524 - Reescrevendo A Terra À Vista
524 - Reescrevendo A Terra À Vista
524 - Reescrevendo A Terra À Vista
Organizador
Alex Viana Pereira
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Wenderson Macedo de Lima
Grafismo/Imagem de Capa: Yaguarê Yamã
Revisão: Franklin Roosevelt Martins de Castro (UEA/UNICAMP)
255 p.
ISBN: 978-65-5917-524-6
DOI: 10.22350/9786559175246
CDD: 800
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura 800
Nosso ancestral dizia: temos vida longa!
Mas caio da vida e da morte
E range o armamento contra nós.
Mas enquanto eu tiver o coração aceso
Não morre o indígena em mim
E nem tão pouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com a minha gente passo a passo
E firme, em direção ao sol.
[...]
APRESENTAÇÃO 13
Alex Viana Pereira
PREFÁCIO 16
TERRA À VISTA
Maria Inês de Almeida
VOZES DA FLORESTA
1 45
A POESIA DOS CORPOS INDÍGENAS NO BRASIL
Bete Morais
2 55
EDUCAÇÃO INDÍGENA
Márcia Wayna Kyana Kambeba
3 57
EDUCAÇÃO URBANA EM CONTEXTO DE ALDEIA: PONTOS E CONTRAPONTOS
Roní Wasiry Guará
4 60
KÃWÉRAS: OS HOMENS-MORCEGOS
Roní Wasiry Guará
5 67
A ÚLTIMA BATALHA ENTRE OS ÍNDIOS MAWÉS E MUNDURUKUS
Tiago Hakiy
6 70
O NASCIMENTO DOS MORCEGOS ANDIRAZES
Tiago Hakiy
7 72
MAKURIKANÃ
Yaguarê Yamã
8 74
A PÁLIDA SAUDADE
Yaguarê Yamã
9 75
MARAGUAZINHA
Yaguarê Yamã
10 76
PERIBÔ
Yaguarê Yamã
11 77
MANAWARA
Yaguarê Yamã
12 81
UMA INTRODUÇÃO À LITERATURA DA FLORESTA
Alex Viana Pereira
13 105
O ENCONTRO DAS ÁGUAS DA LITERATURA INDÍGENA NO AMAZONAS: ENTRE A
ORALIDADE E A ESCRITA
Delma Pacheco Sicsú
14 126
A NARRATIVA INDÍGENA ILUSTRADA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO ÇAÍÇÚ´INDÉ,
DE RONÍ WASIRY GUARÁ
Francisco Bezerra dos Santos
15 144
A LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA PARA O LETRAMENTO DE
PROFESSORES E ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Lucila Bonina Teixeira Simões
16 168
LITERATURA DE AUTORIA INDÍGENA: ROTEIRO INTERDISCIPLINAR PARA A SALA DE
AULA
Maria Evany do Nascimento
17 192
A LITERATURA INFANTOJUVENIL INDÍGENA AMAZONENSE: HISTÓRIA, MITO E
MEMÓRIA
Rallyme Vasconcelos Costa
18 215
LITERATURA INFANTOJUVENIL INDÍGENA AMAZONENSE: UMA ANÁLISE SOBRE O
IMAGINÁRIO EM DUAS OBRAS DA ESCRITORA LIA MINAPOTY
Thayla Leite Alves
Delma Pacheco Sicsú
19 239
A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO CANTO DOS PÁSSAROS NA OBRA O CANTO DO
UIRAPURU – UMA HISTÓRIA DE AMOR VERDADEIRO, DE THIAGO HAKIY
Weslley Dias Cerdeira
APRESENTAÇÃO
Alex Viana Pereira
1
Este projeto foi contemplado pelo Programa Cultura Criativa – 2021 – Prêmio Amazonas Criativo do
Governo do Estado do Amazonas.
14 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
1
Professora aposentada da UFMG; pesquisadora do CNPq; editora.
Maria Inês de Almeida • 17
2
ALMEIDA, Maria Inês. Ensaios sobre a literatura indígena contemporânea no Brasil. São Paulo: PUC, 1999.
p. 13.
18 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. E-mail: avp.mla20@
uea.edu.br
2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes – PPG&LA da Universidade do Estado do
Amazonas – UEA. E-mail: [email protected]
3
Licenciada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Amazonas – CESP/UEA.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Especialista em Docência
do Ensino Superior pela Faculdade Única de Ipatinga – Minas Gerais. E-mail:
[email protected]
Alex Viana Pereira; Alexandre Lira Sá; Thayla Leite Alves • 21
BETE MORAIS
ELIAS YAGUAKÃG
Fonte: http://yaguareh.blogspot.com/
Alex Viana Pereira; Alexandre Lira Sá; Thayla Leite Alves • 23
JAIME DIAKARA
Fonte: http://yaguareh.blogspot.com/
seu povo. Além desta narrativa, escreveu mais três obras infantojuve-
nis: Lua-menina e Menino-onça (2014), Tainãly, uma menina Maraguá
(2014) e Yara é vida (2019).
Os Maraguá habitam a região do rio Abacaxis, no Amazonas, e são
conhecidos como exímios contadores de histórias de assombração. Con-
tando atualmente com menos de 200 pessoas na área indígena, e em
torno de 350 no total, distribuem-se em quatro aldeias: Yãbetue’y,
Kãwera, Monãg’náwa e Yaguawajar.
Dentre a cultura, tradição, costumes e crenças que os caracterizam
estão a prática da luta corporal Piãguá, a crença no wirapurú empalhado,
o culto no muirakitã e as histórias míticas de deuses, seres encantados e
heróis civilizadores. Quanto à sua estrutura política, tradicionalmente
é formada por um tuxawa-geral, vice-tuxawa-geral, tuxawa de aldeia,
tuxawa de clã, mirixawa e malyli.
TIAGO HAKIY
Fonte: http://yaguareh.blogspot.com/
YAGUARÊ YAMÃ
4
Cf.: http://blogdeyaguare.blogspot.com/=1
34 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
s/n), “nessas tarefas, aproveito o contato com o não índio para mostrar
o que a cultura indígena tem de bom para compartilhar com os mora-
dores da cidade”.
Em 2001, por incentivo dos seus amigos escritores indígenas Daniel
Munduruku e Renê Kithãulu, publicou seu primeiro livro, intitulado Pu-
ratig: o remo sagrado. De acordo com Graça Graúna (2013, p. 140), “esse
livro foi editado por Daniel Munduruku, com quem o autor partilha a
experiência no projeto ‘Contação de histórias’: visitando escolas, facul-
dades para divulgar o pensamento indígena”.
