Manuel Bandeira

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POESIA / LIBERTINAGEM 217

Santa Teresa não, Teresinha ...


Teresinha. . . Teresinha ...
Teresinha do Menino Jesus.
Me dá alegria!
Me dá a força de acreditar de novo
No
Pelo Sinal
Da Santa
Cruz!
Me dá alegria! Me dá alegria,
Santa Teresa! ...
Santa Teresa não, Teresinha ...
Teresinha do Menino Jesus.

ANDORINHA

ANDORINHA lá fora está dizendo:


- "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa ...

PROFUNDAMENTE

QUANDO ONTEM adormeci


Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
.Apenas de vez cm quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
220 MANÚEL BANDEIRA / POESIA COMPLETA E PROSA

Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de


espanto ou se vinha de muito longe.
Nesse momento (oh! por que precisamente nesse momento? ... )
é que penetrou no quarto o bicho que voava, o articulado implacável,
implacável! ,
Compreendi desde Jogo não haver possibilidade alguma de evasão.
Nascer de novo também não adiantava. - A bomba de flit! pensei
comigo, é um inseto!
Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim; os sinos
da redenção continuaram em silêncio; nenhuma porta se abriu nem
fechou. Mas o monstruoso animal FICOU MAIOR. Senti que ele não
morreria nunca mais, nem sairia, conquanto não houvesse no
aposento nenhum busto de Palas, nem na minhalma, o que é pior,
a recordação persistente de alguma extinta Lenora.

CABEDELO

VIAGEM À RODA do mundo


Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo.
O macaco me ofereceu cocos.

ô maninha, ó maninha,
Tu não estavas comigo! ...

- Estavas? ...
1907

IRENE NO C'f:U

IRENE PRETA
Irene boa
Irene sempre de ·bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:


- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
POESIA / LIBERflNAGEM 221

PALINóDIA

QUEM TE CHAMARA prima


Arruinaria em mim o conceito
De teogonias velhíssimas
Todavia viscerais
Naquele inverno
Tomaste banhos de mar
Visitaste as igrejas
(Como se temesses morrer sem conhecê-Ias todas)
Tiraste retratos enormes
Telefonavas telefonavas ..
Hoje em verdade te digo
Que não és prima só
Senão prima de prima
Prima-dona de prima
- Primeva.

NAMORADOS

O RAPAZ CHEGOU-SE para junto da moça e disse:


- Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua
[cara.
A moça olhou de lado e esperou.
- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma
[lagarta listada?
A moça se lembrava:
- A gente fica olhando ...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
- Antônia, você parece uma lagarta listada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
- Antônia, você é engraçada! Você parece louca.
POESIA / LIBERTINAGEM 219

(Eram três horas.


Todas as agências postais estavam fechadas.
Dentro da noite a voz do coronel continuava a gritar: - Je
vois des anges! Je vois des anges!)

NA BOCA

SEMPRE TRISTÍSSIMAS estas cantigas de carnaval


Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer
Felizmente existe o álcool na vida
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

1\inda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos


[viciados
Dorinha meu amor ...
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro:
[- Na boca! Na boca!

MACUMBA DE PAI ZUSt

NA MACUMBA do Encantado
Nêgo véio pai de santo fez mandinga
No palacete de Botofogo
Sangue de branca virou água
Foram vê estava morta!

NOTURNO DA RUA DA LAPA

A JANELA estava aberta. Para o que não sei, mas o que entrava era
o vento dos lupanares, de mistura com o eco que se partia nas
curvas cicloidais, e fragmentos do hino da bandeira.
220 MANÚEL BANDEIRA / POESIA COMPLETA E PROSA

Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de


espanto ou se vinha de muito longe.
Nesse momento (oh! por que precisamente nesse momento? ... )
é que penetrou no quarto o bicho que voava, o articulado implacável,
implacável! ,
Compreendi desde Jogo não haver possibilidade alguma de evasão.
Nascer de novo também não adiantava. - A bomba de flit! pensei
comigo, é um inseto!
Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim; os sinos
da redenção continuaram em silêncio; nenhuma porta se abriu nem
fechou. Mas o monstruoso animal FICOU MAIOR. Senti que ele não
morreria nunca mais, nem sairia, conquanto não houvesse no
aposento nenhum busto de Palas, nem na minhalma, o que é pior,
a recordação persistente de alguma extinta Lenora.

