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Dois homens, duas perspectivas, um só tema: o negro


Elaine Aparecida Lima*

Creio que para ela era melhor ter nascido azul.


Machado de Assis

Machado de Assis e José de Alencar nasceram distintos. O primeiro pobre e


mulato. O segundo filho de família branca e tradicional do Ceará. Homens
atentos ao século XIX brasileiro, sem dúvida muitos paralelos são possíveis
entre eles, não necessariamente por suas características étnicas ou pelo
simples contraste de estilos literários e de destinos, mas, sobretudo, porque
ambos viveram, em grande parte, o mesmo momento histórico e manifestaram-
se, cada um a seu modo, diante dos acontecimentos que buscavam forjar no
país um sentimento coletivo do estado-nação moderno. Neste trabalho,
analisaremos como José de Alencar e Machado de Assis avaliaram por
ângulos diferentes os negros e a escravidão. Para tanto, lançaremos mão,
principalmente, dos romances Tronco de Ipê e Til, de autoria alencariana, e das
narrativas Iaiá Garcia e Memórias Póstumas de Brás Cubas, escritas por Assis.
Talvez pudéssemos iniciar apontando os diferentes espaços em que estão
centrados os enredos de Tronco de Ipê e Til, por um lado, e Iaiá Garcia e
Memórias Póstumas de Brás Cubas, por outro. Enquanto as mencionadas
obras de José de Alencar são ambientadas no interior brasileiro, as aludidas
composições machadianas possuem como cenário o Rio de Janeiro. A nota
desta distinção parece imprescindível, pois podemos tê-la como resultado de
estratégias distintas na concepção dos trabalhos literários dos autores. Alencar
está posicionado como desbravador do território brasileiro, seu objetivo primo é
a detecção da autenticidade nacional e, neste percurso, o interior do país
simboliza a evolução cultural, política e social brasileira, relativamente mais
autônoma, e, por isso, mais autêntica em relação aos gastos valores europeus.
Já a escolha do Brasil urbano encaminha Assis à análise de um ambiente
fraturado pelos hábitos europeus e, evidentemente, por sua proximidade do
poderio social e político, arruinado por uma ordem permeada de equívocos.
Nesta conjuntura, o espaço alencariano ganha uma positivação e,
consequentemente, uma idealização inexistente na ambientação machadiana,
condição que, em parte, explica os diferentes posicionamentos dos autores em
relação aos negros. Cabendo a Alencar forjar um passado ideal ao Brasil de
natureza exuberante e relações sociais pacíficas, era incongruente que o
fizesse por meio da figura de homens marcados pela condição servil, bem
como pareceria incoerente com seus propósitos assinalar as injustiças
escravocratas presentes no nascente país. Trata-se, portanto, de uma situação
oposta à de Machado de Assis. Livre das amarras de um missionário, o último
pôde avaliar criticamente as incongruências sociais, políticas e culturais que
envolviam os negros e a condição do escravo no Brasil.
Entretanto, esta é apenas parte da explicação. Sem recair no biografismo,
podemos asseverar o quanto as origens sociais diferenciadas fizeram de
Alencar e Assis homens de pensamentos equidistantes no que se diz respeito
ao negro e à escravidão. Político e conservador, o primeiro; mulato e pobre, o
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segundo, eles expressaram, tanto na literatura como na vida, posicionamentos


ideológicos apartados. Ao passo que, por exemplo, José de Alencar se colocou
radicalmente contra a Lei do Ventre Livre, afiançando que a intervenção direta
do governo na questão escravista e, em especial, a aplicação dos dispositivos
dessa lei violariam os “direitos” senhoriais, gerando o caos social; Machado de
Assis, como funcionário público responsável por acompanhar a aplicação da
supracitada legislação, não mediu esforços para interpretar a lei em benefício
dos escravos (CHALHOUB, 2003).
Ao retratar o Brasil interiorano, Alencar o constrói calcado em uma pretensa
harmonia, cuja existência elevaria o país frente à desgastada Europa.
Diferentemente do ocorrido com Machado de Assis, o ambiente que descreve é
aquele em que a exuberância da natureza está em perfeita combinação com o
caráter amistoso das relações sociais. No mundo alencariano, a hierarquia é
forte e inquestionável, sendo descrita sem nenhum toque de violência. Logo,
parece óbvio que, em Tronco de Ipê e Til, as relações entre senhores e
escravos não possam fugir a esta regra. Em meio à descrição da beleza
agreste e harmônica, senhores e escravos convivem sem atritos: aqueles,
felizes com a posição de domínio, e estes alegres por possuírem senhores
dignos e bondosos. Cenas de segregação e violência, comuns aos romances
de Machado de Assis, são impossíveis em Tronco de Ipê e Til. Segundo
Silviano Santiago, a harmonia peculiar das relações sociais dos romances de
Alencar nasce da aura feudal que cobre aquele ambiente.
Recobertos pelo campo semântico feudal, não há necessidade
de que haja poder coercitivo por parte do chefe contra as
camadas que lhe são inferiores. Cada um sabe o lugar que
ocupa e que é certo, visto que as possibilidades de
transferência, de mobilidade, de ascensão, estão banidas do
universo textual de Alencar. (SANTIAGO, 1982:105)
Ainda que, nos quatro romances, o leitor possa verificar a pouca ou nenhuma
importância dada ao negro na sociedade do século XIX. Embora em todos eles,
os estes surjam atrelados às personagens brancas, apenas em Assis este feito
é marcado pela descrição das humilhações sofridas pelos africanos e seus
descendentes1. Somente Machado,

escapa ao papel de defensor das idéias hegemônicas,


provenientes da elite senhorial. [...] a crítica machadiana não
visa apenas ao “aprimoramento” dessa ideologia, mas à sua
denúncia. Deste modo, a autoria há que estar conjugada
intimamente ao ponto de vista. [...] conjunto de valores morais e
ideológicos que fundamentam as opções até mesmo
vocabulares presentes na representação. (DUARTE, 2007: 04)

Destarte, basta-nos lembrar a cena em que Brás Cubas, menino, faz de cavalo
o escravo Prudêncio, para verificarmos o quanto ela seria inverossímil ao