Como escritor, artista plástico e ilustrador, conquistou prêmios
importantes com suas narrativas, e participou da obra “Brasil 500 anos”,
da escultora Maria Bonomi, no Memorial da América Latina, em São
Paulo (YAMÃ, 2012). Já seus trabalhos como ilustrador podem ser vistos
em várias de suas próprias obras como, por exemplo, em Puratig: o remo
sagrado (2001) e Murugawa: Mitos, contos e fábulas (2016), e de outros
autores indígenas renomados, como em Coisas de índio (2000), de Daniel
Munduruku. Atualmente, Yaguarê Yamã tem cerca de 34 livros publica-
dos por diversas editoras brasileiras.
Quando retornou para sua comunidade, em 2004, criou o projeto
“De volta às origens”, cujo objetivo era a conscientização, revitalização
cultural, inclusão do indígena na sociedade brasileira e a luta pela de-
marcação do território do seu povo (YAMÃ, 2013). Atualmente, mora em
Nova Olinda do Norte, no Amazonas, onde continua escrevendo seus li-
vros e contribuindo com a organização de sua comunidade, como Vice-
coordenador da Associação do Povo Indígena Maraguá – ASPIM. Além
disso, importa dizer que Yamã também faz parte do Núcleo de Escrito-
res e Artistas Indígenas (NEARIN), que é vinculado ao Instituto Indígena
Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI).
Alex Viana Pereira; Alexandre Lira Sá; Thayla Leite Alves • 35
comum encontrarmos, por exemplo, ao final dos livros dos autores ma-
raguás glossários que mesclam termos do nheengatu e língua Maraguá
utilizados nas histórias, que acabam sendo, também, uma estratégia de
avivamento da língua desse povo.
No que concerne ao mundo sagrado, a religião tradicional dos Ma-
raguás é a Urutópiãg. “Da Urutópiãg, os mais importantes legados são as
entidades e as crendices. Das entidades, as de destaque são os deuses
Monãg (do bem) e Anhãga (seu opositor e que não é mal, mas não gosta
do povo Maraguá)” (YAMÃ et al., 2014, p. 46). Além disso, fazem parte
dessa religião os espíritos protetores da floresta, as mães-da-mata e os
seres conhecidos como visagens. Nesse ínterim, importa dizer que são
essas entidades que aparecem frequentemente nas narrativas míticas
recontadas e recriadas por Yaguarê Yamã em suas obras e transmitem
determinados saberes da floresta.
Por fim, suas principais atividades diárias são caçar, pescar e plan-
tar. As duas primeiras atividades são mais praticadas pelos homens da
aldeia. Já nos trabalhos agrícolas, quem mais se sobressai são as mulhe-
res e crianças; entretanto, isso depende muito da habilidade de cada um,
que pode estar apto ou não para a atividade.
38 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
YTANAJÉ CARDOSO
FONTES CONSULTADAS:
COENGA, R. Um pouco sobre o povo Maraguá. Circuito Mato Grosso, Ala Jovem, 31 de
maio de 2015. Disponível em: http://circuitomt.com.br/editorias/artigos/68013-
um-pouco-sobre-o-povo-maragua-.html. Acesso em: 07 maio. 2022.
CONVERSA COM THOMAZ. Bete Morais, a escritora que tem a alma da Amazônia.
Conversa com Thomaz, 20 de junho de 2021. Disponível em:
<https://conversacomthomaz.com/personalidade/2021/06/bete-morais-a-
escritora-que-tem-a-alma-da-amazonia/> Acesso em: 15 abril. 2022.
KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do saber. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020.
RONI Wasiry Guará. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São
Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.
org.br/pessoa641356/roni-wasiry-guara> Acesso em: 25 maio. 2022.
Alex Viana Pereira; Alexandre Lira Sá; Thayla Leite Alves • 41
YAMÃ, Yaguarê. Murugawa: mitos, contos e fábulas do povo Maraguá. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2016.
YAMÃ, Yaguarê. O povo das histórias de assombrações. São Paulo: Editora Cintra, 2020.
YAMÃ, Yaguarê. Sehaypóri: o livro sagrado do povo Saterê-Mawé. São Paulo: Peirópolis,
2007.
TERRA, TERRA!
Por isso, as terras indígenas não podem ser vistas apenas como um
lugar para produção agrícola. Nessas terras, temos uma cadeia de
energias, uma dança que sustenta a vida. A terra precisa das florestas,
que precisa dos animais e dos insetos, que precisam dos rios e das
chuvas, e todos eles sustentam povos inteiros. É essa poesia que faz
parte dos povos índigenas, e é ela que equilibra a natureza, dentro e fora
dos corpos.
E essa dança vai muito além da terra, das florestas, dos rios, mares,
animais e dos povos, pois ela movimenta a mãe Terra.
Quando um corpo deita sobre uma terra seca, sem floresta e rio, ela
vai paralizando, porque apenas com o calor do sol não consegue se
manter em pé. Mas se um corpo em processo de ensolação encontrar
uma terra com floresta, reascenderá, porque a floresta carrega rios
inteiros.
Um corpo que cresce conectado com o céu e com a terra, aprende a
voar sozinho, constrói pontes, e sempre está se reiventando. A travessia
em um lugar rico e plural faz as “gentes” expandir a vida para além de
um pequeno corpo aprisionado no tempo.
A literatura movimenta pessoas, alimenta sonhos, irradia
vivacidade, alegria, poesia, a vida das gentes. Ela carrega tudo aquilo que
faz parte dos povos, suas histórias, suas criações, seus pequenos
pedaços.
ALIMENTAÇÃO E ESPIRITUALIDADE
certos, prontos e acabados. Isso porque é permitido viver uma coisa por
vez, e não precisa se acabar de uma vez, e tudo bem.
O melhor alimento vem da terra, e sustenta a sua espiritualidade.
Alma? Possui muitas receitas, é uma arte que se reinventa, à medida que
se vai percorrendo os povos.
O que a alimentação dos povos tem a ensinar? Talvez ela abra por-
tas, janelas, caminhos para lugares inimagináveis, de força e de
consciência.
Através da arte podemos sobrevoar a espiritualidade indígena, que
nos conecta com a terra, com as florestas, com os animais e com os rios.
Espiritualidade indígena não se limita aos espíritos das florestas e
aos Deuses, ela é uma dança de energias, e também não limita uma pes-
soa.
A alimentação para alguns povos indígenas está diretamente ligada
com a espiritualidade, pois ela conecta os corpos ao Mundo visível e in-
visível, ela também é a cura, o equilíbrio e a força. Por isso, contar
histórias a partir das percepções do Mundo indígena e da natureza não
significa retroceder, significa estar em movimento.
Quando o país abre espaço para a arte indígena, está promovendo
uma educação de qualidade, inclusiva, que valoriza a diversidade cultu-
ral. Quando o país abre espaço para as percepções do Mundo indígena,
ajuda a promover a igualdade e diminuir a violência gratuita.
E, quando falamos em promover a arte indígena, a cultura indí-
gena, não estávamos falando apenas de entretimento, porque ela
carrega o direito a uma educação diferenciada, o direito de viver de
acordo com seus costumes, o direito a um ambiente saudável e o direito
de mudar e construir a partir de suas percepções.