CABEDELO

VIAGEM À RODA do mundo


Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo.
O macaco me ofereceu cocos.

ô maninha, ó maninha,
Tu não estavas comigo! ...

- Estavas? ...
1907

IRENE NO C'f:U

IRENE PRETA
Irene boa
Irene sempre de ·bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:


- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
208 MANUEL BANDEIRA / POESIA COMPLETA E PROSA

Ce soir je crains la nuit


Petit chat frere du silence
Reste encore
Reste aupres de moi
Petit chat blanc et gris
Petit chat
La nuit pese
li n'y a pas de papillons de nuit
Ou sont donc ces bêtes?
Les mouches dorment sur !e fil de l'électricite
Je suis trop seu! vivant dans cette chambre
Petit chat frere du silence
Reste à mes côtés
Car il faut que je sente la vie aupres de moi
Et c'est toi qui fais que la chambre n'est pas vide
Petit chat blanc et gris
Reste dans •la chambre
Eveillé minutieux et lucide
Petit chat blanc et gris
Petit chat.
Petrópolis, 1925

BONHEUR LYRIQUE

CoEUR de phtisique
O mon coeur lyrique
Ton bonheur ne peut pas être comme celui des autres
li faut que tu te fabriques
Un bonheur unique
Un bonheur qui soit comme !e piteux lustucru cn chifron d'une
[enfant pauvre
- Fait par elle-même.

PORQUINHO-DA-fNDIA

QUANDO EU tinha seis anos


Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
POESIA / LIBERTINAGEM 209
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas ...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

MANGUE

MANGUE MAIS VENEZA americana do que o Recife


Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O Morro do Pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo crusvaldina com resíduos de coque
Há macumbas no piche
Eh cagira mia pai
Eh cagira
E o luar é uma coisa só
Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do que
[todas as Meritis da Baixada
Pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições públicas
Gente que vive porque é teimosa
Cartomantes da Rua Carmo Neto
Cirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avulsivas
O Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam com
[rancor
(Por isso
Entre os dois
Dom João VI plantou quatro renques de palmeiras imperiais)
Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcionário
[público casado com mulher feia e morri
[de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num píncaro
[azulado.
Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais
[cariocas
Sambas da Tia Ciata
Cadê mais Tia Ciata
Talvez em Dona Clara meu branco
Ensaiando cheganças pra o Natal
O menino Jesus - Quem sois tu?
O preto - Eu sou aquele preto princ1pa do centro do
[cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?
214 MANUEL BANDEIRA ! POESIA COMPLETA E PROSA

Recife ...
Rua da União ...
A casa de meu avô ...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife ...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu
[avô
Rio, 1925

POEMA TIRADO DE UMA NOTfCIA DE JORNAL

JoÃo GosToso era carregador de feira livre e morava no morro


[da Babilônia num barracão sem númerü:Ji
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro •
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

TERESA

A PRIMEIRA VEZ que vi Teresa


Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo


Achei que os olhos eram muito mais velhos que resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do
[corpo nascesse)

Da terceira vez nã0 vi mais nada


Os céus se misturaram ·com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das á,uas.
POESEA ! LEBERTJNAGEM 215

LENDA BRASILEIRA

A MOITA BULIU. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que


saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no chão.
Quis puxar o gatilho e não pôde.
- Deus me perdoe!
Mas Ó-Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do caçador
e começou a comer devagarinho o cano da espingarda.

A VIRGEM MARIA

O OFICIAL do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da


[Santa Casa e o administrador do cemitério
[de São João Batista
Cavaram com enxadas
Com pás
Com as unhas
Com os dentes
Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia
Depois me botaram lá dentro
E puseram por cima
As Tábuas da Lei

Mas de lá de dentro do fundo da treva d·o chão da cova


Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria
Dizer que fazia sol lá fora
Dizer i n s i s t e n t e m e n t e
Que fazia sol lá fora.

ORAÇÃO NO SACO DE MANGARATIBA

NOSSA SENHORA me dê pac1encia


Para estes mares para esta vida!
Me. dê paciência pra que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia! ...

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