2014 MariliadosSantosBezerra
2014 MariliadosSantosBezerra
2014 MariliadosSantosBezerra
Faculdade de Educação – FE
Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE
Dissertação de Mestrado
Brasília – DF
2014
MARÍLIA DOS SANTOS BEZERRA
Brasília – DF
2014
Universidade de Brasília – UnB
Faculdade de Educação – FE
Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE
Dissertação de Mestrado
Banca Examinadora:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Luís González Rey – Orientador
Faculdade de Educação – FE/UnB
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Cristina Massot Madeira Coelho – Membro Interno
Faculdade de Educação – FE/UnB
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Vannúzia Leal Andrade Perez – Membro Externo
Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC Goiás
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana de Oliveira Campolina – Suplente
Centro Universitário de Brasília – UniCEUB
Aprovado em ________/____________/____________
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Marilda e Bosco, pelo apoio e confiança. A presença de vocês em cada
momento dessa trajetória me deu força e coragem para seguir e acreditar nas minhas
possibilidades. Vocês são fonte de admiração e inspiração.
Ao meu filho, Caio por me mostrar diariamente a complexidade do desenvolvimento e
as suas diversas possibilidades. Obrigada pela paciência, pelo amor e por suportar a minha
ausência em diversos momentos.
Ao meu amado irmão, Cícero pelo simples fato de existir em minha vida. Obrigada
pelo companheirismo.
Ao Igor pelas belíssimas ilustrações utilizadas no instrumento jogo dos sentimentos.
Obrigada pela colaboração em meu trabalho e em minha vida.
Ao meu estimado orientador, Fernando González Rey, que com o seu amor pelo
conhecimento e pela psicologia me contagiou desde os tempos da graduação. Obrigada pela
oportunidade e confiança. A possibilidade de percorrer esse caminho ao seu lado me colocou
diante de grandes desafios a serem superados. Com a elaboração desse trabalho pude
vivenciar no corpo e na alma, em sua unidade, o que é ser um sujeito que aprende. Muito
Obrigada, Maestro!
Aos meus queridos colegas de grupo de pesquisa, Ana Orofino, Daniel Goulart,
Eduardo Moncayo, Osmar, Elias, Luiz, Virgínia, Ana Luiza, Gisele e José Fernando, que
tornaram nossas discussões momentos de muita aprendizagem. Obrigada pelo carinho e
amizade de todos.
Às professoras Cristina Coelho, Vannúzia Leal e Luciana Campolina por aceitarem
participar da construção desse trabalho. As contribuições sugeridas no momento da
qualificação foram de grande valia para os desdobramentos desse trabalho.
Às professoras Carmen Tacca, Albertina Mitjáns Martinez e Elizabeth Tunes pelo
prazer de participar de disciplinas tão ricas que transformaram minha visão de mundo de
homem e da escola. Obrigada pela oportunidade de aprendizagem e desenvolvimento pessoal
e acadêmico.
Às colegas Renata (Renatinha) e Débora pelas diversas contribuições a respeito do
universo pedagógico. Compartilhar das minhas angústias com vocês foram de fundamental
importância para ampliar a minha compreensão acerca dos processos de ensino e
aprendizagem. Obrigada, meninas!
À instituição de ensino onde a pesquisa foi realizada, professores e coordenadores, que
me acolheram e se dispuseram a colaborar dos diversos momentos da pesquisa. Um
agradecimento especial à professora Tercia, professora Andrea e a coordenadora pedagógica
Marilda.
Por fim, porém não menos importante, um agradecimento mais que especial às
crianças colaboradoras da pesquisa, pela disponibilidade, confiança e a afetividade que
possibilitaram a riqueza de conteúdos a serem trabalhados. A oportunidade de acompanhar o
desenvolvimento de vocês, mais uma vez me mostrou que este está longe de ser linear, sendo
complexo, dinâmico e cheio de possibilidades.
Subjetividade é coisa
Que gosta de se esconder
Atrás de tanto objeto
Que ninguém chega a ver
Sujeito é bicho esquisito
Não gosta ele de ser?
Concerta, Metadate
Daytrana, Dextrostat.
Maracujina, Dormonid,
Focalina, Aderall,
A escola é uma farmácia
Para quem não é normal.
Cada um é o sujeito
De sua aprendizagem
No ritmo que ele imprime
A sua própria viagem
Sozinho não! Companheiro!
Levando sua bagagem.
João Bosco Bezerra Bonfim
RESUMO
The emphasis given to the cognitive-intellectual elements as being fundamental for scholar
learning corroborated to an organists comprehension as determinant cause of the difficulties
of learning. In this way, learning passed to be understood as a result of intellectual capacity of
the student and his abilities to processing and storing information. This vision contributed in a
significant form to the dissemination and vulgarization of the learning difficulties diagnosis in
the scholar learning context. The predominance to conceive this learning difficulties through a
merely biological-cognitivist bias, just had produced and comprehension of this phenomena,
ignoring important aspects which make part of the constitution of the teaching and learning
process. In front of this context, a new look made necessary, in a sense of getting expanded
the comprehension of learning difficulties parting from its complexity. The theme of this
research spins around the comprehension of learning as a subjective process in which
cognitive and affective elements manifests in a certain integrated form. With references in the
Subjectivity Theory through a cultural-historic perspective, developed by González Rey, this
research had as main objective comprehend how the learning process subjectively configures
itself through students who presents difficulties in the acquisition of scholar contents,
focusing in the intellectual production process of this students. The empirical study was
realized in public teaching institution of the public educational system of Distrito Federal. The
analysis of the information was done through two case study, in a qualitative perspective from
constructive-interpretative base, which proposes that acknowledge production as a
constructive-interpretative, dialogical and singular. Having the analyses of the information as
a base we consider that the difficulties of leaning organize themselves in a complex subjective
configuration in the child’s life. The subjective senses, which emerge in the course of a
certain scholar activity and which compromises the development of intellectual operations
doesn’t have a patterned genesis, pointing out the singular dimension of the subject who
learns. In addition, through the interpretative analysis has shown up the subjective character
of the intellectual operations compounding a dynamic system, procedural between cognitive
and affective.
Keywords: Learning difficulties. Intellectual producing process. Sujbectivity.
LISTA DE FIGURAS
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Foi nesse contexto que fui me aproximando das questões relacionadas à educação.
Paralelamente, iniciei meus estudos sobre o tema da subjetividade em uma perspectiva
histórico-cultural, bem como tive a oportunidade de cursar uma disciplina que visava à leitura
do Tomo V da obra de Vigotski – estudos do autor sobre a defectologia. A partir de então,
comecei a ampliar a compreensão acerca dos processos educacionais, da aprendizagem e do
desenvolvimento. Tais estudos concebem o desenvolvimento humano de maneira muito mais
complexa do que se imaginava; além disso, oferecem explicações para a questão das
dificuldades de aprendizagem em uma dimensão além da cognitiva. Com base nessas
reflexões, conclui-se que, na maioria das vezes, os alunos não se enquadravam dentro das
etapas de desenvolvimento propostas por Piaget.
Uma vez que não mais podia olhar para o sujeito de forma estanque, como um
alienado da dimensão histórico-cultural, fui em busca de alternativas que promovessem a
possibilidade de pensar o sujeito a partir das complexas relações que perpassam o processo de
aprendizagem escolar. Foi, então, que fui me aprofundando nos estudos na perspectiva
histórico-cultural iniciada por Vigotski, bem como na Teoria da Subjetividade desenvolvida
por González Rey. Dessa forma, fui fortalecendo o meu posicionamento como psicóloga em
formação, minhas representações e escolhas teóricas.
Devido às barreiras da perspectiva clínica em Psicologia, já não mais podia limitar-me
a uma análise de consultório. Foi então que ingressei no Mestrado acadêmico, tendo por
desafio adentrar os muros da escola, com o intuito de aprofundar o estudo sobre o tema das
dificuldades aprendizagem.
Tendo como referencial teórico a Teoria da Subjetividade, apoiada na Epistemologia
Qualitativa – ambas desenvolvidas por González Rey – tem-se aqui uma proposta de
interpretação dos fenômenos do aprender e do não aprender, na busca de melhor compreender
as dificuldades de aprendizagem no contexto escolar.
A Teoria da Subjetividade, em uma perspectiva histórico-cultural, permite
compreender o aluno como um sujeito ativo, constituído historicamente em uma dinâmica
complexa de relações. A aprendizagem em tal perspectiva passa a ser considerada como um
processo integrado ao desenvolvimento do aluno, na sua integração entre o cognitivo e o
afetivo.
Ao abordar a questão das dificuldades de aprendizagem no contexto escolar e tendo
em vista a minha formação acadêmica em Psicologia, este trabalho busca estabelecer um
diálogo entre essas duas áreas de conhecimento. É preciso destacar que, ao adotar o tema da
subjetividade para a compreensão dos processos de aprendizagem, a Psicologia e a Educação
17
se tornam espaços interdisciplinares que, a meu ver, muito contribuem para um entendimento
mais abrangente do referido processo. A Psicologia, ao se aproximar da Educação a partir de
uma perspectiva histórico-cultural, amplia o olhar em relação aos processos educativos,
estabelecendo novas possibilidades de diálogo entre os dois campos, e, assim, contribui para
interpretações que fujam de um psicologicismo reducionista bastante encontrado na
Educação.
Na inter-relação entre as ideias psicológicas e pedagógicas – no campo em que estas
desenvolvem concepções entre desenvolvimento humano e aprendizagem –, busca-se ampliar
o entendimento sobre os processos de produção intelectual de alunos com dificuldades de
aprendizagem no contexto escolar. Com esse enfoque, nesta pesquisa, aborda-se o tema da
aprendizagem para além dos aspectos cognitivos, da assimilação e da reprodução do
conhecimento. Isso porque a perspectiva da subjetividade implica compreender a
aprendizagem como um processo subjetivo na relação indivisível entre o cognitivo e o
afetivo, em que o caráter gerador das emoções participa de forma ativa em tal processo.
O estudo aqui proposto procura avançar em uma nova representação do intelecto
humano. Busca compreender como os modelos intelectuais se organizam no curso da
aprendizagem, como um processo configurado subjetivamente, para além de uma
representação operacional do mental característico de algumas concepções hegemônicas da
psicologia moderna. Tem-se, aqui, como pretensão, aprofundarmo-nos no caráter subjetivo
das produções intelectuais, bem como avançar em uma representação da aprendizagem como
configuração subjetiva, que se organiza nos diversos espaços em que o sujeito atua.
Enfim, a presente pesquisa tem por objetivo geral compreender como o processo de
aprendizagem é configurado subjetivamente por alunos que apresentam algum tipo de
dificuldade na aquisição dos conteúdos escolares, tendo como foco o processo de produção
intelectual por parte desses alunos.
A pesquisa aqui proposta busca contribuir para o campo da Psicologia, bem como para
a prática educativa, pois se insere no esforço para construir um modelo teórico que vise a uma
nova representação dos processos intelectuais. Em outras palavras, procura-se enfrentar uma
compreensão de aprendizagem, por um lado, marcada essencialmente como um processo
cognitivo no qual as capacidades intelectuais são as responsáveis pelas dificuldades de
aprendizagem; mas, por outro lado, a emocionalidade ocupa um lugar secundário no
entendimento do não aprender. Distintamente desse enfoque, acreditamos que a compreensão
dos processos de produção intelectual como configuração subjetiva poderá oferecer uma
mudança nas concepções dominantes entre professores, psicólogos e psicopedagogos.
18
A partir dessas novas concepções sobre o aprender, será possível repensar e definir
mudanças nas práticas pedagógicas, bem como questionar o próprio processo de avaliação
psicológica que ainda tem por base a utilização de instrumentos “capazes” de quantificar o
grau de inteligência das crianças encaminhadas aos serviços de atendimento psicológico.
Este trabalho é estruturado da seguinte forma:
item I: considerações iniciais e apresentação dos objetivos da pesquisa;
item II: breve histórico sobre os diversos conceitos relacionados à dificuldade de
aprendizagem e seus desdobramentos para o campo educacional; discussão sobre o
impacto do modelo biomédico na construção de representações acerca das
dificuldades de aprendizagem no contexto escolar; e ainda, a compreensão da
subjetividade como condição qualitativamente diferenciada a partir de uma
perspectiva histórico-cultural; dificuldade de aprendizagem e a perspectiva histórico-
cultural: construção de diálogos; aprendizagem e subjetividade: da cognição aos
modelos subjetivos de produção intelectual; e, aprendizagem e subjetividade: revendo
papeis.
item III: direcionamento metodológico, com ênfase para as contribuições da
Epistemologia Qualitativa de González Rey e seus desdobramentos para o estudo da
subjetividade no campo educacional; apresentação dos participantes, instrumentos
utilizados e cenário da pesquisa;
item IV: apresentação da análise e construção da informação de dois estudos de caso.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
1
Refere-se a um conjunto de crianças com inteligência geral, próxima da média, ou acima da média,
evidenciando certas dificuldades de aprendizagem e de comportamento, que podem manifestar-se de forma
moderada ou severa e que estão associados a desvios da função do sistema nervoso central.
22
Ainda no início dos anos 1960, nos Estados Unidos da América (EUA), foram
discriminadas algumas categorias para a classificação de crianças que não conseguiam
aprender a ler e a escrever. Entre elas estavam a) as que eram consideradas aprendizes lentos,
isto é, as que marcavam entre 75 e 90 pontos em testes de inteligência; b) as ditas retardadas
mentais, cujo Quoeficiente de Inteligência (QI) era menor que 75; c) as crianças com
transtornos emocionais ou socialmente desadaptadas; d) as crianças privadas ou
marginalizadas culturais; e, e) aquelas com dificuldades de aprendizagem. Destaque-se que a
maioria das crianças enquadradas nas quatro primeiras categorias eram oriundas de famílias
de baixa renda, ou negras, ou hispânicas; e que, na última categoria, estavam as crianças
oriundas de famílias de classe média ou média alta e, geralmente, brancas.
Com tais informações, pode-se perceber que as dificuldades de aprendizagem estavam
voltadas para a explicação dos empecilhos sofridos por crianças provenientes de grupos
sociais mais privilegiados. Nesse sentido, Sisto (2010) sugere que tal fenômeno estava
relacionado a questões do pós-guerra e com o aumento das exigências sociais. Sugeria-se,
ainda, a necessidade de aquisição de mais habilidades por parte dessas crianças, o que estava,
então, vinculado à conquista de empregos economicamente melhores. Com isso, evidencia-se
o caráter econômico e a influência do modelo capitalista de produção na constituição do
fenômeno das dificuldades de aprendizagem.