Bete Morais • 49
É na aldeia sagrada
Que se aprende a conhecer
Os saberes necessários
Para na vida sobreviver
Ouvir repetidamente
A mesma narrativa sem parar
Estratégia de nossos mais velhos
Para este saber decorar
A escrita aprendemos
Para esse saber desenhar.
Educação é troca de saberes
Valorize em seu ser esse encontro singular.
3
EDUCAÇÃO URBANA EM CONTEXTO DE ALDEIA:
PONTOS E CONTRAPONTOS
Roní Wasiry Guará
Falar de educação hoje é falar de uma música que a cada dia que
passa menos entendemos. Vejo que a educação que aprendi na cidade
através do acesso que tive não serve para minha comunidade, não no
dizer educação. No contexto urbano as pessoas não têm a prática de ter
o tempo de ler o tempo, o que é um costume diário na aldeia, e por isso
todos os dias inventam uma novidade no termo educar.
Vivemos em uma época de hipervelocidade de informações que não
nos dão tempo de digerir nem uma delas, e isso é muito ruim para a
questão educar quando nos referimos aos nossos pequenos leitores nas
aldeias.
Sou fruto do ensino urbano, mas só aprendi a ler a vida a partir do
olhar nativo.
A educação urbana quando chega à aldeia é vista muitas vezes
como um elemento corrosivo, uma imposição, causando um choque em
muitos daqueles que nos ouvem.
Isso dificulta muito, pois existem aqueles que nos dizem que nos-
sas histórias têm de ser só nossa, se não, não serão mais histórias, e sim
produtos. Esse é um contraponto, quanto ao que somos; formadores de
opinião.
Então como pensar em uma educação de desenvolvimento positivo
sobre a questão leitura e escrita para nossas aldeias reproduzindo os
58 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
menino que tinha ido até a aldeia, já começou o dia mal quando chegou
atrasado.
A professora foi logo o advertindo.
- Você está atrasado. Ele olha os outros colegas que sorriem e res-
ponde.
- Não professora, sou apenas o último a chegar.
Ela o olha de cima a baixo e lhe diz.
- Isso não é explicação. Ela retruca toda raivosa.
- Diga-me o porquê do atraso. O pequeno garoto não sabendo o que
fazer se contorce todo na cadeira, enquanto não se sabe de onde os de-
mais na sala tiravam motivos para sorrir.
Kurumi então, cabisbaixo tenta dar-lhe uma inocente explicação.
- Professora é que eu trouxe umas frutas lá da aldeia e fui levar a
uns parentes, e esse lugar é muito longe de onde eu moro, eles estavam
à minha espera, e pela distância que eu tive que ir acabei chegando só
agora, não farei mais isso, desculpe-me, é que meu papai falou que as
pessoas são mais importantes do que a escola, aí eu fui até lá.
A professora não aguentando mais esbravejou.
- Chega; cale a boca, não aguento mais essa sua estória.
Naquele dia Kurumi voltou para casa sorrindo. E quando todos per-
guntavam o porquê de tanto sorriso ele só respondia.
- Hoje minha professora me mandou calar a boca, ela é legal, mas
descobri uma coisa sobre ela. – Ela não gosta de histórias.
4
KÃWÉRAS: OS HOMENS-MORCEGOS
Roní Wasiry Guará
1
“Esquleto velho”. Nome de uma das mais temíveis entidades da cultura e da religião maraguá.
2
Pajé em língua maraguá.
Roní Wasiry Guará • 61
3
Urucum. Fruto da árvore do mesmo nome. Colorau.
4
Rio pequeno.
5
Resina extraída da árvore do mesmo nome. Quando dura, serve para fazer fogo.
62 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
6
Jirau posto em cima de árvores para o caçador esperar a caça.
7
Casca de arvore.
8
Raíz chata e grossa de algumas árvores. Sapópema; Sapopemba.
Roní Wasiry Guará • 63
9
Grande árvore de várzea da Amazônia. Sumaúma.
64 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
- Vou atingi-lo bem na asa para ter certeza de que não vai voar. –
Disse Guarumã, o mais experiente dos caçadores.
Uma flechada foi suficiente, e o bicho rolou pelo chão. Enquanto
isso, olhavam para o alto para ver se não vinham os outros. Nada. Então
ficaram observando aquela horrível criatura de asas, orelhas pontudas,
rabo comprido e dentes enormes.
Conversaram entre si e decidiram levá-lo para mostrar aos mora-
dores da aldeia. Fizeram então um yamaxy 10 de sipó tityka 11. Como eram
muitos se revezaram.
Levando o bicho preso, rumaram de volta a aldeia. Poteguá era o
último da fila e andava devagar, tentando achar uma reposta para o apa-
recimento daqueles seres. Depois de algum tempo e de vários
revezamentos, chegou a vez de Kawã, um dos rapazes que mais insis-
tiam em desobedecer aos velhos e o que havia tido a ideia de caçar
naquela noite. Ele pegou o yamaxy, colocou nas costas e seguiu caminho.
Já estavam chegando à aldeia quando ele caiu. Chamaram por ele, mas
não respondeu. Ao tirar lhe o paneiro 12, os amigos viram que havia um
buraco em suas costas, (Kawã estava sendo devorado sem perceber). Ra-
pidamente armaram seus arcos e atiraram várias vezes na criatura.
Poteguá achou um cacete e atacou o bicho na cabeça, agora sabia que ele
não mais ia ferir ninguém.
Foi assim que os Kãwéras se tornaram conhecidos. Os maraguás
consultaram o pajé que revelou:
10
Paneiro. Cesto de carga.
11
Espécie de cipó, muito usado para a cestaria.
12
Grande cesto de carga.
Roní Wasiry Guará • 65
achavam que iam vencer este confronto, mas agora fugiam, não conta-
vam com a grande virada dos Mawés, que lutaram sem medo, rápidos,
ferozes.
Os índios Mawés voltaram para casa vitoriosos, a festa durou mui-
tas luas, teve muito peixe assado na brasa, dança ao redor da fogueira e
muito, muito tarubá.
6
O NASCIMENTO DOS MORCEGOS ANDIRAZES
Tiago Hakiy
A grande cobra branca, que vive nas profundezas do Rio Andirá foi
quem pariu os morcegos gigantes chamados Andirazes em um belo en-
tardecer da floresta.
Quando o Rio Andirá nasceu, das lágrimas de uma índia Sateré, que
chorou muito por conta do seu esposo, que desapareceu na floresta en-
cantado pela grande jararaca; o rio nesta época ainda não tinha nome.
Em um belo entardecer, a grande cobra branca, sentiu uma vontade
louca de se perfumar com o cheiro da essência de pau rosa, e apenas
quem possuía esta essência eram os Saterés. Ela não queria ir às aldeias
dos ditos que ficavam na cabeceira do então rio sem nome.