1
Segundo Mailde J. Trípoli (2006), enquanto Castro Alves denuncia a violência explícita a que os
escravos e, principalmente as mulheres, negra e mulata, estavam expostos, Machado revela outras
formas de violência, nem sempre tão explícitas, mas igualmente cruéis e doloridas.
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mundo harmônico de Alencar. Frente ao exemplo, o leitor mais atento e


incrédulo poderia conjecturar sobre uma das cenas de Tronco de Ipê.
Lembrando-se da escrava Eufrosina, ao ser atingida por uma jaca atirada pelo
menino Mário, e achincalhada pelos risos das crianças brancas e seus
respectivos pajens, o referido leitor afiançaria a brutalidade da cena
alencariana. Cabe-nos, contudo, marcar as devidas diferenças entre as duas
situações. Parece-nos manifesto o quanto a adjetivação das aludidas cenas
torna-se essencial para este procedimento, pois identifica a negatividade
alencariana direcionada à escrava enquanto a negatividade do texto de
Machado aponta para o senhor. Desta feita, para Machado, Brás (o senhor) é
o “menino diabo” (ASSIS, 1997:20) que por maldade e/ou por mau hábito social
fazia de Prudêncio seu “cavalo de todo dia” (ASSIS, 1997:21). Já para Alencar,
a figura de Eufrosina, coberta de jaca, era por si (não pela violência) “grotesca”
(ALENCAR, 198[-]: 33), resultado da “vingança” (ALENCAR, 198[-]: 33) do
senhor, cujo nome de seu pai morto vira na boca da escrava e, diante da
ofensa, quisera ensinar-lhe, “adoçando a língua” (ALENCAR, 198[-]: 33). Como
se vê, enquanto para Machado, as relações entre Prudêncio e Brás são
estreitamente relacionadas aos maus tratos de um ser humano em relação ao
outro, em Alencar a violência da cena é amenizada, na medida em que se
traduz como um ato de justiça, cuja finalidade era estancar os maus hábitos da
escrava, ser inferior, a quem cabia aos brancos educar. Aliás, este pensamento
do narrador alencariano é muito similar às expressões do próprio autor sobre a
pretensa não civilização do negro. Em discurso, Alencar chega a afiançar a
América como a terra da salvação dos amaldiçoados homens de cor. Leiamos
suas palavras:
Para educar uma raça são necessárias duas cousas: grande
capacidade e vigor do povo culto para imergir a massa bruta e
insinuar-se por todos os poros; longo tempo para que se efetue
essa operação lenta e difícil. A raça africana tem apenas três
séculos e meio de cativeiro. [...] Essa família do gênero
humano, em cuja tez combusta a tradição mais antiga do
mundo lê um estigma da maldição divina, e eu vejo apenas o
símbolo da treva moral em que havia de perdurar; essa família
infeliz, esteve sempre condenada ao desprezo e ao
animalismo, desde Cam, seu progenitor, até Colombo que a
devia remir descobrindo a América, sua terra de promissão.
(ALENCAR, 1867: 289)

Sob este mesmo prisma, observamos na construção alencariana a mudez das


personagens negras. Em momento algum o mutismo abrolha descrito de
maneira a que o percebamos como consequência da imposição violenta do
branco sobre o negro ou devido à inexistência deste como ser social de direito.
Diversamente do ocorrido em MPBC, escrito no qual Brás, para obter a
sujeição emudecida de Prudêncio, utiliza expressamente a coercitiva
declaração “cala boca, besta” (ASSIS, 1997:21), nos romances de José de
Alencar, os instantes em que se estabelece o silêncio das personagens
africanas são dados como exigências naturais, tendo em vista a situação
espontaneamente subalterna do negro. Nem mesmo o narrador observa o
mutismo como emergente de algum tipo de imposição. Em O tronco do ipê,
podemos encontrar bons exemplos que vão da demonstração do simples
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silêncio das personagens negras até o total apagamento das mesmas. Na cena
em que Alice, já adulta, vai ao quarto de Mário, acompanhada da escrava
Eufrosina, é interessante verificar como esta permanece muda e os senhores
conversam como se ela não estivesse ali. Algo semelhante ocorre na
continuação da primeira cena do romance, quando os escravos simplesmente
desaparecem da segunda fase da cena, dando vazão ao império totalitário das
vozes brancas, mesmo que infantis.
Certamente não podemos dizer que os negros machadianos dominem as
cenas com suas falas. De acordo com Gizelda Melo do Nascimento, nas obras
de Assis, o negro muitas vezes está “sem fala, sem discurso” (NASCIMENTO,
2002: 61). Mas, nestes casos, o modo como Machado constrói suas narrativas
demonstra que o negro se cala porque assim lhe impõe a sociedade, o que se
destaca não é seu conformismo, mas sua vida humilhante. Lembrar de
Raimundo parece essencial, neste ponto. Raimundo fala e, discordando de
professora Gizelda, dizemos que ele possui um discurso. Nascimento acredita
que os colóquios com Luís Garcia provam que “embora tenha fala, Raimundo
não possui um discurso para sustentar um diálogo de conteúdo significativo”
(NASCIMENTO, 2002: 56) com seu dono. Em se considerando que, conforme
expõe Foucault, “em toda a sociedade a produção do discurso é
simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um
certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e
os perigos [...]” (FOUCAULT, 2005: 34), parece-nos plausível que uma visão
sobre a totalidade do enredo de Iaiá Garcia contradiga a afirmação da
professora. O papel essencial de Raimundo no desfecho da narrativa, sua
titubeante, porém existente, desobediência à ordem da sinhá-moça e, mesmo,
sua fala resoluta ao explicar os motivos que o levaram a contrariar a senhora,
provam que Raimundo é capaz de construir um discurso, é capaz de se
posicionar racionalmente e sozinho sobre um fato ou uma situação e, mais do
que isto, é capaz de defender seu ponto de vista sobre ele. O cerne da análise
das conversas de final de tarde, entre Raimundo e Luís, portanto, não está na
suposta incapacidade discursiva da personagem. Novamente é Foucault o
auxiliar no entendimento das mesmas. Segundo ele,
Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que
nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer
circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode
falar do que quer que seja. Tabu do objeto, ritual da
circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito
(FOUCAULT, 2005: 29)
Em outras palavras, as conversas “com o antigo senhor” (ASSIS, 1994:14)
apenas versavam sobre o “pequeno mundo, as raras ocorrências domésticas, o
tempo que devia fazer no dia seguinte, uma ou outra circunstância exterior”
(ASSIS, 1994: 14-15) por alguns motivos básicos: Raimundo sabia onde estava
(a casa do senhor), Raimundo sabia quem era (um negro liberto), Raimundo
sabia com quem falava (seu ex-proprietário) e, principalmente, tinha plena
certeza de que no século XIX, no Brasil, negro não tinha vez, era preciso
conquistar certa autonomia, discursando conforme seu interlocutor. Falar de
amenidades (em que pese o fato de que todos o falam em circunstâncias de
descanso) era então, meio de sobreviver em um mundo no qual o poder estava
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com o outro e, foi, em muito, por ter agido assim, que Raimundo conseguiu
espaço suficiente para atuar da maneira como atuou ao final do enredo.
Aliás, a adequação de Raimundo a seu interlocutor já existira em outro
momento do texto. Ao falar com a criança Iaiá, a personagem fala de si em
terceira pessoa e infantiliza sua linguagem, continuando a fazê-lo diante da
moça, a quem sempre consideraria como a eterna menina, filha de Luis Garcia.
Nos momentos de maior intimidade com ela ou, ainda, quando está a lutar
timidamente contra a ordem recebida, Raimundo permanece moldando sua fala
desta maneira. Todavia, quando cria coragem e confessa não ter realizado o
desejo da moça, o negro abandona seus dizeres costumeiros, dizendo sem
rodeios: “Não entreguei.” (ASSIS, 1994:138). É certo que diante da imobilidade
de Iaiá, Raimundo volta a utilizar-se da terceira pessoa, mas isto não significa
que tenha recuado em seu discurso, uma vez que o narrador confessa como a
firmeza da personagem continuava viva.
O aspecto linguístico pouco elaborado, dado como esdrúxulo, e a fala de si em
terceira pessoa não são elementos intrínsecos, portanto, à expressão das
personagens escravas de Machado, porém o são às de Alencar. Os narradores
de Alencar, marcando distância das personagens africanas e,
simultaneamente, intentando evidenciar conhecimento da cultura daquele povo,
procuram veicular um modo de falar dos escravos que se distingue dos
homens brancos. Assim, em Til, o narrador chega a utilizar cantigas de
escravos e a observar expressões próprias dos trabalhadores negros da
lavoura. Há de esclarecer que por si só a opção de resgate de uma tradição
africana da linguagem seria bem vinda ao texto alencariano pois, se não
gerasse uma legítima literatura que visse e sentisse o mundo pelos olhos do
negro, se não formasse uma narrativa em que o vocabulário e os símbolos
africanos marcassem a linguagem sem estereótipos (BERND, 1987:18), pelo
menos poderia resgatar a memória negra sem preconceitos . Contudo, o
empecilho para que o texto de Alencar caminhe por trilhos próximos àqueles de
escritores afrodescendentes é que seu narrador impõe à fala dos escravos um
caráter de exotismo que lhe retira qualquer conotação humana e natural. É
interessante como Alencar, defensor da nacionalização da linguagem literária
brasileira e ciente de sua construção a partir da miscigenação dos povos, caiu
na armadilha mencionada. Nos romances em pauta, as utilizações das falas
estranhas aos moldes formais: “- Gentes, quedê a colcha rica da cama dos
noivos?” (ALENCAR, 198[-]: 87).; “-Tição!... tição é seu pai de você
[...]”(ALENCAR, 198[-]: 153), aparecem continuamente justificadas pelo
narrador. Ele se preocupa em apontar seus objetivos com a utilização,
declarando a necessidade de tornar mais vivas e nacionais as obras, mas, em
suas colocações, deixa transparecer o preconceito, na medida em que utiliza
palavras como “anomalia” e “irregularidades” para comentar as particularidades
da linguagem dos escravos, que se assemelharia, segundo ele, à linguagem
infantil.2:
A linguagem dos pretos, como das crianças, oferece uma
anomalia muito frequente. É a variação constante da pessoa
em que fala o verbo; passam com extrema facilidade do ele ao