No primeiro capítulo do livro “Dificuldade de aprendizagem no contexto
psicopedagógico”, Sisto (2010) destaca marcos históricos referentes à questão das
dificuldades de aprendizagem. No período entre 1800 a 1963, consolidou-se a etapa de
fundação ou instituição do campo, com as contribuições do médico Franz Gall, que observou
pessoas adultas com lesões cerebrais, supostamente com afasia, pois tinham dificuldade em se
expressar por meio da fala. Em 1949, fundou-se a Sociedade Orton de Dislexia (Orton
Dyslexia Society) que publicou diversos trabalhos centrados nas dificuldades de aprendizagem
na leitura e escrita, constituindo-se, assim, a primeira organização desse campo do saber. Em
1968, foi criado o conselho para as Dificuldades de Aprendizagem. Mais tarde, em 1975,
formou-se o Comitê Nacional Conjunto sobre Dificuldade de Aprendizagem. Esse comitê
propôs uma definição consensual das dificuldades de aprendizagem, sendo considerado um
espaço interdisciplinar do campo. Nessa trajetória, foi somente em 1982 que começou o
processo de legislação sobre as dificuldades de aprendizagem e também a formação de
serviços par a área, estes com a participação de pais, fonoaudiólogos, psicólogos e outros
profissionais interessados na área.
23
Tem havido muita controvérsia em relação ao que, exatamente, constitui uma DA.
Sua definição envolve grupos heterogêneos de sintomas, parece vaga e subjetiva. O
único consenso se refere à característica de que há uma discrepância severa entre o
que é esperado academicamente e o nível de desempenho apresentado. Mas o que
constitui uma discrepância? Os especialistas tiveram que definir critérios para
identificar DA, o que gerou uma grande diversidade no diagnóstico (PACHECO,
2005, p. 47).
Ainda neste capítulo, será apresentado uma breve descrição dos conceitos recorrentes
na literatura especializada e o impacto que tais definições possuem no campo educacional.
Além disso, iremos discutir algumas perspectivas de análise sobre o que vem sendo
denominado como “dificuldade de aprendizagem”.
[...] são transtornos nos quais os padrões normais de aquisição de habilidades são
perpetuados desde os estágios iniciais do desenvolvimento. Eles não são
simplesmente uma consequência de uma falta de oportunidade de aprender nem são
decorrentes de qualquer forma de traumatismo ou de doença cerebral adquirida. Ao
contrário, pensa-se que os transtornos originam-se de anormalidades no processo
cognitivo, que derivam em grande parte de algum tipo de disfunção biológica (CID
– 10, 1992, p. 236).
25
Garcia (1998) traz uma definição que vai ao encontro da proposta da National Joint
Comittee for Learning Disabilities (NJCLD)2, que definiu um conceito mais universal do
termo. Atualmente, tal definição é adotada por diversos profissionais que atuam no campo das
dificuldades de aprendizagem:
2
National Joint Comittee for Learning Disabilities é considerado, nos Estados Unidos da América (EUA), como
órgão competente para normatizar os assuntos referentes aos distúrbios de aprendizagem.
27
Com esse conceito, observa-se que existe um esforço de não estabelecer uma relação
direta entre o “nível” de inteligência e a existência de uma dificuldade de aprendizagem.
Contudo, mesmo na tentativa de avançar na elaboração de um conceito, essa definição se
apoia no conceito já citado anteriormente, mantendo a ideia de transtorno, deixando margem
para interpretações de ordem biológica a respeito das dificuldades de aprendizagem.
Com a formalização do campo das dificuldades de aprendizagem, Garcia (1988)
adverte para o surgimento de um novo rótulo sob o qual inclui um determinado grupo de
pessoas. Com isso, a utilização de nomenclaturas para designar aqueles alunos que
apresentam algum tipo de irregularidade em seu processo de aprendizagem vem aumentando
cada vez mais no campo educacional.
Em sua pesquisa de mestrado, Cardinalli (2006) enfatiza que as crianças estão sendo
encaminhadas para a avaliação psicológica precocemente. A autora chama a atenção para os
resultados dessas avaliações, pois eles apontam que a maioria das crianças encontra-se dentro
da média esperada, não existindo comprometimento de ordem cognitiva. Muitas dessas
crianças apresentavam bom potencial cognitivo com níveis de atenção e concentração
adequados. A dificuldade para aprender poderia estar relacionada a fatores externos à criança.
Com isso, destaca-se a necessidade de se conhecer outros elementos ligados à dificuldade de
aprendizagem que não estejam meramente condicionados a uma explicação de ordem
biológica.
A psicóloga Maria Helena de Souza Patto, em seu estudo A produção do fracasso
escolar: histórias de submissão e rebeldia (1997), analisa criticamente a questão do fracasso
escolar no Brasil, a partir de uma concepção na qual o fenômeno é apresentado de forma
complexa, sendo compreendido a partir do materialismo histórico dialético. Para a autora, as
produções acerca do fracasso escolar aparecem, em sua maioria, para a efetivação de uma
análise baseada em concepções biologizantes da dificuldade de aprendizagem. O
direcionamento das explicações e intervenções sobre o fracasso escolar volta-se
exclusivamente para o aluno, desconsiderando a instituição e suas relações sociais, adotando
medidas corretivas, punitivas ou marginalizadoras, com ênfase no ajustamento, gerando uma
exclusão educacional e social.
De acordo com o levantamento histórico feito pela autora, os ideais da teoria
escolanovista reconheciam as especificidades psicológicas das crianças. Tal reconhecimento
ressurge, no Brasil, num contexto de adoção da teoria da teoria piagetiana como referencial
teórico que orientava tanto as reflexões quanto as práticas de natureza da aprendizagem
escolar. Para Patto (1997), os precursores da Escola Nova preocupavam-se com o indivíduo
28
Normal é quem trabalha e obedece. Normal é quem não protesta, não reivindica e
colabora com a ordem estabelecida. Tudo que afaste disso é rotulado como
patologia. Por quem? Por cientista, sobretudo juristas, médicos (higienistas,
psiquiatras, pediatras) e educadores entre os quais estavam os primeiros porta-vozes
dos conhecimentos produzidos pela psicologia (PATTO, 1997, p. 32).
É nesse sentido que a autora faz uma denúncia das consequências da patologização
biopsíquica das dificuldades de aprendizagem e como essas concepções tiveram como
propósito responsabilizar o aluno por suas dificuldades. Sabe-se, por outro lado, que as
dificuldades de aprendizagem estão diretamente vinculadas às políticas educacionais que
insistem em não ver o aluno como sujeito.
Diante do que foi apresentado, percebe-se que existe um interesse significativo no
estudo das dificuldades de aprendizagem. Sendo que esse campo passou por grandes
transformações no que se refere a sua definição, e aos diversos interesses em relação ao seu
objeto de estudo. Entretanto, ainda não existe um consenso sobre a sua evolução e definição.
Na literatura, encontram-se conceitos muitas vezes contraditórios e classificações incompletas
ou excessivamente extensivas. Além disso, entende-se que o termo dificuldade de
aprendizagem é usado para se referir ao motivo pelo qual determinados alunos não aprendem;
contudo, não se explica exatamente as razões pelas quais eles não aprendem certos tipos de
conteúdos. Cardinali (2006) enfatiza que, muitas vezes, a dificuldade não reside no estudante
ou numa falha de seu sistema cognitivo para receber um tipo de informação; mas, sim, na
falta de preparo do sistema de ensino para lidar com as diferenças e particularidades, para
29
3
Sentido subjetivo é a unidade dos processos simbólicos e as emoções em um mesmo sistema, na qual a
presença de um desses elementos evoca o outro, sem que seja absorvido pelo outro. Cf. González Rey (2005).
31
diante de tal problemática. Selvini Pelazzoli (2004) aponta para necessidade de uma mudança
epistemológica no que se refere aos aspectos relacionados à identificação das dificuldades de
aprendizagem escolar, tendo em vista que a tendência mecanicista de causa-e-efeito passou a
considerar elementos de caráter biológico e intrapsíquico como sendo a natureza dos
fenômenos relacionados às dificuldades de aprendizagem. Isso, consequentemente, gerou um
histórico de patologização das crianças consideradas com dificuldades de aprendizagem.
Considera-se que não há uma única explicação para as questões das dificuldades de
aprendizagem escolar, pois estas devem ser compreendidas a partir dos múltiplos fatores que
as constituem. As dificuldades de aprendizagem, como a própria educação, constituem uma
área conceitual difícil de apreender, pois nelas influem de forma interativa uma multiplicidade
de dimensões, que variam de acordo com as características próprias de cada criança e de seu
respectivo contexto de desenvolvimento. Diante de tal variedade, uma teoria que busque
compreender as dificuldades na aprendizagem escolar deve, sobretudo, considerar as
especificidades desse fenômeno. Destaca-se, como elementos essenciais na compreensão das
dificuldades de aprendizagem, a organização do sistema educacional, o funcionamento das
escolas, a prática docente em sala de aula, as teorias que embasam o estudo da aprendizagem,
os aspectos sociais e a dimensão subjetiva dos alunos envolvidos. É relevante dizer que esses
fatores não ocorrem de maneira isolada, pois estão estreitamente relacionados.
A fim de melhor compreender essas variáveis, faz-se necessário recompor a própria
história dos processos de escolarização, desde seu surgimento formal até os dias de hoje.
A escola, vista como organização social, surgiu na Idade Média, e contribuiu para o
progresso do sentimento de infância, que até então, segundo Ariès (1981), era praticamente
inexistente; tornou-se, assim, um meio de isolar cada vez mais as crianças da sociedade dos
adultos, durante um período de formação tanto moral como intelectual. Em um primeiro
momento, as comunidades educativas eram inspiradas pelas regras monásticas. Tratava-se
tanto da formação quanto da instrução dos alunos: era imposta às crianças uma disciplina
tradicional, autoritária e hierarquizada. A escola se tornou, então, uma instituição essencial na
sociedade, sendo um instrumento para a educação da infância e da juventude. Com o passar
dos tempos, ela foi se tornando cada vez mais formal, para atender as demandas impostas pela
sociedade. Constatou-se que o acesso ao conhecimento também possibilitava a aquisição de
bens materiais e, consequentemente, uma possível ascensão social.
32
Com o passar dos anos, aumenta-se o interesse pela escola, que se vê na incumbência
de democratizar o conhecimento. Diante dessa realidade, a escola precisou criar mecanismos
para atender a todos que nela se interessavam. Criaram-se, então, modelos e currículos
capazes de orientar e facilitar o trabalho daqueles que se propunham a ensinar.
Compartilhamos da análise feita por Tacca e González Rey (2008), segundo a qual a escola,
na tentativa de atender a todos, estabeleceu um modelo do tipo tamanho único, ou seja, um
único formato que deve se ajustar a todos. Esse modelo, por sua vez, permitiu a padronização,
a formalização e a hierarquização dos conhecimentos a serem aprendidos. Segundo Ariès
(1981), a homogeneização da sala de aula é datada ainda no início do século XIX, quando se
estabelecia uma correspondência cada vez mais rigorosa entre idade e classe.
Reconhece-se a importância do tempo e da história para a compreensão dos
fenômenos escolares. Atualmente, o ensino tradicional predominante em nossas escolas,
assim como na Idade Média, ainda se pauta pela hierarquização e formalização dos conteúdos,
fazendo com que o ensino se torne padronizado e, consequentemente, leve também à
padronização das formas de aprendizagem. Em síntese, o conhecimento escolar, ou aquilo que
deve ser aprendido na escola, caracteriza-se pela uniformização em um formato didático,
reduzido e simplificado, orientado pelos conceitos científicos (TUNES; TACCA;
MARTINEZ, 2006). Para facilitar a transmissão do conhecimento, a escola ensina habilidades
reduzidas em um currículo seriado, não deixando espaço para autonomia e criação,
estabelecendo um padrão para o que se ensina e se aprende. A escola se tronou reprodutora de
um conhecimento já produzido e, por sua vez, deixou de se tornar produtora de novos
conhecimentos. Os alunos na sua função de aprendizes são conduzidos a memorizar e a
repetir conhecimentos prontos. Nesse sentido, pode-se dizer “que os alunos estão na escola
para aprender sem pensar, estão lá para simplesmente empilhar o conhecimento” (LERBERT,
2004, p. 530).
A ênfase na repetição e na memorização como formas de aprendizagem levou aos
alunos a utilizar quase que exclusivamente as funções cognitivas e intelectuais. A escola,
dentro de um viés basicamente cognitivista, propõe a utilização das funções e habilidades
mais mecânicas, sendo que o bom uso delas possibilitará ao aluno ser bem sucedido
(TACCA; GONZÁLEZ REY, 2008). Diante disso, a escola, como instituição formalizada e
autorizada na função de transmitir os conhecimentos culturalmente produzidos, impõe formas
e ritmos de aprendizagem comuns para todos os alunos.
33
Esses padrões tornam-se mais decisivos, uma vez que vivemos em uma sociedade que
atribui um grande valor ao rendimento acadêmico; um mundo no qual aqueles que não
correspondem às expectativas expressas pela sociedade e pela escola acabam muitas vezes por
serem discriminados e rotulados, por não conseguirem aprender ou até mesmo por não
quererem aprender aquilo que a escola propõe. Tunes e Bartholo (2006) afirmam que a escola,
ao adotar um currículo padronizado linearmente organizado, cria um modelo de aluno que,
consequentemente, acaba por favorecer o surgimento de ideias relacionadas a patologias do
desenvolvimento intelectual e afirma o caráter natural de estrutura do desenvolvimento.
Diante disso, a escola define aqueles que são aptos e identifica aqueles que não são e, assim,
surgem os rótulos de dificuldades de aprendizagem.
A força do discurso médico presente nas escolas se expressa na maneira mais simples
de se tratar uma doença, ou seja, medicando-a. A busca de uma normatização do aprender
para facilitar o trabalho do educador impacta, diretamente, aqueles considerados
cognitivamente menos desenvolvidos. A medicalização das dificuldades de aprendizagem
leva à homogeneização de corpos e mentes, tornando-se uma forma perversa de controle
social.
As relações entre saúde e educação passam a se estreitar. De acordo com Werner
(2001), entre os séculos XIX e XX, foi em decorrência das ações de inspeção e controle dos
ambientes públicos e dos indivíduos – configurando uma “polícia sanitária” – que a medicina
passou a adentrar os muros da escola. Esse controle começou a ser exercido pelas campanhas
de vacinação e erradicação das doenças, realizada pela saúde pública, com a adoção de
medidas muitas vezes autoritárias. Entre as ações dirigidas à saúde da população infantil
estava a higienização do ambiente escolar. Essas ações constituíram a origem da “Saúde
Escolar”, por um modelo denominado de Higiene Escolar. Esse modelo pode ser identificado,
pioneiramente, no conjunto de medidas dirigidas ao saneamento do ambiente da escola,
visando a impedir a propagação das doenças transmissíveis (WERNER, 2001).
