Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Música

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

A PRTICA DE EDUCAO MUSICAL EM ONGs:


dois estudos de caso no contexto urbano brasileiro

MAGALI OLIVEIRA KLEBER

PORTO ALEGRE
JUNHO 2006
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

Elaborao: bibliotecria Ilza Almeida de Andrade CRB 9/882

K63p Kleber, Magali Oliveira.


A prtica de educao musical em ONGs: dois estudos de caso no contexto
urbano brasileiro / Magali Oliveira Kleber. Porto Alegre, 2006.
355f. : il. ; 30 cm.

Orientadora : Dra. Jusamara Souza.


Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio grande do Sul, Instituto de Artes,
Departamento de Msica.

1. Educao musical. 2. Msica Instruo e estudo. 3. Msica Estudo e


ensino. I. Souza, Jusamara. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Instituto de Artes. Departamento de Msica. III. Ttulo.

CDD 780.7
CDU 78:37.02
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MSICA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

A PRTICA DE EDUCAO MUSICAL EM ONGs:


dois estudos de caso no contexto urbano brasileiro

MAGALI OLIVEIRA KLEBER

Tese apresentada como requisito


parcial obteno do ttulo de
Doutora em Msica.

Orientao: Dra. Jusamara Souza

Porto Alegre, Brasil

Junho 2006
minha me Victria e ao meu pai Ananias que me ensinaram que estudar o melhor
caminho para se construir uma existncia digna.

Aos participantes da pesquisa das duas ONGs estudadas: a Associao Meninos do Morumbi
e o Projeto Villa Lobinhos. Por abrirem as portas para que eu pudesse entrar em suas
instituies. Por me permitirem que abrisse as outras portas que eu precisei e achei
importante. Por me confiarem fragmentos e histrias preciosas de suas vidas, de seus mundos
e seus valores que se consubstanciaram nesse trabalho, ampliando meu conhecimento sobre
as coisas do mundo. A todas essas pessoas, rendo minha homenagem e dedico esse trabalho.
AGRADECIMENTOS

Realizar esta pesquisa significou trilhar por caminhos que s puderam ser percorridos
contando com o apoio, amizade, solidariedade, comprometimento e amor de muitas pessoas.
Os momentos os difceis e de dvidas, os de prazer e de descobertas foram marcados por
um trao que deixa marcas profundas na minha vida pessoal e profissional: a fora de estar
junto para construir algo. Foi uma experincia transformadora para mim. Agradeo a todas as
pessoas que estiveram comigo nesse percurso. Em especial, a minha gratido:
professora Dra. Jusamara Souza por sua orientao competente, segura e
comprometida. Pela confiana e autonomia concedidas, permitindo-me tomar decises e
delinear os eixos que contriburam para a minha identidade como pesquisadora e educadora
musical.
Aos coordenadores da Associao Meninos do Morumbi, Flvio Pimenta e Ligia
Pimenta e ao diretor do Projeto Villa Lobinhos, Turbio Santos, pelo tratamento profissional e
afetuoso traduzidos em solidariedade, parceria e apoio.
Aos participantes da pesquisa da Associao Meninos do Morumbi: Alessandra,
Alusyo Irmo, Anderson, Cntia, Claudinei, Leandro, Luciana, Marcelo Big,
Marquinhos, Murilo, Nair, Sivuca, Pavilho, Rocha, Silvinha, Tio Magno e Vera. Obrigada
pelas prolas que me confiaram.
Ao Rodrigo Belchior, mais do que informante e parceiro, um amigo que ganhei nessa
jornada e que me ensinou tantas coisas sobre como ser educador musical a partir da relao
entre pessoas e msicas.

Aos que me conduziram e estimularam nas reflexes com suas histrias e aes
musicais durante minha insero no Projeto Villa Lobinhos: Ademar, Carla, Fbio Henrique,
Antonio Jocielton, Marquinhos, Wagner, Walther Igor, Diego, Leandro, Pedro, Ramon,
Rafael, Daniel, Jefferson, Martins, Bruno, Junior, Henrique, Junior e Jonas. Aos professores
Andra Ernest Dias, Chico S, Emanuelle Freitas, Luis Cludio Soares, Srgio Barbosa,
Ricardo Costa, pela generosidade em compartilhar comigo suas concepes pedaggico-
musicais. Mrcia por sua ateno carinhosa. Obrigada pelos momentos prazerosos e
musicais.
Ao Joo Moreira Salles por sua disponibilidade em me contar histrias e
compartilhar reflexes sobre a trajetria da constituio do Projeto Villa Lobinhos.

s professoras Dra Alda de Oliveira, Dra. Elizabeth Lucas e Dra. Liane Hentschke
pelas valiosas contribuies por ocasio do exame de qualificao dessa pesquisa.
professora Dra. Elizabeth Travassos por sua acolhida e sugestes significativas
como co-orientadora no Doutorado Sanduche no Programa de Ps-Graduaao em Msica da
UNIRIO.
professora Dra. Regina Novaes por sua generosidade em compartilhar seus
conhecimentos comigo, no incio desse trabalho, fundamentais para orientar os ngulos dos
caminhos que ainda haveriam de ser percorridos.
Aos coordenadores das ONGs Escola de Msica da Rocinha, Gilberto Figueiredo; da
Reciclarte, Mrcio e Lenora Selles, por me receberem em suas instituies e contriburem
para a compreenso da ao solidria e da figura de rede de projetos sociais em msica no Rio
de Janeiro, abordada nessa pesquisa.
Ao Francisco Frias, por suas estimulantes conversas e bate-papos musicais, repletos
de histrias importantes para a pesquisa.
s amigas, Ana Louro, Cleusa Erilene Cacione, Jucyane Araldi, Marta Schmitt,
Mal Pelizer, Vnia Fialho, Solange Batigliana e Vanda Moraes, pelo apoio afetivo em tantos
momentos ao longo dessa jornada.
Dra. Regina Buriasco, amiga e exemplo de educadora, por seu estmulo e
sugestes para essa pesquisa.

Ao Roberto Beliner e aos coordenadores da ONG Ns do Cinema, Julio Csar e Don,


pelo carinho e dedicao ao me ensinarem as noes bsicas para colher depoimentos em
forma de documentrio.
Ao Jorgisnei Rezende, por seu envolvimento, comprometimento e profissionalismo
no trabalho impecvel das transcries e organizao de todo o material em udio,
compartilhando cada etapa, trocando idias e me incentivando sempre a prosseguir.
Viviane Bagio Furtoso por sua disponibilidade e estmulo ao longo desse trabalho,
coroando sua parceria na competente e precisa reviso e traduo do texto final.
Ilza Andrade, por sua acolhida generosa ao assumir a tarefa de formalizao e
ajustes finais da tese, realizando um trabalho cuidadoso e competente, tranqilizando-me.

Bete, Cris e Guto pelo empenho e sensibilidade ao traduzir as concepes e idias


que considerei importante na programao visual desse trabalho.

Ao CNPq pela bolsa de estudo concedida durante o doutorado sanduche.

Aos meus familiares pelo amor, estmulo que me dedicam; pela compreenso da
minha necessria ausncia, durante todo esse tempo; por existirem e ampliarem minha
capacidade de amar.

Meu agradecimento maior a Deus, por me conceder a capacidade para a


concretizao desse trabalho.
KLEBER, Magali Oliveira. A prtica de educao musical em ONGs: dois estudos de caso
no contexto urbano brasileiro. 2006. 334f. Tese (Doutorado em Msica) Programa de
Ps-Graduao em Msica, Departamento de Msica, Instituto de Artes, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

RESUMO

Esta pesquisa aborda as prticas musicais em Organizaes No Governamentais (ONGs),


tomadas como locus de produo de novas formas de conhecimento. O campo emprico da
pesquisa constituiu-se de duas ONGS: Associao Meninos do Morumbi, da cidade de So
Paulo e o Projeto Villa-Lobinhos, da cidade do Rio de Janeiro, vinculado ONG VivaRio.
Ambas as ONGs tm como eixo comum a educao musical cujo objetivo congregar
crianas e jovens, atingidos pela desigualdade social, em situao de excluso ou restrio ao
acesso de bens materiais e simblicos. O estudo buscou compreender como se configuram
esses espaos de educao musical, focalizando dois aspectos: 1) como as ONGs selecionadas
se constituram e se instituram como espaos legitimados para o ensino e aprendizagem
musicais e 2) como que se instaura o processo pedaggico-musical nesses espaos de
prticas musicais. O objeto de pesquisa insere-se no campo sociocultural da educao
musical, compreendido como um fenmeno social. A abordagem metodolgica enfatiza o
paradigma qualitativo, buscando respaldo no estudo de caso mltiplo e na etnometodologia.
As prticas musicais so entendidas a partir da sua constituio sociocultural (SHEPHERD;
WICKE, 1998) e o processo pedaggico-musical como um fato social total (MAUSS, 2003)
enfatizado enquanto um fenmeno social de carter sistmico, estrutural e complexo e,
portanto, pluridimensional. A produo de conhecimento sociomusical das ONGs foi
analisada luz do conceito de prxis cognitiva (EYERMAN; JAMISON,1998) como fruto da
dinmica das foras sociais que abrem espaos para a produo de novas formas de
conhecimento. Assim, o processo pedaggico-musical nas ONGs foi interpretado como
possibilidade de produo de novas formas de conhecimento musical nas suas diversas
dimenses: institucional, histrica, sociocultural e de ensino e aprendizagem musical. O
processo pedaggico-musical mostrou-se permeado pela noo de coletividade e
pertencimento ligado s ONGs em questo. A anlise e interpretao dos vrios aspectos
levantados por esse estudo apontam para a compreenso das prticas musicais enquanto
articulaes socioculturais de carter eminentemente coletivo e interativo. A performance
musical emergiu como condutora de ensino e aprendizagem musical e as ONGs selecionadas
apresentaram-se como uma significativa alternativa para trabalhos socioeducativos-musicais.
Assim, a presente pesquisa busca contribuir para a reflexo e a prtica sobre o papel da
educao musical no processo politizado dos movimentos e projetos sociais em ONGs,
imersos na busca de transformao e justia social.

PALAVRAS-CHAVE: ONGs. Educao musical. Projetos sociais. Trceiro setor. Processo


pedaggico-musical.
KLEBER, Magali Oliveira. Music education practice in Non-Governmental
Organizations: two case studies in Brazilian urban context. 2006. 334f. Tese (Doutorado
em Msica) Programa de Ps-Graduao em Msica, Departamento de Msica, Instituto de
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

ABSTRACT

This research approaches musical practices in Non-Governmental Organizations (NGO)


where new ways of knowledge are produced. Two NGO were selected as the empirical field
of this study: Meninos do Morumbi, situated in So Paulo and Projeto Villa-Lobinhos,
part of Vivario NGO, in Rio de Janeiro, Brazil. The purpose of both these projects is to
promote the inclusivity of children and young people. Therefore, this study aimed at
understanding what the musical practice is like in these selected social projects, focusing on
two aspects, as follows: 1) How have these projects become legitimized space for the process
of teaching and learning music? 2) How has the pedagogic music process been built in this
space for musical practice? In order to investigate these questions, the qualitative paradigm of
research was chosen as the methodological approach. It was better explored by the Multiple
Case Study and the Ethnomethodology. The theoretical framework concerns musical practices
as sociocultural events (SHEPHERD; WICKE, 1998) and the pedagogic music process as a
total social fact (MAUSS, 2003). Cognitive praxis theory (EYERMAN; JAMISON, 1998)
supported the analysis of the sociomusical knowledge produced from and in NGO. Taking
this into account, the pedagogic music process was seen as a possibility to produce new ways
of music knowledge in its institutional, historical, sociocultural and musical teaching and
learning dimensions. The findings show that collectivity and interaction underlie the music
practices as sociocultural articulation. The musical performance has been the basis for the
process of teaching and learning music and the selected projects reveal themselves as
meaningful alternatives for social and educational works because they are flexible, although
institutional as the same time. Thus, this research intends to contribute to the reflection on the
role of music education in the politicized process of social movements and projects from
NGO which aim at promoting social changes and justice.

KEYWORDS: Non-governmental Organizations (NGO). Music education. Social projects.


Non-profit sector. Pedagogic music process.
LISTA DE FOTOS

Foto 1 A Casa da Gvea 77


Foto 2 A Casa da Gve Ensaios 79
Foto 3 Primeira Escola na Comunidade Dona Marta 89
Foto 4 PVL Turma 2000 92
Foto 5 PVL Turma 2001 92
Foto 6 PVL Turma 2002 Formandos de 2004 93
Foto 7 Encontro 2004, Musseu Villa Lobos 94
Foto 8 Ademar, saxofonista 98
Foto 9 Fbio (no primeiro plano), clarinetista 99
Foto 10 Carla, flautista 100
Foto 11 Marquinhos, multi-instrumentista 101
Foto 12 Jocielton, flautista 104
Foto 13 Walther, violinista 104
Foto 14 Projeto Grota do Surucucu, Niteri coord. Marcio Selles 120
Foto 15 A escadaria no p do Morro Santa Marta, Botafogo 123
Foto 16 A Igreja no Morro Santa Marta: primeiro espao da gnese do PVL, na 125
segunda lage
Foto 17 PVL Favela Comunidade Dona Marta, Rio de Janeiro 127
Foto 18 PVL Aula individual: Andra e Carla 143
Foto 19 Aulas em grupo com Luiz Cludio 145
Foto 20 Aulas de instrumentos em grupo com Emannuelle 147
Foto 21 PVL Igor fazendo arranjos 150
Foto 22 PVL Aulas em grupo com Chico S 154
Foto 23 PVL Tocando em grupo 155
Foto 24 Ensaio da Orquestra Villa Lobinhos 157
Foto 25 Apresentao no Copacabana Palace 159
Foto 26 Apresentao na Rede Globo, So Paulo 159
Foto 27 Concerto no Teatro BNDES, Rio de Janeiro 161
Foto 28 Um ensaio do Grupo de Choro 164
Foto 29 Grupos de MPB tocando no Bar da Lagoa 168
Foto 30 A logo da AMM na fachada de sua sede 181
Foto 31 Fachada do prdio da AMM 182
Foto 32 O teto das salas de aula, dana e quadra de ensaio 182
Foto 33 AMM O ptio 183
Foto 34 Workshop com os novos pais e alunos 192
Foto 35 As primeiras apresentaes da AMM na rua (1996) 199
Foto 36 Tocando na rua (1997) Silvinha, segunda da direita para a esquerda 205
Foto 37 A AMM em 1998 205
Foto 38 As primeiras apresentaes dos Meninos do Morumbi (1998) 205
Foto 39 Tocando na rua (1997) 206
Foto 40 Grupo de Dana da BSMM 207
Foto 41 Sivuca na BSMM 208
Foto 42 AMM Brincando no ptio 218
Foto 43 AMM O lanche no ptio 218
Foto 44 Aulas de percusso com Luciana 2004 245
Foto 45 As aulas de percusso em grupo 247
Foto 46 Tambor Embaixador Comunidade de Paraispolis (2002) 256
Foto 47 Sivuca ensinando timbal 263
Foto 48 BSMM Grupo Vocal Feminino (2004) 265
Foto 49 Apresentao da BSMM na Sala So Paulo 266
Foto 50 Apresentao na Sala So Paulo 266
Foto 51 Preparando a quadra para o ensaio 268
Foto 52 Ensaio na Quadra Tio Magno 269
Foto 53 Ensaio BSMM as crianas 270
Foto 54 BSMM Grupo de Dana 272
Foto 55 Pavilho operando a mesa de som no ensaio da BSMM 275
Foto 56 Leandro, capa do CD Meninos do Morumbi 276
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Checklist para coleta de informaes 57


Quadro 2 Participantes da pesquisa do PVL 66
Quadro 3 Participantes da Pesquisa da AMM 71
Quadro 4 Organograma do Projeto Villa Lobinhos (PVL) 82
Quadro 5 Estrutura funcional do PVL 83
Quadro 6 O programa do Concerto da Orquestra Villa Lobinhos no Teatro
BNDES 161
Quadro 7 Estrutura funcional da AMM 180
Quadro 8 Organograma Institucional da AMM 188
Quadro 9 Plataforma de parceiros, patrocinadores e apoiadores da AMM 197
Quadro 10 Processo Pedaggico Musical como Fato Social Total 297
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRINQ Fundao Abrinq pelos Direitos da Criana e do Adolescente


AMM Associao Meninos do Morumbi
ANCHAM Cmara Americana de Comrcio de So Paulo
ANVISA Associao Nacional de Vigilncia Sanitria
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
BSMM Banda Show Meninos do Morumbi
CAPES Coordenao de Aperfeioamento do Ensino Superior
CEMM Caderno de Entrevistas dos Meninos do Morumbi
CENPEC Centro de Estudos e Pesquisas em Educao, Cultura e Ao Comunitria
CEVL Caderno de Entrevistas Projeto Villa Lobinhos
CG Casa da Gvea
EDISCA Escola de Dana e Integrao Social para Crianas e Adolescentes
EMBRAER Empresa Brasileira de Aeronutica S.A.
GIFE Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas
IDH ndice de Desenvolvimento Humano
ISER Instituto de Estudos da Religio
MD Mini Disk
MINC Ministrio da Cultura
ONGs Organizaes No Governamentais
PNBE Pensamento Nacional das Bases Empresariais
PRONAC Programa Nacional de Cultura do Ministrio da Cultura
PVL Projeto Villa Lobinhos
TEPEM Teoria e Percepo Musical
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
ULM Universidade Livre de Msica
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
Organizao para a Educao, a Cincia e a Cultura das Naes Unidas
UNICEF United Nations International Children's Emergency Fund
Fundo das Naes Unidas para a Infncia
SUMRIO

CAPTULO 1 INTRODUO 16

1.1 O TEMA DA PESQUISA 16


1.2 O CAMPO EMPRICO: ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI E PROJETO VILLA 19
LOBINHOS
1.3 AS ONGS NA DIMENSO DO TERCEIRO SETOR 20
1.4 A ESTRUTURA DA TESE 24

CAPTULO 2 CONSTRUINDO A TRAMA TERICO-METODOLGICA 27

2.1 OS PRESSUPOSTOS TERICOS 27


2.1.1 A MSICA COMO PRTICA SOCIAL 28
2.1.2 PRTICAS EDUCATIVO-MUSICAIS COMO FATO SOCIAL TOTAL 34
2.1.3 A PRODUO DE CONHECIMENTO EM ONGS COMO UMA PRXIS COGNITIVA 38
2.1.3.1 MOVIMENTOS SOCIAIS E TRANSFORMAO SOCIAL 40
2.1.3.2 MOVIMENTOS SOCIAIS E CULTURA: UMA PRXIS COGNITIVA 42
2.1.3.2.1 O contexto, o processo, o interesse 42
2.1.3.2.2 As dimenses do conhecimento 44
2.2 PRESSUPOSTOS METODOLGICOS 46
2.2.1 SOBRE A ABORDAGEM QUALITATIVA 46
2.2.2 SOBRE ESTUDO DE CASO 48
2.2.3 SOBRE A ETNOMETODOLOGIA 51
2.2.3.1 SER MEMBRO 52
2.2.3.2 O RACIOCNIO SOCIOLGICO PRTICO 53
2.2.3.3 A ANLISE DE CONVERSAO 55
2.3 O PERCURSSO METODOLGICO DA PESQUISA 56
2.3.1 PENETRANDO NOS CONTEXTOS DAS ONGS 56
2.3.1.1 REALIZANDO A COLETA DE INFORMAES 56
2.3.1.2 AS TRANSCRIES 59
2.3.1.3 CATEGORIZANDO, ANALISANDO E INTERPRETANDO 61
2.3.2 O PERCURSO METODOLGICO NO PROJETO VILLA LOBINHOS 62
2.3.2.1 A COLETA DE INFORMAES 62
2.3.2.2 OS ASPECTOS DA OBSERVAO PARTICIPANTE 63
2.3.2.3 A SELEO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA 64
2.3.2.4 AS ENTREVISTAS 66
2.3.3 O PERCURSO METODOLGICO NA ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI 67
2.3.3.1 A COLETA DE INFORMAES 67
2.3.3.2 OS ASPECTOS DA OBSERVAO PARTICIPANTE 68
2.3.3.3 A SELEO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA 70
2.3.3.4 AS ENTREVISTAS 72
CAPTULO 3 O PROJETO VILLA-LOBINHOS: UM ESTUDO DE CASO 75

3.1 O CONTEXTO INSTITUCIONAL 75


3.1.1 A ORGANIZAO DO PROJETO VILLA LOBINHOS 75
3.1.2 A CONFIGURAO DO ESPAO 77
3.1.3 A ESTRUTURA INSTITUCIONAL 80
3.1.4 A IMPLANTAO E RECURSOS FINANCEIROS 84
3.2 O CONTEXTO HISTRICO E A CONSTRUO DE IDENTIDADES 87
3.2.1 DA CONSTITUIO DO PROJETO VILLA LOBINHOS 87
3.2.2 AS BASES DA CONCEPO PEDAGGICA DO PVL 91
3.2.3 DAS IDENTIDADES MUSICAIS INDIVIDUAIS E COLETIVA 96
3.2.3.1 OS ALUNOS FORMANDOS DE 2004 98
3.2.3.2 OS GRUPOS DE MPB E CHORO 106
3.3 O CONTEXTO SOCIOCULTURAL E OS PROCESSOS INTERATIVOS 108
3.3.1 O COLETIVO NO PROCESSO PEDAGGICO-MUSICAL DO PVL 109
3.3.1.1 AS AULAS DE MSICA EM GRUPO 109
3.3.1.2 A RELAO COM OS AMIGOS E PROFESSORES 112
3.3.1.3 A REDE FAMILIA 114
3.3.1.4 UMA SEGUNDA CASA: A EXTENSO DA FAMLIA 115
3.3.2 A REDE DE SOCIABILIDADE INSTITUCIONAL DO PVL 116
3.3.3 O ESPAO URBANO:CONSTRUINDO IDENTIDADES NAS DINMICAS SOCIAIS 123
3.3.3.1 O MORRO DONA MARTA 123
3.3.3.2 A FAVELA E O ASFALTO: FRONTEIRAS URBANAS 126
3.3.3.3 TORNAR-SE BANDIDO OU MSICO 130
3.3.3.4 O ESTIGMA, O RACISMO 131
3.3.3.5 O COMPROMISSO COM A MINHA COMUNIDADE E A SOCIEDADE A DDIVA 133
3.4 O CONTEXTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM MUSICAL 136
3.4.1 EXPERINCIAS DE FORMAO MUSICAL 136
3.4.1.1 O APRENDIZADO MUSICAL NO PROJETO 136
3.4.1.2 ESTUDANDO INSTRUMENTOS 139
3.4.1.2.1 As aulas individuais 142
3.4.1.2.2 As aulas em grupo 144
3.4.1.3 A TEORIA E PERCEPO MUSICAL 147
3.4.2 O REPERTRIO 151
3.4.3 TOCANDO NO GRUPO 153
3.4.4 A ORQUESTRA VILLA LOBINHOS 155
3.4.5 AS APRESENTAES 158
3.4.6 O GRUPO DE CHORO DO PROJETO VILLA LOBINHOS 162
3.4.6.1 TOCAR CHORO: UMA PAIXO 162
3.4.6.2 A MONTAGEM DO REPERTRIO E DOS ARRANJOS 163
3.4.7 O GRUPO DE MPB ISTO BRASIL 166
3.4.7.1 REPERTRIO E ARRANJOS: CONSTRUINDO A IDENTIDADE DO GRUPO 166
3.4.7.2 PROFISSIONALIZAO 168
3.4.8 O TRABALHO PEDAGGICO DOS PROFESSORES 169
3.5 AVALIANDO O PROJETO VILLA LOBINHOS 173
CAPTULO 4 A ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI: UM ESTUDO DE CASO 179
4.1 O CONTEXTO INSTITUCIONAL 179
4.1.1 A ORGANIZAO DA ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI 179
4.1.2 A CONFIGURAO DO ESPAO 181
4.1.3 A ESTRUTURA INSTITUCIONAL 184
4.1.4 O ORGANOGRAMA DA AMM: GERENCIAMENTO, DEPARTAMENTOS E 187
ATIVIDADES OFERECIDAS
4.1.4.1 DAS ATIVIDADES E DOS RECURSOS HUMANOS 187
4.1.4.2 DO INGRESSO DE NOVOS PARTICIPANTES 191
4.1.5 INSTNCIAS MANTENEDORAS 193
4.1.5.1 A AMM COMO UM EMPREENDIMENTO 193
4.2.5.2 PARCEIROS, PATROCINADORES E APOIADORES 195
4.2 O CONTEXTO HISTRICO DA AMM 198
4.2.1 A IDENTIDADE DA AMM COLADA S PRTICAS MUSICAIS 198
4.2.1.1 A CONSTRUO DA ONG 198
4.2.1.2 O TRAJETO 201
4.2.1.3 OS PRIMEIROS INTEGRANTES 203
4.2.2 FRUTOS DO APRENDIZADO MUSICAL NA AMM: OS PROFESSORES SIVUCA E BIG 207
4.2.3 FORMAO E VIDA PROFISSIONAL DOS PROFESSORES 211
4.2.3.1 O MSICO / ARTISTA 211
4.2.4 A IMPLANTAO DO PROJETO: CONCEPES E PRESSUPOSTOS 214
4.3 O CONTEXTO SOCIOCULTURAL: TECENDO REDES SOCIAIS 216
4.3.1 A SEDE DA AMM: UM ESPAO FSICO E SIMBLICO DE CONSTRUO DE 216
IDENTIDADE E PERTENCIMENTO
4.3.2 OS CUIDADOS SOCIAIS: AGREGANDO OUTROS SABERES, VALORES E AFETOS 222
4.3.3 AS REDES DE SOCIABILIDADE: INDIVDUOS E GRUPOS 226
4.3.3.1 A FAMLIA: A SEGUNDA CASA 229
4.3.3.2 VALORES, AFETOS E SIGNIFICADOS CONSTRUDOS DURANTE A VIVNCIA 232
NA ONG
4.3.3.3 GRATIDO AMM 234
4.3.4 O ESPAO URBANO REPRESENTADO NA ONG 235
4.4 O CONTEXTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM 239
4.4.1 A PROPOSTA PEDAGGICO-MUSICAL DA AMM 240
4.4.2 AS AULAS DE PERCUSSO: A ORGANIZAO DOS CONTEDOS MUSICAIS E 243
METODOLOGIAS
4.4.2.1 AS AULAS: O GRUPO COMO PARADIGMA 244
4.4.2.2 AGREGANDO O CONHECIMENTO DA ESCOLA DE SAMBA AO PROCESSO 249
PEDAGGICO
4.4.3 A ATUAO E A CAPACITAO DOS MONITORES MULTIPLICADORES: ASPECTOS 251
MUSICAIS E PEDAGGICOS
4.4.3.1 O PROJETO TAMBOR EMBAIXADOR: ECOS E REPIQUES DO FUTURO: UMA 252
EXTENSO DA AMM NAS COMUNIDADES
4.4.3.2 O PROJETO TAMBOR EMBAIXADOR E O TRABALHO DE CAPACITAO 254
DOS MONITORES
4.4.3.3 A FORMAO DOS MONITORES DA PERCUSSO NA VISO DOS PROFESSORES 256
4.4.4 OS PROCESSOS DE ORALIDADE E A IMITAO: COMPONENTES DO PROCESSO DO 257
ENSINO E APRENDIZAGEM MUSICAL
4.4.4.1 PROBLEMATIZANDO ORALIDADE E IMITAO NO ENSINO E APRENDIZAGEM 259
MUSICAL
4.4.4.2 OS PROCESSOS DE IMITAO E ORALIDADE NA FORMAO DOS 261
MONITORES
4.4.5 A BANDA SHOW 264
4.4.5.1 ASPECTOS FORMAIS E MUSICAIS 264
4.4.5.2 O RITUAL DO ENSAIO 268
4.4.5.3 A DANA: O MOVIMENTO DO CORPO COREOGRAFANDO A MSICA 272
4.4.5.4 DEMANDAS PARA A PRODUO DE UMA APRESENTAO: 273
DESLOCAMENTOS DE PESSOAL, INSTRUMENTOS E EQUIPAMENTOS,
MONTAGEM DO PALCO
4.4.5.5 A VISIBILIDADE DA AMM NA MDIA 275
4. 5 AVALIANDO O TRABALHO DA ONG 276
4.5.1 OS DESAFIOS, AS ESCOLHAS, OS CONFLITOS 276
4.5.2 AS PERDAS E CONQUISTAS 278
4.5.3 O BALANO 281

CAPTULO 5 AS ONGs E SEUS CONTEXTOS 286

5.1 AS ONGS: UM ESPAO HISTORICAMENTE CONSTRUDO DE PRTICAS 290


SOCIOMUSICAIS
5.2 O PROCESSO PEDAGGICO-MUSICAL NAS ONGS: UM FATO SOCIAL TOTAL 295

CAPTULO 6 CONSIDERAES FINAIS E DESDOBRAMENTOS 303

REFERNCIAS 307

APNDICES 314

ANEXOS 328
CAPTULO 1

INTRODUO

1.1 O TEMA DA PESQUISA

Essa pesquisa aborda a prtica da educao musical desenvolvida em projetos de


base comunitria, institucionalizados no mbito do Terceiro Setor como Organizaes No
Governamentais (ONGs). O propsito deste trabalho investigar, no mbito dos movimentos
sociais, as prticas musicais junto a dois projetos. So dois cenrios diferenciados de ensino e
aprendizagem de msica que tm como eixo comum o fato de congregar, em instituies,
jovens adolescentes em situao de vulnerabilidade social. Selecionei duas ONGs: uma delas
denomina-se Associao Meninos do Morumbi e coordenada pelo msico Flvio Pimenta,
em So Paulo, SP; a outra, VivaRio, trata-se de uma ONG sediada na cidade do Rio de
Janeiro, com muitas ramificaes em diversas atividades, entre elas, o Projeto Villa Lobinhos,
coordenado pelo msico Turbio Santos.
Como educadora musical que atua no ensino superior tenho observado e me pr-
ocupado com essas configuraes socioculturais que vm se estruturando paralelas ao
trabalho desenvolvido nas universidades (KLEBER, 2003). O foco de interesse dos projetos
sociais voltados para o trabalho com jovens adolescentes tem revelado uma grande incidncia
de atividades voltadas para a prtica musical. Como exemplo podemos citar a matria
veiculada dia 09/11/2001 no jornal O Estado de So Paulo, com a manchete Brown ensina a
arte de fazer msica solidria. Essa matria destaca dois projetos coordenados por Carlinhos
Brown, a Escola de Msica Pracatum e o T Rebocado, os quais funcionam como programas
educacionais e comunitrios para a populao de bairro do Candeal Pequeno, regio carente
de Salvador BA. Segundo o coordenador, os projetos tm a finalidade de recuperar a
identidade, a auto-estima dos habitantes do bairro, alm de propiciar o acesso educao
formal. A msica o eixo condutor desse processo no qual os alunos aprendem a lidar com
instrumentos e fazem aulas de percusso, composio, canto coral, entre outros. A
17

reportagem informa, ainda, que os cursos so gratuitos e muitos msicos que l se formaram
participam de shows como msicos profissionais.
Outro exemplo a matria veiculada no jornal O Estado de So Paulo - Caderno
Dois, 16 de agosto de 2002, apresenta em destaque a seguinte manchete: Como mudar a vida
de crianas com arte e ateno. O texto informa sobre o trabalho realizado pela Edisca
Escola de Dana e integrao social para crianas e adolescentes em Fortaleza, CE, e o
Projeto Sambelel, da ONG Corpo Cidado, Belo Horizonte, MG. A perspectiva da
reportagem sociocultural que v a arte como um instrumento para educar e integrar
crianas que convivem com a pobreza e a violncia em favelas e periferias [...] a idia no
formar msicos, bailarinos ou artistas, mas sim ampliar o universo cultural de cada criana.
Alm do jornal acima citado, outros jornais de circulao nacional e estadual, como a
Folha de Londrina (PR), a Folha de So Paulo (SP) e Estado de So Paulo o Estado - (SP)
quase que diariamente vm publicando notcias sobre projetos sociais que atendem a
diferentes grupos da comunidade e oferecem as mais diversas atividades. Foi atravs de uma
dessas reportagens que obtive a primeira informao sobre o Projeto Villa Lobinhos. Um dos
meus insights foi notar que nos ltimos tempos, projetos como estes mereceram mais
destaque na mdia do que concertos de msica erudita ou msica popular com msicos
consagrados nacionais ou internacionais. Dimenstein (1997) aborda o significado desse fato,
na lgica jornalstica, em seu artigo Como a criana ensinou imprensa o terceiro caminho
(p. 164-73) descrevendo fatos histricos que exemplificam como e porque, na concepo do
autor, os principais veculos da mdia brasileira incorporaram esse assunto em suas pautas. O
autor descreve uma reportagem veiculada, em horrio nobre, pela Rede Globo no Jornal
Nacional do dia 21 de fevereiro de 1997, a qual teve a durao de seis minutos, realizada ao
vivo, sobre o desfile de moda de meninos de rua promovido pelo Projeto Ax, de Salvador na
Bahia. Outro exemplo, ocorrido sete dias aps:

a Folha de So Paulo dedicaria uma pgina experincia da Mangueira, no Rio de


Janeiro, onde, graas ao esforo comunitrio, apoio do poder pblico e da iniciativa
privada, a delinqncia infantil caiu a nveis jamais imaginados no morro [...] Na
mesma semana, a revista Veja publicou um perfil de Oded Grajew, empresrio
empenhado em aes sociais, presidente da Fundao Abrinq pelos Direitos da
Criana. (DIMENSTEIN, 1997, p. 166).

Alm desses breves exemplos de matrias publicadas destaca-se o relevante espao


reservado pela mdia e pela Internet aos programas e projetos sociais. Os sites disponveis na
Internet voltados para o Terceiro Setor contm um considervel volume de informaes sobre
publicaes, artigos, relatos de projetos, orientaes para abertura de ONGs, elaborao de
18

projetos sociais, recentes indicadores para avaliao dos mesmos, depoimentos de


participantes. Em consulta aos sites chamou-me ateno as parcerias e a presena da iniciativa
privada em projetos sociais e escolares virtuais, por meio de fundaes, onde se canalizam
verbas significativas do poder pblico, via lei de incentivo cultura federal, estadual e
municipal. Os sites so bem elaborados, interessantes, interativos e hipertextuais. So fontes
de informaes de fcil acesso a quem navega e a possibilidade de expanso multiplica-se em
proporo geomtrica ao se considerar as inmeras conexes existentes em cada um deles.
Minha busca inicial apontou uma significativa quantidade de projetos sociais ligados
educao, arte e cultura1, sendo que a mdia, como j mencionado, tem sido um grande
diferencial na divulgao, socializao, operacionalizao e valorizao desse novo contexto.
O site <http://www.natura.net> informa sobre o Programa Natura Jequitinhonha e explica:
[...] elegemos a educao e a cultura como foco de atuao, pois acreditamos que ambos so
instrumentos para a formao de cidados plenos, conscientes de seus direitos e deveres nesse
mundo.
A escolha por pesquisar projetos sociais efetivou-se, literalmente, enquanto eu
surfava nos labirintos da Internet, no site da Associao Meninos do Morumbi (AMM)2. Foi
em 25/09/2002 que aspectos para os quais eu no atentava, tornaram-se foco da minha
curiosidade e ateno: a concepo da organizao de site, suas cores fortes, a logomarca, a
fcil navegao, seus links, a esttica, a clareza na linguagem, o contedo com informaes
sobre o trabalho, disponibilidade de partituras das msicas que eles tocavam e cantavam, o
acesso ao resultado sonoro, clicando para ouvir o repertrio, enfim, uma infinidade de
novidades para mim. Mas, o fato de o coordenador do projeto ser um msico e professor de
msica foi a grande alavanca para minha deciso pelo tema.
Sem o hbito de navegar pela Internet, a no ser para procurar coisas especficas,
comecei a me embrenhar em muitos sites de projetos sociais disponibilizados na WEB. Minha
ateno ficava mais ligada quantidade de informaes disponibilizadas, muitas formas,
maneiras e concepes de comunicao e linguagens. Pude informar-me, via WEB, sobre
inmeros projetos sociais relacionados com a prtica de educao musical cujo discurso se
alinhava com o compromisso social voltado para a minimizao da excluso social e para o

1
http://www.rits.org.br; http://www.ethos.org.br; http://www.aoeducativa.org.br; http://www.vivario.org.br;
http://www.vivafavela.org.br; http://www.projetoguris.org.br; http://www.meninosdomorumbi.org.br;
http://www.ibase.br; http://www.natura.net; http://www.villalobinhos.org.br; http://www.olodum.org.br;
http://www.uol.com.br/olodum/indexgrupocultural.htm; http://www.imagemcidadania.org.br/MusikFabrik/;
http://www.mundodarua.com.br/
2
http://www.meninosdomorumbi.org.br
19

exerccio pleno da cidadania, cujo atendimento focava os grupos em situao de


vulnerabilidade e risco social.
medida que buscava informaes sobre o assunto foi se desvelando para mim que
o locus desses trabalhos se davam eminentemente em ONGs. Assim, defini que o campo
emprico da pesquisa seria pinado de ONGs que trabalhassem com a prtica musical como
eixo da proposta socioeducativa.

1.2 O CAMPO EMPRICO: ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI E PROJETO


VILLA LOBINHOS

O campo emprico da pesquisa se circunscreve nas ONGs Associao Meninos do


Morumbi e Projeto Villa Lobinhos, como j mencionados. A escolha das duas ONGs foi
calcada na precauo de que as duas organizaes selecionadas tivessem uma estabilidade
institucional, no apresentando indcio de possibilidade de dissoluo no decorrer da pesquisa,
uma vez que se trata de um processo previsto para ocorrer durante trs anos, a partir de tal
definio. Outro critrio que direcionou a seleo foi buscar ONGs que realizassem suas
propostas socioeducativas focadas nas prticas musicais, envolvendo um pblico alvo que
congregasse jovens adolescentes em situao de vulnerabilidade e risco social.
Ressalta-se que, apesar da escolha de dois contextos distintos, esta pesquisa no ter
o carter de estudo comparativo, considerando as especificadas de cada unidade de caso. A
opo por realizar o estudo em duas ONGs justifica-se, considerando que a produo de
conhecimento e a construo de asseres que emergem dos dois contextos especficos
oportunizam que aspectos significativos do mundo social inerente a esses sobressaiam nas
descries, propiciando emergir questes recorrentes, questes antagnicas e outras que, alm
de ampliar o espectro de reflexo para subsidiar a anlise e interpretao dos dados, se
constituem em fatores que imprimem consistncia terica ao presente trabalho. Destaca-se,
tambm, que as descries e anlises das ONGs selecionadas se referem ao tempo e espao
em que foi realizada a coleta de informao que data de dezembro de 2002 a dezembro de
2004.
20

1.3 AS ONGs NA DIMENSO DO TERCEIRO SETOR

O Terceiro Setor3 tem se apresentado como a dimenso da sociedade em que se


proliferam os movimentos sociais organizados, ONGs e projetos sociais onde se observa uma
significativa oferta de prticas musicais ligadas ao trabalho com jovens adolescentes em
situao de excluso ou risco social.
O conceito de ONG foi utilizado pela primeira vez em 1950 na Organizao das
Naes Unidas para referir-se a organizaes internacionais de carter permanente e
constitudas por suas caractersticas e finalidades especficas, em diferentes pases, sem fins
lucrativos. Um dos aspectos centrais dessas organizaes foi a sua prpria autonomia em
relao aos governos de seus pases e sua constituio como fruto de um trabalho de
intermediao e cooperao internacional4. A participao dessas organizaes como
intermedirias de projetos em pases em desenvolvimento foi uma das primeiras formas de
canalizao de recursos internacionais para pases em condies de pobreza. E, ainda,
segundo Alarcn G. a denominao ONG alude a uma forma especial de organizao de
pessoas e meios dedicados a impulsionar aes coadjuvantes do desenvolvimento humano
(ALARCN G, 1999, p. 7)5.
No Brasil, o Terceiro Setor um fenmeno emergente nas trs ltimas dcadas e
vem se configurando mediante movimentos sociais de diversas naturezas os quais canalizam
recursos, vivenciam experincias e elaboram conhecimentos. Segundo Fernandes (2002), este
protagonismo dos cidados determina uma nova experincia de democracia no cotidiano, um
novo padro de atuao aos governos e novas formas de parceria entre Sociedade Civil,
Estado e Mercado.
Este segmento caracterizado como um conjunto de iniciativas privadas com fins
pblicos e sociais, no lucrativos, que buscam formas de enfrentamento das questes sociais
vividas por uma grande parcela da sociedade privada, tanto de bens materiais como
simblicos. O termo organizao no governamental ou ONG cobre uma variedade de
organizaes muito diferentes, que emergem dos movimentos sociais e cuja atuao transita
pelas mais diversas reas: assistncia social, educao, cultura, meio-ambiente, comunicao,

3
A denominao Terceiro Setor refere-se Sociedade Civil Organizada e o termo faz contraponto com o Estado,
considerado o Primeiro Setor e o Mercado considerado o Segundo Setor (http://www.rits.org.br).
4
Cf. ONU. Carta de las Naciones Unidas para la Cooperacin y el Desarrollo, 1950. Nova York: ONU, 1978.
5
la denominacin ONG alude a una especial forma de organizacin de personas y medios dedicados a impulsar
acciones coadyuvantes del desarrollo humano.
21

cincia e tecnologia, gerao de renda e trabalho. O investimento na dignidade humana e o


exerccio da cidadania plena so objetivos primordiais expressos nas justificativas desses
movimentos sociais (FERNANDES, 2002; KISIL, 1997).
Assim, multiplicam-se as iniciativas comunitrias e ampliam-se as necessidades de
recursos e competncias necessria para a gesto dessa nova configurao que possui
dimenses de ordem social, jurdica, econmica, cultural e, sobretudo, tica. O Terceiro Setor
vislumbra realidades que requerem novos mecanismos e procedimentos estratgicos, bem
como formas alternativas de acompanhamento para enfrentar o desafio de qualificar e
expandir seus objetivos e suas aes de promoo para uma real melhora da qualidade de vida
de seu pblico alvo. Como destaca Fernandes (2002):

O Terceiro Setor cresce em nmeros e em qualidade. Passa a contar nas polticas


pblicas. Recebe ateno da mdia. Mobiliza mais recursos e abre oportunidades de
trabalho. Acompanha e potencializa o processo de universalizao dos direitos, dos
deveres e da participao cidad. Tudo isto coloca graves problemas de gesto. A
prova dos nove do Terceiro Setor no Brasil hoje depende, em grande parte, de sua
resposta aos desafios do gerenciamento.

Como uma atividade emergente do Terceiro Setor, as ONGs tm sido foco de


estudos no que tange sua natureza, funo e impacto do seu trabalho sobre as comunidades
que atuam. As publicaes que menciono a seguir tm o propsito de exemplificar que as
aes que acontecem nessa nova dimenso da sociedade podem ser vistas de formas diversas
e, portanto, com olhares diferenciados em relao sua natureza. Essa diversidade resulta em
discursos, por vezes, antagnicos, de natureza conceitual, ideolgica e tica, incidindo na
prpria construo de identidade do campo que identifica esse segmento da sociedade
contempornea. Assim, como todo movimento emergente, este , tambm, permeado de
controvrsias.
Trabalhos com a abordagem avaliativa podem ser constatados em Peter Drucker
(2001) e Chris Roche (2002). A publicao de Drucker (2001) destaca aspectos tcnicos e
operacionais enquanto Roche (2002) aborda o tema da avaliao enfocando o impacto dos
trabalhos das ONGs, de forma prtica e terica, a partir de vrios estudos de casos em
diferentes tipos de projetos e programas desenvolvidos por ONGs nos diferentes continentes.
Este autor argumenta que alguns elementos se combinam para produzir um enorme vazio
entre a retrica das agncias e realidade do que realizam [refletindo uma] incipiente
aprendizagem institucional e fracos mecanismos de responsabilidade institucional (ROCHE,
2002, p.14), em muitas ONGs, resultando na falta de normatividade e de padres mais
profissionais. Tal situao torna esse segmento vulnervel crtica pblica e polmica. A
22

metodologia utilizada por ele nessa pesquisa foi a pesquisa-ao realizada conjuntamente por
ONGS internacionais e locais sediadas em quatro pases. Buscou destacar a importncia de se
compreender [o impacto] como uma diferena positiva e significativa...na vida das pessoas
(ROCHE, 2002, p. 323), indicando, ainda, que h outros critrios importantes para se avaliar
como compreender o contexto, a capacidade de escutar, aprender, adaptar-se e inovar a
capacidade referencial e a capacidade de trabalhar com os outros e de comunicar o
aprendizado (ROCHE, 2002, p. 323). Guillermo Rogel ao apresentar esta publicao
ressalta, que o autor mostra uma ampla gama de procedimentos e de tcnicas, enfatizando a
necessidade de rigor metodolgico para se chegar a resultados teis e confiveis. (ROCHE,
2002).
A partir de uma outra abordagem, Montao (2002) problematiza o Terceiro Setor na
perspectiva terica e ideolgica neomarxista do pensamento neoliberal, apontando a
ambigidade existente entre o conceito de sociedade civil, como uma arena privilegiada de
luta de classe e o prprio conceito de Terceiro Setor como algo, pretensamente, situado para
alm do Estado e do mercado. Por meio de suas argumentaes o autor prope uma anlise
crtica do Terceiro Setor

[...]uma perspectiva crtica e de totalidade, o que chamado terceiro setor refere-se


na verdade a um fenmeno real inserido na e produto da reestruturao do capital,
pautado nos [...] princpios neoliberais: um novo padro (nova modalidade,
fundamento e responsabilidades) para a funo social de respostas s seqelas da
questo social, seguindo os valores da sociedade voluntria e local, da auto-
ajuda e da ajuda-mtua. (MONTAO, 2002, p. 22; grifo do autor).

Esta anlise busca mostrar a ambigidade do conceito sobre Terceiro Setor,


argumentando sobre uma situao de desarticulao da totalidade social que vem liberar o
Estado da responsabilidade das seqelas presentes nas questes sociais.
A reflexo sobre o Terceiro Setor entendida como uma dimenso da sociedade
contempornea que congrega os movimentos sociais e ser abordada, neste trabalho, a partir
de uma viso crtica que reconhece a diversidade e a fragmentao desse cenrio. Esta postura
nega uma viso homognea, totalitria e sem conflitos. As instituies pblicas e privadas e
os movimentos sociais esto sendo dinamizados por demandas multiculturais que resultam de
articulaes que configuram um novo desenho social caracterizado pela redefinio de novos
papis e espaos de ao, produzindo-se superposies, contradies e convergncias. Nesse
contexto, a cultura se constitui como uma espcie de ordem normativa interagindo com as
dimenses de ordem simblica e estratgica. Para Castells (1999), esse panorama que
23

incorpora a internacionalizao e a globalizao e traz no seu bojo o reforo das identidades


culturais como um princpio bsico de organizao social das identidades culturais
Os movimentos sociais so tratados a partir do que a teoria social vem denominando
por novos movimentos sociais para se referir grande variedade de movimentos de
protestos durante os anos 70 e incio dos anos 80 no Ocidente, formando uma rede informal
de contestao e estilos de vida alternativos, mas tambm interferindo na poltica oficial
(OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996, p. 502). Os novos movimentos sociais so,
portanto, encarados como instituies politizantes da sociedade civil cujas fronteiras vo
sendo redefinidas desafiando cdigos culturais e polticos predominantes sobre bases
simblicas e materiais da sociedade. Essas formulaes conferem aos movimentos sociais a
capacidade de produzir novos significados e novas formas de vida e ao social
(OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996, p. 502).
Na dimenso movedia em que esto imersos os movimentos sociais, as aes
culturais so redefinidas e do um novo significado s fontes de identidades coletivas.
Desafiam, tambm, categorias dominantes de mrito artstico questionando, problematizando,
dissolvendo estruturas de avaliaes e julgamento. Isto feito em nvel de discursos e de
prticas pelo experimento de novos princpios estticos e criao de novos rituais coletivos.
Por outro lado, movimentos sociais propiciam o fenmeno da reconverso cultural
utilizando a expresso artstica para comunicao com grande parte da sociedade e, fazendo
isso, serve para re-politizar a cultura popular e o entretenimento (OUTHWAITE;
BOTTOMORE, 1996, p. 502). Segundo Teixeira Coelho, o conceito de reconverso
cultural refere-se ao processo de transferncia de patrimnio simblico de um lugar de
origem para outro, estranho ao primeiro, com a finalidade de conserv-lo ou ampliar seu
domnio de ao (quando o processo promovido por polticas pblicas) ou de p-lo a servio
de novos objetivos quando sua carga semntica inicial se esgotou em seu campo original
(TEIXEIRA, 1999, p. 335).
A partir dessas perspectivas e do material coletado procedeu-se a anlise e
interpretaao das prticas musicais observadas nas ONGs selecionadas. A sistematizao dos
processos foi fruto daquilo que foi vivenciado e que, de alguma forma, produziram
significado para a compreenso das questes dessa investigao que focalizaram,
prioritariamente, dois aspectos:
1) como as ONGs selecionadas se constituram e se instituram como espaos
legitimados para o ensino e aprendizagem musical, e
24

2) como que se instaura o processo pedaggico-musical nesses espaos de prticas


musicais.
O objeto de pesquisa insere-se no campo sociocultural da educao musical. Assim,
importou compreender o que, de que forma, porque, com quem os jovens aprendem msica
nesses espaos e como tudo isso vem incidindo no processo de transformao sociocultural
desses indivduos e de seus grupos sociais.

1.4 A ESTRUTURA DA TESE

A articulao das idias estruturou esse trabalho a partir dos referenciais conceituais
e tericos costurados com o trabalho de campo realizado no decorrer da pesquisa. Dessa
forma, no Captulo 1 introduzo o tema e exponho o propsito da pesquisa localizando-os no
mbito das prticas musicais desenvolvidas em ONGs. Apresento o campo emprico da
pesquisa constitudo de duas ONGs em contextos urbanos distintos: A Associao Meninos
do Morumbi, na cidade de So Paulo e o Projeto Villa Lobinhos, na cidade do Rio de Janeiro
e justifico a escolha dessas duas organizaes. Destaco, ainda, a dimenso do Terceiro Setor,
como um fenmeno emergente, tecendo consideraes gerais sobre como se proliferam os
movimentos sociais organizados e institucionalizados em ONGs e projetos sociais ligados ao
trabalho com jovens e crianas em excluso ou situao de risco social. So traados breves
paralelos conceituais sobre o Terceiro Setor, a partir de uma viso crtica da literatura,
buscando mostrar o campo como no homogneo e permeado de olhares diferenciados em
relao sua natureza conceitual, ideolgica e tica.
No Captulo 2, descrevo a construo da trama terico-metodolgica apresentada em
trs pontos interconectados: os pressupostos tericos, os pressupostos metodolgicos e o
percurso metodolgico trilhado no trabalho de campo das duas ONGs selecionadas. Nessa
trama, busquei construir uma postura terica coerente entre os autores e suas teoria
entrelaada com a metodologia utilizada uma associao entre o estudo de caso e a
etnometodologia. As premissas tericas partem da viso da msica produzida nas ONGs
como prtica social em que o processo pedaggico-musical entendido como um fenmeno
social cujos contextos sobrepostos e interconectados so vistos como campos de produo de
conhecimento. A descrio detalhada do percurso da coleta de informaes nas duas ONGs
tem a inteno de registrar os aspectos que considerei relevantes para a compreenso de como
25

se deu dessa trajetria, como procedi diante das escolhas e decises, fruto de um processo
reflexivo.
Nos Captulos 3 e 4 procedo descrio dos dois estudos de caso: Projeto Villa
Lobinhos e Associao Meninos do Morumbi. Essa descrio entremeada por
posicionamentos reflexivos e analticos, focalizando o processo pedaggico musical a partir
de contextos interconectados envolvendo as dimenses institucional, histrica, sociocultural e
de ensino e aprendizagem musical. A compreenso das questes da pesquisa ancora-se na
trama terico-metodolgica, que conduz o processo de reflexo e anlise e se processa a partir
das falas dos participantes da pesquisa, das minhas observaes, registros sonoros e visuais e
de documentos que considerei necessrios para o estudo.
No Captulo 5 retomo os pontos relevantes de cada captulo desse estudo.
Especificamente, busco traar uma transversalizao da anlise e interpretao realizada nos
Captulos 3 e 4, buscando construir asseres que entendam as ONGs como um campo de
produo de conhecimento e de atuao para o educador musical, destacando aspectos
conceituais e prticos, ticos e polticos que tragam uma contribuio para o campo
epistemolgico da educao musical. Nessa perspectiva, abordo as ONGs como espaos
socioeducativos-musicais historicamente construdos, capazes de produzir novos
conhecimentos de diferentes naturezas e o processo pedaggico-musical como um fenmeno
social dinamizado por pluricontextos sobrepostos e concomitantes. No Captulo 6 teo as
consideraes finais e possveis desdobramentos da pesquisa.
Por fim, encontram-se as referncias das obras citadas e consultadas, bem como os
apndices e anexos pertencentes esta pesquisa.
CAPITULO 2

CONSTRUINDO A TRAMA TERICO-METODOLGICA

2.1 OS PRESSUPOSTOS TERICOS

A presente pesquisa ancora-se em trs pressupostos tericos. O primeiro parte de


uma viso cultural da msica cujos aportes esto alicerados, como propem Shepherd e
Wicke (1997), em uma teoria que reconhea a constituio social e cultural da msica como
uma particular e irredutvel forma de expresso e conhecimentos humanos. O segundo
considera o processo pedaggico-musical, nas ONGs selecionadas, como um fato social
total, conceito cunhado pelo antroplogo Marcel Mauss (2003) enfatizando-o enquanto um
fenmeno social de carter sistmico, estrutural e complexo, portanto pluridimensional. O
terceiro pressuposto diz respeito produo do conhecimento musical no contexto das ONGs,
analisada luz da teoria da prxis cognitiva cunhada por Eyerman e Jamison (1998). Essa
teoria permite analisar a produo de conhecimento sociomusical das ONGs como fruto da
dinmica das foras sociais as quais abrem espaos para a produo de novas formas de
conhecimento. Assim, o processo pedaggico-musical entendido, nos espaos fsico,
institucional e simblico ocupados pelas ONGs, como possibilidade de produo de novas
formas de conhecimento musical nas suas diversas dimenses: institucional, histrica,
sociocultural e de ensino e aprendizagem musical. O significado do termo pedaggico, no se
restringe, portanto, somente aos processos de ensino e aprendizagem, mas entendido com
um campo pluridimensional conectado.
Os trs pressupostos tericos tm como argumento central a viso das prticas
musicais enquanto uma experincia humana vivida concretamente em uma multiplicidade de
contextos conectados.
28

2.1.1 A MSICA COMO PRTICA SOCIAL

Para Shepherd e Wicke (1997, p. 194), o conceito de estrutura social visto como
fruto da diversidade de relaes em rede e como uma categoria importante para compreenso
da sociedade, de suas produes materiais e simblicas. Os autores assumem e defendem a
msica como uma prtica constituda social e culturalmente e, portanto, descartam o
entendimento da msica como qualquer outro artefato cultural, inclusive defendem que a
msica tem um distinto significado da prtica da linguagem assim como tem na comunicao.
Desenvolvem a idia do corpo como um mediador da expresso musical e a msica como um
dos construtos de processos simblico e social, uma atividade central para as pessoas e
sociedade.
Para eles, a tentativa de se entender a msica como uma prtica significativa
distinta, constituda social e culturalmente, descartando o pensamento sobre msica a partir
dela prpria como uma prtica cujo significado esteja baseado nos sons mais do que na
totalidade de trabalhos singulares. Seus questionamentos problematizam onde a teoria cultural
tem tido algum sucesso em compreender a msica como social e culturalmente constituda;
onde h problemas; onde as caractersticas sociais e culturais tm sido mal entendidas pela
teoria cultural. Os autores buscam identificar as lacunas que precisam ser preenchidasa partir
dos argumentos da teoria cultural voltada para um verdadeiro entendimento da msica como
prtica social.
Nesta perspectiva, para entender a msica como de fundamental importncia na vida
humana, necessrio refletir sobre as condies da manipulao do homem sobre o mundo
material e a construo de significados a partir da experincia e dos sentidos humanos. Para
os autores claro que pessoas, como indivduos, s podem sobreviver pela ao no meio
ambiente em que vivem, sendo que a sobrevivncia se processa mediante a ao de
cooperar e agregar entre si (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 194). Ou seja, a reproduo
material s possvel como conseqncia da habilidade das pessoas estabelecerem relaes
humanas que, de alguma forma, vo se constituindo em uma plataforma interligada de
significados e estruturas sociais. Entretanto, os autores destacam que se o princpio da ordem
das aes humanas e das foras que fluem estiver implcito nas limitaes do mundo material,
29

ento, uma ordem que tem que ser compreendida e mantida simbolicamente (SHEPHERD;
WICKE, 1997, p. 196; grifo do autor)6.
Em relao ao processo de significao dos objetos materiais e simblicos os autores
ressaltam que, apesar do senso de viso imprimir identidades aos objetos observados, so os
sons que descolam o significado da superfcie dos objetos do mundo material, imprimindo a
eles significados intrnsecos. As caractersticas dos sons so aurais e aquelas visuais. Esta
disjuno facilita a criao do mundo humano no que concerne construo de
representaes simblicas. Sons da linguagem e da msica no so estruturas por si, mas
estruturveis pela sociedade. A ao de estruturar na conscincia requer relaes dialticas
individuais com as aes e foras ordenadas com o mundo externo (SHEPHERD; WICKE,
1997, p. 199). Nas relaes humanas, as pessoas agem juntas atravs da linguagem e da
msica reproduzindo-se materialmente, mediante os sons, o que constitui a sociedade, a
msica, bem como as subjetividades dos indivduos.
A msica, neste contexto terico, no se estrutura por si mesma, mas estruturada
pelas pessoas, pela capacidade de se perceber e estruturar os sons do mundo material em
estruturas simblicas em nvel de conscincia (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 199). A
msica social no s porque est sendo produzida atravs do mundo material e social, mas,
tambm, por sua capacidade de simbolizar o mundo externo material e social tal qual est
estruturado. Nessa perspectiva, a arte e, conseqentemente, a msica so entendidas como
uma prtica social e culturalmente constituda e que, assim sendo, seu carter no pode ser
visto fora da noo de sociedade como algo parte das formas simblicas e culturais
manifestadas pelas pessoas (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 200).
Blacking (1995) contribui para os pressupostos tericos dessa pesquisa a partir de
uma perspectiva semelhante, uma vez que para ele msica um modelo do sistema do
pensamento humano parte da infra-estrutura da vida humana [...] no somente reflexiva, mas
tambm geradora, tanto no sistema cultural como na capacidade humana (1995, p. 223-224).
Pensando a partir desse autor, o fazer musical um tipo especial de ao social que pode ter
importantes conseqncias em outras aes sociais, portanto, o autor lana o desafio para a
musicologia de clarear o processo de como as pessoas criam significado de msica na
diversidade de contextos culturais e descobrir o que a capacidade inata que os indivduos

6
if the principle of the ordering human actions and of the forces which flow therefore is implicit in the
constraints of the material world, therefore, it is an ordering which has to be realized and maintained
symbolically.
30

usam no processo de fazer o sentido de msica e a conveno cultural que guiam suas
aes.
Para Blacking (1995, p. 225), as fontes de acesso sobre a natureza de msica so
encontradas em: 1) na variedade de sistemas musicais, estilos ou gneros que so
correntemente executados no mundo; 2) registros histricos de partituras, iconografia e
descrio de performance e 3) diferentes percepes que as pessoas tem de msica e
experincia musical, diferentes maneiras pelas quais as pessoas fazem sentido dos smbolos
musicais. Importa aqui, especialmente, sua abordagem sobre a performance musical:

Toda performance musical um evento padronizado em um sistema de interao


social, cujo significado no pode ser entendido ou analisado isoladamente de outros
eventos no sistema [...] um sistema musical deveria, primeiro, ser analisado no em
comparao com outras msicas, mas em relao a outros sistemas simblicos e
sociais presentes na mesma sociedade. (BLACKING, 1995, p. 227-8)7

Essa abordagem implica entender o fazer musical e o senso de musicalidade das


pessoas como fruto da interao interpessoal em que os sons so estruturados simblica e
materialmente envolvendo instituies sociais e uma seleo de capacidades cognitivas e
sensrio-motoras disponveis do corpo humano (BLACKING, 1992, p. 305).
O processo de aprendizagem e ensino de msica, considerando os aspectos acima
destacados, tem seu eixo conduzido pela ao de fazer msica ou musicando no sentido
defendido por Small (1995), incorporando os processos coletivos intersubjetivos e dialgicos.
A performance musical, nessa perspectiva, abrange os rituais, os jogos, o entretenimento
popular e formas de interao que tornam o aprendizado significativo:

Alm de favorecer a idia de que msica ao, o verbo tem outras implicaes.
Primeiramente, ele no faz distino entre o que os performers e o restante dos
presentes esto fazendo. Ele nos lembra que musicar (...) uma atividade na
qual todos os presentes esto envolvidos e pela qual todos so responsveis. No
uma questo de agncia dos compositores, ou mesmo dos performers, para uma
contemplao passiva da platia. Seja l o que estiver sendo feito, dever ser feito
por todos. Quando usamos o verbo consideramos o evento como um todo, no
apenas o que os msicos esto fazendo e, certamente, no s a obra que est sendo
apresentada. Ns reconhecemos que uma performance musical um encontro entre
seres humanos onde significados so construdos. Como todo encontro humano, ela
acontece num espao fsico e social que tem que ser levado em conta, assim como
ns perguntamos quais significados so construdos em uma performance.
(SMALL, 1995, p.2)8

7
Every musical performance is a patterned event in a system of social interaction, whose meaning cannot be
understood or analyzed in isolation form other event in the system [...] a musical system should first be analyzed
not in comparison with other musics, but rather in relation to another social and symbolic systems within the
same society.
8
Apart from favoring the idea that music is action, the verb has other useful implications. In the first place, it
makes no distinction between what the performers are doing and what the rest of those present are doing. It thus
reminds us that musicking and you see how easy it is to slip into using it is an activity in which all those
31

Small (1995) argumenta que os critrios para se pensar no que significa o valor
musical reside no entendimento de que na ao do fazer musical realizada pelos
participantes, mediante a interao social, que se constri o sentido de como aquele universo
sonoro organiza-se e se incorpora nas estruturas sociais. Um ponto a destacar, que cada
tradio musical, cada cultura musical, cada maneira distinta de se fazer msica coletivamente
e individualmente, constitui-se em torno das necessidades de seus participantes se afirmarem,
explorarem e imprimirem o sentido musical mediatizado pelos relacionamentos construdos.
A abordagem de cunho socioeducacional, envolvendo as prticas musicais e o
processo pedaggico-musical, pressupe a interpretao e anlise dos diferentes contextos do
mundo social, intrnsecos e idiossincrticos dos atores sociais. A compreenso das prticas
musicais, enquanto articulaes socioculturais permeadas de formas e contedos simblicos,
se refletem no fluxo e refluxo da organizao social e no modo de ser dos respectivos grupos.
Trata-se, portanto, da construo e reconstruo das identidades sociais e culturais desses
grupos.
Kraemer (2000) centraliza suas reflexes sobre a problemtica da pesquisa
pedaggico-musical, questionando a dificuldade de se construir uma teoria para esta rea
devido s diferentes idias de como se pode executar uma pesquisa. Um ponto central no seu
pensamento a compreenso de que pedagogia da msica trata da relao entre pessoa(s) e
msica(s) e o processo de apropriao e transmisso das msicas (KRAEMER, 2000, p. 51).
Tal compreenso justifica a argumentao de que esse campo abrange os diferentes espaos
em que acontece as prticas musical, educacional, formal ou informal, intencional ou
ocasional, e, por isso, as aes educativas permeiam todos os segmentos sociais. A partir
dessa perspectiva o autor levanta a seguinte questo: que dimenses e funes o
conhecimento musical pode abranger?
O autor argumenta que a pedagogia da msica, ao tratar de relao pessoas e
msicas, j encaminha o campo para uma interao entre as disciplinas das cincias humanas:
filosofia, antropologia, pedagogia, sociologia, cincias polticas, histria. Ainda, ao tratar da
musica como um objeto esttico estabelece uma relao com a musicologia, a prtica musical
e a vida musical.

present are involved, and for which all those present bear a responsibility. It isn't just a matter of composers, or
even performers, actively doing something for the passive rest of us to contemplate. Whatever it is that is being
done, we are all doing it together. When we use the verb we take into account the whole event, not just what the
performers are doing, and certainly not just the work that is being played. We acknowledge that a musical
performance is an encounter between human beings in which meanings are being generated. As with all human
encounters it takes place in a physical and a social space, and that space also has to be taken into account as well
when we ask what meanings are being generated in a performance.
32

Kraemer (2000), corrobora Souza (1996, 2001b), ao propor a discusso e reflexo


sobre as dimenses e funes do conhecimento-pedaggico musical e suas implicaes
msico-histricas, esttico-musicais, msico-psicolgicas, scio-musicais,
etnomusicolgicas, terico-musicais e acsticas. Partem da premissa de que estes so
aspectos do prprio fenmeno/objeto, sem pens-lo fragmentado. Essa abordagem busca,
ainda, ao delimitar o campo epistemolgico da educao musical, estabelecer as conexes
interdisciplinares entre as cincias humanas e a musicologia, o que d ao conhecimento
pedaggico-musical uma peculiaridade que o destaca da definio de outras disciplinas. Ao
propor isso, os autores citados buscam clarear os limites e as interseces da educao
musical, enquanto rea de conhecimento especfico, mas transversalisada por outros campos
do conhecimento.
O conhecimento pedaggico musical possui peculiaridades que o destaca da
definio entre outras disciplinas. O autor argumenta que a pedagogia da musica, ao tratar de
relao pessoas e msicas, j encaminha o campo para uma interao entre as disciplinas das
cincias humanas: filosofia, antropologia, pedagogia, sociologia, cincias polticas, histria.
Ainda, ao tratar da musica como um objeto esttico estabelece uma relao com a
musicologia, a prtica musical e a vida musical. Desta forma o autor j aponta a abrangncia
da pedagogia musical e suas interfaces com outras reas.
Em relao aos aspectos filosficos Kraemer (2000) argumenta que a filosofia a
procura amorosa do saber, um pensar permanente e instituinte. Dessa forma, problematiza a
idia do saber institudo e de destaca as perguntas bsicas da filosofia, remetendo-se Kant:
O que posso fazer? O que devo fazer? O que posso esperar? O que o homem? Estas
questes desdobram-se para a: teoria do conhecimento, teoria da cincia, ontologia,
antropologia, esttica, tica filosfica do direito, filosofia da historia, filosofia da religio.
A esttica da msica promove a reflexo sobre a percepo dos sentidos e
conhecimento atravs desses sentidos. A pedagogia musical, segundo Kraemer (2000), est
relacionada com a esttica tendo em vista que a aprendizagem, assim como as prticas
musicais, esto relacionadas com a construo do sentido musical As posies pedaggico-
musicais esto diretamente relacionadas com o que se entende por sentido musical que por
sua vez est relacionado com a esttica. Estas posies mudam de acordo com julgamento
esttico e todo o entorno dessa questo.
No que concerne antropologia, o autor tange questes relacionadas aos valores
essenciais do homem, seus processos de criao. Assim, para se construir uma teoria
33

cientfica sobre a pedagogia da msica, h que considerar a interseco entre as reas afetas a
este objeto.
Para o autor os aspectos histricos ocupam-se dos acontecimentos que so
reconstrudas a partir das contribuies humanas e do material disponvel, o qual processado
por uma anlise e interpretao crtica. Ter, portanto, sempre uma carga de subjetividade. A
pesquisa e a escrita histrica abrange: histrias das dias, vida biogrfica, real e social,
histria das condies institucionais e scio-econmica. A pedagogia histrica relaciona-se ao
tratamento, anlise, interpretao e edio de histrias educacionais. encontra-se no mbito
da investigao de idias pedaggico-musicais.
A pedagogia da msica e a musicologia esto relacionadas entre si no que concerne
questo da apropriao e transmisso da msica, o que pressupe reflexes e estudos de
caracterstica simbitica: por um lado a pesquisa musicolgica trata da anlise e interpretao
global de eventos musicais, que resulta no contedo musical; por outro lado, a pedagogia da
msica est interessada tem o foco no sujeito em processo de desenvolvimento no que
concerne ao processo de ensino e aprendizagem.
A sociologia, segundo Kraemer (2000) observa os homens e tenta compreender as
coisas humanas. Sua meta tentar compreender o comportamento do homem em relao s
influncias, instituies e grupos sociais. Neste mbito, esto questes relacionadas tantos aos
processos coletivos inerentes dinmica de uma sociedade como a cultura e seus
imbricamentos, as prticas scio-polticas-econmicas bem como os processos individuais,
quer seja de grupos determinados ou as idiossincrasias. A sociologia da msica ocupa-se de
examinar essas dimenses relacionadas prtica e produo musicais e seus desdobramentos
e efeitos na prpria sociedade. Nessa abordagem, questes relacionadas ao lazer, s
preferncias musicais, aos valores culturais implcitos nos rituais, festas, nas produes
musicais das diferentes ordens so considerados para a produo do conhecimento
pedaggico-musical
Uma vez que a pedagogia se ocupa de entender como o homem adquire
conhecimento levando em conta a dimenso social, o autor chama ateno para os campos de
problemas pedaggicos musicais considerados relevantes. A socializao musical, processo
no qual os indivduos desenvolvem-se musicalmente, diz respeito aos processos relacionados
interao da msica, sua disseminao, seus gneros e etilos, sua relao com a identidade
de grupos sociais. Kraemer destaca, ainda, que as posies e convices polticas influenciam
na definio de objetivos e concepo de educao musical direcionando a forma e contedo
musicais, metodologias e valores socioculturais.
34

A cada uma dessas reas cabe caractersticas prprias que determinam o foco no
objeto de estudo. A partir dessa clareza, pode acontecer a flexibilizao das fronteiras entre as
reas. No caso da msica e, mais especificamente, da pedagogia da msica, esto em foco a
prpria msica, sua forma de transmisso e apropriao, o desenvolvimento da personalidade
humana e da identidade dos grupos sociais mediante a relao com a msica, incidindo na
interseco com as disciplinas das Cincias Humanas.
Neste aspecto Lucas (1995, p.14) chama a ateno para o que denomina interface
cooperativa ressaltando o aspecto interdisciplinar entre a educao musical e outras rea do
conhecimento quando se trata de pesquisas que envolvem o estudo dos processos cognitivos
com interface com os processos socioculturaias. Sobre o papel da etnomusicologia, Lucas
(1995) ressalta que as duas reas vm se dedicando, a partir de uma abordagem mais
contempornea, a pesquisas com essa caracterstica:

tanto a EDM [educao musical] quanto a ETM [etnomusicologia] contmeplam


possibilidades de investigao do ciclo do fazer musical, no seu todo ou em suas
partes, sintetizado no esquema de transmisso-criaao-execuao-recepo de
repertrios. (LUCAS, 1995, p.12)

Por sua vez, Kraemer (2000) provoca a rea de educao musical, chamando a
ateno para a necessidade dos educadores musicais assumirem a responsabilidade de colocar
a disposio no apenas o conhecimento sobre fatos e contexto, mas tambm, princpios de
explicao, ajuda de deciso e orientao, para esclarecimento, para influncia e otimizao
da prtica msico-educacional. Para tanto destaca as tarefas da pedagogia da msica,
juntamente com a aquisio do conhecimento: compreender e interpretar, descrever e
esclarecer, conscientizar e transformar a realidade social.

2.1.2 PRTICAS EDUCATIVO-MUSICAIS COMO FATO SOCIAL TOTAL

Marcel Mauss realizou, em 1920, um estudo comparativo sobre trocas e contratos


entre as diversas sees e subgrupos compostos nas sociedades arcaicas da Polinsia, da
Melansia e do noroeste americano. Este estudo, denominado O Ensaio da ddiva, resulta em
um enorme conjunto de fatos muito complexo... [em que] neles, tudo se mistura, tudo o que
constitui a vida propriamente social das sociedades que precederam as nossas (MAUSS,
2003, p. 186). Esses fenmenos sociais so considerados totais porque
35

exprimem, de uma s vez, as mais diversas instituies: religiosas, jurdicas e morais


estas sendo polticas e familiares ao mesmo tempo ; econmicas estas supondo
formas particulares da produo e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da
distribuio ; sem contar os fenmenos estticos em que resultam esses fatos e
fenmenos morfolgicos que estas instituies manifestam. (MAUSS, 2003, p. 186).

Dessa multiplicidade de coisas sociais em movimentos Mauss considera apenas


um dos traos, profundo, mas isolado: o carter voluntrio, aparentemente livre e gratuito, no
entanto, obrigatrio e interessado (MAUSS, 2003. p. 186). O estudo desse trao nessas
sociedades revelou inmeras formas desses povos realizarem uma economia, um contexto de
mercado, baseada na troca de valores materiais (bens e riqueza, mveis e imveis) e
simblicos (gentilezas, festas, rituais, tipos de servios) presentes nas relaes sociais.Trata-se
de circulao de bens em forma de trocas em que as coisas adquirem personalidade e
atributos. E o princpio da troca-ddiva pressupe que se coisas so dadas e retribudas,
porque se do e se retribuem respeitos[...] Mas tambm porque as pessoas se do ao dar, e,
se as pessoas se do, porque se devem elas e seus bens aos outros (MAUSS, 2003, p.
263). O autor constatou que esse princpio no se limitava quelas sociedades estudadas,
podendo ter sido praticado pelas sociedades que ultrapassaram o que ele chama de fase da
prestao total (realizada de cl para cl e de famlia para famlia), mas que no chegaram,
ainda, ao modelo em que o mercado faz circular o dinheiro, a troca de bens relacionada com o
ato de comprar e vender, e sobretudo, noo de preo calculado em moeda pesada e
reconhecida (MAUSS, 2003, p. 264).
Levy-Strauss considera o Ensaio Sobre a Ddiva, sua obra prima, de influncia mais
profunda, destacando que foi nela que Mauss introduziu e imps a noo de fato social total
destacando que esse conceito procede do cuidado de definir a realidade social: melhor ainda,
de definir o social como a realidade, enfatizando no seu texto que o social no real seno
integrado em sistema, e esse o primeiro aspecto da noo de fato total: Depois de
inevitavelmente dividido e abstrado em pouco em excesso, devem buscar recompor o todo
(MAUSS, 2003, p. 23).
O fato social total no pode ser pensado como uma simples reintegrao dos aspectos
que envolvem as diferentes representaes sociais e das dimenses da sociedade. preciso
que ele seja considerado tambm sob o ponto de vista da experincia individual em que se
possa observar o comportamento de seres totais, e no divididos em faculdades e que o
sistema de interpretao conecte os aspectos fsicos, fisiolgicos, psquicos e o sociolgico
das aes (MAUSS, 2003, p. 23).
36

A partir desse conceito cunhado por Mauss, o processo pedaggico-musical nas


ONGs pode ser pensado como um fenmeno social envolvendo essas diferentes dimenses e
contextos e, portanto, um fato social total, no se reduzindo a um processo de ensino e
aprendizagem musical, ainda que este considerado na sua multiplicidade. Pode-se pensar,
ainda, que nesse processo est tambm presente um sistema de trocas baseado em valores
simblicos e materiais ligados s prticas musicais, extrapolando-as. Estabelece-se, assim, a
possibilidade de constituir redes de sociabilidade mobilizando motivaes internas,
consubstanciadas em aes nos diferentes contextos: institucional, histrico, sociocultural e
de ensino e aprendizagem musical. Estes sero os contextos interpretados nas duas ONGs,
analisados a partir de uma viso sistmica.
Duas publicaes foram, especialmente, importantes para que pudesse debruar meu
olhar sobre as ONGs, buscando no fragmentar aquela realidade social no processo de
descrio e anlise. Trata-se de dois trabalhos que analisam fenmenos sociais tratando-os
enquanto um fato social total na perspectiva de Marcel Mauss: Sound structure as social
structure de Steven Feld (1984)9 e A vila olmpica verde-e-rosa de Maria Alice Rezende
Gonalves (2003).
No objeto desse trabalho descrever o estudo de Feld (1984) e Gonalves (2003),
mas o que vale que vale destacar aqui a perspectiva de anlise utilizada por ambos para a
compreenso de um fenmeno social, considerando as diversas dimenses que se apresentam
nas interaes e representaes sociais das comunidades estudadas. Tal postura possibilita um
olhar mais sistmico, no fragmentado do fenmeno cuja anlise leva em conta os valores e as
especificidades do mundo social daqueles atores.
Feld (1984) analisa a estrutura da organizao sonora na vida social da comunidade
Kaluli de Papua, Nova Guin, no estratificada socialmente. As caractersticas igualitrias
mostra-se significantes para a estrutura sonora e as desigualdades podem ser claramente
representadas na distribuio de recursos para homem e mulher. Segundo Feld (1984), os sons
estruturam a vida social da comunidade mediante a prevalncia das aes simblicas nas
interaes intersubjetivas. Sua anlise focaliza duas questes: 1) Como as caractersticas
igualitrias de uma sociedade minoritria se revelam nos sons organizados? 2) Como essas
mesmas caractersticas revelam-se nas organizaes sociais e na ideologia daqueles que

9
Este texto foi tema de um seminrio cursado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO) na
disciplina de Etnomusicologia, ministrada pela professora Dra. Elizabeth Travassos, por ocasio do meu
Doutorado Sanduche realizado em 2004.
37

produzem som e do fazer sonoro? (FELD, 1984, p. 383, traduo nossa)10. O autor esclarece
que a base de sua anlise qualitativa e derivada de um determinado local de pesquisa,
delimitado no tempo e espao.
Feld (1984) considera, em profundidade, as dimenses culturais da realidade
cotidiana sociomusical para sua anlise e prope seis reas de questionamento na msica
como fato social total e no mbito da vida social dos sons organizados: competncia, forma,
performance, meio ambiente, teoria, valor e igualdade. Cada rea abre-se para outras questes
que se ancoram no princpio de estruturas sonoras como socialmente estruturadas,
organizaes sonoras como socialmente organizadas e significados dos sons como
socialmente significativos11 (FELD, 1984, p. 386, traduo nossa). As formas de
engajamento na ao simblica so continuamente construdas e moldadas pelas percepes
dos atores sociais. Feld (1984) argumenta que se podem encontrar muitas formas musicais
similares nas sociedades com variao na complexidade social, mesmo considerando a
diversidade de significados e identidades dos diferentes grupos sociais.
J Gonalves (2003), realizou uma etnografia e fez uma anlise dos projetos sociais
desenvolvidos na Vila Olmpica da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, concebida por
membros da Escola de Samba Estao Primeira de Mangueira com o objetivo de oferecer
diferentes atividades socioeducativa-culturais para as crianas e jovens do morro da
Mangueira.
Gonalves (2003, p.57) destaca na pesquisa a trajetria da recreao ao ingresso no
campo das polticas sociais, abordando sua esfera social e enfatizando as redes de relaes
sociais. Neste contexto concebe e analisa o samba como um fato social total, amparada por
Mauss (2003), visto como um bem que circula a servio do lao social, cimento que liga as
pessoas em grande circuito de solidariedade e reciprocidade (GONALVES, 2003, p. 49).
Ao entender o samba dessa forma, Gonalves amplia suas possibilidades de elaborar conexes
em sua anlise estabelecendo uma lgica de rede na circulao de bens materiais e
simblicos, de servios, de idias e palavras onde o samba e a escola de samba tm o papel
de reforo do lao social na constituio das redes de reciprocidade.
Seus pressupostos tericos se baseiam na teoria da reciprocidade moderna e na
sociologia das configuraes, ambas prximas por apresentarem avanos na discusso sobre

10
1) What are the major ways that the classless and generally egalitarian features of one small-scale society
reveal themselves in the structure of organized sounds? 2) What are the major ways that these same features
reveal themselves in the social organizations and ideology of sound makers and soundmaking?
11
Structures as socially structured, sound organizations as socially organized, meanings of sound as socially
meaningful
38

os impasses da oposio indivduo/sociedade; subjetividade/objetividade e


processo/estrutura (GONALVES, 2003, p. 49). A autora enfatiza a perspectiva de que,
nessas duas abordagens, dissolve-se a ruptura entre o social e o individual, dando espao para
a gradao, uma vez que os smbolos constitudos no plano social so passveis de traduo
no plano individual e vice-versa.
Dessa forma, fui inspirada por esses dois trabalhos para tratar o processo
pedaggico-musical como um fato social total, uma vez que me permite trat-lo considerando
suas caractersticas multicontextual e pluridimensional. Para Mauss (2003) o fenmeno social
visto como total no d espaos para rupturas nem antagonismos entre o social e individual,
mas antes se busca recompor o todo. Esse conceito foi tomado como uma das premissas
tericas para a anlise do processo pedaggico-musical das ONGs estudadas, entendido como
um fenmeno social imerso na complexidade das diferentes dimenses da sociedade
contempornea urbana, interligadas e interagindo simultaneamente nos seus diversos planos
indicados por Mauss: religioso, jurdico, moral, econmico, esttico e morfolgico,
manifestados nas representaes sociais (MAUSS, 2003, p.187).

2.1.3 A PRODUO DE C ONHECIMENTO EM O NGS COMO UMA PRXIS


COGNITIVA

A compreenso da produo de conhecimento nas ONGs, investigadas na presente


pesquisa, est ancorada no conceito terico denominado de prxis cognitiva (EYERMAN;
JAMISON, 1998, p. 24). Este conceito foca a ateno nas idias e prticas provenientes dos
movimentos sociais, enquanto locus de produo de conhecimento e suas implicaes na
construo da identidade coletiva e individual dos atores sociais. Os autores destacam que a
msica se apresenta como elemento central na estruturao dos movimentos socais ligados
cultura e poltica, promovendo mudanas nos paradigmas culturais e estticos. Considerando
os estudos de seis culturas e a teoria da prxis cognitiva, eles examinam a mobilizao de
tradies culturais e formao de novas identidades coletivas mediante o ativismo musical e
elaboram argumentos tericos com estudos histricos empricos dos trabalhos e movimentos
tnicos dos sculos XIX e XX.
Nesse processo, focalizam as inter-relaes entre msica e movimentos sociais nos
EUA e transferem essa experincia para a Europa, abordando nessa obra aspectos da msica
39

folclrica, country, msica negra, msica dos movimentos dos anos 60 e a msica do
movimento progressista sueco. Segundo Flacks (1998), esta publicao est entre as primeiras
conexes entre sociologia poltica, movimentos sociais e teoria cultural onde a nfase no
significado cultural dos movimentos sociais remete-se s interpretaes sociolgicas de suas
fontes e significados.
A idia do livro surgiu em 1995, quando, em um final de semana, assistiam a uma
celebrao musical em Highlander Center (Tennesse, EUA) em memria de Ralph Rinzer.
Trata-se de um cantor e compositor ativista dos movimentos sociais dos anos 60 que defendia
os direitos humanos atravs de suas canes. Highlander Center uma das instituies que
reconhece o valor da msica como movimento social. Os autores perceberam e sentiram,
naquele contexto, como canes poderiam conjugar movimentos sociais quase perdidos no
tempo e como a msica poderia ser um importante veculo de difuso de idias de
movimentos em uma cultura.
Para os autores, os movimentos como em Highlander, desde 1930, providenciaram
espaos para o crescimento cultural e para a experimentao, misturando msica e outros
gneros artsticos e, tambm, para a infuso de novos tipos de significados na msica. Como
resultado dos movimentos dos anos 60, a influncia da msica na poltica trouxe baila a
cultura popular. A partir disso muitos movimentos musicais como Bluesgrass, gospel, folk,
jazz , rock, tm sido substancialmente reconstitudo.
O processo central tratado nessa obra denominado por eles como a mobilizao da
tradio, em que nos movimentos sociais, seja musical ou outros tipos de tradio cultural,
so feitos e refeitos reportando-se aos valores e memria das pessoas, tornando-se, tambm,
um importante inspirador para novas mobilizaes sociais que esto permeadas de cunho
poltico.
Eyerman e Jamison (1998), como outros historiadores musicais e culturais,
entendem que o movimento dos anos 60 foi apoltico e conduziu os jovens para a msica
folclrica e depois ao rock. Para os autores esta perspectiva perde a importante conexo entre
cultura e poltica que continua representando os anos 60 na conscincia popular. Para eles,
esse movimento defendia os direitos civis, o movimento estudantil contra guerra, poltica,
portanto. Mas a questo central, naquele momento, foi o projeto visionrio e coletivo dos
direitos civis dos estudantes, movimentos anti-guerra que compunham todos um programa de
liberao cultural e poltica incluindo: democracia, polticas personalizadas, integrao e
equanimidade racial e respeito a outras culturas.
40

O interesse e a principal contribuio dessa obra para a presente pesquisa, se


concentra nas questes relacionadas aos movimentos sociais e transformao cultural e
teoria da prxis cognitiva que sero tratados a seguir.

2.1.3.1 MOVIMENTOS SOCIAIS E TRANSFORMAO SOCIAL

Movimentos sociais so tratados como momentos centrais na reconstituio da


cultura. Nesse criativo alvoroo que esto imersos os movimentos sociais, aes culturais
so redefinidas e do um novo significado s fontes de identidades coletivas. Nesse contexto,
os comportamentos habituais, os valores da sociedade abrem-se para debates e reflexes.
Eyerman e Jamison (1998) abordam a cultura a partir do cotidiano e a partir do mundo da arte
da expresso cultural. A anlise dos autores ressalta que, ao se combinar poltica e cultura,
providencia-se uma ampla base contextual histrica para a expresso cultural, ensejando
emergir questes sobre as fontes da cultura, tradies, msica, expresses artsticas como
possibilidades de aes nos confrontos polticos. A mobilizao e reconstruo da tradio
tornam-se uma questo central para o que os movimentos sociais so e significam para a
transformao cultural e social.
Em sntese, Eyerman e Jamison (1998) so categricos em argumentar que a
formao das identidades coletivas que se constituem no mago dos movimentos sociais
torna-se um fator central nas amplas mudanas de valores, idias e maneiras de vida. Os
movimentos sociais so, portanto, agentes chaves para essa transformao e estabelecem uma
profunda relao com a msica.
Abordagem cognitiva para os movimentos sociais construda considerando as
relaes entre a cultura e a poltica, entre msica e movimentos como um processo de
aprendizagem coletiva. Os autores identificam que, dos movimentos sociais emergem
atividades de produo de conhecimento e que migram para fora deles. Denominam esse
processo como prxis cognitiva e afirmam que este conhecimento produzido tem afetado
programas de pesquisas cientficas e identidades profissionais intelectuais. Esses movimentos
tm propiciado contextos de politizao do conhecimento e seus efeitos tm sido profundos
nas teorias cientficas, identidade de disciplinas e mesmo, trajetrias de desenvolvimento
tecnolgico.
41

A partir dessa perspectiva, Eyerman e Jamison (1998) redirecionam os eixos dessa


premissa para a msica considerando a expresso musical, nos movimentos sociais, como um
tipo de prxis cognitiva. Ao elaborarem uma anlise de como alguns autores vm abordando a
conexo entre cultura e poltica, eles fazem uma crtica observando a ciso entre a forma
como o material emprico tratado, ou seja, separadamente da ampla plataforma de
concepes de mudanas sociais, o que eles denominam de empiricismo abstrato. E
enfatizam que a teoria e o campo emprico so tratados indubitavelmente separados de outros
domnios da vida social, tornando-se parte de um subcampo sociolgico, a sociologia da
msica, arte ou cultura (EYERMAN; JAMISON, 1998, p. 9). Dessa forma, um dos esforos
dos autores achar um meio termo entre a grande teoria e o abstrato empiricismo, fazendo
uma conexo entre poltica e cultura baixando para um mnimo nvel de abstrao, buscando
extrair os aspectos culturais da realidade das atividades dos movimentos sociais.
Trata-se de buscar um caminho consistente para a compreenso da questo terica de
como os movimentos sociais contribuem para o processo de transformao cognitiva e
cultural? (EYERMAN; JAMISON, 1998, p. 9). A elaborao dessa questo leva em conta a
convico de que os movimentos sociais so importantes fontes para produo do
conhecimento, cientfico e no cientfico e este conhecimento de ordem paradigmtica,
cosmolgica, abarcando suposies sobre realidade, tanto quanto abordagens cientficas para
a natureza ou para a tecnologia, fornecendo novos contedos substanciais. Os movimentos
sociais tm proporcionado contextos significativos para a formulao de novos paradigmas
cientficos, e que, atualmente, abrangem os estudos feministas, ecolgicos, afro-americanos e
um amplo envolvimento com as cincias e teorias sociais, formadas pela interveno
cognitiva dos movimentos.
Sobre o imbricamento entre a esfera poltica e cultural dos movimentos sociais, os
autores destacam seu carter espiral dinamizado por aes e reaes, avanos e retrocesso
tanto progressivos quanto reacionrios. Desta forma os movimentos sociais contribuem para a
dinmica das fontes culturais nos dois aspectos: nos trabalhos inventivos, criativos da
experimentao artstica e a crtica, reflexiva no trabalho de avaliao incluindo a perspectiva
da tradio permeada pelos valores e memria individual e coletiva.
Para eles, os movimentos sociais provocam impacto nas esferas polticas e no
processo de transformao cultural, sendo crucial para a anlise desse fenmeno focar a
ateno na tenso existente entre poltica e cultura. Nos movimentos sociais progressivos,
como eles denominam os de carter reacionrio, a msica, arte e literatura tornam-se fontes de
renovao ao implantar novos significados e reconstituir formas de gneros e estticas j
42

estabelecidas. Desafiam categorias dominantes de mrito artstico, questionando,


problematizando, dissolvendo estruturas j de avaliaes e julgamento.
E, de uma maneira geral, mediante o seu impacto na cultura popular, os movimentos
sociais disparam processos de interao social e formao de identidade coletiva. Isto feito
em nvel de discursos e de prticas, pelo experimento de novos princpios estticos, criando
novos rituais coletivos.

2.1.3.2 MOVIMENTOS SOCIAIS E CULTURA: UMA PRXIS COGNITIVA


2.1.3.2.1 O Contexto, o Processo, o Interesse

A relao entre movimentos sociais e cultura como abordagem cognitiva


(EYERMAN; JAMISON, 1998) foca a ateno sobre a construo de idias e no papel dos
movimentos intelectuais na articulao da identidade coletiva desses movimentos sociais.
Entende esses movimentos, primeiramente, como produtores de conhecimento, como foras
sociais abrindo espaos para a produo de novas formas de conhecimento. Ao focalizar a
dimenso cognitiva, o objetivo dos autores foi ressaltar o contedo das atividades dos
movimentos sociais como foco central da anlise, deixando para um segundo plano as
questes relacionadas com sua forma ou organizao.
Trs conceitos so centrais nessa abordagem: contexto, processo e interesses de
conhecimento. Os movimentos sociais acontecem em determinados contextos especficos de
espao e tempo; so produtos de condies sociopolticas especficas, assim como das mais
profundas tradies histricas e culturais. So eminentemente dinmicos e, ao se formarem,
transcendem, temporariamente, situaes especficas que emergem de seus prprios contextos
propiciando a elaborao de solues para problemas inusitados. Criam novos contextos,
novos espaos pblicos para acolher problemas de seu tempo. No podem ser reduzidos a
organizaes ou instituies sendo caracterstico sua transitoriedade, seu carter momentneo
e sua flutuao instvel. Ou seja, o que central seu carter de mobilidade, processo em
constante formao, aberto experimentao, arena para novas prticas de aes sociais e
cognitivas. Os movimentos sociais so processos em formao e, portanto, estruturantes da
sociedade. No esto prontos quando tomam seu espao histrico. E, no obstante, tenham
esse carter emergente, so fenmenos que amlgamam com contextos j existentes. Dessa
43

forma, se caracterizam como arenas criativas ou experimentais que contemplam a prtica de


novas formas de ao cognitiva e social, envolvendo o interesse dos participantes.
Importa aqui, como centro do processo, a articulao da identidade cognitiva
configurada nesses novos espaos abertos. Como os movimentos sociais so permeados por
outros projetos histricos, eles articulam novos interesses de conhecimentos abarcando nova
cosmologia, novas suposies de viso de mundo, inovaes organizacionais e, algumas
vezes, novas abordagens para a cincia.
Epistemologicamente, os autores argumentam que a noo de prxis da cognio
deriva da teoria crtica e uma alternativa para a noo de estrutura terica na qual os atores,
ou impem uma nova ordem ou o caos, ou internalizam uma realidade j existente por meio
da socializao. A prxis cognitiva volta sua ateno para a atividade de criao do
conhecimento e para a conscincia do desvelamento do mundo. Os autores lembram o
conceito de habitus de Bourdieu e argumentam que o movimento cultural acontece em um
processo de recombinao entre o interno e o externo, o individual e o coletivo.
s categorias de ao discutidas pelos socilogos, Eyerman e Jamison (1998)
acrescentam o conceito de ao exemplar que, articulada com a prxis cognitiva, pode ser
pensado como uma especificao de ao simblica em muitos sentidos. Entretanto, algo
mais do que meramente simblico, pois como representaes culturais arte, msica,
literatura tanto artefato como objeto material. O conceito ao exemplar utilizado nessa
abordagem busca estabelecer uma relao com o conceito de trabalho exemplar como ao que
Thomas Kuhn caracterizou como central na revoluo cientfica: as entidades paradigmticas
que servem para realinhar, reordenar o pensamento cientfico e representam exemplos ideais
de trabalhos de renovao cientfica. cognitivo e tambm se constitui a partir da experincia
relacionada aos aspectos da emoo da conscincia humana.
Como expresso cultural, a ao exemplar auto-elucidativa e, dessa forma,
constitui-se uma representao simblica de aspectos do individual e do coletivo presentes no
movimento, podendo, inclusive, simbolizar o que este representa. No tempo dos smbolos, na
era da mdia eletrnica e na transmisso virtual das imagens, a ao exemplar de um
movimento social pode servir como funo educativa para mais participantes do que o
imediato pblico de seus participantes. Pode emergir em filmes, palavras, msica e, dessa
forma, ser uma fonte de reconceitualizao. Nesta linha, arte e msica cultura so formas
de conhecimento e ao, parte de estruturas de interpretao e representao produzidas nos
movimentos sociais, por meio dos quais influenciam amplamente a cultura social.
44

Como prxis cognitiva, a msica e outras formas de atividade cultural contribui para
as idias que os movimentos oferecem e criam uma oposio na ordem j estabelecida na
sociedade. Talvez mais eficiente do que outras formas de expresso, a msica remeta-se a
significados intrnsecos e extrnsecos do ser humano. Nos movimentos sociais, mesmo a
produo de massa na msica popular pode ser tomada como coordenada ou referncia
significante. Os autores fazem referncia ao contexto do movimento social na dcada de 60,
em que o rock, inspirado na msica folclrica americana, tornou-se fonte de conhecimento
sobre aquele mundo e lugar para milhes de jovens do globo. E foi o movimento social que
fez este contexto possvel e no somente a msica per se.

