Cristologia 05

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Capítulo 1

NOÇÕES BÁSICAS DE CRISTOLOGIA

1.5 O MISTÉRIO PASCAL

O Novo Testamento associa indissoluvelmente a redenção e a salvação


esperadas desde o Antigo Testamento à pessoa e a história de Jesus Cristo. Por
exemplo, nos relatos dos sofrimentos do “Servo de Javé”, Isaías (52,13–53,12; cf.
42,6;49,6.8) já anunciava que “alguém” assumiria e pagaria voluntariamente a culpa do
povo de Israel e de todos os outros povos no seu lugar e por sua salvação.1 Os cristãos
sempre aplicaram essas profecias de Isaías a Jesus. Há na literatura neotestamentária
diversas citações e alusões em que se dá uma clara associação de Jesus à essa figura,
dentre elas: Mt 8,17 (Is 53,4); Mt 12,18 (Is 42,1-4); Mc 10,45 (Is 53,10); Lc 22,37
(53,12); Jo 12,38 (Is 53,1) e At 8,32s (Is 57,7s).2
Portanto, como transparece no símbolo Niceno-constantinopolitano, os
cristãos sempre professaram a sua fé em

... um só Senhor Jesus Cristo, unigênito Filho de Deus e nascido do


Pai antes de todos os séculos, [...] o qual em prol de nós (grifo nosso),
homens, e de nossa salvação, desceu dos céus, e se encarnou, do
Espírito Santo, <do seio> de Maria Virgem, e se fez homem; que
também foi crucificado por nós (grifo nosso), sob Pôncio Pilatos,
padeceu e foi sepultado, e ressuscitou no terceiro dia segundo as
Escrituras e, e subiu ao céu, está sentado a direito do pai e virá
novamente para julgar os vivos e os mortos, cujo reino não terá fim.3

Desde o início do Cristianismo, há uma nítida consciência de que existe uma


obra salvífica realizada por Deus na pessoa de Jesus Cristo. Isso quer dizer que os
seguidores de Jesus aprenderam a ver a morte dele como o sofrimento do justo que
conquista a justificação de Deus como morte por seus pecados.4

1
Cf. KESSLER, Hans. Redenção/Soteriologia. In: EICHER, Peter (dir.). Dicionário de Conceitos
Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 745.
2
Cf. BOUWMAN. Servo de Javé. In: BORN, A. Van Den (org.). Dicionário enciclopédico da Bíblia.
6. ed. Tradução de Frederico Stein. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 1425.
3
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo:
Paulinas, Loyola, 2007, p. 66, n. 150.
4
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 116.
Em síntese, este é o chamado mistério pascal: o mistério da Cruz e da
Ressurreição de Cristo que ocupa o “centro da Boa Nova que os apóstolos e a Igreja, na
esteira deles, deve anunciar ao mundo”.5

1.5.1 A liberdade de Jesus diante de sua morte iminente

Da leitura dos textos do Novo Testamento, transparece claramente que Jesus


Cristo entregou-se voluntariamente a sua morte cruz. Encontrava-se em Cesareia de
Filipo, antes dos sérios enfrentamentos que tivera com os judeus, quando tomou a
decisão de abraçar a cruz. Depois da confissão de Pedro, diz o evangelho: “E começou a
ensinar-lhes que o filho do homem tinha que sofrer muito e ser reprovado pelos anciãos,
os sumos sacerdotes e os escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia” (Mc 8,31).
É possível admitir que a experiência de seu ministério e as inúmeras
oposições que enfrentou por parte dos fariseus e das autoridades religiosas o levariam a
prever a sua morte como um destino inevitável.6
Os fariseus formavam um grupo de homens letrados, familiarizados com as
tradições e os costumes de Israel e, muitos deles possuíam cargos administrativos ou
burocráticos, sobretudo em Jerusalém. Dedicavam-se ao estudo da Torá, cuidavam de
observar todas as prescrições como a observância do sábado, o pagamento dos dízimos
ao Templo ou a pureza ritual. Ainda que as curas que Jesus realizava os atraíssem como
atraiam a todos e ainda pudessem considera-lo um grande profeta como Isaías ou
Jeremias, eram seus adversários por excelência: faziam-lhe perguntas capciosas e
procuravam tirar a sua credibilidade diante do povo. De sua parte, Jesus lançava sobre
eles diversas ameaças e condenações: disse que não entrariam no Reino dos Céus, que
estavam cheios de hipocrisia e de maldade, que se preocupavam das minúcias, mas
descuidavam-se da justiça, da misericórdia e da fé. Jesus chegou a compará-los com
sepulcros caiados, bonitos por fora, mas cheios de podridão. Contudo o que mais
irritava aos fariseus, era que Jesus falava diretamente em nome de Deus, com autoridade
própria, sem respeitar aquilo que os outros mestres ensinavam. Apesar de tudo, ainda
que tomassem parte, como grupo, em sua condenação ou execução, não foram os
fariseus os instigadores da sua morte.7

