Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Música
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INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA
PORTO ALEGRE
JUNHO 2006
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
CDD 780.7
CDU 78:37.02
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MSICA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA
Junho 2006
minha me Victria e ao meu pai Ananias que me ensinaram que estudar o melhor
caminho para se construir uma existncia digna.
Aos participantes da pesquisa das duas ONGs estudadas: a Associao Meninos do Morumbi
e o Projeto Villa Lobinhos. Por abrirem as portas para que eu pudesse entrar em suas
instituies. Por me permitirem que abrisse as outras portas que eu precisei e achei
importante. Por me confiarem fragmentos e histrias preciosas de suas vidas, de seus mundos
e seus valores que se consubstanciaram nesse trabalho, ampliando meu conhecimento sobre
as coisas do mundo. A todas essas pessoas, rendo minha homenagem e dedico esse trabalho.
AGRADECIMENTOS
Realizar esta pesquisa significou trilhar por caminhos que s puderam ser percorridos
contando com o apoio, amizade, solidariedade, comprometimento e amor de muitas pessoas.
Os momentos os difceis e de dvidas, os de prazer e de descobertas foram marcados por
um trao que deixa marcas profundas na minha vida pessoal e profissional: a fora de estar
junto para construir algo. Foi uma experincia transformadora para mim. Agradeo a todas as
pessoas que estiveram comigo nesse percurso. Em especial, a minha gratido:
professora Dra. Jusamara Souza por sua orientao competente, segura e
comprometida. Pela confiana e autonomia concedidas, permitindo-me tomar decises e
delinear os eixos que contriburam para a minha identidade como pesquisadora e educadora
musical.
Aos coordenadores da Associao Meninos do Morumbi, Flvio Pimenta e Ligia
Pimenta e ao diretor do Projeto Villa Lobinhos, Turbio Santos, pelo tratamento profissional e
afetuoso traduzidos em solidariedade, parceria e apoio.
Aos participantes da pesquisa da Associao Meninos do Morumbi: Alessandra,
Alusyo Irmo, Anderson, Cntia, Claudinei, Leandro, Luciana, Marcelo Big,
Marquinhos, Murilo, Nair, Sivuca, Pavilho, Rocha, Silvinha, Tio Magno e Vera. Obrigada
pelas prolas que me confiaram.
Ao Rodrigo Belchior, mais do que informante e parceiro, um amigo que ganhei nessa
jornada e que me ensinou tantas coisas sobre como ser educador musical a partir da relao
entre pessoas e msicas.
Aos que me conduziram e estimularam nas reflexes com suas histrias e aes
musicais durante minha insero no Projeto Villa Lobinhos: Ademar, Carla, Fbio Henrique,
Antonio Jocielton, Marquinhos, Wagner, Walther Igor, Diego, Leandro, Pedro, Ramon,
Rafael, Daniel, Jefferson, Martins, Bruno, Junior, Henrique, Junior e Jonas. Aos professores
Andra Ernest Dias, Chico S, Emanuelle Freitas, Luis Cludio Soares, Srgio Barbosa,
Ricardo Costa, pela generosidade em compartilhar comigo suas concepes pedaggico-
musicais. Mrcia por sua ateno carinhosa. Obrigada pelos momentos prazerosos e
musicais.
Ao Joo Moreira Salles por sua disponibilidade em me contar histrias e
compartilhar reflexes sobre a trajetria da constituio do Projeto Villa Lobinhos.
s professoras Dra Alda de Oliveira, Dra. Elizabeth Lucas e Dra. Liane Hentschke
pelas valiosas contribuies por ocasio do exame de qualificao dessa pesquisa.
professora Dra. Elizabeth Travassos por sua acolhida e sugestes significativas
como co-orientadora no Doutorado Sanduche no Programa de Ps-Graduaao em Msica da
UNIRIO.
professora Dra. Regina Novaes por sua generosidade em compartilhar seus
conhecimentos comigo, no incio desse trabalho, fundamentais para orientar os ngulos dos
caminhos que ainda haveriam de ser percorridos.
Aos coordenadores das ONGs Escola de Msica da Rocinha, Gilberto Figueiredo; da
Reciclarte, Mrcio e Lenora Selles, por me receberem em suas instituies e contriburem
para a compreenso da ao solidria e da figura de rede de projetos sociais em msica no Rio
de Janeiro, abordada nessa pesquisa.
Ao Francisco Frias, por suas estimulantes conversas e bate-papos musicais, repletos
de histrias importantes para a pesquisa.
s amigas, Ana Louro, Cleusa Erilene Cacione, Jucyane Araldi, Marta Schmitt,
Mal Pelizer, Vnia Fialho, Solange Batigliana e Vanda Moraes, pelo apoio afetivo em tantos
momentos ao longo dessa jornada.
Dra. Regina Buriasco, amiga e exemplo de educadora, por seu estmulo e
sugestes para essa pesquisa.
Aos meus familiares pelo amor, estmulo que me dedicam; pela compreenso da
minha necessria ausncia, durante todo esse tempo; por existirem e ampliarem minha
capacidade de amar.
RESUMO
ABSTRACT
CAPTULO 1 INTRODUO 16
REFERNCIAS 307
APNDICES 314
ANEXOS 328
CAPTULO 1
INTRODUO
reportagem informa, ainda, que os cursos so gratuitos e muitos msicos que l se formaram
participam de shows como msicos profissionais.
Outro exemplo a matria veiculada no jornal O Estado de So Paulo - Caderno
Dois, 16 de agosto de 2002, apresenta em destaque a seguinte manchete: Como mudar a vida
de crianas com arte e ateno. O texto informa sobre o trabalho realizado pela Edisca
Escola de Dana e integrao social para crianas e adolescentes em Fortaleza, CE, e o
Projeto Sambelel, da ONG Corpo Cidado, Belo Horizonte, MG. A perspectiva da
reportagem sociocultural que v a arte como um instrumento para educar e integrar
crianas que convivem com a pobreza e a violncia em favelas e periferias [...] a idia no
formar msicos, bailarinos ou artistas, mas sim ampliar o universo cultural de cada criana.
Alm do jornal acima citado, outros jornais de circulao nacional e estadual, como a
Folha de Londrina (PR), a Folha de So Paulo (SP) e Estado de So Paulo o Estado - (SP)
quase que diariamente vm publicando notcias sobre projetos sociais que atendem a
diferentes grupos da comunidade e oferecem as mais diversas atividades. Foi atravs de uma
dessas reportagens que obtive a primeira informao sobre o Projeto Villa Lobinhos. Um dos
meus insights foi notar que nos ltimos tempos, projetos como estes mereceram mais
destaque na mdia do que concertos de msica erudita ou msica popular com msicos
consagrados nacionais ou internacionais. Dimenstein (1997) aborda o significado desse fato,
na lgica jornalstica, em seu artigo Como a criana ensinou imprensa o terceiro caminho
(p. 164-73) descrevendo fatos histricos que exemplificam como e porque, na concepo do
autor, os principais veculos da mdia brasileira incorporaram esse assunto em suas pautas. O
autor descreve uma reportagem veiculada, em horrio nobre, pela Rede Globo no Jornal
Nacional do dia 21 de fevereiro de 1997, a qual teve a durao de seis minutos, realizada ao
vivo, sobre o desfile de moda de meninos de rua promovido pelo Projeto Ax, de Salvador na
Bahia. Outro exemplo, ocorrido sete dias aps:
1
http://www.rits.org.br; http://www.ethos.org.br; http://www.aoeducativa.org.br; http://www.vivario.org.br;
http://www.vivafavela.org.br; http://www.projetoguris.org.br; http://www.meninosdomorumbi.org.br;
http://www.ibase.br; http://www.natura.net; http://www.villalobinhos.org.br; http://www.olodum.org.br;
http://www.uol.com.br/olodum/indexgrupocultural.htm; http://www.imagemcidadania.org.br/MusikFabrik/;
http://www.mundodarua.com.br/
2
http://www.meninosdomorumbi.org.br
19
3
A denominao Terceiro Setor refere-se Sociedade Civil Organizada e o termo faz contraponto com o Estado,
considerado o Primeiro Setor e o Mercado considerado o Segundo Setor (http://www.rits.org.br).
4
Cf. ONU. Carta de las Naciones Unidas para la Cooperacin y el Desarrollo, 1950. Nova York: ONU, 1978.
5
la denominacin ONG alude a una especial forma de organizacin de personas y medios dedicados a impulsar
acciones coadyuvantes del desarrollo humano.
21
metodologia utilizada por ele nessa pesquisa foi a pesquisa-ao realizada conjuntamente por
ONGS internacionais e locais sediadas em quatro pases. Buscou destacar a importncia de se
compreender [o impacto] como uma diferena positiva e significativa...na vida das pessoas
(ROCHE, 2002, p. 323), indicando, ainda, que h outros critrios importantes para se avaliar
como compreender o contexto, a capacidade de escutar, aprender, adaptar-se e inovar a
capacidade referencial e a capacidade de trabalhar com os outros e de comunicar o
aprendizado (ROCHE, 2002, p. 323). Guillermo Rogel ao apresentar esta publicao
ressalta, que o autor mostra uma ampla gama de procedimentos e de tcnicas, enfatizando a
necessidade de rigor metodolgico para se chegar a resultados teis e confiveis. (ROCHE,
2002).
A partir de uma outra abordagem, Montao (2002) problematiza o Terceiro Setor na
perspectiva terica e ideolgica neomarxista do pensamento neoliberal, apontando a
ambigidade existente entre o conceito de sociedade civil, como uma arena privilegiada de
luta de classe e o prprio conceito de Terceiro Setor como algo, pretensamente, situado para
alm do Estado e do mercado. Por meio de suas argumentaes o autor prope uma anlise
crtica do Terceiro Setor
A articulao das idias estruturou esse trabalho a partir dos referenciais conceituais
e tericos costurados com o trabalho de campo realizado no decorrer da pesquisa. Dessa
forma, no Captulo 1 introduzo o tema e exponho o propsito da pesquisa localizando-os no
mbito das prticas musicais desenvolvidas em ONGs. Apresento o campo emprico da
pesquisa constitudo de duas ONGs em contextos urbanos distintos: A Associao Meninos
do Morumbi, na cidade de So Paulo e o Projeto Villa Lobinhos, na cidade do Rio de Janeiro
e justifico a escolha dessas duas organizaes. Destaco, ainda, a dimenso do Terceiro Setor,
como um fenmeno emergente, tecendo consideraes gerais sobre como se proliferam os
movimentos sociais organizados e institucionalizados em ONGs e projetos sociais ligados ao
trabalho com jovens e crianas em excluso ou situao de risco social. So traados breves
paralelos conceituais sobre o Terceiro Setor, a partir de uma viso crtica da literatura,
buscando mostrar o campo como no homogneo e permeado de olhares diferenciados em
relao sua natureza conceitual, ideolgica e tica.
No Captulo 2, descrevo a construo da trama terico-metodolgica apresentada em
trs pontos interconectados: os pressupostos tericos, os pressupostos metodolgicos e o
percurso metodolgico trilhado no trabalho de campo das duas ONGs selecionadas. Nessa
trama, busquei construir uma postura terica coerente entre os autores e suas teoria
entrelaada com a metodologia utilizada uma associao entre o estudo de caso e a
etnometodologia. As premissas tericas partem da viso da msica produzida nas ONGs
como prtica social em que o processo pedaggico-musical entendido como um fenmeno
social cujos contextos sobrepostos e interconectados so vistos como campos de produo de
conhecimento. A descrio detalhada do percurso da coleta de informaes nas duas ONGs
tem a inteno de registrar os aspectos que considerei relevantes para a compreenso de como
25
se deu dessa trajetria, como procedi diante das escolhas e decises, fruto de um processo
reflexivo.
Nos Captulos 3 e 4 procedo descrio dos dois estudos de caso: Projeto Villa
Lobinhos e Associao Meninos do Morumbi. Essa descrio entremeada por
posicionamentos reflexivos e analticos, focalizando o processo pedaggico musical a partir
de contextos interconectados envolvendo as dimenses institucional, histrica, sociocultural e
de ensino e aprendizagem musical. A compreenso das questes da pesquisa ancora-se na
trama terico-metodolgica, que conduz o processo de reflexo e anlise e se processa a partir
das falas dos participantes da pesquisa, das minhas observaes, registros sonoros e visuais e
de documentos que considerei necessrios para o estudo.
No Captulo 5 retomo os pontos relevantes de cada captulo desse estudo.
Especificamente, busco traar uma transversalizao da anlise e interpretao realizada nos
Captulos 3 e 4, buscando construir asseres que entendam as ONGs como um campo de
produo de conhecimento e de atuao para o educador musical, destacando aspectos
conceituais e prticos, ticos e polticos que tragam uma contribuio para o campo
epistemolgico da educao musical. Nessa perspectiva, abordo as ONGs como espaos
socioeducativos-musicais historicamente construdos, capazes de produzir novos
conhecimentos de diferentes naturezas e o processo pedaggico-musical como um fenmeno
social dinamizado por pluricontextos sobrepostos e concomitantes. No Captulo 6 teo as
consideraes finais e possveis desdobramentos da pesquisa.
Por fim, encontram-se as referncias das obras citadas e consultadas, bem como os
apndices e anexos pertencentes esta pesquisa.
CAPITULO 2
Para Shepherd e Wicke (1997, p. 194), o conceito de estrutura social visto como
fruto da diversidade de relaes em rede e como uma categoria importante para compreenso
da sociedade, de suas produes materiais e simblicas. Os autores assumem e defendem a
msica como uma prtica constituda social e culturalmente e, portanto, descartam o
entendimento da msica como qualquer outro artefato cultural, inclusive defendem que a
msica tem um distinto significado da prtica da linguagem assim como tem na comunicao.
Desenvolvem a idia do corpo como um mediador da expresso musical e a msica como um
dos construtos de processos simblico e social, uma atividade central para as pessoas e
sociedade.
Para eles, a tentativa de se entender a msica como uma prtica significativa
distinta, constituda social e culturalmente, descartando o pensamento sobre msica a partir
dela prpria como uma prtica cujo significado esteja baseado nos sons mais do que na
totalidade de trabalhos singulares. Seus questionamentos problematizam onde a teoria cultural
tem tido algum sucesso em compreender a msica como social e culturalmente constituda;
onde h problemas; onde as caractersticas sociais e culturais tm sido mal entendidas pela
teoria cultural. Os autores buscam identificar as lacunas que precisam ser preenchidasa partir
dos argumentos da teoria cultural voltada para um verdadeiro entendimento da msica como
prtica social.
Nesta perspectiva, para entender a msica como de fundamental importncia na vida
humana, necessrio refletir sobre as condies da manipulao do homem sobre o mundo
material e a construo de significados a partir da experincia e dos sentidos humanos. Para
os autores claro que pessoas, como indivduos, s podem sobreviver pela ao no meio
ambiente em que vivem, sendo que a sobrevivncia se processa mediante a ao de
cooperar e agregar entre si (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 194). Ou seja, a reproduo
material s possvel como conseqncia da habilidade das pessoas estabelecerem relaes
humanas que, de alguma forma, vo se constituindo em uma plataforma interligada de
significados e estruturas sociais. Entretanto, os autores destacam que se o princpio da ordem
das aes humanas e das foras que fluem estiver implcito nas limitaes do mundo material,
29
ento, uma ordem que tem que ser compreendida e mantida simbolicamente (SHEPHERD;
WICKE, 1997, p. 196; grifo do autor)6.
Em relao ao processo de significao dos objetos materiais e simblicos os autores
ressaltam que, apesar do senso de viso imprimir identidades aos objetos observados, so os
sons que descolam o significado da superfcie dos objetos do mundo material, imprimindo a
eles significados intrnsecos. As caractersticas dos sons so aurais e aquelas visuais. Esta
disjuno facilita a criao do mundo humano no que concerne construo de
representaes simblicas. Sons da linguagem e da msica no so estruturas por si, mas
estruturveis pela sociedade. A ao de estruturar na conscincia requer relaes dialticas
individuais com as aes e foras ordenadas com o mundo externo (SHEPHERD; WICKE,
1997, p. 199). Nas relaes humanas, as pessoas agem juntas atravs da linguagem e da
msica reproduzindo-se materialmente, mediante os sons, o que constitui a sociedade, a
msica, bem como as subjetividades dos indivduos.
A msica, neste contexto terico, no se estrutura por si mesma, mas estruturada
pelas pessoas, pela capacidade de se perceber e estruturar os sons do mundo material em
estruturas simblicas em nvel de conscincia (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 199). A
msica social no s porque est sendo produzida atravs do mundo material e social, mas,
tambm, por sua capacidade de simbolizar o mundo externo material e social tal qual est
estruturado. Nessa perspectiva, a arte e, conseqentemente, a msica so entendidas como
uma prtica social e culturalmente constituda e que, assim sendo, seu carter no pode ser
visto fora da noo de sociedade como algo parte das formas simblicas e culturais
manifestadas pelas pessoas (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 200).
Blacking (1995) contribui para os pressupostos tericos dessa pesquisa a partir de
uma perspectiva semelhante, uma vez que para ele msica um modelo do sistema do
pensamento humano parte da infra-estrutura da vida humana [...] no somente reflexiva, mas
tambm geradora, tanto no sistema cultural como na capacidade humana (1995, p. 223-224).
Pensando a partir desse autor, o fazer musical um tipo especial de ao social que pode ter
importantes conseqncias em outras aes sociais, portanto, o autor lana o desafio para a
musicologia de clarear o processo de como as pessoas criam significado de msica na
diversidade de contextos culturais e descobrir o que a capacidade inata que os indivduos
6
if the principle of the ordering human actions and of the forces which flow therefore is implicit in the
constraints of the material world, therefore, it is an ordering which has to be realized and maintained
symbolically.
30
usam no processo de fazer o sentido de msica e a conveno cultural que guiam suas
aes.
Para Blacking (1995, p. 225), as fontes de acesso sobre a natureza de msica so
encontradas em: 1) na variedade de sistemas musicais, estilos ou gneros que so
correntemente executados no mundo; 2) registros histricos de partituras, iconografia e
descrio de performance e 3) diferentes percepes que as pessoas tem de msica e
experincia musical, diferentes maneiras pelas quais as pessoas fazem sentido dos smbolos
musicais. Importa aqui, especialmente, sua abordagem sobre a performance musical:
Alm de favorecer a idia de que msica ao, o verbo tem outras implicaes.
Primeiramente, ele no faz distino entre o que os performers e o restante dos
presentes esto fazendo. Ele nos lembra que musicar (...) uma atividade na
qual todos os presentes esto envolvidos e pela qual todos so responsveis. No
uma questo de agncia dos compositores, ou mesmo dos performers, para uma
contemplao passiva da platia. Seja l o que estiver sendo feito, dever ser feito
por todos. Quando usamos o verbo consideramos o evento como um todo, no
apenas o que os msicos esto fazendo e, certamente, no s a obra que est sendo
apresentada. Ns reconhecemos que uma performance musical um encontro entre
seres humanos onde significados so construdos. Como todo encontro humano, ela
acontece num espao fsico e social que tem que ser levado em conta, assim como
ns perguntamos quais significados so construdos em uma performance.
(SMALL, 1995, p.2)8
7
Every musical performance is a patterned event in a system of social interaction, whose meaning cannot be
understood or analyzed in isolation form other event in the system [...] a musical system should first be analyzed
not in comparison with other musics, but rather in relation to another social and symbolic systems within the
same society.
8
Apart from favoring the idea that music is action, the verb has other useful implications. In the first place, it
makes no distinction between what the performers are doing and what the rest of those present are doing. It thus
reminds us that musicking and you see how easy it is to slip into using it is an activity in which all those
31
Small (1995) argumenta que os critrios para se pensar no que significa o valor
musical reside no entendimento de que na ao do fazer musical realizada pelos
participantes, mediante a interao social, que se constri o sentido de como aquele universo
sonoro organiza-se e se incorpora nas estruturas sociais. Um ponto a destacar, que cada
tradio musical, cada cultura musical, cada maneira distinta de se fazer msica coletivamente
e individualmente, constitui-se em torno das necessidades de seus participantes se afirmarem,
explorarem e imprimirem o sentido musical mediatizado pelos relacionamentos construdos.
A abordagem de cunho socioeducacional, envolvendo as prticas musicais e o
processo pedaggico-musical, pressupe a interpretao e anlise dos diferentes contextos do
mundo social, intrnsecos e idiossincrticos dos atores sociais. A compreenso das prticas
musicais, enquanto articulaes socioculturais permeadas de formas e contedos simblicos,
se refletem no fluxo e refluxo da organizao social e no modo de ser dos respectivos grupos.
Trata-se, portanto, da construo e reconstruo das identidades sociais e culturais desses
grupos.
Kraemer (2000) centraliza suas reflexes sobre a problemtica da pesquisa
pedaggico-musical, questionando a dificuldade de se construir uma teoria para esta rea
devido s diferentes idias de como se pode executar uma pesquisa. Um ponto central no seu
pensamento a compreenso de que pedagogia da msica trata da relao entre pessoa(s) e
msica(s) e o processo de apropriao e transmisso das msicas (KRAEMER, 2000, p. 51).
Tal compreenso justifica a argumentao de que esse campo abrange os diferentes espaos
em que acontece as prticas musical, educacional, formal ou informal, intencional ou
ocasional, e, por isso, as aes educativas permeiam todos os segmentos sociais. A partir
dessa perspectiva o autor levanta a seguinte questo: que dimenses e funes o
conhecimento musical pode abranger?
O autor argumenta que a pedagogia da msica, ao tratar de relao pessoas e
msicas, j encaminha o campo para uma interao entre as disciplinas das cincias humanas:
filosofia, antropologia, pedagogia, sociologia, cincias polticas, histria. Ainda, ao tratar da
musica como um objeto esttico estabelece uma relao com a musicologia, a prtica musical
e a vida musical.
present are involved, and for which all those present bear a responsibility. It isn't just a matter of composers, or
even performers, actively doing something for the passive rest of us to contemplate. Whatever it is that is being
done, we are all doing it together. When we use the verb we take into account the whole event, not just what the
performers are doing, and certainly not just the work that is being played. We acknowledge that a musical
performance is an encounter between human beings in which meanings are being generated. As with all human
encounters it takes place in a physical and a social space, and that space also has to be taken into account as well
when we ask what meanings are being generated in a performance.
32
cientfica sobre a pedagogia da msica, h que considerar a interseco entre as reas afetas a
este objeto.
Para o autor os aspectos histricos ocupam-se dos acontecimentos que so
reconstrudas a partir das contribuies humanas e do material disponvel, o qual processado
por uma anlise e interpretao crtica. Ter, portanto, sempre uma carga de subjetividade. A
pesquisa e a escrita histrica abrange: histrias das dias, vida biogrfica, real e social,
histria das condies institucionais e scio-econmica. A pedagogia histrica relaciona-se ao
tratamento, anlise, interpretao e edio de histrias educacionais. encontra-se no mbito
da investigao de idias pedaggico-musicais.
A pedagogia da msica e a musicologia esto relacionadas entre si no que concerne
questo da apropriao e transmisso da msica, o que pressupe reflexes e estudos de
caracterstica simbitica: por um lado a pesquisa musicolgica trata da anlise e interpretao
global de eventos musicais, que resulta no contedo musical; por outro lado, a pedagogia da
msica est interessada tem o foco no sujeito em processo de desenvolvimento no que
concerne ao processo de ensino e aprendizagem.
A sociologia, segundo Kraemer (2000) observa os homens e tenta compreender as
coisas humanas. Sua meta tentar compreender o comportamento do homem em relao s
influncias, instituies e grupos sociais. Neste mbito, esto questes relacionadas tantos aos
processos coletivos inerentes dinmica de uma sociedade como a cultura e seus
imbricamentos, as prticas scio-polticas-econmicas bem como os processos individuais,
quer seja de grupos determinados ou as idiossincrasias. A sociologia da msica ocupa-se de
examinar essas dimenses relacionadas prtica e produo musicais e seus desdobramentos
e efeitos na prpria sociedade. Nessa abordagem, questes relacionadas ao lazer, s
preferncias musicais, aos valores culturais implcitos nos rituais, festas, nas produes
musicais das diferentes ordens so considerados para a produo do conhecimento
pedaggico-musical
Uma vez que a pedagogia se ocupa de entender como o homem adquire
conhecimento levando em conta a dimenso social, o autor chama ateno para os campos de
problemas pedaggicos musicais considerados relevantes. A socializao musical, processo
no qual os indivduos desenvolvem-se musicalmente, diz respeito aos processos relacionados
interao da msica, sua disseminao, seus gneros e etilos, sua relao com a identidade
de grupos sociais. Kraemer destaca, ainda, que as posies e convices polticas influenciam
na definio de objetivos e concepo de educao musical direcionando a forma e contedo
musicais, metodologias e valores socioculturais.
34
A cada uma dessas reas cabe caractersticas prprias que determinam o foco no
objeto de estudo. A partir dessa clareza, pode acontecer a flexibilizao das fronteiras entre as
reas. No caso da msica e, mais especificamente, da pedagogia da msica, esto em foco a
prpria msica, sua forma de transmisso e apropriao, o desenvolvimento da personalidade
humana e da identidade dos grupos sociais mediante a relao com a msica, incidindo na
interseco com as disciplinas das Cincias Humanas.
Neste aspecto Lucas (1995, p.14) chama a ateno para o que denomina interface
cooperativa ressaltando o aspecto interdisciplinar entre a educao musical e outras rea do
conhecimento quando se trata de pesquisas que envolvem o estudo dos processos cognitivos
com interface com os processos socioculturaias. Sobre o papel da etnomusicologia, Lucas
(1995) ressalta que as duas reas vm se dedicando, a partir de uma abordagem mais
contempornea, a pesquisas com essa caracterstica:
Por sua vez, Kraemer (2000) provoca a rea de educao musical, chamando a
ateno para a necessidade dos educadores musicais assumirem a responsabilidade de colocar
a disposio no apenas o conhecimento sobre fatos e contexto, mas tambm, princpios de
explicao, ajuda de deciso e orientao, para esclarecimento, para influncia e otimizao
da prtica msico-educacional. Para tanto destaca as tarefas da pedagogia da msica,
juntamente com a aquisio do conhecimento: compreender e interpretar, descrever e
esclarecer, conscientizar e transformar a realidade social.
9
Este texto foi tema de um seminrio cursado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO) na
disciplina de Etnomusicologia, ministrada pela professora Dra. Elizabeth Travassos, por ocasio do meu
Doutorado Sanduche realizado em 2004.
37
produzem som e do fazer sonoro? (FELD, 1984, p. 383, traduo nossa)10. O autor esclarece
que a base de sua anlise qualitativa e derivada de um determinado local de pesquisa,
delimitado no tempo e espao.
Feld (1984) considera, em profundidade, as dimenses culturais da realidade
cotidiana sociomusical para sua anlise e prope seis reas de questionamento na msica
como fato social total e no mbito da vida social dos sons organizados: competncia, forma,
performance, meio ambiente, teoria, valor e igualdade. Cada rea abre-se para outras questes
que se ancoram no princpio de estruturas sonoras como socialmente estruturadas,
organizaes sonoras como socialmente organizadas e significados dos sons como
socialmente significativos11 (FELD, 1984, p. 386, traduo nossa). As formas de
engajamento na ao simblica so continuamente construdas e moldadas pelas percepes
dos atores sociais. Feld (1984) argumenta que se podem encontrar muitas formas musicais
similares nas sociedades com variao na complexidade social, mesmo considerando a
diversidade de significados e identidades dos diferentes grupos sociais.
J Gonalves (2003), realizou uma etnografia e fez uma anlise dos projetos sociais
desenvolvidos na Vila Olmpica da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, concebida por
membros da Escola de Samba Estao Primeira de Mangueira com o objetivo de oferecer
diferentes atividades socioeducativa-culturais para as crianas e jovens do morro da
Mangueira.
Gonalves (2003, p.57) destaca na pesquisa a trajetria da recreao ao ingresso no
campo das polticas sociais, abordando sua esfera social e enfatizando as redes de relaes
sociais. Neste contexto concebe e analisa o samba como um fato social total, amparada por
Mauss (2003), visto como um bem que circula a servio do lao social, cimento que liga as
pessoas em grande circuito de solidariedade e reciprocidade (GONALVES, 2003, p. 49).
Ao entender o samba dessa forma, Gonalves amplia suas possibilidades de elaborar conexes
em sua anlise estabelecendo uma lgica de rede na circulao de bens materiais e
simblicos, de servios, de idias e palavras onde o samba e a escola de samba tm o papel
de reforo do lao social na constituio das redes de reciprocidade.
Seus pressupostos tericos se baseiam na teoria da reciprocidade moderna e na
sociologia das configuraes, ambas prximas por apresentarem avanos na discusso sobre
10
1) What are the major ways that the classless and generally egalitarian features of one small-scale society
reveal themselves in the structure of organized sounds? 2) What are the major ways that these same features
reveal themselves in the social organizations and ideology of sound makers and soundmaking?
11
Structures as socially structured, sound organizations as socially organized, meanings of sound as socially
meaningful
38
folclrica, country, msica negra, msica dos movimentos dos anos 60 e a msica do
movimento progressista sueco. Segundo Flacks (1998), esta publicao est entre as primeiras
conexes entre sociologia poltica, movimentos sociais e teoria cultural onde a nfase no
significado cultural dos movimentos sociais remete-se s interpretaes sociolgicas de suas
fontes e significados.
A idia do livro surgiu em 1995, quando, em um final de semana, assistiam a uma
celebrao musical em Highlander Center (Tennesse, EUA) em memria de Ralph Rinzer.
Trata-se de um cantor e compositor ativista dos movimentos sociais dos anos 60 que defendia
os direitos humanos atravs de suas canes. Highlander Center uma das instituies que
reconhece o valor da msica como movimento social. Os autores perceberam e sentiram,
naquele contexto, como canes poderiam conjugar movimentos sociais quase perdidos no
tempo e como a msica poderia ser um importante veculo de difuso de idias de
movimentos em uma cultura.
Para os autores, os movimentos como em Highlander, desde 1930, providenciaram
espaos para o crescimento cultural e para a experimentao, misturando msica e outros
gneros artsticos e, tambm, para a infuso de novos tipos de significados na msica. Como
resultado dos movimentos dos anos 60, a influncia da msica na poltica trouxe baila a
cultura popular. A partir disso muitos movimentos musicais como Bluesgrass, gospel, folk,
jazz , rock, tm sido substancialmente reconstitudo.
O processo central tratado nessa obra denominado por eles como a mobilizao da
tradio, em que nos movimentos sociais, seja musical ou outros tipos de tradio cultural,
so feitos e refeitos reportando-se aos valores e memria das pessoas, tornando-se, tambm,
um importante inspirador para novas mobilizaes sociais que esto permeadas de cunho
poltico.
Eyerman e Jamison (1998), como outros historiadores musicais e culturais,
entendem que o movimento dos anos 60 foi apoltico e conduziu os jovens para a msica
folclrica e depois ao rock. Para os autores esta perspectiva perde a importante conexo entre
cultura e poltica que continua representando os anos 60 na conscincia popular. Para eles,
esse movimento defendia os direitos civis, o movimento estudantil contra guerra, poltica,
portanto. Mas a questo central, naquele momento, foi o projeto visionrio e coletivo dos
direitos civis dos estudantes, movimentos anti-guerra que compunham todos um programa de
liberao cultural e poltica incluindo: democracia, polticas personalizadas, integrao e
equanimidade racial e respeito a outras culturas.
40
Como prxis cognitiva, a msica e outras formas de atividade cultural contribui para
as idias que os movimentos oferecem e criam uma oposio na ordem j estabelecida na
sociedade. Talvez mais eficiente do que outras formas de expresso, a msica remeta-se a
significados intrnsecos e extrnsecos do ser humano. Nos movimentos sociais, mesmo a
produo de massa na msica popular pode ser tomada como coordenada ou referncia
significante. Os autores fazem referncia ao contexto do movimento social na dcada de 60,
em que o rock, inspirado na msica folclrica americana, tornou-se fonte de conhecimento
sobre aquele mundo e lugar para milhes de jovens do globo. E foi o movimento social que
fez este contexto possvel e no somente a msica per se.
Eyerman e Jamison (1998, p. 173) ressaltam que msica, vista pelo aspecto da prxis
cognitiva dos movimentos sociais, tem sido um recurso na transformao da cultura no nvel
existencial e fundamental, contribuindo para a reconstituio das estruturas dos sentimentos,
dos cdigos cognitivos e dos atos coletivos que so cultura13. Compreender as aes,
percepes e prticas dos processos sociomusicais presentes nas duas ONGs selecionadas
para esta investigao resultou em um debruar sobre possveis conexes que emergiram de
diferentes contextos sobrepostos. Dessa forma, a partir dessas referncias, foi construda a
fundamentao terica e metodolgica da presente pesquisa, amparada por autores que
consideram o fazer musical como fruto das interaes sociocultural no contexto do cotidiano.
[...] um esforo para entender situaes, nas suas singularidades, como parte de um
determinado contexto e as interaes que ali acontecem. Esse entendimento um
fim em si, de modo que no uma tentativa de predizer o que pode,
necessariamente, acontecer no futuro, mas entender a natureza do contexto o que
significa para os participantes estar nele, como so suas vidas, o que acontece para
eles, quais so seus significados, como o mundo se apresenta nesse contexto
especfico e na anlise ser capaz de comunicar, fielmente, para aqueles que esto
interessados nesse contexto...A anlise empenha-se em aprofundar o
entendimento14. (PATTON, 1985 apud MERRIAM, 1998, p. 6; traduo nossa).
13
[...] music, as an aspect of the cognitive praxis of social movements, has been a resource in the transformation
of culture at this fundamental, existential level, helping reconstitute the structure of feeling, the cognitive codes,
and the collective dispositions to act, that are culture.
14
[Qualitative research]...is an effort to understand situations in their uniqueness as part of a particular context
and the interactions there. This understanding is an end in itself, so that it is not attempting to predict what may
happen in the future necessarily, but to understand the nature of setting what it means for the participants to be
in the setting, what their lives are like, whats going on for them, what their meaning are, what the world looks
47
like in that particular setting and in the analysis to be able to communicate that faithfully to others who are
interested in that setting The analysis strives for depth of understanding.
48
para anlise, e resultados que so ricamente descritivos (MERRIAM, 1998, p. 11, grifo no
original)15.
Cuesta Benjumea (2003) invoca o interacionismo simblico no qual a reflexo
embasa o desenvolvimento do self conduzindo o processo intersubjetivo em que o
pesquisador passa a ser tambm um ator no processo de construo do conhecimento, fruto de
sua investigao. Sob esta tica, o pesquisador se torna um instrumento para obter
informaes, analisar e compreender a experincia do outro e, assim, encontrar desafios que
dever converter em oportunidades ao desenvolver o estudo. Ainda, o pesquisador qualitativo
descrito como um bricoleur, para indicar que pesquisar um ato criativo no qual se
selecionam materiais e cria-se um estudo. Como afirma Ray (2003, p. 147) dado que somos
seres humanos, possvel compreender como ser um ser humano. A reflexo vista dessa
forma, implica que investigar no aplicar simples procedimentos ou seguir indicaes
tericas, mas um ato interpretativo, produto da interao com o mundo social.
O processo interpretativo, nessa abordagem, conduz o pesquisador a uma relao
ntima com o tema e com seus informantes ou atores da pesquisa ensejando um envolvimento
com o mundo social desses. Isso significa entender o pesquisador historicamente situado o
que confere a ele uma condio apropriada para compreender, com mais profundidade, certos
fenmenos humanos. Significa, ainda, que sua histria de vida e sua perspectiva reflexiva
condicionam o que pergunta, como pergunta e o como interpreta os fatos. Assim, o
pesquisador ocupa uma posio e observa de um ngulo particular. Os imbricamentos no so
apenas de carter social, ou seja, as relaes com os outros, mas tambm subjetivo na
capacidade de compreender a experincia do outro. O pesquisador no est acima do mundo
social que estuda, mas imerso nele seja por familiaridade ou estranhamento, conhecimento ou
desconhecimento, comprometimento ou ausncia, no h neutralidade (CUESTA
BENJUEMA, 2003).
15
the goal of eliciting understanding and meaning, the researchers as primary instrument of data collections
and analysis, the use of fieldwork, an inductive orientation to analysis, and findings that are richly descriptive.
49
pesquisador desenha suas concluses, a partir da interpretao, entendida por Fred Ericson,
citado por Stake (1995, p. 9) como asseres, uma forma de generalizao, ou seja, possvel
projetar aspectos do mundo microssocial para o macro. Entretanto, Stake (1995) chama a
ateno para que no se incorra no erro de se construir asseres sobre uma base de dados
relativamente pequena, invocando o privilgio da interpretao. Um estudo de caso
paciente, reflexivo, desejando-se ver outra perspectiva do campo de estudo.
Para Stake (1995, p. xi), estuda-se um caso particular quando ele nos especialmente
interessante, com particularidades e especificidades singulares instigando-nos a buscar a
compreenso do objeto, suas interconexes intrnsecas e extrnsecas. Stake (1995) destaca,
ainda, que o design de toda pesquisa requer uma organizao conceitual, idias para
expressar entendimentos necessrios, pontes conceituais a partir do que j conhecido,
estruturas cognitivas para encaminhar a coleta de dados e delineamentos para apresentar
interpretaes aos outros (p. 15).16
A dimenso emprica desta pesquisa, no campo da educao musical foi tratada a
partir dos argumentos de Bastian (2000, p. 84) que entende que os problemas da pesquisa
pedaggico-musical devem ser orientados na prtica. Este autor prope que questes sobre a
cultura musical jovem e preferncias musicais, estilos de ensinar e aprender; formas de
tratamento e vivncias culturais; registro de variveis no cognitivas (emocionais, sociais e
motivacionais de aproveitamento, de clima de aula de msica) devem ser tratadas a partir de
sua dimenso prtica, como objeto de uma pesquisa educacional (BASTIAN, 2000, p. 85).
Em consonncia com Bastian associei as concepes tericas da etnometodologia e da
sociologia etnometodolgica ao percurso de construo das informaes da pesquisa.
Dessa forma o desenho metodolgico dessa pesquisa se alinha com um trabalho que
se prope a ir para o campo prevendo que novas questes pudero ser levantadas, inclusive
para revigorar a teoria dentro da rea especfica. A opo por uma abordagem sociocultural
justifica-se uma vez que o tema relaciona o processo pedaggico-musical com a dinmica de
grupos sociais urbanos, a construo de suas estruturas materiais e simblicas e,
conseqentemente, com a construo de suas identidades mediante o foco nas prticas
musicais. A anlise interpretativa considera a coleta e descrio dos dados como arsenais para
se desenvolver categorias conceituais para a anlise relacionada com a fundamentao terica
da pesquisa.
16
The design of all research requires conceptual organizations, ideas to express needed understanding,
conceptual bridges from what is already known, cognitive structures to guide data gathering, and outlines for
presenting interpretations to other.
51
17
Ethnomethodology standing task is to examine social facts, just in every and any actual case asking for each
thing, what makes it accountably just what that social fact is?
52
Os primeiros contatos com as duas ONGs foram profcuos com uma receptividade
positiva para a realizao da pesquisa de campo. Primeiramente, via telefone e,
posteriormente, presencialmente, pude formalizar a permisso para a realizao da pesquisa e,
ento, iniciar um planejamento das inseres, considerando que se tratava de duas cidades
distintas e que a coleta exigiria uma permanncia prolongada em cada instituio.
Paralelo pesquisa de campo, freqentei seminrios, encontros e palestras que
tratavam de temas correlatos a projetos sociais relacionados perspectiva socioeducativa,
alm de estabelecer relaes pessoais que contriburam significativamente para a
compreenso do contexto macro das ONGs. preciso destacar que contei com pessoas das
prprias ONGs que colaboraram no incio de cada insero.
1. O cenrio fsico: Como e o que ? Que tipos de comportamentos so designados para esse espao? Como
o cenrio organizado? Que tipo de recursos, objetos, tecnologia existe?
2. Os participantes: quem est em cena, quantos, e seus papis? O que faz a convergncia dessas pessoas?
Quem permitido ali? Quem no est que poderia estar? Quais as caractersticas relevantes dos
participantes?
3. Atividades e interaes: quem faz a atividades? H uma seqncia definida? Como as pessoas interagem
com as atividades e umas com as outras? Como as pessoas e as atividades so relacionadas ou
interconectadas do ponto de vista dos participantes ou do ponto de vista da perspectiva do pesquisador?
Quais normas ou regras estruturam as atividades e relaes? Quando as atividades comeam? Quanto tempo
dura? uma atividade usual ou atpica?
4. Conversao: qual o contedo das conversas no contexto? Quem fala com quem? Quem ouve? Anote
silncios e comportamentos no verbais que adicionam significados? importante ter possibilidade de fazer
registros em udio e vdeo para voltar as suas anotaes.
5. Fatos sutis: menos bvio, mas, talvez, importantes de serem observados so:
a. Atividades informais e no planejadas
b. Significados simblicos e conotativos das palavras
c. Comunicao no verbal como roupas e espao fsico
d. Medidas inoportunas como pistas fsicas
e. O que no acontece?, especialmente se deveria acontecer
6. Meu prprio comportamento: Sou to parte da cena como os participantes. Qual o meu papel como
ntima participante ou como uma observadora, afeto a cena que estou observando? Acrescentando, quais
pensamentos tenho tido sobre o que est acontecendo? Estes se tornaro partes importantes do comentrio
das notas de campo.
A partir dessas questes iniciei meu trabalho de campo, ainda que naquele momento
no havia clareza do recorte a ser feito em relao aos participantes da pesquisa, considerando
as diversas atividades das ONGs, os diferentes nveis de aprendizado dos alunos, e, sobretudo,
o meu desconhecimento de como funcionava concretamente a dinmica das aulas, como se
estabelecia as relaes entre as pessoas, quais os horrios de atividades.
Alm das observaes, inclu o registro de entrevistas, depoimentos, bate-papos,
cenas de apresentaes e ensaios musicais. Esses registros foram gravados em vdeo com uma
Cmara Sony digital; a gravao udio em Mini Disk MD, tambm digital e as fotos em
Cmera Sony digital. Tinha idia de fazer um registro sonoro e visual de boa qualidade para
servir de base para a anlise e, se possvel, confeccionar um CD. No queria perder a
oportunidade de fazer uma coleta de sons e imagens o mais adequada possvel das
observaes em campo. Nesse sentido, no incio da coleta no Rio, contei com o apoio dos
coordenadores da ONG Ns do Cinema sediada no Rio de Janeiro que me forneceram
orientaes prticas e concepes bsicas de como lidar com os equipamentos e realizar
registros em vdeo.
Desta forma, o registro da coleta de informaes contou com o Caderno de Campo,
em que eu anotava todas os aspectos que considerava importantes, impresses, falas soltas,
58
foi percebido tanto mediante minhas observaes, como explicitadas nas narrativas dos
participantes da pesquisa.
2.3.1.2 AS TRANSCRIES
supremacia cognitiva da escrita sobre a fala j foi superado (MARCUSCHI, 2004, p. 47-48).
Dessa forma, todo o processo buscou no interferir na natureza do discurso produzido do
ponto de vista da linguagem e do contedo, procedendo a uma editorao cognitiva,
eliminando minimamente, quando necessrio para a compreenso do texto, autocorrees,
auto-repeties, elipses e disflunicas do falante. (MARCUSCHI, 2004, p. 56).
O texto final das entrevistas foi disponibilizado para todos os participantes da
pesquisa realizarem a leitura, revises e modificaes que considerassem necessrias.
Juntamente com o texto da entrevista foi anexada a carta de cesso (Apndice C), onde o
participante assinou a autorizao e, tambm, indicou a forma que preferia ser citado na
pesquisa. Com exceo de um participante de uma das ONGs, os outros entrevistados
indicaram, no documento, a opo de serem citados por seus nomes reais ou seus apelidos,
denotando que suas identidades poderiam se tornar pblicas e associadas s suas falas.
O conjunto das entrevistas constituiu-se uma fonte de anlise para a compreenso do
processo pedaggico-musical. E, ressalta-se que uma caracterstica muito prpria desse
material que ele todo permeado por performances musicais.
O termo performance vem sendo utilizado no Brasil em seu vocabulrio cotidiano
invocando mltiplos sentidos. Neste caso, o termo est ligado ao ato de fazer msica nas mais
diversas possibilidades que essa ao se faz presente nas atividades humanas. Conforme
justifica Lucas (2005), a fora do uso corrente do termo performanceem portugus e em
outras lnguas latinas como o espanhol, italiano e o francs, gerando inclusive neologismo
como performero, em espanhol, ou o verbo performatizare o adjetivo performtico, em
portugus o termo usado nesse estudo sem o recurso itlico. (LUCAS, 2005, p. 11).
Os entrevistados, quando contavam sobre seus processos de apreender a msica,
falavam e tocavam para exemplificar. Assim, os arquivos em udio, constituram-se em uma
fonte de repertrio e de demonstraes musicais de como eles fazem msica.
Todo esse material serviu de base para se poder rever, ouvir novamente, analisar e
interpretar aspectos relevantes associados ao processo pedaggico-musical nos diferentes
contextos em que os participantes da pesquisa faziam msica. Os registros musicais se
constituram em um acervo de repertrio em que, mesmo no sendo o objetivo central dessa
pesquisa, se pode observar os aspectos estticos, estilsticos e tcnicos utilizados pelos alunos
e professores nas suas performances.
61
18
H 35 anos atua no campo das ONGs e da sociedade civil organizada, com o propsito de promover o
desenvolvimento com justia social e responsabilidade ambiental. Com sede na cidade do Rio de Janeiro,
estende suas aes, tambm, em outros estados. Realizou pesquisas no campo social, da religio e do meio
ambiente que se tornaram referncias, angariando para a instituio prestgio nacional e internacional. Os
parceiros mais freqentes do ISER so outras ONGs, governos locais, universidades, agncias de
desenvolvimento e igrejas com orientao ecumnica. Seu trabalho voltado para quatro reas de competncia:
Fortalecimento da Sociedade Civil; Violncia Urbana, Segurana Pblica e Direitos Humanos; Meio Ambiente e
Desenvolvimento e Religio e Sociedade. <http://www.iser.org.br>
64
uma observao participante. Meu papel como pesquisadora se concentrou mais na categoria
de observadora (MERRIAM, 1998, p. 101, cujas atividades so sabidas pelo grupo sendo que
participar secundrio na operao de coleta das informaes.