Ela juntou sementes de muitas frutas e comeu, logo sua barriga co-
meçou a crescer e dela saiu uma grande quantidade de morcegos
grandes, de cabeças meio branca, ela então chamou de morcegos Andirá.
Ela então os mandou pegarem na aldeia dos Saterés um pouco da essên-
cia do pau rosa para ela se perfumar.
Lá chegando os morcegos procuram o velho Pajé, que avisado pelos
espíritos da floresta reconheceu os morcegos como filhos da cobra
grande.
Ele deu a essência do pau rosa, mas em troca pediu um pouco do
sangue dos morcegos. Era para o grande pajé dar aos guerreiros mawés,
os morcegos sendo filhos da cobra grande, certamente a força da cobra
Tiago Hakiy • 71
iria passar aos valentes mawés, que naquela época estavam em guerra
com os índios Mundurucus.
Quando o dia vinha surgindo no horizonte, os morcegos voltaram
para trazer o que a sua mãe lhes pedira. É por isso que ao entardecer
voam sobre as águas do Andirá grandes morcegos, hora em que a cobra
grande pariu, quando a noite amadurece, eles desaparecem e só voltam
a voar sobre as águas quando o dia vem chegando, hora em que eles vi-
nham chegando trazendo a essência do pau rosa para a grande cobra
branca se perfumar.
Os índios mawés deram o nome de Andirá ao rio então sem nome,
pela grande quantidade de morcegos andirazes que ao entardecer e ao
amanhecer voavam sobre as águas do grande rio.
7
MAKURIKANÃ
Yaguarê Yamã
A pálida lembrança
Que tenho da açucena
Me traz poucas saudades
E é na indiferença
Como remoto passado,
Seu rosto delicado
Em meus lábios tristes
Me vem a consciência
A lembrança dela
Por baixo de brumas
Quase invisível.
E só!
9
MARAGUAZINHA
Yaguarê Yamã
Eu te amo maraguazinha.
Quanto amo!
Eu te quero maraguazinha,
Tu ouviste!
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Este trabalho é fruto de uma pesquisa mais ampla realizada no Programa de Pós-Graduação em Letras
e Artes – PPGLA da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
2
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. E-mail: avp.mla20@
uea.edu.br
82 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
de mostrar que elas abriram caminho para que outras produções indí-
genas se gerassem em todo o país. Nesse mesmo diapasão, frisamos o
importante papel dos professores indígenas, na medida em que se cons-
tata que são eles que, na quase totalidade, estão construindo suas
respectivas literaturas, ou a literatura de suas comunidades (ALMEIDA;
QUEIROZ, 2004).
Ter seus direitos garantidos por lei foi o primeiro passo para que os índios
brasileiros pudessem desenvolver um processo de ensino-aprendizagem
diferenciado e, consequentemente, pudessem criar e/ou aprimorar suas
práticas de escrita e produção literária.
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e esta-
belecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia [...]
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências fe-
derais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá
programas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de Educação esco-
lar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
3
Entrevista de Daniel Munduruku a Demetrios Galvão e Dante Galvão. Disponível em: <http://www.revista
acrobata.com.br> Acesso em: 08 dez. 2021.
4
Inicialmente, este PNE era previsto para o decênio 2011-2020, mas sua tramitação durou três anos e
meio, fazendo com que a sua aprovação saísse no Diário Oficial da União somente em 26 de junho de
2014, por isso sua vigência passou para o decênio 2014-2024.
88 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
Almeida (2014) lembra que, até 1970, os indígenas não eram conhe-
cidos ou reconhecidos pela nação brasileira, em casos específicos o
conhecimento sobre a existência desses povos ficava limitado aos indi-
genistas, antropólogos, linguistas e alguns políticos, jornalistas, artistas
e escritores. Entretanto, ainda de acordo com a estudiosa, a partir dos
direitos legais, sobretudo, das referências ao processo educacional dife-
renciado que versa a Constituição de 1988, esse status de “inexistentes”
começou aos poucos a mudar, pois foi dado mais um passo significativo
para o reconhecimento das sociedades indígenas e suas textualidades
no Brasil:
Nós fizemos este livro de histórias dos antigos porque muitas crianças não
sabem estas histórias. Por isso fizemos este livro – para ensinar as crianças.
94 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
5
Segundo Nietta Lindenberg Monte (2000, p. 11), a CPI/AC é reconhecida como responsável por
formular uma das principais propostas curriculares alternativas às vigentes nas escolas rurais e urbanas,
que respeita as orientações culturais e linguísticas das sociedades indígenas participantes.
6
Cf:. https://www.cpiacre.org.br. Acesso em: 28 dez. 2021.
Alex Viana Pereira • 97
Em 1989, o professor Osair Sales Siã realizou uma pesquisa nas aldeias ka-
xinawás do lado peruano. Por três meses, viajou registrando (munido de
gravador) aspectos da cultura tradicional. Gravou história dos antepassa-
dos, Huni Kui, e canções rituais. Trouxe consigo, de volta ao Brasil, o
professor bilíngue Armando Purixo, que o auxiliaria a transcrever as vozes
dos velhos Leôncio Salomão e Grompes Purixo. O trabalho durou seis meses.
Em 1990, as transcrições foram lidas, adaptadas e ilustradas pelos profes-
sores em formação no IX Curso, em Rio Branco. Questões como a adaptação
da grafia convencionada pelo SIL (Summer Instituto of linguistic) no Peru
à grafia convencionada no Brasil foram resolvidas com o auxílio de linguis-
tas (Ruth Monserrat e Adair Palácio) (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 267).
Segundo Guesse (2014), o resultado desse trabalho foi uma obra bi-
língue de autoria coletiva, com doze narrativas mitológicas,
organizadas pelo professor indígena Joaquim Mana Kaxinawá e elabo-
rada entre 1989 e 1995, com o objetivo de reconstituir as histórias
vinculadas à tradição oral dos Kaxinawás. Ainda de acordo com a estu-
diosa, os Kaxinawás pretendiam publicar o livro apenas em língua
indígena Hãtxa Ku, mas por compreenderem depois que deveriam dar a
oportunidade a leitores de outras etnias de conhecerem as histórias de
seu povo, decidiram incluir na obra versões dessas narrativas em língua
portuguesa, ou seja, não se trata propriamente de traduções, mas de
versões das mesmas histórias, agora em português, coletadas entre os
mestres da tradição que dominavam a língua dos brancos.
98 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
Doze mitos foram escritos, não sem antes terem suas versões peruana e
brasileira confrontadas. Em cada caso, buscaram uma versão legitimada
para a difusão via escrita, com critérios discutidos e escolhidos coletiva-
mente. Com mais um ano de trabalho, verteram os mitos para o português,
visando ao seu conhecimento pelos outros índios acreanos e pelo público
brasileiro em geral. As traduções em português foram primeiro feitas oral-
mente e gravadas, e só depois trabalhadas em escrita, sob a coordenação de
Nietta L. Monte (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 268).