5
Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 161, n. 571.
6
Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 72.
7
Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 400-405.
As autoridades religiosas, que também fizeram oposição a Jesus,
constituíam uma aristocracia formada por uma minoria de cidadãos ricos e importantes,
muitos deles sacerdotes e alguns membros do grupo saduceu. Consta que, naquele
tempo, o sumo sacerdote tinha poder de governo tanto nem Jerusalém como na Judeia.
Talvez não vissem com bons olhos as curas e os exorcismos que davam popularidade a
Jesus e ameaçavam o seu poder de intermediários exclusivos do perdão e da salvação de
Deus em Israel.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a atividade de Jesus questionava o
templo como fonte exclusiva de salvação para o povo. Além disso, a tradição cristã
conservou uma parábola que parecia dirigida às autoridades religiosas do Templo: a
“parábola dos vinhateiros homicidas” (Mc 12,1-8; Lc 20,9-15 e Mt 12,33-39 e ainda no
apócrifo de Tomé 65) que, provavelmente, afirmava que não sabiam cuidar do povo que
lhes fora confiado, mas somente pensavam em seus próprios interesses. Além disso, a
parábola deixa entender que eles se sentiam proprietários de Israel, quando eram apenas
administradores e que não foram capazes de acolher os enviados de Deus.
Em outras passagens, ainda há outros ecos da critica que Jesus fez aos
dirigentes religiosos do Templo, como por exemplo, o lamento profético que feito por
ele sobre Jerusalém no estilo dos profetas como Amós ou outros (Lc 13,34-35; Mt
23,37-39). No caso, parece evidente que se referia não a toda Jerusalém, mas aos lideres
religiosos que a governavam. Por tudo isso, a sua vida corria perigo, pois, os sumos
sacerdotes não poderiam aceitar tamanha agressão.8
Aos conflitos com as autoridades religiosas, inclua-se a sua comunhão com
pessoas que, naquela sociedade, eram consideradas “dignas de desprezo”. Essa atitude
era também considerada uma verdadeira afronta aos líderes religiosos.

O fato de ele – para além de todos os limites estabelecidos contra a


impureza – anunciar o incondicional amor paterno e a disposição ao
perdão de Deus a todos podia ser entendido pelos guardiões
mesquinhos da doutrina oficial como ataque aos fundamentos da fé e
como traição da causa sagrada de Israel. “Certamente muitos críticos
de Jesus eram de opinião que tinham de defender a Deus contra
Jesus”.9

Além das questões religiosas, pode-se apontar o receio do poder romano


surgido da desconfiança de que ele tornara-se um profeta inquietante e perigo de

8
Cf. IDEM. Ibidem, p. 405-409.
9
KESSLER, Hans. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de Dogmática. V. I. 3. ed.
Petrópolis: Vozes, 2008, p. 253.
subversão. O seu anúncio da implantação do Reino de Deus era fonte de preocupação
para as autoridades e, por isso, poderia ser executado em qualquer território controlado
por Roma. Deve tê-los inquietado muito a postura de Jesus sobre o imposto (Mc 12,13-
17).
Quando lhe perguntaram se era lícito ou não pagar imposto a César, a
formulação não poderia ser mais delicada para Jesus. Se respondesse negativamente,
poderia ser acusado de rebelião contra Roma. Se aceitasse a tributação dos impostos,
ficaria desacreditado diante das pessoas exploradas pelo Império Romano. Diante da
cilada, com uma imensa liberdade proclamou: “Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus” (Mc 12,17). Nesse caso, a hábil postura de Jesus driblou seus
adversários. Porém, mais tarde, conforme diz São Lucas, foi acusado diante de Pilatos
de alvoraçar o povo a não pagar impostos a César (Lc 23,2).10 De qualquer forma,

Jesus contou com a possibilidade de um final violento. Não era


ingênuo. Sabia do perigo a que se expunha se prosseguisse sua
atividade e continuasse na irrupção do Reino de Deus. Mais cedo ou
mais tarde sua vida poderia desembocar na morte. O perigo o
ameaçava a partir de diversas frentes. [...] Provavelmente Jesus contou
desde cedo com a possiblidade de um desenlace fatal. Primeiro era só
uma possibilidade; mais tarde transformar-se-ia num final bastante
provável; por fim numa certeza.11

Há ainda outros textos que expressam a consciência de Jesus a respeito de


sua morte: o sinal de Jonas (Mt 12,39-39; Mc 8,11-12; Lc 16,29-32), as metáforas do
Batismo, do cálice, da hora e do pastor ferido mostram também a consciência de que
paulatinamente se aproxima o sofrimento da Paixão. Transparece a convicção de estar
numa crescente tensão que culminará no sacrifício de sua vida.12
Tudo isso para dizer que Jesus não era ingênuo e sabia do perigo que corria.
Poderia ter mudado de conduta, poderia ter fugido... No entanto, Jesus Cristo dirigiu-se
voluntariamente à Cruz, pois, ele mesmo o dirá: “Ninguém me tira a vida, eu a dou
voluntariamente” (Jo 10,18). São sinais claros que Cristo pôde prever a sua morte. Com
muita frequência Jesus falava de sua morte (cf. Mc 2,19-20; 14,21). No total
encontramos oito solenes predições de sua crucifixão!