2
É interessante o como a infantilização da linguagem pode pressupor também mais um argumento em
prol da falta de aptidão do escravo para a liberdade, haja vista a pretensa falta de maturidade delegada
ao negro.
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tu. Se corrigíssemos essa irregularidade, apagaríamos um dos


tons mais vivos e originais dessa frase singela. (ALENCAR,
198[-]: 41).

A tal ponto os narradores de Alencar mantêm a estranheza em relação à


linguagem dos escravos que os murmúrios de Zana, acometida pela loucura,
eram equiparados aos dialetos africanos, de maneira a rebaixar a cultura e
marcar a distância do narrador de um idioma que julgava bárbaro e confuso:
“Depois arrancou do peito cavernoso a mesma toada do acalanto, cujas
palavras truncava por forma que somente se percebia delas a sonância
confusa e estranha. Dir-se-ia que ela cantava em algum dialeto africano, tão
bárbara era a pronúncia com que se exprimia” (ALENCAR, 1973: 94).
Retornando à primeira cena de O tronco do ipê, podemos abordar mais um
detalhe da formatação do discurso do narrador. Ele, novamente, revela o
quanto o mesmo partilha preconceitos correntes na sociedade da época. No
fragmento abaixo, é notável como os escravos aparecem excluídos do
vocábulo “grupo”, de maneira que, na segunda frase, quando iniciada a
apresentação das personagens que compunham a circunstância, são
mencionadas apenas as crianças, como se os escravos não lá estivessem: “Na
manhã de 15 de janeiro de 1850, saía da casa grande da fazenda de Nossa
Senhora do Boqueirão, um grupo de três crianças, acompanhadas por duas
mucamas e um pajem agaloado. Eram duas meninas de onze a doze anos, e
um menino de quinze” (ALENCAR, 198[-]: 25). Não se trata do mesmo
apagamento que sofrem Prudêncio e Raimundo, pois, nestes casos, as
esparsas aparições das personagens não são resultado do olhar do narrador
sobre a cena, mas nascem do fato de que os ambientes de requinte dos
romances machadianos não admitia a presença contínua e substancial do
negro. No demais, é inevitável que digamos que o romance de Machado, em
oposição ao de Alencar, não traz um narrador, cujo ponto de vista comungue
com a elite. Enquanto os narradores de Alencar esforçam-se em fazer de si
boa figura e, por conseguinte, apoiar discursos hegemônicos, os narradores
machadianos são homens, cuja perspectiva é aquela “dos setores subalternos”
(IANNI, 1988: [s.n.]), mesmo quando oriundos da elite, como Brás, eles olham
com desdém, com ironia a alta sociedade brasileira.
Aos narradores alencarianos, é comum a pouca atenção dedicada à descrição
das personagens negras. Os escravos são descritos em Til e O tronco do ipê
sem pormenores. Geralmente eles são apresentados por meio de seu nome e
sua função: Martinho (pajem), Eufrosina (mucama), Vicência (cozinheira),
Florência (doceira), Rosa (mucama), Amâncio (pajem), etc. Sem
individualidade e com pouca ou nenhuma influência no enredo, são, variadas
vezes, tão somente parte do cenário dos romances. Numericamente
expressivos, os negros não recebem as descrições físicas e psicológicas ou,
ainda, o relato breve de suas vidas pregressas, tal qual o narrador se esforça
em fazer com as personagens livres, mesmo que sejam pouco envolvidas no
enredo, como Frederico de O tronco do ipê:
Nesse momento felizmente apareceu o senhor Frederico de
Matos, moço de vinte anos, filho de um fazendeiro da
vizinhança. A voz o apontava como o noivo de Alice, e afirmava
que esse casamento já estava justo entre os pais. O
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comendador Matos era, depois do barão, o homem mais rico