2.1.3.2.2 As Dimenses do Conhecimento

As diferentes dimenses do interesse do conhecimento, denominadas pelos autores


de cosmolgica, tcnica e organizacional so combinadas na atividade integrada da dinmica
dos movimentos sociais. A dimenso cosmolgica expressa mediante pelo que os autores
chamam de mensagens utpicas que os movimentos sociais representam. Na msica, a viso
cosmolgica pode ser entendida pela sua capacidade de promover a incorporao de artefatos
culturais como as canes populares, por exemplo, capazes de serem comunicadas e expressas
para alm de sua imediata performance e recepo.
Os temas utpicos e transcendentes da prxis cognitiva dos movimentos so
expressos nas aes exemplares, corporificados nos movimentos musicais da msica popular.
A mensagem algo que transcende o confronto comum, com possibilidade de esperana e
transformao, o que no significa o abandono da tradio ou a quebra com o passado.
Tradies alimentam fontes para mudanas quando mobilizadas no interior dos movimentos
sociais. Os autores argumentam que as mensagens utpicas expressas pela msica so,
freqentemente, permeadas pela tradio.
A dimenso tecnolgica reflete-se mediante a atuao tcnica dos participantes dos
movimentos sociais como produtores culturais. Ressalta-se que existe um elemento artesanal
na produo musical que acentua a preservao, assim como expe habilidades e
virtuosidade. No contexto da sociedade moderna cultural em que a competncia tcnica est
45

ancorada em diferentes naturezas, os movimentos sociais promovem espaos para preservao


e revelao das habilidades humanas. O que, tambm, processado pela ao exemplar.
A dimenso organizacional argumentada mediante a idia de que msica deveria
encorajar a ativa participao na performance e na criao. Os autores ressaltam que a msica
nos movimentos sociais , sobretudo, acessvel no que tange ao aspecto de ser parte de uma
herana real ou imaginria e algo que encoraja o envolvimento das pessoas nas atividades.
Dessa forma a barreira entre a performance e a audincia quebrada, tornando-se ambgua e
fluida. Essa atitude de participao ativa, um retorno para as tradies coletivas nas culturas
orais, se processa na tenso entre a acentuao na habilidade performtica e virtuosidade, com
caractersticas da dimenso tcnica da prxis cognitiva dos movimentos sociais.
A integrao dessas vises utpicas ou cosmolgicas com as atividades tcnica e
organizacional forma o ncleo cognitivo dos processos em que os participantes constroem
seus projetos histricos ou suas identidades coletivas. Esse processo de formao de
identidade, chamado de prxis cognitiva, envolve os atores na articulao intelectual do
movimento. O conceito de prxis cognitiva, bem como a abordagem cognitiva como um todo,
chamam a ateno para o papel criativo da conscincia e da cognio em toda a ao humana,
individual ou coletiva.
Essa elaborao ancora-se em duas concepes gerais. A primeira que se deve
distinguir a ao de sua interpretao e significado, o que abre espao para vrias
interpretaes. A segunda que nenhuma interpretao de uma ao ou sua objetivao
como artefato melhor ou mais vlida do que qualquer outra. Ou seja, o significado que
incorporado na ao deve ser respeitado. Assim, as diferentes manifestaes musicais podem
ser pensadas como aes exemplares nos movimentos sociais e todas so importantes. So
frutos de construes coletivas e representam valores simblicos, estticos, tcnicos e
formais, todos esses imbricados no processo.
Nessa perspectiva, a msica pode incorporar o senso de comunidade e experincias
que ultrapassam as paredes das identidades individuais, tornando-se elemento essencial tanto
estruturante como estruturador da sociedade contempornea. Os autores destacam o
pensamento de Simon Frith (1996): Msica constri nosso senso de identidade por meio do
qual somos capazes de nos colocar em narrativas culturais imaginativas12 (apud EYERMAN;
JAMISON, 1998, p. 173). Essas narrativas podem ser frgeis e transitrias, mas quando
conectadas com os movimentos sociais, podem ter efeitos duradouro nos indivduos e na
sociedade.
12
Music constructs our sense of identity, through enable us place ourselves in imaginative cultural narratives.
46

Eyerman e Jamison (1998, p. 173) ressaltam que msica, vista pelo aspecto da prxis
cognitiva dos movimentos sociais, tem sido um recurso na transformao da cultura no nvel
existencial e fundamental, contribuindo para a reconstituio das estruturas dos sentimentos,
dos cdigos cognitivos e dos atos coletivos que so cultura13. Compreender as aes,
percepes e prticas dos processos sociomusicais presentes nas duas ONGs selecionadas
para esta investigao resultou em um debruar sobre possveis conexes que emergiram de
diferentes contextos sobrepostos. Dessa forma, a partir dessas referncias, foi construda a
fundamentao terica e metodolgica da presente pesquisa, amparada por autores que
consideram o fazer musical como fruto das interaes sociocultural no contexto do cotidiano.

2.2 PRESSUPOSTOS METODOLGICOS


2.2.1 SOBRE A ABORDAGEM QUALITATIVA

Considerando a temtica da presente pesquisa, optar pela abordagem qualitativa foi


fundamental para se construir a trama metodolgica, uma vez que o objeto de pesquisa est
inserido no campo dos estudos socioculturais da educao musical. As questes de pesquisa
procuram investigar o processo pedaggico-musical que se instaura nas duas ONGs
selecionadas como um fenmeno social resultante da construo humana, cuja premissa
entende que as msicas, os fazeres, os conhecimentos e os processo educativos so
considerados construes socioculturais (ARROYO, 1999, p. 32).
Nesta perspectiva, a opo pela abordagem qualitativa constitui-se em

[...] um esforo para entender situaes, nas suas singularidades, como parte de um
determinado contexto e as interaes que ali acontecem. Esse entendimento um
fim em si, de modo que no uma tentativa de predizer o que pode,
necessariamente, acontecer no futuro, mas entender a natureza do contexto o que
significa para os participantes estar nele, como so suas vidas, o que acontece para
eles, quais so seus significados, como o mundo se apresenta nesse contexto
especfico e na anlise ser capaz de comunicar, fielmente, para aqueles que esto
interessados nesse contexto...A anlise empenha-se em aprofundar o
entendimento14. (PATTON, 1985 apud MERRIAM, 1998, p. 6; traduo nossa).

13
[...] music, as an aspect of the cognitive praxis of social movements, has been a resource in the transformation
of culture at this fundamental, existential level, helping reconstitute the structure of feeling, the cognitive codes,
and the collective dispositions to act, that are culture.
14
[Qualitative research]...is an effort to understand situations in their uniqueness as part of a particular context
and the interactions there. This understanding is an end in itself, so that it is not attempting to predict what may
happen in the future necessarily, but to understand the nature of setting what it means for the participants to be
in the setting, what their lives are like, whats going on for them, what their meaning are, what the world looks
47

A perspectiva metodolgica da pesquisa qualitativa est conectada nesse trabalho


com as abordagens que enfocam os pressupostos do estudo de caso mltiplo, discutidas pelos
autores Bogdan e Biklen (1982), Merriam (1998), Yin (1994) e Stake (1995) e da
etnomedolologia argumentado pelos autores Heritage (1999), Coulon (1995a, 1995b) e Haven
(2004).
Para Bogdan e Biklen (1982, p. 27-30), a pesquisa qualitativa possui caractersticas
fundamentais que a permitem traar uma linha identificadora em que o papel do pesquisador,
ao observar as aes no prprio ambiente, tem possibilidades de estabelecer relaes com o
contexto no qual esto inseridas e compreender de quais circunstncias histricas fazem parte.
Dessa forma a interpretao dos dados no desconsidera nenhum ponto, mesmo que possa
parecer trivial, contemplando detalhes do cotidiano, gestos, falas, brincadeiras. O processo a
linha condutora da pesquisa que implica reconhecimento da importncia de se traduzir os
significado das informaes captadas, para alm do experimentvel e observvel. Dessa
forma, um dos pontos de partida para a anlise o fenmeno social. A construo de
conceitos se edifica ao longo do processo de observao, interpretao e anlise do fenmeno,
levando em conta a percepo subjetiva dos participantes da pesquisa envolvidos no
fenmeno em estudo.
Esta abordagem est basicamente interessada nas diferentes maneiras de viver das
pessoas, portanto, sua ateno se volta para os pressupostos que servem de fundamento
existncia humana. A observao participante no contexto das aes e a entrevista, em
diferentes modalidades, so estratgias adotadas para se construir um conjunto de
informaes sobre o que pensam os sujeitos a respeito de suas prprias experincias, suas
vidas, seus projetos, enfim, de sua existncia. Muitas vezes, os significados que as pessoas
do aos fenmenos esto introjetados nas entrelinhas de suas falas e/ou manifestaes.
Segundo Merriam (1998), estudos qualitativos, na educao, so estruturados a partir
de perspectivas provenientes das cincias humanas, sendo que alguns tipos so mais utilizados
como, por exemplo, estudos qualitativos bsicos ou genricos, etnogrficos,
fenomenolgicos, e estudo de caso (MERRIAM, 1998, p. 10). Destaca que todas essas
modalidades compartilham uma caracterstica essencial da pesquisa qualitativa: o objetivo de
se extrair a compreenso e o significado,[em que] o pesquisador tem como primeiro
instrumento de coleta de dados e de anlise, o campo de trabalho, uma orientao indutiva

like in that particular setting and in the analysis to be able to communicate that faithfully to others who are
interested in that setting The analysis strives for depth of understanding.
48

para anlise, e resultados que so ricamente descritivos (MERRIAM, 1998, p. 11, grifo no
original)15.
Cuesta Benjumea (2003) invoca o interacionismo simblico no qual a reflexo
embasa o desenvolvimento do self conduzindo o processo intersubjetivo em que o
pesquisador passa a ser tambm um ator no processo de construo do conhecimento, fruto de
sua investigao. Sob esta tica, o pesquisador se torna um instrumento para obter
informaes, analisar e compreender a experincia do outro e, assim, encontrar desafios que
dever converter em oportunidades ao desenvolver o estudo. Ainda, o pesquisador qualitativo
descrito como um bricoleur, para indicar que pesquisar um ato criativo no qual se
selecionam materiais e cria-se um estudo. Como afirma Ray (2003, p. 147) dado que somos
seres humanos, possvel compreender como ser um ser humano. A reflexo vista dessa
forma, implica que investigar no aplicar simples procedimentos ou seguir indicaes
tericas, mas um ato interpretativo, produto da interao com o mundo social.
O processo interpretativo, nessa abordagem, conduz o pesquisador a uma relao
ntima com o tema e com seus informantes ou atores da pesquisa ensejando um envolvimento
com o mundo social desses. Isso significa entender o pesquisador historicamente situado o
que confere a ele uma condio apropriada para compreender, com mais profundidade, certos
fenmenos humanos. Significa, ainda, que sua histria de vida e sua perspectiva reflexiva
condicionam o que pergunta, como pergunta e o como interpreta os fatos. Assim, o
pesquisador ocupa uma posio e observa de um ngulo particular. Os imbricamentos no so
apenas de carter social, ou seja, as relaes com os outros, mas tambm subjetivo na
capacidade de compreender a experincia do outro. O pesquisador no est acima do mundo
social que estuda, mas imerso nele seja por familiaridade ou estranhamento, conhecimento ou
desconhecimento, comprometimento ou ausncia, no h neutralidade (CUESTA
BENJUEMA, 2003).

2.2.2 SOBRE ESTUDO DE CASO

O estudo de caso mltiplo compe-se de duas unidades diferentes e trata-se de uma


abordagem microssocial do fenmeno estudado, considerando que a pesquisa se apia em

15
the goal of eliciting understanding and meaning, the researchers as primary instrument of data collections
and analysis, the use of fieldwork, an inductive orientation to analysis, and findings that are richly descriptive.
49

informaes coletadas em duas unidades institucionais que encerram em si indivduos e


grupos, que constroem relaes fruto desse espao e tempo especficos do recorte realizado a
partir da totalidade de um dado contexto social. Ressalta-se que essas relaes so analisadas
como inseparveis no mbito desse espao e tempo, delimitado por um contexto no qual os
participantes da pesquisa se orientam e fazem suas escolhas. Entretanto, possvel pensar em
uma projeo para a esfera macrossocial ancorando-se no argumento de Coulon (1995b), pois
paradoxalmente, atravs do exame da ordem microssocial que temos oportunidade de
apreender os fenmenos macrossociais (p. 38).
Segundo Bogdan e Biklen (1982, p. 58), o estudo de caso tem suas caractersticas
determinadas pela natureza e abrangncia e consiste no exame pormenorizado de um
determinado contexto, de um indivduo especfico, de um determinado depositrio de
documentos, ou de um evento particular. Nesta modalidade no se prioriza o estabelecimento
de hipteses, nem de esquemas rgidos de inquisio, pois medida que o assunto se
aprofunda, a complexidade da anlise se acentua (BOGDAN; BIKLEN, 1982).
Para Merriam (1998, p. 19) o design de um estudo de caso utilizado para alcanar
um entendimento aprofundado de uma situao e dos significados para os envolvidos.
Interessa mais o processo do que os resultados, o contexto mais do que as variveis
especficas, o desvelamento mais do que confirmao. A perspectiva microssocial, o que
no impede que os insights e inferncias provenientes do estudo de caso venham a subsidiar
polticas, prticas e futuras pesquisas.
Yin (1994) ressalta, ainda, que para a elaborao do design de estudo de caso devem
ser considerados cinco componentes a saber: 1) as questes da pesquisa enfatizando o como?
e o por que? buscando, com preciso, a natureza dos questionamentos; 2) as proposies do
estudo, direcionando a ateno para o que deve ser examinado no escopo do estudo,
instigando para a reflexo do campo terico-conceitual e para um refinamento do olhar; 3) a
unidade de anlise que define qual o caso ou os casos a serem investigados; 4) conexo dos
dados com a proposio da pesquisa e 5) critrios para interpretao dos dados.
Segundo Bogdan e Biklen (1982), a anlise interpretativa contribui para a construo
de asseres que, ancoradas na fundamentao terica, incidem na compreenso das relaes
implcitas no fenmeno social estudado, a partir de sua aparncia e de sua essncia. Stake
(1995, p. 8) ressalta que na pesquisa qualitativa e em especial, no estudo de caso, o
pesquisador o sujeito que colhe os dados, grava-os, objetivamente, mas simultaneamente
examina seus significados e redireciona a sua prpria observao para refinar ou dar
consistncia queles significados. Na base das observaes e dos outros dados coletados o
50

pesquisador desenha suas concluses, a partir da interpretao, entendida por Fred Ericson,
citado por Stake (1995, p. 9) como asseres, uma forma de generalizao, ou seja, possvel
projetar aspectos do mundo microssocial para o macro. Entretanto, Stake (1995) chama a
ateno para que no se incorra no erro de se construir asseres sobre uma base de dados
relativamente pequena, invocando o privilgio da interpretao. Um estudo de caso
paciente, reflexivo, desejando-se ver outra perspectiva do campo de estudo.
Para Stake (1995, p. xi), estuda-se um caso particular quando ele nos especialmente
interessante, com particularidades e especificidades singulares instigando-nos a buscar a
compreenso do objeto, suas interconexes intrnsecas e extrnsecas. Stake (1995) destaca,
ainda, que o design de toda pesquisa requer uma organizao conceitual, idias para
expressar entendimentos necessrios, pontes conceituais a partir do que j conhecido,
estruturas cognitivas para encaminhar a coleta de dados e delineamentos para apresentar
interpretaes aos outros (p. 15).16
A dimenso emprica desta pesquisa, no campo da educao musical foi tratada a
partir dos argumentos de Bastian (2000, p. 84) que entende que os problemas da pesquisa
pedaggico-musical devem ser orientados na prtica. Este autor prope que questes sobre a
cultura musical jovem e preferncias musicais, estilos de ensinar e aprender; formas de
tratamento e vivncias culturais; registro de variveis no cognitivas (emocionais, sociais e
motivacionais de aproveitamento, de clima de aula de msica) devem ser tratadas a partir de
sua dimenso prtica, como objeto de uma pesquisa educacional (BASTIAN, 2000, p. 85).
Em consonncia com Bastian associei as concepes tericas da etnometodologia e da
sociologia etnometodolgica ao percurso de construo das informaes da pesquisa.
Dessa forma o desenho metodolgico dessa pesquisa se alinha com um trabalho que
se prope a ir para o campo prevendo que novas questes pudero ser levantadas, inclusive
para revigorar a teoria dentro da rea especfica. A opo por uma abordagem sociocultural
justifica-se uma vez que o tema relaciona o processo pedaggico-musical com a dinmica de
grupos sociais urbanos, a construo de suas estruturas materiais e simblicas e,
conseqentemente, com a construo de suas identidades mediante o foco nas prticas
musicais. A anlise interpretativa considera a coleta e descrio dos dados como arsenais para
se desenvolver categorias conceituais para a anlise relacionada com a fundamentao terica
da pesquisa.

16
The design of all research requires conceptual organizations, ideas to express needed understanding,
conceptual bridges from what is already known, cognitive structures to guide data gathering, and outlines for
presenting interpretations to other.
51

2.2.3 SOBRE A ETNOMETODOLOGIA

Outra vertente metodolgica da pesquisa est ancorada na Etnometodologia. Harold


Garfinkel, a partir da obra Studies in Ethnomethodology, publicada em 1967, elaborou essa
metodologia para a pesquisa emprica que trata dos mtodos que os indivduos utilizam para
dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas aes de todos os dias: comunicar-se, tomar
decises, raciocinar (COULON, 1995a, p. 30). A tarefa estabelecida pela etnometodologia
examinar fatos sociais, exatamente em todo e qualquer fato real, indagando por cada coisa, o
que a faz exatamente descritvel, o que exatamente esse fato social?17 (GARFINKEL, 2002
apud HAVEN, 2004, p. 16).
Dessa forma, a etnometodologia apresenta-se como uma prtica social reflexiva que
procura explicao nos mtodos de todas s prticas sociais (COULON, 1995b, p. 17). Busca,
portanto, compreender a maneira como, coletivamente, os atores descrevem, criticam e
idealizam situaes especficas e do sentido ao mundo social. A realidade, assim vista, no
estvel e sim criada por situaes especficas envolvendo comunicao interpessoal. Essa
corrente rompe com modos de pensamento da sociologia tradicional e sua essncia est
fundamentada na idia de que todos somos socilogos em estado prtico, formulada por
Alfred Schtz, na qual o real, no mundo social, descrito e constitudo pelas pessoas em suas
prticas ordinrias e em linguagem comum (COULON, 1995a), cujos processos ensejam a
produo de conhecimento em diferentes esferas.
A complementaridade entre essas duas modalidades metodolgicas estudo de caso
e etnometodologia justifica-se considerando a natureza das atividades do campo emprico.
As questes que esta pesquisa suscita alinham-se com os pressupostos da etnometodologia,
pois

abordam as atividades prticas, as circunstncias prticas e o raciocnio sociolgico


prtico, como tema de estudo emprico. Concedendo s atividades corriqueiras da
vida cotidiana a mesma ateno que habitualmente se presta aos acontecimentos
extraordinrios, tentaremos compreend-los como fenmenos de direito pleno
(GARFINKEL, 1957 apud COULON, 1995a, p. 29).

A linguagem tem lugar privilegiado na investigao daquilo que dito e do no dito


na comunicao, tendo um lugar de destaque na etnometodologia por ser uma abordagem que

17
Ethnomethodology standing task is to examine social facts, just in every and any actual case asking for each
thing, what makes it accountably just what that social fact is?
52

trata de como os indivduos se comunicam enquanto interagem, ocupando-se da maneira


como os atores descrevem, criticam e idealizam situaes especficas e do sentido ao mundo
social. A realidade, assim vista, no estvel e sim criada por situaes especficas
envolvendo comunicao interpessoal. Os processos interativos que produzem e reproduzem
as estruturas sociais so importantes no estudo da realidade social, bem como o entendimento
de que a prpria realidade social a interpretao contextual e indicial de signos e smbolos
entre determinados agentes. Ou seja, afirma-se a concepo de uma realidade social mltipla,
diversificada e bastante indeterminada com nfase no aspecto micro-sociolgico e no
relativismo interpretativo. (HERITAGE, 1999, p. 129).

2.2.3.1 SER MEMBRO

A noo de ser membro, na etnometodologia, refere-se ao domnio da linguagem


comum entre as pessoas. Esse domnio produzido pelas interaes sociais na qual se
elaboram formas de expresses que compartilhadas compreensivamente dentro de um grupo.
Significa ser uma pessoa dotada de um conjunto de modo de agir, de mtodos, de atividades,
de savoir faire, que a fazem capaz de inventar dispositivos de adaptao para dar sentido ao
mundo que a cerca, apresentando competncia social que a agrega a um grupo e a permite
fazer-se reconhecer e aceitar (COULON, 1995a, p. 48).
Considerando que o campo emprico as ONGs selecionadas se caracteriza como
um espao institucional emergente, cujos processos de vrias ordens, quer sejam burocrtico,
poltico, pedaggico-musical, sociocultural, so marcados pela multiplicidade de forma e
contedo e que a grande parte de suas histrias orbitam em torno dos dilogos informais e na
memria dos participantes da pesquisa, foi preciso assumir que o raciocnio do senso comum
deveria ser considerado na trajetria da construo dos dados. Isso significou construir pontes
intersubjetivas entre os participantes da pesquisa e a pesquisadora imersa no cotidiano da
dinmica das ONGs.
53

2.2.3.2 O RACIOCNIO SOCIOLGICO PRTICO

Coulon destaca que Garfinkel considera o senso comum e cotidiano como


background para a construo do conceito acerca do raciocnio sociolgico prtico. Seus
estudos, nesse sentido, tratam as atividades e circunstncias prticas... como se fossem temas
de estudos empricos (COULON, 1995b, p. 16) e consideram que tanto as questes
corriqueiras da vida cotidiana, quanto os acontecimentos extraordinrios esto no mesmo
patamar de importncia ao se buscar a compreenso do mundo social dos indivduos e grupos
sociais. Garfinkel entendia ser essencial e imprescindvel o reconhecimento da capacidade
reflexiva peculiar de todo ator social (COULON, 1995b, p. 16). Esse reconhecimento
implica entender o conhecimento prtico como a faculdade de interpretao que todo
indivduo, erudito ou no, possui em ao, na rotina de suas atividades prticas cotidianas.
Nessa construo terica a interpretao considerada como indissocivel da ao e
igualmente partilhada pelo conjunto de participantes da pesquisa (COULON, 1995b, p. 17).
Dessa forma, o foco na compreenso do processo pedaggico-musical das ONGs selecionadas
foi tratado como um fenmeno social resultante de construes prticas, incorporando as
instabilidades inerentes a esses processos que se desenvolvem em um fluxo contnuo.
Esses pressupostos tericos conceituais ancoraram todo o trabalho realizado em
campo, cuja insero previu um tempo necessrio para que a pesquisadora pudesse penetrar
nas diferentes esferas e camadas das dinmicas pessoais e interpessoais, alm de aprofundar o
olhar para as dimenses: funcional, burocrtica, pedaggica, com o intuito de realizar uma
anlise do processo pedaggico musical como um fato social total (MAUSS, 2003).
A etnometodologia foi especialmente adequada para a realizao dessa pesquisa,
considerando que se ampara na teoria da ao desenvolvida por Schtz (HERITAGE, 1999, p.
329-330) que leva em conta vrias propriedades importantes do conhecimento e da cognio
do senso comum e situaes do cotidiano que se prestam para desenvolver processos de
ensino e aprendizagem no fluxo da experincia mediante uma srie de operaes subjetivas,
como o caso das prticas musicais nos grupos e comunidades investigadas.
Heritage (1999) destaca que para Schtz os objetos do mundo social so constitudos
no interior de uma estrutura de familiaridade e pr-convivncia fornecida por um estoque de
conhecimento mo que social na sua origem, como ocorre no aprendizado das escolas de
samba e de rituais ligados cultura de grupos sociais. Ainda, nessa perspectiva, esses agentes
54

sociais tm nesse estoque de conhecimento uma bagagem de construtos sociais que se


constituem em conhecimento tipificado que fornecem aos indivduos recursos e referncias
para a organizao da ao. Tal operao tem em seu mago a condio de se promover
aproximaes, revises, o que permite que validaes e utilidades permaneam sempre em
suspenso, podendo desencadear processos dinmicos com novos paradigmas e novas formas
de ao (HERITAGE, 1999, p. 329-330).
Outra propriedade do conhecimento e da cognio do senso comum que d suporte
para a etnometodologia tese geral da reciprocidade das perspectivas (HERITAGE, 1999,
p. 329-330) que permite que os participantes da pesquisa tratem suas experincias como
idnticas para todos os fins prticos apesar de suas diferentes perspectivas, biografias e
motivaes. Ou seja, so capazes de alinhar aes partindo de vises assimtricas,
organizando um conhecimento de senso comum como uma colcha de retalho altamente
desigual na qual se misturam experincias claras e ntidas com conjunturas vagas, suposies
e preconceitos. Nessa perspectiva h pouca comparao entre os aspectos do conhecimento
cientfico e do conhecimento do senso comum.
Dessa forma, como essa pesquisa considera que a compreenso do processo
pedaggico musical nas ONGs selecionadas teria que necessariamente considerar as falas,
aes e raciocnios dos participantes da pesquisa, as prerrogativas que do suporte ao
entendimento do que seja o conhecimento e a cognio do senso comum foram tomadas como
premissas para se construir a trajetria metodolgica.
O caminho fica aberto para o indivduo encetar investigaes baseadas nas
propriedades do real conhecimento considerando as operaes de juzo, escolha, avaliao de
resultados, etc que ele emprega (GARFINKEL, 1952; 1984 apud HERITAGE, 1999, p. 331).
Com isso Garfinkel estabeleceu um novo territrio para a anlise sociolgica: o estudo das
propriedades do raciocnio prtico de senso comum nas situaes mundanas de ao. Esse
contexto analtico permite que se analisem contextos em que se considere como os
participantes criam, renem, produzem e reproduzem as estruturas sociais para as quais se
orientam [...] as atividades prticas e suas propriedades so examinadas com o menor nmero
possvel de pressuposies e da forma mais imparcial possvel (HERITAGE, 1999, p. 332).
Isso implica considerar que os atores sabem o que esto fazendo e a pesquisa emprica
considera as aes ordinrias cuja compreenso emerge dos eventos da ao.
55

2.2.3.3 A ANLISE DE CONVERSAO

A anlise de conversao um dos traos importantes da Etnometodologia,


envolvendo a ao social, de carter resolutamente emprico, voltado para as interaes do
cotidiano. A anlise de conversao o estudo das estruturas e das propriedades formais da
linguagem que determina uma ordem intrnseca e no necessariamente explcita. Implica a
competncia social para conversar e se comunicar com outros membros, partindo do
pressuposto de que as estruturas da linguagem so compartilhadas e inteligveis mutuamente.
Heritage sublinha que o objetivo central da anlise de conversao desvendar as
competncias sociais que subjazem interao, ou seja, os procedimentos e as expectativas
pelos quais a interao produzida e compreendida (1999, p. 371). Destaca trs pontos
importantes:
a) a interao estruturalmente organizada por referncia a procedimentos
institucionais;
b) as contribuies dos participantes dessa interao so moldadas pelo contexto: o
procedimento de indicao dos enunciados a um contexto inevitvel;
c) as aes sociais funcionam em detalhes especficos da interao, de forma que no
podem ser ignoradas como acidental ou no pertinente sem afetar as perspectivas
de anlises (HERITAGE, 1999, p. 371-372).

Garfinkel descobriu que os sentidos e os significados das conversaes dependem do


contexto onde ocorrem. As informaes ho de ser consideradas dentro de um contexto de
significado prtico ou de expresses de ndice e a informao contextual; nas conversaes
as pessoas

esto dispostas e so capazes de considerar qualquer informao que possa ter


relao com o que sucede aqui e agora e com isto. Desta forma, nem o
pesquisador faz perguntas simplesmente e nem os informantes as respondem
simplesmente, pois perguntas e respostas esto atadas aos seus mundos sociais.
(CUESTA BENJUMEA, 2003, p.4).

Calcada nessa perspectiva metodolgica apresentada, a pesquisa ensejou-me trilhar


por caminhos que permitiram que as informaes fossem co-construdas durante a insero no
campo emprico, possibilitando captar a perspectiva das construes de noo de mundo
elaboradas por eles prprios. H que se deixar claro que a interpretao das entrevistas no
buscou realizar a anlise da conversao, no seu sentido estrito e tcnico como prope a
56

Etnometodologia mas, antes, levou em conta possibilidade de se compreender a competncia


social de se conversar e se de comunicar entre os membros dos grupos sociais estudados, a
partir das estruturas da linguagem socialmente construdas e compartilhadas. Esse suporte
terico-metodolgico ancorou a trajetria para se construir as pontes inter-sociais, inter-
relacionais e inter-subjetivas entre os participantes da pesquisa e a pesquisadora.

2.3 O PERCURSO METODOLGICO DA PESQUISA


2.3.1 PENETRANDO NOS CONTEXTOS DAS ONGS

Os primeiros contatos com as duas ONGs foram profcuos com uma receptividade
positiva para a realizao da pesquisa de campo. Primeiramente, via telefone e,
posteriormente, presencialmente, pude formalizar a permisso para a realizao da pesquisa e,
ento, iniciar um planejamento das inseres, considerando que se tratava de duas cidades
distintas e que a coleta exigiria uma permanncia prolongada em cada instituio.
Paralelo pesquisa de campo, freqentei seminrios, encontros e palestras que
tratavam de temas correlatos a projetos sociais relacionados perspectiva socioeducativa,
alm de estabelecer relaes pessoais que contriburam significativamente para a
compreenso do contexto macro das ONGs. preciso destacar que contei com pessoas das
prprias ONGs que colaboraram no incio de cada insero.

2.3.1.1 REALIZANDO A COLETA DE INFORMAES

Para as primeiras inseres no campo me orientei a partir de uma checklist elaborada


por Merriam (1998, p. 97), cujo Quadro 1 destaca os elementos que considerei significativos
para iniciar o processo de coleta e que estavam presentes no contexto das ONGs selecionadas:
57

1. O cenrio fsico: Como e o que ? Que tipos de comportamentos so designados para esse espao? Como
o cenrio organizado? Que tipo de recursos, objetos, tecnologia existe?

2. Os participantes: quem est em cena, quantos, e seus papis? O que faz a convergncia dessas pessoas?
Quem permitido ali? Quem no est que poderia estar? Quais as caractersticas relevantes dos
participantes?

3. Atividades e interaes: quem faz a atividades? H uma seqncia definida? Como as pessoas interagem
com as atividades e umas com as outras? Como as pessoas e as atividades so relacionadas ou
interconectadas do ponto de vista dos participantes ou do ponto de vista da perspectiva do pesquisador?
Quais normas ou regras estruturam as atividades e relaes? Quando as atividades comeam? Quanto tempo
dura? uma atividade usual ou atpica?

4. Conversao: qual o contedo das conversas no contexto? Quem fala com quem? Quem ouve? Anote
silncios e comportamentos no verbais que adicionam significados? importante ter possibilidade de fazer
registros em udio e vdeo para voltar as suas anotaes.

5. Fatos sutis: menos bvio, mas, talvez, importantes de serem observados so:
a. Atividades informais e no planejadas
b. Significados simblicos e conotativos das palavras
c. Comunicao no verbal como roupas e espao fsico
d. Medidas inoportunas como pistas fsicas
e. O que no acontece?, especialmente se deveria acontecer

6. Meu prprio comportamento: Sou to parte da cena como os participantes. Qual o meu papel como
ntima participante ou como uma observadora, afeto a cena que estou observando? Acrescentando, quais
pensamentos tenho tido sobre o que est acontecendo? Estes se tornaro partes importantes do comentrio
das notas de campo.

Quadro 1. Checklist para coleta de informaes.

A partir dessas questes iniciei meu trabalho de campo, ainda que naquele momento
no havia clareza do recorte a ser feito em relao aos participantes da pesquisa, considerando
as diversas atividades das ONGs, os diferentes nveis de aprendizado dos alunos, e, sobretudo,
o meu desconhecimento de como funcionava concretamente a dinmica das aulas, como se
estabelecia as relaes entre as pessoas, quais os horrios de atividades.
Alm das observaes, inclu o registro de entrevistas, depoimentos, bate-papos,
cenas de apresentaes e ensaios musicais. Esses registros foram gravados em vdeo com uma
Cmara Sony digital; a gravao udio em Mini Disk MD, tambm digital e as fotos em
Cmera Sony digital. Tinha idia de fazer um registro sonoro e visual de boa qualidade para
servir de base para a anlise e, se possvel, confeccionar um CD. No queria perder a
oportunidade de fazer uma coleta de sons e imagens o mais adequada possvel das
observaes em campo. Nesse sentido, no incio da coleta no Rio, contei com o apoio dos
coordenadores da ONG Ns do Cinema sediada no Rio de Janeiro que me forneceram
orientaes prticas e concepes bsicas de como lidar com os equipamentos e realizar
registros em vdeo.
Desta forma, o registro da coleta de informaes contou com o Caderno de Campo,
em que eu anotava todas os aspectos que considerava importantes, impresses, falas soltas,
58

sentimentos que me afloravam, dificuldades, comportamentos em aulas, ensaios,


apresentaes, diferentes contextos sociais, os repertrios, o relacionamento interpessoal entre
os participantes da pesquisa e pesquisadora. Enfim, esse material constitui-se em um
importante resgate de vrias dimenses que vivi ao longo desse perodo.
As descries minuciosas sobre a gesto das ONGS, obtidas por meio de conversas e
entrevistas com os participantes da pesquisa, forneceram-me informaes que se amalgamam
com minhas observaes e me permitiram uma maior compreenso de como funcionam os
mecanismos de gesto da ONG. Tal processo de compreenso desenvolve-se a partir de coisas
vistas e vividas no cotidiano dos atores sociais envolvidos, com foco no aspecto microssocial.
Entretanto, o que se ressalta aqui que existe um nmero infinito de descries possveis
invocando os mltiplos contextos nos quais aes foram sendo desenvolvidas pelos
indivduos e grupos produzindo significados, gerando conhecimento e valores. Essas
informaes comportavam vrios nveis de complexidade permitindo construir estruturas de
anlise que possibilitam o olhar tanto para a perspectiva micro como a macrossocial,
principalmente, levando-se em conta que essas aes estavam sendo produzidas em quadros
institucionais mais amplos (COULON, 1995b, p. 46). Sobre esta questo, Coulon destaca que
para Cicourel (1980)

todas as organizaes sociais tm como caracterstica a integrao dos nveis micro


e macro no seu quadro cotidiano. Por exemplo, a burocracia noo habitualmente
associada macroestrutura- implica interaes pessoais que a alimentam: ligaes
telefnicas, encontros cotidianos, notas escritas, relatrios, etc. Presume-se que
todas essas aes se realizam de forma racional [...] Essas prticas burocrticas, no
interior de uma organizao, fundamentam decises por exemplo a promoo
das pessoas [...] Todas essas prticas constituem a rotina de qualquer organizao
social...e no se encontram na cabea das pessoas. So culturalmente organizadas e
baseiam-se em inumerveis microacontecimentos que balizam a vida cotidiana dos
membros da organizao considerada. Esses microacontecimentos que representam,
simultaneamente, a vida da organizao e o trabalho que ela deve realizar, mostram
igualmente, de forma reflexiva, o trabalho dos agentes que anotado, relatado e
avaliado...os microacontecimentos so transformados em macroestrutura.
(COULON, 1995b, p. 45-47)

Portanto, para se promover a integrao entre a micro-macro contextos necessrio


compreender como so tomadas as decises rotineiras, importantes para o bom
funcionamento de uma organizao. Essas microestruturas se refletem e contribuem para
criao e recriao de macroestruturas. O gerenciamento das atividades das ONGs continha os
aspectos de ordem corriqueira, ordinria e burocrtica que se mostraram determinantes para o
funcionamento da organizao. O inusitado, o no esperado fazia parte da ordem do dia. Isso
59

foi percebido tanto mediante minhas observaes, como explicitadas nas narrativas dos
participantes da pesquisa.

2.3.1.2 AS TRANSCRIES

Todo o material em udio, composto por entrevistas, depoimentos, bate-papos, aulas,


apresentaes e ensaios musicais, foi gravado em MD (mini disk) digital e, posteriormente,
transcrito e organizado por um colaborador. Esse material bruto foi transposto para trinta e
oito CDs que serviram, tambm, como back up do registro realizado de 2002 a 2004. A
sntese desse material est demonstrada no Apndice A. A partir desse material e da escolha
dos participantes da pesquisa, as entrevistas foram processadas, agrupadas, e posteriormente
codificadas para citao, cujo processo est descrito nos prximos itens desse captulo.
Em relao ao registro de imagens em vdeo, foram privilegiados os momentos de
aulas, apresentaes, bate-papos, ensaios presenciados em diferentes espaos e tempo durante
a coleta de informaes. Esse material foi organizado e codificado por assunto para a
descrio, anlise e interpretao do objeto de estudo. As fitas em MDV, resultaram em 45
horas de imagens registradas e a sntese est descrita no Apndice B.
A retextualizaao foi elaborada por mim, ao longo da escritura da tese. O processo de
transposio da fala para a escrita levou em conta a distino entre as dimenses da oralidade
e a escrita baseada na proposta de Marcuschi (2004), cujo eixo analisa e reavalia o lugar da
fala e da escrita nas sociedades contemporneas. Trata detidamente das atividades de
transcodificao envolvidas, em especial, na passagem do texto oral para o texto escrito, a
compreenso uma atividade presente nesse processo, pois sempre transcrevemos uma dada
compreenso que temos do texto oral destacando-se que essa atividade esta imersa no nosso
cotidiano (MARCUSCHI, 2004, p. 51).
Marcuschi (2004) entende que a fala e a escrita so duas dimenses da comunicao
que envolvem ordens de naturezas diferentes, mas no so dois modos qualitativamente
diversos de conhecer ou dar a conhecer (MARCUSCHI, 2004, p. 47). Assim, a necessidade
de compreenso da comunicao como uma atividade cognitiva requer o entendimento de que
a retextualizaao no , no plano cognitivo, uma atividade de transformar um suposto
pensamento concreto em suposto pensamento abstrato (grifos no original). Esse mito da
60

supremacia cognitiva da escrita sobre a fala j foi superado (MARCUSCHI, 2004, p. 47-48).
Dessa forma, todo o processo buscou no interferir na natureza do discurso produzido do
ponto de vista da linguagem e do contedo, procedendo a uma editorao cognitiva,
eliminando minimamente, quando necessrio para a compreenso do texto, autocorrees,
auto-repeties, elipses e disflunicas do falante. (MARCUSCHI, 2004, p. 56).
O texto final das entrevistas foi disponibilizado para todos os participantes da
pesquisa realizarem a leitura, revises e modificaes que considerassem necessrias.
Juntamente com o texto da entrevista foi anexada a carta de cesso (Apndice C), onde o
participante assinou a autorizao e, tambm, indicou a forma que preferia ser citado na
pesquisa. Com exceo de um participante de uma das ONGs, os outros entrevistados
indicaram, no documento, a opo de serem citados por seus nomes reais ou seus apelidos,
denotando que suas identidades poderiam se tornar pblicas e associadas s suas falas.
O conjunto das entrevistas constituiu-se uma fonte de anlise para a compreenso do
processo pedaggico-musical. E, ressalta-se que uma caracterstica muito prpria desse
material que ele todo permeado por performances musicais.
O termo performance vem sendo utilizado no Brasil em seu vocabulrio cotidiano
invocando mltiplos sentidos. Neste caso, o termo est ligado ao ato de fazer msica nas mais
diversas possibilidades que essa ao se faz presente nas atividades humanas. Conforme
justifica Lucas (2005), a fora do uso corrente do termo performanceem portugus e em
outras lnguas latinas como o espanhol, italiano e o francs, gerando inclusive neologismo
como performero, em espanhol, ou o verbo performatizare o adjetivo performtico, em
portugus o termo usado nesse estudo sem o recurso itlico. (LUCAS, 2005, p. 11).
Os entrevistados, quando contavam sobre seus processos de apreender a msica,
falavam e tocavam para exemplificar. Assim, os arquivos em udio, constituram-se em uma
fonte de repertrio e de demonstraes musicais de como eles fazem msica.
Todo esse material serviu de base para se poder rever, ouvir novamente, analisar e
interpretar aspectos relevantes associados ao processo pedaggico-musical nos diferentes
contextos em que os participantes da pesquisa faziam msica. Os registros musicais se
constituram em um acervo de repertrio em que, mesmo no sendo o objetivo central dessa
pesquisa, se pode observar os aspectos estticos, estilsticos e tcnicos utilizados pelos alunos
e professores nas suas performances.
61

2.3.1.3 CATEGORIZANDO, ANALISANDO E INTERPRETANDO

O processo de anlise foi recursivo e dinmico (MERRIAM, 1998, p. 155),


concomitante coleta de dados. Entretanto, a anlise se consubstanciou aps a concluso e
processamento de todo o material coletado, buscando sempre construir sentido e significado
para os dados mediante um olhar que conectava dados com conceitos, lgicas dedutivas com
indutivas e a descrio com interpretao. O prprio campo indicou-me o caminho e
condicionou o que e quem observar na busca da construo de asseres que respondessem s
questes da pesquisa. Nessa dinmica me converti em um instrumento de re-coleta de
informaes e a anlise e interpretao foram se processando em camadas cada vez mais
profundas, medida em que eu me apropriava do material conectando-o com os pressupostos
tericos, mediante um processo reflexivo. Assim, minhas escolhas so fruto de um olhar
especfico de parte do mundo social observado em que as categorias foram construdas a
partir da anlise dos dados e foram processadas em camadas de observao do objeto de
estudo.
As categorias emergentes da anlise foram sendo agregadas e sintetizadas medida
que o aprofundamento desse processo foi se desenvolvendo. Considerou-se sua recorrncia e
significao para a compreenso do comportamento [dos participantes da pesquisa], questes
e contextos (STAKE, 1995, p. 78) presente em cada unidade de caso. Esse processo de
agregao resultou em um sumrio detalhado da estrutura da pesquisa, com seus captulos e
subcaptulos, conduzindo para a categorizao, codificao dos dados e a conseqente
reconduo de todo o material codificado, considerando a estrutura da tese.
A pesquisa de campo desvelou-me diferentes contextos de anlise no movimento de
aprender a ler a dinmica da realidade complexa da gesto das ONGs, buscando produzir
conhecimento, costurando o saber cientfico, o saber popular e a prtica social. A anlise
possibilitou construir quatro categorias de contextos, considerando a necessidade de proceder
a uma viso sistmica que envolvesse as vrias dimenses do objeto de estudo. Assim,
procurei olhar o objeto de pesquisa o processo pedaggico-musical desenvolvido nas ONGs
como um fato social total (MAUSS, 2003), focalizando quatro contextos que conduzem
para a descrio, anlise e interpretao das questes: 1) institucional envolvendo as
dimenses burocrtica, jurdica, disciplinar, morfolgica; 2) histrica considerando que o
processo histrico das ONGs se construiu a partir das histrias contadas pelos participantes da
62

pesquisa, protagonistas da construo das organizaes sociais enquanto espao fsico,


material e simblico; 3) sociocultural envolvendo a dimenso do espao de circulao dos
valores simblicos, dos encontros, das relaes intersubjetivas e inter-institucionais, dos
conflitos, das negociaes; 4) ensino e aprendizagem musical focalizando como, onde,
porque, para que se aprendia e se ensinava msica ali. Cada um dos estudos de caso resulta
em descries, anlise e interpretao de contextos e situaes que trazem tona as
especificidades que configuram a identidade institucional, histrica, sociocultural e
pedaggico-musical da cada uma das ONGs selecionadas.
Alinhando-me com a argumentao de Cuesta Benjumea (2003), a reflexo presente
no momento da anlise das informaes pressups considerar fatores como contextos
institucionais e pessoais, pressuposies ontolgicas e epistemolgicas imersas nos mtodos
de anlise, uma vez que a forma como estes so utilizados influem profundamente sobre o
processo de pesquisa e seus resultados. A reflexo vista como uma habilidade humana
presente e inerente s interaes sociais e, precisamente por isso, se faz presente na anlise e
interpretao da pesquisa qualitativa.

2.3.2 O PERCURSO METODOLGICO NO PROJETO VILLA LOBINHOS


2.3.2.1 A COLETA DE INFORMAES

Meu primeiro contato direto com as atividades e coordenadores do Projeto Villa


Lobinhos (PVL) se deu em 22 de janeiro de 2003 por ocasio do IV Encontro de Jovens
Instrumentistas, promovido pelo Projeto e realizado no Museu Villa Lobos, em Botafogo,
bairro da zona sul do Rio de Janeiro. O objetivo desse Encontro, realizado desde 2000,
congregar jovens instrumentistas de vrios projetos sociais da cidade do Rio de Janeiro e a
partir de um contingente de cem jovens, a coordenao seleciona nove instrumentistas que
cursaro por trs anos as atividades oferecidas pelo PVL. O diretor, Turbio Santos, j havia
me autorizado, via telefone, a estar nesse evento como observadora. Esse foi um breve
momento que durou uma tarde, mas foi importante para que eu conhecesse os coordenadores
e professores do PVL.
Uma segunda insero, aconteceu entre os dias 30 e 31 de maio e 2 de junho de 2003
quando tive a oportunidade de visitar a sede do Projeto, denominada Casa na Gvea,
63

conversar com pessoas envolvidas nas atividades pedaggicas e administrativas e ter um


primeiro contato com alguns alunos que conheci ao acaso, por estarem ali naquele momento.
Fui para o Rio com trs entrevistas agendadas: Rodrigo Belchior, coordenador, Turbio
Santos, diretor e com Regina Novaes, antroploga, professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), pesquisadora dos movimentos sociais no Rio de Janeiro no Instituto de
Estudos da Religio (ISER)18. Essas primeiras entrevistas me deram subsdios importantes
para organizar e projetar a terceira etapa da insero no campo que aconteceu de janeiro a
julho de 2004.
Nessa ocasio tive oportunidade de participar integralmente do V Encontro de Jovens
instrumentistas, Museu Villa Lobos, de 19 a 30 de janeiro. Pude observar o desenvolvimento
das atividades musicais, momentos de ensino e aprendizagem musical, o repertrio,
recomendaes disciplinares, momentos de lazer, lanche, performances musicais espontneas
onde aconteciam trocas de experincias musicais entre os jovens. Foi tambm nesse Encontro
que iniciei os procedimentos de gravao em vdeo, com cmera digital. Assim, pude fazer
registros em udio de vdeo, gravando as cenas do cotidiano desse Encontro, com alunos,
professores, pais e uma pauta prvia.
Nessa etapa, priorizei conhecer a dinmica do Encontro, os projetos sociais
participantes e me familiarizar com o contexto. Foi um exerccio para que desenvolvesse
minha habilidade de me aproximar e abordar as pessoas com quem iria conviver na sede do
Projeto. A cada dia eu me sentia mais integrada, o que foi me dando mais liberdade para
abordar as pessoas ao acaso, bater papo e colher depoimentos mediante uma conversa
informal no ptio ou aps as aulas.

2.3.2.2 OS ASPECTOS DA OBSERVAO PARTICIPANTE

Minha prtica de observao foi se desenvolvendo e me descortinando as


possibilidades para uma maior insero no mbito mais interno da ONG, preparando-me para

18
H 35 anos atua no campo das ONGs e da sociedade civil organizada, com o propsito de promover o
desenvolvimento com justia social e responsabilidade ambiental. Com sede na cidade do Rio de Janeiro,
estende suas aes, tambm, em outros estados. Realizou pesquisas no campo social, da religio e do meio
ambiente que se tornaram referncias, angariando para a instituio prestgio nacional e internacional. Os
parceiros mais freqentes do ISER so outras ONGs, governos locais, universidades, agncias de
desenvolvimento e igrejas com orientao ecumnica. Seu trabalho voltado para quatro reas de competncia:
Fortalecimento da Sociedade Civil; Violncia Urbana, Segurana Pblica e Direitos Humanos; Meio Ambiente e
Desenvolvimento e Religio e Sociedade. <http://www.iser.org.br>
64

uma observao participante. Meu papel como pesquisadora se concentrou mais na categoria
de observadora (MERRIAM, 1998, p. 101, cujas atividades so sabidas pelo grupo sendo que
participar secundrio na operao de coleta das informaes.
No ms de maro de 2004, iniciei a ltima fase de minha insero no PVL, na Casa
da Gvea, local em que aconteciam as aulas de msica, ensaios, atividades complementares e
a administrao burocrtica da ONG. Priorizei, nesse incio, conhecer aspectos do Projeto que
me indicassem os possveis recortes, estratgias metodolgicas adequadas, encaminhamentos
que me facilitassem a observao em campo e o estreitamento das relaes com os
informantes para a coleta de dados. Tive livre acesso s atividades ali desenvolvidas, com o
apoio de Rodrigo Belchior, coodendor pedaggico, que se tornou meu aliado nos processos
que tive para construir os dados da pesquisa, informando-me sobre todas as questes que eu
perguntava, incluindo-me na programao das apresentaes como acompanhante e
apresentando-me para a rede de conexes de projetos sociais que interagiam com o PVL.
O apoio de Rodrigo me propiciou que eu transitasse pelos diferentes espaos,
externos, mas ligados ao Projeto como: visitas s casas dos alunos e roda de choro no Morro
Santa Marta, Escola da Msica da Rocinha, Projeto da Grota do Surucucu (Niteri), salas de
concertos, bares noturnos. As atividades foram as mais variadas: aulas, ensaios, entrevistas,
bate papos, apresentaes e reunies, resultando em 120 horas de trabalho em campo com
vrios momentos registrados em udio, vdeo e anotaes no Caderno de Campo, como j foi
mencionado. Participei, em dezembro de 2004, da formatura dos alunos formandos/2004,
como pianista, acompanhando-os em obras camersticas. Tal situao propiciou um maior
estreitamento em nossas relaes, pois nos ensaios para preparar a apresentao tivemos
momentos importantes em que conversamos sobre vrios assuntos e, tambm, decidimos
juntos a concepo das obras que tocamos. Todos esses contextos contriburam para que eu
construsse uma noo da dinmica pedaggica do PVL e, tambm, ampliasse minha
percepo de como funcionam os projetos sociais no Rio de Janeiro.

2.3.2.3 A SELEO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA

No incio dessa etapa, assisti a quase todas as aulas para conhecer os alunos e os
professores. Fui me familiarizando com o repertrio musical e nesse processo constru
65

relaes que implicaram exercitar o olhar e perceber o outro na sua subjetividade. Essa
convivncia foi, ainda, me fornecendo ferramentas da gramtica e da linguagem necessria
para que eu estabelecesse uma comunicao fluente entre os alunos e os professores para,
ento, proceder ao recorte dos participantes da pesquisa, considerando os pressupostos da
etnometodologia. Isso foi possvel mediante uma convivncia cotidiana permeada pelo
compartilhar situaes de vrias naturezas que no se restringiam ao aspecto do ensino e
aprendizagem musical.
Assim, pude ir identificando qual seria o perfil dos participantes que poderiam
responder s questes da pesquisa. A partir desses pressupostos o recorte delimitou-se nos
alunos formandos de 2004 e nos dois grupos instrumentais Choro e MPB constitudos no
Projeto. Tal opo ancora-se no fato de que esses alunos estavam concluindo os trs anos de
curso e experienciado quase todo ciclo proposto para o curso e poderiam falar a partir de uma
vivncia mais sistmica do processo pedaggico. E, quanto aos dois grupos, considerei a
diversidade de alunos em diferentes aspectos, uma vez que os mesmos eram compostos por
alunos egressos, alunos em diferentes estgios no curso, tocando os mais diversos
instrumentos e repertrios, origem de moradia, diferentes religies e idade. Dessa forma, essa
diversidade pode ser justificada pela prpria natureza do grupo, no recaindo sobre o acaso ou
sobre a minha prpria arbitrariedade. Os participantes da pesquisa foram classificados de
acordo com o papel de cada um na ONG. O Quadro 2 sintetiza a delimitao desse recorte,
com seus respectivos grupos e nomes.
66

Quadro 2. Participantes da pesquisa do PVL.

O agrupamento do material coletado, organizado e categorizado para citaes nesse


trabalho resultou em quatro cadernos com as seguintesdenominaes:
CEVL1 Caderno de Entrevista 1 Alunos formandos 2004, Grupo de Choro,
Grupo de MPB 130 pginas;
CEVL2 Caderno de Entrevista 2 Diretor, coordenador, professores 157
pginas;
CEVL3 Caderno de Entrevista 3 Pessoas ligadas ao tema, externas ao Projeto
81 pginas;
CCVL Caderno de Campo 107 pginas.

2.3.2.4 AS ENTREVISTAS

Alm das observaes, registros em udio e vdeo, realizei entrevistas com os


participantes selecionados. Optei pela entrevista aberta que pressupe que o encaminhamento
67

da conversa seja determinado pelo seu prprio fluxo. Isso exige do pesquisador uma imerso
intensa no momento, catalisando todo o processo de interao desenvolvido anteriormente,
fruto de uma construo interpessoal que possa dar ao entrevistado um grau de confiana e
descontrao para que a conversa flua e ele fale sobre sua vida e seus processo de entender o
mundo. Todas as entrevistas foram marcadas pelo prazer expresso dos entrevistados em estar
participando e construindo comigo os dados da pesquisa com generosa disponibilidade.
Cada depoimento constitui-se como um caleidoscpio revelando vrias dimenses
pessoais, com perspectivas projetadas para vrios aspectos como o coletivo, o institucional, o
normativo, o pedaggico, o tico, o poltico, enfim, trata-se de um material multidimensional.
Dessa forma, os depoimentos, entrevistas e bate-papos puderam sustentar o processo reflexivo
de anlise e interpretao de uma experincia compartilhada entre a pesquisadora e os
participantes da pesquisa revelando mais do que trajetrias particulares nas formas de elaborar
o mundo prprio porque os atores ao narrarem suas histrias contaram como foi aprender a
tarefa coletiva e compartilhada de construir, testar, manter, alterar, questionar e definir uma
ordem sociocultural como prope Garfinkel (1957), citado por Coulon (1995a).

2.3.3 O PERCURSO METODOLGICO NA ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI


2.3.3.1 A COLETA DE INFORMAES

Os primeiros contatos com a Associao Meninos do Morumbi (AMM) foram feitos


com o coordenador da ONG, Flvio Pimenta, que me convidou para conhecer pessoalmente o
espao, as atividades e as pessoas. Em dezembro de 2002 fiz duas visitas ONG para
conhecer pessoalmente e sondar a possibilidade daquele espao fazer parte do campo
emprico da pesquisa. Na segunda visita, agendei um encontro com Ligia Pimenta, psicloga
e coordenadora de Projetos e Programas da AMM.
A partir dessas visitas e conversas com os coordenadores da ONG obtive a permisso
para realizar a coleta de dados. Muitas questes permearam nossas conversas para esclarecer
minhas intenes, o formato da pesquisa, a coleta de dados e a insero no campo. E, como se
tratava de uma pesquisa acadmica, esclareci que as questes de ordem tica e institucional
seriam seguidas de acordo com o que ficasse previamente estabelecido. Expus que minha
insero pretendia uma convivncia bastante intensa para entender a estrutura da ONG, seu
68

funcionamento e as prticas musicais. Com esse pano de fundo, meu objetivo era, como
educadora musical, entender as prticas musicais, a relao das crianas e jovens com a
msica em um espao alternativo de aprendizagem musical. A coordenao da AMM se
mostrou receptiva para a realizao de pesquisas acadmicas na instituio, solicitando-me o
cronograma, a proposta metodolgica com especificaes sobre as estratgias, tipos de
entrevistas. Outra providncia institucional foi a elaborao do documento de consentimento
emitido pela UFGRS para a AMM, formalizando minha insero nesse campo de pesquisa.
Na primeira visita tive oportunidade de conhecer a estrutura fsica do espao. Pude
observar algumas aulas de percusso, de violo, de dana e conheci vrios professores,
monitores, alunos. Assisti ao ensaio da Banda Show, o grupo que congrega todos os
participantes da AMM.
Minha insero definitiva para coleta de dados se deu de agosto a dezembro de 2004.
Mudei-me para So Paulo e como a pesquisa de campo no se restringe ao campo espacial do
Projeto, procurei considerar, do ponto de vista metodolgico, todas as variveis que implicam
o acesso ao objeto de estudo. Assim, morar na cidade de So Paulo, a maior cidade brasileira,
dominar meus receios nos diversos aspectos, teve incidncia no desenvolvimento da pesquisa.
Ir para So Paulo, aprender seus cdigos tcitos de segurana, dirigir pelos caminhos
que me levassem ao local do Projeto, enfrentar o medo de se perder, foi sendo superado com o
apoio logstico que Flvio e Ligia me dispensaram durante a minha insero. Constru laos
com as pessoas da AMM que contriburam para minha permanncia durante o tempo
programado para a realizao da coleta, aprofundando cada vez mais minha percepo.
Durante os cinco meses de trabalho em campo percebi a importncia de estar l, in
loco, pois muitas das situaes importantes para responder s questes de pesquisa emergiam
de configuraes no programadas e se amalgamaram no aqui e agora, ensejando recortes e
refinando minha capacidade de captar as questes de fundo, as subjetividades. Senti que
minha capacidade de observao crtica tinha dado um salto de qualidade e aos poucos o self
da pesquisadora se delineava, mediante as escolhas, anlise e interpretao dos fatos.

2.3.3.2 OS ASPECTOS DA OBSERVAO PARTICIPANTE

Durante a ltima fase da coleta, a observao participante conduziu minha insero e


o meu olhar. No incio todas as informaes se apresentavam sobrepostas e misturadas no
cotidiano das aes e atividades. Aos poucos, fui exercitando minha capacidade de filtrar,
69

separar e unir eventos de forma que comeassem a fazer sentido para as questes da pesquisa,
relacionadas ao processo pedaggico-musical. Fui me familiarizando com o repertrio, com a
linguagem dos participantes da pesquisa, estabelecendo relaes durante os momentos de
observao nas aulas, no ptio e espaos da ONG, convivendo com os alunos, professores e
funcionrios. Esse trnsito foi me abrindo fronteiras interpessoais para que eu tivesse critrios
claros para fazer o recorte necessrio para desenvolver a pesquisa.
Assim, pude ir identificando padres subjacentes a uma srie de aparncias, que
pudessem ser compreendidos mediante ao que accountable, isto , relatvel-observvel-
descritvel que remete a um sentido e, portanto, a um processo de interpretao (COULON,
1995a, p. 56). No caso da AMM, isso foi possvel aps dois meses em campo, quando realizei
a seleo dos participantes da pesquisa que seriam os mais indicados para responder s
questes que propus.
Dessa forma, foi o prprio campo que me indicou esse caminho e condicionou o que
observar e quem. Essa dinmica pode ser vista como um caminho tortuoso em que o
pesquisador se converte em um instrumento de re-coleta de dados e em sua interpretao e o
papel que adota definira a forma da parte do mundo social que estuda, assim como o tipo de
dados que obtm e sua interpretao (CUESTA BENJUMEA, 2003).
A reflexo vista dessa forma, implica que investigar no aplicar simples
procedimentos ou seguir indicaes tericas, mas um ato interpretativo, produto da
interao com o mundo social. E foi atravs da reflexo sobre as interaes sociais presentes
naquele contexto, do qual eu me considerei inserida, que realizei o recorte para observar e
entrevistar, especificamente, aquele grupo selecionado. No foco do processo pedaggico-
musical da ONG se destacava as atividades musicais de percusso, cujo carter se apresentou
eminentemente coletivo. Esses aspectos contaram para que eu pudesse construir os critrios
no quais me basearia para proceder ao recorte dos participantes da pesquisa. Dessa forma, o
critrio para essa seleo foi escolher professores, monitores, alunos e funcionrios que
estivessem ligados com atividade de percusso em nvel iniciante e intermedirio e
participassem da Banda Show, de preferncia desde seu incio.
Ser musicista foi um diferencial positivo da insero nesse contexto, pois tnhamos
um vocabulrio idiomtico e musical em comum que resultava em bate-papos que me
forneciam pistas importantes sobre as prticas musicais, aspectos da vida pessoal e
profissional dos integrantes que, no comeo, eu abordava ao acaso. Esse aspecto foi de
fundamental importncia na ltima fase da coleta quando pude observar as aulas especficas
dos monitores e professores selecionados como participantes da pesquisa. Inclusive, me
70

permitindo participar de sesses de prtica instrumental nas aulas, onde pude aprender com
eles, passando pelos processos de ensino e aprendizagem que eles conduziam.
As indagaes me levavam aos aros mais internos da ONG, nos diferentes contextos:
institucional, histrico, sociocultural e de ensino e aprendizagem musical. Ao ver, assistir s
aulas, ver os meninos e as meninas aprendendo, brincando no ptio, se achegando perto de
mim quando via a cmera fotogrfica ou a filmadora, curiosos e mostrando muita alegria por
estar ali era estimulante para mim. Tudo me fazia refletir e contribua para construir o
desenho metodolgico da pesquisa.
Ficava claro para o mim o carter emergente da pesquisa e que a construo da
persona da pesquisadora ia se desenvolvendo imerso nos mltiplos e sobrepostos processos
sociais aos quais eu estava vivenciando. Como ressalta Cuesta Benjumea (2003): Los
investigadores cualitativos reconocen su presencia, tratan de comprenderla y explicar sus
efectos... La reflexividad contribuye a la validez y desde el punto de vista del interaccionismo
simblico, el proceso reflexivo dota al investigador de un self indagador. Neste ponto eu
comeava a entender, na prtica, os pressupostos da etnometodologia, um dos baluartes que
me orientou para os procedimentos da coleta de dados no campo emprico.
Ao me sentir mais integrada, pude abordar os participantes da pesquisa com mais
naturalidade e, a cada dia, os sorrisos, olhares e acenos dos integrantes da AMM funcionavam
como cdigos que representavam o acolhimento e que me identificavam como uma pessoa
participante do cotidiano deles. Essa condio ampliou-me o ngulo para realizar os registros em
udio e vdeo, considerando que muitas situaes emergiam, como j mencionei, no aqui e agora,
no contexto mutatis mutandis prprio da caracterstica movedia das ONGs. Minha cmera e meu
microfone sempre ativados para registrar o que eu considerasse importante, a qualquer momento,
ficou incorporado na minha identidade de pesquisadora, no causando estranhamento aos
integrantes da ONG. Do ponto de vista metodolgico foi importante, pois se tratou de um
amadurecimento, uma vez que no incio da coleta eu no conseguia essa mobilidade.

2.3.3.3 A SELEAO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA

A partir da construo intersubjetiva pude realizar a seleo dos participantes que


pudessem iluminar as questes da pesquisa. A seleo se processou a partir da interlocuo
71

com as pessoas professores, monitores, alunos, funcionrios que no fluxo da minha


insero me contavam sobre suas experincias vividas na AMM fornecendo informaes
importantes sobre como efetuaram e elaboraram seus processos de ensino e aprendizagem,
suas decises, trazendo no bojo os aspectos histricos, socioculturais e funcionais. Dessa
forma, os depoimentos, entrevistas e bate-papos puderam sustentar o processo reflexivo de
anlise e interpretao de uma experincia compartilhada entre a pesquisadora e os
participantes da pesquisa. O Quadro 3 sintetiza a delimitao desse recorte.
A organizao do material coletado, organizado e categorizado para se proceder s
citaes nessa pesquisa resultou em cinco cadernos com as seguintes denominaes:
CE1MM Caderno de Entrevistas 1 Coordenadores professores monitores
ex-alunos 180 pginas;
CE2MM Caderno de Entrevistas 2 Funcionrios, ex-alunos funcionrios ex-
alunos, aluno - 75 pginas;
CCMM - Caderno de Campo 78 pginas;
CCoMM Caderno de correspondncias por e-mails 48 pginas.

Quadro 3. Participantes da Pesquisa da AMM.


72

2.3.3.4 AS ENTREVISTAS

As entrevistas foram de carter aberto e procurei, enquanto condutora do


depoimento, me colocar na condio de interlocutora capaz de me comunicar, de provocar
questes de ordem pessoal, entender expresses coloquiais e acompanhar os relatos de uma
forma fluente. Tal processo foi fruto da observao das propriedades formais da linguagem
dos participantes da pesquisa, baseada na anlise de conversao proposta na
etnometodologia. Trata-se de nossa competncia social para conversar com nossos pares, de
forma que torne compreensveis os comportamentos e a lgica do pensamento na fala,
levando em conta o contexto, as propriedades do raciocnio prtico e das aes prticas. O
tempo extensivo no campo proporcionou-me essa possibilidade.
As entrevistas se constituram em depoimentos que mostram que, alm de contar
suas trajetrias particulares, os participantes da pesquisa expressam formas prprias de
elaborar o mundo, relacionadas a grupos sociais nas dimenses cognitiva, afetiva, tica e
esttica. Essa perspectiva me permitiu considerar a inter-relao entre natureza da
intersubjetividade e a constituio social do conhecimento (HERITAGE, 1999, p. 323).
Conduzir as entrevistas foi um exerccio de ouvir contar para aprender coisas da realidade
dos entrevistados e relacionar com as possibilidades e questes da pesquisa. A realizao das
entrevistas, recheadas de fragmentos atos da histria de vida de cada um, mostrou o que
potencialmente possvel em determinada sociedade ou grupo (ALBERTI, 2004, p. 23), alm
de revelar aspectos fundamentais para a compreenso das questes da pesquisa relacionadas
ao processo pedaggico-musical na ONGs..
As entrevistas, sempre em forma de narrativas, foram marcadas por momentos
densos principalmente nos trechos em que os participantes da pesquisa resgatavam de suas
histrias, os mundos vividos por eles, os sentidos singulares que expressam suas lgicas
particulares de argumentao. Esse material ao ser amalgamado no processo de anlise e
interpretao buscou:

Superar uma mera colagem de fragmentos de textos mesclados ad hoc


implica[ando] o pesquisador [...] penetrar no complexo conjunto de smbolos que a
pessoa usa para conferir significado a seu mundo e vida, alcanando uma descrio o
suficientemente rica de onde obtenha-se sentido. (BOLVAR BOTA, 2002, p. 25;
traduo nossa). 19

19
Superar el mero collage de fragmentos de textos mezclados ad hoc implica que el investigador debe penetrar
en el complejo conjunto de smbolos que la gente usa para conferir significado a su mundo y vida, logrando una
descripcin lo suficientemente rica donde obtengan sentido.
73

Durante a coleta, fui construindo caminhos que me permitiu um trnsito livre pela
instituio o que me concedeu um significativo acesso a situaes bastante internas do
cotidiano da ONG. Pude, dessa forma, presenciar a encontros pessoais de Ligia Pimenta com
participantes para tratar de assuntos problemticos, entrar em sala de aula, a qualquer
momento, sem ter que agendar, assistir a ensaios e reuines com os pais dos participantes e
delegaes externas. Ligia reconhecia o meu papel de pesquisadora e construmos, mediante
conversas, depoimentos e reflexes, uma relao que resultou em um significativo diferencial
na qualidade do material coletado. Em nosso ltimo encontro, gravado, ela expressou como
percebia esse material que eu tinha nas mos, elaborando uma anlise do processo
metodolgico historicamente localizado:

O que voc leva da instituio, no so apenas depoimentos. Voc leva pedaos de


pessoas daqui. Foi isso que voc fez. Voc entrou na vida dessas pessoas, voc
transitou na vida da instituio, na vida das pessoas que esto aqui, que cresceram
aqui ou que tenham um papel profissional. Ento, na verdade voc est levando
prolas preciosas. Porque as pessoas no se abrem, no se colocam, no mostram a
vida, no mostram a dor, no mostram as dificuldades, para qualquer pessoa, de
qualquer jeito. Ento voc, tambm, construiu isso pra que voc pudesse de alguma
forma, ser merecedora. E eu acho que ter acesso a uma trnsito como voc teve aqui,
est ligado a uma postura da instituio de mostrar o que faz e, por outro lado, tem a
ver com a sua postura, como que voc lidava com as informaes, com as pessoas,
com os vnculos. Eu acho que isso, com certeza, acaba gerando um compromisso
mtuo, uma confiana mtua que, de alguma forma, define que tipo de acesso, que
tipo de trabalho, voc ir desenvolver, ou no, naquela instituio, naquele
momento. Eu tenho uma alta expectativa do produto do seu trabalho. (CEMM_1, p.
40, Lgia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

O percurso metodolgico me conduziu a uma intensa reflexo de como olhar,


entender e penetrar na complexidade do campo emprico. Nesse processo, foi-se
desenvolvendo uma perspectiva que se constituiu mediante o estabelecimento de conexes
com as diversas dimenses que eu percebia estar acontecendo, sobrepostas e relacionadas com
o fazer musical dos participantes das ONGs observadas. Buscar a compreenso do processo
pedaggico-musical instaurado nas duas ONGs ensejou uma intensa reflexo de como olhar,
entender e penetrar no multicontexto das duas instituies. Tal processo, envolveu tomada de
posies, propiciando o questionamento e o estudo de carter microssocial, em profundidade,
para a elucidao das duas questes principais: o que so aquelas ONGs? e como se
desenvolve o processo pedaggico-musical ali?. Para responder a essas questes, a coleta de
informaes e a varredura da literatura envolveu o campo da educao musical, enfatizada na
vertente sociocultural da msica.
CAPTULO 3

O PROJETO VILLA-LOBINHOS: UM ESTUDO DE CASO

3.1 O CONTEXTO INSTITUCIONAL


3.1.1 A ORGANIZAO DO PROJETO VILLA LOBINHOS

O Projeto Villa Lobinhos (PVL) foi iniciado em 2000 como uma das aes ligada
ONG Viva Rio. A instituio VIVA RIO uma associao civil, sem fins lucrativos,
filantrpica, de carter assistencial, social e cultural. Seu objetivo valorizar positivamente a
imagem do Rio de Janeiro e do Pas interna e externamente. Segundo texto disponibilizado
em site, a ONG Viva Rio:

mobiliza indivduos, associaes e empresas para, juntos, construrem uma


sociedade mais justa e democrtica [...] nos ltimos sete anos vem transformando
necessidades sociais em oportunidades de ao, promovendo uma cultura de
solidariedade e de paz. Hoje est presente em cerca de 350 favelas e comunidades
pobres da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, investindo na educao, no
desenvolvimento e na superao da violncia (VIVA RIO, 2003).

O PVL tem por objetivo promover a educao musical com a perspectiva artstica,
cultural e tcnica para adolescentes, entre 12 e 20 anos, residentes em diversas comunidades
da periferia urbana e favelas do Rio de Janeiro. O Projeto oferece uma formao musical por
meio de aulas sistemticas, com uma proposta curricular modulvel, com vistas
profissionalizao desses jovens como msicos.
O Projeto tem a direo geral do violonista Turbio Santos, a coordenao
pedaggica do flautista e educador musical Rodrigo Belchior e superviso logstica de Greyce
Pimentel. A administrao das questes jurdicas e burocrticas so responsabilidades da
ONG Viva Rio, com o apoio do Instituto Moreira Salles e do Museu Villa-Lobos, alm do
patrocnio de amigos do projeto, denominados de padrinhos e madrinhas dispostos a
adotar os jovens. Desta forma o PVL financiado pelo mecenato privado de pessoas fsicas
que investem em projetos culturais e educacionais alm de uma verba doada pessoalmente por
Joo Salles, o idealizador do Projeto, juntamente com seu filho Joo Moreira Salles e o
presidente da ONG Viva Rio, Rubem Cesar Fernandes.
76

Desde 2000, a coordenao do PVL realiza durante o ms de janeiro, no Museu


Villa-Lobos desde 2001, um encontro de duas semanas com mais de uma centena de jovens
adolescentes provenientes de vrios projetos sociais da regio metropolitana do Rio de Janeiro
que incorporam prtica musical em suas atividades. Dessa forma os jovens j vm com
interesse na prtica musical, j tocam, geralmente de ouvido, algum instrumento musical ou
cantam, mas no tm a oportunidade de ter uma formao mais aprofundada. Durante o
encontro de vero eles tm oportunidade de ter aulas de violo, cavaquinho, iniciao
musical, instrumentos de percusso, canto coral, instrumentos de sopro e cordas, prtica de
conjunto e assistir a palestras sobre msica brasileira.
Segundo o critrio do Projeto, so selecionados a cada ano, nove jovens que tero a
oportunidade de uma formao especfica no instrumento de sua escolha, alm das aulas
complementares de teoria musical, informtica e apoio pedaggico. Ao todo, o PVL pode
atender 27 alunos, 9 em cada turma, considerando sua durao de trs anos. O nmero de
participantes do Projeto permite que as turmas tenham uma dinmica que possibilita um maior
convvio e a troca de experincias, incidindo no fortalecimento das relaes sociais e tambm
no sentimento de pertencimento dos jovens em relao ao Projeto. Esses alunos recebem aulas
de percepo musical, harmonia, arranjo, instrumento principal e completar, orientao
escolar e prtica de conjunto e prtica de orquestra.
A prtica de conjunto, uma das propostas do Projeto, tem como resultante a
Orquestra Villa Lobinhos, composta por uma mdia de quarenta participantes, regida pelo
maestro Srgio Barboza, com ensaios semanais aos sbados pela manh e integrando todos os
alunos e ex-alunos do Projeto. O repertrio abrange diferentes estilos e gneros da msica
erudita e popular. A Orquestra foi uma forma encontrada pela coordenao do Projeto para
acolher os alunos egressos que terminam o terceiro ano. Os alunos vm se apresentando ao
pblico a convite de eventos beneficentes em salas de concertos no Estado do Rio de Janeiro e
fora do Estado, em mini-concertos didticos realizados no Museu Villa-Lobos, alm de
diversos espaos como escolas, ONGs, empresas pblicas e privadas, tendo um significativo
destaque na mdia regional e nacional.
Uma outra forma de prtica de conjunto pode ser conotada como a organizao de
grupos musicais espontneos cuja formao acontece pela iniciativa dos prprios alunos, que
escolhem seus integrantes, repertrio, dias de ensaio. Segundo Turbio Santos, o objetivo
desse trabalho desenvolver no aluno a capacidade de improvisar, arranjar, realizar novas
descobertas, e principalmente questionar o prprio trabalho, despertando o pensamento
criativo.
77

Dessa prtica j se constituram o Grupo Isto Brasil de MPB e o Grupo de Choro,


caracterizados pelo interesse nesses estilos e cuja configurao foi constituda a partir da
juno dos instrumentos musicias de interesse de cada membro do grupo. Outros grupos
musicais so constitudos pontualmente para atender as especificidades das apresentaes
para as quais so convidados. As apresentaes e os ensaios constituem-se, tambm, um
momento de aprendizagem considerando que os alunos exercitam suas escolhas de repertrio,
a capacidade de improvisar, de ler partituras e tocar em diferentes contextos.
Turbio e Rodrigo apontam alguns cuidados no Villa Lobinhos, como, por exemplo,
o acompanhamento escolar e o conhecimento das condies de vida dos alunos que podem
apresentar contextos muito dspares:

Tem um garoto que era pivete de rua, abandonado completamente, sem um parente
no planeta terra, entende? Tem o outro que pobrezinho, mora l no ltimo subrbio
do Rio de Janeiro, mas tem famlia constituda, certinha, no tem dinheiro, entende?
Ento de repente, esses dois, so dois garotos diferentes, voc tem que moldar a
escola segundo eles, pra que eles realmente levem resultados...(CEVL_2, p. 8,
Turbio Santos, diretor geral, 02/06/2004).

Sobre as trs desistncias ocorrridas durante esses quatro anos de implantao do


PVL, Turbio destaca que uma foi porque o aluno optou pelo crack, outra porque o aluno
vivia uma vida complicada e era um fora da lei, e a terceira, porque o aluno realmente no
conseguiu seguir o ritmo do Projeto e desistiu. E, ele prprio analisa: Mas isso da em 4 anos
foram trs perdas em 4 turmas, se voc considerar que cada turma de nove alunos, quatro
vezes nove igual a 36, perdemos trs, menos que 10%. (CEVL_2, p. 13, Turbio Santos,
diretor geral, 02/06/2004).

3.1.2 A CONFIGURAO DO ESPAO

O PVL localiza-se na
Rua Marques de So Vicente, n.
508, na Gvea. Trata-se da antiga
residncia da famlia Moreira
Salles que foi cedida para as
atividades do Projeto. A Casa da
Gvea (CG) como todos a
denomina, fica escondida por
78

muros altos e os portes s abrem aps o acesso eletrnico. Trata-se de uma casa grande, de
arquitetura arrojada, marcando um estilo de viver com espao e conforto, que foi adaptada
para as atividades do Projeto. Possui seis cmodos espaosos: quatro quartos, uma grande sala
em trs ambientes, cozinha, terrao, piscina, churrasqueira e trs banheiros. toda ajardinada
e se constitui em um ambiente bastante aconchegante e agradvel.
O fato da CG se localizar na Gvea, um bairro de classe alta na cidade do Rio de
Janeiro, pode ser emblemtico pois est edificada ao lado da Favela da Rocinha, uma das
maiores da cidade, representando concretamente a convivncia com a desigualdade social. A
proximidade de dois bairros marcada por um ndice de Desenvolvimento Humano (IDH)
dos mais discrepantes da cidade. Ao lado da CG encontra-se instalado o Instituo Moreira
Salles, um complexo cultural de alto padro que oferece atividades de cinema, museu de
fotografia, banco de dados da obra completa de Pixinguinha, entre outros acervos de arte e
cultura de excelente nvel editorial e artstico.
Todos os cmodos da casa foram adaptados para as aulas: lousas com pentagrama
nas paredes, vrios instrumentos de percusso, uma mini-biblioteca e alguns pianos. uma
estrutura fsica que comporta o nmero de alunos, em torno de 27, como prope o Projeto,
mas tem uma grande sala para atender aos quarenta integrantes da Orquestra Villa Lobinhos.
As salas so equipadas com instrumentos musicais utilizados para as aulas. A sala
maior dividida em dois ambientes, com aproximadamente 50 m2; tem um piano de meia
cauda, marca Petroff, e o local onde se ministram as aulas em grupo como percepo,
ensaios da Orquestra Villa Lobinhos, ensaios dos grupos instrumentais e as apresentaes
musicais internas. Em outro cmodo encontram-se duas baterias e os instrumentos de
percusso como pandeiros, tan-tan, tringulos, afox, cuca, atabaques, entre outros. Na sala
de administrao esto dispostos dois computadores com programas musicais instalados para
os alunos utilizarem, uma biblioteca com publicaes sobre histria da msica, partituras e
CDs. Tem tambm uma TV 20 polegadas com vdeo e DVD e aparelho de som. Uma outra
sala, com dois pianos de armrio disponveis, utilizada para aulas de flauta transversal,
violino, clarineta e saxofone.
O espao constitui um fator determinante na dinmica das aulas e dos encontros, pois
no h tratamento acstico, ouve-se sons sobrepostos quando acontece mais de uma aula, ao
mesmo tempo. Tambm, promove um maior cruzamento das pessoas que integram o Projeto,
favorecendo uma aproximao fsica, bate-papos e encontros musicais inesperados.
79

A cozinha utilizada como entrada dos alunos e funcionrios constituindo-se um


ponto de encontro. As conversas descontradas dos participantes do Projeto emergiam com
freqncia naquele espao, onde se servia lanches para todos os alunos.

A configurao do espao, uma casa, se apresenta como um dos fatores


determinantes da dinmica das relaes sociais, dos encontros, das conversas, das
brincadeiras e, at mesmo, dos momentos de lazer proporcionado pelo espao com a piscina e
churrasqueira, disponveis de acordo com a agenda das atividades.
Pode-se perceber que existe uma afinidade entre os alunos com muita movimentao
espontnea no sentido de promover a msica. Esse espao proporciona um ambiente social
muito propcio para se fazer, se aprender e para se ensinar msica. Para Turbio Santos:

...a msica cria ambiente para a convivncia e a convivncia cria ambiente para mais
msica. um ciclo. Isso acontece muito l no Villa Lobinhos e voc deve ter visto
que eles mesmos criaram grupos...Grupo de choro, grupo de... e agora esto at
criando um grupo de jazz, de metal... (CEVL_2, p. 18-19, Turbio Santos, diretor
geral, 30/06/2004).
80

3.1.3 A ESTRUTURA INSTITUCIONAL

O PVL trata-se de um projeto social que possui uma autonomia no que concerne a
sua gesto acadmica, financeira e logstica mas, sua natureza jurdica est ancorada nas bases
legais e estaturias da ONG Viva Rio. Joo Moreira Salles, membro do Conselho do PVL,
esclarece:

No uma ONG, um projeto abrigado dentro de uma ONG, quer dizer, quem
administra o projeto o Viva Rio. No um projeto do Viva Rio, um projeto que
nasce de uma conversa minha com o Rubem Csar, um projeto que se chama Villa
Lobinhos e que precisa ser administrado por algum. O que significa administrar?
Gesto de recursos, pamento de vale transporte, funcionamento da casa, tudo isso. O
dia-a-dia do projeto gerido pelo Viva Rio. Ento, ele um projeto que est
aninhado dentro de uma ONG, mas ele no em si uma ONG (Joo Moreira Salles,
entrevista em 01/10/2005).

Pode-se atribuir essa constituio hbrida e especfica ao germe da concepo do


PVL que, como relata Joo Moreira Salles, vem de um desejo de seu pai, Walther Moreira
Salles de fazer uma contribuio pessoal para o projeto social:

Eu digo pessoal porque ele no queria que fosse uma contribuio atravs de pessoa
jurdica, do banco ou de qualquer empresa que ele tivesse, ele queria que fosse uma
contribuio pessoal em nome dele. Por que isso? Porque ele achava que havia essa
idia que ele considerava equivocada de que no Brasil as pessoas, digamos a elite
financeira brasileira, a elite econmica brasileira, no tem um compromisso com o
pas etc e tal, e de fato isso verdade...e para tanto papai resolveu fazer um gesto
que na poca era de um valor muito importante. (Joo Moreira Salles, entrevista em
01/10/2005)

Dessa forma, questes ligadas ao aspecto jurdico do PVL esto amparadas no


Estatuto da ONG Viva Rio o qual prev a participao de associaes civis interessadas no
desenvolvimento do objetivo social da instituio, previsto no seu Artigo 3. que destaca o
carter social com foco nos processos de desigualdade e excluso social. A mobilizao da
sociedade civil nos seus diversos segmentos, privado, pblico e no governamental um dos
propsitos da ONG Viva Rio:

Artigo 3 - A Instituio se destinar s seguintes finalidades:


a) - Promover eventos, encontros e projetos que aproximem os vrios setores da
sociedade do Rio de Janeiro e do Pas em torno de objetivos comuns;
b) - Mobilizar os diferentes setores da sociedade civil organizada para a criao e o
desenvolvimento de aes que visem valorizar a imagem do Rio de Janeiro e do
Pas;
c) - Apoiar projetos sociais que visem melhoria da qualidade de vida no Rio de
Janeiro e no Pas;
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d) - Promover e realizar publicaes de trabalhos escritos e audiovisuais, seminrios,


cursos, debates, conferncias e congressos sobre a qualidade de vida no Rio de
Janeiro e no Pas visando maior conscientizao e participao de cada cidado;
e) - Promover e apoiar pesquisas que contribuam para a superao dos problemas do
Rio de Janeiro e do Pas;
f) - Realizar trabalho junto opinio pblica, objetivando despertar sentimentos de
responsabilidade pelo bem comum e de generosidade para os menos favorecidos;
g) - Dedicar ateno especial aos problemas de segurana no Rio de Janeiro e no
Pas, buscando junto aos rgos do governo e sociedade formas pacficas e legais
de fortalecimento dos direitos da cidadania;
h) - Buscar patrocnio para projetos com a comercializao de publicaes,
camisetas e outros materiais destinados divulgao e informao sobre os trabalhos
da Instituio, podendo ainda, participar de empresas comerciais, de prestao de
servios, de venda de publicidade em sua Home-Page e demais produtos Fair Trade
Brasil comercializados pela Instituio, desde que o produto de tais
comercializaes reverta integralmente para realizao de novos trabalhos ou
continuao dos j existentes;
i) - Promover cursos, sistemas de formao, seminrio e outros mtodos de
capacitao para o trabalho de crianas, jovens e adultos em situao de risco social;
j) - Desenvolver empreendimentos geradores de emprego e renda para populao
desassistida;
k) - Atender a demanda de projetos sociais nas diversas reas da engenharia,
arquitetura e paisagismo de nossa cidade, em relao a melhor qualidade de vida de
nossa populao, principalmente, as em situao de risco; e,
l) - Representar e defender os interesse de cada membro de nossa sociedade, no
Estado e/ou em qualquer parte do pas, de forma coletiva e/ou individual, em aes
objetivas, em Juzo ou fora dele, com relao violncia pela falta de segurana
pblica e pela falta de estabilidade social e econmica, inclusive, no direito do
consumidor, visando sempre uma melhor qualidade de vida da populao em um
todo (Rio de Janeiro - RJ, 28 de agosto de 2000; VIVA RIO, 2005).

A necessidade do Projeto ter um vnculo com uma pessoa jurdica revela a


importncia da burocracia e do papel institucional para se imprimir legalidade e legitimidade
nos processos ou iniciativas, quer seja de carter pessoal ou institucional, envolvendo
segmentos da sociedade civil. Tais aes no podem prescindir de aspectos formais para gerir
os diversos aspectos de ordem legal de uma organizao social. Em relao burocracia na
gesto do PVL destaca-se a solicitao de um documento aos pais que autorize viagens,
deslocamentos e a veiculao da imagem dos alunos na mdia; a necessidade de um registro
no Projeto para legitimar a participao de menores de idade em apresentaes musicais;
registro de entrega de passes de nibus cada aluno recebe todos os passes necessrios para o
seu deslocamento para o Projeto e para as apresentaes; registro de entrega da cesta bsica,
no valor de R$ 35,00 mensais.
A estrutura funcional para a manuteno do Projeto consta de funcionrios,
professores e coordenadores representada no Quadro 4. Trata-se de estrutura enxuta que
congrega pessoas cujas funes esto voltadas para atender s atividades desenvolvidas no
PVL, sintetizadas no organograma a seguir:
82

Quadro 4. Organograma do Projeto Villa Lobinhos (PVL).

O corpo institucional do PVL, composto do Conselho, Coordenadores, professores e


funcionrios est sintetizado como mostra o Quadro 5.
83

Quadro 5. Estrutura funcional do PVL.

O corpo de professores mvel, pois depende da escolha dos alunos que so


selecionados. A cada ano, dependendo das preferncias dos alunos so contratados novos
professores ou dispensados, caso no haja aluno para determinado instrumento. Rodrigo
Belchior coordena as vrias atividades do Projeto, o que exige uma versatilidade e
conhecimento para providenciar os encaminhamentos na gesto da instituio. Foram vrios
os momentos em que pude perceber sua dedicao e firmeza em questes relacionadas
disciplina, burocracia, didtica, organizao, que descreverei a seguir. Rodrigo viveu sua
infncia e sua adolescncia no Morro Santa Marta onde comeou a estudar msica em
projetos sociais e, tambm, iniciou sua atividade como educador musical. Ingressou na
UNIRIO e em 2002 concluiu o curso de Licenciatura em Msica. flautista, mas tambm
84

toca guitarra, violo, instrumentos de percusso, canta, revelando uma versatilidade musical.
Para Rodrigo, administrar o Villa-Lobinhos como administrar um time:

Estou tendo contato com um time que, no s de professores, mas como tambm
de alunos, monitores. Temos monitores dentro do projeto e controlar,
principalmente, as apresentaes... eu tenho que estudar a minha agenda e,
geralmente eu fao isso no domingo, saber o que est acontecendo, porque seno
cara, eu esqueo de algumas coisas...mas muito gostoso, muito bom! (CEVL_2, p.
52, Rodrigo Belchior, coordenador, 06-12-2004).

Rodrigo acumula muitas funes no projeto ligadas a diferentes dimenses como: a


pedaggico-musical, a burocrtica, a psico-pedaggica, ou seja, dimenses de ordem objetiva
e prtica e, tambm, de ordem subjetiva no mbito das inter-relaes. Esta questo relaciona-
se tambm com as diversas dimenses presentes na gesto de um projeto social cujos aspectos
tm especificidades que lhe imprimem uma identidade. O nmero de participantes possibilita
ao Rodrigo gerenciar questes que, certamente, impem a ele sobreposies de atividades,
responsabilidades e tomadas de decises.
Como coordenadores do Projeto, Rodrigo e Greyce tm a responsabilidade e o
compromisso de acompanhar o que acontece com os participantes. Assim, toda dvida,
problema ou qualquer acontecimento deve ser comunicado. Esse procedimento revela as
dimenses que se entrelaam quando um aluno entra para o Projeto. No se trata,
exclusivamente, de ensinar e aprender msica; os ensaios, as apresentaes, a famlia, a
escola, os encontros, os trajetos de ida e volta da casa para o Projeto, os grupos que se
formam, as viagens, as ausncias e as presenas, tudo isso parece circunscrever o
envolvimento de todos. Pode-se inferir que a partir da, as relaes, as subjetividades e
intersubjetividades, o mundo social de cada um passa a se configurar na totalidade do Projeto.

3.1.4 A IMPLANTAO E OS RECURSOS FINANCEIROS

Os recursos que mantm o PVL so de natureza privada cujo investimento inicial foi
originado de uma doao feita por Joo Salles:

Eu acho que papai era exceo. Existem vrias outras, mas ao contrrio por exemplo
do que acontece nos Estados Unidos - em que a pessoa que tem sorte de com seu
trabalho e seu empenho realizar um sonho, ficar rico etc e tal, tem a necessidade de
devolver parte disso para a comunidade em projetos sociais, fundaes e filantropias
- essa no uma idia brasileira, infelizmente. E, portanto, papai queria - estava
85

cansado de ouvir essa historia de que as elites so egostas e etc e tal - resolveu fazer
um gesto que, na poca, foi de um valor muito importante (Joo Moreira Salles,
entrevista em 01/09/2005).

De acordo com Bolvar (2002) o sentido de uma ao, o que lhe faz inelegvel, s
poder vir dado pela explicao narrada pelo agente sobre as intenes, motivos e propsitos
que tem para ele em curto prazo, e mais amplamente, no horizonte de sua vida1. Partindo
desse pressuposto o depoimento de Joo Moreira Salles revela fatos significativos para a
compreenso do sentido das aes que amalgamaram o incio do Projeto no que diz respeito
concepo, estrutura jurdica e institucional, localizao, enfim, sua morfologia. O desejo de
investir uma quantia de seu patrimnio pessoal em uma estrutura que tivesse autonomia
constitui certas caractersticas do PVL, a partir das reflexes sobre o papel das ONGs na
cidade do Rio, envolvendo Walther Salles, Rubem Cesar Fernandes2, presidente da ONG
Viva Rio e o prprio Joo Moreira Salles. Pensou-se em um trabalho voltado para a educao
musical diferenciado das inmeras ONGs que vinham se constitundo naquele momento,
buscando uma concepo especfica. Dessa forma, uma das vertentes para se estruturar o PVL
partiu da premissa de se constituir um projeto social que no massificasse o conhecimento,
mas que, ao contrrio, privilegiasse indivduos de comunidades pobres que demonstrassem o
desejo de estudar musica e que pudessem, assim, ter uma formao aprofundada, como
esclarece Joo Moreira Salles:

...e eu no tinha idia. Ento, fui conversar com o Rubem Cesar, da [ONG] Viva
Rio, e eu disse que queria doar na poca, acho que importante dizer o valor, j que
uma tese de doutorado, eram 600 mil dlares que correspondiam a 600 mil reais
porque era na poca do dlar um pra um... o que no pouco dinheiro no Brasil. E
eu e o Rubem tivemos [algumas] conversas, alguns almoos e jantares e o Rubem
me apresentou um conceito que eu gostei, que o conceito da excelncia. Ele me
dizia o seguinte: olha, no Rio j existem uma srie de projetos sociais que so
muito bons e muito importantes, que massificam o conhecimento, seja o
conhecimento acadmico, seja o conhecimento esportivo, seja o conhecimento
cultural. Tem-se projeto pra 100 crianas jogarem futebol, projetos para 100 crianas
aprenderem msica, projetos de bal que massificam o bal nas comunidades
carentes e tal, e todos esses projetos so fundamentais e importantes. O que faltava
na avaliao do Rubem era um projeto que fizesse e que complementasse o projeto
de massificao, ou seja, que fosse um projeto que gastasse mais por aluno e
portanto que tivesse menos alunos. (Joo Moreira Salles, 01/09/2005)

1
El sentido de una accin, lo que la hace inteligible, slo podr venir dado por la explicacin narrativa del
agente sobre las intenciones, motivos y propsitos que tiene para l a corto plazo, y ms ampliamente, en el
horizonte de su vida.
2
Rubem Cesar Fernandes um dos fundadores da ONG Viva Rio, antroplogo, mestre em Filosofia pela
Universidade de Varsvia (Polnia) e PhD em Histria do Pensamento Social pela Universidade de Columbia
(EUA). Desde 1995 secretrio-executivo do ISER (Institutos de Estudos da Religio). autor de Vocabulrio
de Idias Passadas Ensaios sobre o fim do socialismo (1993), Romarias da Paixo (1994), Privado, porm
Pblico (1996) e Novo nascimento os evanglicos em casa, na igreja e na poltica (1998, com outros
autores). No ano de 2000 recebeu a Medalha Pedro Ernesto.
86

A partir dessa anlise, Rubem Cesar Fernandes sugeriu que se montasse um projeto
que abrigasse poucos meninos e com msica, argumentando que existe uma vitalidade natural
da cidade do Rio de Janeiro em torno da msica, e se

aproveita uma coisa que j existe, que viceja pela cidade, que desejo de fazer
msica e voc tenta escolher meninos e meninas de uma determinada faixa etria e
a nossa faixa etria de 10, 11 anos at 17 anos que no tenham condies, enfim,
de aprender msica com professores particulares, universidades privadas [...] e que
ento se de a esses alunos a possibilidade de uma formao que eles teriam se
tivessem nascido com dinheiro, com posses e com possibilidades de acesso a tudo
que ns que temos dinheiro podemos ter (Joo Moreira Salles, entrevista em
01/09/2005).

Assim, o PVL foi concebido para atender a esse perfil de aluno que em um projeto
de massificao no teria condies de ter uma formao musical sistemtica e aprofundada.
E, ressalta que o paradigma da excelncia na qualidade do ensino importante para as
comunidades at por uma questo simblica (Joo Moreira Salles, entrevista em
01/09/2005).
Os princpios ticos e a administrao dessa verba regida pelo estatuto da ONG
Viva Rio. Desta forma o Projeto Villa-Lobinhos financiado pelo mecenato privado de
pessoas fsicas que investem em projetos culturais e educacionais. Sobre a instituio desse
formato, a entrevista de Joo Moreira Salles bastante esclarecedora que sublinha como foi
pensado a estabilidade dos recursos financeiros para manter o Projeto:

Tem um conceito de uso dos recursos que importante dizer: aos 600 mil reais
foram acrescentados outros 400 mil reais de doaes familiares, de papai e de meus
irmos. Isso d ao Villa Lobinhos um patrimnio de um milho de reais. Esse
patrimnio nunca diminui, a gente nunca entra nesse patrimnio que gera essa
receita da aplicao financeira e o projeto vive da aplicao financeira desse
principal. Digamos assim: descontando a desvalorizao e a inflao, ento, sempre
ter esse um milho de reais, mais a inflao e viver sempre da aplicao, da receita
da aplicao financeira desse recurso, o que d para manter nove alunos. No
segundo ano, a gente buscou seguindo o mesmo princpio de papai de no querer
que esse projeto fosse apoiado por empresas e sim por pessoas fsicas um grupo de
pessoas que, comigo frente, chamamos de padrinhos, pessoas que, s vezes
sozinhas ou em grupo, patrocinam um menino, um aluno ao longo de trs anos. Hoje
em dia, o projeto conta com pelo menos 15 a 20 padrinhos; cada aluno custa em
torno de 800 reais por ms. Ento o principal, aquele dinheiro inicial de um milho
de reais consegue manter em classe uma turma, as outras duas turmas - j que so
trs anos - so mantidas por padrinhos [que] vem das mais diversas reas da vida
brasileira, desde pessoas do mundo financeiro, do mundo comercial, at atores,
atrizes, gente que se junta para patrocinar; s vezes tm 4 ou 5 pessoas que se juntam
e mantm um aluno patrocinado ao longo do Projeto (Joo Moreira Salles, entrevista
em 01/09/2005).

