A Fina Lâmina Da Palavra PDF
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No conto Pai contra mãe, Machado de Assis tece uma das mais
potentes descrições de dois aparelhos de tortura escravistas, a máscara de flandres
e o ferro ao pescoço:
tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem
o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à
venda, na porta das lojas (...) O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos
fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita
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ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave.
... um Cruz e Souza não foi, como negro, um escritor natural, no sentido
em que pudesse ( ao menos quando sua dicção se pretendia negra)
entabular intercâmbio com o negro de sua época; quando ele escreve,
por exemplo, ‘Emparedado’, – o grito mais forte de um negro cercado de
angústias neste País – duvidamos de que ele pudesse ou ousasse julgar
estar-se dirigindo a negros. Ele era, no momento, os negros todos do
País; ele tão somente se centrava sobre si mesmo, como escritor, quando
o natural é que a obra se extrapole....
7. CAMARGO, 1986.
Lá Vai Verso
Ó musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d’urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
Às vias me conduz d’alta grandeza.
........................................................
Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote –
Ao rufo do tambor e das zabumbas
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos de Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes –
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Nas danças entrarei d’altas cayumbas.
“A Caveira
I
Olhos que foram olhos, dous buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!
II
Nariz de linhas, correções audazes
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!
8. GAMA, 1904, p. 58
III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curva leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
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Caveira! Caveira!! Caveira!!!
Olurum Ekê
Olurum Ekê
Olurum Ekê
Eu sou poeta do povo
Olurum Ekê
A minha bandeira
É de cor de sangue
Olurum Ekê
Olurum Ekê
Da cor da revolução
Olurum Ekê
Olurum Ekê
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Olurum Ekê
Ela
A minha poesia
Sou eu que me desnudo
me descubro
A minha poesia
Sou eu rio que deságuo
nos teus olhos parados
Sou eu vento no moinho
do meu grito entalado
......................................
A minha poesia
Sou-eu-fome-de-muitos
punhos punhais
sombras fatais
e a esperança do mundo
no sangue vivo das palavras
A minha poesia
é som
é sã
é-sou
é soul
é sam
ba
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tendo no couro branco do papel.
Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que na rua não lhe
descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com
aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhuma qualidade superior?
Porque?
Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis
e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente
a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais...
Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a, chorando. A
mãe também chorou e, quando, Clara parou de chorar, entre soluços, disse:
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– Mamãe, eu não sou nada nesta vida.
A natureza olho
navega
pelos destroços
no íntimo cheira
vida
No leito
o corpo se
unta de
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verso e prosa
Eu-mulher
abrigo da semente
moto contínuo
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do mundo.
Sou eu
que no leito abraço
mordisco seu corpo
com lascivo ardor.
(...)
Mulher-retalhos
a carne das costas secando
no fundo do quintal
presa no estendal do seu esquecimento
Mulher-revolta
agito-me contra os prendedores
que seguram-me firme neste varal
Eu mulher
arranco a viseira da dor
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enganosa.
Gosto sim,
desta história feita,
na folha do papel
absorvendo tintas.
Gosto e quero
o sutil da batalha
entrincheirada e viva
no corpo do poema necessário.
Mas,
mais gosto
do sigiloso verso
esboçado em nossos corpos
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no imutável verbo dos sentidos.
Ao escrever a dor,
sozinha,
buscando a ressonância
do outro em mim
há neste constante movimento
a ilusão-esperança
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da dupla sonância nossa.
2. Os Contornos da Crítica
Papai-Moçambique
papai-moçambique
– viola e sapateio
– desafio de versos
fogosos.
papai-moçambique
senta pé na fogueira
&
de um salto
pára o olho
no ar
banzando saudades
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d’outras Áfricas
Por experiência, sei que toda vez que o negro escrito aparece em um
debate, uma conferência, palestra, surgem, de pronto, as perguntas de
rotina: “Mas, por que literatura negra? Existe? A literatura tem cor?” E sou
obrigado a retroceder às análises que tenho feito desde que me confronto
com o mundo. Para chegar à conclusão de que à sociedade pátria
interessa o negro mudo. Tudo uma questão de voz. (...) Assim, nada mais
importante que esse O NEGRO ESCRITO de Oswaldo de Camargo. Para
provocar novas discussões e resgatar a voz de autores esquecidos. ... há
o mérito de trazer à tona o mais antigo editor brasileiro, poeta e precursor
da Imprensa Negra (em 1833), Paula Brito. O homem que revelou Machado
de Assis. De Minas, ainda, Camargo nos traz Henrique de Rezende e
Guilhermino César, ambos da Revista Verde, de Cataguases, editada em
pleno Modernismo. Guilhermino, inclusive, foi um dos fundadores da
LEITE CRIOULO, revista negra, no clima de 22. (...) Necessário repensar o
que transparece neste livro: após mestre Lima Barreto, o que houve com
a prosa ficcional do negro brasileiro? Por outro lado, a nossa literatura
contemporânea negra é mapeada a partir de Solano Trindade. Estariam
os trabalhos dos poetas negros atuais pendurados entre o social de Solano
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e o intimismo, o eu, de Cruz e Sousa?
dessa produção, tanto da mais longíngua quanto da mais recente, mas se tornam
redutores, se postulados como sínteses exclusivas e totalizadoras da experiência,
antes de tudo, literária. Em um breve ensaio de 1995, intitulado Transnegressão,
Ronald Augusto apontava, com muita pertinência, alguns dos riscos inerentes nas
catalogações dessa produção. Referindo-se tanto “à organização de antologias
fortemente temáticas onde os conteúdos inessenciais se sobrepõem à realização
poética mais penetrante”, quanto à “publicação de ensaios que investigam estes
objetos literários tão só como exemplos de uma afirmação identitária, cuja função
seria a de amplificar e dar nobreza documental aos anseios de uma coletividade ou
segmento racial”, assim como à sobrevalorazão de uma “essência”, transvestida na
demanda de uma “consciência negra”, Ronald argumentava:
3. Os Saberes da Oralitura
Dentre essas zonas e forças limiares, uma das mais férteis remete-
nos ao âmbito da textualidade oral e das performances rituais, no seio das quais
muitas formas poéticas e ficcionais se dispõem. Ali, a palavra poética, cantada e
vocalizada, ressoa como efeito de uma linguagem performática do corpo,
inscrevendo o sujeito emissor, que a porta, e o receptor, a quem também
circunscreve, em um determinado circuito de expressão, potência e poder. Como
sopro, hálito, dicção e acontecimento performático, a palavra proferida e cantada,
numinosa e aurática, grafa-se na performance do corpo, portal e índice da sabedoria.
Como agente de conhecimento, a palavra não se petrifica em um depósito ou
arquivo estático, mas é, essencialmente, kinesis, movimento dinâmico. Solano
Trindade já expressava o desejo de buscar na textualidade oral recursos expressivos,
procedimentos e técnicas como fonte de sua criação artística. Essa disposição de
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