O processo de higienização, visando a alcançar um ambiente saudável na escola tinha
objetivos que iam da normatização das construções do mobiliário escolar até a natureza dos
exercícios físicos e o tipo de relação professor–aluno. Conforme Werner (2001), o modelo
higienista com origem em princípios eugênicos (raça pura) trouxe necessariamente a ideia de
exclusão daqueles considerados doentes, deficientes, fracos ou até mesmo os que não
aprendiam. O autor considera, ainda, que as ações assistenciais à saúde escolar ofereceram
grandes contribuições ao processo de exclusão na escola. A atual escola especial se constitui
como uma expressão dessa exclusão, da mesma maneira que a chamada evasão escolar; esta,
por sinal, muitas vezes utilizada como sinônimo de fracasso escolar (PATTO, 1997;
WERNER, 2001; TUNES, 2011). Nas palavras de Werner (2001, p. 14), “a evasão escolar
tem, ainda, o efeito perverso de deslocar para o sujeito a culpa pela sua exclusão da escola,
como se este sujeito evadisse da escola por livre e espontânea vontade”.
Dessa forma, os ideais trazidos pelo movimento de assistência à saúde do estudante
forneceram bases pretensamente científicas para o processo de exclusão; valorizaram-se os
mecanismos de caráter biológico no processo de aprendizagem na medida em que foram
minimizados os fatores sociais e pedagógicos. Ao ressaltar a higidez como condição
necessária para o aprendizado, foram criados subsídios para justificar o fracasso escolar como
resultado da presença de alguma doença ou deficiência (WERNER, 2001).
35
essa patologia, ainda que os exames neurológicos não apontem nada; e mesmo se esta não
apresenta nenhum sintoma durante a consulta médica (PROENÇA, 2002).
De acordo com Welch, Schwartz e Woloschin (2008), a medicalização da vida
cotidiana foi capaz de transformar sensações físicas ou psicológicas, tais como insônia,
distração, tristeza em sintomas de doença, gerando, assim, uma grande epidemia de
diagnósticos e transformando um número elevado de indivíduos em pacientes potenciais.
Esses autores advertem que essa “epidemia” de diagnósticos produz, em alta escala, os mais
diversos tipos de tratamento. Esse fenômeno está estritamente relacionado à ampliação da
indústria farmacêutica que vem, cada vez mais, ocupando um espaço central no
desenvolvimento econômico. Segundo Meira (2012), os grandes laboratórios vêm mostrando
alta capacidade e eficiência na utilização de concepções equivocadas sobre os processos de
saúde–doença, o que lhes possibilita defender a resolução dos problemas sociais e existenciais
por meio do controle psicofarmacológico dos comportamentos humanos.
Nessa lógica, embora o processo de ensino e aprendizagem não seja algo
exclusivamente do aluno, parece mais fácil incorporar o discurso de que os problemas de
aprendizagem dos alunos são de ordem biológica e individual do que refletir sobre questões
mais amplas de caráter social e relacional. Em consequência desse desvio, faz-se necessário
abrir espaço para reflexões sobre o processo de aprendizagem e seu impacto na constituição
de subjetividades, condições de letramento da população, bem como para a ideia de
normalidade. Em outras palavras, diante desse quadro complexo que está fortemente
relacionado aos determinantes sociais da saúde, não se pode admitir que a solução para os
problemas sejam reduzidos apenas às constatações de natureza biológica.
Estudo divulgado pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa)4 mostrou que, entre
2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os
nomes de Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos
16 anos. A substância é utilizada no tratamento de TDAH e atua como estimulante do sistema
nervoso central, potencializando a ação de duas substâncias cerebrais: a noradrenalina e a
dopamina. O estudo apontou, ainda, uma variação intrigante no consumo do remédio: este
aumenta no segundo semestre do ano letivo e diminui no período de férias escolares. Com
isso, evidencia-se uma relação estreita entre a escola e o uso desse medicamento. Mesmo
sendo desconhecidos os fatores envolvidos na ação da droga sobre o sistema nervoso central;
e apesar das advertências feitas pelo próprio fabricante sobre as reações adversas e riscos de
4
O estudo está disponível em: <http://www.portal.anvisa.gov.br>.
37
Além disso, como aponta a autora, nem os mais modernos exames de neuroimagem
escapam à fragilidade do diagnóstico de dislexia. Isso ocorre devido ao fato de que, para obter
uma imagem neurológica da área que é ativada quando se está lendo ou escrevendo, é
necessário que a pessoa leia ou escreva. Contudo, uma criança que está apresentando
dificuldades na escrita, muito provavelmente terá menos ativações em uma determinada parte
do cérebro. Conclui-se que o exame de neuroimagem é capaz de detectar a consequência no
que se refere à ativação cerebral; contudo, não é capaz de acessar a causa para a dificuldade
de ler ou escrever.
A segunda disfunção é o distúrbio do processamento auditivo central (DPAC). Trata-
se de uma dificuldade relacionada ao modo como o sistema auditivo nervoso central processa
e utiliza a informação auditiva. Em outras palavras, não basta que essa informação entre pelo
canal auditivo, é importante que ela ganhe um significado, por meio de alguns processos
neurocognitivos.
O diagnóstico de DPAC é complexo e, por isso, exige bastante da atenção e
concentração do paciente. Consiste em uma bateria de testes que avalia especificamente o
processamento auditivo central. De acordo com as informações da Central Auditory
Processing Disorders (ASHA), o exame deve ocorrer em uma cabine acústica, com a
utilização de fones nos ouvidos; o paciente deve responder a algumas solicitações do
examinador ao receber estímulos como: sons iguais apresentados simultaneamente em ambas
as orelhas; sons diferentes apresentados simultaneamente em ambas as orelhas; e sons
diferentes apresentados simultaneamente na mesma orelha.
De acordo com Madeira-Coelho (2011), a avaliação do processamento auditivo central
indica algumas possibilidades de estar havendo falhas de processamento em determinados
momentos da trajetória do estímulo auditivo, após a entrada deste no sistema nervoso central,
tratando-se de um modelo cognitivista de funcionamento cerebral. O resultado do exame tem
por objetivo indicar a baixa atenção auditiva do examinado ou a dificuldade que ele possa ter
em fazer a análise e síntese do som, o que consequentemente irá prejudicar a compreensão de
comandos verbais e poderia ser responsável por problemas de escrita.
Nas reflexões da autora, a questão não se reduz em minimizar as necessidades de
parcerias em processos de aprendizagem que garantam a efetividade do desenvolvimento. O
que a autora propõe é evidenciar a forma pouco adequada com que se relacionam saúde e
educação, para “juntas instituírem problemas, legitimá-los como decorrentes unicamente dos
indivíduos e lucrar com a infância que está em jogo” (MADEIRA-COELHO, 2011, p. 168).
39
Em outro campo das pesquisas sobre aprendizagem, Gnerre (1991) aborda que os
critérios linguísticos e educacionais vêm sendo usados como princípios discriminatórios. De
acordo com o autor, dinâmicas sociais de impacto como o aumento das oportunidades e dos
recursos educacionais estão muitas vezes vinculados a processos de padronização da língua e,
consequentemente, acompanham a legitimação da normatização da escrita a partir da relação
entre linguagem e poder. Para o autor, a nossa sociedade vem perpetuando procedimentos
discriminatórios na maneira em que o sistema educacional aborda o processo de apropriação
da escrita.
Do apanhado sobre a questão das dificuldades em aprendizagem, conclui-se que as
crianças passaram a ser medicadas em nome da manutenção do normal. Tal biologização do
sintoma da criança naturaliza suas condutas, que se expressam na forma de patologia do
desenvolvimento. Com tal distorção sobre a efetiva fonte das dificuldades, o sofrimento da
criança é desqualificado, mesmo se ela está mergulhada em uma situação em que não
encontra sua razão de ser. A escuta da criança, o suporte afetivo, a disposição para estar ao
seu lado, a investigação de situações conflitantes na família ou na escola deixam de se impor.
Ou seja, quando se trata de cuidar estritamente do sintoma, “a criança é transformada em um
terminal biológico, sem ter mais de interrogar as causas, o sistema de relações que está
imersa” (LE BRETON, 2003, p. 58).
Diante dessa conjuntura, ao delegar a própria responsabilidade no processo de ensino-
aprendizagem ao saber médico especializado, a escola perde o seu caráter de contexto social
do desenvolvimento para se transformar em um espaço clínico. Para Foucault (1980), o
método clínico precisa silenciar o corpo do outro (o corpo doente); e as particularidades do
indivíduo se perdem no emaranhado de repetições classificatórias dos manuais de
diagnósticos. Para observar a doença, identificar seus signos, a clínica abstrai o sujeito doente,
mantendo seu olhar para o corpo ou expressões do comportamento, deixando de lado
elementos emocionais, históricos e sociais. Dessa forma, a medicina também encontra na
aprendizagem um profícuo objeto de estudo: o olhar clínico volta-se para as questões do
aprender e do não aprender. Legitima-se a existência de patologias no contexto escolar; e
estratégias de caráter interventivo e invasivo serão disseminadas no ambiente da escola como
garantia de uma aprendizagem adequada (MOYSÉS; COLARES, 1997).
O encaminhamento de alunos que não correspondem às expectativas de rendimento e
de comportamento, para avaliação psicológica vem crescendo cada vez mais. Enquanto isso,
os professores aguardam ansiosos pelo resultado dessas avaliações, na esperança de que estes
tragam possíveis soluções para os problemas de aprendizagem. Assim, como expressa Raad e
40
Sob essa perspectiva teórica, González Rey (2005b) busca romper com qualquer tipo
de definição e compreensão da psique humana que esteja associada às concepções
universalizantes de caráter intrapsíquico ou, até mesmo, a uma identificação da psique como
uma reação comportamental a determinado tipo de estímulo externo ao indivíduo. Nesse
sentido, considera-se a subjetividade como uma categoria inseparável dos fenômenos
histórico-culturais. Tal construto teórico é definido por González Rey (1999, p. 108) como
sendo “a organização dos processos de sentido e de significado que aparecem e se organizam
de diferentes formas e em diferentes níveis no sujeito e na personalidade, assim como nos
diferentes espaços sociais em que o sujeito atua”. A subjetividade, à luz desse referencial
teórico, é entendida como um sistema dinâmico e complexo que visa a transcender com toda
lógica de linearidade presente nas concepções racionalistas e mecanicistas de compreensão da
psique humana.
Para Neubern (2005), o tema da subjetividade gera implicações ontológicas,
epistemológicas e metodológicas, remetendo a um conjunto de modificações na produção do
conhecimento científico e psicológico, constituindo-se em um eixo fundamental para a
reflexão de um novo paradigma em construção:
[...] possui um valor heurístico para romper com a fragmentação que caracterizou,
até hoje, a aproximação da psicologia no estudo de unidades sociais concretas. No
sentido subjetivo dos atos do sujeito em um espaço social concreto estão contidos
processos e consequências de outros espaços sociais que lhe afetam de forma
simultânea. É essa trama de espaços sociais interligados, configurados na dimensão
subjetiva de pessoas, grupos e instituições, o que define a subjetividade social.
48
novos sentidos e significados são gerados favorecendo um entendimento mais amplo sobre os
diferentes posicionamentos dos alunos no processo de aprender.
A subjetividade individual possui dois momentos essenciais, assim considera
González Rey (2005a), que estão integrados entre si. São eles: a personalidade e o sujeito.
Esses são elementos centrais na Teoria da Subjetividade, em que um é constituinte e
constituído pelo outro, mas sem perder as suas especificidades.
A categoria de sujeito representa uma possibilidade teórica no diálogo com o tema da
subjetividade. Dentro dessa categoria, o sujeito se diferencia das concepções de indivíduo, de
pessoa, e passa a ter um valor próprio, sendo fundamental para a compreensão dos processos
de subjetivação. González Rey (2007, p. 144) define o sujeito “como a pessoa capaz de gerar
um espaço próprio de subjetivação em suas diferentes atividades humanas. O sujeito é a
pessoa apta a implicar a sua ação no compromisso tenso e contraditório de sua subjetividade
individual e da subjetividade social”. O conceito de sujeito possui posicionamento reflexivo
que se expressa na sua intencionalidade; ele emerge na ação, comprometido na atividade que
desenvolve.
De acordo com González Rey (2005a), o sujeito, ao mesmo tempo em que é um
indivíduo que gera uma realidade a partir de sua própria existência num mundo cultural, é
também uma instância da subjetividade social. Sob o ponto de vista das reflexões do autor, o
sujeito não nasce sujeito, mas se constitui como tal a partir de sua trajetória de vida. A
maneira como irá se constituir em um determinado contexto irá depender de sua história
concreta e de suas experiências de vida que vão sendo subjetivadas ao longo de sua trajetória.
No decorrer de sua vida, o sujeito vai construindo o seu universo subjetivo, sua subjetividade
individual e, com ela, sua condição de sujeito (MARTÍNEZ, 1997).
Com a categoria de sujeito considera-se importante compreender a aprendizagem
como uma função do sujeito que aprende. A aprendizagem tem sido compreendida, por
muitos professores, apenas como resultado das operações intelectuais. Esse fato acabou por
ignorar os aspectos da emocionalidade dos alunos, que consideramos um momento
constitutivo do processo de aprendizagem. Ao estudarmos as dificuldades de aprendizagem,
considerando a dimensão subjetiva do sujeito que aprende, temos a possibilidade de entrar em
contato com as emoções geradas nos diferentes espaços da vida do aluno, o que é fundamental
para a compreensão das emoções produzidas no contexto de ensino-aprendizagem.
50
definida por González Rey (2007, p. 127), como “[...] a unidade inseparável dos processos do
simbólicos e as emoções num mesmo sistema, no qual a presença de um desses elementos
evoca o outro, sem que seja absorvido pelo outro”. Para aquele autor:
que têm sua base na configuração subjetiva dessa experiência, na qual se organizam
subjetivamente todos os processos psíquicos que participam nela (GONZÁLEZ REY, 2012).