7
A tese de Maria Inês de Almeida é um dos primeiros estudos sobre a literatura indígena no Brasil.
ALMEIDA, Maria Inês de. Ensaios sobre a literatura indígena contemporânea no Brasil. Tese
(Doutorado em Comunicação e Semiótica) – PUC, São Paulo, 1999.
Alex Viana Pereira • 99
ano que passa, menos jovens querem seguir com a tradição, estão deixando
de ouvir os velhos, de participar das festas, dos rituais. Os mais velhos se
preocupam, têm medo de que o conhecimento morra com eles. As comuni-
dades encontram, então, na escrita este poder de armazenar o
conhecimento, além também de verem no papel e na escrita um valor do-
cumental, que mostrará para outros povos quem eles são, suas histórias e
seus valores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Inês de, QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: as edições da narrativa
oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica: FALE/UFMG, 2004.
BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre
os povos indígenas no Brasil hoje. Brasília: LACED/Museu Nacional, 2006.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. PERRONE-MOISÉS, Leila. São Paulo: Editora Cultrix,
1977.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global Editora, 2004.
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. Manaus: Editora Valer, 2011.
LIMA, Amanda Machado Alves de. O livro indígena e suas múltiplas grafias. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários) Faculdade de Letras, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.
LIMA, Carlos Emílio Correa. Antes o mundo não existia: o livro da outra origem do
mundo. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem). – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Natal, RN, 2018.
PÃRÕKUMU, Umusi, KEHÍRI, Torãmu. Antes o mundo não existia: a mitologia dos
índios Desâna. 1. ed. São Paulo: Livraria Cultura, 1980.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.
THIÉL, Janice Cristine. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
WEBER, Ingrid. Escola Kaxi: História, cultura e aprendizado escolar entre os Kaxinawá
do rio Humaitá (Acre). Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2004.
13
O ENCONTRO DAS ÁGUAS DA LITERATURA
INDÍGENA NO AMAZONAS: ENTRE A ORALIDADE E A
ESCRITA
Delma Pacheco Sicsú 1
O INÍCIO DO PERCURSO
1
Doutoranda em Literatura e Práticas Sociais pela UnB; Mestre em Letras e Artes pela Universidade
Estadual do Amazonas; Professora do curso de Letras no Centro de Estudos Superiores de Parintins –
CESP/UEA. E-mail: [email protected]
106 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
dar visibilidade e voz a esses povos que, por séculos, tiveram sua histó-
ria contada pelo olhar do não indígena, numa política de silenciamento,
apagamento e distorção da história dos povos originários.
Nesse sentido, a literatura indígena, além de ressignificar a histó-
ria dos povos originários, também deixa inscrita em seus textos as
marcas da identidade cultural do homem amazônico, tendo em vista a
grande influência desses povos na vida de não indígenas que moram na
Amazônia. Tais influências podem ser vistas no vocabulário, nas cren-
ças, na alimentação, no uso da medicina natural, na relação com a
natureza. Deste modo, além de contarem sua própria história, os escri-
tores indígenas mostram em seus textos como a cultura indígena exerce
uma grande influência na identidade cultural do homem amazônico vis-
tos em diversos aspectos como ora citados. Essa influência é quase
impossível de não haver, tendo em vista que o Amazonas é o Estado que
mais concentra número de etnias, totalizando assim 63 nações indíge-
nas.
A literatura indígena, objeto de deste estudo, importante ressaltar,
existe há séculos, e muitas histórias registradas hoje eram contadas
oralmente e fazem parte do imaginário amazônico muito antes delas
serem documentadas em livros. Isso significa dizer que antes da litera-
tura escrita existe outra, presente na oralidade, que resguarda o saber,
a memória, ancestralidade, história, lutas e resistência dos povos origi-
nários. Com o passar dos tempos e de posse da escrita alfabética, os
escritores indígenas encontraram nesta tecnologia um meio para res-
guardar as narrativas orais contadas há séculos, para que as futuras
gerações indígenas e não indígenas tenham a oportunidade de conhecer
a história dos povos nativos pelo olhar do próprio indígena, e para que
a memória desses povos seja atualizada nestes livros.
Delma Pacheco Sicsú • 107
etnias. Aliás, no Brasil, como afirma Silvio Romero (1980), não há como
não receber a influência dos povos indígenas, pois quando esta influên-
cia não está no sangue, ela está de alguma forma nas ideias.
Uma questão importante a ponderar aqui é o fato de que, na Ama-
zônia, muitos indígenas, para fugir dos desmandos de colonizadores e
invasores, se isolaram totalmente da sociedade, como afirma Souza
(2018, p. 54), "porém, outros tiveram que aceitar a convivência submissa
com colonos e invasores, adotando categorias regionais, como: caboclos
ribeirinhos castanheiros homens da floresta entre outros". Isso também
explica a influência da cultura indígena, pois muitos conviviam com
brancos, mas para se protegerem escondiam sua identidade, mas sem
deixar de cultivar sua cultura.
Embora esses indígenas tenham se submetido a conviver com co-
lonos e invasores e, tenham passado a se identificar como não indígena,
como estratégia de sobrevivência e resistência, eles encontraram meca-
nismos para deixar viva a memória, a ancestralidade e a tradição do seu
povo. Entre esses mecanismos está a contação de histórias.
A importância dos contadores de histórias, vale ressaltar, não ficou
apenas nesse período em que os indígenas tiveram de abdicar de sua
identidade, pois os narradores orais exerceram, e continuam exercendo,
um papel muito importante na manutenção da história de seu povo.
A literatura na vida dos povos sempre se fez presente, a primeira forma foi
através das rodas de conversa ao pé de uma árvore e sempre ao cair da noite.
Ao redor dos mais velhos as crianças ouviam as narrativas e os narradores
iam se revezando na contação. Muitas dessas narrativas traziam figuras
lendárias, como o curupira, boto, matinta; outras traziam a cosmogonia do
povo, as lutas, as resistências, mas o que importava era que todas tinham
110 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
A literatura sempre foi escrita com tintas de resistência, sendo que nossa
primeira forma de registro da palavra era a memorização do assunto ou
conto. Repetidas vezes uma história contada para que fosse assimilada e ja-
mais esquecida. Estrategicamente nossos mais velhos sabiam que
precisavam deixar seus saberes presentes nos descendentes (KAMBEBA,
2020, p. 90).
contar histórias é, para nós uma das formas de manter o saber. É assim que
a gente aprende quando é criança, para viver como criança mesmo quando
cresce. Os adultos que conseguem contar ouvir histórias são crianças que,
Delma Pacheco Sicsú • 111
tradição escrita que, vale ressaltar, bebe nas fontes da primeira e se po-
tencializa no registro da memória, nos problemas e perspectivas
indígenas da atualidade.
