato de
seus personagens e de parentes de Santa Dica.
24
Entrevista concedida por: CURADO, João Guilherme. 1:11:21 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
59
estas coisas aconteçam; porquanto não creste nas minhas palavras, que a seu
tempo se hão de cumprir (Lucas 1: 18-20).
25
A Bíblia, livro sagrado cristão, é dividida em dois livros, o Velho (ou antigo) e o Novo Testamento. Cada um
desses livros é composto por subdivisões, também chamadas de livros. O Velho Testamento reúne livros
anteriores a Jesus Cristo. O Novo Testamento é composto por livros originados durante ou após a vida de Jesus
Cristo, até o primeiro século.
26
Profeta: Aquele que fala em nome de Deus e inspirado por Deus.
60
rudimentar, ―andava vestido de pêlos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus
lombos, e comia gafanhotos e mel silvestre'' (Marcos 1:6).
Porém, João Batista tornou-se conhecido por ―Batista‖, o que batiza, pois realizava
batismos nas águas do rio Jordão, ―toda a província da Judéia e os de Jerusalém iam ter com
ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados (Marcos 1:5).
Sua vida foi marcada por batismos e peregrinações, ―ao redor do Jordão, pregando o batismo
de arrependimento‖ (Lucas 3:3). Durante suas pregações, anunciava a vinda de Cristo:
Depois de mim vem alguém mais poderoso do que eu, tanto que não sou
digno nem de curvar-me e desamarrar as correias das suas sandálias. Eu os
batizo com água, mas ele os batizará com o Espírito Santo (Marcos 1:7-8).
Após o batismo realizado por João, Jesus teria iniciado o período de pregação e
peregrinação, que teve início no deserto da Judéia.
E, logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o Espírito, que como pomba
descia sobre ele. E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho
amado em quem me comparo. E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ali
esteve no deserto quarenta dias [...] (Marcos 1:10-13).
A partir dessa breve ambientação, tornou-se possível entender parte da tradição que é
o objeto dessa pesquisa: em Lagolândia, em alusão ao rio Jordão, onde se realizavam os
batismos de João Batista, o rio do Peixe era chamado - no auge do movimento messiânico de
Dica - de rio Jordão. Na Folia de São João, os batismos realizados pela comunidade, durante
os festejos, ainda são realizados nas águas desse rio (Figura 18).
FIGURA 18 – MARGEM DO RIO DO PEIXE, AOS FUNDOS DA CASA DE DICA - LOCAL
UTILIZADO PARA OS BATISMOS NOTURNOS
Desde os preparativos até a noite de 23 de junho, que antecede o dia de São João, a
comunidade de Lagolândia, a escola do distrito, os moradores e algumas pessoas que já se
mudaram de lá, aguardam a realização da festa, para assistir ou participar. No ano de 2019, foi
observado que todas as luzes da praça central, onde se realizam os primeiros ritos da Folia de
São João, foram apagadas: desde o momento da saída das folioas até o retorno à antiga casa
de Dica.
A fogueira é acesa à tarde, no dia 23 de junho, sem hora marcada. A primeira parte
do ritual compreende as três voltas em torno da fogueira de São João, ainda em chamas.
Nesse momento é entoado o cântico ―Capelinha de Melão‖. Durante a noite, o rito se restringe
às voltas em torno da fogueira, o batismo com a descida ao rio e o lanche, servido na casa do
festeiro do ano, escolhido por sorteio na festa do ano anterior, ou no interior da casa de Dica.
De acordo com o que foi observado e relatado pelos participantes, existem dois
festeiros. O primeiro é o responsável pelo evento da noite, com a organização da fogueira e do
lanche noturno. O segundo é o responsável pelo giro, do dia 24. Os dois festeiros são
escolhidos por sorteio ou, em alguns casos, se oferecem como pagamento de promessas. Uma
outra função, dentro da festa, é o papel do Regente, responsável por organizar o grupo e o
trajeto sem ―cruzar a bandeira‖ (para não cruzar caminho). Segundo o professor João
Guilherme Curado, ―é a ele que as pessoas se dirigem para pedir a visita da Folia‖.
Conforme relato da folioa Suelma Íris Valério, todo o rito se realiza no espaço de um
dia, com início na noite de 23 de junho e encerramento na noite seguinte, com a Recolhida.
Ainda, de acordo com ela, a outra parte do ritual da noite é a realização do batismo das
pessoas da comunidade, na fogueira e no rio:
No dia 23, após a fogueira cair, que agora nem esperam a fogueira cair
totalmente [...], primeiro a gente sai lá do Salão, canta em volta da fogueira,
dá as três voltas ali, depois a gente volta e é servido um agrado, pela pessoa
responsável pelo dia 23, depois de servido, quando as brasas já estão
apagadas, acontece a consagração das pessoas que levam crianças para
consagrar, primeiro em volta da fogueira e depois terminam o ritual lá no Rio
do Peixe (informação verbal27).
O local de realização dos batismos, seguindo a tradição, acontece onde Dica também
batizava. Brigitt Cipriano conta que os batizados aconteciam no fundo da casa de Dica, às
margens do Rio do Peixe. ―Era um hábito da Dica batizar ali, não só no momento da festa.
27
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
62
Ela batizava em outras ocasiões‖, durante todo o ano, ―mas o auge seria no momento da
festa‖, relata.
28
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
63
A folioa Suelma Íris participa da Folia desde 1988. Seu pai foi Regente 29 durante
décadas, até o seu falecimento em 2017. De acordo com ela, o dia 24 também tem um rito
bem definido.
[...] a gente se reúne, às vezes no Salão Mário Mendes, outras vezes em algum
outro local, depende do gosto do folião, da pessoa responsável pela
organização. Então, a gente se reúne, é servido um café da manhã, é feita uma
oração, depois a gente canta a saída da folia, depois a gente sai e vai cantar
nas casas. É feito o Giro nas casas do povoado e, mais ou menos onze e meia
ou meio-dia, é servido o almoço, que quando está pronto, eles soltam alguns
fogos, então, a gente para o Giro onde estiver, deixando a Bandeira e os
instrumentos. A gente vem almoçar, depois do almoço a gente retoma ao
Giro. À tarde, eles sempre servem um lanche, por volta das três horas, que
também avisam por foguete. A gente retorna, lancha e retoma o Giro
(informação verbal30).
Todo o trajeto do Giro é acompanhado por moradores, devotos de São João Batista,
admiradores da Folia de São João ou mesmo antigos moradores. Segundo o professor Marcos
César, alguns moradores saem de Lagolândia, ―vão para trabalhar e voltam em alguma festa,
ou no final de ano.‖
29
Regente: Função responsável pela elaboração do trajeto do Giro e pela demarcação das casas que receberão o
grupo de foliões.
30
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
64
31
Música disponível em https://youtu.be/GeRLGXaNUlA.
32
Entrevista concedida por: CAMARGO, Danilo Rodrigues de. 18:44 min. [nov. 2019]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
65
O rito tem sua importância dentro das festividades e está presente em diversos
momentos nas comunidades e sociedades humanas. No caso de comunidades pequenas, "o
rito é uma síntese da interação entre o mundo religioso, sociocultural e ambiental" (TERRIN,
2004, p. 17), e Lagolândia que, atualmente, tem uma população estimada em menos de 250
moradores, parece expressar bem tal interação. O enredo da Folia de São João, visto enquanto
rito, tem a sua realização dividida entre os batismos, os Giros, as cantorias, o recolhimento
das esmolas e a reza do terço.