10
Cf. IDEM. Ibidem, p. 410-416.
11
IDEM. Ibidem, p. 416-417.
12
Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 518.
1.5.2 O sentido redentor dado por Jesus a sua morte

Se Jesus pode prever a sua morte como um “destino inevitável”, é certo que
Jesus lhe conferira um sentido preciso. A tradição dos Evangelhos guardou diversas
alusões com referência ao sentido redentor dado por ele à própria morte. Por exemplo,
no Evangelho de São Marcos, depois do terceiro anúncio de sua paixão, ao exortar os
apóstolos do perigo da ambição, afirmou claramente que “o Filho do homem não veio
para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mc 10,45).13
Contudo, somente na última ceia Jesus expressou “explicitamente” o sentido
redentor de sua morte: “Tomai, comei, isto é o meu corpo… Este é meu sangue da
aliança que vai ser derramado por muitos para remissão dos pecados” (Mt 26,26-28).
Jesus se serviu aqui da profecia do servo do SENHOR (cf. Is 53,11-12) para dar a
entender que sua vida se entrega em expiação dos pecados da humanidade. Assim, Jesus
entendia que, como outrora no Sinai o sangue das vítimas selou a aliançado SENHOR
com o seu povo (Ex 24,4-8; Gn 15,1), sob a cruz, o seu sangue iria selar a “nova
aliança” entre Deus e os homens (Cf. Lc 22,20). Trata-se da mesma aliança que os
profetas tinham anunciado (Jr, 31,31).14 Desse modo, ao cear com seus discípulos, às
vésperas de sua paixão, Jesus sabia que sua morte iminente seria para a remissão dos
pecados.15

Um aspecto particular da interpretação que Jesus faz da morte, e que


ocorreu durante a última ceia, consiste em havê-la associado à oferta
de um dom, o dom do pão e de um cálice de vinho. Na verdade, numa
refeição festiva judia, o consumo de pão e vinho é natural, mas aqui
isto é visto sob uma luz diferente, a luz de sua interpretação da morte.
[...] No início da refeição Jesus tomou um pão, pronunciou uma
bênção, partiu-o e distribuiu os pedaços aos discípulos enquanto
interpretava o que estava fazendo. No fim, depois de uma oração de
ação de graças, ele fez circular o (seu?) cálice de vinho, dando
também a interpretação. Por causa da dificuldade para reconstituir as
palavras de interpretação pronunciadas por Jesus, poderíamos
renunciar a isto e falar de uma ceia de despedida que apontava para o
banquete escatológico, ou, com maior reserva ainda, falar
misteriosamente de uma ceia cheia de significado. Poderíamos
também apontar para o gesto de oração presente na entrega do pão e
do cálice que foram abençoados, e unicamente neste gesto ver
manifestada a bênção a salvação realizada por Jesus ao dirigir-se para
a morte. Certamente esse ato está orientado para essa vontade. Mas

13
Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 72.
14
Cf. A Bíblia de Jerusalém. 7ª impressão. São Paulo: Paulus, 1995, nota c, p. 1889.
15
Cf. IDEM. Ibidem, p. 73-74.
ainda podemos dar um outro passo adiante, uma vez que contamos
com a interpretação salvífica da morte de Jesus.16

Note-se que esse sentido redentor dado por Jesus à sua morte também
aparece após sua ressurreição. Quando Jesus Ressuscitado aparece em Jerusalém aos
onze apóstolos, retoma os diálogos acontecidos antes da Paixão:

44
Depois disse-lhes: “São estas as coisas que eu vos falei quando ainda
estava convosco: era necessário que se cumprisse tudo o que está
escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”.
45
Então ele abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as
Escrituras, 46e disse-lhes: “Assim está escrito: o Cristo sofrerá e
ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, 47e no seu nome será
anunciada a conversão para o perdão dos pecados, a todas as nações
começando por Jerusalém. 48Vós sois as testemunhas destas coisas”
(Lc 24,44-45).

Portanto, Jesus era consciente de um projeto divino de salvação anunciado


antecipadamente pelas Escrituras e que se realizaria mediante a morte de um “Servo, o
Justo”. Esse projeto, na verdade, consistia no mistério da redenção universal em que se
dá o resgate que liberta os homens da escravidão do pecado.17

1.5.3 A paixão e a morte de Jesus

A Paixão de Jesus Cristo é o momento de sua vida mais minuciosamente


narrado pelos quatro evangelistas. Essas narrativas coincidem em tudo o que é
fundamental.18 Apresentam passagens próprias que, de modo algum, são contraditórias,
mas se complementam entre si. Por isso, qualquer um dos quatro relatos da Paixão
constitui um legítimo relato.19 Muitos consideram que, na formação dos Evangelhos, a
narração da Paixão parece ser a primeira parte de toda a história de Jesus tecida em
forma contínua. Sob ponto de vista cristão, cada evangelista escreveu com o objetivo de
comunicar o significado religioso dos últimos dias de Jesus.20
Na noite da Última Ceia, começou-se a desenrolar uma série de
acontecimentos que parecem ter ocorrido de forma bem rápida. Depois que cantaram o
hino, Jesus e os apóstolos saíram para o Monte das Oliveiras (Mc 14,26), o local em que
Jesus foi preso. Nesse lugar, Judas e a tropa encarregada da prisão entraram em cena.