Além de Yaguarê Yamã, é importante destacar aqui o protagonismo
de Roní Wasiry Guará, Jaime Diakara, Thiago Hakiy, Elias Yaguakãg,
Ytanajé Cardoso e as escritoras Lia Minapoty, Márcia Kambeba e Bete
Moraes no movimento literário indígena amazonense, que contempla
diferentes etnias como: Desâna, Omágua-Kambeba, Sateré-mawé, Ma-
raguá e Munduruku.
É incomensurável a importância desses escritores no cenário bra-
sileiro porque provocam um repensar na tradição literária brasileira. E,
para os povos indígenas, a produção literária dos escritores autóctones
alavanca e dá voz aos povos originários, bem como resguarda a memória
de cada etnia a que pertence o escritor.
A voz da floresta, ecoada em cada palavra escrita na literatura in-
dígena, traz no corpus de seus textos as marcas identitárias e todo
percurso histórico e social vividos da nação ao qual o escritor pertence.
É uma voz escrita que se espraia para além das bordas das páginas do
livro e ganha terreno em outros contextos, contribuindo assim para que
essa literatura, ao circular em diferentes espaços no encontro com o lei-
tor, seja ele indígena ou não, oportunize ao receptor destes textos
conhecer a história dos povos originários pela voz do próprio indígena.
E a palavra, seja ela escrita ou falada, tem um papel fundamental
na sociedade indígena, pois por meio dela, nas contações de histórias ou
nas conversas do dia a dia os ensinamentos sobre a ancestralidade, tra-
dição, memória e a trajetória dos povos indígenas são ensinados na
aldeia. E, com o domínio da escrita, a palavra passa também a ficar
120 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
REFERÊNCIAS
GUARÁ, Roni Wasiry. Mondagará: Traição dos Encantados. São Paulo: Formato
Editorial, 2011.
KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do saber ancestral. 2.ed. São Paulo: UKA, 2021.
KAMBEBA, Márcia Wayna. O olhar da palavra. In: DORRICO, Julie. DANNER, Fernando.
DANNER, Leno Francisco. Literatura indígena contemporânea: autoria,
autonomia, ativismo. Porto alegre, RS: Editora Fi, 2020.
KEHIRI, Tõramu.; PÃLÕKUMU, Umusi. Antes o mundo não existia: miotologia dos
antigos Desana-Kehiripõra. 2.ed. São João Batista do Rio Tiquié: UNIRT; São Gabriel
da Cachoeira: FOIRN, 1995.
YAMÃ, Yaguarê. Puratig: o remo sagrado. Ilustração das crianças SaterêMawé, Queila
da Glória e Yaguarê Yamã. São Paulo: Petrópolis, 2004.
YAMÃ, Yaguarê. Kurumi Guaré no coração da Amazônia. São Paulo: FTD, 2007.
YAMÃ, Yaguarê. Sehaypóri: o livro sagrado do povo Saterê-Mawé. São Pauo: Peirópolis,
14
A NARRATIVA INDÍGENA ILUSTRADA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO ÇAÍÇÚ´ INDÉ, DE
RONÍ WASIRY GUARÁ
Francisco Bezerra dos Santos 1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Doutorando em Letras: Estudos Literários pela UFPR. E-mail: [email protected].
Francisco Bezerra dos Santos • 127
2
Palavra de origem Maraguá, que significa eclipse.
128 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
3
Os referidos estudiosos desenvolveram um trabalho voltado para a análise de imagens denominada
Gramática do Design Visual. O trabalho de Kress e Van Leeuwen reconhece que a língua não realiza
somente representações da realidade social como as relações entre quem vê e o que é visto. A coerência
entre imagens e composição social acontece de diferentes formas, realizando assim a realidade
semiótica.
Francisco Bezerra dos Santos • 129
dos livros indígenas. São essas etapas de produção que ampliam as mo-
dalidades discursivas das narrativas. Para a pesquisadora, essas duas
ferramentas são essenciais, pois ajudam os leitores a navegarem pela
correnteza de conteúdo que é o texto. Desse modo, o design gráfico é
uma forma de comunicar visualmente os conceitos, torna os livros in-
dígenas acessíveis a uma grande parte da população.
Sobre a pluralidade dessas narrativas, também é possível discutir
a questão dos gêneros textuais. Na concepção dos teóricos que estudam
a literatura indígena no Brasil, buscar identificar ou enquadrar as obras
indígenas em categorias, como normalmente é feito na literatura oci-
dental, não seria o mais correto. Souza (2003), ao destacar a
complexidade dessas narrativas inseridas no espaço intersticial entre
oralidade e escrita, argumenta que é de se esperar que os gêneros tex-
tuais das narrativas indiquem tal complexidade e dificultem a
identificação dos gêneros da cultura escrita tais como “poesia”, “conto”
ou “crônica”. Os escritores não se preocupam com essas questões, “são
os editores não indígenas que formatam os manuscritos atribuindo-
lhes o gênero textual que mais lhe parece cabível nas circunstâncias,
sem que os próprios autores tenham escolhido intencionalmente tais
gêneros (SOUZA, 2003, p. 132)”.
Em resumo, a heterogeneidade discursiva da produção textual in-
dígena se manifesta pela interação de idiomas e pela interação de
multimodalidades. A escrita, as imagens, os desenhos geométricos, os
elementos sonoros e a performance formam um conjunto a ser lido
(THIÉL, 2012). Essas narrativas compartilham de inúmeros gêneros tex-
tuais sem pertencer a nenhum em particular. Logo, a análise dos textos
indígenas deve ser feita a partir de uma perspectiva que priorize todo o
processo de produção.
Francisco Bezerra dos Santos • 131
com outros elementos do texto como luz, sombra e ações das persona-
gens. Nesse sentido, fica entendido que as cores das ilustrações não
devem ser levadas em consideração em seu sentido isolado.
(2017), uma vez que é apreendido pela percepção. Assim, ligamos os mo-
tivos artísticos e as combinações de motivos artísticos (composições)
com assuntos e conceitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CALVET, Louis-Jean. Tradição oral e tradição escrita. São Paulo: Parábola Editorial,
2011.
GUARÁ, Roní Wasiry. Çaíçú’indé: o primeiro grande amor do mundo. Manaus: Editora
Valer, 2011.
LIMA, Amanda Machado Alves de. O livro indígena e suas múltiplas grafias. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2012.
OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para
crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Francisco Bezerra dos Santos • 143
OSTROWER, Fayga Perla. Universos da arte. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena
no Brasil. Revista Semear n.7, 2003. Disponível em: http://www.letras.pucrio.
br/catedra/revista/semiar_7.html. Acesso em: 12 jun. 2018.