No ms de maro de 2004, iniciei a ltima fase de minha insero no PVL, na Casa
da Gvea, local em que aconteciam as aulas de msica, ensaios, atividades complementares e
a administrao burocrtica da ONG. Priorizei, nesse incio, conhecer aspectos do Projeto que
me indicassem os possveis recortes, estratgias metodolgicas adequadas, encaminhamentos
que me facilitassem a observao em campo e o estreitamento das relaes com os
informantes para a coleta de dados. Tive livre acesso s atividades ali desenvolvidas, com o
apoio de Rodrigo Belchior, coodendor pedaggico, que se tornou meu aliado nos processos
que tive para construir os dados da pesquisa, informando-me sobre todas as questes que eu
perguntava, incluindo-me na programao das apresentaes como acompanhante e
apresentando-me para a rede de conexes de projetos sociais que interagiam com o PVL.
O apoio de Rodrigo me propiciou que eu transitasse pelos diferentes espaos,
externos, mas ligados ao Projeto como: visitas s casas dos alunos e roda de choro no Morro
Santa Marta, Escola da Msica da Rocinha, Projeto da Grota do Surucucu (Niteri), salas de
concertos, bares noturnos. As atividades foram as mais variadas: aulas, ensaios, entrevistas,
bate papos, apresentaes e reunies, resultando em 120 horas de trabalho em campo com
vrios momentos registrados em udio, vdeo e anotaes no Caderno de Campo, como j foi
mencionado. Participei, em dezembro de 2004, da formatura dos alunos formandos/2004,
como pianista, acompanhando-os em obras camersticas. Tal situao propiciou um maior
estreitamento em nossas relaes, pois nos ensaios para preparar a apresentao tivemos
momentos importantes em que conversamos sobre vrios assuntos e, tambm, decidimos
juntos a concepo das obras que tocamos. Todos esses contextos contriburam para que eu
construsse uma noo da dinmica pedaggica do PVL e, tambm, ampliasse minha
percepo de como funcionam os projetos sociais no Rio de Janeiro.
No incio dessa etapa, assisti a quase todas as aulas para conhecer os alunos e os
professores. Fui me familiarizando com o repertrio musical e nesse processo constru
65
relaes que implicaram exercitar o olhar e perceber o outro na sua subjetividade. Essa
convivncia foi, ainda, me fornecendo ferramentas da gramtica e da linguagem necessria
para que eu estabelecesse uma comunicao fluente entre os alunos e os professores para,
ento, proceder ao recorte dos participantes da pesquisa, considerando os pressupostos da
etnometodologia. Isso foi possvel mediante uma convivncia cotidiana permeada pelo
compartilhar situaes de vrias naturezas que no se restringiam ao aspecto do ensino e
aprendizagem musical.
Assim, pude ir identificando qual seria o perfil dos participantes que poderiam
responder s questes da pesquisa. A partir desses pressupostos o recorte delimitou-se nos
alunos formandos de 2004 e nos dois grupos instrumentais Choro e MPB constitudos no
Projeto. Tal opo ancora-se no fato de que esses alunos estavam concluindo os trs anos de
curso e experienciado quase todo ciclo proposto para o curso e poderiam falar a partir de uma
vivncia mais sistmica do processo pedaggico. E, quanto aos dois grupos, considerei a
diversidade de alunos em diferentes aspectos, uma vez que os mesmos eram compostos por
alunos egressos, alunos em diferentes estgios no curso, tocando os mais diversos
instrumentos e repertrios, origem de moradia, diferentes religies e idade. Dessa forma, essa
diversidade pode ser justificada pela prpria natureza do grupo, no recaindo sobre o acaso ou
sobre a minha prpria arbitrariedade. Os participantes da pesquisa foram classificados de
acordo com o papel de cada um na ONG. O Quadro 2 sintetiza a delimitao desse recorte,
com seus respectivos grupos e nomes.
66
2.3.2.4 AS ENTREVISTAS
da conversa seja determinado pelo seu prprio fluxo. Isso exige do pesquisador uma imerso
intensa no momento, catalisando todo o processo de interao desenvolvido anteriormente,
fruto de uma construo interpessoal que possa dar ao entrevistado um grau de confiana e
descontrao para que a conversa flua e ele fale sobre sua vida e seus processo de entender o
mundo. Todas as entrevistas foram marcadas pelo prazer expresso dos entrevistados em estar
participando e construindo comigo os dados da pesquisa com generosa disponibilidade.
Cada depoimento constitui-se como um caleidoscpio revelando vrias dimenses
pessoais, com perspectivas projetadas para vrios aspectos como o coletivo, o institucional, o
normativo, o pedaggico, o tico, o poltico, enfim, trata-se de um material multidimensional.
Dessa forma, os depoimentos, entrevistas e bate-papos puderam sustentar o processo reflexivo
de anlise e interpretao de uma experincia compartilhada entre a pesquisadora e os
participantes da pesquisa revelando mais do que trajetrias particulares nas formas de elaborar
o mundo prprio porque os atores ao narrarem suas histrias contaram como foi aprender a
tarefa coletiva e compartilhada de construir, testar, manter, alterar, questionar e definir uma
ordem sociocultural como prope Garfinkel (1957), citado por Coulon (1995a).
funcionamento e as prticas musicais. Com esse pano de fundo, meu objetivo era, como
educadora musical, entender as prticas musicais, a relao das crianas e jovens com a
msica em um espao alternativo de aprendizagem musical. A coordenao da AMM se
mostrou receptiva para a realizao de pesquisas acadmicas na instituio, solicitando-me o
cronograma, a proposta metodolgica com especificaes sobre as estratgias, tipos de
entrevistas. Outra providncia institucional foi a elaborao do documento de consentimento
emitido pela UFGRS para a AMM, formalizando minha insero nesse campo de pesquisa.
Na primeira visita tive oportunidade de conhecer a estrutura fsica do espao. Pude
observar algumas aulas de percusso, de violo, de dana e conheci vrios professores,
monitores, alunos. Assisti ao ensaio da Banda Show, o grupo que congrega todos os
participantes da AMM.
Minha insero definitiva para coleta de dados se deu de agosto a dezembro de 2004.
Mudei-me para So Paulo e como a pesquisa de campo no se restringe ao campo espacial do
Projeto, procurei considerar, do ponto de vista metodolgico, todas as variveis que implicam
o acesso ao objeto de estudo. Assim, morar na cidade de So Paulo, a maior cidade brasileira,
dominar meus receios nos diversos aspectos, teve incidncia no desenvolvimento da pesquisa.
Ir para So Paulo, aprender seus cdigos tcitos de segurana, dirigir pelos caminhos
que me levassem ao local do Projeto, enfrentar o medo de se perder, foi sendo superado com o
apoio logstico que Flvio e Ligia me dispensaram durante a minha insero. Constru laos
com as pessoas da AMM que contriburam para minha permanncia durante o tempo
programado para a realizao da coleta, aprofundando cada vez mais minha percepo.
Durante os cinco meses de trabalho em campo percebi a importncia de estar l, in
loco, pois muitas das situaes importantes para responder s questes de pesquisa emergiam
de configuraes no programadas e se amalgamaram no aqui e agora, ensejando recortes e
refinando minha capacidade de captar as questes de fundo, as subjetividades. Senti que
minha capacidade de observao crtica tinha dado um salto de qualidade e aos poucos o self
da pesquisadora se delineava, mediante as escolhas, anlise e interpretao dos fatos.
separar e unir eventos de forma que comeassem a fazer sentido para as questes da pesquisa,
relacionadas ao processo pedaggico-musical. Fui me familiarizando com o repertrio, com a
linguagem dos participantes da pesquisa, estabelecendo relaes durante os momentos de
observao nas aulas, no ptio e espaos da ONG, convivendo com os alunos, professores e
funcionrios. Esse trnsito foi me abrindo fronteiras interpessoais para que eu tivesse critrios
claros para fazer o recorte necessrio para desenvolver a pesquisa.
Assim, pude ir identificando padres subjacentes a uma srie de aparncias, que
pudessem ser compreendidos mediante ao que accountable, isto , relatvel-observvel-
descritvel que remete a um sentido e, portanto, a um processo de interpretao (COULON,
1995a, p. 56). No caso da AMM, isso foi possvel aps dois meses em campo, quando realizei
a seleo dos participantes da pesquisa que seriam os mais indicados para responder s
questes que propus.
Dessa forma, foi o prprio campo que me indicou esse caminho e condicionou o que
observar e quem. Essa dinmica pode ser vista como um caminho tortuoso em que o
pesquisador se converte em um instrumento de re-coleta de dados e em sua interpretao e o
papel que adota definira a forma da parte do mundo social que estuda, assim como o tipo de
dados que obtm e sua interpretao (CUESTA BENJUMEA, 2003).
A reflexo vista dessa forma, implica que investigar no aplicar simples
procedimentos ou seguir indicaes tericas, mas um ato interpretativo, produto da
interao com o mundo social. E foi atravs da reflexo sobre as interaes sociais presentes
naquele contexto, do qual eu me considerei inserida, que realizei o recorte para observar e
entrevistar, especificamente, aquele grupo selecionado. No foco do processo pedaggico-
musical da ONG se destacava as atividades musicais de percusso, cujo carter se apresentou
eminentemente coletivo. Esses aspectos contaram para que eu pudesse construir os critrios
no quais me basearia para proceder ao recorte dos participantes da pesquisa. Dessa forma, o
critrio para essa seleo foi escolher professores, monitores, alunos e funcionrios que
estivessem ligados com atividade de percusso em nvel iniciante e intermedirio e
participassem da Banda Show, de preferncia desde seu incio.
Ser musicista foi um diferencial positivo da insero nesse contexto, pois tnhamos
um vocabulrio idiomtico e musical em comum que resultava em bate-papos que me
forneciam pistas importantes sobre as prticas musicais, aspectos da vida pessoal e
profissional dos integrantes que, no comeo, eu abordava ao acaso. Esse aspecto foi de
fundamental importncia na ltima fase da coleta quando pude observar as aulas especficas
dos monitores e professores selecionados como participantes da pesquisa. Inclusive, me
70
permitindo participar de sesses de prtica instrumental nas aulas, onde pude aprender com
eles, passando pelos processos de ensino e aprendizagem que eles conduziam.
As indagaes me levavam aos aros mais internos da ONG, nos diferentes contextos:
institucional, histrico, sociocultural e de ensino e aprendizagem musical. Ao ver, assistir s
aulas, ver os meninos e as meninas aprendendo, brincando no ptio, se achegando perto de
mim quando via a cmera fotogrfica ou a filmadora, curiosos e mostrando muita alegria por
estar ali era estimulante para mim. Tudo me fazia refletir e contribua para construir o
desenho metodolgico da pesquisa.
Ficava claro para o mim o carter emergente da pesquisa e que a construo da
persona da pesquisadora ia se desenvolvendo imerso nos mltiplos e sobrepostos processos
sociais aos quais eu estava vivenciando. Como ressalta Cuesta Benjumea (2003): Los
investigadores cualitativos reconocen su presencia, tratan de comprenderla y explicar sus
efectos... La reflexividad contribuye a la validez y desde el punto de vista del interaccionismo
simblico, el proceso reflexivo dota al investigador de un self indagador. Neste ponto eu
comeava a entender, na prtica, os pressupostos da etnometodologia, um dos baluartes que
me orientou para os procedimentos da coleta de dados no campo emprico.
Ao me sentir mais integrada, pude abordar os participantes da pesquisa com mais
naturalidade e, a cada dia, os sorrisos, olhares e acenos dos integrantes da AMM funcionavam
como cdigos que representavam o acolhimento e que me identificavam como uma pessoa
participante do cotidiano deles. Essa condio ampliou-me o ngulo para realizar os registros em
udio e vdeo, considerando que muitas situaes emergiam, como j mencionei, no aqui e agora,
no contexto mutatis mutandis prprio da caracterstica movedia das ONGs. Minha cmera e meu
microfone sempre ativados para registrar o que eu considerasse importante, a qualquer momento,
ficou incorporado na minha identidade de pesquisadora, no causando estranhamento aos
integrantes da ONG. Do ponto de vista metodolgico foi importante, pois se tratou de um
amadurecimento, uma vez que no incio da coleta eu no conseguia essa mobilidade.
2.3.3.4 AS ENTREVISTAS
19
Superar el mero collage de fragmentos de textos mezclados ad hoc implica que el investigador debe penetrar
en el complejo conjunto de smbolos que la gente usa para conferir significado a su mundo y vida, logrando una
descripcin lo suficientemente rica donde obtengan sentido.
73
Durante a coleta, fui construindo caminhos que me permitiu um trnsito livre pela
instituio o que me concedeu um significativo acesso a situaes bastante internas do
cotidiano da ONG. Pude, dessa forma, presenciar a encontros pessoais de Ligia Pimenta com
participantes para tratar de assuntos problemticos, entrar em sala de aula, a qualquer
momento, sem ter que agendar, assistir a ensaios e reuines com os pais dos participantes e
delegaes externas. Ligia reconhecia o meu papel de pesquisadora e construmos, mediante
conversas, depoimentos e reflexes, uma relao que resultou em um significativo diferencial
na qualidade do material coletado. Em nosso ltimo encontro, gravado, ela expressou como
percebia esse material que eu tinha nas mos, elaborando uma anlise do processo
metodolgico historicamente localizado:
O Projeto Villa Lobinhos (PVL) foi iniciado em 2000 como uma das aes ligada
ONG Viva Rio. A instituio VIVA RIO uma associao civil, sem fins lucrativos,
filantrpica, de carter assistencial, social e cultural. Seu objetivo valorizar positivamente a
imagem do Rio de Janeiro e do Pas interna e externamente. Segundo texto disponibilizado
em site, a ONG Viva Rio:
O PVL tem por objetivo promover a educao musical com a perspectiva artstica,
cultural e tcnica para adolescentes, entre 12 e 20 anos, residentes em diversas comunidades
da periferia urbana e favelas do Rio de Janeiro. O Projeto oferece uma formao musical por
meio de aulas sistemticas, com uma proposta curricular modulvel, com vistas
profissionalizao desses jovens como msicos.
O Projeto tem a direo geral do violonista Turbio Santos, a coordenao
pedaggica do flautista e educador musical Rodrigo Belchior e superviso logstica de Greyce
Pimentel. A administrao das questes jurdicas e burocrticas so responsabilidades da
ONG Viva Rio, com o apoio do Instituto Moreira Salles e do Museu Villa-Lobos, alm do
patrocnio de amigos do projeto, denominados de padrinhos e madrinhas dispostos a
adotar os jovens. Desta forma o PVL financiado pelo mecenato privado de pessoas fsicas
que investem em projetos culturais e educacionais alm de uma verba doada pessoalmente por
Joo Salles, o idealizador do Projeto, juntamente com seu filho Joo Moreira Salles e o
presidente da ONG Viva Rio, Rubem Cesar Fernandes.
76
Tem um garoto que era pivete de rua, abandonado completamente, sem um parente
no planeta terra, entende? Tem o outro que pobrezinho, mora l no ltimo subrbio
do Rio de Janeiro, mas tem famlia constituda, certinha, no tem dinheiro, entende?
Ento de repente, esses dois, so dois garotos diferentes, voc tem que moldar a
escola segundo eles, pra que eles realmente levem resultados...(CEVL_2, p. 8,
Turbio Santos, diretor geral, 02/06/2004).
O PVL localiza-se na
Rua Marques de So Vicente, n.
508, na Gvea. Trata-se da antiga
residncia da famlia Moreira
Salles que foi cedida para as
atividades do Projeto. A Casa da
Gvea (CG) como todos a
denomina, fica escondida por
78
muros altos e os portes s abrem aps o acesso eletrnico. Trata-se de uma casa grande, de
arquitetura arrojada, marcando um estilo de viver com espao e conforto, que foi adaptada
para as atividades do Projeto. Possui seis cmodos espaosos: quatro quartos, uma grande sala
em trs ambientes, cozinha, terrao, piscina, churrasqueira e trs banheiros. toda ajardinada
e se constitui em um ambiente bastante aconchegante e agradvel.
O fato da CG se localizar na Gvea, um bairro de classe alta na cidade do Rio de
Janeiro, pode ser emblemtico pois est edificada ao lado da Favela da Rocinha, uma das
maiores da cidade, representando concretamente a convivncia com a desigualdade social. A
proximidade de dois bairros marcada por um ndice de Desenvolvimento Humano (IDH)
dos mais discrepantes da cidade. Ao lado da CG encontra-se instalado o Instituo Moreira
Salles, um complexo cultural de alto padro que oferece atividades de cinema, museu de
fotografia, banco de dados da obra completa de Pixinguinha, entre outros acervos de arte e
cultura de excelente nvel editorial e artstico.
Todos os cmodos da casa foram adaptados para as aulas: lousas com pentagrama
nas paredes, vrios instrumentos de percusso, uma mini-biblioteca e alguns pianos. uma
estrutura fsica que comporta o nmero de alunos, em torno de 27, como prope o Projeto,
mas tem uma grande sala para atender aos quarenta integrantes da Orquestra Villa Lobinhos.
As salas so equipadas com instrumentos musicais utilizados para as aulas. A sala
maior dividida em dois ambientes, com aproximadamente 50 m2; tem um piano de meia
cauda, marca Petroff, e o local onde se ministram as aulas em grupo como percepo,
ensaios da Orquestra Villa Lobinhos, ensaios dos grupos instrumentais e as apresentaes
musicais internas. Em outro cmodo encontram-se duas baterias e os instrumentos de
percusso como pandeiros, tan-tan, tringulos, afox, cuca, atabaques, entre outros. Na sala
de administrao esto dispostos dois computadores com programas musicais instalados para
os alunos utilizarem, uma biblioteca com publicaes sobre histria da msica, partituras e
CDs. Tem tambm uma TV 20 polegadas com vdeo e DVD e aparelho de som. Uma outra
sala, com dois pianos de armrio disponveis, utilizada para aulas de flauta transversal,
violino, clarineta e saxofone.
O espao constitui um fator determinante na dinmica das aulas e dos encontros, pois
no h tratamento acstico, ouve-se sons sobrepostos quando acontece mais de uma aula, ao
mesmo tempo. Tambm, promove um maior cruzamento das pessoas que integram o Projeto,
favorecendo uma aproximao fsica, bate-papos e encontros musicais inesperados.
79
...a msica cria ambiente para a convivncia e a convivncia cria ambiente para mais
msica. um ciclo. Isso acontece muito l no Villa Lobinhos e voc deve ter visto
que eles mesmos criaram grupos...Grupo de choro, grupo de... e agora esto at
criando um grupo de jazz, de metal... (CEVL_2, p. 18-19, Turbio Santos, diretor
geral, 30/06/2004).
80
O PVL trata-se de um projeto social que possui uma autonomia no que concerne a
sua gesto acadmica, financeira e logstica mas, sua natureza jurdica est ancorada nas bases
legais e estaturias da ONG Viva Rio. Joo Moreira Salles, membro do Conselho do PVL,
esclarece:
No uma ONG, um projeto abrigado dentro de uma ONG, quer dizer, quem
administra o projeto o Viva Rio. No um projeto do Viva Rio, um projeto que
nasce de uma conversa minha com o Rubem Csar, um projeto que se chama Villa
Lobinhos e que precisa ser administrado por algum. O que significa administrar?
Gesto de recursos, pamento de vale transporte, funcionamento da casa, tudo isso. O
dia-a-dia do projeto gerido pelo Viva Rio. Ento, ele um projeto que est
aninhado dentro de uma ONG, mas ele no em si uma ONG (Joo Moreira Salles,
entrevista em 01/10/2005).
Eu digo pessoal porque ele no queria que fosse uma contribuio atravs de pessoa
jurdica, do banco ou de qualquer empresa que ele tivesse, ele queria que fosse uma
contribuio pessoal em nome dele. Por que isso? Porque ele achava que havia essa
idia que ele considerava equivocada de que no Brasil as pessoas, digamos a elite
financeira brasileira, a elite econmica brasileira, no tem um compromisso com o
pas etc e tal, e de fato isso verdade...e para tanto papai resolveu fazer um gesto
que na poca era de um valor muito importante. (Joo Moreira Salles, entrevista em
01/10/2005)
toca guitarra, violo, instrumentos de percusso, canta, revelando uma versatilidade musical.
Para Rodrigo, administrar o Villa-Lobinhos como administrar um time:
Estou tendo contato com um time que, no s de professores, mas como tambm
de alunos, monitores. Temos monitores dentro do projeto e controlar,
principalmente, as apresentaes... eu tenho que estudar a minha agenda e,
geralmente eu fao isso no domingo, saber o que est acontecendo, porque seno
cara, eu esqueo de algumas coisas...mas muito gostoso, muito bom! (CEVL_2, p.
52, Rodrigo Belchior, coordenador, 06-12-2004).
Os recursos que mantm o PVL so de natureza privada cujo investimento inicial foi
originado de uma doao feita por Joo Salles:
Eu acho que papai era exceo. Existem vrias outras, mas ao contrrio por exemplo
do que acontece nos Estados Unidos - em que a pessoa que tem sorte de com seu
trabalho e seu empenho realizar um sonho, ficar rico etc e tal, tem a necessidade de
devolver parte disso para a comunidade em projetos sociais, fundaes e filantropias
- essa no uma idia brasileira, infelizmente. E, portanto, papai queria - estava
85
cansado de ouvir essa historia de que as elites so egostas e etc e tal - resolveu fazer
um gesto que, na poca, foi de um valor muito importante (Joo Moreira Salles,
entrevista em 01/09/2005).
De acordo com Bolvar (2002) o sentido de uma ao, o que lhe faz inelegvel, s
poder vir dado pela explicao narrada pelo agente sobre as intenes, motivos e propsitos
que tem para ele em curto prazo, e mais amplamente, no horizonte de sua vida1. Partindo
desse pressuposto o depoimento de Joo Moreira Salles revela fatos significativos para a
compreenso do sentido das aes que amalgamaram o incio do Projeto no que diz respeito
concepo, estrutura jurdica e institucional, localizao, enfim, sua morfologia. O desejo de
investir uma quantia de seu patrimnio pessoal em uma estrutura que tivesse autonomia
constitui certas caractersticas do PVL, a partir das reflexes sobre o papel das ONGs na
cidade do Rio, envolvendo Walther Salles, Rubem Cesar Fernandes2, presidente da ONG
Viva Rio e o prprio Joo Moreira Salles. Pensou-se em um trabalho voltado para a educao
musical diferenciado das inmeras ONGs que vinham se constitundo naquele momento,
buscando uma concepo especfica. Dessa forma, uma das vertentes para se estruturar o PVL
partiu da premissa de se constituir um projeto social que no massificasse o conhecimento,
mas que, ao contrrio, privilegiasse indivduos de comunidades pobres que demonstrassem o
desejo de estudar musica e que pudessem, assim, ter uma formao aprofundada, como
esclarece Joo Moreira Salles:
...e eu no tinha idia. Ento, fui conversar com o Rubem Cesar, da [ONG] Viva
Rio, e eu disse que queria doar na poca, acho que importante dizer o valor, j que
uma tese de doutorado, eram 600 mil dlares que correspondiam a 600 mil reais
porque era na poca do dlar um pra um... o que no pouco dinheiro no Brasil. E
eu e o Rubem tivemos [algumas] conversas, alguns almoos e jantares e o Rubem
me apresentou um conceito que eu gostei, que o conceito da excelncia. Ele me
dizia o seguinte: olha, no Rio j existem uma srie de projetos sociais que so
muito bons e muito importantes, que massificam o conhecimento, seja o
conhecimento acadmico, seja o conhecimento esportivo, seja o conhecimento
cultural. Tem-se projeto pra 100 crianas jogarem futebol, projetos para 100 crianas
aprenderem msica, projetos de bal que massificam o bal nas comunidades
carentes e tal, e todos esses projetos so fundamentais e importantes. O que faltava
na avaliao do Rubem era um projeto que fizesse e que complementasse o projeto
de massificao, ou seja, que fosse um projeto que gastasse mais por aluno e
portanto que tivesse menos alunos. (Joo Moreira Salles, 01/09/2005)
1
El sentido de una accin, lo que la hace inteligible, slo podr venir dado por la explicacin narrativa del
agente sobre las intenciones, motivos y propsitos que tiene para l a corto plazo, y ms ampliamente, en el
horizonte de su vida.
2
Rubem Cesar Fernandes um dos fundadores da ONG Viva Rio, antroplogo, mestre em Filosofia pela
Universidade de Varsvia (Polnia) e PhD em Histria do Pensamento Social pela Universidade de Columbia
(EUA). Desde 1995 secretrio-executivo do ISER (Institutos de Estudos da Religio). autor de Vocabulrio
de Idias Passadas Ensaios sobre o fim do socialismo (1993), Romarias da Paixo (1994), Privado, porm
Pblico (1996) e Novo nascimento os evanglicos em casa, na igreja e na poltica (1998, com outros
autores). No ano de 2000 recebeu a Medalha Pedro Ernesto.
86
A partir dessa anlise, Rubem Cesar Fernandes sugeriu que se montasse um projeto
que abrigasse poucos meninos e com msica, argumentando que existe uma vitalidade natural
da cidade do Rio de Janeiro em torno da msica, e se
aproveita uma coisa que j existe, que viceja pela cidade, que desejo de fazer
msica e voc tenta escolher meninos e meninas de uma determinada faixa etria e
a nossa faixa etria de 10, 11 anos at 17 anos que no tenham condies, enfim,
de aprender msica com professores particulares, universidades privadas [...] e que
ento se de a esses alunos a possibilidade de uma formao que eles teriam se
tivessem nascido com dinheiro, com posses e com possibilidades de acesso a tudo
que ns que temos dinheiro podemos ter (Joo Moreira Salles, entrevista em
01/09/2005).
Assim, o PVL foi concebido para atender a esse perfil de aluno que em um projeto
de massificao no teria condies de ter uma formao musical sistemtica e aprofundada.
E, ressalta que o paradigma da excelncia na qualidade do ensino importante para as
comunidades at por uma questo simblica (Joo Moreira Salles, entrevista em
01/09/2005).
Os princpios ticos e a administrao dessa verba regida pelo estatuto da ONG
Viva Rio. Desta forma o Projeto Villa-Lobinhos financiado pelo mecenato privado de
pessoas fsicas que investem em projetos culturais e educacionais. Sobre a instituio desse
formato, a entrevista de Joo Moreira Salles bastante esclarecedora que sublinha como foi
pensado a estabilidade dos recursos financeiros para manter o Projeto:
Tem um conceito de uso dos recursos que importante dizer: aos 600 mil reais
foram acrescentados outros 400 mil reais de doaes familiares, de papai e de meus
irmos. Isso d ao Villa Lobinhos um patrimnio de um milho de reais. Esse
patrimnio nunca diminui, a gente nunca entra nesse patrimnio que gera essa
receita da aplicao financeira e o projeto vive da aplicao financeira desse
principal. Digamos assim: descontando a desvalorizao e a inflao, ento, sempre
ter esse um milho de reais, mais a inflao e viver sempre da aplicao, da receita
da aplicao financeira desse recurso, o que d para manter nove alunos. No
segundo ano, a gente buscou seguindo o mesmo princpio de papai de no querer
que esse projeto fosse apoiado por empresas e sim por pessoas fsicas um grupo de
pessoas que, comigo frente, chamamos de padrinhos, pessoas que, s vezes
sozinhas ou em grupo, patrocinam um menino, um aluno ao longo de trs anos. Hoje
em dia, o projeto conta com pelo menos 15 a 20 padrinhos; cada aluno custa em
torno de 800 reais por ms. Ento o principal, aquele dinheiro inicial de um milho
de reais consegue manter em classe uma turma, as outras duas turmas - j que so
trs anos - so mantidas por padrinhos [que] vem das mais diversas reas da vida
brasileira, desde pessoas do mundo financeiro, do mundo comercial, at atores,
atrizes, gente que se junta para patrocinar; s vezes tm 4 ou 5 pessoas que se juntam
e mantm um aluno patrocinado ao longo do Projeto (Joo Moreira Salles, entrevista
em 01/09/2005).
Salles estender essa autonomia financeira ao curso todo e conseguir doaes para o
principal, de forma que, com o tempo, a aplicao financeira desse principal consiga manter
trs turmas em vida que o tamanho do Projeto hoje. Tal situao garantiria que o Projeto
pudesse funcionar durante os trs anos, independentemente de padrinhos ou madrinhas,
tornando-se auto-sustentvel e autnomo. Esse depoimento revela uma outra lgica de se
pensar em projetos sociais no que concerne aos recursos necessrios a sua manuteno. O
patrimnio do PVL lhe garante um lastro de permanncia inibindo situaes de
vulnerabilidade, que uma das grandes problemticas das ONGs brasileiras (FERNANDES,
2002; KISIL, 1997; LANDIM, 2002).
Dessa forma, a captao de recursos no uma questo to problemtica para o PVL
como refora Turbio Santos:
Como mencionado, o PVL tem, enquanto instituio, o marco histrico de seu incio
em janeiro de 2000, por ocasio da realizao do Primeiro Encontro de Jovens. Trata-se de
um momento pontual em que se consubstanciou a idia de Joo Salles, compartilhada com
outros entrevistados que protagonizaram, de forma determinante, o incio do Projeto.
Entretanto, a partir da elaborao das narrativas dos entrevistados, entrelaando os fragmentos
de suas histrias de vida com a histria do PVL, possvel inferir que esse incio pode ser
interpretado como um recorte de um continuun de uma linha histrica que integra outros
momentos determinantes para a construo da identidade do mesmo. Sua natureza
comunitria amalgamada com a idia de realizar um trabalho musical profcuo e permanente
fruto de um processo histrico que teve incio bem antes do ano 2000, com uma solicitao de
pessoas moradoras do Morro Dona Marta, como relata Turbio:
88
Assim que eu assumi o Museu Villa Lobos, em 86...eu vi, imediatamente, que no
bairro tinha uma questo social, que era essa favela aqui, o [Morro] Dona Marta3.
Ento, a gente tem que ficar atento, porque o Museu vem pra ensinar tambm... vem
pra ter uma relao com o bairro, o museu no vem s pra guardar o Villa-Lobos
para pesquisadores estrangeiros ou de curso superior. E por sorte apareceu este
pedido, quer dizer que o vnculo foi criado com o Museu imediatamente, o vnculo
social, entende? Ento, por isso que vem desta poca e foram duas pontes
construdas assim que eu comecei a dirigir o Museu... uma foi essa e a outra foram
os mini concertos didticos, que tambm muito forte, porque traz as crianas [das
escolas] para o Museu, faz um elenco de jovens msicos. Atualmente temos sessenta
msicos fazendo apresentaes aqui e eles tocam para quase oito mil crianas
(Turbio Santos, entrevista em 02/06/2004).
3
O Morro de Dona Marta, tem aproximadamente 2.500 domiclios e uma populao estimada em 10 mil
moradores. A ocupao da rea comeou por volta de 1940, por famlias que vieram principalmente do norte
fluminense e do sul de Minas Gerais. A partir do incio da dcada de 60, como em todo Rio de Janeiro, deu-se
um grande fluxo de nordestinos em direo ao morro. A migrao cessou juntamente com os limites geogrficos
da favela. Nos ltimos dez anos, a comunidade vem sofrendo visvel processo de pacificao, graas s intensas
atividades comunitrias voltadas para a evaso escolar e opes de lazer.
(<http://www.soft.com.br/CafeCultural.nsf/paginas/CafeCultural&Projetos_Sociais&D_Marta> Acesso em: 9
mar. 2004).
89
histria nico, j que marcado pelo presente do narrar, que varia, e pela memria,
que mutvel (NEVES et al., 2002).4
Durante o trabalho
desenvolvido na dcada de 80 no
Morro Dona Marta, Turbio
enfrentou dificuldades para
implantar um projeto social
ligado msica, principalmente
com a comunidade dos padres
mais antigos do morro que foi
hostil ao projeto. Os padres eram
ligados Congregao Santo
Incio, centenria no Rio e se
sentiram ameaados no seu espao de atuao de carter assistencialista. Mas, como a
solicitao veio da prpria comunidade, Turbio teve fora na argumentao e implantou a
4
Encontro Regional de Teoria e Metodologia da Histria, organizado em 2002 na USP.
(<http://www.revistatemalivre.com>. Acesso em: 9 set. 2003).
90
Escolinha de Msica, onde Rodrigo, Luiz Cludio e Fbio comearam seus estudos para
posteriormente se tornarem monitores da Escola.
Alguns anos depois, outra situao de atrito com os padres agravou-se e a Escola foi
transferida para o Museu Villa Lobos, bancada pela Academia Brasileira de Msica. Como foi
preciso ampliar os recursos, os prprios professores/monitores comearam a elaborar projetos
para as entidades pblicas e privadas para conseguir verbas, possibilitando exercitar a prtica
de aprender a captar recursos e argumentar sobre seu valor. Turbio destaca a atuao de
Rodrigo Belchior como agente cultural, j naquela poca, em meados de 1980, que j
comeara seu exerccio de educador musical, coordenando o projeto e buscando patrocnio na
Secretaria de Cultura Estadual e Municipal.
Os depoimentos de Turbio, alm de propiciarem uma perspectiva histrica sobre a
gnese do Projeto, catalisam questes sobre os imbricamentos dos movimentos sociais e os
espaos sociais e culturais se constituindo como instituies politizantes da sociedade civil
as quais redefinem as fronteiras da poltica institucional (OUTHWAITE; BOTTOMORE,
1996, p. 502). A fala de Fbio, professor de violoncelo no PVL, corrobora o depoimento de
Turbio e ressalta a construo de sua identidade musical e social associada histria do PVL:
A exemplo da fala de Fbio, o depoimento de Rodrigo relata fatos que revela como a
gnese desse processo tem uma ligao afetiva e histrica com sua vida e foi um movimento
que dinamizou uma gerao de jovens que se encaminharam para msica:
Turbio e a equipe do Museu resolveram levar msica l pro Dona Marta, porque
uma comunidade que est muito prxima do Museu. Enfim, vrios instrumentistas
esto [hoje] trabalhando no s no Villa-Lobinhos, mas como tambm tocando e
fazendo um monte de coisas (CEVL_2, p. 33, Rodrigo Belchior, coordenador,
30/05/2003).
Rodrigo nunca tivera contato com o ensino de msica antes de freqentar a Escolinha
do Morro, tinha uma resistncia porque, aos treze anos, trabalhava de madrugada, das 2 s 8
horas manh, entregando jornal. Com o padrasto desempregado, virou arrimo de famlia. As
relaes sociais com seus amigos foram determinantes para que ele rompesse com a
resistncia de freqentar as aulas de msica oferecidas na Comunidade Santa Marta:
O Luiz Cludio me venceu de tanto insistir e eu fui l e gostei muito [...] no tinha
violo, tinha flauta doce e peguei a flauta doce, comecei a aprender e, dois ou trs
meses depois, o projeto acabou. A o Luiz Cludio e o Fbio ganharam uma bolsa
para a Escola Brasileira de Msica e comearam a aprender, o Fbio no violoncelo e
o Luiz Cludio no trombone. Era uma escola privada dirigida pelo Maestro Nelson
Macedo. Eu no tinha [bolsa] porque eu estava no projeto h pouco tempo e a
continuei estudando, estudando [sozinho]. Um dia, o Turbio perguntou o que eu
queria tocar, se eu tivesse oportunidade e eu falei adoro flauta transversal, isso
porque eu tinha assistido um concerto e ouvi o som da flauta. Nunca tinha ouvido
[...] E a l eu vi uma menina fazendo um solo de flauta muito bonito e eu falei
Poxa, esse som t maravilhoso!" e eu perguntei o nome [do instrumento] para o
Luis Cludio e ele me disse que era flauta transversal. E aquele som ficou na cabea
[...] eu tinha dezesseis anos e.comecei a estudar a transversa; um pouco tarde! Com
doze, treze anos [tive] a experincia de musicalizao [...] na escolinha de msica da
Dona Marta [...] tive que queimar vrias etapas, aprendendo direto para flauta
transversa, direto para teoria, tudo junto! Mas eu estudei bastante, eu aprendi rpido,
tive bons professores e passei a tocar depois em grupos em concerto didticos junto
com outros meninos e adorei tocar flauta, adorei conhecer a msica. Logo depois,
ns, que ramos alunos daquela Escolinha do Dona Marta, passamos a ser monitores
(CEVL_2, p. 33, Rodrigo Belchior, coordenador, 30/05/2003).
Ns vamos ensinar as crianas e vamos aprender com elas. Desde o comeo, avisei a
todos os professores, avisei ao Joo Moreira Salles, avisei a todo mundo que
participou, no existe uma escola feita. A escola pr mim, ela nasce na hora que
voc percebe quem est vindo pr escola e que voc tenha humildade de saber: vou
ensinar alguma coisa que voc vai me trazer a lenha, porque sem a sua lenha eu no
fao a fogueira. Eu acho que isso foi o princpio fundamental da escola e por isso
que ela caminha em cima desse princpio (TURBIO SANTOS, diretor do Projeto
Villa Lobinhos, em 30/06/04).
Turbio foi convidado por Joo Moreira Salles, em 1999, para estruturar a proposta
de um projeto social que atendesse quela concepo, estruturar o curso de frias e proceder
92
seleo da primeira turma dos alunos que se realizou em janeiro de 2000. Sugeriu Rodrigo
como seu assessor para fazer o levantamento e realizar as visitas nos projetos sociais que
tinham foco nas prticas musicais. Percebe-se, atravs das entrevistas com os mentores do
Projeto, que a experincia de Rodrigo como educador musical e conhecedor do contexto
social que se pretendia abordar prontamente reconhecida e valorizada. Ele realizou uma
espcie de prospeco nas comunidades de baixa renda, no Rio de Janeiro, fazendo um
levantamento de projetos beneficentes que trabalhavam com atividades musicais. A partir
dessa ao presencial de Rodrigo os projetos recomendaram alunos para uma temporada de
curso de frias no Museu Villa-Lobos com 100 crianas.
Foi a partir dessa
configurao que aconteceu o
Primeiro Encontro de Jovens
Instrumentistas, um curso gratuito
no Museu Villa Lobos, em janeiro
de 2000, reunindo crianas e
adolescentes provenientes de
inmeros projetos sociais e ONGs
ligados msica na cidade do Rio
de Janeiro. Foram selecionados
nove jovens para a primeira turma
do PVL e se institui a forma
de seleo para o ingresso no
mesmo, consubstanciando a
idia de Walther Salles (pai)
de constituir um projeto
social, voltado para o ensino
sistemtico de msica para
poucos alunos que pudessem
ser atendidos individualmente,
inclusive, cuja perspectiva
pedaggica focava os
contedos da linguagem musical, histria da msica, performance instrumental solo e de
conjunto.
93
Ao final do Encontro, pude constatar que a idia de reunir vrios projetos sociais em
um encontro musical, dilua a questo do processo excludente inerente a qualquer tipo de
seleo. A partir das conversas que tive com pais, alunos, professores, o que mais importava
era poder se reunir e aprender um pouco mais de msica, sobretudo tocar e tocar juntos. Ser
selecionado passa para um segundo plano. O diagrama que segue ilustra a rede entre os
projetos socais que participaram desse Encontro:
95
Escola de
Centro cultural Msica da Projeto
Charles Rocinha Apanhei-te
Dickens cavaquinho
Projeto
ONG Ns VILLA LOBINHOS
do Cinema
Centro
Cultural Santa
Tereza
Projeto da
Grota do Escola de
Surucucu Msica Museu Villa
Niteri Santa Marta Lobos
A primeira impresso que eu tive do Villa-Lobinhos, vou ser muito honesto, no foi
muito boa no, fiquei com um p atrs, sabe, que eu pensei assim: Meu Deus do
Cu! O custo desse projeto por aluno, est um pouco alto!. Mas aos poucos eu fui
mudando essa viso quando fui entendendo o papel desse projeto e a relao dele
com os outros projetos sociais.
O primeiro contato foi quando o Rodrigo veio conhecer a Escola de Msica da
Rocinha e convidou a Escola a participar do curso de frias, que voc j conhece e
sabe bem dessa estrutura. Ns encaminhamos um grupo de alunos que ficaram
deslumbrados com o trabalho, foi fantstico e se refletiu na nossa escola. Nenhum
deles foi selecionado, mas todos voltaram para a nossa escola com um gs muito
maior para o trabalho, ansiosos para aprender, aprender, aprender, aprender,
aprender. No ano seguinte foi um outro grupo e a cada ano foram outros grupos e
ns tivemos trs alunos j selecionados para o Projeto Villa-Lobinhos.
Desenvolvendo sua anlise, Gilberto destaca dois aspectos que considera importantes
no papel do PVL ao realizar um trabalho ancorado em uma proposta pedaggico-musical
voltada para uma formao mais especializada:
E hoje eu vejo, com clareza, que o Villa-Lobinhos tem dois papis importantes:
primeiro ele acontece no curso de frias em janeiro, um curso intensivo que
promove um encontro entre jovens de comunidades completamente diferentes, com
vivncias completamente diferentes e que essa integrao faz com que todos eles
96
voltem para suas comunidades com uma viso muito mais ampla do que o estudo
da msica e com um desejo muito maior de se aprofundar naquele estudo. Eles se
sentem muito valorizados, voltam com a auto-estima a mil. Esse um papel
importantssimo. O outro papel, tambm importantssimo, com os alunos
selecionados para serem atendidos ao longo de trs anos, que fazer aquilo que o
nosso projeto aqui no tm condies de fazer, que oferecer um trabalho
individualizado e de formao profissional de fato.
Fala, ainda, sobre as bases conceituais do trabalho realizado pela Escola de Msica
da Rocinha, revelando caractersticas da identidade sociomusical do projeto:
Apareceu, assim meio que do nada, o saxofone e a gente sempre estudava junto. Era
um grupo bom mais ou menos da minha idade: era eu, o Fbio (PVL), o Rafael
(PVL), o Daniel (PVL), o irmo do Daniel. Tinha uma galera boa e a gente ficava
at fazendo disputa pr ver quem entendia mais, quem pegava a coisa mais rpido e
a igreja ia comprando e aparecendo os instrumentos e eles iam dando para os alunos
pr comear a prtica com o instrumento. A apareceu um trompete, uma clarineta e
um saxofone. O Daniel pegou o trompete, ele no comeou iniciando no trombone
[hoje, ele toca trombone no Projeto Villa Lobinhos], comeou no trompete, o Fbio
conseguiu pegar a clarineta e o saxofone ficou sobrando pr mim. (CEVL_1, pg 6,
Ademar dos Anjos, aluno formando 2004, 04-06-2004)
E sobre seu contato inicial com o PVL, seu relato pode ser tomado como exemplo de
como as relaes sociais e institucionais organizam e reorganizam as experincias pessoais
determinando, muitas vezes, acesso e oportunidade. A partir de contatos pessoais que seu pai
tinha, Ademar, juntamente com Fbio e Leandro, todos de Mesquita5, participaram do
Encontro de Frias e foram selecionados para fazer o curso no PVL:
Meu contato com o projeto foi atravs do meu pai que trabalha aqui na PUC
(pertinho da Casa da Gvea) e o Rodrigo tem uma grande amiga no NEAM,
departamento da PUC. E ela comentou a respeito desse curso de frias e meu
pai...comentou que meu irmo, no caso o Rafael, estava trabalhando como pedreiro e
sabia tocar clarinete. Surgiu o assunto sobre projeto e ela disse: No! Porque ele
est trabalhando nisso? Vamos colocar ele l, eu vou falar com o Rodrigo, tem um
projeto que acontece todo incio de ano no Museu Villa Lobos. E em 2002 foi o ano
que ns fomos participar, no Museu Villa Lobos, de um encontro de jovens. Fomos
eu, meu irmo, veio uma boa parte [de amigos] l de Mesquita. Acabou
5
Mesquita trata-se de um municpio localizado na Baixada Fluminense, pertencente regio metropolitana da
cidade do Rio de Janeiro.
99
desenrolando no s pr mim e pro meu irmo, mas pr uma boa parte [dos amigos].
E foi bom...acho que vieram cinco pessoas de Mesquita e acabamos ficando trs: eu,
Leandro e Fbio, fomos os trs primeiros a vir para o Projeto. E passamos as duas
semanas l, o Rodrigo conheceu o pessoal e gostou. A ofereceu esses trs anos de
bolsa aqui no Projeto (CEVL_1, p. 6, Ademar dos Anjos, aluno formando 2004,
04/06/2004).
A princpio Ademar tomou um susto porque nunca tinha visto tantos msicos
tocando juntos, nunca tinha participado de orquestra e, em maro, quando foi avisado que
tinha conseguido a bolsa ficou surpreso por ter junto com ele mais dois jovens da mesma
cidade. Na primeira reunio viu mais oito pessoas juntas, pensou: Caramba!, veio uma galera
boa pr c!. Esse relato mostra como as relaes sociais que se inserem no cotidiano,
provocam encontros que podem ter um significado no sentido de ampliar experincias
estticas e sociais, possibilitando o re-posicionamento de um novo referencial na identidade
individual e social. Participar desse Encontro possibilitou a Ademar, juntamente com outros
jovens, como Fbio e Leandro, vindos de Mesquita, referenciais de uma esfera sociocultural
nova para eles.
Fbio, clarinetista, conta que sua iniciao musical
teve como cenrio a igreja da qual toda sua famlia faz parte:
Eu j nasci naquela igreja, meu pai evanglico e minha me
tambm e ento desde criana que eu sou da igreja.
Assim, a igreja e a famlia emergem como instituies
que conectam sistemas sociais dinmicos da vida cotidiana,
construindo novos contextos e significados em que a msica
ocupa um espao especfico, cujo valor e funo esto
conectados. O desdobramento disso, incide na forma e
contedo do ensino e aprendizagem musical. Em seu relato,
Fbio destaca o contexto coletivo desse aprendizado que
comeou com 10 anos de idade:
Meu incio com a msica foi praticamente junto com todo o pessoal que mora l
[Mesquita] junto comigo. A princpio na igreja da qual fao parte, estavam querendo
formar uma orquestra e ento pegaram crianas de 10, 11, 12 anos e comearam a
dar aula de msica gratuita na igreja para poderem montar uma orquestra. Estudei
msica durante um ano, teoria e percepo e depois de um ano eles me deram um
clarinete, deram para um outro aluno um sax e pr mais um, um trompete e depois
no ano seguinte deram mais outros instrumentos. Da turma de jovens eu fui um dos
primeiros a pegar o instrumento que foi o clarinete...um ano de percepo e teoria
geral e depois de um ano que eles foram me dar um clarinete. A princpio mais a
parte terica e depois a gente pegou muito solfejo. (CEVL_1, p. 33-34, Fabio
Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
100
Fbio foi selecionado para cursar o PVL na sua primeira participao no Curso de
Frias e sublinha que nunca tinha visto tanto msico colado um com o outro, os professores
to bons. Como no tinha turma e nem professor de clarinete e nem sax, Fbio ficou junto
com a turma de flauta transversal. Isso denota que cada edio do Curso se formata de acordo
com os alunos e professores disponveis. O que parece importar fazer msica coletivamente.