Enquanto síntese dessa interação entre os mundos, ou, ao menos parte dela, foi
possível perceber que nem sempre há consenso entre as interpretações dos significados dos
ritos realizados durante a Folia, especialmente sobre os batismos, apesar de significativo
número de participantes. Como foi visto em 2019, São João Batista ainda é rememorado pelos
batizados que, em Lagolândia, acontecem na fogueira e são finalizados no rio; batismo pelo
fogo e pela água.
Sobre a prática dos batizados da Folia, foi necessário recorrer ao texto bíblico para a
sua compreensão. De acordo com a Bíblia, o batismo é citado de duas maneiras por João
Batista (São João), com água e com fogo.: ―[...] depois de mim vem alguém mais poderoso do
que eu [...]. Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo‖ (Mateus 3:11). O mesmo João
Batista, mais tarde, realiza o batizado de Cristo nas águas do Rio Jordão. ―Então Jesus veio da
Galileia ao Jordão para ser batizado por João‖ (Mateus 3:13).
O Rio do Peixe, em Lagolândia, no auge do movimento messiânico de Dica, era
chamado por ela e seus seguidores de Rio Jordão. Quanto à fogueira acesa na noite de 23 de
junho, de acordo com Danilo Camargo, ―é o sinal do Espírito Santo‖, levado no dia seguinte
pelas folioas, simbolizado pela Bandeira, às casas dos moradores.
33
Entrevista concedida por: CAMARGO, Danilo Rodrigues de. 18:44 min. [nov. 2019]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
66
Na relação com a água, o professor Marcos César Teles associa ao trecho da música
entoada pelas folioas, ausente do livro de músicas, que diz: ―São João foi tomar banho com as
24 donzelas, as donzelas caíram na água e São João caiu com elas. Acordai, acordai, João.
São João está dormindo, não acorda, não35‖. Segundo a interpretação de Marcos César, a
música fala sobre a morte de São João, ―ele caiu na água de batismo [...], e por que ele não
está acordado? Está acordado no espírito, o físico dele morreu‖36.
A folioa Suelma Íris vê outra interpretação no mesmo trecho de música. Para ela,
―quando São João Batista batizava nas águas do Rio Jordão, foram 24 donzelas saudá-lo
cantando‖. De acordo com Suelma, essas 24 donzelas dão origem ao nome de ―donzelas‖ da
Folia de São João, em Lagolândia, ―a essas donzelas se deve a origem do nome donzelas na
folia daqui. Então, por isso 24 pessoas‖.
Dona Bernarda Cipriano, como já mencionado, lembra-se de que era costume ir ao rio,
―tomar banho, à meia noite. Então, tinha três mil pessoas lá‖. Para Bernarda, ―é João Batista
que convida, para tomar banho‖.
Ser madrinha, ou padrinho, no ritual da fogueira e da água, na Folia de São João, não
implica em regras claras. A folioa Suelma já batizou e já foi batizada no ritual. Ela explica
que ―muitas vezes é até a mesma madrinha [do batizado católico]. Outras vezes escolhem
outras pessoas, por afinidade‖. Segundo a folioa, a ―responsabilidade é a mesma‖.
A Folia de São João começa bem antes dos batismos e da saída das ―donzelas‖ em
suas voltas em torno da fogueira, na praça central de Lagolândia. A Folia começa com os
preparativos, com a escolha do festeiro, um ano antes, na edição anterior da festa. Participar
34
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
35
Trecho da música ―Capelinha de Melão‖ disponível em: https://youtu.be/PVwP8UbV0e0
36
Segundo o relato bíblico, mencionado em Mateus 14:1-12, Marcos 6:14-29 e Lucas 9:7-9, João Batista teria
sido decapitado, a pedido da personagem Salomé ao rei Herodes Antipas.
67
37
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
68
A Igreja católica possui um vasto panteão de santos e datas comemorativas, boa parte
dessas comemorações dão origem a ciclos festivos que têm por base o calendário litúrgico da
Igreja. Esse calendário, por sua vez, tem suas celebrações e festas realizadas todos os anos,
que na Igreja são chamados de anos litúrgicos. Esses anos litúrgicos podem ter algumas
variações de datas, como por exemplo, as celebrações da Páscoa e a Quarta-Feira de Cinzas
(logo após o Carnaval), porém, seguem uma estrutura principal que, segundo a Enciclopédia
Católica38, é composta pelo ―Tempo Comum, Ciclo Santoral e Ciclo do Natal‖.
Nessas divisões, encontram-se eventos festivos que homenageiam santos ou
acontecimentos importantes do Cristianismo. É uma divisão que obedece a uma dinâmica
cíclica de festas, de origem europeia e ligadas aos ciclos agrícolas, trazidos ao Brasil durante
o processo de colonização,
Uma origem europeia comum embalou as festas coloniais. A periodicidade da
produção agrícola induziu o homem em determinadas épocas de semeadura e
colheita a congregar a comunidade para celebrar, agradecer ou pedir proteção.
A repetição dos ciclos agrícolas, identificados com a reunião de grupos
sociais, acabou por dar a festa uma função comemorativa (DEL PRIORI,
2000, p. 13).
Essas festas têm suas origens anteriores ao próprio Cristianismo. A Igreja teria se
apropriado de festividades ditas pagãs, dando novas motivações e formulações que, com o
tempo, passaram a homenagear personagens católicos, como os santos e padroeiros.
[...] Mas com o advento do cristianismo, tais solenidades receberam nova
roupagem: a Igreja determinou dias que fossem dedicados ao culto divino,
considerando-os dias de festa. Estas festas são distribuídas em dois grupos
distintos: as festas do Senhor (Paixão de Cristo e demais episódios de sua
vida) e os dias comemorativos dos santos (apóstolos, pontífices, virgens,
mártires, Virgem Maria e padroeiras) (DEL PRIORI, 2000, p. 13).
38
Enciclopédia Católica: https://catholicum.fandom.com/wiki/Ano_lit%C3%BArgico
69
No caso de São João, ou das festas juninas, existem estudos que também relacionam
a fogueira aos rituais anteriores ao Cristianismo. De acordo com Ribeiro (2002), essas festas
também têm origem em rituais ligados ao ciclo agrícola e da fertilidade.
[...] as origens da festa nos remetem a tempos muito antigos, antes do
Cristianismo se consolidar na Europa. Naquela época, as festas que ocorriam
nesse período do ano comemoravam a deusa Juno - mulher de Júpiter - que
fazia parte do panteão dos deuses greco-romanos. [...] Ao pé da fogo, faziam-
se oferendas e pedidos aos deuses, para que espantassem os maus espíritos,
trouxessem boa colheita e muitos filhos. Originalmente, o ponto alto dos
rituais era o solstício de verão - o dia mais longo do ano no Hemisfério Norte
- que acontecia no dia 22 ou 23 de junho (RIBEIRO, 2002, p. 5).
Da mesma forma descrita por Del Priore (2000), Ribeiro (2002) também relaciona a
intervenção da Igreja, que teria se apropriado desses rituais pagãos e os incorporados às festas
católicas, nesse caso, às festas juninas:
[...] quando o Cristianismo tornou-se a religião oficial do Ocidente - adotado
pelo Império Romano no século IV - as principais celebrações pagãs foram
sendo incorporadas ao calendário das festas católicas. No século VI, a Igreja
Católica reservou o dia 24 de junho para comemorar o nascimento de São
João Batista [...] (RIBEIRO, 2002, p. 5).