Com esse tópico, pretendemos defender uma concepção da subjetividade a partir de
uma representação do subjetivo como produção qualitativamente diferenciada e intimamente
relacionada à dimensão histórica das experiências concretas, atuais e sociais do indivíduo. As
categorias aqui apresentadas agregam importante valor à compreensão que nos propomos em
nosso estudo. Considera-se que tais categorias nos permitem maior aproximação dos aspectos
emocionais e de significação que se encontram presentes nos alunos em dificuldades de
aprendizagem escolar. Compartilhamos a concepção de Martinez (2009), segundo a qual o
desenvolvimento das formas complexas de pensamento, nas quais estão incluídos os
processos de aprendizagem e criatividade, será melhor compreendido quando analisado dentro
do sistema da subjetividade. Assim, quando procuramos compreender a dimensão subjetiva
da qual estão envolvidos, pretendemos contemplar uma visão mais ampla dos processos de
aprendizagem de alunos com dificuldades de aprendizagem.
Uma das ideias importantes que Vigotski enfatiza neste momento é a incompreensão
da psicologia infantil sobre o caráter histórico das funções psíquicas, o que levou os
psicólogos a realizar verdadeiros recortes dessas funções ao tentar defini-las como
aquisições de momentos concretos do desenvolvimento, e não compreendê-las em
seus diferentes momentos qualitativos no correr desse processo.
5
Os textos referenciados neste tópico foram publicados no Tomo V, das Obras Escolhidas-Fundamentos da
Defectologia, organizado pela Editorial Pedagógica, Moscou, 1983. A edição consultada refere-se à
publicação, em espanhol, da Visor Distribuidora S.A., Madri 1997.
59
sujeito. Tacca e González Rey (2008) destacam que a escola, na tentativa de padronizar o
conhecimento, comete alguns equívocos entre os quais se destacam: fragmentação do
conhecimento; padronização do conhecimento; padronização das pessoas; consideração da
aprendizagem em sua dimensão reprodutiva, sem assumir a possibilidade de sua produção; e
desconsideração da aprendizagem como função do sujeito, no âmago da configuração
subjetiva e da produção de sentido subjetivo.
Dentro de uma concepção acrítica da aprendizagem, os alunos com dificuldades de
aprendizagem são considerados, por natureza, impossibilitados de irem além do que está
determinado pelo diagnóstico. Volta-se, então, para a dificuldade e não para o aluno em
desenvolvimento. Vigotski (1997, p. 35), ao tratar do objeto de estudo da defectologia,
acrescenta que para “la defectologia el objeto no lo constituye la insuficiencia em si, sino el
niño agobiado por la insuficiencia”. Esse autor, em seus trabalhos sobre defectologia,
evidencia seu interesse pelo tema da personalidade, e se mostra preocupado com o impacto
social do defeito no desenvolvimento da personalidade da criança, sendo este o ponto central
do estudo da defectologia.
Dessa forma, avaliamos que, para entender a criança com dificuldades de
aprendizagem, não basta apenas olhar para aquilo que ela não aprendeu; ou fixar-se apenas no
diagnóstico médico que justifica a não aprendizagem. O importante, segundo o que Vigotski
propõe, é conhecer como essa criança se desenvolve; e quais são os recursos utilizados por ela
em resposta à dificuldade. Nesse sentido, torna-se necessário levar em conta as peculiaridades
do desenvolvimento da criança, conhecê-la, para além da dificuldade, para além diagnóstico.
Somente dessa forma, será possível criar possibilidades de desenvolvimento para criança. Ao
tratar da diversidade no desenvolvimento Vigotski (1997, p. 14) acrescenta:
natureza homogênea: ele será único para cada criança. Cabe ao professor estar atento ao
desenvolvimento da criança, buscar compreender como ela aprende. Entretanto, a escola está
preocupada com as metas, com as notas, numa dinâmica em que o importante é que a criança
aprenda; e não o caminho percorrido por ela para chegar ao aprendizado.
Ao avançar em uma perspectiva histórico-cultural, propomo-nos destacar a dimensão
subjetiva do aluno com dificuldades de aprendizagem, que perpassa a diversidade dos
contextos sociais, culturais no desenvolvimento de uma experiência histórica. Consideramos
que as categorias de sentido subjetivo e configuração subjetiva, como possibilidade de
compreensão dos processos psíquicos humanos e como produção subjetiva complexa dos
alunos com dificuldades de aprendizagem, caracterizam a não linearidade dos processos de
desenvolvimento e aprendizagem. Entende-se que uma criança com dificuldades para
aprender expressa afetos que se relacionam com diversos processos simbólicos que, por sua
vez, emergem na tensão dos processos da vida social que se organizam no curso da
aprendizagem. Ao destacar a importância das categorias de sentido subjetivo e configuração
subjetiva, González Rey (2011b, p. 54) explica que:
irá depender da maneira que cada sujeito se posiciona diante de uma determinada situação.
Para uma melhor compreensão:
Atualmente, existe uma variedade de teorias psicológicas que visam discutir e analisar
o tema da aprendizagem na sua relação com os processos educacionais. Cada modelo teórico
possui diferentes concepções de sujeito e formas de compreender os processos de
desenvolvimento humano. Essas teorias possuem uma relação estreita com as formas de
pensar e orientar os planejamentos e com as práticas pedagógicas. Do ponto de vista histórico,
o estudo científico da aprendizagem se fortalece ao final do século XIX, sendo bastante aceito
64
pelos educadores. Diante disso, houve uma expansão considerável de pesquisas no campo da
psicologia sobre o tema da aprendizagem, caracterizando assim, a diversidade das produções
psicológicas nesse campo (TUNES, TACCA, MARTÍNEZ, 2006).
Foi com o intuito de se legitimar como ciência, que a psicologia esteve por bastante
tempo, enraizada a um modelo positivista e instrumentalista de conhecimento. Esse modelo
ainda se faz presente no imaginário da construção do pensamento psicológico. O espírito
mecanicista, fortemente arraigado no pensamento psicológico, adotou o modo de
funcionamento das máquinas para compreender o comportamento dos seres humanos. Nessa
concepção, o comportamento humano obedecia às leis mecânicas e os métodos experimentais
e quantitativos, eficazes no universo físico e que seriam igualmente aplicáveis ao estudo da
natureza humana e ao funcionamento mental humano. O caráter instrumentalista e
mecanicista da psicologia acarretou em uma postura pouco reflexiva acerca de seus construtos
teóricos, deixando um legado de uso prático e mecânico das categorias psicológicas
(GONZÁLEZ REY, 2012). É nesse contexto que muitos educadores se apropriam de tais
construtos e partem para aplicação das categorias no contexto de sala de aula.
O espírito mecanicista na compreensão do humano, que se expressa na figura do
homem robotizado, passível de previsão e controle como prevê as leis da física Newtoniana,
impactou a construção de teorias psicológicas da aprendizagem. A teoria comportamental de
Skinner, a compreensão da mente como sistema de processamento de informação,
característico do pensamento cognitivista, e a visão de aprendizagem organizada em estágios
sucessivos do desenvolvimento cujos níveis de equilibração podem ser descritos mediantes
estruturas lógicas determinadas, são alguns exemplos dos desdobramentos do pensamento
mecanicista bem como sua visão de ciência, na construção das teorias da aprendizagem.
Considerando essa conjuntura é que González Rey (2012) destaca que a psicologia
como ciência tem se dedicado muito mais à compreensão dos processos cognitivo-
comportamentais e seus aspectos instrumentais, nos quais a inteligência ganha o estatuto de
determinante pelo sucesso na aprendizagem, do que com o tema da subjetividade e da
emoção. Diante disso, ora a aprendizagem é considerada como o resultado do impacto dos
estímulos externos no comportamento do indivíduo, ora é considerada como consequência da
assimilação e processamento de informações. Essas concepções não abriram espaço para a
compreensão dos aspectos culturais e emocionais como elementos constitutivos da
aprendizagem, tendo forte impacto na psicologia e na educação.
65
[...] o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias
zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido
que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais
estável, uniforme e exata [...] o sentido de uma palavra é inconstante. Em uma
operação ela aparece com um sentido, em outra, adquire outro.
67
A procura por uma integração entre os elementos do cognitivo e do afetivo marca uma
nova forma de funcionamento psicológico, que rompe com uma representação exclusivamente
operacional do mental que, além de incorporar elementos da afetividade, o situa dentro de um
determinado contexto. Essa tentativa de uma integração do cognitivo e do afetivo também se
expressa em Vigotski (2009, p. 465), quando ele se refere às contribuições de Paulham, ao
dizer que: “o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta
em nossa consciência”.
Tendo nos trabalhos de Vigotski um importante antecedente para construção de seu
pensamento, que González Rey avança ao desenvolver a categoria de sentido subjetivo, pois
esta não se limita à palavra, por ser considerada como uma unidade psicológica para o estudo
da subjetividade (GONZÁLEZ REY, 2013). Essa categoria permite um entendimento da
psique diferenciada, a partir da integração dos elementos do simbólico e do emocional, que se
68
reflexiva acaba por gerar uma relação mecânica entre professores e alunos. Além disso, o
estímulo motivador para o aprender passa a estar fora do aluno se tornando uma condição
necessária para que o aluno se implique em uma atividade, estabelece-se, assim, uma relação
de troca mecânica, que no final pouco pode contribuir para o desenvolvimento do aluno como
sujeito da aprendizagem.
Redefinir o conceito de motivação da aprendizagem como sendo algo intrínseco às
configurações subjetivas nos permite ir além da ideia de operações cognitivas separadas da
esfera emocional. Nesse sentido, González Rey (2009b) enfatiza que cada ato motivado é
como uma síntese subjetiva da experiência vivida em diversos espaços e tempos. Assim, o
aluno chega à escola com uma bagagem vivencial oriunda de outras esferas da vida, que se
entrecruza com a sua experiência no contexto escolar configurando-se nas relações com seus
pares e professores, bem como na sua relação com a aprendizagem. Para tanto, González Rey
destaca que “os motivos são as configurações subjetivas que se organizam no curso da ação”
(GONZÁLEZ REY, 2012, p.29), que abarcam a trama de sentidos subjetivos que irão se
organizar no momento em que a experiência ocorre, bem como aqueles que irão emergir
durante a experiência. Ao destacar a problemática da relação entre os processos cognitivos e a
motivação González Rey (2013, p. 268) explica:
sentido, consideramos que o sistema dentro do qual funciona a operação intelectual não é
apenas um sistema lógico-reprodutivo, mas um sistema de produção de sentidos subjetivos.
Assim, como expressa Mitjáns Martinez e González Rey (2012), a ideia de sistema possibilita
a integração do operacional e do subjetivo como configuração subjetiva, que permite explicar
a aprendizagem para além do contexto imediato da operação.
Vale destacar os trabalhos desenvolvidos por Gardner (1994, 1995) e Sternberg
(2000), no desenvolvimento de modelos teóricos de inteligência, que rompem com uma visão
mais tradicional na forma de compreender o intelecto humano, dentro de uma perspectiva da
psicologia cognitivista contemporânea. A teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner
buscou ampliar a compreensão da inteligência e questionou a suposição de que esta poderia
ser medida por instrumentos padronizados como testes de respostas curtas. Para contemplar o
campo da cognição humana, Gardner (1994, p. 7) enfatiza ser necessário “[...] incluir um
conjunto muito mais amplo de competências do que comumente se considerou”. A
inteligência é definida por este autor pela “capacidade de resolver problemas ou elaborar
produtos que são importantes num determinado ambiente cultural” (GARDENER, 1995, p.
21). Gardner enumera sete tipos de inteligência que funcionam de maneira combinada:
inteligência linguística, inteligência interpessoal, inteligência intrapessoal, inteligência lógico-
matemática, inteligência musical, inteligência espacial e inteligência corporal cinestésica.
Na Teoria Triárquica de Sternberg (2000), a inteligência compreende três aspectos, os
quais tratam da relação da inteligência (a) com o mundo interno da pessoa; (b) com a
experiência, e (c) com o mundo externo. De acordo com Sternberg (2000), a inteligência
compreende capacidades analíticas, criativas e práticas. No pensamento analítico, propõe-se
resolver problemas conhecidos, usando estratégias que manipulem os elementos de um
problema ou as relações entre esses problemas; no pensamento criativo, tentamos resolver
novos tipos de problemas que nos exijam ponderar o problema e seus elementos em uma nova
maneira e, por fim, no pensamento prático, tenta-se resolver problemas que apliquem o que
sabemos aos contextos cotidianos.
Ainda dentro de uma perspectiva cognitivista, os trabalhos de J. Bruner (1969) foram
representativos para o desenvolvimento da psicologia cognitiva norte-americana. Bruner
participou ativamente da chamada revolução cognitiva nos anos de 1950. Defendia que o foco
da psicologia deveria ser o estudo da mente, das atividades simbólicas do ser humano, em
contraposição à excessiva objetividade do positivismo e do behaviorismo, além disso,
apresentou uma crítica ao estudo dos processos cognitivos puros, e passa a trabalhar numa
perspectiva culturalista. Para Bruner (1969), a psicologia deveria se ocupar dos significados
72
que os indivíduos produzem na cultura. O autor tinha como principal objetivo verificar a
influência da cultura na aprendizagem escolar ou o papel capacitador desta no
desenvolvimento mental dos alunos. Bruner aponta alguns preceitos que deveriam orientar a
abordagem psicocultural à educação, enfatizando a conscientização, a capacidade de se
refletir sobre uma atividade, a amplitude de diálogo e a possibilidade de negociação no
contexto educacional. Tais preceitos apontam para a necessidade de “equiparar as mentes com
habilidades para compreender, sentir e agir no mundo cultural” (BRUNER, 2001, p. 46).
González Rey (2013) aponta a contribuição desses autores, pois permitiram uma
representação mais complexa e versátil sobre os diferentes tipos de inteligência e as formas
particulares de seu funcionamento para a compreensão dos processos de aprendizagem.
Contudo, os representantes do cognitivismo, ao considerar a aprendizagem como um sistema
de processamento das informações e de integração dos conteúdos à estrutura cognitiva do
aluno, desconsideraram a emocionalidade como parte integrante e essencial nos processos de
operação intelectual, que se constitui de forma complexa na produção do conhecimento e da
aprendizagem escolar.
Considera-se que a operação concreta é mais uma ferramenta no processo de
aprendizagem, mas não a condição que irá garantir a produção do conhecimento pelo aluno.
Além disso, tendo como base o processo de produção de conhecimento, que se expressa na
manifestação subjetiva das operações intelectuais, implica necessariamente o envolvimento
emocional, a imaginação e a fantasia como recursos inseparáveis do processo de aprender, o
que permitirá o uso e a articulação do que foi aprendido diante de uma situação nova.