do lugar; todos achavam pois muito natural que essas duas
riquezas se atraíssem mutuamente por uma irresistível paixão
matrimonial. Frederico era bonito moço, mas tinha um rosto de
alfenim, redondo, sem a menor sombra de buço; o que lhe
dava certo aspecto afeminado e ingênuo (ALENCAR, 198[-]:
107)
Aqui, é possível contrastar, a voz do narrador alencariano, com a voz do
narrador machadiano de Iaiá Garcia, quando da apresentação de Raimundo.
Embora o narrador de Machado apresente o velho escravo em meio à
descrição pormenorizada que faz da casa de Luís Garcia, Raimundo,
contrariamente ao ocorrido nos romances de Alencar, não recebe o mesmo
tratamento dado pelo narrador aos objetos. Embora, de início, o narrador diga
que, Raimundo, tal qual os objetos da casa, fora moldado para servir Luis, a
descrição feita do negro traz em seu âmago as características físicas, os dados
psicológicos e o passado de um homem, fatores que minam o aparente
conservadorismo do discurso. Também enfraquecendo a aparência
conservadora das palavras do narrador está outra sutil ação do escravo,
relatada em sua descrição: o recuo diante da possibilidade de dilaceramento de
sua carta de alforria. Além de evidente expressão da humanidade do escravo
Raimundo, o recuo diante do impulso de destroçar sua própria carta de alforria
parece demonstrar uma complexa consciência da personagem machadiana
sobre sua posição étnica, social e cultural. Ao desistir da destruição de sua
carta, Raimundo, mais do que evidenciar, aos olhos do leitor, sua sabedoria de
que aquele papel era a única garantia de liberdade a um escravo em um país
em que a escravidão era legalizada, mostrava a fragilidade daquele recurso.
Tentado a destruir a carta, Raimundo sugestiona demonstrar o quanto a alforria
não vinha acompanhada da possibilidade real de liberdade, uma vez que a
subalternidade, a marginalidade acompanhariam o escravo liberto. Assim,
recuando da destruição, o negro parece querer, de um lado, guardar para si
uma prova simbólica, mais do que concreta da liberdade e, de outro, “proteger-
se” da luta inglória para o sucesso de um escravo alforriado na sociedade
brasileira do século XIX. Desta perspectiva, a permanência na casa de Garcia
e as conversas com o senhor são mais do que um convívio harmonioso, são
uma estratégia de quem pouco ou nada pode esperar da injusta e escravocrata
sociedade brasileira.
Visto deste ponto, o discurso do narrador de Machado se forma sob dois
planos. Em um plano mais superficial, expõe a visão senhorial sobre as
atitudes de Raimundo, compreendendo sua permanência na casa de Luis
Garcia como ato de generosidade escrava e seus cantos como resultantes da
alegria de um negro a viver com um bom senhor. Já em um plano mais
aprofundado, Raimundo destrói este discurso, trazendo ao lume a existência de
uma luta fracassada e silenciosa dos negros contra a escravidão. Moldada por
estes dados, a cena de Iaiá Garcia dilacera a figura do escravo fiel, tão cara à
literatura e aponta para o posicionamento de Machado de Assis, em relação à
importância do governo para o fim da escravidão. Enquanto José de Alencar
defendia que o fim do regime seria algo natural, projetado a partir da
benevolência costumeira dos senhores ao distribuírem cartas de alforria, bem
como resultaria do inevitável branqueamento da sociedade, Machado, segundo
Chalhoub, estava crente da necessidade de leis rígidas para o fim da
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escravidão, bem como afiançava a importância da preparação da sociedade


para a recepção dos negros libertos.
Raimundo, a exemplo de Vicente, personagem de Helena, submete-se à
lealdade em relação ao senhor porque a vê como única forma de obter
privilégios na sociedade escravocrata. Os dois intencionam “traduzir essa
obediência em conquistas ou espaços de autonomia” (CHALHOUB, 2003: 53),
no que parecem, guardadas as proporções possíveis para uma sociedade
brasileira do século XIX, serem bem-sucedidos. Vicente fumando o charuto do
senhor, ao lado de Helena, exemplifica maiormente esta conquista. As
conquistas de Raimundo, por sua vez, são menos coloridas aos olhos do leitor,
porém podem ser sentidas no decorrer do enredo. Ainda que o narrador insista
em dizer o quanto aquele escravo “vivia a alegria” (ASSIS, 1994:16) dos
senhores e chorara a morte de Luis Garcia, a autonomia de sentimentos e,
principalmente, de pensamentos de Raimundo é bem evidente. Ele sorri “entre
os dentes” (ASSIS, 1994: 118) ao ver Iaiá enamorada de Jorge, ele chega a
argumentar com a sinhá-moça diante do pedido de que ele entregue uma carta
dela a Procópio Dias e, ao final, Raimundo muda o destino da trama por
desobedecer à ordem da moça. Mesmo que o narrador afirme que o escravo
fora tentado a obedecer por avaliar como “infidelidade” (ASSIS, 1994:132) a
não entrega da carta, é a desobediência a sua atitude final. Mesmo que o
narrador atribua a ação a um ato de bondade do senhor para com a filha de
Gama, o fato é que Raimundo não obedece a uma ordem senhorial e, ao final,
assume seus atos de olhos erguidos e falando “resolutamente” (ASSIS, 1994:
138). E, é por ter cultivado o espaço de autonomia que lhe era possível
naquela sociedade, que, então, Raimundo sai ileso da situação.
Observados por esta ótica, Vicente e Raimundo fogem ao estereótipo do negro
fiel, pois, com maior ou menor culpa, utilizam a fidelidade como barganha, algo
que não ocorre a Pai Benedito, Nhá Chica, Pai Quicé e Zana, personagens
alencarianas. As citadas personagens, apesar de serem as únicas para as
quais Alencar dedica um pouco mais de atenção, são exemplos condignos da
fidelidade gratuita ao senhor. Todas elas veneram seus proprietários (vivos ou
mortos), sendo incapazes de qualquer ato que modifique sua situação ou,
ainda, que transforme o enredo dos romances. Destarte, Zana e Pai Benedito
são conhecedores dos segredos da morte de seus senhores, mas ambos não
desencadeiam a solução do enredo. Ela, sentindo-se culpada pela morte da
senhora, enlouquecera. Ele, diariamente venerando ao morto, não toma
nenhuma atitude que interfira no andamento da narrativa, deixando que a
revelação do segredo decorra da iniciativa de Mário. Aliás, mesmo a imagem
de feiticeiro que assola a Pai Benedito não fora construída por ele, que, por
outro lado, também não lutou contra ela: “força lhe foi recorrer ao arsenal de
bruxarias deixado pelo pai Inácio, e satisfazer aos rogos dos parceiros.
Algumas cousas que disse, aconteceu saírem certas, e tanto bastou para
aumentar a fé na sua mandinga” (ALENCAR, 198[-]: 50).
Uma verificação atraente é o quanto a ausência de atitude das personagens
negras do romance de Alencar se sustenta, também, pelo contraste com as
personagens de origem indígena. Para Brookshaw (1983), quando negro surge
na literatura romântica, ele aparece em contrapelo à mitificação indígena,
marcando-se pela humildade e pela resignação. Assim, em Til, Jão Fera,
apesar de assassino, é descrito pela aproximação positivada das
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características e ações de animais ágeis e ferozes como onças e tigres.