16
GNILKA, Joaquim. Jesus de Nazaré: mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000 , p. 263-264.
17
Cf. Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 171, n. 601.
18
Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 517.
19
Cf. IDEM. Ibidem, p. 519-521.
20
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 113.
Depois do beijo da traição, Jesus foi preso e os discípulos fugiram. Segundo o
Evangelho de São Marcos (15,1), “logo de manhã, os sumos sacerdotes, com os
anciãos, os escritas e o sinédrio inteiro, reuniram-se para deliberar. Depois, amarraram
Jesus, levaram-no e o entregaram à Pilatos”. Perante o tribunal romano, ele fora julgado.
Quanto ao processo do julgamento de Jesus, não consta a presença de
jurados nem de assistentes judiciais. Tribunais de jurados não eram usuais na Judeia.
Não se sabe se Pilatos que o julgou recorreu a um conselho e, certamente, isso não
poderá ser esclarecido. Seu processo consistiu basicamente em uma acusação
apresentada pelos sumos sacerdotes (ou por seus representantes) e de uma audiência
realizada por Pilatos. Enquanto o governador da Judeia o interrogava, Jesus respondia
ou silenciava (Mc 15,2-5). Sem entrar em outros detalhes21, pode-se dizer que esse
processo terminara com uma sentença de morte formal: a crucifixão.22 Como forma de
execução romana, nunca poderia ser aplicada aos cidadãos romanos, exceto em casos
excepcionais e para manter a disciplina entre os militares.23

A crueldade da crucificação tinha a intenção de aterrorizar a


população e servir assim de escarmento geral. Sempre era um ato
público. As vítimas permaneciam totalmente nuas, agonizando na
cruz, num lugar visível: uma encruzilhada concorrida, uma pequena
elevação não longe das portas de um teatro ou o próprio lugar onde o
crucificado havia cometido seu crime. Não era fácil esquecer o
espetáculo daqueles homens retorcendo-se de dor entre gritos e
maldições. [...] O escritor romano Plauto (apr. 250-184 a.C.) descreve
com quanta facilidade crucificavam-se escravos para mantê-los
aterrorizados, cortando pela raiz qualquer tentativa de rebelião, fuga
ou roubos. Por outro lado, era o castigo mais eficaz para os que se
atreviam a a erguer-se contra o Império. Durante muitos anos foi o
instrumento mais comum para “pacificar” as províncias rebeldes. O
povo judeu o havia experimentado repetidas vezes. Só num período de
setenta anos, próximos à morte de Jesus, o historiador Flávio Josefo
nos informa de quatro crucificações em massa: no ano 4 a.C.,
Quintílio Varo crucifica dois mil rebeldes em Jerusalém; entre os anos
48 e 52, Quadrato, legado da Síria, crucifica todos os capturados por
Cumano num enfrentamento entre judeus e samaritanos; no ano 66,
durante a prefeitura do cruel Floro, são flagelados e crucificados um
número incontável de judeus, na queda de Jerusalém (setembro do ano
70), números defensores da cidade santa são crucificados brutalmente
pelos romanos.24

21
Por exemplo, poderia se falar da cena de Barrabás (Mc 15,6; Mt 27,15; Lc 23,18 e Jo 18,39).
22
Cf. GNILKA, Joaquim. Jesus de Nazaré, op. cit., p. 273-278.
23
Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 465.
24
IDEM. Ibidem, p. 465-466.
Condenado à morte, Jesus foi flagelado pelos soldados encarregados de sua
execução. Na verdade, a flagelação era o começo da execução. Só poderia ser feita em
peregrinos, pois, naquela época, era proibido flagelar cidadãos romanos. Além disso,
César punia a flagelação de cidadãos romanos com violência grave. Para essa, os
soldados usavam uma correia de couro que muitas vezes continham fragmentos de
ossos ou grumos de chumbo. O flagelado era despido, atirado ao chão ou amarrado em
uma coluna. O número dos golpes ficava a critério dos carrascos.25
Depois de ser torturado, Jesus foi levado ao Gólgota para ser crucificado.
Era a forma de morte mais dolorosa e horrenda que se podia dar a um delinquente.
Como castigo público, era colocado como exemplo para sociedade e, por isso, acontecia
num lugar bem visível, onde o corpo do justiçado ficava exposto durante alguns dias. 26
A morte para um crucificado sobrevinha após uma dolorosíssima agonia, para a que
contribuíam conjuntamente a perda de sangue, a febre produzida pelas feridas, a sede, a
asfixia...27 Assim morre Jesus. Segundo os evangelistas, morreu, rezando, à hora nona,
ou seja, às três horas da tarde. A sua última oração fora tirada do Salmo 31: “Pai, em
tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46; cf. Sl 31,6).28
Segundo Mateus (27,55-56) e Marcos (15,40-41), ao pé da Cruz se
encontram quatro mulheres: Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago, a mãe de José e
uma quarta, a mãe dos filhos de Zebedeu (Mateus) ou Salomé (Marcos). São João
(19,25-27) é o único a registrar o episódio de forma completa: diz que no Calvário
também estavam a “Mãe de Jesus” e o “discípulo amado”.29
Na parte superior de sua cruz, colocada pelos soldados, estava certamente
uma pequena placa de cor branca na qual, com letras negras ou vermelhas bem visíveis,
indicava-se a causa pela qual fora crucificado. O hebraico (língua sagrada mais utilizada
no templo), o latim (a língua oficial do Império Romano) e o grego (a língua comum
dos povos do Oriente e mais falada pelos judeus da diáspora) indicavam o delito de
Jesus: “rei dos judeus” (Mt 15,27). Fora executado com outros condenados, como um
delinquente qualquer.30