Vigotski (2007, p. 83) em seus estudos sobre pensamento e palavra, faz observações
importantes que contribuem para considerar a imaginação como um processo intrínseco ao
pensamento, conforme se segue:
intelectual, centra-se mais na definição formal do conceito, muitas vezes, reproduzindo aquilo
que é apresentado pelo professor. Podemos considerar que tal fenômeno acontece pela pouca
abertura que os alunos possuem dentro da escola para poderem ir além daquilo que é dado
pelo professor, pois o aluno deve memorizar e internalizar um conhecimento pronto dentro de
um prazo limitado.
A imaginação enquanto um recurso da pessoa que permite a criação não é uma
atividade reprodutiva que meramente reflete as impressões anteriores da experiência humana.
Em Imaginação e Criação na Infância, Vigotski (2009, p. 14), considera que a criação se
constitui em uma atividade combinatória ou criadora:
Pode se dizer, que a imaginação enquanto atividade criadora que perpassa os diversos
campos da vida cultural estabelece relações nos processos de ensino e aprendizagem. Smolka
(2009) assinala que a possibilidade de criação ancora-se na experiência, sendo que qualquer
experiência humana tem sua riqueza e possibilidades. Para a autora, no que tange às práticas
pedagógicas, trata-se do incansável trabalho de inventar e planejar, a cada dia, como
proporcionar, o acesso dos alunos ao conhecimento produzido e a sua participação na
produção deste conhecimento.
Vigotski considera que a imaginação assume uma função importante no
desenvolvimento humano. Para ele, a imaginação é um meio de ampliação da experiência de
um indivíduo, pois segundo o autor, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ele
será capaz de imaginar o que não viu, o que não vivenciou. O autor enfatiza que a pessoa não
se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria experiência, mas podem aventurar-se
para além deles. Assim, para Vigotski (2009), a imaginação configura-se uma condição
necessária para quase toda atividade mental humana.
Entretanto, a escola na forma em que está organizada hoje, não favorece condições
para que seus alunos desenvolvam o uso de um pensamento criativo, reflexivo, ou seja, que
utilizem a imaginação como um elemento importante passível de contribuir para os processos
de aprendizagem. A imaginação e a criatividade dos alunos quando não é desqualificada, fica
sempre em segundo plano, como algo que não merece tanta atenção, algo que é menos
74
Amaral e Martinez (2009) consideram que o autor ao não ceder uma concepção
exclusivamente cognitivista da aprendizagem, atribui às emoções um lugar central na
definição teórica da aprendizagem. Além disso, a consideração da unidade afetivo-cognitivo
permitiu a ele não cair em uma visão unilateral da aprendizagem. Reconhece-se a importância
dos processos simbólicos para a aprendizagem na sua articulação constante com os processos
emocionais. Na citação abaixo, podemos evidenciar a consideração das operações intelectuais
como um processo subjetivo e interativo que compõe a sua constituição.
Quando o escolar está na aula, suas operações intelectuais são inseparáveis do tipo
de relação que constitui com o professor e com o resto dos alunos. O professor é
parte essencial da disciplina, e as relações com os alunos representa uma importante
motivação para disciplina, por isso a socialização é um momento essencial de todos
os processos implicados no desenvolvimento humano (GONZÁLEZ REY, 1998, p.
23).
[...] é impossível um estudo sério se quem estuda se coloca frente ao texto como se
estivesse magnetizado pela palavra do autor, ao qual atribuiria uma força mágica; se,
se comporta passivamente, “domesticadamente”, procurando somente memorizar as
afirmações do autor [...] Estudar é uma forma de reinventar, de reescrever, tarefa de
sujeito e não de objeto.
Tunes, Tacca e Martinez (2006) assinalam o papel essencial que é conferido ao outro
nos processos de aprendizagem e desenvolvimento. Esses autores ilustram a compreensão da
aprendizagem escolar como um processo de natureza social. Para tanto, retomaremos ao
conceito de zona de desenvolvimento proximal desenvolvido por Vigotski, por considerarmos
o impacto que este conceito tem no campo educacional, para a compreensão dos processos de
ensino e aprendizagem.
Segundo Vigotski, deve-se verificar o duplo nível do desenvolvimento. Considerando,
primeiramente, o nível de desenvolvimento atual, que seria o que hoje já está amadurecido e,
em segundo lugar, a zona de seu desenvolvimento próximo, que estaria relacionado àquelas
funções que ainda não estão amadurecidas, mas que poderão passar para o nível de
desenvolvimento atual. Os níveis de desenvolvimento se definem, respectivamente, pelo que
se é capaz de fazer sozinho e com ajuda do outro. Conclui-se que, para se analisar o
desenvolvimento psicológico, deve-se levar em conta não apenas o que uma pessoa é capaz de
fazer sozinha, mas o que lhe é possível com ajuda de outras pessoas.
Mesmo com as contribuições de Vigotski em relação ao papel que é conferido ao outro
no desenvolvimento, González Rey (2013, p. 242) destaca que o aspecto da emocionalidade
não chegou a ser contemplado pelo autor, deixando o “adulto como um mediador entre a
criança e a tarefa, como um apoio instrumental para o desenvolvimento da tarefa”. Tal
perspectiva gerou uma insuficiência na consideração dos processos de comunicação, bem
como a desconsideração da qualidade do relacionamento afetivo do outro com a criança.
A partir dessa reflexão, considera-se que a ação pedagógica não se constitui como um
instrumento, o professor, enquanto responsável pelo desenvolvimento do aluno, assume um
papel de colaborador, a partir do momento em que organiza os recursos culturais para
promover e inaugurar um tipo de processo qualitativamente diferenciado que emerge a partir
da relação estabelecida entre professor e aluno. O professor deve assumir um compromisso
consciente e intencional para com o desenvolvimento do educando.
A Teoria da subjetividade confere aos processos de comunicação um espaço especial
para o desenvolvimento da qualidade da aprendizagem. O diálogo, segundo González Rey
(2008), estimula o envolvimento do aluno e define um processo de aprendizagem norteado
pela reflexão; é o diálogo que permite ao aluno entrar em um caminho que o coloca a assumir
posições – processo facilitador da emocionalidade na ação do aprender. A relação dialógica
reivindica o caráter criativo e produtivo do sujeito como fonte de produção de sentido. Para
Simão (2004), o diálogo se apresenta, na relação professor-aluno, como possibilidade de
investigação do processo de ensino e aprendizagem, em que o professor poderá se aproximar
dos processos de significação dos alunos e a partir disso, organizar a sua ação pedagógica,
decide quais os tipos de estratégias que serão facilitadoras da aprendizagem do aluno.
Dessa forma, o papel do professor é redimensionado. O professor, atuando como
sujeito concreto que participa ativamente no processo de ensino e aprendizagem, se configura
como um “outro social” que, para González Rey (2004), só existe inserido em uma sequência
histórica de relações, que vai se transformando em um sistema de sentido, a partir do qual
esse outro passa a ter significação no desenvolvimento da criança.
Tacca (2009), ao refletir sobre o papel do professor, destaca a importância deste
assumir um lugar de investigador. Uma de suas funções seria a de investigar as produções de
sentidos subjetivos do aluno, principalmente daqueles que não avançam no aprender. O
professor seria um investigador incansável, para uma compreensão adequada da trama
complexa em que ocorrem a aprendizagem e o desenvolvimento.
A partir das contribuições da autora, não basta apenas identificar que a criança não
consegue realizar uma atividade de matemática ou ter a compreensão de um texto. O
importante é identificar por que o aluno não consegue fazer isso, tendo em vista que é essa a
condição para fornecer a ele a ajuda específica que o fará resolver a situação imediata, criando
a possibilidade dele construir autonomia para situações futuras. Esse é o fato que caracteriza o
salto qualitativo na aprendizagem.
Para se pensar as relações professor-aluno, autores como Bohoslavsky (1997) aponta
considerações relevantes. O autor salienta a desconstrução de um ensino baseado a partir de
uma relação verticalizada entre professor e aluno. E ainda, tal vínculo deveria ser substituído
por uma relação de cooperação. O motor da aprendizagem deveria ser tomado em seu sentido
etimológico com um “estar - entre”, colocando o conhecimento não atrás do processo
educativo, mas sim no centro, em que o objeto a ser aprendido estaria entre os que ensinam e
os que aprendem.
Com isso, vê-se a importância de se considerar a dimensão relacional do processo de
ensino e aprendizagem, em que professor e aluno estão intensamente envolvidos
influenciando um ao outro de forma recíproca. Dessa forma, podemos analisar as dificuldades
de aprendizagem também a partir de um viés relacional. Essa mudança pode contribuir muito
para uma compreensão mais ampla do processo de aprendizagem, o que, consequentemente,
exigiria que se retirasse o foco do aluno e direcionasse o olhar para outras dimensões que
também fazem parte do problema do não aprender. Marinho-Araújo e Neves (2006, p. 164)
enfatizam a impossibilidade de se buscar o entendimento das dificuldades de aprendizagem
olhando somente para aquilo que o aprendiz não tem, conforme se segue:
Segundo González Rey (2004, p.7), torna-se necessário compreender o “[...] outro
como um espaço social complexo, momento de uma subjetividade social que se delimita
como campo simbólico e de sentido, e dentro do qual o sujeito concreto precisa encontrar
consigo mesmo”. A relação professor-aluno deve ser personalizada, na qual o educando deve
sentir que ocupa um lugar específico, que é acolhido no seu universo, podendo confiar nela
para se expressar (GONZÁLEZ REY; MARTINEZ, 1989).
83
Essa marca teórica nos apoia para a consideração da importância dos processos de
ensino-aprendizagem como espaço relacional. Um grupo de alunos com seu
professor está mergulhado e inundado em diferentes tipos de dimensões interativas.
Deve desempenhar as funções inerentes aos papeis que lhe são reservados na
instituição escola, mas está em contínuas significações no contexto intersubjetivo.
acabou por desconsiderar o processo de aprendizagem, tendo como base avaliativa o resultado
de uma prova.
Para finalizarmos, enfatizamos que a relação sujeito-conhecimento é marcada pelo
entrelaçamento entre os aspectos cognitivos e afetivos. Além disso, também chamamos a
atenção para a consideração das práticas pedagógicas como um aspecto relacional em que a
emocionalidade dos sujeitos envolvidos também se fazem presente. A perspectiva histórico
cultural demonstra a importância do papel outro para o desenvolvimento humano, as
contribuições da teoria da subjetividade enfatizam a emocionalidade na relação professor-
aluno a partir das produções de sentidos subjetivos dos sujeitos. Partindo desse pressuposto,
considera-se que, no processo de produção de conhecimento, o outro possui grande
importância na colaboração da relação do sujeito que aprende e o conhecimento culturalmente
organizado, os quais vão ganhando sentido e significado para cada aluno concreto.
No que se refere à sala de aula, este ambiente se configura como um espaço relacional
dialógico, não podendo estar centrado exclusivamente na exposição do professor. Nesse
espaço, os alunos vivenciam experiências de natureza afetiva que serão configurados
subjetivamente estabelecendo uma relação recíproca com o conhecimento a ser aprendido.
Para González Rey (2009a), pensar a organização do espaço da escola como um espaço
dialógico com desdobramentos diversos rompe com a ideia de intervenções e atividades em
uma única direção por parte do professor e dos demais programas educacionais. Dessa forma,
torna-se necessário repensar o papel dos aspectos sociais das diferentes atividades educativas,
bem como a consideração das diferentes formas de organização subjetiva das crianças no
processo de aprender.
A partir dessas considerações, propomos a despatologização das dificuldades de
aprendizagem e sua análise como produção subjetiva associada ao desenvolvimento do aluno
perante o processo de aprender. Dessa forma, passamos a compreender que a dificuldade não
surge comprometida apenas a uma função cognitivo-intelectual, mas que está relacionada a
um tipo de produção subjetiva por parte do sujeito que não se desvincula dos espaços sociais
do qual ele participa. Dessa forma, a criança que possui uma dificuldade na escola não pode
ser entendida somente nos aspectos cognitivos comprometidos na aprendizagem, mas deve ser
percebida na configuração subjetiva que envolve os espaços históricos e atuais, bem como as
relações que esta estabelece no ambiente escolar, essa configuração como apresenta González
Rey (2007) é responsável pela produção de sentidos subjetivos capazes de paralisar as
possibilidades de aprendizagem.
85
3 METODOLOGIA
modelo de ciência pouco reflexivo no que se refere à produção teórica acerca da informação
coletada (GONZÁLEZ REY, 2005c).
Recuperar o aspecto reflexivo no fazer científico torna-se uma dimensão necessária
para a elaboração de um conhecimento que tem como pretensão superar o ranço positivista de
caráter instrumentalista. Essa visão positivista intenta neutralizar as interferências entre
pesquisador e objeto de pesquisa, uma concepção que ainda predomina na pesquisa qualitativa
em ciências humanas e sociais. Para superar esse paradigma, González Rey (2005c, p. 3)
defende que:
Sem uma revisão epistemológica, corremos esse risco, como de fato vem ocorrendo
até hoje, de manter uma posição instrumentalista na pesquisa qualitativa ao legitimar
o qualitativo por meio de instrumentos utilizados na pesquisa, e não pelos processos
que caracterizam a produção de conhecimento.
outros elementos identificados por meio de outros instrumentos utilizados. Trata-se, então, de
“uma produção própria do pesquisador em relação ao problema concreto que está estudando,
no qual podem aparecer desafios que estendam a significação do modelo em seu valor
teórico” (GONZÁLEZ, 2005c, p. 104).
Esse processo flexível e dinâmico feito pelo pesquisador no curso da pesquisa é a
característica fundamental do princípio construtivo-interpretativo, denominado por González
Rey de lógica configuracional. A lógica configuracional não é pré-determinada nem linear,
pois se constitui nas diversas possibilidades que vão surgindo no decorrer da pesquisa. Nessa
perspectiva, os imprevistos e as contradições são elementos importantíssimos que vão
tomando forma dentro de uma lógica que não tem a pretensão de ser lógica no seu sentido
estrito. Nas palavras do autor, a lógica configuracional.
A pesquisa foi realizada em uma escola pública, que funciona sob a responsabilidade
da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEDF). A escola, inaugurada em 16
de agosto de 1961, foi criada para atender alunos residentes na comunidade local; nos dias
90
3.4 Participantes
A seleção leva em conta que o fórum de análise diz respeito à compreensão dos
aspectos subjetivos envolvidos no processo de produção intelectual de crianças do ensino
fundamental das séries iniciais que apresentam dificuldades de aprendizagem na aquisição dos
conteúdos escolares. Foram selecionados como participantes da pesquisa duas crianças que
apresentavam dificuldades na aquisição dos conteúdos escolares.