A presença da fogueira nas festas juninas, que teria sua origem no relato bíblico,
também pode ter origem nos rituais ditos pagãos. De acordo com a crença popular, Isabel
(mãe de João Batista) teria combinado um sinal para avisar a Maria sobre o nascimento de seu
filho. ―Esse sinal seria acender uma fogueira em frente à sua casa. A partir daí, o dia 24 de
junho ficaria marcado pelas fogueiras em homenagem ao nascimento de São João‖
(RIBEIRO, 2002, p. 5).
Contudo, essas informações e a presença da fogueira não se confirmam no relato
bíblico. Segundo a Bíblia, Maria teria ido visitar Isabel na região de Judá. Durante a visita,
João, mencionado como ―criancinha‖ que saltou do ventre, ainda não havia nascido (Lucas 1:
39-45). Não há menção à fogueira. Em outro trecho, no mesmo capítulo, ―Maria ficou com ela
(Isabel) quase três meses, e depois voltou para sua casa‖ (Lucas 1: 56).
Mediante esse início histórico das festas católicas, com origem em rituais pagãos,
esses costumes se fixaram nas encenações religiosas europeias. Como país colonizado por
Portugal, essas festividades também passaram a acontecer no Brasil.
As festas juninas acontecem no Brasil, desde o século XVI, trazidas pelos
jesuítas. As celebrações se mostravam muito eficazes para atrair a atenção dos
indígenas para a mensagem catequizadora dos padres, em especial as festas
que conjugavam fogueiras, rezas e alegria. O período das festas juninas
coincidia, ainda, com o época do ano em que os índios realizavam seus rituais
de fertilidade. (RIBEIRO, 2002, p. 65).
70
No caso da Folia de São João, além da história da formação das festas cristãs e do
embasamento bíblico sobre a vida de São João Batista, a complexidade da festa exige uma
leitura sobre o acontecimento místico da ritualidade. Conforme Del Priore (2000, p. 13), a
festa celebrada em ―dia comemorativo‖ do santo, anualmente, ocorre no que se pode chamar
de tempo sagrado, em que o homem religioso torna o acontecimento sagrado ritualmente
presente. Para Mircea Eliade (1999), há um deslocamento para o tempo histórico do
acontecimento místico, que ele chamou de Tempo primordial, pertencente à eternidade:
Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata se sempre de um
acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado
presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do
acontecimento mítico. Em outras palavras, ―saem‖ de seu tempo histórico –
quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e
intrapessoais – e reúnem se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo, que
pertence à Eternidade (ELIADE, 2001, p. 47).
(2000, p. 506-507), esse discípulo de Jesus é conhecido como o santo chaveiro do céu. ―[...]
Recebe as almas, e o anedotário o coloca no primeiro plano para sofrer ou afastar as
sabedorias empregadas para uma entrada no paraíso‖.
Essas festas, em homenagem aos santos, por sua vez, têm as suas razões de ser e de
existirem. Segundo Brandão (2010, p. 25), ―[...] veiculam mensagens que fazem circular da
sociedade para ela própria significados e princípios que reforçam as estruturas da própria
ordem social‖. Em Lagolândia, reforçam anualmente as tradições, a ordem e a memória de
sua fundadora.
você for olhar, tem um documentário e os jornais da época, a Igreja fala que
ela é uma bruxa, né? (informação verbal39)
39
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
73
Havia uma crença geral que a santa Dica não só contactava, mas que ela
própria fazia parte de um grupo de anjos/ guerreiros ou anjos/ conselheiros
[...] (VASCONCELLOS, 1991, p. 84).
Além dessas ―leis‖, a religiosidade em torno de Dica dava a ela, também, segundo
Vasconcellos (1991, p. 88), uma obediência ―sem questionamento, pois suas ordens são
transmitidas do alto sem interferências ou mesmo sem ter que recorrer aos livros sagrados‖.
Dessa forma, as festas, iniciadas por ela, os cânticos e o uso de uniformes pelas folioas é um
exemplo da influência da líder entre os moradores. De acordo com a folioa Suelma Valério,
―o uniforme das meninas (Figura 23), ela [Dica] que decidia como deveria ser, a cor, o
modelo e tudo‖.
De acordo com Souza Barros (1977), a utilização de cores específicas tem origens e
implicações no catolicismo popular e no cristianismo mais remoto, com diferentes
significados para cada cor.
A influência mágica das cores, por exemplo, tem uma larga esteira de
implicações. Penetrou o cristianismo popular e já se tinha instalado, ao tempo
de antigas civilizações. O uso de cores preferenciais pelos magos e sacerdotes
para os atos dos cultos, a significação especial de cada cor e suas implicações
são bem conhecidas e se desdobram em inúmeros efeitos mágicos. O
catolicismo popular ligou às cores efeitos especiais. (BARROS, 1977, p. 91).
74
Por essas razões, percebe-se que há uma preocupação com o aspecto visual das
folioas. Há uma padronização das cores e das roupas, feita a cada ano, por meio da utilização
de uniformes. Em alguns anos, esses uniformes parecem remeter a passagens da vida de Dica,
como o uniforme que lembra as cores da farda militar das revoluções de 1930 e 1932.
A filha de Bernarda, Brigitt Cipriano, sobrinha de Santa Dica, acredita que a Folia de
São João foi inspirada em alguma festividade potiguar. De acordo com Brigitt, o festejo foi,
possivelmente, adaptado de alguma outra festa, oriunda do nordeste.
Acho que essa festa veio de lá [Rio Grande do Norte] um pouco diferenciada
pra cá. É a única que já ouvi falar de folia de moças, de mulheres… de folia,
né. É um achismo, porque nunca ouvi falar de uma folia de mulher.
Como falei pra você, toda a história de Lagolândia é baseada na mulher, se
você for olhar, todas as, as… coisinhas têm mulher no meio. [...] Minha mãe
fala, por exemplo, que tem muitas coisinhas que foram modificadas pela vó
Dica. Os próprios hinos foram modificados por ela (informação verbal, grifos
do autor41).
Câmara Cascudo (2000) e Veríssimo de Melo (1977) não relatam nenhuma folia com
essas características. Porém, trazem outra festividade da região, parecida e protagonizada por
40
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
41
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
75
mulheres, como o Auto Pastoril, também conhecido, em alguns lugares, como Auto da
Lapinha, pertencente ao chamado ciclo natalino.
Representa a visita dos pastores ao estábulo de Belém, ofertas, louvores,
pedidos de bênção, com cantos, louvações, loas, entoadas diante do presépio
na noite de Natal, aguardando-se a missa da meia-noite. [...] As pastoras
cantam ao ritmo dos pandeiros, e a orquestra é de pau e corda, violões,
cavaquinhos, com um instrumento de sopro solista. (CASCUDO, 2000, p.
491).
Cascudo também relata uma outra festa, Joanina, ―Capela‖ (ou Capelinha de Melão).