...um projeto social que tambm tinha comeado...e na poca era oferecido um curso
de canto coral e flauta-doce e eu fui l ver, pr assistir, que eu tinha uma amiga que
fazia parte, e eu simplesmente me apaixonei! ...quis sair do teatro pr fazer aula de
flauta e coral, a falei com minha me e minha me e meu pai sempre me apoiaram e
eles foram l comigo e eu comecei no coral mas sempre quis flauta-doce. S que na
poca no tinha vaga e eu tinha que esperar e eu ficava assim ansiosa pr comear
fazer aula de flauta-doce e a eu entrei na flauta-doce e desde ento eu comecei a
estudar msica pela Escola de Msica da Rocinha. (CEVL_1, p. 18-19, Carla
Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).
que o acesso a bens culturais e de lazer seja, de fato, democratizados. Carla reconhece a
importncia desse aprendizado na Escola de Msica da Rocinha e como isso foi importante
para que ela pudesse ingressar no PVL:
Carla freqentou trs Cursos de Frias, em 2000, 2001 e 2002, no Museu Villa Lobos
para, ento, na terceira participao, ser selecionada para o PVL. Revela que no sentiu como
algo negativo o fato de no ser selecionada na primeira vez, mas, ao contrrio, foi um
estmulo para que estudasse com mais disciplina e afinco para tentar novamente. Sua
narrativa, associada a inmeras outras narrativas de outros jovens com perspectiva semelhante
em relao ao processo de seleo, do pistas de como o Curso de Frias visto antes como
um encontro que oportuniza aprender novos contedos e repertrio musical, ter aulas com
bons professores, conhecer e encontrar amigos, mais que, propriamente, um processo de
seleo para escolher os melhores, excluindo tantos outros, como me parecia antes da imerso
no campo.
eu estava no projeto [Comunidade Dona Marta] onde o Rodrigo estava dando aula e
a [ele] chegou e falou que tinha um concurso... um curso de frias, aonde vrios
meninos do Rio de Janeiro, vrias regies vm para participar desses cursos de frias
e a nisso eu participei do primeiro curso de frias, mas eu no passei no curso,
passei no terceiro curso, foi tendo e no segundo eu no participei. A o Rodrigo
comeou a acreditar em mim, a me incentivar, comeou a falar pr mim estudar
mais [...]. E a fui comeando a estudar, participei do primeiro, do segundo no
participei; no terceiro participei e passei com o trompete (CEVL_1, p. 63, Marcos da
Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
102
Marquinhos conta que antes de iniciar seu aprendizado musical na creche, no era
muito ligado com a msica eu no tinha nenhuma msica que eu gostasse... eu no sabia o que
era msica, eu no gostava de nada; o que eu ouvia mesmo era aqueles funk mesmo, que os
vizinhos botava alto e a eu ouvia s isso. Conta que foi ampliando seu universo e fui vendo o
que era msica; eu via que msica no era s funk; era MPB, rock pop, vrias coisas, popular,
samba, vrias coisas a msica um mundo muito diferente... diferente daquela do vizinho.
O seu depoimento mostra como a rede de sociabilidade de moradia contribuiu para a
construo de seus referenciais esttico-musicais, entre outros e, tambm, como as aes dos
projetos sociais substituram os cuidados maternos e sociais que garantiram a sua sobrevivncia.
E a eu consegui tambm sair desse mundo, desse caminho pelo Rodrigo com o
projeto na nossa comunidade, l no Morro Dona Marta, onde ele dava aula para
pessoas carentes como eu, na igreja. Eu tinha todos os tpicos para virar bandido,
para virar traficante. O Rodrigo, como foi meu primeiro professor de msica, me
incentivou a sair, me deu conselhos, comeou a acreditar em mim. Agora eu sou o
que sou por causa dele e ele foi um dos primeiros incentivadores da minha vida... ele
foi um pai para mim... me ensinou, primeiro eu aprendi flauta-doce......Eu adorava
porque era a nica coisa, alm daquele sonho no muito bom [virar bandido] que eu
tinha antigamente aos 8 anos de idade. Esse projeto foi uma coisa diferente, uma
coisa nova que eu no sabia, no tinha conhecimento dessa coisa bonita que o
Rodrigo estava fazendo com a gente... a comecei a me incentivar, a acreditar em
mim mesmo...at o Rodrigo comeou a acreditar em mim, comeando a me
valorizar como gente mesmo! E estou aqui hoje por causa dele. (CEVL_1, p. 63,
Marcos da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
Sobre seu contato com a msica, antes de ingressar no PVL, Marquinhos faz um
relato costurando fragmentos de sua histria de vida. Aprender msica, sentir-se membro de
uma comunidade foi muito significativo para mudar a direo de sua vida, aparece como um
divisor de guas. A presena de Rodrigo nesse processo , novamente, destacada por ele:
Pr mim o que significou muito o projeto pr mim, foi mudar de uma vida que eu
vinha de antes, uma vida no muito boa pr... (longo trecho de silncio, como se
mergulhasse em suas memrias)... o que a msica pr mim...o Rodrigo viu alguma
coisa em mim, viu que eu daria pr msica e ele veio e me indicou. A comeou me
encaminhar, fazendo o meu futuro; a ele foi encaminhando pr msica...ele arranjou
uma bolsa pr mim l na Pro-Arte7, fica em Laranjeiras, o Rodrigo tambm me
colocou aqui no Villa Lobinhos... a foi continuando um monte de coisa, e tambm,
lembrando tambm, me colocou no Dom Pedro II que um timo colgio.
(CEVL_1, p. 63, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
7
O Projeto Flautistas da Pro Arte uma instituio educativo-musical de natureza privada, coordenada pela
flautista e professora Tina Pereira, desde 1987. Com Claudia Ernest Dias formou o grupo Flautistas da Pro Arte.
s flautas doces originais vieram somar-se as flautas transversas, os clarinetes, os saxofones, o trombone, as
vrias formas de percusso, o cavaquinho, o contrabaixo, o violo e o piano.
<http://www.proarte.org.br/index_teste.htm>
104
8
Jonas cresceu num internato da Funabem, onde aos 15 anos, matriculou-se numa aula de luteria, curso
promovido pela FUNARTE, na dcada de 80. O curso durou trs anos e foi interrompido com a morte do
professor Guido Pascoli. Como luthier teve uma viola de gamba com sua assinatura foi parar na Alemanha,
levada por um estudante brasileiro sendo convidado por um luthier de Stuttgart para fazer um estgio em 1994.
Desde ento, tornou profissional na rea trabalhando com matria-prima importada, da madeira s cordas e
produzindo peas de qualidade reconhecida. (<http://epoca.globo.com/edic/20000214/especiala.htm>. Acesso
em: 19 fev. 2006).
105
comunidade da Grota. Jonas fabrica contrabaixos, violas, violoncelos e violinos mas no toca
nenhum dos instrumentos. Os filhos, Walther e Wagner, os gmeos, e Felipe cresceram vendo
o pai fabricar violinos iguais aos que eles hoje tocam. Comearam a estudar msica com uma
professora boliviana que dava as aulas e em troca tinha os instrumentos consertados pelo pai
dos alunos. So celebridades na favela por serem os primeiros garotos a estudarem um
instrumento considerado quase inacessvel quele ambiente cultural.
Quando entrevistei Walther, Wagner estava junto, pois so inseparveis. Sobre como
eram suas vidas antes de entrar no PVL, eles relatam que no gostavam muito de estudar
msica. Tocavam para agradar ao pai que fabricava os violinos e preferiam brincar: comecei
foi meio que obrigado, eu e ele tambm, foi o mesmo caso dele... diz Wagner. Ele conta que
estudava porque seu pai consertava os instrumentos do conservatrio e em troca tinham aulas
de violino gratuitamente. O interesse real surgiu depois que eles j conseguiam tocar um som
legal e, conseqentemente, os colegas, a comunidade e familiares comearam a elogi-los e
valorizar a msica que eles faziam. Wagner corrobora o depoimento do irmo:
O pessoal famlia, comunidade porque... era horrvel, a gente ia, no tocava nada,
arranhava pr caramba e antes rolava at aquele preconceito - porque da favela ns
ramos os nicos jovens, os dois, s dois...mais de mil moleques na favela, ns dois
ramos os nicos que tocavam violino e a rolava aquele certo preconceito, n? -
no... larga isso, no sei o que, no tem nada a ver, no sei o qu... mas depois
que a gente comeou a tocar legal, comeamos a sair pr se apresentar, conhecer
lugares, pessoas novas e a o pessoal foi aceitando mais e viu que estava dando certo
e at a gente mesmo foi vendo que estava dando certo e a comeamos. Mas at essa
parte, a gente foi s brincando, tocando ali, tocando aqui e montamos uma
orquestrinha9 nossa l na Grota com o pessoal que ns dois comeamos a tocar
violino primeiro do que o pessoal da comunidade (CEVL_1, p. 89-90, Walther e
Wagner de Oliveira, alunos formandos 2004, 11/06/2004).
9
Essa orquestrinha refere-se Orquestra de Cordas da Grota do Surucucu, coordenada por Mrcio Selles.
106
tocarem em uma orquestra de cordas trouxe um outro referencial esttico para eles, de uma
forma, de fato inclusiva: porque ns tocamos esse repertrio clssico e no, somente,
estamos aqui para ouvir e aplaudir os outros. Isso faz uma grande diferena. O ingresso no
PVL lembrado por Wagner como uma forma de continuidade a um caminho j trilhado:
anos de idade. Voltando para o Brasil foi abandonado no abrigo onde aprendeu cavaquinho
de ouvido. Rafael conta que foi menino de rua, passou por muitas privaes e tambm foi
acolhido no abrigo, onde teve seu primeiro contato com o cavaquinho. Atualmente, alm do
cavaquinho toca tambm contrabaixo. Ambos tornaram-se excelentes instrumentistas, tocam
na Orquestra Villa Lobinhos e em grupos de msica popular, introduzindo-se na vida
profissional.
Rafael Nogueira, contrabaixista do grupo, lembra que o incio de sua participao no
PVL, ocorreu quando Turbio Santos o viu tocar no Projeto Apanhei-te Cavaquinho e o
convidou para participar do primeiro curso de frias, em 2000, no Museu Villa Lobos. Foi
selecionado e da primeira turma de formandos. Como ele no tinha famlia morou em um
espao na ONG Viva Rio, at se formar. Reconhece e destaca a importncia de ter sido
acolhido por um projeto social que lhe proporcionou alternativas de existncia:
...vim de um projeto, j morei na rua, j passei vrias necessidades, como tem muita
gente que passa a e eu sinto que o projeto, no s como o Villa Lobinhos mas o
Projeto Apanhei-te Cavaquinho de onde nasci praticamente, me tirou de muitas
coisas ruins que eu poderia estar hoje a na rua; estar roubando, estar matando e eu
sinto que o projeto conseguiu me absorver, ou seja, me tirou de uma vida que eu
poderia no estar sendo legal como est sendo agora. E eu sinto que cada dia que
passa est melhorando minha vida, entendeu... e eu luto, estou lutando, estou
correndo atrs, moro sozinho, perdi minha me em 98, meu pai eu no conheci e
estou correndo atrs a, mudou muita coisa, mudou muita coisa. (CEVL_1, p. 103,
Rafael Nogueira, Grupo de MPB, 21/06/2004).
Leandro ressalta que fazer msica e ter uma pessoa que lhe ensinou um instrumento
musical, foi algo muito importante na sua vida:
...eu tinha uma infncia no muito boa, no conheo meus pais biolgicos. Eu nasci
aqui em Niteri e fui jogado direto pro orfanato e a fiquei dois anos no orfanato e a
fui adotado por um casal francs que me levaram pr Frana... mas na verdade eu fui
criado pouco tempo, foi 8, 9 anos....ento quando eu voltei pro Brasil, meus pais no
quiseram mais a minha guarda; a adoo no era obrigatria e eles podiam devolver
quando quiserem, entendeu? Meu pai quis me devolver pr justia e acabou me
entregando de volta pro abrigo e foi onde tudo comeou a msica. Eu comecei a
estudar msica, cavaquinho, dentro do abrigo... assim que eu entrei j estava tendo
aula de cavaquinho [com o Budega]. No comeo eu no tinha nenhuma ligao
firme, no me incentivava muito estudar msica, nem cavaquinho; a depois de duas
semanas que o maestro ofereceu o cavaquinho pr mim, eu fiquei olhando, pegando
algumas notinhas e depois me animei um pouquinho e fui embora; Ento, por isso
que eu falo, de repente, se no tivesse aquele professor l, dando aula de
cavaquinho, talvez eu poderia ser como outros so dentro de um abrigo, marginais,
ladro, de repente estava cheirando cola, podia estar na rua a perambulando por a.
Ento, quando sempre eu vou fazer alguma entrevista e me perguntarem o que
significa a msica pr mim eu vou responder isso a. (CEVL_1, p. 103, Leandro
Serizac, Grupo de MPB, 21/06/2004).
108
...porque quando existe uma mecnica no ensino da msica, onde o msico comea
isolado em um canto, ele vai aprendendo as coisas isoladamente pr s depois
chegar no conjunto, a orquestra, o coro, a msica de cmara.... eu acho que o ensino
da msica precisa ser revolucionado nisso, ele precisa desde o comeo fazer msica
em conjunto. Eu acho isso a no Villa Lobinhos, uma experincia... a gente bota logo
todo mundo junto, Ah , mas os nveis so diferentes...no tem importncia,
mais um enriquecimento entende? Pr quem sabe menos e pr quem sabe mais
tambm, porque essa comparao. Porque, s vezes, voc est ensinando para o
garoto aqui, o outro est prestando ateno e est aprendendo muito mais com as
dificuldades do colega do que estar aprendendo com o professor (CEVL_2, p. 8,
Turbio Santos, diretor geral, 02/06/2004).
Eu acho que quem fez estava muito preocupado no ser humano que ia sair dali,
porque isso que parece, a valorizao da pessoa no Projeto, de cada menino
daquele. No um projeto muito grande e ento voc trabalhando com poucos
adolescentes, voc tem um contato maior com eles, mais ntimo, voc se aproxima
mais da vida deles, voc tem mais contato, voc discerne quem quem, voc
personaliza cada um. Mais do que msica em si, eles esto sendo tratados como
pessoas, com todas as suas possibilidades, com sua personalidade sendo reconhecida
e eu acho que isso muito bom pr eles, se verem reconhecidos assim, eles sabem
que ns sabemos quem eles so, cada um deles. (CEVL_2, p. 123-157, Emannelle
Freitas, professora de trompete, 01-07-2004)
...voc est aprendendo para coletividade, voc tem que estar, principalmente atento
ao que est acontecendo, voc tem que deixar acontecer...vamos brincar, rene todo
mundo, fica brincando - e isso d um resultado...esto me dando tal msica, tal
experincia de volta e a voc faz uma avaliao; o que est falhando, o que est
pegando, ento eu acho que o exemplo fundamental. (CEVL_2, p. 21, Turbio
Santos, diretor geral, 30/06/2004).
Essa prtica social da performance musical no PVL propicia uma abertura para a
diversidade cultural que se apresenta pela relao entre alunos, professores, artistas
convidados e abre espao para que os diferentes valores socioculturais sejam compartilhados.
Rodrigo corrobora essa viso:
j ouviu, vamos fazer? Vamos! Quer tocar? Vamos!. (CEVL_2, p. 64-65, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06/12/2004).
....porque s vezes tambm a gente tendo aula s com um aluno fica um pouco chato
na verdade, ento eu procuro, se tiver um outro aluno aqui, mesmo que no esteja no
dia de aula dele, ou enfim, ex-aluno, mas que ajude o outro e a gente toque junto
porque assim d mais gosto, para o aluno novo ou at um outro que tenha uma
dificuldade (CEVL_2, p. 124, Luis Cludio, professor de violo, cavaco e trombone,
03/06/2004).
...Ao longo do tempo, eu reparei que funciona muito melhor isso. Tem por exemplo,
o Bruno [aluno do 2. Ano] s vezes chega aqui sabendo coisas que eu nunca ensinei
pr ele. Por qu? Porque ele amigo do Diego que j aprendeu todas essas coisas e
ele j assimilou; na verdade, uma espcie de uma cadeia. Simplesmente s
algum chegar e falar isso aqui assim. O difcil desta histria toda, essa formao
individual, que eu acho que muito mais difcil de aprendizado. Quando voc
junta todos eles, voc no sabe como que eles aprendem: equivale a dez aulas
particulares e individual. Por qu? Um est puxando o outro [...] a reunio deles, este
lado de ensaiar em grupo, de tocar junto, um puxa o outro. Isso, eu no tenho a
menor dvida, a coisa que eu mais vejo hoje em dia, mais lucrativa para eles, a
aula em grupo [...]. As orquestras, os ensaios. Tudo bem, precisa ter tambm esse
lado individual pr saber: olha assim feijo com arroz, aqui dobra, aqui desdobra e
tal, mas isso rpido. Onde eles vo aprender...vo saber tudo, dinmica, junto
(CEVL_2, p. 113-114, Ricardo Costa, professor de percusso, 09/06/2004).
Para Emmanuelle Freitas, professora de trompete, a unio que eles tm ali dentro
no forma msicos isolados. Ali eles agem como uma equipe o tempo inteiro, eles se juntam,
eles fazem msica, eles conversam e alm da prpria msica, o projeto faz com que eles se
aproximem e criem uma relao de amizade. Isso faz com que eles tenham na prtica
musical o elo que constri suas relaes intersubjetivas, valores e a identidade pessoal e
coletiva, delineando tambm a identidade do Projeto.
112
A amizade emerge como um fator significativo e muito citado pelos alunos no que
concerne s formas de se estabelecer as relaes sociais em que a afetividade se mostra em
primeiro plano. Trata-se de uma forma de interao na qual os integrantes do PVL realizam
trocas de experincias mediatizadas pela vivncia que comporta momentos em que esto
presentes a msica, o lazer, as discusses, os consensos, etc. E, nesse caldo de experincias
coletivas que eles destacam os amigos como um dos pontos positivos do PVL.
Todos os entrevistados citaram os amigos que fizeram durante o curso constitui-se
um fator estimulante para que eles freqentem o Projeto e que isso influi positivamente na
aprendizagem musical. Carla fez muitos amigos no s no Villa Lobinhos mas tambm com
o pessoal de Niteri que conhecem o Villa Lobinhos, o pessoal do Santa Marta, de Mesquita.
Fbio tambm refora esse carter de rede que se forma por meio das amizades construdas no
e pelo PVL:
O pessoal da Rocinha, pessoal da Grota... muitos amigos aqui. Tem alguns que at j
saram, mas ainda posso conversar de vez em quando, mas a amizade aqui
tima...como moro em Mesquita, quando tem apresentao, festa, eu procuro dar um
jeitinho de estar presente tambm pr zoar um pouquinho, brincar com meus amigos
e conversar CEVL_1, p. 44, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
...a gente aqui no aprende somente msica, a gente aprende sei l... viver, tem uma
moral de vida diferente, tem o reflexo dos professores. Por exemplo, o Rodrigo, que
uma tima pessoa e tem o reflexo deles e a gente acaba aprendendo a lidar com a
vida de uma maneira diferente aqui tambm. O Projeto no um Projeto tambm
paralelo voltado pr msica, isso que vocs tem que aprender e tal. Aqui a gente
conversa, os professores, s vezes, deixam de ser professores e se tornam amigos,
eles so sempre amigos e muitas vezes amigos ntimos... a gente fica conversando
(CEVL_1, p. 98-99, Walther de Oliveira, aluno formando 2004, 11/06/2004).
113
O fato de ter um interlocutor que, quando interage com eles, fala de uma realidade
que lhe , de fato, familiar, imprime uma confiana e legitimidade nas possibilidades de se
tornar um msico ou educador. Walther, nesse depoimento, destaca o valor dessa
caracterstica do educador:
O Rodrigo fala das situaes que ele passou pr chegar ao que ele hoje,
coordenador, e isso a gente toma como reflexo e o Rodrigo ralou pr caramba pr
fazer o que ele est fazendo aqui agora, ele ralou muito...fiquei sabendo e ele falou.
Ento, isso a a gente, como reflexo, dele e procura fazer o mesmo. Por exemplo,
comecei como aluno e esse Encontro de 2004, j dei aula e tal e ento a gente v eles
como um exemplo de boa vida, de boa pessoa, ao invs de apenas um
professor.(CEVL_1, p. 98-99, Walther de Oliveira, alunos formandos 2004,
11/06/2004).
A relao dos alunos com os professores no PVL emerge como um fator bastante
positivo para o desenvolvimento musical deles e tambm como um relacionamento que reflete
vrias faces de um processo interpessoal: a afetividade, a admirao pela dedicao e
competncia, a possibilidade de se espelhar como profissional e ser humano. Todos, sem
exceo, se referiram muito carinhosamente quando falaram dos seus professores. O
depoimento de Ademar pode ilustrar essa postura:
E o fato desse relacionamento ir alm de se ensinar msica nas aulas faz diferena na
anlise de como situaes pessoais, quando so consideradas pelos professores, funcionam
como um estmulo para que o aluno continue apesar dos problemas.
Esses fragmentos de depoimentos podem ilustrar o relacionamento dos alunos com
os professores, podendo-se inferir que o PVL tornou-se um espao prazeroso de se ensinar e
aprender msica. Ademar, refere-se com carinho e gratido aos professores e sugere que eles
sejam sempre do jeito que so: brincalhes quando tm que ser, quando tem que puxar a
orelha, puxam mesmo, no tem meio termo no, quando aquilo ali, aquilo ali mesmo e
espero que eles continuem assim. A noo de responsabilidade e compromisso com o Projeto
ressaltada por ele tudo tem que ter o momento de distrao e tem que ter o momento de
seriedade. Se a pessoa veio pr c, ela tem que sentar, ouvir e estudar porque ela est aqui pr
aprender mesmo.
114
A minha famlia sempre me deu apoio em termo de msica, meu pai sempre chegou
e (falou) no, isso que voc quer, vai fundo, eu te apoio, corre atrs mesmo, no
deixa de fazer...e hoje em dia ele fala at brincando meu irmo, se eu fosse voc eu
no largava a msica mesmo no. Cai dentro do saxofone, porque se eu te der uma
colher de pedreiro na tua mo, tu t ralado. porque eu no entendo nada, no sei
nada a no ser msica mesmo (CEVL_1, p. 7, Ademar dos Anjos, aluno formando
2004, 04/06/2004).
O fato das famlias da cidade de Mesquita estarem envolvidas com o PVL possibilita
uma divulgao na rede familiar e de amigos que se reflete, concretamente, na constituio da
Orquestra da Igreja Assemblia de Deus, constituda de 80% de msicos que estudam no
PVL: so trs clarinetistas, todos do PVL, O Fbio, o Fabiano e o Leandro; dois sax tenor,
115
com o Jesiel do PVL; dois sax alto com o Ademar do PVL; dois trombones, Daniel (PVL) e o
pai do Ademar; e trs trompetes com o Rafaelzinho (PVL). Eles ensaiam regularmente, aos
sbados, e tm como modelo a prpria vivncia na Orquestra Villa Lobinhos. Trata-se de uma
estrutura musical que d destaque Igreja, um espao de trabalho para os msicos e
congrega, atravs da prtica musical, valores de cunho espiritual e religioso.
Da mesma forma, Carla tem em seus familiares um suporte afetivo para continuar a
estudar msica. Seus pais se mostram orgulhosos em v-la se apresentar e ser aluna do PVL:
Minha me adorou, minha me e meu pai, cara, me do a maior fora. Eles adoraram
e se um dia eu quiser sair daqui acho que eles no deixam no...eles querem que eu
faa mesmo a faculdade de msica pr me tornar profissional. Meu pai ento, porque
meu av era cantor italiano...Meu pai toca um pouquinho de violo...e so muito
orgulhosos e falam pr todo mundo, toda vez que tem alguma coisa...(CEVL_1, p.
22, Carla Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).
A ausncia do convvio com uma famlia citada, pelos que no a tem, como algo
que se constitui em vcuo na sua existncia. Assim, as oportunidades propiciadas por projetos
sociais aparecem como uma representao social que minimiza essa ausncia, ou seja, a
representao da famlia se materializa em outra que o reconhecimento do espao fsico e
simblico do PVL como uma segunda casa. Trata-se de uma metfora associada a um
ambiente aconchegante, seguro, harmonioso em que se sentir bem a essncia da idia. Dessa
forma muitos os alunos e professores entrevistados indicaram, pelos depoimentos, a
construo dessa idia. Carla, aluna de flauta e formanda 2004, diz que o
Marquinhos, formando 2004, tambm destaca que o Projeto Villa Lobinhos aquela
segunda casa, aonde voc pode fazer o trabalho de escola, tocar etc. Isso aqui como se fosse
a nossa casa, uma segunda aqui, porque na nossa casa, a pessoa pode fazer tudo, aqui tambm,
diante de algumas regras, mas pode fazer tudo. Reconhecer que conviver em um espao
coletivo requer a observao e o cumprimento de algumas regras reflete a conscincia dos
direitos e deveres, valores relacionados construo e exerccio da cidadania que deve ser
exercitada a partir de micro-relaes, como Marquinhos exemplifica. Henrique, aluno de
cavaquinho do primeiro ano, ressalta situaes e aspectos que so vividos no cotidiano, mas
que quando embevecidos em uma dinmica ldica e prazerosa, produz um efeito
socializante altamente positivo e propcio para desenvolver um projeto pedaggico:
De acordo com Nohria e Eccles (1992, p. 32) o uso mais geral para o termo rede
para uma estrutura de laos entre os actores de um sistema social. Estes actores podem ser
papis, indivduos, organizaes, sectores ou estados-nao. Para os autores um ponto
essencial na formao de rede que os seus laos podem basear-se na conversao, afeto,
amizade, parentesco, autoridade, troca econmica, troca de informao ou quaisquer outras
coisas que constituam a base de uma relao (NOHRIA; ECCLES, 1992, p. 32).
A rede de sociabilidade que conecta as ONGs e projetos sociais ao PVL
multidirecional, no-linear e tem diversos elos ligados pelas esferas cultural, artstica,
institucional e pessoal presentes na sociedade da cidade do Rio de Janeiro que tem um
movimento social sui generes em relao a criao de ONGs relacionadas com a violncia
contra a juventude e que tomou flego a partir da Chacina da Candelria em 1993. Este
117
fator corroborado por Novaes (2002) ao destacar que na dcada de 90 mais do que nenhum
outro estado da federao, no Rio de Janeiro surgiram iniciativas inovadoras para fazer face a
esta situao de fragmentao social. A forte atuao das organizaes no-governamentais,
inseridas em espaos de grande diversidade cultural, transformou o Rio de Janeiro em uma
espcie de laboratrio social que inspira aes semelhantes em outros pontos do pas
(NOVAES, 2002, p. 12). E nesse perodo surgiram ONGs que podem ser chamadas de
comunitrias e da cultura cujo foco se caracteriza pela ...ao local e pela produo de
gestores locais. Dentre elas destacam-se aquelas que se caracterizarem atravs de um produto
cultural especfico (teatro, msica, dana, produo de vdeos) gerando novos tipos de
profissionais da rea de cultura e comunicao (NOVAES, 2002, p. 23).
Como j foi mencionado, a prpria concepo do PVL estabelece a conexo entre
projetos sociais ligados prtica musical no mbito da regio metropolitana do Rio de
Janeiro. Assim, podemos considerar uma rede estabelecida entre os projetos sociais j citados,
igrejas, escolas pblicas e privadas, considerando que o PVL promove concertos didticos
nesses espaos; instituies como o Museu Villa Lobos, Centro Cultural Campo Grande,
Escola de Msica da Rocinha, Instituto Moreira Salles, Pr-Arte, Reciclarte-Orquestra Grota
da Surucucu, Colgio D. Pedro II, entre tantos outros. Esta rede movedia e se re-estrutura a
cada novo contato estabelecido, quer seja pelas apresentaes, quer seja pela configurao de
alunos e professores que se formam a cada ano.
Os princpios constitutivos, ou seja, os valores e os objetivos compartilhados definem
a identidade da rede, assim como os princpios de natureza prtica configuram o processo de
atuao entre seus componentes. O cotidiano, com foco nas relaes que sustentam rotinas,
contm conjuntos de redes de relaes inerentes s atividades humanas de toda ordem. No
caso do PVL a prtica musical dos indivduos e dos grupos sociais, imantados pelos seus
contextos e pelo seu cotidiano, o fio condutor das atividades que do origem a redes de
relaes pessoais, musicais, etc. So redes espontneas que derivam da sociabilidade das
pessoas mediadas pela prtica musical que do sustentao aos propsitos do Projeto.
Exemplificando como os entrevistados da pesquisa entendem e reconhecem as redes
conectadas ao PVL, Carla destaca que sua participao na escola de msica Pr-Arte - um dos
projetos mais citados pelos alunos como um local de aprendizagem e performance musical -
estimulada pela convivncia com amigos da mesma idade e que tocam em grupo:
professor de violo daqui, toca trombone... a gente no p.a nada justamente por ser
bolsista, atravs da Tina, junto com esse convnio, cm o Villa Lobinhos. Nenhum
dos Villa Lobinhos paga (CEVL_1, p. 25, Carla Mariana, aluna formanda 2004,
08/06/2004).
A Pr-Arte tem uma ligao muito estreita com o PVL. Tina Pereira, flautista e
coordenadora do Projeto Flautistas da Pro-Arte, sempre inclui jovens bolsistas em seu
trabalho. Foi professora de flauta-doce no PVL, de 2000 a 2003 e estabeleceu um convnio
informal o que oportuniza os alunos participarem de um trabalho musical respeitado.
A proximidade com os autores, arranjadores, msicos famosos promovem um
processo de desmitificao desses e incide na qualidade da performance, que se torna
compartilhada com os autores. A participao dos alunos do PVL em diversos contextos de
ensino e aprendizagem musical possibilita novas inseres e fortalece a rede de formao de
jovens msicos, misturando, inclusive, classes sociais. Carla reconhece que se no fosse o
Villa Lobinhos ela no entraria na Pr Arte:
Para Marquinhos, participar da Pro-Arte foi uma experincia anterior a sua insero
no PVL. Foi encaminhado por Rodrigo e Tina quando tinha nove anos de idade. A Pr-Arte
tambm foi um incentivador de eu ter gostado de chorinho e de samba .
Jocielton conta que tinha muita vontade de conseguir uma bolsa e entrar na Pr-Arte
antes mesmo de ingressar no PVL. Conseguiu no primeiro ano atravs de um convite da Tina:
E eu aprendi muito, que l tm repertrios variados e j fizeram Noel Rosa, Pixinguinha,
Tom Jobim e agora no momento estou fazendo Baden Powell. Essa participao constitui-se
em uma prtica importante na formao musical de Jocielton e de todos os integrantes do
PVL Daniel, Ademar, Luis Cludio, Diego, Marquinhos, Carla pois trabalham naipes, os
diferentes grupos de instrumentos, e a prtica focada na performance do repertrio sobre o
qual so realizados ensaios de naipes na quarta-feira, e sexta-feira ensaio do grupo.
119
Outro projeto social bastante conectado com o PVL, no sentido de trnsito dos
alunos e troca de experincias entre os coordenadores, a ONG Escola de Msica da
Rocinha, j citada nesse trabalho. O que se pode ainda destacar o enfoque na relao da
Escola com a Comunidade da Rocinha que a aponta como um espao material e simblico
visto com muito carinho por todos os moradores de l. A relao de solidariedade entre os
projetos pode ser ilustrada pela cooperao entre eles quando h dificuldades. Carla relata que
pode estudar flauta transversal e doce porque a Escola empresta os instrumentos para o PVL:
como o Villa Lobinhos meio parceiro da Escola de Msica, ela cede o instrumento pr tudo
que eu precisar fazer; s se eu sair da Escola eu teria que devolver o meu instrumento. Dessa
forma, Carla, alm da Pr-Arte, participa ativamente dos dois projetos sociais e toca em
vrios grupos musicais como o Quinteto de Samba pela Escola de Msica da Rocinha,
composto por flautas, violo, cavaquinho, voz e percusso; um grupo de samba de amigos que
se juntaram, tocam na noite ganhando cach. E destaca que a base de tudo, o chorinho, eu
aprendi no Villa Lobinhos.
E a solidariedade entre os dois Projetos reconhecida por Gilberto, coordenador da
Escola de Msica da Rocinha, como um dnamo que otimiza o processo pedaggico-musical
de ambos, propiciando uma troca positiva, considerando que a proposta do PVL bastante
diferenciada dos outros projetos sociais, mas que se torna complementar.
Outro elo dessa rede a conexo que Rodrigo estabeleceu com o Colgio D. Pedro
II, escola pblica federal, onde est desenvolvendo a temtica da msica ligada questo do
mercado de trabalho. Para tanto elaborou com os alunos, um projeto de produo musical em
que os msicos contratados so protagonizados pelos alunos do PVL. Seu objetivo
promover um intercmbio entre os dois contextos de aprendizagem musical. A proposta
ensejou aos alunos do Colgio visitar o PVL, conhecer os alunos e a proposta socioeducativo-
musical.
Para desenvolver tal proposta, foi promovida, conjuntamente, uma produo musical
voltada para o repertrio de Tim Maia com a participao do diretor do Colgio D. Pedro II,
professor Andrezinho, fazendo um cover de Tim Maia, com o grupo instrumental do PVL
acompanhando. Esta apresentao ensejou uma grande movimentao entre as duas
instituies, com ensaios e a produo do espetculo que aconteceu no mini-teatro do
Colgio, com a presena macia de alunos e professores.
Pode-se perceber que existe uma solidariedade entre os projetos sociais e instituies
mencionados o que estabelece um vnculo produtivo entre eles. So relaes com forte trao
120
pessoal que se refletem na instituio, mas a origem do vnculo entre pessoas que tem
objetivos e ideais em comum:
todo, somam-se seis jovens moradores dessa comunidade que tiveram e ainda tem ligao
com o PVL. Marcio Selles expressa sua idia: A msica desafio e prazer. Tem o papel de
fazer as pessoas se encontrarem dentro da sociedade. Vrias pessoas dizem que a arte no
oferece retorno financeiro, mas h o aspecto da socializao, deles se juntarem. Sua mulher,
Lenora, educadora musical e outros dois professores, Fbio Almeida (tambm professor no
PVL) e Fred Lycurgo, alm dos monitores membros da orquestra, formam a equipe
pedaggica e administrativa do Projeto que ensinava apenas flauta. Os alunos solicitaram a
ampliao para estudar violino: Deu certo, eles aprendiam msica medieval e renascentista
mais depressa que meus alunos de colgios particulares. O repertrio engloba msica
popular brasileira e pea do repertrio clssico para orquestra de cordas com autores como
Bach, Corelli e Schubert, entre outros.
O relacionamento entre esses dois projetos tem caracterstica da horizontalidade,
otimizando as propostas musicais dos dois projetos sociais. Resulta em uma simbiose positiva
no aspecto pedaggrico-musical, pois os alunos dos naiopes das cordas e sopros puderam ter
no PVL uma formao que permitiram a eles atingir um nvel tcnico e interpretativo que
propicia a execuo de obras para orquestra e solo, as quais exigem uma formao orientada.
O trnsito entre as duas cidades acaba possibilitando que ambos os projetos se apresentem e
desenvolvam propostas socioeducativa-musicais em escolas, instituies pblicas e privadas
tornando-os conhecidos e reconhecidos pela qualidade do trabalho pedaggico-musical que
desenvolvem.
Joo Moreira Salles reconhece e sublinha que a relao entre esses dois projetos
sociais resulta em uma troca benfica e profcua para o desenvolvimento de ambas as
propostas pedaggico-musical:
eu sei de uma relao muito prxima com o pessoal da Grota e eu acho que ali h
uma troca de experincias que ajuda a ambos [os projetos]. Eu acho que o Mrcio
da Grota aprendeu muito com o Villa Lobinhos e na verdade alguns professores da
Grota so professores do Villa Lobinhos, dividem os mesmos professores e eu acho
que o pessoal do Villa Lobinhos se beneficiou muito do trabalho da Grota porque
pode incorporar Orquestra Villa Lobinhos um grupo de alunos e instrumentos
que no aparecem usualmente quando voc vai s comunidades carentes do Rio de
Janeiro. Se no fosse pelo [Projeto] da Grota [...] seria difcil imaginar que teria
violino, violoncelo, viola, os instrumentos de uma orquestra. Ento eu acho que ai
h uma mistura extraordinariamente saudvel de parte a parte (Joo Moreira Salles,
entrevista em 01/09/2005).
uma das visitas que fiz, chamou-me a ateno a forma como os coordenadores, Rodrigo e
Mrcio se cumprimentaram. Lanando mo de uma metfora para expressar essa impresso,
pareceu-me dois caciques de duas tribos se encontrando, com festa sonora, representada pelos
rufar dos instrumentos dos alunos, na chegada de Rodrigo ao espao do projeto. Este gesto foi
muito significativo e reporta-se perspectiva de Goffman (1988) sobre os smbolos que
transmitem informao social, sendo que este gesto coletivo pode ser considerado um smbolo
de prestgio de Rodrigo, corporificando o PVL, naquele momento.
Essa passagem foi significativa para a compreenso da dinmica da rede que tece as
prticas musicais entre os projetos e instituies que constituem os elos dessa trama
sociomusical, em que meu ponto de partida foi o PVL. Um, entre os possveis e inmeros
pontos de partida de uma rede e sociabilidade social. As favelas Comunidade do Morro Dona
Marta e a Comunidade Grota do Surucucu, em Niteri, so pontos importantes da rede de
organizaes que interagem com o PVL.
Considerando a relao entre as oportunidades e o espao urbano a trajetria de
Walther e Wagner, da Favela Grota do Surucucu, mostra como um trabalho social pode
ampliar as alternativas de percurso. Eles partem de um dado quantitativo para dimensionar
uma perspectiva qualitativa do impacto da prtica musical acessvel aos moradores da favela
mediante o trabalho da ONG Reciclarte:
Tem uma continha fcil. Dos mil, novecentos e noventa esto na boca de fumo..no
trfico. Andavam junto com a gente e at muitos j morreram. Oito estudam e dois
tocam violino e foi isso que aconteceu. Muita gente entrou no trfico e graas a
eles, porque a oportunidade eles tiveram tambm, mas no funcionou. E de repente,
at mesmo a gente, se no tivesse entrado na msica, como eu disse antes, a gente
no tinha perspectiva de vida e agora, graas ao tranco que o nosso pai deu na
gente, est dando certo.
E esses garotos acabam sendo pontos de abertura para outras redes como relata
Walther: comeamos a tocar em outros projetos tambm e samos nos infiltrando em vrios
projetos. Atravs da Orquestra de Cordas da Grota que descobrimos isso aqui [o PVL], daqui
123
forma de organizao onde os caminhos pareciam ter sido construdos de forma rizomtica,
onde cada beco leva a um caminho, que leva a um outro, um verdadeiro labirinto. Rodrigo
conhecia bem todos aqueles caminhos que, apesar de assimtrico, resultava em uma forma
que determina as pessoas a morarem to prximas, grudadas. As escadas, irregulares,
revelavam a forma improvisada de construo, como se as direes representassem as
decises do aqui e agora, ou seja, os problemas mais imediatos tinham que ser resolvidos e
no havia tempo para planejamentos. Rodrigo conhecia todo mundo, cumprimentava a todos,
sempre afetuoso, simptico e os retornos nos cumprimentos denotavam que ele tambm
muito querido e respeitado por l.
Rodrigo bateu e anunciou visita na casa de Nogueira e Leandro Serizac. Como no
nos esperavam, ficaram surpresos com minha presena. Nogueira foi afetuoso e sorridente e
Leandro ficou um pouco retrado. Foi um estranhamento para mim, pois sempre eu os via
na Casa da Gvea ou no Museu. Ali, tratava-se de uma outra realidade. E, na verdade, tratava-
se da real condio material de como eles vivem e que, apesar de terem um teto, lugar para
cozinhar, dormir, terem acesso a um computador, televiso, tudo carecia de um conforto
bsico. E fiquei pensando como eles lidavam com o contraste da Casa da Gvea, os palcos, as
apresentaes e o retorno ao cotidiano de suas casas. E, no caso deles, aquele espao
significava ter uma moradia, no morar em abrigos ou na rua.
Essa experincia deu uma outra dimenso para minhas reflexes sobre o significado
do PVL na vida deles e sobre as minhas indagaes sobre processos de ensino e aprendizagem
de msica em projetos sociais. Vendo as condies de vida deles, pensei: como ensinar
alguma coisa ignorando tudo isso? E como no aprender com eles sobre as subjetividades
determinadas por aquelas condies, cruciais em qualquer processo de ensino e
aprendizagem? Que esforo eles fizeram para superar outras condies muito piores, que j
haviam me relatado?
Depois dessa visita, chegamos casa de Diego e o pai dele veio nos receber.
Brincando muito com Rodrigo, subimos at o quarto dele. No quarto, Diego estava diante do
computador vendo fotos da banda que ele faz parte. Estavam l quatro alunos do PVL, em um
sbado tarde, unidos pela msica. Falaram sobre os ensaios no estdio em Botafogo e me
mostraram um CD demo que haviam feito. Aquele encontro de tantos ali no quarto do Diego
refletiu a dinmica da convivncia que eles travam fora do Projeto, principalmente no mbito
da comunidade Dona Marta. Haveria um ensaio naquela tarde de sbado e aquele encontro no
quarto do Diego refletia um jeito de convivncia catalisada pelos interesses musicais, mas
tambm por uma questo geracional e proximidade de moradia.
125
Luiz Cludio me convidou para assistir uma roda de choro que acontece todo
domingo tarde naquele bar e informa que os Villa Lobinhos sempre participam. Nos
despedimos com a promessa de que eu voltaria par assistir roda de choro.
Essa incurso pelo Morro Dona Marta me despertou para a importncia de uma
maior compreenso do ethos comunitrio dos participantes da pesquisa. A geografia urbana
do Rio de Janeiro reflete uma posio assimtrica na escala social e aquela incurso no Morro
Santa Marta me fez vivenciar concretamente essa assimetria. Isso se reflete, tambm, no
microcosmo do Projeto e no prprio espao da Casa da Gvea. E suscitou-me questes: Como
os alunos reafirmam seus valores e as afinidades musicais com seu grupo social mais
prximo? E como eles esto construindo pontes para buscar a interao e ampliar a
126
A cidade como possibilidade do novo e local do encontro significa que devemos ter
cincia e conscincia de lidar com o novo, o diverso, o outro, na sua acepo mais
ampla, ou seja, aquele que diferente de mim e que, por isso mesmo, sabe algo que
eu ainda no aprendi...Nas comunidades populares h sempre houve vozes
qualificadas, mas que no so ouvidas em funo do discurso paternalista ou
criminalizante sobre os moradores, que so vistos ora como carentes, ora como
potenciais criminosos, mas poucas vezes como parceiros na construo de um
destino comum para a cidade (PINHEIROS, 2003).
10
Pesquisa do IBGE 2004 - aponta a existncia de 1.269 favelas em todo o Estado do Rio. Niteri lidera no
ranking que compara o nmero de casas em favelas com total de habitaes, com 37% . Hoje, o nmero de
favelados representa quase 20% da populao total do municpio do Rio. Algumas comunidades viraram
complexos e ultrapassaram os 50 mil habitantes, enquanto reas como a Zona Oeste antes um vazio no mapa
viraram opo de moradia barata e hoje lideram o ranking de novas construes.
(<http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5&infoid=26>. Acesso em:
05 maro 2006).
127
formal, com suas ruas ordenadas a partir de um determinado referencial, com propriedades
juridicamente legitimadas e com toda uma gama de servios pblicos, da cidade dita informal,
a saber, as favelas, reconhecida, oficialmente, como lugar sem ordenamento urbanstico, de
ocupao informal dos terrenos e marcadamente carente de determinados servios e
equipamentos urbanos (PINHEIROS, 2003).
A favela, enquanto uma representao social , vem sendo definida pela mdia por
um discurso centrado na ausncia, ou seja, a favela pensada a partir do que ela no tem:
gua, luz, esgoto, asfalto, comrcio, cidadania imprimindo a ela o codinome de comunidades
carentes. Isso muitas vezes incomodativo para seus moradores que, ao contrrio, descrevem
a favela destacando o que ela tem, como ilustra a fala de Rodrigo:
..., eu fico muito p.. quando eu fico vendo l que, na favela, primeiro que s
mostram o trfico. s o trfico, trfico, o trfico de drogas, isso e aquilo. E no
mostra que existe, por exemplo, aquela roda de choro, no mostra que existe no
morro a Folia de Reis e que todo mundo vai l, acompanha a Folia de Reis e eu vivi.
Olha, graas a Deus eu vivi aquilo. Tinha coisas, assim, realmente na minha mente
que se eu pudesse apagaria. Mas foi importante para a minha formao tudo o que
eu vivi: a fase da bola de gude, da pipa, de voc ter que fazer a sua pipa, voc fazer
uma coisa chamada jrquinho l, com papel, rabiolinha e voc soltar, voc acaba
construindo o teu brinquedo e aquilo importante para a tua formao dentro da
favela. Eu vi coisas, brinquei muito de ciranda, muito de pique e esconde, muito do
pic tac, pic cola trs vezes e ningum mostra que existe essa coisa na favela! Na
favela s tem o trfico, pr mdia, pr todo mundo. E eu fico vendo s vezes e eu
vejo isso no colgio, que as pessoas escutam, um tiroteio no Morro do Vidigal,
tiroteio no Santa Marta, tiroteio na Rocinha, um problema da comunidade. Mas
no s tem aquilo, sabe? Outro dia estava na Rocinha e eu vivi muito isso no Santa
Marta tambm. E as pessoas estavam assim, tiro pr caramba... Ah, mas esse tiro
128
do lado tal, ento eu vou subir pelo outro lado., entendeu? As pessoas acabam
convivendo com o problema. Cara, sabe, eu vivo o tempo inteiro no Rio de Janeiro
com assalto. Voc liga uma televiso, tem um problema na Lagoa (Rodrigo de
Freitas), ento eu vou pelo Jardim Botnico. Ento, eu acho que o que me chateia
no mostrar esse outro lado que tem na favela, sabe? (CEVL_2, p. 55, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06/12/2004).
uma fronteira, que a coisa do territrio no Rio de Janeiro [...] muitos lugares
chamavam periferia, outros lugares chamavam bairro, outros lugares chamavam
vila. Enfim, est muito ligado, tambm, questo da violncia, porque voc teve um
encontro entre questo da no incluso econmica e a geografia da cidade, a
topografia urbana. Ento, nesse encontro a gente tem mais um recorte para separar
os jovens, so os jovens que vivem em um determinado lugar, quer dizer, alm de
ele ser diferente de classe, renda, raa... eles j so diferentes pelo lugar que eles
moram, e nessa rea, ento, que vo, sobre esses jovens moradores de certas reas
estigmatizadas da cidade, que vo, os projetos sociais dirigidos para jovens vo se
colocar. Em alguns lugares chamam de situao de risco, outros lugares, tem vrios
nomes para falar marginalizados, as camadas populares. Mas eu chamo muita
ateno que um jovem, que alm de ter que lidar com todos os preconceitos de
classe da sua cidade, tem que lidar com os preconceitos, tambm, do lugar onde ele
mora, ento uma discriminao por endereo. uma coisa que essa gerao de
jovens das grandes cidades - embora isso acontea tambm nas menores cidades
enfrenta hoje como um fenmeno, mas talvez com muita fora (CEVL_3, p. 4,
Regina Novaes, ISER Instituto de Estudo das Religies, 02/06/2003).
situao em crculos de criminosos: uma pessoa com ordem de priso pode contaminar
legalmente qualquer um que seja visto em sua companhia, expondo-o ordem de priso como
suspeito (GOFFMAN, 1988, p. 57-58). o que acontece com moradores da favela, como
relata Rodrigo:
...No ir l, por exemplo, outro dia algum me perguntou assim em entrevista: Ah,
mas como que voc conviveu com o trfico de droga?; Eu muito bem! Com o
trfico? Muito bem!; Mas como assim muito bem?; Eu no mexia com
ningum, ningum mexia comigo, o cara est l com o problema dele, tal, tal, tal,
um problema dele e o problema no era meu. Voc tinha que tomar um pouco de
cuidado que s vezes um problema que muita gente acaba, no tendo nada a ver,
mas acaba se envolvendo, por exemplo, bala perdida, etc, etc...Voc v as coisas ali
e quando tem problema com o trfico, um problema de trfico com trfico, trfico
com polcia e eu no tenho nada a ver com aquilo (CEVL_2, p. 59 a 62, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06-12-2004).
