Art I Go Elaine Aparecida 1 Do Is Homens
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Destarte, basta-nos lembrar a cena em que Brás Cubas, menino, faz de cavalo
o escravo Prudêncio, para verificarmos o quanto ela seria inverossímil ao
1
Segundo Mailde J. Trípoli (2006), enquanto Castro Alves denuncia a violência explícita a que os
escravos e, principalmente as mulheres, negra e mulata, estavam expostos, Machado revela outras
formas de violência, nem sempre tão explícitas, mas igualmente cruéis e doloridas.
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silêncio das personagens negras até o total apagamento das mesmas. Na cena
em que Alice, já adulta, vai ao quarto de Mário, acompanhada da escrava
Eufrosina, é interessante verificar como esta permanece muda e os senhores
conversam como se ela não estivesse ali. Algo semelhante ocorre na
continuação da primeira cena do romance, quando os escravos simplesmente
desaparecem da segunda fase da cena, dando vazão ao império totalitário das
vozes brancas, mesmo que infantis.
Certamente não podemos dizer que os negros machadianos dominem as
cenas com suas falas. De acordo com Gizelda Melo do Nascimento, nas obras
de Assis, o negro muitas vezes está “sem fala, sem discurso” (NASCIMENTO,
2002: 61). Mas, nestes casos, o modo como Machado constrói suas narrativas
demonstra que o negro se cala porque assim lhe impõe a sociedade, o que se
destaca não é seu conformismo, mas sua vida humilhante. Lembrar de
Raimundo parece essencial, neste ponto. Raimundo fala e, discordando de
professora Gizelda, dizemos que ele possui um discurso. Nascimento acredita
que os colóquios com Luís Garcia provam que “embora tenha fala, Raimundo
não possui um discurso para sustentar um diálogo de conteúdo significativo”
(NASCIMENTO, 2002: 56) com seu dono. Em se considerando que, conforme
expõe Foucault, “em toda a sociedade a produção do discurso é
simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um
certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e
os perigos [...]” (FOUCAULT, 2005: 34), parece-nos plausível que uma visão
sobre a totalidade do enredo de Iaiá Garcia contradiga a afirmação da
professora. O papel essencial de Raimundo no desfecho da narrativa, sua
titubeante, porém existente, desobediência à ordem da sinhá-moça e, mesmo,
sua fala resoluta ao explicar os motivos que o levaram a contrariar a senhora,
provam que Raimundo é capaz de construir um discurso, é capaz de se
posicionar racionalmente e sozinho sobre um fato ou uma situação e, mais do
que isto, é capaz de defender seu ponto de vista sobre ele. O cerne da análise
das conversas de final de tarde, entre Raimundo e Luís, portanto, não está na
suposta incapacidade discursiva da personagem. Novamente é Foucault o
auxiliar no entendimento das mesmas. Segundo ele,
Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que
nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer
circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode
falar do que quer que seja. Tabu do objeto, ritual da
circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito
(FOUCAULT, 2005: 29)
Em outras palavras, as conversas “com o antigo senhor” (ASSIS, 1994:14)
apenas versavam sobre o “pequeno mundo, as raras ocorrências domésticas, o
tempo que devia fazer no dia seguinte, uma ou outra circunstância exterior”
(ASSIS, 1994: 14-15) por alguns motivos básicos: Raimundo sabia onde estava
(a casa do senhor), Raimundo sabia quem era (um negro liberto), Raimundo
sabia com quem falava (seu ex-proprietário) e, principalmente, tinha plena
certeza de que no século XIX, no Brasil, negro não tinha vez, era preciso
conquistar certa autonomia, discursando conforme seu interlocutor. Falar de
amenidades (em que pese o fato de que todos o falam em circunstâncias de
descanso) era então, meio de sobreviver em um mundo no qual o poder estava
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com o outro e, foi, em muito, por ter agido assim, que Raimundo conseguiu
espaço suficiente para atuar da maneira como atuou ao final do enredo.
Aliás, a adequação de Raimundo a seu interlocutor já existira em outro
momento do texto. Ao falar com a criança Iaiá, a personagem fala de si em
terceira pessoa e infantiliza sua linguagem, continuando a fazê-lo diante da
moça, a quem sempre consideraria como a eterna menina, filha de Luis Garcia.
Nos momentos de maior intimidade com ela ou, ainda, quando está a lutar
timidamente contra a ordem recebida, Raimundo permanece moldando sua fala
desta maneira. Todavia, quando cria coragem e confessa não ter realizado o
desejo da moça, o negro abandona seus dizeres costumeiros, dizendo sem
rodeios: “Não entreguei.” (ASSIS, 1994:138). É certo que diante da imobilidade
de Iaiá, Raimundo volta a utilizar-se da terceira pessoa, mas isto não significa
que tenha recuado em seu discurso, uma vez que o narrador confessa como a
firmeza da personagem continuava viva.