Essa forma de administrar os recursos financeiros do PVL resultou em um


patrimnio pertencente ao Projeto que lhe garante a perenidade, a continuidade de pelo menos
uma turma. Como os outros dois anos so bancados pelos padrinhos, a idia de Joo Moreira
87

Salles estender essa autonomia financeira ao curso todo e conseguir doaes para o
principal, de forma que, com o tempo, a aplicao financeira desse principal consiga manter
trs turmas em vida que o tamanho do Projeto hoje. Tal situao garantiria que o Projeto
pudesse funcionar durante os trs anos, independentemente de padrinhos ou madrinhas,
tornando-se auto-sustentvel e autnomo. Esse depoimento revela uma outra lgica de se
pensar em projetos sociais no que concerne aos recursos necessrios a sua manuteno. O
patrimnio do PVL lhe garante um lastro de permanncia inibindo situaes de
vulnerabilidade, que uma das grandes problemticas das ONGs brasileiras (FERNANDES,
2002; KISIL, 1997; LANDIM, 2002).
Dessa forma, a captao de recursos no uma questo to problemtica para o PVL
como refora Turbio Santos:

A nossa captao de recursos, a rigor, no colocou muitos problemas porque uma


doao da famlia Moreira Salles, uma doao mesmo. No passa por nenhuma lei
de incentivo fiscal e o Joo Moreira Salles faz com que realmente o movimento seja
solidrio. Ele inclusive convenceu outros milionrios, pessoas muito ricas a
ajudarem, porque cada garoto custa caro num projeto desse, acaba custando mais ou
menos algo como 700 reais por ms (CEVL_2, pg 11, Turbio Santos, diretor geral,
02-60-2004).

3.2 O CONTEXTO HISTRICO E A CONSTRUO DE IDENTIDADES


3.2.1 DA CONSTITUIO DO PROJETO VILLA LOBINHOS

Como mencionado, o PVL tem, enquanto instituio, o marco histrico de seu incio
em janeiro de 2000, por ocasio da realizao do Primeiro Encontro de Jovens. Trata-se de
um momento pontual em que se consubstanciou a idia de Joo Salles, compartilhada com
outros entrevistados que protagonizaram, de forma determinante, o incio do Projeto.
Entretanto, a partir da elaborao das narrativas dos entrevistados, entrelaando os fragmentos
de suas histrias de vida com a histria do PVL, possvel inferir que esse incio pode ser
interpretado como um recorte de um continuun de uma linha histrica que integra outros
momentos determinantes para a construo da identidade do mesmo. Sua natureza
comunitria amalgamada com a idia de realizar um trabalho musical profcuo e permanente
fruto de um processo histrico que teve incio bem antes do ano 2000, com uma solicitao de
pessoas moradoras do Morro Dona Marta, como relata Turbio:
88

Assim que eu assumi o Museu Villa Lobos, em 86...eu vi, imediatamente, que no
bairro tinha uma questo social, que era essa favela aqui, o [Morro] Dona Marta3.
Ento, a gente tem que ficar atento, porque o Museu vem pra ensinar tambm... vem
pra ter uma relao com o bairro, o museu no vem s pra guardar o Villa-Lobos
para pesquisadores estrangeiros ou de curso superior. E por sorte apareceu este
pedido, quer dizer que o vnculo foi criado com o Museu imediatamente, o vnculo
social, entende? Ento, por isso que vem desta poca e foram duas pontes
construdas assim que eu comecei a dirigir o Museu... uma foi essa e a outra foram
os mini concertos didticos, que tambm muito forte, porque traz as crianas [das
escolas] para o Museu, faz um elenco de jovens msicos. Atualmente temos sessenta
msicos fazendo apresentaes aqui e eles tocam para quase oito mil crianas
(Turbio Santos, entrevista em 02/06/2004).

A compreenso do processo histrico da constituio do PVL leva em conta as


narrativas dos entrevistados que trazem tona fragmentos histricos que se reportam a um
trabalho iniciado em 1986, pelo Museu Villa Lobos, dirigido por Turbio Santos. Muitos dos
que iniciaram o PVL, viveram relaes de interaes cotidianas cuja experincia prtica se
refletiu na esfera da institucionalizao de um projeto social. Esto presentes no processo as
subjetividades e idiossincrasias, emoes que imprimem ao, movimento e vida ao relato.
Ao se dar voz experincia subjetiva sobre determinado objeto, oportuniza-se a possibilidade
de se ter vrios pontos de vista do mesmo fenmeno.
Uma das convergncias sobre a histria do Projeto, a partir das narrativas dos
entrevistados, que sua origem reporta-se ao ano de 1986, mediante uma solicitao da
Comunidade do Morro Dona Marta. Turbio recorda-se que tratam das preparaes do
centenrio de Heitor Villa-Lobos quando foram consultados sobre possibilidade de ajudar a
fazer uma escola de msica pra crianas carentes ali do Morro e fizeram uma tentativa.
Esses depoimentos evidenciam perspectivas diferentes sobre o mesmo fenmeno.
Narram como se constitui o PVL e contribuem para a recriao de um passado recente imerso
nas memrias de cada um deles e permeado por suas histrias de vida. Interessa aqui,

entender os mecanismos que criaram esse passado construdo, para a partir da


pensar na viso do narrador do passado, buscando inclusive, num segundo momento,
o entendimento analtico-histrico dos fatos acontecidos. Essas verses variam,
inclusive, dentro das prprias narraes da histria de vida, pois cada contar da

3
O Morro de Dona Marta, tem aproximadamente 2.500 domiclios e uma populao estimada em 10 mil
moradores. A ocupao da rea comeou por volta de 1940, por famlias que vieram principalmente do norte
fluminense e do sul de Minas Gerais. A partir do incio da dcada de 60, como em todo Rio de Janeiro, deu-se
um grande fluxo de nordestinos em direo ao morro. A migrao cessou juntamente com os limites geogrficos
da favela. Nos ltimos dez anos, a comunidade vem sofrendo visvel processo de pacificao, graas s intensas
atividades comunitrias voltadas para a evaso escolar e opes de lazer.
(<http://www.soft.com.br/CafeCultural.nsf/paginas/CafeCultural&Projetos_Sociais&D_Marta> Acesso em: 9
mar. 2004).
89

histria nico, j que marcado pelo presente do narrar, que varia, e pela memria,
que mutvel (NEVES et al., 2002).4

Turbio comeou essa experincia com seus alunos de violo, de licenciatura da


UNIRIO. Selecionou alunos que tivessem origem em comunidades pobres e que no fossem
s professores de violo, mas tambm pedagogos. Seus critrios para o incio do trabalho
foi comear com instrumentos de fcil aquisio como: violo, flauta-doce e percusso, uma
vez que o local j fora garantido pela igreja catlica ali instalada, um centro cultural, que
estava desativado.
O projeto foi financiado pelo Museu Villa Lobos que provia uma bolsa de meio
salrio mnimo da poca para os professores, ainda alunos do curso da UNIRIO. Turbio
destaca:

A resposta de l foi espetacular, no primeiro ano. Algo em torno de 300 alunos


inscritos e durante o ano, muitas desistncias, lgico que era a grande novidade. Mas
ficava sempre um nmero significativo, prximo de uma centena de alunos. Na
etapa posterior do projeto, os participantes foram se formando e ento voc tem o
exemplo do Rodrigo Belchior, do Fbio Almeida do violoncelo, o Luiz Cludio
Silva do trombone e do violo. E quando eles foram crescendo como msicos, ns
os adotamos como monitores, ento esses professores foram se retirando
devagarzinho, os professores da UNIRIO e os garotos foram assumindo esse lugar.
Na medida que os garotos foram assumindo esse lugar, eu fui procurando outros
patrocnios para que a gente pudesse pagar bem aos garotos (Turbio Santos,
entrevista em 02/06/03).

Durante o trabalho
desenvolvido na dcada de 80 no
Morro Dona Marta, Turbio
enfrentou dificuldades para
implantar um projeto social
ligado msica, principalmente
com a comunidade dos padres
mais antigos do morro que foi
hostil ao projeto. Os padres eram
ligados Congregao Santo
Incio, centenria no Rio e se
sentiram ameaados no seu espao de atuao de carter assistencialista. Mas, como a
solicitao veio da prpria comunidade, Turbio teve fora na argumentao e implantou a

4
Encontro Regional de Teoria e Metodologia da Histria, organizado em 2002 na USP.
(<http://www.revistatemalivre.com>. Acesso em: 9 set. 2003).
90

Escolinha de Msica, onde Rodrigo, Luiz Cludio e Fbio comearam seus estudos para
posteriormente se tornarem monitores da Escola.
Alguns anos depois, outra situao de atrito com os padres agravou-se e a Escola foi
transferida para o Museu Villa Lobos, bancada pela Academia Brasileira de Msica. Como foi
preciso ampliar os recursos, os prprios professores/monitores comearam a elaborar projetos
para as entidades pblicas e privadas para conseguir verbas, possibilitando exercitar a prtica
de aprender a captar recursos e argumentar sobre seu valor. Turbio destaca a atuao de
Rodrigo Belchior como agente cultural, j naquela poca, em meados de 1980, que j
comeara seu exerccio de educador musical, coordenando o projeto e buscando patrocnio na
Secretaria de Cultura Estadual e Municipal.
Os depoimentos de Turbio, alm de propiciarem uma perspectiva histrica sobre a
gnese do Projeto, catalisam questes sobre os imbricamentos dos movimentos sociais e os
espaos sociais e culturais se constituindo como instituies politizantes da sociedade civil
as quais redefinem as fronteiras da poltica institucional (OUTHWAITE; BOTTOMORE,
1996, p. 502). A fala de Fbio, professor de violoncelo no PVL, corrobora o depoimento de
Turbio e ressalta a construo de sua identidade musical e social associada histria do PVL:

Falar desses projetos sociais interessante porque eles se identificam


completamente com a minha prpria histria de vida. Eu sou um rapaz que nasci e
fui criado no Morro da Dona Marta, uma favela que fica aqui mesmo pertinho no
Bairro de Botafogo. Desde de criana, por influncia dos meus tios, eu sempre
gostei muito de msica, todos eles tocavam violo de ouvido, nenhum havia
estudado msica e eu sempre acalentava aquele sonho de me tornar msico ou pelo
menos tocar algum tipo de instrumento, realizar um sonho, uma satisfao prpria.
Quando eu tinha cerca de 13 anos de idade, em 1989, surgiu uma oportunidade que
foi um projeto elaborado com verba da antiga, da extinta LBA na poca e ela
investiu uma certa quantia e atravs do Museu Villa-Lobos que deu um
acompanhamento pedaggico. Juntamente com algumas lideranas da comunidade
eles elaboraram uma escolinha de msica, a Escolinha de Msica do Morro Dona
Marta. E foi nessa escolinha que o prprio Rodrigo iniciou sua vida, sua carreira
musical. Os trs msicos que trabalham aqui [no PVL], dentre outros professores,
claro, o Luiz Cludio, o Rodrigo e eu, somos oriundos dessa comunidade e
comeamos a nossa carreira musical nessa mesma escolinha. E a como aconteceu a
coisa [...] ns ganhamos uma bolsa de msica e comeamos a estudar na Escola
Brasileira de Msica (Fbio Almeida, 30/04/2003).

A exemplo da fala de Fbio, o depoimento de Rodrigo relata fatos que revela como a
gnese desse processo tem uma ligao afetiva e histrica com sua vida e foi um movimento
que dinamizou uma gerao de jovens que se encaminharam para msica:

Eu comecei a estudar msica numa comunidade onde morava, comunidade da Dona


Marta, no Botafogo. E eu, na poca, tinha um amigo que me chamava muito para
essa escola de msica... era um projeto ligado ao Museu Villa-Lobos que tinha
coordenao do Turbio dos Santos... Isso em 88, 89... no Museu Villa-Lobos. Da o
91

Turbio e a equipe do Museu resolveram levar msica l pro Dona Marta, porque
uma comunidade que est muito prxima do Museu. Enfim, vrios instrumentistas
esto [hoje] trabalhando no s no Villa-Lobinhos, mas como tambm tocando e
fazendo um monte de coisas (CEVL_2, p. 33, Rodrigo Belchior, coordenador,
30/05/2003).

Rodrigo nunca tivera contato com o ensino de msica antes de freqentar a Escolinha
do Morro, tinha uma resistncia porque, aos treze anos, trabalhava de madrugada, das 2 s 8
horas manh, entregando jornal. Com o padrasto desempregado, virou arrimo de famlia. As
relaes sociais com seus amigos foram determinantes para que ele rompesse com a
resistncia de freqentar as aulas de msica oferecidas na Comunidade Santa Marta:

O Luiz Cludio me venceu de tanto insistir e eu fui l e gostei muito [...] no tinha
violo, tinha flauta doce e peguei a flauta doce, comecei a aprender e, dois ou trs
meses depois, o projeto acabou. A o Luiz Cludio e o Fbio ganharam uma bolsa
para a Escola Brasileira de Msica e comearam a aprender, o Fbio no violoncelo e
o Luiz Cludio no trombone. Era uma escola privada dirigida pelo Maestro Nelson
Macedo. Eu no tinha [bolsa] porque eu estava no projeto h pouco tempo e a
continuei estudando, estudando [sozinho]. Um dia, o Turbio perguntou o que eu
queria tocar, se eu tivesse oportunidade e eu falei adoro flauta transversal, isso
porque eu tinha assistido um concerto e ouvi o som da flauta. Nunca tinha ouvido
[...] E a l eu vi uma menina fazendo um solo de flauta muito bonito e eu falei
Poxa, esse som t maravilhoso!" e eu perguntei o nome [do instrumento] para o
Luis Cludio e ele me disse que era flauta transversal. E aquele som ficou na cabea
[...] eu tinha dezesseis anos e.comecei a estudar a transversa; um pouco tarde! Com
doze, treze anos [tive] a experincia de musicalizao [...] na escolinha de msica da
Dona Marta [...] tive que queimar vrias etapas, aprendendo direto para flauta
transversa, direto para teoria, tudo junto! Mas eu estudei bastante, eu aprendi rpido,
tive bons professores e passei a tocar depois em grupos em concerto didticos junto
com outros meninos e adorei tocar flauta, adorei conhecer a msica. Logo depois,
ns, que ramos alunos daquela Escolinha do Dona Marta, passamos a ser monitores
(CEVL_2, p. 33, Rodrigo Belchior, coordenador, 30/05/2003).

3.2.2 AS BASES DA CONCEPO PEDAGGICA DO PVL

A proposta e concepo do PVL era, na viso de Turbio Santos, uma s:

Ns vamos ensinar as crianas e vamos aprender com elas. Desde o comeo, avisei a
todos os professores, avisei ao Joo Moreira Salles, avisei a todo mundo que
participou, no existe uma escola feita. A escola pr mim, ela nasce na hora que
voc percebe quem est vindo pr escola e que voc tenha humildade de saber: vou
ensinar alguma coisa que voc vai me trazer a lenha, porque sem a sua lenha eu no
fao a fogueira. Eu acho que isso foi o princpio fundamental da escola e por isso
que ela caminha em cima desse princpio (TURBIO SANTOS, diretor do Projeto
Villa Lobinhos, em 30/06/04).

Turbio foi convidado por Joo Moreira Salles, em 1999, para estruturar a proposta
de um projeto social que atendesse quela concepo, estruturar o curso de frias e proceder
92

seleo da primeira turma dos alunos que se realizou em janeiro de 2000. Sugeriu Rodrigo
como seu assessor para fazer o levantamento e realizar as visitas nos projetos sociais que
tinham foco nas prticas musicais. Percebe-se, atravs das entrevistas com os mentores do
Projeto, que a experincia de Rodrigo como educador musical e conhecedor do contexto
social que se pretendia abordar prontamente reconhecida e valorizada. Ele realizou uma
espcie de prospeco nas comunidades de baixa renda, no Rio de Janeiro, fazendo um
levantamento de projetos beneficentes que trabalhavam com atividades musicais. A partir
dessa ao presencial de Rodrigo os projetos recomendaram alunos para uma temporada de
curso de frias no Museu Villa-Lobos com 100 crianas.
Foi a partir dessa
configurao que aconteceu o
Primeiro Encontro de Jovens
Instrumentistas, um curso gratuito
no Museu Villa Lobos, em janeiro
de 2000, reunindo crianas e
adolescentes provenientes de
inmeros projetos sociais e ONGs
ligados msica na cidade do Rio
de Janeiro. Foram selecionados
nove jovens para a primeira turma
do PVL e se institui a forma
de seleo para o ingresso no
mesmo, consubstanciando a
idia de Walther Salles (pai)
de constituir um projeto
social, voltado para o ensino
sistemtico de msica para
poucos alunos que pudessem
ser atendidos individualmente,
inclusive, cuja perspectiva
pedaggica focava os
contedos da linguagem musical, histria da msica, performance instrumental solo e de
conjunto.
93

A nfase na performance musical o trao norteador na concepo do Projeto que, ao


longo de sua implantao, vai construindo sua identidade ancorada nesse parmetro. Foram
realizados cinco encontros de frias, desde 2000, selecionando at 2004, cinco turmas de nove
alunos cada.

O aspecto seletivo e a concepo do que seja ser talentoso so questes que


merecem destaque para uma anlise, considerando que o discurso em torno dos processos de
desigualdade social, incluso/excluso, est imbricado nesse contexto. Quais os paradoxos
que emergem a partir de um projeto social que parte do princpio da seleo e da noo de
talento?
Esta foi uma das questes que conduziram meu olhar para as diferentes formas de
atividade musical, minhas reflexes, minhas conversas com participantes do PVL e tambm
com pessoas ligadas s ONGs, mas externas ao Projeto, durante o perodo de insero no
campo.
Um pr-julgamento foi inevitvel, no incio, no que concerne a entender
contraditrio um projeto social que inclui alguns e exclui outros. Entretanto, medida que fui
compreendendo a dinmica social das relaes pessoais e institucionais que envolvem a rede
de sociabilidade e o processo pedaggico-musical do PVL, pontos cruciais foram se
evidenciando para compor uma anlise baseada no contexto que pude perceber como insider.
Participei parcialmente do Encontro de 2003 e integralmente do de 2004. Pude observar que o
que prevalecia naqueles Encontros era o prazer das crianas e jovens em estar ali para fazer
94

msica. Havia diversidade na faixa etria e na procedncia geogrfica dos participantes. As


aulas eram em grupo para diferentes instrumentos de cordas, sopro e percusso.

Ao final do Encontro, pude constatar que a idia de reunir vrios projetos sociais em
um encontro musical, dilua a questo do processo excludente inerente a qualquer tipo de
seleo. A partir das conversas que tive com pais, alunos, professores, o que mais importava
era poder se reunir e aprender um pouco mais de msica, sobretudo tocar e tocar juntos. Ser
selecionado passa para um segundo plano. O diagrama que segue ilustra a rede entre os
projetos socais que participaram desse Encontro:
95

Escola de
Centro cultural Msica da Projeto
Charles Rocinha Apanhei-te
Dickens cavaquinho

Projeto
ONG Ns VILLA LOBINHOS
do Cinema
Centro
Cultural Santa
Tereza

Projeto da
Grota do Escola de
Surucucu Msica Museu Villa
Niteri Santa Marta Lobos

Diagrama 1. Encontro de 2004: Rede dos projetos sociais e instituies participantes.

Gilberto Figueiredo, educador musical e coordenador da Escola de Msica da


Rocinha, sintetiza em sua fala, como a sociabilidade entre os projetos que so agregados nesse
Encontro toma uma dimenso que se sobrepe questo da seleo e o encontro se converte
em um aspecto estimulante para os indivduos e para as instituies que participam:

A primeira impresso que eu tive do Villa-Lobinhos, vou ser muito honesto, no foi
muito boa no, fiquei com um p atrs, sabe, que eu pensei assim: Meu Deus do
Cu! O custo desse projeto por aluno, est um pouco alto!. Mas aos poucos eu fui
mudando essa viso quando fui entendendo o papel desse projeto e a relao dele
com os outros projetos sociais.
O primeiro contato foi quando o Rodrigo veio conhecer a Escola de Msica da
Rocinha e convidou a Escola a participar do curso de frias, que voc j conhece e
sabe bem dessa estrutura. Ns encaminhamos um grupo de alunos que ficaram
deslumbrados com o trabalho, foi fantstico e se refletiu na nossa escola. Nenhum
deles foi selecionado, mas todos voltaram para a nossa escola com um gs muito
maior para o trabalho, ansiosos para aprender, aprender, aprender, aprender,
aprender. No ano seguinte foi um outro grupo e a cada ano foram outros grupos e
ns tivemos trs alunos j selecionados para o Projeto Villa-Lobinhos.

Desenvolvendo sua anlise, Gilberto destaca dois aspectos que considera importantes
no papel do PVL ao realizar um trabalho ancorado em uma proposta pedaggico-musical
voltada para uma formao mais especializada:

E hoje eu vejo, com clareza, que o Villa-Lobinhos tem dois papis importantes:
primeiro ele acontece no curso de frias em janeiro, um curso intensivo que
promove um encontro entre jovens de comunidades completamente diferentes, com
vivncias completamente diferentes e que essa integrao faz com que todos eles
96

voltem para suas comunidades com uma viso muito mais ampla do que o estudo
da msica e com um desejo muito maior de se aprofundar naquele estudo. Eles se
sentem muito valorizados, voltam com a auto-estima a mil. Esse um papel
importantssimo. O outro papel, tambm importantssimo, com os alunos
selecionados para serem atendidos ao longo de trs anos, que fazer aquilo que o
nosso projeto aqui no tm condies de fazer, que oferecer um trabalho
individualizado e de formao profissional de fato.

Fala, ainda, sobre as bases conceituais do trabalho realizado pela Escola de Msica
da Rocinha, revelando caractersticas da identidade sociomusical do projeto:

Ns aqui, na Escola de Msica da Rocinha - no vou falar pelos outros projetos -


mas eu acredito que a maioria deles tenham mais ou menos esse mesmo perfil, ns
fazemos um trabalho de formao geral, nosso principal objetivo no formar
msicos, mas fazer um trabalho complementar ao trabalho da escola pblica,
oferecer uma formao que seja facilitadora da relao do aluno com a escola
pblica, com a famlia e com a sua comunidade, e consigo mesmo. Agora, aparecem
aqui os talentos, despontam, a gente pina esses talentos, monta grupos
diferenciados, grupos avanados, vamos dizer assim, e at chegamos a oferecer aqui
uma formao profissional, mas no Villa-Lobinhos, o trabalho muito mais focado,
muito mais aprofundado, de uma maneira que ns no teramos condies de fazer
aqui. Ento, esse papel do Villa-Lobinhos de dar a gente continuidade, de fazer a
ponte entre trabalho de base e o msico profissional l na frente, isso fantstico,
maravilhoso.

A avaliao de Gilberto refora os aspectos levantados por Rubem Cesar Fernandes


no sentido da necessidade de se haver uma diversidade nas propostas das ONGs e aponta para
aspectos positivos de um trabalho de educao musical mais focado, cujo nvel de formao
proporciona oportunidades especficas no tocante profissionalizao. Pode-se inferir que a
rede de sociabilidade que o PVL promove dissemina um outro referencial de formao para se
pensar em um trabalho especfico de educao musical, o que d uma outra dimenso para a
perspectiva seletiva.

3.2.3 DAS IDENTIDADES MUSICAIS INDIVIDUAIS E COLETIVA

No obstante, a pesquisa de campo tenha oportunizado conversas, entrevistas e bate-


papos com quase a totalidade dos integrantes do Projeto, a seleo necessria dos
entrevistados se circunscreve em torno de seis formandos da turma de 2004 e dos integrantes
dos dois grupos constitudos formalmente: sete alunos do Choro e seis alunos do MPB. Os
alunos entrevistados so, em grande parte, moradores de trs regies do Rio: Comunidade
Dona Marta e Rocinha, Mesquita, na Baixada Fluminense e Favela Grota do Surucucu, em
97

Niteri. A maioria mora com a famlia, em bairros de periferia urbana ou comunidade de


favelas Morro Dona Marta, Rocinha, Grota do Surucucu (Niteri). A idade permeia entre 16
a 19 anos e o sexo masculino predomina, com apenas uma aluna entrevistada do universo de
seis formandos.
Duas vertentes ficam evidentes nos depoimentos dos alunos: a aprendizagem musical
j estava presente na vida dos alunos antes de participarem do PVL, determinada pelo
contexto social no qual os jovens se inserem, quer seja em projetos sociais, cursos em igrejas
ou centros culturais; e, os Encontros de Jovens Instrumentistas realizados em janeiro se
constituem em um significativo referencial na trajetria do aprendizado musical e na escolha
de se estudar msica. Todos os alunos entrevistados citaram o Encontro como um marco
importante na sua histria de vida, relacionando o Projeto como uma especial oportunidade
para o seu desenvolvimento musical.
So muitas as histrias que revelam uma multiplicidade de experincias e contextos
em que o PVL adquire um significado para alm do ensino e aprendizagem musical, em que
permeiam representaes sociais como a famlia, a amizade, o lazer e a profisso. So
referncias que contribuem para a construo da identidade desses jovens.
Muitos dos entrevistados recordam acontecimentos minsculos que vo compondo o
mosaico histrico do PVL, fruto das relaes entre as pessoas e as instituies. So essas
histrias que contribuem para se recompor um espao social contornado pelas aes
articuladas dos que participaram do processo. So suas vozes que alinhavam os fragmentos
compostos por vivncias cotidianas e ordinrias que se fazem parte do conhecimento prtico.
Tudo isso fornece subsdios importantes para a compreenso das aes e racionalidade que
esto presentes nas histrias dos que participaram da construo do PVL.
98

3.2.3.1 OS ALUNOS FORMANDOS DE 2004

Ademar, saxofonista, ao relatar como foi seu contato inicial


com a msica revela que o ambiente familiar e um espao na
igreja foram importantes para seu desenvolvimento musical,
pois quando tinha oito anos de idade comeou a estudar
msica com seu av. A princpio ele dava aula em sua casa e,
posteriormente, passou a dar aula num salo da igreja o que
estimulou outros alunos da prpria comunidade e a prevalncia
do coletivo no seu processo de ensino e aprendizagem de
msica. A igreja investiu na compra de instrumentos de sopro,
deixando disposio dos jovens que os escolhiam e dessa
forma foi formando um grupo de instrumentistas:

Apareceu, assim meio que do nada, o saxofone e a gente sempre estudava junto. Era
um grupo bom mais ou menos da minha idade: era eu, o Fbio (PVL), o Rafael
(PVL), o Daniel (PVL), o irmo do Daniel. Tinha uma galera boa e a gente ficava
at fazendo disputa pr ver quem entendia mais, quem pegava a coisa mais rpido e
a igreja ia comprando e aparecendo os instrumentos e eles iam dando para os alunos
pr comear a prtica com o instrumento. A apareceu um trompete, uma clarineta e
um saxofone. O Daniel pegou o trompete, ele no comeou iniciando no trombone
[hoje, ele toca trombone no Projeto Villa Lobinhos], comeou no trompete, o Fbio
conseguiu pegar a clarineta e o saxofone ficou sobrando pr mim. (CEVL_1, pg 6,
Ademar dos Anjos, aluno formando 2004, 04-06-2004)

E sobre seu contato inicial com o PVL, seu relato pode ser tomado como exemplo de
como as relaes sociais e institucionais organizam e reorganizam as experincias pessoais
determinando, muitas vezes, acesso e oportunidade. A partir de contatos pessoais que seu pai
tinha, Ademar, juntamente com Fbio e Leandro, todos de Mesquita5, participaram do
Encontro de Frias e foram selecionados para fazer o curso no PVL:

Meu contato com o projeto foi atravs do meu pai que trabalha aqui na PUC
(pertinho da Casa da Gvea) e o Rodrigo tem uma grande amiga no NEAM,
departamento da PUC. E ela comentou a respeito desse curso de frias e meu
pai...comentou que meu irmo, no caso o Rafael, estava trabalhando como pedreiro e
sabia tocar clarinete. Surgiu o assunto sobre projeto e ela disse: No! Porque ele
est trabalhando nisso? Vamos colocar ele l, eu vou falar com o Rodrigo, tem um
projeto que acontece todo incio de ano no Museu Villa Lobos. E em 2002 foi o ano
que ns fomos participar, no Museu Villa Lobos, de um encontro de jovens. Fomos
eu, meu irmo, veio uma boa parte [de amigos] l de Mesquita. Acabou

5
Mesquita trata-se de um municpio localizado na Baixada Fluminense, pertencente regio metropolitana da
cidade do Rio de Janeiro.
99

desenrolando no s pr mim e pro meu irmo, mas pr uma boa parte [dos amigos].
E foi bom...acho que vieram cinco pessoas de Mesquita e acabamos ficando trs: eu,
Leandro e Fbio, fomos os trs primeiros a vir para o Projeto. E passamos as duas
semanas l, o Rodrigo conheceu o pessoal e gostou. A ofereceu esses trs anos de
bolsa aqui no Projeto (CEVL_1, p. 6, Ademar dos Anjos, aluno formando 2004,
04/06/2004).

A princpio Ademar tomou um susto porque nunca tinha visto tantos msicos
tocando juntos, nunca tinha participado de orquestra e, em maro, quando foi avisado que
tinha conseguido a bolsa ficou surpreso por ter junto com ele mais dois jovens da mesma
cidade. Na primeira reunio viu mais oito pessoas juntas, pensou: Caramba!, veio uma galera
boa pr c!. Esse relato mostra como as relaes sociais que se inserem no cotidiano,
provocam encontros que podem ter um significado no sentido de ampliar experincias
estticas e sociais, possibilitando o re-posicionamento de um novo referencial na identidade
individual e social. Participar desse Encontro possibilitou a Ademar, juntamente com outros
jovens, como Fbio e Leandro, vindos de Mesquita, referenciais de uma esfera sociocultural
nova para eles.
Fbio, clarinetista, conta que sua iniciao musical
teve como cenrio a igreja da qual toda sua famlia faz parte:
Eu j nasci naquela igreja, meu pai evanglico e minha me
tambm e ento desde criana que eu sou da igreja.
Assim, a igreja e a famlia emergem como instituies
que conectam sistemas sociais dinmicos da vida cotidiana,
construindo novos contextos e significados em que a msica
ocupa um espao especfico, cujo valor e funo esto
conectados. O desdobramento disso, incide na forma e
contedo do ensino e aprendizagem musical. Em seu relato,
Fbio destaca o contexto coletivo desse aprendizado que
comeou com 10 anos de idade:

Meu incio com a msica foi praticamente junto com todo o pessoal que mora l
[Mesquita] junto comigo. A princpio na igreja da qual fao parte, estavam querendo
formar uma orquestra e ento pegaram crianas de 10, 11, 12 anos e comearam a
dar aula de msica gratuita na igreja para poderem montar uma orquestra. Estudei
msica durante um ano, teoria e percepo e depois de um ano eles me deram um
clarinete, deram para um outro aluno um sax e pr mais um, um trompete e depois
no ano seguinte deram mais outros instrumentos. Da turma de jovens eu fui um dos
primeiros a pegar o instrumento que foi o clarinete...um ano de percepo e teoria
geral e depois de um ano que eles foram me dar um clarinete. A princpio mais a
parte terica e depois a gente pegou muito solfejo. (CEVL_1, p. 33-34, Fabio
Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
100

Sobre aspectos de seu aprendizado musical na igreja, Fbio destaca alguns


procedimentos que se reportam performance instrumental e auto-aprendizagem:

Na igreja, o antigo maestro tambm tocava clarinete e, ento, ele me ensinou as


posies das notas todas e a maior parte eu fui estudando sozinho porque no tinha
como pagar um professor de clarinete. Ele me deu um pequeno livro de clarinete pr
mim estudar, conhecer as posies de toda extenso do clarinete e fui estudando a
maior parte dele sozinho. Ele s me tirava algumas dvidas porque ele j estava se
aposentando. At os 14 anos, eu fui pegando o clarinete sozinho.

Fbio foi selecionado para cursar o PVL na sua primeira participao no Curso de
Frias e sublinha que nunca tinha visto tanto msico colado um com o outro, os professores
to bons. Como no tinha turma e nem professor de clarinete e nem sax, Fbio ficou junto
com a turma de flauta transversal. Isso denota que cada edio do Curso se formata de acordo
com os alunos e professores disponveis. O que parece importar fazer msica coletivamente.

Carla, flautista, moradora da Comunidade da


Rocinha, tambm comeou a estudar msica na
prpria comunidade, a Escola de Msica da
Rocinha6 quando tinha nove anos:

...um projeto social que tambm tinha comeado...e na poca era oferecido um curso
de canto coral e flauta-doce e eu fui l ver, pr assistir, que eu tinha uma amiga que
fazia parte, e eu simplesmente me apaixonei! ...quis sair do teatro pr fazer aula de
flauta e coral, a falei com minha me e minha me e meu pai sempre me apoiaram e
eles foram l comigo e eu comecei no coral mas sempre quis flauta-doce. S que na
poca no tinha vaga e eu tinha que esperar e eu ficava assim ansiosa pr comear
fazer aula de flauta-doce e a eu entrei na flauta-doce e desde ento eu comecei a
estudar msica pela Escola de Msica da Rocinha. (CEVL_1, p. 18-19, Carla
Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).

Seu depoimento revela, tambm, a presena da famlia como um elemento motivador


para seu estudo de msica e refora a assero de que a presena de estruturas
socioeducativas, fazendo parte do contexto de moradia dos grupos sociais, contribuem para
6
A Escola de Msica da Rocinha um projeto social que tem como fio condutor o ensino da msica para as
crianas e jovens moradores da Comunidade Rocinha, considerada uma das mais populosas favelas do Rio de
Janeiro. coordenada por Gilberto Figueiredo e foi fundada em 1994 pelo professor de msica alemo Hans
Ulrich Koch. Oferece vrias modalidades de prticas musicais tanto instrumental como vocal. Tem 450 alunos
matriculados (setembro de 2005). (<http://www.emrocinha.org.br>. Acesso em: 20 jan. 2006).
101

que o acesso a bens culturais e de lazer seja, de fato, democratizados. Carla reconhece a
importncia desse aprendizado na Escola de Msica da Rocinha e como isso foi importante
para que ela pudesse ingressar no PVL:

Se no fosse a Escola de Msica eu no entraria no Villa Lobinhos, e no seria nada


do que sou hoje em dia e tudo; um aprendizado. O Villa Lobinhos deu margem pr
eu ser o que eu sou hoje e se no comeasse pela Escola de Msica no teria nada,
nem o Villa Lobinhos, nem nada. Eu vim para o Villa Lobinhos mas no deixo de
estar l, no to presente mas eu quero continuar porque acho que muito
importante, a raiz de tudo e ento eu tenho um carinho muito especial por l
(CEVL_1, p. 18-19, Carla Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).

Carla freqentou trs Cursos de Frias, em 2000, 2001 e 2002, no Museu Villa Lobos
para, ento, na terceira participao, ser selecionada para o PVL. Revela que no sentiu como
algo negativo o fato de no ser selecionada na primeira vez, mas, ao contrrio, foi um
estmulo para que estudasse com mais disciplina e afinco para tentar novamente. Sua
narrativa, associada a inmeras outras narrativas de outros jovens com perspectiva semelhante
em relao ao processo de seleo, do pistas de como o Curso de Frias visto antes como
um encontro que oportuniza aprender novos contedos e repertrio musical, ter aulas com
bons professores, conhecer e encontrar amigos, mais que, propriamente, um processo de
seleo para escolher os melhores, excluindo tantos outros, como me parecia antes da imerso
no campo.

Marquinhos, como chamado pelos


amigos, muti-instrumentista (toca trompete,
cavaquinho,violo, pandeiro e percusso), conta
sua histria semelhante de Carla em relao a
esse aspecto, ressaltando o papel que Rodrigo
ocupou no encaminhamento de seus estudos de
msica:

eu estava no projeto [Comunidade Dona Marta] onde o Rodrigo estava dando aula e
a [ele] chegou e falou que tinha um concurso... um curso de frias, aonde vrios
meninos do Rio de Janeiro, vrias regies vm para participar desses cursos de frias
e a nisso eu participei do primeiro curso de frias, mas eu no passei no curso,
passei no terceiro curso, foi tendo e no segundo eu no participei. A o Rodrigo
comeou a acreditar em mim, a me incentivar, comeou a falar pr mim estudar
mais [...]. E a fui comeando a estudar, participei do primeiro, do segundo no
participei; no terceiro participei e passei com o trompete (CEVL_1, p. 63, Marcos da
Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
102

Marquinhos conta que antes de iniciar seu aprendizado musical na creche, no era
muito ligado com a msica eu no tinha nenhuma msica que eu gostasse... eu no sabia o que
era msica, eu no gostava de nada; o que eu ouvia mesmo era aqueles funk mesmo, que os
vizinhos botava alto e a eu ouvia s isso. Conta que foi ampliando seu universo e fui vendo o
que era msica; eu via que msica no era s funk; era MPB, rock pop, vrias coisas, popular,
samba, vrias coisas a msica um mundo muito diferente... diferente daquela do vizinho.
O seu depoimento mostra como a rede de sociabilidade de moradia contribuiu para a
construo de seus referenciais esttico-musicais, entre outros e, tambm, como as aes dos
projetos sociais substituram os cuidados maternos e sociais que garantiram a sua sobrevivncia.

desde quando era criana minha me e eu no passava fome, mas a gente


ficava na rua. A minha me pedia comida pr outras pessoas l, pr tentar dar
comida pr mim e ela sempre arranjava e a nisso fui crescendo Minha me
morreu quando eu tinha trs anos, a fiquei com minha v [que] me botou em vrios
lugares. A, na creche, no lugar onde o Rodrigo me conheceueu era tipo... no
jogado...como eu vou dizer isso...eu no tinha uma coisa pr mim, era vago, eu tinha
tudo vago. Eu ficava andando l na quadra, l no Morro. E a com a msica, a eu fui
me ocupando, comecei me ocupar, me ocupar, me ocupar e a fui vendo que com a
msica, era totalmente diferente de como eu vivia antes; o sentimento da msica te
deixa...senti a msica! no sei, um caso... no sei como te dizer isso, s sei que
mudou muito, muito, muito, muito... (CEVL_1, p. 63, Marcos da Silva, aluno
formando 2004, 29/05/2003).

As lembranas de sua famlia so marcadas por um quadro em que sobressai a


desagregao e a violncia do ambiente vulnervel em que vivia. Sua irm e prima
envolveram-se com o trfico de drogas e aos oito anos de idade, Marquinhos vivenciou o
assassinato de seu irmo por ter se envolvido com o mundo das drogas e do crime. Seu
depoimento foi denso e carregado da emoo que aquelas lembranas lhe traziam.
Marquinhos faz, ele mesmo, uma avaliao sobre a rede de sociabilidade daquele contexto
que no lhe permitia alternativas:

MARQUINHOS porque onde eu vivo, o nico caminho era esse, s tinha


esse, no tinha outra opo, no nenhum projeto social que poderia tirar a gente
dessa situao para reverter outra situao para ir num caminho bom... eu vivia no
meio de bandidos, sentava assim, bandidos rolando, tipo assim... vendendo
maconha, vendendo drogas e a pra mim entrar nesse mundo faltava muito pouco,
muito pouco mesmo, pr mim entrar no mundo das drogas.
MAGALI Voc lembra o que voc pensava naquela poca, com 8 anos?
MARQUINHOS Eu pensava como toda pessoa que vive nesse meio, no mundo
das drogas, do crime, pensava assim:virar um bandido, andar com arma, assim seria
uma onda, sabe qual ? Tirar onda, andar com arma, pegar mulher... j que voc
bandido, pegar muita mulher e isso seria tudo. Sabe qual : tudo pr mim. E era
assim que eu pensava que a nica coisa boa da vida era virar bandido, virar dono de
boca, virar gerente... isso! (CEVL_1, p. 63, Marcos da Silva, aluno formando
2004, 29/05/2003).
103

A proximidade com o mundo do crime, associada ao fascnio que o poder inerente


existente no entorno do seu contexto potencializa a escolha por essa alternativa de vida. Esse
relato revela que outras variveis, alm de pobreza e do abandono, levam os jovens, em
situao de vulnerabilidade social, a optarem pelo mundo do crime.
A oportunidade de participar de projetos sociais em sua comunidade, o encontro com
Rodrigo, enquanto educador musical e educador social, contriburam para a mudana de
ngulo na trajetria de sua vida. Nesse sentido, o papel da msica emerge como uma forma
alternativa violncia, criminalidade e ao uso das drogas, um importante elemento de
formao da identidade social juvenil e uma via para que os jovens busquem alternativas que
os afastem da marginalidade, da violncia e da criminalidade. Isso fica claro nesse fragmento
de histria de vida de Marquinhos:

E a eu consegui tambm sair desse mundo, desse caminho pelo Rodrigo com o
projeto na nossa comunidade, l no Morro Dona Marta, onde ele dava aula para
pessoas carentes como eu, na igreja. Eu tinha todos os tpicos para virar bandido,
para virar traficante. O Rodrigo, como foi meu primeiro professor de msica, me
incentivou a sair, me deu conselhos, comeou a acreditar em mim. Agora eu sou o
que sou por causa dele e ele foi um dos primeiros incentivadores da minha vida... ele
foi um pai para mim... me ensinou, primeiro eu aprendi flauta-doce......Eu adorava
porque era a nica coisa, alm daquele sonho no muito bom [virar bandido] que eu
tinha antigamente aos 8 anos de idade. Esse projeto foi uma coisa diferente, uma
coisa nova que eu no sabia, no tinha conhecimento dessa coisa bonita que o
Rodrigo estava fazendo com a gente... a comecei a me incentivar, a acreditar em
mim mesmo...at o Rodrigo comeou a acreditar em mim, comeando a me
valorizar como gente mesmo! E estou aqui hoje por causa dele. (CEVL_1, p. 63,
Marcos da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).

Sobre seu contato com a msica, antes de ingressar no PVL, Marquinhos faz um
relato costurando fragmentos de sua histria de vida. Aprender msica, sentir-se membro de
uma comunidade foi muito significativo para mudar a direo de sua vida, aparece como um
divisor de guas. A presena de Rodrigo nesse processo , novamente, destacada por ele:

Pr mim o que significou muito o projeto pr mim, foi mudar de uma vida que eu
vinha de antes, uma vida no muito boa pr... (longo trecho de silncio, como se
mergulhasse em suas memrias)... o que a msica pr mim...o Rodrigo viu alguma
coisa em mim, viu que eu daria pr msica e ele veio e me indicou. A comeou me
encaminhar, fazendo o meu futuro; a ele foi encaminhando pr msica...ele arranjou
uma bolsa pr mim l na Pro-Arte7, fica em Laranjeiras, o Rodrigo tambm me
colocou aqui no Villa Lobinhos... a foi continuando um monte de coisa, e tambm,
lembrando tambm, me colocou no Dom Pedro II que um timo colgio.
(CEVL_1, p. 63, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).

7
O Projeto Flautistas da Pro Arte uma instituio educativo-musical de natureza privada, coordenada pela
flautista e professora Tina Pereira, desde 1987. Com Claudia Ernest Dias formou o grupo Flautistas da Pro Arte.
s flautas doces originais vieram somar-se as flautas transversas, os clarinetes, os saxofones, o trombone, as
vrias formas de percusso, o cavaquinho, o contrabaixo, o violo e o piano.
<http://www.proarte.org.br/index_teste.htm>
104

A exemplo de Marquinhos e Carla,


Jocielton, formando de 2004, flautista, tambm
freqentou por trs anos os encontros de frias
para, ento, no terceiro ano ser selecionado.
Iniciou seus estudos de msica, aos dez anos de
idade, no projeto social do Morro Dona Marta,
com Rodrigo, tocando flauta doce. Rodrigo
aparece em seus relatos como seu incentivador a
participar dos encontros. Jocielton reconhece que
no gostava e no era muito ligado msica. Sobre a participao nos Encontros, Jocielton
relembra:

Como eu no tinha passado no segundo e nem no primeiro, eu j sabia desse negcio


e eu fiquei, P, nesse terceiro ano eu vou entrar. A comecei a estudar, estudar e
estudar. Fui tocando msica, pegando, pegando e j desesperado ser que eu no
entro, ser que eu no entro..., e a fui e entrei! Teve amigos meus que j entraram
l e comearam a dizer que o projeto bom e que eu ia aprender a tocar pr caramba
e eu fui e me empolguei pr entrar tambm. Minha me adorou, como eu ficava a
tarde toda em casa sem fazer nada e como eu j estava de saco cheio, a msica assim
entrou como uma coisa boa pr mim. (CEVL_1, p. 47, Antonio Jocielton Pontilovs,
aluno formando 2004, 29/05/2003).

Em outro contexto, totalmente diferente


dos demais formandos entrevistados, Walther
Caldas, 17 anos, violinista, que alinha sua
participao no PVL com a histria de sua famlia
e, tambm, com outro projeto social, o Reciclarte,
localizado na Grota do Surucucu em Niteri.
Walther tem um irmo gmeo, o Wagner,
que se formou tocando violino na turma de 2003 e
Felipe, 15 anos, tambm violinista, est cursando o
primeiro ano no PVL. Os trs rapazes so filhos do luthier Jonas Caldas8, que possui uma
oficina de fabricao e restaurao de instrumentos no Largo da Batalha, local prximo da

8
Jonas cresceu num internato da Funabem, onde aos 15 anos, matriculou-se numa aula de luteria, curso
promovido pela FUNARTE, na dcada de 80. O curso durou trs anos e foi interrompido com a morte do
professor Guido Pascoli. Como luthier teve uma viola de gamba com sua assinatura foi parar na Alemanha,
levada por um estudante brasileiro sendo convidado por um luthier de Stuttgart para fazer um estgio em 1994.
Desde ento, tornou profissional na rea trabalhando com matria-prima importada, da madeira s cordas e
produzindo peas de qualidade reconhecida. (<http://epoca.globo.com/edic/20000214/especiala.htm>. Acesso
em: 19 fev. 2006).
105

comunidade da Grota. Jonas fabrica contrabaixos, violas, violoncelos e violinos mas no toca
nenhum dos instrumentos. Os filhos, Walther e Wagner, os gmeos, e Felipe cresceram vendo
o pai fabricar violinos iguais aos que eles hoje tocam. Comearam a estudar msica com uma
professora boliviana que dava as aulas e em troca tinha os instrumentos consertados pelo pai
dos alunos. So celebridades na favela por serem os primeiros garotos a estudarem um
instrumento considerado quase inacessvel quele ambiente cultural.
Quando entrevistei Walther, Wagner estava junto, pois so inseparveis. Sobre como
eram suas vidas antes de entrar no PVL, eles relatam que no gostavam muito de estudar
msica. Tocavam para agradar ao pai que fabricava os violinos e preferiam brincar: comecei
foi meio que obrigado, eu e ele tambm, foi o mesmo caso dele... diz Wagner. Ele conta que
estudava porque seu pai consertava os instrumentos do conservatrio e em troca tinham aulas
de violino gratuitamente. O interesse real surgiu depois que eles j conseguiam tocar um som
legal e, conseqentemente, os colegas, a comunidade e familiares comearam a elogi-los e
valorizar a msica que eles faziam. Wagner corrobora o depoimento do irmo:

O pessoal famlia, comunidade porque... era horrvel, a gente ia, no tocava nada,
arranhava pr caramba e antes rolava at aquele preconceito - porque da favela ns
ramos os nicos jovens, os dois, s dois...mais de mil moleques na favela, ns dois
ramos os nicos que tocavam violino e a rolava aquele certo preconceito, n? -
no... larga isso, no sei o que, no tem nada a ver, no sei o qu... mas depois
que a gente comeou a tocar legal, comeamos a sair pr se apresentar, conhecer
lugares, pessoas novas e a o pessoal foi aceitando mais e viu que estava dando certo
e at a gente mesmo foi vendo que estava dando certo e a comeamos. Mas at essa
parte, a gente foi s brincando, tocando ali, tocando aqui e montamos uma
orquestrinha9 nossa l na Grota com o pessoal que ns dois comeamos a tocar
violino primeiro do que o pessoal da comunidade (CEVL_1, p. 89-90, Walther e
Wagner de Oliveira, alunos formandos 2004, 11/06/2004).

Os aspectos que Walther e Wagner abordam estimulam a reflexo sobre a questo


das variantes que envolvem o gosto musical, a influncia do contexto cultural. Aes e
atividades que a princpio estigmatizavam os garotos violinistas da Grota, consideradas
estranhas quele ambiente, passaram a ser vistas sob uma perspectiva positiva, motivando
outros jovens a quererem tambm aprender a tocar aqueles instrumentos musicais. Tal fato
pode ser atribudo agregao de valores identidade dos garotos, advindos de uma atividade
pouco comum naquele contexto, visibilidade na mdia e a uma aproximao com um tipo de
repertrio musical que era executado pelos integrantes da prpria comunidade. A visibilidade
positiva foi um fator crucial para despertar na comunidade o acesso a um repertrio musical
que antes era distante de sua realidade. O fato de os jovens pertencentes comunidade

9
Essa orquestrinha refere-se Orquestra de Cordas da Grota do Surucucu, coordenada por Mrcio Selles.
106

tocarem em uma orquestra de cordas trouxe um outro referencial esttico para eles, de uma
forma, de fato inclusiva: porque ns tocamos esse repertrio clssico e no, somente,
estamos aqui para ouvir e aplaudir os outros. Isso faz uma grande diferena. O ingresso no
PVL lembrado por Wagner como uma forma de continuidade a um caminho j trilhado:

Pois , a gente j tinha meio caminho andado, antes de conhecer o Projeto...um


professor de teatro que tinha na comunidade, tambm como trabalho
voluntrio...ficou sabendo do projeto de msica antes da gente que era msico. Ele
avisou e a gente veio s pr experimentar mesmo e nem sabia que ia rolar bolsa, a
gente veio pr testar e a veio o primeiro ano e a o meu irmo ganhou a bolsa. Ele
toca violino e tambm comeou na flauta junto com a gente l na Grota; a ele
ganhou a bolsa e a continuamos e da pr c ns comeamos a participar direto e
estamos a at hoje. (CEVL_1, p. 93-94, Walther e Wagner de Oliveira, alunos
formandos 2004, 11/06/2004).

Os depoimentos dos alunos formandos de 2004 revelam trajetrias que tm pontos


em comum, como o fato de todos serem oriundos de projetos sociais que possuam o fazer
musical como uma das atividades desenvolvidas e serem jovens que no teriam condies de
pagar por um ensino musical particular. Ao mesmo tempo, expem como essas trajetrias so
absolutamente idiossincrticas, em que a histria de vida de cada um revela a dimenso tico-
poltica (SAWAIA, 2003) que os projetos sociais ocupam em suas vidas enquanto
possibilidade de superao dos sentimentos de excluso, onde o pertencimento a grupo social
reconhecido incide positivamente na construo de identidades individuais e coletivas.

3.2.3.2 OS GRUPOS DE MPB E CHORO

Os entrevistados dos grupos de MPB e Choro so alunos de diferentes estgios no


curso, do primeiro ao terceiro ano, e alunos egressos pertencentes turma de 2000 e 2002.
Esse outro grupo dos entrevistados me permitiu abrir o leque para incluir depoimentos
contemplando maior diversidade de entrevistados e ampliar a compreenso dos diferentes
contextos presentes no processo pedaggico-musical.
As histrias de Rafael Nogueira, 21 anos, formado na primeira turma em 2002 e
Leandro Serizac, 20 anos, formado na segunda turma em 2003, tm em comum o fato de
ambos terem sido assistidos por um abrigo de jovens em Cabo Frio e participado do Projeto
Apanhei-te Cavaquinho, coordenado por ngelo Budega. Criado em orfanatos, Leandro foi
adotado, quando criana, por uma famlia francesa, morando naquele pas at os quatorze
107

anos de idade. Voltando para o Brasil foi abandonado no abrigo onde aprendeu cavaquinho
de ouvido. Rafael conta que foi menino de rua, passou por muitas privaes e tambm foi
acolhido no abrigo, onde teve seu primeiro contato com o cavaquinho. Atualmente, alm do
cavaquinho toca tambm contrabaixo. Ambos tornaram-se excelentes instrumentistas, tocam
na Orquestra Villa Lobinhos e em grupos de msica popular, introduzindo-se na vida
profissional.
Rafael Nogueira, contrabaixista do grupo, lembra que o incio de sua participao no
PVL, ocorreu quando Turbio Santos o viu tocar no Projeto Apanhei-te Cavaquinho e o
convidou para participar do primeiro curso de frias, em 2000, no Museu Villa Lobos. Foi
selecionado e da primeira turma de formandos. Como ele no tinha famlia morou em um
espao na ONG Viva Rio, at se formar. Reconhece e destaca a importncia de ter sido
acolhido por um projeto social que lhe proporcionou alternativas de existncia:

...vim de um projeto, j morei na rua, j passei vrias necessidades, como tem muita
gente que passa a e eu sinto que o projeto, no s como o Villa Lobinhos mas o
Projeto Apanhei-te Cavaquinho de onde nasci praticamente, me tirou de muitas
coisas ruins que eu poderia estar hoje a na rua; estar roubando, estar matando e eu
sinto que o projeto conseguiu me absorver, ou seja, me tirou de uma vida que eu
poderia no estar sendo legal como est sendo agora. E eu sinto que cada dia que
passa est melhorando minha vida, entendeu... e eu luto, estou lutando, estou
correndo atrs, moro sozinho, perdi minha me em 98, meu pai eu no conheci e
estou correndo atrs a, mudou muita coisa, mudou muita coisa. (CEVL_1, p. 103,
Rafael Nogueira, Grupo de MPB, 21/06/2004).

Leandro ressalta que fazer msica e ter uma pessoa que lhe ensinou um instrumento
musical, foi algo muito importante na sua vida:

...eu tinha uma infncia no muito boa, no conheo meus pais biolgicos. Eu nasci
aqui em Niteri e fui jogado direto pro orfanato e a fiquei dois anos no orfanato e a
fui adotado por um casal francs que me levaram pr Frana... mas na verdade eu fui
criado pouco tempo, foi 8, 9 anos....ento quando eu voltei pro Brasil, meus pais no
quiseram mais a minha guarda; a adoo no era obrigatria e eles podiam devolver
quando quiserem, entendeu? Meu pai quis me devolver pr justia e acabou me
entregando de volta pro abrigo e foi onde tudo comeou a msica. Eu comecei a
estudar msica, cavaquinho, dentro do abrigo... assim que eu entrei j estava tendo
aula de cavaquinho [com o Budega]. No comeo eu no tinha nenhuma ligao
firme, no me incentivava muito estudar msica, nem cavaquinho; a depois de duas
semanas que o maestro ofereceu o cavaquinho pr mim, eu fiquei olhando, pegando
algumas notinhas e depois me animei um pouquinho e fui embora; Ento, por isso
que eu falo, de repente, se no tivesse aquele professor l, dando aula de
cavaquinho, talvez eu poderia ser como outros so dentro de um abrigo, marginais,
ladro, de repente estava cheirando cola, podia estar na rua a perambulando por a.
Ento, quando sempre eu vou fazer alguma entrevista e me perguntarem o que
significa a msica pr mim eu vou responder isso a. (CEVL_1, p. 103, Leandro
Serizac, Grupo de MPB, 21/06/2004).
108

Se no fosse a orquestra de cavaquinho l de Cabo Frio Leandro no estaria no PVL.


O maestro Bodega, de Cabo Frio, tem uma ligao antiga com Turbio Santos, o que facilitou
esse vnculo. No segundo ano ele foi convidado pr fazer parte do curso de frias o 2.
Encontro de Jovens Instrumentistas, em 2001 e foi selecionado para fazer o curso. Formou-
se em 2003.

3.3 O CONTEXTO SOCIOCULTURAL E OS PROCESSOS INTERATIVOS

Com o objetivo de promover o desenvolvimento comunitrio, as organizaes civis


vm se articulando em redes estabelecendo parcerias e buscando aes complementares. A
importncia dessa articulao reside no fato de que a unio de esforos, competncias e
propostas incidem na produo e troca de novos conhecimentos, metodologias de trabalho e
em uma maior insero da sociedade civil nas polticas pblicas. O PVL, como pertencente a
uma ONG que congrega inmeros projetos sociais de diferentes naturezas, por si, j se
estruturou em uma dinmica social multicontextual. A ONG Viva Rio desenvolve campanhas
e projetos sociais em cinco reas: direitos humanos e segurana pblica, desenvolvimento
comunitrio, educao, esportes e meio ambiente.
O carter interativo dos circuitos que os integrantes do PVL freqentam, estilos de
lazer, podem ser considerados importantes na conduo de suas experincias de formao. No
caso do PVL, percebe-se esse carter interativo em que a msica torna-se o eixo aglutinador.
Os jovens do PVL circulam nas diferentes atividades e espaos derivados do Projeto:
apresentaes (tocando diferentes gneros musicais), atividades filantrpicas (em escolas,
asilos), merchandising (nos espaos em que os patrocinadores e apoiadores solicitam), festas,
shows, etc. Alguns j se tornaram instrutores em seus grupos de origem como o caso da
Orquestra da Grota em Niteri, de Carla na Escola de Msica da Rocinha, Museu Villa
Lobos, Instituto Moreira Salles.
109

3.3.1 O COLETIVO NO PROCESSO PEDAGGICO-MUSICAL DO PVL


3.3.1.1 AS AULAS DE MSICA EM GRUPO

A construo do pertencimento aparece como um eixo na dinmica das atividades


musicais do PVL. Embora a proposta pedaggico-musical acentue a formao de
instrumentistas, com aulas individuais, os processos coletivos ligados prtica musical
prevalecem sobre os processos individuais. Exemplificando, a formao de grupos com
diferentes configuraes instrumentais, prevendo-se ensaios regulares, as brincadeiras
musicais, fruto dos encontros cotidianos na Casa da Gvea, as viagens, as apresentaes
musicais em diferentes espaos, tudo isso impregna uma dinmica em que estar junto,
musicando (SMALL, 1995) o que ressalta na prtica e nos depoimentos dos entrevistados
como fator altamente estimulante para participar do Projeto. As aulas individuais so
programadas e acontecem mescladas com aulas que acabam agregando mais alunos no
mesmo espao e tempo.
Um dos eixos condutores na concepo do processo de ensino e aprendizagem
musical a experincia musical na sua concretude, mediante o fazer musical coletivo:

...porque quando existe uma mecnica no ensino da msica, onde o msico comea
isolado em um canto, ele vai aprendendo as coisas isoladamente pr s depois
chegar no conjunto, a orquestra, o coro, a msica de cmara.... eu acho que o ensino
da msica precisa ser revolucionado nisso, ele precisa desde o comeo fazer msica
em conjunto. Eu acho isso a no Villa Lobinhos, uma experincia... a gente bota logo
todo mundo junto, Ah , mas os nveis so diferentes...no tem importncia,
mais um enriquecimento entende? Pr quem sabe menos e pr quem sabe mais
tambm, porque essa comparao. Porque, s vezes, voc est ensinando para o
garoto aqui, o outro est prestando ateno e est aprendendo muito mais com as
dificuldades do colega do que estar aprendendo com o professor (CEVL_2, p. 8,
Turbio Santos, diretor geral, 02/06/2004).

O coletivo uma referncia que permeia tambm o processo de avaliao ligado


performance musical, como sublinha Turbio: A cobrana se faz coletivamente... ns
precisamos que todos toquem bem na orquestra Villa Lobinhos, no grupinho de choro... tem
que mandar bala, ele tem que tocar bem. Ou seja, no momento em que os alunos esto
fazendo a msica em grupo ele solicitado e aquilo alavanca, ressalta o diretor do PVL.
Emannuelle, professora de trompete, ressalta a dimenso coletiva como uma forma
dos alunos construrem relaes intersubjetivas e enfoca o lado de se ver o outro na sua
individualidade, possibilitando personalizar os contatos:
110

Eu acho que quem fez estava muito preocupado no ser humano que ia sair dali,
porque isso que parece, a valorizao da pessoa no Projeto, de cada menino
daquele. No um projeto muito grande e ento voc trabalhando com poucos
adolescentes, voc tem um contato maior com eles, mais ntimo, voc se aproxima
mais da vida deles, voc tem mais contato, voc discerne quem quem, voc
personaliza cada um. Mais do que msica em si, eles esto sendo tratados como
pessoas, com todas as suas possibilidades, com sua personalidade sendo reconhecida
e eu acho que isso muito bom pr eles, se verem reconhecidos assim, eles sabem
que ns sabemos quem eles so, cada um deles. (CEVL_2, p. 123-157, Emannelle
Freitas, professora de trompete, 01-07-2004)

O processo coletivo no Projeto Villa Lobinhos adquire um significado na proposta de


excelncia musical porque imprime outra dimenso no ensino e aprendizagem musical pois
leva em conta as relaes intersubjetivas que se estabelecem, o que incide no significado do
fazer musical daqueles indivduos. Esse aspecto foi tornando-se cada vez mais evidente
durante o perodo de minha insero. Percebe-se que o agrupamento reflexo das afinidades
entre eles, em relao ao repertrio, idade, local de moradia. Existe uma movimentao no
sentido de promover a msica aqui e agora. De repente, eles pegam os seus instrumentos e
comeam a tocar e demonstram um grande prazer em estar ali, de tocar juntos Cria-se um
ambiente social onde o fazer musical propicia a performance, o criar, o aprender e o ensinar
msica.
O aspecto ldico outro trao que aparece na prtica coletiva de ensino e
aprendizagem musical sendo vista como um momento dialgico entre professor e alunos,
alunos e alunos, em que

...voc est aprendendo para coletividade, voc tem que estar, principalmente atento
ao que est acontecendo, voc tem que deixar acontecer...vamos brincar, rene todo
mundo, fica brincando - e isso d um resultado...esto me dando tal msica, tal
experincia de volta e a voc faz uma avaliao; o que est falhando, o que est
pegando, ento eu acho que o exemplo fundamental. (CEVL_2, p. 21, Turbio
Santos, diretor geral, 30/06/2004).

Essa prtica social da performance musical no PVL propicia uma abertura para a
diversidade cultural que se apresenta pela relao entre alunos, professores, artistas
convidados e abre espao para que os diferentes valores socioculturais sejam compartilhados.
Rodrigo corrobora essa viso:

...Porque acho que eles, vo pr l com um certo conhecimento, alis, um


conhecimento bem amplo e legal aceitar a proposta deles e l a gente entra com a
nossa. Qual a nossa? Deles mesmo. Um traz um concerto de Mozart... p, aqui d
pr fazer isso aqui, vamos tocar...o professor do outro est ensinando no sei o
qu...ah, que conheceu um Guerra Peixe e assim vai e a eles mesmo vo trocando
figurinhas e isso que importante. a troca, eles aprendem com a troca, um
aprende com o outro e o professor est ali pr lapidar, entendeu, j existe um
conhecimento, o professor est ali e Vamos fazer isso aqui; oh, concerto tal, j viu,
111

j ouviu, vamos fazer? Vamos! Quer tocar? Vamos!. (CEVL_2, p. 64-65, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06/12/2004).

Luis Cludio, professor de violo, cavaco e trombone sempre est congregando os


alunos em suas aulas, independentemente do nvel e da especificidade do instrumento. Muitas
vezes, suas aulas se tornam roda de choro e MPB, onde todos os que esto na Casa se
integram. Adotar o processo coletivo nas suas aulas uma estratgia didtica que ele defende:

....porque s vezes tambm a gente tendo aula s com um aluno fica um pouco chato
na verdade, ento eu procuro, se tiver um outro aluno aqui, mesmo que no esteja no
dia de aula dele, ou enfim, ex-aluno, mas que ajude o outro e a gente toque junto
porque assim d mais gosto, para o aluno novo ou at um outro que tenha uma
dificuldade (CEVL_2, p. 124, Luis Cludio, professor de violo, cavaco e trombone,
03/06/2004).

Ricardo Costa, professor de bateria e percusso, tambm enfatiza o coletivo em suas


aulas. Ele sempre trabalha um elemento musical de forma que os alunos vivam uma
experincia rtmica complexa e valoriza a bagagem que o aluno traz. Sobre essa forma de
trabalhar em grupo ele diz:

...Ao longo do tempo, eu reparei que funciona muito melhor isso. Tem por exemplo,
o Bruno [aluno do 2. Ano] s vezes chega aqui sabendo coisas que eu nunca ensinei
pr ele. Por qu? Porque ele amigo do Diego que j aprendeu todas essas coisas e
ele j assimilou; na verdade, uma espcie de uma cadeia. Simplesmente s
algum chegar e falar isso aqui assim. O difcil desta histria toda, essa formao
individual, que eu acho que muito mais difcil de aprendizado. Quando voc
junta todos eles, voc no sabe como que eles aprendem: equivale a dez aulas
particulares e individual. Por qu? Um est puxando o outro [...] a reunio deles, este
lado de ensaiar em grupo, de tocar junto, um puxa o outro. Isso, eu no tenho a
menor dvida, a coisa que eu mais vejo hoje em dia, mais lucrativa para eles, a
aula em grupo [...]. As orquestras, os ensaios. Tudo bem, precisa ter tambm esse
lado individual pr saber: olha assim feijo com arroz, aqui dobra, aqui desdobra e
tal, mas isso rpido. Onde eles vo aprender...vo saber tudo, dinmica, junto
(CEVL_2, p. 113-114, Ricardo Costa, professor de percusso, 09/06/2004).

Para Emmanuelle Freitas, professora de trompete, a unio que eles tm ali dentro
no forma msicos isolados. Ali eles agem como uma equipe o tempo inteiro, eles se juntam,
eles fazem msica, eles conversam e alm da prpria msica, o projeto faz com que eles se
aproximem e criem uma relao de amizade. Isso faz com que eles tenham na prtica
musical o elo que constri suas relaes intersubjetivas, valores e a identidade pessoal e
coletiva, delineando tambm a identidade do Projeto.
112

3.3.1.2 A RELAO COM AMIGOS E PROFESSORES

A amizade emerge como um fator significativo e muito citado pelos alunos no que
concerne s formas de se estabelecer as relaes sociais em que a afetividade se mostra em
primeiro plano. Trata-se de uma forma de interao na qual os integrantes do PVL realizam
trocas de experincias mediatizadas pela vivncia que comporta momentos em que esto
presentes a msica, o lazer, as discusses, os consensos, etc. E, nesse caldo de experincias
coletivas que eles destacam os amigos como um dos pontos positivos do PVL.
Todos os entrevistados citaram os amigos que fizeram durante o curso constitui-se
um fator estimulante para que eles freqentem o Projeto e que isso influi positivamente na
aprendizagem musical. Carla fez muitos amigos no s no Villa Lobinhos mas tambm com
o pessoal de Niteri que conhecem o Villa Lobinhos, o pessoal do Santa Marta, de Mesquita.
Fbio tambm refora esse carter de rede que se forma por meio das amizades construdas no
e pelo PVL:

O pessoal da Rocinha, pessoal da Grota... muitos amigos aqui. Tem alguns que at j
saram, mas ainda posso conversar de vez em quando, mas a amizade aqui
tima...como moro em Mesquita, quando tem apresentao, festa, eu procuro dar um
jeitinho de estar presente tambm pr zoar um pouquinho, brincar com meus amigos
e conversar CEVL_1, p. 44, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).

Esses exemplos reforam a amizade como uma forma de sociabilidade desenvolvida


na dinmica do cotidiano, nas aes ordinrias da vida em que o ldico e o lazer so
componentes determinantes.
O ambiente de congregao que se ressalta nos depoimentos revela, tambm, a figura
do professor como um agente estimulador do aprendizado musical e bem como uma pessoa
envolvida com os diferentes aspectos da vida dos alunos, tendo um papel para alm de ensinar
msica.

...a gente aqui no aprende somente msica, a gente aprende sei l... viver, tem uma
moral de vida diferente, tem o reflexo dos professores. Por exemplo, o Rodrigo, que
uma tima pessoa e tem o reflexo deles e a gente acaba aprendendo a lidar com a
vida de uma maneira diferente aqui tambm. O Projeto no um Projeto tambm
paralelo voltado pr msica, isso que vocs tem que aprender e tal. Aqui a gente
conversa, os professores, s vezes, deixam de ser professores e se tornam amigos,
eles so sempre amigos e muitas vezes amigos ntimos... a gente fica conversando
(CEVL_1, p. 98-99, Walther de Oliveira, aluno formando 2004, 11/06/2004).
113

O fato de ter um interlocutor que, quando interage com eles, fala de uma realidade
que lhe , de fato, familiar, imprime uma confiana e legitimidade nas possibilidades de se
tornar um msico ou educador. Walther, nesse depoimento, destaca o valor dessa
caracterstica do educador:

O Rodrigo fala das situaes que ele passou pr chegar ao que ele hoje,
coordenador, e isso a gente toma como reflexo e o Rodrigo ralou pr caramba pr
fazer o que ele est fazendo aqui agora, ele ralou muito...fiquei sabendo e ele falou.
Ento, isso a a gente, como reflexo, dele e procura fazer o mesmo. Por exemplo,
comecei como aluno e esse Encontro de 2004, j dei aula e tal e ento a gente v eles
como um exemplo de boa vida, de boa pessoa, ao invs de apenas um
professor.(CEVL_1, p. 98-99, Walther de Oliveira, alunos formandos 2004,
11/06/2004).

A relao dos alunos com os professores no PVL emerge como um fator bastante
positivo para o desenvolvimento musical deles e tambm como um relacionamento que reflete
vrias faces de um processo interpessoal: a afetividade, a admirao pela dedicao e
competncia, a possibilidade de se espelhar como profissional e ser humano. Todos, sem
exceo, se referiram muito carinhosamente quando falaram dos seus professores. O
depoimento de Ademar pode ilustrar essa postura:

Eu me amarro nos professores daqui, eu gosto muito do Chico. O Chico s vezes


vive puxando minha orelha, eu tenho ele como um segundo pai, eu gosto muito do
Chico mesmo. A Bia tambm, eu tenho todas essas pessoas como... todos os
professores que esto aqui e alguns que j passaram, eu tenho como excelentes
professores. Eles sabem no s como transmitir a msica, mas eles trabalham como
amigos mesmo e a gente acaba se envolvendo no s como professor e aluno, mas
como amigos (CEVL_1, p. 13-14, Ademar dos Anjos, aluno formando 2004,
04/06/2004).

E o fato desse relacionamento ir alm de se ensinar msica nas aulas faz diferena na
anlise de como situaes pessoais, quando so consideradas pelos professores, funcionam
como um estmulo para que o aluno continue apesar dos problemas.
Esses fragmentos de depoimentos podem ilustrar o relacionamento dos alunos com
os professores, podendo-se inferir que o PVL tornou-se um espao prazeroso de se ensinar e
aprender msica. Ademar, refere-se com carinho e gratido aos professores e sugere que eles
sejam sempre do jeito que so: brincalhes quando tm que ser, quando tem que puxar a
orelha, puxam mesmo, no tem meio termo no, quando aquilo ali, aquilo ali mesmo e
espero que eles continuem assim. A noo de responsabilidade e compromisso com o Projeto
ressaltada por ele tudo tem que ter o momento de distrao e tem que ter o momento de
seriedade. Se a pessoa veio pr c, ela tem que sentar, ouvir e estudar porque ela est aqui pr
aprender mesmo.
114

3.3.1.3 A REDE FAMLIA

A famlia se reflete, nos depoimentos dos entrevistados, como a representao de um


ncleo social imantado da capacidade de proteger, de encaminhar, de estimular o
desenvolvimento da criana e do jovem. uma representao social que se pluraliza para
alm do modelo tradicional (pai-me-filhos) e o espao de segurana que envolve a aura
familiar, inclui tambm situaes de conflito, de ausncias, de violncia. A famlia vista, por
coordenadores e alunos, como uma importante interlocutora, parceira na busca de
encaminhamentos que envolvam as crianas e os jovens. Emmanuelle, professora de
trompete, relata:

...muitas famlias adotam outros meninos, que o caso de Marquinhos... Ento as


famlias se unem e uma coisa muito social... Um pai ajuda o outro, que ajuda o
terceiro para pegar seis meninos que vo tocar e levam instrumentos e se
disponibilizam a arranjar meio de comunicao pr divulgar isso. E ento quando o
nome do Villa-Lobinhos vem em algum jornal, algum folder... vem sempre aquela
lembrana de quantas pessoas esto envolvidas pr que os meninos possam realizar
esta atividade (Emmanuelle Freitas, 01/07/2004).

A maioria dos entrevistados, provenientes de ncleos familiares estruturados, indica


que o apoio e estmulo desse ncleo significativo para seus estudos musicais. Ser msico, ter
oportunidade de estudar sistematicamente, revela-se como uma oportunidade de ter acesso
quilo que somente a classe mdia teria se fosse para arcar com as despesas. Muitos dos
alunos j tm, na famlia, pessoas que tocam de ouvido ou que tm relao com a msica
atravs de participao em grupos musicais ou escola de samba da comunidade. Ademar
conta que em sua famlia o apoio para fazer msica vem do prprio pai que j foi msico e
tocou trompete. Essa condio faz Ademar no vacilar em querer ser msico:

A minha famlia sempre me deu apoio em termo de msica, meu pai sempre chegou
e (falou) no, isso que voc quer, vai fundo, eu te apoio, corre atrs mesmo, no
deixa de fazer...e hoje em dia ele fala at brincando meu irmo, se eu fosse voc eu
no largava a msica mesmo no. Cai dentro do saxofone, porque se eu te der uma
colher de pedreiro na tua mo, tu t ralado. porque eu no entendo nada, no sei
nada a no ser msica mesmo (CEVL_1, p. 7, Ademar dos Anjos, aluno formando
2004, 04/06/2004).

O fato das famlias da cidade de Mesquita estarem envolvidas com o PVL possibilita
uma divulgao na rede familiar e de amigos que se reflete, concretamente, na constituio da
Orquestra da Igreja Assemblia de Deus, constituda de 80% de msicos que estudam no
PVL: so trs clarinetistas, todos do PVL, O Fbio, o Fabiano e o Leandro; dois sax tenor,
115

com o Jesiel do PVL; dois sax alto com o Ademar do PVL; dois trombones, Daniel (PVL) e o
pai do Ademar; e trs trompetes com o Rafaelzinho (PVL). Eles ensaiam regularmente, aos
sbados, e tm como modelo a prpria vivncia na Orquestra Villa Lobinhos. Trata-se de uma
estrutura musical que d destaque Igreja, um espao de trabalho para os msicos e
congrega, atravs da prtica musical, valores de cunho espiritual e religioso.
Da mesma forma, Carla tem em seus familiares um suporte afetivo para continuar a
estudar msica. Seus pais se mostram orgulhosos em v-la se apresentar e ser aluna do PVL:

Minha me adorou, minha me e meu pai, cara, me do a maior fora. Eles adoraram
e se um dia eu quiser sair daqui acho que eles no deixam no...eles querem que eu
faa mesmo a faculdade de msica pr me tornar profissional. Meu pai ento, porque
meu av era cantor italiano...Meu pai toca um pouquinho de violo...e so muito
orgulhosos e falam pr todo mundo, toda vez que tem alguma coisa...(CEVL_1, p.
22, Carla Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).

A famlia vista como um suporte importante e positivo no estudo de msica que


aparece como alternativa vida ociosa que, muitas vezes, o ambiente da periferia e da favela
impe ao jovem. Estar no PVL significa tambm uma fonte de renda quando eles comeam a
se apresentar, o que reflete na aceitao mais enftica da famlia.

3.3.1.4 UMA SEGUNDA CASA: A EXTENSO DA FAMLIA

A ausncia do convvio com uma famlia citada, pelos que no a tem, como algo
que se constitui em vcuo na sua existncia. Assim, as oportunidades propiciadas por projetos
sociais aparecem como uma representao social que minimiza essa ausncia, ou seja, a
representao da famlia se materializa em outra que o reconhecimento do espao fsico e
simblico do PVL como uma segunda casa. Trata-se de uma metfora associada a um
ambiente aconchegante, seguro, harmonioso em que se sentir bem a essncia da idia. Dessa
forma muitos os alunos e professores entrevistados indicaram, pelos depoimentos, a
construo dessa idia. Carla, aluna de flauta e formanda 2004, diz que o

o ambiente muito bom... um ambiente de famlia mesmo, todo mundo gosta de


todo mundo, no tem rixa com ningum, muito bom. Me sinto muito vontade,
costumo dizer que a minha terceira casa, porque a minha primeira casa a minha
casa, minha segunda a Escola de Msica e a terceira o Villa Lobinhos (CEVL_1,
p. 30-31, Carla Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).
116

Marquinhos, formando 2004, tambm destaca que o Projeto Villa Lobinhos aquela
segunda casa, aonde voc pode fazer o trabalho de escola, tocar etc. Isso aqui como se fosse
a nossa casa, uma segunda aqui, porque na nossa casa, a pessoa pode fazer tudo, aqui tambm,
diante de algumas regras, mas pode fazer tudo. Reconhecer que conviver em um espao
coletivo requer a observao e o cumprimento de algumas regras reflete a conscincia dos
direitos e deveres, valores relacionados construo e exerccio da cidadania que deve ser
exercitada a partir de micro-relaes, como Marquinhos exemplifica. Henrique, aluno de
cavaquinho do primeiro ano, ressalta situaes e aspectos que so vividos no cotidiano, mas
que quando embevecidos em uma dinmica ldica e prazerosa, produz um efeito
socializante altamente positivo e propcio para desenvolver um projeto pedaggico:

...ambiente aqui totalmente diferente de outros cursos, de outras instituies que


ns vemos por a. Outras instituies no tm a mesma liberdade que ns temos.
Porque na realidade como se fosse uma segunda casa, porque quando a gente no
est em casa, a gente est aqui estudando, tendo aula, ensaiando, bagunando,
lanchando (risos)... (CEVL_1, pg 112, entrevista com o grupo de choro, 21-06-
2004)

3.3.2 A REDE DE SOCIABILIDADE INSTITUCIONAL DO PVL

Redes sociais so redes de comunicao que envolvem a


linguagem simblica, os limites culturais e as relaes de poder.
Fritjof Capra (2003)

De acordo com Nohria e Eccles (1992, p. 32) o uso mais geral para o termo rede
para uma estrutura de laos entre os actores de um sistema social. Estes actores podem ser
papis, indivduos, organizaes, sectores ou estados-nao. Para os autores um ponto
essencial na formao de rede que os seus laos podem basear-se na conversao, afeto,
amizade, parentesco, autoridade, troca econmica, troca de informao ou quaisquer outras
coisas que constituam a base de uma relao (NOHRIA; ECCLES, 1992, p. 32).
A rede de sociabilidade que conecta as ONGs e projetos sociais ao PVL
multidirecional, no-linear e tem diversos elos ligados pelas esferas cultural, artstica,
institucional e pessoal presentes na sociedade da cidade do Rio de Janeiro que tem um
movimento social sui generes em relao a criao de ONGs relacionadas com a violncia
contra a juventude e que tomou flego a partir da Chacina da Candelria em 1993. Este
117

fator corroborado por Novaes (2002) ao destacar que na dcada de 90 mais do que nenhum
outro estado da federao, no Rio de Janeiro surgiram iniciativas inovadoras para fazer face a
esta situao de fragmentao social. A forte atuao das organizaes no-governamentais,
inseridas em espaos de grande diversidade cultural, transformou o Rio de Janeiro em uma
espcie de laboratrio social que inspira aes semelhantes em outros pontos do pas
(NOVAES, 2002, p. 12). E nesse perodo surgiram ONGs que podem ser chamadas de
comunitrias e da cultura cujo foco se caracteriza pela ...ao local e pela produo de
gestores locais. Dentre elas destacam-se aquelas que se caracterizarem atravs de um produto
cultural especfico (teatro, msica, dana, produo de vdeos) gerando novos tipos de
profissionais da rea de cultura e comunicao (NOVAES, 2002, p. 23).
Como j foi mencionado, a prpria concepo do PVL estabelece a conexo entre
projetos sociais ligados prtica musical no mbito da regio metropolitana do Rio de
Janeiro. Assim, podemos considerar uma rede estabelecida entre os projetos sociais j citados,
igrejas, escolas pblicas e privadas, considerando que o PVL promove concertos didticos
nesses espaos; instituies como o Museu Villa Lobos, Centro Cultural Campo Grande,
Escola de Msica da Rocinha, Instituto Moreira Salles, Pr-Arte, Reciclarte-Orquestra Grota
da Surucucu, Colgio D. Pedro II, entre tantos outros. Esta rede movedia e se re-estrutura a
cada novo contato estabelecido, quer seja pelas apresentaes, quer seja pela configurao de
alunos e professores que se formam a cada ano.
Os princpios constitutivos, ou seja, os valores e os objetivos compartilhados definem
a identidade da rede, assim como os princpios de natureza prtica configuram o processo de
atuao entre seus componentes. O cotidiano, com foco nas relaes que sustentam rotinas,
contm conjuntos de redes de relaes inerentes s atividades humanas de toda ordem. No
caso do PVL a prtica musical dos indivduos e dos grupos sociais, imantados pelos seus
contextos e pelo seu cotidiano, o fio condutor das atividades que do origem a redes de
relaes pessoais, musicais, etc. So redes espontneas que derivam da sociabilidade das
pessoas mediadas pela prtica musical que do sustentao aos propsitos do Projeto.
Exemplificando como os entrevistados da pesquisa entendem e reconhecem as redes
conectadas ao PVL, Carla destaca que sua participao na escola de msica Pr-Arte - um dos
projetos mais citados pelos alunos como um local de aprendizagem e performance musical -
estimulada pela convivncia com amigos da mesma idade e que tocam em grupo:

legal porque basicamente o pessoal do Villa Lobinhos - os ensaios so quartas e


sextas, vai todo mundo junto daqui pr l... s vezes a gente viaja e todo mundo se
conhece e tm professores daqui que tambm tocam l, como o Luis Cludio
118

professor de violo daqui, toca trombone... a gente no p.a nada justamente por ser
bolsista, atravs da Tina, junto com esse convnio, cm o Villa Lobinhos. Nenhum
dos Villa Lobinhos paga (CEVL_1, p. 25, Carla Mariana, aluna formanda 2004,
08/06/2004).

A Pr-Arte tem uma ligao muito estreita com o PVL. Tina Pereira, flautista e
coordenadora do Projeto Flautistas da Pro-Arte, sempre inclui jovens bolsistas em seu
trabalho. Foi professora de flauta-doce no PVL, de 2000 a 2003 e estabeleceu um convnio
informal o que oportuniza os alunos participarem de um trabalho musical respeitado.
A proximidade com os autores, arranjadores, msicos famosos promovem um
processo de desmitificao desses e incide na qualidade da performance, que se torna
compartilhada com os autores. A participao dos alunos do PVL em diversos contextos de
ensino e aprendizagem musical possibilita novas inseres e fortalece a rede de formao de
jovens msicos, misturando, inclusive, classes sociais. Carla reconhece que se no fosse o
Villa Lobinhos ela no entraria na Pr Arte:

...Porque simplesmente eu no conheceria os Flautistas... no vou saber como


chegar, pr entrar. E aqui, foi o meio facilitado porque eu tinha aula com a Tina que
convidou pr ir l assistir e falou que j era pr comear tocando. E muito legal
porque eles incentivam muito, eles no deixam assim... Ah... eu no sei tocar...,
No, voc sabe tocar sim, voc vai tocar sim, porque eles acreditam muito na
gente, no nosso potencial. Eu acho que isso muito importante, porque s vezes o
aluno acha assim Ah... eu no sou capaz de fazer isso... e o professor fala que
voc capaz e que voc vai conseguir e quando a gente vai l e v que capaz
mesmo e consegue fazer e acho que isso muito importante, eu acho que... isso
muito importante (CEVL_1, p. 24-25, Carla Mariana, aluna formanda 2004,
08/06/2004).

Para Marquinhos, participar da Pro-Arte foi uma experincia anterior a sua insero
no PVL. Foi encaminhado por Rodrigo e Tina quando tinha nove anos de idade. A Pr-Arte
tambm foi um incentivador de eu ter gostado de chorinho e de samba .
Jocielton conta que tinha muita vontade de conseguir uma bolsa e entrar na Pr-Arte
antes mesmo de ingressar no PVL. Conseguiu no primeiro ano atravs de um convite da Tina:
E eu aprendi muito, que l tm repertrios variados e j fizeram Noel Rosa, Pixinguinha,
Tom Jobim e agora no momento estou fazendo Baden Powell. Essa participao constitui-se
em uma prtica importante na formao musical de Jocielton e de todos os integrantes do
PVL Daniel, Ademar, Luis Cludio, Diego, Marquinhos, Carla pois trabalham naipes, os
diferentes grupos de instrumentos, e a prtica focada na performance do repertrio sobre o
qual so realizados ensaios de naipes na quarta-feira, e sexta-feira ensaio do grupo.
119

Outro projeto social bastante conectado com o PVL, no sentido de trnsito dos
alunos e troca de experincias entre os coordenadores, a ONG Escola de Msica da
Rocinha, j citada nesse trabalho. O que se pode ainda destacar o enfoque na relao da
Escola com a Comunidade da Rocinha que a aponta como um espao material e simblico
visto com muito carinho por todos os moradores de l. A relao de solidariedade entre os
projetos pode ser ilustrada pela cooperao entre eles quando h dificuldades. Carla relata que
pode estudar flauta transversal e doce porque a Escola empresta os instrumentos para o PVL:
como o Villa Lobinhos meio parceiro da Escola de Msica, ela cede o instrumento pr tudo
que eu precisar fazer; s se eu sair da Escola eu teria que devolver o meu instrumento. Dessa
forma, Carla, alm da Pr-Arte, participa ativamente dos dois projetos sociais e toca em
vrios grupos musicais como o Quinteto de Samba pela Escola de Msica da Rocinha,
composto por flautas, violo, cavaquinho, voz e percusso; um grupo de samba de amigos que
se juntaram, tocam na noite ganhando cach. E destaca que a base de tudo, o chorinho, eu
aprendi no Villa Lobinhos.
E a solidariedade entre os dois Projetos reconhecida por Gilberto, coordenador da
Escola de Msica da Rocinha, como um dnamo que otimiza o processo pedaggico-musical
de ambos, propiciando uma troca positiva, considerando que a proposta do PVL bastante
diferenciada dos outros projetos sociais, mas que se torna complementar.
Outro elo dessa rede a conexo que Rodrigo estabeleceu com o Colgio D. Pedro
II, escola pblica federal, onde est desenvolvendo a temtica da msica ligada questo do
mercado de trabalho. Para tanto elaborou com os alunos, um projeto de produo musical em
que os msicos contratados so protagonizados pelos alunos do PVL. Seu objetivo
promover um intercmbio entre os dois contextos de aprendizagem musical. A proposta
ensejou aos alunos do Colgio visitar o PVL, conhecer os alunos e a proposta socioeducativo-
musical.
Para desenvolver tal proposta, foi promovida, conjuntamente, uma produo musical
voltada para o repertrio de Tim Maia com a participao do diretor do Colgio D. Pedro II,
professor Andrezinho, fazendo um cover de Tim Maia, com o grupo instrumental do PVL
acompanhando. Esta apresentao ensejou uma grande movimentao entre as duas
instituies, com ensaios e a produo do espetculo que aconteceu no mini-teatro do
Colgio, com a presena macia de alunos e professores.
Pode-se perceber que existe uma solidariedade entre os projetos sociais e instituies
mencionados o que estabelece um vnculo produtivo entre eles. So relaes com forte trao
120

pessoal que se refletem na instituio, mas a origem do vnculo entre pessoas que tem
objetivos e ideais em comum:

Eu no tenho contato com todos os projetos que tm vnculo com o Villa-Lobinhos,


infelizmente, mas com os que eu j tive, principalmente a Orquestra da Grota l de
Niteri, ns temos uma relao muito boa, muito estreita, e j inclusive tivemos
momentos de intercmbio. A garotada j veio tocar aqui na Rocinha, fizeram um
concerto maravilhoso aqui no ano passado e eu estou agora, provavelmente,
convidando um rapaz de l, pr fazer um trabalho com a gente em Tangu, que um
municpio prximo Niteri e s no existe um intercmbio maior, por conta das
distncias... Mas sem dvida existe uma relao muito boa entre esses projetos e um
ambiente de solidariedade bastante claro. Existe uma relao institucional muito
positiva que abre portas tanto pr um lado quanto pro outro no sentido da indicao
dos grupos, ns indicamos os grupos de l, eles indicam os grupos daqui...esse
vnculo institucional traz benefcios para ns todos. (CEVL_3, p. 38, Gilberto
Figueiredo, 30/06/2004).

O projeto social desenvolvido na Favela Grota do Sururucu, Niteri, desenvolvido


pelo Instituto Reciclarte. Nasceu h 20 anos por iniciativa da professora, Otvia Selles, de
criar um espao onde os jovens recebessem apoio escolar e desenvolvessem atividades
complementares escola, como jardinagem, horta, corte e costura, desenho e msica. Sua
iniciativa continuou com o trabalho de seu filho Mrcio Selles que, em 1995, criou a
Orquestra de Cordas da Grota. Desde ento, esta j se apresentou no Museu de Arte Moderna
de So Paulo, no Teatro Carlos Gomes, no Rio, no Museu de Arte Contempornea e no Teatro
Municipal, em Niteri. O grupo composto por doze jovens que tocam violino, viola e
violoncelo, entre eles Walther, formando do PVL, 2004, e seus irmos Wagner e Felipe. Ao
121

todo, somam-se seis jovens moradores dessa comunidade que tiveram e ainda tem ligao
com o PVL. Marcio Selles expressa sua idia: A msica desafio e prazer. Tem o papel de
fazer as pessoas se encontrarem dentro da sociedade. Vrias pessoas dizem que a arte no
oferece retorno financeiro, mas h o aspecto da socializao, deles se juntarem. Sua mulher,
Lenora, educadora musical e outros dois professores, Fbio Almeida (tambm professor no
PVL) e Fred Lycurgo, alm dos monitores membros da orquestra, formam a equipe
pedaggica e administrativa do Projeto que ensinava apenas flauta. Os alunos solicitaram a
ampliao para estudar violino: Deu certo, eles aprendiam msica medieval e renascentista
mais depressa que meus alunos de colgios particulares. O repertrio engloba msica
popular brasileira e pea do repertrio clssico para orquestra de cordas com autores como
Bach, Corelli e Schubert, entre outros.
O relacionamento entre esses dois projetos tem caracterstica da horizontalidade,
otimizando as propostas musicais dos dois projetos sociais. Resulta em uma simbiose positiva
no aspecto pedaggrico-musical, pois os alunos dos naiopes das cordas e sopros puderam ter
no PVL uma formao que permitiram a eles atingir um nvel tcnico e interpretativo que
propicia a execuo de obras para orquestra e solo, as quais exigem uma formao orientada.
O trnsito entre as duas cidades acaba possibilitando que ambos os projetos se apresentem e
desenvolvam propostas socioeducativa-musicais em escolas, instituies pblicas e privadas
tornando-os conhecidos e reconhecidos pela qualidade do trabalho pedaggico-musical que
desenvolvem.
Joo Moreira Salles reconhece e sublinha que a relao entre esses dois projetos
sociais resulta em uma troca benfica e profcua para o desenvolvimento de ambas as
propostas pedaggico-musical:

eu sei de uma relao muito prxima com o pessoal da Grota e eu acho que ali h
uma troca de experincias que ajuda a ambos [os projetos]. Eu acho que o Mrcio
da Grota aprendeu muito com o Villa Lobinhos e na verdade alguns professores da
Grota so professores do Villa Lobinhos, dividem os mesmos professores e eu acho
que o pessoal do Villa Lobinhos se beneficiou muito do trabalho da Grota porque
pode incorporar Orquestra Villa Lobinhos um grupo de alunos e instrumentos
que no aparecem usualmente quando voc vai s comunidades carentes do Rio de
Janeiro. Se no fosse pelo [Projeto] da Grota [...] seria difcil imaginar que teria
violino, violoncelo, viola, os instrumentos de uma orquestra. Ento eu acho que ai
h uma mistura extraordinariamente saudvel de parte a parte (Joo Moreira Salles,
entrevista em 01/09/2005).

A relao entre os coordenadores marcada pela solidariedade, respeito mtuo e


admirao. Presenciei cenas que me permitem inferir essas caractersticas no inter-
relacionamento entre as pessoas que fazem e participam dessas instituies. Por ocasio de
122

uma das visitas que fiz, chamou-me a ateno a forma como os coordenadores, Rodrigo e
Mrcio se cumprimentaram. Lanando mo de uma metfora para expressar essa impresso,
pareceu-me dois caciques de duas tribos se encontrando, com festa sonora, representada pelos
rufar dos instrumentos dos alunos, na chegada de Rodrigo ao espao do projeto. Este gesto foi
muito significativo e reporta-se perspectiva de Goffman (1988) sobre os smbolos que
transmitem informao social, sendo que este gesto coletivo pode ser considerado um smbolo
de prestgio de Rodrigo, corporificando o PVL, naquele momento.
Essa passagem foi significativa para a compreenso da dinmica da rede que tece as
prticas musicais entre os projetos e instituies que constituem os elos dessa trama
sociomusical, em que meu ponto de partida foi o PVL. Um, entre os possveis e inmeros
pontos de partida de uma rede e sociabilidade social. As favelas Comunidade do Morro Dona
Marta e a Comunidade Grota do Surucucu, em Niteri, so pontos importantes da rede de
organizaes que interagem com o PVL.
Considerando a relao entre as oportunidades e o espao urbano a trajetria de
Walther e Wagner, da Favela Grota do Surucucu, mostra como um trabalho social pode
ampliar as alternativas de percurso. Eles partem de um dado quantitativo para dimensionar
uma perspectiva qualitativa do impacto da prtica musical acessvel aos moradores da favela
mediante o trabalho da ONG Reciclarte:

Tem uma continha fcil. Dos mil, novecentos e noventa esto na boca de fumo..no
trfico. Andavam junto com a gente e at muitos j morreram. Oito estudam e dois
tocam violino e foi isso que aconteceu. Muita gente entrou no trfico e graas a
eles, porque a oportunidade eles tiveram tambm, mas no funcionou. E de repente,
at mesmo a gente, se no tivesse entrado na msica, como eu disse antes, a gente
no tinha perspectiva de vida e agora, graas ao tranco que o nosso pai deu na
gente, est dando certo.

E essa vivncia com a msica e o Projeto desenvolvido na Grota produziu um efeito


domin nos jovens da comunidade, construindo outras referncias e outros valores:

Pois , agora pr comunidade, a gente o heri da favela, somos os heris, porque


eu acho que a gente est, de repente, impedindo, eles de ir para um caminho errado
e j que esto na msica, no tem nada a perder. Hoje, pode-se dizer que a metade
da comunidade j est fazendo algo. Muita criana, muita criana mesmo, muita
gente subindo com caixa de violino, pessoas que eu nem conhecia. Onde voc olha,
voc v caixa de violino, muita gente fazendo aula (CEVL_1, p. 92, Walther e
Wagner de Oliveira, alunos formandos 2004, 11/06/2004).

E esses garotos acabam sendo pontos de abertura para outras redes como relata
Walther: comeamos a tocar em outros projetos tambm e samos nos infiltrando em vrios
projetos. Atravs da Orquestra de Cordas da Grota que descobrimos isso aqui [o PVL], daqui
123

descobrimos a Pr Msica e foi tudo assim, um puxando o outro. O trabalho realizado na


Favela da Grota pela Orquestra de Cordas vem transformando a dinmica daquele espao e o
gosto por instrumentos e por um repertrio, antes estranhos para eles.

3.3.3 O ESPAO URBANO: CONSTRUINDO IDENTIDADES NAS DINMICAS SOCIAIS

...Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,


medo s de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.