A festa, que também é referenciada por Deífilo Gurgel (1990), em Espaço e Tempo do
Folclore Potiguar, encena um folguedo de São João, realizado na praia, à meia noite do dia
23 de junho. Segundo Cascudo (2000), a Capela:
É o nome que se dá aos grupos de foliões dos festejos populares são-
joanescos, ornados de capelas de folhagens, a caminho do milagroso banho e,
de volta, em animadoras passeatas. Os seus cânticos obedecem sempre a
estes tradicionais versos de estribilho: Capelinha de melão / É de São João, / É
de cravo, é de rosa, de manjericão. O nome comum e mais popular no Norte e
Sul do Brasil é rancho, significando grupo festivo, com instrumentos
musicais. Esses ranchos percorriam residências amigas, cantando e sendo
recepcionado com refeições típicas. (CASCUDO, 2000, p. 111).
42
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
76
Diferente dos festejos do Rio Grande do Norte, em que não há menção ao número de
participantes, a Folia de São João de Lagolândia é realizada por um grupo aproximado de 24
mulheres. Porém, o número não é fixo, sendo variável a cada ano. A folioa Suelma Valério
lembra-se de folias mais antigas, pois participa desde a década de 1980.
Antes a folia era bem numerosa e mais animada. Hoje tem muitas crianças,
não sei se você observou, tem muitas criancinhas. Antes, essas criancinhas
não participavam. Antes tinham mais mocinhas, da adolescência para adulto.
Tinha uma animação maior e mais gente, o povoado tinha mais pessoas, hoje
reduziu bastante, muitas pessoas foram embora ou só vêm de vez em quando,
na época dos festejos e pronto (informação verbal44).
Sobre a origem do termo ―donzelas‖, o relato dos participantes dá conta de que está
ligado à virgindade das folioas. Danilo Camargo, responsável pelas músicas explica que,
atualmente, a participação é para as mulheres ―ainda não casadas‖ ou que não tiveram filhos.
A folioa Suelma explica que, inicialmente, a relação com a virgindade era mais rigorosa,
43
Documentário ―Identidade de RN - As Bandeirinhas de Touros‖, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dGpp_8NHCok
44
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
45
Entrevista concedida por: VALÉRIO, Suelma Íris. 35 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius Machado Luz.
Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
78
[...] até um tempo atrás havia um rigor muito grande em relação a essa
questão da folia, das meninas terem que ser virgens para cantar na folia, tanto
que essa questão das donzelas está ligado a essa exigência, mas, com o passar
do tempo, as coisas foram mudando (informação verbal46).
A faixa etária das folioas , conforme relatado por Suelma, abrange desde criancinhas
à mais velha, com 44 anos, sem ocupações estabelecidas. Porém, há um laço que une as
participantes e toda a comunidade: ―todo mundo é parente de todo mundo‖, de acordo com o
professor João Guilherme Curado.
46
Entrevista concedida por: CAMARGO, Danilo Rodrigues de. 18:44 min. [nov. 2019]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
47
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
48
Entrevista concedida por: ROCHA, Brigitt Cipriano; GOMES, Bernarda Cipriano. 1:10:10 min. [nov. 2019].
Entrevistador: Vinícius Machado Luz. Lagolândia, 2019. 1arquivo .mp3
79
O termo ―donzelas‖, conforme relatado pela folioa Suelma Íris e por Danilo
Camargo, responsável pela música, está relacionado à virgindade. Porém, a valorização ou a
simples menção dessa condição de castidade, remete-nos à história que permeia toda a cultura
ocidental de tradição cristã: a concepção e o nascimento de Jesus Cristo.
No relato bíblico, a mãe de Jesus Cristo, Maria, é anunciada como virgem já no
Antigo Testamento, ―portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que uma virgem
conceberá, e dará à luz um filho [...]‖ (Isaías 7:14). No Novo Testamento, que se diferencia do
Antigo pelas histórias e narrativas serem, temporalmente, após o nascimento de Cristo, a mãe
de Jesus é citada como ―desposada‖, ainda não casada:
Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Que estando Maria, sua mãe,
desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito
Santo. Então José, seu marido, como era justo, e a não queria infamar, intentou
deixá-la secretamente. E, projetando ele isto, eis que em sonho lhe apareceu um
anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua
mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo (Mateus 1:18-20).
49
O Novo Mundo é formado pelos países que compõem o continente americano, a partir das descobertas do séc.
XV.
50
Senso 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/23/22107
51
http://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_25031954_sacravirginitas.html
80
tentou invadir o povoado, no dia que ficou conhecido como ―o dia do fogo‖, em outubro de
1925.
[...] quando a moça se encontrava em estado de transe, segundo ela [Manoel
Torres, vulgo Caxeado] se aproveitou de estar a mesma indefesa e abusou
sexualmente dela [...]. A violência sexual sofrida foi um sofrimento físico e
moral para ela, sendo que já havia sido determinado pelos Guias que o seu
corpo não deveria ser violado, pois assim perderia o dom das curas
espontâneas que aconteciam até aquele momento. [...] Após o estupro,
suspenderam-se as manifestações dos Guias (REZENDE, 2011, p. 39).
Após o abuso, Dica teria perdido seus poderes, dados pelo contato com os chamados
Guias, por meio de transes e incorporações.
Quando os dons voltam a se manifestar, o tratamento feito pelos Guias passa a
ser realizado de modo diferente, agora que Dica não era mais virgem, deveria
passar a utilizar ervas com infusões, chás e garrafadas, intervenções cirúrgicas
em casos mais graves, caso assim necessitassem (REZENDE, 2011, p. 39).
Do ponto de vista jurídico, ou criminal, o abuso sexual era tratado como atentado à
honra. No Brasil, a proteção da ―honra feminina‖ e as conjunções carnais não consentidas,
chamadas de defloramento, passaram a ser criminalizadas, a partir do código penal de 1830,
logo após a independência do país.
[...] em 1822 o Brasil mostrava que se aprofundava na "civilização". A
promulgação do código criminal de 1830 seguia de perto as "conquistas"
europeias, avançando juridicamente na defesa da honra feminina. [...]
Garantiria a proteção de certas mulheres "capazes" de ter a honra a defender.
[...] Se não houvesse violência ("estupro violento" - art. 222), só seria
configurado como crime contra a honra feminina se a ofendida tivesse no
máximo 17 anos de idade, se provasse a virgindade e o defloramento (artigo
224) (ABREU e CAULFIELD, 1995, p. 18).
52
Por meio de ação civil movida pela vítima, onde a mesma pode requerer o próprio valor do dote, que deverá
ser pago pelo estuprador.
81
cristianismo. Do ponto de vista religioso, a virgindade estaria ligada aos seus ―poderes de
cura‖ e ―aconselhamentos‖ espirituais.
Pela perspectiva da comunidade, como foi observado em 2019 e relatado pela folioa
Suelma Valério, a participação se dá pela tradição iniciada por Dica, pela devoção a São João
Batista e pelo ritual do batismo, realizado no rio: ―É a tradição. As pessoas têm muita fé em
São João Batista pelo profeta que ele foi, quando batizava as pessoas nas águas do Rio Jordão.
Por isso fazem a encenação do batismo que ele fazia‖.
Para Danilo Camargo, há também a parte da doação das esmolas, que servem para
manter os instrumentos e ajudar o festeiro, quando necessário. Contudo, quando há uma
sobra, ―se alguma pessoa adoece, tem um dinheirinho em caixa‖.
A música tem grande importância na Folia de São João. As músicas, ou hinos, são
entoadas durante todos os momentos dos festejos, repetidamente, seguindo a sequência das
letras do caderno de músicas, cada uma destinada a uma etapa específica do Giro da Folia e
do ritual noturno das donzelas, em torno da fogueira.