25
Cf. GNILKA, Joaquim. Jesus de Nazaré, op. cit., p. 282-283.
26
PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 465-466.
27
Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 520.
28
Cf. RATZINGER, J. (Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 202.
29
Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 528.
30
Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 472-473.
Enquanto os romanos, como intimidação, deixavam propositadamente
pender do instrumento de tortura depois da morte os crucificados,
estes, segundo o direito judaico, deviam ser tirados no mesmo dia (Dt
21,22-23)”. Por isso, era tarefa do pelotão de execução acelerar a
morte quebrando-lhes as pernas. Aconteceu assim também no caso
dos crucificados no Gólgota. Aos dois “bandidos” foram quebradas as
pernas. Chegados a Jesus, porém, veem que ele já está morto; então
renunciaram a quebrar-Lhe as pernas; em vez disso, um deles
trespassa o lado direito – o coração – de Jesus e “logo saiu sangue e
água” (Jo 19,34). [...] Saíram sangue e água do coração traspassado de
Jesus. Em todos os séculos, a Igreja segundo a palavra de Zacarias,
olhou para esse coração traspassado e nele reconheceu a fonte de
bênção indicada antecipadamente no sangue e na água.31

Com o passar do tempo, a Igreja nascente, sob a guia do Espírito Santo, foi
lentamente penetrando no sentido mais profundo da cruz. Em primeiro lugar, os cristãos
entenderam que os antigos sacrifícios do templo estavam completamente superados. A
crítica dos profetas, que também ganhara expressão nos salmos, dizia que Deus não
queria ser glorificado por meio de sacrifícios de touros e de cabritos, cujo sangue não
pode purificar o homem nem fazer expiação por ele. Jesus é o “Cordeiro de Deus” que
carregara sobre si o pecado da humanidade. Parece estranho que um Deus, anunciado
como amor e misericórdia, exija uma expiação infinita? Não se trata de uma ideia
indigna de Deus?32 Bento XVI observa que acontece exatamente o contrário:

Ora, acontece não que um Deus cruel venha pedir algo de infinito,
mas precisamente o contrário: o próprio Deus coloca-Se como lugar
de reconciliação e, no seu Filho, carrega o sofrimento sobre Si. O
próprio Deus introduz no mundo, sob a forma de dom, a sua pureza
infinita. O próprio Deus “bebe o cálice” de tudo aquilo que é terrível
e, assim, restabelece o direito por meio da grandeza do seu amor, o
qual, através do sofrimento, transforma a escuridão.33

O referido pontífice interpreta a paixão de Cristo de outra forma, como o


momento em que o Puro entra em contanto com imundície do mundo:

Na Paixão de Jesus, toda a imundície do mundo entra em contato com


o imensamente Puro, com a alma de Jesus Cristo e, desse modo, com
o próprio Filho de Deus. Se habitualmente a realidade suja, através do
contato, contagia e mancha a realidade pura, aqui temos o contrário:
onde o mundo, com toda a sua injustiça e as crueldades que o
mancham, entra em contato com o imensamente Puro, aí ele, o Puro,
revela-se o mais forte. Neste contato, a imundice do mundo é

31
RATZINGER, J. (Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 203-204.
32
Cf. IDEM. Ibidem, p. 208-209.
33
IDEM. Ibidem, p. 211.
realmente absorvida, anulada transformada por meio do sofrimento do
amor infinito.34

Como observa o Catecismo da Igreja Católica, é o “amor até o fim” (Jo


15,13) que confere o valor de redenção e de expiação e de satisfação ao sacrifício de
Cristo.35 Essa perspectiva do amor também se encontra nos escritos de São Paulo. O
apóstolo diz que em Cristo já existe a garantia do amor do Pai: “Quem não poupou seu
próprio Filho, mas por nós o entregou, como não nos dará todas as coisas juntamente
com ele?” (Rm 8,32). Ou ainda: “a prova que Deus nos ama é que Cristo, sendo nós
ainda pecadores, morreu por nós” (Rm 5,8).

O que dá valor redentor ao suplício da cruz é o amor e não o


sofrimento. O que salva a humanidade não é algum “misterioso”
poder salvador contido no sangue derramado diante de Deus. Por si
mesmo, o sofrimento é mau, não tem nenhuma força redentora. Não
agrada a Deus ver Jesus sofrendo. A única coisa que salva no Calvário
é o amor insondável de Deus, encarnado no sofrimento e na morte de
seu filho. Não há nenhuma outra força salvadora a não ser o amor.36

De qualquer forma, aparentemente, tudo terminava num espantoso fracasso.