Medo: no de tua lmina nem de teu revlver


Nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade...
Favelrio Nacional
(Carlos Drummond de Andrade)

3.3.3.1 O MORRO DONA MARTA

Conhecer o Morro Dona Marta,


ou Santa Marta, como muitos
falam, foi um momento
significativo para um delineamento
de minha perspectiva do que ,
pelo menos, fisicamente, uma
favela. Rodrigo foi meu guia e
me orientou no trajeto de
caminhos tortuosos. Do morro,
v-se a pequena ladeira e uma
escada que pode ser considerada a
entrada da comunidade.
Como era a primeira vez que eu ia ao Morro, o estranhamento foi, num primeiro
momento, com a organizao e a proximidade das casas. As portas muito prximas uma das
outras e as sobreposies dos pisos, com as casas construdas no sentido vertical. Havia uma
124

forma de organizao onde os caminhos pareciam ter sido construdos de forma rizomtica,
onde cada beco leva a um caminho, que leva a um outro, um verdadeiro labirinto. Rodrigo
conhecia bem todos aqueles caminhos que, apesar de assimtrico, resultava em uma forma
que determina as pessoas a morarem to prximas, grudadas. As escadas, irregulares,
revelavam a forma improvisada de construo, como se as direes representassem as
decises do aqui e agora, ou seja, os problemas mais imediatos tinham que ser resolvidos e
no havia tempo para planejamentos. Rodrigo conhecia todo mundo, cumprimentava a todos,
sempre afetuoso, simptico e os retornos nos cumprimentos denotavam que ele tambm
muito querido e respeitado por l.
Rodrigo bateu e anunciou visita na casa de Nogueira e Leandro Serizac. Como no
nos esperavam, ficaram surpresos com minha presena. Nogueira foi afetuoso e sorridente e
Leandro ficou um pouco retrado. Foi um estranhamento para mim, pois sempre eu os via
na Casa da Gvea ou no Museu. Ali, tratava-se de uma outra realidade. E, na verdade, tratava-
se da real condio material de como eles vivem e que, apesar de terem um teto, lugar para
cozinhar, dormir, terem acesso a um computador, televiso, tudo carecia de um conforto
bsico. E fiquei pensando como eles lidavam com o contraste da Casa da Gvea, os palcos, as
apresentaes e o retorno ao cotidiano de suas casas. E, no caso deles, aquele espao
significava ter uma moradia, no morar em abrigos ou na rua.
Essa experincia deu uma outra dimenso para minhas reflexes sobre o significado
do PVL na vida deles e sobre as minhas indagaes sobre processos de ensino e aprendizagem
de msica em projetos sociais. Vendo as condies de vida deles, pensei: como ensinar
alguma coisa ignorando tudo isso? E como no aprender com eles sobre as subjetividades
determinadas por aquelas condies, cruciais em qualquer processo de ensino e
aprendizagem? Que esforo eles fizeram para superar outras condies muito piores, que j
haviam me relatado?
Depois dessa visita, chegamos casa de Diego e o pai dele veio nos receber.
Brincando muito com Rodrigo, subimos at o quarto dele. No quarto, Diego estava diante do
computador vendo fotos da banda que ele faz parte. Estavam l quatro alunos do PVL, em um
sbado tarde, unidos pela msica. Falaram sobre os ensaios no estdio em Botafogo e me
mostraram um CD demo que haviam feito. Aquele encontro de tantos ali no quarto do Diego
refletiu a dinmica da convivncia que eles travam fora do Projeto, principalmente no mbito
da comunidade Dona Marta. Haveria um ensaio naquela tarde de sbado e aquele encontro no
quarto do Diego refletia um jeito de convivncia catalisada pelos interesses musicais, mas
tambm por uma questo geracional e proximidade de moradia.
125

Rodrigo e eu nos despedimos e fomos caminhando para a sada do Morro quando


avistamos o Luiz Cludio tomando uma cervejinha num bar, sentado com um ar de
descompromisso de sbado tarde. Acenamos para ele e nos juntamos ali. Batemos papo e
Luiz Cludio falou para eu ir com mais tempo e subir at o topo do Morro: muito lindo ver
tudo l de cima, fala com aquela voz serena e aveludada, como quando est dando aulas no
Projeto. De repente toca um sino e Rodrigo diz: esse sino para avisar que tem missa daqui a
pouco. E me mostra uma igreja que fica em frente ao bar que justamente onde tudo
comeou, suas primeiras aulas de msica. A gnese do PVL comeou ali, naquele espao. A
igreja fica numa das ruas largas do Morro e de fcil acesso para todos os moradores.

Luiz Cludio me convidou para assistir uma roda de choro que acontece todo
domingo tarde naquele bar e informa que os Villa Lobinhos sempre participam. Nos
despedimos com a promessa de que eu voltaria par assistir roda de choro.
Essa incurso pelo Morro Dona Marta me despertou para a importncia de uma
maior compreenso do ethos comunitrio dos participantes da pesquisa. A geografia urbana
do Rio de Janeiro reflete uma posio assimtrica na escala social e aquela incurso no Morro
Santa Marta me fez vivenciar concretamente essa assimetria. Isso se reflete, tambm, no
microcosmo do Projeto e no prprio espao da Casa da Gvea. E suscitou-me questes: Como
os alunos reafirmam seus valores e as afinidades musicais com seu grupo social mais
prximo? E como eles esto construindo pontes para buscar a interao e ampliar a
126

comunicao envolvendo cidados que experimentam posies to diferentes e assimtricas


na cidade? E o espao urbano visto como recortes traados por agrupamentos sociais vai se
compondo como um grande e complexo mosaico formando a polis que se constri,
incorporando a discriminao por endereo, um fenmeno vivenciado por essa gerao de
jovens de comunidades pobres das grandes cidades. E como destaca Pinheiro, h que pensar
em possibilidades:

A cidade como possibilidade do novo e local do encontro significa que devemos ter
cincia e conscincia de lidar com o novo, o diverso, o outro, na sua acepo mais
ampla, ou seja, aquele que diferente de mim e que, por isso mesmo, sabe algo que
eu ainda no aprendi...Nas comunidades populares h sempre houve vozes
qualificadas, mas que no so ouvidas em funo do discurso paternalista ou
criminalizante sobre os moradores, que so vistos ora como carentes, ora como
potenciais criminosos, mas poucas vezes como parceiros na construo de um
destino comum para a cidade (PINHEIROS, 2003).

3.3.3.2 A FAVELA E O ASFALTO: FRONTEIRAS URBANAS

O espao urbano constitui-se de diferentes dimenses de uma cidade envolvendo um


conjunto de tcnicas e de obras que permitem dot-lo de condies de infra-estrutura,
planejamento, organizao administrativa e embelezamento a partir dos princpios das
concepes urbansticas. Trata-se, portanto, da organizao e da racionalizao das
aglomeraes humanas que venha proporcionar as condies adequadas de habitao
populao urbana. Dessa forma, o cidado a pessoa que goza do direito de cidade pensando
para alm de suas funes tradicionais econmica, social, poltica e de prestao de servios
ela exerce uma nova funo cujo objetivo a formao para e pela cidadania.
O binmio favela x asfalto10, termo cunhado pelo jornalista Zuenir Ventura no seu
livro Cidade Partida, passou a representar, nos ltimos anos, uma das formas mais correntes
no tratamento da questo da favela versus cidade organizada, tornando-se uma expresso
comum nas falas de estudiosos, moradores de favelas ou no e mesmo do Poder Pblico e
revela uma representao social de uma ciso, em algum nvel, que separa a cidade dita

10
Pesquisa do IBGE 2004 - aponta a existncia de 1.269 favelas em todo o Estado do Rio. Niteri lidera no
ranking que compara o nmero de casas em favelas com total de habitaes, com 37% . Hoje, o nmero de
favelados representa quase 20% da populao total do municpio do Rio. Algumas comunidades viraram
complexos e ultrapassaram os 50 mil habitantes, enquanto reas como a Zona Oeste antes um vazio no mapa
viraram opo de moradia barata e hoje lideram o ranking de novas construes.
(<http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5&infoid=26>. Acesso em:
05 maro 2006).
127

formal, com suas ruas ordenadas a partir de um determinado referencial, com propriedades
juridicamente legitimadas e com toda uma gama de servios pblicos, da cidade dita informal,
a saber, as favelas, reconhecida, oficialmente, como lugar sem ordenamento urbanstico, de
ocupao informal dos terrenos e marcadamente carente de determinados servios e
equipamentos urbanos (PINHEIROS, 2003).

A favela, enquanto uma representao social , vem sendo definida pela mdia por
um discurso centrado na ausncia, ou seja, a favela pensada a partir do que ela no tem:
gua, luz, esgoto, asfalto, comrcio, cidadania imprimindo a ela o codinome de comunidades
carentes. Isso muitas vezes incomodativo para seus moradores que, ao contrrio, descrevem
a favela destacando o que ela tem, como ilustra a fala de Rodrigo:

..., eu fico muito p.. quando eu fico vendo l que, na favela, primeiro que s
mostram o trfico. s o trfico, trfico, o trfico de drogas, isso e aquilo. E no
mostra que existe, por exemplo, aquela roda de choro, no mostra que existe no
morro a Folia de Reis e que todo mundo vai l, acompanha a Folia de Reis e eu vivi.
Olha, graas a Deus eu vivi aquilo. Tinha coisas, assim, realmente na minha mente
que se eu pudesse apagaria. Mas foi importante para a minha formao tudo o que
eu vivi: a fase da bola de gude, da pipa, de voc ter que fazer a sua pipa, voc fazer
uma coisa chamada jrquinho l, com papel, rabiolinha e voc soltar, voc acaba
construindo o teu brinquedo e aquilo importante para a tua formao dentro da
favela. Eu vi coisas, brinquei muito de ciranda, muito de pique e esconde, muito do
pic tac, pic cola trs vezes e ningum mostra que existe essa coisa na favela! Na
favela s tem o trfico, pr mdia, pr todo mundo. E eu fico vendo s vezes e eu
vejo isso no colgio, que as pessoas escutam, um tiroteio no Morro do Vidigal,
tiroteio no Santa Marta, tiroteio na Rocinha, um problema da comunidade. Mas
no s tem aquilo, sabe? Outro dia estava na Rocinha e eu vivi muito isso no Santa
Marta tambm. E as pessoas estavam assim, tiro pr caramba... Ah, mas esse tiro
128

do lado tal, ento eu vou subir pelo outro lado., entendeu? As pessoas acabam
convivendo com o problema. Cara, sabe, eu vivo o tempo inteiro no Rio de Janeiro
com assalto. Voc liga uma televiso, tem um problema na Lagoa (Rodrigo de
Freitas), ento eu vou pelo Jardim Botnico. Ento, eu acho que o que me chateia
no mostrar esse outro lado que tem na favela, sabe? (CEVL_2, p. 55, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06/12/2004).

A exposio de Rodrigo revela como um processo discriminatrio identifica e


qualifica um grupo social evidenciando os aspectos negativos daquela comunidade em
detrimento de outras dimenses que a hunamizam e a qualificam positivamente. A fala de
Rodrigo expe como membros e, muitas vezes, grande parte de uma comunidade podem se
sentir estigmatizads pela visibilidade negativa impingindo-lhe um status socialmente
desqualificado decorrente de uma exposio pblica pela mdia e como isso se incorpora no
inconsciente coletivo. Mostrar o outro lado da favela significa valorizar os aportes culturais
que se constituem dos valores simblicos presentes na comunidade e que se tornam
referenciais identitrios em torno dos quais os indivduos se produzem e se reproduzem como
grupo social. Em relao a essa questo, de demarcao da identidade social e espao urbano,
Regina Novaes destaca que

uma fronteira, que a coisa do territrio no Rio de Janeiro [...] muitos lugares
chamavam periferia, outros lugares chamavam bairro, outros lugares chamavam
vila. Enfim, est muito ligado, tambm, questo da violncia, porque voc teve um
encontro entre questo da no incluso econmica e a geografia da cidade, a
topografia urbana. Ento, nesse encontro a gente tem mais um recorte para separar
os jovens, so os jovens que vivem em um determinado lugar, quer dizer, alm de
ele ser diferente de classe, renda, raa... eles j so diferentes pelo lugar que eles
moram, e nessa rea, ento, que vo, sobre esses jovens moradores de certas reas
estigmatizadas da cidade, que vo, os projetos sociais dirigidos para jovens vo se
colocar. Em alguns lugares chamam de situao de risco, outros lugares, tem vrios
nomes para falar marginalizados, as camadas populares. Mas eu chamo muita
ateno que um jovem, que alm de ter que lidar com todos os preconceitos de
classe da sua cidade, tem que lidar com os preconceitos, tambm, do lugar onde ele
mora, ento uma discriminao por endereo. uma coisa que essa gerao de
jovens das grandes cidades - embora isso acontea tambm nas menores cidades
enfrenta hoje como um fenmeno, mas talvez com muita fora (CEVL_3, p. 4,
Regina Novaes, ISER Instituto de Estudo das Religies, 02/06/2003).

Para Goffman (1988) a informao social tem determinadas propriedades que


informa sobre um indivduo, sobre suas caractersticas mais ou menos permanentes, em
oposio a estados de esprito, sentimentos ou intenes que ele poderia ter num certo
momento (p. 52). O estigma, neste caso, est relacionado ao local de moradia e tambm com
ao relacionamento com algum em nossa sociedade. Assim, a figura do traficante do morro,
favela ou dos bairros da periferia urbana usada como fonte de informao sobre a identidade
social da comunidade, supondo-se que ele o que outros so. O caso extremo, talvez, seja a
129

situao em crculos de criminosos: uma pessoa com ordem de priso pode contaminar
legalmente qualquer um que seja visto em sua companhia, expondo-o ordem de priso como
suspeito (GOFFMAN, 1988, p. 57-58). o que acontece com moradores da favela, como
relata Rodrigo:

...No ir l, por exemplo, outro dia algum me perguntou assim em entrevista: Ah,
mas como que voc conviveu com o trfico de droga?; Eu muito bem! Com o
trfico? Muito bem!; Mas como assim muito bem?; Eu no mexia com
ningum, ningum mexia comigo, o cara est l com o problema dele, tal, tal, tal,
um problema dele e o problema no era meu. Voc tinha que tomar um pouco de
cuidado que s vezes um problema que muita gente acaba, no tendo nada a ver,
mas acaba se envolvendo, por exemplo, bala perdida, etc, etc...Voc v as coisas ali
e quando tem problema com o trfico, um problema de trfico com trfico, trfico
com polcia e eu no tenho nada a ver com aquilo (CEVL_2, p. 59 a 62, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06-12-2004).

E,nessa dinmica, a idia de que o jovem que mora na favela no tem escolha vista
como uma radicalizao. Rodrigo fala sobre a seduo do poder que o trfico e a arma de
fogo exercem sobre o jovem reportando-se a uma experincia pessoal:

Com certeza existe esta radicalizao, mas eu costumo dizer que acontece o
seguinte: quando eu, por exemplo eu no vou falar que eu no acho legal eu fui
para o exrcito, era legal dar tiro, eu fiz um concurso pr polcia onde tinha prova de
tiro etc e convivi um pouco com armas, nesse sentido. E a arma, ela te d um certo
poder. Um poder que, voc sabe, se voc souber usar voc no tem problema com
assalto, com nada. E a, e cria ali, no traficante, na pessoa que est ali, at mesmo no
menino, um endeusamento que eu no consigo entender isso, o qu que essa coisa.
[...] Agora, dentro da favela falar que no tem escolha! Claro que tem escolha; tem
vrias, ainda mais hoje em dia: Escola de Msica da Rocinha, o Santa Marta tem um
projetinho l de violinos, o cara da Folia de Reis ensina como ser o palhao da Folia,
tem a capoeira, tem um grupo que faz jud, enfim, acaba tendo escolha sim, sabe, eu
acho que um exagero isso, existe um exagero a (CEVL_2, p. 59-62, Rodrigo
Belchior, coordenador, 06/12/2004).

E rechaa tambm o rtulo e a associao inexorvel entre a favela, pobreza, tristeza,


como se s existisse isso por l:

As pessoas tm uma idia de pobreza, de favela, que fica todo mundo triste,
passando fome, sabe? No ! Sabe, voc chega na comunidade e todo mundo tm
seu samba l e est todo mundo feliz da vida, sabe, ningum est triste, sabe? Ontem
noite mesmo, p, muito legal ver a alegria daquelas pessoas. (CEVL_2, p. 58-59,
Rodrigo Belchior, coordenador, 06/12/2004).
130

3.3.3.3 TORNAR-SE BANDIDO OU MSICO

Marquinhos personifica o jovem que teve a possibilidade de trilhar um caminho


alternativo ao trfico e criminalidade. Esse submundo que expe os jovens, na sua maioria,
negro e pobre, moradores dos espaos desassistidos pelo poder pblico das condies bsicas,
tornando um ambiente propcio para aliciar e converter os que se encontram em situao de
vulnerabilidade social. A msica ocupou um espao precioso em sua vida, revelando seu
potencial para aprender e tocar vrios instrumentos o que configurou outro tipo de vida que
propicia a ele uma auto-estima e uma visibilidade positiva de sua identidade na sua
comunidade do morro e tambm para as pessoas do asfalto:

....um caminho que teve foi msica e a nisso, as outras pessoas ficam admiradas
com a minha tamanha percepo com a msica, tamanha inteligncia. Que eu podia
usar minha inteligncia na msica. E a nisso, tambm, no s as pessoas do morro,
mas como, tambm, as pessoas de fora que, tambm, tem aquela viso que
neguinho do morro propriamente seria bandido, sabe qual ? E a no tem aquela ...
a tem aquela discriminao e tal; e a quando eles me vm tocando na televiso,
dando entrevista, eles no se emocionam; ficam admirados com o meu talento. E
onde eu possa com meu talento - que no s eu assim, mas gente do morro, outras
pessoas do morro - tambm possa fazer a mesma coisa como eu estou fazendo, no
s com a msica, mas com outras atividades como artes, teatro e, com isso ter uma
viso diferente. As pessoas que esto fora do morro, que moram no asfalto tm uma
viso diferente das pessoas que moram no morro (CEVL_1, p. 84-85, Marcos da
Silva, aluno formando 2004, 31/05/2004).

Marquinhos foi orientado por Rodrigo, como j mencionado anteriormente, e


encaminhado para projetos que despertaram nele o gosto pela msica. Apesar disso, ressalta
que no fcil para a criana e para o jovem adolescente do sexo masculino fugir do assdio
do mundo marginal e bandido quando se vive no cio e sem proteo social. Ter a sensao
de poder, por estar perto de quem o simboliza parece exercer um fascnio no jovem do sexo
masculinho. Pode-se inferiri que a falta de cuidados sociais, no seu amplo espectro, provoque
um vcuo, muitas vezes insuportvel, na existncia do jovem que acaba por atra-lo para
virar um bandido, tipo andar com arma [...] seria uma onda, sabe qual ? [...] E era assim que
eu pensava, que a nica boa da vida era vira bandido, virar dono de boca, virar
gerente...(CEVL_1, p. 85, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 31/05/2004) como j
menciona Marquinhos.

Como esclarece Zaluar (2004), dessas situaes emerge o etos da masculinidade,


muito forte na cultura de rua, que impe uma necessidade de responder s provocaes e
131

humilhaes de modo violento. Alm disso, o enriquecimento rpido, a iluso momentnea do


poder absoluto sobre o outro, mediante o porte da arma de fogo, promove uma gradual
converso aos valores da violncia e da nova organizao criminosa. Esse jovem, geralmente
negro e pobre, desprovido de proteo social por falta de polticas pblicas que dem conta
disso, vive uma vida ociosa que propicia a cooptao para o crime e, assim, descobre os
prazeres que o consumo de bens materiais da vida de rico traz e esto distante da vida das
comunidades pobres dos centros urbanos (ZALUAR, 2004, p. 65-66).
Apesar da vida bandida exercer uma seduo, a msica apresentou-se como uma
alternativa para que ele pudesse vislumbrar outra perspectiva de vida. Comeou a estudar
msica nessa poca com Rodrigo que foi um incentivador importante:

me ensinou, primeiro eu aprendi flauta-doce, num projeto que o Rodrigo tinha l no


morro Santa Marta, onde ele dava aula para pessoas carentes como eu, na igreja. Ele
pediu um espao l, para o padre, a comeou a dar aula pr gente e foi a que eu
aprendi. Eu adorava porque era a nica coisa, tipo assim, alm daquele sonho no
muito bom que eu tinha antigamente aos 8 anos de idade [tornar-se bandido], esse
projeto que o Rodrigo comeou a dar aula, foi uma coisa diferente, uma coisa nova
que eu no sabia, no tinha conhecimento dessa coisa bonita que o Rodrigo estava
fazendo com a gente. E a nisso fui conhecendo e a comecei a me incentivar,
comecei a acreditar em mim mesmo. At o Rodrigo comeou a acreditar em mim,
porque eu tinha talento para aquilo e a fui seguindo e fui acreditando em mim,
comeando a me valorizar como gente mesmo e estou aqui hoje por causa dele
(CEVL_1, p. 69, Marcos da Silva, aluno formanda 2004, 31/05-2004).

3.3.3.4 O ESTIGMA, O RACISMO

Um ponto que foi destacado abertamente por Marquinhos foi a questo do racismo
vivenciada por ele nas interaes sociais propiciadas pelo trnsito em diversos contextos
sociais que o Projeto proporciona. A msica ocupa um espao na sua argumentao que no
se reduz a uma questo pessoal, acaba se configurando como um exerccio poltico quando ele
diz: ...outra coisa bem importante, a msica, tambm, deu possibilidade de a gente enfrentar
as coisas com cara limpa, com mente limpa, e ao esclarecer o que isso significa, reportou-se
a uma vivncia concreta na qual o estigma em relao sua cor foi expresso pelo olhar e pelas
atitudes:

MARQUINHOS Tem gente que no aceita pessoas negras tocando, sabe qual ?
A, por isso, a msica me deu a possibilidade de enfrentar isso com clareza, com
bastante fora e seguir em frente. Foi em uma situao,que no foi tocando, foi tipo
assim, antes de eu tocar assim, mas pela expresso da pessoa, eu vi que ela queria,
tava falando de mim, p: ele negro assim vai tocar aqui, aquilo ali, p! M [maior]
132

Maluco! Bota esse maluco para fora e tal. Assim, eu ouvi pela expresso dela
conversando, ele e mais umas pessoas l. A nisso eu fui l, toquei, botei, meti
minha cara limpa l e tal, meti um clareza e tal, fui em frente e consegui. A subi
com mente limpa, segui em frente diante dessas situaes, isso.
MAGALI E isso, como voc se sentiu, voc percebeu essas pessoas tendo uma
postura discriminatria e voc foi l, enfrentou de cara limpa, e a, como que voc se
sentiu depois?
MARQUINHOS - No vou dizer que eu fui vitorioso, tipo isso vai acontecer
sempre com a gente, ento sempre isso, as coisas que vem, a gente vai ter que
sempre enfrentar com cara limpa. Mesmo no sendo com essas situaes, em outras
situaes, isso s um obstculo na nossa vida. (CEVL_1, p. 83, Marcos da Silva,
aluno formando 2004, 31/05/2004).

Esse depoimento foi um dos momentos mais densos da entrevista. Foi uma ltima
fala que emergiu de um apndice de nosso bate-papo. Sua anlise sobre sua condio etno-
racial no ingnua uma vez que ele reconhece que isso vai acontecer sempre. A identidade
de ser msico confere a ele a possibilidade de subir no palco, ser protagonista, artista e
assim, ele desenvolveu uma capacidade de enfrentar situao como essa, colocando em
primeiro plano sua dignidade. uma questo arraigada e determinada historicamente, ligada
construo de uma identidade individual e coletiva. No se trata, portanto, de uma

mera representao de indivduos com determinadas caractersticas fsicas e cor de


pele negra, classificao historicamente construda pela civilizao europia, mas
um construto pessoal, referncia constituinte do mundo simblico de pessoas,
construdo por meio de prticas sociais, contendo especificidades histricas e
principalmente, determinantes de atos sociais (FERREIRA, 2000, p. 139-140).

E para confirmar que pode lutar contra esse estigma, ele refora suas convices,
confirmando, tambm, a capacidade de transformao que tem uma proposta de educao
musical voltada para o mundo social dos indivduos:

...E a minha msica me possibilitou isso tudo que eu tenho na vida agora [...] e
sem a msica a vida seria um erro, esse o meu lema, eu falo sempre comigo. Eu
acho muito bonito, eu acho muito bonito mesmo, enfrentar as coisas como no fosse
uma coisa qualquer, tipo, enfrentar as coisas com cara... com mente limpa. Essas
discriminaes que a maioria das pessoas tm, enfrentar. E sempre vai ter obstculos
na vida e sempre enfrentar com cara limpa, mente limpa. Pois , at me emociono
vendo assim, minha histria como no passado; sempre me emociono...quando vou
dormir sempre penso e reflito no que eu poderia ter passado sem a msica
(CEVL_1, pg 86 e 87, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 31-05-2004).
133

3.3.3.5 O COMPROMISSO COM A MINHA COMUNIDADE E A SOCIEDADE - A


DDIVA

A vivncia dos alunos ao participar de contextos diversos, proporcionada pelo PVL


e a formao de uma complexa rede de sociabilidade ampliam sua viso e compreenso do
mundo, de suas comunidades e deles prprios. Assim, a noo de que podem compartilhar e
at mesmo retribuir as ddivas que tiveram aparece nos depoimentos. So menes que se
reportam s iniciativas concretas e atos que se espelham no modelo que eles tm atravs da
vivncia proporcionada por essa teia de relaes e prticas sociais. Ademar entende que
quando toca para as pessoas, em apresentaes, consegue

transmitir a msica para que elas se sintam bem tambm e para que alguns jovens -
tm muitos jovens aqui que entraram no Projeto e poderiam ter entrado para uma
vida ruim, num caminho ruim; e tem muito jovens l fora que, s vezes, precisam de
um opo a mais para que possam pensar: Opa, peri... se eu entrar pr isso aqui
tambm, de repente eu tenha uma chance... e tm, e acaba tendo e eu tento
transmitir isso para as pessoas em cima da msica (CEVL_1, p. 10-11, Ademar dos
Anjos, aluno formando 2004, 04/06/2004).

O trabalho voluntrio uma outra forma de retribuir as ddivas, extrapolando a


noo de uma ao utilitria e assistencialista, como revela Marquinhos:

...dou aula para algumas pessoas...na Comunidade de Santa Marta...acho interessante


porque por minha prpria conta assim, por meu bem querer mesmo. Eu acho legal dar
aula pras outras pessoas, o que a msica. Ensino o cavaquinho e tenho vrios alunos, uns
seis alunos e eles me chamam e sempre tenho umas horas vagas pr eles. E eu acho bonito
dar aula, tenho oportunidade de dar aulas pr eles, e a eu dou... a gente toca junto
(CEVL_1, p. 86, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 31/05/2004).

O que move Marquinhos a dar aulas para pessoas de sua comunidade, muitos so
jovens de sua idade, o fato dele poder dar aula para as outras pessoas ressaltando os aspectos
simblicos de sua ao:

...que eu aprendi aqui posso dar para outras pessoas, ensinar as outras pessoas,
porque tudo o que entra na vida da gente, tudo na vida que a gente recebe, a gente
pode dar. Isso a coisa que mais me chama a ateno, por causa do Villa Lobinhos.
Eu recebo e dou. Acho isso muito bonito e vai ficar marcado pr mim (CEVL_1, p.
72, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 31/05/2004).

O depoimento de Marquinhos faz conexo com a idia de um movimento, uma


dinmica circular em que bens simblicos e materiais (dar aulas gratuitamente requer a
renncia de um ganho monetrio) orbitam nas trocas entre os pares de uma comunidade.
Gonalves (2003, p.59) argumenta que para criar essa totalidade simblica preciso apostar
134

na ddiva e aceitar livremente dar, receber e retribuir. Trata-se de uma obrigao de liberdade
[...] constitutiva do fato social; entre o indivduo e a sociedade no h mais uma ruptura,
mas uma gradao. Walther e Wagner, que foram os primeiros violinistas do que hoje a
Orquestra de Cordas da Grota do Surucucu, em Niteri, tambm relatam que

agora a gente d aula l na comunidade e do mesmo jeito que a gente aprendeu l, a


gente agora est ensinando o pessoal l, tem um volume legal de alunos, de dentro
da comunidade e at de fora que ficou sabendo. Crianas de fora ficaram sabendo e
pr voc ver, a coisa totalmente diferente da nossa, uma realidade totalmente
diferente da nossa. Antes, eu e ele, a gente era obrigado e agora tm pessoas de 9
anos, 8 anos, que vo pr l sozinhos aprender, e est dando certo...e eles comeam
muito mais empolgados do que a gente. O pessoal mais novo de l, gostam! eu
comecei no projeto l com 24 alunos. Comecei, p, eu tambm era leso assim na
aula. Eu no sabia dar aula, como dar e agora j est funcionando legal e j tm mais
de 30 alunos. E est dando certo, o pessoal est abraando legal o projeto e est
dando certo (CEVL_1, p. 90-91, Walther e Wagner de Oliveira, alunos formandos
2004, 11/06/2004).

Neste caso estudar msica, transmutada na posse de um instrumento musical


carregado pelos jovens, tornou-se uma informao social e smbolo de prestgio. Andar pelas
ruas e becos da favela com as caixas desses instrumentos nas costas, tendo um espao para
aprender msica com as pessoas da comunidade, torna-se um smbolo institucionalizado, um
canal de informao social relacionado ao prestgio por fazer uma atividade reconhecida
como positiva e nobre por aquele grupo social (GOFFMAN, 1988, p. 54-55).
E quando Walther e Wagner comentam sobre a sensao de ver esse quadro que eles
contriburam para construir, tendo a msica como instrumento de transformao viabilizado
por um projeto social, o que vem em primeiro plano so o significado e valores simblicos
imersos nesse contexto social. Pode-se pensar que valores simblicos agregados as caixas
de instrumentos musicais carregadas nas costas a smbolos de estigma social a cor da pele
negra, ser morador de favela provoca uma simbiose positiva elevando a auto-estima e a
dignidade daquela comunidade.

WAGNER A gente estava falando aqui da parte da remunerao e no caso, a


remunerao s conseqncia. O bom mesmo, a parte boa, ver uma apresentao
com eles tocando, ver eles subindo e descendo a favela com o instrumento na mo,
no tem nada melhor do que isso, pode botar o que for no nosso bolso que nada paga
isso no!
WALTHER Eu tambm acho isso, por exemplo, no nosso caso aqui, se o nosso
pagamento atrasa e a gente no est nem a e acho que no faria diferena nenhuma
se pagassem a gente ou no pagassem. lgico que a gente precisa, mas nunca por
esse lado que a gente v. D orgulho, d muito orgulho a gente saber.
WAGNER A diferena que no fim do ms a gente d um sorrisinho... (risos) a
diferena do pagamento e no pagamento que a gente d um sorrisinho mais
assanhado (risos)... pagamento no bolso...(CEVL_1, p. 93, Walther e Wagner de
Oliveira, alunos formandos 2004, 11/06/2004).
135

Para Luis Cludio, morar no Morro, sendo professor do PVL e de outros projetos
sociais, proporciona um tipo de envolvimento com os alunos e lhe d uma dimenso de seu
trabalho que traz um significativo diferencial, alm de imantar a comunidade de valores que
incidem na identidade coletiva e individual. Luis Cludio filho e fruto da Comunidade. Seu
depoimento expressa o significado desse pertencimento e o papel da msica nesse contexto:

...Olha, eu s vezes tento me imaginar no lugar de quem me v, mas eu no consigo.


Eu paro, converso com todo mundo e eu acho que o legal isso. E assim, eu no
tenho nenhuma vontade, nenhuma pretenso - pode ser que algum dia - de sair da
comunidade, porque eu acho que tenho um dever a cumprir ali que ajudar e fazer
alguma coisa de til. o que eu posso fazer, o pouco que eu posso fazer ajudar a
tocar um cavaquinho, um violo? timo. Ento o que eu posso fazer. no me
distanciar... espero no ficar distante porque eu acho que eu devo muita coisa ali...
eu aprendi a viver ali, eu nasci ali. Eu aprendi muita coisa ali e voc pode at achar
que no mas ali tem muita lio de vida. Podem pensar: nossa, como que
consegue?! Pr voc ter uma idia, no morro pr voc construir uma casa, voc tem
que pagar o carreto, fora o preo do material, n, e s vezes se juntam os amigos, 20
pessoas para carregar todo o material pro alto do morro. um sacrifcio.... verdade.
(risos). (CEVL_2, p. 137-138, Luis Cludio, professor de violo, cavaco e trombone,
03/06/2004).

Luis Cludio tem um papel reconhecido na Comunidade. Sente-se comprometido


com o desenvolvimento cultural daquele espao e com o futuro dos jovens. Iniciou muitos
jovens da Comunidade no cavaquinho, violo, trombone, um multi-instrumentista e de
grande generosidade. Promove encontros musicais no Morro Dona Marta e foi um dos
mentores da formao da roda de choro que se iniciou em maro de 2004, envolvendo muitos
instrumentistas do PVL e da Comunidade. Sua idia sempre foi congregar, unir os moradores,
trazer pessoas do asfalto para essa roda de choro, que se tornou um ponto de encontro
musical nos finais de domingo. Sua fala e suas atitudes revelaram no s o compromisso, mas
um afeto com aquelas pessoas que moram ali e uma vontade de retribuir como ele diz:

...Eu me sinto na obrigao e eu no vou me sentir muito bem se eu no fizer


isso....so ddivas que a gente recebe a gente tem que mostrar, tem que expor e
deixar que os outros aprendam tambm. Por que no? (CEVL_2, p. 137-138, Luis
Cludio, professor de violo ,cavaco e trombone, 03/06/2004).
136

3.4 O CONTEXTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM MUSICAL


3.4.1 EXPERINCIAS DE FORMAO MUSICAL
3.4.1.1 O APRENDIZADO MUSICAL NO PROJETO

...fazendo um clculo de tudo, foi maravilhoso porque foi uma


aprendizagem que eu nunca teria em outro lugar, s aqui
mesmo...com os timos professores...E foi uma carga muito
representativa para mim...e que eu possa usar pro futuro ou,
tambm, eu possa usar para dar aula e usar a aprendizagem
que eu tive aqui. Isso foi muito bom pr mim, vai dar pr
carregar pela vida inteira...o ensino que os professores foram
dando pr gente, eu fui captando tudo, fui recebendo com
muita fora e fui aprendendo, fui aprendendo, fui
aprendendo...e agora como pessoa, como msico, como tudo,
eu sou totalmente diferente do que eu era antes daqui. Eu pisei
com o p esquerdo e vou sair com o p direito
(Marcos da Silva, multi-instruimentista, aluno formando, 2004.).

O processo de ensino e aprendizagem musical visto imerso no contexto complexo


das interaes sociais presentes no cotidiano dos atores sociais. Assim, o carter interativo dos
circuitos que os alunos freqentam, estilos de lazer, aulas, ensaios, apresentaes, so
considerados aspectos importantes e integrantes na conduo de suas experincias de
formao musical. Os captulos anteriores mostram que os jovens PVL circulam nas
diferentes atividades e espaos derivados do Projeto. Alguns j se tornaram monitores, j
ensinam em seus grupos de origem, como o caso de Walther e Wagner na Orquestra da
Grota, de Carla na Escola de Msica da Rocinha, de Igor, Ademar, Daniel que so monitores
nas aulas de msica na rede de escola pblica de Niteri.
As aulas individuais foram fontes de dados que propiciaram reflexes e anlise no
que concerne a processos didtico-pedaggicos, relao e comunicao entre professores e
aluno, viso tcnica e esttico-musical do repertrio. Em relao aos grupos formados
percebe-se que o processo de ensino e aprendizagem oportunizado pelos encontros no PVL,
constituindo-se em agrupamentos nucleares com interesses comuns diversos que acabam por
produzir um conhecimento musical condizente com a idiossincrasia do grupo. Os alunos do
PVL tocam pelo menos dois instrumentos, so multi-instrumentistas. No se acanham em
pegar um instrumento que ainda no tocam e tirar um som. Os colegas do dicas nos
ensaios e corredores do espao do Projeto. Os encontros informais que se do na Casa da
137

Gvea, nas rodas de choro estimulam os alunos a experimentarem tudo que lhes aparece de
novo e isso amplia sua atuao como instrumentista.
Os depoimentos e a observao permitiram construir asseres de como eles se vem
no papel de alunos e como vem seus professores; como se d a escolha do repertrio e como
isso trabalhado para se atingir o ideal esttico que eles tm; que tipo de oportunidades
surgiram a partir de um maior acesso ao conhecimento musical; e como vem o presente e
quais suas expectativas em relao ao futuro.
A organizao do processo de ensino e aprendizagem baseado em um conceito de
currculo aberto, defendido por Turbio, em que o aspecto mais importante a relao
dialgica entre professor e aluno. Os contedos musicais no so pr-fixado, ou seja, o foco
do processo est na relao entre as pessoas e as msicas (KRAEMER, 2000):

o currculo se faz durante a troca...dou um exemplo concreto: o garoto chega


tocando, por exemplo, "Apanhei-te Cavaquinho" ou "Brasileirinho", de repente voc
est convencendo aquele garoto a ler msica, ele comea a treinar na aula de
percepo musical, entende? Ou na aula do prprio instrumento e ele vai recebendo
noes de harmonia, ele tem muitas verdades, voc no restringe o ensino, o ensino
o ensino da msica em geral... Eles buscam uma disciplina... o garotinho que vem
tocando flauta-doce, em geral ele pede pra tocar flauta transversa, clarinete ou
violo. A gente deixa escolher um instrumento, um segundo instrumento, um
segundo instrumento alternativo e vai observando o progresso do garoto, se ele est
correspondendo, se ele est feliz com aquilo. Tm muitos, por exemplo, que j esto
fazendo arranjo, outros esto compondo; tm muitos que querem tambm estudar o
piano, tem alguns que so regentes, todo tipo de vocao aparece ali. Por exemplo:
Igor um garoto que fez flauta, depois flauta transversal, agora piano, composio e
regncia. Isto da num espao de trs anos.. ele vai aprender a buscar o que ele quer
aprender. E isso o que eu acho, a grande experincia que ns estamos fazendo a,
os professores e eu, essa: dar liberdade com uma baita disciplina, porque como
voc tem essa liberdade toda, eles tambm tem uma disciplina muito forte
(CEVL_2, p. 11-13, Turbio Santos, diretor geral, 02/06/2004).

Outro aspecto relevante que emerge dos depoimentos considerar e valorizar, na


dinmica de ensinar e aprender, a bagagem cultural que os alunos trazem e re-elaborar esse
conhecimento musical. Rodrigo rememora que na formatura de 2004 Emmanuelle, professora
de Marquinhos, tocou um chorinho no trompete juntamente com ele no cavaquinho: ela
nunca tocou choro, nunca na vida dela e foi o Marquinhos que falou: P, toca um choro
comigo pr eu tocar cavaquinho!.
O fato do professor aceitar uma proposta do aluno coerente com a concepo do
PVL. uma pedagogia aberta ao contexto sociomusical movedio pela transitoriedade dos
alunos que ficam por trs anos ali. Rodrigo ressalta que se no se aceitasse a bagagem do
aluno no ia dar certo, porque voc ia recusar o conhecimento deles [...] tem que ser msica
erudita, mas e a, no vai ter mais nada?...E a rolou aquela doidera, de fazer o Cnon de
138

Pachaebel com percusso!. E nessa anlise Rodrigo faz incurses sobre escolha de repertrio
e sobre a equalizao entre a msica popular e erudita: ...[dizem que] voc tem que tocar o
que o Rampal toca!. Mas porque eu tenho que tocar o que o Rampal toca? Ser que eu no
posso tocar o que o Pixinguinha tocou? Eu no posso tocar o que o Villa-Lobos deixou aqui e
eu ouvi isso: Tem que tocar por que Rampal o melhor! Ele tocou isso!.(CEVL_2, p.53,
Rodrigo Belchior). E o que caracteriza proposta pedaggica do PVL a abertura pr
diversidade cultural, abarcando os valores simblicos e a prtica musical que eles trazem
ampliando o repertrio, o conhecimento tcnico, esttico, elementos da estruturao musical e
da histria da msica
O relato de Rodrigo revela uma dimenso importante na ao de tocar, quer seja
individualmente ou em grupo e ressalta a importncia do protagonismo na ao: eles tocam e
o professor lapida, ou seja, existe um material musical para ser trabalhado a partir da
performance dos alunos. E o depoimento de Leandro Serizac pode ilustrar os aspectos
considerados por eles na construo de identidade do ser msico:

...na verdade quando eu cheguei aqui eu j sabia tocar alguma coisa, logicamente,
todos ns aqui quando entramos j sabamos tocar alguma coisa. S que eu no meu
caso, eu no sabia o que era msica ainda. Eu tocava, as minhas mos faziam a
msica, s que na minha cabea eu no sabia o que era. Ento o Villa-Lobinhos me
ajudou, nas aulas com o meu professor de cavaquinho, as aulas de percepo
musical me influenciou a saber mais sobre a msica. E isso foi ajudando conforme
os grupinhos de choro que a gente tocava e agora com esse grupo de samba,
tambm. Ento, juntando isso tudo, influenciou nesse grupo de samba e, de vez em
quando, estamos tocando [...] j fizemos vrias apresentaes importantes e isso
ajuda bastante (CEVL_1, p. 125, entrevista com o grupo de MPB, 15/06/2004).

Para Marquinhos o aprendizado musical durante o perodo que ele estudou no


Projeto tem um saldo altamente positivo em vrios aspectos. Seu depoimento denso e revela
um especial reconhecimento por tudo que ele aprendeu nesse tempo:

...fazendo um clculo de tudo, foi maravilhoso porque foi uma aprendizagem que eu
nunca teria em outro lugar, s aqui mesmo e a nisso com os timos professores...
vamos falar, os professores daqui so os melhores do Rio. E foi uma carga muito
representativa para mim e que eu possa usar pro futuro ou tambm eu possa usar
para dar aula e usar a aprendizagem que eu tive aqui. Isso foi muito bom pr mim,
vai dar pr carregar pela vida inteira... (CEVL_1, p. 70-71, Marcos da Silva, aluno
formando 2004, 31/05/2004).

Ressalta como foi importante para a construo de sua identidade como msico e
como pessoa. Compararando sua performance musical de dois anos e meio atrs com a de
agora, ele diz:
139

...Poxa, totalmente diferente, eu entrei aqui - e no vou te falar que no era quase
nada eu era alguma coisa e com o ensino que os professores foram dando pr
gente, eu fui captando tudo que fui recebendo com muita fora e fui aprendendo, fui
aprendendo, fui aprendendo e agora como pessoa, como msico, como tudo eu sou
totalmente diferente do que eu era antes daqui. Eu pisei com o p esquerdo e vou
sair com o p direito (CEVL_1, p. 70-71, Marcos da Silva, aluno formando 2004,
31/05/2004).

Ademar, formando de 2004, destaca que foi no Projeto que aprendeu a lidar com
uma orquestra, a tocar com uma orquestra, a tocar com msicos, com instrumentos diferentes,
aprendeu a ouvir outros instrumentos alm do saxofone e desenvolveu um maior domnio de
sonoridade de seu instrumento. E todos esses aspectos contriburam para que ele pudesse estar
no Grupo de MPB. Aprendi ritmos, por exemplo, o samba, o choro. Nem sabia que existia
choro e s vezes escutava e nem sabia o qu que era. E aqui dentro, isso tudo serviu pr me
ensinar e trazer para o Grupo de MPB Isto Brasil, tambm (CEVL_1, p. 129, entrevista
com o grupo de MPB, 15/06/2004).

3.4.1.2 ESTUDANDO INSTRUMENTOS

...porque o cavaquinho ele mexe comigo, o ritmo, mexe


comigo... com o ritmo... eu gosto daquela...daquela
mistura...ele se relaciona com o pagode, samba e o chorinho. E
esses ritmos so meus especiais que eu mais gosto na minha
vida. A eu tenho aquela preocupao de estudar..
(Marquinhos, formando de 2004).

Como mencionado, de uma maneira geral, os alunos do PVL so multi-


instrumentistas, mas todos tm aulas especficas para o instrumento principal que escolheram
e podem, tambm, fazer aulas de um segundo instrumento. Alm disso, a participao nos
grupos instrumentais estimula o contato com os mais diversos instrumentos e instrumentistas
que circulam pelo Projeto. De maneira geral todos os entrevistados reconhecem que tocavam
em um nvel iniciante ou mediano quando comearam, atribuindo vivncia nos Projetos um
significativo desenvolvimento musical tanto no que concerne execuo instrumental, como
no que tange questes relacionadas estruturao e linguagem musical.
As aulas de instrumentos individuais so mencionadas como momentos de
aprendizagem relacionados tcnica, repertrio, estilo e interpretao. Os depoimentos
140

revelam que os alunos relacionam-se de forma no padronizada quanto ao processo de


aprender o que o professor ensina em aula, mas todos atribuem um valor incontestvel s
aulas e competncia de seus professores.
Marquinhos tem aula no PVL de trompete, cavaquinho e flauta. Mas diz que
aprendeu a tocar assim de qualquer maneira... o violo e alguns instrumentos de percusso
pandeiro, surdo, reco-reco, chocalho. Aprendeu vendo as pessoas tocar, achava bonito
como no caso o trompete eu via e achava bonito e comecei a me interessar pelo instrumento
e fui tocando. Flauta, eu sempre via o Rodrigo tocando transversa e a nisso fui estudando
sozinho flauta transversa e depois fui tendo aula. Comeou a ter aulas com Andra, no
Projeto por trs meses. Eu ouvia as notas tocando e eu perguntava para ela como fazia a nota
e tal e a eu ficava em casa tentando construir a nota, que tipo assim, eu via na televiso eles
tocando assim e tal e eu via como que era e tal, tentava imitar e tal e comecei a aprender
assim. No continuou a ter aulas de flauta porque acha que aprender sozinho melhor que
aprender com o professor justificando que

o professor ensina, mas eu acho o esforo do aluno, ele mais forte...sem o


professor. Com o professor ele tem aquela presso e tal de fazer aquilo e tal e de
repente no faz e tal, mas sozinho eu acho mil vezes melhor do que ter um professor,
no meu ponto de vista, porque aprende mais (CEVL_1, p. 76-77, Marcos da Silva,
aluno formando 2004, 29/05/2003).

Essa argumentao coerente com a experincia de vida de Marquinhos, pois teve


que adquirir uma autonomia muito cedo por questes familiares. Assim, enfrentar os desafios
por conta prpria e tentar aprender sozinho, buscando a informao e a formao quando ele
quer e acha necessrio, faz sentido na sua trajetria. Considera que sempre teve essa liberdade
de escolha no PVL e por isso pode ter aulas de vrios instrumentos, ainda que de uma forma
no regular. Com exceo do violo, Marquinhos tem os instrumentos em casa para estudar, o
que facilita seus estudos. Todos foram conseguidos por intermdio de Rodrigo. O cavaquinho
o seu instrumento predileto e ele diz que foi aprendendo sozinho, mas contando com as
dicas de Luis Cludio:

...eu peo chorinhos pr ele, ele sempre me d algumas dicas de chorinhos pr tocar,
me ensina algumas posies, mas isso no me impede nada de eu estar estudando o
cavaquinho sozinho! E uma coisa diferente, no sei explicar mesmo, porque o
cavaquinho ele mexe comigo [...] ele se relaciona com o pagode, samba e o chorinho
[...] esses ritmos so meus especiais que eu mais gosto na minha vida. A eu tenho
aquela preocupao de estudar, s que isso de estudar no acontece j com o
trompete, o trompete eu gosto tambm, mas o cavaquinho diferente...estudo todo
dia. (CEVL_1, p. 76-77, Marcos da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).
141

Seu depoimento revela uma conscincia da sua facilidade em aprender os


instrumentos que gosta e quer. Toca em grupos de diferentes configuraes instrumentais e
demonstra um prazer explicito em tocar. Pude observar sua performance em diversos
contextos e grupos durante a insero. Seu comportamento musical revela uma capacidade de
resolver as questes na hora, junto com o grupo e, individualmente, sempre consegue realizar
o que o professor solicitava.
Outro exemplo de que os alunos tm estmulos gerados na rede das relaes sociais
para se tornar multi-instrumentistas, aprendendo com ou sem professor, se revela no
depoimento de Wagner que diz que alm do violino tocam de brincadeira cavaquinho e
flauta-doce; eu aprendi na Grota, fazer umas escalinhas; e cavaquinho eu comecei, de
brincadeira l com um menino l que estuda na minha sala e ele me ensinou alguma coisa l e
d pr tirar um som. E seu irmo, Walther diz: de brincadeira, eu fao um barulho na batera
e toco flauta-doce tambm. A perspectiva da brincadeira dada por eles reflete uma relao
ldica com o aprendizado e d a eles outras possibilidades de vivncias musicais prazerosas
em que eles prprios promovem uma expanso do conhecimento musical:
Parece que aprender sem professor uma ao que emerge das demandas criadas
pelos prprios alunos quando formam grupos e querem desenvolver novas tcnicas e
repertrio. O Grupo de MPB no tinha contrabaixista. Rafael Nogueira que toca cavaquinho
com competncia tcnica e musical, se props a aprender e foi se superando nas dificuldades,
tornando-se um timo contrabaixista, j comeando a se profissionalizar.
Nogueira consegue, inclusive, realizar solos e improvisos de ouvido e explica que
se baseia no solo dos outros componentes do grupo: ..., eu sei assim porque ele ta fazendo
ali...de ouvido, mais pelo ouvido e a cifra aqui. Foi o que eu falei, eu nunca tive aula do
instrumento, eu sei mais ou menos s. E o contato com o repertrio da Bossa Nova, tambm
se deu a partir da formao do Grupo, o que o estimulou a ampliar para um repertrio
jazzstico: o contato com MPB s foi com esse grupo aqui, mas praticamente eu agora estou
tentando escutar mais jazz, por causa do contrabaixo, e todo mundo fala que o jazz ajuda
muito o contrabaixista a tocar. Mas eu nunca tive aula, quer dizer, eu vou... (risos) ...eu vou
ter aula agora!.
Carla relata que alm das aulas ela tem oportunidade de aprender novos repertrios
nos grupos que participa fora do PVL. Um deles um grupo profissional que se apresenta nos
palcos dos hotis e fazem shows noite. Trata-se de um quinteto que Carla participa h quatro
anos e tem a configurao instrumental de cinco flautas, violo, cavaquinho, voz e percusso.
O grupo precisava de uma flautista como free lancer e por intermdio de Marcelo, um contato
142

da Escola de Msica da Rocinha, foi apresentada ao grupo e logo estavam integrados. Essas
situaes que exigem uma competncia para tocar em grupo proporcionam Carla novas
aprendizagens, ampliando, inclusive, suas possibilidades profissionais como instrumentista:

...so msicos da noite e j tocam h bastante tempo, muito mais tempo do que
eu...eu estou comeando a aprender e ento eles me ensinam muita coisa como essa
questo de... ah, isso no est dando certo, agora beleza, vamos passar pr outra
coisa, sem precisar... porque como a gente est comeando a aprender agora, a
gente fica muito nervoso... ah, erramos isso aqui..., e eles no, a maior
tranqilidade, sabe, errou beleza, passa por cima e eles no esto nem a. Eles so
safos mesmo, muito prtico pr eles assim e isso eu quero adquirir pr mim pr eu
no ficar... que s vezes eu fico muito nervosa assim... Ai meu Deus, eu errei isso,
o que que eu vou fazer?. Eu no! passar por cima e bola pr frente. (CEVL_1,
p. 22, Carla Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).

E sobre um outro grupo que ela participa na Rocinha vale destacar a questo
geracional, pois se trata de sambistas da velha guarda que se renem toda tera feira na casa
do violonista. E para Carla o aprendizado est na possibilidade ..aprender um repertrio de
sambas da antiga que eu no conhecia... sambas da antiga mesmo e agora estou comeando a
conhecer e estou achando muito legal de aprender!
Mesmo no se dedicando com tanto afinco ao repertrio solo, como avalia sua
professora Andra, Carla, ao participar de tantos grupos, acaba por adquirir uma experincia
musical atravs de performance em grupo que lhe confere um diferencial como
instrumentista. O fazer msica em grupo parece ser um fator estimulador e determinante na
trajetria dela como flautista.

3.4.1.2.1 As Aulas Individuais

Nas aulas individuais os professores focam mais o repertrio solo e, trabalham


questes tcnicas, de estilo e estruturao musical. Todos os alunos entrevistados reconhecem
que, ao iniciarem o curso no PVL, eram ainda bastante incipientes nos seus instrumentos e
que as aulas proporcionaram a eles um significativo desenvolvimento nos aspectos
mencionados. Fbio, formando de 2004, alm de tocar clarineta tanto no repertrio popular
como no erudito, toca piano e teclado, faz arranjos, tem domnio da harmonia funcional.
Quando perguntei a ele como uma abordagem tcnica refletiu na sua performance,
ele destacou que houve muita diferena no sentido de entender melhor o caminho do
143

clarinete, o estudo das escalas, as passagens de uma chave pr outra, de uma regio pr outra
e quando voc conhece bem os caminhos voc no tem dificuldade de fazer quase nada
(CEVL_1, p. 38-39, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
Jocielton, flautista, toca de brincadeira violo e pandeiro. Como a flauta transversa
que ele estuda no cedida para sair fora da Casa, Jocielton tem que se deslocar para l e
estudar. Isso um fator que dificulta seu progresso, pois muitas vezes no tem condies de ir
todos os dias, o que obriga a escolher um dia na semana para poder se dedicar ao estudo.
Jocielton um dos solistas do Grupo de Choro e confessa sua paixo pelo gnero: quando
comeo a estudar eu passo meu repertrio de choro primeiro... (risos). Seu gosto pelo
repertrio de choro considerado por sua professora Andra e ganha espao nas aulas que
trabalha com ele suas dificuldades e busca ampliar, dentro do prprio gnero, a diversidade de
possibilidades de obras e estilos.
Destaca que os ensinamentos recebidos nas aulas individuais contriburam para sua
atuao como flautista:

...ela uma grande flautista, conhecida internacionalmente... uma tima professora,


uma tima pessoa....quero entrar pr Banda de Bombeiro e pr isso eu estou pegando
firme assim nos meus estudos com a flauta... seus ensinamentos me ajudaram
muito...melhorou muito, porque minha sonoridade era meio pssima e minha
posio; o jeito de sentar, o jeito de ficar em p que era meio curva e a a flauta meio
bamba e tal. E a me ajudou muito, meu som melhorou muito depois que eu comecei
a ter aula com ela...Quando ela fala...que est certo, p, a eu percebo que o som est
muito melhor mesmo e quando eu volto quela posio eu j vejo que est meio
desafinado mesmo, que mudou muito... (CEVL_1, p. 54-55, Antnio Jocielton,
aluno formando 2004, 01/06/2004).
144

Como se pode notar, as aulas individuais se apresentam como um momento


reconhecido por eles como importante na sua formao, revelando um relacionamento
positivo com os professores. O ensino de instrumento de obras registradas em partituras e
consagradas no repertrio especfico demanda dos professores recursos para comunicar suas
idias esttico-musicais, sonoridades, efeitos, dedilhado, posio do corpo. O que ficou claro
nesse processo que a comunicao verbal insuficiente para expressar a concepo musical
do professor, mesmo que a obra esteja escrita. Assim, a oralidade um recurso importante
nesse processo de comunicao onde se incorpora sons onomatopaicos, canta-se a melodia
acompanhada de gestos corporais. O professor lana mo de muitos recursos entre os quais,
mostrar tocando e sonorizando suas idias musicais. O professor fala tocando e o aluno
responde tocando quando imita e se estabelece, por esse processo de oralidade e imitao,
uma relao em que prevalece a experincia prtica. Uma prtica que comporta repeties
para se atingir um outro patamar de qualidade musical, o que requer do professor e do aluno
uma clareza do que ser quer musicalmente.
O ideal e o possvel devem ser considerados diante das condies que se apresentam
constituindo-se em um gama de variveis imprevisveis, uma vez que dependem de fatores
como estgio do aluno, suas condies fsicas e de maturidade musical, suas motivaes, sua
capacidade de entender a linguagem do professor, etc. Para compreender o que se deve fazer,
ouve-se, olha-se, executa-se, imita-se. Agua-se todos os sentidos do corpo que vo
incorporando e motivando o processo de aprendizagem e da performance.

3.4.1.2.2 As Aulas em Grupo

Uma outra estratgia agregada s aulas individuais o agrupamento de alunos de


diferentes nveis e instrumentos e sempre tendo a performance como condutora do processo.
Os alunos parecem gostar muito. Luis Cludio, Chico, professor de clarinete e sax e Ricardo
Costa, professor de percusso, freqentemente utilizam essa estratgia didtica. Pude observar
vrias aulas em que Luis Cludio trabalhava dessa forma e aproveitava aquela msica que o
aluno trazia por conta dele, o repertrio que estava sendo estudado e o repertrio que o grupo
j estava acostumado a tocar. E a aula tornava-se uma roda de choro, MPB e de improviso.
145

A aula de Chico S tambm um exemplo de procedimentos didticos hbridos entre


o individual e o coletivo com os alunos de instrumento de sopros. Suas aulas do nfase
tcnica como controle da embocadura e diafragma para emisso de notas longas, escalas
diatnica, cromtica e de tons inteiros, digitao, etc. Sua inteno explicita ao enfatizar a
tcnica: O que eu quero automatizar todos os movimentos triviais; serve para melhorar a
mecnica e a autoconfiana. Complementa suas intervenes com contedos da Histria da
Msica e Acstica. O que d um diferencial que para amenizar a aridez desse estudo com
nfase na tcnica, Chico prope um trabalho em grupo envolvendo Ademar, no sax, Daniel,
no trombone (aluno do Luis Cludio), Fabio e Fabiano, na clarineta. Acaba trabalhando as
escalas, fazendo polifonia, solicitando ateno para as diversas possibilidades de sonoridades,
dinmicas e dedilhados. Embora eu percebesse uma distncia entre o que Fbio tocava,
solando nos encontros do grupo de choro e msica popular e os exerccios de controle tcnico
que Chico lhe exigia, essa atividade era reconhecida por ele e pelos outros alunos como
importante e como uma forma deles se desenvolvere no instrumento, independentemente do
repertrio executado.

Ademar fala como foi o seu aprendizado de msica neste perodo que ele estudou no
Projeto e diz que viu muita coisa e conseguiu entender muita coisa respeito de msica.
Sobre as aulas com Chico, ele diz:

...e ele com as tcnicas doidas dele, mas que funciona, comeou a descascar, me
lapidar todinho e tentar me colocar no eixo, tirar os vcios e... ento quer dizer, eu
fui aprendendo muitas coisas novas, fui vendo, por exemplo, percepo musical, a
ouvir alguma coisa e saber o que aquilo ali ...diferenciar um intervalo do outro,
146

escutar um acorde e a partir desse acorde comear a desenvolver as coisas. Esse


Projeto me deu uma base boa durante esses trs anos, ele construiu uma base muito
boa e apesar de parecer muito tempo para alguns dos alunos, pr mim ainda
pouco...mas a gente sabe que infelizmente, o custo alto, e ento se esses trs anos
que tem, eu tentei aproveitar o mximo de todos os professores para que pudesse ter
uma base boa e eu acho que consegui (CEVL_1, p. 7-8, Ademar dos Anjos, aluno
formando 2004, 04/06/2004).

Esse processo de ensino e aprendizagem envolve atividades e conhecimentos da


academia em que o professor trabalha um mesmo trecho exaustivamente, observando,
indicando caminhos, encorajando por meio de suas crticas, presena ou, at mesmo, pelo seu
silncio paciencioso. O aprendizado musical pressupe uma disciplina de vrias ordens. Tem
que tocar lento, repetir pequenos trechos para resolver problemas de digitao e dedilhado,
desenvolver a capacidade de ouvir e executar polifonias, polimetrias, polirritmias, etc. A
leitura da msica grafada um fator importante mas no imprescindvel na construo da
identidade da msica, uma vez que a partitura apenas um guia de aproximao para a
performance (BLACKING, 1995, p. 223). Assim, preciso trabalhar com os alunos a
capacidade de releituras que possibilitam que se recriem interpretaes musicais possam
incorporar novas perspectivas interpretativas que imprimem caractersticas prprias na
performance de repertrios consagrados. Isso propicia uma experincia musical que comporta
as diferentes maneiras nas quais as pessoas fazem sentido dos smbolos musicais
(BLACKING, 1995, p. 225).
Emannuelle faz um destaque para o processo de ensino e aprendizagem focando a
relao de grupo que prevalece no Projeto:

...Vejo, as aulas tericas que eles tm, mesmo a prtica de conjunto e num nvel
bastante nico, a unio que eles tm ali dentro, no se formam msico isolados. No
Projeto eles so uma equipe e eles agem como uma equipe o tempo inteiro, eles se
juntam, eles fazem msica, eles conversam e alm da prpria msica, o projeto faz
com que eles se aproximem e criem uma relao de amizade e eu acho que isso
uma coisa que vai ficar alm do projeto. O Projeto est visando, bvio, msica, e
ali voc sente que eles esto vivendo msica, nas atividades em conjunto, nas aulas
tericas. Eu acho que isso de uma forma geral favorece o aprendizado (CEVL_2, p.
123-157, Emannelle Freitas, professora de trompete, 01/07/2004).
147

3.4.1.3 A TEORIA E PERCEPO MUSICAL

As aulas de percepo musical so ministradas por Bia Paes Lemes. Bia um


musicista muito conhecida no meio artstico carioca, por suas parcerias e como arranjadora,
compositora na msica popular. Foi a mentora e fundadora do TEPEM Teoria e Percepo
Musical curso de extenso na UNIRIO, que tambm prepara alunos para o vestibular de
msica e tem sido procurado por oferecer uma formao musical de qualidade a baixo custo.
Nas aulas de percepao so trabalhados os contedos da linguagem e estruturao musical e
so freqentadas por todos os alunos. dividida por nveis, considerando o conhecimento que
o aluno j possui. A partir do primeiro contato, Bia organiza as turmas em aulas de cinqenta
minutos. So seguidas e divididas em cinco turmas de percepo que foram organizadas
pelo nvel dos alunos e uma turma de harmonia, sendo que algumas turmas encaixam ex-
alunos.
Para Turbio nessa aula que eles vo trabalhar, vo aliar a prtica instrumental
teoria... eles estavam tendo essa matria terica e no estavam rendendo. A a Bia entrou no
circuito... e eles ficaram encantados (CEVL_2, Turbio Santos, 02/06/2004). A metodologia
que Bia desenvolve em suas aulas em grupos dinmica, focada na estruturao musical que
emerge de materiais musicais.
As aulas de percepo so vistas, de uma maneira geral, pelos alunos como uma
atividade importante para a apreenso da linguagem musical, o que significa para eles ler
148

partitura, apropriar-se da escrita e torna-se msico. Jocielton e Leandro Serizac ilustram o


pensamento que permeou todos os depoimentos dos alunos entrevistados:

Com a Bia melhorou muito a minha leitura de partitura, agora estou sabendo tudo,
todos os elementos da escrita musical. Aqui diferente, aqui aula mesmo, aquela
que eu aprendo todos os elementos que compem a pauta musical, as coisas l
mais assim o repertrio de l [dos grupos e das aulas individuais], tem uma msica
que o pessoal est com dificuldade no ritmo, ela vai l ver com a gente se a gente
est vendo o ritmo direito (CEVL_1, p. 56, Antnio Jocielton, aluno formando 2004,
01/06/2004).

Na verdade eu j sabia o que era msica, porque o msico, cada um aqui quando
comeou a tocar o seu instrumento, j sabe o que fazer com o seu prprio
instrumento, s que a gente no tinha o qu: a teoria. A gente no sabia a teoria e eu
quando eu cheguei aqui no sabia nada de teoria e eu fui fazendo aula de percepo
musical, com a aula de cavaquinho, comecei a ler partitura e o Villa-Lobinhos foi
praticamente o que me facilitou nisso tudo aqui (CEVL_1, entrevista com o Grupo
de Choro, 21/06/2004).

Em relao leitura musical, todos consideraram importante para sua formao.


Marquinhos revela que no teve nenhuma dificuldade em aprender a ler partitura e destaca
como essa habilidade provoca admirao em seus colegas e parece despertar nele um certo
orgulho em dominar essa linguagem:

Ler partitura no foi muita coisa difcil no, aprendi fcil; meti as caras a, aprendi
fcil, a quando algum v, quando t com uma partitura na mo assim, a a gente na
escola fica impressionado: v, como que voc sabe v as bolinhas, esses pontinhos
pretos, nessas linhas a... - No, isso aqui s estudar que voc aprende, s
esforo, esforo, esforo e aprende...todo mundo admirado (CEVL_1, p. 65, Marcos
da Silva, aluno formando 2004, 29/05/2003).

Ler e escrever msica um assunto que suscita discusses entre os alunos e


professores, mas considerado um valor importante agregado formao do msico. Todos
os alunos tm a experincia de tocar de ouvido e o PVL visto como uma possibilidade de se
aprender sistematicamente a linguagem musical. Mas eles, tambm reconhecem que fazer
msica no requer a priori saber ler e escrever. Nogueira, no seu depoimento ressalta o papel
que a leitura de partitura teve no seu processo de aprendizagem do cavaquinho:

...quando a pessoa comea, como o professor falava, o Bodega l; o que ele fez? Se
passasse a partitura no comeo ns no ia pegar... na hora e ns no ia aprender
nenhum instrumento e o que ele fez, ele sentava assim, ele e eu assim e passava, ele
tocava e ele me passava. Mas hoje se voc fizesse isso, quer dizer, o professor est
ensinando assim com o instrumento, mas a pessoa em si, sente a necessidade de
aprender... (risos) de aprender o instrumento, de aprender a ler partitura, pr voc at
poder sentar com outra pessoa assim e saber argumentar (CEVL_1, entrevista com o
Grupo de MPB, 15/06/2004).
149

Sobre o status da leitura e escrita musical, Rodrigo cita Nogueira como um exemplo
de que h de se pensar na relativizao dessa competncia para como condio de se fazer
bem msica ou mesmo de pensar na identidade do ser msico, muito embora, a apropriao
dos cdigos e do conhecimento da msica de tradio escrita venha sendo reivindicada por
muitos msicos que no tiveram a oportunidade de ter acesso a esse conhecimento
sistematizado, como revela recentes pesquisas realizadas com msicos na rea de msica
popular.

...O maior exemplo que a gente tem disso, o Nogueira, preguioso no dia a dia pr
ler partitura. Oh garoto miservel pr ler, ele no gosta de ler partituras. Ele sabe ler,
ele cata milho, mas voc j viu aquele menino tocando, que monstro ? A gente
estava ensaiando ontem e voc pega vamos escrever aqui na partitura, no sei o
qu..., e ele virou P, mas escrever na partitura pr qu, olha aqui, isso
fcil... pom, pom, pom..., ele faz tudo, sabe? O ouvido dele uma coisa fantstica,
entendeu? claro que, ele lendo partitura, claro que, ele vai pegar uma partitura,
mas a preguia dele de ler, tirar uma msica lendo partitura, entendeu? (CEVL_2, p.
45-46, Rodrigo Belchior, coordenador, 08/04/2004).

Essa observao de Rodrigo revela como o mito da leitura e escrita musical no pode
ser tomado como uma condio essencial para ser msico e ser bom msico. Ler partitura
umas das formas de se ter acesso execuo musical de uma obra, mas um dos jeitos e
existem muitos outros que no diminui, a priori, a qualidade musical, a qualidade esttica de
uma performance.
Para Saulo, recm introduzido no PVL, ler um sonho e uma possibilidade de
aumentar sua habilidade no instrumento:

Ler uma coisa muito legal porque aumenta no s a nossa habilidade no


instrumento mas sinto, tambm, psicologicamente...a msica usa muita matemtica
na partitura e aumenta muito a nossa habilidade na msica. E muito bom porque
aqui a gente aprende mais do que em alguns outros lugares. Esse aqui o melhor
espao que a gente tem, ainda mais na Casa [da Gvea] que um espao silencioso,
bom, legal e por isso que a gente aprende mais rpido e melhor ainda, com mais
entusiasmo. (CEVL_1, Saulo, aluno do primeiro ano).

O TEPEM Teoria e Percepo Musical oferecido pela UNIRIO, muito citado


pelos alunos que funciona, tambm, como um preparatrio para quem quer fazer concursos
que exigem uma formao consistente em estruturao e linguagem musical. Carla, Fbio,
Daniel e Jocielton freqentam esse curso, pois tm pretenses de continuar os estudos de
msica. Carla fez o TEPEM e diz que como era muito jovem, tinha quinze anos, no
conseguia assimilar com tanta rapidez quanto exigido l porque um curso intensivo e
voc tem que aprender as coisas muito rpido. J no PVL ela conseguiu assimilar muitas
150

coisas que no estava conseguindo no TEPEM e, atualmente, j se considera pronta para


voltar pro TEPEM e pr fazer o vestibular da UNIRIO(CEVL_1, p. 28-29, Carla Mariana,
aluna formanda 2004, 08/06/2004).
A diversidade na vivncia musical possibilitou que cada aluno do PVL pudesse se
aprofundar em campos de seus interesses. Fazer arranjos uma das aes que emergem nos
processos coletivos de ensaios dos grupos musicais. Tem sempre o trao da coletividade
construdo com a contribuio dos participantes dos grupos. Fazer arranjos estruturados,
segundo as normas da harmonia, do estilo, da funo da msica uma das prticas musicais
exercitadas por Fbio e Igor que escrevem arranjos para diferentes grupos instrumentais.
Trata-se de uma atividade musical especfica e que exige um conhecimento de estruturao
musical, dos recursos tcnicos e timbrsticos dos instrumentos, alm de se conhecer as
possibilidades dos msicos que iro executar o arranjo. Igor vem desenvolvendo tambm na
rea de composio e teve sua obra Valsa para Bia executada pela Orquestra Villa
Lobinhos.

Fbio relata como foi estimulado a exercitar a elaborao de arranjos musicais e


revela a importncia que as aulas de percepo e harmonia tiveram nesse processo:

depois que eu entrei no Villa Lobinhos, que a eu comecei a estudar percepo,


melhorar meu ouvido, passei a estudar harmonia. E a fui desenvolvendo meu
ouvido e a ficou mais fcil de pegar certas coisas que antigamente eu no
conseguia. Eu tinha que pegar o instrumento e caar uma nota l at encontrar e hoje
no, hoje j d pr saber em que grau estou e nem precisa saber a nota, ouvindo j d
pr adivinhar o grau, adivinhar no, saber o grau (CEVL_1, p. 37-38, Fabio
Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).
151

Essa competncia j lhe possibilita fazer arranjos para os grupos musicais de sua
igreja em Mesquita, o que confere a ele o status de arranjador da Igreja Assemblia de Deus
de Mesquita. Fazer arranjos significou para ele ter que aprender os programas de computao
que realizam edio de partituras, ampliando suas competncias como msico. Est
aprendendo nos computadores do PVL, orientado por Rodrigo e por Igor que j dominam os
programas especficos.
Fbio ressalta, ainda, que de uma maneira geral todas as situaes vividas no PVL
contriburam para que ele tivesse essa formao diversificada. Isso contribuiu para que ele
pudesse fazer arranjos: O grupo de choro me ajudou muito pr reconhecer as harmonias, a
aula da Bia e do Chico, ou seja, o Villa Lobinhos me ajudou pr caramba ao desenvolver meu
ouvido, minha cabea funcionar mais rpido a respeito de msica em geral. E essa habilidade
propicia ao Fbio elaborar arranjos e escrever partituras para o grupo jovem da igreja a partir
de CDs:

...Eles me do o CD e eu escrevo partes para a orquestra ou adaptao ou qualquer


coisa do tipo. Geralmente quando tem alguma festividade ou congresso...fao coisa
pr coral e orquestra, eu tiro a parte da orquestra pr poder ensaiar pr fazer tudo ao
vivo sem play-back. Eu escrevo... e como nem tudo tem parte pr orquestra, a que
tem pr orquestra eu vou seguindo igualzinho e a que no tem eu fao algum arranjo
meu ou fao alguma adaptao, porque tem sempre alguma coisa de teclado no
fundo e que s vezes eu jogo pr orquestra e que fica interessante pr caramba...
parte de baixo eu vou botando e quando no tem nada, nada mesmo, a eu fao um
arranjo (CEVL_1, p. 37, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01-06-2004).

3.4.2 O REPERTRIO

O repertrio que circula no mbito do PVL amplo como j foi mencionado. A


variedade de contextos sociomusicais presente nas relaes dos participantes do Projeto
propicia uma troca que amplia significativamente os gneros, compositores, arranjadores,
estilos que se encontram em um ambiente permeado pelo fazer musical. Dessa forma, as
escolhas tm um carter horizontal em que todos podem tocar o que gostam, o que querem, e
as diferenas aguam a curiosidade. Pode-se perceber que eles tocam do erudito ao popular,
um leque muito amplo de estilos musicais. Ademar fala sobre o repertrio que estudou e
conheceu no PVL:

...Aqui eu estudei bossa, estudei samba, vi muita coisa a respeito do jazz tambm,
apesar de eu no saber muito a linguagem do jazz, mas eu tive uma iniciao esse
tipo de linguagem...e forr, vi o forr como que se toca mesmo, o baio e tal e eu
152

acho bem legal mesmo...logo no incio quando eu entrei, a primeira pea que deram
pr gente estudar foi o Concerto de Brandenburgo...foi a primeira pea que eles
deram pr gente estudar...no conhecia. Alis, em termo de msica erudita, eu no
conhecia nada, nada, nada, nada!. No sabia quem eram os compositores, por
exemplo Bach, no conhecia Bach, no conhecia Mozart e aqui dentro do projeto eu
fui vendo a vida de cada um, fui aprendendo um pouco mais sobre cada um deles.
No vi todos, infelizmente, mas j aprendi bastante a respeito de alguns...na
orquestra...arranjo feito pelo Srgio Barbosa para a Orquestra (CEVL_1, p. 9,
Ademar dos Anjos, aluno formando 2004, 04/06/2004).

Como j foi mencionada, a rede tecida entre o PVL e as organizaes que trabalham
com prticas musicais tambm contriburam para uma significativa ampliao do universo
musical em termos de repertrio e experincias estticas vivenciadas pelos alunos. O que
ressalta que no obstante eles tenham tido a oportunidade de tocar o chamado repertrio
erudito, o que prevalece no gosto e na preferncia deles a msica popular. Haja vista que os
dois grupos estveis constitudos tocam gneros especficos do Choro e de MPB.
A paixo pelo choro e MPB permeia o repertrio que transita pelo Projeto.
Marquinhos j tem seus compositores preferidos: ... tm vrios compositores bons mas o que
eu gosto mesmo, mesmo de ouvir o Noel Rosa e o Pixinguinha. Meu repertrio tem de tudo,
tem chorinho, tem msicas de cmaras, peas de orquestra, tudo. Mas ressalta que sua paixo
mesmo o chorinho porque muito lindo,... inexplicvel falar...j vem de dentro, sabe, da
alma, j vem de dentro, mexe com o corpo, um swing...no vou falar que outras peas
tambm no tenham swing, mas chorinho... mexe com a alma, mexe com o corpo, mexe com
o sangue, mexe com tudo!
E conta que foi Rodrigo que lhe mostrou o primeiro chorinho que ele ouviu eu vi o
Rodrigo tocando e comecei a gostar e mexeu comigo, mexeu comigo e parece que me deu
um... no sei explicar, eu s sei que mexeu comigo. E Rodrigo, um choro escolado, vai
impregnando esse gosto, se espraiando pelos outros projetos sociais que os alunos
freqentam, e a troca de repertrio acontece:

...eu lembro a primeira vez, eu peguei uma msica, um arranjo do Cascatinha que
um choro maxixe do Pixinguinha e fui ensinar pros meninos da Grota e tinha muita
sncope... Mas... ah! No sei ler isso, a gente nunca leu isso!; e eu falei: Vamos
tentar, vamos l! e ficava l e deu muito trabalho preparar aquele arranjo, muito,
porque os meninos da Grota no tinha esse contato com o cavaquinho ou flauta e
todo mundo do PVL j tocava choro pr caramba.Eu acho que foi ali que comeou a
coisa deles comearem a tocar choro. A prepararam l um Tico-Tico no Fub.
Isso l na Grota. Eles vieram pro Villa-Lobinhos sem saber o que era sncope, nunca
leram uma sncope, eles falaram mesmo...Ah, mas muito difcil e tal.. E ali ns
comeamos...eles trazem para os outros alunos a coisa do erudito, e a galera do
cavaquinho, da flauta, d pr eles, acaba dando pr eles a coisa da msica popular.
Tanto at que esto sempre transitando nos dois, nos dois lados (CEVL_2, p. 67-68,
Rodrigo Belchior, coordenador, 06/12/2004).
153

Essa mixagem propicia para os integrantes da Orquestra e para as suas comunidade


pontes entre as estruturas simblicas conhecidas de sua cultura e novas formas de vivncias
estticas que ampliam a possibilidade de fruio esttica. a mistura do conhecido com o
novo que vm junto no mesmo contexto. Os msicos da Orquestra da Grota, assim como a
Orquestra do Villa Lobinhos, assumem que as escolhas do repertrio depende do ambiente
mas os dois esto dando certo, os dois juntos, e a gente at mistura popular e clssico,
clssico e popular e est dando certo (CEVL_1, p. 96, Walther e Wagner de Oliveira, alunos
formandos 2004, 11/06/2004).

3.4.3 TOCANDO NO GRUPO

A formao de grupos instrumentais foi surgindo medida que os alunos se


desenvolveram em seus instrumentos e eram estimulados a tocar para a comunidade em
diferentes espaos e contextos. Comeou com uma proposta de Turbio, coordenada por
Rodrigo Belchior, para apresentar concertos didticos. No incio do PVL no havia grupos
constitudos como se tem atualmente. Para formar os grupos, Rodrigo contava com alunos
instrumentistas que faziam parte do Projeto. Ele escolhia as pessoas que iria tocar de acordo
com a disponibilidade. Assim, o repertrio e a configurao do grupo mudavam a cada
apresentao. Atualmente, o PVL representado nos concertos e apresentaes pelos Grupos
de Choro, de MPB, por grupos instrumentais diversos formados para atender a situaes
especficas e pela Orquestra Villa Lobinhos, que do uma significativa visibilidade ao Projeto,
evidenciando o resultado do trabalho proposto em termos de formao e performance musical
quele grupo alvo.
A questo da disponibilidade do espao fsico para os encontros organizados pelos
alunos torna-se um fator determinante para que as diversas formas de prticas musicais
aconteam. Existe uma proximidade fsica entre eles quando esto por l; um sabe o que outro
est fazendo, ouve o que outro toca, o que o professor fala. Mas, no h uma interferncia
inconveniente que atrapalhe as atividades pedaggicas porque h uma pronta comunicao
quando isso vier a acontecer. So as regras tcitas que prevalecem e muitas vezes o pulso
firme de Rodrigo na conduo do comportamento dos alunos em relao a uma convivncia
entre todos. Ressalta-se que isso possvel porque o PVL no tem grandes dimenses em
154

termos de nmero de pessoas envolvidas, o que gera demandas compatveis com esse tipo de
gesto do Projeto.

Rodrigo ressalta que os alunos j assumem compromissos profissionais para tocar em


eventos com diferentes funes e repertrios, tanto erudito como popular - classificao
utilizada porn eles prprios - que antes eram atendidos pelos professores. E reconhece, com
orgulho, a capacidade de mobilidade e a qualidade musical que eles demonstram transitando
entre esses dois contextos:

...semana passada, o Jocielton e o Ramon, foram tocar em uma exposio de


quadros, num lugar fantstico! E a mulher me pediu assim Ah, eu gostaria de ter
uma flauta, um violo; antigamente eu fazia muito isso... Ah, eu no tenho no,
mas tudo bem, pode ter!. E a montava repertrio rapidinho, ensaiava com o Fbio
[professor de violoncelo], com o Luiz Cludio e aquela coisa, quebrava, queimava a
mufa, mas a gente ia l e fazia. E a eu peguei um livro daquele do Mario
Mascarenhas, com um monte de msicas eruditas, com uma cifra pr piano e a
tinha cifra e tinha a melodia e a eu falei , t aqui. A pessoa quer isso. Tem
condio de montar Jocielton e Ramon um repertrio pr tocar na exposio? A
moa quer Mozart, ela quer Vivaldi, ela quer... mas bem light, s flauta e violo,
no quer nada com percusso. Vixi! Fizeram tudo, viraram o troo de cabea pr
baixo! Eu fui l, dei uma passada logo depois da palestra e estava todo mundo
encantado, todo mundo, louco com a msica deles, eles fazendo aquela msica e a
algum falou, algum pediu l... Ah, mas no tocam uma bossa-nova, um choro?.
A pronto, foi o forte, comearam a tocar e a, por causa dessa exposio, surgiu
uma outra com o mesmo repertrio, repertrio erudito, s flauta e violo. E eles
continuam ensaiando e vo fazendo uma outra exposio. Ento, legal isso, quer
dizer, eles conhecem uma, como que eu vou dizer, uma Pequena Serenata
Noturna, mas no conhecem... de Mozart mas no sabem, nunca tocou. Mas j
ouviram aquilo num comercial, em alguma coisa assim, ou ento a Grota tocou e
tal. Quando voc chega e pede alguma coisa erudita, eles do conta, sabe, uma coisa
sem percusso, ali, so eles dois, entendeu? E fazem, como eles fizeram agora
(CEVL_2, p. 67-68, Rodrigo Belchior, coordenador, 06/12/2004).
155

3.4.4 A ORQUESTRA VILLA LOBINHOS

No conjunto de atividades proporcionadas pelo PVL, a Orquestra Villa Lobinhos


citada como um espao significativo para o desenvolvimento musical de todos os
entrevistados:

...eu adoro participar da orquestra...os arranjos esse ano esto bem difceis fazendo
com que a gente estude. legal voc ver assim, at mesmo porque, se no fosse
aqui, eu no teria oportunidade de tocar com trombone, com violino, saxofone, eu
no teria oportunidade de tocar com esses instrumentos (CEVL_1, p. 23-24, Carla
Mariana, aluna formanda 2004, 08/06/2004).

Fbio relata que conheceu obras de muitos compositores participando da Orquestra


Villa Lobinhos: a gente toca Beethoven, Mozart, Tchaikovsky, Corelli e de popular a gente
toca Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, no repertrio popular. E Jocielton destaca
Villa Lobos como um dos compositores que mais gosta de tocar na Orquestra elogiando: os
arranjos de Srgio tambm ajudam e do um toque especial no repertrio do Villa-Lobos.
Para Srgio Barbosa, o desenvolvimento da Orquestra foi uma conseqncia do
trabalho desenvolvido ao longo desses anos, pois no havia uma proposta especfica para isso:

a proposta era fazer pequenos grupos mesmo, mas abrindo o leque musical. Como a
diversidade de instrumento foi se ampliando dentro do grupo...foi meio que uma
surpresa pr eles e quanto pr mim tambm, porque no foi uma coisa que foi assim:
vamos organizar uma orquestra, que a gente vai criar um arquivo, que a gente vai
156

fazer isso, que a gente vai..., no, a gente vai fazer, se for possvel a gente faz.
(CEVL_2, p. 96, Srgio Barbosa, regente da orquestra, 16/06/2004).

Segundo Srgio, o trabalho de grupo instrumental foi um contexto para se trabalhar a


msica em grupo e ampliar o repertrio considerando os diferentes gneros e estilos musicais,
ensejando conversas e audioes sobre os compositores e obras que estavam sendo estudadas.
Tal trabalho possibilitou uma vivncia musical que foi quebrando barreiras e resistncias
existentes. Srgio recorda que no incio ele trabalhava com um um repertrio bastante restrito,
mas comeou a elaborar arranjos especficos para a configurao instrumental que dispunha
no grupo. E conta que

...uma das primeiras msicas que eu fiz o arranjo [em 2001] foi A Mar encheu do
Guia Prtico [de Villa Lobos]. Essa pea emblemtica, foi importante para o
desenvolvimento social e artstico dos alunos do PVL, pois ela fez abrir a mente
deles no que diz respeito ao valor artstico e social do cancioneiro infantil. O
comentrio do grupo no incio foi: msica boba, infantil e a gente no quer tocar
isso... voc s quer dar msica que pr gente no interessa.... Quando fizemos a
primeira leitura do arranjo feito especialmente para aquele grupo, trazendo estruturas
rtmicas que eles conheciam, a surpresa foi geral, pois eles encontraram uma obra
lhes fornecia prazer em executar. E a quando a gente tocou, eles falaram: P, que
legal! Isto foi muito importante para implementao de novas obras musicais [...]
conseguimos preparar "O Trenzinho do Caipira" unindo o aspecto pedaggico e o
artstico mediante um processo conduzido pela performance musical, mas sempre
considerando as possibilidades do grupo (CEVL_2, p. 96, Sergio Barbosa, regente
da orquestra, 16-06-2004).

Srgio disponibilizou para essa pesquisa os arranjos das obras A Mar Encheu
(Anexo A, obra completa) e do Trenzinho Caipira (Anexo B, um trecho da obra), onde se
pode notar a concepo timbrstica estruturada a partir dos instrumentistas que compunham o
grupo e, tambm, a re-leitura de obras tradicionais, incorporando uma ambincia sonora
familiar ao grupo. Os instrumentos de percusso utilizados na escola de samba, violo, a
incluso do cavaquinho, flauta doce, so novidades no arranjo que integra todos os
instrumentistas do PVL mediante performance coletiva. (Vide faixa 1 e 2 do CD, Anexo C)
O trabalho com a Orquestra foi se tornando atividade obrigatria com o repertrio
ampliado para todo o Guia Prtico de Villa Lobos. Peas de compositores como Bach, a ria
da 4 corda, o concerto de Brandenburgo; Mozart com um arranjo da obra Je vous dirai,
mama, so executadas, tambm, meditante uma re-elaborao que resulta em novos arranjos;
a Bagatela de Beethoven e outros arranjos de MPB, constituindo-se em um repertrio ecltico,
possvel de ser apresentado em salas de concerto e espaos pblicos abertos, escolas, etc. A
Orquestra Villa Lobinhos est se preparando para gravar em CD o registro da produo
157

musical do grupo. Segundo Srgio, a perseverana em realizar esse trabalho se pautou na


crena de que se aprende msica fazendo msica:

...a questo que a teoria a gente aprende tocando, o exerccio da teoria se faz na
prtica. Como que a gente vai conhecer uma msica barroca? Como
instrumentista importante tocar. Pode tocar mal, pode tocar desafinado etc. etc. E
a eles vo sentir a dificuldade que aquela msica... sentir que aquela msica precisa
ser trabalhada dessa ou daquela maneira. Estaro vivenciando aquela msica e no
escutando somente e botar o CD e P... Corelli legal, o Bach legal.... Ouvir
muito importante, mas no vou tocar por qu? Ento vamos botar pr tocar, pr
ter essa conscincia e a eu trabalho com a Orquestra (CEVL_2, p. 96, Srgio
Barbosa, regente da orquestra, 16/06/2004)

Para Srgio Barbosa a dificuldade no trabalho com a Orquestra


desenvolver a conscincia de que cada um precisa estudar sua parte e desenvolver o
compromisso com o grupo: enquanto uns estudam muito, outros chegam l atrasados, esto
lendo primeira vista, no esto tocando, se amedrontam com a dificuldade na leitura.
Assim, conseguir o equilbrio nesse processo complicado porque implica processos
individual e coletivo, pois na orquestra, voc depende do outro, que depende do outro, que
depende do outro. Quando um quebra, pode quebrar todo mundo. (CEVL_2, p. 101-102,
Srgio Barbosa, regente da orquestra, 16/06/2004).
Os ensaios da Orquestra acontecem aos sbados pela manh, na sala maior da Casa
da Gvea. um momento de encontro de todos os participantes, inclusive dos egressos. um
momento para se fazer, ouvir, falar de msica, dos compositores, da histria da msica de
estrias sobre msica.
158

Trata-se tambm de um exerccio de disciplina, organizao e comprometimento


para a realizao do trabalho em grupo, tanto do ponto de vista funcional como musical. Cada
um tem que fazer sua parte. Como j foi mencionadoTurbio v essa atividade como uma
forma de manter os alunos que j terminaram o curso ligados ao PVL. E alm disso, a
Orquestra j tem uma visibilidade como grupo artstico, fazendo apresentaes em diversos
espaos, inclusive fora do Rio de Janeiro, fortalecendo a identidade do Projeto.

3.4.5 AS APRESENTAES

As apresentaes acontecem freqentemente e, como j mencionado, em vrios


espaos que se inserem em diferentes contextos sociais, como o Teatro Municipal e a Sala
Ceclia Meireles. Para os alunos so momentos de celebrao musical, em que o nome do
PVL se projeta e pode dar mostras do trabalho realizado. Eles destacam a possibilidade de
viajar juntos, fazer brincadeiras e o aspecto de protagonismo artstico que cada apresentao
proporciona, como pode exemplificar o depoimento de Fbio falando sobre um momento
marcante:

...um dos concertos aqui no Villa Lobinhos, foi na Ceclia Meireles, concerto aberto
grande, que gostei pr caraa, foi com o Gilberto Gil cantando com a gente e que foi
no ano passado [2003]. A foi timo poder tocar e ao mesmo tempo poder assistir
ele cantando junto com a gente...Gilberto cantando a msica dele com o arranjo do
Srgio Barbosa, o nosso maestro...tocar com ele, nosso atual ministro, maravilhoso
tambm. Gostei pr caramba de poder tocar com gente mais conhecida (CEVL_1, p.
43, Fabio Henrique, aluno formando 2004, 01/06/2004).

Jocielton e muitos outros entrevistados citaram que um dos momentos mais


marcantes para eles no PVL foi ...foi a viagem pr Braslia, que foi um lugar bem diferente,
que eu nunca tinha ido e eu achei muito legal tocarmos no Teatro Villa-Lobos, eu achei muito
bom, pr mim j conta como uma experincia no futuro. Destacam, tambm, a felicidade de
viajar e conhecer novos lugares, proporcionada pela participao no Projeto.
Toda apresentao externa exige uma demanda de organizao na formao do
grupo, no repertrio, na contratao do veculo de transporte do pessoal e dos instrumentos,
no deslocamento dos garotos para suas casas. So muitos os formatos de apresentaes, de
acordo com o pblico e a sua finalidade. Rodrigo organizava cada apresentao com muita
responsabilidade e concentrao e ficou evidente que quem coordena esse tipo de atividade
159

no pode ter horrio fixo, no pode dar brechas para concesses, pois a responsabilidade com
a integridade e segurana de cada jovem do Projeto at que todos cheguem em suas casas.
Sendo assim, Rodrigo responde pelo PVL; s se compreende tal dimenso quando se
acompanha os bastidores de um trabalho dessa natureza. Essa me pareceu ser uma das facetas
que caracteriza o trabalho em uma ONG, uma polivalncia na gesto da diversidade de
situaes inerentes.
Henrique, aluno de cavaquinho do segundo ano, enfatiza que todo mundo gosta e
considera importante tocar representando o PVL porque voc est divulgando e sempre vai
pintar mais oportunidades de apresentar. Os Villa Lobinhos entendem que alm da msica o
grupo pode evidenciar signos que identificam o grupo como pertencentes ao Projeto, ou seja,
ao se apresentarem eles, literalmente, querem vestir a camisa do PVL. um valor agregado
que reflete a noo de pertencimento do grupo (CEVL_1, p. 112, entrevista com o grupo de
choro, 21/06/2004).
160

Uma apresentao que pude acompanhar durante meu trabalho de campo foi o
Concerto intitulado Exploso Musical Brasileira em 17 de junho no Teatro do BNDES, uma
grande sala de concerto. O evento fazia parte de uma srie de concertos com o patrocnio do
prprio Banco. Esse concerto teve uma programao voltada para a msica erudita mesclada
com a msica popular e teve a estria mundial da obra Exploso Brasileira Francisco Frias.
Foi um concerto em que todos os integrantes da Orquestra se comportaram como profissionais
tarimbados no palco, sendo ovacionado ao final. Sobre esse concerto, Turbio destaca:

Voc viu que na hora que eles entraram, eles tomaram todo o tempo possvel para
afinar a orquestra, afinaram e tocaram com cuidado com a afinao lascada, porque
s vezes tm princpios que so elementares, mas voc tem que impor o princpio,
entende? Eu gosto de casa limpa...admito poeirinha embaixo do tapete, casa limpa
casa limpa, msica afinada msica afinada, no tem jeito. Se voc for relapso com
o seu instrumento, daqui a pouco o som est sendo relapso, tambm, a msica vai
ser uma droga, vai ser aquela coisa mais ou menos, entende? Msica um negcio
que se toca afinado, entende? E esse conceito entrou na cabea deles de tal ordem, e
voc no imagina... para minha alegria que foi, de repente ver ali no concerto um
capricho com a afinao, o Igor l mandando nota pr tudo quanto era lado e uma
coisa maravilhosa, entende, isso a no tm preo! (CEVL_2, Turbio Santos, diretor
geral, 31/06/2004).

Esse comentrio de Turbio revela um certo nvel de exigncia na execuo musical e


expe, tambm, sua viso como educador em esperar que os processos se decantem, pois
antes desse concerto houve muitos outros em que foi preciso ouvi-los desafinados, como j
mencionou o regente Srgio Barbosa. O programa dedicado Villa Lobos revela algumas
caractersticas do concerto como a nfase na msica brasileira nos seus diferentes gneros e
estilos, com destaque para Villa Lobos, a conexo entre um msico j consagrado os alunos
de um projeto social, incluso da Orquestra em uma srie de concertos de carter institucional
do BNDES. Esse concerto foi gravado em MD, em uma mesa de som do Teatro e foi uma das
fontes onde extra exemplos para o CD Anexo C, neste trabalho.
161

Orquestra Villa-Lobinhos
Exploso Musical Brasileira

Francisco Frias direo artstica/criao do projeto


Paulo Miranda direo de produo

Francisco Frias violonista, compositor e arranjador. Mestre em Msica pela Universidade de


Miami, atua nas reas de incluso e de transformao social. O Villa-Lobinhos um projeto que
promove a educao musical para jovens instrumentistas de famlias de comunidades carentes.
O objetivo de Exploso Musical Brasileira reunir, em torno da figura do Mestre Villa-Lobos, a
msica brasileira, atravs do encontro de um dos mais expressivos violonistas da atualidade e
dos futuros grandes msicos do Brasil.

Programa

Estudo n 11 H. Villa-Lobos
Paz/Dona Judith/Back to Brazil/Rio das Ostras Francisco Frias
Felicidade Tom Jobim/Vincius de Morais
Guia prtico H. Villa-Lobos
- A Mar Encheu
- O basto ou Mia gato
- Meninas/Carneirinho, carneiro
- Bela formosa
- Ciranda,cirandinha
- A roseira;
- Samba-lel
- Na corda da viola
Trenzinho caipira H. Villa-Lobos
Valsa da dor H. Villa-Lobos
Corcovado Tom Jobim/Vincius de Morais
Feitio da Vila Noel Rosa/Vadico

Quadro 6. O programa do Concerto da Orquestra Villa Lobinhos no Teatro do BNDES.


162

Assistir aos concertos e apresentaes da Orquestra Villa Lobinhos e, tambm, aos


grupos instrumentais dos alunos, ensejou-me reflexes, luz do pensamento de Small (1995)
sobre o significado da performance como um especfico trabalho musical pode mudar de
acordo com o tempo e espao em que acontece. Assim, o ritual da performance de uma obra
em uma sala de concerto se reporta a conceitos e padres que so celebrados naquele espao
material e simblico que estabelecem relaes que so representadas na prpria performance.