O caderno de cânticos é composto por sete músicas55. A primeira delas, com o título
―Chegada‖, é cantada durante a chegada do grupo em cada residência, quando as folioas,
ainda se encontram do lado de fora. Dentre os seus versos, o primeiro, o quinto e o décimo
trechos sintetizam a finalidade da música: de anunciar que estão em frente à casa, de pedir
para entrar e de abençoar em nome de São João.
53
Entrevista concedida por: CURADO, João Guilherme. 1:11:21 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
54
Entrevista concedida por: CURADO, João Guilherme. 1:11:21 min. [nov. 2020]. Entrevistador: Vinícius
Machado Luz. Lagolândia, 2020. 1arquivo .mp3
55
O caderno de músicas encontra-se digitalizado no Anexo dessa dissertação.
83
56
Música disponível em https://youtu.be/GeRLGXaNUlA
84
A quarta música, ―Cruzeiro‖, não foi ouvida no ano de 2019. A letra faz pouca menção
a São João Batista, em sua maior parte, fala de Jesus e outros ícones católicos, como a
Imaculada Conceição, o Santíssimo Sacramento, o Divino Pai Eterno e Nossa Senhora, além
da bandeira da Folia.
A quinta música, ―Bendito, ‗agradecimento da mesa‖ (Figura 27), é cantada durante as
refeições, realizadas no Salão Mário Mendes. O cântico é acompanhado de oração, guiado por
uma das folioas, que menciona nomes e pedidos em nome da comunidade. Dentre os versos,
são cantados agradecimentos, louvores e pedidos de bençãos.
85
Por fim, duas músicas: ―Saída‖ e ―Despedida‖. A música de ―saída‖ foi ouvida, em
2019, durante ou após a saída do grupo de folioas do Salão Mário Mendes, após o lanche
matutino. Contudo, segundo relatado por participantes, normalmente é entoada na saída das
casas, no final de cada visita.
A música ―Despedida‖ marca o encerramento dos festejos, após o último rito, quando
é escolhido o festeiro do próximo ano. Como despedida, a música diz que São João está se
despedindo, para nos esperar na glória:
Despedida, despedida,
Despedida de Belém
São João está despedindo
Até o ano que vem.
Despedida, despedida,
Despedida nesta hora
São João está despedindo
Pra nos esperar na glória.
86
Contudo, o principal hino da Folia de São João, ouvido durante todo o trajeto do dia
24 e na noite anterior, durante as voltas em torno da fogueira, não está presente no caderno de
músicas. A já referida música: ―Capelinha de Melão‖, tem o nome que pode fazer referência
ao festejo do Rio Grande do Norte, chamado ―Capelinha‖.
Capelinha de melão
é de São João,
é de cravo, é de rosa,
é de manjericão.
O protagonismo das mulheres pode ser demonstrado na música: diferente das demais
folias, apenas as mulheres cantam. Para Suelma, ao homem cabe participar como músico ou
acompanhando o Giro, quando gostam ou são devotos de São João.
Os homens só participam nessa parte, de tocar instrumentos. Tem homem que
vai acompanhar a folia, às vezes, tem gente que gira a folia toda
acompanhando porque gosta, não está tocando nenhum instrumento, mas está
lá presente, acompanhando. Não tem problema nenhum, é tranquilo
(informação verbal58).
foliões do sexo masculino‖ (REZENDE, 2011, p. 137). Esse grupo, por sua vez, em 2019, era
composto por oito homens, com instrumentos: como um acordeão, dois tambores de caixa, 2
violões e um pandeiro.
CAPÍTULO III
diferentes ambientes da natureza, ―Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e
o biológico‖. Desse modo, ―completava-se, então, um processo [...] que consistiu inicialmente
em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocá-lo dentro da ordem da natureza‖
(LARAIA, 1986, p. 32).
Desse modo, a compreensão da cultura, enquanto comportamento aprendido, torna as
ações previsíveis, ―as pessoas sabem como agir e podem prever a ação do outro, [...] com o
qual nunca teve um contato anterior‖(LARAIA, 1986, p. 86). Para Alfred Kroeber, relatado
por Laraia (1986), a cultura também proporciona a nossa sobrevivência:
[...] a cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em
vez de modificar para isto o seu aparato biológico, o homem modifica o seu
equipamento superorgânico [...] e transforma toda a terra em seu hábitat. A
cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica
das gerações anteriores (LARAIA, 1986, p. 48 e 49).
Porém, ainda segundo o autor, surge a necessidade de divisão dos estudos de cultura,
entre as ―várias culturas do povo e as culturas das elites‖ (BURKE, 1992, p. 13). Para Maria
Laura Cavalcanti (2002, p. 2) ―o discurso sobre a cultura popular ganhou seus contornos
atuais no momento em que se reconheceu a existência de uma distância entre o saber das
elites e o saber do ‗povo‘‖. Nesse período, o movimento intelectual do Romantismo dava
grande importância às particularidades do que se chamava de povo.
Na visão romântica, o povo seria o elemento primitivo, comunitário e
autêntico, encontrado, sobretudo, no mundo rural. O folclore e a cultura
popular abrigariam nostalgicamente a totalidade integrada da vida com o
92
Trazendo os estudos sobre cultura para o contexto brasileiro, Alfredo Bosi (1992), ao
analisar os aspectos sobre a cultura no Brasil, expõe a sua multiplicidade de manifestações,
enquanto:
[...] fenômenos simbólicos pelos quais se exprime a vida brasileira tem a sua
gênese no coração dessa vida, que é o imaginário do povo formalizado de
tantos modos diversos, que vão do rito indígena ao candomblé, do samba-de-
roda à festa do Divino, nas Assembleias pentecostais à tenda de umbanda,
sem esquecer as manifestações de piedade do catolicismo que compreende
estilos rústicos e estilos cultos de expressão (BOSI, 1992, p. 323).
Enquanto tradição local, esses festejos são reeditados todos os anos. Gerações que,
ao longo do tempo, somam ao sincretismo religioso de Dica, a performance do grupo de
mulheres, tomando a religiosidade enquanto fator aglutinador, de coesão social. Segundo
Waldney Costa (2017, p. 9), a coesão social e as experiências coletivas manifestam a ―ideia
de que a sociedade se recria ao se projetar na religião e a de que a vida religiosa eleva o
homem acima de si‖.
Ainda de acordo com o autor, ao trazer conceitos abordados nos textos de Durkheim,
nos ―fatos religiosos está a ideia de que exista na religião algo de eterno, pois a vida social só
é possível no simbolismo‖ (COSTA, 2017, p. 9).
Para compreender a liminaridade presente nos rituais da Folia de São João, fez-se
necessário, antes de tudo, defini-la. Van Gennep (2011), ao falar sobre a liminaridade, trata-a
enquanto transição. Como descrito pelo autor, a transição das etapas da vida são naturais em
qualquer tipo de sociedade, consistem em passar de uma idade para outra, de profissão, de
papel social e, dependendo da sociedade, essas mudanças podem ser marcadas por ritos.
[...] O próprio fato de viver que exige passagens sucessivas de uma sociedade
especial a outra e de uma situação social a outra. [...] A cada um desses
conjuntos acham-se relacionadas cerimônias cujo o objeto é idêntico, fazer
passar um indivíduo de uma situação determinada a outra situação igualmente
determinada [...]. (GENNEP, 2011, p.24)
Quanto aos ritos de passagem, ainda os divide em três categorias: separação, margem
e agregação. Os ritos de separação compreendem, em boa parte das vezes, aqueles nos quais
se corta algo físico, ou há um rompimento que dá início a uma nova fase, como por exemplo,
o primeiro corte de cabelos, o ato de raspar a cabeça e o rito de se vestir pela primeira vez.