E,nessa dinmica, a idia de que o jovem que mora na favela no tem escolha vista
como uma radicalizao. Rodrigo fala sobre a seduo do poder que o trfico e a arma de
fogo exercem sobre o jovem reportando-se a uma experincia pessoal:
Com certeza existe esta radicalizao, mas eu costumo dizer que acontece o
seguinte: quando eu, por exemplo eu no vou falar que eu no acho legal eu fui
para o exrcito, era legal dar tiro, eu fiz um concurso pr polcia onde tinha prova de
tiro etc e convivi um pouco com armas, nesse sentido. E a arma, ela te d um certo
poder. Um poder que, voc sabe, se voc souber usar voc no tem problema com
assalto, com nada. E a, e cria ali, no traficante, na pessoa que est ali, at mesmo no
menino, um endeusamento que eu no consigo entender isso, o qu que essa coisa.
[...] Agora, dentro da favela falar que no tem escolha! Claro que tem escolha; tem
vrias, ainda mais hoje em dia: Escola de Msica da Rocinha, o Santa Marta tem um
projetinho l de violinos, o cara da Folia de Reis ensina como ser o palhao da Folia,
tem a capoeira, tem um grupo que faz jud, enfim, acaba tendo escolha sim, sabe, eu
acho que um exagero isso, existe um exagero a (CEVL_2, p. 59-62, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06/12/2004).
As pessoas tm uma idia de pobreza, de favela, que fica todo mundo triste,
passando fome, sabe? No ! Sabe, voc chega na comunidade e todo mundo tm
seu samba l e est todo mundo feliz da vida, sabe, ningum est triste, sabe? Ontem
noite mesmo, p, muito legal ver a alegria daquelas pessoas. (CEVL_2, p. 58-59,
Rodrigo Belchior, coordenador, 06/12/2004).
130
....um caminho que teve foi msica e a nisso, as outras pessoas ficam admiradas
com a minha tamanha percepo com a msica, tamanha inteligncia. Que eu podia
usar minha inteligncia na msica. E a nisso, tambm, no s as pessoas do morro,
mas como, tambm, as pessoas de fora que, tambm, tem aquela viso que
neguinho do morro propriamente seria bandido, sabe qual ? E a no tem aquela ...
a tem aquela discriminao e tal; e a quando eles me vm tocando na televiso,
dando entrevista, eles no se emocionam; ficam admirados com o meu talento. E
onde eu possa com meu talento - que no s eu assim, mas gente do morro, outras
pessoas do morro - tambm possa fazer a mesma coisa como eu estou fazendo, no
s com a msica, mas com outras atividades como artes, teatro e, com isso ter uma
viso diferente. As pessoas que esto fora do morro, que moram no asfalto tm uma
viso diferente das pessoas que moram no morro (CEVL_1, p. 84-85, Marcos da
Silva, aluno formando 2004, 31/05/2004).
Um ponto que foi destacado abertamente por Marquinhos foi a questo do racismo
vivenciada por ele nas interaes sociais propiciadas pelo trnsito em diversos contextos
sociais que o Projeto proporciona. A msica ocupa um espao na sua argumentao que no
se reduz a uma questo pessoal, acaba se configurando como um exerccio poltico quando ele
diz: ...outra coisa bem importante, a msica, tambm, deu possibilidade de a gente enfrentar
as coisas com cara limpa, com mente limpa, e ao esclarecer o que isso significa, reportou-se
a uma vivncia concreta na qual o estigma em relao sua cor foi expresso pelo olhar e pelas
atitudes:
MARQUINHOS Tem gente que no aceita pessoas negras tocando, sabe qual ?
A, por isso, a msica me deu a possibilidade de enfrentar isso com clareza, com
bastante fora e seguir em frente. Foi em uma situao,que no foi tocando, foi tipo
assim, antes de eu tocar assim, mas pela expresso da pessoa, eu vi que ela queria,
tava falando de mim, p: ele negro assim vai tocar aqui, aquilo ali, p! M [maior]
132
Maluco! Bota esse maluco para fora e tal. Assim, eu ouvi pela expresso dela
conversando, ele e mais umas pessoas l. A nisso eu fui l, toquei, botei, meti
minha cara limpa l e tal, meti um clareza e tal, fui em frente e consegui. A subi
com mente limpa, segui em frente diante dessas situaes, isso.
MAGALI E isso, como voc se sentiu, voc percebeu essas pessoas tendo uma
postura discriminatria e voc foi l, enfrentou de cara limpa, e a, como que voc se
sentiu depois?
MARQUINHOS - No vou dizer que eu fui vitorioso, tipo isso vai acontecer
sempre com a gente, ento sempre isso, as coisas que vem, a gente vai ter que
sempre enfrentar com cara limpa. Mesmo no sendo com essas situaes, em outras
situaes, isso s um obstculo na nossa vida. (CEVL_1, p. 83, Marcos da Silva,
aluno formando 2004, 31/05/2004).
Esse depoimento foi um dos momentos mais densos da entrevista. Foi uma ltima
fala que emergiu de um apndice de nosso bate-papo. Sua anlise sobre sua condio etno-
racial no ingnua uma vez que ele reconhece que isso vai acontecer sempre. A identidade
de ser msico confere a ele a possibilidade de subir no palco, ser protagonista, artista e
assim, ele desenvolveu uma capacidade de enfrentar situao como essa, colocando em
primeiro plano sua dignidade. uma questo arraigada e determinada historicamente, ligada
construo de uma identidade individual e coletiva. No se trata, portanto, de uma
E para confirmar que pode lutar contra esse estigma, ele refora suas convices,
confirmando, tambm, a capacidade de transformao que tem uma proposta de educao
musical voltada para o mundo social dos indivduos:
...E a minha msica me possibilitou isso tudo que eu tenho na vida agora [...] e
sem a msica a vida seria um erro, esse o meu lema, eu falo sempre comigo. Eu
acho muito bonito, eu acho muito bonito mesmo, enfrentar as coisas como no fosse
uma coisa qualquer, tipo, enfrentar as coisas com cara... com mente limpa. Essas
discriminaes que a maioria das pessoas tm, enfrentar. E sempre vai ter obstculos
na vida e sempre enfrentar com cara limpa, mente limpa. Pois , at me emociono
vendo assim, minha histria como no passado; sempre me emociono...quando vou
dormir sempre penso e reflito no que eu poderia ter passado sem a msica
(CEVL_1, pg 86 e 87, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 31-05-2004).
133
transmitir a msica para que elas se sintam bem tambm e para que alguns jovens -
tm muitos jovens aqui que entraram no Projeto e poderiam ter entrado para uma
vida ruim, num caminho ruim; e tem muito jovens l fora que, s vezes, precisam de
um opo a mais para que possam pensar: Opa, peri... se eu entrar pr isso aqui
tambm, de repente eu tenha uma chance... e tm, e acaba tendo e eu tento
transmitir isso para as pessoas em cima da msica (CEVL_1, p. 10-11, Ademar dos
Anjos, aluno formando 2004, 04/06/2004).
O que move Marquinhos a dar aulas para pessoas de sua comunidade, muitos so
jovens de sua idade, o fato dele poder dar aula para as outras pessoas ressaltando os aspectos
simblicos de sua ao:
...que eu aprendi aqui posso dar para outras pessoas, ensinar as outras pessoas,
porque tudo o que entra na vida da gente, tudo na vida que a gente recebe, a gente
pode dar. Isso a coisa que mais me chama a ateno, por causa do Villa Lobinhos.
Eu recebo e dou. Acho isso muito bonito e vai ficar marcado pr mim (CEVL_1, p.
72, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 31/05/2004).
na ddiva e aceitar livremente dar, receber e retribuir. Trata-se de uma obrigao de liberdade
[...] constitutiva do fato social; entre o indivduo e a sociedade no h mais uma ruptura,
mas uma gradao. Walther e Wagner, que foram os primeiros violinistas do que hoje a
Orquestra de Cordas da Grota do Surucucu, em Niteri, tambm relatam que
Para Luis Cludio, morar no Morro, sendo professor do PVL e de outros projetos
sociais, proporciona um tipo de envolvimento com os alunos e lhe d uma dimenso de seu
trabalho que traz um significativo diferencial, alm de imantar a comunidade de valores que
incidem na identidade coletiva e individual. Luis Cludio filho e fruto da Comunidade. Seu
depoimento expressa o significado desse pertencimento e o papel da msica nesse contexto:
Gvea, nas rodas de choro estimulam os alunos a experimentarem tudo que lhes aparece de
novo e isso amplia sua atuao como instrumentista.
Os depoimentos e a observao permitiram construir asseres de como eles se vem
no papel de alunos e como vem seus professores; como se d a escolha do repertrio e como
isso trabalhado para se atingir o ideal esttico que eles tm; que tipo de oportunidades
surgiram a partir de um maior acesso ao conhecimento musical; e como vem o presente e
quais suas expectativas em relao ao futuro.
A organizao do processo de ensino e aprendizagem baseado em um conceito de
currculo aberto, defendido por Turbio, em que o aspecto mais importante a relao
dialgica entre professor e aluno. Os contedos musicais no so pr-fixado, ou seja, o foco
do processo est na relao entre as pessoas e as msicas (KRAEMER, 2000):
Pachaebel com percusso!. E nessa anlise Rodrigo faz incurses sobre escolha de repertrio
e sobre a equalizao entre a msica popular e erudita: ...[dizem que] voc tem que tocar o
que o Rampal toca!. Mas porque eu tenho que tocar o que o Rampal toca? Ser que eu no
posso tocar o que o Pixinguinha tocou? Eu no posso tocar o que o Villa-Lobos deixou aqui e
eu ouvi isso: Tem que tocar por que Rampal o melhor! Ele tocou isso!.(CEVL_2, p.53,
Rodrigo Belchior). E o que caracteriza proposta pedaggica do PVL a abertura pr
diversidade cultural, abarcando os valores simblicos e a prtica musical que eles trazem
ampliando o repertrio, o conhecimento tcnico, esttico, elementos da estruturao musical e
da histria da msica
O relato de Rodrigo revela uma dimenso importante na ao de tocar, quer seja
individualmente ou em grupo e ressalta a importncia do protagonismo na ao: eles tocam e
o professor lapida, ou seja, existe um material musical para ser trabalhado a partir da
performance dos alunos. E o depoimento de Leandro Serizac pode ilustrar os aspectos
considerados por eles na construo de identidade do ser msico:
...na verdade quando eu cheguei aqui eu j sabia tocar alguma coisa, logicamente,
todos ns aqui quando entramos j sabamos tocar alguma coisa. S que eu no meu
caso, eu no sabia o que era msica ainda. Eu tocava, as minhas mos faziam a
msica, s que na minha cabea eu no sabia o que era. Ento o Villa-Lobinhos me
ajudou, nas aulas com o meu professor de cavaquinho, as aulas de percepo
musical me influenciou a saber mais sobre a msica. E isso foi ajudando conforme
os grupinhos de choro que a gente tocava e agora com esse grupo de samba,
tambm. Ento, juntando isso tudo, influenciou nesse grupo de samba e, de vez em
quando, estamos tocando [...] j fizemos vrias apresentaes importantes e isso
ajuda bastante (CEVL_1, p. 125, entrevista com o grupo de MPB, 15/06/2004).
...fazendo um clculo de tudo, foi maravilhoso porque foi uma aprendizagem que eu
nunca teria em outro lugar, s aqui mesmo e a nisso com os timos professores...
vamos falar, os professores daqui so os melhores do Rio. E foi uma carga muito
representativa para mim e que eu possa usar pro futuro ou tambm eu possa usar
para dar aula e usar a aprendizagem que eu tive aqui. Isso foi muito bom pr mim,
vai dar pr carregar pela vida inteira... (CEVL_1, p. 70-71, Marcos da Silva, aluno
formando 2004, 31/05/2004).
Ressalta como foi importante para a construo de sua identidade como msico e
como pessoa. Compararando sua performance musical de dois anos e meio atrs com a de
agora, ele diz:
139
...Poxa, totalmente diferente, eu entrei aqui - e no vou te falar que no era quase
nada eu era alguma coisa e com o ensino que os professores foram dando pr
gente, eu fui captando tudo que fui recebendo com muita fora e fui aprendendo, fui
aprendendo, fui aprendendo e agora como pessoa, como msico, como tudo eu sou
totalmente diferente do que eu era antes daqui. Eu pisei com o p esquerdo e vou
sair com o p direito (CEVL_1, p. 70-71, Marcos da Silva, aluno formando 2004,
31/05/2004).
Ademar, formando de 2004, destaca que foi no Projeto que aprendeu a lidar com
uma orquestra, a tocar com uma orquestra, a tocar com msicos, com instrumentos diferentes,
aprendeu a ouvir outros instrumentos alm do saxofone e desenvolveu um maior domnio de
sonoridade de seu instrumento. E todos esses aspectos contriburam para que ele pudesse estar
no Grupo de MPB. Aprendi ritmos, por exemplo, o samba, o choro. Nem sabia que existia
choro e s vezes escutava e nem sabia o qu que era. E aqui dentro, isso tudo serviu pr me
ensinar e trazer para o Grupo de MPB Isto Brasil, tambm (CEVL_1, p. 129, entrevista
com o grupo de MPB, 15/06/2004).
...eu peo chorinhos pr ele, ele sempre me d algumas dicas de chorinhos pr tocar,
me ensina algumas posies, mas isso no me impede nada de eu estar estudando o
cavaquinho sozinho! E uma coisa diferente, no sei explicar mesmo, porque o
cavaquinho ele mexe comigo [...] ele se relaciona com o pagode, samba e o chorinho
[...] esses ritmos so meus especiais que eu mais gosto na minha vida. A eu tenho
aquela preocupao de estudar, s que isso de estudar no acontece j com o
trompete, o trompete eu gosto tambm, mas o cavaquinho diferente...estudo todo
dia. (CEVL_1, p. 76-77, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
141
da Escola de Msica da Rocinha, foi apresentada ao grupo e logo estavam integrados. Essas
situaes que exigem uma competncia para tocar em grupo proporcionam Carla novas
aprendizagens, ampliando, inclusive, suas possibilidades profissionais como instrumentista:
...so msicos da noite e j tocam h bastante tempo, muito mais tempo do que
eu...eu estou comeando a aprender e ento eles me ensinam muita coisa como essa
questo de... ah, isso no est dando certo, agora beleza, vamos passar pr outra
coisa, sem precisar... porque como a gente est comeando a aprender agora, a
gente fica muito nervoso... ah, erramos isso aqui..., e eles no, a maior
tranqilidade, sabe, errou beleza, passa por cima e eles no esto nem a. Eles so
safos mesmo, muito prtico pr eles assim e isso eu quero adquirir pr mim pr eu
no ficar... que s vezes eu fico muito nervosa assim... Ai meu Deus, eu errei isso,
o que que eu vou fazer?. Eu no! passar por cima e bola pr frente. (CEVL_1,
p. 22, Carla Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).
E sobre um outro grupo que ela participa na Rocinha vale destacar a questo
geracional, pois se trata de sambistas da velha guarda que se renem toda tera feira na casa
do violonista. E para Carla o aprendizado est na possibilidade ..aprender um repertrio de
sambas da antiga que eu no conhecia... sambas da antiga mesmo e agora estou comeando a
conhecer e estou achando muito legal de aprender!
Mesmo no se dedicando com tanto afinco ao repertrio solo, como avalia sua
professora Andra, Carla, ao participar de tantos grupos, acaba por adquirir uma experincia
musical atravs de performance em grupo que lhe confere um diferencial como
instrumentista. O fazer msica em grupo parece ser um fator estimulador e determinante na
trajetria dela como flautista.
clarinete, o estudo das escalas, as passagens de uma chave pr outra, de uma regio pr outra
e quando voc conhece bem os caminhos voc no tem dificuldade de fazer quase nada
(CEVL_1, p. 38-39, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
Jocielton, flautista, toca de brincadeira violo e pandeiro. Como a flauta transversa
que ele estuda no cedida para sair fora da Casa, Jocielton tem que se deslocar para l e
estudar. Isso um fator que dificulta seu progresso, pois muitas vezes no tem condies de ir
todos os dias, o que obriga a escolher um dia na semana para poder se dedicar ao estudo.
Jocielton um dos solistas do Grupo de Choro e confessa sua paixo pelo gnero: quando
comeo a estudar eu passo meu repertrio de choro primeiro... (risos). Seu gosto pelo
repertrio de choro considerado por sua professora Andra e ganha espao nas aulas que
trabalha com ele suas dificuldades e busca ampliar, dentro do prprio gnero, a diversidade de
possibilidades de obras e estilos.
Destaca que os ensinamentos recebidos nas aulas individuais contriburam para sua
atuao como flautista:
Ademar fala como foi o seu aprendizado de msica neste perodo que ele estudou no
Projeto e diz que viu muita coisa e conseguiu entender muita coisa respeito de msica.
Sobre as aulas com Chico, ele diz:
...e ele com as tcnicas doidas dele, mas que funciona, comeou a descascar, me
lapidar todinho e tentar me colocar no eixo, tirar os vcios e... ento quer dizer, eu
fui aprendendo muitas coisas novas, fui vendo, por exemplo, percepo musical, a
ouvir alguma coisa e saber o que aquilo ali ...diferenciar um intervalo do outro,
146
...Vejo, as aulas tericas que eles tm, mesmo a prtica de conjunto e num nvel
bastante nico, a unio que eles tm ali dentro, no se formam msico isolados. No
Projeto eles so uma equipe e eles agem como uma equipe o tempo inteiro, eles se
juntam, eles fazem msica, eles conversam e alm da prpria msica, o projeto faz
com que eles se aproximem e criem uma relao de amizade e eu acho que isso
uma coisa que vai ficar alm do projeto. O Projeto est visando, bvio, msica, e
ali voc sente que eles esto vivendo msica, nas atividades em conjunto, nas aulas
tericas. Eu acho que isso de uma forma geral favorece o aprendizado (CEVL_2, p.
123-157, Emannelle Freitas, professora de trompete, 01/07/2004).
147
Com a Bia melhorou muito a minha leitura de partitura, agora estou sabendo tudo,
todos os elementos da escrita musical. Aqui diferente, aqui aula mesmo, aquela
que eu aprendo todos os elementos que compem a pauta musical, as coisas l
mais assim o repertrio de l [dos grupos e das aulas individuais], tem uma msica
que o pessoal est com dificuldade no ritmo, ela vai l ver com a gente se a gente
est vendo o ritmo direito (CEVL_1, p. 56, Antnio Jocielton, aluno formando 2004,
01/06/2004).
Na verdade eu j sabia o que era msica, porque o msico, cada um aqui quando
comeou a tocar o seu instrumento, j sabe o que fazer com o seu prprio
instrumento, s que a gente no tinha o qu: a teoria. A gente no sabia a teoria e eu
quando eu cheguei aqui no sabia nada de teoria e eu fui fazendo aula de percepo
musical, com a aula de cavaquinho, comecei a ler partitura e o Villa-Lobinhos foi
praticamente o que me facilitou nisso tudo aqui (CEVL_1, entrevista com o Grupo
de Choro, 21/06/2004).
Ler partitura no foi muita coisa difcil no, aprendi fcil; meti as caras a, aprendi
fcil, a quando algum v, quando t com uma partitura na mo assim, a a gente na
escola fica impressionado: v, como que voc sabe v as bolinhas, esses pontinhos
pretos, nessas linhas a... - No, isso aqui s estudar que voc aprende, s
esforo, esforo, esforo e aprende...todo mundo admirado (CEVL_1, p. 65, Marcos
da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
...quando a pessoa comea, como o professor falava, o Bodega l; o que ele fez? Se
passasse a partitura no comeo ns no ia pegar... na hora e ns no ia aprender
nenhum instrumento e o que ele fez, ele sentava assim, ele e eu assim e passava, ele
tocava e ele me passava. Mas hoje se voc fizesse isso, quer dizer, o professor est
ensinando assim com o instrumento, mas a pessoa em si, sente a necessidade de
aprender... (risos) de aprender o instrumento, de aprender a ler partitura, pr voc at
poder sentar com outra pessoa assim e saber argumentar (CEVL_1, entrevista com o
Grupo de MPB, 15/06/2004).
149
Sobre o status da leitura e escrita musical, Rodrigo cita Nogueira como um exemplo
de que h de se pensar na relativizao dessa competncia para como condio de se fazer
bem msica ou mesmo de pensar na identidade do ser msico, muito embora, a apropriao
dos cdigos e do conhecimento da msica de tradio escrita venha sendo reivindicada por
muitos msicos que no tiveram a oportunidade de ter acesso a esse conhecimento
sistematizado, como revela recentes pesquisas realizadas com msicos na rea de msica
popular.
...O maior exemplo que a gente tem disso, o Nogueira, preguioso no dia a dia pr
ler partitura. Oh garoto miservel pr ler, ele no gosta de ler partituras. Ele sabe ler,
ele cata milho, mas voc j viu aquele menino tocando, que monstro ? A gente
estava ensaiando ontem e voc pega vamos escrever aqui na partitura, no sei o
qu..., e ele virou P, mas escrever na partitura pr qu, olha aqui, isso
fcil... pom, pom, pom..., ele faz tudo, sabe? O ouvido dele uma coisa fantstica,
entendeu? claro que, ele lendo partitura, claro que, ele vai pegar uma partitura,
mas a preguia dele de ler, tirar uma msica lendo partitura, entendeu? (CEVL_2, p.
45-46, Rodrigo Belchior, coordenador, 08/04/2004).
Essa observao de Rodrigo revela como o mito da leitura e escrita musical no pode
ser tomado como uma condio essencial para ser msico e ser bom msico. Ler partitura
umas das formas de se ter acesso execuo musical de uma obra, mas um dos jeitos e
existem muitos outros que no diminui, a priori, a qualidade musical, a qualidade esttica de
uma performance.
Para Saulo, recm introduzido no PVL, ler um sonho e uma possibilidade de
aumentar sua habilidade no instrumento:
Essa competncia j lhe possibilita fazer arranjos para os grupos musicais de sua
igreja em Mesquita, o que confere a ele o status de arranjador da Igreja Assemblia de Deus
de Mesquita. Fazer arranjos significou para ele ter que aprender os programas de computao
que realizam edio de partituras, ampliando suas competncias como msico. Est
aprendendo nos computadores do PVL, orientado por Rodrigo e por Igor que j dominam os
programas especficos.
Fbio ressalta, ainda, que de uma maneira geral todas as situaes vividas no PVL
contriburam para que ele tivesse essa formao diversificada. Isso contribuiu para que ele
pudesse fazer arranjos: O grupo de choro me ajudou muito pr reconhecer as harmonias, a
aula da Bia e do Chico, ou seja, o Villa Lobinhos me ajudou pr caramba ao desenvolver meu
ouvido, minha cabea funcionar mais rpido a respeito de msica em geral. E essa habilidade
propicia ao Fbio elaborar arranjos e escrever partituras para o grupo jovem da igreja a partir
de CDs:
3.4.2 O REPERTRIO
...Aqui eu estudei bossa, estudei samba, vi muita coisa a respeito do jazz tambm,
apesar de eu no saber muito a linguagem do jazz, mas eu tive uma iniciao esse
tipo de linguagem...e forr, vi o forr como que se toca mesmo, o baio e tal e eu
152
acho bem legal mesmo...logo no incio quando eu entrei, a primeira pea que deram
pr gente estudar foi o Concerto de Brandenburgo...foi a primeira pea que eles
deram pr gente estudar...no conhecia. Alis, em termo de msica erudita, eu no
conhecia nada, nada, nada, nada!. No sabia quem eram os compositores, por
exemplo Bach, no conhecia Bach, no conhecia Mozart e aqui dentro do projeto eu
fui vendo a vida de cada um, fui aprendendo um pouco mais sobre cada um deles.
No vi todos, infelizmente, mas j aprendi bastante a respeito de alguns...na
orquestra...arranjo feito pelo Srgio Barbosa para a Orquestra (CEVL_1, p. 9,
Ademar dos Anjos, aluno formando 2004, 04/06/2004).
Como j foi mencionada, a rede tecida entre o PVL e as organizaes que trabalham
com prticas musicais tambm contriburam para uma significativa ampliao do universo
musical em termos de repertrio e experincias estticas vivenciadas pelos alunos. O que
ressalta que no obstante eles tenham tido a oportunidade de tocar o chamado repertrio
erudito, o que prevalece no gosto e na preferncia deles a msica popular. Haja vista que os
dois grupos estveis constitudos tocam gneros especficos do Choro e de MPB.
A paixo pelo choro e MPB permeia o repertrio que transita pelo Projeto.
Marquinhos j tem seus compositores preferidos: ... tm vrios compositores bons mas o que
eu gosto mesmo, mesmo de ouvir o Noel Rosa e o Pixinguinha. Meu repertrio tem de tudo,
tem chorinho, tem msicas de cmaras, peas de orquestra, tudo. Mas ressalta que sua paixo
mesmo o chorinho porque muito lindo,... inexplicvel falar...j vem de dentro, sabe, da
alma, j vem de dentro, mexe com o corpo, um swing...no vou falar que outras peas
tambm no tenham swing, mas chorinho... mexe com a alma, mexe com o corpo, mexe com
o sangue, mexe com tudo!
E conta que foi Rodrigo que lhe mostrou o primeiro chorinho que ele ouviu eu vi o
Rodrigo tocando e comecei a gostar e mexeu comigo, mexeu comigo e parece que me deu
um... no sei explicar, eu s sei que mexeu comigo. E Rodrigo, um choro escolado, vai
impregnando esse gosto, se espraiando pelos outros projetos sociais que os alunos
freqentam, e a troca de repertrio acontece:
...eu lembro a primeira vez, eu peguei uma msica, um arranjo do Cascatinha que
um choro maxixe do Pixinguinha e fui ensinar pros meninos da Grota e tinha muita
sncope... Mas... ah! No sei ler isso, a gente nunca leu isso!; e eu falei: Vamos
tentar, vamos l! e ficava l e deu muito trabalho preparar aquele arranjo, muito,
porque os meninos da Grota no tinha esse contato com o cavaquinho ou flauta e
todo mundo do PVL j tocava choro pr caramba.Eu acho que foi ali que comeou a
coisa deles comearem a tocar choro. A prepararam l um Tico-Tico no Fub.
Isso l na Grota. Eles vieram pro Villa-Lobinhos sem saber o que era sncope, nunca
leram uma sncope, eles falaram mesmo...Ah, mas muito difcil e tal.. E ali ns
comeamos...eles trazem para os outros alunos a coisa do erudito, e a galera do
cavaquinho, da flauta, d pr eles, acaba dando pr eles a coisa da msica popular.
Tanto at que esto sempre transitando nos dois, nos dois lados (CEVL_2, p. 67-68,
Rodrigo Belchior, coordenador, 06/12/2004).
153
termos de nmero de pessoas envolvidas, o que gera demandas compatveis com esse tipo de
gesto do Projeto.
...eu adoro participar da orquestra...os arranjos esse ano esto bem difceis fazendo
com que a gente estude. legal voc ver assim, at mesmo porque, se no fosse
aqui, eu no teria oportunidade de tocar com trombone, com violino, saxofone, eu
no teria oportunidade de tocar com esses instrumentos (CEVL_1, p. 23-24, Carla
Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).
a proposta era fazer pequenos grupos mesmo, mas abrindo o leque musical. Como a
diversidade de instrumento foi se ampliando dentro do grupo...foi meio que uma
surpresa pr eles e quanto pr mim tambm, porque no foi uma coisa que foi assim:
vamos organizar uma orquestra, que a gente vai criar um arquivo, que a gente vai
156
fazer isso, que a gente vai..., no, a gente vai fazer, se for possvel a gente faz.
(CEVL_2, p. 96, Srgio Barbosa, regente da orquestra, 16/06/2004).
...uma das primeiras msicas que eu fiz o arranjo [em 2001] foi A Mar encheu do
Guia Prtico [de Villa Lobos]. Essa pea emblemtica, foi importante para o
desenvolvimento social e artstico dos alunos do PVL, pois ela fez abrir a mente
deles no que diz respeito ao valor artstico e social do cancioneiro infantil. O
comentrio do grupo no incio foi: msica boba, infantil e a gente no quer tocar
isso... voc s quer dar msica que pr gente no interessa.... Quando fizemos a
primeira leitura do arranjo feito especialmente para aquele grupo, trazendo estruturas
rtmicas que eles conheciam, a surpresa foi geral, pois eles encontraram uma obra
lhes fornecia prazer em executar. E a quando a gente tocou, eles falaram: P, que
legal! Isto foi muito importante para implementao de novas obras musicais [...]
conseguimos preparar "O Trenzinho do Caipira" unindo o aspecto pedaggico e o
artstico mediante um processo conduzido pela performance musical, mas sempre
considerando as possibilidades do grupo (CEVL_2, p. 96, Sergio Barbosa, regente
da orquestra, 16-06-2004).
Srgio disponibilizou para essa pesquisa os arranjos das obras A Mar Encheu
(Anexo A, obra completa) e do Trenzinho Caipira (Anexo B, um trecho da obra), onde se
pode notar a concepo timbrstica estruturada a partir dos instrumentistas que compunham o
grupo e, tambm, a re-leitura de obras tradicionais, incorporando uma ambincia sonora
familiar ao grupo. Os instrumentos de percusso utilizados na escola de samba, violo, a
incluso do cavaquinho, flauta doce, so novidades no arranjo que integra todos os
instrumentistas do PVL mediante performance coletiva. (Vide faixa 1 e 2 do CD, Anexo C)
O trabalho com a Orquestra foi se tornando atividade obrigatria com o repertrio
ampliado para todo o Guia Prtico de Villa Lobos. Peas de compositores como Bach, a ria
da 4 corda, o concerto de Brandenburgo; Mozart com um arranjo da obra Je vous dirai,
mama, so executadas, tambm, meditante uma re-elaborao que resulta em novos arranjos;
a Bagatela de Beethoven e outros arranjos de MPB, constituindo-se em um repertrio ecltico,
possvel de ser apresentado em salas de concerto e espaos pblicos abertos, escolas, etc. A
Orquestra Villa Lobinhos est se preparando para gravar em CD o registro da produo
157
...a questo que a teoria a gente aprende tocando, o exerccio da teoria se faz na
prtica. Como que a gente vai conhecer uma msica barroca? Como
instrumentista importante tocar. Pode tocar mal, pode tocar desafinado etc. etc. E
a eles vo sentir a dificuldade que aquela msica... sentir que aquela msica precisa
ser trabalhada dessa ou daquela maneira. Estaro vivenciando aquela msica e no
escutando somente e botar o CD e P... Corelli legal, o Bach legal.... Ouvir
muito importante, mas no vou tocar por qu? Ento vamos botar pr tocar, pr
ter essa conscincia e a eu trabalho com a Orquestra (CEVL_2, p. 96, Srgio
Barbosa, regente da orquestra, 16/06/2004)
3.4.5 AS APRESENTAES
...um dos concertos aqui no Villa Lobinhos, foi na Ceclia Meireles, concerto aberto
grande, que gostei pr caraa, foi com o Gilberto Gil cantando com a gente e que foi
no ano passado [2003]. A foi timo poder tocar e ao mesmo tempo poder assistir
ele cantando junto com a gente...Gilberto cantando a msica dele com o arranjo do
Srgio Barbosa, o nosso maestro...tocar com ele, nosso atual ministro, maravilhoso
tambm. Gostei pr caramba de poder tocar com gente mais conhecida (CEVL_1, p.
43, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
no pode ter horrio fixo, no pode dar brechas para concesses, pois a responsabilidade com
a integridade e segurana de cada jovem do Projeto at que todos cheguem em suas casas.
Sendo assim, Rodrigo responde pelo PVL; s se compreende tal dimenso quando se
acompanha os bastidores de um trabalho dessa natureza. Essa me pareceu ser uma das facetas
que caracteriza o trabalho em uma ONG, uma polivalncia na gesto da diversidade de
situaes inerentes.
Henrique, aluno de cavaquinho do segundo ano, enfatiza que todo mundo gosta e
considera importante tocar representando o PVL porque voc est divulgando e sempre vai
pintar mais oportunidades de apresentar. Os Villa Lobinhos entendem que alm da msica o
grupo pode evidenciar signos que identificam o grupo como pertencentes ao Projeto, ou seja,
ao se apresentarem eles, literalmente, querem vestir a camisa do PVL. um valor agregado
que reflete a noo de pertencimento do grupo (CEVL_1, p. 112, entrevista com o grupo de
choro, 21/06/2004).
160
Uma apresentao que pude acompanhar durante meu trabalho de campo foi o
Concerto intitulado Exploso Musical Brasileira em 17 de junho no Teatro do BNDES, uma
grande sala de concerto. O evento fazia parte de uma srie de concertos com o patrocnio do
prprio Banco. Esse concerto teve uma programao voltada para a msica erudita mesclada
com a msica popular e teve a estria mundial da obra Exploso Brasileira Francisco Frias.
Foi um concerto em que todos os integrantes da Orquestra se comportaram como profissionais
tarimbados no palco, sendo ovacionado ao final. Sobre esse concerto, Turbio destaca:
Voc viu que na hora que eles entraram, eles tomaram todo o tempo possvel para
afinar a orquestra, afinaram e tocaram com cuidado com a afinao lascada, porque
s vezes tm princpios que so elementares, mas voc tem que impor o princpio,
entende? Eu gosto de casa limpa...admito poeirinha embaixo do tapete, casa limpa
casa limpa, msica afinada msica afinada, no tem jeito. Se voc for relapso com
o seu instrumento, daqui a pouco o som est sendo relapso, tambm, a msica vai
ser uma droga, vai ser aquela coisa mais ou menos, entende? Msica um negcio
que se toca afinado, entende? E esse conceito entrou na cabea deles de tal ordem, e
voc no imagina... para minha alegria que foi, de repente ver ali no concerto um
capricho com a afinao, o Igor l mandando nota pr tudo quanto era lado e uma
coisa maravilhosa, entende, isso a no tm preo! (CEVL_2, Turbio Santos, diretor
geral, 31/06/2004).
Orquestra Villa-Lobinhos
Exploso Musical Brasileira
Programa
Estudo n 11 H. Villa-Lobos
Paz/Dona Judith/Back to Brazil/Rio das Ostras Francisco Frias
Felicidade Tom Jobim/Vincius de Morais
Guia prtico H. Villa-Lobos
- A Mar Encheu
- O basto ou Mia gato
- Meninas/Carneirinho, carneiro
- Bela formosa
- Ciranda,cirandinha
- A roseira;
- Samba-lel
- Na corda da viola
Trenzinho caipira H. Villa-Lobos
Valsa da dor H. Villa-Lobos
Corcovado Tom Jobim/Vincius de Morais
Feitio da Vila Noel Rosa/Vadico
Quando voc entra, j fica j pesquisando um pessoal que tem mais ou menos
[prtica], e voc j vai pegando o seu repertrio. No primeiro ano voc s monta o
seu repertrio e vai estudando, estudando e quando chega no segundo, voc pode
formar seu grupo: voc chama um violo, chama um pandeiro, chama um cavaco e
forma um grupo, ou de choro ou de samba, o que quiser. E a a gente formou o
grupo e comeou com seis componentes e depois entrou mais um e foram sete e a
depois desfez o grupo e agora remontamos um grupo com cinco componentes com
uma formao instrumental que tem flauta, trombone, um cavaco, um violo e um
pandeiro (CEVL_1, p. 51, Antnio Jocielton, aluno formando 2004, 01/06/2004).
163
Daniel diz que se interessou pelo choro porque considera uma coisa assim bastante
swingada, bastante divertida, uma brincadeira, d pr voc se movimentar, d pr voc
fazer vrias coisas. difcil ter um trombone, tocar choro e ter essa oportunidade, uma
experincia diferente para ele. J Serizac comeou a gostar de choro desde o comeo de seu
contato com o cavaquinho
...l onde tem uma orquestra de cavaquinho, onde meu professor me ensinou, dentro
de um abrigo...eu nem sabia o que era choro. Depois que eu aprendi a tocar o
famoso Brasileirinho, conhecido internacionalmente, foi como eu comecei a gostar
de choro...Eu estava tendo o meu curso aqui no Villa-Lobinhos e a foi o que mais
me aproximou do choro com o pessoal daqui (CEVL_1, p. 100-101, entrevista com
o grupo de choro, 21/06/2004).
Jocielton diz que sua paixo pelo choro aconteceu quando ouviu Carinhoso de
Pixinguinha. eu vi o compositor que era o Pixinguinha e comecei a me interessar pelas
partituras e a eu peguei um livro, que o Rodrigo me emprestou, e comecei a ler e achei super
legais as msicas dele. Comecei a tocar e a gostar mesmo de choro. O acesso a essas msicas
que no circulam na mdia fez uma diferena na preferncia e gosto musical de Jocielton.
Nesse encontro eles encerram tocando uma srie de chorinhos do repertrio que o
grupo j tem montado: Bons Tempos de M. DAgostinho, Flor Amorosa de Anacleto de
Medeiros, Polichinelo de Gad e Almir Grego e Meloso de Jose Maria de Abreu (Vide
faixa 3 do CD, Anexo C ). Esses fragmentos de falas e de msicas mostram como o resultado
musical do grupo co-construdo. Trata-se, tambm, de um processo aberto para novas
formas e contedos, em que o carter ldico, o prazer de experimentar, colocar e tirar coisas,
esto em pauta. A msica se apresenta como um elemento que mediatiza processos e relaes
entre os participantes do grupo, constri uma identidade musical prpria do Grupo porque
mobiliza questes, conflitos, consensos e propicia o exerccio da argumentao na defesa das
idias propostas, assim como o exerccio da escuta do outro, de sua fala e de sua msica.
166
O Grupo de MPB formado por seis msicos: Igor (flauta transversal), Diego
(bateria e percusso), Leandro Serizac (cavaco), Pedro (violo), Ramon (violo), Rafael
(contrabaixo eltrico), Ademar (sax). Foi constitudo em maro de 2003. Todos esto
integrados ao Projeto Villa Lobinhos, sendo que Rafael Nogueira, Igor, Serizac, Diego, Pedro
e Ramon j concluram os trs anos de curso. A idia do Grupo se tornar um conjunto
musical profissional e j buscam patrocinador para bancar pelo menos duas msicas gravadas
em stdio para um CD demo. O repertrio voltado para a msica popular brasileira,
incluindo o samba e a Bossa Nova.
repertrio: Agora, uma msica do Noel Rosa que se identificou com o grupo legal, ficou
legal, foi o Feitio da Vila. Ficou maravilhoso! ressalta Igor.
Ao serem questionados sobre a relao entre o Grupo e o PVL eles so categricos
em afirmar: No teria o grupo...a constituio do grupo, nasceu dentro do projeto...Se no
fosse o Villa-Lobinhos ningum iria estar tocando assim...tocando ia estar, mas no no grupo
e nem com tantas qualidades assim. Assim, eles reconhecem que o PVL d um suporte
importante para o trabalho deles, pois seno, teriam que alugar um studio que muito caro e
ningum ali poderia bancar o custo. Alm disso, eles citam as apresentaes que o Rodrigo
consegue para eles. Ressaltam, ainda, o suporte pedaggico, psicolgico que o Rodrigo d.
A idia que Rafael defende a de buscar uma certa autonomia em relao
dependncia da estrutura do PVL, conseguir os equipamentos e instrumentais prprios e
construir uma identidade prpria do Grupo : que nem um grupo que tocava aqui, o Rabo de
Lagartixa, que era um grupo de choro que tocava aqui no Museu, ficou um tempo num sarau
que tinha, depois saiu e hoje um grupo de choro famoso que toca a [...] a gente quer
tambm fazer esse mesmo caminho deles, tudo garoto jovem. Mas, faz questo de lembrar
a figura de Turbio Santos como um grande responsvel por isso tudo...d uma fora pro
projeto; ns vamos tocar em um casamento, ele que arrumou pr gente [...] O Turbio uma
figura forte no cenrio musical nacional e internacional. E destaca que a viagem internacional
para Portugal, foi conseguida por ele. Igor, d um destaque com o consenso de todos:
3.4.7.2 PROFISSIONALIZAO
Os integrantes
do Grupo fazem uma
anlise da trajetria do
trabalho e do indicativos
de que esto caminhando
para um profissionalismo,
como destaca Diego: Eu,
por exemplo, o Pedro, o
Nogueira e eu, a gente faz
free lancer num grupo de
pagode, j estamos
encaminhando para o profissionalismo...ganha um dinheirinho a [...]10 reais, 15 reais, 30
reais...(Trecho com vrias vozes falando juntas)...no 40 no?(risos).
Nogueira conta que sempre solicitado como contrabaixista para tocar em bailes de
forr e j pensa na postura profissional:
Eles dizem gostar de pagode e forr e no ter nenhum preconceito com estilos no,
mas o ruim do pagode que... toca em morro, em favela e quando o grupo est
comeando..., fica uma reticncia que sugere um receio de colar na identidade do Grupo o
estigma de ser msico de morro e favela. E eles vo conjeturando sobre essa questo:
...eu acho que esto todos bem encaminhados, porque todos esto fazendo parte de
grupos e o grupo uma coisa que solidifica muito as relaes humanas e uns vo
dando fora aos outros e aquilo vai se desenvolvendo por si mesmo. E acho que tem
essa questo dos grupos l no Villa Lobinhos que a grande vitria, digamos assim,
da situao deles e que esto se profissionalizando. Todos os alunos que eu tive, tm
essa tendncia profissionalizao, j. Eles podiam estar mais embasados mas com
o que eles tm j conseguem muita coisa (CEVL_2, p. 86, Andra Ernest Dias,
professora de flauta, 04/06/2004).
conhecimento, fruto de um processo dialtico. Como j foi destacado por Turbio, a escola
nasce na hora que voc percebe quem est vindo pr escola.... Eu vou ensinar alguma coisa
que voc vai me trazer a lenha, porque sem a sua lenha eu no fao a fogueira. Assim, os
professores trabalham com liberdade para escolher a metodologia, repertrio, estratgias
didtico-pedaggicas e os alunos usufruem disso, tomando iniciativas de vrias ordens que
incidem no processo pedaggico.
Uma caracterstica na formao dos professores que a grande maioria transita de
maneira prtica e competente entre os contextos da msica popular e erudita. Conhecem a
linguagem musical, repertrio, os rituais especficos, o que d condies de se trabalhar com
os alunos um amplo leque de possibilidades musicais, considerando o conhecimento que eles
trazem, geralmente oriundos da cultura popular.
Rodrigo acha que o mais prazeroso nesse processo o seu papel de ser um
psiclogo, um conselheiro que propicia momentos de conversas com os alunos para contar
um pouco da sua experincia, falar o que viveu, que teve vontade de desistir vrias vezes
como eles:
Na verdade, eu coloco de uma maneira geral, a parte de rtmica, por exemplo uma
leitura bsica e incio dos valores, das notas, um pouco de melodia pr cantar as
melodias juntos, par se poder ter a noo de onde comea, onde termina, qual a
parte A, qual a parte B, essa parte estrutural. A parte rtmica, a parte de leitura e a
parte tcnica normalmente eu pego a partir do que eles se interessam mais: pode sair
do rockroll e pode terminar no samba cano, mas se eu comear com um samba
cano, ele j vai ficar... entende? Quer dizer, comeando pela parte que eles esto
mais interessados, em fazer um grupo, em tocar junto. E a partir dali voc vai pr
outros lugares e ensina basicamente todas as coisas brasileiras, que eu acho super
importante pr eles; e aprendendo tudo, de uma maneira geral, pr ser formado em
tocar baile, pr conhecer o que bolero, o que samba cano, as coisas de
antigamente, at o Hip Hop, at a msica eletrnica de hoje, a noo disso tudo
(CEVL_2, p. 111-112, Ricardo Costa, professor de percusso, 09/06/2004).
171
...eu como professor, tenho uma caracterstica bem prpria, quer dizer, sempre me
perguntei quer dizer ou at me cobravam um pouco sobre isso esse mtodo...na
verdade no tenho um mtodo especfico, existe um mtodo que est l o livro todo
escrito e tem a ordem toda das coisas pr voc ensinar pro aluno...tm vrias coisas,
vrios mtodos que eu no uso e praticamente eu uso todos e no uso nenhum ao
mesmo tempo. Porque, aquele negcio que a gente conversou sobre os alunos: tem
aluno que aprende olhando, tem outro que aprende de trs pr frente, tem outro que
aprende tudo menos a teoria, tem outros que aprende s a teoria e no aprende a
prtica]tal..., tem uns que j querem chegar tocando rock e como que voc chega a
esse aluno, como que voc chega a ensinar o mximo possvel, a botar essa
semente? Voc joga um monte de sementes, no vo nascer todas, vai nascer uma,
vai nascer duas, dez e eu acho que basicamente isso, voc tentar pegar a
caracterstica, a personalidade do garoto e dar o mximo que voc puder (CEVL_2,
p. 111-112, Ricardo Costa, professor de percusso, 09/06/2004).