Ainda que seus discípulos tivessem o ouvido anunciar a sua morte, não o podiam crer.
Esperavam que ao final algo acontecesse. Aquele que fizera tantos milagres não podia
terminar assim. Pelo que se podia ver, venceram seus inimigos. No entanto, nessa morte
espantosa há algo que fala. O soldado que o viu morrer, estremecido pelo que havia
visto, exclama: “Verdadeiramente este homem era o filho de Deus” (Mc 15,39).

1.5.4 A ressurreição

Se todos os evangelistas narram a história da paixão e da morte de Jesus, o


mesmo acontece com a ressurreição. O que é perfeitamente compreensível, porque a
ressurreição de Jesus é o fato que justifica o Cristianismo. Nela está o ponto de partida
da fé cristã e o seu núcleo central. Como diz São Paulo, “se Cristo não ressuscitou, a
nossa pregação é sem fundamento, e sem fundamento também é a vossa fé” (1Cor
15,14).

Se Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos, o cristianismo seria


apenas um grupo de amigos de Jesus, unidos na recordação de seus
ensinamentos e na melhor reprodução possível de seus exemplos.

34
IDEM. Ibidem, p. 210.
35
Cf. Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 176, n. 616.
36
PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 520.
Nesse caso, embora seja um dos grandes gênios religiosos da
humanidade, Jesus não teria sido o “Senhor” e o cristianismo não
constituiria uma Boa Notícia para a humanidade de hoje, mas
simplesmente uma moral elevada.37

Segundo os evangelistas, no primeiro dia da semana, bem cedo, algumas


mulheres se aproximaram do sepulcro em que o corpo de Jesus havia sido depositado e
o encontraram aberto e vazio (Mc 16,1-8; Mt 28, 1-8; Lc 24,1-12; Jo 20,1-18). São
Marcos conta que um “jovem vestido de branco”38 tirou-as da perplexidade com as
seguintes palavras: “Não vos assusteis! Procurais Jesus, o nazareno, aquele que foi
crucificado? Ele ressuscitou! Não está aqui! Vede o lugar onde o puseram! Mas ide,
dizei a seus discípulos e a Pedro: ‘Ele vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis,
com ele vos disse’” (Mc 16,6-7). Do anúncio desse jovem, poderia ser captada a grande
mensagem: “é um erro procurar o crucificado no sepulcro vazio; ele não está ali, não
pertence ao mundo dos mortos”.39
O fato de ter encontrado o sepulcro vazio, a princípio, deve ter-lhes causado
grande perplexidade! É claro que um túmulo vazio não significa que um morto tenha
ressuscitado. E, por isso, como essas mulheres não eram tão ingênuas, fizeram logo a
pergunta: “será que levaram o corpo do Senhor?” (Jo 20,13).
Porém, de acordo com os relatos evangélicos, o túmulo vazio não é o
principal fundamento para a Ressurreição. A fé em Cristo ressuscitado se apoia no fato
de que seus seguidores o encontraram e o testemunharam cheio de vida depois de sua
morte. De fato, seria um erro pensar que o sepulcro vazio foi a grande prova da
ressurreição de Jesus.
Somente a partir da experiência do encontro com o Ressuscitado,
entenderam que o túmulo vazio era o primeiro sinal, mas não o mais importante. Ao
encontra-lo vazio, talvez pudessem se lembrar de que Jesus afirmara que sofreria muito,
morreria e ressuscitaria depois de três dias (Mc 8,31), mas, mesmo assim, ficariam
muitas dúvidas...

37
DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 76.
38
São Mateus (28,2) diz que no sepulcro do Senhor estava um anjo. São Lucas (24,4) fala de dois
homens com vestes resplandecentes. São João (20,12), por sua vez, fala que Maria Madalena
enxergou dois anjos vestidos de branco. Ainda que haja algumas diferenças nesses relatos, a
historicidade desse relato pode ser comprovada pelo fato de que seria difícil imaginar que os
evangelistas criassem essa história para reforçar com realismo a narrativa da ressurreição. Não seria
oportuno escolher mulheres como protagonistas de um testemunho que seria pouco valorizado na
sociedade judaica [Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 511-512].
39
IDEM. Ibidem, p. 513-514.
Sendo assim, só o encontro pessoal com Cristo foi capaz de dissipar as
dúvidas e enchê-las de alegria. Mesmo os discípulos não acreditaram logo. Num
primeiro momento, espantaram-se com o anúncio das mulheres. Também para eles, só o
encontro com Cristo dissiparia as dúvidas e incertezas. As aparições do Senhor redivivo
são sinais dados aos discípulos para suscitar a fé. Mas, na verdade, eles creram porque
viram Jesus vivo.40
Por isso, o Ressuscitado apareceu a Pedro, aos dois discípulos que iam a
caminho de Emaús e aos outros apóstolos. Assim, ao lado do sepulcro vazio, que por si
só não podia dar garantias de que Cristo ressuscitara, apresentam-se as aparições do
Jesus Ressuscitado. Um estudo dessas aparições mostra que ele se fez reconhecer como
pessoa viva e presente. As narrativas das aparições sempre se desdobram em três
momentos: (1) Jesus se manifesta vivo, (2) os discípulos o reconhecem e (3) dele
recebem a missão de anunciá-lo.41
Porém, não seriam essas aparições visões ou imaginações interiores dos
discípulos?
Primeiramente, ao analisar os relatos na língua original, em grego, nota-se
imediatamente que o verbo empregado para falar das aparições é opthé. Em 1Cor 15,5-
8, o referido verbo costuma ser traduzido por “apareceu”. Porém, segundo os peritos, é
mais adequado traduzir por “fez-se ver” ou “deixou-se ver”. Trata-se do mesmo verbo
empregado na Bíblia grega (LXX) para falar das aparições de Deus a Abraão ou Jacó.42
Isso quer dizer que não se trata de uma visão como experiência subjetiva, mas de uma
iniciativa de Deus que vem aos seus: o Ressuscitado é visto porque aparece, não aparece
porque é visto. William P. Loewe, explica muito bem a questão em duas afirmações. A
primeira diz respeito à concepção judaica de ressurreição:

O que os discípulos proclamam é precisamente a ressurreição de


Jesus. Mas no judaísmo a ressurreição funciona dentro do contexto da
apocalíptica como esperança para todo o povo, ou pelo menos para os
justos entre ele. O judaísmo do tempo de Jesus não tem noção de
ressurreição de um indivíduo. Todavia, embora nada no seu contexto
religioso lhes fornecesse tal noção, é precisamente isso o que os
discípulos de Jesus proclamam. De que outra fonte poderiam ter
adquirido a ideia, se de fato não tivessem encontrado Jesus. Portanto,
o que o Novo Testamento diz, isto é, um encontro real com Jesus
ressuscitado explica o que mudou os discípulos.43

40
Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 77.
41
Cf. DUPUIS, J. Introdução, op. cit., p. 77.
42
Cf. PAGOLA, J. A. Jesus, op. cit., p. 502.
43
LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 172.
A segunda traz a distinção entre as aparições do Ressuscitado e de visões
subsequentes:

Esse encontro não poderia ter sido uma espécie de visão induzida pelo
estado psicológico dos discípulos? A esta ideia opõe-se o último ponto
que mencionamos, a novidade da ideia da ressurreição de uma pessoa
individual. Tampouco os dados dos evangelhos acerca da condição
dos discípulos indicam qualquer outra coisa que não a sóbria aceitação
da sorte de Jesus. Nada indica as condições nas quais algo como um
desejo de realização, por exemplo, pudesse produzir uma visão. Além
disso, o próprio Novo Testamento distingue as aparições do Senhor
ressuscitado de visões subsequentes. Isso pode ser verificado, por
exemplo, em Paulo. Ele conta a experiência mística de arrebatamento
(2Cor 12,1-2), mas ela é diferente da experiência que o qualificou
como o último elo na lista das testemunhas de aparições de Jesus
ressuscitado. Finalmente, é improvável que a mesma experiência
visionária psicologicamente induzida tivesse ocorrido a tantas pessoas.
Paulo lista Pedro, os Doze, mais de quinhentos, Tiago, os apóstolos, e
ele mesmo. Duplamente improvável é uma reação psicológica em ca-
deia que se teria estendido por vários anos.

Nessa mesma linha de raciocínio encontra-se a afirmação de Aleksandr


Mien. Segundo o autor, “depois da ressurreição, Jesus foi visto por pessoas bem
diferentes, apareceu de modo e em circunstâncias bastante diferentes, a pessoas
isoladas, a grupos e às multidões numerosas”.44 Maria de Mágdala (ou Maria Madalena)
e as chamadas “santas mulheres” foram as primeiras a encontrar o Ressuscitado (Mt
28,9-10; Jo 20,11-18). Depois de encontrá-lo, foram também as suas primeiras
mensageiras (Lc 24,9-10). O que não era muito vantajoso, pois, na sociedade judaica, o
testemunho das mulheres não possuía valor algum (essa constatação mostra que não
seria oportuno se os discípulos inventassem um detalhe assim).45 Em seguida apareceu a
Pedro, aos Doze e a mais de quinhentas pessoas (1Cor 15,5-6).
Há ainda um terceiro argumento. Como observa o Catecismo da Igreja
Católica, há constatação da corporeidade do Ressuscitado, ou seja, não se trata de um
“fantasma”:

Jesus Ressuscitado estabelece com seus discípulos relações diretas,


em que estes o apalpam (Lc 24,39; Jo 20,27) e com Ele (Lc 24,30.41-
43; Jo 21,9.13-15). Convida-os, com isso, a reconhecer que ele não é
um espírito (Lc 24,39), mas sobretudo a constatar que o corpo
ressuscitado com o qual Ele se apresenta a eles é o mesmo que foi
martirizado e crucificado, pois ainda traz as marcas de sua Paixão (Lc