Os ritos de agregação, que têm por finalidade, conforme expressão dos Wayao da
África Oriental, ―introduzir a criança no mundo‖ ou, ―lançar no mundo‖, são os ritos da
denominação, de amamentação ritual, do nascimento do primeiro dente, de batismo, entre
outros.
Por meio da existência dos ritos, é possível compreender a concepção das margens,
ou das liminaridades que, às vezes, adquirem autonomia, como no noivado. A passagem
material, ou a liminaridade, possui identidade através de diversas situações sociais, como:
[...] espaço intermediário existente entre eles, como no caso dos ritos
vinculados aos pórticos, aos limites do mundo doméstico ou às fronteiras
entre o mundo profano e mundo sagrado. Se os ritos de margem são também
chamados de ―liminares‖, os ritos de separação são ―preliminares‖ e os de
agregação, ―pós-liminares‖ (ARNAULT; ALCANTARA; SILVA, 2016).
Como um todo, Gennep (2011, p. 162) mostra pontos interessantes por: ―sua
significação essencial e sua situação relativa [...] tendo em vista um fim determinado‖. Nesse
sentido, falar sobre a Folia de Lagolândia é, de certo modo, falar sobre a puberdade
fisiológica e a ―puberdade social‖, ou, ritos de iniciação, descritos por esse autor, em que as
duas situações são essencialmente distintas e raramente se convergem. Ou seja, a puberdade
fisiológica enquanto puberdade física, biológica. Já a ―puberdade social‖, ainda de acordo
com Gennep (2011), enquanto passagem de um mundo para outro, seria marcada por uma
ritualização.
Portanto, em uma análise comparativa com a Folia em estudo, surgem os
questionamentos sobre a origem do festejo: seria possível dizer que, no início da festa, as
95
nas voltas em torno da fogueira, nas cantorias, no Giro e no recolhimento das esmolas no
interior das casas.
Os ritos pós-liminares ocorrem na saída de cada casa, durante o Giro, e na noite do
dia 23, após as voltas na fogueira e o término do lanche, servido no interior da casa de Dica. É
possível, também, que esses ritos pós-liminares compreendam o período de um ano, no
intervalo entre uma folia e outra.
No caso da Folia de São João, a repetição anual da festa representa, também, uma
interação entre a comunidade, os participantes e os visitantes, estabelecendo relações entre os
modos de ver e participar dos festejos. Isso porque as performances culturais, segundo a
autora em questão, estão presentes nas representações associadas a rituais, festivais,
competições desportivas. Ainda na perspectiva da autora, ―uma performance ocorre pela co-
presença física de atores e espectadores, em que uns agem como ‗fazedores‘ e outros como
‗observadores‘ num determinado tempo e num determinado lugar partilhando uma situação,
um lapso de tempo‖ (FISCHER-LICHTE, 2005, p. 73).
Com essa premissa levantada pela autora, há uma descrição dos traços gerais dos
conceitos de performance, a partir do centro de investigação ―Kulturendes Performativen‖ (A
cultura como performance), divididos em quatro focos, resumidos como:
1. Uma performance ocorre pela co-presença física de actores e espectadores,
pelo seu encontro e interacção. 2. O que nela acontece é transitório e efémero.
Apesar de tudo, o que quer que ocorra durante a sua realização, manifesta-se
como hic et nunc59, e é experienciado como presente de uma forma
59
Que se realiza neste exato instante e local.
97
Por esse ponto de análise, da Folia de São João enquanto espetáculo, em que as
folioas e os moradores são os ―fazedores‖ e o ―público‖, os mesmos ―experienciam-se a si
próprios como co-determinando o seu decurso e, ao mesmo tempo, como sendo determinados
por ele [...]. A sua percepção segue tanto a ordem da presença como a da representação‖
(FISCHER-LICHTE, 2015, p. 80).
Nesse sentido, a performance do grupo de mulheres tem a sua existência e história
ligadas ao seu público participante que, em seu imaginário, devota fé à figura de Dica e,
assim, constituem relações entre a comunidade, com modos de festejar (e performar)
diferentes do cotidiano. A cultura, aqui, em relação às performances culturais, expressa-se e
se apresenta ―por meio da forma, [e das] materialidades corporais e gestuais que envolvem
relações em ato‖, conforme definição de Camargo (2011, p. 11).
98
CAPÍTULO IV
4 A FESTA EM IMAGENS
Para este capítulo, além das abordagens já mencionadas, fez-se necessário, também,
registrar e ilustrar a festa por meio de fotografias, a fim de demonstrar como ocorre a Folia de
São João, no distrito de Lagolândia, considerando as etapas da festividade e seus personagens
e significados e, dessa forma, adentrar o festejo, demonstrando ao leitor alguns dos detalhes
das etapas do rito, que não são descritos textualmente.
Conforme já mencionado, devido à pandemia de COVID-19, as entrevistas previstas
com os moradores, parentes e participantes foram canceladas. Portanto, o questionário
aprovado pelo Comitê de Ética da UFG não foi utilizado. A Folia de 2020 não foi realizada,
por determinação de decreto municipal. Em virtude disso, os propósitos de vida, o prazo
regimental do mestrado, o planejamento de ingressar no doutorado e a necessidade de
obtenção do título de mestre fizeram com que a pesquisa seguisse um novo rumo.
Por essas razões, foi necessário recorrer à utilização de algumas imagens fotográficas
produzidas nos anos anteriores. O uso de fotografias expande as possibilidades da pesquisa
científica e a compreensão da festa, conforme descreve Becker (2009):
A biologia, a física e a astronomia hoje são inconcebíveis sem evidência
fotográficas. Nas ciências sociais, somente a história e a antropologia, as
disciplinas menos ―científicas‖, usam fotos (...). A sociologia, arremedando o
caráter supostamente científico destes últimos campos, também não lança
mão delas. Em conseqüência, os poucos sociólogos visuais ativos são pessoas
que aprenderam a fotografar alhures e incorporaram a imagem fotográfica ao
seu trabalho acadêmico (BECKER, 2009, p. 189-190).
durante o festejo, sempre traz novas experiências e uma nova forma de ver e interpretar a
manifestação da Folia de São João.
Para desenvolver um relato etnográfico do evento, bem como as performances como
metodologia de análise foi necessário ter um olhar interdisciplinar sobre a manifestação: a
Folia de São João faz parte de um contexto, está inserida em uma comunidade fundada por
uma líder, em um contexto histórico importante para Goiás e o Brasil, é protagonizada por
mulheres, faz parte de um ciclo festivo que permeia todos os meses do ano e, provavelmente,
tem a sua origem de inspiração em uma outra festividade de outro estado do país.
Com o conhecimento dessas e de outras particularidades, ao chegar em Lagolândia, na
noite do dia 23 de junho de 2019 - no que pretendia ser apenas uma sondagem preliminar e
findou por constituir-se na atividade de campo -, uma das primeiras iniciativas do pesquisador
foi compreender o espaço da festa, já repleto de moradores que aguardavam o início do rito.
Para tanto, a fim de facilitar a compreensão, buscou conversar com alguns moradores que
deram conta de que, naquele ano, o festeiro faria um bingo antes de iniciar a folia, com a
finalidade de arrecadar fundos.