Mesmo assassino, ele se via e era visto por sua honradez, coragem e por um
significante apreço pela independência, cuja existência o levava a abominar o
trabalho braçal e, por extensão, a condição escrava: “Não me torno [...] escravo
de um homem, que nasceu rico, por causa das sobras que me atirava, como
atiraria a qualquer outro, ou a seu negro” (ALENCAR, 1973: 42).
Execrar o trabalho é comum às personagens não negras de todos os romances
que nos são objeto. Em O tronco do ipê, o narrador chega a apontar três
formas de ascensão social: a herança, o casamento e o trabalho, porém, no
desenrolar da narrativa, nenhum exemplo de ascensão pela labuta é descrito.
Em MPBC, pelo lado machadiano, Brás tem verdadeira repulsa pela ação de
trabalhar e, não obstante aconselhar que Quincas Borba o faça, deixa de
seguir seus próprios conselhos. A percepção do trabalho como humilhação,
especialmente o trabalho braçal, não era algo novo naquele momento da
história brasileira. Desde os primórdios da colônia, ele foi socialmente visto
com falta de apreço e compreendido como “coisa de negro”. Analisando as
palavras de Marx, reproduzidas por Bosi, e aplicando-as ao contexto das
relações sociais do Brasil escravista, podemos compreender o caráter pouco
vanglorioso dado ao trabalho e sua colaboração para a manutenção da injusta
estratificação social. Na frase, escancara-se a falta de opções para os
socialmente subalternos:

Por certo, o trabalho humano produz maravilhas para os ricos,


mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios,
mas choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz
maravilhas para os ricos, mas produz privação para o
trabalhador. Ele produz beleza, porém para o trabalhador só
fealdade (MARX, apud BOSI, 1992: 144)

Reproduzindo discursos correntes na sociedade brasileira do século XIX,


também aparecem os escravos alencarianos. As lentes com as quais os
africanos se olham nestes romances são as mesmas utilizadas por seus
senhores ao julgarem os negros. Não é por outro motivo que, ao conversarem
entre si, os escravos de O tronco do ipê e Til julgam sua condição servil com
naturalidade. A Martinho, Alice não poderia pegar o fruto que desejava porque
a ele, como seu pajem, cabia esta função. A Eufrosina “senhor bom é o que
não falta” (ALENCAR, 198[-]: 33) e, ainda a ela, moço branco não deveria ser
chamado pelos escravos somente pelo primeiro nome (ALENCAR, 198[-]: 153).
Não cessam aí, todavia, as considerações dos escravos que reproduzem
preconceitos corriqueiros no Brasil da época. Eufrosina e Florência esclarecem
outro deles, pois apontam para a distinção existente entre os próprios
escravos. Ao sentir-se superior por ser denominada por sua senhora como
“mucama de estimação” (ALENCAR, 198[-]: 37), Eufrosina é instigada pelo
mesmo discurso ideológico senhoril de Florência que se sente inferior por não
ser escrava doméstica. Ao se diferenciarem entre si, estas personagens negras
evidenciam o quanto ignoram o compartilhamento que exercem do cativeiro e,
vão mais longe, no uso em comum de preconceitos oriundos da camada social
dominante, pois além de humilharem a outros iguais por uma superioridade
inexistente na prática, ecoam preconceitos em relação às suas próprias
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características africanas. Muito expressiva neste ponto é a ocasião em que os


escravos desmerecem suas peculiaridades físicas e genealógicas como se não
lhe fossem pertencentes a todos. O apontamento do tipo de cabelo, da
espessura dos lábios e, mesmo, da origem diretamente angolana dos
antepassados formam parte das características que, atiradas ao outro como
ofensa, demonstram o aniquilamento da consciência do negro como tal nos
escritos românticos:

- Qui-Qui-Qui! Pomada de jaca!... Qui-Qui! Para alisar o pixaim.


(ALENCAR, 198[-]: 33)
- Deixa êste tição! acudiu a Eufrosina. Como ganhou
molhadura pela chegada do nhonhô Mário, que não devia
ganhar...
- Tição!... tição é seu pai de você, negro cambaio e bichento
que veio lá d’Angola... Cada beiço assim! hi! hi!
A Eufrosina, cega de raiva, atirou-se ao pajem, que fugia-lhe
correndo ao redor da mesa e exasperando a mucama com as
caretas que lhe fazia:
- Cada beiço, assim, como orelha de porco (ALENCAR, 198[-]:
153)

Os romances Til e O tronco do ipê trazem à baila, portanto, negros cuja


consciência da dominação sofrida esta longe de ocorrer. O ponto de vista
adotado é o do branco, ao invés do “discurso da diferença” (DUARTE,
2007:07), há “toda a assimilação cultural imposta como única expressão”
(DUARTE, 2007:07), de tal modo isto ocorre que a jovem Eufrosina chega a
sonhar com a beleza branca e com a vida na corte. Os escravos alencarianos
compartilham os padrões de beleza de seus senhores, ou seja, o padrão de
beleza branco. Neste contexto, inexiste qualquer reversão dos valores
europeizados (BERND, 1987), perdurando-se os preconceitos correntes na
sociedade brasileira. O poema de Cunha Junior parece percorrer caminho
oposto:

Cabelos enroladinhos enroladinhos


Cabelos de caracóis pequeninos
Cabelos que a natureza se deu ao luxo
de trabalhá-los e não simplesmente deixá-los
esticados ao acaso
Cabelo pixaim
Cabelo de negro (CUNHA JUNIOR apud DUARTE, 2007:
06)

Em análise da poesia de Henrique Cunha Junior, Eduardo de Assis Duarte,


demonstra como aquele poeta faz, exatamente, o processo oposto àquele que
contamina a escrita de José de Alencar. No poema, “o tom carinhoso impresso
à linguagem [...] no momento em que trata de um dos principais ícones do
preconceito racial, dá bem a medida do esforço de reterritorialização cultural
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empreendido pela literatura afro-brasileira” (DUARTE, 2007: 06) e não presente


em Alencar. No poema, “o signo cabelo enquanto marca de inferioridade –
cabelo ‘duro’, cabelo ‘ruim’ [...], é recuperado pelo viés da positividade
expressa na linguagem: o diminutivo de ‘enroladinhos’ em conjunção fônica (e
semântica) com ‘pequeninos’ remete ao ‘luxo’ dos ‘caracóis’ trabalhados pela
natureza, ao contrário do cabelo liso, inscrito como fruto do ‘acaso’” (DUARTE,
2007: 06). Tudo isto contrasta com o campo semântico do texto de José de
Alencar, marcado por “pixaim”, “tição” e “beiço”.
Assim, o processo de rebaixamento de um negro em relação a outro negro,
ocorrido nos romances de Alencar, não sugere igualdade com o mesmo
processo presente em MPBC. O capítulo “Vergalho” traz ao lume Prudêncio já
liberto açoitando um negro que havia comprado. Diante da cena, saltam aos
olhos do leitor a violência do episódio e sua inegável semelhança (desde a sua
brutalidade até suas palavras) com o açoitamento sofrido pelo personagem,
quando menino. O amálgama destas características faz dele tão reprodutor das
ideologias e das ações senhoriais quanto os escravos de Alencar. No entanto,
também o coloca em situação diferenciada em relação àquelas personagens
românticas, uma vez que ele está livre e não repete as ações do senhor
instigado pelo conformismo natural pelo qual estavam contaminadas as
personagens de Alencar. Prudêncio somente rebaixa outro negro quando já
ocupa a posição de homem livre, o que determina sua plena consciência da
oposição entre livres e cativos e distancia o foco do texto de Machado da
sociedade harmônica, entre senhores e escravos, talhada por José de Alencar.
Prudêncio conhece a linguagem senhorial, ou seja, a violência e, como o
próprio narrador revela, tenta através dela “se desfazer das pancadas
recebidas” (ASSIS, 1997: 110). Em um primeiro instante, as pancadas e as
palavras de Prudêncio direcionadas a seu escravo invocam certa negatividade
à sua figura. O escravo de Machado, como o escravo de Nietzsche,
intimamente possui um desejo maior: dominar como foi dominado. Ao invés da
transcendentalidade cristã, o homem se caracterizaria pelo prazer no domínio
do semelhante. “Machado situa-se além dos mitos burgueses da autonomia e
da autenticidade da pessoa [..]” (SCHWARZ, 2001: 195).
Mas, a cena em questão continua. A intromissão de Brás retoma, a nossos
olhos, a fragilidade da liberdade dos negros alforriados, concomitantemente,
desfazendo o tom de vilania de Prudêncio. O estereótipo do escravo vilão e
inapto para a liberdade está também, portanto, frustrado em Machado de Assis.
Na narração de Cubas, o que se faz verificar não é uma maldade latente
advinda de um descendente de uma raça incivilizada e perversa, o que se
expõe por ela é a forma como o negro liberto jamais ameaçara o domínio
branco. De maneira extremamente chocante, retrata-se a eliminação do acesso
à cidadania pelo negro. De acordo com Florestan Fernandes, o aniquilamento
da condição cidadã para o negro liberto ultrapassa a questão racial, apontando
para seu isolamento econômico, social e cultural (FERNANDES, 2008) e, mais
ainda, para a naturalização deste processo, culminando no mito da democracia
racial. O certo é que ser negro liberto no século XIX, como bem demonstra a
cena machadiana, não era sinônimo de real liberdade. A narração feita por
Cubas comprova a invalidade da carta de alforria frente aos arraigados
costumes da sociedade brasileira. Afirmando o ex-escravo ainda como “Meu
Prudêncio” (ASSIS, 1997:110) e vendo-o pedir-lhe a benção, Cubas ratifica seu
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inabalável poderio de senhor sobre o rapaz. Tendo sido ordenado por Cubas
que perdoasse o escravo, Prudêncio obedece: “Nhonhô não pede, manda”
(ASSIS, 1997:110). Satisfeito, Brás sai e, no capítulo seguinte, lembra-se de
um louco, cuja loucura consistia em querer ser rei dos tártaros. O irônico
narrador machadiano parece sugerir ao leitor que, naquela sociedade, negro
não seria rei, a tentativa de sê-lo o conceberia, aos olhos alheios, como insano,
motivo de risos, risos que saem da boca de Brás e que, em uma cartada
literária inteligentíssima, encaminham definitivamente a aversão do leitor ao
narrador. Prudêncio, absolutamente não era o vilão, o execrável era Brás
Cubas, o senhor. Neste instante, parece viável lembrar como Machado
desmancha, concomitantemente, o estereótipo do negro vítima. Prudêncio não
é o vilão, mas também não se afirma como a vítima calada. Humanamente ele
tenta superar seus traumas e ocupar um lugar na sociedade. Para tanto, usa as
armas que a elite lhe apresentara. Frustra-se, porque assim seria naquela
estratificada sociedade, porém Machado o coloca longe de qualquer
estereótipo.
Avaliações sobre a brandura da escravidão brasileira e sua imprescindível
existência eram comuns na sociedade da época e podem ser vistas em O
tronco do ipê e Til. Mário e o Conselheiro Lopes a despeito dos lugares
diferentes de que falam, apesar de moralmente antagônicos, concordam sobre
a questão. Na noite de Natal, ao observarem o batuque dos escravos, ambos
concluem que “o proletário de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso
escravo” (ALENCAR, 198[-]: 162) e crêem ser a escravidão a única solução
para suprir a necessidade de “braços” (ALENCAR, 198[-]: 162) no país. Esta
era uma concepção partilhada pelo político Alencar que discursara contra a lei
de 1871:
Estudando depois a existência do escravo, a satisfação de sua
alma, a liberdade que lhe concede a benevolência do senhor;
se convenceria que esta revolução dos costumes trabalha mais
poderosamente para a extinção da escravatura, do que uma lei
porventura votada no parlamento (ALENCAR, 1867: 162).
Em se tratando da pretensa benevolência senhorial, é interessante o paralelo
entre Machado de Assis e José de Alencar. Apesar de nos quatro romances
analisados os senhores manterem figuração central no enredo, apenas nas
narrativas românticas os soberanos emergem como homens irrepreensíveis e
protetores. Os exemplos de suas bondades para com seus agregados e,
principalmente, para com os escravos são inúmeros. Em um paralelo com os
senhores machadianos, a idealização de Alencar sobre estas personagens fica
ainda mais visível. Enquanto Luís Galvão reina com tranquilidade em sua
fazenda; e enquanto o Barão da Espera é soberano em toda a região do
Boqueirão e se redime de seu único erro durante toda sua existência; Brás
Cubas revela, pós-morte, sem arrependimento, com muita crueldade, ironia, e
até certo orgulho, sua vida de desvios, na mesma medida em que Luis Garcia
teme desafiar o poder senhorial de Valéria e, fraco, cede ao pedido de que
convença Jorge a ir para a guerra. Eis, novamente, Machado de Assis
destroçando um estereótipo sem recair em outro. Deixando de idealizar os
senhores, Machado também não encaminha seu texto para a construção de
personagens cujas ações se reduzam aos maus-tratos aos escravos. Ainda
que, especialmente em MPBC, não sejam construídas cenas de benignidade
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entre escravos e senhores, a humanidade de suas personagens impede que a