Dessa forma, como aponta González Rey (2005c), os sujeitos selecionados devem
constituir uma via essencial para o aprofundamento das informações implicadas no
desenvolvimento do modelo teórico em construção. Esses sujeitos devem ser capazes de
prover informações relevantes, e singulares para o problema estudado.
92
Por se tratar de uma pesquisa com crianças, foi solicitada a autorização dos respectivos
pais ou responsáveis e, após a assinatura do Termo de Compromisso Livre e Esclarecido
(TCLE), foi dado início ao processo de coleta de informações juntamente com as crianças
selecionadas.
3.5 Instrumentos
aos conteúdos escolares; redação “A escola dos meus sonhos”; análise documental;
complemento de frases; jogo dos sentimentos e situações de conflito.
3.5.1.3 Observações
A redação, chamada de composição escrita por González Rey e Martínez (1989), vem
sendo utilizada por estes autores para o estudo da personalidade. Segundo os autores, a
redação “[...] tem a vantagem de seu caráter ser totalmente aberto, o que permite ter uma
informação individualizada, portadora de múltiplos indicadores relevantes” (GONZÁLEZ
REY; MARTÍNEZ, 1989, p. 94).
96
Na pesquisa, o uso desse instrumento foi interessante por ter resultado registro autoral
escrito, oportunidade em que expressão de cada um dos sujeitos foi potencializada.
Exatamente por sua natureza aberta, possibilitou a produção de informações dos sujeitos; e
também permitiu-me avaliar a elaboração do que foi expresso, isto é, os discursos efetivos,
além da intencionalidade e do controle do sujeito envolvido na pesquisa.
Utilizei esse instrumento como indutor breve de um processo a ser completado pelos
sujeitos de pesquisa. Na presente pesquisa, foi utilizada uma versão adaptada para crianças,
contendo 17 frases. O registro dessas respostas, em que os participantes enfrentaram um novo
canal de expressão escrita, levou-me a confirmar ou descartar algumas das hipóteses formuladas
sobre a natureza da dificuldade das crianças.
97
Alunos
Instrumentos
Michael Alan
Elaboração de desenhos X
Resolução de tarefas relacionadas aos conteúdos escolares X X
Redação – “A escola dos meus sonhos” X
Complemento de frases X
Jogo dos sentimentos X X
Situações de conflito X
98
Alan ingressou no quarto ano na escola onde a pesquisa esta sendo realizada.
Atualmente, encontra-se no quinto ano. Foi encaminhado ao Serviço Especializado de Apoio
à Aprendizagem por aspectos comportamentais e baixo rendimento escolar. Segundo as
informações do relatório psicopedagógico, o aluno apresentava potencial cognitivo médio
superior, quando comparado ao grupo de sua faixa etária; contudo demonstrava grandes
dificuldades no campo atencional.
Aos oito anos de idade Alan foi diagnosticado como tendo Transtorno de
Hiperatividade e Défict de Atenção (TDAH), tendo como indicação médica o uso do
Metilfenidato. Entretanto, a família, por motivos pessoais, optou por não oferecer a
medicação à criança. Decidiu-se, então, por realizar acompanhamento psicopedagógico e
terapia infantil, atividades que Alan costumava frequentar semanalmente. Contudo, segundo
informações passadas pela mãe, devido a questões de comportamento e falta de engajamento
da criança no atendimento psicopedagógico, a terapeuta optou por interromper
temporariamente os atendimentos.
Meu encontro com Alan se deu no início de 2014, quando retorno à escola após o
período de férias escolares. A professora de Alan foi uma das poucas da instituição que
concordou em me receber como pesquisadora em sua sala de aula. Essa docente, logo de
início, demonstrou disponibilidade para colaborar com a pesquisa, e me sinalizou alguns
possíveis participantes.
A dinâmica da sala me chamou atenção. É uma turma com 23 alunos, em que a idade
das crianças gira em torno de 9 e 10 anos. A classe é bastante tranquila e participativa, sendo
que os alunos chegam a disputar entre eles quem responderá primeiro às perguntas da
professora. Esta praticamente não chama atenção dos alunos por problemas de
comportamento, e quando isso acontece, busca propor uma reflexão com as crianças sobre o
que está acontecendo.
100
A: É hoje?!
Pesq.: Sim.
A: Que chato! (sorrindo)
Pesq.: Infelizmente tenho uma consulta médica, e havia me esquecido. Não poderei
ir. Teremos que remarcar.
A: Legal! (com expressão de decepcionado)
Percebi que Alan havia feito uma expectativa para o encontro, e que parecia ser algo
importante para ele. Entretanto, não queria demonstrar que se importava. No dia seguinte,
novamente, Alan me perguntou o motivo pelo qual havia desmarcado o nosso encontro.
Igualmente, expliquei a ele que tinha uma consulta da qual houvera me esquecido, mas que
precisava ir. Remarcamos nossos encontros, que passaram a ocorrer semanalmente. Minha
102
chegada, normalmente, era recebida por Alan com fugas a me ver, caretas e bocejos. Às
vezes, cheguei a perguntar:
Esse diálogo ocorreu em um momento em que Alan não conseguia dar início a uma
tarefa, com comportamento constantemente inquieto, fazendo piadas, e demonstrando pouca
concentração. Alan buscou, na ocasião, uma saída criativa e ousada para se esquivar da
realização da tarefa, mesmo que, com essa atitude, pudesse comprometer o desenrolar de
nossos encontros. Diante desse quadro, o desafio estava lançado: compreender o porquê de
uma atitude tão defensiva, que acabava por afastar a possibilidade de vínculos afetivos. Ou
seja, fazia-se necessário desenvolver um modelo teórico a respeito da configuração subjetiva
da aprendizagem de Alan, para além de seus comportamentos defensivos, enfatizando a
103
dimensão dos processos singulares que vão se expressar na emergência de uma dificuldade de
aprendizagem escolar.
Estávamos, na ocasião, vivenciando um momento de tensão na relação
pesquisador/participante da pesquisa. Diante disso, percebi a necessidade de manter um
posicionamento firme com Alan, que poderia levar ao fim de nossos encontros. Contudo, tal
posicionamento, por outro lado, tinha como intenção promover, mesmo que minimamente
uma reflexão por parte da criança acerca das possibilidades de suas atitudes. Deixei nas mãos
de Alan a escolha em dar continuidade ou não aos nossos encontros.
Pesq: Alan, se você quiser que eu vá embora, você pode me dizer. Eu vim aqui para
te ajudar a fazer a tarefa. Essa é uma escolha que você tem que tomar.
Na escola, Alan era considerado um aluno rebelde e manipulador. Suas atitudes eram
reprimidas mediante bilhetes na agenda e a solicitação da presença da mãe à escola. Estimular
uma reflexão em Alan, acerca do que estava acontecendo em nossa relação, consistia em
enxergá-lo como sujeito de um processo, conferindo-lhe um lugar ativo na construção dessa
relação. Dessa forma, Alan tinha a possibilidade de avaliar se queria ou não dar continuidade
aos nossos encontros. O que, necessariamente, exigiria por parte do participante certa
implicação no espaço social em que se constituía a nossa relação. A confrontação proposta
pela pesquisadora gerou em Alan uma tensão, expressa por ele, por meio de alguns segundos
de total silêncio. Posteriormente, Alan respondeu, dizendo: “Tia, não quero que vá embora”.
No confronto, Alan pode tomar uma decisão e se posicionar, a partir de suas próprias
reflexões, assumindo um posicionamento no contexto social da relação.
A partir dos parâmetros epistemológicos assumidos nesta pesquisa, consideramos os
processos de comunicação como uma via que possibilita o desenvolvimento do pensamento
como um processo reflexivo, o que requer reconhecê-lo como uma produção de sentidos
subjetivos. Alan, no exercício de sua capacidade pensante, ocupou um lugar central na
processualidade da relação pesquisador–pesquisado. No confronto com ele mesmo, que se
expressou pelo silêncio, Alan se colocou como sujeito da relação, reassumindo sua posição no
contexto social em que se desenvolvia a pesquisa.
A construção do cenário social da pesquisa com Alan, foi caracterizada pelo exercício
tenso e contraditório entre duas subjetividades implicadas no processo da relação. De um
lado, tínhamos uma criança motivada em se manter afetivamente distanciada da pesquisadora,
que se expressava por meio de piadas, pegadinhas e pela falta de envolvimento na realização
das tarefas escolares. No outro polo, encontrava-se uma pesquisadora engajada em formar um
104
Como já foi mencionado, Alan, aos oito anos, foi diagnosticado como portador do
Transtorno de Défict de Atenção e Hiperatividade. O encaminhamento foi solicitado pela
escola devido às dificuldades da criança no campo atencional; e também a problemas de
comportamento considerado inadequado. Alguns profissionais da escola consideravam que a
não aprendizagem de Alan estava relacionada com seus aspectos comportamentais e não o
não uso de medicamento.
De acordo com a definição fornecida pela Associação Brasileira de Déficit de
Atenção, em seu sitio, o TDAH é um transtorno neurológico de causas genéticas que surge na
infância e consequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Os critérios de
avaliação para o diagnóstico de TDAH consistem em uma série de afirmações que buscam
auxiliar na identificação de possíveis sintomas quando a criança: não consegue prestar muita
atenção a detalhes ou comete erros por descuido nos trabalhos da escola; parece não estar
ouvindo quando se fala diretamente com ela; não segue instruções até o fim e não termina
deveres da escola; distrai-se com estímulos externos; mexe com as mãos ou os pés ou se
remexe na cadeira; sai do lugar na sala de aula ou em outras situações em que se espera que
fique sentado.
Tendo por base os critérios utilizados para a identificação do transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade, e ao observar e ao analisar os comportamentos de Alan, no
contexto escolar, facilmente poderíamos enquadrá-lo dentro dos diversos critérios utilizados
para a identificação de tal transtorno. Entretanto, ao partimos de uma análise essencialmente
105
Nesse primeiro momento, não iremos focar em uma análise mais aprofundada da
representação feita por Alan em torno de cada membro familiar. O que nos chama atenção, no
desenho realizado pelo participante foi o fato de Alan se desenhar em uma folha separada dos
demais membros de sua família. Mesmo havendo espaço na folha de papel em que a criança
havia desenhado mãe, pai, irmão e irmã. Alan solicitou à pesquisadora outra folha para
elaboração de seu próprio desenho. Ao ser questionado pela necessidade de outra folha, Alan
respondeu que não havia espaço suficiente para ele naquela folha de papel e que, por isso,
107
precisava de outra folha, na fala de Alan: “Aqui não tem espaço para mim. Preciso de uma
folha maior”.
Ao se desenhar em uma folha separada, Alan parecia não integrar o mesmo espaço
social de sua família. Ao retomarmos a história familiar de Alan, a mãe relatou que, com a
chegada do irmão mais novo, diagnosticado com síndrome de Down e com sérios problemas
de saúde, as atenções tiveram, inevitavelmente, que se voltar para os cuidados do irmão. A
mãe conta que Alan havia recém completado cinco anos, e com certo pesar, essa diz ter
deixado a criança sob os cuidados de terceiros, para que pudesse se envolver no tratamento do
irmão mais novo, constantemente doente.
Diante desse contexto, podemos analisar as dificuldades enfrentadas por Alan, no
sentido de compreender a maneira pela qual sua família passou a se organizar após o
nascimento do irmão. A chegada de um novo membro à família pode ter gerado em Alan uma
sensação de instabilidade, trazendo a necessidade de reformular o seu espaço no contexto
social familiar.
Considera-se que os sentidos produzidos por Alan no ambiente escolar não se
dissociam dos sentidos produzidos em diferentes zonas de sua experiência. O que nos permite
compreender os processos de subjetivação como momento de um sistema complexo da
subjetividade individual. A dificuldade em estabelecer vínculos afetivos, tanto com os seus
pares quanto com a pesquisadora, relaciona-se com outras emoções oriundas de outros
campos da experiência da criança, que não são vivenciadas pelo participante de forma
consciente. Os sentidos subjetivos relacionados aos sentimentos de abandono e rejeição
possivelmente vivenciados por Alan após o nascimento do irmão podem ter gerado nele a
necessidade de rejeitar os vínculos afetivos.
O sentimento de instabilidade em relação aos vínculos afetivos se expressa por meio
de comportamentos aparentes, como as pegadinhas; a inquietação em sala de aula; dificuldade
em se relacionar com os demais colegas da escola; o questionamento constante em relação à
presença da pesquisadora; e a criação de situações conflitantes, como no caso da
psicopedagoga, que optou por interromper o acompanhamento da criança.
A necessidade de afeto de Alan se mascara em uma postura defensiva que o impedia
de se relacionar com os outros e de se envolver afetivamente com a situação de aprendizagem.
Estamos diante de um conjunto estável e autogerador de emoções e processos simbólicos que
se expressam na configuração subjetiva da personalidade da criança.
108
Percebe-se que forma encontrada por Alan para se relacionar com o não saber se
manifesta a partir de uma recusa em realizar a atividade, ou seja, ele procura se manter
distante da situação que lhe causava desconforto. A resistência de Alan na realização das
atividades, na maioria das vezes analisada pela comunidade escolar como problemas de
indisciplina por parte da criança, escondia, por sua vez, uma dinâmica subjetiva bastante
complexa.
Nesta pesquisa, com base no referencial teórico, seus instrumentos e diante das
situações encontradas, verificamos que falta no domínio de determinados conceitos
fundamentais para a realização do problema de matemática, vinculam-se aos sentidos
subjetivos relacionados aos sentimentos de vergonha e incompetência, impedindo Alan de se
relacionar com a tarefa proposta de forma mais positiva. Os sentidos subjetivos que emergem
no curso da atividade não surgem de forma linear e direta, o que nos impede de pensar em
processos subjetivos universais. No caso de Alan, os sentimentos de vergonha não se
desvinculam da forma como a criança se percebe nos diversos espaços que ela ocupa; ou seja,
como ela se relaciona com ela mesma e com os outros.
Em diversos momentos, Alan apresentava uma postura arrogante com uma valorização
demasiada de si mesmo e de suas capacidades cognitivas. No conjunto articulado das
informações produzidas no decorrer da pesquisa, identificou-se a formação de um tipo de
configuração subjetiva na personalidade de Alan, que emergia na tensão entre aquilo que a
criança gostaria de ser, ou seja, passar uma imagem de autovalorização e onipotência, e aquilo
que de fato acontecia, suas dificuldades em dominar os conteúdos escolares. A contradição
vivenciada por Alan se manifestava, comumente, na tensão entre uma produção de sentidos
subjetivos de autovalorização e os sentimentos de incapacidade e menos valia. Na atividade
110
de completar frases, duas sentenças merecem destaque por mostrarem a necessidade de Alan
em passar uma imagem de autovalorização e onipotência.