Diferente dos anos anteriores, o festeiro distribuiu o lanche antes da saída das folioas,
invertendo a sequência usual dos acontecimentos, que consiste, primeiramente, na saída das
―donzelas‖ e do ritual em torno da fogueira. Após esse rito, as mulheres retornam à casa de
Dica, onde é servido o lanche. Em 2019, foi distribuído pão com recheio de carne, suco em
copo descartável e caldos.
A saída das mulheres aconteceu às 23 horas, diferente dos anos anteriores e da
tradição, sempre à meia noite. De acordo com moradores, o festeiro confundiu a sequência:
primeiro o rito da fogueira e depois o lanche, no interior da casa de Dica. Contudo, para
compreender e relatar sobre o espaço da festa, foi necessário realizar um esboço, à mão, sobre
o trajeto (Anexo I) e os principais pontos do ritual noturno. Esse esboço serviu como
referência para a realização de um infográfico, a partir de uma fotografia aérea, produzida no
dia seguinte, conforme Figura 29, apresentada na sequência.
100
de apagar a luz e fechar a porta‖. Tal fato deu a entender que, aparentemente, a casa não é
habitada e é mantida pelos moradores –sendo um lugar onde se realizam alguns atendimentos
espirituais.
FIGURA 30 - INTERIOR DA CASA DA SANTA DICA APÓS O TÉRMINO DO RITUAL
NOTURNO DETALHE PARA A VELA ACESA
se em duas fileiras, chamadas Guias e Contra Guias (primeira e segunda voz), cantou quatro
músicas, recolheu as esmolas (doações em dinheiro), encerrou o rito e partiu para a próxima
casa, continuando o Giro.
Após a conversa, o almoço já estava no final. O cardápio foi composto por arroz,
feijão tropeiro, carne frita, ‗gueroba‘ e salpicão. Os alimentos, na maior parte, foram
produzidos nas fazendas da região. Após o almoço foi servida uma sobremesa, com várias
opções de doces, dentre eles uma receita local de doce de inhame, que também é servido na
Festa do Doce, em homenagem ao Divino Pai Eterno.
FIGURA 35 - PARADA EM UMA DAS CASAS: MÚSICA ENTOADA ANTES DE ENTRAR
Nas imagens a seguir, foi possível perceber a faixa etária média das participantes, o
papel masculino, os instrumentos musicais, a vestimenta utilizada em 2019, que se assemelha
ao uniforme escolar (normalista60), o interior e o exterior das residências, com parte de seus
rituais, o ato comensal, comum nos festejos populares. A alimentação, por sua vez, é vista
como fator agregador da comunidade, de confraternização e representação cultural do festejo.
Os equipamentos utilizados para a captação de imagens, que ilustram a presente
pesquisa, foram: uma máquina fotográfica Canon 60D, com três objetivas: 50 mm, 18-135
mm e 8 mm (grande angular, olho de peixe). Como acessório da câmera, foi utilizado um
flash Speedlite Canon, modelo 430EX II. Além destes equipamentos, foi utilizado um drone
modelo DJI Spark. A seleção de imagens buscou priorizar as narrativas dos textos e, para esse
capítulo, a seleção, ou curadoria, a partir de temas que dão sequência à narrativa visual que se
propõe.
É importante ressaltar que as imagens aqui dispostas, quase que como único
documento de campo, vem como auxílio e ilustração da narrativa, desde o início da pesquisa.
Aqui, o exercício será de descrever alguns dos momentos importantes do festejo, registrados
nas fotografias.
Pela primeira fotografia (Figura 39), foi possível ver os restos da fogueira, ainda em
brasas, em frente à casa de Dica. No momento dessa fotografia, o grupo de quadrilha da
escola pública do distrito acabara de se apresentar. Era o momento em que todos aguardavam
a saída das ―donzelas‖ do interior da casa, que daria início à Folia de São João, com as três
voltas.
60
Uniforme comum das antigas escolas de ensino normal, no Rio de Janeiro, nas décadas de 1960 e 70.
108
.
Fonte: Vinícius Luz (2019)
A dança da quadrilha, realizada na quadra de esportes, deu lugar ao vazio (Figura 40).
Todos os participantes e espectadores se deslocaram para ver o grupo de mulheres que, nesse
momento, ainda não tinha iniciado o rito inicial da Folia.
Na manhã seguinte, o Giro começa com o café da manhã, servido no Salão Mário
Mendes. Em seguida, o grupo se desloca entre as casas dos moradores católicos. Contudo,
além da linguagem verbal, pelo que foi contado pelos participantes, ―no campo, é
frequentemente através da experiência que aprendemos, muito mais do que pela troca verbal
com os nossos informantes‖ (NOVAES, 2008, p. 467-8).
Por meio das observações in loco, foi possível perceber o papel masculino e o
protagonismo feminino em todas as partes da manifestação. Nas imagens produzidas, algumas
com a única pretensão de registrar a festa, percebeu-se, a posteriori, que em todos os registros
os homens estavam em menor número e separados do grupo principal.
110
Na imagem que segue (Figura 43), é possível perceber, pelo lado de fora da casa, o
músico da Folia de São João posicionado à janela da residência, em local pouco privilegiado
na organização espacial do festejo, na parte periférica, enquanto as mulheres ficam no centro
(geográfico e das atenções), entoando os cânticos da folia. A fotografia retrata uma das
primeiras casas do Giro, no período da manhã. Apesar da ainda pequena participação da
comunidade, os espaços e os papéis no grupo são bem definidos.
No ano de 2019 (Figura 45), foi percebida a mesma organização. Ao entrar nas casas,
as mulheres têm prioridade e, aos homens, cabe entrar por último, quando há espaço no
interior da residência, ou aguardar do lado de fora.
Durante o Giro, no trajeto entre as casas, há uma coesão entre o grupo de mulheres.
O mesmo se percebe no grupo masculino. Não há mistura entre os dois grupos.
Como é comum nas festas populares, o ato comensal está presente na Folia de São
João. Os participantes produzem boa parte dos alimentos nas propriedades rurais da região,
cozem os alimentos, comem e compartilham com toda a comunidade, como ato, também, de
celebração e confraternização da população local. Durante o almoço, é perceptível o número
maior de participantes, uma pequena multidão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
referências principais, como a ―terra da Santa Dica‖ ou, ―lá onde tem a Festa do Doce‖, como
facilmente é reconhecido.
Porém, a trajetória de vida de Dica, marcada por sua liderança política e espiritual,
também possui contradições que intrigam, talvez pelos costumes vigentes no tempo em que
viveu. Líder religiosa e política, reuniu milhares de pessoas em torno de seu carisma,
aconselhava e era considerada a ―madrinha‖ de todos. Lutou e liderou tropas em duas
revoluções (1930 e 1932); conheceu e teve acesso a políticos, como o ex-presidente Juscelino
Kubitschek; ou o fundador de Goiânia, ex-governador e interventor de Goiás, Pedro Ludovico
Teixeira, com importante participação em sua libertação na Revolução de 1930, em Rio
Verde.
Ao mesmo tempo, essa mesma mulher se submeteu a várias tentativas de ser
vendida, por parte de seu primeiro marido, com o qual se casou formalmente e com quem teve
cinco filhos. Esse mesmo marido foi eleito prefeito de Pirenópolis, por sua interferência. Até
hoje, segundo a bibliografia consultada, foi o único prefeito que não nasceu na cidade. Por
outro lado, a situação de se submeter, finalmente, à venda se torna contraditória a todos os
seus feitos e ao seu legado.