44
MIEN, Aleksandr. Jesus, mestre de Nazaré: a história que desafiou 2.000 anos. Vargem Grande
Paulista: Cidade Nova, 1998, p. 290.
45
Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 556.
24,40; Jo 20,20.27). Contudo, este corpo autêntico e real possui, ao
mesmo tempo, as propriedades novas de um corpo glorioso: não está
mais situado no espaço e no tempos, mas pode tornar-se presente a seu
modo, onde quando quiser (Mt 28,916-17), pois sua humanidade não
pode mais ficar presa à terra, mas já pertence exclusivamente ao
domínio divino do Pai (Jo 20,17). Por esta razão também Jesus pé
soberanamente livre de aparecer como quiser: sob a aparência de um
jardineiro (Jo 20,14-15) ou de “outra forma” (Mc 16,12), diferente das
que eram familiares aos discípulos, e isto precisamente para suscitar-
lhe a fé (Jo 20,14.16; 21,4-7).46

Quanto à natureza da ressurreição, o Papa Bento XVI, na segunda parte de


sua obra “Jesus de Nazaré”, traz considerações esclarecedoras. Numa espécie de síntese,
apresenta algumas distinções sobre o gênero do encontro dos discípulos com o
Ressuscitado:

Jesus não é alguém que voltou à vida biológica normal e depois,


segundo as leis da biologia, teve um dia de morrer novamente. Jesus
não é um fantasma (um “espírito”), ou seja, não é alguém que, na
realidade, pertence ao mundo dos mortos, embora possa de algum
modo manifestar-Se no mundo da vida.
Entretanto, os encontros com o Ressuscitado são uma realidade
distinta de experiências místicas, nas quais o espírito humano é por
um momento elevado acima de si mesmo e enxerga o mundo do
divino e do eterno. A experiência mística é uma superação momentâ-
nea do âmbito da alma e das suas faculdades de percepção; mas não é
um encontro com uma pessoa que externamente se aproxima de mim.
Paulo distinguiu com grande clareza as suas experiências místicas –
por exemplo, a sua elevação até o terceiro céu, descrita em II
Coríntios 12,1-4 – do encontro com o Ressuscitado no caminho de
Damasco, que era um acontecimento na história, um encontro com
uma pessoa viva.47

Na supracitada obra, Bento XVI apresenta ainda o significado histórico da


Ressurreição do Senhor. Segundo o Sumo Pontífice, trata-se de um acontecimento
histórico, mas que rompe o âmbito da história e a ultrapassa:

Por um lado, temos de dizer que a essência da ressurreição está


precisamente no fato de que ela rompe a história e inaugura uma nova
dimensão que, habitualmente, chamamos dimensão escatológica. A
ressurreição descerra o espaço novo que abre a história para além de si
mesma e cria o definitivo. Nesse sentido, é verdade que a ressurreição
não é um acontecimento histórico do mesmo gênero que o nascimento
ou a crucifixão de Jesus. É algo novo, um gênero novo de
acontecimento. Ao mesmo tempo, porém, é preciso não esquecer que
ela não está simplesmente fora ou acima da história. Como erupção
para fora da história e para além dela, a ressurreição tem, contudo, o

46
Cf. Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 185-186, n. 645.
47
RATZINGER, J. (Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 243-244.
seu início na própria história e até certo ponto pertence a ela. Talvez
se pudesse exprimir tudo isso assim: a ressurreição de Jesus ultrapassa
a história, mas deixou o seu rastro na história. Por isso pode ser
atestada por testemunhas como um acontecimento de qualidade
completamente nova.48

Por fim, resta falar da dimensão salvífica da ressurreição de Jesus. Como


observa o Catecismo da Igreja Católica, no Mistério Pascal, há um duplo aspecto: “por
sua Morte Jesus nos liberta do pecado, por sua Ressurreição ele nos abre as portas de
uma vida nova”.49 Destarte, a ressurreição de Jesus mostra-se como princípio e fonte da
ressurreição de todos os fieis:

Finalmente, a Ressurreição de Cristo – e o próprio Cristo ressuscitado


– é princípio e fonte de nossa ressurreição futura: “Cristo ressuscitou
dos mortos, primícias dos que adormeceram... assim como todos
morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida” (1Cor 15,20-22).
Na expectativa desta realização, Cristo ressuscitado vive no coração
de seus fiéis. Nele, os cristãos “experimentaram... as forças do mundo
que há de vir” (Hb 6,5) e sua vida é atraída por Cristo ao seio da vida
divina, “a fim de que não vivam mais para si mesmos, mas para
aquele que morreu e ressuscitou por eles” (2Cor 5,15).50

À guisa de conclusão, com São Paulo pode-se concluir que a ressurreição é o fato
histórico que justifica o cristianismo: “se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é sem
fundamento, e sem fundamento é a vossa fé” (1Cor 15,14). Para São Paulo, a
ressurreição não é só um fato histórico, mas, também um fato salvífico de primeira
linha. O Apóstolo afirma que, se Jesus não ressuscitou, “a vossa fé não tem nenhum
valor e ainda estais nos vossos pecados” (1Cor 15,16).

48
IDEM. Ibidem, p. 245.
49
Catecismo da Igreja Católica, op. cit., p. 188, n. 654.
50
IDEM. Ibidem, p. 189, n. 655.

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