Pelo que foi apresentado, é possível compreender que a aprendizagem de Alan estava
carregada de uma produção de sentidos subjetivos que pouco o ajudava no avanço de
alternativas favorecedoras de uma postura mais positiva frente as suas dificuldades. Os
processos de produção intelectual de Alan se organizavam na complexa teia de produções
subjetivas. A possibilidade de vivenciar uma situação de fracasso gerava em Alan um nível
elevado de ansiedade, pois ia de encontro com a representação que a ele fazia de si mesmo, ou
que gostaria de ser. Percebia-se que fracasso era vivenciado por Alan, antes mesmo da
realização da tarefa. Os sentidos subjetivos relacionados os sentimentos de fracasso e
incapacidade se tornam um obstáculo no desenvolvimento das operações intelectuais de Alan
impedindo-o de se tornar sujeito em seu processo de aprendizagem. Retomaremos ao exemplo
da tarefa de matemática. Segue o problema que Alan deveria resolver:
Um quinto dos 245 alunos matriculados na escola não poderá fazer a visita ao Instituto
Butantã. Quantos alunos da escola não participarão do passeio?
Segue o raciocínio da criança:
Alan insiste em manter uma postura de resistência, esquivando-se. Insisto com ele que
daremos continuidade à atividade. Perguntei a Alan se ele havia entendido o que o problema
estava pedindo. Propus, então, que lêssemos junto e, em seguida, pedi que me explicasse o
que deveria ser feito para resolver a questão. Alan parecia confuso e dava respostas aleatórias,
e novamente mudava de assunto.
Alan pegou uma folha de papel e escreveu toda a tabuada de cinco. Em seguida propôs
um desafio, e solicitou que perguntasse a tabuada inteira para ele. Diante do comentário
“depois é o Thiago que é burro”, feito pela pesquisadora, Alan se sentiu desafiado; pareceu
não gostar de ser comparado com o seu colega. O desconforto causado pela resposta da
pesquisadora caracterizou-se por ser um disparador para que Alan se engajasse na atividade
que estava sendo desenvolvida. Constatamos, levando em conta o referencial teórico, que o
reposicionamento da criança frente ao problema de matemática, por exemplo, não se dissocia
das emoções e processos simbólicos que se organizam no curso da experiência. A resposta
dada pela pesquisadora, por si só, não garantiria o envolvimento da criança na atividade. O
que se pode analisar são os efeitos colaterais causados por tal provocação.
112
Ao ser questionado sobre esta frase Alan se refere aos colegas de sala de aula. E
acrescenta: “Eles ficam me zoando”
No instrumento jogo dos sentimentos Alan relaciona o contexto de sala de aula a uma
situação de desafio. No diálogo que se seguiu no curso do instrumento, Alan, novamente,
relatou os conflitos vivenciados entre ele e seus colegas. O contexto social de sala de aula,
para Alan, se tornava motivo de grande tensão. As situações de conflito pela qual Alan
costumava passar na escola entrecruzam-se com processos subjetivos diversos que aparecem
estreitamente articulados entre si. A relação que ele estabelecia com o não saber, que se
expressava nos sentimentos de vergonha e incapacidade, não era condizente com os processos
dominantes da subjetividade social da sala de aula de Alan. Para se manter distante do
incômodo que sentia por não integrar o espaço social da sala de aula, Alan assumia uma
postura inquieta e desafiante ou de total recolhimento. Na sala, exigiam-se ações de
colaboração entre ele e os demais alunos; dessas, eram esperadas atitudes consideradas
adequadas para o contexto de sala de aula, como fazer o dever, participar das atividades e ter
boas notas. Como não correspondia ao que era esperado, Alan reagia a sua maneira. O erro
não era bem visto pelos colegas de sala, o que gerava em Alan sentimentos de vergonha, raiva
e indignação.
No instrumento (situações de conflito) a seguir, Alan expressa, novamente, os
sentimentos produzidos em relação aos colegas de sala de aula:
6) Roberto consegui tirar uma boa nota na prova de português. Como ele se
sente?
R: Muito feliz. E os amigos dele, que duvidaram, recebem uma cruz!
9) Roberto recebe um elogio da professora. Por que será que ele recebeu um
elogio e como ele se sente?
R: Por que ele nem ligou para a risada dos colegas. E se sente feliz.
114
A construção do cenário social da pesquisa com Alan foi marcado pela tensão entre
pesquisadora e participante. O desafio para se formar um vínculo favorável que possibilitasse
o envolvimento entre os dois atores girou em torno das reações hostis de Alan direcionadas à
pesquisadora e, em alguns momentos, com as próprias dificuldades da pesquisadora para
administrar os ataques da criança.
Com o passar dos encontros, o comportamento de Alan começou a oscilar entre o
afeto pela pesquisadora e as reações de hostilidade. No curso que se seguia a pesquisa, Alan
foi ganhando confiança na qualidade da relação que ia se construindo. Mesmo com as
agressões sofridas, o investimento por parte da pesquisadora em manter o vínculo com Alan
orientou as ações direcionadas a ele. O movimento da subjetividade de Alan girava em torno
da instabilidade que ele sentia em relação a seus vínculos afetivos. Transparecia que, para
Alan, era necessário testar ao máximo os limites do outro. A contradição entre a necessidade
de afeto e o medo do abandono tomavam formas diversas na subjetividade do aluno.
O fato de não ter abandonado Alan como participante da pesquisa, mesmo depois das
inúmeras tentativas por parte da criança de se manter distante da possibilidade de criação de
um vínculo afetivo com a pesquisadora, foi de fundamental importância para os
desdobramentos do processo investigativo no curso da pesquisa. Com o passar dos encontros,
Alan ia se mostrando cada vez mais aberto. Diferentemente do que acontecia nos primeiros
encontros, Alan passou a me receber sem retaliações. Além disso, a indisponibilidade para a
realização das tarefas foi diminuindo gradualmente.
A cada encontro, foi possível perceber que Alan ganhava confiança e afeto em nossa
relação. Durante a realização de uma tarefa escolar, ele revelava mais uma de suas artimanhas
para se livrar da realização das atividades no contexto escolar.
115
Pesq: Alan, o dever está incompleto. Assim não temos como fazer.
A: Não deu tempo. O sinal tocou.
Pesq: E que mais?
A: Sabe ... Estava com dor, com muita dor. Uma dor aqui no coração.
Pesq: Dor de amor?
A: Eca!!! Na verdade, Tia, eu estava enrolando. Passei a aula conversando.
A: Para que é esse texto? Para quem você vai mostrar? Vai mostrar para minha mãe?
Respondo a Alan que o texto produzido por ele era material para pesquisa e que não
mostraria para sua mãe. Alan responde:
De acordo com sua documentação escolar, Michael ingressou na escola com dois anos
e meio, quando sua mãe decidiu voltar a trabalhar, e fez a opção por colocá-lo em uma creche
pública por meio período. A mãe relata que a adaptação de Michael à escola foi bastante
tranquila: ao completar seis anos, o aluno passou a frequentar o primeiro ano do segundo ciclo
do ensino fundamental I, na escola na qual pesquisa foi realizada.
Segundo relatos de alguns profissionais da instituição, Michael, desde cedo, chamou a
atenção de professores e coordenadores por apresentar, então, um comportamento tímido e
retraído; mantinha pouco contato com os colegas de sala de aula; passava o recreio
praticamente sozinho ou conversando com algum profissional da escola. No decorrer do ano
letivo, a atenção dos professores voltava-se também para o processo de aprendizagem de
Michael, pois ele não conseguia acompanhar a programação de conteúdos estabelecida pela
escola.
Meu encontro com Michael se deu ao final do mês de outubro de 2013, quando ele já
estava cursando o segundo ano. Michael é aquele tipo de criança que, em sala de aula, não
oferece trabalho, ou seja, comporta-se como o típico aluno bonzinho: criança tímida e
bastante introvertida. Mal conseguimos entender o que falava de tão baixa que é a sua voz.
Entretanto, apesar de não requerer cuidados maiores no que se refere a seu
comportamento em sala de aula, tornou-se fonte de questionamentos para equipe pedagógica
no que tange às questões de aprendizagem. Quando o trabalho de pesquisa foi iniciado,
118
Michael já se encontrava no terceiro ano. O aluno não lia e, ainda que escrevesse, seu nome,
não reconhecia as letras que o compõem. Apresentava dificuldades para distinguir formas
geométricas e para discriminar algumas cores; tampouco conseguia fazer cálculos
matemáticos. Muitas eram as especulações sobre as razões pelas quais Michael não aprendia.
Com cada profissional que conversava na escola sobre o esse caso, eu obtinha uma resposta
distinta. Entre as respostas estavam razões como: deficiência Intelectual; dificuldade para
processar e armazenar informações; DPAC; problema com a mãe; sinusite; problema de visão
etc...
No início de 2014, Michael foi encaminhado ao Serviço Especializado de Apoio à
Aprendizagem, para avaliação psicopedagógica, por apresentar dificuldades de aprendizagem
e psicomotora. De acordo com o relatório disponibilizado pela escola, com base em avaliação
psicodiagnóstica, o aluno apresentava potencial cognitivo dentro da média, quando
comparado ao grupo de sua faixa etária.
No que se refere à vida social e familiar de Michael, ambas se encontram bastante
comprometidas. Michael mora com a mãe e a irmã, de17anos, em uma quitinete no subsolo de
um prédio comercial; sua casa é pequena e com pouca ventilação, pela ausência de janelas. O
pai abandonou o lar quando a criança tinha recém completado seis anos. Sua mãe, por
questões médicas, encontra-se desempregada e sua renda consiste no auxílio da bolsa-família.
Na ocasião da pesquisa, por alegação materna de questões de segurança, Michael não
brincava na rua, e tinha pouco contato com crianças de sua idade fora do contexto escolar.
Não participava de outras atividades, como esportes, música, etc. Além disso, tinha poucos
momentos de lazer e costuma passar os finais de semana em casa com a mãe e a irmã.
119
Penso que, por ser uma pessoa diferente em sala de aula, Michael sentiu-se curioso
com a minha presença. E, ainda que timidamente, buscou se aproximar. Michael queria me
relatar uma história que a professora, no dia anterior, havia contado em uma roda de histórias.
Fiquei bastante surpresa, pois participara dessa roda, e havia observado o comportamento das
crianças durante a atividade. No geral estavam curiosas interessadas, e faziam perguntas à
professora. Contudo, Michael, na ocasião, parecia distraído, com um olhar vazio, pouco
atento. Era como se não estivesse lá. Porém, no dia seguinte, com o livro na mão, Michael me
relatou toda a narrativa, em detalhes. Estava bastante interessado em fazer isso, pois quando
uma criança se aproximava e interrompia aquele momento, Michael se posicionava e dizia, de
forma muito tranquila: “Estou contando uma história para a Tia, espere a sua vez”.
Diante disso, comecei a me indagar sobre as dificuldades de Michael. Nas minhas
conversas com os profissionais que acompanhavam o aluno, escutei diversas vezes que
Michael não possuía capacidade para armazenar informações; ou para memorizar, e
posteriormente, fazer uma possível evocação dos conteúdos, devido a uma possível
deficiência intelectual. Entretanto, Michael relatou, nas palavras dele, uma narrativa contada
pela professora no dia anterior, o que demonstrou certa habilidade em armazenar informações
120
por parte da criança. Depois desse primeiro encontro com Michael, passei a acompanhá-lo nas
realizações das tarefas escolares, no que diz respeito à aprendizagem da linguagem escrita, do
reconhecimento das letras a produção de uma pré-escrita.
Na realização das tarefas, percebi que Michael demonstrava dificuldades em
reconhecer as letras do alfabeto. O aluno era capaz de cantar o alfabeto completo na ordem
direta. Contudo, correlacionar o som com a letra se tornava um grande desafio,
principalmente se misturássemos as letras. A criança começava a repeti-las de forma aleatória;
dizia que estava cansado, ou, até mesmo, que não sabia. Episódios como esse se repetiam
constantemente, na realização das tarefas propostas pela professora. Os professores relatavam
que Michael não conseguia desenvolver estratégias de aprendizagem. Cheguei a escutar de
uma professora que o cérebro de Michael parecia um “saco furado, que tudo que entra
desaparece”.
A descrença na capacidade cognitiva de Michael ficou evidente na fala de uma
professora substituta que, durante uma tarefa que estava fazendo com o garoto, ao se
aproximar de mim e da criança, disse:
Professora Subst.: Não precisa fazer isso com ele. Ele não dá conta de fazer. Eu já
tentei. Já fui professora dele.
Fizemos isso várias vezes com diversas palavras. Michael, em muitos momentos, dizia
que não conseguia. Contudo, eu insistia com ele; e, com isso, fomos criando estratégias que
pudessem auxiliá-lo no reconhecimento das letras, sempre associando o som ao desenho da
letra. Em muitos momentos, Michael começava a “chutar” e a repetir praticamente todas as
letras do alfabeto. Nesse momento, observei que ele se mostrava tenso e inseguro.
Foi um momento do trabalho em que Michael não avançava no reconhecimento das
letras. O comportamento de chutar de forma aleatória as letras do alfabeto era predominante.
Ele repetia: “Eu não dou conta, Tia”. Diante de atividades tradicionalmente escolares,
faltavam-lhe recursos para dar conta da situação de aprendizagem. Além disso, Michael
demonstrou pouca autonomia em seu pensamento; sua ação era insegura, demandando ajuda e
reconhecimento do outro, estabelecendo uma relação de dependência no momento de realizar
a tarefa. Os sentidos subjetivos relacionados ao medo e à insegurança que emergiam perante a
realização da atividade escolar se tornavam um obstáculo para o desenvolvimento das
operações intelectuais de Michael.
Dessa forma, percebi que devíamos buscar outras estratégias, para além da associação
do som à letra. Foi então que fiz a seguinte proposta: “Michael, imagina que, dentro de sua
cabeça há várias gavetinhas”. Ele olhou para mim e abriu um sorriso. Entendi que, ao sorrir,
estava dizendo um sim ao meu convite; então prossegui:
Michael chutava e, novamente, dizia não saber. Em seguida, perguntava a Michael se ele não
havia guardado a letrinha na gaveta. Michael balançou a cabeça afirmativamente. Então falei:
Novamente, Michael fez a expressão de que estava imaginando algo. Logo em seguida
me respondia com segurança com a letra que estávamos procurando. Parava, pensava, e em
poucos segundos, dizia o nome e apontava para a letra correta. Com o passar do tempo, pude
perceber que Michael ia tomando confiança e acertando cada vez mais e ficando menos
inseguro. Estava interessado, gostando da atividade. E, poucas vezes, reclamou do cansaço.