THIÉL, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
VIDAL, Lux. Grafismo indígena: estudo de antropologia estética. São Paulo: Studio
Nobel; FAPESP, Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
15
A LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA PARA O
LETRAMENTO DE PROFESSORES E ALUNOS DO
ENSINO FUNDAMENTAL
Lucila Bonina Teixeira Simões 1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Professora de Língua Portuguesa, Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas.
Atua como professora formadora na Divisão de Desenvolvimento Profissional do Magistério, da
Secretaria Municipal de Educação de Manaus. [email protected]
Lucila Bonina Teixeira Simões • 145
A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da expe-
riência do outro, como também vivenciar essa experiência. Ou seja, a ficção
feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos
formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e outra
permite que se diga o que não sabemos expressar e nos falam de maneira
mais precisa o que queremos dizer ao mundo, assim como nos dizer a nós
mesmos (COSSON, 2007, p.17).
A OBRA ESCOLHIDA
O LIVRO
AS FÁBULAS DO SEHAYPÓRI
Trata-se de uma narrativa (v.) quase sempre breve, em prosa ou, na maioria,
em verso, de ação não muito tensa, de grande simplicidade e cujos persona-
gens (muitas vezes animais irracionais que agem como seres humanos) não
são de grande complexidade. Aponta sempre para uma conclusão ético-mo-
ral. É um gênero de grande projeção pragmática por seu claro objetivo
moralizador e de grande efeito perlocutório, próprio dos textos narrativos,
pois vai ao encontro dos hábitos, das expectativas e das disponibilidades
culturais do leitor (COSTA, 2014, p.154).
Uma vez que em sua fonte, conforme atestado pelo autor, as fábu-
las são um gênero textual do Sehaypóri desenvolvidos especialmente
para as crianças e jovens, pensamos que seja interessante desenvolver
uma Sequência de trabalho cuidadosamente planejada para esse grupo
de histórias dentro do livro. Além disso, o gênero fábula, tradicional-
mente, está ligado ao processo de alfabetização e letramento dos alunos
Lucila Bonina Teixeira Simões • 159
desde o início de sua vida escolar e espera-se que, nos anos finais, eles
já tenham construído um bom repertório de histórias e de conhecimen-
tos linguístico-discursivos acerca dele.
Valendo-nos de tal conhecimento, queremos propor aos alunos
uma leitura que aprofunde seu olhar sobre a originalidade e a diferença
com que as fábulas indígenas lidam com a sabedoria que provém dos
elementos da natureza, em especial, dos animais.
Se tomamos uma fábula de referência na literatura escolarizada,
uma clássica de La Fontaine, por exemplo, percebemos que a ela se
aplica o que afirma Nely Coelho sobre o uso simbólico dos animais:
geral, sem adiantar o desfecho das fábulas. Assim, quando forem para a lei-
tura individual, os alunos já terão uma ideia do todo e estarão informados da
opinião dos colegas. Importante: oriente os alunos a consultar o glossário dos
idiomas saterê e língua geral no fim do livro.
e) Determine com os alunos um prazo de tempo para que todos leiam as 7 fábulas
do livro. Dependendo da turma 1 semana será suficiente.
a) No dia marcado para o retorno na leitura individual, a aula pode começar com
uma roda de conversa a partir de perguntas geradoras como: De que fábula
mais gostou? Por quê? Alguma coisa te causou estranhamento? Por quê? Que
ensinamentos achou mais marcantes? As fábulas sateré se assemelham às fá-
bulas que você já tinha lido? E outras.
b) Avise aos alunos que vocês farão uma leitura comparativa para aprender algo
mais sobre fábulas. Escolha uma fábula de La Fontaine em prosa para ler para
os alunos. Sugerimos O corvo e a raposa ou O galo e a raposa (usamos a tradução
da Editora Escala). Antes, é importante fazer a contextualização da produção
de La Fontaine. Pode ser interessante voltar ao laboratório de informática e
pedir que os próprios aluno façam a pesquisa. A justificativa desse passo é
construir a compreensão de que a fábula estará, em forma e conteúdo, vincu-
lada à cultura que a produziu e aos objetivos – usos sociais – que se faz dela.
c) Após a leitura da fábula de La Fontaine, releia com os alunos a fábula A onça e
a preguiça, do livro em estudo. Em pares, ou coletivamente, oriente os alunos
Lucila Bonina Teixeira Simões • 165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
COELHO, Nely Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise. 4.ed. São Paulo:
Quíron, 1987.
CORREIA, Heloísa Helena Siqueira. Saberes não humanos nas mitologias ameríndias: o que
ensinam e para quem. (pp.359-375). IN: DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco;
CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER, Fernando (Orgs.). Literatura indígena
brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção [recurso eletrônico]. Porto
Alegre: Editora Fi, 2018. Disponível em: http://atempa.org.br/wp-
content/uploads/2020/09/Literatura-ind%C3%ADgena-contempor%C3%A2nea-
Livro-.pdf Acesso em: 29 março. 2022.
uploads/2020/09/Literatura-ind%C3%ADgena-contempor%C3%A2nea-Livro-.pdf
Acesso em: 29 março. 2022.
COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. 3. ed. São Paulo: Autêntica, 2014.
HAKIY, Tiago. Literatura indígena – a voz da ancestralidade (pp. 37-38). IN: DORRICO,
Julie; DANNER, Leno Francisco; CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER,
Fernando (Orgs.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e
recepção [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. Disponível em:
http://atempa.org.br/wp-content/uploads/2020/09/Literatura-ind%C3%ADgena-
contempor%C3%A2nea-Livro-.pdf Acesso em: 29 março. 2022.
YAMÃ, Yaguarê. Sehaypóri: o livro sagrado do povo Saterê-Mawé. São Paulo: Peirópolis,
2007
16
LITERATURA DE AUTORIA INDÍGENA: ROTEIRO
INTERDISCIPLINAR PARA A SALA DE AULA
Maria Evany do Nascimento 1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2014). Mestre
em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (2003). Especialista em
História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Amazonas (2001). Graduada em Educação
Artística pela Universidade Federal do Amazonas (1999). Professora da Escola Normal Superior da
Universidade do Estado do Amazonas – UEA e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes –
PPGLA/UEA. E-mail: [email protected]
Maria Evany do Nascimento • 169
Ei, guri
Vem aqui
Uma história vou te contar
Ei, maninha
Espia só
É a história dos nossos avós
No livro a gente vê
Histórias da aldeia
Dos curumins
Correndo na areia
No livro tem
Histórias de assombro
Seres da noite
Que chegam nos sonhos
Ei, guri
Vem aqui
Uma história eu vou te contar
Ei, maninha
2
Música “Encantados”, de Evany Nascimento e Félix Aranha. Parte integrante do Projeto Temático
Ancestralidade. Pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=L_MF8eCWI9c
Maria Evany do Nascimento • 175
Espia só
É história dos nossos avós
O livro traz
Seres encantados
Da água, da terra
Do céu estrelado
Tantas histórias
Você vai encontrar
Literatura indígena
Ei, guri
Vem aqui
Uma história, vou te contar
Ei, maninha
Espia só
É a história dos nossos avós
3
Até o momento da escrita desse artigo as músicas ainda não haviam sido gravadas em estúdio,
conforme projeto inicial.