...o Diego chegou [em 2001] sabendo alguma coisa, no sabia muita coisa e hoje em
dia [2004] ele completo, ele faz arranjo, ele l, ele escreve, ele tem idias, ele se
interessa por harmonia, por melodias, aprende a tocar um instrumento de harmonia e
como msico, como baterista, como percussionista completo! Eu posso coloc-lo
onde eu estiver tocando que ele vai tocar. E um grande prazer,, em trs anos voc
conseguir fazer isso. Quer dizer, hoje tem alguns tambm que tem muito talento,
mas a maioria deles, eu acho que a grande diferena dos meus alunos das aulas
particulares que eles vo fundo. Eles esto interessadssimos em tudo, em se
formar mesmo como msicos profissionais. (CEVL_2, p. 115, Ricardo Costa,
professor de percusso, 09/06/2004).
Outro exemplo citado por Ricardo o caso de Bruno, aluno que ele considera
excepcional na execuo do repenique, que foca o processo de aprendizagem dinamizado pela
relao horizontal que forma uma cadeia, uma rede entre os alunos, muito eficaz para
aprender coisas novas.
172
...eu vou falar um pouquinho da dificuldade em aceitar uma metodologia, por parte
do aluno [...] porque um pouco difcil, s vezes, voc estar sempre tendo que
estimular o prazer da pessoa. importante o prazer do aprendizado, mas em alguns
momentos voc tem que dizer que no s prazer de tocar - tem que predominar o
prazer de tocar - mas voc precisa de algum de um passo a passo que eu acho que s
vezes tm dificuldade, eles tm dificuldade de entender. Mas isso, eu tenho que ter
aquele jogo de cintura, o famoso jogo de cintura brasileiro pr no deixar a peteca
cair. Eu acho que eles podiam ter um aproveitamento, talvez, um pouco melhor,
apesar de eu achar que eles esto sendo bem aproveitados e esto aproveitando
bem... (CEVL_2, p. 85-86, Andra Ernest Dias, professora de flauta, 04/06/2004).
Eu, na verdade, acho que eles no pensam muito no futuro. Eu no sinto muito essa
preocupao do estudante agora...de uma maneira geral... 14, 15 anos... ento eu no
vou dizer olha, se voc estudar 6 horas por dia, 3 horas por dia daqui a dois
anos voc vai estar tocando tal concerto e no sei o qu..., eu acho que pr eles
no significa muita coisa. Talvez para o PVL signifique mais eles estarem no
momento se apresentando numa escola, dialogando com as pessoas, sabendo que
esto saindo de uma situao mais difcil e aproveitando um momento melhor. Uma
viso mais ampla, assim, daqui a 10 anos, difcil para o adolescente. Pr gente
difcil imagina pr eles (CEVL_2, p. 85-86, Andra Ernest Dias, professora de
flauta, 04/06/2004).
..Est abolindo muita [coisa].. porque quem est nos trazendo currculo, quem est
nos ensinando a ensinar, so eles. Ento existe uma grande liberdade curricular no
Villa Lobinhos, existe um contato direto professor-aluno, entende? E de preferncia,
ncleo pequeno de professores, de maneira que o trnsito muito forte. D
influncia para os professores e os professores esto aprendendo muito com os
173
alunos. Isso fundamental e por isso os resultados esto sendo to bons. Quer dizer,
eu digo isso, modestamente, porque s botar pra tocar ali fica todo mundo de boca
aberta e eu tambm fiquei de boca aberta! (CEVL_2, p. 8, Turbio Santos, diretor
geral, 02/06/2004).
E sobre o futuro do PVL, Turbio fala a partir de uma realidade concreta conquistada
pelo Projeto que construiu uma base para projetar um futuro no qual os alunos so os
protagonistas como profissionais ou no:
...o futuro do Projeto Villa Lobinhos depende de duas coisas na minha opinio: da
prpria sociedade, e os garotos. Eles so o futuro do Villa Lobinhos. O que ns
estamos vendo agora, o primeiro passo para o futuro deles foi a criao da Orquestra
dos Villa Lobinhos, que vai permanecer. O segundo passo deles vai ser a entrada nas
universidades e na vida comercial. Uns vo freqentar a universidade e outros vo
175
freqentar a profisso onde ela estiver, tanto pode ser a noite, como pode ser em
gravaes e pode ser [...] Acho que os Villa Lobinhos, o futuro agora est com eles,
entende? Eles tiveram um bom salto na vida e vo provocar salto na vida de outras
pessoas tambm. Quer dizer, vo ajudar as pessoas a darem um pulo pr cima ou
saltarem alguns dos obstculos sociais que so danados de grandes (CEVL_2, p. 24-
25, Turbio Santos, diretor geral, 30/06/2004).
...E eu acho que a msica ajudou muito e ele mesmo confessa isso, ele fala isso e ele
acha que se no fosse a msica ele no saberia o que seria da vida dele, entendeu? E
na verdade, tanto que hoje ele pensa em fazer milhes de coisas, nada muito
estruturado na cabea dele, mas ele pensa, entendeu? Talvez se no fosse a msica
ele nem pensaria isso, estaria fazendo outra parada, entendeu? Mas a maioria acaba
indo...mas, tudo est dando certo e que em time que est ganhando no se mexe.
Tem que ir por esse caminho mesmo...(CEVL_2, p. 56-57, Rodrigo Belchior,
coordenador, 06/12/2004).
Joo Moreira Salles expressa sua percepo sobre o trajeto histrico desses cinco
anos do Projeto Villa Lobinhos, acentuando que acredita em processos que so resultados
do dia a dia e no em transformaes milagrosas da hora pro dia, e projeta esses processos
na perspectiva da possibilidade de transformao na vida dos participantes do Projeto:
O Villa Lobinhos est no quinto ano [...] ele j uma histria na memria, ele j
produziu uma cultura e essa cultura eu acho que afetou positivamente a vida das
pessoas envolvidas com ele. No s os alunos com tambm os professores, os
padrinhos, as pessoas que conceberam o Projeto. E e eu acho que, portanto, isso d
pra gente uma certa projeo frente ao mundo, digamos ao nosso pas, que
positiva e que no s deles em relao a comunidades deles, mas a nossa em
relao a ns mesmos. bacana poder dormir a noite dizendo: olha, criamos uma
coisa que j tem cinco anos e que tem dado resultados, e eu acho que de uma
maneira muito prtica e concreta importante que grande parte desses meninos
176
conseguem viver daquilo que aprendeu no Villa Lobinhos, e isso j uma profisso
pra eles [...] boa parte deles vive e isso se tornou uma profisso com a qual eles
pagam aluguel compram a comida, namoram, se vestem, se divertem, viajam e eu
acho que isso que a gente pode esperar de um projeto desses, e nesse sentido eu
acho que deu certo (Joo Moreira Salles, entrevista em 01/09/2005)
eu acho que um projeto que conseguiu algumas coisas extraordinrias. Quer dizer,
reuniu um grupo de crianas, de meninos e de meninas que vem de lugares muito
diferentes. Tem gente que tem famlia muito consolidada, tem gente que tem
famlia esfacelada, tem gente que no tem famlia, tem gente que foi adotado e
depois desadotado, tem gente muito diferentes e num Brasil muito desorganizado.
E, l eles conseguem tocar juntos, eles entendem a necessidade de ouvir o que o
outro est tocando, entrar na hora certa. E eu acho que a msica [em grupo] um
grande exerccio de solidariedade - para usar a palavra que pode resvalar um pouco
num lugar comum - mas um pouco isso, voc no pode tocar em conjunto sendo
mais importante do que o outro, eu acho que eles entendem que aquilo uma
orquestra e no uma coleo de virtuoses e isso eu acho importante num Brasil to
desestruturado, to desorganizado (Joo Moreira Salles, entrevista em 01/09/2005)
Rodrigo faz o balano desses cinco anos destacando que o PVL formou duas turmas,
computando dezessete alunos, muitos j ingressando na vida profissional de msico,
participando de trabalhos voluntrios em suas comunidades o que se apresenta como um
resultado positivo reportando-se idia de Walther Salles:
Eu acho que estamos conseguindo atingir a idia, todo o sonho do Walther Moreira
Salles, o pai. Porque, na verdade ele pensou que num projeto que desse a
profissionalizao e que os alunos comeassem a trabalhar com msica. E, vendo
hoje em dia, Diego, Nogueira, a galera da primeira turma, na ativa, tocando, dando
aula, o Diego at ontem ele comentava: P, bonzo trabalhar de carteira assinada;
p, eu t trabalhando e ganho isso assim, assim, dcimo terceiro, frias... e a
primeira vez que a carteira dele assinada e que recebe dcimo terceiro, frias, tudo
direitinho, como professor de msica (CEVL_2, p. 54, Rodrigo Belchior,
coordenador, 06/12/2004).
identidades individuais e coletivas dos grupos sociais. E, ainda, que a noo de performance
argumentada por Small (1995) e Blacking (1995), apresenta-se como eixo condutor dos
processos de ensino e aprendizagem musical amalgamado pelas prticas socioculturais, seus
valores simblicos e materiais.
CAPTULO 4
ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI: UM ESTUDO DE CASO
A Associao Meninos do Morumbi (AMM) uma ONG formada por mais de 3500
crianas e jovens adolescentes de So Paulo. A maioria deles mora nos Bairros de Campo
Limpo, Paraispolis, Morumbi, Vila Snia, Jardim Jaqueline, Real Parque, Caxingui e
Municpios de Taboo da Serra e Embu que so bairros da periferia de So Paulo, no mbito
do distrito de Morumbi. A misso da AMM promover um contexto pluridimensional de
aprendizagem para crianas e jovens que viabilize a construo de valores positivos atravs da
arte e da cultura ampliando os circuitos de incluso de forma participativa e empreendedora1.
Dentro desta viso, uma das metas mais importante desenvolver a capacidade de trabalhar
em grupo.
Tem na prtica musical o eixo da proposta socioeducativa buscando criar
alternativas, no que concerne ao acesso aos bens materiais e simblicos, bsicos para o
exerccio da cidadania. A ONG foi criada em 1996 pelo msico, educador e percussionista
Flvio Pimenta, presidente e diretor geral da instituio.
A AMM desenvolve um trabalho musical que inclui a Banda Show constituda pelo
Grupo de Percusso, pelo Grupo Vocal Feminino e pelo Grupo de Dana que sintetizam o
trabalho realizado nas aulas de canto, dana e percusso do qual participam crianas e
adolescentes que integram a comunidade da Associao. A Banda realiza cinco ensaios
semanais, com turmas de trezentos participantes a cada ensaio. O repertrio executado nos
ensaios e apresentaes formado por msicas folclricas do Brasil e da frica, do universo
pop, dos cultos afro-brasileiros e composies prprias.
1
http://www.meninosdomorumbi.org.br.p
180
FUNO RESPONSVEL
Coordenador Geral Flvio Pimenta
Coordenadora de Programas e Projetos Ligia Pimenta
Coordenadora Pedaggica Nair Fortunato
Coordenadora da Dana Vera Oliveira
Coordenadora de Esportes Diana Monteiro
Coordenadora do Espao Alessandra Rosso
Coordenadora Artstica Silvany Rodrigues dos Santos (Sivuca)
Coordenador Financeiro Aluysio Medeiros Santana (Irmo)
2
O Programa Famlia e seus Contextos foi elaborado atravs da prtica desenvolvida desde 1996 que sempre
priorizou as famlias como pblico alvo das aes formativas e transformativas. Objetiva atuar como referncia
na implantao de polticas pblicas e assegurar o acesso das famlias a contextos de reflexo-ao
possibilitando torn-las protagonistas das aes frente aos desafios da vida cotidiana. s famlias oferecido um
espao de escuta mediante entrevistas individuais, reunies multifamiliares, fruns temticos, atendimentos em
situaes de crise e encaminhamentos para atendimentos psicolgicos com profissionais integrantes do
Programa. <http://www.meninosdomorumbi.org.br/frames/principal.html>.
181
A AMM est localizada na Rua Jos Janarelli, 485, no distrito do Morumbi. Este
distrito oferece servios pblicos e de cuidados sociais deficientes traduzidos em indicadores
que revelam grande fragilidade social, atingindo especialmente os jovens moradores dos
bairros pobres (PRUDENTE, 2003, p.38). A atuao da Associao visa, em particular, essa
populao juvenil que vive nesses bolses de pobreza exposta, portanto, a uma
vulnerabilidade que se expressa em diversos patamares de excluso social.
O prdio que aloca a ONG possui trs pavimentos e trata-se de uma construo
antiga, com uma estrutura slida. A parte externa do prdio possui vrios outdoors com a
logomarca da Associao associada aos vrios patrocinadores. Por terem grandes dimenses,
esses outdoors do uma visibilidade ao prdio, destacando-o das outras edificaes prximas.
O som produzido pelos instrumentos de percusso, que vibra no entorno do prdio, tambm
um indicador de que ali ocorrem prticas musicais.
182
esporte futebol de salo, capoeira, jiu jitsu, condicionamento fsico e workshops para as
diversas finalidades recepo de alunos e pais novos, delegaes internacionais, reunies
com os alunos participantes da ONG, etc. No segundo piso, localizam-se outros setores da
administrao da ONG, integrando o departamento financeiro com a sala da coordenao
geral.
E, no terceiro piso, esto as salas de aulas com piano, violes, teclados, outra sala
que abriga o almoxarifado com os instrumentos tnicos e raros utilizados na Banda, uma outra
sala com um acervo de mais de trs mil discos de vinil pertencentes ao coordenador geral e
uma estao de rdio local que produz programas elaborados pelos prprios alunos
transmitidos no mbito da ONG.
Assim, os trs pavimentos do prdio onde funciona a ONG constituem o espao onde
acontecem as diversas atividades oferecidas aos participantes, cuja equipe de profissionais
formam um quadro bastante amplo, como j mencionado. Um dos aspectos que chama a
ateno em relao ao espao fsico o trato com a limpeza, o cuidado com a manuteno,
uma vez que o trnsito de pessoas no cotidiano da ONG , numericamente, significativo.
As condies ofertadas em termos de equipamentos, acesso internet e atividades
alternativas tambm indicam um nvel de exigncia em relao constituio do espao fsico
da ONG, refletindo uma viso empreendedora na gesto.
uma pessoa jurdica: a Associao Meninos do Morumbi. Dessa forma a AMM emerge j
impregnada com as caractersticas do perfil das ONGs constitudas na dcada de 90, por
serem mais propositivas no sentido de buscar a participao da populao na soluo dos
problemas sociais, principalmente ligados juventude da periferia do contexto urbano das
grandes cidades brasileiras.
O Estatuto tem em sua gnese o contexto prtico, pois foi institudo aps um trabalho
realizado especificamente com a prtica musical executada em um determinado espao com
um objetivo especfico:
3
Trata-se da Praa Trs Lagoas onde se localizam trs lagos nas imediaes do Palcio dos Bandeirantes sede do
Governo do Estado de So Paulo.
186
O artigo acima se alinha com o discurso corrente tanto na esfera pblica quanto na
privada para se valorizar a diversidade sociocultural, tnica, de gnero, etc., no sentido de
inscreverem-se encaminhamentos, aes e polticas no mbito da insero social cidad, em
que, idealmente, todos deveriam ter a mesma possibilidade de acesso aos bens materiais e
simblicos, bsico para uma existncia digna.
O Estatuto da ONG reflete, assim, que a significao e as justificaes do conjunto
de propriedades da burocracia esto inseparavelmente inseridas naquilo que Alfred Schtz
denominava as atitudes da vida de todos os dias em tipificaes de senso comum socialmente
consagradas (BITTNER, 1965, p. 69-81). A questo : o que que confere a um documento
sua validade oficial? O carter evidente de um documento e sua validade, nesse caso do
Estatuto, depende da construo da representao jurdica, institucional, moral e tica que
conferem a ele validade e credibilidade, direitos e deveres que so institudos na prpria
dinmica social de uma sociedade.
Alm desse referencial, que reflete o status quo do marco formal, jurdico e
institucional da ONG, deve-se acrescentar os mais recentes conceitos sobre sua identidade,
como exposto no site da instituio. O carter socioeducativo da ONG ancora-se na proposta
em que a arte e cultura se constituem como o eixo condutor do trabalho desenvolvido. Outro
aspecto a ser destacado que a viso do futuro projetada pelo discurso da instituio refere-se
187
ao contexto mais amplo da sociedade ligado ao exerccio da cidadania com vistas, inclusive,
insero no mundo do trabalho:
Contribuir para a construo de uma sociedade mais justa que reconhea e priorize
os direitos das nossas crianas e dos nossos jovens de participarem de espaos de
aprendizagem de qualidade viabilizando o acesso a contextos protetivos de
validao positiva como pessoas, cidados e futuros trabalhadores.4
ATIVIDADES OFERECIDAS
4.1.4.1 DAS ATIVIDADES E DOS RECURSOS HUMANOS
4
<http://www.meninosdomorumbi.org.br>. Acesso em: 10 dez. 2004.
188
swing das meninas que danam e tocam percusso. Essa atividade, oferecida em 2004, teve o
objetivo de soltar o corpo dos meninos, fazendo as coreografias, danando e tocando os
instrumentos. Assim, o nmero de meninos que ingressaram na atividade de dana aumentou
significativamente a partir desse novo curso.
Sobre outras atividades que a ONG oferece, Flvio j me citara algumas delas
durante a minha primeira visita ONG, indicando inclusive alguns critrios e objetivos em
cada uma delas:
Os meninos que fazem jiu jitsu so federados, falam ingls, esto sempre fazendo
intercmbio, no Mxico, aqui. A gente tem visita...aqui no se aprende ingls pra ser
bom ou pra se empregar. Aprende, seno voc no vai para a Inglaterra na prxima
balada. um estmulo imediato (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
06/11/2002).
O trabalho dos Meninos do Morumbi muito complexo, porque muda todo o tempo:
as informaes, a maneira de se organizar as atividades tambm tm que ser muito
voltada necessidade dos integrantes em si, no propriamente da ONG, com a
necessidade da ONG estar trabalhando administrativamente falando. Ento, voc se
adequar mais necessidade do integrante, ento isso muda constantemente, cada dia
aparece uma coisa nova pr se fazer, cada dia voc tem que resolver um problema
diferente e diferente de tudo aquilo que a gente est acostumado a ver. A gente
trabalhou em outras empresas e a maneira de se trabalhar muito diferente.
(CEMM_2, Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).
...Em relao aos eventos que acontecem, aparece coisa pr ser feita hoje e pr ser
feita amanh... s vezes muito complicado porque a gente trabalha com criana e
ento precisa, por exemplo: se h uma sada amanh, pro jovem assistir a um teatro,
eu preciso que o pai desse jovem autorize que ele v nesse passeio; mas no tem
tempo hbil pr esse jovem de baixa renda, principalmente, levar essa autorizao
pr casa e depois gastar o dinheiro de duas condues apenas pr me trazer essa
autorizao; e a fica invivel deixar que ele traga apenas no dia da sada porque
pode ser que ele no seja autorizado pelo pai. Ento eu no posso trabalhar com o
talvez, eu tenho que ter certeza e pr eu ter certeza, eu tenho que planejar, por
exemplo, uma sada, duas semanas, pr ter tempo desse jovem vir para a aula e na
prxima semana, ele voltar sem ter maiores gastos, pr ele poder me entregar essa
autorizao e eu ter certeza de quantos integrantes vo pr eu no alugar um nibus
190
a mais e gerar um custo maior para o projeto (CEMM_2, Anderson, secretaria geral,
10/11/2004).
Alm das atividades internas da ONG, h muitas apresentaes da Banda Show para
empresas, escolas, instituies que envolvem um deslocamento de equipamentos sofisticados,
condues para levar e buscar os integrantes, ensaios, recorte de pessoal para acompanhar e
realizar a apresentao. Tudo isso acontece sobreposto s atividades cotidianas. perceptvel
a rapidez e competncia de como tudo isso realizado. Mas, para os professores e
coordenadores isso a normalidade e o gerenciamento leva em conta o inusitado e o
imprevisvel, como a relata a coordenadora pedaggica:
Como o Flvio um homem de show, ele j criou uma estrutura para show que
solicitado, s vezes com dois dias de antecedncia. J houve vez que foi pedido de
manh e a gente fez apresentao tarde. Agora no d mais, mas ele tem uma
estrutura montada para realizar apresentaes tanto internas como externas. J tem
fornecedor de nibus com os papis para autorizao e toda uma coisa encadeada:
um fazer aqui que vai pro balco, o balco manda pro Paulo, que contrata nibus. O
Paulo manda para o financeiro que pagar. Tem um caminho a seguir, uma listagem,
j se faz os papis de autorizao, as crianas j levam e trazem, j se entra em
contato com a cozinha para providenciar os lanches. Eu agencio com as pessoas,
teatro, telefono, marco a data e tudo acontece rapidamente, entende, j tem um fazer
(CEMM_1, Nair, coord. pedaggica, 20/09/2004).
Apesar das situaes que no permitem uma prvia organizao, a equipe de trabalho
parece ter incorporado as imanentes possibilidades de improvisar para se resolver e
encaminhar situaes que favoream aos integrantes. O processo dinmico est estreitamente
ligado s necessidades dos alunos participantes onde cada coordenador tem um papel a
desempenhar evidenciando uma proposta sistmica.
Sair com os alunos para outros espaos culturais ou recreativos, como j
mencionado, um dos objetivos da proposta pedaggica. Tal operao envolve diferentes
segmentos da ONG, imbricados na operao complexa, demonstrando um conhecimento
prtico, construdo ao longo de sua histria. Os aspectos dessa operao esto imersos nas
atividades prticas do cotidiano e integradas no gerenciamento das sadas com os alunos para
outros espaos externos. As sadas com os alunos tm o objetivo de propiciar novos olhares,
novas experincias estticas e artsticas como forma de se integrar s atividades artsticas,
levando em conta as possibilidades que oferece a cidade de So Paulo e as inmeras
atividades na prpria Associao.
191
Flvio relata como sua atividade empresarial constitui-se em uma vivncia que
descortina a origem de sua capacidade de ousar e de ter uma viso sistmica que se reflete nos
vrios contextos concretizados na Associao, tanto no aspecto material como simblico.
Otimizando suas competncias musicais e empresariais, comeou sua escola de msica, em
1986, agregou uma loja de instrumentos musicais e logo montou um stdio de gravao.
Flvio dotado de uma viso estratgica, de criatividade que tem posies fortes e
marcadas. Tem traos de um profissional que demonstra competncia na comunicao para
lidar com uma variedade de pblico. Flvio ressalta em suas falas sua proposio em realizar
um trabalho que alinhe sua concepo esttico-musical proposta socioeducativa da AMM.
E, sobre isso, ele destaca aspectos de sua formao em que o empreendedor, ligado
dimenso humana e social, assumido como um lado importante de sua identidade:
...eu no quero inclusive ser visto como... eu no sou baterista...eu sou educador, eu
no sou percussionista... sou empresrio, eu sou um empreendedor. Sou um cara que
comeou na porta da casa dele um negcio, no um negcio no qual o objetivo
maior da empresa exatamente gerar recursos, e sim, pegar os jovens e transformar
esses jovens, ento, nesse sentido eu sou um empreendedor bem sucedido, assim...
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
impreciso, mesmo a Associao tendo uma estrutura slida, reconhecimento e prestgio. Esta
uma caracterstica do contexto das ONGs, atualmente, e concerne conduo das polticas
pblicas que tratam das questes sociais e do papel das iniciativas da sociedade civil, das
empresas privadas e do estado. Em relao aos condutores das ONGs, trata-se da capacidade
de navegar em um mar turbulento com um p em cada canoa como destaca Rocha (2005).
Flvio tem caractersticas de um empreendedor social que realiza, arrisca e tem idias
inovadoras, buscando solues para problemas sociais sistmicos e isto est nas entrelinhas de
seu depoimento:
Eu ainda no tenho certeza se isso vai pr frente, entendeu, porque eu acho que eu
sou ainda o detentor do sonho, quer dizer, no o detentor nico, todos sonhamos
juntos. Mas, eu acho que eu sou ainda essa ferramenta vital, assim, eu sou aquele
que no perde o norte da histria toda ainda. As pessoas, muitas vezes, no
conseguem enxergar porque esto em posies onde o olhar fica fragmentado, no
enxergam o macro, no enxergam o todo; como o capito do navio que est no
leme,. Assim, eu tenho essa sensao o tempo todo (CEMM_1, Flvio Pimenta,
coord. geral, 11/11/2004).
Flvio explcito quanto sua paixo pela msica e na exigncia por um padro de
excelncia como um vetor para se articular com o Terceiro Setor na proposio de parcerias.
Como foi mencionado, esse padro de excelncia se revela tanto nos cuidados cotidianos com
as questes de manuteno do patrimnio material da Associao, como no trabalho
educativo nas diversas modalidades que so desenvolvidas. Sua fala, mostra como ele prprio
foi aprendendo a manter a msica como seu foco e lidar com o setor privado, inclusive em
nvel internacional, entendendo seus cdigos e valores que, muitas vezes, so tcitos mas
significativos e importantes para envolver empresrios e instituies privadas com projetos
sociais:
A msica parece que enche o peito, n! Trata da alma dessas pessoas e ento a parte
material fica um pouco, talvez num segundo plano, enfim. Bom [...] no so todos
mas eu tambm no sou assim Low Profile, gosto das coisas boas e, tambm, tive
que aprender isso nessa questo aqui do Terceiro Setor. Por que? Primeiro, eu tive
que usar da minha experincia como empresrio para poder cuidar de fazer isso aqui
se tornar uma empresa, e deixar de ser uma bandinha tocando na rua. E por um outro
lado, descobri que quando eu ia falar com os bacanas pr arrumar financiamento
para o projeto, o patamar do qual eu deveria falar com eles, um patamar de
igualdade. Em que sentido? Eu entendi que eles teriam de me enxergar como um par
deles, ou seja, o Flvio ele no o baterista, roqueiro cabeludo; ele o maestro, o
empresrio que est aqui do nosso lado com um terno Armani com a sua caneta
Mont Blanc e falando dos nossos smbolos e cdigos tal qual um par nosso. Ou seja,
Ah sim, conheo a Loja do Zeng, l em Bold Street [...] Olha, se voc for pr
Sucia, em Estocolmo, voc tem que visitar esse lugar. Ento essas coisas so
cones que quando voc fala com uma pessoa que realmente um empresrio, que
um bacana, ele tem que entender que eu posso ser um par dele. E, ele tambm se
obrigasse a fazer como eu, uma ao social parecida, sabe, como quem diz assim:
Pxa, o Flvio est fazendo, eu tambm tenho que fazer. E ento essa aproximao
195
na questo da apresentao, do meu jeito de ser e voc v que eu sou o nico cara
aqui que anda aqui engravatado, de vez em quando, porque eu tenho que ir mesmo,
almoar com banqueiro, eu tenho que encontrar diretor de marketing, dono de
empresa e eles tm que me entender de uma outra forma, diferente dessa que eu me
apresento aqui. E at eu fui aprendendo isso (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral, 11/11/2004).
Considerando a natureza jurdica e institucional das ONGs que confere aos seus
dirigentes o papel de empreendedor no sentido de buscar a auto-sustentao da instituio, a
AMM desenvolveu, ao longo de sua histria, a capacidade de estabelecer parcerias com o
setor pblico e o privado o que lhe garantiu a realizao da proposta socioeducativa e
contribui para a construo da identidade da AMM.
A Banda Show Meninos do Morumbi funciona como o grande atrativo de marketing,
uma vez que se constitui em um objeto concreto de visibilidade da ONG ligando suas aes
aos grupos sociais que atendem, instituindo tambm sua identidade ligada s prticas culturais
que, no caso da msica, tem um forte eixo com a cultura afro-brasileira. Flvio Pimenta a
figura de contato com as empresas para se estabelecer as parcerias com a Associao. Sua
experincia como empresrio, professor, produtor, msico popular e, especialmente sua
capacidade de agregar novas informaes e conhecimentos, contribuiu para que ele
196
5
O Programa Parcerias surgiu como uma proposta de articulao de uma rede de apoio tcnico e financeiro para
os melhores projetos avaliados no mbito do Prmio ITA UNICEF 1999. Congrega diferentes organizaes,
empresas e universidades que aportam recursos e outros benefcios para as 30 ONGs finalistas. Em 2001, o
Programa entrou na segunda fase com novos parceiros e colaboradores.
197
construo da identidade da ONG. As regras ou normas sociais que se aplicam aos membros
daquela comunidade para conceber, construir e manter o espao fsico, tal como ele se
apresenta, no pode ser visto como a simples aplicao de modelos ou regras pr-
estabelecidos e estveis. Antes, produto da atividade contnua dos participantes da ONG,
permeadan por processos subjetivos e intersubjetivos que colocam em ao regras de conduta
que se consubstanciaram naqueles referenciais materias e simblicos, passveis, ento, de uma
descrio.
6
As publicaes se referem a ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M.; RUA, M. G.; ANDRADE, E. R. . Cultivando
vida, desarmando violncias: experincias em educao, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em
situao de pobreza.. 1. ed. Braslia: UNESCO, 2001. v. 1. 583 p. (2001), Centro de Estudos e Pesquisa em
Educao, Cultura e Ao Comunitria CENPEC. PIMENTA, Ligia et al. Intercmbios de experincias em
educao: a troca como fonte de aprendizado. So Paulo: CENPEC, 2004. As matrias disponibilizadas no site,
mostram reportagens veiculadas, nos anos de 1998 a 2004, nos jornais: O Estado de So Paulo, Folha de So
Paulo, Dirio de So Paulo, Jornal da Tarde (So Paulo), Jornal de Braslia, Jornal do Comrcio (Porto Alegre),
Correio Popular (Campinas), Gazeta Mercantil (So Paulo). Nas revistas: B2B Magazine SP, Revista Veja,
Revista Melhor, Revista Dinheiro, Revista Crescer, Revista Caras, Revista Racing (So Paulo), Revista Flash.
<http://www.meninosdomorumbi.org.br >
199
IRMO , foi numa das andanas dele que ele saia com os cachorros dele l [...]
e a viu aquela garotada l e fez o convite l e a garotada aceitou. E a comeou...
MAGALI A garotada da rua?
IRMO Da rua mesmo. E como ele tinha os alunos, resolveu fazer o batuque l
com os alunos dele l e a garota foi gostando e a acontece assim, um puxa o outro,
n? Puxa, l na casa do fulano tem aquilo... e um vai trazendo o outro e a no
comeo veio muita gente ali das Trs Lagoas que aquelas lagoas que tem atrs do
Palcio ali do Governo (CEMM_2, Irmo-Aluzio, Financeiro, 27/09/2004).
A iniciativa de Flvio pode ser percebida como um ato que interferiu na ordem e na
estabilidade de um bairro rico, analisando-se luz dos argumentos de Certeau (1998) sobre o
espao, entendendo que este incorpora vetores de direo, quantidades de velocidades e
variveis de tempo. O espao entendido como cruzamento de mveis, efeito produzido pelas
operaes que o orientam. Diversamente do lugar, o espao no tem univocidades nem
estabilidade, antes se constitui pela mobilizao ou desestabilizao de uma ordem de poder
ou propriedade por meio de uma prtica.
A partir dessa anlise, tal iniciativa estava
potencializada por uma situao de extrema urgncia
social, que por meio de um ato informal de uma pessoa
produziu uma significativa mobilizao:
A Praa dos Trs Poderes um espao geogrfico que emerge na fala de todos os
entrevistados e, tambm, est presente nos painis fotogrficos. Parece que aquele lugar
exercia um fascnio para os meninos de rua que ali freqentavam. O coletivo e a participao
criativa aparece como um parmetro desde o incio do processo. Em uma das minhas
conversas com o Irmo, de fronte a um imenso painel de fotos, muitas fotos, que continham
fragmentos das histrias da ONG, fiquei sabendo, atravs de seu relato mostrando as fotos e o
tecido, como foi que uma das marcas dos Meninos do Morumbi foi instituda, constituindo em
cone da Associao:
...Foi no incio quando juntou o pessoal, ns ganhamos panos e a todo mundo; foi
dado pr cada um de monte de tinta pr cada integrante; e a cada um fazia o que
vinha na cabea e cada um fez, fizeram desenhos, um diferente do outro e da o
melhor ns colocamos no surdo. E a colocamos o logo dos Meninos, e a foi da que
comeou e hoje voc pode ver que... essa logo aqui foi o Tio Banks que criou! Hoje
em dia, todos os instrumentos, os surdos, principalmente, revestido com o pano e
com o logo dos Meninos (CEMM_2, Irmo-Aluzio, Financeiro, 27/09/2004).
201
4.2.1.2 O TRAJETO
...eu acho que quando eu comecei a tocar com eles, eu tambm transformei a aula
deles num grande laboratrio pr percusso tnica e depois do samba, do funk e do
ax, eu imediatamente comecei a apresentar pr eles, outros ritmos. Eu descobri que
eles no tinham limitao musical pela questo do conhecimento ou por gostar s de
um gnero, que aquela questo do grupo ah, a gente pagodeiro, a gente
funkeiro etc. No, eles gostam de tudo que suinga, porque o swing, o balano, essa
coisa, o que faz com que o brasileiro reconhea a rtmica na msica e ento os
202
Ligia Pimenta inciou seu trabalho logo no incio da AMM e lanou o olhar sistmico
com uma abordagem metodolgica cujo o propsito era integrar pessoas, espaos,
significados. Comeava a atender s necessidades que as crianas e os jovens traziam,
chegando, dessa forma, s suas famlias. Segundo ela, as crianas chegavam com problemas
de sade, estavam numa situao extremamente vulnervel, pois ficavam caminhando pelas
ruas e fora da escola. Sua aproximao foi cuidadosa e buscou conhecer o contexto dos jovens
a partir das falas deles prprios. O objetivo do trabalho na ONG buscou uma perspectiva
integradora que se refletisse na formao das crianas e jovens, considerando os seus
diferentes contextos de pertencimento e suas histrias pessoais, como relata Ligia:
interessante ver como algo que comeou em cima da msica, logo veio a dana,
depois veio o canto e foram desenvolvendo outras reas, o esporte, tivemos um
teatro, logo entramos com alimentao e essa parte tambm do trabalho com as
famlias. J fazamos o scio-drama com as famlias e com os jovens que
participavam, desde o primeiro ano. Acho que at em funo desse olhar que
procurava integrar os diferentes atores nesse cenrio, que primeiro tinha a criana e
o jovem aqui; e a, e a famlia? Atrs dessa criana e desse jovem tem uma famlia,
como que essa famlia? O que esta famlia est fazendo? Como que ela
participa? Como que ela no participa? Quais so as necessidades? Ento as
famlias tambm eram chamadas para conversar, trocar informaes, e a ns
chegvamos at a comunidade e a primeira comunidade foi Paraispolis, que aqui
a segunda maior favela de So Paulo. Ento, a comunidade, no incio do projeto, foi
Paraispolis e depois que isso foi, de alguma forma, se multiplicando nas outras
favelas, nas outras comunidades carentes, logo apareceu uma figura que de alguma
forma estava muito presente, tambm, na vida de alguns jovens, que era a escola
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
203
Para Ligia os primeiros integrantes dos Meninos do Morumbi uma gerao na qual
o conhecimento estava muito distante, porque eles precisaram primeiro desenvolver um
conhecimento de si mesmo, a auto-estima, auto-conhecimento positivo uma vez que eles
chegavam desintegrado, sem saber que dia que ele tinha nascido o que demandou um
trabalho de anos na questo da construo da identidade. Para ela eles caminharam, mas
eles ainda so jovens, e na questo do conhecimento, eles tm uma enorme defasagem na
escolaridade. A precariedade da situao de existncia desses meninos se localizava em
patamares bsicos de sobrevivncia. Os cuidados sociais com a prpria integridade fsica
daqueles garotos saltavam frente, para se pensar em providncias, encaminhamentos, aes.
Nesse sentido, o conhecimento necessrio para lidar com a natureza educativa daquela
situao no se localizava prioritariamente na esfera do conhecimento musical ou artstico.
Assim, na gnese da criao da AMM, essa questo j suscitou a busca de uma produo de
conhecimento para se trabalhar com aquele contexto, onde uma viso sistmica j se
amalgamava s aes socioeducativas.
Parcerias com outros projetos sociais como foi o caso do Projeto Travessia, na no
primeiro ano do projeto. A AMM trabalhou com jovens que estavam morando na rua e
participavam das atividades, no perodo da tarde, pois eram jovens que estavam sendo
encaminhados para o abrigo. E j no segundo ano do projeto, em 97, Ligia destaca que a ONG
comeou a desenvolver um trabalho com as escolas atuando tambm como tradutores,
porque ns tnhamos informaes e participvamos da vida desses jovens e dessas crianas,
de uma forma, muitas vezes profunda, que a escola no sabia. Esse fator criava uma arena
de conflitos pois a coordenao da ONG tinha informaes que a escola no sabia, gerando
situaes em que a escola lidava, muitas vezes, de uma forma inadequada, carimbando,
rotulando esses jovens. Ligia ressalta que a habilidade de negociar com as escolas foi
importante para o avano no trabalho socioeducativo, para que se pensasse em alternativas
que contemplassem as questes especficas de cada caso, envolvendo, necessariamente, a
famlia.
Os primeiros Meninos do Morumbi, que ainda permanecem na ONG, ajudaram-me a
compreender como esta foi se constituindo e instituindo-se num espao legitimado para o
ensino e aprendizagem de msica, enredando diferentes dimenses e espaos de atuao. O
204
relato de Claudinei, um dos primeiros meninos de rua abordados por Flvio, revela detalhes
de um momento significativo de um processo histrico, marcado por caminhos no lineares,
imprevisveis, imersos em configuraes sociais complexas:
...eu fiquei sabendo do Projeto pelo Flvio. Ele que chegou e deu a idia pr mim.
Tem aqui a pracinha que onde ns tocava, que ns chamava a antiga Pracinha Trs
Lagoa, que trs lago ainda, e ns nadava l. Era eu, mais o Murilo, mais trs
moleques que j no est mais no projeto. No tem mais nenhum desse que entrou
comigo. No existia o Projeto ainda, no era os Meninos do Morumbi. A eu estava
l nadando, o Flavo [...] ns chamava ele de Flavo; ele chegou e falou o nome
dele, a falou: Vamos l conhecer o meu Projeto e tal, tocar.... A, tava eu, o
Orelha, o Nando, o Gaspar, o Murilo, o Mauro e o Pinguela. A ns falou: Ns vai
e tal. Tocar o qu? viajando na idia, ns no sabia nada...Ns ia pr Lagoa [...]todo
dia, o dia inteiro! Podia t chovendo, sol, ns tava nadando... no estudava. E a, ns
tava na Dona Ruth [dona de um restaurante prximo] almoando e ela falou: Ah, o
Flvio no falou com vocs?, a eu falei: Ele falou, mas ns no conhece o cara, a
gente ficou com medo, sei l!. A ela falou: No, vamos l!. Ela era a maior gente
boa, a Dona Ruth, sempre dava comida pr ns do restaurante dela. A ela levou ns
l e o Flvio [...] Era na casa dele ainda. No era na associao, l embaixo, uma
casinha do lado (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).
A msica sempre aparece nos depoimentos como o elemento que envolve, que faz a
diferena na entrada e permanncia na ONG. Silvinha, funcionria do departamento
205
financeiro e uma das primeiras meninas a entrar na ONG moradora do bairro Morumbi.
Ressalta em seu depoimento que, ao ouvir o batuque da rua, estava em casa e desceu correndo
para assistir ao ensaio. Teve seu primeiro contato com Flvio que a convidou para entrar para
os Meninos e se ela quisesse, podia j comear naquela hora e naquele lugar: a rua. Ela se
juntou ao grupo e no seu segundo dia de participante houve uma apresentao no Parque
Ibirapuera na qual ela j subiu ao palco e tocou junto com a Banda. Aprendeu a tocar todos os
instrumentos de percusso e revela que considera a AMM como sua segunda casa: aprendi
tudo aqui e devo mutito ao projeto (CEMM_2, Silvinha, financeiro, 18/11/2004).
206
E BIG
Sivuca e Big, dois integrantes que esto na Associao desde o incio, em 1996, na
condio de alunos e participando da percusso. Tornaram-se msicos e professores,
construindo com Flvio a sistematizao da proposta pedaggico-musical que foi ampliando-
se e complexificando-se.
Sivuca relata que sua iniciao na ONG foi motivada pelo primo, logo em outubro de
1996, quando foi institudo o estatuto da entidade. Assim, ela acompanhou toda a trajetria da
Associao. Mas, foi a partir de uma conversa com Flvio, que ela decidiu ingressar no
projeto j participando de apresentaes:
...A uma vez eu vim e a nesse dia eu j conversei com o Flvio; e a ele tambm
gostou de mim;.. a eu comecei j a tocar e, no mesmo dia, eu lembro que j fui pr
uma apresentao, que foi no programa do Huck que era na [TV] Bandeirantes, j
logo no primeiro dia assim. No esperava, nem sabia nada, nem conhecia direito. E
208
ele: Coloca uma camiseta a e vamos com a gente. E a eu fui. A comecei a tocar,
comecei a fazer aulas com o Flvio de bateria, de percusso e a at um determinado
ponto que eu comecei a trabalhar, passou uns dois meses assim de Meninos do
Morumbi (CEMM_1, Sivuca, ex-aluna e professora de percusso, 22/11/2004).
Sivuca uma percussionista com formao consistente, o que lhe confere uma
posio de destaque tanto na funo de ensinar como na funo de performer na Banda Show.
Tal condio atribuda por ela mesma, devido a sua dedicao sua formao, sempre
buscando aprender permanentemente. Estudou com Paulo Campos, um professor muito
bom, que viajou pr frica para aprender o instrumento dele que o Djamb e congas.
Estuda na Universidade Livre de Msica (ULM), toca piano, cavaquinho e violo e tem uma
formao musical bastante consistente. Mas se mostra ambgua em relao a sua identidade
enquanto educadora: Eu estou batalhando... venho de um processo, nunca fiz um curso
prprio pr ser uma professora. Fao aulas... educador uma palavra que no fcil,
educador no um professor, no verdade? Essa dificuldade em conceituar o que seja um
educador musical pode estar ligada a sua conscincia de que necessria uma formao
especfica.
Sivuca reconhece que aprendeu a dar aulas observando e imitando seus professores,
utilizando a estratgia do acerto e erro: de professora eu vim aprendendo. Eu fui pegando
exemplo dos meus professores, como o Flvio, como esses tantos que eu j tive e tantos que
eu tenho na ULM. Ento eu meio que vou ser controlv [Ctrlv refere-se s teclas que colam
textos e figuras no computador].
209
comecei tocando e a depois de uns dois meses o negcio cresceu de uma forma que
ele e o Irmo, que comearam tudo, no estavam dando conta. Chamaram o
Chupeta, tambm morador do bairro, amigo meu de infncia, pr trabalhar. Como eu
j queria sair do meu servio, j queria trabalhar com msica, o Flvio me convidou
pr trabalhar. Ento na verdade eu fui o terceiro funcionrio. O primeiro funcionrio
foi o Irmo que o Alusio, depois o Chupeta e depois eu. E estou at hoje. Comecei
como funcionrio e na poca a gente tinha parceria com a Federao de Obras
Sociais FOS que era uma instituio que investia na capacitao de pessoal para
trabalhar em outras associaes, outras ONGs (CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno
e professor de percusso, 22/11/2004).
queria aprender a dar aula e eu falei que sim. A a Silvany na poca j estava dando
aula e a Silvany na poca era o primeiro ano da ULM dela e a comecei a assistir
algumas aulas da Silvany pr ver como que era o mtodo dela, porque eu nunca
tinha dado aula de percusso e a eu fiquei um ms assim fazendo as aulas junto com
a Silvany e a eu comecei a pegar turmas minhas e hoje eu t a com 18 turmas a
(CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno e professor de percusso, 22/11/2004).
Esta fala merece uma discusso sobre os paradigmas que esto introjetados sobre a
identidade do que ser msico, a valorizao da escrita e leitura musical. Tocar um tambor
como Big toca, e tantos outros instrumentos de percusso que eu tive oportunidade de
presenciar, conferem a ele a condio de msico, negada por ele prprio. O que importa aqui
que prevalece uma viso que valoriza alguns aspectos da prtica musical que foram histrica
e ideologicamente construdos e que faz com que Big minimize sua condio de
percussionista, nivelando-se condio de diletante musical, apesar de tocar muito bem os
instrumentos da Banda. Alm disso, ele tem um conhecimento de estilos da msica popular
que no pode ser desconsiderado, toca todos os instrumentos: Surdo de primeira, segunda,
terceira, corte, caixa, timbal, tamborim, repenique se for o caso, e se for o caso at eu posso
reger a Banda, assim brincando, obviamente que eu no quero isso porque muita
responsabilidade. Big tem um conhecimento prtico que lhe confere um status de msico e
professor reconhecido por todos na AMM.
Nair, coordenadora pedaggica, participou na constituio da ONG trazendo uma
experincia consistente para lidar com criana e jovens em situao de risco social. Uma vez
que formada na rea de educao, sempre gostou de msica e participava de uma orquestra
amadora como contrabaixista, quando sentiu necessidade de trabalhar a rtmica. Isso
determinou seu encontro com Flvio, que tinha uma escola em Santo Amaro, a Drum, onde
Nair foi estudar msica para melhorar sua percepo rtmica e participar de uma orquestra.
Como seu trabalho como educadora demandou uma atividade musical, Nair relata que
convidou
Abordo aqui alguns aspectos sobre a formao e a vida profissional dos professores
participantes da pesquisa, uma vez que entendi relevante para a anlise. No caso da AMM, o
corpo docente da rea de msica marcado pela diversidade na formao que tem como trao
de alinhamento a formao sistemtica e uma significativa experincia com a msica popular.
Todos tocaram em grupo ou conjunto que abrange uma gama de contextos musicais como
MPB, Jazz, escola de samba. Todos expressam uma paixo incontestvel pela msica. So
msicos acostumados com o palco, com produes musicais e com o ambiente de
improvisao, prprio da msica popular. E como j foi mencionada, Big, Luciana, Cntia
tiveram grande parte de sua formao musical na prpria Associao com Flvio Pimenta,
tendo acompanhado o processo de implantao da ONG, nesses oito anos de atividades, o que
significa que participaram de um aprendizado no multicontexto da instituio.