3.4.6 O GRUPO DE CHORO DO PROJETO VILLA LOBINHOS


3.4.6.1 TOCAR CHORO: UMA PAIXO

Chorinho muito lindo, inexplicvel falar... chorinho j vem


de dentro, sabe, da alma, j vem de dentro, mexe com o corpo,
um swing [...] mexe com o sangue, mexe com tudo!
(Marquinhos, aluno formando 2004).

O Grupo de Choro do Projeto composto por alunos e ex-alunos de todos os nveis


que se aglutinam em torno do interesse de tocar choro. Os integrantes se dividem em dois
grupos que ensaiam em dias diferentes. O Jocielton na flauta, o Daniel no trombone, o
Jefferson, no pandeiro, Serizac no cavaquinho, Martins no violo de sete cordas fazem parte
de um Grupo j constitudo e antigo. O outro grupo est em fase de formao com Bruno no
pandeiro, Junior e Henrique no cavaquinho.
Jocielton, nico flautista do grupo, geralmente sola devido caracterstica e funo
de seu instrumento confessa que gosta muito de tocar em grupo e que foi conquistando seu
espao, foi convidando outros alunos do Projeto para tocar junto at formar um grupo. O
processo dinmico, movedio, mediado pelas relaes entre as pessoas e as msicas:

Quando voc entra, j fica j pesquisando um pessoal que tem mais ou menos
[prtica], e voc j vai pegando o seu repertrio. No primeiro ano voc s monta o
seu repertrio e vai estudando, estudando e quando chega no segundo, voc pode
formar seu grupo: voc chama um violo, chama um pandeiro, chama um cavaco e
forma um grupo, ou de choro ou de samba, o que quiser. E a a gente formou o
grupo e comeou com seis componentes e depois entrou mais um e foram sete e a
depois desfez o grupo e agora remontamos um grupo com cinco componentes com
uma formao instrumental que tem flauta, trombone, um cavaco, um violo e um
pandeiro (CEVL_1, p. 51, Antnio Jocielton, aluno formando 2004, 01/06/2004).
163

Daniel diz que se interessou pelo choro porque considera uma coisa assim bastante
swingada, bastante divertida, uma brincadeira, d pr voc se movimentar, d pr voc
fazer vrias coisas. difcil ter um trombone, tocar choro e ter essa oportunidade, uma
experincia diferente para ele. J Serizac comeou a gostar de choro desde o comeo de seu
contato com o cavaquinho

...l onde tem uma orquestra de cavaquinho, onde meu professor me ensinou, dentro
de um abrigo...eu nem sabia o que era choro. Depois que eu aprendi a tocar o
famoso Brasileirinho, conhecido internacionalmente, foi como eu comecei a gostar
de choro...Eu estava tendo o meu curso aqui no Villa-Lobinhos e a foi o que mais
me aproximou do choro com o pessoal daqui (CEVL_1, p. 100-101, entrevista com
o grupo de choro, 21/06/2004).

Jocielton diz que sua paixo pelo choro aconteceu quando ouviu Carinhoso de
Pixinguinha. eu vi o compositor que era o Pixinguinha e comecei a me interessar pelas
partituras e a eu peguei um livro, que o Rodrigo me emprestou, e comecei a ler e achei super
legais as msicas dele. Comecei a tocar e a gostar mesmo de choro. O acesso a essas msicas
que no circulam na mdia fez uma diferena na preferncia e gosto musical de Jocielton.

3.4.6.2 A MONTAGEM DO REPERTRIO E DOS ARRANJOS

A montagem do repertrio e a elaborao dos arranjos um processo coletivo que


acontece no momento do ensaio. Martins, violonista, aluno do segundo ano e integrante do
Grupo de Choro, fez uma sntese de como isso acontece:

....Quem escolhe a gente mesmo. Um d a idia, vamos tocar Vou Vivendo de


Pixinguinha, a entra todo mundo num acordo e se todo mundo concordar, entra pro
repertrio e se um falar no gostei!, problema dele, ele um s, mas se a maioria
falar no gostei, da a msica no entra, entendeu? O problema maior que a gente
tem aqui, s vezes, pacincia pr ensaiar aqui, ns somos adolescentes e todo
mundo fala pr caramba, uma complicao... (risos) Obrigado!! e ruim s
vezes pr ensaiar, mas a gente leva tudo na brincadeira e acaba dando certo tudo no
final, no d problema, a gente sempre acha um caminho pr dar tudo certo
(CEVL_1, p. 101, entrevista com o grupo de choro, 21/06/2004).

E sobre como so decididos os arranjos, Martins ressalta que o processo conduzido


pela ao de se fazer msica coletivamente, em que os experimentos vo moldando as
decises sobre o carter do arranjo.
164

Eles se baseiam na partitura que contm a melodia cifrada e a criao do arranjo


emerge no aqui e agora do ensaio, as sugestes so propostas em forma de improvisao, de
ouvido, e o registro das contribuies de cada um do grupo acaba ficando na memria: no
ensaio...eu dou a dica e se todo mundo gostou, nem precisa escrever, t tudo na cabea... no
precisa de escrever essas coisas no (CEVL_1, p. 80, Marcos da Silva, aluno formando 2004,
29/05/2003).
A configurao instrumental, que resulta em um complexo timbrstico especfico,
incide na elaborao do arranjo, levando-se em conta o estilo da msica. Assim, parte-se de
critrios que determinam quem faz a base, os contrapontos, os solos. E isso comporta,
necessariamente, segundo o Grupo, uma capacidade de improvisar, ou seja, no se toca a
mesma msica sempre da mesma forma. Essa capacidade performtica do grupo motivou o
professor Luis Cludio a promover a roda de choro no Morro Dona Marta, todos os domingos
s 19 horas, instituindo um evento musical em que os Villa Lobinhos se constituem na
maioria dos msicos que l se apresentam.
Sobre o resultado musical de um arranjo, eles argumentaram sobre suas escolhas:

MAGALI Esse um arranjo que vocs montaram. Vocs resolveram fazer as


partes, como que que funciona? Eu vi que s vezes um sola o outro sola...
DANIEL , como o Leandro acabou de dizer aqui...no sei se vocs perceberam,
s vezes ele tocava e eu respondia, s vezes eu respondia e ele tocava ou alguma
outra nota...
MAGALI Mas isso uma deciso que vocs vo fazendo medida que vocs
vo ensaiando?
DANIEL , eu diria tambm at que rola algumas coisas que no esto no
ensaio, flui na hora, naturalmente.
MAGALI E isso uma coisa normal dentro da roda de choro...
JOCIELTON , coisa normal. , como se fosse uma brincadeira assim, tipo
pr no ficar aquela coisa, toda vez tocar a mesma coisa, a gente faz uma tera, a
gente p, diminui assim, pr mudar um pouco, eu revezo com ele, se ele toca uma
coisa eu toco uma outra...
165

Na seqncia da entrevista, Daniel sugere: eles [Junior e Henrique, dois


cavaquinistas] fazem uma coisa bastante legal no Lamentos, no cavaquinho, os dois. Muito
bom!e eu engato: Ah ? Toca a, vamos ver. Lamentos de Vincius de Moraes e
Pixinguinha. Eles comeam a msica com um solo no cavaquinho, cheio de ginga,
refinamento no pandeiro e depois Junior e Henrique fazem o solo juntos em teras. O arranjo
cheio de contrapontos.
Depois da performance eles vo me informando:

MAGALI Vocs j ensaiaram assim em teras? Como que vocs pensaram?


HENRIQUE , porque geralmente sempre tem, como so dois cavaquinhos, um
tem que fazer um arranjo diferente do outro, entendeu? A a gente inventou a
tera...Ele, [Junior] pode solar um chorinho inteiro e eu fazendo a tera e a gente
entrou num acordo e resolveu s fazer esse pedacinho a.
JUNIOR A segunda parte fazer juntos, fica interessante.
(CEVL_1, p. 110-111, entrevista com grupo de choro, 21/06/2004).

Nesse encontro eles encerram tocando uma srie de chorinhos do repertrio que o
grupo j tem montado: Bons Tempos de M. DAgostinho, Flor Amorosa de Anacleto de
Medeiros, Polichinelo de Gad e Almir Grego e Meloso de Jose Maria de Abreu (Vide
faixa 3 do CD, Anexo C ). Esses fragmentos de falas e de msicas mostram como o resultado
musical do grupo co-construdo. Trata-se, tambm, de um processo aberto para novas
formas e contedos, em que o carter ldico, o prazer de experimentar, colocar e tirar coisas,
esto em pauta. A msica se apresenta como um elemento que mediatiza processos e relaes
entre os participantes do grupo, constri uma identidade musical prpria do Grupo porque
mobiliza questes, conflitos, consensos e propicia o exerccio da argumentao na defesa das
idias propostas, assim como o exerccio da escuta do outro, de sua fala e de sua msica.
166

3.4.7 O GRUPO DE MPB ISTO BRASIL

Comecei a escutar muita msica brasileira e me identifiquei


com o samba porque, sei l, um ritmo to gostoso de tocar,
tem uma caracterstica brasileira.. Morei foi em Vila Izabel
onde eu comecei a conhecer mais ainda samba, por causa de
Noel Rosa. Agora, uma msica do Noel Rosa que se identificou
com o grupo legal, ficou legal, foi o Feitio da Vila. Ficou
maravilhoso! Espetacular! .
(Igor, aluno egresso, flautista do Grupo de MPB Isto Brasil)

O Grupo de MPB formado por seis msicos: Igor (flauta transversal), Diego
(bateria e percusso), Leandro Serizac (cavaco), Pedro (violo), Ramon (violo), Rafael
(contrabaixo eltrico), Ademar (sax). Foi constitudo em maro de 2003. Todos esto
integrados ao Projeto Villa Lobinhos, sendo que Rafael Nogueira, Igor, Serizac, Diego, Pedro
e Ramon j concluram os trs anos de curso. A idia do Grupo se tornar um conjunto
musical profissional e j buscam patrocinador para bancar pelo menos duas msicas gravadas
em stdio para um CD demo. O repertrio voltado para a msica popular brasileira,
incluindo o samba e a Bossa Nova.

3.4.7.1 REPERTRIO E ARRANJOS: CONSTRUINDO A IDENTIDADE DO


GRUPO

Igor o responsvel por elaborar os arranjos escritos para as partes separadas e


escrever na partitura. Conta que foi no Villa-Lobinhos que comeou a ter mais noo do que
era msica, aprofundar-se na teoria e pesquisou sobre os compositores brasileiros. Eles
comearam a entrevista e tocaram Carta ao Tom 74 de Vinicius de Moraes e Toquinho.
Comentaram que no comeo esse arranjo, trazido por Igor (vide Anexo D rascunho com
fragmentos do arranjo), no deu liga no Grupo. Ademar destacou que quando no d certo
um tipo de arranjo, a gente deixa ele um pouquinho de lado e depois vai modificando algumas
coisas pr tentar melhorar e [essa] foi uma das msicas que aconteceu isso (Vide faixa 4 do
CD, Anexo C). Mas, lembram tambm, msicas que colaram logo no Grupo, somando ao
167

repertrio: Agora, uma msica do Noel Rosa que se identificou com o grupo legal, ficou
legal, foi o Feitio da Vila. Ficou maravilhoso! ressalta Igor.
Ao serem questionados sobre a relao entre o Grupo e o PVL eles so categricos
em afirmar: No teria o grupo...a constituio do grupo, nasceu dentro do projeto...Se no
fosse o Villa-Lobinhos ningum iria estar tocando assim...tocando ia estar, mas no no grupo
e nem com tantas qualidades assim. Assim, eles reconhecem que o PVL d um suporte
importante para o trabalho deles, pois seno, teriam que alugar um studio que muito caro e
ningum ali poderia bancar o custo. Alm disso, eles citam as apresentaes que o Rodrigo
consegue para eles. Ressaltam, ainda, o suporte pedaggico, psicolgico que o Rodrigo d.
A idia que Rafael defende a de buscar uma certa autonomia em relao
dependncia da estrutura do PVL, conseguir os equipamentos e instrumentais prprios e
construir uma identidade prpria do Grupo : que nem um grupo que tocava aqui, o Rabo de
Lagartixa, que era um grupo de choro que tocava aqui no Museu, ficou um tempo num sarau
que tinha, depois saiu e hoje um grupo de choro famoso que toca a [...] a gente quer
tambm fazer esse mesmo caminho deles, tudo garoto jovem. Mas, faz questo de lembrar
a figura de Turbio Santos como um grande responsvel por isso tudo...d uma fora pro
projeto; ns vamos tocar em um casamento, ele que arrumou pr gente [...] O Turbio uma
figura forte no cenrio musical nacional e internacional. E destaca que a viagem internacional
para Portugal, foi conseguida por ele. Igor, d um destaque com o consenso de todos:

... At porque, o nome que voc fala Villa-Lobinhos, da P, Villa-Lobinhos do


Turbio Santos, aquele violonista..., ento tem aquela coisa tambm de estar junto
com ele e ele estar sempre ajudando a gente, arrumando apresentaes, como o
Nogueira falou e de vez em quando a gente est tocando no Museu Villa-Lobos...
(CEVL_1, p. 122 e 123, entrevista com o grupo de MPB, 15-06-2004).
168

3.4.7.2 PROFISSIONALIZAO

Os integrantes
do Grupo fazem uma
anlise da trajetria do
trabalho e do indicativos
de que esto caminhando
para um profissionalismo,
como destaca Diego: Eu,
por exemplo, o Pedro, o
Nogueira e eu, a gente faz
free lancer num grupo de
pagode, j estamos
encaminhando para o profissionalismo...ganha um dinheirinho a [...]10 reais, 15 reais, 30
reais...(Trecho com vrias vozes falando juntas)...no 40 no?(risos).
Nogueira conta que sempre solicitado como contrabaixista para tocar em bailes de
forr e j pensa na postura profissional:

...esto precisando muito de baixista e eu estava pensando hoje l em casa, eu estava


olhando para a televiso sobre os forrs e eu estou pensando tambm em fazer uns
cartezinhos e ir pr essas bandas de forr e poder pelo menos que o forr est
dando muito dinheiro. Eu no curto muito no mas, quer dizer, chamam muito
baixo... (CEVL_1, p. 122-123, entrevista com o grupo de MPB, 15/06/2004).

Eles dizem gostar de pagode e forr e no ter nenhum preconceito com estilos no,
mas o ruim do pagode que... toca em morro, em favela e quando o grupo est
comeando..., fica uma reticncia que sugere um receio de colar na identidade do Grupo o
estigma de ser msico de morro e favela. E eles vo conjeturando sobre essa questo:

PEDRO Porque pagode no Rio de Janeiro eles tm aquele preconceito, no Brasil


todo, mas no Rio de Janeiro mais e ento fica restrito ali, funk, esses lugares
assim...
RAFAEL A no ser se for um grupo famoso...porque s no morro, na
comunidade que aprecia...
IGOR Mas tambm vale lembrar que o pagode, eu no curto muito, mas apesar
de ser um ritmo brasileiro, eu no curto muito, mas o pagode p.ode apesar de estar
no morro, estar na favela, essas coisas, vale lembrar que o samba tambm, que hoje
em dia est fora do pas, que est longe, comeou no morro...
RAFAEL E no Rio de Janeiro!
IGOR ...e no Rio de Janeiro. Ele era muito discriminado e era bem mais
discriminado que o p.ode de hoje em dia. Ento tem tudo pr crescer tambm.
169

RAFAEL No, mas o pagode [...] O samba de raiz, n?


PEDRO O samba tem uma ideologia, n, o pagode no, o pagode j aquilo...
(vrios comentrios ao mesmo tempo)
DIEGO ...fala muito de amor o p.ode...
IGOR - Mas tem sempre o mesmo tema, o pagode tem sempre o mesmo tema, o
samba j no tem isso...o samba que eu falo, so esses sambas antigos de Cartola, de
Noel......
RAFAEL No samba de raiz? Samba de raiz o que Fundo de Quintal manda,
o que Zeca P.odinho manda, o Jorge Arago, n? Isso samba de raiz, n, o
verdadeiro samba de raiz, n?
RAFAEL Mas entra o negcio do comrcio tambm, n? pr vender...
IGOR msica pr aqueles caras que a mulher, sei l, abandonou o cara e a ele
vai e pr se consolar...
PEDRO Acho que cada estilo de msica tem a sua funo e voc vai de noite
num baile voc quer ouvir o qu? (cantarola uma msica (1) ) De noite voc vai
querer ouvir... (cantarola outra msica (2) )... Voc vai estar l em casa, vai estar l
relaxado, acabou de almoar e voc no vai botar... (cantarola a msica (2) )... voc
vai botar um... (cantarola a msica (1) )... (risos)

Pedro ressalta a importncia do consenso nas decises coletivas no processo de


constituio do Grupo: em grupo as cabeas tm de funcionar em sintonia e se fizer mais
rpido da j d aquele problema. Ento mais difcil, at chegar a um entrosamento como
est hoje....
Na viso de Andra, professora de flauta transversal, a avaliao sobre o resultado
musical que os alunos alcanam bastante positiva, ressaltando o aspecto coletivo do
relacionamento entre os atores sociais no trabalho realizado que aponta para o processo de
profissionalizao. O grupo torna-se uma referncia, um paradigma no processo pedaggico
do Projeto:

...eu acho que esto todos bem encaminhados, porque todos esto fazendo parte de
grupos e o grupo uma coisa que solidifica muito as relaes humanas e uns vo
dando fora aos outros e aquilo vai se desenvolvendo por si mesmo. E acho que tem
essa questo dos grupos l no Villa Lobinhos que a grande vitria, digamos assim,
da situao deles e que esto se profissionalizando. Todos os alunos que eu tive, tm
essa tendncia profissionalizao, j. Eles podiam estar mais embasados mas com
o que eles tm j conseguem muita coisa (CEVL_2, p. 86, Andra Ernest Dias,
professora de flauta, 04/06/2004).

3.4.8 O TRABALHO PEDAGGICO DOS PROFESSORES

Os professores do PVL realizam seu trabalho de forma bastante independente com a


concepo da proposta pedaggica que pressupe, como j foi mencionado, considerado o
mundo social dos atores sociais. Isso quer dizer que a bagagem e valores culturais e musicais
de todos os envolvidos funcionam como a lenha que provoca combusto produzindo o
170

conhecimento, fruto de um processo dialtico. Como j foi destacado por Turbio, a escola
nasce na hora que voc percebe quem est vindo pr escola.... Eu vou ensinar alguma coisa
que voc vai me trazer a lenha, porque sem a sua lenha eu no fao a fogueira. Assim, os
professores trabalham com liberdade para escolher a metodologia, repertrio, estratgias
didtico-pedaggicas e os alunos usufruem disso, tomando iniciativas de vrias ordens que
incidem no processo pedaggico.
Uma caracterstica na formao dos professores que a grande maioria transita de
maneira prtica e competente entre os contextos da msica popular e erudita. Conhecem a
linguagem musical, repertrio, os rituais especficos, o que d condies de se trabalhar com
os alunos um amplo leque de possibilidades musicais, considerando o conhecimento que eles
trazem, geralmente oriundos da cultura popular.
Rodrigo acha que o mais prazeroso nesse processo o seu papel de ser um
psiclogo, um conselheiro que propicia momentos de conversas com os alunos para contar
um pouco da sua experincia, falar o que viveu, que teve vontade de desistir vrias vezes
como eles:

Eles, s vezes chegam pr mim e ficam desanimados... e eu falo um pouco da minha


experincia nesse sentido, que tem que ser perseverante, para que voc no est ali
para voc ser o saxofonista. Voc pode ser professor, voc pode ser produtor
musical, voc pode ser, enfim, como professor voc pode atuar em diversas reas, e
com isso eles acabam dando um reanimada.(CEVL_2, p. 52, Rodrigo Belchior,
coordenador, 06/12/2004).

A prtica pedaggica de Ricardo Costa, professor de bateria e percusso, pode ser


tomada como exemplo dessa concepo. Ele trs em sua bagagem de msico, professor e
mulit-instrumentista uma vasta experincia com a msica popular brasileira. Falando sobre
como ensina, que tipo de contedo trabalha, Ricardo diz que no tem mtodo especfico e
destaca alguns pontos de como estrutura seu trabalho que vo ao encontro com minhas
observaes em sua sala durante minha insero no campo:

Na verdade, eu coloco de uma maneira geral, a parte de rtmica, por exemplo uma
leitura bsica e incio dos valores, das notas, um pouco de melodia pr cantar as
melodias juntos, par se poder ter a noo de onde comea, onde termina, qual a
parte A, qual a parte B, essa parte estrutural. A parte rtmica, a parte de leitura e a
parte tcnica normalmente eu pego a partir do que eles se interessam mais: pode sair
do rockroll e pode terminar no samba cano, mas se eu comear com um samba
cano, ele j vai ficar... entende? Quer dizer, comeando pela parte que eles esto
mais interessados, em fazer um grupo, em tocar junto. E a partir dali voc vai pr
outros lugares e ensina basicamente todas as coisas brasileiras, que eu acho super
importante pr eles; e aprendendo tudo, de uma maneira geral, pr ser formado em
tocar baile, pr conhecer o que bolero, o que samba cano, as coisas de
antigamente, at o Hip Hop, at a msica eletrnica de hoje, a noo disso tudo
(CEVL_2, p. 111-112, Ricardo Costa, professor de percusso, 09/06/2004).
171

Ricardo destaca a necessidade de se estar aberto para novas tendncias musicais e


que isso nenhuma escola d conta. Trata-se de uma postura diante do novo que se abordado
por procedimentos ou propostas pedaggicas padro podem cercear a prpria atuao do
msico.
Sobre a escolha de mtodos, vale a pena destacar os pressupostos que ancoram o
trabalho pedaggico de Ricardo:

...eu como professor, tenho uma caracterstica bem prpria, quer dizer, sempre me
perguntei quer dizer ou at me cobravam um pouco sobre isso esse mtodo...na
verdade no tenho um mtodo especfico, existe um mtodo que est l o livro todo
escrito e tem a ordem toda das coisas pr voc ensinar pro aluno...tm vrias coisas,
vrios mtodos que eu no uso e praticamente eu uso todos e no uso nenhum ao
mesmo tempo. Porque, aquele negcio que a gente conversou sobre os alunos: tem
aluno que aprende olhando, tem outro que aprende de trs pr frente, tem outro que
aprende tudo menos a teoria, tem outros que aprende s a teoria e no aprende a
prtica]tal..., tem uns que j querem chegar tocando rock e como que voc chega a
esse aluno, como que voc chega a ensinar o mximo possvel, a botar essa
semente? Voc joga um monte de sementes, no vo nascer todas, vai nascer uma,
vai nascer duas, dez e eu acho que basicamente isso, voc tentar pegar a
caracterstica, a personalidade do garoto e dar o mximo que voc puder (CEVL_2,
p. 111-112, Ricardo Costa, professor de percusso, 09/06/2004).

A fala acima, revela a capacidade de incorporar as idiossincrasias dos alunos no


processo pedaggico, valores de seu mundo social sem ter um caminho previamente traado
que encalacra os alunos em um formato pr-determinado. Sobre os alunos do Villa-Lobinhos
ele diz que so muito interessados, com uma vontade voluptuosa para aprender e quando eles
chegam aqui, a diferena que a maioria d certo, os 90% do totalmente certo de maneira
global, destaca o Diego como um exemplo claro:

...o Diego chegou [em 2001] sabendo alguma coisa, no sabia muita coisa e hoje em
dia [2004] ele completo, ele faz arranjo, ele l, ele escreve, ele tem idias, ele se
interessa por harmonia, por melodias, aprende a tocar um instrumento de harmonia e
como msico, como baterista, como percussionista completo! Eu posso coloc-lo
onde eu estiver tocando que ele vai tocar. E um grande prazer,, em trs anos voc
conseguir fazer isso. Quer dizer, hoje tem alguns tambm que tem muito talento,
mas a maioria deles, eu acho que a grande diferena dos meus alunos das aulas
particulares que eles vo fundo. Eles esto interessadssimos em tudo, em se
formar mesmo como msicos profissionais. (CEVL_2, p. 115, Ricardo Costa,
professor de percusso, 09/06/2004).

Outro exemplo citado por Ricardo o caso de Bruno, aluno que ele considera
excepcional na execuo do repenique, que foca o processo de aprendizagem dinamizado pela
relao horizontal que forma uma cadeia, uma rede entre os alunos, muito eficaz para
aprender coisas novas.
172

Andra, professora de flauta transversal, destaca que o prazer no processo de


aprender um componente essencial e importante, mas aponta uma dificuldade com os alunos
do PVL:

...eu vou falar um pouquinho da dificuldade em aceitar uma metodologia, por parte
do aluno [...] porque um pouco difcil, s vezes, voc estar sempre tendo que
estimular o prazer da pessoa. importante o prazer do aprendizado, mas em alguns
momentos voc tem que dizer que no s prazer de tocar - tem que predominar o
prazer de tocar - mas voc precisa de algum de um passo a passo que eu acho que s
vezes tm dificuldade, eles tm dificuldade de entender. Mas isso, eu tenho que ter
aquele jogo de cintura, o famoso jogo de cintura brasileiro pr no deixar a peteca
cair. Eu acho que eles podiam ter um aproveitamento, talvez, um pouco melhor,
apesar de eu achar que eles esto sendo bem aproveitados e esto aproveitando
bem... (CEVL_2, p. 85-86, Andra Ernest Dias, professora de flauta, 04/06/2004).

Essa perspectiva pode ser compreendida a partir do conhecimento da formao


musical de Andra que se caracteriza por uma vivncia musical, que incorporou tanto o rigor
da academia como a vivencia experimental nos grupos musicais que ela participa. Tal
trabalho se caracteriza pelo aprimoramento tcnico e musical .
Essa formao musical foi pensada, planejada e realizada como um investimento em
um futuro que previa uma profissional altamente qualificada na rea. Nesse sentido, Andra
faz uma anlise bastante pertinente e reconhece que os objetivos e o tempo dos alunos do
PVL esto pautados em outros paradigmas que pressupe viver o aqui e agora, no cabendo
nesse contexto uma dedicao de horas dirias para o estudo do instrumento. Cabe muito mais
o tocar em grupo, o prazer de estar ali fazendo msica:

Eu, na verdade, acho que eles no pensam muito no futuro. Eu no sinto muito essa
preocupao do estudante agora...de uma maneira geral... 14, 15 anos... ento eu no
vou dizer olha, se voc estudar 6 horas por dia, 3 horas por dia daqui a dois
anos voc vai estar tocando tal concerto e no sei o qu..., eu acho que pr eles
no significa muita coisa. Talvez para o PVL signifique mais eles estarem no
momento se apresentando numa escola, dialogando com as pessoas, sabendo que
esto saindo de uma situao mais difcil e aproveitando um momento melhor. Uma
viso mais ampla, assim, daqui a 10 anos, difcil para o adolescente. Pr gente
difcil imagina pr eles (CEVL_2, p. 85-86, Andra Ernest Dias, professora de
flauta, 04/06/2004).

Sobre a estrutura curricular aberta, Turbio v como uma possibilidade de vivenciar


uma experincia no Villa Lobinhos que pode ser vista como uma proposta transgressora
centrada na relao aluno-professor que

..Est abolindo muita [coisa].. porque quem est nos trazendo currculo, quem est
nos ensinando a ensinar, so eles. Ento existe uma grande liberdade curricular no
Villa Lobinhos, existe um contato direto professor-aluno, entende? E de preferncia,
ncleo pequeno de professores, de maneira que o trnsito muito forte. D
influncia para os professores e os professores esto aprendendo muito com os
173

alunos. Isso fundamental e por isso os resultados esto sendo to bons. Quer dizer,
eu digo isso, modestamente, porque s botar pra tocar ali fica todo mundo de boca
aberta e eu tambm fiquei de boca aberta! (CEVL_2, p. 8, Turbio Santos, diretor
geral, 02/06/2004).

O dilogo abaixo, um exemplo precioso de como Ricardo se reconhece e se coloca


na posio de aprendiz, quando se trata, de prticas musicais imersas e incrustadas no mundo
social dos alunos. Por exemplo, destaca a performance de Bruno no repenique e tambm
como aproveita o conhecimento musical que os alunos trazem, para a partir da, ampli-lo.
Mais do re-elaborar esses conhecimentos trazidos, ele diz que aprende com eles.

RICARDO Na verdade, um pouco, mas eu s vezes at aprendo na maioria das


vezes, porque eles vm de comunidades de samba, de escolas de samba e tem um
aluno, o Bruno por exemplo, toca repenique e um expert em repenique e ento eu
aprendi muito com ele (risos)... porque eles vem pandeiro, esses instrumentos de
escola de samba, da comunidade que eles tocam desde que nasceram. O pai
percussionista, freqentam a escola, freqentam o pagode, a roda de samba desde
pequeno, ento do aula, isso no tem a menor dvida.
MAGALI E eles trazem isso aqui pro Projeto?
RICARDO Trazem essa bagagem. Tem uns que chegam formados, o Bruno
formado em repenique, voc no tem que explicar nada pr ele, primeiro porque
voc no sabe, quer dizer, at sabe um pouco, mas no igual a eles, porque eles esto
l dentro. Eles fazem coisas, evidentemente naturais, bem intuitiva dele, no sabe
como escrever aquilo, no sabe a origem daquilo, mas o resultado final um solista
maravilhoso (CEVL_2, p. 110-111, Ricardo Costa, professor de percusso,
09/06/2004).

3.5 AVALIANDO O PROJETO VILLA LOBINHOS

A maioria dos professores eram contratados desde o incio do PVL, em 2000:


Ricardo Costa, percusso, Srgio Barbosa, regente da Orquestra, Luiz Cludio, violo, cavaco
e trombone, Andra Ernest, flauta transversal. Danielle Freitas, trompete e Bia Paes Leme,
percepo, iniciaram suas atividades posteriormente. Todos externavam uma satisfao em
dar aulas l e fizeram referncias elogiosas ao trabalho realizado, aos alunos e coordenao.
Os professores de uma maneira geral fazem uma avaliao positiva do PVL,
considerando os quatro contextos focalizados na perspectiva de anlise e interpretao do
processo pedaggico musical considerados nessa pesquisa. interessante notar que as falas
no se restringem a delimitar os processos de ensino e aprendizagem, mas tocam em questes
como o relacionamento pessoal e institucional entre os atores sociais que esto envolvidos
com o Projeto, evidenciando uma compreenso mais ampla das implicaes no
desenvolvimento de um processo pedaggico.
174

Emannuelle, professora de trompete, entende que promove a valorizao das vrias


dimenses humanas mediatizada pela prtica musical e pelas relaes sociais que acontecem
no mbito do PVL:

o projeto valoriza pessoas... ningum est sendo formado pr ser msico


exclusivamente; eu vejo e Rodrigo tambm passou muito isso pr mim, mais uma
possibilidade pros meninos. Pr que eles, quando saiam dali, possam escolher, como
todas as demais pessoas que tem acesso informao, o que eles querem fazer da
vida deles e ento o que a gente abre s mais um dos muitos ramos que as vidas
deles podem tomar, mas eles tm que ter acesso a isso tambm. Eu acho que tem
coisas alm do que o prprio ensino e aprendizado, tem relao de confiana, a
amizade que aos pouquinhos est sendo formada e que eu acho que isso pode ser
muito bom pr eles e pr mim (CEVL_2, p. 123-157, Emannelle Freitas, professora
de trompete, 01/07/2004).

Turbio Santos, ao avaliar o resultado do PVL ao longo de seus cinco anos de


existncia, faz um balano positivo e se mostra motivado com o processo que dirigiu:

....Houve um retorno muito maior do que eu pensava. Eu acreditava que a gente ia


conseguir um bom resultado, mas o que mais me impressionou no projeto todo
foram duas coisas: quando voc manda uma mensagem telegrfica pro aluno...eu
acho que ela mais importante do que qualquer outra forma de ensino. Quando eu
falo mensagem telegrfica o seguinte: voc quer tocar? Como que se toca? Se
toca assim... tum...e voc toca, entende? Essa pr mim a mensagem essencial,
porque eu vi os professores...eu pedi aos professores que eles praticassem isso. O
aluno est louco pr tocar e toda pessoa que quer tocar um instrumento, que quer
fazer msica, ele quer fazer msica, entende? Nada deve ser obstculo entre esse
querer e o desejo. Ento eu acho que foi isso que funcionou to bem no Villa
Lobinhos! Porque, uma das coisas mais difceis...para o ser humano essa rua de
duas mos, aprender e ensinar. s vezes as pessoas pensam que querem aprender e
no querem aprender e as pessoas pensam que podem ensinar e no podem ensinar
ou no querem ensinar. Ento existe sempre uma aresta nessa relao, uma trava
nessa... e eu acho que a melhor maneira de retirar isso na msica voc abrir todas
as portas. intil pegar um professor que fale teoricamente sobre tocar violo,
entende, o garoto vai sair um alienado. Talvez descubra sozinho, mas vai levar
muito mais tempo para descobrir sozinho, enquanto que se voc colocar o garoto ao
lado de algum que mostra pr ele como ela toca, no precisa nem criar grandes
escolas, grandes teorias, o garoto vai assimilando tudo aquilo, porque no comeo ele
copia e depois ele cria, entende, em geral, o processo que eu vejo sempre esse, um
pouco de cpia e muito de criao logo em seguida. Essa pr mim que foi a super
surpresa que isso tenha funcionado to bem no Villa Lobinhos (CEVL_2, p. 17-18,
Turbio Santos, diretor geral, 31/06/2004).

E sobre o futuro do PVL, Turbio fala a partir de uma realidade concreta conquistada
pelo Projeto que construiu uma base para projetar um futuro no qual os alunos so os
protagonistas como profissionais ou no:

...o futuro do Projeto Villa Lobinhos depende de duas coisas na minha opinio: da
prpria sociedade, e os garotos. Eles so o futuro do Villa Lobinhos. O que ns
estamos vendo agora, o primeiro passo para o futuro deles foi a criao da Orquestra
dos Villa Lobinhos, que vai permanecer. O segundo passo deles vai ser a entrada nas
universidades e na vida comercial. Uns vo freqentar a universidade e outros vo
175

freqentar a profisso onde ela estiver, tanto pode ser a noite, como pode ser em
gravaes e pode ser [...] Acho que os Villa Lobinhos, o futuro agora est com eles,
entende? Eles tiveram um bom salto na vida e vo provocar salto na vida de outras
pessoas tambm. Quer dizer, vo ajudar as pessoas a darem um pulo pr cima ou
saltarem alguns dos obstculos sociais que so danados de grandes (CEVL_2, p. 24-
25, Turbio Santos, diretor geral, 30/06/2004).

Rodrigo considera que um dos propsitos do PVL, que trabalhar com a


profissionalizao, foi atingido. A idia de trs anos para ele est dando certo. E como tem a
possibilidade dos egressos continuarem na orquestra, este ponto fica amenizado mas no vo
ter mais aquele acompanhamento como aluno, de ter o compromisso de estar l todo o dia da
semana. Ele vai ter o compromisso de estar l sbado. Entretanto, ele considera que o PVL
oferece uma base consistente durante os trs anos de curso que possibilita aos alunos sarem
com uma bagagem suficiente pr tocar e atuar em diferentes modalidades da profisso de
msico.
Apesar de considerar que a grande maioria dos alunos que sair do PVL vai para a
msica, Rodrigo ressalta que na verdade, eles no so obrigados a seguir msica. Eu acho
que a msica ela tem um poder bem maior, que de fazer um ser humano mais feliz mesmo,
do cara sentir muito prazer de tocar. E o importante , por exemplo, o Marquinhos ter
construdo valores atravs da prtica musical que d a ele motivos para no roubar, usar
drogas etc:

...E eu acho que a msica ajudou muito e ele mesmo confessa isso, ele fala isso e ele
acha que se no fosse a msica ele no saberia o que seria da vida dele, entendeu? E
na verdade, tanto que hoje ele pensa em fazer milhes de coisas, nada muito
estruturado na cabea dele, mas ele pensa, entendeu? Talvez se no fosse a msica
ele nem pensaria isso, estaria fazendo outra parada, entendeu? Mas a maioria acaba
indo...mas, tudo est dando certo e que em time que est ganhando no se mexe.
Tem que ir por esse caminho mesmo...(CEVL_2, p. 56-57, Rodrigo Belchior,
coordenador, 06/12/2004).

Joo Moreira Salles expressa sua percepo sobre o trajeto histrico desses cinco
anos do Projeto Villa Lobinhos, acentuando que acredita em processos que so resultados
do dia a dia e no em transformaes milagrosas da hora pro dia, e projeta esses processos
na perspectiva da possibilidade de transformao na vida dos participantes do Projeto:

O Villa Lobinhos est no quinto ano [...] ele j uma histria na memria, ele j
produziu uma cultura e essa cultura eu acho que afetou positivamente a vida das
pessoas envolvidas com ele. No s os alunos com tambm os professores, os
padrinhos, as pessoas que conceberam o Projeto. E e eu acho que, portanto, isso d
pra gente uma certa projeo frente ao mundo, digamos ao nosso pas, que
positiva e que no s deles em relao a comunidades deles, mas a nossa em
relao a ns mesmos. bacana poder dormir a noite dizendo: olha, criamos uma
coisa que j tem cinco anos e que tem dado resultados, e eu acho que de uma
maneira muito prtica e concreta importante que grande parte desses meninos
176

conseguem viver daquilo que aprendeu no Villa Lobinhos, e isso j uma profisso
pra eles [...] boa parte deles vive e isso se tornou uma profisso com a qual eles
pagam aluguel compram a comida, namoram, se vestem, se divertem, viajam e eu
acho que isso que a gente pode esperar de um projeto desses, e nesse sentido eu
acho que deu certo (Joo Moreira Salles, entrevista em 01/09/2005)

E, sobre o trabalho voltado para o processo coletivo, expresso na capacidade de se


organizar e se constituir um grupo mediatizado pela prtica musical, Joo destaca:

eu acho que um projeto que conseguiu algumas coisas extraordinrias. Quer dizer,
reuniu um grupo de crianas, de meninos e de meninas que vem de lugares muito
diferentes. Tem gente que tem famlia muito consolidada, tem gente que tem
famlia esfacelada, tem gente que no tem famlia, tem gente que foi adotado e
depois desadotado, tem gente muito diferentes e num Brasil muito desorganizado.
E, l eles conseguem tocar juntos, eles entendem a necessidade de ouvir o que o
outro est tocando, entrar na hora certa. E eu acho que a msica [em grupo] um
grande exerccio de solidariedade - para usar a palavra que pode resvalar um pouco
num lugar comum - mas um pouco isso, voc no pode tocar em conjunto sendo
mais importante do que o outro, eu acho que eles entendem que aquilo uma
orquestra e no uma coleo de virtuoses e isso eu acho importante num Brasil to
desestruturado, to desorganizado (Joo Moreira Salles, entrevista em 01/09/2005)

Rodrigo faz o balano desses cinco anos destacando que o PVL formou duas turmas,
computando dezessete alunos, muitos j ingressando na vida profissional de msico,
participando de trabalhos voluntrios em suas comunidades o que se apresenta como um
resultado positivo reportando-se idia de Walther Salles:

Eu acho que estamos conseguindo atingir a idia, todo o sonho do Walther Moreira
Salles, o pai. Porque, na verdade ele pensou que num projeto que desse a
profissionalizao e que os alunos comeassem a trabalhar com msica. E, vendo
hoje em dia, Diego, Nogueira, a galera da primeira turma, na ativa, tocando, dando
aula, o Diego at ontem ele comentava: P, bonzo trabalhar de carteira assinada;
p, eu t trabalhando e ganho isso assim, assim, dcimo terceiro, frias... e a
primeira vez que a carteira dele assinada e que recebe dcimo terceiro, frias, tudo
direitinho, como professor de msica (CEVL_2, p. 54, Rodrigo Belchior,
coordenador, 06/12/2004).

A organizao do espao, a proposta de acolher um nmero limitado de alunos, o


trabalho musical voltado para a formao de instrumentistas, levaram-me a reflexes sobre a
natureza do trabalho musical ali desenvolvido, o qual parecia ter uma nfase nas aulas
individuais de instrumento e uma propenso a um modelo que se reportava ao perfil do
instrumentista virtuose. Entretanto, a insero mais prolongada, mostrou-me outras faces do
PVL, como a dimenso do coletivo e do grupo que emerge como um dos eixos na dinmica
social e de ensino e aprendizagem musical no PVL, reforando os pressupostos da
fundamentao terica em relao ao papel social das prticas musicais na formao das
177

identidades individuais e coletivas dos grupos sociais. E, ainda, que a noo de performance
argumentada por Small (1995) e Blacking (1995), apresenta-se como eixo condutor dos
processos de ensino e aprendizagem musical amalgamado pelas prticas socioculturais, seus
valores simblicos e materiais.
CAPTULO 4
ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI: UM ESTUDO DE CASO

4.1 O CONTEXTO INSTITUCIONAL


4.1.1 A ORGANIZAO DA ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI

A Associao Meninos do Morumbi (AMM) uma ONG formada por mais de 3500
crianas e jovens adolescentes de So Paulo. A maioria deles mora nos Bairros de Campo
Limpo, Paraispolis, Morumbi, Vila Snia, Jardim Jaqueline, Real Parque, Caxingui e
Municpios de Taboo da Serra e Embu que so bairros da periferia de So Paulo, no mbito
do distrito de Morumbi. A misso da AMM promover um contexto pluridimensional de
aprendizagem para crianas e jovens que viabilize a construo de valores positivos atravs da
arte e da cultura ampliando os circuitos de incluso de forma participativa e empreendedora1.
Dentro desta viso, uma das metas mais importante desenvolver a capacidade de trabalhar
em grupo.
Tem na prtica musical o eixo da proposta socioeducativa buscando criar
alternativas, no que concerne ao acesso aos bens materiais e simblicos, bsicos para o
exerccio da cidadania. A ONG foi criada em 1996 pelo msico, educador e percussionista
Flvio Pimenta, presidente e diretor geral da instituio.
A AMM desenvolve um trabalho musical que inclui a Banda Show constituda pelo
Grupo de Percusso, pelo Grupo Vocal Feminino e pelo Grupo de Dana que sintetizam o
trabalho realizado nas aulas de canto, dana e percusso do qual participam crianas e
adolescentes que integram a comunidade da Associao. A Banda realiza cinco ensaios
semanais, com turmas de trezentos participantes a cada ensaio. O repertrio executado nos
ensaios e apresentaes formado por msicas folclricas do Brasil e da frica, do universo
pop, dos cultos afro-brasileiros e composies prprias.

1
http://www.meninosdomorumbi.org.br.p
180

A coordenao geral compartilhada por Ligia Rosa de Rezende Pimenta, psicloga


e diretora tcnica do Programa Famlia e seus Contextos2 e uma equipe de 80 pessoas
contratadas, formada por pedagogos, professores, tcnicos e funcionrios dos diversos
departamentos. O eixo da proposta socioeducativa est centrado na msica mediante a prtica
de instrumentos de percusso e canto. Outras atividades so oferecidas como informtica,
dana, fotografia, teatro, futebol, jiu-jitsu, com uma planilha de horrios, salas e respectivos
professores. A AMM conta, ainda, com o trabalho de monitores, participantes da ONG como
alunos e que foram capacitados para dar as aulas, para trabalhar na produo musical, e no
setor de infra-estrutura da ONG. Para por em prtica sua proposta socioeducativo-musical a
AMM conta com vrias categorias de profissionais que coordenam seus respectivos
departamentos. O Quadro 7, das coordenaes, sintetiza a estrutura funcional da AMM:

FUNO RESPONSVEL
Coordenador Geral Flvio Pimenta
Coordenadora de Programas e Projetos Ligia Pimenta
Coordenadora Pedaggica Nair Fortunato
Coordenadora da Dana Vera Oliveira
Coordenadora de Esportes Diana Monteiro
Coordenadora do Espao Alessandra Rosso
Coordenadora Artstica Silvany Rodrigues dos Santos (Sivuca)
Coordenador Financeiro Aluysio Medeiros Santana (Irmo)

Quadro 7. Estrutura funcional da AMM

2
O Programa Famlia e seus Contextos foi elaborado atravs da prtica desenvolvida desde 1996 que sempre
priorizou as famlias como pblico alvo das aes formativas e transformativas. Objetiva atuar como referncia
na implantao de polticas pblicas e assegurar o acesso das famlias a contextos de reflexo-ao
possibilitando torn-las protagonistas das aes frente aos desafios da vida cotidiana. s famlias oferecido um
espao de escuta mediante entrevistas individuais, reunies multifamiliares, fruns temticos, atendimentos em
situaes de crise e encaminhamentos para atendimentos psicolgicos com profissionais integrantes do
Programa. <http://www.meninosdomorumbi.org.br/frames/principal.html>.
181

A Associao Meninos do Morumbi tem


recebido inmeras premiaes e reconhecimento de
entidades tais como: UNICEF, UNESCO, PNBE,
ANCHAM, MINC e ROTARY. Alm das atividades
relacionadas banda: aulas de canto, de dana de canto,
de percusso e das atividades esportivas, a entidade
oferece alimentao aos integrantes. A secretaria possui
um banco dos dados de todos os componentes do
Projeto, com a utilizao de um programa que permite a
insero de novos dados, bem como o rpido acesso a
informaes referentes organizao e gesto do
projeto.
A estrutura fsica confere uma dinmica prpria que propicia situaes de encontros
entre as pessoas, propiciando a possibilidade de olhar, assistir e interagir com algumas
atividades. Assim, ao descrever o espao fsico busca-se dar conta da natureza interna das
coisas, baseando-se no pressuposto hermenutico no qual da apresentao aparente possvel,
apreender-se tambm seu sentido (COULON, 1995b, p. 51).

4.1.2 A CONFIGURAO DO ESPAO

A AMM est localizada na Rua Jos Janarelli, 485, no distrito do Morumbi. Este
distrito oferece servios pblicos e de cuidados sociais deficientes traduzidos em indicadores
que revelam grande fragilidade social, atingindo especialmente os jovens moradores dos
bairros pobres (PRUDENTE, 2003, p.38). A atuao da Associao visa, em particular, essa
populao juvenil que vive nesses bolses de pobreza exposta, portanto, a uma
vulnerabilidade que se expressa em diversos patamares de excluso social.
O prdio que aloca a ONG possui trs pavimentos e trata-se de uma construo
antiga, com uma estrutura slida. A parte externa do prdio possui vrios outdoors com a
logomarca da Associao associada aos vrios patrocinadores. Por terem grandes dimenses,
esses outdoors do uma visibilidade ao prdio, destacando-o das outras edificaes prximas.
O som produzido pelos instrumentos de percusso, que vibra no entorno do prdio, tambm
um indicador de que ali ocorrem prticas musicais.
182

O prdio totaliza em torno de quatro mil


metros quadrados, todo murado, com cercas
eletrnicas no alto do muro para prevenir invases,
uma forma de preservar o patrimnio material
constitudo de aparelhos eletroeletrnicos,
equipamentos de som para os shows, iluminao,
instrumentos musicais, computadores, etc. O nico
acesso ao prdio pela portaria, controlado por um segurana e onde se localiza a recepo
com uma funcionria que, atravs de um computador, registra a entrada e sada de todos os
que adentram o prdio. Entretanto, no balco da secretaria, anexa a essa recepo, que se
obtm informao mais especfica com funcionrios que se revezam no atendimento tanto aos
alunos, pais e visitantes.
No andar trreo localiza-se, ainda, a lojinha da ONG, que vende os CDs, camisetas,
esculturas, artesanato, canecas, esculturas e fotografias, todos produtos resultantes das
atividades realizadas ali. As paredes so recobertas com os trabalhos dos alunos, painis de
fotografia que registram os vrios momentos histricos da constituio do Projeto e o teto
todo colorido com desenhos geomtricos, feitos com tiras de plsticos coloridos que se
movimento ao vento.
183

Ainda neste pavimento, esto instaladas a sala de aula de percusso, com os


tambores, repenique, caixas, tamborim e espao para construo de baquetas, e a sala de
dana, que impressiona pela qualidade do espao e dos equipamentos. A localizao da sala
de dana, com as janelas voltadas para o ptio, permite que os alunos observem as aulas,
possibilitando a eles o papel de expectador, observador e, tambm, aprendiz dos diferentes
gneros musicais que so utilizados nas coreografias, exerccios de expresso corporal, aulas
de bal clssico e danas tnicas.
O ptio, localizado ao final dessa ala, bastante amplo, equipado com TV 20,
plantas, telefone pblico, dois sanitrios, masculino e feminino identificados com a logo da
AMM. Configura-se como um espao de mltiplas funes. Nos horrios das refeies, torna-
se o refeitrio e nos intervalos, torna-se o local de encontros, bate-papos, local de leitura, pois
h inmeras revistas e gibis disposio dos alunos.
Nesse espao, localiza-se, tambm, a cozinha, em uma espcie de edcula, onde se
produz as refeies oferecidas aos participantes e funcionrios da ONG. Os padres da
Associao Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) so respeitados, o que revelou um
compromisso com a qualidade dos alimentos servidos. Os recipientes coloridos, para coleta de
lixo seletivo, indicam a prtica ligada a preocupaes com a educao do meio ambiente. No
piso superior a essa edcula, esto instalados o laboratrio de fotografia e o stdio de bateria.
Ao lado da recepo localiza-se,
estrategicamente, a sala da coordenadora,
pois dali ela tem condies de ver e ouvir
muitas situaes envolvendo os
funcionrios, alunos, mes ou visitantes.
Nessa ala do piso trreo fica, ainda, uma
parte dos escritrios administrativos e de
marketing, com salas individuais e
coletivas equipadas com computadores
ligados em rede e internet. No piso inferior funciona a Garagem Digital, uma sala multiuso,
tambm equipada com computadores conectados Internet com programas de multimdia
instalados. Esta sala bem equipada com mesas e cadeiras confortveis, ar condicionado,
iluminao adequada e utilizada para as aulas de informtica, projetos de capacitao
voltados para incluso digital, reunies com pais, visitantes e alunos. No segundo pavimento
funciona a quadra de ensaios que tambm tem funo mltipla e o espao que pode
acomodar o maior nmero de pessoas, servindo para ensaios da Banda Show, quadra de
184

esporte futebol de salo, capoeira, jiu jitsu, condicionamento fsico e workshops para as
diversas finalidades recepo de alunos e pais novos, delegaes internacionais, reunies
com os alunos participantes da ONG, etc. No segundo piso, localizam-se outros setores da
administrao da ONG, integrando o departamento financeiro com a sala da coordenao
geral.
E, no terceiro piso, esto as salas de aulas com piano, violes, teclados, outra sala
que abriga o almoxarifado com os instrumentos tnicos e raros utilizados na Banda, uma outra
sala com um acervo de mais de trs mil discos de vinil pertencentes ao coordenador geral e
uma estao de rdio local que produz programas elaborados pelos prprios alunos
transmitidos no mbito da ONG.
Assim, os trs pavimentos do prdio onde funciona a ONG constituem o espao onde
acontecem as diversas atividades oferecidas aos participantes, cuja equipe de profissionais
formam um quadro bastante amplo, como j mencionado. Um dos aspectos que chama a
ateno em relao ao espao fsico o trato com a limpeza, o cuidado com a manuteno,
uma vez que o trnsito de pessoas no cotidiano da ONG , numericamente, significativo.
As condies ofertadas em termos de equipamentos, acesso internet e atividades
alternativas tambm indicam um nvel de exigncia em relao constituio do espao fsico
da ONG, refletindo uma viso empreendedora na gesto.

4.1.3 A ESTRUTURA INSTITUCIONAL

A natureza jurdica da AMM est explicitada no seu Estatuto, constitudo no dia 12


de outubro de 1996 e registrado em 17 de outubro do mesmo ano. A natureza filantrpica da
organizao, sem fins lucrativos, imprime-lhe o carter institucional privado, voltado para
problemticas da sociedade civil. As datas de aprovao e registro do Estatuto da Associao
revelam que sua constituio jurdica se deu alguns meses aps a iniciativa de Flvio Pimenta
realizar o trabalho socioeducativo-musical informalmente.
A prtica musical foi a atividade motivadora que se constitui na ao de interveno
para intervir na situao de alguns garotos pobres e desassistidos, que ficavam perambulando
pelo bairro. O agrupamento, a constituio de um grupo de pessoas que congregou com essa
idia e, tambm, participou do trabalho, resultou na necessidade de formalizar aquela ao em
185

uma pessoa jurdica: a Associao Meninos do Morumbi. Dessa forma a AMM emerge j
impregnada com as caractersticas do perfil das ONGs constitudas na dcada de 90, por
serem mais propositivas no sentido de buscar a participao da populao na soluo dos
problemas sociais, principalmente ligados juventude da periferia do contexto urbano das
grandes cidades brasileiras.
O Estatuto tem em sua gnese o contexto prtico, pois foi institudo aps um trabalho
realizado especificamente com a prtica musical executada em um determinado espao com
um objetivo especfico:

Eu comecei em 1996, morador do bairro do Morumbi que sou e chamando alguns


jovens pr ensinar msica na minha casa. Foi uma ao informal, eu acho que o que
me levou a essa atitude foi a certeza de que a msica poderia ser uma ferramenta de
transformao. Hoje olhando para aquele passado, eu imagino que eu fui
fundamentado no que a msica fez por mim, que eu ali tive aquele mpeto de chamar
os jovens pr minha casa, inconformado com aquele ambiente muito pobre da
criana na rua, da criana pedindo esmola nas padarias, havia muita criana andando
pelo bairro, pedindo de casa em casa, pedindo nas padarias, pedindo nos faris... j
em grupos grandes e rea de lazer era aquela praa onde havia aquelas lagoas3 onde
esto at hoje, as lagoas ao lado do Palcio do Governo. E eu no sabia exatamente
o que eu iria fazer alm da msica naquele momento, mas a msica e a minha
experincia com a msica desde criana, o que eu j havia realizado... me dava uma
certeza de que a msica iria fazer bem pr eles e eu ento ali levei pr minha casa.
Isso foi o primeiro momento, ele muito especial at hoje pr mim, porque... e eu
acho que ali foi talvez o embrio da histria toda (CEMM1, p. 10, Flvio Pimenta,
11/11/2004).

A necessidade de se ter uma pessoa jurdica que viabilizasse a articulao de


parcerias com o setor pblico e privado para desenvolver as aes sociais tornou-se uma
premissa para dar continuidade em um trabalho social que se vislumbrava naquele momento.
Assim, o documento define a finalidade e natureza da instituio, se caracterizando
como uma ONG em que se pode destacar nos artigos 1., 2. e 3. do Estatuto como um
organismo de natureza filantrpica de carter privado, estabelecido por meio de leis que visa
atender a uma necessidade de dada sociedade ou comunidade. Seu aspecto jurdico
caracterizado por ser uma organizao em conformidade com os princpios do direito, que se
faz por via da justia, da Constituio Federal conferindo-lhe o status legal e mora em que se
regulam seus direitos e deveres.
Desta forma, as duas finalidades explicitadas nos itens a) e b) do artigo segundo so:

a) Favorecer, pelos meios adequados ao seu alcance, ao universo de crianas e


adolescentes, principalmente carentes, oferecendo-lhes educao moral, cvica e

3
Trata-se da Praa Trs Lagoas onde se localizam trs lagos nas imediaes do Palcio dos Bandeirantes sede do
Governo do Estado de So Paulo.
186

comunitria, bem como prticas culturais e recreativas em toda a sua gama de


atividades.
b) Promover a integrao de seus assistidos com suas famlias propiciando-lhes, ao
lado da possvel assistncia material, orientao adequada e participao em
ambiente sadio. (Estatuto Social da Meninos do Morumbi, art 2., 12 de outubro
de 1996).

Os objetivos explicitam algumas concepes sobre natureza da instituio, tanto no


que concerne ao compromisso com a sociedade em relao situao da populao de
crianas e jovens em situao de pobreza material e simblica como no que tange s
atividades a serem focadas nas aes de interveno social de natureza socioeducativa,
considerando as prticas culturais onde o contexto sociocultural e econmico emerge como
um dos paradigmas de orientao.
Outro destaque a ser dado ao Estatuto que incide na prxis da AMM o artigo
terceiro que institui:

No desenvolvimento de suas atividades, a entidade no far distino alguma quanto


raa, cor, sexo, condio social, credo poltico ou religioso (Estatuto Social da
AMM, art 3., 12 de outubro de 1996).

O artigo acima se alinha com o discurso corrente tanto na esfera pblica quanto na
privada para se valorizar a diversidade sociocultural, tnica, de gnero, etc., no sentido de
inscreverem-se encaminhamentos, aes e polticas no mbito da insero social cidad, em
que, idealmente, todos deveriam ter a mesma possibilidade de acesso aos bens materiais e
simblicos, bsico para uma existncia digna.
O Estatuto da ONG reflete, assim, que a significao e as justificaes do conjunto
de propriedades da burocracia esto inseparavelmente inseridas naquilo que Alfred Schtz
denominava as atitudes da vida de todos os dias em tipificaes de senso comum socialmente
consagradas (BITTNER, 1965, p. 69-81). A questo : o que que confere a um documento
sua validade oficial? O carter evidente de um documento e sua validade, nesse caso do
Estatuto, depende da construo da representao jurdica, institucional, moral e tica que
conferem a ele validade e credibilidade, direitos e deveres que so institudos na prpria
dinmica social de uma sociedade.
Alm desse referencial, que reflete o status quo do marco formal, jurdico e
institucional da ONG, deve-se acrescentar os mais recentes conceitos sobre sua identidade,
como exposto no site da instituio. O carter socioeducativo da ONG ancora-se na proposta
em que a arte e cultura se constituem como o eixo condutor do trabalho desenvolvido. Outro
aspecto a ser destacado que a viso do futuro projetada pelo discurso da instituio refere-se
187

ao contexto mais amplo da sociedade ligado ao exerccio da cidadania com vistas, inclusive,
insero no mundo do trabalho:

Contribuir para a construo de uma sociedade mais justa que reconhea e priorize
os direitos das nossas crianas e dos nossos jovens de participarem de espaos de
aprendizagem de qualidade viabilizando o acesso a contextos protetivos de
validao positiva como pessoas, cidados e futuros trabalhadores.4

4.1.4 O ORGANOGRAMA DA AMM: GERENCIAMENTO, DEPARTAMENTOS E

ATIVIDADES OFERECIDAS
4.1.4.1 DAS ATIVIDADES E DOS RECURSOS HUMANOS

A AMM tornou-se uma ONG de destaque em pouco tempo. Projetou-se na


mdia, construiu uma identidade centrada fortemente no trabalho musical, espelhado pela
Banda Show, e desenvolveu sua forma de funcionar. A secretaria geral coordenada por
Anderson e informa que manter uma estrutura fsica de equipamentos, espao, recursos
humanos 80 funcionrios desempenhando uma diversidade de funes, reflete a estrutura
de instituio organizada e gerenciada com uma dinmica gil que reflete a necessidade de
competncias, em diferentes nveis. Questionado sobre como eram as diretrizes bsicas para o
gerenciamento da ONG, considerando seu crescimento e as dificuldades que isso trouxe,
Anderson explicou:

A nossa organizao, a maneira do balco trabalhar, a gente tem as diretrizes


passadas pela diretoria, que so a base da nossa organizao, mas isso sempre est
mudando um pouquinho.No temos datas pr-fixadas como um colgio tem, por
exemplo, trs meses o curso vai ter uma finalizao..., ento a gente vai ter um
produto desse curso e ns no temos exatamente isso. O nosso curso de percusso
que o curso obrigatrio, ele no um curso profissionalizante, ou seja, ele no tem
inteno de transformar um menino em um profissional da percusso. A nica coisa
que a gente faz ensinar a esse menino, os ritmos da banda para que um dia ele
possa participar da banda e com isso carregar um pouquinho dos valores que ele
aprende aqui no dia a dia (CEMM_2, Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).

Anderson descreve parte dessa dinmica revelando a complexidade da estrutura e da


gesto da ONG, destacando os vrios departamentos relacionados com uma logstica que
engloba aspectos ligados manuteno de limpeza, alimentao, secretaria, passando pela
organizao de toda a estrutura de atividades e cursos oferecidos que envolve recursos

4
<http://www.meninosdomorumbi.org.br>. Acesso em: 10 dez. 2004.
188

humanos, equipamentos e instrumentos musicais. A programao visual totalmente


desenvolvida por um web designer contratado que dispe de programas de computao
especficos e avanados. O organograma abaixo foi elaborado com a inteno de sintetizar a
estrutura da AMM no que diz respeito s atividades, cursos, departamentos e programas
desenvolvidos.

Quadro 8. Organograma Instituiconal da AMM.

Os recursos humanos para gerenciar essa estrutura complexa refletem-se na


quantidade e qualificao de funcionrios contratados para promover o funcionamento dos
departamentos especficos. As atividades tm seu eixo dinamizador em torno do fazer musical
percusso e canto e dana, consideradas obrigatrias, para um pblico alvo de crianas e
adolescentes que moram nas favelas e bairros da periferia, assim como jovens e crianas da
classe mdia, moradores do bairro, em menor porcentagem, o que propicia uma convivncia
na diversidade social e racial. A maioria dos participantes negra ou descendente afro.
Uma das demandas que foi percebida em relao dana refere-se ao trabalho dessa
modalidade para os meninos do grupo de percusso, que, segundo Anderson, no tinham o
189

swing das meninas que danam e tocam percusso. Essa atividade, oferecida em 2004, teve o
objetivo de soltar o corpo dos meninos, fazendo as coreografias, danando e tocando os
instrumentos. Assim, o nmero de meninos que ingressaram na atividade de dana aumentou
significativamente a partir desse novo curso.
Sobre outras atividades que a ONG oferece, Flvio j me citara algumas delas
durante a minha primeira visita ONG, indicando inclusive alguns critrios e objetivos em
cada uma delas:

Os meninos que fazem jiu jitsu so federados, falam ingls, esto sempre fazendo
intercmbio, no Mxico, aqui. A gente tem visita...aqui no se aprende ingls pra ser
bom ou pra se empregar. Aprende, seno voc no vai para a Inglaterra na prxima
balada. um estmulo imediato (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
06/11/2002).

A ONG organizada a partir de coordenaes dos setores agregando um corpo de


funcionrios distribudos nos diversos departamentos nas categorias de professores, agentes
administrativos, financeiros, da cozinha, da limpeza, das compras, da segurana, da
manuteno do prdio, tcnicos de informtica e designer do site, tcnicos de manuteno e
operao dos equipamentos, alm dos monitores que estagiavam em todos os setores.
Anderson fala sobre aspectos do trabalho que realiza na AMM:

O trabalho dos Meninos do Morumbi muito complexo, porque muda todo o tempo:
as informaes, a maneira de se organizar as atividades tambm tm que ser muito
voltada necessidade dos integrantes em si, no propriamente da ONG, com a
necessidade da ONG estar trabalhando administrativamente falando. Ento, voc se
adequar mais necessidade do integrante, ento isso muda constantemente, cada dia
aparece uma coisa nova pr se fazer, cada dia voc tem que resolver um problema
diferente e diferente de tudo aquilo que a gente est acostumado a ver. A gente
trabalhou em outras empresas e a maneira de se trabalhar muito diferente.
(CEMM_2, Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).

Anderson destaca o estado mutatis mutandis na gesto administrativa da ONG, em


suas diferentes interfaces, com compromissos e providncias:

...Em relao aos eventos que acontecem, aparece coisa pr ser feita hoje e pr ser
feita amanh... s vezes muito complicado porque a gente trabalha com criana e
ento precisa, por exemplo: se h uma sada amanh, pro jovem assistir a um teatro,
eu preciso que o pai desse jovem autorize que ele v nesse passeio; mas no tem
tempo hbil pr esse jovem de baixa renda, principalmente, levar essa autorizao
pr casa e depois gastar o dinheiro de duas condues apenas pr me trazer essa
autorizao; e a fica invivel deixar que ele traga apenas no dia da sada porque
pode ser que ele no seja autorizado pelo pai. Ento eu no posso trabalhar com o
talvez, eu tenho que ter certeza e pr eu ter certeza, eu tenho que planejar, por
exemplo, uma sada, duas semanas, pr ter tempo desse jovem vir para a aula e na
prxima semana, ele voltar sem ter maiores gastos, pr ele poder me entregar essa
autorizao e eu ter certeza de quantos integrantes vo pr eu no alugar um nibus
190

a mais e gerar um custo maior para o projeto (CEMM_2, Anderson, secretaria geral,
10/11/2004).

Alm das atividades internas da ONG, h muitas apresentaes da Banda Show para
empresas, escolas, instituies que envolvem um deslocamento de equipamentos sofisticados,
condues para levar e buscar os integrantes, ensaios, recorte de pessoal para acompanhar e
realizar a apresentao. Tudo isso acontece sobreposto s atividades cotidianas. perceptvel
a rapidez e competncia de como tudo isso realizado. Mas, para os professores e
coordenadores isso a normalidade e o gerenciamento leva em conta o inusitado e o
imprevisvel, como a relata a coordenadora pedaggica:

Como o Flvio um homem de show, ele j criou uma estrutura para show que
solicitado, s vezes com dois dias de antecedncia. J houve vez que foi pedido de
manh e a gente fez apresentao tarde. Agora no d mais, mas ele tem uma
estrutura montada para realizar apresentaes tanto internas como externas. J tem
fornecedor de nibus com os papis para autorizao e toda uma coisa encadeada:
um fazer aqui que vai pro balco, o balco manda pro Paulo, que contrata nibus. O
Paulo manda para o financeiro que pagar. Tem um caminho a seguir, uma listagem,
j se faz os papis de autorizao, as crianas j levam e trazem, j se entra em
contato com a cozinha para providenciar os lanches. Eu agencio com as pessoas,
teatro, telefono, marco a data e tudo acontece rapidamente, entende, j tem um fazer
(CEMM_1, Nair, coord. pedaggica, 20/09/2004).

Apesar das situaes que no permitem uma prvia organizao, a equipe de trabalho
parece ter incorporado as imanentes possibilidades de improvisar para se resolver e
encaminhar situaes que favoream aos integrantes. O processo dinmico est estreitamente
ligado s necessidades dos alunos participantes onde cada coordenador tem um papel a
desempenhar evidenciando uma proposta sistmica.
Sair com os alunos para outros espaos culturais ou recreativos, como j
mencionado, um dos objetivos da proposta pedaggica. Tal operao envolve diferentes
segmentos da ONG, imbricados na operao complexa, demonstrando um conhecimento
prtico, construdo ao longo de sua histria. Os aspectos dessa operao esto imersos nas
atividades prticas do cotidiano e integradas no gerenciamento das sadas com os alunos para
outros espaos externos. As sadas com os alunos tm o objetivo de propiciar novos olhares,
novas experincias estticas e artsticas como forma de se integrar s atividades artsticas,
levando em conta as possibilidades que oferece a cidade de So Paulo e as inmeras
atividades na prpria Associao.
191

4.1.4.2 DO INGRESSO DE NOVOS PARTICIPANTES

O critrio ou pr-requisito para o ingresso na AMM que a criana ou o jovem esteja


matriculado na escola regular. Entretanto, esse pr-requisito flexibilizado e o prprio
coordenador assume que o importante possibilitar o ingresso do menino ou menina na
Associao, como mostra sua fala:
A gente diz que precisa estar na escola, mas se no estiver, entra porque depois a
gente pe e depois a gente faz o discurso de que no pode sair da escola, se sair no
pode ficar aqui. Se no tem documento, entra, depois tira os documentos; se no tem
onde morar, da a gente pe aqui dentro depois v. Foi assim que comeou, na
verdade eu fui busc-los e agora tambm no tem limitao da mesma forma que
no tem limitao de cor, de religio, limitao sexual. Tem limitao da idade que
de 5 a 18, 17 e onze meses, o nico limitante, o resto pode ser do jeito que for,
rico, pobre, amarelo, branco (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, p. 5,
06/11/2002).

Durante os dois momentos de ingresso de novos participantes, em maio e setembro


de 2004, acompanhei a organizao e o desenvolvimento das atividades para a recepo dos
novos alunos. As vagas so ofertadas de acordo com mobilidade do contingente de evaso de
alunos e o planejamento de aumento de participantes. Essa operao envolve uma srie de
providncias de ordens: burocrtica, logstica, mobilizao de pessoal e demonstra, tambm,
um conhecimento prtico de como realizar esses eventos, otimizando as possibilidades de
estrutura que a instituio j possui.
Esse momento especialmente preparado pela coordenao que divide o contingente
total em vrios grupos com o principal objetivo de acolher os novos. Assim, as informaes, a
apresentao do espao pensada a partir de uma concepo em que o ldico um fator
importante. Depois de organizados os grupos, geralmente em nmero de cinco a seis, feita
uma tabela de horrios para informar aos pais. Estes chegam em massa, ansiosos e estampam
uma alegria por estar ali, afinal seu filho conseguiu uma vaga para se integrar a AMM. A
recepo conta com participao dos coordenadores, um pequeno grupo de percusso, vocal e
dana que representa a estrutura da Banda Show, para fazer uma apresentao para os pais no
formato de workshop, quando so explicitadas as regras de funcionamento, os compromissos
de ambas as partes, tipos de atividades e um momento para que se faam os esclarecimentos
necessrios.
Outro momento reservado para um workshop com os alunos, que so organizados
por grupos de 40 a 50 novos integrantes considerando a faixa etria. Nair informou-me que
em 2004 foi institudo, tambm, workshops com dinmicas de grupo especficas para
promover uma inicial integrao dos novos no projeto, com atividades que resgatam suas
192

expectativas em relao ao trabalho futuro e, principalmente, propicia que os novos, ao


chegarem no espao, j tenham conhecido algum colega, algum professor para estar mais
familiarizado.

Da mesma forma, Ligia Pimenta, coordenadora do Programa Famlia e seus


Contextos promove vrias reunies com os pais dos alunos do projeto para tratar de assuntos
relacionados aos conflitos familiares, abordando temticas relacionadas sexualidade, famlia
e seus contextos, limites na educao dos filhos e convivncia, buscando tratar do processo
socioeducativo de forma integrada. Vale ressaltar que o eixo dessa ao privilegia o processo
coletivo e reflete a consistncia do conhecimento dos profissionais sobre dinmicas de grupo,
tcnicas de psicodrama para realizar o trabalho com os participantes.
As reunies so sistematicamente realizadas com uma planilha pr-determinada,
prevendo um material de apoio que da uma especial qualidade s reunies, alm de refletir o
potencial fsico e de recursos humanos da Associao na promoo desses encontros. Estas
atividades so sempre planejadas com antecedncia, uma vez que necessitam de uma
organizao no sentido de enviar os convites aos pais, formar os grupos, organizar o espao e
principalmente, contar com a participao de profissionais especialistas no assunto. Alm
dessa ao, as sesses transformam-se em laboratrios de pesquisas sobre a temtica proposta
relacionada com a populao da periferia urbana. Ligia sempre acompanha os trabalhos,
organiza as discusses e avaliaes. Segundo ela, o tema tem mobilizado bastante os nossos
jovens e contamos com a presena de aproximadamente duzentos participantes (Ligia
Pimenta, 20/09/2004).
O Programa desenvolve-se mediante entrevistas individuais, reunies
multifamiliares, fruns temticos, atendimentos em situaes de crise e encaminhamentos
193

para atendimentos psicolgicos. Os profissionais que trabalham nesse Programa so


voluntrios, integrantes pela equipe da Dra. Rosa Maria Stefanini de Macedo, coordenadora
do Ncleo de Famlia e Comunidade da PUC-SP que atua no planejamento e avaliao das
atividades.

4.1.5 INSTNCIAS MANTENEDORAS


4.1.5.1 A AMM COMO UM EMPREENDIMENTO

eu adoro essa coisa de grupo, de estar junto, de gangue no


bom sentido, enfim, ento dividir com eles eu acho que como,
assim, refora n, aquela histria que voc tem um sonho
sozinho, sonho, depois sonha toda mundo junto e comea a
virar realidade e eu acho que bem isso mesmo.
(Flvio Pimenta)

Flvio relata como sua atividade empresarial constitui-se em uma vivncia que
descortina a origem de sua capacidade de ousar e de ter uma viso sistmica que se reflete nos
vrios contextos concretizados na Associao, tanto no aspecto material como simblico.
Otimizando suas competncias musicais e empresariais, comeou sua escola de msica, em
1986, agregou uma loja de instrumentos musicais e logo montou um stdio de gravao.
Flvio dotado de uma viso estratgica, de criatividade que tem posies fortes e
marcadas. Tem traos de um profissional que demonstra competncia na comunicao para
lidar com uma variedade de pblico. Flvio ressalta em suas falas sua proposio em realizar
um trabalho que alinhe sua concepo esttico-musical proposta socioeducativa da AMM.
E, sobre isso, ele destaca aspectos de sua formao em que o empreendedor, ligado
dimenso humana e social, assumido como um lado importante de sua identidade:

...eu no quero inclusive ser visto como... eu no sou baterista...eu sou educador, eu
no sou percussionista... sou empresrio, eu sou um empreendedor. Sou um cara que
comeou na porta da casa dele um negcio, no um negcio no qual o objetivo
maior da empresa exatamente gerar recursos, e sim, pegar os jovens e transformar
esses jovens, ento, nesse sentido eu sou um empreendedor bem sucedido, assim...
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Ser ousado e assumir os riscos que certas tomadas de decises exigem so


caractersticas de um empreendedor que so reconhecidas por Flvio como um trao de sua
personalidade. E mais um aspecto a destacar sua capacidade de lidar com o incerto, o
194

impreciso, mesmo a Associao tendo uma estrutura slida, reconhecimento e prestgio. Esta
uma caracterstica do contexto das ONGs, atualmente, e concerne conduo das polticas
pblicas que tratam das questes sociais e do papel das iniciativas da sociedade civil, das
empresas privadas e do estado. Em relao aos condutores das ONGs, trata-se da capacidade
de navegar em um mar turbulento com um p em cada canoa como destaca Rocha (2005).
Flvio tem caractersticas de um empreendedor social que realiza, arrisca e tem idias
inovadoras, buscando solues para problemas sociais sistmicos e isto est nas entrelinhas de
seu depoimento:

Eu ainda no tenho certeza se isso vai pr frente, entendeu, porque eu acho que eu
sou ainda o detentor do sonho, quer dizer, no o detentor nico, todos sonhamos
juntos. Mas, eu acho que eu sou ainda essa ferramenta vital, assim, eu sou aquele
que no perde o norte da histria toda ainda. As pessoas, muitas vezes, no
conseguem enxergar porque esto em posies onde o olhar fica fragmentado, no
enxergam o macro, no enxergam o todo; como o capito do navio que est no
leme,. Assim, eu tenho essa sensao o tempo todo (CEMM_1, Flvio Pimenta,
coord. geral, 11/11/2004).

Flvio explcito quanto sua paixo pela msica e na exigncia por um padro de
excelncia como um vetor para se articular com o Terceiro Setor na proposio de parcerias.
Como foi mencionado, esse padro de excelncia se revela tanto nos cuidados cotidianos com
as questes de manuteno do patrimnio material da Associao, como no trabalho
educativo nas diversas modalidades que so desenvolvidas. Sua fala, mostra como ele prprio
foi aprendendo a manter a msica como seu foco e lidar com o setor privado, inclusive em
nvel internacional, entendendo seus cdigos e valores que, muitas vezes, so tcitos mas
significativos e importantes para envolver empresrios e instituies privadas com projetos
sociais:

A msica parece que enche o peito, n! Trata da alma dessas pessoas e ento a parte
material fica um pouco, talvez num segundo plano, enfim. Bom [...] no so todos
mas eu tambm no sou assim Low Profile, gosto das coisas boas e, tambm, tive
que aprender isso nessa questo aqui do Terceiro Setor. Por que? Primeiro, eu tive
que usar da minha experincia como empresrio para poder cuidar de fazer isso aqui
se tornar uma empresa, e deixar de ser uma bandinha tocando na rua. E por um outro
lado, descobri que quando eu ia falar com os bacanas pr arrumar financiamento
para o projeto, o patamar do qual eu deveria falar com eles, um patamar de
igualdade. Em que sentido? Eu entendi que eles teriam de me enxergar como um par
deles, ou seja, o Flvio ele no o baterista, roqueiro cabeludo; ele o maestro, o
empresrio que est aqui do nosso lado com um terno Armani com a sua caneta
Mont Blanc e falando dos nossos smbolos e cdigos tal qual um par nosso. Ou seja,
Ah sim, conheo a Loja do Zeng, l em Bold Street [...] Olha, se voc for pr
Sucia, em Estocolmo, voc tem que visitar esse lugar. Ento essas coisas so
cones que quando voc fala com uma pessoa que realmente um empresrio, que
um bacana, ele tem que entender que eu posso ser um par dele. E, ele tambm se
obrigasse a fazer como eu, uma ao social parecida, sabe, como quem diz assim:
Pxa, o Flvio est fazendo, eu tambm tenho que fazer. E ento essa aproximao
195

na questo da apresentao, do meu jeito de ser e voc v que eu sou o nico cara
aqui que anda aqui engravatado, de vez em quando, porque eu tenho que ir mesmo,
almoar com banqueiro, eu tenho que encontrar diretor de marketing, dono de
empresa e eles tm que me entender de uma outra forma, diferente dessa que eu me
apresento aqui. E at eu fui aprendendo isso (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral, 11/11/2004).

Flvio toca em alguns aspectos relacionados s concepes das ONGs relacionadas a


estratgias para prticas de avaliao, sistematizao e disseminao de projetos sociais que
incidem na liberao de verbas para a continuidade dessas organizaes. Diversos seminrios
e encontros, em nvel nacional e internacional, promovidos com essa finalidade, vm
problematizando questes, considerando o parmetro da diversidade, e buscando qualificar as
aes ancoradas em bases qualitativas. Isso no significa que a relao entre o setor privado, o
setor pblico e o terceiro setor acontece sem conflitos. Antes, essa relao marcada pela
negociao intensa nas dimenses ticas, polticas e ideolgicas em que a busca por
consensos um dos caminhos para que o benefcio das aes dos projetos sociais incidam
prioritariamente no aspecto humano. H que se reconhecer que preciso intensificar uma
postura crtica e atenta para que haja, de fato, a utilizao das verbas alocadas nessas
organizaes voltadas para a promoo do desenvolvimento humano.

4.1.5.2 PARCEIROS, PATROCINADORES E APOIADORES

Considerando a natureza jurdica e institucional das ONGs que confere aos seus
dirigentes o papel de empreendedor no sentido de buscar a auto-sustentao da instituio, a
AMM desenvolveu, ao longo de sua histria, a capacidade de estabelecer parcerias com o
setor pblico e o privado o que lhe garantiu a realizao da proposta socioeducativa e
contribui para a construo da identidade da AMM.
A Banda Show Meninos do Morumbi funciona como o grande atrativo de marketing,
uma vez que se constitui em um objeto concreto de visibilidade da ONG ligando suas aes
aos grupos sociais que atendem, instituindo tambm sua identidade ligada s prticas culturais
que, no caso da msica, tem um forte eixo com a cultura afro-brasileira. Flvio Pimenta a
figura de contato com as empresas para se estabelecer as parcerias com a Associao. Sua
experincia como empresrio, professor, produtor, msico popular e, especialmente sua
capacidade de agregar novas informaes e conhecimentos, contribuiu para que ele
196

desenvolvesse habilidades e competncias para a realizao de um trabalho com o Terceiro


Setor, articulando-se com outros entrevistados ligados s instncias privadas e pblicas.
O Quadro 9 mostra a plataforma de parceiros, patrocinadores e apoiadores que
compe as instncias mantenedoras da Associao. Os subsdios tm diferentes naturezas
como verbas disponibilizadas em forma de fornecimento de alimentos para os participantes,
passagens internacionais que viabilizam viagens para apresentaes, o pagamento do aluguel
do espao ocupado, disponibilizao de professores especializados no ensino de lnguas
estrangeiras e apoio logstico. Todas as parcerias so fruto de negociao e consolidadas
formalmente mediante convnios firmados com clusulas especficas, segundo o
departamento financeiro. As apresentaes da Banda Show geram receita e uma das fontes
de verbas para a manuteno da ONG. Outra fonte de receita proveniente das Leis de
Incentivo Cultura alocadas no Ministrio da Cultura, mediante parcerias com empresas
privadas que usufruem do benefcio fiscal.
A AMM mantm parcerias empresariais com Grupo Po de Acar, o Programa
Nacional de Cultura do Ministrio da Cultura (PRONAC), o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), a British Airways, a HP. Alm dessas empresas e instituies a
AMM desenvolveu, ao longo de sua constituio, projetos ligados Fundao Bank Boston,
Fundao Ita Social, Centro de Estudos e Pesquisas em Educao e Ao Comunitria,
UNICEF, como se pode ler na publicao de 2004 Intercmbios de experincias em
educao: a troca como fonte de aprendizado, fruto do Programa Parcerias5.

5
O Programa Parcerias surgiu como uma proposta de articulao de uma rede de apoio tcnico e financeiro para
os melhores projetos avaliados no mbito do Prmio ITA UNICEF 1999. Congrega diferentes organizaes,
empresas e universidades que aportam recursos e outros benefcios para as 30 ONGs finalistas. Em 2001, o
Programa entrou na segunda fase com novos parceiros e colaboradores.
197

Quadro 9. Plataforma de parceiros, patrocinadores e apoiadores da AMM.

Pode-se observar nos vrios workshops, palestras e apresentaes que a poltica de


parcerias adotada pela AMM ancorava-se nos valores que caracterizam a sua identidade
voltada para uma postura no assitencialista. A dimenso simblica do trabalho realizado
valorizada na fala dos entrevistados que entendem suas prticas culturais e artsticas como o
capital maior da Associao. Assim, esse vetor apresentou-se como um transversalisador nas
frentes de relacionamento entre a ONG, as comunidades envolvidas e as instncias
patrocinadoras pblicas e/ou privadas. E, a sustentabilidade dos processos de
desenvolvimento da ONG buscava consistncia na prpria capacidade artstica da Banda
Show Meninos do Morumbi em se tornar fonte de recursos para manuteno da entidade.
Esses aspectos podem ser vistos como uma base geradora de efeitos econmicos, polticos,
sociais e culturais. Dessa forma, a gesto estratgica da AMM procurava mostrar quem eram,
fortalecendo seus valores e vocaes, institucionais e humanos, afirmando sua identidade,
coerente com sua memria, sua histria.
Descrever o contexto institucional da AMM, suas atividades, formas de gesto,
pressupe transcender o nvel da realidade objetiva o espao bem equacionado, limpo,
organizado e considerar seus nveis mais internos que pode conter uma descrio
relacionando essa realidade com uma construo prtica individual e coletiva, em que
detalhes, como os inmeros painis de fotos e desenhos dos alunos, remetem prpria
198

construo da identidade da ONG. As regras ou normas sociais que se aplicam aos membros
daquela comunidade para conceber, construir e manter o espao fsico, tal como ele se
apresenta, no pode ser visto como a simples aplicao de modelos ou regras pr-
estabelecidos e estveis. Antes, produto da atividade contnua dos participantes da ONG,
permeadan por processos subjetivos e intersubjetivos que colocam em ao regras de conduta
que se consubstanciaram naqueles referenciais materias e simblicos, passveis, ento, de uma
descrio.

4.2 O CONTEXTO HISTRICO DA AMM


4.2.1 A IDENTIDADE DA AMM COLADA S PRTICAS MUSICAIS
4.2.1.1 A CONSTRUO DA ONG

A AMM tem sido abordada a partir de vrios focos. Publicaes E matrias


veiculadas na mdia6 relatam sobre o trabalho realizado nos seus diversos aspectos: sociais,
educativos e artstico-culturais. Apesar da presente pesquisa levar em conta esses materiais,
considerando os que foram passveis de acesso, o contexto histrico foi construdo a partir da
elaborao das narrativas dos entrevistados, entrelaando os fragmentos de suas histrias de
vida com a histria da constituio da ONG.
Como j mencionado, a AMM teve seu incio em 1996, a partir de uma iniciativa
informal do msico e percussionista Flvio Pimenta. Essa iniciativa acabou por resultar na
constituio da entidade jurdica e institucional como j descrito. Ao narrar esse momento da
histria da Associao, Flvio j faz uma anlise de pontos que foram determinantes na
conduo do trabalho e, sobretudo, na constituio da identidade da ONG colada s prticas
musicais.

6
As publicaes se referem a ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M.; RUA, M. G.; ANDRADE, E. R. . Cultivando
vida, desarmando violncias: experincias em educao, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em
situao de pobreza.. 1. ed. Braslia: UNESCO, 2001. v. 1. 583 p. (2001), Centro de Estudos e Pesquisa em
Educao, Cultura e Ao Comunitria CENPEC. PIMENTA, Ligia et al. Intercmbios de experincias em
educao: a troca como fonte de aprendizado. So Paulo: CENPEC, 2004. As matrias disponibilizadas no site,
mostram reportagens veiculadas, nos anos de 1998 a 2004, nos jornais: O Estado de So Paulo, Folha de So
Paulo, Dirio de So Paulo, Jornal da Tarde (So Paulo), Jornal de Braslia, Jornal do Comrcio (Porto Alegre),
Correio Popular (Campinas), Gazeta Mercantil (So Paulo). Nas revistas: B2B Magazine SP, Revista Veja,
Revista Melhor, Revista Dinheiro, Revista Crescer, Revista Caras, Revista Racing (So Paulo), Revista Flash.
<http://www.meninosdomorumbi.org.br >
199

O depoimento de Irmo, sobre o momento inicial da ONG, destaca que o olhar de


Flvio percebeu seu bairro antes como um espao como algo que poderia ser mais que um
lugar na perspectiva de Certeau (1988), onde se poderia romper uma ordem estabelecida na
qual cada elemento se situa num ponto prprio, patrimonial, tendendo a estabilidades, abrindo
o espao para o inconformismo:

IRMO , foi numa das andanas dele que ele saia com os cachorros dele l [...]
e a viu aquela garotada l e fez o convite l e a garotada aceitou. E a comeou...
MAGALI A garotada da rua?
IRMO Da rua mesmo. E como ele tinha os alunos, resolveu fazer o batuque l
com os alunos dele l e a garota foi gostando e a acontece assim, um puxa o outro,
n? Puxa, l na casa do fulano tem aquilo... e um vai trazendo o outro e a no
comeo veio muita gente ali das Trs Lagoas que aquelas lagoas que tem atrs do
Palcio ali do Governo (CEMM_2, Irmo-Aluzio, Financeiro, 27/09/2004).

A iniciativa de Flvio pode ser percebida como um ato que interferiu na ordem e na
estabilidade de um bairro rico, analisando-se luz dos argumentos de Certeau (1998) sobre o
espao, entendendo que este incorpora vetores de direo, quantidades de velocidades e
variveis de tempo. O espao entendido como cruzamento de mveis, efeito produzido pelas
operaes que o orientam. Diversamente do lugar, o espao no tem univocidades nem
estabilidade, antes se constitui pela mobilizao ou desestabilizao de uma ordem de poder
ou propriedade por meio de uma prtica.
A partir dessa anlise, tal iniciativa estava
potencializada por uma situao de extrema urgncia
social, que por meio de um ato informal de uma pessoa
produziu uma significativa mobilizao:

...e logo quando eu comecei a chamar as pessoas, alguns amigos


antigos como o Tio Banks que est aqui etc, agregaram a idia... e a
quando a gente j tocava na rua, pouco depois, um ms depois, dois
meses depois, nasceu em ns um esprito de grupo, a gente no era
mais um professor de msica em sua casa dando aula pros jovens, a
aula j fazia parte de um contexto maior, a idia era fazer aulinha
rapidamente pr poder estar tocando com o grupo, o grupo sim...
ensaiava (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Mas a potncia de mobilizao de Flvio no se


localiza no assistencialismo ou nas necessidades bsicas
como um prato de comida, por exemplo. A potncia est na capacidade da prtica musical
proporcionar queles jovens que vagavam pelas ruas, sem perspectiva de futuro, fazer algo
prazeroso, que propiciasse a eles momentos de expanso de sua existncia. Como Prudente
(2003, p. 97) constata, Flvio tambm procurava oferecer a msica como reserva
200

onrica/utpica [...] o que significou oferecer-lhes uma perspectiva de recuperao da auto-


estima e, principalmente, de conquistar uma cidadania digna.
Pode-se observar que foi no espao urbano das ruas que o olhar de Flvio,
incomodado, inciou o trabalho da Associao, onde as interaes so caracterizadas por um
dilogo horizontal (PRUDENTE, 2003, p. 86) e as relaes hierrquicas esto distendidas,
fazendo contraponto s relaes verticalizadas que permeiam os espaos institucionais, como
escolas, abrigos, etc. aos quais tal grupo social normalmente tinha acesso.
Alessandra Rosso, coordenadora do espao, tem na memria o primeiro espao
conseguido pela ONG, no incio quando atendiam de 100 a 150 participantes e sua funo era
de suporte para dar o lanche. Mas revela que quando comeou, teve que romper com
preconceitos que tinha sobre os favelados, destacando que a carncia que eles tm mais
acentuada no plano subjetivo:

O trabalho foi me seduzindo, porque muito legal! Porque a gente fala os


meninos... os favelados que so dos Meninos do Morumbi; no so... realmente
tem bastante favelado aqui, mas uma coisa que legal a troca, porque quando eu
entrei nos Meninos, eu tinha uma concepo diferente assim, sempre gostei de
ajudar as pessoas, me sentir til, mas aqui diferente, diferente porque alm de
termos diferentes classes sociais, a maioria delas so carentes de carinho mesmo,
ateno. Voc senta e conversa e ouve o que eles tm pr falar, muitas vezes eles
chegam aqui mudos, srios, no falam com ningum e a voc vai quebrando aquela
barreira e o que eles realmente precisam, bastante, carinho (CEMM_2, Alessandra,
gerente geral do espao, 28/09/2004).

A Praa dos Trs Poderes um espao geogrfico que emerge na fala de todos os
entrevistados e, tambm, est presente nos painis fotogrficos. Parece que aquele lugar
exercia um fascnio para os meninos de rua que ali freqentavam. O coletivo e a participao
criativa aparece como um parmetro desde o incio do processo. Em uma das minhas
conversas com o Irmo, de fronte a um imenso painel de fotos, muitas fotos, que continham
fragmentos das histrias da ONG, fiquei sabendo, atravs de seu relato mostrando as fotos e o
tecido, como foi que uma das marcas dos Meninos do Morumbi foi instituda, constituindo em
cone da Associao:

...Foi no incio quando juntou o pessoal, ns ganhamos panos e a todo mundo; foi
dado pr cada um de monte de tinta pr cada integrante; e a cada um fazia o que
vinha na cabea e cada um fez, fizeram desenhos, um diferente do outro e da o
melhor ns colocamos no surdo. E a colocamos o logo dos Meninos, e a foi da que
comeou e hoje voc pode ver que... essa logo aqui foi o Tio Banks que criou! Hoje
em dia, todos os instrumentos, os surdos, principalmente, revestido com o pano e
com o logo dos Meninos (CEMM_2, Irmo-Aluzio, Financeiro, 27/09/2004).
201

4.2.1.2 O TRAJETO

A Associao teve um rpido trajeto entre a informalidade e a formalidade para se


tornar uma ONG, j com uma identidade delineada para realizar um projeto socioeducativo
tendo as atividades artstico-culturais como eixo dinamizador. O trabalho realizado com os
jovens teve um impacto qualitativo e quantitativo refletido na criao e execuo de um
repertrio afro-brasileiro e no significativo aumento de participantes e da prpria estrutura
fsica e institucional.
Flvio, junto com alguns simpatizantes amigos, alguns msicos, conseguiram em trs
meses, montar um pequeno repertrio que tinha a percusso como essncia para poder se
apresentar com o grupo no Festival de Inverno de Campos do Jordo, em 1996, j projetando
o trabalho na mdia. A idia de faz-los tocar havia uma razo:

Eu comecei a perder alguns, a gente no tinha... aquela idia de s ficar ensaiando na


rua no era legal. Ento a perspectiva de uma viagem, todo mundo junto e tocar,
enfim foi muito legal. E a gente tinha um repertrio muito pequenininho, tocava trs
ritmos, no tinha dana, no tinha coral, no tinha nada, a gente era um batuque, mas
reforado por alguns jovens que eram os meus alunos, j eram at profissionais e tal,
ento a coisa tinha um certo contedo (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
09/11/2004).

A formao de Flvio Pimenta como baterista e percussionista foi consistente e


marcada por experincias em diversos contextos musicais, notadamente com a msica
popular. A convivncia com msicos profissionais ao longo de toda sua carreira artstica,
aguou sua curiosidade, levando-o a pesquisar sobre msica tnica. Estes foram fatores
estimulantes para que ele estudasse berimbau, pandeiro, congas entre outros instrumentos de
percusso. Sua experincia como proprietrio, diretor e professor da Escola de Bateria Drum,
para a qual criou um sistema prprio de ensino, contribuiu para que ele percebesse e criasse
formas de interaes pedaggicas com o pblico, naquele momento, novo para ele.
No processo de descoberta de novos caminhos, a performance musical coletiva
emergiu como eixo condutor do trabalho, um grande laboratrio musical, considerando a
capacidade de se aprender o novo como algo interessante para todos:

...eu acho que quando eu comecei a tocar com eles, eu tambm transformei a aula
deles num grande laboratrio pr percusso tnica e depois do samba, do funk e do
ax, eu imediatamente comecei a apresentar pr eles, outros ritmos. Eu descobri que
eles no tinham limitao musical pela questo do conhecimento ou por gostar s de
um gnero, que aquela questo do grupo ah, a gente pagodeiro, a gente
funkeiro etc. No, eles gostam de tudo que suinga, porque o swing, o balano, essa
coisa, o que faz com que o brasileiro reconhea a rtmica na msica e ento os
202

meninos, eu descobri que os jovens da periferia, mesmo no conhecendo, suingando,


tendo um bate p, uma coisa que fosse atraente nesse sentido, estava valendo. Ento,
eu ampliei minhas pesquisas e transformei as minhas aulas com eles num grande
laboratrio.(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 09/11/2004).