O aspecto linguístico pouco elaborado, dado como esdrúxulo, e a fala de si em
terceira pessoa não são elementos intrínsecos, portanto, à expressão das
personagens escravas de Machado, porém o são às de Alencar. Os narradores
de Alencar, marcando distância das personagens africanas e,
simultaneamente, intentando evidenciar conhecimento da cultura daquele povo,
procuram veicular um modo de falar dos escravos que se distingue dos
homens brancos. Assim, em Til, o narrador chega a utilizar cantigas de
escravos e a observar expressões próprias dos trabalhadores negros da
lavoura. Há de esclarecer que por si só a opção de resgate de uma tradição
africana da linguagem seria bem vinda ao texto alencariano pois, se não
gerasse uma legítima literatura que visse e sentisse o mundo pelos olhos do
negro, se não formasse uma narrativa em que o vocabulário e os símbolos
africanos marcassem a linguagem sem estereótipos (BERND, 1987:18), pelo
menos poderia resgatar a memória negra sem preconceitos . Contudo, o
empecilho para que o texto de Alencar caminhe por trilhos próximos àqueles de
escritores afrodescendentes é que seu narrador impõe à fala dos escravos um
caráter de exotismo que lhe retira qualquer conotação humana e natural. É
interessante como Alencar, defensor da nacionalização da linguagem literária
brasileira e ciente de sua construção a partir da miscigenação dos povos, caiu
na armadilha mencionada. Nos romances em pauta, as utilizações das falas
estranhas aos moldes formais: “- Gentes, quedê a colcha rica da cama dos
noivos?” (ALENCAR, 198[-]: 87).; “-Tição!... tição é seu pai de você
[...]”(ALENCAR, 198[-]: 153), aparecem continuamente justificadas pelo
narrador. Ele se preocupa em apontar seus objetivos com a utilização,
declarando a necessidade de tornar mais vivas e nacionais as obras, mas, em
suas colocações, deixa transparecer o preconceito, na medida em que utiliza
palavras como “anomalia” e “irregularidades” para comentar as particularidades
da linguagem dos escravos, que se assemelharia, segundo ele, à linguagem
infantil.2:
A linguagem dos pretos, como das crianças, oferece uma
anomalia muito frequente. É a variação constante da pessoa
em que fala o verbo; passam com extrema facilidade do ele ao
2
É interessante o como a infantilização da linguagem pode pressupor também mais um argumento em
prol da falta de aptidão do escravo para a liberdade, haja vista a pretensa falta de maturidade delegada
ao negro.
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inabalável poderio de senhor sobre o rapaz. Tendo sido ordenado por Cubas
que perdoasse o escravo, Prudêncio obedece: “Nhonhô não pede, manda”
(ASSIS, 1997:110). Satisfeito, Brás sai e, no capítulo seguinte, lembra-se de
um louco, cuja loucura consistia em querer ser rei dos tártaros. O irônico
narrador machadiano parece sugerir ao leitor que, naquela sociedade, negro
não seria rei, a tentativa de sê-lo o conceberia, aos olhos alheios, como insano,
motivo de risos, risos que saem da boca de Brás e que, em uma cartada
literária inteligentíssima, encaminham definitivamente a aversão do leitor ao
narrador. Prudêncio, absolutamente não era o vilão, o execrável era Brás
Cubas, o senhor. Neste instante, parece viável lembrar como Machado
desmancha, concomitantemente, o estereótipo do negro vítima. Prudêncio não
é o vilão, mas também não se afirma como a vítima calada. Humanamente ele
tenta superar seus traumas e ocupar um lugar na sociedade. Para tanto, usa as
armas que a elite lhe apresentara. Frustra-se, porque assim seria naquela
estratificada sociedade, porém Machado o coloca longe de qualquer
estereótipo.
Avaliações sobre a brandura da escravidão brasileira e sua imprescindível
existência eram comuns na sociedade da época e podem ser vistas em O
tronco do ipê e Til. Mário e o Conselheiro Lopes a despeito dos lugares
diferentes de que falam, apesar de moralmente antagônicos, concordam sobre
a questão. Na noite de Natal, ao observarem o batuque dos escravos, ambos
concluem que “o proletário de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso
escravo” (ALENCAR, 198[-]: 162) e crêem ser a escravidão a única solução
para suprir a necessidade de “braços” (ALENCAR, 198[-]: 162) no país. Esta
era uma concepção partilhada pelo político Alencar que discursara contra a lei
de 1871:
Estudando depois a existência do escravo, a satisfação de sua
alma, a liberdade que lhe concede a benevolência do senhor;
se convenceria que esta revolução dos costumes trabalha mais
poderosamente para a extinção da escravatura, do que uma lei
porventura votada no parlamento (ALENCAR, 1867: 162).