No caso da Folia de São João, que também é um legado de Dica, por ter sido iniciada
e, nos primeiros anos, ensinada e mantida pela ―matriarca‖ dos moradores, das festas e das
tradições locais, também faz parte de sua história de vida. Por essa perspectiva, não teve
outro modo de iniciar a pesquisa que não fosse pelo levantamento histórico da personagem, a
fim de conhecê-la, de apresentá-la, embasar a pesquisa e ambientar o leitor.
Por meio das (mesmo poucas) entrevistas, foi possível perceber que as mulheres do
grupo (as folioas) se sentem valorizadas por fazerem parte da história, sendo contada e
reeditada por suas cantorias e rezas, com uma festividade única e exclusiva, no meio de várias
outras, dentre elas a Folia de Reis, de predominância masculina.
Essas mulheres, também conhecidas por ―donzelas‖, vão de adolescentes a adultas,
são na maioria estudantes, algumas donas de casa e uma professora. Todas participam porque
querem manter a tradição e a devoção a São João Batista, padroeiro da festa. Porém, o termo
―donzelas‖ não parece ser, atualmente, tão bem aceito. Em conversas informais, com
moradores e com as ―donzelas‖, foi perceptível a preferência pelo termo folioa, que se adequa
melhor aos dias atuais.
Talvez, o uso do termo que remete à virgindade tenha nascido da passagem da vida
de Dica, da ocasião em que teria sofrido um abuso sexual. Esse período de sua vida teria
marcado uma mudança na forma de conversar com os seus Guias, na maneira de tratar as
116
enfermidades das pessoas que procuravam sua ajuda e, até mesmo, na mudança de seu
destino.
Como ritual, na modesta opinião do pesquisador, a ideia de que ―o mundo é um
palco‖ sempre vem à tona, particularmente acentuada nas cidades (BURKE, 1992, p. 82), na
―distância entre a aparência e a realidade‖, nas ―roupas, a maneira de falar […], são
indicadores não apenas de um estatuto social, mas também de atitudes e grupos de valores de
‗mentalidades‘‖ (BURKE, 1992, p. 83).
Lagolândia, nos dias atuais, apesar de poucos moradores, é uma comunidade com
suas memórias e identidade, sendo ainda viva em suas festas e tradições e, mesmo com o
advento das novas tecnologias, mantém-se firme com o legado de sua fundadora.
Por esses, e diversos outros motivos, já se pode considerar a Folia de São João,
realizada essencialmente por mulheres, como um fenômeno singular, oriundo de uma
passagem histórica importante de Goiás, protagonizada por uma mulher, no tempo dos
coronéis. Além disso, abre-se espaço para um alargamento das ideias; tornando-se, portanto,
um vasto campo para novas pesquisas, contribuindo, como pretendido, para que outros
trabalhos sejam realizados.
117
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Etienne. Os argonautas do mangue precedido de Balinese character (re)visitado.
Campinas: Unicamp/ São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS:
Corpo e Cidadania. Recife, 1990.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667.
Acesso em: 05 de jul. de 2020.
SILVA, Jeane das Graças Araújo. Santa Dica ou Reduto dos Anjos: uma visão psico-social.
Goiânia: Departamento de Ciências da Religião/UCG, 2005. 134f. (Mestrado em Ciências da
Religião).
TURNER, Victor. O Processo Ritual Estrutura e Anti Estrutura. São Paulo: Vozes, 1974.
_________. Floresta de Símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Rio de Janeiro: Eduff, 2005
Vídeos e documentários:
https://www.youtube.com/watch?v=dGpp_8NHCok
Jornais e revistas:
Documentos diversos:
Apêndice A – Questionários
NOME:__________________________________________________ IDADE:____
NOME:__________________________________________________ IDADE:____
NOME:__________________________________________________ IDADE:____
Anexo I
Relato etnográfico de 23 e 24 de junho de 2019
Dia 23:
- Cheguei ao distrito por volta das 22h. Viagem longa de Goiânia até lá. Havia grande
movimentação na praça principal.
- Diferente dos anos anteriores, havia distribuição de pão com recheio de carne, suco em
copo descartável e caldos. A refeição foi oferecida pelo festeiro do ano.
Interior da casa da Santa Dica após o término do ritual noturno. Detalhe para a vela acesa.
Fonte: Vinícius Luz (2019)
- Um dos organizadores, Danilo Camargo, explicou que a folia foi originada pela D.
Dica, mas não sabe precisar de onde veio e qual a motivação.
- Danilo também explicou que, para participar, as mulheres não podem ser casadas ou
terem filhos. Segundo ele, o termo ―donzelas‖ já está em desuso, atualmente, somente
os moradores mais antigos usam esse nome, que foi substituído por ―folioa‖.
Dia 24:
- Cheguei ao salão Mário Mendes às 7h45, o café já estava sendo servido para os
moradores e as folioas.
- O grupo faz um pequeno ensaio dentro do salão. A saída acontece por volta das 8h45.
Primeira parada do Giro realizada na casa de Carmelita Cipriano, prima de Santa Dica.
Fonte: Vinícius Luz (2019)
- Algumas abordagens pela rua, por pessoas perguntando se era do programa ―Mais
Você‖, da TV Globo. Descubro que a equipe do programa fez uma reportagem no
distrito, que foi ao ar recentemente. Percebo que algumas pessoas estão alvoroçadas
com a possibilidade de aparecer na TV. Um dos moradores queria ensinar como se faz
doce de mamão.
- Sou orientado a entrevistá-la o quanto antes, pois ―ano que vem podemos não tê-la
mais‖, como disseram. Tivemos uma conversa informal, registrada por um gravador
de bolso. Devido a idade e à surdez, fui intermediado pela filha, Brigitt.
- Dona Bernarda acredita que a folia foi introduzida no distrito por volta de 1929.
- Cheguei ao almoço já no final, o cardápio foi composto por arroz, feijão tropeiro,
carne frita, gueroba e salpicão. Os alimentos, na maior parte, foram produzidos nas
fazendas da região.
- Após o almoço foi servida a sobremesa, com doce de figo, de leite e uma receita local
de doce de inhame (doces que também são servidos na Festa do Doce).
- Ao sair, fui fotografar alguns pontos importantes do distrito, como o túmulo de Dica e
seu marido, a fachada da casa e a quadra de esportes. Fiz, também, imagens aéreas
com um drone.
- Desci ao rio do Peixe para conhecer os fundos da casa da Dica. Chegando ao rio, vi
que há um bambuzal e um barranco nos fundos, que dificulta o acesso às águas.
136
- Retomando o Giro, notei que grande parte das casas estavam desocupadas, sem seus
moradores. Explicaram que há uma grande evasão demográfica durante a semana e
que alguns dos moradores retornam durante os finais de semana. Há um acordo entre
os vizinhos, de vigilância das casas vazias.
- Voltando para o lanche, serviram pão com carne moída, café e refrigerante de marca
local. As mulheres já preparavam o jantar, com toucinho e outros cortes suínos.
- Fui informado de que o caderno, com os nomes dos interessados em ser o ―festeiro‖
do ano seguinte, havia sumido. Por isso, fariam um sorteio.
- Fiquei em Lagolândia até o final da tarde. Até a minha saída, não haviam escolhido o
festeiro de 2020
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Anexo II