Ligia Pimenta inciou seu trabalho logo no incio da AMM e lanou o olhar sistmico
com uma abordagem metodolgica cujo o propsito era integrar pessoas, espaos,
significados. Comeava a atender s necessidades que as crianas e os jovens traziam,
chegando, dessa forma, s suas famlias. Segundo ela, as crianas chegavam com problemas
de sade, estavam numa situao extremamente vulnervel, pois ficavam caminhando pelas
ruas e fora da escola. Sua aproximao foi cuidadosa e buscou conhecer o contexto dos jovens
a partir das falas deles prprios. O objetivo do trabalho na ONG buscou uma perspectiva
integradora que se refletisse na formao das crianas e jovens, considerando os seus
diferentes contextos de pertencimento e suas histrias pessoais, como relata Ligia:

E a? Onde que vocs moram?, e isso ia se ampliando, e o que eles pensavam,


como que eles agiam, o que eles sentiam, quer dizer, na verdade ia desenvolvendo
um jeito de traduzir pra essas crianas, pra esses jovens, sentimentos, pensamentos,
que s vezes eram muito complicados. Nessa poca, o grupo que participava era
altamente vulnervel, em situao de risco. Ento s vezes, um contato inicial era
difcil, manter um dilogo com eles, eles eram muito ariscos, ento precisava se
estabelecer um vnculo diferenciado de confiana, e a... assim... no tinha muita
certeza do como fazer. Mas, atravs dessa base de conhecimento e dessa viso
integrada, o ser humano e do ser humano nas suas inter-relaes, isso ia abrindo
muitos caminhos, e havia uma participao direta na vida dessas crianas, n, nesse
momento ns tnhamos o qu? Quarenta, cinqenta crianas, ento era muito fcil
nome-las, saber o nome e sobrenome, saber onde moravam, conhecer a casa onde
elas moravam, ter acesso a informaes das histrias vivenciadas por elas e ento
algo muito significativo assim pra quem comea a construir um trabalho (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

O processo e a rede de conexes que foi se abrindo na trajetria da constituio da


AMM:

interessante ver como algo que comeou em cima da msica, logo veio a dana,
depois veio o canto e foram desenvolvendo outras reas, o esporte, tivemos um
teatro, logo entramos com alimentao e essa parte tambm do trabalho com as
famlias. J fazamos o scio-drama com as famlias e com os jovens que
participavam, desde o primeiro ano. Acho que at em funo desse olhar que
procurava integrar os diferentes atores nesse cenrio, que primeiro tinha a criana e
o jovem aqui; e a, e a famlia? Atrs dessa criana e desse jovem tem uma famlia,
como que essa famlia? O que esta famlia est fazendo? Como que ela
participa? Como que ela no participa? Quais so as necessidades? Ento as
famlias tambm eram chamadas para conversar, trocar informaes, e a ns
chegvamos at a comunidade e a primeira comunidade foi Paraispolis, que aqui
a segunda maior favela de So Paulo. Ento, a comunidade, no incio do projeto, foi
Paraispolis e depois que isso foi, de alguma forma, se multiplicando nas outras
favelas, nas outras comunidades carentes, logo apareceu uma figura que de alguma
forma estava muito presente, tambm, na vida de alguns jovens, que era a escola
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
203

4.2.1.3 OS PRIMEIROS INTEGRANTES

Para Ligia os primeiros integrantes dos Meninos do Morumbi uma gerao na qual
o conhecimento estava muito distante, porque eles precisaram primeiro desenvolver um
conhecimento de si mesmo, a auto-estima, auto-conhecimento positivo uma vez que eles
chegavam desintegrado, sem saber que dia que ele tinha nascido o que demandou um
trabalho de anos na questo da construo da identidade. Para ela eles caminharam, mas
eles ainda so jovens, e na questo do conhecimento, eles tm uma enorme defasagem na
escolaridade. A precariedade da situao de existncia desses meninos se localizava em
patamares bsicos de sobrevivncia. Os cuidados sociais com a prpria integridade fsica
daqueles garotos saltavam frente, para se pensar em providncias, encaminhamentos, aes.
Nesse sentido, o conhecimento necessrio para lidar com a natureza educativa daquela
situao no se localizava prioritariamente na esfera do conhecimento musical ou artstico.
Assim, na gnese da criao da AMM, essa questo j suscitou a busca de uma produo de
conhecimento para se trabalhar com aquele contexto, onde uma viso sistmica j se
amalgamava s aes socioeducativas.
Parcerias com outros projetos sociais como foi o caso do Projeto Travessia, na no
primeiro ano do projeto. A AMM trabalhou com jovens que estavam morando na rua e
participavam das atividades, no perodo da tarde, pois eram jovens que estavam sendo
encaminhados para o abrigo. E j no segundo ano do projeto, em 97, Ligia destaca que a ONG
comeou a desenvolver um trabalho com as escolas atuando tambm como tradutores,
porque ns tnhamos informaes e participvamos da vida desses jovens e dessas crianas,
de uma forma, muitas vezes profunda, que a escola no sabia. Esse fator criava uma arena
de conflitos pois a coordenao da ONG tinha informaes que a escola no sabia, gerando
situaes em que a escola lidava, muitas vezes, de uma forma inadequada, carimbando,
rotulando esses jovens. Ligia ressalta que a habilidade de negociar com as escolas foi
importante para o avano no trabalho socioeducativo, para que se pensasse em alternativas
que contemplassem as questes especficas de cada caso, envolvendo, necessariamente, a
famlia.
Os primeiros Meninos do Morumbi, que ainda permanecem na ONG, ajudaram-me a
compreender como esta foi se constituindo e instituindo-se num espao legitimado para o
ensino e aprendizagem de msica, enredando diferentes dimenses e espaos de atuao. O
204

relato de Claudinei, um dos primeiros meninos de rua abordados por Flvio, revela detalhes
de um momento significativo de um processo histrico, marcado por caminhos no lineares,
imprevisveis, imersos em configuraes sociais complexas:

...eu fiquei sabendo do Projeto pelo Flvio. Ele que chegou e deu a idia pr mim.
Tem aqui a pracinha que onde ns tocava, que ns chamava a antiga Pracinha Trs
Lagoa, que trs lago ainda, e ns nadava l. Era eu, mais o Murilo, mais trs
moleques que j no est mais no projeto. No tem mais nenhum desse que entrou
comigo. No existia o Projeto ainda, no era os Meninos do Morumbi. A eu estava
l nadando, o Flavo [...] ns chamava ele de Flavo; ele chegou e falou o nome
dele, a falou: Vamos l conhecer o meu Projeto e tal, tocar.... A, tava eu, o
Orelha, o Nando, o Gaspar, o Murilo, o Mauro e o Pinguela. A ns falou: Ns vai
e tal. Tocar o qu? viajando na idia, ns no sabia nada...Ns ia pr Lagoa [...]todo
dia, o dia inteiro! Podia t chovendo, sol, ns tava nadando... no estudava. E a, ns
tava na Dona Ruth [dona de um restaurante prximo] almoando e ela falou: Ah, o
Flvio no falou com vocs?, a eu falei: Ele falou, mas ns no conhece o cara, a
gente ficou com medo, sei l!. A ela falou: No, vamos l!. Ela era a maior gente
boa, a Dona Ruth, sempre dava comida pr ns do restaurante dela. A ela levou ns
l e o Flvio [...] Era na casa dele ainda. No era na associao, l embaixo, uma
casinha do lado (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).

Outro exemplo que mostra como as idiossincrasias prevaleceram na forma de Flvio


abordar os meninos e convenc-los a participarem do projeto, fica explcito na fala de
Pavilho:

Minha histria um pouco engraada! Porque eu sempre ia assistir os ensaios do


Meninos do Morumbi e o Flvio sempre chamava a gente. Ia eu e um outro amigo e
a gente no queria entrar, eu falei: No, no vou entrar [...] e no sei o qu. Porque
na poca a gente tinha um grupo de samba, da a gente tocava e tal, mas a gente no
queria entrar. A teve um dia que o Flvio me chamou pr participar dos Meninos
porque ia ter um campeonato de futebol e como eu sou apaixonado por futebol, eu
falei vou entrar! (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao,
23/11/2004).

E, no desenvolvimento de seu depoimento, emergem aspectos que indicam que a


msica e as relaes sociais, as possibilidades de aprender coisas foram se tornando a fora
motivadora para que Pavilho permanecesse por l:

...porque eu entrei, mas no teve esse campeonato de futebol e ento a eu continuei.


Fique e comecei a pegar amizade com todo mundo e tal, mas no ligava muito pro
projeto. A com o tempo fui me apaixonando pela msica, pelo projeto e a fui
seguindo, fui aprendendo, fui fazendo tudo que aparecia, todos os cursos que
apareciam eu fiz e a fui me aprimorando cada vez mais. Eu tinha dezessete anos
quando comecei a participar daqui. Eu tinha um grupo de samba formado por uns
amigos. A gente se reuniu, formou um grupo e ficava tocando com nos barzinhos l
onde eu morava, no Paraispolis [...] tocava afox e cantava tambm (CEMM_2,
PAVILHO-BS, produo e sonorizao, 23/11/2004).

A msica sempre aparece nos depoimentos como o elemento que envolve, que faz a
diferena na entrada e permanncia na ONG. Silvinha, funcionria do departamento
205

financeiro e uma das primeiras meninas a entrar na ONG moradora do bairro Morumbi.
Ressalta em seu depoimento que, ao ouvir o batuque da rua, estava em casa e desceu correndo
para assistir ao ensaio. Teve seu primeiro contato com Flvio que a convidou para entrar para
os Meninos e se ela quisesse, podia j comear naquela hora e naquele lugar: a rua. Ela se
juntou ao grupo e no seu segundo dia de participante houve uma apresentao no Parque
Ibirapuera na qual ela j subiu ao palco e tocou junto com a Banda. Aprendeu a tocar todos os
instrumentos de percusso e revela que considera a AMM como sua segunda casa: aprendi
tudo aqui e devo mutito ao projeto (CEMM_2, Silvinha, financeiro, 18/11/2004).
206

Esse contexto de rua na


primeira fase da ONG lembrado
por Marquinhos, coordenador e
professor de percusso, como
uma de suas primeiras formas de
participao. A performance
musical coletiva aparece como o
ato que conduz sua participao,
marcada em sua memria como
algo divertido:

O meu contato com os Meninos do Morumbi foi em duas etapas. Na primeira,


quando eu mudei pr c pro bairro... e eu queria conhecer o projeto...eles no
estavam neste prdio ainda, era tudo na casa do Flvio, na rua debaixo. A, num
sbado, meu amigo falou: T disponvel? Vamos l no ensaio dos Meninos do
Morumbi comigo que eles ensaiam sbado no final da tarde. Fui l e conheci o
Flvio, participei do ensaio que era - o ensaio era na rua! Eu toquei... acho que eu
toquei timbal, peguei um timbal e sa tocando com ele e achei super divertido, mas
na ocasio, eu tocava todos os dias at de madrugada...e acabei no participando
mais do projeto. Bom, isso foi em... por volta de acho que 1997 mais ou menos ou
98 (CEMM_1, Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).

A dana, tambm, inciou-se pautada no improviso. No comeo as meninas


coreografavam livremente, com a criao coletiva, danando seguindo o ritmo da percusso e
cantavam tambm. A diviso de gnero j se manifestou no incio: as meninas cantavam e
danavam e os meninos tocavam os instrumentos de percusso. Posteriormente, com o
crescimento dos participantes, a dana comeou a ser estruturada por Vera, a primeira
professora da rea e pesquisadora de danas tnicas.
Vera foi uma das incentivadoras para que Flvio introduzisse a dana como uma
atividade sistematizada e construiu com ela uma concepo esttica que contemplasse a
msica e a dana como trabalho integrado, o que foi, posteriormente, incorporada na Banda
Show. A dana atrai a participao do gnero feminino na Associao:

, sempre foi assim e era Meninos do Morumbi porque s tinha meninos na


percusso e a esqueceram das meninas e tal, seria Meninos e Meninas do Morumbi.
Mas, enfim, a as meninas vieram e tomaram conta mesmo da questo da dana,
porque quando eu comecei a fazer a dana mesmo l na Casa de Cultura, comearam
a aparecer vrias meninas e a foi crescendo, crescendo, crescendo e hoje a gente
tem bastante quantidade mesmo... muita gente (CEMM_1, Vera, professora de
dana, 24/11/2004).
207

Vera sempre contribui para a ampliao da dana e, em 2004, percebendo que se os


meninos da percusso fizessem dana como uma atividade complementar teriam mais swing
para tocar, conseguiu convencer a coordenao dessa idia e vencer o preconceito de que
dana deixaria os garotos efeminados. Implantou essa modalidade, conseguindo um
resultado bastante significativo para o trabalho dos percussionistas.

4.2.2 FRUTOS DO APRENDIZADO MUSICAL NA AMM: OS PROFESSORES SIVUCA

E BIG

Sivuca e Big, dois integrantes que esto na Associao desde o incio, em 1996, na
condio de alunos e participando da percusso. Tornaram-se msicos e professores,
construindo com Flvio a sistematizao da proposta pedaggico-musical que foi ampliando-
se e complexificando-se.
Sivuca relata que sua iniciao na ONG foi motivada pelo primo, logo em outubro de
1996, quando foi institudo o estatuto da entidade. Assim, ela acompanhou toda a trajetria da
Associao. Mas, foi a partir de uma conversa com Flvio, que ela decidiu ingressar no
projeto j participando de apresentaes:

...A uma vez eu vim e a nesse dia eu j conversei com o Flvio; e a ele tambm
gostou de mim;.. a eu comecei j a tocar e, no mesmo dia, eu lembro que j fui pr
uma apresentao, que foi no programa do Huck que era na [TV] Bandeirantes, j
logo no primeiro dia assim. No esperava, nem sabia nada, nem conhecia direito. E
208

ele: Coloca uma camiseta a e vamos com a gente. E a eu fui. A comecei a tocar,
comecei a fazer aulas com o Flvio de bateria, de percusso e a at um determinado
ponto que eu comecei a trabalhar, passou uns dois meses assim de Meninos do
Morumbi (CEMM_1, Sivuca, ex-aluna e professora de percusso, 22/11/2004).

Sivuca uma percussionista com formao consistente, o que lhe confere uma
posio de destaque tanto na funo de ensinar como na funo de performer na Banda Show.
Tal condio atribuda por ela mesma, devido a sua dedicao sua formao, sempre
buscando aprender permanentemente. Estudou com Paulo Campos, um professor muito
bom, que viajou pr frica para aprender o instrumento dele que o Djamb e congas.
Estuda na Universidade Livre de Msica (ULM), toca piano, cavaquinho e violo e tem uma
formao musical bastante consistente. Mas se mostra ambgua em relao a sua identidade
enquanto educadora: Eu estou batalhando... venho de um processo, nunca fiz um curso
prprio pr ser uma professora. Fao aulas... educador uma palavra que no fcil,
educador no um professor, no verdade? Essa dificuldade em conceituar o que seja um
educador musical pode estar ligada a sua conscincia de que necessria uma formao
especfica.
Sivuca reconhece que aprendeu a dar aulas observando e imitando seus professores,
utilizando a estratgia do acerto e erro: de professora eu vim aprendendo. Eu fui pegando
exemplo dos meus professores, como o Flvio, como esses tantos que eu j tive e tantos que
eu tenho na ULM. Ento eu meio que vou ser controlv [Ctrlv refere-se s teclas que colam
textos e figuras no computador].
209

Sivuca tornou-se uma percussionista de elevado nvel tcnico e artstico, capaz de


performances extraordinrias. Conseguiu, tambm, desenvolver estratgias didtico-
pedaggicas para ensinar vrios de seus alunos/as a tornarem-se monitores, multiplicadores
do ensino de percusso no projeto.
Big, morador do bairro, entrou na ONG em 1996, tambm motivado pela msica por
tocar em escola de samba conhecida em So Paulo, e seu relato revela vrios aspectos do
comeo da ONG em que as relaes entre as pessoas e msica foram se consubstanciando em
aes para a realizao do trabalho. Destaca que sempre tocou percusso e foi estimulado
pelo som do tambor que ouviu certo dia, partindo da rua de sua casa. Foi quando conheceu o
Flvio e alguns meninos tocando na Quadra do Maral, no bairro. Naquele momento, Big
falou com Flvio e perguntou se ele poderia tocar, pois j tinha alguns amigos do bairro
tocando. Com a resposta positiva, relata que

comecei tocando e a depois de uns dois meses o negcio cresceu de uma forma que
ele e o Irmo, que comearam tudo, no estavam dando conta. Chamaram o
Chupeta, tambm morador do bairro, amigo meu de infncia, pr trabalhar. Como eu
j queria sair do meu servio, j queria trabalhar com msica, o Flvio me convidou
pr trabalhar. Ento na verdade eu fui o terceiro funcionrio. O primeiro funcionrio
foi o Irmo que o Alusio, depois o Chupeta e depois eu. E estou at hoje. Comecei
como funcionrio e na poca a gente tinha parceria com a Federao de Obras
Sociais FOS que era uma instituio que investia na capacitao de pessoal para
trabalhar em outras associaes, outras ONGs (CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno
e professor de percusso, 22/11/2004).

Flvio tinha outras pessoas envolvidas no trabalho, ex-alunos, amigos


percussionistas que doaram alguns instrumentos de percusso e alguns de seus alunos que
tambm se envolveram na proposta. Big, no comeo, s tocava na Banda e ajudava a
organizar os instrumentos. S comeou a dar aulas para os alunos quando a sede da ONG se
mudou para o atual endereo, em 2001. Antes disso, exerceu outras funes como cuidar dos
instrumentos, toda logstica de entregar os instrumentos, confeccionar talabares baquetas e
manuteno dos instrumentos. Big realizava juntamente com Chupeta, ainda, o servio mais
burocrtico com a Ligia que era preencher e arquivar as fichas dos meninos, pois na poca
no tinha os computadores. Irmo, era mais ligado parte financeira e cuidava da
contabilidade.
Seu aprendizado para dar aulas aconteceu de maneira prtica, no contexto da ONG,
ancorado pela assessoria de Sivuca e Flvio:

...verdade que eu j conhecia o repertrio do Meninos do Morumbi e ento a de


repente o Flvio virou e disse: P Big, voc toca bem, voc sabe o repertrio, sabe
tocar todos os instrumentos, sabe o repertrio..., e ali falou, perguntou se eu no
210

queria aprender a dar aula e eu falei que sim. A a Silvany na poca j estava dando
aula e a Silvany na poca era o primeiro ano da ULM dela e a comecei a assistir
algumas aulas da Silvany pr ver como que era o mtodo dela, porque eu nunca
tinha dado aula de percusso e a eu fiquei um ms assim fazendo as aulas junto com
a Silvany e a eu comecei a pegar turmas minhas e hoje eu t a com 18 turmas a
(CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno e professor de percusso, 22/11/2004).

Esta fala merece uma discusso sobre os paradigmas que esto introjetados sobre a
identidade do que ser msico, a valorizao da escrita e leitura musical. Tocar um tambor
como Big toca, e tantos outros instrumentos de percusso que eu tive oportunidade de
presenciar, conferem a ele a condio de msico, negada por ele prprio. O que importa aqui
que prevalece uma viso que valoriza alguns aspectos da prtica musical que foram histrica
e ideologicamente construdos e que faz com que Big minimize sua condio de
percussionista, nivelando-se condio de diletante musical, apesar de tocar muito bem os
instrumentos da Banda. Alm disso, ele tem um conhecimento de estilos da msica popular
que no pode ser desconsiderado, toca todos os instrumentos: Surdo de primeira, segunda,
terceira, corte, caixa, timbal, tamborim, repenique se for o caso, e se for o caso at eu posso
reger a Banda, assim brincando, obviamente que eu no quero isso porque muita
responsabilidade. Big tem um conhecimento prtico que lhe confere um status de msico e
professor reconhecido por todos na AMM.
Nair, coordenadora pedaggica, participou na constituio da ONG trazendo uma
experincia consistente para lidar com criana e jovens em situao de risco social. Uma vez
que formada na rea de educao, sempre gostou de msica e participava de uma orquestra
amadora como contrabaixista, quando sentiu necessidade de trabalhar a rtmica. Isso
determinou seu encontro com Flvio, que tinha uma escola em Santo Amaro, a Drum, onde
Nair foi estudar msica para melhorar sua percepo rtmica e participar de uma orquestra.
Como seu trabalho como educadora demandou uma atividade musical, Nair relata que
convidou

o Flvio pr me ensinar - como eu trabalharia com o ritmo, com a percusso, com


jovens limtrofes, jovens com pequeno retardo, diferenciados - e ele foi. E na hora
que ele estava me ensinado ele falou: Olha, um dia eu vou ensinar jovens tambm,
eu quero ensinar.... Um dia, indo ensaiar na orquestra aqui perto e eu vejo ele com
um grupinho tocando na Praa dos Trs Poderes e parei o carro e ele disse: Ah, eu
preciso falar com voc!. Mas, depois de alguns meses, tomei um navio e fui pr
Londres e fiquei uns nove meses l. Quando eu voltei, eu pisei na terra no Brasil, em
Vitria, tinha vrios recados do Flvio para o meu filho... a primeira coisa que eu
ouvi: O Flvio precisa falar com voc, o Flvio quer falar com voc!... (CEMM_1,
Nair, coord. pedaggica, 20/09/2004).
211

So muitas as histrias. So muitos os entrelaamentos para se constituir a histria da


AMM. O que se evidencia que so as relaes entre as pessoas que traam caminhos e
contornam contextos. As narrativas construdas a partir da memria nos permite um re-
encontro com os fatos. Assim se constri a realidade social: um mundo intersubjetivo, de
rotinas, em sua maioria, resultado de atos da vida cotidiana dos entrevistados que do
significao comum a seu mundo (COULON, 1995b, p. 37).

4.2.3 FORMAO E VIDA PROFISSIONAL DOS PROFESSORES

Abordo aqui alguns aspectos sobre a formao e a vida profissional dos professores
participantes da pesquisa, uma vez que entendi relevante para a anlise. No caso da AMM, o
corpo docente da rea de msica marcado pela diversidade na formao que tem como trao
de alinhamento a formao sistemtica e uma significativa experincia com a msica popular.
Todos tocaram em grupo ou conjunto que abrange uma gama de contextos musicais como
MPB, Jazz, escola de samba. Todos expressam uma paixo incontestvel pela msica. So
msicos acostumados com o palco, com produes musicais e com o ambiente de
improvisao, prprio da msica popular. E como j foi mencionada, Big, Luciana, Cntia
tiveram grande parte de sua formao musical na prpria Associao com Flvio Pimenta,
tendo acompanhado o processo de implantao da ONG, nesses oito anos de atividades, o que
significa que participaram de um aprendizado no multicontexto da instituio.

4.2.3.1 O MSICO / ARTISTA

Flvio relata que teve uma formao ecltica e que j tocou de tudo. Gravou
discos, como baterista, que abrangem um repertrio diversificado: samba, bossa nova, rock
and roll, brega com artistas. Destaca a participao com uma banda de rock and roll da
cidade de So Paulo que era o Joelho de Porco, que era muito legal, mas o Adoniran Barbosa
e a Araci de Almeida eram o padrinho e a madrinha. Entretanto, seu contexto maior de
atuao artstica foi rock and roll, jazz como baterista e tambm percussionista, indo estudar
212

berimbau, tocar outros tambores e assim, foi se apaixonando ela msica tnica (CEMM_1,
Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
A partir dessa ampliao Flvio destaca que comeou a pensar a bateria como um
instrumento de infinitas possibilidades timbrsticas e estilsticas em que se pode sintetizar
qualquer ritmo. E ressalta questes de ordem musical que reflete os insights que ele teve a
partir de sua percepo das inmeras possibilidades de seu instrumento, o que contribui para
sua formao musical:

E quando voc estuda bateria, voc tem que estudar polirritmia, voc tem que
estudar um monte de coisas e eu como tenho uma formao mais erudita, eu sempre
escrevi em grades e ento eu comecei a entender os tamborins, no como a escola de
samba entende, mas como uma horn session, por exemplo, onde voc pode escrever
como escreve para uma sesso de metais e entender os surdos como uma espcie de
contrabaixo. Ok, mas o norte dessa histria sempre a msica que tem que ter um
certo swing, se no eles no identificam e a eu fui me aproximando tambm de
outros amigos como a Magda Pucci, que tem o Mawaca7, que um grupo muito
legal, que foi minha aluna de percusso e bateria... Robertinho Silva, o Maestro
Maral... o pessoal que toca percusso e a os meus alunos tambm e a gente
comeou... e isso... e teve um momento em que esse laboratrio de percusso
comeou a ficar to grande que ele comeou tambm permear as minhas aulas do
curso regular de msica (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

E ser msico uma condio assumida com o compromisso de dar o melhor de si


nas apresentaes: eu sempre fui assim, eu achava assim...a minha msica...eu sempre
deveria ser o melhor na hora de tocar ela, fosse pr quem fosse...Eu nunca poderia [falar]:
Essa apresentao eu toquei, ah! No estava a fim de tocar e toquei mal. No! (CEMM_1,
Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
O depoimento de Marquinhos mostra a msica como eixo condutor de sua histria:
a minha vida musical extensa [...] comecei a tocar menino ainda, sempre gostei muito de
percusso. Sua memria faz emergir fragmentos descontnuos carregados de emoo e cuja
seleo de fatos recortados re-constri um contexto em que a msica funciona como o
elemento conector. Seu relato foi longo e recheado de recordaes de eventos que percorreu
desde sua primeira infncia, adolescncia, sua idade adulta at o momento em que vivamos
ali. Em primeira dimenso, sobressai, na sua fala, a paixo pela msica e, conseqentemente,
seu esforo em investir na sua formao musical: meu irmo tocava trompete na banda

7
Mawaca um grupo paulistano que pesquisa e recria msicas tnicas de todo o mundo, busca sempre
estabelecer inter-relaes com a msica brasileira. formado por sete mulheres no vocal, que cantam em mais
de sete lnguas, objetivando interpretaes que carreguem as caractersticas tnicas locais e conexes com
elementos da msica brasileira. A parte instrumental - formada por acordeom, violoncello, fagote, flauta, violino
e sax soprano, koto (ctara japonesa), alm dos instrumentos de percusso como as tablas indianas, derbak rabe,
djembs africanos, berimbau, vibrafone, pandeires do Maranho e marimba.
<http://www.entrecantos.com/mawacaquem.htm>
213

marcial e eu acabei me interessando um pouco pelo trompete, o meu negcio mesmo era tocar
percusso.
Marquinhos revela sua paixo pelo futebol, mas com prevalncia da msica: e eu
estava jogando futebol numa quadra e eu ouvi um som de percusso e no mesmo instante eu
larguei a bola e corri atrs do som! Descobri que tinha uma escola de samba perto da minha
casa e a comecei a olhar o pessoal tocar e aprender a tocar os instrumentos da escola.
Depois, foi tocar na igreja e o primeiro instrumento que me despertou, a batera! Sentei e
comecei a tocar nas missas, montamos um grupo, toquei em fanfarras, festas, grupos de
amigos que faziam arranjos de msica pop, rock. Depois dessa etapa, Marquinhos fez um
curso de percusso sinfnica na Fundao das Artes de So Caetano, mas sempre dando
continuidade aos estudos de bateria, j tocando na noite e se profissionalizando. Ao concluir
esse curso tcnico sentiu-se preparado para prestar o vestibular para bacharelado em
percusso na UNESP, passou e concluiu o curso em nvel superior. Sobre sua experincia,
tanto na msica sinfnica e como na msica popular, prevaleceu seu interesse pela msica
popular.
Tio Magno, professor de bateria e msico h quarenta anos, tambm tem uma
histria conectada com o ensino de msica. Tornou-se msico profissional, ganhando a vida
tocando, gravando e dividindo o palco em shows com artistas renomados, conforme ele relata
que gravou e tocou com nomes importantes como: Martinho da Vila, Elis Regina, Jair
Rodrigues, Jane e Herondi, Cauby Peixoto, Clara Nunes e, tambm, nove anos com Chico
Ansio. Sua relao com a msica entendida por ele como algo inato que foi sendo praticada
a partir de uma relao ldica com o som E eu j nasci com isso porque eu j pegava as
caixas de p de arroz, com cinco anos de idade, ia tocar naquelas vitrolonas que meu pai tinha
antigamente. Depois sua me comprou um tamborim e ele diz: eu ficava ouvindo no rdio e
tentando imitar. Esse foi meu primeiro instrumento.
E nessa vitrolona, Tio Magno ouvia de tudo, desde samba, jazz, at msica caipira.
Sobre seu gosto, ele ressalta que gosta de msica bem feita. Assim como eu gosto de jazz, eu
gosto da msica caipira bem feita na sua originalidade, ali eu respeito. Seu primeiro
professor foi Dirceu Medeiros que lhe abriu as portas para as gravadoras. E ele fala muito
bem humorado sobre sua formao e interesses, ficando evidente como a msica foi o eixo
condutor de sua vida:

Dirceu tocava muito, ele gravava na Odeon, ele que me levou para as gravaes.
Estudei trs anos orquestrao, tive um conhecimento maior do meu instrumento e a
minha didtica s foi msica, nunca me aprofundei em outros estudos. O que eu sei
da vida, que me fez compreender o que cincia, o que fsica, o que histria, o
214

que matemtica, foi atravs da msica. Eu me sinto um homem bem sucedido na


vida (CEMM_1, Tio Magno, 17/11/2004).

Essa parte de sua histria mostra como foi importante aprender a ouvir e tocar o que
escutava. Esse ponto conflituoso com sua intransigncia em relao prevalncia da
oralidade da imitao nos processos de ensino e aprendizagem na AMM. E ser um bom
baterista para Tio Magno est relacionado com a capacidade de resolver problemas novos.
Sua crena em relao ao que seja boa msica o levou a se negar a gravar pode essas
msicas ruins e, em 1992, sua escola de msica mudou drasticamente o nmero de alunos
que passou de cento e cinqenta alunos para quarenta e cinco. Houve um convite para eu ir
pro Estados Unidos e eu fui embora. Mas no perdi o relacionamento com o Flvio. Quando
a AMM j estava implantada, Flvio criou condies de me trazer de volta... seno eu no
voltaria. S vim pr trabalhar a, pr brigar com as crianas. (risos).

4.2.4 A IMPLANTAO DO PROJETO: CONCEPES E PRESSUPOSTOS

Ao longo de sua implantao a Associao foi imprimindo sua identidade a partir de


sua proposta socioeducativa ancorada na concepo de que a arte e a cultura promovem uma
via de desenvolvimento do potencial de crianas e jovens como um caminho para o encontro
entre o prazer e a conscincia da sensibilidade, abrindo possibilidades de descoberta, de
formao e transformao (PIMENTA, 2004, p. 90).
Prudente (2003) esclarece que no momento da criao da AMM, outras ONGs como
o Grupo Cultural OLODUM e a Escola Pracatum, ambas na Bahia, ganhavam espao no
cenrio musical e na mdia nacional, caracterizadas por suas bandas com nfase nos tambores
e na msica afro-brasileira, alm do trabalho com jovens em situao de vulnerabilidade
social. A constituio da Banda Show cumpriu o propsito de se tornar um estmulo para
chamar a ateno e tirar crianas da rua. Segundo Prudente,

Flvio percebeu a influncia que as bandas decorrentes dos blocos negros baianos
exercia nas crianas e adolescentes e utilizou esse dado como elemento catalisador
do projeto sociopedaggico desenvolvido, conquistando os adolescentes para um
trabalho baseado nos instrumentos afro. (PRUDENTE, 2003, p. 57).

Prudente (2003) informa que a sobreposio das classes sociais atendidas pelo
Projeto tem um contingente de 70% de pessoas da periferia e 30% da classe mdia. Flvio lida
215

com essas diferenas procurando dar as mesmas oportunidades a todos que vo para l.
Entende ser importante o convvio dos jovens com as diferenas.
Uma das prerrogativas que Flvio enfatiza a busca por um alto padro tanto dos
equipamentos como das atividades ali desenvolvidas. Isso, segundo ele, tem dado destaque ao
Projeto atravs das apresentaes da Banda. Ele acentua que muitas vezes a primeira vez
que eles so acreditados, so aplaudidos em show. Em 2000 fizeram 23 shows na Inglaterra e
em 2002 estavam com trs convites para tocar fora do Brasil, nos Estados Unidos (Flrida),
na Itlia e na Holanda, alm de outro convite, da EMBRAER, para lev-los para o Japo.
As aes da AMM que tm possibilitado, ao longo de sua implantao, conexes
interinstitucionais e sociais vm permitindo o encaminhamento para a escola daqueles jovens
que esto margem do ensino regular. O convnio com 153 escolas pblicas, diretamente na
busca de vagas e no acompanhamento escolar, conferiu ao Projeto um prmio da UNICEF em
2001. O envolvimento com as famlias e ncleos e multi-entidades visa congregar as favelas,
ONGs e instituies nas atividades e programas, cujo trabalho de profissionais voluntrios
somente na rea mdica. Os outros profissionais so contratados pela AMM para atenderem
em suas reas respectivas. Para ele, o compromisso do Projeto com a formao dos jovens
est calcado no prazer de aprender e no sentimento de pertencimento que os jovens
desenvolvem ao participar do Projeto.
Ligia Pimenta ressalta que as atividades multidisciplinares, desenvolvidas na AMM,
visam educao para valores e na qual o papel da msica funciona enquanto eixo condutor
da ONG:

Importa criar um contexto onde, atravs, da msica ele possa aprender outras coisas:
aprender sobre si mesmo, sobre outros, sobre a convivncia, sobre o respeito e
tambm aprender a habilidade especfica de tocar... uma forma de sensibiliz-lo
para o conhecimento. Mas o conhecimento vai alm. E tem todo esse contexto
aprende-se e se circula neste circuito muito dinmico e prazeroso, com muita
potncia (Ligia Pimenta, entrevista em 03/12/02).

Esta posio aponta para uma concepo que reconhece as prticas musicais como
forma de se estabelecer dinmica integradora considerando as dimenses subjetiva e
intersubjetiva presentes nas relaes socioculturais. Assim, o projeto pedaggico est
orientado pelos princpios expostos no relatrio para UNESCO da Comisso Internacional
sobre Educao para o Sculo XXI, sob o ttulo: Os Quatro Pilares da Educao: Aprender a
Ser; Aprender a Conviver; Aprender a Conhecer; Aprender a Fazer (PIMENTA, 2004, p. 91).
Ao longo de sua implantao, o perfil dos participantes que ingressavam na ONG foi
mudando. Os integrantes que vem para ONG atualmente no esto em um estado de grande
216

vulnerabilidade social como os primeiros Meninos do Morumbi. Segundo Ligia, hoje, o


jovem j escolheu o que que ele quer fazer aqui e qual o efeito que ele espera receber na
vida dele. Poucos tm aquela postura arisca como era antes.
Na sua anlise sobre o porqu dos meninos de rua, que no tem abrigo, no serem
mais a maioria que freqenta a ONG, Ligia destaca que seria preciso uma outra infra-estrutura
que acompanhasse os jovens nas suas idas e vindas, uma vez que eles no permanecem. E por
no terem uma rotina, os meninos de rua no conseguem, muitas vezes, acompanhar os
horrios das aulas, das atividades que exigem um tipo de disciplina. Trata-se de um outro
perfil ressalta ela. Atualmente, so muitos participantes, os horrios so menos flexveis, as
regras mais estabelecidas. Isso faz com que esse jovem tenha mais barreiras para se adaptar, o
que demandaria uma equipe diferenciada para acompanh-lo. E refora, nesse contexto, que
hoje [2004] fica muito claro no projeto, a necessidade de se trabalhar e se investir no
conhecimento do jovem, pra que ele tenha essa atitude, tambm, de se colocar, de refletir, de
se posicionar perante o mundo (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos,
23-11-2004).

4.3 O CONTEXTO SOCIOCULTURAL: TECENDO REDES SOCIAIS


4.3.1 A SEDE DA AMM: UM ESPAO FSICO E SIMBLICO DE CONSTRUO DE
IDENTIDADE E PERTENCIMENTO

A participao nas atividades socioeducativas, j descritas, pode ser pensada como


forma de participao social nas modalidades de formao, lazer, ocupando o vcuo existente
frente s escassas opes de atividades daqueles jovens e crianas em seus bairros de origem.
A ONG pode tambm ser pensada como oportunidade para o exerccio da vida associativa,
passvel de desembocar em outras formas de participao cidad, como prope o projeto
pedaggico e o estatuto da entidade.
Conhecer pessoas, formar grupos, criar pertencimentos e identidades um
expediente sempre citado como caracterstica geral desta etapa da vida, da juventude. Mas,
o espao fsico prerrogativa para oportunizar esse expediente. Isso justifica a ateno
dispensada a esse aspecto nesse trabalho. No obstante, o espao inicial da ONG tenha sido a
rua e a casa de Flvio, tratava-se de um espao provisrio que abrigou a todos os que queriam
217

desenvolver e participar daquelas aes. Mas, foi preciso constituir um espao fsico,
institucional/jurdico para que a ONG pudesse dar continuidade aos seus propsitos. Nesse
processo de constituio institucional da AMM construiu-se, tambm, um espao simblico
de pertencimento. Socializa-se, assim, uma gerao de jovens que passa por ali e que se torna
um dos elos de uma rede social complexa.
O pertencimento pressupe a construo de valores simblicos e produz a capacidade
de participao no apenas pelas questes particulares, mas tambm pelas questes coletivas
que envolvem o grupo. Tem, portanto, capacidade de mobilizao coletiva em torno de
propsitos e valores socialmente construdos.
Vera, professora de dana, considera que a fora da arte um instrumento muito
importante pr questo social, no s social, mas humana... acho que so ferramentas que
podem transformar... elas estimulam, elas do vida, transformam a vida das pessoas... e os
jovens e adolescentes acabam sendo atrados pela cultura, pela dana, por essa energia que
circula aqui no Projeto. Ela considera o espao da ONG um lugar para o qual eles so
atrados e incorporam valores para sua vida e ao permanecerem na ONG, acabam atraindo
outros jovens tornando o projeto um espao bom de estar, contribuindo para o crescimento da
AMM (CEMM_1, Vera, professora de dana, 24/11/2004).
O discurso sobre a construo do pertencimento no processo de integrao dos
participantes da AMM muito forte. Ao falar desse aspecto, Flvio reportou-se dinmica
das escolas de samba: ... eu sempre fiquei muito fascinado como que a escola de samba
cuidava daquele pertencimento dos seus integrantes... o peso que tem o lugar que a gente
pertence e o quanto a gente valoriza esse lugar e pelas pessoas de l, revelando um parmetro
de construo de relaes intersubjetivas: tem mil tipos de pertencimentos nesse sentido de
grupo. Mas, o da escola de samba muito peculiar (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
09/11/2004). Quando se refere AMM, esse parmetro fica explcito, inclusive pelas
situaes que a entidade enfrentou:

Aqui com os Meninos do Morumbi, eu comecei a notar que os jovens desenvolviam,


um pertencimento muito parecido com a escola de samba; porque quando ns
comeamos, a gente tocava na rua, e aquelas aes dos moradores que hostilizavam
a gente, foram fazendo com que a gente ficasse mais unido e cristalizssemos a idia
de um pertencimento, de um grupo. Ento, aparecia a polcia e eu assinava o
papelzinho, o B.O., eles todos ficavam solidrios comigo e formavam aquele esprito
de grupo. Como quem j dizia desde o incio: P Flavo, esses caras no respeitam
a gente, ns..., o ns que eles falavam, era um ns de uma comunidade
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 09-11-2004).
218

Os meninos e meninas que freqentam a AMM mencionam o espao da Associao


como se fosse sua segunda casa, refletindo um valor simblico incrustado na vida social
daquele espao, fruto das interaes intersubjetivas que ali aconteciam.
Pavilho, funcionrio e chefe da equipe de sonorizao, um dos primeiros Meninos
do Morumbi, falou-me, em um depoimento sobre o que significava para ele pertencer ao
projeto, revelando, inclusive, fragmentos de sua histria pessoal, o que incidiu com muita
fora sobre sua vontade de permanecer aps os seus dezoito anos. E eu perguntei qual era a
fora que lhe atraa:

Essa fora? Muita amizade, eu me apeguei muito ao projeto, o projeto na verdade


minha segunda famlia e j foi at a minha primeira famlia, porque na minha casa
foi um pouco complicado porque, meu pai se separou da minha me muito cedo e
ento, eu acho que foi por isso que eu me fechei muito pro mundo e depois que eu
entrei aqui, no, mudou. Ento eu me apeguei tanto ao projeto, que eu no conseguia
ficar um dia fora do projeto assim. Quando eu estava em casa, eu no conseguia
fazer nada, ficava parado s pensando e quando eu entrei aqui pr trabalhar, mesmo
219

nas minhas folgas, eu vinha pr c porque eu no conseguia ficar longe do projeto. E


at hoje assim. At hoje eu fico meio desnorteado quando estou longe do projeto...
agora eu fico mais l [em casa por causa do filhinho de dois meses] mas quando eu
posso, eu trago ele pr c e ele fica comigo aqui...j Menino do Morumbi
(CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao, 23/11/2004).

O sentido de pertencimento dos meninos e meninas que freqentam a ONG pode ser
deduzido pela forma descontrada que eles demonstram nos momentos de lazer, nas trocas de
informaes e prticas no ptio e antes dos ensaios. Outro aspecto a ser destacado o
cuidado que eles tm com os instrumentos, no respeito em relao a regras bsicas e
convivncia pedir por favor esperar na fila, cumprir as tarefas no agendamento da
montagem da quadra para os ensaios da Banda, manuteno da limpeza, etc. Estes
compromissos acordados so reconhecidos e cumpridos, na maioria das vezes, pelos
participantes, refletindo o sentido da responsabilidade e do papel de cada um na dinmica do
coletivo. Flvio destaca que o sentido de pertencimento relaciona-se com o fato de que a
AMM constitui-se em um espao que no vivido como uma escola, como um clube de
juventude ou como um projeto social para ajudar coitadinhos, meninos de rua, favelados
mas, antes um lugar em que ele faz parte, ele pertence, ele ajuda a construir, ele pr-ativo,
ele protagonista (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
Esse aspecto constitui-se em um objeto de anlise da pesquisa, uma vez que
emergiram tambm nas falas dos entrevistados das vrias categorias funcionrios,
professores, alunos, pais, sendo que estes mencionavam o espao da Associao como se
fosse sua segunda casa, refletindo um valor simblico incrustado na vida social daquele
espao, fruto das interaes intersubjetivas que ali aconteciam. Rocha, o segurana que
recepcionava a todos que adentravam ao prdio, expressou-se sobre como se sentia ali em
uma de nossas conversas:

ROCHA Aqui minha segunda casa e uma segunda casa onde assim eu me sinto
vontade, n, como se eu tivesse na melhor poltrona da minha casa, assim,
assistindo o melhor filme. No que eu esteja na minha primeira casa, mas aqui
como se fosse igual. Eu me dou muito bem aqui, me sinto muito bem vontade.
MAGALI diferente dos outros empregos?
ROCHA diferente de tudo que eu j vivi antes, diferente de tudo mesmo, aqui
muito legal, muito legal mesmo (CEMM_2, Rocha, segurana, 18/11/2004).

O processo de pertencimento faz contraposio com o processo de invisibilidade


como dois lados da mesma moeda na vida do jovem da sociedade urbana, marcada pelos
apelos ao consumo e construo de identidade baseado no ter e no no ser. Soares
(1998), citado por Rodrigues (2002, p. 229) descreve um processo que leva invisibilidade
220

dos jovens pobres, por preconceito, estigmatizao e indiferena. A violncia e o


envolvimento com o mundo do crime ocupam esse vcuo que afeta a autoconfiana, sua
capacidade de crer na prpria competncia e que, de alguma forma, leva o jovem a buscar
alternativas para preench-lo. Ao pertencer a um grupo que lhe d visibilidade atravs de
atividades formadoras e prazerosas existe a possibilidade de canalizar essa potncia latente no
jovem que, como Flvio destaca, d um status de protagonista porque ... antigamente no
tinha ningum para olhar por eles, agora tem, no tinha do que se orgulhar, agora tem, no
tinha diferencial para competir, agora tem. (CCMM, entrevista com Flvio Pimenta, coord.
geral, 06/11/2002).
Nesta trajetria evidenciam-se os efeitos prticos dessa prerrogativa, no cotidiano da
ONG, que passam a se constituir parte da sua prpria estrutura funcional, traando uma
coerncia entre o discurso e a prtica, como percebido e relatado por Nair:

... um espao de pertencimento, o jovem se sente que ele dono daqui, porque ele
que distribui os uniformes, ele que v no balco, ele que atende o telefone, ele
que ajuda, ele que distribui, ele que ajuda na refeio, ele que ajuda a lavar pratos,
ele que ajuda na limpeza, na construo, nas aulas de percusso e ento ele dono
disso aqui tambm, ento ele no destri (CEMM_1, Nair, coord. pedaggica,
20/09/2004).

Claudinei mostra seu comprometimento com a AMM ao relatar quando seus amigos
desistiam, ele insistia para que retornassem, e ainda, arrebanhava novos: A Silvany que
professora de percusso, eu que trouxe ela... E a eu comecei a trazer um monte de gente e fui
trazendo, ia chamando e usava a camiseta e sempre usei a camiseta, quando estou em casa eu
uso, na rua, sabe, no tenho vergonha (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004). Usar
a camiseta grifada com a logo da Associao tem um forte significado nesse contexto, pois
funciona como smbolo de pertencimento e localiza os participantes enquanto parte dos
Meninos do Morumbi. Muitos dos meninos e meninas mencionam a camiseta, ressaltando o
orgulho de us-la.
Pertencer significa tambm dividir os sentimentos de incertezas diante de situaes
que afetam a ONG na sua dinmica sistmica. Alessandra e Anderson revelam que todos os
conflitos, decises e encaminhamentos so compartilhados com a coordenao da Associao,
tornando o processo de gesto, coletivo. Ligia e Flvio estavam a par dos problemas que
emergiam e, quando tratavam dos conflitos, chamavam os envolvidos para uma conversa.
Quando acontece alguma situao conflituosa ou nova que exige uma participao da
coordenao, tanto Flvio como Ligia se mostram bastante participativos, compartilhando as
decises com os responsveis pelos diferentes departamentos da ONG.
221

O sentimento de pertencimento se mostra, tambm, na disciplina, na calmaria no


momento de ir para as atividades, para as refeies, por exemplo. Pavilho destaca em seu
depoimento:

...A disciplina daqui do projeto, que no uma coisa monitorada, de gente estar ali
em cima e acontece muito aqui, porque se voc reparar, no prdio no tem uma
pichao, l fora os muros so todos limpos e no fica guardinha olhando, no fica
ningum em cima. Ento uma autodisciplina que eles aprendem aqui sozinhos. E
super importante isso!

Ao solicitar que explicasse essa autodisciplina a partir de sua experincia, ele


conta:

Eu aprontava muito na rua, como pichar, como destruir as plantas e j fui muito
sapeca e quando eu entrei aqui, no, eu fui vendo que se eu destrusse, eu estaria
destruindo a mim mesmo, porque era pr mim que era feito aquela coisa. Era pr
mim aquela casa. Ento, eu fui aprendendo isso e outros garotos tambm que eram
da antiga aqui, que estavam comigo, foi aprendendo isso tambm, se a gente
destrusse a gente estava destruindo a ns mesmo. Porque tudo pr gente, a gente
que faz, a gente que freqenta, a gente que est aqui todo dia, toda hora e na casa da
gente a gente no quer sujeira e a gente no quer ver uma coisa feia e essa coisa
aconteceu mesma coisa aqui. A gente no queria ver o projeto feio, sempre
crescendo e hoje graas a Deus eu tenho esse orgulho de dizer que eu aprendi,
aprendi muito isso aqui. A minha autodisciplina foi completamente, mudou da gua
pro vinho nesses seis anos que eu estou aqui, mudou da gua pro vinho (CEMM_2,
PAVILHO-BS, produo e sonorizao, 23/11/2004).

Esse depoimento revela que a construo de valores ligados ao exerccio da


cidadania esto relacionados ao processo de participao do grupo. Neste caso, participar do
grupo parece oportunizar uma auto-aprendizagem e, tambm, uma inter-aprendizagem. O
jovem pode ficar dentro do projeto at uma hora aps ter terminado suas atividades e nesses
momentos que eles ficam no ptio trocando idia, construindo relaes que se tornam
amizades e que, segundo Anderson, acaba gerando valores pr eles... natural essa
sociabilizao deles, entre eles mesmos (CEMM_2, Anderson, secretaria geral,
10/11/2004).
As falas de Claudinei e Pavilho revelam que eles entendem essa construo de
identidade individual e coletiva como fruto do projeto e se entendem, tambm, como
responsveis em continuar esse processo de educao para valores junto aos novos
integrantes. Considerando que a ONG tem em torno de 3500 alunos inscritos, a conscincia e
a prtica desses valores explcitos e implcitos so essenciais para o desenvolvimento do
trabalho socioeducativo.
222

A msica e a participao na Banda Show parecem exercer uma fora importante na


construo desse pertencimento. Anderson destaca esse aspecto do trabalho desenvolvido na
ONG:

O mais importante pr gente, que ele aprenda esse enredo da banda pr ele poder
estar participando da banda e com isso, fortificar esse lao que ele tem com os
Meninos do Morumbi. A grande pegada dos Meninos do Morumbi, que segura as
crianas aqui, justamente esse lado artstico, esse lado da grandeza do show... os
que vm porque gostam da percusso, porque gostam da dana e querem participar
da banda, esses so os integrantes que ficam trs, quatro anos. (CEMM_2,
Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).

4.3.2 OS CUIDADOS SOCIAIS: AGREGANDO OUTROS SABERES, VALORES E


AFETOS

Os cuidados sociais mostram-se, nesse estudo, como aes importantes no processo


de integrao dos participantes da Associao. Tais aes transpem o mbito do ensino e
aprendizagem musical para o desenvolvimento socioeducativo e mostram-se essenciais,
desvelando a necessria capacitao e construo de conhecimento nessa rea. Esto
presentes em diferentes dimenses da vida dos participantes da AMM, que vo desde
cuidados bsicos com higiene pessoal e doenas decorrentes de um cotidiano desprovido dos
cuidados bsicos com o corpo, perpassando por questes mais complexas como a incluso no
sistema escolar, atendimentos relativos esfera familiar, educao sexual para os
adolescentes, entre outras aes pontuais.
O depoimento de Ligia mostra o mbito das aes que envolveram os cuidados
sociais no incio das atividades da ONG, cujo trabalho necessitou do lastro de conhecimento
que ela dispunha como profissional e a disponibilidade para aprender com cada situao nova,
sem partir para uma ao assistencialista:

Eles precisavam receber outros insumos, outras necessidades. So de famlias em


situao de extrema pobreza e que tinham necessidades de comida, crianas que
chegavam machucadas, descuidas, com uma auto-estima extremamente
comprometida. E voc percebia que no tomavam banho, que no cuidavam da
higiene pessoal. E era preciso muito cuidado e para mim, aqui, sempre foi o contexto
de enormes aprendizagens, porque eu acredito muito na fora do conhecimento junto
prtica:, voc aprender fazendo. Nunca fui do, simplesmente, achismo: vou fazer
porque em cima da generosidade, da bondade. Quer dizer, ocupar uma posio
como essa, em que voc entra e sai de tantas vidas, de tantas histrias, voc tem que
ter muita clareza, tem que ter um instrumental terico e estratgico, ou seja, voc
tem que saber o que voc est fazendo. No se trata s de bondade, de generosidade.
Isso muito pouco, porque voc vive situaes muito complexas. Eu j conduzi
reunies aqui de uma complexidade que eu precisava da minha prtica, da minha
223

experincia, da minha histria, do meu conhecimento, para poder achar uma sada
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23-11-2004).

Seu depoimento segue destacando a importncia do conhecimento terico


disponibilizado e viabilizado pela formao acadmica e a experincia prtica para dar
suporte a esse trabalho, uma das facetas de uma ao socioeducativa que prope conjugar as
diversas dimenses humanas:

E, essa a fora do conhecimento, e que eu cobro dos professores. Eu ocupo um


espao que valoriza muito a questo do conhecimento e que, muitas vezes, ainda no
reconhecida. Conhecimento em muitos momentos tido como: Ah! As pessoas
s ficam discutindo! A academia s discute e no vive a prtica. Mas a minha vida
acadmica eu desenvolvi durante a construo [desse processo], estando j aqui, o
meu mestrado, trabalhando com famlias em contexto de pobreza e o meu pblico
alvo no foi s aqui dos Meninos do Morumbi (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de
programas e projetos, 23/11/2004).

So diversas aes de cunho social agregando-se ao trabalho pedaggico-musical. O


esporte, tambm aparece preenchendo os momentos de lazer quando Flvio jogava futebol
com eles na Quadra do Maral, no bairro, ocupando um espao inacessvel aos participantes.
O alcanar a escola, como revela Flvio, incide no compromisso bsico do Estado que
disponibilizar o acesso ao ensino escolar gratuito, bsico e essencial para se pensar na
incluso e no exerccio da cidadania. Flvio problematiza essa questo indicando que para a
proposta da ONG este um fator bsico, pois o acesso no depende s de se abrir as portas,
mas que vezes a famlia no tem tradio, a me no foi, a av no foi, mas a gente vai
empurrando at ir para escola. Revela a inteno de se oferecer na ONG um curso de
acelerao para faz-los ler e escrever, em nvel bsico acreditando que como ele tem um
vnculo muito grande com o projeto eles vo eles vo aprender com o maior prazer o que
proporciona um diferencial muito grande (CCMM, entrevista com Flvio Pimenta, coord.
geral, 06-11-2002)
E tais providncias vo delineando outro quadro de possibilidades de vivncias
cotidianas que transformam os hbitos e os valores, como revela Claudinei, dizendo que ao
comear a freqentar a casa de Flvio eu peguei, gostei e comecei tocar e a o projeto foi
crescendo e a ns comeou a tocar ali na frente da quadra do Maral, onde ns jogava...a eu
continuei, continuei...a eu j comecei a desistir da Lagoa.
Sua histria revela, ainda, como o processo de recuperao existencial no foi linear,
mas construdo com fluxo e refluxo de fatos e situaes, em que ele ia e voltava para a ONG,
sendo imantado por valores e contextos contrastantes:
224

Cheguei a me envolver com o crime. Droga nunca usei, graas a Deus... Agora
crime, eu desandei bastante. Cheguei a fazer coisa que no era pr ter feito: eu
roubava mesmo! Roubava carro, essas coisas e levava. A o Flavo foi l e graas a
Deus me ajudou. Tirou eu, de novo, do buraco. Duas vezes... eu voltei pr c...essa
menina que eu falo que minha namorada, ela que falou pro Flvio que eu estava
mexendo com arma. Eu conheci ela no projeto, ela tinha 12 anos e eu tinha acho que
16 ou 15, uma coisa assim e namorava com ela. E a, agora o Flvio, o meu
padrinho de casamento, o Flvio e a Ligia. Eu casei, o Flvio ajudou a casar, ajudou
l na igreja, na festa, sabe, em tudo assim. Ns fizemos o maior festo, foi legal. A
ele padrinho da minha filha tambm e meu patro e meu pai tambm. Pr mim ele
isso e a Ligia a mesma coisa (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).

Os mltiplos fatores que compem a histria de Claudinei, fragmentos que se tecem


com a prpria histria da constituio da Associao, revelam a complexidade de um
processo que, embora tenha a prtica musical como eixo de sua ao socioeducativa, tem que
buscar nas reas de conhecimento que fazem interfaces com a natureza desse trabalho,
suportes consistentes para desenvolv-lo. Claudinei destaca, de sua memria, um fragmento
de sua histria de vida que aponta para suas necessidades afetivas e emocionais que
emergiram em primeiro plano, naquele momento, e desvela como o afeto foi incorporado
como uma estratgia pedaggica que, associado a outras aes, devolveu-lhe a dignidade e
contribuiu para reconstruir sua identidade individual e coletiva. Mostra, ainda, o refinamento
e sutileza de seus sentimentos, sua condio de reconhecer e entender sua histria e as pessoas
que lhe ajudaram, potencializando sua capacidade de desenvolver valores ticos, desejos e
necessidades onde no se dependeu exclusivamente de sua fora interior e do auto-esforo,
mas tambm, do coletivo, das relaes face a face, dos encontros com o outro e com os
outros.
A ONG se apresenta, mediante as falas dos primeiros meninos, como um espao
interessante e bom de ficar, uma alternativa ao espao da rua com seus riscos como eles
prprios reconhecem o que interferiu e determinou uma outra possibilidade de encontros e
atividades. Murilo, diz que:

...Senti que l era bom, que se ns tivesse l ns no ia mais pr rua, bagunar na


rua, no tinha risco de cair na maloquice, aquela vida, n? Eu conheci o Flvio e o
Tio Banks e a ns foi indo l todo dia... Se no fosse aqui vai saber onde ns tava
parado? Ns tinha muitos amigos meu, que fazia o Meninos do Morumbi comigo, e
a muitos amigos meu est preso. Se eu estivesse l, acho que tambm tinha ido com
ele. Mas como eu preferi vir pr c pros Meninos, estou aqui 8 anos j, nos Meninos
(CEMM_2, Murilo, manuteno, 23/11/2004).

Mas conhecer a vivncia singular em um contexto complexo como o de uma ONG,


requer um refinamento na capacidade de observar para contemplar aspectos que extrapolam
as anlises macrossociais. Requer, antes, uma perspectiva em que os entrevistados sejam
225

considerados nas dimenses subjetivo-valorativa, tico-esttica, alm do econmico-


poltica (SAWAIA, 2003, p. 56). Pude observar vrias situaes nas quais Ligia buscava,
mediante o exerccio desse olhar comprometido com o indivduo na sua totalidade, entender
as situaes especficas de cada famlia. Suas observaes, seus questionamentos, suas
crticas, seus encorajamentos, mas tambm, seus silncios prolongados, refletindo,
transmutavam-se em aes que iam tecendo o cotidiano da ONG.

O trabalho social requer uma formao que demanda auto-controle advindo da


compreenso de comportamentos, que em primeiro plano podem ser considerados
incivilizados. Irmo descreve uma situao que viveu esse conflito, ao se sentir
profundamente agredido por um dos integrantes. Revela que foi um momento de
aprendizagem e sua capacidade de compreenso dos processos de marginalizao, sua
maturidade, o levou a uma resposta que conduziu a bom termo a situao: Teve um deles que
um dia cuspiu em mim. A voc pensa: ... esse moleque... voc tem aquela... mas a voc
comea a pensar no, mas se eu for fazer isso eu vou me igualar, no isso? (CEMM_2,
Irmo- Aluzio, financeiro, 27/09/2004).
E sobre as caractersticas do profissional que lida com esse tipo de situao, Irmo
destaca que no fcil encontrar pessoas dispostas a suportar comportamentos agressivos ou
ofensivos, muito comum entre os jovens e adolescentes que, de alguma forma, sofreram os
efeitos emocionais da excluso ou do desafeto.
Ao falar dos profissionais que atuam hoje na ONG ele revela traos do perfil que
mantm os profissionais trabalhando l, destacando a soma dos que tm nvel universitrio e
os que foram capacitados na prpria ONG. Sobre esses ltimos ele sublinha que se trata do:

...profissional que fala a lngua deles tambm e que eles respeitam... o que foi
integrante e que hoje trabalha e que absorveu enes cursos, aprendeu e ento, alm
dele adquirir o lado profissional, o carter dele, eu creio que muda, mas tambm ele
ainda tem a seqela do outro lado. Ento, isso tambm, somando os dois lados, eu
vejo que ele aquele momento de fria, de nervosismo sabe discernir o lado
favela e o lado melhor. E, ento ele vai pensar antes de fazer uma besteira, qual o
lado melhor no relacionamento com o outro tambm...na comunicao...Ele vai estar
analisando os dois lados e vai passar o lado melhor e isso a gente tem visto e o que
eu te falo dos frutos, eu uso a palavra fruto porque o que eu vejo o resultado
(CEMM_2, Irmo- Aluzio, financeiro, 27/09/2004).
226

4.3.3 AS REDES DE SOCIABILIDADE: INDIVDUOS E GRUPOS

O uso mais geral para o termo rede para uma estrutura de laos entre os atores de
um sistema social. Para Castells (2000), a prpria contemporaneidade pode ser definida pelo
estar em rede: Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difuso
da lgica de redes modifica de forma substancial a operao e os resultados dos processos
produtivos e de experincia, poder e cultura.
As redes tecidas no mbito da AMM mostram-se como uma categoria importante e
significativa na constituio da identidade da organizao e, a exemplo de outras ONGs, essa
tambm tem como forte trao na sua dinmica social uma forma de atuao interconectada,
tanto em nvel das relaes humanas e organizacionais, tanto internas e externas. A forma de
comunicao presente em suas estruturas funcionais e seus programas de formao se
apresenta como um dos fatores mais importantes para a assimilao e o desenvolvimento
conjunto de novos conhecimentos e ncleos produzidos na ONG. Trata-se de relaes que so
inerentes s atividades humanas e que podem ser consideradas como redes espontneas, que
derivam da sociabilidade humana construda na dinmica do cotidiano das pessoas. As
famlias, suas comunidades, seus contextos, como j foi discutido nesse trabalho, apresentam-
se como um forte elo da rede articulada pela Associao.
Pude, tambm, perceber que a Associao aciona, intencionalmente, o padro de rede
tanto no aspecto social como institucional a partir de operaes coletivas de objetivos e
valores compartilhados em diferentes esferas da ONG, como Associaes de Bairro, escolas
da rede pblica, instituies privadas, instituies pblicas de fomento, outras ONGs,
Fundaes, enfim, o que se chama hoje de Terceiro Setor.
A necessidade de se estabelecer conexes com pessoas e instituies para dar conta
da demanda multidimensional que surgiu ao longo da constituio da ONG, foi traando a
estrutura e o desenho da rede articulada pela Associao. Estas conexes foram estabelecidas
mediante contatos, conversas, intercmbios de experincias, criando-se vnculos de diversas
naturezas: afetivos, profissionais, institucionais, polticos. Durante minha insero pude
presenciar eventos, workshops, lanamentos de publicaes que envolveram instituies
provenientes do Terceiro Setor8, tratando-se de ONGs tanto em comunidades pobres da
periferia de So Paulo.

8
Fundao Bank Boston, Fundao ABRINQ, Fundao Aprendiz, GIFE, CENPEC.
227

Como j foi mencionado, a famlia, a escola, outras ONGs, empresas privadas,


rgos pblicos que elaboram polticas pblicas aparecem como instncias importantes nas
conexes da AMM. Esse aspecto j reconhecido por instituies como a UNICEF por
colaborar com a escola pblica atravs de convnios com 153 delas na busca de vagas e
acompanhamento escolar.
Ligia tem clareza das relaes que fazem interfaces com a Associao na textura
complexa da estrutura dessa rede em que se realiza uma operao de potencializao para
todos os que participam. Os mltiplos caminhos possveis propiciam uma infinidade de
interaes laterais conforme ela destaca como um aspecto positivo para a ONG:

Participar de redes, sempre algo muito rico, porque onde voc troca, recebe, d,
amplia, redefine. E essas redes, muitas comearam com o fator presencial, de se
estar numa comunidade, de se conhecer as pessoas, de se apresentar: Olha, eu sou
Ligia dos Meninos do Morumbi!. Ento, as pessoas se conhecem, atravs de um
nome, de uma pessoa, e a voc troca informaes, voc troca valores, voc troca
objetivos. E com isso que ns estamos desenvolvendo parcerias com a escola, com
outras ONGs [..] acreditando que as parcerias, num contexto de rede, um
instrumento extremamente rico. Hoje eu tenho redes que j caminham sozinhas, que
eu posso resolver via telefone ou at falando para algum ligar em meu nome. Mas
isso precisou de muitos momentos presenciais, muita troca e participao em muitos
trabalhos conjuntos, para que pudesse ter esse espao que se tem hoje: uma rede de
mltiplos conhecimentos. assim: tem desde uma rede na favela, com a liderana
local, como tem rede entre ONGs e tem rede com as escolas. Tm redes com outros
institutos, rede onde entram financiadores, a rede com universidade (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

As redes sociais implicam um processo de produo coletiva, em que todos se


reconhecem como autores em produtos e eventos. Envolvem prtica e transformao social,
implica ao e reflexo. Espraia-se por vrios segmentos da sociedade e a universidade
citada como um locus importante para dar lastro produo e disseminao de conhecimento.
Esse quadro desafia a capacidade dos centros de produo de conhecimento e pensamento
crtico, como a universidade, a se envolver com as dimenses relacionadas s ONGs
consideradas como geradoras de agendas, marcos conceituais e estratgias prprias de
investigao (LANDIM, 2002).
A AMM tem visibilidade na mdia e apontada como uma ONG que tem
credibilidade, como atesta as inmeras matrias em jornais de circulao nacional, como a
Folha de So Paulo e o Estado de So Paulo, apario nas Redes Globo, Record, Bandeirantes
de televiso. A partir desses aportes miditicos, apontada como uma ONG que deu certo.
Ligia atribui parte dessa posio capacidade de se trabalhar em rede:
228

... tecendo essa rede, que o projeto vai construindo um espao de existncia, de
validao, de visibilidade. E uma caracterstica... presente desde o incio, que
articular parcerias, articular e participar de redes e ento isso muito... pra mim
muito habitual. Se eu tenho um problema e em frente a esse problema eu tenho que
propor um projeto, eu sempre vou pensar na rede que, de alguma forma pode
contribuir, pode participar, com as diferentes habilidades, com as diferentes
competncia (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23-11-
2004).

O processo de articular em rede problematizado, considerando as diferenas de


interesses e concepes que cada componente traz para a negociao criando-se situaes
conflituosas, principalmente entre as instancias financiadoras das verbas e as organizaes
que realizam o trabalho no cotidiano. As relaes se processam pelas vias da negociao e da
busca por consensos.
A rede tecida com outras ONGs e outras regies de atuao trouxe abertura e
estmulo para o aprendizado para a troca e para a produo de novos conhecimentos, uma vez
que se problematiza sobre como administrar multi-demandas e necessidades inerentes ao
trabalho socioeducativo com pessoas que vivem em condies muito desfavorveis.
Em relao s instituies ligadas ao Terceiro Setor como, por exemplo, Instituto
Fonte, Fundao Bank Boston, ABRINQ, Grupo Po de Acar, Fundao BRADESCO,
entre outras que j desenvolvem trabalhos voltados para a capacitao de profissionais, Ligia
destaca que muitos apresentam possibilidades de transformao social atravs de suas aes,
incidindo na diminuio da desigualdade social.
Com sua vivncia e convivncia em mltiplos espaos Ligia faz uma anlise sobre a
dinmica e caractersticas do Terceiro Setor e destaca a questo da formao dos
multiplicadores, os quais vm assumindo a funo daquele que ensina e que se apresenta,
atualmente, como uma caracterstica do contexto das ONGs. Esse quadro vem incidindo em
questionamentos sobre o papel, as competncias e a identidade do profissional que vem, hoje,
desempenhando a funo de educador social:

Ento, o que acontece aqui de jovens multiplicadores comum nas outras


ONGs. Acho que s no pode confundir o papel e a necessidade de se crescer
profissionalmente, de entender o que se faz, com essa questo de voc utilizar
pessoas da prpria rede onde voc desenvolve o seu trabalho. Voc no pode pegar
um jovem, transformar um jovem num educador, assim, simplesmente porque ele
aprendeu a tocar. Ele tem que desenvolver outras habilidades, quer dizer, essa uma
caracterstica das ONGs e a surgem hoje, cursos de formao, para administrar uma
prtica que vem acontecendo e que as pessoas sabem o que fazem, mas no se do
conta do que fazem, porque no param pra sistematizar, pra avaliar, n. No tem
acesso ao instrumento, porque no tem dinheiro, porque no tem essa habilidade...
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
229

O trabalho realizado por Ligia na articulao das redes bastante reconhecido pelos
colegas e trabalho como atesta essa fala de Nair: A Ligia mais voltada pr um trabalho de
rede, que a ligao do projeto com as comunidades, com a sade, com a rede escolar e ela
comeou com as famlias. Nesse sentido, Ligia ocupa o papel de facilitadora do grupo por
sua capacidade de se promover vnculos de diferentes naturezas entres pessoas e instituies
com a perspectiva de que o processo grupal sempre transformador e desencadeia mudanas
nos mbitos individual, grupal e social porque sempre possibilita a aprendizagem de alguma
coisa.

4.3.3.1 A FAMLIA: A SEGUNDA CASA

muito mais uma famlia, uma grande famlia trabalhando


junto, com os problemas pessoais, muitas vezes envolvido, do
que propriamente uma empresa que voc tem aquele mtodo
de se trabalhar e segue apenas esse mtodo
(Anderson, 2004, secretaria geral da AMM)

A famlia se mostra, nesse estudo, como uma representao significativa, pois alm
de ser uma das vertentes de ao do projeto socioeducativo da Associao, os depoimentos
dos participantes se referem famlia como um valor relevante nas suas vidas,
independentemente do grau e da forma de presena ou ausncia em suas vidas.
Enquanto ao institucional a AMM desenvolve, como j foi mencionado, o
Programa Famlia e seus Contextos. Esta ao resulta, para os integrantes dessa equipe,
num laboratrio cujas aes so desenvolvidas por um grupo de profissionais voluntrios
atravs de diferentes estratgias: terapia comunitria, sociodramas, reunies grupais, grupos
focais etc. Os temas priorizados, levantados atravs de consulta s famlias, foram os
seguintes: Insegurana na Infncia e adolescncia; Qual o papel dos pais para reduzir os
sintomas?; Limites na educao dos seus filhos; Desenvolvimento da Parentalidade; Valores
Familiares; Sociodrama de Educao Sexual. A famlia compreendida como um ncleo
importante e tambm uma representao simblica.
O destaque para essa dimenso trabalhada na AMM se justifica pelo fato de que as
atividades se constituam em um suporte importante no que concerne aos diferentes aspectos
relacionados aos cuidados sociais que entrelaam questes de ordem familiar, escolar, de
230

cuidados com o corpo, sexualidade, problemas advindos de traumas psicolgicos. As sesses


de psicodrama realizadas com os pais e com os jovens se constituam em momentos e
possibilidade da equipe conhecer o contexto social dos participantes e tambm como uma
forma de detectar problemas que no emergiam no ambiente de sala de aula ou dos ensaios. A
sntese da proposta para 2004 e a equipe de trabalho coloca como objetivo geral:

Desenvolver em co-autoria um Programa de atendimento s famlias da AMM que


seja referncia para a implantao de polticas pblicas e que assegure o acesso das
famlias a contextos de escuta e acolhida diferenciadas e espaos de reflexo-ao
(Programa Famlia e seus contextos-2004).

E como objetivos especficos: 1) articular uma rede de profissionais que sero autores da
metodologia desenvolvida; 2) registrar as diferentes estratgias desenvolvidas; 3) sistematizar
a prtica e 4) avaliar o processo e os resultados alcanados (CCMM, p. 53, Magali,
04/09/2004).
A avaliao desse trabalho realizada cada encontro mediante reunies com os
profissionais envolvidos. A avaliao revela, tambm, que o planejamento das aes
subseqentes para o segundo semestre de 2004 foi organizado a partir da reflexo e da
problematizao que emergiram do contexto desse trabalho.
Destaca-se que o objetivo central para a continuidade das aes foi dar unicidade ao
tema a ser trabalhado em todos os grupos, optando-se pelo tema sexualidade, a complexidade
dos problemas relacionados famlia que rbita no cotidiano da ONG, sendo necessrio
priorizar problemas que se apresentavam emergentes. Alm desse planejamento, foi prevista a
insero de 500 novas famlias na AMM, com dinmicas que pudessem detectar as
expectativas dos novos, permitir a troca de informaes e propiciar uma acolhida positiva.
De uma maneira unnime, os entrevistados so gratos e orgulhosos de pertencer ao
Meninos do Morumbi. Cntia se expressa: ...sempre que eu escuto assim algum falando
Meninos do Morumbi, eu tenho orgulho de estar l dentro, essa a melhor parte. As falas
levam a inferir que o espao fsico e simblico da Associao incorporaram, de forma
positiva, no contingente que participa do projeto.
O sentimento de pertencimento Associao se revela tambm mediante a referncia
sobre representaes sociais como famlia, trabalho, emprego, a segunda casa, amizade e
emergem como valores importantes na construo da identidade dos jovens. Os entrevistados
tm famlia e moram com ela. E ainda que venham de famlias desestruturadas essa referncia
surgiu, em grande parte dos depoimentos, como uma estrutura social que remete ao amparo,
segurana, afetividade, conflitos.
231

Muitos depoimentos revelam que a permanncia na Associao marcada por


interrupes em que os participantes vo e voltam para a ONG. Nesses relatos eles acabam
elaborando uma anlise do processo em que se sobressai a significncia que eles atribuem
Associao. Assim foi com Leandro, Claudinei, Murilo, que voltaram. J Edivnia e seu
irmo, so exemplos de jovens que no voltaram nem para a Associao e, infelizmente, para
a vida.
Claudinei se refere ONG como parte de sua famlia, seu trabalho, seu emprego:

Minha famlia vai ser essa, aqui dentro, eu e o Projeto e o Flvio junto. Minha
mulher era daqui, ela dana e foi pr Inglaterra. Flvio falou comigo e minha mulher
vai voltar c, pr danar e minha filha tambm. Se depender de mim eu fico at
chegar o meu fim. Eu no consigo ficar um ms, uma semana longe daqui. Sabe, se
eu ficar um dia em casa, eu fico pensando: P, no vejo a hora de chegar amanh
pr mim trabalhar. Aqui todo mundo, todos os funcionrios, todos os integrantes
uma famlia. Voc pode ter um piorzinho, mas ele sempre vai estar ali esticando a
mo pr voc. Ento eu tento ajudar todos, entendeu, todos que est aqui dentro, que
comeou aqui dentro do projeto. Eu considero como minha famlia, o projeto inteiro.
Pode entrar um integrante novo hoje, eu tento fazer ele entrar l dentro da nossa
famlia, virar uma famlia e todo mundo caminhar junto sempre na mesma direo,
como sempre o Flvio falou, subir prs cabeas e ir embora. (CEMM_2, Claudinei,
manuteno, 22/11/2004).

A AMM aparece nos depoimentos dos entrevistados como um locus de estruturao


psicossocial e de apoio, mediante a convivncia cotidiana com o grupo, como destaca Cntia:

Aqui a gente uma famlia praticamente; um grupo aqui na percusso. Ento..se


eu estiver passando por dificuldades, eu chego em uma das pessoas do meu grupo
pr falar e eles vo tentar me ajudar... a gente um grupo e sempre procura ajudar
uns aos outros aqui dentro... (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e monitora de percusso, -
11-2004).

E ao ser indagado sobre o papel da msica na sua vida, Pavilho relata que hoje
praticamente tudo, porque alm de tocar, eu trabalho com som, opero mesa e isso foi
mudando a minha vida completamente, graas ao projeto eu consegui constituir uma famlia
(CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao, 23/11/2004).
As metforas eram usadas pelos entrevistados para expressar significados que se
reportavam s situaes vividas no cotidiano da AMM. E Silvinha sintetiza: Considero os
Meninos do Morumbi minha segunda casa, meus amigos esto aqui, meu trabalho aqui, eu
cresci muito porque eu... tudo o que eu sou hoje, tudo o que eu tenho hoje foi graas aqui,
porque hoje eu trabalho aqui, um cargo de confiana. E quando eu perguntei sobre o que
significativo quando ela pensa Meninos do Morumbi, Silvinha foi categrica na sua resposta:
232

Amizade, unio, orgulho e um sonho que foi realizado tanto no comecinho como
agora, porque cresceu muito, evoluiu muito e quem viveu isso faz parte da vida. Faz
parte da vida e eu me considero parte dos Meninos do Morumbi e a minha vida
aqui e isso a! (CEMM_2, Silvinha, financeiro, 18/11/2004).

A amizade cultivada na ONG ligada a sentimentos positivos que trazem felicidade


e alegria: voc tem muitos amigos pr falar o que acontece, o que aconteceu e da quando
chego da porta pr dentro me d uma alegria assim, me d um sorriso, me d uma alegria de
estar no Meninos do Morumbi. Isso da faz bem pr mim! (CEMM_1, Leandro, capa do CD,
24/11/2004. Para Murilo, um dos primeiros Meninos, a amizade com os professores
relevante quando se fala no que significou participar da Associao: ...conheci muitos
amigos, tenho o Flvio como exemplo e o Tio Banks, conheci muitos amigos como o Dinei e
os outros amigos meus que esto aqui e gosta de ns, se no gostasse da gente ns no estaria
aqui at hoje, oito anos (CEMM_2, Murilo, manuteno, 23/11/2004).

4.3.3.2
VALORES, AFETOS E SIGNIFICADOS CONSTRUDOS DURANTE A VIVNCIA
NA ONG

...eu no pago pr sentir dor, eu tambm no gosto de tatuagem [..] .eu


tatuaria uma pequenininha, um logozinho assim em algum lugar do
meu corpo dos Meninos do Morumbi, porque muito maravilhoso...
(Alessandra Rosso, 2004, gerente do espao da AMM)

Participar da construo e constituio da AMM, ao longo de sua existncia,


significou para os entrevistados vivenciar dinmicas sociais e pessoais de vrias naturezas em
diferentes contextos. O fato de ser uma ONG que, enquanto instituio, tem ainda uma curta
tradio histrica, somada a sua prpria caracterstica de ter naturezas mltiplas, implica um
trajeto marcado por idiossincrasias de seus prprios entrevistados. A questo da significao
da vivncia na ONG por parte dos entrevistados trouxe tona depoimentos entrelaando
fragmentos de histrias de vida com a histria da Associao, carregados de valores e afetos,
evidenciando que as subjetividades foram determinantes na constituio da instituio. Vem
tona, tambm, formas de conceber o mundo social, traos de identidade individual e coletiva,
maneiras de entender processos e contextos e, ainda, interesses que desencadeiam iniciativas e
aes de natureza esttica, poltica e social.
233

A ligao afetiva com a ONG, fruto de um processo coletivo que liga diferentes
contextos, uma das caractersticas mais intensa que emerge nos depoimentos de todos os
entrevistados. Na ltima entrevista que tive com Flvio, ele se abriu para minhas questes, se
envolvendo com a prpria narrativa que desencadeou um processo de catrtico. Sua fala se
remetia aos momentos vividos e parecia reforar suas convices. Ao ser indagado sobre o
que significa a AMM na sua vida, ele traa vrias linhas que, ao se cruzarem, indicam
coordenadas desse processo de significao:

Isso aqui uma coisa que est cumprindo o seu papel e que uma misso. Eu sou
uma ferramenta dessa histria toda. Eu cumpro o meu papel e sou um guerreiro, vou
luta atrs das coisas, assumo as responsabilidades e pago o o mico dos erros, mas
no deixo peteca cair. Eu sempre tive a certeza dessa histria aqui, uma coisa muito
pessoal e eu no tenho a menor dvida do que a gente . Eu acho que a gente pode...
e o que a gente . No o que a gente tem materialmente. Voc fala assim: Pxa,
mas e se acabar tudo?, e eu falo que no tem como acabar, a gente volta pr rua,
com os instrumentos, com a comunidade, com as crianas. Vai tocar como era:
Vamos sair todo mundo daqui de dentro, vamos levar os tambores e a partir de
agora a gente vai tocar l na porta do estdio de novo. Eles vo e a gente vai arrasar
l na porta do estdio! Eu vou dar as aulas l na porta da minha casa, tudo comea
de novo. Quer dizer, uma imagem o que eu estou criando aqui, mas o que eu digo
pr voc o seguinte: a chama que mantm, no apaga. No minha [chama], eu
tambm fao parte dela, mas de todos aqui que gostam dessa histria. (CEMM_1,
Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Dessa fala, destaco o lugar social que Flvio entende ser o seu, enquanto presidente
da Associao, com um forte trao na perspectiva missionria e redentora de seu trabalho.
No deixar a peteca cair reflete que a responsabilidade do sucesso ou fracasso da ONG est
centrada em suas aes. um paradoxo, pois, o paradigma do coletivo no abarca essa
perspectiva redentora.
Essa atribuio de auto-sustentabilidade reflete-se tambm no contexto poltico das
ONGs que projetam identidades sociais e polticas do micro, a partir de aes locais, para o
macrossocial, em que tais aes esto cumprindo um papel que antes era atribudo ao Estado.
um ponto para uma anlise mais aprofundada: como pensar em fenmenos sociais locais
para alm dos casos particulares, se as identidades coletivas se fragmentam ao sabor dos
contextos, se as categorias sociais se apagam atrs da irredutibilidade dos destinos
individuais (ABLS, 1998, p. 111) nesse caso, entendendo a ONG como o individual.
A fala de Flvio sobre o significado da AMM na sua vida sintetiza seu pensamento,
sua motivao e suas convices sobre o papel da msica, do msico-educador e do
comprometimento com um trabalho socioeducativo:

...pr mim to vital essa relao com os Meninos do Morumbi que j faz parte de
mim. Como voc tem na sua casa, como voc tem filho, como voc tem a sua vida.
234

Tm coisas que a gente j tem como nossas, que so parte da gente, como se fosse
parte do corpo da gente. E ento eu acho que pr mim, esse deve ser o meu trabalho
[...] a minha ps-graduao espiritual, meu doutorado. aonde eu vou aplicar todo o
meu conhecimento, toda a minha espiritualidade; aonde eu vou aprender, tambm,
como eu tenho aprendido muito, com o outro. E o que eu queria dizer assim... talvez
a msica seja assim, eu s consigo tocar - pr mim, o meu objetivo quando eu toco
tocar o outro, alcanar o outro naquilo que ele tem de melhor, que a alma dele
quando voc toca; e eu acho que esse tambm o que permeia a minha relao aqui
e eu, o Flvio, quero alcanar o outro, transformar o outro. E ento eu fico muito...
(interrompido por sua emoo) ... e ento como isso hoje faz parte da minha vida, eu
no consigo mais ficar passivo ao outro, eu no consigo mais ver um jovem
precisando no nem materialmente no ajudar no sentido assistencialista
participar da vida do outro. E, e ento eu acho que isso muito importante pr mim
aqui. O quanto eu caminhei, o quanto eu aprendi, o quanto eu consegui fazer disso,
que hoje me d n na garganta, porque uma caminhada longa, muito tempo! Oito
anos parece ser um tempo curto, mas muita coisa, a gente viu muita coisa, perdeu
muita coisa, mas ainda eu tenho uma gratido muito grande com Deus por ter me
posto nesse caminho (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Vera, ao falar sobre sua relao com o trabalho que faz na ONG, diz que se
emociona e que tem uma dedicao com os Meninos que bem carnal... uma coisa de
amor, o amor, amor mesmo, s tem uma palavra, amor... e ressalta sua paixo pela
dana: eu amo a dana, penso o tempo todo em fazer coisas novas, eu pesquiso muito...
quero criar novas coisas, novas possibilidades pois isso traz felicidade a ela por estar
fazendo, tambm, um trabalho social (CEMM_1, Vera de Oliveira, professora de dana,
24/11/2004).
Ser feliz, fazer o que gosta no dia-a-dia um bordo na fala dos entrevistados.
Trabalhar na AMM traz um referencial para se reconhecer e se valorizar como pessoa, como
ressalta Dalva: o que est acontecendo na sua vida e dentro dos Meninos do Morumbi, eu
consegui descobrir isso, que eu no sou s mais uma pessoa... voc conhecida pelo que voc
faz!. Isso com certeza pesa bastante no meu acordar toda manh, pr poder vir para os
Meninos do Morumbi (CEMM_1, Dalva, professora de dana e esportes, 17/11/2004).

4.3.3.3 GRATIDO AMM

Gratido uma palavra recorrente na fala da maioria dos entrevistados: funcionrios,


alunos, professores, monitores e pais. Emerge tambm, fruto desse sentimento de gratido, a
noo de compromisso em estender para a sociedade e para a continuidade da ONG os
benefcios aos quais eles tiveram acesso. As falas revelam as diferentes formas de interveno
235

em suas vidas que esto ligadas dignidade humana, o que parece acentuar o sentimento de
gratido:

E o Flvio sempre me ajuda, sempre, qualquer coisa, sabe, tipo, pro Projeto assim,
minha dvida pro projeto muito grande e ento eu acho que eu no tenho nem
como pagar assim o que o projeto fez pr mim, sabe. E eu olho pr trs e eu vejo
meus amigos que est l preso, uns que j morreu j. Outros que nia, outros que
t preso e eu olho pr trs e eu agradeo muito assim, peo pr Deus, t ligado, ter
iluminado o meu caminho e o Flavo ter esticado a mo pr mim, pr me tirar
(CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).

A noo do compromisso com a proposta socioeducativa da AMM muito clara


nesse depoimento de Vera que destaca que esse processo se d mediante a discusso, os
alinhamentos dos conflitos e diferenas, mas o que prevalece a confiana entre ela e o
coordenador:

....no tem nenhum relacionamento, .nada realmente vital ou forte, se no tem:


vou sentar e discutir aquilo que pode ser melhor, propor outras possibilidades e
questionar. Ento, a gente tem uma relao muito ntima de amigo, mas amigo que
questiona, amigo que busca outras solues, amigos que no concordam com os
outros mas que buscam, juntos, novas solues, novas conquistas. Ento, eu acredito
que o Flvio saiba at quanto ele pode contar comigo, que muito. O quanto estou
comprometida com o projeto, mas que tambm eu questiono, eu trago novas
propostas, eu acho que tem outras coisas que podem ser acrescidas ao projeto e eu
no me intimido. Eu realmente trago e se tiver que brigar, falar, eu vou falar, mas
tudo para o bem comum. Para algum que v o projeto como sendo sua casa, sua
famlia e quer que melhore. E essa a viso que eu tenho, de melhorar, de progredir
e de fazer com que o projeto cresa cada vez mais. E assim, eu acredito que essa
unio, que essa dedicao ao projeto, s traz bons momentos, positivos mesmo, s
faz crescer. Ento essa a relao que eu tenho com ele, eu acho que uma relao
tipo como irmo mais velho, de amigo, de pessoas que realmente querem o mesmo
objetivo, que pensam na mesma proposta (CEMM_1, Vera Oliveira, professora de
dana, 24/11/2004).

4.3.4 O ESPAO URBANO REPRESENTADO NA ONG

O espao urbano um fator importante na constituio das suas identidades sociais,


construindo fronteiras fsicas e simblicas que estabelecem diferentes possibilidades de
acessos de vrias naturezas. Assim, o espao urbano torna-se relevante na anlise porque no
seu mbito que esto sendo dinamizadas as relaes sociais e onde a cultura torna-se um
referencial significativo para um estudo sobre o processo pedaggico-musical.
236

na fala dos entrevistados que se desvela como o espao geogrfico que ocupam faz
diferena na sua existncia. Isso, no s considerando as delimitaes de seus bairros, favelas,
mas tambm de como uma oportunidade de borrar fronteiras urbano-espaciais pode ser um
fator ligado ao exerccio da cidadania e, portanto, acesso a direitos legalmente institudos.
No caso da Associao o espao urbano, enquanto representao da diversidade
sociocultural, aparece como forte componente na proposta socioeducativa. Ser da favela
como destaca Flvio, no confere uma validade social ...ela pode dar um sociabilizante, qual
seja, ela pode ser at respeitada, as pessoas podem ter medo etc, mas o grupo aqui validado,
eles tm um produto de qualidade que faz parte desse pertencimento: a Banda Show
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral , 06/11/2002).
Como j mencionado, a sede localiza-se em um bairro de classe mdia alta de So
Paulo, atendendo os bairros e favelas do seu entorno. Esse trnsito de pessoas provoca uma
mudana na ordem do bairro e no espao especifico da ONG, provoca uma mistura de classes,
uma vez que jovens da classe mdia de l, tambm participam das atividades desenvolvidas.
Como a entrada livre para todo tipo de classe socioeconmica, muitos integrantes
pertencem a uma classe social mais favorecida e fazem os cursos de informtica e ingls
porque gratuito, mas tem que fazer tambm as atividades obrigatrias: percusso, canto ou
dana. Anderson, da secretaria, localiza uma interseco conflituosa nessa diversidade de
classe, mas considera um fator de aprendizagem para todos. Ressalta que a cada nova leva de
integrantes a questo da classe social, determinada pela localizao de moradia mostra-se
como um diferencial:

... a grande diferena dos novos integrantes que esto entrando hoje no projeto em
relao aos jovens antigos, justamente a classe social. Porque o integrante que vem
da periferia, a gente conhece a caracterstica dele. um jovem que est sempre
arisco, at, muitas vezes, meio agressivo. Mas ele sempre est disposto a respeitar
as normas porque ele quer ficar aqui dentro porque considera um lugar bom. O
jovem que vem da classe mdia, classe alta, ele se acha no direito de ter algo a mais
e, no incio, tem sempre um conflito [...] Ou seja, ele tem que respeitar as regras e
participar das atividades do mesmo jeito que o jovem de periferia tem. E nesse
sentido h um confronto muito grande no primeiro e no segundo ms. Mas logo ele
entende e ele acaba entrando nesse mesmo ritmo dos outros jovens.. Ento ele por si
s, acaba se agregando a esses valores e acaba se comportando bem. (CEMM_2,
Anderson, secretaria geral, 10/11/2004).

Os aspectos que Anderson ressalta pode ser pensado como um microcosmos onde
relaes entre classes sociais so, geralmente, conflituosas, mas com possibilidades de
consenso, desde que seja feito um trabalho educativo que envolva a tica e a cidadania. A
desigualdade reconhecida, tirando os mais pobres da invisibilidade social e os mais ricos se
237

envolvendo com um mundo que real cujos problemas ocupam uma esfera muito maior que a
pessoal, envolve o coletivo, o poder pblico e privado e toda a sociedade civil.
possvel inferir que no incio da ONG (1996) o trnsito de pessoas de favela e
meninos de rua possa ter causado uma desestabilizao da ordem estabelecida no bairro rico
da cidade de So Paulo. Aparece como um confronto social, que foi uma das dificuldades
superadas, constituindo-se como um fator de fortalecimento do grupo. Na sua ltima
entrevista, Flvio relatou-me que a primeira apresentao descendo e subindo a rua Francisco
Morato, como em um desfile com cerca de 30 integrantes tocando, causou grande espanto:

A vizinhana no entendeu absolutamente nada, falou: que maluquice


essa?...porque um bairro de classe mdia alta. Isso a poderia at ser muito
comum no Rio ou talvez numa periferia, mas no foi aqui com a gente! E as
hostilidades com a gente - o povo que no gostava de barulho, jogava tomate -
reforava esse esprito de grupo, essa coisa de ns somos um grupo e um grupo
muito forte, pode sobreviver a essas questes. (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral , 11/11/2004).

A hostilidade dos moradores do bairro no era somente com o grupo de pessoas


pobres que estava ali, mas tambm com o que elas faziam, a msica, aquela sonoridade que
remetia a um tipo de cultura, como destaca o relato de Flvio ao se referir aos moradores do
bairro e seus argumentos relacionados com o poder aquisitivo e classe social, alegando que a
AMM atraa os favelados aqui pro lado da minha casa, que custou trezentos mil dlares... e
esse barulho.... Flvio ressalta que nunca se incomodou porque sempre tocou percusso e
no se intimida diante de situaes como essa.
A msica, como elemento agregador na diversidade de classes sociais uma
constatao de Sivuca, professora de percusso, que sublinha que

todos so tratados da mesma maneira, todos usam a mesma camiseta, todos comem a
mesma coisa e a msica ajuda bastante. O nosso trabalho com a msica, com a
dana, [oferece algo que] muitos no teriam a oportunidade que tm hoje: de
aprender, de at mesmo conhecer outro pas, de ver um monte de gente, tocar com
um monte de gente famosa (CEMM_1, Sivuca, ex-aluna e professora de percusso,
22/11/2004).

Mas, Sivuca reconhece a dificuldade de se dissolver o estigma assistencialista que


permeia os projetos sociais, mesmo agregando um valor cultural e artstico no trabalho:

Ns somos uma banda que quer fazer sucesso, no importa se o menino mora numa
favela ou se ele mora num cortio ou numa casa com empregada. Eu vejo que a
msica ajuda bastante, mas ainda fora, assim, existe muito preconceito com isso. Por
exemplo, viu o Meninos do Morumbi e Ah, aqueles meninos favelados, l!. Isso
eu no gosto (CEMM_1, Sivuca, ex-aluna e professora de percusso, 22/112004).
238

Outro aspecto ligado questo do espao urbano no trabalho pedaggico da


Associao refere-se a sadas dos jovens e crianas com o objetivo de ampliar o acesso a
espaos culturais e de lazer. Neste sentido, o antagonismo entre a periferia/favelas e os
espaos urbanos privilegiados com estruturas para cultura e lazer, em uma cidade cosmopolita
como So Paulo, destacado por Nair. Suas palavras corroboram essa perspectiva quando lhe
perguntei como ela percebia o efeito dessas sadas dos jovens:

Eu acho que um novo para eles, sempre um novo, um show, um espetculo,


a cor, um movimento, estar com os companheiros, visitar So Paulo. ir pr
lugares importantes e to diferente da realidade que eles vivem, que no acontece
nada! So Paulo na periferia cinza, no tem rvore, no tem parque, no tem coisa
colorida. Agora tem alguns a, como que chama isso, CEU [Centro de Educao
Unificada]9... mas at ento, em muitos lugares da periferia, so lugares tristes, que
no tem nada. E aqui no, ela vai, ela dana, ela conversa, ela tira fotografia com
artistas, ela atuante, ela vai no SESC Pompia, no Projeto l da Vaca Amarela, por
exemplo, e l ela brinca, ela ri, ela fala com o palhao, ela tira fotografia com o
palhao e uma vida de fantasia, concreta, colorida e tem uma atrao fantstica
(CEMM_1, Nair, coord. pedaggica, 17/11/2004).

A questo do espao urbano constituindo identidades estigmatizadas pelo local de


moradia est sendo debatida e considerada nos estudos que abordam a questo da urbanidade
e relaes sociais. Fernandez (2004) reconhece que

No h como negar... que a relao entre o Poder Pblico e as diferentes partes que
compem a cidade se deu e ainda se d de forma desigual, ora privilegiando algumas
reas, ora atuando de forma cirrgica em outras, nas quais parte do princpio de uma
patologia espacial a ser corrigida, ordenada e disciplinada pela ao urbanizadora
(FERNANDEZ, 2004).

fato que existe uma ciso dos espaos urbanos cada vez mais exposta pela mdia. O
movimento Hip Hop faz emergir essa questo mediante uma viso crtica, onda a msica
um dos veculos de expresso mais fludo e com poder de penetrao. Abramovay (1999) em
seu estudo sobre a juventude localizada na periferia urbana de Braslia e Fialho (2003) na sua
pesquisa sobre o movimento Hip Hop com jovens da periferia urbana de Porto Alegre
constatam que a msica o trao de unio entre os rappers que falam em nome de uma
gerao estigmatizada, da realidade do seu cotidiano tecido por uma predeterminada excluso.
nesse contexto que a msica aparece como uma forma e um canal de expresso opcional
violncia e criminalidade (ABRAMOVAY, 1999, p. 181). A msica dos rappers representa
a msica da juventude da periferia, em que os msicos assumem o papel de agentes sociais

9
Centros Educacionais Unificados, CEUs, so parte de um projeto poltico-pedaggico lanado em 2001, pela
Prefeitura de So Paulo. Esto localizados em zonas de excluso social, na periferia de So Paulo.
(<http://www.brasilengenharia.com.br/frameinf561.htm>. Acesso em: 02 jan. 2006).
239

que crem em uma possvel transformao, por meio de um canal de expresso a msica do
movimento Hip Hop capaz de denunciar a realidade violenta em que vivem.