Flvio relata que teve uma formao ecltica e que j tocou de tudo. Gravou
discos, como baterista, que abrangem um repertrio diversificado: samba, bossa nova, rock
and roll, brega com artistas. Destaca a participao com uma banda de rock and roll da
cidade de So Paulo que era o Joelho de Porco, que era muito legal, mas o Adoniran Barbosa
e a Araci de Almeida eram o padrinho e a madrinha. Entretanto, seu contexto maior de
atuao artstica foi rock and roll, jazz como baterista e tambm percussionista, indo estudar
212
berimbau, tocar outros tambores e assim, foi se apaixonando ela msica tnica (CEMM_1,
Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
A partir dessa ampliao Flvio destaca que comeou a pensar a bateria como um
instrumento de infinitas possibilidades timbrsticas e estilsticas em que se pode sintetizar
qualquer ritmo. E ressalta questes de ordem musical que reflete os insights que ele teve a
partir de sua percepo das inmeras possibilidades de seu instrumento, o que contribui para
sua formao musical:
E quando voc estuda bateria, voc tem que estudar polirritmia, voc tem que
estudar um monte de coisas e eu como tenho uma formao mais erudita, eu sempre
escrevi em grades e ento eu comecei a entender os tamborins, no como a escola de
samba entende, mas como uma horn session, por exemplo, onde voc pode escrever
como escreve para uma sesso de metais e entender os surdos como uma espcie de
contrabaixo. Ok, mas o norte dessa histria sempre a msica que tem que ter um
certo swing, se no eles no identificam e a eu fui me aproximando tambm de
outros amigos como a Magda Pucci, que tem o Mawaca7, que um grupo muito
legal, que foi minha aluna de percusso e bateria... Robertinho Silva, o Maestro
Maral... o pessoal que toca percusso e a os meus alunos tambm e a gente
comeou... e isso... e teve um momento em que esse laboratrio de percusso
comeou a ficar to grande que ele comeou tambm permear as minhas aulas do
curso regular de msica (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
7
Mawaca um grupo paulistano que pesquisa e recria msicas tnicas de todo o mundo, busca sempre
estabelecer inter-relaes com a msica brasileira. formado por sete mulheres no vocal, que cantam em mais
de sete lnguas, objetivando interpretaes que carreguem as caractersticas tnicas locais e conexes com
elementos da msica brasileira. A parte instrumental - formada por acordeom, violoncello, fagote, flauta, violino
e sax soprano, koto (ctara japonesa), alm dos instrumentos de percusso como as tablas indianas, derbak rabe,
djembs africanos, berimbau, vibrafone, pandeires do Maranho e marimba.
<http://www.entrecantos.com/mawacaquem.htm>
213
marcial e eu acabei me interessando um pouco pelo trompete, o meu negcio mesmo era tocar
percusso.
Marquinhos revela sua paixo pelo futebol, mas com prevalncia da msica: e eu
estava jogando futebol numa quadra e eu ouvi um som de percusso e no mesmo instante eu
larguei a bola e corri atrs do som! Descobri que tinha uma escola de samba perto da minha
casa e a comecei a olhar o pessoal tocar e aprender a tocar os instrumentos da escola.
Depois, foi tocar na igreja e o primeiro instrumento que me despertou, a batera! Sentei e
comecei a tocar nas missas, montamos um grupo, toquei em fanfarras, festas, grupos de
amigos que faziam arranjos de msica pop, rock. Depois dessa etapa, Marquinhos fez um
curso de percusso sinfnica na Fundao das Artes de So Caetano, mas sempre dando
continuidade aos estudos de bateria, j tocando na noite e se profissionalizando. Ao concluir
esse curso tcnico sentiu-se preparado para prestar o vestibular para bacharelado em
percusso na UNESP, passou e concluiu o curso em nvel superior. Sobre sua experincia,
tanto na msica sinfnica e como na msica popular, prevaleceu seu interesse pela msica
popular.
Tio Magno, professor de bateria e msico h quarenta anos, tambm tem uma
histria conectada com o ensino de msica. Tornou-se msico profissional, ganhando a vida
tocando, gravando e dividindo o palco em shows com artistas renomados, conforme ele relata
que gravou e tocou com nomes importantes como: Martinho da Vila, Elis Regina, Jair
Rodrigues, Jane e Herondi, Cauby Peixoto, Clara Nunes e, tambm, nove anos com Chico
Ansio. Sua relao com a msica entendida por ele como algo inato que foi sendo praticada
a partir de uma relao ldica com o som E eu j nasci com isso porque eu j pegava as
caixas de p de arroz, com cinco anos de idade, ia tocar naquelas vitrolonas que meu pai tinha
antigamente. Depois sua me comprou um tamborim e ele diz: eu ficava ouvindo no rdio e
tentando imitar. Esse foi meu primeiro instrumento.
E nessa vitrolona, Tio Magno ouvia de tudo, desde samba, jazz, at msica caipira.
Sobre seu gosto, ele ressalta que gosta de msica bem feita. Assim como eu gosto de jazz, eu
gosto da msica caipira bem feita na sua originalidade, ali eu respeito. Seu primeiro
professor foi Dirceu Medeiros que lhe abriu as portas para as gravadoras. E ele fala muito
bem humorado sobre sua formao e interesses, ficando evidente como a msica foi o eixo
condutor de sua vida:
Dirceu tocava muito, ele gravava na Odeon, ele que me levou para as gravaes.
Estudei trs anos orquestrao, tive um conhecimento maior do meu instrumento e a
minha didtica s foi msica, nunca me aprofundei em outros estudos. O que eu sei
da vida, que me fez compreender o que cincia, o que fsica, o que histria, o
214
Essa parte de sua histria mostra como foi importante aprender a ouvir e tocar o que
escutava. Esse ponto conflituoso com sua intransigncia em relao prevalncia da
oralidade da imitao nos processos de ensino e aprendizagem na AMM. E ser um bom
baterista para Tio Magno est relacionado com a capacidade de resolver problemas novos.
Sua crena em relao ao que seja boa msica o levou a se negar a gravar pode essas
msicas ruins e, em 1992, sua escola de msica mudou drasticamente o nmero de alunos
que passou de cento e cinqenta alunos para quarenta e cinco. Houve um convite para eu ir
pro Estados Unidos e eu fui embora. Mas no perdi o relacionamento com o Flvio. Quando
a AMM j estava implantada, Flvio criou condies de me trazer de volta... seno eu no
voltaria. S vim pr trabalhar a, pr brigar com as crianas. (risos).
Flvio percebeu a influncia que as bandas decorrentes dos blocos negros baianos
exercia nas crianas e adolescentes e utilizou esse dado como elemento catalisador
do projeto sociopedaggico desenvolvido, conquistando os adolescentes para um
trabalho baseado nos instrumentos afro. (PRUDENTE, 2003, p. 57).
Prudente (2003) informa que a sobreposio das classes sociais atendidas pelo
Projeto tem um contingente de 70% de pessoas da periferia e 30% da classe mdia. Flvio lida
215
com essas diferenas procurando dar as mesmas oportunidades a todos que vo para l.
Entende ser importante o convvio dos jovens com as diferenas.
Uma das prerrogativas que Flvio enfatiza a busca por um alto padro tanto dos
equipamentos como das atividades ali desenvolvidas. Isso, segundo ele, tem dado destaque ao
Projeto atravs das apresentaes da Banda. Ele acentua que muitas vezes a primeira vez
que eles so acreditados, so aplaudidos em show. Em 2000 fizeram 23 shows na Inglaterra e
em 2002 estavam com trs convites para tocar fora do Brasil, nos Estados Unidos (Flrida),
na Itlia e na Holanda, alm de outro convite, da EMBRAER, para lev-los para o Japo.
As aes da AMM que tm possibilitado, ao longo de sua implantao, conexes
interinstitucionais e sociais vm permitindo o encaminhamento para a escola daqueles jovens
que esto margem do ensino regular. O convnio com 153 escolas pblicas, diretamente na
busca de vagas e no acompanhamento escolar, conferiu ao Projeto um prmio da UNICEF em
2001. O envolvimento com as famlias e ncleos e multi-entidades visa congregar as favelas,
ONGs e instituies nas atividades e programas, cujo trabalho de profissionais voluntrios
somente na rea mdica. Os outros profissionais so contratados pela AMM para atenderem
em suas reas respectivas. Para ele, o compromisso do Projeto com a formao dos jovens
est calcado no prazer de aprender e no sentimento de pertencimento que os jovens
desenvolvem ao participar do Projeto.
Ligia Pimenta ressalta que as atividades multidisciplinares, desenvolvidas na AMM,
visam educao para valores e na qual o papel da msica funciona enquanto eixo condutor
da ONG:
Importa criar um contexto onde, atravs, da msica ele possa aprender outras coisas:
aprender sobre si mesmo, sobre outros, sobre a convivncia, sobre o respeito e
tambm aprender a habilidade especfica de tocar... uma forma de sensibiliz-lo
para o conhecimento. Mas o conhecimento vai alm. E tem todo esse contexto
aprende-se e se circula neste circuito muito dinmico e prazeroso, com muita
potncia (Ligia Pimenta, entrevista em 03/12/02).
Esta posio aponta para uma concepo que reconhece as prticas musicais como
forma de se estabelecer dinmica integradora considerando as dimenses subjetiva e
intersubjetiva presentes nas relaes socioculturais. Assim, o projeto pedaggico est
orientado pelos princpios expostos no relatrio para UNESCO da Comisso Internacional
sobre Educao para o Sculo XXI, sob o ttulo: Os Quatro Pilares da Educao: Aprender a
Ser; Aprender a Conviver; Aprender a Conhecer; Aprender a Fazer (PIMENTA, 2004, p. 91).
Ao longo de sua implantao, o perfil dos participantes que ingressavam na ONG foi
mudando. Os integrantes que vem para ONG atualmente no esto em um estado de grande
216
desenvolver e participar daquelas aes. Mas, foi preciso constituir um espao fsico,
institucional/jurdico para que a ONG pudesse dar continuidade aos seus propsitos. Nesse
processo de constituio institucional da AMM construiu-se, tambm, um espao simblico
de pertencimento. Socializa-se, assim, uma gerao de jovens que passa por ali e que se torna
um dos elos de uma rede social complexa.
O pertencimento pressupe a construo de valores simblicos e produz a capacidade
de participao no apenas pelas questes particulares, mas tambm pelas questes coletivas
que envolvem o grupo. Tem, portanto, capacidade de mobilizao coletiva em torno de
propsitos e valores socialmente construdos.
Vera, professora de dana, considera que a fora da arte um instrumento muito
importante pr questo social, no s social, mas humana... acho que so ferramentas que
podem transformar... elas estimulam, elas do vida, transformam a vida das pessoas... e os
jovens e adolescentes acabam sendo atrados pela cultura, pela dana, por essa energia que
circula aqui no Projeto. Ela considera o espao da ONG um lugar para o qual eles so
atrados e incorporam valores para sua vida e ao permanecerem na ONG, acabam atraindo
outros jovens tornando o projeto um espao bom de estar, contribuindo para o crescimento da
AMM (CEMM_1, Vera, professora de dana, 24/11/2004).
O discurso sobre a construo do pertencimento no processo de integrao dos
participantes da AMM muito forte. Ao falar desse aspecto, Flvio reportou-se dinmica
das escolas de samba: ... eu sempre fiquei muito fascinado como que a escola de samba
cuidava daquele pertencimento dos seus integrantes... o peso que tem o lugar que a gente
pertence e o quanto a gente valoriza esse lugar e pelas pessoas de l, revelando um parmetro
de construo de relaes intersubjetivas: tem mil tipos de pertencimentos nesse sentido de
grupo. Mas, o da escola de samba muito peculiar (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
09/11/2004). Quando se refere AMM, esse parmetro fica explcito, inclusive pelas
situaes que a entidade enfrentou:
O sentido de pertencimento dos meninos e meninas que freqentam a ONG pode ser
deduzido pela forma descontrada que eles demonstram nos momentos de lazer, nas trocas de
informaes e prticas no ptio e antes dos ensaios. Outro aspecto a ser destacado o
cuidado que eles tm com os instrumentos, no respeito em relao a regras bsicas e
convivncia pedir por favor esperar na fila, cumprir as tarefas no agendamento da
montagem da quadra para os ensaios da Banda, manuteno da limpeza, etc. Estes
compromissos acordados so reconhecidos e cumpridos, na maioria das vezes, pelos
participantes, refletindo o sentido da responsabilidade e do papel de cada um na dinmica do
coletivo. Flvio destaca que o sentido de pertencimento relaciona-se com o fato de que a
AMM constitui-se em um espao que no vivido como uma escola, como um clube de
juventude ou como um projeto social para ajudar coitadinhos, meninos de rua, favelados
mas, antes um lugar em que ele faz parte, ele pertence, ele ajuda a construir, ele pr-ativo,
ele protagonista (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
Esse aspecto constitui-se em um objeto de anlise da pesquisa, uma vez que
emergiram tambm nas falas dos entrevistados das vrias categorias funcionrios,
professores, alunos, pais, sendo que estes mencionavam o espao da Associao como se
fosse sua segunda casa, refletindo um valor simblico incrustado na vida social daquele
espao, fruto das interaes intersubjetivas que ali aconteciam. Rocha, o segurana que
recepcionava a todos que adentravam ao prdio, expressou-se sobre como se sentia ali em
uma de nossas conversas:
ROCHA Aqui minha segunda casa e uma segunda casa onde assim eu me sinto
vontade, n, como se eu tivesse na melhor poltrona da minha casa, assim,
assistindo o melhor filme. No que eu esteja na minha primeira casa, mas aqui
como se fosse igual. Eu me dou muito bem aqui, me sinto muito bem vontade.
MAGALI diferente dos outros empregos?
ROCHA diferente de tudo que eu j vivi antes, diferente de tudo mesmo, aqui
muito legal, muito legal mesmo (CEMM_2, Rocha, segurana, 18/11/2004).
... um espao de pertencimento, o jovem se sente que ele dono daqui, porque ele
que distribui os uniformes, ele que v no balco, ele que atende o telefone, ele
que ajuda, ele que distribui, ele que ajuda na refeio, ele que ajuda a lavar pratos,
ele que ajuda na limpeza, na construo, nas aulas de percusso e ento ele dono
disso aqui tambm, ento ele no destri (CEMM_1, Nair, coord. pedaggica,
20/09/2004).
Claudinei mostra seu comprometimento com a AMM ao relatar quando seus amigos
desistiam, ele insistia para que retornassem, e ainda, arrebanhava novos: A Silvany que
professora de percusso, eu que trouxe ela... E a eu comecei a trazer um monte de gente e fui
trazendo, ia chamando e usava a camiseta e sempre usei a camiseta, quando estou em casa eu
uso, na rua, sabe, no tenho vergonha (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004). Usar
a camiseta grifada com a logo da Associao tem um forte significado nesse contexto, pois
funciona como smbolo de pertencimento e localiza os participantes enquanto parte dos
Meninos do Morumbi. Muitos dos meninos e meninas mencionam a camiseta, ressaltando o
orgulho de us-la.
Pertencer significa tambm dividir os sentimentos de incertezas diante de situaes
que afetam a ONG na sua dinmica sistmica. Alessandra e Anderson revelam que todos os
conflitos, decises e encaminhamentos so compartilhados com a coordenao da Associao,
tornando o processo de gesto, coletivo. Ligia e Flvio estavam a par dos problemas que
emergiam e, quando tratavam dos conflitos, chamavam os envolvidos para uma conversa.
Quando acontece alguma situao conflituosa ou nova que exige uma participao da
coordenao, tanto Flvio como Ligia se mostram bastante participativos, compartilhando as
decises com os responsveis pelos diferentes departamentos da ONG.
221
...A disciplina daqui do projeto, que no uma coisa monitorada, de gente estar ali
em cima e acontece muito aqui, porque se voc reparar, no prdio no tem uma
pichao, l fora os muros so todos limpos e no fica guardinha olhando, no fica
ningum em cima. Ento uma autodisciplina que eles aprendem aqui sozinhos. E
super importante isso!
Eu aprontava muito na rua, como pichar, como destruir as plantas e j fui muito
sapeca e quando eu entrei aqui, no, eu fui vendo que se eu destrusse, eu estaria
destruindo a mim mesmo, porque era pr mim que era feito aquela coisa. Era pr
mim aquela casa. Ento, eu fui aprendendo isso e outros garotos tambm que eram
da antiga aqui, que estavam comigo, foi aprendendo isso tambm, se a gente
destrusse a gente estava destruindo a ns mesmo. Porque tudo pr gente, a gente
que faz, a gente que freqenta, a gente que est aqui todo dia, toda hora e na casa da
gente a gente no quer sujeira e a gente no quer ver uma coisa feia e essa coisa
aconteceu mesma coisa aqui. A gente no queria ver o projeto feio, sempre
crescendo e hoje graas a Deus eu tenho esse orgulho de dizer que eu aprendi,
aprendi muito isso aqui. A minha autodisciplina foi completamente, mudou da gua
pro vinho nesses seis anos que eu estou aqui, mudou da gua pro vinho (CEMM_2,
PAVILHO-BS, produo e sonorizao, 23/11/2004).
O mais importante pr gente, que ele aprenda esse enredo da banda pr ele poder
estar participando da banda e com isso, fortificar esse lao que ele tem com os
Meninos do Morumbi. A grande pegada dos Meninos do Morumbi, que segura as
crianas aqui, justamente esse lado artstico, esse lado da grandeza do show... os
que vm porque gostam da percusso, porque gostam da dana e querem participar
da banda, esses so os integrantes que ficam trs, quatro anos. (CEMM_2,
Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).
experincia, da minha histria, do meu conhecimento, para poder achar uma sada
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23-11-2004).
Cheguei a me envolver com o crime. Droga nunca usei, graas a Deus... Agora
crime, eu desandei bastante. Cheguei a fazer coisa que no era pr ter feito: eu
roubava mesmo! Roubava carro, essas coisas e levava. A o Flavo foi l e graas a
Deus me ajudou. Tirou eu, de novo, do buraco. Duas vezes... eu voltei pr c...essa
menina que eu falo que minha namorada, ela que falou pro Flvio que eu estava
mexendo com arma. Eu conheci ela no projeto, ela tinha 12 anos e eu tinha acho que
16 ou 15, uma coisa assim e namorava com ela. E a, agora o Flvio, o meu
padrinho de casamento, o Flvio e a Ligia. Eu casei, o Flvio ajudou a casar, ajudou
l na igreja, na festa, sabe, em tudo assim. Ns fizemos o maior festo, foi legal. A
ele padrinho da minha filha tambm e meu patro e meu pai tambm. Pr mim ele
isso e a Ligia a mesma coisa (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).
...profissional que fala a lngua deles tambm e que eles respeitam... o que foi
integrante e que hoje trabalha e que absorveu enes cursos, aprendeu e ento, alm
dele adquirir o lado profissional, o carter dele, eu creio que muda, mas tambm ele
ainda tem a seqela do outro lado. Ento, isso tambm, somando os dois lados, eu
vejo que ele aquele momento de fria, de nervosismo sabe discernir o lado
favela e o lado melhor. E, ento ele vai pensar antes de fazer uma besteira, qual o
lado melhor no relacionamento com o outro tambm...na comunicao...Ele vai estar
analisando os dois lados e vai passar o lado melhor e isso a gente tem visto e o que
eu te falo dos frutos, eu uso a palavra fruto porque o que eu vejo o resultado
(CEMM_2, Irmo- Aluzio, financeiro, 27/09/2004).
226
O uso mais geral para o termo rede para uma estrutura de laos entre os atores de
um sistema social. Para Castells (2000), a prpria contemporaneidade pode ser definida pelo
estar em rede: Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difuso
da lgica de redes modifica de forma substancial a operao e os resultados dos processos
produtivos e de experincia, poder e cultura.
As redes tecidas no mbito da AMM mostram-se como uma categoria importante e
significativa na constituio da identidade da organizao e, a exemplo de outras ONGs, essa
tambm tem como forte trao na sua dinmica social uma forma de atuao interconectada,
tanto em nvel das relaes humanas e organizacionais, tanto internas e externas. A forma de
comunicao presente em suas estruturas funcionais e seus programas de formao se
apresenta como um dos fatores mais importantes para a assimilao e o desenvolvimento
conjunto de novos conhecimentos e ncleos produzidos na ONG. Trata-se de relaes que so
inerentes s atividades humanas e que podem ser consideradas como redes espontneas, que
derivam da sociabilidade humana construda na dinmica do cotidiano das pessoas. As
famlias, suas comunidades, seus contextos, como j foi discutido nesse trabalho, apresentam-
se como um forte elo da rede articulada pela Associao.
Pude, tambm, perceber que a Associao aciona, intencionalmente, o padro de rede
tanto no aspecto social como institucional a partir de operaes coletivas de objetivos e
valores compartilhados em diferentes esferas da ONG, como Associaes de Bairro, escolas
da rede pblica, instituies privadas, instituies pblicas de fomento, outras ONGs,
Fundaes, enfim, o que se chama hoje de Terceiro Setor.
A necessidade de se estabelecer conexes com pessoas e instituies para dar conta
da demanda multidimensional que surgiu ao longo da constituio da ONG, foi traando a
estrutura e o desenho da rede articulada pela Associao. Estas conexes foram estabelecidas
mediante contatos, conversas, intercmbios de experincias, criando-se vnculos de diversas
naturezas: afetivos, profissionais, institucionais, polticos. Durante minha insero pude
presenciar eventos, workshops, lanamentos de publicaes que envolveram instituies
provenientes do Terceiro Setor8, tratando-se de ONGs tanto em comunidades pobres da
periferia de So Paulo.
8
Fundao Bank Boston, Fundao ABRINQ, Fundao Aprendiz, GIFE, CENPEC.
227
Participar de redes, sempre algo muito rico, porque onde voc troca, recebe, d,
amplia, redefine. E essas redes, muitas comearam com o fator presencial, de se
estar numa comunidade, de se conhecer as pessoas, de se apresentar: Olha, eu sou
Ligia dos Meninos do Morumbi!. Ento, as pessoas se conhecem, atravs de um
nome, de uma pessoa, e a voc troca informaes, voc troca valores, voc troca
objetivos. E com isso que ns estamos desenvolvendo parcerias com a escola, com
outras ONGs [..] acreditando que as parcerias, num contexto de rede, um
instrumento extremamente rico. Hoje eu tenho redes que j caminham sozinhas, que
eu posso resolver via telefone ou at falando para algum ligar em meu nome. Mas
isso precisou de muitos momentos presenciais, muita troca e participao em muitos
trabalhos conjuntos, para que pudesse ter esse espao que se tem hoje: uma rede de
mltiplos conhecimentos. assim: tem desde uma rede na favela, com a liderana
local, como tem rede entre ONGs e tem rede com as escolas. Tm redes com outros
institutos, rede onde entram financiadores, a rede com universidade (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
... tecendo essa rede, que o projeto vai construindo um espao de existncia, de
validao, de visibilidade. E uma caracterstica... presente desde o incio, que
articular parcerias, articular e participar de redes e ento isso muito... pra mim
muito habitual. Se eu tenho um problema e em frente a esse problema eu tenho que
propor um projeto, eu sempre vou pensar na rede que, de alguma forma pode
contribuir, pode participar, com as diferentes habilidades, com as diferentes
competncia (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23-11-
2004).
O trabalho realizado por Ligia na articulao das redes bastante reconhecido pelos
colegas e trabalho como atesta essa fala de Nair: A Ligia mais voltada pr um trabalho de
rede, que a ligao do projeto com as comunidades, com a sade, com a rede escolar e ela
comeou com as famlias. Nesse sentido, Ligia ocupa o papel de facilitadora do grupo por
sua capacidade de se promover vnculos de diferentes naturezas entres pessoas e instituies
com a perspectiva de que o processo grupal sempre transformador e desencadeia mudanas
nos mbitos individual, grupal e social porque sempre possibilita a aprendizagem de alguma
coisa.
A famlia se mostra, nesse estudo, como uma representao significativa, pois alm
de ser uma das vertentes de ao do projeto socioeducativo da Associao, os depoimentos
dos participantes se referem famlia como um valor relevante nas suas vidas,
independentemente do grau e da forma de presena ou ausncia em suas vidas.
Enquanto ao institucional a AMM desenvolve, como j foi mencionado, o
Programa Famlia e seus Contextos. Esta ao resulta, para os integrantes dessa equipe,
num laboratrio cujas aes so desenvolvidas por um grupo de profissionais voluntrios
atravs de diferentes estratgias: terapia comunitria, sociodramas, reunies grupais, grupos
focais etc. Os temas priorizados, levantados atravs de consulta s famlias, foram os
seguintes: Insegurana na Infncia e adolescncia; Qual o papel dos pais para reduzir os
sintomas?; Limites na educao dos seus filhos; Desenvolvimento da Parentalidade; Valores
Familiares; Sociodrama de Educao Sexual. A famlia compreendida como um ncleo
importante e tambm uma representao simblica.
O destaque para essa dimenso trabalhada na AMM se justifica pelo fato de que as
atividades se constituam em um suporte importante no que concerne aos diferentes aspectos
relacionados aos cuidados sociais que entrelaam questes de ordem familiar, escolar, de
230
E como objetivos especficos: 1) articular uma rede de profissionais que sero autores da
metodologia desenvolvida; 2) registrar as diferentes estratgias desenvolvidas; 3) sistematizar
a prtica e 4) avaliar o processo e os resultados alcanados (CCMM, p. 53, Magali,
04/09/2004).
A avaliao desse trabalho realizada cada encontro mediante reunies com os
profissionais envolvidos. A avaliao revela, tambm, que o planejamento das aes
subseqentes para o segundo semestre de 2004 foi organizado a partir da reflexo e da
problematizao que emergiram do contexto desse trabalho.
Destaca-se que o objetivo central para a continuidade das aes foi dar unicidade ao
tema a ser trabalhado em todos os grupos, optando-se pelo tema sexualidade, a complexidade
dos problemas relacionados famlia que rbita no cotidiano da ONG, sendo necessrio
priorizar problemas que se apresentavam emergentes. Alm desse planejamento, foi prevista a
insero de 500 novas famlias na AMM, com dinmicas que pudessem detectar as
expectativas dos novos, permitir a troca de informaes e propiciar uma acolhida positiva.
De uma maneira unnime, os entrevistados so gratos e orgulhosos de pertencer ao
Meninos do Morumbi. Cntia se expressa: ...sempre que eu escuto assim algum falando
Meninos do Morumbi, eu tenho orgulho de estar l dentro, essa a melhor parte. As falas
levam a inferir que o espao fsico e simblico da Associao incorporaram, de forma
positiva, no contingente que participa do projeto.
O sentimento de pertencimento Associao se revela tambm mediante a referncia
sobre representaes sociais como famlia, trabalho, emprego, a segunda casa, amizade e
emergem como valores importantes na construo da identidade dos jovens. Os entrevistados
tm famlia e moram com ela. E ainda que venham de famlias desestruturadas essa referncia
surgiu, em grande parte dos depoimentos, como uma estrutura social que remete ao amparo,
segurana, afetividade, conflitos.
231
Minha famlia vai ser essa, aqui dentro, eu e o Projeto e o Flvio junto. Minha
mulher era daqui, ela dana e foi pr Inglaterra. Flvio falou comigo e minha mulher
vai voltar c, pr danar e minha filha tambm. Se depender de mim eu fico at
chegar o meu fim. Eu no consigo ficar um ms, uma semana longe daqui. Sabe, se
eu ficar um dia em casa, eu fico pensando: P, no vejo a hora de chegar amanh
pr mim trabalhar. Aqui todo mundo, todos os funcionrios, todos os integrantes
uma famlia. Voc pode ter um piorzinho, mas ele sempre vai estar ali esticando a
mo pr voc. Ento eu tento ajudar todos, entendeu, todos que est aqui dentro, que
comeou aqui dentro do projeto. Eu considero como minha famlia, o projeto inteiro.
Pode entrar um integrante novo hoje, eu tento fazer ele entrar l dentro da nossa
famlia, virar uma famlia e todo mundo caminhar junto sempre na mesma direo,
como sempre o Flvio falou, subir prs cabeas e ir embora. (CEMM_2, Claudinei,
manuteno, 22/11/2004).
E ao ser indagado sobre o papel da msica na sua vida, Pavilho relata que hoje
praticamente tudo, porque alm de tocar, eu trabalho com som, opero mesa e isso foi
mudando a minha vida completamente, graas ao projeto eu consegui constituir uma famlia
(CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao, 23/11/2004).
As metforas eram usadas pelos entrevistados para expressar significados que se
reportavam s situaes vividas no cotidiano da AMM. E Silvinha sintetiza: Considero os
Meninos do Morumbi minha segunda casa, meus amigos esto aqui, meu trabalho aqui, eu
cresci muito porque eu... tudo o que eu sou hoje, tudo o que eu tenho hoje foi graas aqui,
porque hoje eu trabalho aqui, um cargo de confiana. E quando eu perguntei sobre o que
significativo quando ela pensa Meninos do Morumbi, Silvinha foi categrica na sua resposta:
232
Amizade, unio, orgulho e um sonho que foi realizado tanto no comecinho como
agora, porque cresceu muito, evoluiu muito e quem viveu isso faz parte da vida. Faz
parte da vida e eu me considero parte dos Meninos do Morumbi e a minha vida
aqui e isso a! (CEMM_2, Silvinha, financeiro, 18/11/2004).
4.3.3.2
VALORES, AFETOS E SIGNIFICADOS CONSTRUDOS DURANTE A VIVNCIA
NA ONG
A ligao afetiva com a ONG, fruto de um processo coletivo que liga diferentes
contextos, uma das caractersticas mais intensa que emerge nos depoimentos de todos os
entrevistados. Na ltima entrevista que tive com Flvio, ele se abriu para minhas questes, se
envolvendo com a prpria narrativa que desencadeou um processo de catrtico. Sua fala se
remetia aos momentos vividos e parecia reforar suas convices. Ao ser indagado sobre o
que significa a AMM na sua vida, ele traa vrias linhas que, ao se cruzarem, indicam
coordenadas desse processo de significao:
Isso aqui uma coisa que est cumprindo o seu papel e que uma misso. Eu sou
uma ferramenta dessa histria toda. Eu cumpro o meu papel e sou um guerreiro, vou
luta atrs das coisas, assumo as responsabilidades e pago o o mico dos erros, mas
no deixo peteca cair. Eu sempre tive a certeza dessa histria aqui, uma coisa muito
pessoal e eu no tenho a menor dvida do que a gente . Eu acho que a gente pode...
e o que a gente . No o que a gente tem materialmente. Voc fala assim: Pxa,
mas e se acabar tudo?, e eu falo que no tem como acabar, a gente volta pr rua,
com os instrumentos, com a comunidade, com as crianas. Vai tocar como era:
Vamos sair todo mundo daqui de dentro, vamos levar os tambores e a partir de
agora a gente vai tocar l na porta do estdio de novo. Eles vo e a gente vai arrasar
l na porta do estdio! Eu vou dar as aulas l na porta da minha casa, tudo comea
de novo. Quer dizer, uma imagem o que eu estou criando aqui, mas o que eu digo
pr voc o seguinte: a chama que mantm, no apaga. No minha [chama], eu
tambm fao parte dela, mas de todos aqui que gostam dessa histria. (CEMM_1,
Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
Dessa fala, destaco o lugar social que Flvio entende ser o seu, enquanto presidente
da Associao, com um forte trao na perspectiva missionria e redentora de seu trabalho.
No deixar a peteca cair reflete que a responsabilidade do sucesso ou fracasso da ONG est
centrada em suas aes. um paradoxo, pois, o paradigma do coletivo no abarca essa
perspectiva redentora.
Essa atribuio de auto-sustentabilidade reflete-se tambm no contexto poltico das
ONGs que projetam identidades sociais e polticas do micro, a partir de aes locais, para o
macrossocial, em que tais aes esto cumprindo um papel que antes era atribudo ao Estado.
um ponto para uma anlise mais aprofundada: como pensar em fenmenos sociais locais
para alm dos casos particulares, se as identidades coletivas se fragmentam ao sabor dos
contextos, se as categorias sociais se apagam atrs da irredutibilidade dos destinos
individuais (ABLS, 1998, p. 111) nesse caso, entendendo a ONG como o individual.
A fala de Flvio sobre o significado da AMM na sua vida sintetiza seu pensamento,
sua motivao e suas convices sobre o papel da msica, do msico-educador e do
comprometimento com um trabalho socioeducativo:
...pr mim to vital essa relao com os Meninos do Morumbi que j faz parte de
mim. Como voc tem na sua casa, como voc tem filho, como voc tem a sua vida.
234
Tm coisas que a gente j tem como nossas, que so parte da gente, como se fosse
parte do corpo da gente. E ento eu acho que pr mim, esse deve ser o meu trabalho
[...] a minha ps-graduao espiritual, meu doutorado. aonde eu vou aplicar todo o
meu conhecimento, toda a minha espiritualidade; aonde eu vou aprender, tambm,
como eu tenho aprendido muito, com o outro. E o que eu queria dizer assim... talvez
a msica seja assim, eu s consigo tocar - pr mim, o meu objetivo quando eu toco
tocar o outro, alcanar o outro naquilo que ele tem de melhor, que a alma dele
quando voc toca; e eu acho que esse tambm o que permeia a minha relao aqui
e eu, o Flvio, quero alcanar o outro, transformar o outro. E ento eu fico muito...
(interrompido por sua emoo) ... e ento como isso hoje faz parte da minha vida, eu
no consigo mais ficar passivo ao outro, eu no consigo mais ver um jovem
precisando no nem materialmente no ajudar no sentido assistencialista
participar da vida do outro. E, e ento eu acho que isso muito importante pr mim
aqui. O quanto eu caminhei, o quanto eu aprendi, o quanto eu consegui fazer disso,
que hoje me d n na garganta, porque uma caminhada longa, muito tempo! Oito
anos parece ser um tempo curto, mas muita coisa, a gente viu muita coisa, perdeu
muita coisa, mas ainda eu tenho uma gratido muito grande com Deus por ter me
posto nesse caminho (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
Vera, ao falar sobre sua relao com o trabalho que faz na ONG, diz que se
emociona e que tem uma dedicao com os Meninos que bem carnal... uma coisa de
amor, o amor, amor mesmo, s tem uma palavra, amor... e ressalta sua paixo pela
dana: eu amo a dana, penso o tempo todo em fazer coisas novas, eu pesquiso muito...
quero criar novas coisas, novas possibilidades pois isso traz felicidade a ela por estar
fazendo, tambm, um trabalho social (CEMM_1, Vera de Oliveira, professora de dana,
24/11/2004).
Ser feliz, fazer o que gosta no dia-a-dia um bordo na fala dos entrevistados.
Trabalhar na AMM traz um referencial para se reconhecer e se valorizar como pessoa, como
ressalta Dalva: o que est acontecendo na sua vida e dentro dos Meninos do Morumbi, eu
consegui descobrir isso, que eu no sou s mais uma pessoa... voc conhecida pelo que voc
faz!. Isso com certeza pesa bastante no meu acordar toda manh, pr poder vir para os
Meninos do Morumbi (CEMM_1, Dalva, professora de dana e esportes, 17/11/2004).
em suas vidas que esto ligadas dignidade humana, o que parece acentuar o sentimento de
gratido:
E o Flvio sempre me ajuda, sempre, qualquer coisa, sabe, tipo, pro Projeto assim,
minha dvida pro projeto muito grande e ento eu acho que eu no tenho nem
como pagar assim o que o projeto fez pr mim, sabe. E eu olho pr trs e eu vejo
meus amigos que est l preso, uns que j morreu j. Outros que nia, outros que
t preso e eu olho pr trs e eu agradeo muito assim, peo pr Deus, t ligado, ter
iluminado o meu caminho e o Flavo ter esticado a mo pr mim, pr me tirar
(CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).
na fala dos entrevistados que se desvela como o espao geogrfico que ocupam faz
diferena na sua existncia. Isso, no s considerando as delimitaes de seus bairros, favelas,
mas tambm de como uma oportunidade de borrar fronteiras urbano-espaciais pode ser um
fator ligado ao exerccio da cidadania e, portanto, acesso a direitos legalmente institudos.
No caso da Associao o espao urbano, enquanto representao da diversidade
sociocultural, aparece como forte componente na proposta socioeducativa. Ser da favela
como destaca Flvio, no confere uma validade social ...ela pode dar um sociabilizante, qual
seja, ela pode ser at respeitada, as pessoas podem ter medo etc, mas o grupo aqui validado,
eles tm um produto de qualidade que faz parte desse pertencimento: a Banda Show
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral , 06/11/2002).
Como j mencionado, a sede localiza-se em um bairro de classe mdia alta de So
Paulo, atendendo os bairros e favelas do seu entorno. Esse trnsito de pessoas provoca uma
mudana na ordem do bairro e no espao especifico da ONG, provoca uma mistura de classes,
uma vez que jovens da classe mdia de l, tambm participam das atividades desenvolvidas.
Como a entrada livre para todo tipo de classe socioeconmica, muitos integrantes
pertencem a uma classe social mais favorecida e fazem os cursos de informtica e ingls
porque gratuito, mas tem que fazer tambm as atividades obrigatrias: percusso, canto ou
dana. Anderson, da secretaria, localiza uma interseco conflituosa nessa diversidade de
classe, mas considera um fator de aprendizagem para todos. Ressalta que a cada nova leva de
integrantes a questo da classe social, determinada pela localizao de moradia mostra-se
como um diferencial:
... a grande diferena dos novos integrantes que esto entrando hoje no projeto em
relao aos jovens antigos, justamente a classe social. Porque o integrante que vem
da periferia, a gente conhece a caracterstica dele. um jovem que est sempre
arisco, at, muitas vezes, meio agressivo. Mas ele sempre est disposto a respeitar
as normas porque ele quer ficar aqui dentro porque considera um lugar bom. O
jovem que vem da classe mdia, classe alta, ele se acha no direito de ter algo a mais
e, no incio, tem sempre um conflito [...] Ou seja, ele tem que respeitar as regras e
participar das atividades do mesmo jeito que o jovem de periferia tem. E nesse
sentido h um confronto muito grande no primeiro e no segundo ms. Mas logo ele
entende e ele acaba entrando nesse mesmo ritmo dos outros jovens.. Ento ele por si
s, acaba se agregando a esses valores e acaba se comportando bem. (CEMM_2,
Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).
Os aspectos que Anderson ressalta pode ser pensado como um microcosmos onde
relaes entre classes sociais so, geralmente, conflituosas, mas com possibilidades de
consenso, desde que seja feito um trabalho educativo que envolva a tica e a cidadania. A
desigualdade reconhecida, tirando os mais pobres da invisibilidade social e os mais ricos se
237
envolvendo com um mundo que real cujos problemas ocupam uma esfera muito maior que a
pessoal, envolve o coletivo, o poder pblico e privado e toda a sociedade civil.
possvel inferir que no incio da ONG (1996) o trnsito de pessoas de favela e
meninos de rua possa ter causado uma desestabilizao da ordem estabelecida no bairro rico
da cidade de So Paulo. Aparece como um confronto social, que foi uma das dificuldades
superadas, constituindo-se como um fator de fortalecimento do grupo. Na sua ltima
entrevista, Flvio relatou-me que a primeira apresentao descendo e subindo a rua Francisco
Morato, como em um desfile com cerca de 30 integrantes tocando, causou grande espanto:
todos so tratados da mesma maneira, todos usam a mesma camiseta, todos comem a
mesma coisa e a msica ajuda bastante. O nosso trabalho com a msica, com a
dana, [oferece algo que] muitos no teriam a oportunidade que tm hoje: de
aprender, de at mesmo conhecer outro pas, de ver um monte de gente, tocar com
um monte de gente famosa (CEMM_1, Sivuca, ex-aluna e professora de percusso,
22/11/2004).
Ns somos uma banda que quer fazer sucesso, no importa se o menino mora numa
favela ou se ele mora num cortio ou numa casa com empregada. Eu vejo que a
msica ajuda bastante, mas ainda fora, assim, existe muito preconceito com isso. Por
exemplo, viu o Meninos do Morumbi e Ah, aqueles meninos favelados, l!. Isso
eu no gosto (CEMM_1, Sivuca, ex-aluna e professora de percusso, 22/112004).
238
No h como negar... que a relao entre o Poder Pblico e as diferentes partes que
compem a cidade se deu e ainda se d de forma desigual, ora privilegiando algumas
reas, ora atuando de forma cirrgica em outras, nas quais parte do princpio de uma
patologia espacial a ser corrigida, ordenada e disciplinada pela ao urbanizadora
(FERNANDEZ, 2004).
fato que existe uma ciso dos espaos urbanos cada vez mais exposta pela mdia. O
movimento Hip Hop faz emergir essa questo mediante uma viso crtica, onda a msica
um dos veculos de expresso mais fludo e com poder de penetrao. Abramovay (1999) em
seu estudo sobre a juventude localizada na periferia urbana de Braslia e Fialho (2003) na sua
pesquisa sobre o movimento Hip Hop com jovens da periferia urbana de Porto Alegre
constatam que a msica o trao de unio entre os rappers que falam em nome de uma
gerao estigmatizada, da realidade do seu cotidiano tecido por uma predeterminada excluso.
nesse contexto que a msica aparece como uma forma e um canal de expresso opcional
violncia e criminalidade (ABRAMOVAY, 1999, p. 181). A msica dos rappers representa
a msica da juventude da periferia, em que os msicos assumem o papel de agentes sociais
9
Centros Educacionais Unificados, CEUs, so parte de um projeto poltico-pedaggico lanado em 2001, pela
Prefeitura de So Paulo. Esto localizados em zonas de excluso social, na periferia de So Paulo.
(<http://www.brasilengenharia.com.br/frameinf561.htm>. Acesso em: 02 jan. 2006).
239
que crem em uma possvel transformao, por meio de um canal de expresso a msica do
movimento Hip Hop capaz de denunciar a realidade violenta em que vivem.
A AMM pode ser pensada como uma comunidade de aprendizagem que construiu
um projeto socioeducativo e cultural para educar a si prpria, suas crianas, seus jovens e
adultos, mediante um esforo endgeno, cooperativo e solidrio (TORRES, 2003, p. 83)
baseado na crena de seus entrevistados de que possvel superar barreiras de mltipla
natureza, visando melhoria das condies bsicas para uma existncia digna. Assim, durante
minha insero, a questo da aprendizagem em muitos lugares e contexto e entendida como
uma tarefa de todos foi se delineando como um forte trao na dinmica cotidiana da ONG.
Nuances pinadas em uma conversa com Sueli, chefe da cozinha, que me contou que estava
sempre atenta para que os participantes lembrassem de dizer por favor, muito obrigado no
momento de pegar sua refeio, respeitar a fila, lavar as mos antes de comer, j me
indicavam essa perspectiva. Apesar de Sueli no ser educadora, ela se sentia responsvel e
exercia sua funo em estar educando os jovens e crianas no mbito do seu trabalho. E esse
tipo de comprometimento era sensvel nos vrios setores da instituio. Todas aes,
musicais, burocrticas ou organizacionais, envolvem inter-relaes e podem ser pensadas
como momentos de ensino e aprendizagem para a comunidade da ONG.
Neste captulo discuto o contexto de ensino e aprendizagem musical como parte do
processo pedaggico-musical desenvolvido na AMM. Nesse contexto, a descrio e anlise
voltam-se para a compreenso dos processos e interesses do conhecimento musical produzido
e reproduzido, destacando-se como foram se instituindo e constituindo as concepes e
prticas pedaggico-musicais. As dinmicas das relaes sociais implcitas nesses processos
levam em conta os diferentes espaos onde se pode aprender e ensinar msica. Os focos
tericos que iluminam a anlise partem da fundamentao j apresentada no segundo captulo.
Os procedimentos didtico-metodolgicos de ensino e aprendizagem adotados na
AMM foram observados e analisados a partir de um recorte da totalidade das atividades
musicais oferecidas na ONG, focando as aulas do Grupo de Percusso, mais especificamente,
as aulas que agrupavam os aprendizes em nvel iniciante e intermedirio que tocavam surdo
de primeira, surdo de segundo, surdo de terceira, timbales e caixa. Os ensaios da Banda Show
240
10
Vale lembrar que tal procedimento foi adotado por Prass (2004), no aprendizado do tamborim, com mais
nfase e tempo, uma vez que sua pesquisa trata de uma etnografia sobre os saberes musicais focando a bateria
da Escola de Samba Bambas da Orgia na cidade de Porto Alegre.
11
Os CDs so produes independentes que contm o repertrio executado pela Banda Show Meninos do
Morumbi.
241
grupo. Em relao concepo das aulas, Flvio destaca pontos bastante claros, no que tange
aos aspectos pedaggico-musicais, na implantao do projeto:
...tinha que ser algo muito prazeroso e eu tocava muito com eles. E como eles no
tinham exatamente a idia de como seria estar tocando junto, eu sempre procurei
tocar para eles e fazer uma base rtmica para que eles pudessem pegar uma carona
nessa base rtmica, mesmo fora da mtrica, com problemas de dinmica. O
importante que eles pudessem entender como navegar na msica. Como algum
que est aprendendo a nadar e voc d uma bia pr ele, antes de ele flutuar sozinho.
Ento isso foi importante porque eles j sentiam que estavam tocando, como se eu
fizesse a base e desse a eles a incumbncia de fazer o solo, o contraponto. E assim
ficou prazeroso, eles gostavam de estar comigo, e a o segundo momento foi atrair
mais jovens e recrutar os meus alunos para que essa base que eu fazia sozinho,
pudesse ser ampliada (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
A msica aqui algo que eu constru pr que ficasse conforme a minha vontade de
participar nesse contexto. Ento eu fui levando pr esse lado e eu falei: Eu vou
apresentar pr esses jovens, um monte de coisa que nem eu vi ainda e comecei a
comprar CD de pigmeus da frica Oriental, de gente do Senegal e ouvir coisas do
Brasil e punha pr eles ouvirem, ao mesmo tempo eu pegava artistas pop e
242
transpunha pr eles e a gente tocava. Era lindo isso e eu tinha muito tempo pr fazer
isso porque era tudo pequenininho, eu tinha mais tempo e hoje... mas, ento botava
uma msica assim de um artista, que tinha horn session, que tinha bateria, que tinha
baixo, guitarra... (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11-11-2004).
E nesse processo de criao de uma metodologia que fosse adequada ao grupo que
Flvio tinha naquele momento, ele foi buscando formas prticas que respondessem quela
demanda: eu escrevia ali pr eles como a gente poderia tocar aquela msica e comecei a
tocar, dava aula tocando pandeiro junto, aula de bateria e a comecei a dar aula de percusso e
comeou a aparecer gente pr ter aula de percusso, no s exatamente de bateria, ou seja,
extrapolou as possibilidades de seu instrumento base que bateria. E nessa construo, ele
sublinha que no conseguiria ficar tocando com eles um contedo muito simples, mas antes,
buscou uma prtica que no fosse uma reduo de sua experincia musical e sim uma
multiplicao dela: eu no fiz da minha msica, ou melhor, eu no usei a minha msica e
simplifiquei s para poder atingir os objetivos sociais. Eu no conseguiria fazer isso, eu no
parei a vida pr ajudar coitadinho, eu peguei o meu projeto pessoal de vida e enfiei todo
mundo dentro, seno no ia ser assim a msica aqui (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral, 11/11/2004).
medida que o nmero de integrantes crescia, novas demandas surgiram nas
diferentes atividades da AMM. No ano de 2000, Marquinhos, baterista e percussionista, foi
convidado para coordenar a percusso. Ele revela que, mesmo sendo graduado em percusso
pela UNESP e tendo experincia com a msica popular e escola de samba, se colocou
tambm na posio de aprendiz para poder entender a complexidade da parte rtmica do
repertrio da Banda, para poder ensinar em sala de aula:
Eu comecei a freqentar o projeto porque eu tinha que aprender o repertrio que eles
tocavam. E, embora eu j tivesse uma experincia bem grande em msica popular,
at em escola de samba porque tem uma linguagem de percusso aqui que muito
de escola de samba, a gente usa muito o repenique como regente do grupo. O
repenique que d a entradas e a sadas das msicas e na escola de samba tambm
est ento, essa linguagem, eu tinha mais ou menos j moldada na minha cabea...