A compreensão da subjetividade abre um caminho diferenciado para o estudo dos
processos educativos, ao considerar o pensamento como uma produção de sentido subjetivo
que se organiza no curso de uma determinada atividade. Contudo, a representação
hegemônica nas escolas acerca da aprendizagem está centrada na ênfase dos aspectos
cognitivo-intelectuais. A lógica cognitivista, pautada no conceito de processamento de
informação, pouco pode contribuir para uma representação dos processos de produção
intelectual como produção subjetiva, pois deixa de fora aspectos ligados à imaginação e à
fantasia. Nessa perspectiva, o processo de ensino-aprendizagem foi reduzido a práticas de
caráter reprodutivista com foco na capacidade de memorização dos alunos, desconsiderando a
emocionalidade que perpassa esse processo. A lógica assimilativa acabou por corroborar a
ideia de patologias associadas ao desenvolvimento intelectual para justificar a não
aprendizagem, gerando, assim, um espaço de exclusão no contexto social da escola.
No caso específico, a elaboração de uma situação de “faz de conta” como estratégia
alternativa para a promoção de novas formas de organização do pensamento possibilitou a
Michael o uso da imaginação como elemento constituinte do processo de produção
intelectual. A utilização repetitiva de estratégias tradicionais como a associação do som a letra
pode ter causado uma saturação intelectual integrada aos sentimentos de medo e incapacidade,
impossibilitando-o, naquele momento, de avançar no reconhecimento das letras. Michael, ao
imaginar as letrinhas sendo guardadas nas gavetas, criou caminhos alternativos de
pensamento para o reconhecimento das mesmas. As imagens elaboradas por Michael
suscitaram uma nova qualidade na forma de operar com o seu pensamento, o que caracteriza a
plasticidade das funções psíquicas. Pode-se refletir que a situação apresentada se constitui
como um espaço favorável de desenvolvimento, em que a criança, ao tomar confiança em
124
consentimento livre e esclarecido. Passei, desde então, a realizar os encontros com Michael
em sua residência, devido a algumas limitações impostas pela escola.
A possibilidade de encontrar Michael fora do contexto social da escola me permitiu
participar de forma investigativa de outros espaços de convivência da criança. Nas visitas
realizadas na casa do participante, foi possível alcançar a complexidade de fatores envolvidos
na dinâmica subjetiva de Michael que, por sua vez, impactam na sua maneira de perceber o
mundo, a si mesmo e o seu processo de aprendizagem. Dessa forma, pude percorrer o
movimento da dificuldade de aprendizagem escolar de Michael como um processo que se
organiza como uma configuração subjetiva na vida social da criança.
Até o final da pesquisa, nossos encontros eram realizados semanalmente, no período
da manhã, tendo em vista que o participante frequenta o turno vespertino na escola.
Usualmente, chegava à casa de Michael por volta das dez horas. Contudo, na maioria de
nossos encontros Michael ainda estava dormindo ou acabara de acordar. Perguntava, então, à
mãe a que horas a criança costumava dormir. Ela relatava, um tanto sem graça, que esta
dormia muito tarde, pois gostava de ficar assistindo televisão. Em seguida, a irmã mais velha
gritou de dentro de um dos cômodos da casa, e afirmando que a criança dormia por volta de
meia noite. Ao acordar, Michael ficava na televisão até dar o horário de ir para a escola.
Esse quadro, desconsiderado pela escola, nos mostra a forma como está organizada a
rotina de Michael. Além de não ter um horário adequado para dormir; e de passar horas
assistindo a televisão, a criança possuía um quadro de alergia crônico, para qual não estava
recebendo atenção médica. Estava constantemente gripado, com o nariz escorrendo, os olhos
vermelhos, inchados e lacrimejando.
Em um de nossos primeiros encontros, quando estávamos realizando um exercício de
português, a criança se encontrava pouco concentrada e bocejava a todo o momento. Na fala
de Michael, ele expressava o cansaço e o desconforto que estava sentindo: “Tia, meu olho está
coçando. Eu tento segurar o meu sono, mas não consigo”.
Passamos a considerar que os problemas relacionados à aprendizagem escolar de
Michael não se desvinculavam do contexto sócio familiar da criança, constituindo-se em um
indicador de uma situação social do desenvolvimento que pouco favorece a emergência de
novas formações psicológicas. A criança encontrava-se apartada de uma vida social mais
ampla, ocasionando um déficit em seu repertório social. Tal condição, além de comprometer o
domínio das ferramentas culturais consideradas fundamentais para o processo de
alfabetização da criança, se atrelava à falta de recursos simbólicos emocionais para lidar com
a situação de aprendizagem, e aos conflitos que emergem no contexto educacional, como por
126
exemplo, construir um contato maior com os colegas em sala de aula. A ideia não é a de
estabelecer uma relação direta entre o contexto social de desenvolvimento de Michael e o
impacto deste em sua aprendizagem, mas, sim, de compreender como tal situação toma
formas diversas na maneira como a criança se relaciona no contexto social da escola.
Na tentativa de compreender um pouco melhor a forma como está organizada o espaço
social familiar de Michael e a maneira com este se relaciona com o seu processo de
aprendizagem, propus à mãe um momento conversacional sobre o desenvolvimento da
criança.
A mãe relatou que Michael é considerado o bebê da casa, por ela e pela irmã. E que,
muitas vezes, é tratado com mimos e excesso de proteção. Possui pouca autonomia na
realização de tarefas diárias, mantendo uma relação de dependência com a irmã e com a mãe.
Como já foi mencionado, por questões de segurança, Michael passa os dias dentro de casa,
privado do convívio social com outras crianças e dos estímulos sensoriais que o meio
ambiente poderia lhe proporcionar. Segundo a mãe, os excessos de proteção provêm desde a
primeira infância, em que, por medo de a criança se machucar, ela o deixava grande parte do
tempo no berço ou no carrinho, o que atrasou de forma considerável o desenvolvimento da
marcha, causando problemas de caráter psicomotor.
O déficit no repertório social de Michael foi tomado pela comunidade escolar como
uma forma patológica de desenvolvimento, caracterizado pela suposta insuficiência
intelectual da criança, desconsiderando que o desenvolvimento dos processos de produção
intelectual se sustenta nos diversos contextos sociais da vida da pessoa. A falta de autonomia
demonstrada pela criança, em relação às atividades escolares, também se expressa na
realização das tarefas básicas do cotidiano de uma criança de oito anos. A relação de
dependência que Michael estabelecia com a mãe e com a irmã, também se manifestou com a
pesquisadora durante a realização das atividades escolares. Tendo por base a situação social
de desenvolvimento em que Michael estava inserido, foi possível compreender que seu
processo de aprendizagem ocorria na tensão entre os dois maiores espaços de convivência da
criança, a escola e a família, integrando-se aos sentidos subjetivos que emergem em sua
emocionalidade, no confronto que se estabelece entre as ações promovidas pela escola e
aquilo que a criança traz a partir de suas experiências anteriores.
Em sala de aula, Michael sentava-se em uma carteira posicionada na segunda fileira
centralizada. Há aproximadamente 18 alunos em sala. É uma turma relativamente pequena. A
professora é bastante engajada com o aprendizado das crianças e possui um bom
relacionamento com os alunos. Todos a respeitam. A rotina em sala era tranquila, com poucos
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episódios que pudessem comprometer as atividades. Contudo, apesar de sua preocupação com
o aprendizado dos alunos, a professora, por ocasião da pesquisa, encontrava-se bastante
desanimada com o caso de Michael.
Professora titular: - Eu já não dou mais conta. Já tentei de tudo. O Michael não foi
o único aluno nesta sala com dificuldades de aprendizagem. Tive pelo menos uns
cinco, e hoje, todos estão aprendendo, menos ele. Estou cansada, frustrada e
preocupada.
desenvolvido. Essa hipótese pode ser reforçada no curso das expressões de Michael ao longo
da pesquisa, em que, ao aceitar o convite da pesquisadora, solicitou à mãe que comprasse um
caderno exclusivo para os nossos encontros. Logo no primeiro dia, veio com entusiasmo,
mostrar o caderno comprado e diz: “Tia, olha o que eu comprei. É para fazer os nossos
deveres”.
O contexto social da pesquisa passou a ocupar um espaço significativo na vivência da
criança. A compra de um caderno para os encontros a serem realizados adquire uma dimensão
simbólico-emocional, que não está dissociado da qualidade da relação estabelecida entre
pesquisador e pesquisado.
A partir da combinação de informações provenientes de um indutor indireto (jogo de
sentimentos ilustrado), Michael pode expressar sentimentos relacionados a diferentes
contextos sociais que, por sua vez, integram a sua dinâmica subjetiva.
Tendo em vista o objetivo da pesquisa, foi organizada uma atividade que permitisse
compreender o processo de produção intelectual de Michael, a partir da experiência
vivenciada pela criança. Dessa forma, solicitei a Michael que relembrasse os alimentos
comprados no verdurão e, posteriormente, elaborasse uma escrita referente a cada alimento.
Nesse momento, foi possível observar o envolvimento de Michael com a atividade. A criança
passou a relatar não somente o nome dos alimentos, como também o trajeto percorrido por ela
até chegar ao verdurão. Michael foi capaz de relembrar fatos vistos por ele na rua, como os
prédios pelos quais passamos.
Após Michael ter relembrado o nome dos alimentos, passamos para o segundo
momento da atividade que consistia na elaboração da escrita desses nomes recordados por ele.
Ao iniciarmos a atividade, Michael demonstrou insegurança no momento da escrita. Dizia que
não conseguiria escrever de forma correta o nome dos alimentos. Disse a Michael que ele não
precisava dar conta de todos os nomes, pois estava aprendendo. Michael pegou o lápis e deu
início à atividade.
Michael, nos primeiros momentos, parecia estar paralisado diante da atividade. Então,
sugeri que juntos de forma pausada repetíssemos a palavra completa para o reconhecimento
das letras. Michael balançou a cabeça afirmativamente. Juntos, fizemos essa tarefa com
diversas palavras. Posteriormente, Michael passou a repetir sozinho o nome dos alimentos e
fez o reconhecimento das letras. Estabeleceu algumas relações com outras palavras e letras
que já faziam parte de seu repertório. Como por exemplo, o “M” de maçã, Michael faz a
associação do som com a letra e logo em seguida diz: “Tia, essa é a letrinha do seu nome”.
132
Michael, mesmo que não tenha conseguido identificar o que havia de errado com a
palavra elaborada por ele, já era capaz de distinguir, a partir de seus referenciais, que sua
escrita ainda não se encontrava adequada. Michael, em seu percurso de aquisição da
linguagem escrita, foi capaz de reconhecer o papel que as letras desempenham na escrita, ao
notar que a ausência de uma letra comprometeria o seu desenvolvimento. A desconsideração
da diversidade e dos caminhos alternativos, como forma de operar com o pensamento no
processo de ensino e aprendizagem, acabou por desqualificar o erro como algo legítimo de um
processo em desenvolvimento. Não é a repetição que produz aprendizagem, mas sim o
estabelecimento de diversas relações capazes de caracterizar o conhecimento como uma
produção do sujeito que aprende.
Em nosso sistema educacional, a negação do sujeito que aprende como protagonista da
aprendizagem acarretou a desconsideração da dimensão subjetiva envolvida nos processos
produção intelectual. A mudança de posicionamento da criança frente às atividades
relacionadas à aprendizagem escolar passou a marcar uma nova qualidade de produção de
sentidos subjetivos. No percurso da atividade Michael, expressou o descontentamento que
sentia em relação aos comentários dos colegas de sala de aula.
M: Tia, meus amigos dizem que eu sou burro, que não aprendo.
Pesq: E o que você faz?
M: Vou dizer que não sei. Mas que posso aprender.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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_____. Uma nova teoria da aprendizagem. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1969.
_____. Subjetividade e saúde: superando a clínica da patologia. São Paulo: Cortez, 2011a.
_____. O outro e sua significação para a criatividade: implicações educacionais. In: _____.;
SIMÃO, L. M. (Orgs.). O outro no desenvolvimento humano. São Paulo: Pioneira Thomson
Learning, 2004.
_____. Para uma crítica da razão psicométrica. Psicol. USP, São Paulo, v. 8, n. 1, 1997.
PEREIRA, K. R. C.; TACCA, M. C. V. R. Dificuldade de aprendizagem? Uma nova
compreensão a partir da perspectiva histórico-cultural. 2010. Disponível em:
<http://www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/VI.encontro.2010/GT.11/GT_11_07_2
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SELVINI PALAZZOLI, M. et al. El mago sin magia. Buenos Aires: Editora Paidós, 2004.
_____. Imaginação e criação na infância. Trad. de Zóia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.
_____. Sobre o problema da Psicologia do Trabalho do trabalho criativo do ator. In: RIEBER,
R. W. (Ed.). The collected works of L. S. Vygotsky. V. 6. New
York/Boston/Dordrecht/London/Moscow: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 1999.
APÊNDICES
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4) Eu gostaria de ser.
7) Meus estudos.
9) É fácil aprender.
1) Roberto está na escola fazendo uma prova de Matemática. Ao perceber que não
consegue resolver a questão, o que Roberto faz, e como ele se sente?
2) Roberto recebe uma advertência na agenda por mau comportamento, e deve mostrá-la
a seus pais. O que Roberto faz, e como ele sente?
3) Imagine que Roberto está brincando de bola na sala com o seu irmão mais novo. De
repente Roberto chuta a bola e quebra o vaso de flores de sua mãe. Em seguida o pai
de Roberto aparece e pergunta quem quebrou o vaso. O que Roberto faz, e como ele
sente?
4) Imagine que Roberto deveria fazer uma atividade importante de geografia em casa.
Contudo esqueceu-se de fazer. O que Roberto faz, e como ele sente?
5) O pai de Roberto foi chamado para comparecer à escola. O que será que aconteceu?
6) Roberto conseguiu tirar uma nota boa na prova de português. Como ele se sente?
7) Imagine que Roberto está tendo uma conversa a sós com sua mãe. O que será que eles
estão conversando?
8) Imagine que Roberto ao responder uma pergunta realizada pela professora, responde
de forma incorreta e seus colegas dão risadas em sala de aula. O que Roberto faz, e
como ele sente?
9) Roberto recebe um elogio da professora. Por que será que ele recebeu um elogio e
como ele se sente?