4.4 O CONTEXTO DE ENSINO E APRENDIZAGEM

A AMM pode ser pensada como uma comunidade de aprendizagem que construiu
um projeto socioeducativo e cultural para educar a si prpria, suas crianas, seus jovens e
adultos, mediante um esforo endgeno, cooperativo e solidrio (TORRES, 2003, p. 83)
baseado na crena de seus entrevistados de que possvel superar barreiras de mltipla
natureza, visando melhoria das condies bsicas para uma existncia digna. Assim, durante
minha insero, a questo da aprendizagem em muitos lugares e contexto e entendida como
uma tarefa de todos foi se delineando como um forte trao na dinmica cotidiana da ONG.
Nuances pinadas em uma conversa com Sueli, chefe da cozinha, que me contou que estava
sempre atenta para que os participantes lembrassem de dizer por favor, muito obrigado no
momento de pegar sua refeio, respeitar a fila, lavar as mos antes de comer, j me
indicavam essa perspectiva. Apesar de Sueli no ser educadora, ela se sentia responsvel e
exercia sua funo em estar educando os jovens e crianas no mbito do seu trabalho. E esse
tipo de comprometimento era sensvel nos vrios setores da instituio. Todas aes,
musicais, burocrticas ou organizacionais, envolvem inter-relaes e podem ser pensadas
como momentos de ensino e aprendizagem para a comunidade da ONG.
Neste captulo discuto o contexto de ensino e aprendizagem musical como parte do
processo pedaggico-musical desenvolvido na AMM. Nesse contexto, a descrio e anlise
voltam-se para a compreenso dos processos e interesses do conhecimento musical produzido
e reproduzido, destacando-se como foram se instituindo e constituindo as concepes e
prticas pedaggico-musicais. As dinmicas das relaes sociais implcitas nesses processos
levam em conta os diferentes espaos onde se pode aprender e ensinar msica. Os focos
tericos que iluminam a anlise partem da fundamentao j apresentada no segundo captulo.
Os procedimentos didtico-metodolgicos de ensino e aprendizagem adotados na
AMM foram observados e analisados a partir de um recorte da totalidade das atividades
musicais oferecidas na ONG, focando as aulas do Grupo de Percusso, mais especificamente,
as aulas que agrupavam os aprendizes em nvel iniciante e intermedirio que tocavam surdo
de primeira, surdo de segundo, surdo de terceira, timbales e caixa. Os ensaios da Banda Show
240

foram tambm considerados como foco de observao e espao de ensino e aprendizagem


musical.
Tal deciso se deu aps um perodo de observao nas diversas atividades de ensino
de msica e se justifica porque essas aulas representavam um microcosmo sonoro musical da
Banda Show, sntese do trabalho pedaggico-musical realizado na ONG. Mas, essas turmas
me conduziram, tambm, s aulas de caixa e timbal. Tomei como objeto de anlise os
depoimentos dos coordenadores, Flvio Pimenta e Ligia Pimenta, dos professores de
percusso, Sivuca, Marcelo Big e Marquinhos, das ex-alunas Cyntia e Luciana monitoras e
participantes da Banda. Alm disso, para a anlise considerei as notas de Caderno de Campo
relativo minha observao participante nas aulas e ensaios, as gravaes em vdeo e MD,
captadas por mim, e as partituras do repertrio da Banda, disponibilizadas pela ONG.
A observao participante me proporcionou breves experincias em que pude
aprender a tocar os ritmos bsicos do repertrio nos surdos de primeira e segunda e no timbal
orientada pelas monitoras Luciana e Cyntia10. Tal prtica foi importante para que eu pudesse,
aos poucos, entender a estrutura, o contedo e a forma das aulas de percusso. Estes focos
foram componentes fundamentais para a compreenso e anlise do processo pedaggico-
musical desenvolvido na AMM, entendido como um processo pluricontextual. Dessa forma,
buscou-se compreender tambm a prxis cognitiva que trata de como se estrutura a produo
do conhecimento a partir da perspectiva dos entrevistados, os protagonistas do processo, os
que tecem o discurso.

4.4.1 A PROPOSTA PEDAGGICO-MUSICAL DA AMM

Em relao s prticas musicais, o coletivo foi um dos pressupostos que amalgamou


a proposta pedaggico-musical e que resultou na sistematizao de um material musical
registrado em partituras do repertrio ensaiado pelo grupo e em dois CDs gravados11. Assim,
as aulas eram sempre coletivas, os encontros, as reunies sempre privilegiavam a interao do

10
Vale lembrar que tal procedimento foi adotado por Prass (2004), no aprendizado do tamborim, com mais
nfase e tempo, uma vez que sua pesquisa trata de uma etnografia sobre os saberes musicais focando a bateria
da Escola de Samba Bambas da Orgia na cidade de Porto Alegre.
11
Os CDs so produes independentes que contm o repertrio executado pela Banda Show Meninos do
Morumbi.
241

grupo. Em relao concepo das aulas, Flvio destaca pontos bastante claros, no que tange
aos aspectos pedaggico-musicais, na implantao do projeto:

...tinha que ser algo muito prazeroso e eu tocava muito com eles. E como eles no
tinham exatamente a idia de como seria estar tocando junto, eu sempre procurei
tocar para eles e fazer uma base rtmica para que eles pudessem pegar uma carona
nessa base rtmica, mesmo fora da mtrica, com problemas de dinmica. O
importante que eles pudessem entender como navegar na msica. Como algum
que est aprendendo a nadar e voc d uma bia pr ele, antes de ele flutuar sozinho.
Ento isso foi importante porque eles j sentiam que estavam tocando, como se eu
fizesse a base e desse a eles a incumbncia de fazer o solo, o contraponto. E assim
ficou prazeroso, eles gostavam de estar comigo, e a o segundo momento foi atrair
mais jovens e recrutar os meus alunos para que essa base que eu fazia sozinho,
pudesse ser ampliada (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

E sua experincia como msico, produtor, empresrio e professor foi fundamental


para a construo da proposta que tinha o prazer como vetor das atividades e que acontecia no
processo das interaes cotidianas da ONG, considerando o contexto daqueles jovens e
crianas:

Eu j tinha um curso pronto de percusso. Como dono de escola, professor, enfim,


muitos alunos j profissionais, eu j tinha [a] aula de msica pronta. E eu s tive que
fazer aquilo que, como professor de aulas particulares de msica, eu j fazia com os
alunos: adequar-me ao jovem, ao mundo dele, ao processo dele. Quer dizer: como
ensinar esse menino que est na rua e fazer com que seja sedutor o processo de
ensino de msica? Ento, eu tive que fundamentar todo o caminho, num contexto
prazeroso que fosse atraente para o jovem, para que ele, ao estar no ateli comigo,
na sala de aula, fosse algo bom. Se no tivesse um bom argumento, ele no voltaria,
porque ele vivia - esse tipo de jovem da periferia, ele vive numa busca imediata de
prazer e dar resposta essa busca que fundamental. Teria de ser muito ldico,
teria de ser muito prazeroso, teria de ter um tamanho da aula que no fosse over,
teria de ser algo que estivesse permeado de outros atrativos. Ento no poderia ser s
ensino de msica, tinha que ter a parada para tomar um lanche, tinha que ter o vdeo,
tinha que mostrar instrumentos, tinha que tocar pr eles, tinha que tocar com eles. E
na aula sempre teve essa coisa de ter esse guia. , percusso um contexto musical
onde voc pode dizer que uma andorinha no faz vero mesmo, e tocar junto muito
legal (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Flvio assume claramente seu papel enquanto agente motivador em que a


concepo da educao musical est calcada na sua histria. Imprimiu uma concepo esttica
que no era redutora para obter um resultado rpido com meninos iniciantes. Pensou em
construir uma metodologia que abarcasse suas possibilidades musicais, artsticas e tcnicas. O
novo era o elemento que se apresentava para ambos os lados como ele mesmo relata:

A msica aqui algo que eu constru pr que ficasse conforme a minha vontade de
participar nesse contexto. Ento eu fui levando pr esse lado e eu falei: Eu vou
apresentar pr esses jovens, um monte de coisa que nem eu vi ainda e comecei a
comprar CD de pigmeus da frica Oriental, de gente do Senegal e ouvir coisas do
Brasil e punha pr eles ouvirem, ao mesmo tempo eu pegava artistas pop e
242

transpunha pr eles e a gente tocava. Era lindo isso e eu tinha muito tempo pr fazer
isso porque era tudo pequenininho, eu tinha mais tempo e hoje... mas, ento botava
uma msica assim de um artista, que tinha horn session, que tinha bateria, que tinha
baixo, guitarra... (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11-11-2004).

E nesse processo de criao de uma metodologia que fosse adequada ao grupo que
Flvio tinha naquele momento, ele foi buscando formas prticas que respondessem quela
demanda: eu escrevia ali pr eles como a gente poderia tocar aquela msica e comecei a
tocar, dava aula tocando pandeiro junto, aula de bateria e a comecei a dar aula de percusso e
comeou a aparecer gente pr ter aula de percusso, no s exatamente de bateria, ou seja,
extrapolou as possibilidades de seu instrumento base que bateria. E nessa construo, ele
sublinha que no conseguiria ficar tocando com eles um contedo muito simples, mas antes,
buscou uma prtica que no fosse uma reduo de sua experincia musical e sim uma
multiplicao dela: eu no fiz da minha msica, ou melhor, eu no usei a minha msica e
simplifiquei s para poder atingir os objetivos sociais. Eu no conseguiria fazer isso, eu no
parei a vida pr ajudar coitadinho, eu peguei o meu projeto pessoal de vida e enfiei todo
mundo dentro, seno no ia ser assim a msica aqui (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral, 11/11/2004).
medida que o nmero de integrantes crescia, novas demandas surgiram nas
diferentes atividades da AMM. No ano de 2000, Marquinhos, baterista e percussionista, foi
convidado para coordenar a percusso. Ele revela que, mesmo sendo graduado em percusso
pela UNESP e tendo experincia com a msica popular e escola de samba, se colocou
tambm na posio de aprendiz para poder entender a complexidade da parte rtmica do
repertrio da Banda, para poder ensinar em sala de aula:

Eu comecei a freqentar o projeto porque eu tinha que aprender o repertrio que eles
tocavam. E, embora eu j tivesse uma experincia bem grande em msica popular,
at em escola de samba porque tem uma linguagem de percusso aqui que muito
de escola de samba, a gente usa muito o repenique como regente do grupo. O
repenique que d a entradas e a sadas das msicas e na escola de samba tambm
est ento, essa linguagem, eu tinha mais ou menos j moldada na minha cabea...
Daquele tempo em que eu toquei na escola de samba da minha cidade. A eu
comecei a freqentar as aulas, na poca, tinha s a Sivuca que dava aula aqui e
comecei a freqentar as aulas dela, vinha nos ensaios etc e comecei a achar tudo
muito difcil de assimilar. Eu precisava primeiro entender o contexto. Qual era a
idia musical deles, e a partir da eu comecei a entender melhor o que acontecia
(CEMM_1, Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).

Quando assumiu sua funo teve dificuldades de entender toda a complexidade do


repertrio. Ele descreve seu processo de familiarizao:
243

Ento, primeiro eu tinha que entender qual era a funo de cada instrumento em
cada naipe. Surdo de primeira, surdo de segunda, surdo de terceira. E depois eu tive
que entender como era a nomenclatura das aulas, como que eles trabalhavam isso
nas aulas, porque eu via sempre uma turma pequena tocando um determinado
instrumento e uma turma enorme tocando outro. Depois eu entrava numa outra aula
e tinha trs turmas diferentes, uma tocando surdo de primeira, outra tocando surdo
de segunda, metade de cada lado da sala e uma outra turma menor tocando surdo de
terceira e a o pessoal tocando timbal, caixa e tamborim e eu precisava definir o que
era cada um e o que cada um fazia. Quer dizer, de tanto eu freqentar aqui, eu
comecei a memorizar um mondo de coisas que eles tocavam, s que eu ainda precisa
agrupar tudo no meu computador central. A um belo dia, eu estava assistindo uma
aula da Sivuca, e eu estava acomodado na verdade, porque eu estava assistindo
aula e eu j podia at dar aula nessa poca, j tinha um ou dois meses que eu estava
freqentando (CEMM_1, Marquinhos Silva, coord e professora de percusso,
10/11/2004).

E sua fala revela que a vivncia do cotidiano e o enfrentamento de desafios foram


pauta de sua aprendizagem do repertrio. Alm disso, emerge de sua fala o reconhecimento
de sua condio de professor-aprendiz.
Marquinhos, apesar de ser graduado em percusso, ser baterista de um grupo de
msica popular, tambm revela que teve que vivenciar esse processo de mergulho e
aprendizagem para compreender aquela complexidade sonora, mergulhada nas relaes
sociais que caracterizam o processo pedaggico. Pode, assim, realizar o trabalho de
coordenao junto aos professores e monitores das aulas de percusso. Alm disso, a
Associao foi o primeiro lugar em que ele deu aulas em grupo.

4.4.2 AS A ULAS DE PERCUSSO: A ORGANIZAO DOS CONTEDOS MUSICAIS


E METODOLOGIAS

A vivncia no cotidiano da AMM, focando meu olhar para o ensino e aprendizagem


musical nas atividades que envolviam a prtica de percusso, ensejou questionamentos sobre
a sistemtica da organizao dos contedos, da metodologia, do repertrio e da avaliao.
Todo esse contexto envolvia a compreenso de como, quem, porque e de que forma se
ensinava e aprendia msica ali. Entretanto, ia ficando claro que em torno desse processo
orbitavam tantos outros contextos que estavam conectados entre si. E que seria redutora e,
talvez, mutiladora uma anlise que levasse em conta somente o processo de ensino e
aprendizagem da msica. Assim, a organizao das aulas, dos contedos, o perfil de quem
ensina e de quem aprende s poderia ser entendido a partir das interfaces que se estabelecem
entre os diversos contextos, processos e interesses.
244

4.4.2.1 AS AULAS: O GRUPO COMO PARADIGMA

Aprender ou ensinar msica apresenta-se como uma prxis cognitiva (EYERMAN;


JAMISON, 1998) em que o contexto, o interesse em conhecer e o processo apresentam-se
como pilares da proposta pedaggico-musical. Quando, em 2002, fiz minha primeira visita
Associao, percebi um formato de aula que se ancorava na performance, no aprender
tocando em grupo o instrumento a partir do fazer, ouvindo e vendo. Existia uma sistemtica
de ensinar a aprender na qual a oralidade e a imitao se constituam em aspectos importantes
no processo. As atividades propostas na aula eram conduzidas pelo processo imitativo, atravs
da oralidade. O professor executa uma vinheta rtmica e perguntava que ritmo esse?. Os
alunos respondiam: funk, ax novo, samba-rock..
O grupo era composto de treze meninos e apenas uma menina nos tambores de
primeira (fazendo o ritmo bsico, nos tempos fortes). A disposio dos alunos era linear e
dividida em dois grupos um de frente para outro: uma linha com o professor e alunos mais
adiantados que tocam tambores, timbales, caixa, tarol e tamborim, fazendo os contrapontos
rtmicos mais complexos, de frente para os que tocam tambores de primeira e de segunda que
eram os naipes mais bsicos do grupo de percusso. Os que ajudam na aula eram alunos mais
adiantados que estavam por ali e entravam na sala para ajudar (segundo o professor Big).
Todos tocavam o tempo todo. A mudana de ritmos acontecia a cada nova vinheta e aspectos
como dinmica, andamento, sincronia, foram ressaltados nessa aula. Havia uma coreografia
bsica em algumas msicas como, no ritmo Drages, os meninos em que os alunos faziam
gestos giratrios, com a baqueta, lembrando a coreografia de escola de samba. No Maxixe a
coreografia se mostrou mais complexa, com deslocamentos laterais que exigiam mais
dissociao e habilidades.
O professor no ficava muito tempo repetindo ou fragmentando partes. Integrava os
passos com o ritmo e todos iam tocando e se movimentando como podiam. Big me disse que
os alunos haviam comeado fazer aulas h dois meses: So quatro meses de preparao e
depois eles vo para a Banda Show. Dois meses para ensinar o repertrio e dois meses para ir
para a Banda. Eles tm dificuldade de sorrirem, de se movimentarem e ficarem soltos quando
comeam; depois vo se soltando.
245

J em 2004, durante minha insero mais prolongada, assisti, sistemtica e


diariamente, s aulas de percusso, com diferentes professores e monitores e diferentes turmas
e horrios. Marquinhos, o coordenador da percusso esclareceu-me vrios aspectos do
trabalho realizado nas aulas de percusso e sobre a hierarquia no aprendizado dos
instrumentos da Banda. Assim, o tambor de primeira fazia o ritmo bsico e era o primeiro
aprendizado que se faz para participar da Banda. A percusso se constitui em atividade
obrigatria como uma segunda opo para a dana ou canto para todos os integrantes. O
objetivo do ensino da percusso capacitar o integrante a tocar o repertrio musical da Banda
Show, desenvolvendo a musicalidade e a tcnica para executar os instrumentos utilizados nos
naipes da Banda: surdo, caixa, timbal, tamborim, pandeiro, repenique e instrumentos tnicos e
eletrnicos.
A aprendizagem da percusso se inicia pelo surdo de 1, a seguir o surdo de 2 e
depois o surdo de 3 ou corte e para os demais instrumentos a escolha era aleatria. Essa
ordem tambm representa o nvel de dificuldade dos naipes dos instrumentos da Banda.
Entretanto, o aprendizado perde seu carter linear, uma vez que aprende-se tocando e ouvindo
outros naipes. Muitos alunos relatam que quando vo aprender o surdo de segunda, por
exemplo, j sabem o que, como e quando tocar. A estrutura rtmica dos naipes dos surdos de
primeira e de segunda simples. Entretanto, so apreendidos na complexidade de uma
estrutura rtmica que incorpora outros naipes da Banda como exemplifica a partitura do
Maxixe, no Anexo E.
No comeo, ouvir a rtmica sobreposta com vrios naipes tocando em todas as aulas,
me deixava confusa. Apesar de ser professora de msica, aquele jeito de ensinar era diferente,
e considerando que no sou percussionista e sim pianista, levei um tempo para aguar minha
246

percepo com aquele universo sonoro sempre apresentado com uma textura complexa e
vrias linhas rtmicas e timbres sobrepostos.
Pude, aos poucos, observar aspectos constituintes das aulas. Mas, para isso, tocar
junto com eles foi importante para aguar minha percepo desses processos sobrepostos. A
sala de aula de percusso para iniciantes e intermedirios se destina s aulas de surdo de
primeira, segunda e corte, sempre integradas com outros naipes do Grupo de percusso. Fica
no andar trreo e tem mltiplas funes, pois alm das aulas, acondiciona, em um mezanino,
todos os surdos e muitos dos equipamentos e instrumentos utilizados nos ensaios e
apresentaes da Banda Show. Serve, tambm, para a confeco e reparos dos instrumentos e
baquetas.
Os tambores so de diferentes tamanhos para atender s diferentes idades. Os
equipamentos de som, instrumentos da Banda, materiais para show, ficam fceis de ser
deslocados, pois tem uma porta garagem voltada para a rua que permite a entrada e sada da
v que leva os instrumentos e equipamentos quando h apresentaes externas. As caixas que
acondiciona os instrumentos e equipamentos so especiais, com rodinhas para fcil
locomoo e com estrutura para suportar longas viagens. Esses aspectos refletem que a ONG
possui uma tecnologia para montagem de shows com uma pauta bastante definida da logstica
necessria.
As aulas tm durao de cinqenta minutos, com 15 a 20 alunos, de faixa etria
diversificada. Os instrumentos dos iniciantes o tambor ou surdo. As turmas de percusso so
organizadas mediante uma lista de chamada, elaborada pela secretaria e preenchida pelo
professor ao final da aula, o que permite um controle de quem est freqentando as atividades.
So vrios horrios de aulas oferecidos tanto pela manh como tarde e as turmas se
encontram em diferentes nveis de aprendizado. As estratgias de ensino so semelhantes em
todas as aulas que assisti: a disposio dos instrumentos com o professor e alguns alunos mais
avanados demonstrando seqncia de ritmos e gneros do repertrio da Banda e os alunos
praticando quase que ininterruptamente; fazem rodada de exerccios individualmente quando
h dificuldades. A textura dos diferentes ritmos do repertrio da Banda complementada com
os alunos mais adiantados que participam das aulas.
No presenciei cobranas ou situaes que deixassem os alunos constrangidos. A
prtica, o fazer musical era sempre o mot. O que se clareava para mim, medida que
freqentava as aulas e ensaios da Banda eram os breques fragmentos rtmicos que eram
trabalhados como jogo de pergunta e resposta e funcionavam como chamadas vinhetas -
para cada gnero: o jongo, o funk, o ax velho, etc... o ritmo indicador do que vem a seguir,
247

exige a capacidade de discriminao e so padres que se repetiam a cada gnero. A levada


outra questo muito trabalhada nas aulas sendo que a repetio e a imitao eram processos
utilizados para a o aprendizado do rtmo. As aulas so momentos de disciplina e
concentrao, com rigor no horrio para comear e acabar.
Uma das caractersticas que vem se apresentando como uma constante nos contextos
j descritos anteriormente o parmetro da representao do coletivo ou do grupo.

Em relao a como os professores organizavam a proposta pedaggica, Sivuca me


esclareceu que h uma preocupao em discutir em grupo o planejamento das aulas, suas
questes problemticas, evidenciando um processo participativo na concepo e realizao e
acompanhamento das aulas, sempre com a anuncia de Flvio.

existe meio que um cronograma a ser seguido...toda uma esquematizao, por


exemplo, se eu no posso dar aula hoje, a pessoa que vai dar aula no meu lugar ela
sabe o qu que tem que ser dado hoje...Fazemos [o planejamento] em conjunto, eu, o
Big e o Marquinhos que so os trs professores responsveis pelas aulas de
percusso e a tem os monitores: a Cntia, a Adriana, o William e a Luciana. E a,
ns fazemos reunies quinzenalmente, pelo menos, e decidimos a maneira que tem
que ser dada a aula, o comportamento do aluno, o qu que os alunos esto tendo
dificuldade, quais os pontos positivos, porque de repente o que eu no consigo em
uma aula, o Big consegue e ele pode me ajudar e eu ajudar ele em um outro ponto.
(CEMM_1, Silvany Sivuca, ex-aluna professora de percusso, 22-11-2004).

Esse relato deu indicaes de como era feito o acompanhamento e a


avaliao do trabalho em que Flvio participa, acompanha o trabalho desenvolvido pelos
professores e monitores.
O processo pedaggico musical desenvolvido mediante um trabalho
realizado coletivamente onde a vivncia da experincia musical mediatizada pela
performance, que agrega estruturas ritmicas simples e complexas simultaneamente.
248

Considerando o formato das aulas, sempre em grupo com a presena de alunos em diferentes
nveis de aprendizagem, o iniciante toca o instrumento desde o primeiro momento imerso, em
um contexto musical contrapontstico e polifnico, tanto no aspecto timbrstico como no
rtmico. Analisando o contexto de ensino e aprendizagem musical, o grupo aparece como um
forte trao na concepo da proposta pedaggica cujo desdobramento se manifesta tanto no
discurso como na prtica das atividades musicais. Assim, como se aprende e se ensina msica,
a organizao das aulas, a metodologia, a performance, todas essas faces do processo, so
dinamizadas pelo coletivo, que transforma um ajuntamento de indivduos em um grupo com
interesses comuns. Flvio esclarece que essa concepo j imantava o incio das prticas
musicais na AMM, fruto de sua experincia como msico e professor de bateria.
O processo de implantao de uma metodologia na ONG teve vrias etapas, sempre
buscando perceber o grupo. Uma dessas etapas foi criar uma metodologia para ensinar, como
aquela historinha do anzol, da isca, da linha. Depois foi fazer com que eles se entendessem
como um grupo, que desenvolvessem uma identidade, um ideal conjunto, um sociabilizante
como grupo (Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004). Flvio enfatiza, ainda, que o prprio
conceito de professor e de aula foi se transformando, onde o grupo considerado o eixo
motriz de toda a dinmica que instala no processo:

a gente no era mais um professor de msica em sua casa dando aula para os jovens,
a aula j fazia parte de um contexto maior. A idia era fazer aulinha rapidamente pr
poder estar tocando com o grupo. O grupo sim... ensaiava na rua, o grupo jogava
bola, porque da eu j os levei comigo imediatamente. Eu acho que eu no s dava
aula de msica pr eles, eu acho que os coloquei dentro da minha vida. Eles tinham
total liberdade, tocavam minha campainha, assistiam minhas aulas com os meninos
do meu curso regular, saiam comigo, jogavam bola. s vezes me procuravam s pr
combinar alguma coisa, para pedir alguma coisa, mas eu notava que eles j se
consideravam um grupo. E a ns caminhamos para o batismo dessa histria que foi
a primeira apresentao [julho de 1996, em Campos do Jordo] (CEMM_1, Flvio
Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Esse conhecimento exige um mergulho no fazer prtico que s pode ser apreendido
no cotidiano dos ensaios, aulas e apresentaes. Tanto no ambiente das aulas como na rodinha
de amigos no ptio, o que se ressalta so as trocas em grupo. Do ponto de vista da estrutura
musical, o aprendizado e a performance esto imersos em um contexto sonoro complexo,
onde os alunos vivenciam uma prtica musical cuja textura tmbrica e rtmica que conduz ao
repertrio da Banda, como j foi mencionado. A metodologia aplicada em sala de aula tem
uma constante: o repertrio conduz as atividades das aulas e sempre envolve uma
complexidade rtmica maior porque se misturam os vrios naipes do Grupo de Percusso,
alunos com diferentes faixas etrias e nveis de aprendizado, o que propicia uma vivncia
249

musical com uma textura contrapontstica. A prtica isolada de uma linha rtmica de um
naipe, de um passo de dana ou mesmo de uma linha meldica do grupo s acontece no
sentido de se trabalhar um trecho, tecnicamente ou ritmicamente, que imediatamente se
incorpora a uma textura mais complexa executada pelo grupo.
Flvio comenta como o coletivo se apresenta como um parmetro nas atividades
musicais da ONG, no visando um virtuosismo, mas antes, buscando a realizao individual e
do grupo:

... fundamental e foi desde o incio, para que o integrante entenda, no aprendizado
de msica, que essa unio o que faz o produto final bom. Essa responsabilidade
com a sua parte que a gente muitas vezes aprende tocando em orquestra voc
tem o olhar do maestro, voc tem o olhar do outro companheiro que toca l s vezes
a mesma coisa que voc; se voc toca mal, isso tambm existe aqui, ento existe a
vontade de tocar bem, .tocar igual ao que toca bem ao seu lado. parte do
pertencimento. Quer dizer, o menino no toca bem por um ideal tcnico musical, ele
no quer ser um virtuose de um instrumento, ele quer tocar bem porque tocar bem
faz parte desse pertencimento, dessa identidade (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord.
geral, 11/11/2004).

O foco no jovem e a construo de um pertencimento em torno dos valores da ONG


mediatizado pela msica podem ser considerados como um dos eixos do processo
pedaggico:

aqui, na verdade, com essa questo do jovem e o pertencimento dele ao nosso macro, ele no tem a
chance de enxergar ele unicamente, ele tem que se enxergar em meio, fazendo parte de um
processo coletivo. Ento, ele no toca sozinho, ele no aprende sozinho e ele no constri sozinho.
A Banda faz sucesso porque ele toca o surdo dele l no cantinho, no meio de uma centena. Mas ele
tem que ter competncia, ele tem que ter a responsabilidade... entender que ele est incgnito l e
porque ele est em meio a muitos, ento essa responsabilidade uma responsabilidade ligada ao
pertencimento, quer dizer, identidade de ser dos Meninos do Morumbi. Estamos permeados por
um pertencimento muito parecido com o da escola de samba... Ento, eu acho que essa idia do
grupo, essa idia de orquestra, tambm, ela o centro da idia do ensino e do aprendizado de
msica aqui (CEMM_1, p. 12-13, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

4.4.2.2 AGREGANDO O CONHECIMENTO DA ESCOLA DE SAMBA AO


PROCESSO PEDAGGICO

Muito embora a Associao possa ser entendida como um espao constitudo e


legitimado para se ensinar e aprender msica, os processos advindos dos espaos informais,
como a escola de samba, emergem tanto no discurso como na prtica. Esse destaque para a
escola de samba torna-se significativo, pois se apresenta como um outro parmetro agregado
concepo pedaggica. Estudos realizados mostram como as escolas de samba representam
250

um espao dos negros, segregados no morro e favela, para expressarem sua capacidade de
organizao, de reafirmar sua cultura e se divertir (PRUDENTE, 2003; GONALVES, 2003;
PRASS, 2004). E tocar em grupo, como pressupe Flvio, no ficar buscando perfeio ou o
ideal esttico e tcnico. prprio da escola de samba onde os professores visam muito mais
o resultado global do que, propriamente, o processo individual de seu integrante.
Entretanto, Flvio reconhece que na AMM existem vrias categorias de
performances, de acordo com o nvel de execuo e quantidade de instrumentos que tocam
tem um grupo que toca, com competncia, todos os instrumentos de percusso da Banda
fruto do interesse e esforo individual que o integrante tem, o que significa que a
idiossincrasia e a alteridade tm lugar nesse contexto coletivo. Alm disso, Flvio destaca
que, por conta de uma demanda que surgiu, relacionada questo de gnero, tem um novo
tipo de integrante que d aos meninos da percusso a oportunidade de aprender a fazer
coreografia com o instrumento, antes uma atividade mais especfica do sexo feminino:
Ento, para isso criou-se um outro curso, uma outra demanda na dana, que curso de dana
para percusso, porque eles queriam aprender tambm a fazer as coreografias danando.
Por outro lado, pude notar que em 2004 o nmero de meninas que participavam das
aulas de percusso era bem maior do que em 2002, quando aconteceu a minha primeira visita.
Flvio criou arranjos especficos e composies que compe o repertorio da Banda
Show e todo esse repertrio conduz as aulas. Sua proposta pressupe uma ordem no
aprendizado dos instrumentos da Banda que no , necessariamente linear, mas h um grau
de complexidade de um naipe para o outro. Os ritmos do Grupo de Percusso foram sendo
estruturados com as idias de Flvio e dos professores que, de acordo com o avano do grupo,
foram acrescentando novas estruturas e novos naipes ao repertrio. Sivuca, que comeou a
estudar com Flvio, hoje um dos baluartes da Banda. Tornou-se uma percussionista
profissional e conta como se tornou parceira na criao dos arranjos, ao mesmo tempo em que
ela ensinava tambm aprendia e buscava novos olhares dentro e fora da ONG:

...primeiramente s tinha a bateria com surdos, timbales, caixas, tamborins e a


depois ns comeamos a colocar outros instrumentos... o Flvio, como msico, tem
o conhecimento de um monte de instrumento. Mas como eu vou estudando, eu tenho
uma viso do global e ele mais que eu. Eu, tambm, fui ajudando e falei Flvio,
vamos colocar isso aqui, isso aqui legal... , porque ns no fazemos assim?.
Tanto que hoje, ele j me d liberdade pr eu criar os ritmos. Por exemplo, j criei
dois ritmos, sozinha: o tamborim do Aquarela do Brasil, que super difcil pr eles
tocarem e um que est entrando agora pro repertrio, que da Sandra de S, Olhos
Coloridos. E ele j me deu liberdade de j estar fazendo esse ritmo... pr todos os
naipes da percusso. E a sempre que ele cria alguma coisa ele me pergunta o que eu
acho. E eu falo: Ah Flvio, vamos fazer assim!, sempre no conjunto eu e ele. At
mesmo nesse ltimo eu ele eu trabalhamos em conjunto. Eu e o Flvio, ns temos
um link muito grande na parte musical. Ns combinamos muito, at mesmo tocando.
251

s vezes ele olha pr mim e eu olho pr ele e a gente j sabe o que um e o outro vai
fazer. A gente meio que se conversa por olhares, musicalmente falando... eu estou
com ele desde que ele comeou...(CEMM_1, Sivuca, ex-aluna professora de
percusso, 22/11/2004).

Nessa mesma linha, pode-se notar no discurso dos monitores das aulas e
funcionrios, uma significativa representao positiva dessa experincia propiciada pelo
processo pedaggico-musical na AMM. Os entrevistados revelam que vivenciaram a
experincia de aprender a tocar e se relacionar com a msica de forma positiva. E,
geralmente, o contato deles com um instrumento musical e com um processo sistemtico de
aprendizageml foi propiciado pela ONG.

4.4.3 A ATUAO E A CAPACITAO DOS MONITORES MULTIPLICADORES:


ASPECTOS MUSICAIS E PEDAGGICOS

O fato da Associao ter em seu quadro de professores Sivuca, Marcelo Big e


monitores como Cntia e Luciana, revela uma caracterstica que parece ser um trao das
ONGs: formar multiplicadores que so fruto do trabalho realizado na prpria instituio. A
busca de um caminho para investir na capacitao dos monitores tentando suprir uma
necessidade de formao para esse tipo de atividade, comentado por Ligia que problematiza
a questo e reconhece as suas diversas dimenses. Um dos pontos ressaltados por ela a
necessidade de se criar espaos para a formao dos monitores que atuam na AMM. Sua
anlise foca dois aspectos importantes. Primeiro, o ligado s habilidades musicais que esto
sendo acompanhadas semanalmente por Marquinhos para uma atuao didtica mais
consistente nas aulas de percusso. E o segundo aspecto, trata-se das relaes interpessoais
que envolve

ele com outros jovens, dele com a criana, dele como indivduo, com outros, isso
tambm de alguma forma est sendo pensado e elaborado de que forma eles
poderiam receber essas habilidades pessoais que o que eles no tm. Em muitos
momentos eles so engolidos e ficam na mesma linha do jovem que ele ensina. Ele
no consegue se diferenciar. E quando ele fica no mesmo nvel, muitas vezes ele
briga por poder, ele no consegue quebrar essa coisa... (CEMM_1, Ligia Pimenta,
coord. de programas e projetos, 09/11/2004).
252

Nesse sentido, foi estruturado e desenvolvido o Projeto Tambor Embaixador


realizado nos anos de 2002 e 2003 com a participao de vrios alunos e professores da
AMM, sendo um momento e acontecimento bastante citado pelos participantes da pesquisa.

4.4.3.1 O PROJETO TAMBOR EMBAIXADOR: ECOS E REPIQUES DO


FUTURO: UMA EXTENSO DA AMM NAS COMUNIDADES

Se todo mundo pudesse passar um pouco do que sabe pro


prximo, aqui dentro mesmo seria melhor, todo mundo sabia
tudo, sairia tocando, todo mundo teria oportunidades para
apresentaes e ia ser bem melhor aqui dentro, entendeu? O
que eu posso fazer pelo prximo em termos da msica, ensinar
o que eu sei, eu fao. (Luciana, ex-aluna, monitora de
percusso)

O Projeto Tambor Embaixador foi realizado entre os anos de 2002 e 2003 em


parceria com o Instituto Credicard e teve como objetivo capacitar vinte adolescentes, alunos
participantes da AMM. Esse Projeto foi desenvolvido com o objetivo dos monitores da AMM
estenderem as atividades do Projeto para o interior de outras comunidades pobres, ensinando
instrumentos de percusso. Tal iniciativa propiciou aos jovens situaes para desenvolverem
suas habilidades artstico-musicais visando vivncias que possibilitassem a experincia de
ensinar instrumentos de percusso nas comunidades assistidas pela Associao. O foco no
processo coletivo foi um dos parmetros e na primeira etapa os jovens participaram de aulas
interativas, tericas e prticas, oficinas musicais, aulas de fotografia e informtica, alm de
vivncias grupais, workshops, seminrios, trabalhos de campo e sadas externas oferecidas na
AMM.
Os jovens passaram a atuar como multiplicadores com foco no campo musical
visando a elaborao de projetos coletivos de trabalho para atuao na comunidade atravs da
realizao de oficinas musicais nas comunidades de Paraispolis, Jardim Jaqueline e no Posto
de Orientao Familiar do Colgio Porto Seguro - POF, onde ensinaram para crianas e
jovens entre 7 e 17 anos os rtmos tocados pelo grupo artstico Meninos do Morumbi.
O objetivo desse projeto foi criar contextos de aprendizagem por meio da atividade
artstico-cultural de percusso, viabilizando o desenvolvimento humano e social dos jovens e
253

uma atuao pr-ativa nos contextos aos quais pertencem12. Outro aspecto vivenciado foi o
exerccio para a realizao do trabalho em equipe, que envolve a capacidade de trabalhar os
conflitos, de exercitar a liderana e de ampliar a perspectiva sociocultural e vivenciar
situaes de ensino e aprendizagem em que eles ocupavam o papel da pessoa que ensina. A
realizao desse projeto ensejou que os monitores exercitassem suas habilidades de planejar,
executar e avaliar o desenvolvimento dos trabalhos.
Nair destaca e esclarece como que esse projeto foi pensado e desenvolvido musical e
didaticamente, juntamente com Flvio e Ligia, para instrumentalizar os jovens no
conhecimento folclore afro. O objetivo foi proporcionar uma experincia na qual eles
iriam ser embaixadores do Meninos do Morumbi nas comunidades, saber qual a origem
dos nossos ritmos [...] que deu origem ao maracatu, ao samba, ao maxixe [...] foi um trabalho
feito de consulta aos livros, deles ouvirem e verem vdeos, para instrumentaliz-los. Nair
acompanhou a parte comportamental junto com a Ligia nas comunidades de Paraispolis e
Unio dos Moradores onde eles davam as aulas. Sua atividade focou os processos de como
lidar com as dificuldades de ensino e aprendizagem que aparecessem nos grupos (CEMM_1,
Nair, coord pedaggica, 17/11/2004).
Antes deles irem atuar na comunidade, Nair e Ligia preparavam atividades que
simulavam situaes como se voc estivesse [...] E sempre eles exageravam no papel do
aluno: o aluno indisciplinado, o aluno que interrompia o que estava acontecendo, que chegava
atrasado e como lidar com essas situaes. E essa preparao ensejava a reflexo sobre o
papel da cada um e as inmeras possibilidades de situaes que se podem encontrar. Segundo
Nair, os monitores levaram a proposta com responsabilidade e foi muito interessante ver o
respeito que eles tinham pelos aprendizes, pelos jovens, crianas que iam aprender; a
preocupao de saber se estavam aprendendo, destacando que foi uma experincia que
proporcionou um amadurecimento em vrios aspectos para todos os participantes.
Nair revela, ainda, que foram muitas as dificuldades para por em prtica esse projeto,
pois alguns jovens no tinham sequer o primeiro grau completo, tinham dificuldade com a
linguagem musical e, at mesmo, dificuldades comportamentais bsicas para se relacionar.
Entretanto, ela considera que

Eles executaram um trabalho muito bonito...passaram a ser lderes e vistos como


lderes pelos alunos, como personagens importantes que estavam ensinando msica
para eles.E eles acabaram, depois, trazendo os jovens aprendizes aqui para o Projeto.
Ento, eu acho que no era uma estrutura to grande e to forte de poder mudar uma
comunidade como Paraispolis que tem 70 mil habitantes. Mas eu acho que para

12
<http://www.meninosdomorumbi.org.br>.
254

eles serviu como uma aprendizagem que eles podem, de repente, desenvolver uma
atividade no futuro (CEMM_1, Nair, coord pedaggica, 17/11/2004).

E em relao ao que esse projeto significou para eles e para a Associao, Nair
enfatiza que muitos ...at mudaram o comportamento. Porque h uma inverso de papis:
eles passam de alunos a professores. E eles comeam a ter a viso de outra forma, da prpria
comunidade, do ensino, do jovem. Isso tudo porque eles passam a ser professores.

4.4.3.2 O PROJETO TAMBOR EMBAIXADOR E O TRABALHO DE


CAPACITAO DOS MONITORES

Luciana foi selecionada para atuar no Projeto Tambor Embaixador o que contribuiu
para sua atuao como monitora das aulas de percusso na AMM. Essa ao lhe oportunizou
um aprendizado importante e uma extenso das atividades da AMM em outros locais:

Fiz, fiz parte do Tambor e pr mim foi uma grande histria!... nossa, foi o melhor
Projeto que eu fiz. Foi importante, porque o primeiro obstculo era fazer uma ponte
entre as comunidades que eram trs: Jaqueline, Paraispolis e Porto Seguro com a
ONG aqui Meninos do Morumbi. O intuito era trazer as crianas que ficavam na
rua, saa da escola, no tinham o que fazer assim, no tinha atividades pr l e vir
pr c. E a gente ia at as comunidades e dava aula pr eles. Na segunda-feira a
gente ficava aqui no projeto aprendendo como lidar...(CEMM_1, Luciana, ex-aluna
e monitora de percusso, 21/09/2004)

Seu relato revela a metodologia e estratgia didtica utilizadas para realizar o


trabalho de capacitao, enfatizando que o aprendizado e a orientao de profissionais da
AMM foi um dos suportes para se desenvolver a parte musical e funcionava como um modelo
para que eles atuassem nas comunidades:

No ano de 2002, Ligia e Nair comearam o trabalho e foi ensinando a gente como se
comunicar com uma criana e aprendemos tudo. Tinha aulas de teoria, com o Beto
Caldas e a gente, tambm, j sabia todos os toques dos Meninos. E do jeito que a
gente aprendia aulas, a gente passava, que o que o que eu fao hoje. Tudo o que eu
aprendo eu passo... eu procuro passar pro prximo. A gente ia at as comunidades de
quarta-feira, dava aula, tinha dois horrios na comunidade de Porto Seguro, das
quatro e meia e outro das cinco e dez, a gente dava duas aulas l e o resto do tempo
era aqui no projeto de segunda e quarta. Aqui, a gente desenvolvia o trabalho de
como a gente ia atuar na comunidade (CEMM_1, Luciana, ex-aluna e monitora de
percusso, 21/09/2004).

E ela relata como, na sua percepo, eram organizadas as atividades para a


preparao das aulas nas comunidades e pode-se perceber que a interao interpessoal,
255

exerccios de auto-percepo e de percepo e conhecimento do contexto eram contedos


trabalhados, alm dos especficos musicais. Chegar l e dar a aula no era o mais
importante, em um primeiro momento, nesse trabalho que Luciana vivenciou. Outras questes
eram emergentes e necessrias para se preparar e pensar no trabalho em educao musical
especificamente:

Foi muito importante essa experincia, porque tudo o que a gente fez l, a gente
passa aqui. Mas, aqui mais fcil, porque l, a gente est na comunidade deles, eles
faz o que quer, assim em termos, e uma comunidade muito carente l, pequeno l o
bairro do Porto Seguro, mas Paraispolis j bem grande e a gente teve tambm
que, no s ir l chegar e dar aula, mas sim tambm conversar, ir nas escolas, fazer
uma prop.anda do nosso trabalho, [falar] que a gente ia passar l pr eles... nossa, a
gente trabalhou muito, fazia os cartazes, fazia as matrculas deles, a gente cresceu
muito nisso, criou uma responsabilidade maior e isso foi o ano de 2002 (CEMM_1,
Luciana, ex-aluna e monitora de percusso, 21/09/2004).

Cntia tambm participou desse Projeto e, em uma de nossas conversas, fala dessa
experincia, evidenciando que o processo exigiu dedicao, esforo e capacidade de envolver
o pblico alvo na proposta, como ela relata:

Fiz, fiz parte do Tambor, foi uma histria bem grande! Foi o melhor projeto que
eu fiz. Pr mim foi importante, porque o primeiro obstculo era fazer uma ponte
entre as comunidades que eram trs: Jaqueline, Paraispolis e Porto Seguro com a
ONG aqui Meninos do Morumbi. O intuito era trazer as crianas que ficavam na
rua, saa da escola, no tinham o que fazer assim, no tinha atividades pr l e vir
pr c. E a muitos a gente trouxe, assim, contando no geral, acho que a gente trouxe
cinqenta crianas e adolescentes. A idade de fazer essa parte era dos 7 aos 17. A
gente levava instrumento e todo o necessrio pr l. Tinha que achar primeiro uma
parte pr gente poder estar colocando os instrumentos, as crianas em uma sala
segura pr estar acontecendo as aulas (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e professora de
percusso, 18/11/2004).

Cntia destaca que vrios aspectos relacionados logstica do Projeto foram parte do
aprendizado: A gente correu muito atrs e teve primeiro que pesquisar nas comunidades
todas, independentemente de qual fosse, todas seguiram o mesmo processo. A durao da
procura da comunidade foi uns trs meses... Essa atividade implicou o refinamento do olhar
para aspectos da comunidade relacionados suas vrias dimenses e caractersticas. Foi uma
grande histria mesmo, at fico brincando com o pessoal l, tem gente da comunidade que
gostou e veio at mesmo sem a gente dar continuidade l, porque o nosso procedimento era
dar continuidade, fazer o Tambor 3, o que no aconteceu por falta de infra-estrutura.
Essa foi a primeira experincia de Cntia ensinando msica. E no foi fcil para ela
no comeo: Primeiro, assim, voc no sabe o que fazer, voc est l, tem que fazer... como
eu fui uma das escolhidas pr dar aula e eu j fiquei meio assim... eu fui escolhida e
256

amei...tava tudo preparado, era voc chegar e fazer, mesmo que no soubesse, que foi o meu
caso. Mas, foi na prtica que ela desenvolveu sua capacidade de ensinar, aprendendo com os
outros:

...Eu fui pegando o que eu aprendi, eu fui pegando dos outros que me ensinaram,
tanto no lado do grupo [do Tambor] quanto dos Meninos do Morumbi que a gente
j tinha entrosamento com o pessoal que dava aula, foi muito... difcil, praticamente,
mas deu tudo certo. Foi atravs desse Projeto que a gente teve [a oportunidade], que
eu batalhei bastante pr estar aqui hoje (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e professora de
percusso, 18/11/2004).

4.4.3.3 A FORMAO DOS MONITORES DA PERCUSSO NA VISO DOS


PROFESSORES

Marquinhos fala sobre a atuao dos monitores em sala de aula e, traa um paralelo
interessante entre o processo de aprendizagem que eles tiveram e sua prpria experincia de
aprender msica naquele contexto, na qual o destaque vai para o aprender ouvindo e da
importncia da formao no que tange ao aspecto socioeducativo de um trabalho dessa
natureza:

Os monitores so ex-integrantes. Agora a gente est com trs monitores dando aula.
A Cntia, o Adriano e a Luciana. Eles so formados aqui, eles aprenderam como eu,
ouvindo. A diferena que eles no tm a experincia que eu pude ter. At porque
eu sou muito mais velho do que eles. E, ento a gente resolveu fazer um curso de
teoria pr eles, eu estou dando esse curso segunda e quinta-feira pr eles darem uma
melhorada no repertrio didtico deles. E agora a gente vai comear... um encontro
com a Dra. Ligia e com a Nair, pr melhorar no aspecto social do trabalho com os
adolescentes, porque eles tm, praticamente a mesma idade dos alunos... (CEMM_1,
Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).
257

Sob o ponto de vista musical, Marquinhos considera que os monitores so


extremamente talentosos, por eles aprenderem tudo e ainda conseguirem ensinar o que eles
aprenderam, sem ter uma base terica! E destaca que para ele foi fcil de aprender porque
assimilava a parte rtmica com a parte escrita, ento eu memorizo... tem a memorizao de
ser muito mais rpida. Marquinhos faz uma avaliao como professor e msico que destaca a
capacidade dos monitores de superem barreiras de vrias ordens para conseguir realizar esse
trabalho de monitoria, com competncia, como ele mesmo coloca:

Eles passaram anos aqui, anos eu digo uns dois ou trs anos tocando aqui, e
conseguiram assimilar tudo isso. Alm de assimilar tudo isso, eles tiveram que, com
toda a fragilidade deles, a falta de conhecimento musical e de experincia de vida e
de convivncia com aluno, eles conseguirem passar todas essas informaes pros
alunos. Quer dizer, na verdade eles so melhores do que eu at, porque eu tive mais
tempo pr aprender, n, ento o que a gente tem que fazer s vezes, moldar um
pouco mais e falar: Olha, vai por esse caminho aqui, mas no que eu t querendo
dizer que voc est errado. Eu tenho um pouco mais de experincia e ento se voc
fizer isso aqui, vai ser melhor do que aqui.... Eles tm aceitado bem (CEMM_1,
Marquinhos Silva, coord. e professor de percusso, 10/11/2004).

4.4.4 O S P ROCESSOS DE O RALIDADE E A I MITAO : COMPONENTES DO


PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM MUSICAL

O processo de oralidade e a imitao ressaltam-se como componentes fundamentais


no processo de ensino e aprendizagem dos Meninos do Morumbi (MM). O repertrio dos MM
foi construdo aos poucos e do ponto de vista musical foi considerado a possibilidade que eles
pudessem estar respondendo s dificuldades. Assim, a oralidade foi uma das vertentes dessa
sistemtica. Entretanto, a oralidade, de acordo com as argumentaes de Flvio, no funciona
como um fim, mas um meio potencializado em uma proposio sistemtica de educao
musical:

Eu tive que comear ensinar e a gente hoje muito ainda atravs da oralidade. Mas
desde aquele primeiro dia de aula eu peguei caneta e partitura e tive que escrever e
foi fundamental porque hoje ns temos um monte de meninos que so monitores na
rea de msica e na verdade so meninos que no fizeram curso especfico de
msica fora daqui.... (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

A oralidade funciona como uma ponte para se trabalhar a prtica e contedos


musicais que sejam padro ou tenham algo para os alunos por meio do qual a ampliao se
constitua em algo sistmico e sistemtico. Flvio lana mo do recurso de pergunta e resposta
258

como procedimento didtico-musical para estimular a participao do aluno. Seus argumentos


revelam que ele reconhece a importncia do conhecimento musical, perpassando pela
estrutura da linguagem, sua esttica, sua complexidade para no reduzir a imitao a uma
prtica de mera repetio. Destaca, ainda, que a capacidade de entender os processos musicais
vividos contribui para que os alunos possam tornar-se multiplicadores da proposta:

Mas na hora de ensinar, tem que passar pela engenharia, voc no consegue passar
essa oralidade com eficincia se no for pensado academicamente antes, quer dizer,
voc ensina atravs da oralidade mas tem que fazer toda uma estrutura acadmica
antes, seno voc no consegue criar um sistema exatamente e fazer com que, no
final de um certo percurso, eles possam se tornar multiplicadores. Ento, hoje voc
tem um monte de menino que pode dar aulas a de percusso e ns tocamos 30
canes, porque eles na verdade entenderam, atravs da oralidade, at um certo
ponto, porque tamborim essas coisas comeam a ficar mais difcil, mas ao chegar
num determinado ponto no fim do repertrio, quer dizer, tocar todas as canes e
aprender todos os instrumentos, eles acabam absorvendo essa engenharia junto.
(CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Os depoimentos dos primeiros MM apresentam coerncia com esse pensamento de


Flvio. Claudinei revela nesse dilogo comigo quantos aspectos esto presentes no processo
de aprender por ouvido e como o modelo apresentado por Flvio foi fundamental para que
eles tocassem:

O Flavo pegava muito no nosso p assim na poca, que ns ia pro... ficar olhando,
no ouvido e no por ler e ele passava l escrevendo no quadro: Ah l, ento no sei
o qu, toca isso!. A chegava pr tocar e ns no tocava. A ele ia l e tocava e
tocava, porque ns ouvia. Ficava ouvindo e olhando s, ah... esse tempo tal, um,
dois, trs... e a eu entrava no tempo. Ele ficava puto com ns por causa disso, que
ele queria que ns lesse mesmo! E a ns tinha que ir l e ler e tudo. Ento aprendi
lendo e ouvido. Mais por ouvido... voc lendo mais difcil. Porque eu estou
ouvindo um swing ali, eu consigo, tipo, pegar o ritmo e pegar, entendeu? Demora
um pouquinho, mas voc pega, voc desencana no negcio e pega. Mas, se voc for
mesmo pr ler... eu sou meio travado nesse negcio de ler msica. Mas eu tento, vou
empurrando com a barriga (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).

E nesse processo ele conta quantos instrumentos aprendeu e como foi se envolvendo
com a msica atravs de uma ao performtica emoldurada por um contexto significativo
para ele que no havia tocado nenhum instrumento musical at ento:

Nunca, nunca tinha visto na minha vida. Instrumento eu via nas escolas de samba, a
eu ficava vendo os caras na televiso, mas no achava to legal e nem me
interessava muito por tocar, entendeu? E nem gostava. Mas depois que eu comecei a
tocar, meu, nossa, l na rua, tocava ali na rua ali l embaixo [na antiga sede], a que
era mais melhor ainda. A que eu comecei a tocar. Comecei tocando com o caxixi de
madeira, com o caxixi eu fiquei uma semana, nem uma semana, fiquei uns cinco
dias com o caxixi e do caxixi j pr um... que era o rebolo de 16, que era um
pequenininho, que era segunda e da eu fiquei mais ou menos um ms nisso a,
mudei e j fui pro corte e do corte j fui pro tamborim e a eu fui mudando..hoje toco
259

surdo de primeira, segunda, terceira, toco o timbal, sei tocar alguma coisa do
tamborim... (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).

Silvinha lembra que aprender a tocar os instrumentos da Banda foi natural: a gente
fazia as aulas, antigamente era mais gente por salas, eu aprendi a tocar de ouvido porque a
gente ensaiava sempre e s foi aperfeioando depois... porque era o mesmo toque sempre. A
gente sempre ficava l danando mas ficava olhando a percusso. Ela destaca que aprendeu
muitos toques com o o pessoal que j tocava, interagindo. E nesse continuun do cotidiano
da ONG foi se construindo como integrante da Banda, enfrentando os desafios.
Pavilho reconhece que aprendeu a ler partitura, mas destaca que aprender por
ouvido foi um recurso muito importante:

No comeo era s ouvido mesmo, porque eu no sabia ler, no tinha noo de


partitura e tal e a era s ouvido. Olhava os outros fazendo e fazia igual. Hoje,
msico tem que ter ouvido. a parte principal do msico... tem que ter uma noo
de timbragem, super importante... (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e
sonorizao, 23/11/2004).

4.4.4.1 PROBLEMATIZANDO ORALIDADE E IMITAO NO ENSINO E


APRENDIZAGEM MUSICAL

Embora a questo da oralidade e imitao, seja um processo reconhecido por muitos


professores como legtimo para se ensinar e aprender msica, Tio Magno, professor de
bateria, relutante em aceitar sem questionar muitos aspectos, evidenciando um conflito com
a concepo pedaggica. O fato dos alunos tocarem o instrumento, e at mesmo improvisarem
no denota para ele que estejam construindo um conhecimento. Para ele, a nfase est no
condicionamento, como ele me disse em nossa conversa:

TIO MAGNO O que condicionamento? [...] Voc pode ver muito bem um
garoto tocando muito bem um tamborim ou um pandeiro e achar excepcional, mas
eu peo pr ele fazer um bolero, uma valsa, ele no sabe o que . E o msico no
isso, o msico ele est apto a tudo.
MAGALI Mas a proposta do projeto no formar msico, ento...?
TIO MAGNO Mas ento... a ento qual seria a proposta? s dar esse lazer
nesse tempo da criana? E sua formao? isso o que eu quero dizer! E a sua
intelectualidade, onde est indo? A sua personalidade? Ns temos, ns damos muito
lazer a eles, eles tm uma mordomia muito grande tanto na alimentao como no
prprio divertimento, mas pouco conhecimento, porque no exigido. o caso do
ingls; ns temos ingls, mas so poucos os que se aprofundam. Compreende? Ento
nem ns exigimos de que ele estude e nem os pais e nem a escola l fora tampouco.
260

Assim est nossa sociedade. E como estou dizendo, a grande dificuldade que eu
senti aqui, o que eu chamo preguia dentro da nossa sociedade, de querer
raciocinar, de querer estudar, de querer ler. Eles querem fazer as coisas imitando,
imitando. Fazendo aqui como se fosse uma coisa descartvel e a msica no isso,
n. conhecimento em cima de conhecimento. Para voc ter a idia do que eu quero
dizer, eu t te falando pr voc com grande honestidade, grande honestidade, sem
um tipo de vaidade mesmo em meu corao (CEMM_1, Tio Magno, 17/11/2004).

A leitura e a escrita musicais so valores importantes para ele no que tange idia de
ensinar a aprender msica. um paradoxo que se apresenta nas concepes pedaggicas do
corpo docente. Mesmo se tratando de msica popular, a fala de Tio Magno marcada pela
crena de que saber msica significa saber ler msica e seu esforo como professor parece se
voltar para desenvolvem os alunos a capacidade de adquirir autonomia e criar:

Porque eu ainda vejo crianas de 13, 15 anos com tanta dificuldade de pensar, que
msica matemtica e o pouquinho que eu quero transmitir pr eles, passa a ser uma
dificuldade quando ele comea a pensar. Eles gostam de fazer coisas imitativas!
Voc primeiro faz e eles repetem o que voc faz. E eu aqui, como msico, eu ensino
a msica e peo para eles pensarem para poder criarem (CEMM_1, Tio Magno,
17/11/2004).

Esse valor da leitura musical, imprimindo um atributo essencial para se entender a


identidade do msico, emerge tambm na fala de Big, um professor que conduz as aulas com
competncia, valendo-se de seu conhecimento prtico dos ritmos, dos estilos e principalmente
de sua capacidade performtica, pois toca vrios instrumentos e tem experincia de palco.
Esse aspecto tem sido discutido no campo da Educao musical. Arroyo (1999) toma
como referncia a anlise comparativa de quatro sistemas de ensino e aprendizagem musical13
feita por Trimillos (1998) e destaca que a notao musical

um aspecto crtico da cultura erudita europia, por ser indispensvel no processo de


criao e transmisso cultural dessa msica. Para a cultura da msica popular, a
notao seria desejvel e at mesmo casual, por no ser determinante no processo de
criao e transmisso de tal msica; ler e escrever msica dispensvel (ARROYO,
1999, p. 227).

13
em contextos distintos Hlau, Musikhochschule, Maystro e Ryu-h feita pelo etnomusiclogo Ricardo
Trimillos (1998), anlise focalizando aspectos crticos e casuaisdas culturas musicais s quais aqueles sistemas
esto atrelados. (ARROYO, 1999, p. 277).
261

4.4.4.2 OS PROCESSOS DE IMITAO E ORALIDADE NA FORMAO DOS


MONITORES

Cntia lembra detalhes de como foi seu incio de aprendizagem na Associao,


destacando que foi do bsico

....Como todo mundo comea hoje, do surdo de primeira, vem as tcnicas, como
segurar o surdo, posio de baqueta, como colocar talabaque, postura que o
principal, n, que o surdo no momento que a gente pega assim, levinho, mas
conforme vai passando, ele vai pesando, porque voc vai colocando ele na posio
certa. A eu passei pelo surdo de primeira, so seis naipes: primeira, segunda,
dezesseis, corte, caixa, timbal e tamborim. A eu passei por todos, praticamente, eu
hoje fico mais no tamborim e a foi indo. (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e monitora de
percusso, 18/11/2004).

Luciana, monitora das aulas de percusso, j assume com competncia as classes dos
iniciantes e intermedirios. Adota o formato de aula que experienciou na prtica. Aprendeu a
tocar todos os instrumentos de percusso, inclusive os tnicos. Toca na Banda e, nesse
dilogo, relata como foi seu processo de aprendizagem:

Nem sabia o que era surdo, no sabia diferenciar nada. Depois de um tempo que eu
fui vendo que msica no difcil, basta voc estudar. E eu no tinha vontade
nenhuma pela msica e depois que eu entrei aqui nos Meninos do Morumbi, quis me
aprofundar mais e agora no ano que vem at pretendo fazer faculdade de msica.
Quando eu entrei, entrei fazendo o surdo de primeira que o que todo mundo
comea a fazer. A depois aqui surdo de segunda, mas eu nem aprendi o surdo de
segunda, j fui direto pro corte j, porque antigamente era mais fcil. Quando voc
tem vontade voc aprende mais fcil, se interessa, voc vai pegando de ouvido
mesmo, porque aqui muito do ouvido (CEMM_1, Luciana, ex-aluna e monitora
de percusso, 21/09/2204).

Essa fala destaca um processo ou um recurso para uma forma de aprender que vem
sendo discutida e pautada por muitos educadores musicais considerando a sua freqncia e
consistncia nas pesquisas acadmicas realizadas.
A oralidade, o aprendizado pelo ouvido, foi uma constante nos depoimentos dos
todos os entrevistados que aprenderam percusso l e que faziam parte da Banda. Luciana
aprendeu a ler partitura e a tocar todos os instrumentos de percusso da Banda. Fala com
simplicidade sobre seu processo de aprendizado e ressalta a importncia da oralidade e da
imitao no seu desenvolvimento de performer e como isso incorporado na dinmica das
aulas. Luciana fala que aprendeu muito de ouvido porque aqui a gente no estuda muito a
teoria, nas aulas mesmo tudo prtica, s de ouvido... assim, toca no dois, no quatro, so
tantos toques e voc tem que pegar, vai pegando. E explica que o tempo na msica
262

dividido em quatro o compasso e a voc vai tocar no dois e no quatro. Como exemplo,
ela cita como aprendeu tocar o surdo de primeira no ritmo do samba: a voc toca 1, 2, 3, 4;
1, tum [tocando], 3, tum e a voc vai tocando no dois e no quatro, pegando de ouvido. E a
depois eu aprendi o corte, que o surdo de terceira.
O destaque na fala de Luciana que sua ateno para aprender a tocar os diferentes
ritmos do repertrio foi centrada no ouvir e perceber a pulsao e nos tempos do compasso.
Durante minha insero, ao participar das aulas de percusso, o processo foi ficando explcito
de como, o que e de que forma eles aprendiam.
Cntia conta: muitas vezes eu j pensei em desistir porque eu achava que ia ser
difcil... a parte terica, revelando que essa foi uma dificuldade no seu processo de
aprendizado. Tocar somente de ouvido parece ter uma minimizao do papel do msico e ler
e tocar com partitura, ler e escrever a grafia musical significa uma condio importante para
ser monitora:

Hoje eu j estou mandando bem, assim, em algumas partes. Mesmo antes de estar
virando monitora... eu tentava escrever partitura sozinha, muitas vezes acertava...
porque voc tocar de ouvido a pior coisa. A gente at brinca que pegar as coisas de
ouvido burrice... Porque voc, por mais que voc saiba aquele som, voc pegar
por ouvido, voc vai tirar ele certinho, mas na hora de voc passar pr partitura, no
vai sair... voc ouviu uma coisa e vai escrever outra. E acontece isso comigo quando
eu escuto uma coisa assim, que eu vou passar pr folha, totalmente diferente. A a
gente vai pegando um pouquinho, mas a melhor parte a teoria... porque agora no
sei se porque eu j estou aprendendo mais, mas pr mim pegar ela melhor...
montar qualquer som.... pr tocar em surdo, timbal, caixa, teoria bastante
importante (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e monitora de percusso, 18/11/2004).
263

Alm das aulas de surdo, pude ainda observar as aulas de caixa e timbal conduzidas
por Sivuca. O trabalho em sala segue a mesma dinmica das aulas de surdo, entretanto, nessas
turmas mais adiantadas, h uma maior exigncia tcnica, de condicionamento fsico e espao
para improvisao na roda do grupo. Prevalece o processo da oralidade no ensino e
aprendizagem por imitao em que a repetio realizada com ateno sonoridade, preciso
rtmica e tcnica para atingir o nvel de exigncia colocado por Sivuca. Ela utiliza vrias
estratgias como a alternncia equilibrada das mos segurando as baquetas e praticando,
lentamente (D (Direta) DE (Esquerda) D DEDE em duas clulas de quatro semicolcheias)
para depois ir acelerando at chegar no andamento da msica ou gnero trabalhado. O
movimento do corpo
solicitado para que
o vivenciar o ritmo.
Os alunos parecem
no ter vergonha de
errar, mesmo quando
cada um tem que
fazer o ritmo sozinho
na roda do grupo e
improvisar, sobre o
modelo estudado. O
pulso e o andamento
eram ressaltados
como parmetros essenciais na execuo. Errou continua, vocs esto aqui para aprender,
no tem que ter vergonha. PULSA! diz Sivuca. Tocar caixa significa j estar em um dos
estgios mais avanado na Banda. Os padres rtmicos so complexos e exigem uma tcnica
apurada de extrao das inmeras possibilidades tmbricas do instrumento.
O processo de imitao funciona na AMM como um dos eixos condutores do
processo de aprendizagem musical sistemtico no trabalho desenvolvido pela ONG. Mas, o
carter ldico est em evidncia no processo pedaggico-musical porque os jovens expressam
prazer por estar naquele espao, quer seja tocando, aprendendo algo, representado a AMM
nas apresentaes ou encontrando-se com os amigos.
264

4.4.5 A BANDA SHOW

uma Banda! Eu tenho uma Banda, eu no sou o padrinho


de um projeto social...
Flvio Pimenta, regente da Banda.

4.4.5.1 ASPECTOS FORMAIS E MUSICAIS

A Banda Show Meninos do Morumbi (BSMM) o resultado do trabalho realizado


nas aulas de canto, dana e percusso. Como j dito anteriormente, constituda pelo Grupo
de Percusso, pelo Grupo Vocal Feminino e pelo Grupo de Dana. O repertrio executado nos
ensaios e apresentaes formado por msicas folclricas do Brasil e da frica, do universo
pop, dos cultos afro-brasileiros e composies prprias. O Grupo de Percusso integra os
alunos que freqentam as aulas de percusso, professores, monitores e Flvio Pimenta, que
alm de reger a Banda, executa uma gama de instrumentos tnicos e eletrnicos.
A composio dos instrumentos de percusso utilizados pela Banda compreende os
surdos, timbal, caixa. A estrutura da Banda a seguinte: a base composta pelo surdo de
primeira, o surdo de segunda e o corte. O surdo de primeira o bsico que comea a trabalhar
com os tempos fortes; o surdo de segunda j trabalha nos contra tempos; e o surdo de terceira
une os dois e faz o contraponto. Sobre essa base se estruturam as caixas, os timbales, os
tamborins, o ganz, o tambor de mina; e os chamados instrumentos tnicos tais como: congas,
shakers, agog, atabaque, timbales, doll, djembe, alfaia, pandeiro, talkindrum, guirro,
zabumba, clave, tantan, tringulo, cowbell. Tem, ainda, as esculturas sonoras (criadas pelo
professor de escultura, Tio Banks), bateria eletrnica, gongos, e muitos outros executados por
Flvio em sua ilha, de onde rege a Banda. Todos estes instrumentos enriquecem os arranjos
musicais que resultam em um repertrio caracterizado por ritmos afro-brasileiros entre os
quais se destacam: o jongo, o maracatu, o funk, o samba-enredo, o samba-de-roda, o maxixe,
a marcha-rancho, o ax, a salsa, o aguer, o maculel.
Os dois CDs, gravados pela Banda, registram o repertrio que traz canes e ritmos
tipicamente brasileiros e afro-brasileiros como: o jongo, o maracatu, o funk, o samba-enredo,
o samba-de-roda, o maxixe, o ax, a salsa, o aguer, o maculel etc, ritmos que resgatam as
razes da msica brasileira. O resultado do trabalho musical desenvolvido h seis anos por
265

Flvio Pimenta est mostra no CD oficial do grupo, gravado em 2003. A apresentao do


encarte desse CD (Anexo F) traz a ficha tcnica e as letras de todas as msicas.
Algumas composies so fruto de um trabalho coletivo de criao, envolvendo os
participantes da Banda e a letra, reporta-se a aspectos do cotidiano deles fazendo referncias a
alguns nomes de lugares, pessoas que fazem sentido para eles Quadra do Tio Maral,
Chupeta, Sivuca como mostra a composio Maxixe (Vide faixa 5, Anexo C) resultando em
um carter danante. A letra da composio Salsa aborda a identidade de ser Meninos do
Morumbi (Vide faixa 6, Anexo C) reportando-se ao carter afro-latina da salsa cubana. O
Maracatu (Vide faixa 7, Anexo C) traz na letra e no ritmo a tradio de uma manifestaao
cultural tambm afro-brasileira. Esses exemplos ilustram o resultado do trabalho musical
realizado na AMM.
As gravaes do CD, foram feitas no Mosh Studios, um dos maiores estdios de
gravao de udio do Brasil, refletindo um padro profissional no trabalho realizado. A
produo executiva e artstica de Flvio Pimenta, que ressalta que o objetivo do CD
mostrar a Banda como um grupo artstico, reforando a idia de que a proposta pedaggico-
musical est voltada para uma perspectiva de valorizao da expresso artstica, essencial para
a construo da identidade individual e coletiva.
O Grupo Vocal
Feminino tem a direo da
Regente Mrcia Othani (Maru)
interpretam canes do folclore
brasileiro e africano, como j
mencionado por Flvio
Pimenta. J as coreografias
possuem como base a dana
tnica e so frutos do trabalho
da professora Vera Oliveira,
coordenadora da rea de dana
na Associao.
Segundo Flvio, a Banda j fez em torno de 500 shows no Brasil e na Europa
(Inglaterra e Frana) desde 1996. Apresentaram-se em teatros e festivais no Brasil e no
exterior (Festival de Windsor, Queen Elizabeth Hall, Can Street Festival - South Bank, Royal
Festival Hall, Po Music, Credicard Hall, Alpha Real, Teatro Municipal, Sala So Paulo,entre
outros) e j se apresentaram com grandes nomes da msica brasileira e internacional como
266

informa o site: Orquestra Jovem das Amricas, David Fanshawe/ African Sanctus, Marcelo
Bratke, Tnia Maria, Cidade Negra, Olodum, Ivete Sangalo, Lulu Santos, Orquestra da TV
Cultura, Maestro Nelson Ayres, entre outros14. A Banda Show realiza espetculos a convite
de empresas privadas para eventos institucionais e possuem os requisitos dos benefcios
fiscais vinculados esfera federal pela Lei Rouanet do Ministrio da Cultura.

14
Cf. no site da AMM <http:// www.meninosdomorumbi.org.br>.
267

A formao da Banda no fixa, considerando que trata-se do locus da performance


coletiva voltada para proporcionar uma experincia esttico-musical para todos os integrantes
e tambm com o objetivo de realizar espetculos externos, pensados para diferentes espaos e
contextos, que resulte na projeo da ONG ligada fortemente sua identidade.
Aprender tocando, ouvindo, vendo, repetindo, imitando a situao concreta nos
processos desenvolvidos nas aulas. Assim tambm so os ensaios da Banda Show, uma
estratgia coletiva de desenvolvimento das habilidades musicais e artsticas, que sintetiza o
resultado sonoro e corporal que so praticados nas aulas. So realizados cinco ensaios
semanais, de quarta-feira a sbado, atendendo aproximadamente 1.800 integrantes, agrupados
em torno de 300 crianas e jovens em cada ensaio, que vivenciam, atravs da prtica musical
e da dana, todo o contedo do show. Quando eles integram a Banda j esto familiarizados
com a totalidade performtica produzida pela msica e pela dana.
Flvio dirige a Banda em todos os ensaios realizados durante a semana e em todas as
apresentaes pblicas. Sua funo essencial uma vez que alm de reger a Banda toca os
instrumentos tnicos e eletrnicos, incrementando com contrapontos complexos toda a trama
rtmica e timbrstica resultante dos integrantes que tocam nos seus diferentes nveis de
dificuldade. Cumpre as duas funes com competncia musical e didtica, mas, sobretudo, o
faz com uma entrega singular para a msica invocando uma energia contagiante que
permeava a todos. Quando se refere ao sucesso e reconhecimento alcanados pelo resultado
musical da Banda, Flvio destaca a concepo sociopedaggica e coletiva que ancora o
trabalho, neste texto que foi extrado de uma matria disponibilizada em uma revista virtual:

Dentro desta viso, desenvolver a capacidade de trabalhar em grupo uma das


metas mais importantes, consubstanciada na atuao do Grupo Artstico, centro,
objetivo e meta de toda a ao educacional realizada dentro da nossa associao.
Atuar dentro de uma banda exige o desenvolvimento de uma competncia
individual: a habilidade de tocar um instrumento, danar e cantar por exemplo,
mas, sobretudo, exige a competncia de se articular com a ao dos outros, numa
atividade comum. E, participar dessa Banda significa a conquista de um ambiente
de validao, de reconhecimento social, que fortalece a condio de cidadania
(PIMENTA, 2005).
268

4.4.5.2 O RITUAL DO ENSAIO

engraado isso...tem certos pontos, assim, que toda vez que eu


falo dos Meninos, que ainda me muito, sabe...(silncio,
emocionado e chorando) ainda me deixa emocionado, eu fico
mesmo! Essa emoo do ensaio ...porque na verdade ela ...eu
j ensaiei a vida inteira isso a com bandas, orquestras, com
msicos e nunca foi assim. Ento, o ensaio pr mim, ele no s
um ensaio artstico, ele uma missa, acho que isso, eu entendo
ele, meio como uma missa... uma ode quela coisa holstica,
onrica... isso, como se a comunidade daquela... dessa nossa
morada que se reunisse pr dizer amm histria toda, eu acho
que isso. (Flvio Pimenta)

O ensaio comentado por Tio Magno, o professor de bateria, denota o reconhecimento


do papel de Flvio como condutor, arranjador e inovador. Tambm revela o prazer que ele
tem em participar do ensaio, reforando o carter ldico de festa que permeia os ensaios. Mas,
o destaque para o ensaio enquanto um laboratrio de criao, ensino, aprendizagem e
avaliao, emerge no dilogo que funcionou, para mim, como uma avaliao da minha
percepo sobre aspectos da estrutura da Banda:

Eu gosto do ensaio, porque ali aonde a gente vai vendo que um vai se destacando
do outro, pr tocar, pr poder fazer as baladas, as apresentaes a fora. E tambm
nos ensaios de vez em quando, eu tenho que se voc j teve a nossa presena, voc
269

v que a maior baguna de vez em quando eu dou um grito: E como que


rapaziada!? (risos). A todo mundo silencia. A presta mais ateno. esse tipo de
trabalho, sempre corrigindo um que est tocando errado, porque tem vrias partes,
do tamborim, a parte do timbal, tem a parte da caixa, tem o primeiro surdo, o
segundo e o terceiro. Cada um fazendo umas frases diferentes e aqueles que vo
tocando errado, a gente obrigado a falar pr Sivuca; a Sivuca fala para os
professores, corrigirem na aula (CEMM_1, Tio Magno, 17/11/2004).

Fui entendendo
como e porque as questes
relacionadas com o ensino e
aprendizagem musical eram
conduzidas pela performance
da Banda Show. As aulas, os
ensaios, as aulas de dana,
eram espcies de rituais
preparatrios para o
espetculo da Banda. Nesse
aspecto, cabe lembrar o
estudo realizado por Prass (1998) em que pode-se perceber uma aproximao de compreenso
desses processos:

...fui introduzida na questo de que na bateria no h separao entre situaes de


aprendizagem e de performance. Na realidade, essa sobreposio de vivncias
festa e ensaio geram aprendizagens de diferentes tipos. Mais do que isso, festa e
ensaio podem ser pensados como rituais que servem para enfatizar, destacar
(VIANNA, 1997, p. 59) smbolos significantes para interpretao da cultura de
escola de samba. (PRASS, 1998, p. 101).

E cada ensaio funciona como um laboratrio para a Banda, momento para se criar arranjos
porque as novas idias emergem no ato de tocar. Assim, Tio Magno diz que cada ensaio
diferente do outro, apesar do repertrio ser o mesmo. E em relao ao processo dinmico de
criao favorecido pelos ensaios, Flvio corrobora a fala de Tio Magno que mesmo tocando o
mesmo repertrio prope coisas novas: ...a gente est sempre mudando, isso tambm faz
parte do artista, por mais que seja a mesma cano, no mesmo lugar, ela no igual, no ?
Ento, um ensaio nunca igual ao outro e eu sempre procuro inovar na minha interpretao,
sabe, passar isso e a gente tem jovens assim (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral,
11/11/2004). Assim, cada ensaio uma performance onde a dimenso esttica tem vrias
interfaces com a msica, a dana, o movimento e a sinergia de tudo isso. Sempre que assistia
270

a um ensaio sentia essa sinergia e a Banda como um dnamo poderoso potencializado pelas
pessoas fazendo msica, tanto as que so parte dela como as que assistem, corroborando o
conceito de performance de Small (1995) e Blacking (1995), na perspectiva de que fazer
msica trata-se de um processo interativo entre pessoas.

O ensaio comentado como um momento singular, envolto em uma emoo, energia


e prazer. Big, diz: sinto uma energia muito boa. Uma energia muito positiva. aquilo que eu
falei no comeo pr voc, a msica pr mim uma terapia, um xtase! muito bom! Nossa,
muito bom, muito bom tocar!.
Luciana destaca que entrou na Banda e na hora j teve que ir pegando com a ajuda
dos colegas que a ajudavam dando dicas dos ritmos e dos toques mostrando na ao da
prpria performance. E essa situao coletiva de unio e ajuda dos colegas permite que se
aprenda e construa o conhecimento da semntica dos naipes dos instrumentos de percusso,
do repertrio, dos ritmos, dos breques e das vinhetas que estabelecem a seqncia das msicas
da Banda. Ela conta que o aprendizado construdo na sua vivncia de tocar na Banda a faz
desenvolver a capacidade de pegar o bonde e sair andando, pois antes no havia aulas
separadas s para iniciantes: O pessoal todo sabia, voc entrava l e voc tinha que ficar l
no meio e o professor que chegava em voc e dizia: agora dois, agora um toque, agora
assim..., voc tinha que ser esperto e ir pegando, entendeu?. Esse processo descrito por
Luciana destaca a prevalncia do processo de imitao e oralidade semelhante ao aprendizado
dos ritmistas de escola de samba, construdo oralmente [em que se desenvolve] saberes
271

distintos daqueles normalmente enfatizados em cenrios institucionais de Educao musical,


onde a escrita ocupa lugar de destaque (PRASS, 1998, p. 178).
Claudinei se esfora para os que querem permanecer na AMM se envolvam com a
msica: Ah meu, voc tem que comear devagar, por degrau, cada degrauzinho, tenta comear
pela msica, ajudar l em cima dos instrumentos, pr ser alguma coisa assim. Pr voc ser um
msico mesmo, voc tem que ficar l na percusso, l dentro, l o seu lugar. Falo isso, pr
eles v isso, mais a msica, entendeu? (CEMM_2, Claudinei, manuteno, 22/11/2004).
Outro aspecto que ressaltado na fala dos entrevistados que participam da Banda a
questo do status, reconhecimento e visibilidade de subir no palco, tornando-se protagonista
de um espetculo que incide positivamente na auto-estima e construo da identidade coletiva
e individual. Assim, participar da Banda significa o coroamento de esforo e talvez o
enfraquecimento do estigma invisibilidade social que incide na juventude pobre da periferia
urbana. Luciana destaca:

A Banda pr mim, agora... j faz parte da minha vida em tudo assim, muito bom
estar nela, poder ir para as apresentaes, conhecer novos lugares, novas pessoas,
poder ser aplaudido, assim em p, sabe, o pessoal chegar, nossa, homenagear
assim... gostei muito... parabns... parabns... obrigado... e , t tocando aqui,
negcio bom e um negcio que eu gosto.... (CEMM_1, Luciana, ex-aluna e
monitora de percusso, 21/092004).

A afetividade aflora em todos os entrevistados quando trata-se de falar sobre a


participao na Banda Show. Assim como Luciana, Cntia destaca que tocar lhe traz uma
felicidade enorme que tem at que se conter porque a Banda uma responsabilidade
como o diretor fala que a Banda o estmulo pro pessoal que est entrando, entendeu?. E
apesar de ser cansativo, quase uma hora e meia de ensaio, para ela o ensaio tudo. Acho
que ali a hora que voc pode expressar o sentimento, sabe, danando, tocando ou
conversar... muito bom, o ensaio pra mim tudo (CEMM_1, Cntia, ex-aluna e monitora de
percusso, 18/11/2004).
Claudinei expressa o que sente quando est tocando na Banda :

Quando estou na banda? Me sinto cego quando estou tocando na banda, estou l
envolvido mesmo assim, parece que estou, tipo sabe, que estou na lua assim, que eu
viajo no som,, que eu toco mesmo! Tipo, s vezes o Flvio pega no meu p que eu
toco at meio muito alto tem vez e ele: Oh Dineizinho no sei o qu... e eu j fico
meio quieto; mas quando eu t tocando na Banda eu me sinto... no vou falar assim
como um artista, assim, mas sei l, eu sinto uma coisa parece que j vem do meu
sangue, sabe assim, corre o sangue ali dentro quando estou tocando surdo, parece
que j vem, sabe, de mim j assim. E a no tem como, parece que estou em um
outro mundo assim, na lua, viajo mesmo (CEMM_2, Claudinei, manuteno,
22/11/2004).
.
272

4.4.5.3 A DANA: O MOVIMENTO DO CORPO COREOGRAFANDO A MSICA

A dana tem um espao importante na concepo da Banda. Como j foi


mencionado, essa atividade surgiu naturalmente, nos primeiros ensaios com uma coreografia
espontnea. A proposta de uma coreografia prpria foi introduzida e incorporada aos ensaios
e apresentaes coerente com a perspectiva pedaggica da Associao, relacionando as
atividades com o cotidiano dos integrantes, como revela Vera, a professora de dana:

E ento eu acho que essa dana, ela vai ao encontro com a sua vida, como se ela
danasse na vida, tambm. E ela vai melhorando essa dana e vai aprendendo a girar
melhor na vida, a girar a dana, aprende a ir e voltar na dana, como ela aprende a ir
e voltar na vida. So muitas questes na dana que so parecidos mesmo com a vida.
Esse jogo de cintura que a gente tem que ter na vida, esse molejo, que acaba fazendo
com que a gente aprenda a lidar com os nossos problemas. E a dana, tem essa coisa
da auto-estima, ela vai fazendo com que o ser humano tenha mais segurana na vida
para buscar o que ele quer. (CEMM_1, Vera Oliveira, professora de dana,
24/11/2004).

A opo por um trabalho com danas tnicas defendida por Vera por se tratar de
uma possibilidade de contemplar a diversidade. Alm das danas tnicas, Vera trabalha com
as danas brasileiras buscando acentuar os aspectos multicultural e multirracial, criando suas
prprias composies coreogrficas.
273

Sobre o trabalho pedaggico com a dana voltada para uma proposta social com
vistas a uma transformao do indivduo e do coletivo, Vera relata que a maioria das
integrantes no tem preparo algum com o corpo para a dana, mas que assim como na vida,
enfrentar e transpor as barreiras do prprio corpo contribui para o amadurecimento do ser:

Elas chegam aqui com o corpo bem fechado... e ento o corpo vai se abrindo, ele vai
abrindo, ele vai melhorando e ela vai aprendendo a lidar com o seu corpo, com o
corpo do outro, ela vai aprendendo a respeitar os seus limites, respeitar o limite do
outro, e essa troca, essa mudana, essa modificao corporal, faz com que ela mude
tambm a vida dela, porque a vida dela tambm tem limites, a vida dela tambm tem
que estar aberta pr algumas coisas na vida e ela tem que estar aberta pr dana. Ela
tem que deixar a dana entrar... por exemplo, quando ela vai amadurecendo aqui, o
amadurecimento comea a entrar na vida dela, e na vida e tambm na dana, a gente
encontra barreiras, que pr gente parecem intransponveis; e a gente vai percebendo
que ns vamos mudando com o tempo; ento a gente encontra isso na dana e a
gente tambm encontra isso na vida (CEMM_1, Vera Oliveira, professora de dana,
24/11/2004).

E o trabalho corporal produz mudanas corporais e internas ao longo do tempo. So


transformaes que, segundo Vera, se refletem no indivduo e no coletivo:

Eu acredito que os jovens chegam aqui de uma forma e eles vo mudando, eles vo
se transformando; transformam o corpo, transformam o olhar, transformam a
expresso do corpo. E esse corpo vai se abrindo, vai se modificando e ele vai
ficando mais flexvel. E isso faz com que o ser humano fique mais flexvel na vida,
que ela aprenda a burlar e a passar por seus problemas com maior facilidade...
percebo mudanas de comportamento, percebo entrosamento em grupo, sincronia no
grupo e para que eles possam danar eles tm que estar bem tambm, fsico e
mental. A dana pr mim, acima de tudo ela sade, ela vai mudando a concepo
de como comer, de como tambm cuidar melhor do seu corpo, higiene, o fsico [...]
ela traz a felicidade interna, modifica o ser humano (CEMM_1, Vera Oliveira,
professora de dana, 24/11/2004).

4.4.5.4 DEMANDAS PARA A PRODUO DE UMA APRESENTAO:


DESLOCAMENTOS DE PESSOAL, INSTRUMENTOS E EQUIPAMENTOS,
MONTAGEM DO PALCO

Os ensaios e as apresentaes exigem a montagem de uma estrutura bastante


complexa para a organizao dos instrumentos e equipamentos de udio. Para as
apresentaes, Flvio relata que a ONG tem uma carreta que transporta mais de cem mil
dlares de equipamentos, j acondicionados em caixas adequadas para serem acionados com
rapidez e segurana. Tem uma estruturada montada pr show que desencadeada, quando
aparece uma oportunidade de fazer um show. Cada setor se organiza em funo disso, at
274

chegar nos jovens, muito rpido isso aqui. Eu acho que o nico, em nvel de ONG, de So
Paulo, eu acho que o nico (CEMM_1, Nair, coord. pedaggica, 17/11/2004).
Pavilho o coordenador do equipamento e da sonorizao e esclarece sobre o
aspecto qualitativo e quantitativo dessa estrutura:

A estrutura que a gente tem aqui at grande por ser uma ONG. Ns temos muitos
equipamentos, temos quatro mesas e pr montar complicado, porque como a gente
ONG, sempre a gente faz shows pr empresas e tal e isso tem que ser muito rpido.
Leva cerca de 15 minutos, 20 minutos pr montar e desmontar. Ento a gente teve
que nos capacitar pr isso. Pelo devido tempo que a gente tem, somos em sete,
desmontamos em 15 minutos e montamos em 20, 30 minutos. Temos 60, 70 cabos
pr passar em 10 minutos, microfones, instrumentos. Tem que passar o som, tem
que afinar os instrumentos e ento muito complicado e graas a Deus at agora a
gente est se dando bem (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao,
23/11/2004).

E como foi preciso que ele gerasse um conhecimento especfico para lidar com essa
demanda, uma vez que a rapidez uma condio para se dar conta de montagens. Pavilho
diz que foi aprendendo na prtica e pela observao, porque na hora

...no pode ter vacilo! s vezes a gente tinha que fazer dois shows em um dia s, e
com duas horas de diferena. Tnhamos que desmontar e montar tudo em outro
lugar. A gente teve que se virar. O Flvio chegou pr gente, ah, vocs tm que se
virar porque a gente tem que fazer outro show. ...era muita pauleira, correria pr c,
pr l, e a ficou no automtico (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e
sonorizao, 23/11/2004).

Todo esse processo de aprendizado relatado por Pavilho o levou a se capacitar e se tornar
um profissional especializado em sonorizao e montagem de show. Seu depoimento revela a
participao fundamental de Flvio no sentido de oportunizar aos monitores e funcionrios
um aprendizado com profissionais competentes da rea:

Foi o som que eu encontrei, que estavam precisando pr carregar caixa, pr fazer
alguns trabalhos nesse sentindo e ento eu entrei, o Flvio me deu oportunidade e eu
fui me aprimorando, fui fazendo curso.A gente conversou com o Flvio e pediu pr
ele arrumar um profissional pr nos ensinar e ele chamou um amigo dele, o Carlos e
a Hel. Ele trabalha no Stdio Mega, de So Paulo. Eles deram um curso intensivo
pr gente e a eu fui aprendendo e hoje, me viro bem, me capacitei pr isso e quero
alcanar novos horizontes, fazer mais cursos fora daqui, trabalhar fora e, se Deus
quiser, vou conseguir (CEMM_2, PAVILHO-BS, produo e sonorizao,
23/11/2004).
275

Isso denota os diferentes contextos de ensino e aprendizagem que esto ligados


prtica musical desenvolvida na ONG. Trata-se, portanto, de um fazer musical, de uma
performance que mediante a experincia prtica no se reduz s aulas de instrumentos, mas
um universo ampliado que resultou na produo de um conhecimento relacionado com a
prtica musical, ou seja, a prxis cognitiva, como propem Eyerman e Jamison (1998),
interconectando processo, interesse e contexto.

4.4.5.5 A VISIBILIDADE DA AMM NA MDIA

A visibilidade da Associao na mdia desperta fascnio nos Meninos do Morumbi.


Ser comentada e aplaudida um retorno muito positivo para os entrevistados que participam
da Banda. A visibilidade na mdia foi o primeiro contato e fator estimulante para Leandro, o
garoto da foto do segundo CD, querer entrar no Meninos do Morumbi:

...vi os Meninos do Morumbi entrando na televiso na Globo e eu falei: Ah, isso


que eu quero pr mim, eu vou entrar nos Meninos do Morumbi... isso que eu
quero e finalmente eu entrei nos Meninos do Morumbi que mudou bastante a minha
vida.

E quando eu perguntei a ele o que chamou sua ateno no programa, ele disse que foi
a vontade de estar ali:
276

...na televiso mostrando para os outros que esto assistindo, quem sou eu, quem sou
eu nos Meninos do Morumbi. Apresentaram o que os Meninos do Morumbi,
quantos integrantes tm e eu vi na reportagem que eu no conhecia o Flvio, da eu
falei: Ento eu vou l marcar uma reunio, eu vou conhecer o Flvio e vou entrar e
fazer parte da famlia dos Meninos do Morumbi!. No programa tocaram duas
msicas: o funk e o Guerra no Mar. (CEMM_1, Leandro, capa do CD, 24/11/2004)

Este depoimento ressalta o papel da visibilidade na vida do adolescente e a


construo de sua identidade individual e coletiva. Leandro queria mostrar para os outros
quem ele era e quem era ele nos Meninos do Morumbi.

4.5 AVALIANDO O TRABALHO DA ONG


4. 5.1 OS DESAFIOS, AS ESCOLHAS, OS CONFLITOS

Na trajetria da AMM houve muitos desafios que pressupunham ousadia e


capacidade de pensar e perceber o mundo sistemicamente. Flvio mostra sua postura como
coordenador de uma ONG, associada sua identidade de msico:

eu acho que ainda como um empresrio, sou um bom msico, sabe, eu no sou uma
pessoa metdica no sentido assim...eu no priorizo as regras, as matemticas e pr
mim, a meta por o menino pr dentro daquele porto e se precisar transgredir todas
as regras aqui dentro da lgica empresarial pr por esse menino pr dentro, eu vou
277

por o menino pr dentro. E isso que faz a gente muitas vezes sofrer um pouco
mesmo. (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).

Desafios aparecem, tambm, na implantao do projeto pedaggico quando ocorre o


cruzamento da AMM com outras instituies como as escolas, por exemplo, que tinham
perspectivas, metodologias, abordagens diferentes da ONG. Ligia ressalta a interlocuo com
as escolas, em que era necessrio fazer o papel de tradutores dos aspectos mais profundos da
vida dos jovens e das crianas, uma vez que a escola no sabia ou no conseguia ter acesso.
Isso gerava uma arena de conflitos na relao entre as instituies. O desafio de se construir
um elo entre os jovens e a escola, tendo o trabalho da ONG como veculo de traduo fica
explcito no depoimento de Ligia:

....Ento, no momento que ns traduzamos esse jovem, essa criana pra escola, ns
percebamos que a escola, muitas vezes, pela primeira vez, comeava a ouvir uma
parte, um captulo de uma histria do qual ela desconhecia e isso fazia uma enorme
diferena porque ns mostrvamos, alm do contedo dessa histria, algumas
estratgias e algumas construes que j haviam sendo feitas na vida dessas
crianas. Ento, esse foi um trabalho muito desafio, porque a escola era muito
fechada, os professores eu costumo dizer que uma aprendizagem muito
significativa na minha vida profissional, foi lidar com os professores (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

Essa situao de conflito e jogo de poder dinamizou uma necessidade de se construir


estratgias para a busca de solues se consubstanciando na produo de um conhecimento
novo envolvendo competncias tcnica, poltica e pedaggica que proporcionaram um
aperfeioamento na atuao de Ligia como profissional da rea. Ao problematizar o
crescimento da ONG, que devido a sua expanso quantitativa e qualitativa necessita de uma
estrutura com vrios departamentos, sua expectativa reflete as vrias demandas para a
conduo do seu trabalho e as possibilidades de encaminhamentos visando permanente
capacitao de uma equipe o mais integrada possvel.
Os conflitos revelam situaes de ambivalncias, impasses na esfera objetiva e
subjetiva na dinmica do cotidiano da ONG. Ligia relatou que nas situaes em que inmeros
encaminhamentos, estratgias, tentativas no se mostravam suficientes para retirar o jovem do
mundo do crime ou da rua, vem um sentimento de impotncia

...porque voc no consegue transformar o outro, a partir s da sua vontade, voc


no consegue transformar o outro s pelo afeto que voc desenvolve. Ele tem que
compartilhar tambm desse projeto de mudar, de transformar e ns perdemos muitos
jovens para o crime, muitas jovens que engravidaram e saram do projeto...
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).
278

Essa situao implica conflitos que contrapem o real e o ideal, levando a uma
anlise em que se conjuga o verbo no tempo condicional como Ligia o faz nesse depoimento,
refletindo, tambm, como ela se sentia em situaes de impasses e limtrofes:

Eu gostaria de fazer mais, eu gostaria de ter um time maior aqui pra poder at,
imagino, algumas aes que seriam muito positivas aqui. Mas s que voc trabalha o
tempo todo com uma grande agenda, com pouco dinheiro, com poucas pessoas, n, e
muitas vezes voc tem jovens que esto beira do abismo e voc tem que chegar de
uma forma muito cuidadosa, porque se voc se apressar um pouco, voc acaba de
empurr-lo, n, ento voc tem que pensar muito bem, n, qual a melhor forma de
chegar at l e ali na beira do abismo tentar fazer com que ele olhe pra outras coisas
(CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

4.5.2 AS PERDAS E CONQUISTAS

Os que cuidam dos Meninos e Meninas do Morumbi celebram os sucessos como as


histrias de vida de Claudinei e Murilo, os primeiros, que viviam na rua se banhando nas
guas lamacentas das lagoas da Praa dos Trs Poderes e que foram atendidos pela ONG.
Tem, tambm, momentos de perdas daquilo que a instituio mais preza: a vida das crianas e
jovens, quer seja para o mundo do crime, quer seja para a crua realidade da perda da prpria
vida. Como muitos vivem em real situao de risco e vulnerabilidade social, a cooptao pelo
mundo do crime no algo longe da realidade do seu mundo. Eles tm motivos e histrias
para lamentar, com a mesma intensidade de perda de vidas como a de Edvnia, uma garota
que foi acompanhada por muito tempo pela ONG e morreu assassinada de forma violenta.
A histria de Edvnia um exemplo de como os jovens se tornam protagonistas da
violncia urbana, tanto como vtima como produtores dela. Traz-se tona a deficincia das
polticas pblicas urbanas dominantes que acentuam a segregao territorial e social.
Big reconhece os limites de um trabalho dessa natureza e conta com muita tristeza:

...infelizmente a gente no pode mudar 100%. Se a gente pudesse, seria perfeito


demais: todo mundo que entrasse a gente pudesse arrumar. Infelizmente na guerra a
gente sempre vai ter baixa... infelizmente essa a realidade. Dos Meninos do
Morumbi no seria diferente. A gente teve casos de meninos que foram pr vida do
crime, como a gente tambm teve um caso recente com a Edvnia que foi uma
menina que comeou desde o comeo com a gente, trabalhou aqui e, infelizmente,
ela e um outro, que j foi integrante, o Tom, acabaram indo pr essa vida e no tem
volta. Tm dois caminhos: ou priso ou o Cemitrio So Luiz. E aconteceu o
pior... A gente fica triste, lgico que a gente fica sentido, mas eu creio que, uma
coisa que o Flvio sempre diz, ele jamais desistiu das pessoas e ento a Edvnia, por
exemplo, um caso. Ele jamais desistiu dela, jamais desistiu, mas infelizmente a
gente no pode salvar 100%. A gente fica muito triste de saber que um dia um
279

moleque tocou, era responsvel, era legal, vinha nas aulas, estava indo pr escola e
da noite pro dia virou a cabea e mudou. A gente tenta conversar, mas s Deus sabe
da vida da gente (CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno e professor de percusso,
22/11/2004).

Os relatos tambm revelam que a histria da AMM tem muitos momentos de


celebrao. Ter constitudo uma organizao como essa, ter promovido seu crescimento
quantitativo e qualitativo e, sobretudo, garantir sua manuteno refletia dedicao,
competncia de gesto e muita garra para superar as dificuldades. Big, que acompanhou
essa trajetria desde o comeo, afirmou-me: ... isso, Meninos do Morumbi, isso,
sinnimo de garra, de luta e isso daqui pr mim serviu de um grande exemplo e revela
maturidade de saber que preciso passar pelas dificuldades para aprender a super-las quanto
ressalta que a ONG passou por diversas situaes constrangedoras, mas conseguiu fazer
prevalecer a crena de que Tempestade no dura pr sempre e ento isso, Meninos do
Morumbi pr mim um sinnimo de garra e luta, de acreditar, de acreditar que voc tambm
capaz (CEMM_1, Marcelo Big, ex-aluno e professor de percusso, 22/11/2004).
Trazer um menino ou menina de rua de volta para uma vida digna a grande
conquista e objetivo da ONG. Os resultados positivos so considerados frutos do trabalho
realizado ao longo desses oito anos e traz um sentimento gratificante como expressa Irmo,
que tambm conhece a linha histrica da AMM:

Pr mim, sinceramente, foi muito gratificante pelos resultados. Porque da mesma


forma que a gente teve perdas, a gente teve resultado e isso uma coisa que faz voc
se sentir bem. Porque ns que estamos nessa, participando, a gente v que uma
coisa que poucas pessoas fazem. Ento, participando, a gente se sente alma limpa.
Enfim, mesmo voc tendo uma remunerao, sendo prestador de servio, voc se
sente gratificado, no visando o lado financeiro. (CEMM_2, Irmo- Aluzio,
financeiro, 18/11/2004).