construção recaia em maniqueísmos simplistas.
Como estamos averiguando, muito importante no processo de construção das
imagens relacionadas aos escravos nos romances são os narradores. Vale
ressaltar que em José de Alencar e, em maior monta, em O tronco do ipê, o
narrador tenta forjar para si uma imagem de ser analítico e isento. Ele
desconfia da alcunha de feiticeiro de pai Benedito, observa com desconfiança
as crenças populares e se esforça em comprovar sua imparcialidade sobre os
fatos, ora fazendo-o através do destaque de sua posição de recém conhecedor
dos acontecimentos, ora declarando seus “métodos” para a construção da
narrativa. Assim, destaca sobre Mário: “Não hei de encobrir os defeitos desse
caráter, como não pretendo exaltar suas qualidades.” (ALENCAR, 198[-]: 96).
Sua clara intenção parece ser captar a confiança do leitor, predispondo-o a crer
em suas opiniões ao longo da narrativa. Opiniões estas que serão comuns
também ao narrador de Til.
Em ambas narrativas, os narradores marcam distância em relação aos
escravos, o que possibilita que os julgue como seres intelectualmente
inferiores. Mais ou menos diretamente, as conclusões a que chegam os
narradores é a de que os negros são “almas rudes, não se compreendem a si
mesmas” (ALENCAR, 198[-]: 24) e, por isso, precisam “falar para ouvirem o
que pensam” (ALENCAR, 198[-]: 24). A tal ponto os negros são primitivos
diante dos olhos dos narradores alencarianos que seus sentimentos são
incompreensíveis a todos, inclusive a si mesmos. Por estas vias, pai Bendito
não sabe o motivo que o leva a venerar Mário e o detalhista narrador não
consegue explicar as reações daquelas almas: Que passava nessa alma para
assim transfigurar o rosto grosseiro do escravo? Era dor, era espanto, era
unção? ou tudo isso reunido? Quem o pode saber? (ALENCAR, 198[-]: 41).
Ignorantes de si mesmos, os negros, sob as lentes destes narradores, seriam
também marcados pela insensibilidade em relação à beleza natural do Brasil. A
comparação elaborada pelo narrador de Tronco de Ipê para traçar esta
incompetência demonstra o quanto preconceituosa é sua posição. Ao
aproximar crianças brancas e escravos, ele afirma a insensibilidade em ambos,
porém os vocábulos “ainda mais” direcionam aos negros a maior brutalidade e
reservam a eles a eternidade da indiferença frente a beleza natural: “as
crianças, e ainda mais os escravos, conservaram-se completamente
indiferentes à beleza desse quadro, que a natureza tropical coloria ao mesmo
tempo de luz e harmonia” (ALENCAR, 198[-]: 30)..
As narrativas de Machado, em mais este quesito, fogem às de Alencar. O
recorte sem sentimentalismos, ferino, cético e incisivo, impõe à escrita uma
contundência social crítica incomparável. Seu narrador não acredita na
sociedade e, portanto, não poderia jamais reproduzir afirmativamente seus
discursos. Apresentando um descontentamento para como os ideais
apregoados, o autor chega à discussão do “fundamento secreto dos valores, da
verdade, inclusive, que sem a vontade e o poder social de impô-los, não seriam
nada” (SCHWARZ, 2001: 177). Não parece ser por outro motivo que sua maior
ferocidade sobre a questão escrava esteja em MPBC, livro narrado por um
morto. A perspectiva cética de Machado está intrinsecamente ligada à autoria.
A escolha de um autor morto possibilita a Machado discursar de um lugar
alternativo. Como se a verdade, a exemplo do que diria Santo Agostinho, só
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fosse possível fora da vida, a opção por uma autoria defunta permite a
expressão livre sobre a miserabilidade humana e, consequentemente, revela a
olhos nus o estrume e a terra que formam a elite social brasileira. (ASSIS,
1997: 23)
Outro artifício a marcar, concomitantemente, a distância e o preconceito dos
narradores de Alencar em relação aos negros diz respeito ao processo de
animalização dos escravos. Ele surge ora para marcar as ações ou
sentimentos, ora para aferir as características físicas. Nas duas situações, as
comparações são depreciativas, seja pela existência de esclarecimentos dados
pelo próprio narrador neste sentido ou pela escolha do animal utilizado no
contraste. Desta feita, Monjolo é a “trouxa negra que avançara pelo terreiro aos
pinchos como um sapo” (ALENCAR, 1973: 259); Mário amava tamanhamente
pai Benedito, assim como apreciava “um cão ou um cavalo” (ALENCAR, 198[-]:
162) e o pajem mostrava “o focinho entre a folhagem da última gripa do
jequitibá” (ALENCAR, 198[-]: 89). As comparações e metáforas expressam, de
uma só vez, a inferioridade e a submissão a que estão sujeitos os negros no
Brasil e a concordância que o narrador parece compartilhar a este respeito.
Os exemplos em relação à zoomorfização do negro em José de Alencar são
inúmeros e em muito se aproximam do mesmo processo utilizado em
romances naturalistas, uma vez que não servem para demonstrar o tratamento
desumano relegado aos escravos, mas constroem seres ontologicamente
degradados, bem a contento de uma elite que via na população negra uma
raça inferior3. Neste ponto, a zoomorfização presente em Alencar parece
intrinsecamente relacionada à sua afeição por teorias de Darwin e Spencer.
Embora romântico, Alencar comungava com estas teorias a concepção de que
a inferioridade das “raças primitivas” era biologicamente explicável, de forma
que, com o decorrer dos anos a eliminação das mesmas seria irremediável.
Assim, ao montar seus argumentos em prol da escravidão, Alencar afirma que
ela trouxera ao Brasil a positividade da miscigenação que geraria uma
civilização nova e, com a passagem dos anos, branca: “Em três e meio séculos
o amalgama das raças se havia de operar em larga proporção, fazendo
preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam no Brasil para uma
transformação completa” (ALENCAR, 1867: 282).
De acordo com Jean-Yves Mérian, a influência de Spencer e Darwin em
Alencar ultrapassa os aspectos ligados ao branqueamento da pele. Para o
crítico, em Alencar o processo mencionado ganha, principalmente, um cerne
cultural, na medida em que seus livros expressam repúdio à cultura não-
branca. Por estas vias, ele explica não só o relacionamento do autor com a
cultura negra, mas a construção do mito indígena. Sua conclusão acerca de
Iracema ilustra bem seu entendimento sobre o romancista do século XIX:
A índia e o povo indígena ao qual pertence desaparecem
dando lugar a um ser híbrido que não transmite nenhum dos
valores culturais, linguísticos, religiosos do povo materno.
Destarte não se trata de sincretismo mas sim de uma forma de