Daquele tempo em que eu toquei na escola de samba da minha cidade. A eu
comecei a freqentar as aulas, na poca, tinha s a Sivuca que dava aula aqui e
comecei a freqentar as aulas dela, vinha nos ensaios etc e comecei a achar tudo
muito difcil de assimilar. Eu precisava primeiro entender o contexto. Qual era a
idia musical deles, e a partir da eu comecei a entender melhor o que acontecia
(CEMM_1, Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).
Ento, primeiro eu tinha que entender qual era a funo de cada instrumento em
cada naipe. Surdo de primeira, surdo de segunda, surdo de terceira. E depois eu tive
que entender como era a nomenclatura das aulas, como que eles trabalhavam isso
nas aulas, porque eu via sempre uma turma pequena tocando um determinado
instrumento e uma turma enorme tocando outro. Depois eu entrava numa outra aula
e tinha trs turmas diferentes, uma tocando surdo de primeira, outra tocando surdo
de segunda, metade de cada lado da sala e uma outra turma menor tocando surdo de
terceira e a o pessoal tocando timbal, caixa e tamborim e eu precisava definir o que
era cada um e o que cada um fazia. Quer dizer, de tanto eu freqentar aqui, eu
comecei a memorizar um mondo de coisas que eles tocavam, s que eu ainda precisa
agrupar tudo no meu computador central. A um belo dia, eu estava assistindo uma
aula da Sivuca, e eu estava acomodado na verdade, porque eu estava assistindo
aula e eu j podia at dar aula nessa poca, j tinha um ou dois meses que eu estava
freqentando (CEMM_1, Marquinhos Silva, coord e professora de percusso,
10/11/2004).
percepo com aquele universo sonoro sempre apresentado com uma textura complexa e
vrias linhas rtmicas e timbres sobrepostos.
Pude, aos poucos, observar aspectos constituintes das aulas. Mas, para isso, tocar
junto com eles foi importante para aguar minha percepo desses processos sobrepostos. A
sala de aula de percusso para iniciantes e intermedirios se destina s aulas de surdo de
primeira, segunda e corte, sempre integradas com outros naipes do Grupo de percusso. Fica
no andar trreo e tem mltiplas funes, pois alm das aulas, acondiciona, em um mezanino,
todos os surdos e muitos dos equipamentos e instrumentos utilizados nos ensaios e
apresentaes da Banda Show. Serve, tambm, para a confeco e reparos dos instrumentos e
baquetas.
Os tambores so de diferentes tamanhos para atender s diferentes idades. Os
equipamentos de som, instrumentos da Banda, materiais para show, ficam fceis de ser
deslocados, pois tem uma porta garagem voltada para a rua que permite a entrada e sada da
v que leva os instrumentos e equipamentos quando h apresentaes externas. As caixas que
acondiciona os instrumentos e equipamentos so especiais, com rodinhas para fcil
locomoo e com estrutura para suportar longas viagens. Esses aspectos refletem que a ONG
possui uma tecnologia para montagem de shows com uma pauta bastante definida da logstica
necessria.
As aulas tm durao de cinqenta minutos, com 15 a 20 alunos, de faixa etria
diversificada. Os instrumentos dos iniciantes o tambor ou surdo. As turmas de percusso so
organizadas mediante uma lista de chamada, elaborada pela secretaria e preenchida pelo
professor ao final da aula, o que permite um controle de quem est freqentando as atividades.
So vrios horrios de aulas oferecidos tanto pela manh como tarde e as turmas se
encontram em diferentes nveis de aprendizado. As estratgias de ensino so semelhantes em
todas as aulas que assisti: a disposio dos instrumentos com o professor e alguns alunos mais
avanados demonstrando seqncia de ritmos e gneros do repertrio da Banda e os alunos
praticando quase que ininterruptamente; fazem rodada de exerccios individualmente quando
h dificuldades. A textura dos diferentes ritmos do repertrio da Banda complementada com
os alunos mais adiantados que participam das aulas.
No presenciei cobranas ou situaes que deixassem os alunos constrangidos. A
prtica, o fazer musical era sempre o mot. O que se clareava para mim, medida que
freqentava as aulas e ensaios da Banda eram os breques fragmentos rtmicos que eram
trabalhados como jogo de pergunta e resposta e funcionavam como chamadas vinhetas -
para cada gnero: o jongo, o funk, o ax velho, etc... o ritmo indicador do que vem a seguir,
247
Considerando o formato das aulas, sempre em grupo com a presena de alunos em diferentes
nveis de aprendizagem, o iniciante toca o instrumento desde o primeiro momento imerso, em
um contexto musical contrapontstico e polifnico, tanto no aspecto timbrstico como no
rtmico. Analisando o contexto de ensino e aprendizagem musical, o grupo aparece como um
forte trao na concepo da proposta pedaggica cujo desdobramento se manifesta tanto no
discurso como na prtica das atividades musicais. Assim, como se aprende e se ensina msica,
a organizao das aulas, a metodologia, a performance, todas essas faces do processo, so
dinamizadas pelo coletivo, que transforma um ajuntamento de indivduos em um grupo com
interesses comuns. Flvio esclarece que essa concepo j imantava o incio das prticas
musicais na AMM, fruto de sua experincia como msico e professor de bateria.
O processo de implantao de uma metodologia na ONG teve vrias etapas, sempre
buscando perceber o grupo. Uma dessas etapas foi criar uma metodologia para ensinar, como
aquela historinha do anzol, da isca, da linha. Depois foi fazer com que eles se entendessem
como um grupo, que desenvolvessem uma identidade, um ideal conjunto, um sociabilizante
como grupo (Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004). Flvio enfatiza, ainda, que o prprio
conceito de professor e de aula foi se transformando, onde o grupo considerado o eixo
motriz de toda a dinmica que instala no processo:
a gente no era mais um professor de msica em sua casa dando aula para os jovens,
a aula j fazia parte de um contexto maior. A idia era fazer aulinha rapidamente pr
poder estar tocando com o grupo. O grupo sim... ensaiava na rua, o grupo jogava
bola, porque da eu j os levei comigo imediatamente. Eu acho que eu no s dava
aula de msica pr eles, eu acho que os coloquei dentro da minha vida. Eles tinham
total liberdade, tocavam minha campainha, assistiam minhas aulas com os meninos
do meu curso regular, saiam comigo, jogavam bola. s vezes me procuravam s pr
combinar alguma coisa, para pedir alguma coisa, mas eu notava que eles j se
consideravam um grupo. E a ns caminhamos para o batismo dessa histria que foi
a primeira apresentao [julho de 1996, em Campos do Jordo] (CEMM_1, Flvio
Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
Esse conhecimento exige um mergulho no fazer prtico que s pode ser apreendido
no cotidiano dos ensaios, aulas e apresentaes. Tanto no ambiente das aulas como na rodinha
de amigos no ptio, o que se ressalta so as trocas em grupo. Do ponto de vista da estrutura
musical, o aprendizado e a performance esto imersos em um contexto sonoro complexo,
onde os alunos vivenciam uma prtica musical cuja textura tmbrica e rtmica que conduz ao
repertrio da Banda, como j foi mencionado. A metodologia aplicada em sala de aula tem
uma constante: o repertrio conduz as atividades das aulas e sempre envolve uma
complexidade rtmica maior porque se misturam os vrios naipes do Grupo de Percusso,
alunos com diferentes faixas etrias e nveis de aprendizado, o que propicia uma vivncia
249
musical com uma textura contrapontstica. A prtica isolada de uma linha rtmica de um
naipe, de um passo de dana ou mesmo de uma linha meldica do grupo s acontece no
sentido de se trabalhar um trecho, tecnicamente ou ritmicamente, que imediatamente se
incorpora a uma textura mais complexa executada pelo grupo.
Flvio comenta como o coletivo se apresenta como um parmetro nas atividades
musicais da ONG, no visando um virtuosismo, mas antes, buscando a realizao individual e
do grupo:
... fundamental e foi desde o incio, para que o integrante entenda, no aprendizado
de msica, que essa unio o que faz o produto final bom. Essa responsabilidade
com a sua parte que a gente muitas vezes aprende tocando em orquestra voc
tem o olhar do maestro, voc tem o olhar do outro companheiro que toca l s vezes
a mesma coisa que voc; se voc toca mal, isso tambm existe aqui, ento existe a
vontade de tocar bem, .tocar igual ao que toca bem ao seu lado. parte do
pertencimento. Quer dizer, o menino no toca bem por um ideal tcnico musical, ele
no quer ser um virtuose de um instrumento, ele quer tocar bem porque tocar bem
faz parte desse pertencimento, dessa identidade (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral, 11/11/2004).
aqui, na verdade, com essa questo do jovem e o pertencimento dele ao nosso macro, ele no tem a
chance de enxergar ele unicamente, ele tem que se enxergar em meio, fazendo parte de um
processo coletivo. Ento, ele no toca sozinho, ele no aprende sozinho e ele no constri sozinho.
A Banda faz sucesso porque ele toca o surdo dele l no cantinho, no meio de uma centena. Mas ele
tem que ter competncia, ele tem que ter a responsabilidade... entender que ele est incgnito l e
porque ele est em meio a muitos, ento essa responsabilidade uma responsabilidade ligada ao
pertencimento, quer dizer, identidade de ser dos Meninos do Morumbi. Estamos permeados por
um pertencimento muito parecido com o da escola de samba... Ento, eu acho que essa idia do
grupo, essa idia de orquestra, tambm, ela o centro da idia do ensino e do aprendizado de
msica aqui (CEMM_1, p. 12-13, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
um espao dos negros, segregados no morro e favela, para expressarem sua capacidade de
organizao, de reafirmar sua cultura e se divertir (PRUDENTE, 2003; GONALVES, 2003;
PRASS, 2004). E tocar em grupo, como pressupe Flvio, no ficar buscando perfeio ou o
ideal esttico e tcnico. prprio da escola de samba onde os professores visam muito mais
o resultado global do que, propriamente, o processo individual de seu integrante.
Entretanto, Flvio reconhece que na AMM existem vrias categorias de
performances, de acordo com o nvel de execuo e quantidade de instrumentos que tocam
tem um grupo que toca, com competncia, todos os instrumentos de percusso da Banda
fruto do interesse e esforo individual que o integrante tem, o que significa que a
idiossincrasia e a alteridade tm lugar nesse contexto coletivo. Alm disso, Flvio destaca
que, por conta de uma demanda que surgiu, relacionada questo de gnero, tem um novo
tipo de integrante que d aos meninos da percusso a oportunidade de aprender a fazer
coreografia com o instrumento, antes uma atividade mais especfica do sexo feminino:
Ento, para isso criou-se um outro curso, uma outra demanda na dana, que curso de dana
para percusso, porque eles queriam aprender tambm a fazer as coreografias danando.
Por outro lado, pude notar que em 2004 o nmero de meninas que participavam das
aulas de percusso era bem maior do que em 2002, quando aconteceu a minha primeira visita.
Flvio criou arranjos especficos e composies que compe o repertorio da Banda
Show e todo esse repertrio conduz as aulas. Sua proposta pressupe uma ordem no
aprendizado dos instrumentos da Banda que no , necessariamente linear, mas h um grau
de complexidade de um naipe para o outro. Os ritmos do Grupo de Percusso foram sendo
estruturados com as idias de Flvio e dos professores que, de acordo com o avano do grupo,
foram acrescentando novas estruturas e novos naipes ao repertrio. Sivuca, que comeou a
estudar com Flvio, hoje um dos baluartes da Banda. Tornou-se uma percussionista
profissional e conta como se tornou parceira na criao dos arranjos, ao mesmo tempo em que
ela ensinava tambm aprendia e buscava novos olhares dentro e fora da ONG:
s vezes ele olha pr mim e eu olho pr ele e a gente j sabe o que um e o outro vai
fazer. A gente meio que se conversa por olhares, musicalmente falando... eu estou
com ele desde que ele comeou...(CEMM_1, Sivuca, ex-aluna professora de
percusso, 22/11/2004).
Nessa mesma linha, pode-se notar no discurso dos monitores das aulas e
funcionrios, uma significativa representao positiva dessa experincia propiciada pelo
processo pedaggico-musical na AMM. Os entrevistados revelam que vivenciaram a
experincia de aprender a tocar e se relacionar com a msica de forma positiva. E,
geralmente, o contato deles com um instrumento musical e com um processo sistemtico de
aprendizageml foi propiciado pela ONG.
ele com outros jovens, dele com a criana, dele como indivduo, com outros, isso
tambm de alguma forma est sendo pensado e elaborado de que forma eles
poderiam receber essas habilidades pessoais que o que eles no tm. Em muitos
momentos eles so engolidos e ficam na mesma linha do jovem que ele ensina. Ele
no consegue se diferenciar. E quando ele fica no mesmo nvel, muitas vezes ele
briga por poder, ele no consegue quebrar essa coisa... (CEMM_1, Ligia Pimenta,
coord. de programas e projetos, 09/11/2004).
252
uma atuao pr-ativa nos contextos aos quais pertencem12. Outro aspecto vivenciado foi o
exerccio para a realizao do trabalho em equipe, que envolve a capacidade de trabalhar os
conflitos, de exercitar a liderana e de ampliar a perspectiva sociocultural e vivenciar
situaes de ensino e aprendizagem em que eles ocupavam o papel da pessoa que ensina. A
realizao desse projeto ensejou que os monitores exercitassem suas habilidades de planejar,
executar e avaliar o desenvolvimento dos trabalhos.
Nair destaca e esclarece como que esse projeto foi pensado e desenvolvido musical e
didaticamente, juntamente com Flvio e Ligia, para instrumentalizar os jovens no
conhecimento folclore afro. O objetivo foi proporcionar uma experincia na qual eles
iriam ser embaixadores do Meninos do Morumbi nas comunidades, saber qual a origem
dos nossos ritmos [...] que deu origem ao maracatu, ao samba, ao maxixe [...] foi um trabalho
feito de consulta aos livros, deles ouvirem e verem vdeos, para instrumentaliz-los. Nair
acompanhou a parte comportamental junto com a Ligia nas comunidades de Paraispolis e
Unio dos Moradores onde eles davam as aulas. Sua atividade focou os processos de como
lidar com as dificuldades de ensino e aprendizagem que aparecessem nos grupos (CEMM_1,
Nair, coord pedaggica, 17/11/2004).
Antes deles irem atuar na comunidade, Nair e Ligia preparavam atividades que
simulavam situaes como se voc estivesse [...] E sempre eles exageravam no papel do
aluno: o aluno indisciplinado, o aluno que interrompia o que estava acontecendo, que chegava
atrasado e como lidar com essas situaes. E essa preparao ensejava a reflexo sobre o
papel da cada um e as inmeras possibilidades de situaes que se podem encontrar. Segundo
Nair, os monitores levaram a proposta com responsabilidade e foi muito interessante ver o
respeito que eles tinham pelos aprendizes, pelos jovens, crianas que iam aprender; a
preocupao de saber se estavam aprendendo, destacando que foi uma experincia que
proporcionou um amadurecimento em vrios aspectos para todos os participantes.
Nair revela, ainda, que foram muitas as dificuldades para por em prtica esse projeto,
pois alguns jovens no tinham sequer o primeiro grau completo, tinham dificuldade com a
linguagem musical e, at mesmo, dificuldades comportamentais bsicas para se relacionar.
Entretanto, ela considera que
12
<http://www.meninosdomorumbi.org.br>.
254
eles serviu como uma aprendizagem que eles podem, de repente, desenvolver uma
atividade no futuro (CEMM_1, Nair, coord pedaggica, 17/11/2004).
E em relao ao que esse projeto significou para eles e para a Associao, Nair
enfatiza que muitos ...at mudaram o comportamento. Porque h uma inverso de papis:
eles passam de alunos a professores. E eles comeam a ter a viso de outra forma, da prpria
comunidade, do ensino, do jovem. Isso tudo porque eles passam a ser professores.
Luciana foi selecionada para atuar no Projeto Tambor Embaixador o que contribuiu
para sua atuao como monitora das aulas de percusso na AMM. Essa ao lhe oportunizou
um aprendizado importante e uma extenso das atividades da AMM em outros locais:
Fiz, fiz parte do Tambor e pr mim foi uma grande histria!... nossa, foi o melhor
Projeto que eu fiz. Foi importante, porque o primeiro obstculo era fazer uma ponte
entre as comunidades que eram trs: Jaqueline, Paraispolis e Porto Seguro com a
ONG aqui Meninos do Morumbi. O intuito era trazer as crianas que ficavam na
rua, saa da escola, no tinham o que fazer assim, no tinha atividades pr l e vir
pr c. E a gente ia at as comunidades e dava aula pr eles. Na segunda-feira a
gente ficava aqui no projeto aprendendo como lidar...(CEMM_1, Luciana, ex-aluna
e monitora de percusso, 21/09/2004)
No ano de 2002, Ligia e Nair comearam o trabalho e foi ensinando a gente como se
comunicar com uma criana e aprendemos tudo. Tinha aulas de teoria, com o Beto
Caldas e a gente, tambm, j sabia todos os toques dos Meninos. E do jeito que a
gente aprendia aulas, a gente passava, que o que o que eu fao hoje. Tudo o que eu
aprendo eu passo... eu procuro passar pro prximo. A gente ia at as comunidades de
quarta-feira, dava aula, tinha dois horrios na comunidade de Porto Seguro, das
quatro e meia e outro das cinco e dez, a gente dava duas aulas l e o resto do tempo
era aqui no projeto de segunda e quarta. Aqui, a gente desenvolvia o trabalho de
como a gente ia atuar na comunidade (CEMM_1, Luciana, ex-aluna e monitora de
percusso, 21/09/2004).
Foi muito importante essa experincia, porque tudo o que a gente fez l, a gente
passa aqui. Mas, aqui mais fcil, porque l, a gente est na comunidade deles, eles
faz o que quer, assim em termos, e uma comunidade muito carente l, pequeno l o
bairro do Porto Seguro, mas Paraispolis j bem grande e a gente teve tambm
que, no s ir l chegar e dar aula, mas sim tambm conversar, ir nas escolas, fazer
uma prop.anda do nosso trabalho, [falar] que a gente ia passar l pr eles... nossa, a
gente trabalhou muito, fazia os cartazes, fazia as matrculas deles, a gente cresceu
muito nisso, criou uma responsabilidade maior e isso foi o ano de 2002 (CEMM_1,
Luciana, ex-aluna e monitora de percusso, 21/09/2004).
Cntia tambm participou desse Projeto e, em uma de nossas conversas, fala dessa
experincia, evidenciando que o processo exigiu dedicao, esforo e capacidade de envolver
o pblico alvo na proposta, como ela relata:
Fiz, fiz parte do Tambor, foi uma histria bem grande! Foi o melhor projeto que
eu fiz. Pr mim foi importante, porque o primeiro obstculo era fazer uma ponte
entre as comunidades que eram trs: Jaqueline, Paraispolis e Porto Seguro com a
ONG aqui Meninos do Morumbi. O intuito era trazer as crianas que ficavam na
rua, saa da escola, no tinham o que fazer assim, no tinha atividades pr l e vir
pr c. E a muitos a gente trouxe, assim, contando no geral, acho que a gente trouxe
cinqenta crianas e adolescentes. A idade de fazer essa parte era dos 7 aos 17. A
gente levava instrumento e todo o necessrio pr l. Tinha que achar primeiro uma
parte pr gente poder estar colocando os instrumentos, as crianas em uma sala
segura pr estar acontecendo as aulas (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e professora de
percusso, 18/11/2004).
Cntia destaca que vrios aspectos relacionados logstica do Projeto foram parte do
aprendizado: A gente correu muito atrs e teve primeiro que pesquisar nas comunidades
todas, independentemente de qual fosse, todas seguiram o mesmo processo. A durao da
procura da comunidade foi uns trs meses... Essa atividade implicou o refinamento do olhar
para aspectos da comunidade relacionados suas vrias dimenses e caractersticas. Foi uma
grande histria mesmo, at fico brincando com o pessoal l, tem gente da comunidade que
gostou e veio at mesmo sem a gente dar continuidade l, porque o nosso procedimento era
dar continuidade, fazer o Tambor 3, o que no aconteceu por falta de infra-estrutura.
Essa foi a primeira experincia de Cntia ensinando msica. E no foi fcil para ela
no comeo: Primeiro, assim, voc no sabe o que fazer, voc est l, tem que fazer... como
eu fui uma das escolhidas pr dar aula e eu j fiquei meio assim... eu fui escolhida e
256
amei...tava tudo preparado, era voc chegar e fazer, mesmo que no soubesse, que foi o meu
caso. Mas, foi na prtica que ela desenvolveu sua capacidade de ensinar, aprendendo com os
outros:
...Eu fui pegando o que eu aprendi, eu fui pegando dos outros que me ensinaram,
tanto no lado do grupo [do Tambor] quanto dos Meninos do Morumbi que a gente
j tinha entrosamento com o pessoal que dava aula, foi muito... difcil, praticamente,
mas deu tudo certo. Foi atravs desse Projeto que a gente teve [a oportunidade], que
eu batalhei bastante pr estar aqui hoje (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e professora de
percusso, 18/11/2004).
Marquinhos fala sobre a atuao dos monitores em sala de aula e, traa um paralelo
interessante entre o processo de aprendizagem que eles tiveram e sua prpria experincia de
aprender msica naquele contexto, na qual o destaque vai para o aprender ouvindo e da
importncia da formao no que tange ao aspecto socioeducativo de um trabalho dessa
natureza:
Os monitores so ex-integrantes. Agora a gente est com trs monitores dando aula.
A Cntia, o Adriano e a Luciana. Eles so formados aqui, eles aprenderam como eu,
ouvindo. A diferena que eles no tm a experincia que eu pude ter. At porque
eu sou muito mais velho do que eles. E, ento a gente resolveu fazer um curso de
teoria pr eles, eu estou dando esse curso segunda e quinta-feira pr eles darem uma
melhorada no repertrio didtico deles. E agora a gente vai comear... um encontro
com a Dra. Ligia e com a Nair, pr melhorar no aspecto social do trabalho com os
adolescentes, porque eles tm, praticamente a mesma idade dos alunos... (CEMM_1,
Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).
257
Eles passaram anos aqui, anos eu digo uns dois ou trs anos tocando aqui, e
conseguiram assimilar tudo isso. Alm de assimilar tudo isso, eles tiveram que, com
toda a fragilidade deles, a falta de conhecimento musical e de experincia de vida e
de convivncia com aluno, eles conseguirem passar todas essas informaes pros
alunos. Quer dizer, na verdade eles so melhores do que eu at, porque eu tive mais
tempo pr aprender, n, ento o que a gente tem que fazer s vezes, moldar um
pouco mais e falar: Olha, vai por esse caminho aqui, mas no que eu t querendo
dizer que voc est errado. Eu tenho um pouco mais de experincia e ento se voc
fizer isso aqui, vai ser melhor do que aqui.... Eles tm aceitado bem (CEMM_1,
Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).
Eu tive que comear ensinar e a gente hoje muito ainda atravs da oralidade. Mas
desde aquele primeiro dia de aula eu peguei caneta e partitura e tive que escrever e
foi fundamental porque hoje ns temos um monte de meninos que so monitores na
rea de msica e na verdade so meninos que no fizeram curso especfico de
msica fora daqui.... (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
Mas na hora de ensinar, tem que passar pela engenharia, voc no consegue passar
essa oralidade com eficincia se no for pensado academicamente antes, quer dizer,
voc ensina atravs da oralidade mas tem que fazer toda uma estrutura acadmica
antes, seno voc no consegue criar um sistema exatamente e fazer com que, no
final de um certo percurso, eles possam se tornar multiplicadores. Ento, hoje voc
tem um monte de menino que pode dar aulas a de percusso e ns tocamos 30
canes, porque eles na verdade entenderam, atravs da oralidade, at um certo
ponto, porque tamborim essas coisas comeam a ficar mais difcil, mas ao chegar
num determinado ponto no fim do repertrio, quer dizer, tocar todas as canes e
aprender todos os instrumentos, eles acabam absorvendo essa engenharia junto.
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
O Flavo pegava muito no nosso p assim na poca, que ns ia pro... ficar olhando,
no ouvido e no por ler e ele passava l escrevendo no quadro: Ah l, ento no sei
o qu, toca isso!. A chegava pr tocar e ns no tocava. A ele ia l e tocava e
tocava, porque ns ouvia. Ficava ouvindo e olhando s, ah... esse tempo tal, um,
dois, trs... e a eu entrava no tempo. Ele ficava puto com ns por causa disso, que
ele queria que ns lesse mesmo! E a ns tinha que ir l e ler e tudo. Ento aprendi
lendo e ouvido. Mais por ouvido... voc lendo mais difcil. Porque eu estou
ouvindo um swing ali, eu consigo, tipo, pegar o ritmo e pegar, entendeu? Demora
um pouquinho, mas voc pega, voc desencana no negcio e pega. Mas, se voc for
mesmo pr ler... eu sou meio travado nesse negcio de ler msica. Mas eu tento, vou
empurrando com a barriga (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).
E nesse processo ele conta quantos instrumentos aprendeu e como foi se envolvendo
com a msica atravs de uma ao performtica emoldurada por um contexto significativo
para ele que no havia tocado nenhum instrumento musical at ento:
Nunca, nunca tinha visto na minha vida. Instrumento eu via nas escolas de samba, a
eu ficava vendo os caras na televiso, mas no achava to legal e nem me
interessava muito por tocar, entendeu? E nem gostava. Mas depois que eu comecei a
tocar, meu, nossa, l na rua, tocava ali na rua ali l embaixo [na antiga sede], a que
era mais melhor ainda. A que eu comecei a tocar. Comecei tocando com o caxixi de
madeira, com o caxixi eu fiquei uma semana, nem uma semana, fiquei uns cinco
dias com o caxixi e do caxixi j pr um... que era o rebolo de 16, que era um
pequenininho, que era segunda e da eu fiquei mais ou menos um ms nisso a,
mudei e j fui pro corte e do corte j fui pro tamborim e a eu fui mudando..hoje toco
259
surdo de primeira, segunda, terceira, toco o timbal, sei tocar alguma coisa do
tamborim... (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).
Silvinha lembra que aprender a tocar os instrumentos da Banda foi natural: a gente
fazia as aulas, antigamente era mais gente por salas, eu aprendi a tocar de ouvido porque a
gente ensaiava sempre e s foi aperfeioando depois... porque era o mesmo toque sempre. A
gente sempre ficava l danando mas ficava olhando a percusso. Ela destaca que aprendeu
muitos toques com o o pessoal que j tocava, interagindo. E nesse continuun do cotidiano
da ONG foi se construindo como integrante da Banda, enfrentando os desafios.
Pavilho reconhece que aprendeu a ler partitura, mas destaca que aprender por
ouvido foi um recurso muito importante:
TIO MAGNO O que condicionamento? [...] Voc pode ver muito bem um
garoto tocando muito bem um tamborim ou um pandeiro e achar excepcional, mas
eu peo pr ele fazer um bolero, uma valsa, ele no sabe o que . E o msico no
isso, o msico ele est apto a tudo.
MAGALI Mas a proposta do projeto no formar msico, ento...?
TIO MAGNO Mas ento... a ento qual seria a proposta? s dar esse lazer
nesse tempo da criana? E sua formao? isso o que eu quero dizer! E a sua
intelectualidade, onde est indo? A sua personalidade? Ns temos, ns damos muito
lazer a eles, eles tm uma mordomia muito grande tanto na alimentao como no
prprio divertimento, mas pouco conhecimento, porque no exigido. o caso do
ingls; ns temos ingls, mas so poucos os que se aprofundam. Compreende? Ento
nem ns exigimos de que ele estude e nem os pais e nem a escola l fora tampouco.
260
Assim est nossa sociedade. E como estou dizendo, a grande dificuldade que eu
senti aqui, o que eu chamo preguia dentro da nossa sociedade, de querer
raciocinar, de querer estudar, de querer ler. Eles querem fazer as coisas imitando,
imitando. Fazendo aqui como se fosse uma coisa descartvel e a msica no isso,
n. conhecimento em cima de conhecimento. Para voc ter a idia do que eu quero
dizer, eu t te falando pr voc com grande honestidade, grande honestidade, sem
um tipo de vaidade mesmo em meu corao (CEMM_1, Tio Magno, 17/11/2004).
A leitura e a escrita musicais so valores importantes para ele no que tange idia de
ensinar a aprender msica. um paradoxo que se apresenta nas concepes pedaggicas do
corpo docente. Mesmo se tratando de msica popular, a fala de Tio Magno marcada pela
crena de que saber msica significa saber ler msica e seu esforo como professor parece se
voltar para desenvolvem os alunos a capacidade de adquirir autonomia e criar:
Porque eu ainda vejo crianas de 13, 15 anos com tanta dificuldade de pensar, que
msica matemtica e o pouquinho que eu quero transmitir pr eles, passa a ser uma
dificuldade quando ele comea a pensar. Eles gostam de fazer coisas imitativas!
Voc primeiro faz e eles repetem o que voc faz. E eu aqui, como msico, eu ensino
a msica e peo para eles pensarem para poder criarem (CEMM_1, Tio Magno,
17/11/2004).
13
em contextos distintos Hlau, Musikhochschule, Maystro e Ryu-h feita pelo etnomusiclogo Ricardo
Trimillos (1998), anlise focalizando aspectos crticos e casuaisdas culturas musicais s quais aqueles sistemas
esto atrelados. (ARROYO, 1999, p. 277).
261
....Como todo mundo comea hoje, do surdo de primeira, vem as tcnicas, como
segurar o surdo, posio de baqueta, como colocar talabaque, postura que o
principal, n, que o surdo no momento que a gente pega assim, levinho, mas
conforme vai passando, ele vai pesando, porque voc vai colocando ele na posio
certa. A eu passei pelo surdo de primeira, so seis naipes: primeira, segunda,
dezesseis, corte, caixa, timbal e tamborim. A eu passei por todos, praticamente, eu
hoje fico mais no tamborim e a foi indo. (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e monitora de
percusso, 18/11/2004).
Luciana, monitora das aulas de percusso, j assume com competncia as classes dos
iniciantes e intermedirios. Adota o formato de aula que experienciou na prtica. Aprendeu a
tocar todos os instrumentos de percusso, inclusive os tnicos. Toca na Banda e, nesse
dilogo, relata como foi seu processo de aprendizagem:
Nem sabia o que era surdo, no sabia diferenciar nada. Depois de um tempo que eu
fui vendo que msica no difcil, basta voc estudar. E eu no tinha vontade
nenhuma pela msica e depois que eu entrei aqui nos Meninos do Morumbi, quis me
aprofundar mais e agora no ano que vem at pretendo fazer faculdade de msica.
Quando eu entrei, entrei fazendo o surdo de primeira que o que todo mundo
comea a fazer. A depois aqui surdo de segunda, mas eu nem aprendi o surdo de
segunda, j fui direto pro corte j, porque antigamente era mais fcil. Quando voc
tem vontade voc aprende mais fcil, se interessa, voc vai pegando de ouvido
mesmo, porque aqui muito do ouvido (CEMM_1, Luciana, ex-aluna e monitora
de percusso, 21/09/2204).
Essa fala destaca um processo ou um recurso para uma forma de aprender que vem
sendo discutida e pautada por muitos educadores musicais considerando a sua freqncia e
consistncia nas pesquisas acadmicas realizadas.
A oralidade, o aprendizado pelo ouvido, foi uma constante nos depoimentos dos
todos os entrevistados que aprenderam percusso l e que faziam parte da Banda. Luciana
aprendeu a ler partitura e a tocar todos os instrumentos de percusso da Banda. Fala com
simplicidade sobre seu processo de aprendizado e ressalta a importncia da oralidade e da
imitao no seu desenvolvimento de performer e como isso incorporado na dinmica das
aulas. Luciana fala que aprendeu muito de ouvido porque aqui a gente no estuda muito a
teoria, nas aulas mesmo tudo prtica, s de ouvido... assim, toca no dois, no quatro, so
tantos toques e voc tem que pegar, vai pegando. E explica que o tempo na msica
262
dividido em quatro o compasso e a voc vai tocar no dois e no quatro. Como exemplo,
ela cita como aprendeu tocar o surdo de primeira no ritmo do samba: a voc toca 1, 2, 3, 4;
1, tum [tocando], 3, tum e a voc vai tocando no dois e no quatro, pegando de ouvido. E a
depois eu aprendi o corte, que o surdo de terceira.
O destaque na fala de Luciana que sua ateno para aprender a tocar os diferentes
ritmos do repertrio foi centrada no ouvir e perceber a pulsao e nos tempos do compasso.
Durante minha insero, ao participar das aulas de percusso, o processo foi ficando explcito
de como, o que e de que forma eles aprendiam.
Cntia conta: muitas vezes eu j pensei em desistir porque eu achava que ia ser
difcil... a parte terica, revelando que essa foi uma dificuldade no seu processo de
aprendizado. Tocar somente de ouvido parece ter uma minimizao do papel do msico e ler
e tocar com partitura, ler e escrever a grafia musical significa uma condio importante para
ser monitora:
Hoje eu j estou mandando bem, assim, em algumas partes. Mesmo antes de estar
virando monitora... eu tentava escrever partitura sozinha, muitas vezes acertava...
porque voc tocar de ouvido a pior coisa. A gente at brinca que pegar as coisas de
ouvido burrice... Porque voc, por mais que voc saiba aquele som, voc pegar
por ouvido, voc vai tirar ele certinho, mas na hora de voc passar pr partitura, no
vai sair... voc ouviu uma coisa e vai escrever outra. E acontece isso comigo quando
eu escuto uma coisa assim, que eu vou passar pr folha, totalmente diferente. A a
gente vai pegando um pouquinho, mas a melhor parte a teoria... porque agora no
sei se porque eu j estou aprendendo mais, mas pr mim pegar ela melhor...
montar qualquer som.... pr tocar em surdo, timbal, caixa, teoria bastante
importante (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e monitora de percusso, 18/11/2004).
263
Alm das aulas de surdo, pude ainda observar as aulas de caixa e timbal conduzidas
por Sivuca. O trabalho em sala segue a mesma dinmica das aulas de surdo, entretanto, nessas
turmas mais adiantadas, h uma maior exigncia tcnica, de condicionamento fsico e espao
para improvisao na roda do grupo. Prevalece o processo da oralidade no ensino e
aprendizagem por imitao em que a repetio realizada com ateno sonoridade, preciso
rtmica e tcnica para atingir o nvel de exigncia colocado por Sivuca. Ela utiliza vrias
estratgias como a alternncia equilibrada das mos segurando as baquetas e praticando,
lentamente (D (Direta) DE (Esquerda) D DEDE em duas clulas de quatro semicolcheias)
para depois ir acelerando at chegar no andamento da msica ou gnero trabalhado. O
movimento do corpo
solicitado para que
o vivenciar o ritmo.
Os alunos parecem
no ter vergonha de
errar, mesmo quando
cada um tem que
fazer o ritmo sozinho
na roda do grupo e
improvisar, sobre o
modelo estudado. O
pulso e o andamento
eram ressaltados
como parmetros essenciais na execuo. Errou continua, vocs esto aqui para aprender,
no tem que ter vergonha. PULSA! diz Sivuca. Tocar caixa significa j estar em um dos
estgios mais avanado na Banda. Os padres rtmicos so complexos e exigem uma tcnica
apurada de extrao das inmeras possibilidades tmbricas do instrumento.
O processo de imitao funciona na AMM como um dos eixos condutores do
processo de aprendizagem musical sistemtico no trabalho desenvolvido pela ONG. Mas, o
carter ldico est em evidncia no processo pedaggico-musical porque os jovens expressam
prazer por estar naquele espao, quer seja tocando, aprendendo algo, representado a AMM
nas apresentaes ou encontrando-se com os amigos.
264
informa o site: Orquestra Jovem das Amricas, David Fanshawe/ African Sanctus, Marcelo
Bratke, Tnia Maria, Cidade Negra, Olodum, Ivete Sangalo, Lulu Santos, Orquestra da TV
Cultura, Maestro Nelson Ayres, entre outros14. A Banda Show realiza espetculos a convite
de empresas privadas para eventos institucionais e possuem os requisitos dos benefcios
fiscais vinculados esfera federal pela Lei Rouanet do Ministrio da Cultura.
14
Cf. no site da AMM <http:// www.meninosdomorumbi.org.br>.
267
Eu gosto do ensaio, porque ali aonde a gente vai vendo que um vai se destacando
do outro, pr tocar, pr poder fazer as baladas, as apresentaes a fora. E tambm
nos ensaios de vez em quando, eu tenho que se voc j teve a nossa presena, voc
269
Fui entendendo
como e porque as questes
relacionadas com o ensino e
aprendizagem musical eram
conduzidas pela performance
da Banda Show. As aulas, os
ensaios, as aulas de dana,
eram espcies de rituais
preparatrios para o
espetculo da Banda. Nesse
aspecto, cabe lembrar o
estudo realizado por Prass (1998) em que pode-se perceber uma aproximao de compreenso
desses processos:
E cada ensaio funciona como um laboratrio para a Banda, momento para se criar arranjos
porque as novas idias emergem no ato de tocar. Assim, Tio Magno diz que cada ensaio
diferente do outro, apesar do repertrio ser o mesmo. E em relao ao processo dinmico de
criao favorecido pelos ensaios, Flvio corrobora a fala de Tio Magno que mesmo tocando o
mesmo repertrio prope coisas novas: ...a gente est sempre mudando, isso tambm faz
parte do artista, por mais que seja a mesma cano, no mesmo lugar, ela no igual, no ?
Ento, um ensaio nunca igual ao outro e eu sempre procuro inovar na minha interpretao,
sabe, passar isso e a gente tem jovens assim (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
11/11/2004). Assim, cada ensaio uma performance onde a dimenso esttica tem vrias
interfaces com a msica, a dana, o movimento e a sinergia de tudo isso. Sempre que assistia
270
a um ensaio sentia essa sinergia e a Banda como um dnamo poderoso potencializado pelas
pessoas fazendo msica, tanto as que so parte dela como as que assistem, corroborando o
conceito de performance de Small (1995) e Blacking (1995), na perspectiva de que fazer
msica trata-se de um processo interativo entre pessoas.
A Banda pr mim, agora... j faz parte da minha vida em tudo assim, muito bom
estar nela, poder ir para as apresentaes, conhecer novos lugares, novas pessoas,
poder ser aplaudido, assim em p, sabe, o pessoal chegar, nossa, homenagear
assim... gostei muito... parabns... parabns... obrigado... e , t tocando aqui,
negcio bom e um negcio que eu gosto.... (CEMM_1, Luciana, ex-aluna e
monitora de percusso, 21/092004).
Quando estou na banda? Me sinto cego quando estou tocando na banda, estou l
envolvido mesmo assim, parece que estou, tipo sabe, que estou na lua assim, que eu
viajo no som,, que eu toco mesmo! Tipo, s vezes o Flvio pega no meu p que eu
toco at meio muito alto tem vez e ele: Oh Dineizinho no sei o qu... e eu j fico
meio quieto; mas quando eu t tocando na Banda eu me sinto... no vou falar assim
como um artista, assim, mas sei l, eu sinto uma coisa parece que j vem do meu
sangue, sabe assim, corre o sangue ali dentro quando estou tocando surdo, parece
que j vem, sabe, de mim j assim. E a no tem como, parece que estou em um
outro mundo assim, na lua, viajo mesmo (CEMM_2, Claudinei, manuteno,
22/11/2004).
.
272
E ento eu acho que essa dana, ela vai ao encontro com a sua vida, como se ela
danasse na vida, tambm. E ela vai melhorando essa dana e vai aprendendo a girar
melhor na vida, a girar a dana, aprende a ir e voltar na dana, como ela aprende a ir
e voltar na vida. So muitas questes na dana que so parecidos mesmo com a vida.
Esse jogo de cintura que a gente tem que ter na vida, esse molejo, que acaba fazendo
com que a gente aprenda a lidar com os nossos problemas. E a dana, tem essa coisa
da auto-estima, ela vai fazendo com que o ser humano tenha mais segurana na vida
para buscar o que ele quer. (CEMM_1, Vera Oliveira, professora de dana,
24/11/2004).
A opo por um trabalho com danas tnicas defendida por Vera por se tratar de
uma possibilidade de contemplar a diversidade. Alm das danas tnicas, Vera trabalha com
as danas brasileiras buscando acentuar os aspectos multicultural e multirracial, criando suas
prprias composies coreogrficas.
273
Sobre o trabalho pedaggico com a dana voltada para uma proposta social com
vistas a uma transformao do indivduo e do coletivo, Vera relata que a maioria das
integrantes no tem preparo algum com o corpo para a dana, mas que assim como na vida,
enfrentar e transpor as barreiras do prprio corpo contribui para o amadurecimento do ser:
Elas chegam aqui com o corpo bem fechado... e ento o corpo vai se abrindo, ele vai
abrindo, ele vai melhorando e ela vai aprendendo a lidar com o seu corpo, com o
corpo do outro, ela vai aprendendo a respeitar os seus limites, respeitar o limite do
outro, e essa troca, essa mudana, essa modificao corporal, faz com que ela mude
tambm a vida dela, porque a vida dela tambm tem limites, a vida dela tambm tem
que estar aberta pr algumas coisas na vida e ela tem que estar aberta pr dana. Ela
tem que deixar a dana entrar... por exemplo, quando ela vai amadurecendo aqui, o
amadurecimento comea a entrar na vida dela, e na vida e tambm na dana, a gente
encontra barreiras, que pr gente parecem intransponveis; e a gente vai percebendo
que ns vamos mudando com o tempo; ento a gente encontra isso na dana e a
gente tambm encontra isso na vida (CEMM_1, Vera Oliveira, professora de dana,
24/11/2004).
Eu acredito que os jovens chegam aqui de uma forma e eles vo mudando, eles vo
se transformando; transformam o corpo, transformam o olhar, transformam a
expresso do corpo. E esse corpo vai se abrindo, vai se modificando e ele vai
ficando mais flexvel. E isso faz com que o ser humano fique mais flexvel na vida,
que ela aprenda a burlar e a passar por seus problemas com maior facilidade...
percebo mudanas de comportamento, percebo entrosamento em grupo, sincronia no
grupo e para que eles possam danar eles tm que estar bem tambm, fsico e
mental. A dana pr mim, acima de tudo ela sade, ela vai mudando a concepo
de como comer, de como tambm cuidar melhor do seu corpo, higiene, o fsico [...]
ela traz a felicidade interna, modifica o ser humano (CEMM_1, Vera Oliveira,
professora de dana, 24/11/2004).
chegar nos jovens, muito rpido isso aqui. Eu acho que o nico, em nvel de ONG, de So
Paulo, eu acho que o nico (CEMM_1, Nair, coord. pedaggica, 17/11/2004).
Pavilho o coordenador do equipamento e da sonorizao e esclarece sobre o
aspecto qualitativo e quantitativo dessa estrutura:
A estrutura que a gente tem aqui at grande por ser uma ONG. Ns temos muitos
equipamentos, temos quatro mesas e pr montar complicado, porque como a gente
ONG, sempre a gente faz shows pr empresas e tal e isso tem que ser muito rpido.
Leva cerca de 15 minutos, 20 minutos pr montar e desmontar. Ento a gente teve
que nos capacitar pr isso. Pelo devido tempo que a gente tem, somos em sete,
desmontamos em 15 minutos e montamos em 20, 30 minutos. Temos 60, 70 cabos
pr passar em 10 minutos, microfones, instrumentos. Tem que passar o som, tem
que afinar os instrumentos e ento muito complicado e graas a Deus at agora a
gente est se dando bem (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao,
23/11/2004).
E como foi preciso que ele gerasse um conhecimento especfico para lidar com essa
demanda, uma vez que a rapidez uma condio para se dar conta de montagens. Pavilho
diz que foi aprendendo na prtica e pela observao, porque na hora
...no pode ter vacilo! s vezes a gente tinha que fazer dois shows em um dia s, e
com duas horas de diferena. Tnhamos que desmontar e montar tudo em outro
lugar. A gente teve que se virar. O Flvio chegou pr gente, ah, vocs tm que se
virar porque a gente tem que fazer outro show. ...era muita pauleira, correria pr c,
pr l, e a ficou no automtico (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e
sonorizao, 23/11/2004).
Todo esse processo de aprendizado relatado por Pavilho o levou a se capacitar e se tornar
um profissional especializado em sonorizao e montagem de show. Seu depoimento revela a
participao fundamental de Flvio no sentido de oportunizar aos monitores e funcionrios
um aprendizado com profissionais competentes da rea:
Foi o som que eu encontrei, que estavam precisando pr carregar caixa, pr fazer
alguns trabalhos nesse sentindo e ento eu entrei, o Flvio me deu oportunidade e eu
fui me aprimorando, fui fazendo curso.A gente conversou com o Flvio e pediu pr
ele arrumar um profissional pr nos ensinar e ele chamou um amigo dele, o Carlos e
a Hel. Ele trabalha no Stdio Mega, de So Paulo. Eles deram um curso intensivo
pr gente e a eu fui aprendendo e hoje, me viro bem, me capacitei pr isso e quero
alcanar novos horizontes, fazer mais cursos fora daqui, trabalhar fora e, se Deus
quiser, vou conseguir (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao,
23/11/2004).