Em se tratando da pretensa benevolência senhorial, é interessante o paralelo
entre Machado de Assis e José de Alencar. Apesar de nos quatro romances
analisados os senhores manterem figuração central no enredo, apenas nas
narrativas românticas os soberanos emergem como homens irrepreensíveis e
protetores. Os exemplos de suas bondades para com seus agregados e,
principalmente, para com os escravos são inúmeros. Em um paralelo com os
senhores machadianos, a idealização de Alencar sobre estas personagens fica
ainda mais visível. Enquanto Luís Galvão reina com tranquilidade em sua
fazenda; e enquanto o Barão da Espera é soberano em toda a região do
Boqueirão e se redime de seu único erro durante toda sua existência; Brás
Cubas revela, pós-morte, sem arrependimento, com muita crueldade, ironia, e
até certo orgulho, sua vida de desvios, na mesma medida em que Luis Garcia
teme desafiar o poder senhorial de Valéria e, fraco, cede ao pedido de que
convença Jorge a ir para a guerra. Eis, novamente, Machado de Assis
destroçando um estereótipo sem recair em outro. Deixando de idealizar os
senhores, Machado também não encaminha seu texto para a construção de
personagens cujas ações se reduzam aos maus-tratos aos escravos. Ainda
que, especialmente em MPBC, não sejam construídas cenas de benignidade
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fosse possível fora da vida, a opção por uma autoria defunta permite a
expressão livre sobre a miserabilidade humana e, consequentemente, revela a
olhos nus o estrume e a terra que formam a elite social brasileira. (ASSIS,
1997: 23)
Outro artifício a marcar, concomitantemente, a distância e o preconceito dos
narradores de Alencar em relação aos negros diz respeito ao processo de
animalização dos escravos. Ele surge ora para marcar as ações ou
sentimentos, ora para aferir as características físicas. Nas duas situações, as
comparações são depreciativas, seja pela existência de esclarecimentos dados
pelo próprio narrador neste sentido ou pela escolha do animal utilizado no
contraste. Desta feita, Monjolo é a “trouxa negra que avançara pelo terreiro aos
pinchos como um sapo” (ALENCAR, 1973: 259); Mário amava tamanhamente
pai Benedito, assim como apreciava “um cão ou um cavalo” (ALENCAR, 198[-]:
162) e o pajem mostrava “o focinho entre a folhagem da última gripa do
jequitibá” (ALENCAR, 198[-]: 89). As comparações e metáforas expressam, de
uma só vez, a inferioridade e a submissão a que estão sujeitos os negros no
Brasil e a concordância que o narrador parece compartilhar a este respeito.
Os exemplos em relação à zoomorfização do negro em José de Alencar são
inúmeros e em muito se aproximam do mesmo processo utilizado em
romances naturalistas, uma vez que não servem para demonstrar o tratamento
desumano relegado aos escravos, mas constroem seres ontologicamente
degradados, bem a contento de uma elite que via na população negra uma
raça inferior3. Neste ponto, a zoomorfização presente em Alencar parece
intrinsecamente relacionada à sua afeição por teorias de Darwin e Spencer.
Embora romântico, Alencar comungava com estas teorias a concepção de que
a inferioridade das “raças primitivas” era biologicamente explicável, de forma
que, com o decorrer dos anos a eliminação das mesmas seria irremediável.
Assim, ao montar seus argumentos em prol da escravidão, Alencar afirma que
ela trouxera ao Brasil a positividade da miscigenação que geraria uma
civilização nova e, com a passagem dos anos, branca: “Em três e meio séculos
o amalgama das raças se havia de operar em larga proporção, fazendo
preponderar a cor branca. Três ou quatro gerações bastam no Brasil para uma
transformação completa” (ALENCAR, 1867: 282).
De acordo com Jean-Yves Mérian, a influência de Spencer e Darwin em
Alencar ultrapassa os aspectos ligados ao branqueamento da pele. Para o
crítico, em Alencar o processo mencionado ganha, principalmente, um cerne
cultural, na medida em que seus livros expressam repúdio à cultura não-
branca. Por estas vias, ele explica não só o relacionamento do autor com a
cultura negra, mas a construção do mito indígena. Sua conclusão acerca de
Iracema ilustra bem seu entendimento sobre o romancista do século XIX:
A índia e o povo indígena ao qual pertence desaparecem
dando lugar a um ser híbrido que não transmite nenhum dos
valores culturais, linguísticos, religiosos do povo materno.
Destarte não se trata de sincretismo mas sim de uma forma de
3
Contudo, a animalização de senhores e escravos é diferenciada. As comparações de personagens
brancas a animais não as rebaixam os desqualificam, antes realçam suas melhores características: “Seu
passo era ágil, rápido e sutil como o passarinho, de que tinha a volubilidade e a gentileza. Ela desferia de
si ao mesmo tempo três movimentos: cantava, corria e dançava” (ALENCAR, 198[-]: 27).
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marginalização social” (MOURA, 1980: 09). Enfim, se fosse de outro modo, não
poderia Brás expressar sobre a negra borboleta: “creio que para ela era melhor
ter nascido azul” (ASSIS, 1997: 62).
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*
Elaine Lima é doutoranda em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Estadual
de Londrina.