E nessa trajetria onde se trabalhou com a vida das pessoas, a msica reconhecida
por ele como o atrativo principal e ele conta que a gente via realmente as vidas sendo atrado
pelo lado musical, e a msica para ele tem uma potncia intrnseca que, quando expandida,
tem a capacidade de transformar a vida das pessoas:

... uma coisa que vem de cada um, est dentro da alma de cada um. S que uma
coisa que s vezes a pessoa no flui, no pe pr fora. E quando v e comea a
participar, comea a fluir e acaba se dedicando quilo, troca outros prazeres pela
msica. Enfim, citando novamente em relao ao projeto, voc usa a msica pr
estar atraindo e fazendo uma permuta, por exemplo, estar cobrando na escola, que
ele acaba trocando a msica por uma outra situao que ele tem l fora. E acaba
dando mais tempo aqui no projeto e com isso ele vai se lapidando. Voc tem frutos.
Quando a pessoa realmente gosta, ele fica como ns temos exemplo de funcionrio
daqui que comeou com integrante e est a [trabalhando]. Porque se dedicou, ele
aproveitou, absorveu os cursos. E, ele tem uma mentalidade, outra cabea, at
280

profissionalmente. Se um dia ele sai daqui, l fora ele tem campo de trabalho. Tudo
isso graas msica, porque foi a msica... claro que eu coloco sempre Deus em
primeiro plano porque cada um, eu acredito que Deus v cada um e cuida de cada
um, basta voc dar de si pr que isso torne-se realidade. (CEMM_2, Irmo- Aluzio,
financeiro, 18/11/2004).

Os frutos se traduzem tambm na expanso da ONG em nvel internacional com a


possibilidade da abertura de uma sede da ONG na Inglaterra, com a coordenao de Heraldo,
um dos monitores percussionistas que foi capacitado pelo projeto Tambor Embaixador. A
parceria com British Airways que financia as passagens e essa nova perspectiva estava em
fase de formalizao. A projeo internacional da Associao pode ser vista como um fruto e
reconhecimento do trabalho exemplificado na participao de Gisele Fujiura funcionria
responsvel pelo design do site e material grfico da ONG no Miracle Corners of the
World Inc & New York University, em New York, um frum de jovens de diversos pases
que discutiu o tema Empreendedorismo e outros assuntos referentes aos desafios da
juventude, no perodo de 21 a 27 de julho de 2004.
A ONG tornou-se um espao de encontros tambm desses jovens que no
conseguiram se desvencilhar do submundo do crime. Este relato de Ligia, exemplifica como
nem sempre aes articuladas e consistentes se mostram eficazes, apesar de inmeras
tentativas:

...eles entram aqui e se procuram. Eles procuram os amigos e, muitas vezes, por
essas fotos que muitas histrias so mantidas vivas aqui. Edvnia que um caso,
tambm da poca do Claudinei, que morreu o ano passado. Do Wesley que foi um
caso em que ns fizemos enormes tentativas e que hoje ele um bandido. Esse um
caso que eu acompanhava-o na escola e a escola no queria aceit-lo; articulei uma
rede onde a professora, a diretora, participava de uma proposta para mant-lo na
escola, criar condies. E eu atendia a famlia em casa ele morava com os avs. Eu
promovia reunies, eu chamo reunies de rede. Ento a professora ia tentando achar
alternativas pra que o Wesley se mantivesse na escola, tanto que no primeiro
semestre ele se manteve nos corredores da escola. Muitas vezes, durante o
acompanhamento, a me dele aparecia, acordava bbada na frente da escola, ento
eram situaes assim, multi-problemticas que se tentava acionar uma rede, mas no
se conseguia lidar com tanta vulnerabilidade, com tanto caos que se instalava a todo
o momento. O irmo dele morreu junto com o Edvnia agora, foram assassinados,
queimados, quer dizer, morreram a pauladas, colocaram fogo nos dois (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

A perspectiva subjetiva dos frutos, das conquistas e tambm das perdas ao longo do
trabalho realizado visto por Ligia pela capacidade de se mensurar a mudana do outro,
realmente no olhar, no quanto o olho brilha, no quanto o olho perdeu o brilho, quando os
jovens esto na sua frente e voc j v aquele jovem de um outro jeito e de que forma voc
quer que esse jovem tambm queira recuperar. E nesse processo que emergem as situaes
281

de crises, muitas situaes limites, familiares, em que, a partir de sua experincia, preciso
agir rpido e voc tem que escolher um bom caminho, voc no pode ficar pensando muito
tempo, voc tem que ser muito diretiva naquilo que voc faz, pra mostrar pro jovem porque
que voc est fazendo... (Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

4.5.3 O BALANO

Os depoimentos dos entrevistados trazem tona reflexes, anlise sobre a ONG no


sentido de avaliar o trabalho realizado, se os objetivos esto sendo alcanados, denotando
tambm que existem parmetros, indicadores para que se possa nortear essa avaliao. Em
projetos sociais, indicadores so parmetros qualificados e/ou quantificados que servem para
detalhar em que medida os objetivos de um projeto foram alcanados, dentro de um prazo
delimitado de tempo e numa localidade especfica.
Flvio faz uma avaliao positiva da Associao, observando aspectos qualitativos,
destacando as representaes sociais situadas na esfera das relaes subjetivas e
intersubjetivas que podem captar parcial e indiretamente como: famlia, conscincia social,
auto-estima, valores, atitudes, estilos, comportamento, capacidade empreendedora, liderana,
cidadania. Como so dimenses complexas da realidade, processos no lineares ou
progressivos, demandam um conjunto de indicadores que apreendam algumas de
suas manifestaes indiretas, "cercando" a complexidade inerente aos processos que se
observa e avalia:

eu acho que consegui, no digo que os resultados sejam assim excelentes etc...a
gente vem conquistando conhecimento, agregando na caminhada os saberes etc.
Mas, eu acho que a gente conseguiu achar uma isca boa para esse jovem da periferia,
a gente conseguiu criar um sociabilizando cheio de bons valores, agregar a famlia, a
escola, ns criamos um pertencimento muito forte! O menino depois de pertencer
aos Meninos do Morumbi, ele fica assim... no mais vulnervel s oportunidades
que o crime oferece, com certeza. Antigamente a adrenalina de fazer uma correria
como eles falam, alguma coisa ligada ao crime, era algo emocionante que podia
realmente deixar esses jovens [seduzidos]... Exatamente. Agora ficou menor, porque
os Meninos do Morumbi oferecem contextos extremamente emocionantes, novos e
d muito mais frio na barriga pr um jovem desse entrar num avio, viajar onze
horas e descer na Inglaterra, do que qualquer revolverzinho pr assaltar madame na
rua, entendeu. Ento, nesse sentido, a gente consegui muito alm do que j existia
nessa rea, do social... eu continuo dizendo assim que eu no conseguiria ter feito
tudo isso, se no fosse tambm o meu projeto pessoal de vida (CEMM_1, Flvio
Pimenta, coord. geral, 11/11/2004).
282

Nos depoimentos dos primeiros Meninos pode-se constatar que o incio foi marcado
por uma relao muito prxima que gerou uma afetividade, calcada no respeito, admirao e
gratido entre os garotos, Flvio e Ligia. E tambm um respeito, uma admirao. Agora com
um nmero maior de participantes, so muitos cursos, so muitos departamentos aqui dentro,
muitos funcionrios. E sobre esse aspecto Ligia faz uma avaliao:

, eu acho que se ganha de um lado e perde do outro, trabalhar no atacado voc


sempre tem a viso do todo, mas voc perde muito a viso da parte. E hoje eu posso
encontrar com um jovem ali na esquina e no saber que ele um jovem dos Meninos
do Morumbi, hoje eu posso acompanhar jovens que so conduzidos para um
acompanhamento. Antes eu mesma podia selecionar esses jovens, pois eles estavam
muito prximos, eu acompanhava os ensaios, eu acompanhava as apresentaes.
Hoje, tem muitos anos que eu no vou numa apresentao, no consigo mais ir, eu
tenho uma agenda que eu fico o dia inteiro aqui, eu no posso mais colocar uma
noite... at fico algumas noites, mas a eu j estou envolvida na agenda com os pais;,
ento por uma questo de priorizar (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas
e projetos, 23/11/2004).

E nessa avaliao, Ligia expe suas preocupaes e conflitos que se relacionam com
o crescimento da ONG e a conseqente necessidade de capacitar pessoas para atuar nessa
nova configurao quantitativa e qualitativa. Reconhece que a Associao ainda no
conseguiu sistematizar um processo de formao e capacitao para os profissionais atuarem
nesse contexto, questo que pode ser projetada como uma problemtica que permeia a esfera
macrossocial em que se localiza as ONGs:

...Tem um lado que me preocupa, e acho que se eu pudesse escolher, eu escolheria


trabalhar com menos e com uma outra qualidade. Eu acho que tenho uma habilidade
de trabalhar com grandes nmeros, mas essa habilidade no pode ignorar os
resultados que voc consegue com um grupo numericamente expressivo e com um
grupo menor. E um grande questionamento que eu fao hoje, na equipe de
profissionais, a necessidade de investimento na formao, porque tem um tempo, em
uma instituio, quando ela comea, que as pessoas vo chegando e voc no tm
muito claro quais os princpios, as pessoas intuem, as pessoas sentem, ento assim, a
boa vontade e a disponibilidade das pessoas o suficiente, s que depois de alguns
anos, no desenvolvimento daquela prtica, com outras pessoas chegando, outras
crianas, outros jovens, vai, tambm, surgindo essa demanda de preparao desse
profissional. E ns no conseguimos ainda sistematizarmos essa formao pros
nossos profissionais (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos,
23/11/2004).
.
E sua anlise revela como preciso saber, ou aprender a lidar com o impreciso, o
aparentemente inadequado, uma vez que se trata de trilhar por caminhos no antes
percorridos. Na avaliao de Ligia, a formao de profissionais que atuam no
desenvolvimento humano de jovens em situao de risco ou excluso social deve
necessariamente conter a formao de um educador. Fazendo uma distino entre professor e
283

educador, ela reconhece o desafio que se apresenta no que tange necessidade de uma viso
sistmica de educao que conecta as vrias dimenses da ONG Meninos do Morumbi:

...hoje ns temos pouqussimos educadores, ns temos professores na instituio.


Ns formaremos jovens, talvez que toquem bem um instrumento, mas que no
tocam com a mesma potncia, com a mesma capacidade a sua vida. Esse o nosso
desafio, esse o nosso desafio e assim, desde o porteiro que abre a porta pro jovem
at quem serve a comida pra ele l atrs, n, tem que ser um profissional formado,
ele tem que ser um educador. Acho que esse o meu sonho de instituio, de
trabalho, de educao e isso pra mim um contexto pluridimensional de
aprendizagens, aprendizagens pessoais, grupais, aprendizagens tambm de
habilidades especficas (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos,
23/11/2004).

E, a situao de instabilidade e incerteza quanto ao futuro da ONG e seus


mecanismos de sobrevivncia e subsistncia, mediante sistemas de avaliao que acirram a
concorrncia por verbas da iniciativa pblica e privada, destacada em seu depoimento:

e da mesma forma que as ONGs crescem, as ONGs tambm deixam de existir,


porque hoje, se a ONG no trouxer, na sua centralidade um plano de marketing, um
planejamento estratgico, trabalhar em cima de programas e projetos claros e que
sejam avaliados, ela est margem de um contexto competitivo, ela no consegue e
se no tiver uma tima rede de indicaes, porque hoje os recursos esto cada vez
mais escassos no mercado, n, ento se no tiver pessoas que indiquem e digam:
Olha, invista l o seu dinheiro, invista l o seu imposto de renda..., n, ela est o
tempo todo tentando captar esses recursos (CEMM_1, Ligia Pimenta, coord. de
programas e projetos, 23/11/2004).
.
A figura de Flvio associada a uma capacidade de amenizar os riscos de se perder o
norte, nesse caso relacionado ao aumento de participantes. Mas reconhece que houve uma
massificao em detrimento de um lado mais humano que prevalecia antes:

No sei se a arte que faz isso, se a figura do Flvio, tem um ritmo, tem uma
sintonia, tem um n nessas diferentes pontas. Eu acho que quando voc amplia o
nmero de atendidos, voc corre um grande risco de massificar, n, eu tenho ouvido
nos ltimos anos, assim, a falta da humanizao aqui e eu ouo dos profissionais e
eu ouo tambm dos integrantes. Antes, quando o grupo comeou, havia esse lado
humano, essa proximidade, esse cuidar, muito presente e muitos jovens no
conseguem perceber isso hoje, n, nunca receberam esse cuidado e s vezes at
necessrio, porque ns nem sabemos da necessidade desse cuidado (CEMM_1,
Ligia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

Muitos dos entrevistados concordam que deveria haver mais projetos sociais como os
Meninos do Morumbi. Anderson corrobora essa idia sem, no entanto, mostrar uma viso
romntica ou definitiva na capacidade dos projetos sociais acabarem com os problemas
enfrentados pela desigualdade e excluso social, mas seu destaque vai para a capacidade de
tais iniciativas darem oportunidade e alternativas para quem, hoje, no as tem:
284

...os outros profissionais devem ter falado, eu acho que deveriam existir mais
projetos como a AMM. Eu acho que se existissem pelo menos um em cada regio de
cada grande cidade, ajudaria muitos jovens, eu no digo tanto, diminuir a
criminalidade, porque na verdade o crime vai acontecer sempre, sempre vai crescer e
a gente no vai conseguir impedir isso, mas a gente pode ajudar aqueles que no
querem participar disso, a gente pode dar uma mo para aqueles que querem
realmente ser pessoas com valores, pessoas que querem trabalhar, que querem
estudar, que querem crescer na vida (CEMM_2, Anderson, secretaria geral,
10/11/2004).

Na ltima entrevista, Flvio constri uma metfora potica ligada ao ato de navegar
para mostrar a racionalidade de seu pensamento sobre o inusitado como um parmetro no
processo da coordenao da ONG:

A diferena de navegar com motor e combustvel e navegar com o vento, que


com o vento voc tem que acompanhar o mar, voc tem que acompanhar a
natureza, voc tem que ter mais eficincia, mais eficcia e voc no sangra os
mares com a fora dos motores e com a gasolina queimando. Voc tem que andar
com a vela, voc tem que andar com o tempo e muito mais difcil. Eu sou um
navegador vela (CEMM_1, Flvio Pimenta, coord. geral, 11/11/2004)

Como coordenadores, Flvio e Ligia so mencionados em todos os depoimentos


como atores fundamentais na constituio da ONG ao longo de sua existncia. As
caractersticas atribudas a eles abrangem as esferas da competncia profissional nas diversas
dimenses tcnica, poltica, artstica, pedaggica. A afetividade, solidariedade, tica, o
comprometimento com suas vidas e com a Associao so substantivos recorrentes tornando-
se um forte trao na memria dos entrevistados. Considerando meu tempo de observao, as
relaes pessoais que constru durante a coleta e os prprios depoimentos, posso inferir que
no se trata de uma devoo s personalidades, mas uma viso que ressalta sutilezas
emocionais que no se localizam nas causas e efeitos superficiais de um trabalho social. As
falas parecem demonstrar que os coordenadores deixaram marcas profundas na histria de
vida de cada entrevistado. H que se ressaltar que a figura imagtica da AMM no est, em
nenhum momento, descolada das figuras dos coordenadores Flvio e Ligia. Pode-se entender
as colocaes dos entrevistados sempre extensivas ao espao material e simblico ocupado
pela ONG no imaginrio dos entrevistados.
CAPTULO 5

AS ONGs E SEUS CONTEXTOS

Nesta pesquisa procurei compreender como se do as prticas musicais em duas


ONGs selecionadas: a Associao Meninos do Morumbi, na cidade de So Paulo e o Projeto
Villa Lobinhos na cidade do Rio de Janeiro. Outro critrio que direcionou a seleo foi buscar
ONGs que realizassem suas propostas socioeducativas focadas nas prticas musicais. Outro
critrio foi a estabilidade institucional que as duas organizaes apresentavam, mostrando a
mnima possibilidade de dissoluo no decorrer da pesquisa
As duas ONGs selecionadas so coordenadas por msicos e educadores musicais
com experincia em processos de ensino e aprendizagem, produo e performances musicais.
A Associao Meninos do Morumbi tem oito anos de funcionamento e o Projeto Villa
Lobinhos, ligado ONG VivaRio, tem quatro anos de fundao. Cabe pontuar que apesar do
campo emprico dessa pesquisa ser composto de duas ONGs, localizadas em cidades distintas,
essa investigao no teve o carter de estudo comparativo.
Como a pesquisa estava ligada a trs cidades: Porto Alegre, So Paulo e Rio de
Janeiro, tal situao exigiu-me inmeros deslocamentos para a realizao da coleta de
informaes. Foi um permanente exerccio de como manter uma organizao de natureza
funcional, fsica e mental, o que se constituiu em processo de aprendizagem nessas
dimenses. Considerando os aspectos urbanos dessas duas metrpoles, a pesquisa de campo
exige uma organizao prvia dos aspectos materiais como espao para se morar e trabalhar,
equipamentos, deslocamentos, conhecimento dos trajetos e dos horrios mais adequados, os
perigos, etc. As relaes inter-pessoais e institucional, que foram construdas ao longo desse
processo, contriburam significativamente para que a pesquisa se realizasse sob um amparo
logstico co-partitipativo e solidrio, envolvendo as prprios participantes das ONGs.
A trama terico-metodolgica foi construda a partir de um processo dialgico
entrelaando teorias e autores que apresentavam coerncia no alinhamento das idias centrais
relacionadas com as questes do estudo. Trata-se, portanto, de buscar uma construo
conceitual dialgica e coerente entre a metodologia e a fundamentao terica O desenho
metodolgico da pesquisa baseou-se na abordagem qualitativa, uma vez que o objeto de
estudo est inserido no campo dos estudos socioculturais da educao musical. As questes de
pesquisa procuraram investigar o processo pedaggico-musical que se instauram nas duas
287

ONGs selecionadas como um fenmeno social. Nesta perspectiva, a opo pela abordagem
qualitativa constitui-se em um esforo para entender situaes, nas suas singularidades,
como parte de um contexto particular e as interaes que ali acontecem (PATTON, 1985
apud MERRIAM, 1998, p. 6) e cujo papel da anlise busca aprofundar o entendimento dos
significados que os participantes imprimem nas suas construes materiais e simblicas.
Para realizar essa pesquisa, de abordagem qualitativa, optei por associar duas
metodologias: o estudo de caso e a etnometodologia. A perspectiva metodolgica da pesquisa
enfoca os pressupostos do estudo de caso mltiplo, argumentados pelos autores Bogdan e
Biklen (1982), Merriam (1998), Yin (1994) e Stake (1995) e da etnomedolologia
argumentados pelos autores Heritage (1999), Coulon (1995a) e Haven (2004). O processo de
construo desse estudo estruturou-se a priori com informaes locais, trilhando-se pelos
itinerrios pessoais e institucionais que se configuraram no cotidiano da insero no campo. A
posteriori, buscou-se a organizao das categorias que fundamentaram a anlise e
interpretao dessas informaes coletivas. A produo de conhecimento e a construo de
asseres que emergiram a partir dessas duas unidades de caso oportunizaram reflexes sobre
o significado das prticas musicais na construo das identidades institucionais, dos
indivduos e dos grupos participantes do estudo.
As descries, os depoimentos, a anlise e a interpretao propiciaram emergir
questes de vrias naturezas relacionadas ao tema, que alm de ampliar o espectro da anlise
e interpretao, constituram-se em fatores que contriburam para as snteses e argumentaes
tericas dessa investigao. H que ressaltar que os pressupostos da etnometodologia foram
guias de condutas nesses processos intersubjetivos, uma empreitada nova e desafiadora para
mim. Aos poucos fui adquirindo a confiana necessria dos participantes para poder me
aproximar, conversar, perguntar e ser interlocutora nos depoimentos finais. As informaes
coletadas foram produzindo camadas de aprofundamento que permitiram um constante re-
elaborar das questes que me conduziram a uma compreenso da natureza das ONGs
estudadas e, conseqentemente, das interaes e do processo pedaggico-musical que ali
aconteciam.
Utilizei equipamentos digitais para o registro sonoro e visual vdeo e fotografias
de momentos dos depoimentos, de encontros e das performances musicais, o que me permitiu
um olhar e ouvir de novo para aquelas cenas recortadas, oportunizando o aprofundamento
da reflexo e anlise. Os depoimentos e as notas de campo foram transcritos e retextualizados.
O processo da fala para a escrita levou em conta a distino entre as dimenses da oralidade e
a escrita baseada na proposta de Marcuschi (2004). Este autor trata detidamente das atividades
288

de transcodificao envolvidas, em especial, na passagem do texto oral para o texto escrito,


cuja compreenso se constri na atividade presente no processo imerso no prprio cotidiano.
A receptividade, positiva e aberta nas duas ONGs, facilitou a construo das relaes
interpessoais, fundamentais para que eu pudesse realizar a coleta de informaes, transitar,
observar as diferentes dimenses que se sobrepunham no cotidiano de ambas as instituies.
Houve uma acolhida solidria e respeitosa por parte dos participantes da pesquisa cujo
relacionamento foi estreitado pela convivncia durante o perodo de insero no campo.
Um trabalho de campo dessa natureza requer do pesquisador a construo de
relaes que o coloca diante de situaes que, por uma questo tica, merecem cuidado e
clareza no tratamento das informaes de natureza ntima dos informantes. Como
pesquisadora de posse de informaes de diferentes nveis, inclusive de ordem pessoal, as
informaes foram tratadas sempre buscando uma perspectiva que pudesse contribuir para as
questes da pesquisa. Assim busquei na descrio, na anlise e na interpretao elaborar as
interconexes com as questes polticas e sociais centrando o processo de reflexo no campo
da educao musical.
Os pressupostos tericos dessa pesquisa ancoram-se em trs perspectivas que tm
como argumento central a viso de que as prticas musicais so fruto da experincia humana
vivida concretamente em uma multiplicidade de contextos conectados. A primeira parte de
uma viso cultural da msica proposto por Shepherd e Wicke (1997) cuja teoria que
reconhece a constituio social e cultural da msica como uma particular e irredutvel forma
de expresso e conhecimentos humanos. A segunda perspectiva inspira-se nos estudos do
antroplogo Marcel Mauss (2003) sobre fenmenos sociais, analisando o processo
pedaggico-musical nas ONGs como um fato social total, enfatizando-o seu carter
sistmico, estrutural e complexo, portanto pluridimensional. A terceira perspectiva diz
respeito produo do conhecimento musical no contexto das ONGs, analisada luz da teoria
da prxis cognitiva cunhada por Eyerman e Jamison (1998). Essa teoria permite analisar a
produo de conhecimento sociomusical das ONGs como fruto da dinmica das foras sociais
que abrem espaos para a produo de novas formas de conhecimento.
Considerando a natureza das atividades musicais nas ONGs calcadas na ao de
fazer msica, a abordagem sobre a performance musical foi tratada a partir das argumentaes
de John Blacking (1995) e Small (1995). Destaca-se que para Blacking a performance musical
um evento padronizado na interao do sistema social, cujo significado no pode ser
entendido ou analisado isoladamente de outros eventos no sistema (p. 227-8) e que para
Small (1995) a performance est associada ao fazer musical e ao senso de musicalidade
289

das pessoas como fruto da interao interpessoal. Como foi mencionado, importa nesse
aspecto que o processo de ensino e aprendizagem de msica considera o seu eixo conduzido
pela ao de fazer msica ou musicando (SMALL, 1995), incorporando os processos
coletivos intersubjetivos e dialgicos. A performance musical, nessa perspectiva, abrange os
rituais, os jogos, o entretenimento popular e as formas de interao as quais so
entendidas como espaos de ensino e aprendizagem musical. A anlise e interpretao
consideraram o amplo espectro de uma performance musical incorporando a escuta, a
providncias para se realizar uma performance como elaborao de arranjos, composies,
escolha de repertrio, os ensaios, a dana, a preparao do espao, enfim as atividades que
esto relacionadas natureza de uma performance musical (SMALL, 1995; BLACKING,
1995).
A pedagogia da msica foi abordada como um processo que trata da relao entre
pessoa(s) e msica(s) e o processo de apropriao e transmisso das msicas como propem
Kraemer (2000) e Souza (1996, 2001b). Tal compreenso justifica a argumentao de que
esse campo abrange os diferentes espaos em que acontece as prticas musicais quais sejam,
educacional, formal ou informal, intencional ou ocasional, e, por isso, as aes educativas
permeiam todos os segmentos sociais, como o caso das ONGs. A discusso e reflexo sobre
as dimenses e funes do conhecimento-pedaggico musical e suas implicaes partem da
premissa de que estes so aspectos do prprio fenmeno/objeto, sem pens-lo fragmentado.
Essa viso do campo epistemolgico da educao musical busca contribuir para a delimitao
dos limites e das interseces da rea considerando o conhecimento especfico,
transversalisado por outros campos do conhecimento.
Assim, o processo pedaggico-musical entendido como um fato social total foi
observado, analisado e interpretado nas ONGs selecionadas, abarcando os aspectos fsico,
institucional e simblico, como possibilidade de produo de novas formas de conhecimento
musical. A anlise incorpora assim, a interconexo de quatro dimenses denominadas nesse
trabalho como: institucional, histrica, sociocultural e de ensino e aprendizagem musical. O
significado do termo pedaggico no se restringe, portanto, somente aos processos de ensino e
aprendizagem, mas entendido com um campo pluridimensional conectado.
290

5.1 AS ONGS: UM ESPAO HISTORICAMENTE CONSTRUDO DE


PRTICAS SOCIOMUSICAIS

As ONGs, em questo, foram se constituindo e se instituindo como espaos


legitimados para se trabalhar com o ensino e aprendizagem de msica, a partir de propostas
focadas no carter pedaggico-musical e, sobretudo, pelas prticas vivenciadas no cotidiano
das ONGs no decorrer de seus processos histricos. As narrativas dos informantes
constituram a principal fonte de reconstituio do contexto histrico da trajetria das duas
ONGs. As histrias rememoradas foram consideradas como elaboraes subjetivas dos fatos
vivenciados os quais incidiram na construo da realidade e de representaes sociais
presentes no mundo social dos participantes da pesquisa.
Essas elaboraes entrelaaram fragmentos de histrias de vida com a histria da
constituio das ONGs, tecendo um pano de fundo no qual subjazem os significados que se
localizam nas entrelinhas das falas, dos gestos, das escolhas, das aes, relacionadas com as
prticas musicais, tudo isso revelando a lgica do raciocnio prtico (COULON, 1995b) dos
protagonistas do processo. A seleo dos fatos e acontecimentos recortados pelos
participantes da pesquisa foi considerada como uma forma de conhecer e explicar o que
passou, cujos fragmentos expem as subjetividades e idiossincrasias que contribuem para a
compreenso dos significados simblicos implcitos naquela construo de realidade.
A noo de pertencimento, de visibilidade, do resgate de questes bsicas
relacionadas dignidade humana emerge como um trao que identifica os participantes da
pesquisa de ambas as ONGs. A msica o eixo que congrega as demais atividades cuja
caracterstica principal ser coletiva. O processo coletivo pode ser tratado como um
paradigma nas interaes sociomusicais das ONGs.
No caso da AMM, o que marca que a construo se processa mediante uma
iniciativa informal de Flvio Pimenta que vem potencializada pela condio dos jovens
desassistidos dos cuidados sociais bsicos e que encontraram um rebatimento dessas
necessidades ao se agregarem em torno de algum que pode lhes oferecer algo to prazeroso
quanto se banhar nas Trs Lagoas: aprender msica juntos. E nesse processo, conduzido
pela prtica musical, que as identidades pessoais, coletiva e institucional foram se
configurando, se constituindo nesses oito anos de existncia, a histria da Associao
Meninos do Morumbi.
291

J o PVL tem uma trajetria histrica marcada por uma gnese muito anterior
instituio formal, desencadeada pelos movimentos populares do Morro Dona Marta. Essa
gnese pode ser considerada como o ncleo potencializador do PVL, que de 2000 a 2004,
conduziu com a formao musical de dezessete jovens oriundos da periferia urbana do Rio
que, sem o PVL, no teriam a possibilidade de acesso a um ensino sistemtico de msica
naquele padro.
O que se destacou a partir das observaes e coleta de informaes foi um panorama
muito especfico da cidade do Rio, em que as interaes sociomusicais so fortemente
marcadas pelas relaes pessoais, mesmo quando se trata de instituies. A proximidade
fsica das favelas com o asfalto, associaes, artistas, diferentes classes sociais imprimi uma
especificidade relacionada ao seu aspecto urbano.
O relacionamento inter-pessoal e inter-institucional apresentou-se de forma
caracterstica em cada um dos contextos urbanos. Parece ser mais evidente que no Rio de
Janeiro as interaes so mais acentudas pelas relaes pessoais, mesmo quando se trata de
instituies. A proximidade geogrfica entre morro e asfalto, as associaes de carter civil,
a participao dos artistas na ONGs imprimem uma especificidade nas relaes. So Paulo
apresentou, no contexto dessa pesquisa, dinmicas de interaes socais com um carter mais
institucional, com encontros mais formais, em que as pessoas esto mais investidas de sua
identidade institucional e, muitas vezes, no possuem uma ligao pessoal. Pode-se inferir que
se trata de um reflexo da configurao urbana de cada cidade que resulta em aspectos
gregrios diferentes e prticas musicais, tambm, diferentes. As redes de sociabilidade tecidas
pelo Projeto Villa Lobinhos mostrou um lado interpessoal mais acentuado. J a Associao
Meninos do Morumbi revelou um trao mais institucional no estabelecimento de suas redes
sociais.
A dinmica na estrutura da comunicao entre as ONGs e os projetos sociais,
invocando a figura da rede, foi um componente importante na anlise do relacionamento entre
as organizaes sociais. A invocao do conceito de rede mostrou-se significativo na
estruturao das ONGs, enquanto categoria institucional, de carter fortemente
interdisciplinar, ancorado nas perspectivas filiadas s vrias correntes do chamado
pensamento sistmico. Mesmo com essas caractersticas prprias, a configurao da
comunicao e troca que prevalece nos dois contextos urbanos horizontal e otimizada pela
Internet. Isso forma uma sinergia intrnseca e extrnseca s ONGs envolvendo os agentes
educativos - msicos, professores, monitores - comunidade, instituies pblicas e privadas.
292

O significado de pertencer a um grupo social A Associao Meninos do Morumbi


e Projeto Villa Lobinhos enquanto um grupo que realiza um trabalho musical, que aprende
msica, que tem visibilidade e reconhecido por sua capacidade de fazer, dar e receber
imprime uma identidade que traz um significativo diferencial na forma dos participantes da
pesquisa se reconhecerem enquanto cidados. Os depoimentos revelam que mediante os
fatos sociais que se refletem as significaes e a produo do conhecimento e do auto-
conhecimento. O pertencer estar includo faz contraponto com o no pertencer, estar
excludo. Nesse sentido, os participantes ressaltam em seus relatos que pertencer ONG
proporciona a eles uma visibilidade atravs das atividades formadoras e prazerosas
relacionadas com a prtica musical. Isso apresenta-se como uma possibilidade de canalizar
uma energia prpria do jovem e permitir, ainda, que seja protagonista.
Os cuidados sociais permeando os processos de aprendizagem musical emergem em
vrios nveis de percepo pessoal. Aspectos como o estigma da cor da pele, do lugar onde
moram, da origem pobre emergem nos depoimentos colados nas identidades dos alunos. A
noo de identidade dos participantes da pesquisa, que expressam ter vivido situaes de
sofrimento relacionados a qualquer tipo de estigma fica intensificada pela vivncia
proporcionada pelas prticas musicais oferecidas nas ONGs. Tal vivncia apresenta-se como
um fator muito significativo para a reconstruo de novas noes de valores pessoais e
sociais.
No ter outra sada seno o crime, quando se est exposto a situaes de risco social,
como colocaram alguns participantes da pesquisa, denota uma viso bastante radical para o
jovem que est exposto vida da criminalidade e violncia da vida do morro. Entretanto,
possvel pensar e vislumbrar que algumas aes, como projetos sociais voltados para essa
faixa etria, podem contribuir para que se note a complexidade desse contexto e se vislumbre
outras possibilidades de existncia.
Os casos de Marquinhos e Rafael Nogueira do PVL e de Claudinei e Pavilho da
AMM podem servir de exemplos de vidas que tiveram uma mudana positiva, uma
transformao concreta nas suas trajetrias, tendo a msica como fator determinante. No h
que ser algo absolutamente predeterminado no futuro dos jovens garotos que moram na favela
e em bairros pobres da periferia urbana. Eles prprios reconhecem que pode haver alternativas
para se encontrar outros caminhos e jeitos de viver e expressam uma rejeio a essa viso
radical.
No obstante os projetos sociais terem conseguido resultados positivos promovendo
acesso a atividades culturais, esportivas e de lazer ao jovem morador de comunidades pobres,
293

possibilitando alternativas, h que se ter uma perspectiva crtica para uma anlise dos
processos decorrentes das aes polticas para se pensar em encaminhamentos que resultem,
de fato, a incluso social sem ter no seu reverso a estigmatizao tcita. Novaes (2002) faz um
alerta bastante pertinente quando destaca que ter parceiros para tirar do crime uma
expresso bem intencionada, mas ela tambm potencializa uma capacidade de estigmatizar
toda uma gerao, como se todos fossem para o crime, todos fossem criminosos em
potencial (CEVL, Regina Novaes, 03/05/2002). E isso aparece como algo muito
incomodativo e, at mesmo, motivo de sofrimento para os jovens moradores das favelas ou
bairros com fama de violentos.
A histria de Edvnia, participante da AMM que se envolveu com o trfico de
drogas e foi assassinada em 2004, um exemplo de como os jovens se tornam protagonistas
da violncia urbana, tanto como vtima como produtores dela. Traz-se tona a deficincia das
polticas pblicas urbanas dominantes que acentuam a segregao territorial e social, uma vez
que as reas habitadas pela populao mais pobre est desaparelhada de espaos para a cultura
e o lazer, levando os jovens, por falta de opo, ao cio desagregador, portas abertas para a
cooptao para o submundo do crime. As aes da sociedade civil, inclusive a otimizao das
organizaes sociais em rede, muitas vezes, mostram-se insuficientes para dar conta de um
contexto marcado por uma extrema desigualdade social e o nvel, quase insustentvel, de
vulnerabilidade que deixa parte da juventude brasileira, indivduos ainda em formao,
exposta a sua prpria sorte, quando deveriam ser atendidos pela rede de proteo das polticas
pblicas.
A anlise dessa questo est relacionada ao conceito do sofrimento tico-poltico
desenvolvido por Sawaia (2003, p. 54-63). A autora aborda o processo de excluso social
questionando os conceitos de incluso social e educao inclusiva circulados na mdia, nas
cincias sociais e na educao. Adota a afetividade como categoria analtica e ferramenta de
ao socioeducativa para ampliar a anlise da dialtica incluso/excluso. Considerar
emoes e sentimentos que afetam o corpo e a alma nas situaes de vulnerabilidade social
contemplar aspectos que escapam s anlises econmicas e polticas da excluso e s
avaliaes da eficcia dos projetos inclusivos. Inclui-se aqui que o processo de
excluso/incluso considerado na sua dimenso subjetivo-valorativa, tico-esttico, alm de
econmico-poltica (SAWAIA, 2003, 2004). Esse processo est intimamente ligado
invisibilidade social dos moradores das favelas e periferia urbana.
O espao urbano constitui-se das diferentes dimenses de uma cidade envolvendo
um conjunto de tcnicas e de obras que permitem dot-la de condies de infra-estrutura,
294

planejamento, organizao administrativa e embelezamento conformes aos princpios do


urbanismo. Trata-se, portanto, da organizao e da racionalizao das aglomeraes humanas
que venha proporcionar as condies adequadas de habitao populao urbana. Dessa
forma o cidado a pessoa que goza do direito de cidade pensando para que para alm de
suas funes tradicionais econmica, social, poltica e de prestao de servios ela exerce
uma nova funo cujo objetivo a formao para e pela cidadania. Ana Maria Quiroga (2002)
discorre sobre o tema A cidadania como indicador social destacando que a a compreenso
da condio de cidadania hoje e a busca de novos direcionamentos tornou-se extremamente
complexa, uma vez que em todo o mundo contemporneo, suas dimenses e suas prticas
comearam a ser confrontadas [por inmeros fenmenos e processos (p. 173). A autora
sintetiza que trs pontos constituem os pilares sobre os quais foi construda a condio de ser
cidado no mundo contemporneo: a titularidade de direitos bsicos, as noes de justia e
solidariedade e a identidade coletiva.
Ao se pensar num caminho para minimizao do processo de excluso social e da
erradicao da misria, principalmente a misria da dignidade humana que abarca as
diferentes dimenses de uma existncia, no se pode pensar em polticas sociais
compensatrias, mas em aes onde o lucro seja, de fato, social, incorporando um potencial
produtivo no aproveitado, represado nos contextos em que os valores culturais e simblicos
so, a priori, desvalorizados. No jornal O Globo, veiculado em 07/06/04, no editorial, Valdo
Cruz destaca a violncia juvenil revelada a partir dessa pesquisa da UNESCO, ressaltando que
buscar solues para juventude brasileira um caso de emergncia... 7 milhes esto
desempregados e fora da escola. Sem presente e sem futuro. Esse quadro requer o
reconhecimento da fragilidade do discurso que evocam convices ticas e morais sobre os
direitos humanos e principalmente, das crianas e jovens. O pano de fundo que determina tal
situao, especialmente na periferia e favelas localizadas nos centros urbanos, est imbricado
com a questo da desigualdade social que impe juventude sua exposio desprotegida ao
mundo do crime organizado, focos de conflitos violentos nos territrios de pobreza.
Cabe aqui questionar a equao entre a discriminao, a excluso social, a violncia
urbana, o estigma permeando as comunidades carentes dos moradores dos morros e favelas
reforado pelo discurso da mdia e negado e re-negado pelos moradores desses espaos
urbanos, inclusive nos depoimentos coletados nas entrevistas. Qual o papel dos projetos
sociais e da cultura, especialmente da msica, nesses contextos?
Todas essas questes podem ser entendidas como formas que geram conhecimento a
partir de outros significados, incorporando a problematizao de questes aparentemente
295

adjacentes ao processo de ensino e aprendizagem de qualquer rea. Mas, so profundamente


imbricadas nos encaminhamentos e decises. Exigem reflexo, anlise e comprometimento,
pois so tais fatores que tm a possibilidade de enredar novos espaos fsicos e socioculturais,
performances na vida cotidiana, conectando aspectos cognitivo, social e poltico com a
perspectiva de uma transformao social, sem maquiagem.
O que a anlise desse estudo revela que as prticas musicais nas ONGs se mostram
como um fator potencialmente favorvel para a transformao social dos grupos e indivduos,
principalmente se considerarmos os padres socioculturais nas prticas musicais presentes no
cotidiano dos alunos. Poder contar com seus valores musicais no processo pedaggico-
musical parece ser um ponto significativo para um trabalho de ampliao do status de ser
msico ou de participar de um grupo musical.

5.2 O PROCESSO PEDAGGICO-MUSICAL NAS ONGs: UM FATO


SOCIAL TOTAL

A perspectiva pluricontextual das ONGs me permitiu perceber e analisar a


complexidade que se apresentava no processo pedaggico musical entendido como um campo
que oferece a possibilidade de apreender, simultaneamente, diferentes aspectos da realidade
social, considerando, ao mesmo tempo, as suas inter-relaes. Nos dois espaos especficos
que agregavam grupos, tambm, especficos, pude experienciar um laboratrio de vivncias
coletivas que tinham como eixo comum a msica como prtica social. Dessa forma o
paradigma do coletivo se apresentou como um forte trao na constituio da identidade
sociomusical das duas ONGs. E no bojo desse processo, o pertencimento, o estar includo em
um grupo musical apresentou-se como um fator central nessa constituio.
Ao analisar a produo de conhecimento musical nas ONGs como uma prxis
cognitiva (EYERMAN; JAMISON, 1998) e, entendendo o processo pedaggico-musical
como um fato social (MAUSS, 2003), essa produo apresenta-se como uma contribuio ao
campo epistemolgico da educao musical. Essa assero se ancora no fato de que as quatro
dimenses utilizadas na anlise no se sustentam isoladamente enquanto campo de produo
de conhecimento.
296

Portanto, as prticas musicais permeiam a totalidade desse processo e, nesse sentido


que o processo pedaggico-musical nessas ONGs s pode ser pensado sistemicamente onde
no h espao para uma produo do conhecimento musical descolado dos contextos,
observados a partir da anlise e interpretao do processo como um todo.
A pesquisa de campo, desvelou-me diferentes contextos de anlise no movimento de
aprender a ler a dinmica da realidade complexa da gesto das ONGs buscando produzir
conhecimento, costurando o saber cientfico, o saber popular e a prtica social. A anlise
possibilitou construir quatro categorias de contextos, considerando a necessidade de proceder
a uma viso sistmica que envolvesse as vrias dimenses do objeto de estudo. Assim,
procurei olhar o objeto de pesquisa o processo pedaggico-musical desenvolvido nas ONGs
sob quatro contextos que conduzem para a descrio, anlise e interpretao desse trabalho:
1) institucional das dimenses burocrtica, jurdica, disciplinar, morfolgica; 2) histrico -
dimenso das histrias contadas pelos participantes da pesquisa, protagonistas da construo
da ONG enquanto espao fsico, material e simblico; 3) sociocultural - dimenso do espao
de circulao dos valores simblicos, dos encontros, das relaes intersubjetivas e inter-
institucionais, dos conflitos, das negociaes; 4) contexto de ensino e aprendizagem musical -
focalizando como, onde, porque, para que se aprendia e se ensinava msica ali.
O Quadro 10 busca sintetizar as conexes tericas que construram a assero de se
compreender as prticas musicais nas ONGs enquanto eminentemente social. A partir dessa
viso, o processo pedaggico-musical visto como um fato social total nos quatro contextos e
a produo do conhecimento nas ONGs como uma prxis cognitiva dinamizada pelas
dimenses do interesse, contexto e processo.
297

Quadro 10. Processo Pedaggico Musical como Fato Social Total.

Visto como um fato social total o processo pedaggico-musical foi interpretado,


nessa pesquisa, considerando os seus aspectos pluricontextuais e multidimensionais, o que
propiciou a elaborao de conexes importantes, mediante uma postura dialgica e dialtica.
Pode-se pensar, ainda, Que nesse processo est tambm presente um sistema de trocas
baseado em valores simblicos e materiais ligados s prticas musicais, extrapolando-as.
Possui a possibilidade de constituir redes de sociabilidade mobilizando motivaes internas,
consubstanciadas em aes nos diferentes contextos: institucional, histrico, sociocultural e
de ensino e aprendizagem musical. Estes foram os contextos interpretados nas duas ONGs,
analisados a partir de uma viso sistmica.
Ressalta-se que todos essas formas de conhecimento so imbricadas pelas prticas
musicais e entrelaadas por questes estticas, ticas e polticas. Pode-se perceber uma
integrao entre o micro e o macro no cotidiano das ONGs mediante as prticas musicais em
que as atividades musicais ou burocrticas funcionam como indicadores das estruturas das
instituies e como estas acabam incidindo na reorganizao ou criao de macroestruturas
presentes na sociedade.
O macrocosmo representado por ambos os contextos urbanos reflete-se no
microcosmo das estruturas materiais e simblicas de cada ONG se pensarmos que os grupos e
indivduos que fazem parte delas trazem consigo tais estruturas que so re-elaboradas nos
298

processos de diferentes naturezas deflagrados pelas ONGs. Assim, as ONGs no podem ser
reduzidas idia de organizaes ou instituies, na viso tradicional, sendo que seu carter
de flutuao instvel e de mobilidade instaura processos em constante formao, abertos
experimentao, arena para novas prticas de aes sociais, culturais e cognitivas. A produo
de saberes nas ONGs, considerando seu carter mutatis mutandis, pode articular novos
interesses de conhecimentos, novas suposies de viso de mundo, inovaes organizacionais,
e algumas vezes, novas abordagens para a cincia. Como prxis cognitiva, a msica e outras
formas de atividade cultural contribui para as idias que os movimentos sociais e suas
derivaes ONGs oferecem e criam uma oposio na ordem j estabelecida na sociedade.
As fragilidades percebidas em relao a questes de ordem institucional e
pedaggica podem ser atribudas prpria natureza da ONGs, uma vez que movimentos
sociais se institucionalizaram e esto se institucionalizando sob uma plataforma sociopoltica,
econmica e jurdico-institucional movedia. Esse aspecto foi considerado na elaborao da
anlise, uma vez que se trata de um objeto de estudo cuja dinmica extremamente rpida. As
polticas sociais, as leis, nesse tempo de coleta, sofreram mudanas que incidem na dinmica
dessas instituies. Assim, as fragilidades, elas existem a partir desse momento de mutao da
prpria identidade do que seja a ONG. Como no existe, em termos educao musical em
ONGs, uma tradio como h nas universidades, conservatrios e escolas de msica, o
processo est sendo construdo no cotidiano mediante as aes prticas. Isso, ao mesmo
tempo em que pode ser visto como uma fragilidade mostra-se, tambm, como uma capacidade
de se lidar com contextos instveis, imprevisveis, com o fazer de repente.
Nas reflexes que emergem dos depoimentos pode-se perceber um reconhecimento
da dificuldade de se realizar uma avaliao mais profunda da instituio, considerando
velocidade e a demanda dos acontecimentos no cotidiano da instituio. A presena de uma
pesquisadora com o propsito de realizar uma pesquisa acadmica significou, para os
coordenadores das ONGs, uma possibilidade para se refletir sobre suas prprias identidades e
os processos que eles estavam desenvolvendo.
As duas ONGs tm como caracterstica comum o reconhecimento e a legitimidade
do trabalho realizado tanto no aspecto social como artstico-musical. Esse um fator que
qualifica o trabalho realizado, expurgando o aspecto puramente assistencialita. A questo de
se investir no capital social, visando a construo das identidades mediante um processo de
vivncia esttica conduzido por msicos e educadores que consideram e conhecem o mundo
social dos indivduos pode ser considerado um significativo diferencial na avaliao de
projetos sociais que possam, de fato, realizar propostas dessa natureza.
299

A anlise revela que a performance musical um condutor dos processos de ensino e


aprendizagem vista como fruto de prticas sociais motivadas pelas ONGs e pelo contexto
sociocultural de seus participantes. Os rituais coletivos como as aulas, os ensaios, os jogos, as
brincadeiras e os encontros informais mostram-se como momentos de sntese das relaes e
das vivncias proporcionada pela msica. O lazer, o aprender a tocar naquele lugar, cuidar
dos instrumentos, realizar uma produo musical, os encontros com os amigos fazem parte do
contexto do processo pedaggico-musical.
Outra questo que brota da observao do processo pedaggico-musical refere-se
gestalt da experincia musical presente nas metodologias utilizadas nas ONGs. Os processos,
de maneira geral, no fragmentavam a estrutura musical, pelo contrrio, buscavam imantar a
experincia de conceber a idia na sua completude, imprimindo-lhe outra dimenso. Isso foi
percebido em ambas as ONGs. Na AMM os participantes vivem o tempo todo a experincia
em grupo experimentando os ritmos, timbres, sonoridades na sua completude, pois a textura
musical no se apresenta fragmentada. No PVL, o coletivo no aprendizado tambm foi uma
tnica, mesmo nas aulas individuais. Isso no aconteceu por acaso, mas como fruto de uma
concepo pedaggica que faz prevalecer a estrutura e no o fragmento.
Um ponto a ser ressaltado que a comunicao verbal insuficiente para expressar a
concepo musical do professor, mesmo que a obra esteja escrita. Assim a oralidade um
recurso importante nesse processo de comunicao onde se incorpora sons onomatopaicos,
canta-se a melodia acompanhada de gestos corporais. O professor lana mo de muitos
recursos entre os quais, mostrar tocando, corporificando suas idias musicais, fazendo msica
uma das formas muito utilizadas, pois o professor fala tocando e o aluno responde tocando
quando imita e estabelece-se por esse processo de oralidade e imitao uma relao em que
prevalece a experincia prtica, repetindo muitas vezes a mesma ao, como num jogo, at
que ela atinja um outro patamar de qualidade musical.
Os registros em udio (Anexos C e G) das performances dos grupos musicais das
duas organizaes selecionadas so entendidos aqui como fruto do processo pedaggico-
musical. So fragmentos do repertrio que eles tocam e gostam de tocar, construdos ao longo
do trabalho realizado nos diferentes espaos j mencionados nesse trabalho: sala de aula,
ensaios, apresentaes, jogos musicais. Evidenciar a msica que eles executam uma forma
de apresent-los mediante o fazer musical musicking (SMALL, 1995) - que traz consigo
traos de suas identidades musicais, impregnados de suas escolhas e seus valores que foram
compartilhados e nos quais eles se estruturam como msicos, grupos e indivduos. Outro
aspecto a destacar nessa questo que o trabalho sociomusical proposto pelas ONGs,
300

mediatizado pelas prticas musicais, incorpora a msica como um tipo especial de ao


social que pode ter importantes conseqncias para outros tipos de aes sociais
(BLACKING, 1995, p. 223).
Neste sentido, o aspecto ldico se consubstanciou nas falas descontradas
expressando alegria por pertencer quele grupo; nos olhares, nos sorrisos, nas interaes
sociais e dedicao para com as atividades ali desenvolvidas denotavam uma explcita alegria
dos participantes em estar naquele espao. Pode-se inferir que tal fator constitui-se em um
aspecto valioso no processo pedaggico-musical, uma vez que imprimiu, nas atividades o
prazer de fazer msica coletivamente, compartilhando sentimentos e expectativas mediante
atividades que congregavam interesses comuns e, ao mesmo tempo, propiciavam um
alargamento de viso de mundo a partir de vivncias estticas e cognitivas.
Assim, esses exemplos de formas de aprender nas diferentes esferas da ONG, indicam
integrao de processos que esto ligados a valores do cidado e articulam vrios tipos de
saberes: do senso comum, o prtico, o acadmico, o administrativo, o pedaggico; articula
diferentes grupos geracionais, de gnero, de raa, de classes sociais. No se trata de uma soma,
mas sim de uma mudana de paradigma do modo de ver o processo de ensino e aprendizagem.
A constituio social do conhecimento musical pode ser entendida como um fator
significativo nas concepes de educao musical que reconhece a importncia do
compromisso social de um projeto pedaggico-musical. A utilizao da oralidade e do
processo de imitao como recurso didtico-pedaggico revela-se como uma estratgia
importante no processo de ensino e aprendizagem musical em ambas as ONGs, embora mais
prevalente na AMM. Emerge, ainda, em relao ao aprendizado pela imitao o contraponto
valorativo da leitura musical como algo que confere o status de ser msico, como pontos
importantes nas narrativas dos alunos e professores relacionados com o processo pedaggico-
musical e com a construo de suas identidades musicais.
O sentido da realizao de uma pesquisa no contexto das ONGs foi reconhecido
como importante e significativo para contribuir com o processo de reflexo e tomada de
decises nesse campo. Existe uma expectativa em relao a trabalhos acadmicos realizados
nas ONGs, como pode ser exemplificado na fala de Ligia Pimenta ao destacar sua viso sobre
a contribuio dessa pesquisa, considerando o meu papel como pesquisadora:

O seu papel enquanto uma estudiosa, enquanto academia, universidade, contribui


para um trabalho como o nosso. Voc tem as ferramentas pra descobrir e garimpar as
prolas e, muitas vezes, mostrar pra ns, que estamos imersos nesse cotidiano no
que nos conhecido e que deixamos de perceber algumas coisas vocs que
chegam, nos fazem pensar em novas coisas, em velhas coisas de um novo jeito.
301

Ento, a contribuio, o seu papel aqui pra ns, com certeza, tambm uma prola,
uma oportunidade e ao mesmo tempo um privilgio, quando o Projeto pode contar
com, no s profissionais, mas seres humanos como voc que to bem se colocou
durante todo esse tempo. A forma respeitosa frente aquilo que voc via, a anlise do
que voc fazia, aquilo que voc pontuava, isso contribui. uma nova voz, um
novo jeito, um novo olhar, um jeito, tambm, de nos escutar. Eu quero muito ver
essas prolas que voc garimpou aqui, por que eu acredito que voc vai descobrir
novas prolas.. E, ento eu acho que importante que voc tambm leve isso com
voc. Voc contribuiu e deixou aqui, algo muito importante, muito rico (CEMM_1,
p. 40, Lgia Pimenta, coord. de programas e projetos, 23/11/2004).

Essa expectativa revela que existe um campo aberto e premente para se estabelecer
uma comunicao de mo dupla, pois como j foi mencionado, as ONGs esto se
configurando como espaos de formao mediante a educao informal. H que considerar
que os projetos sociais esto incorporando em seus quadros de educadores sociais, pessoas
que receberam uma formao no mbito dos prprios projetos, como o caso da Associao
Meninos do Morumbi. E nesse aspecto os msicos formados pelo Projeto Villa Lobinhos
esto atuando como msicos e professores de msica em diferentes contextos.
Nesse sentido h que trazer baila a discusso da conexo entre as ONGs e a
universidade. Esta considerada a partir do seu compromisso com a formao de profissionais
competentes, com a produo do conhecimento e com a dignidade humana como um projeto
de sociedade. Landim (2002, p. 29) v a trajetria histrica entre as ONGs e o campo
acadmico marcada por ambigidades, caracterizadas por alianas e concorrncias, por
continuidades e descontinuidades que tm variado de acordo com as transformaes das
posies que as organizaes vm ocupando no espao social brasileiro. Para a autora, trata-se
de uma relao conflituosa entre duas esferas institucionais em que se instala uma oposio q a
partir de suas propriedades especficas, com sentidos e pesos diversos. E Landim (2002)
ressalta, ainda, que a construo das identidades das ONGs marcada, sobretudo, em
determinados momentos de sua histria, por uma enftica afirmao distintiva com relao aos
campos dominantes da academia sendo que o inverso nunca se deu (LANDIM, 2002, p. 29).
Entretanto, podem-se perceber indcios de dissoluo dessas fronteiras ao se
constatar uma aproximao dessas duas esferas, com o ingresso de dirigentes e militantes de
movimentos sociais populares e ONGs, nos cursos de graduao e ps-graduao, alm de
instituio de projetos alternativos, possibilitando mecanismos desejveis de integrao e
colaborao (WANDERLEY, 2002).
Essa questo emerge nessa pesquisa com a contribuio dos coordenadores das
ONGs ressaltando a importncia dessa aproximao. Gilberto Figueiredo contribui com sua
experincia prtica em projetos sociais, fazendo uma anlise crtica do papel da universidade
302

na formao do educador musical no que concerne ao contexto da populao exposta


vulnerabilidade social:

Eu acho que o principal pr-requisito pr trabalhar na rea social a universidade no


aborda. A universidade forma o professor, equipa o professor para trabalhar com a
linguagem musical, para refletir, questionar, criticar as questes de metodologias e
tudo mais. Mas a habilidade para lidar com a criana, especialmente com a criana
que vive em situao de risco, isso a universidade, infelizmente ainda no trabalha,
pelo menos eu no tive essa experincia, e no conheo algum lugar que aborde isso
com profundidade. Eu acho que isso vem mais da formao que a gente traz da vida,
dos nossos ideais de vida... e das experincias que ns acumulamos ao longo dos
anos (CEVL_3, p. 27, Gilberto Figueiredo, Escola de Musica da Rocinha,
30/06/2004).

Revela, ainda, a expectativa em relao expanso do campo profissional do


educador musical para contextos sociais da populao pobre. Ressalta que experincias como
a de Rodrigo do PVL, Marcio Selles, do Projeto Reciclarte e dele prprio poderiam estar
transitando pela universidade pois:

quanto mais ns pudermos ir s universidades, falar sobre isso, melhor, para que as
pessoas entendam que esse campo de atuao, importantssimo. Por si s ele j
importantssimo, pela questo e o papel poltico que a gente cumpre. O papel E,
tambm, pela questo profissional, porque hoje, cada vez mais um campo
profissional para o professor de msica e de outras reas tambm. Ento,
importantssimo que muitas pessoas tomem conhecimento disso, para que se
sensibilizem e que busquem essa rea. (CEVL_3, p. 38, Gilberto Figueiredo, Escola
de Musica da Rocinha, 30/06/2004).

Todas essas questes se amlgamam no processo pedaggico-musical concebido


como um fato social total, no qual a produo de conhecimento leva em conta as pessoas e
suas relaes com os objetos do mundo e inmeras possibilidades de conexes educacionais,
polticas e ticas, provocando uma sinergia positiva que incida na camada mais pobre da
sociedade. No reverso dessa perspectiva evidencia-se que uma anlise em que prevalea uma
viso fragmentada de qualquer fenmeno social pode recair em perspectivas redutoras.
CAPTULO 6

CONSIDERAES FINAIS E DESDOBRAMENTOS

O trabalho socioeducativo apresentou-se coerente no discurso e na prtica das ONGs


selecionadas no que concerne intencionalidade de se promover uma educao musical com
o objetivo social sem, contudo, amparar-se em uma abordagem assistencialista ou
paternalista. Pode-se constatar que as ONGs construram suas propostas a partir de suas aes
com os grupos sociais, beneficirios dos projetos sociais. Apresentaram-se como espaos que
agregam o paradigma da instabilidade em sua ordem institucional no cotidiano, o que lhes
permite gerenciar os processos de mudanas e novas direes, muitas delas imprevisveis,
fruto das aes e relaes de seus protagonistas.
Os caminhos construdos para coletar e construir as informaes podem ser,
metaforicamente, comparados configurao dos caminhos de uma das favelas que visitei no
Morro Santa Marta, Rio de Janeiro. Para entender melhor o meu objeto de pesquisa foi
preciso incorporar a instabilidade, o inusitado e o improviso. Seguir uma trilha significava,
abdicar de inmeras outras optar por certas escolhas exigiram renncias. Percebi que escolher
dependia de onde, como, e com quem eu estava em determinados momentos. o que uma das
professoras me falou aqui convivemos em um contexto mutatis mutandis. Os encontros no
poderiam ser previamente agendados nem planejados. Eu aprendi isso na concretude do
percurso que trilhei.
E essas ONGs, ao incorporar a imprevisibilidade, se constituem como espaos em
que no h lugar para contextos homogneos, pr-estabelecidos. Antes, no mbito dos
processos inusitados que os participantes so vistos como protagonistas capazes de fazer
escolhas, avaliaes e realizar aes, construindo um conhecimento de natureza sociomusical,
institucional e histrico, mediante a prxis cognitiva como propem Eyerman e Jamison
(1998). A anlise e interpretao desses processos sobrepostos e imbricados leva em conta as
propriedades do raciocnio prtico do senso comum, como argumenta Coulon (1995b) nas
situaes mundanas de ao cotidiana.
Nesse aspecto, o conhecimento produzido expurga o carter funcional, dando lugar
s estratgias socializantes, inseparveis das representaes material e simblica do espao
304

relacional urbano e institucional, dos recursos e das limitaes que estes oferecem e impem e
de todas as variveis presentes nesse contexto. Trata-se de considerar o processo pedaggico-
musical como um campo de permanente elaborao e redefinio, de conflitos, negociaes e
transaes provisrias.
Assim, os conflitos que emergiram a partir da anlise dessas ONGs trazem tona a
dificuldade de parte significativa das escolas de ensino regular em lidar com as situaes que
esto no mago das questes da desestrutura familiar, da falta de preparo, bem como em
buscar aes educativas que partam do universo dos sujeitos que aprendem. Essa questo
incide de forma profunda na necessidade de se definir polticas pblicas que contemplem
novas estruturas educacionais, tanto no aspecto material (equipamentos e espaos fsicos
adequados demanda dos interesses dos alunos) como no que tange s concepes
educacionais, bem como capacitao de professores. Embora no seja o assunto central desse
trabalho, tem pertinncia ressaltar que estudos, publicaes, eventos e pesquisas vm
apontando uma parte das ONGs como instituies que, ao desenvolverem trabalhos
socioeducativos, vm buscando e produzindo tecnologias de ensino que estejam voltados para
uma educao geradora de cidadania, entendida como direito pblico e um capital social,
apresentando-se como um mosaico de iniciativas sociocomunitrias de grande diversidade
criativa.
Considerando o trabalho que inmeras ONGs tm realizado na rea de arte, cultura e
educao, voltado para uma populao, na sua maioria, desassistida e desaparelhada de
espaos para vivenciar e que essas organizaes so seres sociais que constroem uma relao
mimtica na qual influenciam e so influenciadas, a responsabilidade pelos resultados, sejam
eles nas esferas polticas, sociais, ambientais ou culturais, incidem de alguma forma na
sociedade.
Sob uma perspectiva crtica, preciso ressaltar que na esfera do Terceiro Setor, em
que se localizam as ONGs, existem situaes nas quais se abusam dos clichs que
sensibilizam a sociedade pelas feridas abertas pela desigualdade e pobreza, reduzindo a
problemtica viso maniquesta que serve mais manipulao do que a um processo de real
transformao. A mudana do paradigma do lucro monetrio que impera no setor privado
para um outro que privilegia o lucro social h que ser construda e monitorada para que as
ONGs no se tornem libi de corporaes, que tm por trs de si a misria alheia como
negcio rentvel.
So desafios que tambm pertencem e so de responsabilidade da academia. A
grande questo fazer com que o Estado tenha o seu papel nas polticas pblicas, uma
305

responsabilidade especfica de Estado, que ultrapasse governo e o seu protagonismo e d uma


consistncia ao Terceiro Setor. No se trata de colocar essas duas esferas em oposio, mas
falar das duas ao mesmo tempo e promover uma complementaridade buscando romper com os
muros, seja em termos da universidade, em termos dos conselhos, ou qualquer instncia de
interseco entre poder pblico e sociedade civil. A oposio indivduo/sociedade a grande
discusso em termos das cincias sociais, em termos objetivos, subjetivos e usando a idia de
fato social total e da prxis cognitiva, buscou-se dissolver essa oposio visando perspectiva
complementar e dialgica. Essa postura busca perceber relaes entre esses plos, e com isso
ento, se aproximar de um processo social com todas essas implicaes.
No que concerne a um trabalho de educao musical dessa natureza h que se
assumir a necessidade de se promover, revises, dissolues e, at mesmo, rupturas com
estruturas epistemolgicas historicamente institudas na forma e contedo o que, implica uma
outra viso no processo de avaliao que estabelece critrios e hierarquias esttico-musicais.
Os valores simblicos que permeiam a cultura musical dos grupos sociais trazem consigo
prticas de repertrios, instrumentos musicais, rituais e jogos que desvelam a antinomia entre
que o consagrado pela tradio europia e o que relegado cultura popular. Nesse
sentido, preciso borrar essas fronteiras historicamente construdas para que se promova o
encontro desses saberes e, dessa forma, se amplie o espectro do fazer musical nos processos
pedaggico-musical.
Outra questo para futuras reflexes e estudos a necessria discusso sobre as
competncias do educador musical que atua nesse contexto de vulnerabilidade social. Trata-se
de reconhecer a plataforma movedia desse campo, em que o conhecimento musical j trazido
pelos protagonistas do processo deve ser incorporado e re-elaborado na proposta pedaggico-
musical. Dessa forma, o olhar atento para a formao do educador musical social se
encaminhar para processos que, necessariamente, devem estar alicerados para alm das
competncias especificamente musicais, mas incorporando, tambm, as competncias sociais
e polticas que emergem dessa demanda e desses outros espaos profissionais. Nesse aspecto,
refora-se a importncia do papel da universidade como formadora de educadores musicais
comprometidos com o desafio tico e poltico na produo de conhecimento e na formulao
de projetos que problematizem e contemplem essa diversidade inerente sociedade.
As implicaes para o campo epistemolgico da educao musical incidem em uma
viso que reconhea que a produo de conhecimento pedaggico-musical deve considerar o
mltiplo contexto da realidade social, dissolvendo categorias hierrquicas de valores culturais.
Para tanto preciso refletir sobre as categorias dominantes de mrito artstico e pedaggico,
306

questionando, problematizando, borrando os limites das estruturas de avaliaes e julgamento


de prticas musicais. Faz-se necessrio, tambm, re-examinar as relaes entre o
conhecimento da cultura popular e o conhecimento estabelecido pela academia, como j tem
sido proposto pela rea de educao musical.
Esses aspectos incidem diretamente sobre a atuao de uma prtica docente que
contemple uma viso sistmica que requer um olhar circular que transite por caminhos
inusitados e inesperados e articulaes entre espaos escolares e no-escolares (SOUZA,
2001a). Tal perspectiva pressupe o fortalecimento das oportunidades de aprendizado pela
convivncia social, pela ampliao do repertrio cultural, pela aquisio de informaes, pelo
acesso e uso de tecnologias e pelo incentivo participao na vida pblica das comunidades
onde se inserem. Quanto mais articulados forem os espaos educativos disponveis numa
comunidade, maiores chances de se alcanar esse objetivo e atender aos diversos contextos
socioculturais em que o ato de ensinar e aprender esto necessariamente conectados com o
cotidiano. Posto isso, h que se assumir que a proposta pedaggico-musical passa a se
orientar no em objetos, e sim, nos alunos, em suas situaes, problemas e interesses
(SOUZA, 2001a).
Visto assim, o ato pedaggico estar permeado pela noo de coletividade onde
todos ns educamos e aprendemos, juntos, os vrios aspectos do objeto msica: sua gramtica
linguagem, a lgica de suas representaes grficas, textura, etc., seu valor esttico,
histrico, a diversidade de repertrios, enfim, as inmeras possibilidades que se apresentam e
se tornam significativas no processo pedaggico-musical. Torna-se, assim, um ato que, a
priori, inclui as diversas possibilidades de performance musical.
A anlise e interpretao dos vrios aspectos levantados por esse estudo apontam
para a compreenso das prticas musicais enquanto articulaes socioculturais de carter
eminentemente coletivo e interativo. As ONGs vm se apresentando como uma significativa
alternativa para trabalhos socioeducativos-musicais, em plena expanso quantitativa, dado s
caractersticas que permitem a elas uma grande mobilidade de diferentes ordens, mas
asseguram a base institucional. Assim, a presente pesquisa buscou contribuir para a reflexo e
a prtica sobre papel da educao musical no processo politizado dos movimentos e projetos
sociais em ONGs, imersos na busca de transformao e justia social, aonde a desigualdade e
seus desdobramentos venham a ser, de fato, minimizados em favor da dignidade humana.
307

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APNDICES
APNDICE A
RELAO DO REGISTRO EM UDIO DE 2003 A 2004
316

A PRTICA DE EDUCAO MUSICAL EM ONGS: DOIS ESTUDOS DE CASO NO


CONTEXTO URBANO BRASILEIRO

PROJETO VILLA LOBINHOS E ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI


CDS GRAVADOS E SEUS RESPECTIVOS CONTEDOS

CD N CONTEDO DOS CDs FAIXAS


CD001
30/05/03 ENTREVISTA RODRIGO BELCHIOR - FITA 01 - LADO A FAIXA 01 05:13
ENTREVISTA RODRIGO BELCHIOR - FITA 01 - LADO A FAIXA 02 03:37
ENTREVISTA RODRIGO BELCHIOR - FITA 01 - LADO A FAIXA 03 09:31
ENTREVISTA RODRIGO BELCHIOR - FITA 01 - LADO A FAIXA 04 03:14
ENTREVISTA RODRIGO BELCHIOR - FITA 01 - LADO A FAIXA 05 09:14
ENTREVISTA RODRIGO BELCHIOR - FITA 01 - LADO B FAIXA 06 08:43
ENTREVISTA FBIO DE ALMEIDA - FITA 01 - LADO B FAIXA 07 07:48
ENTREVISTA FBIO DE ALMEIDA - FITA 01 - LADO B FAIXA 08 03:35
ENTREVISTA FBIO DE ALMEIDA - FITA 01 - LADO B FAIXA 09 03:42
ENTREVISTA FBIO DE ALMEIDA - FITA 01 - LADO B FAIXA 10 06:51
ENTREVISTA FBIO DE ALMEIDA - FITA 03 - LADO A FAIXA 11 05:30

CD002
02/06/03 ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 01 08:49
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 02 08:14
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 03 04:48
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO A FAIXA 04 07:30
ENTREVISTA TURBIO SANTOS - FITA 04 - LADO B FAIXA 05 07:48
30/05/03 ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 06 04:09
ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 07 03:38
ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 08 03:15
ENTREVISTA MARCOS DA SILVA - FITA 03 - LADO A FAIXA 09 03:41
30/05/03 VISITA INSTITUTO MOREIRA SALES - FITA 03 - LADO A FAIXA 10 01:04
VISITA INSTITUTO MOREIRA SALES - FITA 02 - LADO B FAIXA 11 00:46
30/05/03 ENTREVISTA DONA NININHA - FITA 02 - LADO A FAIXA 12 01:50
30/05/03 ENTREVISTA RAFAEL NOGUEIRA - FITA 02 - LADO A FAIXA 13 02:11
30/05/03 MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 14 02:29
MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 15 01:54
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 16 02:07
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 17 02:45
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 18 03:11
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 19 04:36
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 20 03:04

CD003
02/06/03 ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 01 00:39
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 02 09:52
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 03 04:50
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 04 08:30
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 05 07:22
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 06 13:46
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 07 04:43
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 08 06:48
30/05/03 MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 09 02:29
MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 10 01:54
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 11 02:07
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 12 02:45
317

MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 13 03:11


MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 14 04:36
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 15 03:04
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 16 03:08

CD004
JAN/04 ENTREVISTA - D. DILZA E D. DILMA - MD (FAIXA 01) FAIXA 01 02:56
21/01/04 ENTREVISTA COM IGOR - MD (FAIXA 03) FAIXA 02 14:15
21/01/04 ENTREVISTA COM RAFAEL - MD (FAIXA 04) FAIXA 03 09:55
22/01/04 ENTREVISTA ONG NS E O CINEMA - MD (FAIXA 05) FAIXA 04 32:31
ENTREVISTA COM FLVIA MELO - MD (FAIXA 07) FAIXA 05 00:54

CD005
23/01/04 ENTREVISTA COM LEANDRO - MD - FAIXA 09 FAIXA 01 13:55
23/01/04 ENTREVISTA COM PEDRO - MD - FAIXA 10 FAIXA 02 05:14
23/01/04 ENTREVISTA COM RAMON - MD - FAIXA 10 FAIXA 03 03:23
26/01/04 ENTREVISTA COM JOS CARLOS - MD - FAIXA 12 FAIXA 04 05:40
26/01/04 ENTREVISTA COM RAIANA - MD - FAIXA 14 FAIXA 05 04:47
ENTREVISTA SEM REFERNCIA - MD - FAIXA 15 FAIXA 06 01:09
27/01/04 ENTREVISTA COM PROF. WAGNER - MD - FAIXA 17 FAIXA 07 06:05
29/01/04 ENTREVISTA COM ALUNOS APS
ENSAIO OFICIAL DO 5 ENCONTRO - MD - FAIXA 18 FAIXA 08 08:57

CD006
25/03/04 CONVERSA_PROF. CHICO NA COZINHA FAIXA 01 01:02
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO SAULO FAIXA 02 16:56
25/03/04 TRECHO DE CONVERSA COM ALUNO MRCIO FAIXA 03 00:19
25/03/04 CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 04 01:58
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO MRCIO FAIXA 05 45:15
25/03/04 IMPRESSES PESSOAIS SOBRE A AULA FAIXA 06 03:07
25/03/04 ENTREVISTA COM O PROF. LUIZ CLUDIO FAIXA 07 05:50

CD007
GRAVAO DE AULA DO PROFESSOR CHICO FAIXA 01 44:17
PEQUENO TRECHO DE UMA ATIVIDADE FAIXA 02 00:24
PEQUENO TRECHO DE CONVERSA FAIXA 03 00:14
CONVERSA COM ALUNO GABRIEL FAIXA 04 01:02
CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 05 07:06
CONVERSA COM ALGUNS ALUNOS FAIXA 06 04:33
GRAVAO DE UM TRECHO DE AULA SOBRE
SOLFEJO - MODO MENOR FAIXA 07 09:41

CD003
02/06/03 ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 01 00:39
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 02 09:52
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 03 04:50
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 04 08:30
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO A FAIXA 05 07:22
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 06 13:46
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 07 04:43
ENTREVISTA REGINA NOVAES - FITA 05 - LADO B FAIXA 08 06:48
30/05/03 MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 09 02:29
MSICA / PERFORMANCE - FITA 03 - LADO A FAIXA 10 01:54
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 11 02:07
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 12 02:45
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 13 03:11
MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 14 04:36
318

MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 15 03:04


MSICA / PERFORMANCE - FITA 02 - LADO A FAIXA 16 03:08

CD004
JAN/04 ENTREVISTA - D. DILZA E D. DILMA - MD (FAIXA 01) FAIXA 01 02:56
21/01/04 ENTREVISTA COM IGOR - MD (FAIXA 03) FAIXA 02 14:15
21/01/04 ENTREVISTA COM RAFAEL - MD (FAIXA 04) FAIXA 03 09:55
22/01/04 ENTREVISTA ONG NS E O CINEMA - MD (FAIXA 05) FAIXA 04 32:31
ENTREVISTA COM FLVIA MELO - MD (FAIXA 07) FAIXA 05 00:54

CD005
23/01/04 ENTREVISTA COM LEANDRO - MD - FAIXA 09 FAIXA 01 13:55
23/01/04 ENTREVISTA COM PEDRO - MD - FAIXA 10 FAIXA 02 05:14
23/01/04 ENTREVISTA COM RAMON - MD - FAIXA 10 FAIXA 03 03:23
26/01/04 ENTREVISTA COM JOS CARLOS - MD - FAIXA 12 FAIXA 04 05:40
26/01/04 ENTREVISTA COM RAIANA - MD - FAIXA 14 FAIXA 05 04:47
ENTREVISTA SEM REFERNCIA - MD - FAIXA 15 FAIXA 06 01:09
27/01/04 ENTREVISTA COM PROF. WAGNER - MD - FAIXA 17 FAIXA 07 06:05
29/01/04 ENTREVISTA COM ALUNOS APS
ENSAIO OFICIAL DO 5 ENCONTRO - MD - FAIXA 18 FAIXA 08 08:57

CD006
25/03/04 CONVERSA_PROF. CHICO NA COZINHA FAIXA 01 01:02
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO SAULO FAIXA 02 16:56
25/03/04 TRECHO DE CONVERSA COM ALUNO MRCIO FAIXA 03 00:19
25/03/04 CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 04 01:58
25/03/04 AULA DO PROF. LUIZ CLUDIO COM ALUNO MRCIO FAIXA 05 45:15
25/03/04 IMPRESSES PESSOAIS SOBRE A AULA FAIXA 06 03:07
25/03/04 ENTREVISTA COM O PROF. LUIZ CLUDIO FAIXA 07 05:50

CD007
GRAVAO DE AULA DO PROFESSOR CHICO FAIXA 01 44:17
PEQUENO TRECHO DE UMA ATIVIDADE FAIXA 02 00:24
PEQUENO TRECHO DE CONVERSA FAIXA 03 00:14
CONVERSA COM ALUNO GABRIEL FAIXA 04 01:02
CONVERSA COM ALUNO SAULO FAIXA 05 07:06
CONVERSA COM ALGUNS ALUNOS FAIXA 06 04:33
GRAVAO DE UM TRECHO DE AULA SOBRE
SOLFEJO - MODO MENOR FAIXA 07 09:41
CD008
09/04/04 RODRIGO BELCHIOR FAIXA 01 20:47
03/06/04 LUIS CLUDIO FAIXA 02 09:42
LUIS CLUDIO FAIXA 03 05:50
LUIS CLUDIO FAIXA 04 06:50
LUIS CLUDIO FAIXA 05 03:43

CD009
30/06/04 TURBIO SANTOS FAIXA 01 05:52
FAIXA 02 04:20
FAIXA 03 08:45
FAIXA 04 05:38
FAIXA 05 04:37
CD010
31/05/04 MARQUINHOS FAIXA 01 09:19
FAIXA 02 10:38
FAIXA 03 08:16
FAIXA 04 06:42
319

FAIXA 05 06:59
FAIXA 06 10:02
FAIXA 07 10:50
CD011
04/06/04 ADEMAR FAIXA 01 05:10
FAIXA 02 07:38
FAIXA 03 08:08
FAIXA 04 07:31
FAIXA 05 07:55
FAIXA 06 07:46
FAIXA 07 03:47
CD012
01/06/04 FBIO FAIXA 01 06:41
FBIO FAIXA 02 09:03
FBIO FAIXA 03 09:19
FBIO FAIXA 04 06:49
11/06/04 WAGNER E WALTER FAIXA 05 11:16
WAGNER E WALTER FAIXA 06 07:33
WAGNER E WALTER FAIXA 07 07:44
WAGNER E WALTER FAIXA 08 06:49

CD013
11/06/04 PROFESSORA ANDRIA FAIXA 01 15:15
PROFESSORA ANDRIA FAIXA 02 11:12
PROFESSORA ANDRIA FAIXA 03 08:02
PROFESSORA ANDRIA FAIXA 04 03:13
09/06/04 FUNCIONRIA MRCIA FAIXA 05 06:09
05/06/04 FRANCISCO FRIAS FAIXA 06 15:21
FRANCISCO FRIAS FAIXA 07 04:17

CD014
08/06/04 CARLA FAIXA 01 05:57
CARLA FAIXA 02 06:58
CARLA FAIXA 03 08:11
CARLA FAIXA 04 05:31
CARLA FAIXA 05 05:43
CARLA FAIXA 06 06:42
01/06/04 JOCIELTON FAIXA 07 06:30
JOCIELTON FAIXA 08 06:45
JOCIELTON FAIXA 09 06:30
JOCIELTON FAIXA 10 09:15
JOCIELTON FAIXA 11 06:51

CD015
16/06/04 SRGIO BARBOSA FAIXA 01 04:29
SRGIO BARBOSA FAIXA 02 08:21
SRGIO BARBOSA FAIXA 03 11:29
SRGIO BARBOSA FAIXA 04 11:05
SRGIO BARBOSA FAIXA 05 13:22

CD016
01/06/04 EMANUELE FREITAS FAIXA 01 09:53
EMANUELE FREITAS FAIXA 02 10:32
EMANUELE FREITAS FAIXA 03 11:17
EMANUELE FREITAS FAIXA 04 12:39
09/06/04 PROFESSOR RICARDO FAIXA 05 03:59
PROFESSOR RICARDO FAIXA 06 07:18
320

PROFESSOR RICARDO FAIXA 07 04:53


PROFESSOR RICARDO FAIXA 08 06:00

CD017
21/06/04 GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 01 06:55
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 02 16:29
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 03 05:04
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 04 03:45
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 05 01:21
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 06 02:44
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 07 04:23
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 08 04:49
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 09 04:25
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 10 05:06
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 11 04:09
GRUPO DE CHORO DO VILLA-LOBINHOS FAIXA 12 00:17

CD018
30/06/04 GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 01 12:05
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 02 09:27
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 03 08:20
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 04 11:40
GILBERTO COORDENADOR DA ESC.MSICA ROCINHA FAIXA 05 09:26

CD019
SEM DT ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 01 02:21
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB (MSICA) FAIXA 02 03:59
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 03 09:58
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 04 15:06
CONT. ENTREVISTA COM O GRUPO DE MPB FAIXA 05 07:49
04/06/04 ENSAIO ESPONTNEO NA COZINHA FAIXA 06 04:33
ENSAIO ESPONTNEO NA COZINHA FAIXA 07 02:49

CD020
SEM DT ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 01 00:41
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 02 13:47
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 03 07:16
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 04 10:22
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 05 10:52
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 06 13:36
CONT. ENSAIO DO GRUPO DE MPB FAIXA 07 02:23
15/06/04 TRECHO GRAVADO COM GRUPO DE MPB FAIXA 08 07:18

CD021
29/04/04 SESSO DE ENSAIO ESPONTNEO DE CHORO FAIXAS 01 17
CONVERSA COM PEDRO E RAMON QUE FALAM UM
POUCO DAS MSICAS QUE FAZEM FAIXAS 18 e 19

CD022
SEM DT ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 01 01:37
CONT. ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 02 02:00
CONT. ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 03 05:12
CONT. ENSAIO DIRIGIDO POR SRGIO BARBOSA FAIXA 04 07:16
13/04/04 ENSAIO DO GRUPO DE CHORO FAIXAS 05 17
27/06/04 RODA DE CHORO FAIXAS 18 22
321

CD023
24/04/04 INSTITUTO MOREIRA SALES RODA DE CHORO FAIXAS 01 17

CD024
29/03/04 GRAVAO RELATIVA ORIENTAO FAIXAS 01 05

CD025
29/03/04 GRAVAO RELATIVA ORIENTAO FAIXAS 01 05
02/04/04 TRECHO GRAVADO FRUM SP FAIXAS 06 e 07

CD026
05/04/04 FRUM SP TRECHO DE PALESTRA FAIXA 01 10:49
TRECHO DE WORKSHOP DE SIVUCA FAIXA 02 04:04
DEPOIMENTOS CURTOS DE CRIANAS FAIXA 03 01:30
BATE PAPO CURTO COM SIVUCA FAIXA 04 04:35
TRECHO COM IMPRESSES_MAGALI FAIXA 05 00:58
BATE PAPO SOBRE MSICA EM PROJETOS FAIXA 06 21:09

PROJETO MENINOS DO MORUMBI

RELAO DOS CDS GRAVADOS E SEUS RESPECTIVOS CONTEDOS - 05


CD N CONTEDO DOS CDS FAIXAS
CD027
20/09/04 ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 01 02:23
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 02 04:55
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 03 03:38
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 04 09:36
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 05 06:29
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 06 01:39
17/11/04 ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 07 06:56
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 08 08:09
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 09 05:33
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 10 09:49
ENTREVISTA COM NAIR FAIXA 11 05:10

CD028
21/09/04 ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 01 01:17
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 02 06:40
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 03 02:10
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 04 05:08
ENTREVISTA COM LUCIANA FAIXA 05 02:19
28/09/04 ENTREVISTA COM ALESSANDRA FAIXA 06 05:51
ENTREVISTA COM ALESSANDRA FAIXA 07 06:27
ENTREVISTA COM ALESSANDRA FAIXA 08 05:51
17/11/04 ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 09 02:48
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 10 08:37
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 11 03:20
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 12 07:37
ENTREVISTA COM HILDA FAIXA 13 08:11

CD029
10/11/04 ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 01 05:15
ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 02 04:55
322

ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 03 04:23


ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 04 04:30
ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 05 04:25
ENTREVISTA COM ANDERSON FAIXA 06 06:53
10/11/04 ENTREVISTA COM MARQUINHOS FAIXA 07 09:18
ENTREVISTA COM MARQUINHOS FAIXA 08 08:18
ENTREVISTA COM MARQUINHOS FAIXA 09 11:11

CD030
10/11/04 ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 01 05:17
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 02 11:56
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 03 14:47
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 04 07:47
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 05 12:21
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 06 09:30
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 07 09:52

CD031
10/11/04 ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA (CONTIN. CD 30) FAIXA 01 13:04
ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 02 04:51
22/11/04 ENTREVISTA COM CLAUDINEI FAIXA 03 11:48
ENTREVISTA COM CLAUDINEI FAIXA 04 10:15
ENTREVISTA COM CLAUDINEI FAIXA 05 14:39
22/11/04 ENTREVISTA COM LEANDRO FAIXA 06 09:21
ENTREVISTA COM LEANDRO FAIXA 07 07:00

CD032
22/11/04 ENTREVISTA COM BIG FAIXA 01 09:56
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 02 05:56
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 03 07:51
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 04 08:06
ENTREVISTA COM BIG FAIXA 05 06:24
11/04 ENTREVISTA COM ADRIANA FAIXA 06 01:43
11/04 ENTREVISTA COM ANY FAIXA 07 02:44
13/11/04 ENTREVISTA COM MRCIA E FUNCIONRIO FAIXA 08 01:11
13/11/04 ENTREVISTA COM MEIRE FAIXA 09 01:32
13/11/04 ENTREVISTA COM TALITA FAIXA 10 01:37
COMPOSIES DE BIA FAIXA 11 06:54
IMPRESSES DA MAGALI 23/11/2004 FAIXA 12 15:48

CD033
09/11/04 ENTREVISTA COM FLVIO PIMENTA FAIXA 01 03:08
09/11/04 ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 02 03:08
22/11/04 ENTREVISTA COM SILVANY FAIXA 03 08:22
ENTREVISTA COM SILVANY FAIXA 04 11:45
ENTREVISTA COM SILVANY FAIXA 05 09:58
23/11/04 ENTREVISTA COM MURILO FAIXA 06 09:04
23/11/04 ENTREVISTA COM LUCIANO FAIXA 07 09:25
23/11/04 ENTREVISTA COM LUCIANO FAIXA 08 08:16
13/11/04 IDA AO TEATRO SANTA CRUZ FAIXA 09 03:32

CD034
17/11/04 ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 01 06:06
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 02 07:35
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 03 06:15
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 04 09:02
ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 05 11:48
323

ENTREVISTA COM TIO MAGNO FAIXA 06 11:47


18/11/04 ENTREVISTA COM ROCHA FAIXA 07 05:19
18/11/04 ENTREVISTA COM SILVINHA FAIXA 08 06:50

CD035
18/11/04 ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 01 06:54
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 02 08:42
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 03 04:22
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 04 05:24
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 05 05:08
ENTREVISTA COM CNTIA FAIXA 06 03:19
18/11/04 ENTREVISTA COM DIANA FAIXA 07 00:54
22/11/04 ENTREVISTA COM GISELE FAIXA 08 11:55
24/11/04 ENTREVISTA COM VERA OLIVEIRA FAIXA 09 09:13
ENTREVISTA COM VERA OLIVEIRA FAIXA 10 08:27
ENTREVISTA COM VERA OLIVEIRA FAIXA 11 12:19

CD036
23/11/04 ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 01 15:40
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 02 06:24
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 03 05:41
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 04 10:58
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 05 06:25
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 06 09:03
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 07 05:09
ENTREVISTA COM LGIA PIMENTA FAIXA 08 08:27

CD037
18/11/04 ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 01 02:35
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 02 07:42
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 03 05:41
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 04 03:31
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 05 14:10
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 06 11:48
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 07 02:18
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 08 13:16
ENTREVISTA COM IRMO FAIXA 09 01:24
09/11/04 TRECHO DE ENSAIO DOS MENINOS DO MORUMBI FAIXA 10 01:36

CD038
06/12/04 PROJETO VILLA-LOBINHOS FAIXA 01 06:00
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 02 04:57
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 03 08:52
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 04 13:55
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 05 05:49
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 06 02:52
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 07 10:32
ENTREVISTA COM RODRIGO BELCHIOR FAIXA 08 02:58
TRECHO DE APRESENTAO VILLA-LOBINHOS
APNDICE B
RELAO DO REGISTRO EM VDEO DE 2003 A 2004
325

TEMA: A PRTICA DE EDUCAO MUSICAL EM ONGs: DOIS ESTUDOS DE CASO NO


CONTEXTO URBANO BRASILEIRO
PROJETO VILLA LOBINHOS E ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI
MDVs GRAVADOS E SEUS RESPECTIVOS CONTEDOS
MDVs CONTEDO

MDV 00 Concerto da Orquestra Villa Lobinhos Local: Planetrio, Rio de Janeiro.


30/11/03 Programa Guia Prtico Villa Lobos; Mozart Variaes sobre o tema Ah,
vous dirai-je, Maman, arranjo e regncia de Sergio Barbosa. MPB
Trecho do IV Encontro Museu Villa Lobos 2004
MDV1A 2A Depoimentos/ imagens de grupos instrumentais; repertrio executado pelos
21 e 22/01 alunos.
1B e 2 B Projeto Villa Lobinhos IV Encontro de Jovens Instrumentistas Turbio Santos/
23/01 Rodrigo Depoimentos; apresentao de grupos instrumentais.
MDV3 Cenas concerto 30/11/02 Planetrio;V Encontro Museu Villa Lobos
MDV4 Entrevista com Turbio Santos; 28 e 29 /jan/04
MDV 5 e 6 V Encontro Museu Villa Lobos 29-30 jan/04
MDV 7 12/02/04 Entrevista com Julio Csar Siqueira, ONG Ns do Cinema .
05/03/04 Reunio dos professores do Projeto Villa Lobinhos.
MDV 8 Final do V Encontro; Casa da Gvea CG, reunio. Participao em Celebridade
novela da Globo.
MDV 9 - 10 CG Reunio 06/03/04 alunos selecionados e pais. 13/03/04 Orquestra
Recomendaes disciplinares;Ensaio para Celebridade
MDV 11 Cenas de aulas na CG 17/18 maro/04 Percusso- Leandro;Cavaquinho-
conjunto Trompete- aula do Chico
MDV 12 20/03 Meninos do Morumbi
MDV 13 22/03 MM Externa com a mes ; aula de percusso depoimentos: Luciana
Eraldo monitores ex-alunos
MDV 14 22/03 MM aula de percusso Luciana- Eraldo cont. Ptio/almoo
24/03Villa Lobinhos Ricardo, Bruno, Rodrigo
MDV 15 02/04 Frum Mundial de Educao ; 05/04 MM Sivuca Workshop para os alunos
novos
MDV 16 20/04 VL aula de flauta com Andra Ernest para Carla e Jocielton
MDV 17 13/04 VL Grupo de Choro, aula de percusso e sopro
MDV 18 01/05 VL CG Ensaio repertrio TIM MAIA ;conversa com Pedro e Ramon; 04/05
VL Ensaio do Grupo de MPB; 05/05 Maracatu com Jeff e Bruno; aula de violino
Profa. Gisela e Wagner.
MDV 19 07/05 Aula de sopros 08/05 ensaio da orquestra
MDV 20 Orquestra VL
MDV 21 10/05 Grupo MBP Colgio D. Pedro II
MDV 22 11/05 Wagner violino; Carla Flauta; Sopros; Escola de Msica da Rocinha;
Ensaios
MDV 23 29/05 Projeto Grota do Surucucu-Niteri -30/05 Roda de Choro no Morro Santa
Marta
326

MDV 24 09/06 aulas de percusso; depoimento do Prof. Ricardo


MDV 25 13/06 Ligia Pimenta; Roda de choro Sta Marta
MDV 26 15/06 Nogueira 16/05 VL Copacabana Palace
MDV 27 15/06 Cidado do Futuro Globo; Colgio. D. Pedro II
MDV 28 17/06 Concerto no BNDS
MDV 29 21/06 Bate-papo com o Grupo do Choro do VL
MDV 30 29/06 Bate-Papo com Grupo de MPB VL na CG
MDV 31 30/06 aniversrio de 10 anos da Escola de Msica da Rocinha
MDV 33 Agos/04 MM
MDV 34 16/09 MM Aulas de percusso em grupo; depoimento de Sivuca; aulas com as
monitoras Cntia e Luciana surdo de 1 e de 2 ; Sivuca aula de Timbal
MDV 35 16/09 MM Aula do Big trabalhando os ritmos dos surdos e enfatizando a
movimentao do corpo
MDV 36 20/09 e 24/09 MM Aula da percusso com Luciana
MDV 37 05/11 MM Ensaio: Projeto Villa Lobinhos visita o Projeto Meninos do Morumbi.
Tomadas da aula da Cntia
MDV 38 10/11 MM Entrevista com Flvio Pimenta toda a histria do Projeto desde de
sua idealizao, motivao, antecedentes do Flvio como msico,
empreendedor, educador.
MDV 39 10/11 MM Continuao da entrevista: as dificuldades, a ousadia, a emoo..
MDV 40 12/11 MM - Ensaio da Banda Show tomadas mais especficas dos
instrumentos de percusso
MDV 41 17/11 MM - Cenas flagradas nos almoo no ptio garotas participantes,
funcionrias. Aulas Cntia e Marquinhos com alunos iniciantes de 8 a 12
anos, seus depoimentos. Arrumao da quadra para o ensaio: um ritual
preparando outro ritual
MDV 42 18/11MM Depoimento do Irmo (Aluzio) sobre a histria do projeto, seus
primeiros participantes, ensaios, apresentaes, estimulado pelo painel de
fotos
MDV 43 17/19/22/11 MM .Ensaio na quadra da Banda; A visita da FGV: workshop com
alunos de ps-graduao provenientes de vrios pases do hemisfrio norte;
Conversa com CLAUDINEI - a histria de vida, o significado do Projeto, a
msica.
MDV 44 23/2411 MM Ensaio com Sivuca do seu novo arranjo da msica de Sandra de
S...Aula de dana com a professora Vera; flashes do ptio; Camila, fila..
MDV 45 Dez/04 MM Ver contedo MM
V encontro de Jovens Instrumentistas na CG - Jan/05 VL
327

APNDICE C
MODELO DAS CARTAS DE
CESSO DE DIREITOS DAS ENTREVISTAS

Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul


Curso De Ps-Graduao Em Msica Mestrado E Doutorado
Doutoranda: Magali Oliveira Kleber
Tema da Tese: A PRTICA DE EDUCAO MUSICAL EM ONGs: dois estudos de caso
no contexto urbano brasileiro

Eu,............................, declaro, para os devidos fins, que cedo os direitos de minha entrevista
gravada no dia 04/06/ 2004, devidamente revisada por mim aps a transcrio, para Magali
Oliveira Kleber, identidade 1476027 SSP-Pr, podendo a mesma ser utilizada integralmente ou
em partes, sem restrio de prazo, desde a presente data para fins de publicao acadmico-
cientfica.
Autorizo, ainda, o uso das imagens captadas e registradas no mbito das atividades da
Associao Meninos do Morumbi/Projeto Villa Lobinhos para finalidades acadmico-
cientficas. Em relao ao uso de citaes, autorizo a explicitao da minha identidade de
acordo com uma das opes escolhidas por mim entre as abaixo indicadas (com um X), desde
que sejam seguidos os princpios ticos da pesquisa acadmico-cientfica:

Identidade utilizando meu nome e sobrenome


Identidade utilizando meu somente meu primeiro nome
Identidade preservada utilizando nome fictcio escolhido por mim
Identidade preservada utilizando nome fictcio escolhido pela doutoranda
Outra indicada por mim:

Abdicando diretos meus e de meus descendentes, subscrevo o presente documento.

(Cidade), de 2005.
____________________________________________
Assinatura
Identidade RG n.
ANEXOS
ANEXO A
A MAR ENCHEU, DE VILLA LOBOS,
ARRANJO SRGIO BARBOSA (OBRA COMPLETA)
330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
ANEXO B
TREINZINHO CAIPIRA, DE VILLA LOBOS,
ARRANJO SRGIO BARBOSA (TRECHO DA OBRA)
341
342
343
344
ANEXO C
CD COM AS PERFORMANCES DOS GRUPOS MUSICAIS DO
PROJETO VILLA LOBINHOS E
ASSOCIAO MENINOS DO MORUMBI
ANEXO D
FRAGMENTOS MELDICOS DO ARRANJO
CARTA AO TOM 74, DE VINCIUS DE MORAES E
TOQUINHO, POR IGOR
348
349
ANEXO E
PARTITURA DO MAXIXE
351
ANEXO F
ENCARTE DO CD MENINOS DO MORUMBI
ANEXO G
DVD COM AS PERFORMANCES DOS GRUPOS MUSICAIS
DO PROJETO VILLA LOBINHOS E
ASSOCIAO MENINOS DO MORUM

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