275
E quando eu perguntei a ele o que chamou sua ateno no programa, ele disse que foi
a vontade de estar ali:
276
...na televiso mostrando para os outros que esto assistindo, quem sou eu, quem sou
eu nos Meninos do Morumbi. Apresentaram o que os Meninos do Morumbi,
quantos integrantes tm e eu vi na reportagem que eu no conhecia o Flvio, da eu
falei: Ento eu vou l marcar uma reunio, eu vou conhecer o Flvio e vou entrar e
fazer parte da famlia dos Meninos do Morumbi!. No programa tocaram duas
msicas: o funk e o Guerra no Mar. (CEMM_1, Leandro, capa do CD, 24/11/2004)
eu acho que ainda como um empresrio, sou um bom msico, sabe, eu no sou uma
pessoa metdica no sentido assim...eu no priorizo as regras, as matemticas e pr
mim, a meta por o menino pr dentro daquele porto e se precisar transgredir todas
as regras aqui dentro da lgica empresarial pr por esse menino pr dentro, eu vou
277
por o menino pr dentro. E isso que faz a gente muitas vezes sofrer um pouco
mesmo. (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
....Ento, no momento que ns traduzamos esse jovem, essa criana pra escola, ns
percebamos que a escola, muitas vezes, pela primeira vez, comeava a ouvir uma
parte, um captulo de uma histria do qual ela desconhecia e isso fazia uma enorme
diferena porque ns mostrvamos, alm do contedo dessa histria, algumas
estratgias e algumas construes que j haviam sendo feitas na vida dessas
crianas. Ento, esse foi um trabalho muito desafio, porque a escola era muito
fechada, os professores eu costumo dizer que uma aprendizagem muito
significativa na minha vida profissional, foi lidar com os professores (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
Essa situao implica conflitos que contrapem o real e o ideal, levando a uma
anlise em que se conjuga o verbo no tempo condicional como Ligia o faz nesse depoimento,
refletindo, tambm, como ela se sentia em situaes de impasses e limtrofes:
Eu gostaria de fazer mais, eu gostaria de ter um time maior aqui pra poder at,
imagino, algumas aes que seriam muito positivas aqui. Mas s que voc trabalha o
tempo todo com uma grande agenda, com pouco dinheiro, com poucas pessoas, n, e
muitas vezes voc tem jovens que esto beira do abismo e voc tem que chegar de
uma forma muito cuidadosa, porque se voc se apressar um pouco, voc acaba de
empurr-lo, n, ento voc tem que pensar muito bem, n, qual a melhor forma de
chegar at l e ali na beira do abismo tentar fazer com que ele olhe pra outras coisas
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
moleque tocou, era responsvel, era legal, vinha nas aulas, estava indo pr escola e
da noite pro dia virou a cabea e mudou. A gente tenta conversar, mas s Deus sabe
da vida da gente (CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno e professor de percusso,
22/11/2004).
E nessa trajetria onde se trabalhou com a vida das pessoas, a msica reconhecida
por ele como o atrativo principal e ele conta que a gente via realmente as vidas sendo atrado
pelo lado musical, e a msica para ele tem uma potncia intrnseca que, quando expandida,
tem a capacidade de transformar a vida das pessoas:
... uma coisa que vem de cada um, est dentro da alma de cada um. S que uma
coisa que s vezes a pessoa no flui, no pe pr fora. E quando v e comea a
participar, comea a fluir e acaba se dedicando quilo, troca outros prazeres pela
msica. Enfim, citando novamente em relao ao projeto, voc usa a msica pr
estar atraindo e fazendo uma permuta, por exemplo, estar cobrando na escola, que
ele acaba trocando a msica por uma outra situao que ele tem l fora. E acaba
dando mais tempo aqui no projeto e com isso ele vai se lapidando. Voc tem frutos.
Quando a pessoa realmente gosta, ele fica como ns temos exemplo de funcionrio
daqui que comeou com integrante e est a [trabalhando]. Porque se dedicou, ele
aproveitou, absorveu os cursos. E, ele tem uma mentalidade, outra cabea, at
280
profissionalmente. Se um dia ele sai daqui, l fora ele tem campo de trabalho. Tudo
isso graas msica, porque foi a msica... claro que eu coloco sempre Deus em
primeiro plano porque cada um, eu acredito que Deus v cada um e cuida de cada
um, basta voc dar de si pr que isso torne-se realidade. (CEMM_2, Irmo- Aluzio,
financeiro, 18/11/2004).
...eles entram aqui e se procuram. Eles procuram os amigos e, muitas vezes, por
essas fotos que muitas histrias so mantidas vivas aqui. Edvnia que um caso,
tambm da poca do Claudinei, que morreu o ano passado. Do Wesley que foi um
caso em que ns fizemos enormes tentativas e que hoje ele um bandido. Esse um
caso que eu acompanhava-o na escola e a escola no queria aceit-lo; articulei uma
rede onde a professora, a diretora, participava de uma proposta para mant-lo na
escola, criar condies. E eu atendia a famlia em casa ele morava com os avs. Eu
promovia reunies, eu chamo reunies de rede. Ento a professora ia tentando achar
alternativas pra que o Wesley se mantivesse na escola, tanto que no primeiro
semestre ele se manteve nos corredores da escola. Muitas vezes, durante o
acompanhamento, a me dele aparecia, acordava bbada na frente da escola, ento
eram situaes assim, multi-problemticas que se tentava acionar uma rede, mas no
se conseguia lidar com tanta vulnerabilidade, com tanto caos que se instalava a todo
o momento. O irmo dele morreu junto com o Edvnia agora, foram assassinados,
queimados, quer dizer, morreram a pauladas, colocaram fogo nos dois (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
A perspectiva subjetiva dos frutos, das conquistas e tambm das perdas ao longo do
trabalho realizado visto por Ligia pela capacidade de se mensurar a mudana do outro,
realmente no olhar, no quanto o olho brilha, no quanto o olho perdeu o brilho, quando os
jovens esto na sua frente e voc j v aquele jovem de um outro jeito e de que forma voc
quer que esse jovem tambm queira recuperar. E nesse processo que emergem as situaes
281
de crises, muitas situaes limites, familiares, em que, a partir de sua experincia, preciso
agir rpido e voc tem que escolher um bom caminho, voc no pode ficar pensando muito
tempo, voc tem que ser muito diretiva naquilo que voc faz, pra mostrar pro jovem porque
que voc est fazendo... (Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
4.5.3 O BALANO
eu acho que consegui, no digo que os resultados sejam assim excelentes etc...a
gente vem conquistando conhecimento, agregando na caminhada os saberes etc.
Mas, eu acho que a gente conseguiu achar uma isca boa para esse jovem da periferia,
a gente conseguiu criar um sociabilizando cheio de bons valores, agregar a famlia, a
escola, ns criamos um pertencimento muito forte! O menino depois de pertencer
aos Meninos do Morumbi, ele fica assim... no mais vulnervel s oportunidades
que o crime oferece, com certeza. Antigamente a adrenalina de fazer uma correria
como eles falam, alguma coisa ligada ao crime, era algo emocionante que podia
realmente deixar esses jovens [seduzidos]... Exatamente. Agora ficou menor, porque
os Meninos do Morumbi oferecem contextos extremamente emocionantes, novos e
d muito mais frio na barriga pr um jovem desse entrar num avio, viajar onze
horas e descer na Inglaterra, do que qualquer revolverzinho pr assaltar madame na
rua, entendeu. Ento, nesse sentido, a gente consegui muito alm do que j existia
nessa rea, do social... eu continuo dizendo assim que eu no conseguiria ter feito
tudo isso, se no fosse tambm o meu projeto pessoal de vida (CEMM_1, Flvio
Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
282
Nos depoimentos dos primeiros Meninos pode-se constatar que o incio foi marcado
por uma relao muito prxima que gerou uma afetividade, calcada no respeito, admirao e
gratido entre os garotos, Flvio e Ligia. E tambm um respeito, uma admirao. Agora com
um nmero maior de participantes, so muitos cursos, so muitos departamentos aqui dentro,
muitos funcionrios. E sobre esse aspecto Ligia faz uma avaliao:
E nessa avaliao, Ligia expe suas preocupaes e conflitos que se relacionam com
o crescimento da ONG e a conseqente necessidade de capacitar pessoas para atuar nessa
nova configurao quantitativa e qualitativa. Reconhece que a Associao ainda no
conseguiu sistematizar um processo de formao e capacitao para os profissionais atuarem
nesse contexto, questo que pode ser projetada como uma problemtica que permeia a esfera
macrossocial em que se localiza as ONGs:
educador, ela reconhece o desafio que se apresenta no que tange necessidade de uma viso
sistmica de educao que conecta as vrias dimenses da ONG Meninos do Morumbi:
No sei se a arte que faz isso, se a figura do Flvio, tem um ritmo, tem uma
sintonia, tem um n nessas diferentes pontas. Eu acho que quando voc amplia o
nmero de atendidos, voc corre um grande risco de massificar, n, eu tenho ouvido
nos ltimos anos, assim, a falta da humanizao aqui e eu ouo dos profissionais e
eu ouo tambm dos integrantes. Antes, quando o grupo comeou, havia esse lado
humano, essa proximidade, esse cuidar, muito presente e muitos jovens no
conseguem perceber isso hoje, n, nunca receberam esse cuidado e s vezes at
necessrio, porque ns nem sabemos da necessidade desse cuidado (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
Muitos dos entrevistados concordam que deveria haver mais projetos sociais como os
Meninos do Morumbi. Anderson corrobora essa idia sem, no entanto, mostrar uma viso
romntica ou definitiva na capacidade dos projetos sociais acabarem com os problemas
enfrentados pela desigualdade e excluso social, mas seu destaque vai para a capacidade de
tais iniciativas darem oportunidade e alternativas para quem, hoje, no as tem:
284
...os outros profissionais devem ter falado, eu acho que deveriam existir mais
projetos como a AMM. Eu acho que se existissem pelo menos um em cada regio de
cada grande cidade, ajudaria muitos jovens, eu no digo tanto, diminuir a
criminalidade, porque na verdade o crime vai acontecer sempre, sempre vai crescer e
a gente no vai conseguir impedir isso, mas a gente pode ajudar aqueles que no
querem participar disso, a gente pode dar uma mo para aqueles que querem
realmente ser pessoas com valores, pessoas que querem trabalhar, que querem
estudar, que querem crescer na vida (CEMM_2, Anderson, secretaria geral,
10/11/2004).
Na ltima entrevista, Flvio constri uma metfora potica ligada ao ato de navegar
para mostrar a racionalidade de seu pensamento sobre o inusitado como um parmetro no
processo da coordenao da ONG:
ONGs selecionadas como um fenmeno social. Nesta perspectiva, a opo pela abordagem
qualitativa constitui-se em um esforo para entender situaes, nas suas singularidades,
como parte de um contexto particular e as interaes que ali acontecem (PATTON, 1985
apud MERRIAM, 1998, p. 6) e cujo papel da anlise busca aprofundar o entendimento dos
significados que os participantes imprimem nas suas construes materiais e simblicas.
Para realizar essa pesquisa, de abordagem qualitativa, optei por associar duas
metodologias: o estudo de caso e a etnometodologia. A perspectiva metodolgica da pesquisa
enfoca os pressupostos do estudo de caso mltiplo, argumentados pelos autores Bogdan e
Biklen (1982), Merriam (1998), Yin (1994) e Stake (1995) e da etnomedolologia
argumentados pelos autores Heritage (1999), Coulon (1995a) e Haven (2004). O processo de
construo desse estudo estruturou-se a priori com informaes locais, trilhando-se pelos
itinerrios pessoais e institucionais que se configuraram no cotidiano da insero no campo. A
posteriori, buscou-se a organizao das categorias que fundamentaram a anlise e
interpretao dessas informaes coletivas. A produo de conhecimento e a construo de
asseres que emergiram a partir dessas duas unidades de caso oportunizaram reflexes sobre
o significado das prticas musicais na construo das identidades institucionais, dos
indivduos e dos grupos participantes do estudo.
As descries, os depoimentos, a anlise e a interpretao propiciaram emergir
questes de vrias naturezas relacionadas ao tema, que alm de ampliar o espectro da anlise
e interpretao, constituram-se em fatores que contriburam para as snteses e argumentaes
tericas dessa investigao. H que ressaltar que os pressupostos da etnometodologia foram
guias de condutas nesses processos intersubjetivos, uma empreitada nova e desafiadora para
mim. Aos poucos fui adquirindo a confiana necessria dos participantes para poder me
aproximar, conversar, perguntar e ser interlocutora nos depoimentos finais. As informaes
coletadas foram produzindo camadas de aprofundamento que permitiram um constante re-
elaborar das questes que me conduziram a uma compreenso da natureza das ONGs
estudadas e, conseqentemente, das interaes e do processo pedaggico-musical que ali
aconteciam.
Utilizei equipamentos digitais para o registro sonoro e visual vdeo e fotografias
de momentos dos depoimentos, de encontros e das performances musicais, o que me permitiu
um olhar e ouvir de novo para aquelas cenas recortadas, oportunizando o aprofundamento
da reflexo e anlise. Os depoimentos e as notas de campo foram transcritos e retextualizados.
O processo da fala para a escrita levou em conta a distino entre as dimenses da oralidade e
a escrita baseada na proposta de Marcuschi (2004). Este autor trata detidamente das atividades
288
das pessoas como fruto da interao interpessoal. Como foi mencionado, importa nesse
aspecto que o processo de ensino e aprendizagem de msica considera o seu eixo conduzido
pela ao de fazer msica ou musicando (SMALL, 1995), incorporando os processos
coletivos intersubjetivos e dialgicos. A performance musical, nessa perspectiva, abrange os
rituais, os jogos, o entretenimento popular e as formas de interao as quais so
entendidas como espaos de ensino e aprendizagem musical. A anlise e interpretao
consideraram o amplo espectro de uma performance musical incorporando a escuta, a
providncias para se realizar uma performance como elaborao de arranjos, composies,
escolha de repertrio, os ensaios, a dana, a preparao do espao, enfim as atividades que
esto relacionadas natureza de uma performance musical (SMALL, 1995; BLACKING,
1995).
A pedagogia da msica foi abordada como um processo que trata da relao entre
pessoa(s) e msica(s) e o processo de apropriao e transmisso das msicas como propem
Kraemer (2000) e Souza (1996, 2001b). Tal compreenso justifica a argumentao de que
esse campo abrange os diferentes espaos em que acontece as prticas musicais quais sejam,
educacional, formal ou informal, intencional ou ocasional, e, por isso, as aes educativas
permeiam todos os segmentos sociais, como o caso das ONGs. A discusso e reflexo sobre
as dimenses e funes do conhecimento-pedaggico musical e suas implicaes partem da
premissa de que estes so aspectos do prprio fenmeno/objeto, sem pens-lo fragmentado.
Essa viso do campo epistemolgico da educao musical busca contribuir para a delimitao
dos limites e das interseces da rea considerando o conhecimento especfico,
transversalisado por outros campos do conhecimento.
Assim, o processo pedaggico-musical entendido como um fato social total foi
observado, analisado e interpretado nas ONGs selecionadas, abarcando os aspectos fsico,
institucional e simblico, como possibilidade de produo de novas formas de conhecimento
musical. A anlise incorpora assim, a interconexo de quatro dimenses denominadas nesse
trabalho como: institucional, histrica, sociocultural e de ensino e aprendizagem musical. O
significado do termo pedaggico no se restringe, portanto, somente aos processos de ensino e
aprendizagem, mas entendido com um campo pluridimensional conectado.
290
J o PVL tem uma trajetria histrica marcada por uma gnese muito anterior
instituio formal, desencadeada pelos movimentos populares do Morro Dona Marta. Essa
gnese pode ser considerada como o ncleo potencializador do PVL, que de 2000 a 2004,
conduziu com a formao musical de dezessete jovens oriundos da periferia urbana do Rio
que, sem o PVL, no teriam a possibilidade de acesso a um ensino sistemtico de msica
naquele padro.
O que se destacou a partir das observaes e coleta de informaes foi um panorama
muito especfico da cidade do Rio, em que as interaes sociomusicais so fortemente
marcadas pelas relaes pessoais, mesmo quando se trata de instituies. A proximidade
fsica das favelas com o asfalto, associaes, artistas, diferentes classes sociais imprimi uma
especificidade relacionada ao seu aspecto urbano.
O relacionamento inter-pessoal e inter-institucional apresentou-se de forma
caracterstica em cada um dos contextos urbanos. Parece ser mais evidente que no Rio de
Janeiro as interaes so mais acentudas pelas relaes pessoais, mesmo quando se trata de
instituies. A proximidade geogrfica entre morro e asfalto, as associaes de carter civil,
a participao dos artistas na ONGs imprimem uma especificidade nas relaes. So Paulo
apresentou, no contexto dessa pesquisa, dinmicas de interaes socais com um carter mais
institucional, com encontros mais formais, em que as pessoas esto mais investidas de sua
identidade institucional e, muitas vezes, no possuem uma ligao pessoal. Pode-se inferir que
se trata de um reflexo da configurao urbana de cada cidade que resulta em aspectos
gregrios diferentes e prticas musicais, tambm, diferentes. As redes de sociabilidade tecidas
pelo Projeto Villa Lobinhos mostrou um lado interpessoal mais acentuado. J a Associao
Meninos do Morumbi revelou um trao mais institucional no estabelecimento de suas redes
sociais.
A dinmica na estrutura da comunicao entre as ONGs e os projetos sociais,
invocando a figura da rede, foi um componente importante na anlise do relacionamento entre
as organizaes sociais. A invocao do conceito de rede mostrou-se significativo na
estruturao das ONGs, enquanto categoria institucional, de carter fortemente
interdisciplinar, ancorado nas perspectivas filiadas s vrias correntes do chamado
pensamento sistmico. Mesmo com essas caractersticas prprias, a configurao da
comunicao e troca que prevalece nos dois contextos urbanos horizontal e otimizada pela
Internet. Isso forma uma sinergia intrnseca e extrnseca s ONGs envolvendo os agentes
educativos - msicos, professores, monitores - comunidade, instituies pblicas e privadas.
292
possibilitando alternativas, h que se ter uma perspectiva crtica para uma anlise dos
processos decorrentes das aes polticas para se pensar em encaminhamentos que resultem,
de fato, a incluso social sem ter no seu reverso a estigmatizao tcita. Novaes (2002) faz um
alerta bastante pertinente quando destaca que ter parceiros para tirar do crime uma
expresso bem intencionada, mas ela tambm potencializa uma capacidade de estigmatizar
toda uma gerao, como se todos fossem para o crime, todos fossem criminosos em
potencial (CEVL, Regina Novaes, 03/05/2002). E isso aparece como algo muito
incomodativo e, at mesmo, motivo de sofrimento para os jovens moradores das favelas ou
bairros com fama de violentos.
A histria de Edvnia, participante da AMM que se envolveu com o trfico de
drogas e foi assassinada em 2004, um exemplo de como os jovens se tornam protagonistas
da violncia urbana, tanto como vtima como produtores dela. Traz-se tona a deficincia das
polticas pblicas urbanas dominantes que acentuam a segregao territorial e social, uma vez
que as reas habitadas pela populao mais pobre est desaparelhada de espaos para a cultura
e o lazer, levando os jovens, por falta de opo, ao cio desagregador, portas abertas para a
cooptao para o submundo do crime. As aes da sociedade civil, inclusive a otimizao das
organizaes sociais em rede, muitas vezes, mostram-se insuficientes para dar conta de um
contexto marcado por uma extrema desigualdade social e o nvel, quase insustentvel, de
vulnerabilidade que deixa parte da juventude brasileira, indivduos ainda em formao,
exposta a sua prpria sorte, quando deveriam ser atendidos pela rede de proteo das polticas
pblicas.
A anlise dessa questo est relacionada ao conceito do sofrimento tico-poltico
desenvolvido por Sawaia (2003, p. 54-63). A autora aborda o processo de excluso social
questionando os conceitos de incluso social e educao inclusiva circulados na mdia, nas
cincias sociais e na educao. Adota a afetividade como categoria analtica e ferramenta de
ao socioeducativa para ampliar a anlise da dialtica incluso/excluso. Considerar
emoes e sentimentos que afetam o corpo e a alma nas situaes de vulnerabilidade social
contemplar aspectos que escapam s anlises econmicas e polticas da excluso e s
avaliaes da eficcia dos projetos inclusivos. Inclui-se aqui que o processo de
excluso/incluso considerado na sua dimenso subjetivo-valorativa, tico-esttico, alm de
econmico-poltica (SAWAIA, 2003, 2004). Esse processo est intimamente ligado
invisibilidade social dos moradores das favelas e periferia urbana.
O espao urbano constitui-se das diferentes dimenses de uma cidade envolvendo
um conjunto de tcnicas e de obras que permitem dot-la de condies de infra-estrutura,
294
processos de diferentes naturezas deflagrados pelas ONGs. Assim, as ONGs no podem ser
reduzidas idia de organizaes ou instituies, na viso tradicional, sendo que seu carter
de flutuao instvel e de mobilidade instaura processos em constante formao, abertos
experimentao, arena para novas prticas de aes sociais, culturais e cognitivas. A produo
de saberes nas ONGs, considerando seu carter mutatis mutandis, pode articular novos
interesses de conhecimentos, novas suposies de viso de mundo, inovaes organizacionais,
e algumas vezes, novas abordagens para a cincia. Como prxis cognitiva, a msica e outras
formas de atividade cultural contribui para as idias que os movimentos sociais e suas
derivaes ONGs oferecem e criam uma oposio na ordem j estabelecida na sociedade.
As fragilidades percebidas em relao a questes de ordem institucional e
pedaggica podem ser atribudas prpria natureza da ONGs, uma vez que movimentos
sociais se institucionalizaram e esto se institucionalizando sob uma plataforma sociopoltica,
econmica e jurdico-institucional movedia. Esse aspecto foi considerado na elaborao da
anlise, uma vez que se trata de um objeto de estudo cuja dinmica extremamente rpida. As
polticas sociais, as leis, nesse tempo de coleta, sofreram mudanas que incidem na dinmica
dessas instituies. Assim, as fragilidades, elas existem a partir desse momento de mutao da
prpria identidade do que seja a ONG. Como no existe, em termos educao musical em
ONGs, uma tradio como h nas universidades, conservatrios e escolas de msica, o
processo est sendo construdo no cotidiano mediante as aes prticas. Isso, ao mesmo
tempo em que pode ser visto como uma fragilidade mostra-se, tambm, como uma capacidade
de se lidar com contextos instveis, imprevisveis, com o fazer de repente.
Nas reflexes que emergem dos depoimentos pode-se perceber um reconhecimento
da dificuldade de se realizar uma avaliao mais profunda da instituio, considerando
velocidade e a demanda dos acontecimentos no cotidiano da instituio. A presena de uma
pesquisadora com o propsito de realizar uma pesquisa acadmica significou, para os
coordenadores das ONGs, uma possibilidade para se refletir sobre suas prprias identidades e
os processos que eles estavam desenvolvendo.
As duas ONGs tm como caracterstica comum o reconhecimento e a legitimidade
do trabalho realizado tanto no aspecto social como artstico-musical. Esse um fator que
qualifica o trabalho realizado, expurgando o aspecto puramente assistencialita. A questo de
se investir no capital social, visando a construo das identidades mediante um processo de
vivncia esttica conduzido por msicos e educadores que consideram e conhecem o mundo
social dos indivduos pode ser considerado um significativo diferencial na avaliao de
projetos sociais que possam, de fato, realizar propostas dessa natureza.
299
Ento, a contribuio, o seu papel aqui pra ns, com certeza, tambm uma prola,
uma oportunidade e ao mesmo tempo um privilgio, quando o Projeto pode contar
com, no s profissionais, mas seres humanos como voc que to bem se colocou
durante todo esse tempo. A forma respeitosa frente aquilo que voc via, a anlise do
que voc fazia, aquilo que voc pontuava, isso contribui. uma nova voz, um
novo jeito, um novo olhar, um jeito, tambm, de nos escutar. Eu quero muito ver
essas prolas que voc garimpou aqui, por que eu acredito que voc vai descobrir
novas prolas.. E, ento eu acho que importante que voc tambm leve isso com
voc. Voc contribuiu e deixou aqui, algo muito importante, muito rico (CEMM_1,
p. 40, Lgia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
Essa expectativa revela que existe um campo aberto e premente para se estabelecer
uma comunicao de mo dupla, pois como j foi mencionado, as ONGs esto se
configurando como espaos de formao mediante a educao informal. H que considerar
que os projetos sociais esto incorporando em seus quadros de educadores sociais, pessoas
que receberam uma formao no mbito dos prprios projetos, como o caso da Associao
Meninos do Morumbi. E nesse aspecto os msicos formados pelo Projeto Villa Lobinhos
esto atuando como msicos e professores de msica em diferentes contextos.
Nesse sentido h que trazer baila a discusso da conexo entre as ONGs e a
universidade. Esta considerada a partir do seu compromisso com a formao de profissionais
competentes, com a produo do conhecimento e com a dignidade humana como um projeto
de sociedade. Landim (2002, p. 29) v a trajetria histrica entre as ONGs e o campo
acadmico marcada por ambigidades, caracterizadas por alianas e concorrncias, por
continuidades e descontinuidades que tm variado de acordo com as transformaes das
posies que as organizaes vm ocupando no espao social brasileiro. Para a autora, trata-se
de uma relao conflituosa entre duas esferas institucionais em que se instala uma oposio q a
partir de suas propriedades especficas, com sentidos e pesos diversos. E Landim (2002)
ressalta, ainda, que a construo das identidades das ONGs marcada, sobretudo, em
determinados momentos de sua histria, por uma enftica afirmao distintiva com relao aos
campos dominantes da academia sendo que o inverso nunca se deu (LANDIM, 2002, p. 29).
Entretanto, podem-se perceber indcios de dissoluo dessas fronteiras ao se
constatar uma aproximao dessas duas esferas, com o ingresso de dirigentes e militantes de
movimentos sociais populares e ONGs, nos cursos de graduao e ps-graduao, alm de
instituio de projetos alternativos, possibilitando mecanismos desejveis de integrao e
colaborao (WANDERLEY, 2002).
Essa questo emerge nessa pesquisa com a contribuio dos coordenadores das
ONGs ressaltando a importncia dessa aproximao. Gilberto Figueiredo contribui com sua
experincia prtica em projetos sociais, fazendo uma anlise crtica do papel da universidade
302
quanto mais ns pudermos ir s universidades, falar sobre isso, melhor, para que as
pessoas entendam que esse campo de atuao, importantssimo. Por si s ele j
importantssimo, pela questo e o papel poltico que a gente cumpre. O papel E,
tambm, pela questo profissional, porque hoje, cada vez mais um campo
profissional para o professor de msica e de outras reas tambm. Ento,
importantssimo que muitas pessoas tomem conhecimento disso, para que se
sensibilizem e que busquem essa rea. (CEVL_3, p. 38, Gilberto Figueiredo, Escola
de Musica da Rocinha, 30/06/2004).
relacional urbano e institucional, dos recursos e das limitaes que estes oferecem e impem e
de todas as variveis presentes nesse contexto. Trata-se de considerar o processo pedaggico-
musical como um campo de permanente elaborao e redefinio, de conflitos, negociaes e
transaes provisrias.
Assim, os conflitos que emergiram a partir da anlise dessas ONGs trazem tona a
dificuldade de parte significativa das escolas de ensino regular em lidar com as situaes que
esto no mago das questes da desestrutura familiar, da falta de preparo, bem como em
buscar aes educativas que partam do universo dos sujeitos que aprendem. Essa questo
incide de forma profunda na necessidade de se definir polticas pblicas que contemplem
novas estruturas educacionais, tanto no aspecto material (equipamentos e espaos fsicos
adequados demanda dos interesses dos alunos) como no que tange s concepes
educacionais, bem como capacitao de professores. Embora no seja o assunto central desse
trabalho, tem pertinncia ressaltar que estudos, publicaes, eventos e pesquisas vm
apontando uma parte das ONGs como instituies que, ao desenvolverem trabalhos
socioeducativos, vm buscando e produzindo tecnologias de ensino que estejam voltados para
uma educao geradora de cidadania, entendida como direito pblico e um capital social,
apresentando-se como um mosaico de iniciativas sociocomunitrias de grande diversidade
criativa.
Considerando o trabalho que inmeras ONGs tm realizado na rea de arte, cultura e
educao, voltado para uma populao, na sua maioria, desassistida e desaparelhada de
espaos para vivenciar e que essas organizaes so seres sociais que constroem uma relao
mimtica na qual influenciam e so influenciadas, a responsabilidade pelos resultados, sejam
eles nas esferas polticas, sociais, ambientais ou culturais, incidem de alguma forma na
sociedade.
Sob uma perspectiva crtica, preciso ressaltar que na esfera do Terceiro Setor, em
que se localizam as ONGs, existem situaes nas quais se abusam dos clichs que
sensibilizam a sociedade pelas feridas abertas pela desigualdade e pobreza, reduzindo a
problemtica viso maniquesta que serve mais manipulao do que a um processo de real
transformao. A mudana do paradigma do lucro monetrio que impera no setor privado
para um outro que privilegia o lucro social h que ser construda e monitorada para que as
ONGs no se tornem libi de corporaes, que tm por trs de si a misria alheia como
negcio rentvel.
So desafios que tambm pertencem e so de responsabilidade da academia. A
grande questo fazer com que o Estado tenha o seu papel nas polticas pblicas, uma
305
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ZALUAR, Alba. Integrao perversa: pobreza e trfico de drogas. Rio de Janeiro, FGV
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APNDICES
APNDICE A
RELAO DO REGISTRO EM UDIO DE 2003 A 2004
316
CD002
02/06/03 ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 01 08:49
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 02 08:14
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 03 04:48
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 04 07:30
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO B FAIXA 05 07:48
30/05/03 ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 06 04:09
ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 07 03:38
ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 08 03:15
ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 09 03:41
30/05/03 VISITA INSTITUTO MOREIRA SALES - FITA 03 - LADO A FAIXA 10 01:04
VISITA INSTITUTO MOREIRA SALES - FITA 02 - LADO B FAIXA 11 00:46
30/05/03 ENTREVISTA DONA NININHA - FITA 02 - LADO A FAIXA 12 01:50
30/05/03 ENTREVISTA RAFAEL NOGUEIRA - FITA 02 - LADO A FAIXA 13 02:11
30/05/03 MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 14 02:29
MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 15 01:54
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 16 02:07
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 17 02:45
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 18 03:11
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 19 04:36
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 20 03:04
CD003
02/06/03 ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 01 00:39
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 02 09:52
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 03 04:50
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 04 08:30
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 05 07:22
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 06 13:46
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 07 04:43
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 08 06:48
30/05/03 MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 09 02:29
MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 10 01:54
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 11 02:07
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 12 02:45
317
CD004
JAN/04 ENTREVISTA - D. DILZA E D. DILMA - MD (FAIXA 01) FAIXA 01 02:56
21/01/04 ENTREVISTA COM IGOR - MD (FAIXA 03) FAIXA 02 14:15
21/01/04 ENTREVISTA COM RAFAEL - MD (FAIXA 04) FAIXA 03 09:55
22/01/04 ENTREVISTA ONG NS E O CINEMA - MD (FAIXA 05) FAIXA 04 32:31
ENTREVISTA COM FLVIA MELO - MD (FAIXA 07) FAIXA 05 00:54
CD005
23/01/04 ENTREVISTA COM LEANDRO - MD - FAIXA 09 FAIXA 01 13:55
23/01/04 ENTREVISTA COM PEDRO - MD - FAIXA 10 FAIXA 02 05:14
23/01/04 ENTREVISTA COM RAMON - MD - FAIXA 10 FAIXA 03 03:23
26/01/04 ENTREVISTA COM JOS CARLOS - MD - FAIXA 12 FAIXA 04 05:40
26/01/04 ENTREVISTA COM RAIANA - MD - FAIXA 14 FAIXA 05 04:47
ENTREVISTA SEM REFERNCIA - MD - FAIXA 15 FAIXA 06 01:09
27/01/04 ENTREVISTA COM PROF. WAGNER - MD - FAIXA 17 FAIXA 07 06:05
29/01/04 ENTREVISTA COM ALUNOS APS
ENSAIO OFICIAL DO 5 ENCONTRO - MD - FAIXA 18 FAIXA 08 08:57
CD006
25/03/04 CONVERSA_PROF. CHICO NA COZINHA FAIXA 01 01:02
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO SAULO FAIXA 02 16:56
25/03/04 TRECHO DE CONVERSA COM ALUNO MRCIO FAIXA 03 00:19
25/03/04 CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 04 01:58
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO MRCIO FAIXA 05 45:15
25/03/04 IMPRESSES PESSOAIS SOBRE A AULA FAIXA 06 03:07
25/03/04 ENTREVISTA COM O PROF. LUIZ CLUDIO FAIXA 07 05:50
CD007
GRAVAO DE AULA DO PROFESSOR CHICO FAIXA 01 44:17
PEQUENO TRECHO DE UMA ATIVIDADE FAIXA 02 00:24
PEQUENO TRECHO DE CONVERSA FAIXA 03 00:14
CONVERSA COM ALUNO GABRIEL FAIXA 04 01:02
CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 05 07:06
CONVERSA COM ALGUNS ALUNOS FAIXA 06 04:33
GRAVAO DE UM TRECHO DE AULA SOBRE
SOLFEJO - MODO MENOR FAIXA 07 09:41
CD003
02/06/03 ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 01 00:39
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 02 09:52
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 03 04:50
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 04 08:30
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 05 07:22
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 06 13:46
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 07 04:43
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 08 06:48
30/05/03 MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 09 02:29
MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 10 01:54
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 11 02:07
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 12 02:45
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 13 03:11
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 14 04:36
318
CD004
JAN/04 ENTREVISTA - D. DILZA E D. DILMA - MD (FAIXA 01) FAIXA 01 02:56
21/01/04 ENTREVISTA COM IGOR - MD (FAIXA 03) FAIXA 02 14:15
21/01/04 ENTREVISTA COM RAFAEL - MD (FAIXA 04) FAIXA 03 09:55
22/01/04 ENTREVISTA ONG NS E O CINEMA - MD (FAIXA 05) FAIXA 04 32:31
ENTREVISTA COM FLVIA MELO - MD (FAIXA 07) FAIXA 05 00:54
CD005
23/01/04 ENTREVISTA COM LEANDRO - MD - FAIXA 09 FAIXA 01 13:55
23/01/04 ENTREVISTA COM PEDRO - MD - FAIXA 10 FAIXA 02 05:14
23/01/04 ENTREVISTA COM RAMON - MD - FAIXA 10 FAIXA 03 03:23
26/01/04 ENTREVISTA COM JOS CARLOS - MD - FAIXA 12 FAIXA 04 05:40
26/01/04 ENTREVISTA COM RAIANA - MD - FAIXA 14 FAIXA 05 04:47
ENTREVISTA SEM REFERNCIA - MD - FAIXA 15 FAIXA 06 01:09
27/01/04 ENTREVISTA COM PROF. WAGNER - MD - FAIXA 17 FAIXA 07 06:05
29/01/04 ENTREVISTA COM ALUNOS APS
ENSAIO OFICIAL DO 5 ENCONTRO - MD - FAIXA 18 FAIXA 08 08:57
CD006
25/03/04 CONVERSA_PROF. CHICO NA COZINHA FAIXA 01 01:02
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO SAULO FAIXA 02 16:56
25/03/04 TRECHO DE CONVERSA COM ALUNO MRCIO FAIXA 03 00:19
25/03/04 CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 04 01:58
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO MRCIO FAIXA 05 45:15
25/03/04 IMPRESSES PESSOAIS SOBRE A AULA FAIXA 06 03:07
25/03/04 ENTREVISTA COM O PROF. LUIZ CLUDIO FAIXA 07 05:50
CD007
GRAVAO DE AULA DO PROFESSOR CHICO FAIXA 01 44:17
PEQUENO TRECHO DE UMA ATIVIDADE FAIXA 02 00:24
PEQUENO TRECHO DE CONVERSA FAIXA 03 00:14
CONVERSA COM ALUNO GABRIEL FAIXA 04 01:02
CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 05 07:06
CONVERSA COM ALGUNS ALUNOS FAIXA 06 04:33
GRAVAO DE UM TRECHO DE AULA SOBRE
SOLFEJO - MODO MENOR FAIXA 07 09:41
CD008
09/04/04 RODRIGO BELCHIOR FAIXA 01 20:47
03/06/04 LUIS CLUDIO FAIXA 02 09:42
LUIS CLUDIO FAIXA 03 05:50
LUIS CLUDIO FAIXA 04 06:50
LUIS CLUDIO FAIXA 05 03:43
CD009
30/06/04 TURBIO SANTOS FAIXA 01 05:52
FAIXA 02 04:20
FAIXA 03 08:45
FAIXA 04 05:38
FAIXA 05 04:37
CD010
31/05/04 MARQUINHOS FAIXA 01 09:19
FAIXA 02 10:38
FAIXA 03 08:16
FAIXA 04 06:42
319
FAIXA 05 06:59
FAIXA 06 10:02
FAIXA 07 10:50
CD011
04/06/04 ADEMAR FAIXA 01 05:10
FAIXA 02 07:38
FAIXA 03 08:08
FAIXA 04 07:31
FAIXA 05 07:55
FAIXA 06 07:46
FAIXA 07 03:47
CD012
01/06/04 FBIO FAIXA 01 06:41
FBIO FAIXA 02 09:03
FBIO FAIXA 03 09:19
FBIO FAIXA 04 06:49
11/06/04 WAGNER E WALTER FAIXA 05 11:16
WAGNER E WALTER FAIXA 06 07:33
WAGNER E WALTER FAIXA 07 07:44
WAGNER E WALTER FAIXA 08 06:49
CD013
11/06/04 PROFESSORA ANDRIA FAIXA 01 15:15
PROFESSORA ANDRIA FAIXA 02 11:12
PROFESSORA ANDRIA FAIXA 03 08:02
PROFESSORA ANDRIA FAIXA 04 03:13
09/06/04 FUNCIONRIA MRCIA FAIXA 05 06:09
05/06/04 FRANCISCO FRIAS FAIXA 06 15:21
FRANCISCO FRIAS FAIXA 07 04:17
CD014
08/06/04 CARLA FAIXA 01 05:57
CARLA FAIXA 02 06:58
CARLA FAIXA 03 08:11
CARLA FAIXA 04 05:31
CARLA FAIXA 05 05:43
CARLA FAIXA 06 06:42
01/06/04 JOCIELTON FAIXA 07 06:30
JOCIELTON FAIXA 08 06:45
JOCIELTON FAIXA 09 06:30
JOCIELTON FAIXA 10 09:15
JOCIELTON FAIXA 11 06:51
CD015
16/06/04 SRGIO BARBOSA FAIXA 01 04:29
SRGIO BARBOSA FAIXA 02 08:21
SRGIO BARBOSA FAIXA 03 11:29
SRGIO BARBOSA FAIXA 04 11:05
SRGIO BARBOSA FAIXA 05 13:22
CD016
01/06/04 EMANUELE FREITAS FAIXA 01 09:53
EMANUELE FREITAS FAIXA 02 10:32
EMANUELE FREITAS FAIXA 03 11:17
EMANUELE FREITAS FAIXA 04 12:39
09/06/04 PROFESSOR RICARDO FAIXA 05 03:59
PROFESSOR RICARDO FAIXA 06 07:18
320
CD017
21/06/04 GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 01 06:55
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 02 16:29
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 03 05:04
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 04 03:45
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 05 01:21
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 06 02:44
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 07 04:23
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 08 04:49
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 09 04:25
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 10 05:06
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 11 04:09
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 12 00:17
CD018
30/06/04 GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 01 12:05
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 02 09:27
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 03 08:20
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 04 11:40
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 05 09:26
CD019
SEM DT ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 01 02:21
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB (MSICA) FAIXA 02 03:59
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 03 09:58
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 04 15:06
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 05 07:49
04/06/04 ENSAIO ESPONTNEO NA COZINHA FAIXA 06 04:33
ENSAIO ESPONTNEO NA COZINHA FAIXA 07 02:49
CD020
SEM DT ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 01 00:41
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 02 13:47
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 03 07:16
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 04 10:22
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 05 10:52
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 06 13:36
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 07 02:23
15/06/04 TRECHO GRAVADO COM GRUPO DE MPB FAIXA 08 07:18
CD021
29/04/04 SESSO DE ENSAIO ESPONTNEO DE CHORO FAIXAS 01 17
CONVERSA COM PEDRO E RAMON QUE FALAM UM
POUCO DAS MSICAS QUE FAZEM FAIXAS 18 e 19
CD022
SEM DT ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 01 01:37
CONT. ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 02 02:00
CONT. ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 03 05:12
CONT. ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 04 07:16
13/04/04 ENSAIO DO GRUPO DE CHORO FAIXAS 05 17
27/06/04 RODA DE CHORO FAIXAS 18 22
321
CD023
24/04/04 INSTITUTO MOREIRA SALES RODA DE CHORO FAIXAS 01 17
CD024
29/03/04 GRAVAO RELATIVA ORIENTAO FAIXAS 01 05
CD025
29/03/04 GRAVAO RELATIVA ORIENTAO FAIXAS 01 05
02/04/04 TRECHO GRAVADO FRUM SP FAIXAS 06 e 07
CD026
05/04/04 FRUM SP TRECHO DE PALESTRA FAIXA 01 10:49
TRECHO DE WORKSHOP DE SIVUCA FAIXA 02 04:04
DEPOIMENTOS CURTOS DE CRIANAS FAIXA 03 01:30
BATE PAPO CURTO COM SIVUCA FAIXA 04 04:35
TRECHO COM IMPRESSES_MAGALI FAIXA 05 00:58
BATE PAPO SOBRE MSICA EM PROJETOS FAIXA 06 21:09
CD028
21/09/04 ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 01 01:17
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 02 06:40
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 03 02:10
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 04 05:08
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 05 02:19
28/09/04 ENTREVISTA COM ALESSANDRA FAIXA 06 05:51
ENTREVISTA COM ALESSANDRA FAIXA 07 06:27
ENTREVISTA COM ALESSANDRA FAIXA 08 05:51
17/11/04 ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 09 02:48
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 10 08:37
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 11 03:20
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 12 07:37
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 13 08:11
CD029
10/11/04 ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 01 05:15
ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 02 04:55
322
CD030
10/11/04 ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 01 05:17
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 02 11:56
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 03 14:47
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 04 07:47
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 05 12:21
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 06 09:30
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 07 09:52
CD031
10/11/04 ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA (CONTIN. CD 30) FAIXA 01 13:04
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 02 04:51
22/11/04 ENTREVISTA COM CLAUDINEI FAIXA 03 11:48
ENTREVISTA COM CLAUDINEI FAIXA 04 10:15
ENTREVISTA COM CLAUDINEI FAIXA 05 14:39
22/11/04 ENTREVISTA COM LEANDRO FAIXA 06 09:21
ENTREVISTA COM LEANDRO FAIXA 07 07:00
CD032
22/11/04 ENTREVISTA COM BIG FAIXA 01 09:56
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 02 05:56
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 03 07:51
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 04 08:06
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 05 06:24
11/04 ENTREVISTA COM ADRIANA FAIXA 06 01:43
11/04 ENTREVISTA COM ANY FAIXA 07 02:44
13/11/04 ENTREVISTA COM MRCIA E FUNCIONRIO FAIXA 08 01:11
13/11/04 ENTREVISTA COM MEIRE FAIXA 09 01:32
13/11/04 ENTREVISTA COM TALITA FAIXA 10 01:37
COMPOSIES DE BIA FAIXA 11 06:54
IMPRESSES DA MAGALI 23/11/2004 FAIXA 12 15:48
CD033
09/11/04 ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 01 03:08
09/11/04 ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 02 03:08
22/11/04 ENTREVISTA COM SILVANY FAIXA 03 08:22
ENTREVISTA COM SILVANY FAIXA 04 11:45
ENTREVISTA COM SILVANY FAIXA 05 09:58
23/11/04 ENTREVISTA COM MURILO FAIXA 06 09:04
23/11/04 ENTREVISTA COM LUCIANO FAIXA 07 09:25
23/11/04 ENTREVISTA COM LUCIANO FAIXA 08 08:16
13/11/04 IDA AO TEATRO SANTA CRUZ FAIXA 09 03:32
CD034
17/11/04 ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 01 06:06
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 02 07:35
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 03 06:15
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 04 09:02
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 05 11:48
323
CD035
18/11/04 ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 01 06:54
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 02 08:42
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 03 04:22
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 04 05:24
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 05 05:08
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 06 03:19
18/11/04 ENTREVISTA COM DIANA FAIXA 07 00:54
22/11/04 ENTREVISTA COM GISELE FAIXA 08 11:55
24/11/04 ENTREVISTA COM VERA OLIVEIRA FAIXA 09 09:13
ENTREVISTA COM VERA OLIVEIRA FAIXA 10 08:27
ENTREVISTA COM VERA OLIVEIRA FAIXA 11 12:19
CD036
23/11/04 ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 01 15:40
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 02 06:24
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 03 05:41
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 04 10:58
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 05 06:25
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 06 09:03
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 07 05:09
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 08 08:27
CD037
18/11/04 ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 01 02:35
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 02 07:42
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 03 05:41
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 04 03:31
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 05 14:10
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 06 11:48
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 07 02:18
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 08 13:16
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 09 01:24
09/11/04 TRECHO DE ENSAIO DOS MENINOS DO MORUMBI FAIXA 10 01:36
CD038
06/12/04 PROJETO VILLA-LOBINHOS FAIXA 01 06:00
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 02 04:57
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 03 08:52
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 04 13:55
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 05 05:49
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 06 02:52
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 07 10:32
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 08 02:58
TRECHO DE APRESENTAO VILLA-LOBINHOS
APNDICE B
RELAO DO REGISTRO EM VDEO DE 2003 A 2004
325
APNDICE C
MODELO DAS CARTAS DE
CESSO DE DIREITOS DAS ENTREVISTAS
Eu,............................, declaro, para os devidos fins, que cedo os direitos de minha entrevista
gravada no dia 04/06/ 2004, devidamente revisada por mim aps a transcrio, para Magali
Oliveira Kleber, identidade 1476027 SSP-Pr, podendo a mesma ser utilizada integralmente ou
em partes, sem restrio de prazo, desde a presente data para fins de publicao acadmico-
cientfica.
Autorizo, ainda, o uso das imagens captadas e registradas no mbito das atividades da
Associao Meninos do Morumbi/Projeto Villa Lobinhos para finalidades acadmico-
cientficas. Em relao ao uso de citaes, autorizo a explicitao da minha identidade de
acordo com uma das opes escolhidas por mim entre as abaixo indicadas (com um X), desde
que sejam seguidos os princpios ticos da pesquisa acadmico-cientfica:
(Cidade), de 2005.
____________________________________________
Assinatura
Identidade RG n.
ANEXOS
ANEXO A
A MAR ENCHEU, DE VILLA LOBOS,
ARRANJO SRGIO BARBOSA (OBRA COMPLETA)
330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
ANEXO B
TREINZINHO CAIPIRA, DE VILLA LOBOS,
ARRANJO SRGIO BARBOSA (TRECHO DA OBRA)
341
342
343
344
ANEXO C
CD COM AS PERFORMANCES DOS GRUPOS MUSICAIS DO
PROJETO VILLA LOBINHOS E
ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI
ANEXO D
FRAGMENTOS MELDICOS DO ARRANJO
CARTA AO TOM 74, DE VINCIUS DE MORAES E
TOQUINHO, POR IGOR
348
349
ANEXO E
PARTITURA DO MAXIXE
351
ANEXO F
ENCARTE DO CD MENINOS DO MORUMBI
ANEXO G
DVD COM AS PERFORMANCES DOS GRUPOS MUSICAIS
DO PROJETO VILLA LOBINHOS E
ASSOCIAO MENINOS DO MORUM