3
Contudo, a animalização de senhores e escravos é diferenciada. As comparações de personagens
brancas a animais não as rebaixam os desqualificam, antes realçam suas melhores características: “Seu
passo era ágil, rápido e sutil como o passarinho, de que tinha a volubilidade e a gentileza. Ela desferia de
si ao mesmo tempo três movimentos: cantava, corria e dançava” (ALENCAR, 198[-]: 27).
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assimilação que se manifesta num processo de genocídio


(MÉRIAN, 2008:51)
A cultura negra, portanto, é observada com negatividade pelos narradores
alencarianos. Tanto em Til como em O tronco do ipê, os narradores se
esmeram em abordar com detalhes a religiosidade e os festejos negros. Se,
por um lado, tal dedicação pode estar relacionada à intenção de retratar a
cultura do interior do Brasil, por outro, os comentários dos narradores infiltram
na história julgamentos que, ora destacam a bondade dos senhores pela
permissão dos festejos: “Na noite de Natal os pretos da roça tinham licença
para fazer também seu folguedo, e os senhores estavam no costume de por
esta ocasião honrar os escravos, assistindo à abertura da festa que principiava
pelo infalível batuque” (ALENCAR, 198[-]: 161), ora argumentam em prol da
ausência de racionalidade e disciplina que marcavam estes encontros. Em Til,
a descrição criteriosa dos movimentos dos negros em uma das festas é repleta
de verbos que, dispostos de maneira gradativa, compõem o que o narrador
nomeia de “desesperado saracoteio” (ALENCAR, 1973: 251). Aos olhos do
narrador, a irracionalidade e a indisciplina a tal ponto dominam a cena que, ao
final, a comemoração desemboca em uma briga, na qual todos os escravos se
envolvem. Destarte, a abordagem cultural negra, em Alencar, não culmina em
um processo de conscientização da originalidade africana, capaz de gerar uma
contracultura (SCHWARTZ, 1993). Em Alencar, a tematização da cultura
negra, vista pelas vias do exotismo, exclusivamente reforça um discurso já
posto: a superioridade da cultura branca.
Certamente preconceituosa em relação à cultura africana, a última cena
aludida retoma também a convicção da época sobre a inaptidão negra para a
liberdade, tema também passível de discussão diante da condenação de
Faustino e Monjolo, escravos que teriam traído a confiança do bondoso senhor.
Estes posicionamentos estão de acordo com o político José de Alencar. Para
ele, a liberdade dos escravos no Brasil ocorreria, mas paulatinamente, no
mesmo ritmo em que o branco fosse conseguindo civilizar ao negro. Afinal,
conforme os próprios romances demonstram, os escravos eram objeto e, como
tal, cabia ao senhor o mando, cabia a ele decidir sobre o merecimento ou não
da liberdade, cabia aos senhores aceitar ou não a validade das cartas de
alforria e, neste ponto, diziam muitos: “liberdade ao negro... quando inútil ao
trabalho ou quando morto”.
Momentos em que o discurso do narrador seja sustentado pela defesa de
preconceitos tão correntes na sociedade do século XIX são, como expusemos,
corriqueiros em Alencar. Todavia, não podem ser vistos em Machado. O
ceticismo, a ironia, a sátira requintada, a paródia e a carnavalização das obras
do autor não lhe permitem que discurse de acordo com a hipocrisia social, com
o determinismo ou com o evolucionismo tão em voga na época. Apesar de
nunca ter se apresentado como negro, Machado de Assis, ao escrever contra a
elite dominante, defendeu os afrodescendentes. Obviamente, tendo por escopo
o retrato da sociedade de seu tempo, nas salas das casas de senhores do Rio
de Janeiro não poderia expor a cultura negra, não poderia fazer protagonista o
negro, porque assim, exilado, discriminado estava na prática o escravo. Desta
feita, parece óbvio que, mesmo sem ter gritado aos quatro ventos sua cor,
Machado tenha construído uma literatura que “romp[ia] [com] o discurso da
cultura oficial, e se manifesta[va] como um elemento de resistência à [...]
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marginalização social” (MOURA, 1980: 09). Enfim, se fosse de outro modo, não
poderia Brás expressar sobre a negra borboleta: “creio que para ela era melhor
ter nascido azul” (ASSIS, 1997: 62).

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*
Elaine Lima é doutoranda em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Estadual
de Londrina.

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