178 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
INFORMAÇÕES AUTORAIS
Obra: CURUMIM
Autor: Tiago Hakiy
Ilustradora: Andréia Vieira
Editora: Positivo
Ano de publicação: 2014
INFORMAÇÕES TÉCNICAS
Formato: 20 X 20, brochura, grampeado.
Quantidade de páginas: 24
Cores: folhas coloridas e imagens coloridas.
Papel: couchê
INFORMAÇÕES DE CONTEÚDO
Classificação editorial: 1. Literatura Infantil. 2. Cultura indígena.
Categoria de Leitor: Pré- leitor / Leitor iniciante.
Temática central: infância/brincadeiras.
SUGESTÕES DE ATIVIDADES
LEITURA
ESCRITA
PESQUISA
RODA DE CONVERSA
Quantas dessas atividades descritas pelo autor são comuns (ou fo-
ram em algum momento) comuns às nossas crianças do Amazonas?
Quantas das palavras em negrito ao longo do texto nós conhecemos?
Elas aparecem num glossário organizado ao final porque muitas não fa-
zem parte da cultura do restante do país, onde o livro chega. A narrativa
retrata uma relação de proximidade e intimidade com a natureza. Pen-
sar sobre os espaços de brincar que a cidade proporciona às crianças
188 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
47 Olho d´água, o cami- Roní Wasiry Guará Walther Moreira Autêntica 2012
nho dos sonhos Santos
48 A árvore da vida Roní Wasiry Guará Carla Frusta Leya 2014
49 Ipaty, o curumim da Ely Macuxi Mauricio Negro Paulinas 2020
selva
50 As pegadas do kurupyra Yaguarê Yamã Uziel Guaynê Mercuryo Jo- 2008
vem
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura. São Paulo: Editora
UNESP, 2007.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Licenciada em Letras pela Universidade do Estado do Amazonas - CESP/UEA. E-mail: [email protected]
Rallyme Vasconcelos Costa • 193
com Almeida Garret, mas não conhecerá a Literatura que ele vive coti-
dianamente, que faz parte da sua história e de suas memórias.
É dentro desse cenário de dificuldades em torno da literatura ama-
zonense que surge a necessidade de analisar duas obras infantojuvenis
indígenas amazonenses, com a finalidade de dar um destaque maior a
essa literatura emergente. Apesar de nova, traz consigo muitos conhe-
cimentos dos povos amazônicos e apresenta, através da literatura, a
cultura, a fauna e flora, os mitos, ritos e crenças dos povos indígenas.
Diante desse contexto é que se prioriza, nessa pesquisa, analisar narra-
tivas literárias de autoria indígena, voltadas para o público
infantojuvenil, numa perspectiva memorial, tomando como base os mi-
tos e as memórias dos povos originários presentes nessas narrativas. O
estudo objetivou realizar o levantamento bibliográfico acerca dos temas
em questão: ler as obras elencadas para o estudo desta pesquisa; anali-
sar e identificar nas narrativas literárias indígenas o Mito, História e a
Memória.
A pesquisa tem sido de grande contribuição acerca das atividades
realizadas, pois permite que o conhecimento sobre o mito, a história e a
memória sejam expandidos e conceituados através das leituras e análi-
ses realizadas. Isso possibilitou também o aprofundamento da cultura
desses povos e aproveitamento do vasto campo linguístico que existe
entre eles. Este trabalho tomou como objeto de análise duas narrativas
intituladas Pequenas Guerreiras (2013), de Yaguarê Yamã, e Çaíçú’indé: o
primeiro grande amor do mundo (2011), de Roní Wasirí Guará. As obras
elencadas foram selecionadas por serem escritas por indígenas e trata-
rem de temas que fazem parte do cotidiano amazonense.
O intento dessa pesquisa não é apenas analisar como o mito, a his-
tória e a memória se manifestam nas obras, mas também mostrar ao
194 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
conhecer a mãe natureza, tem liberdade para desfrutar das riquezas na-
turais.
Yaguarê propõe detalhes dessa floresta para inserir o leitor no am-
biente natural em que se passa a narrativa, colocando árvores da região,
animais e rios que fazem parte dessa construção histórica. Nos trechos
a seguir, são evidenciados alguns dos elementos da natureza como “pe-
dras verdes para fazer muiraquitã” (YAMÃ, 2013, p.19) ou quando as
meninas estão fugindo e “saltavam moitas e troncos caídos pelo cami-
nho (YAMÃ, 2013, p.24)”.
A narrativa apresenta também um momento histórico de grande
impacto que é falar da miscigenação, quando propõe a personagem:
Dimára como uma menina loira, filha de Pátea com um estrangeiro que di-
ziam ser irmão do sol por causa de sua cor clara e que havia estado por lá
na época em que as Amazonas avistaram duas enormes canoas lotadas de
homens de pelo no rosto (YAMÃ, 2013, p.12).
O Boto é o bicho mais inteligente dos rios amazônicos [...]. Dizem que possuo
poderes mágicos e me transformo em homem para encantar as mulheres.
Mas, eu não tenho culpa de ser inteligente e bonito e as mulheres gostarem
de mim. Sabe por que eles têm raiva de mim? É porque eu protejo o rio, com
a ajuda da Cobra-Grande. A verdade é que eles morrem de medo de mim.
200 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
Aqui na terra, eles podem me vencer. Mas, dentro d’água, quem manda sou
eu (FARIAS, 2001, p.11).
uma caverna. Após a criação dos homens, surge o conflito desta narra-
tiva, pois a bela Yãny apaixona-se por Guaracy, o sol. Com isso, é
colocado em evidência um amor impossível.
A literatura infantojuvenil indígena amazonense preocupa-se em
registrar narrativas orais que fazem parte da cultura dos povos e é mais
uma das muitas histórias que permeiam o meio indígena. A obra reúne,
em suas primeiras páginas, uma série de informações que contribuem e
se assemelham com outras culturas: para isso seguirá a análise a partir
do mito e, assim, se chega à construção da identidade.
A pesquisa compreende o mito como um fato que possui a partici-
pação de seres sobrenaturais. Para melhor entendimento, teremos
como ponto de partida que o mito:
É sempre, portanto, uma narrativa de criação: ele relata de que modo algo
foi reproduzido e começou a ser. O mito fala apenas do que ocorreu, do que
se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são entes sobrenatu-
rais (ELIADE, 1972 p.09).
como paradigma das nossas trajetórias vividas que incluem sempre em suas
fases nascimento, crescimento, morte e, de vez em quando, ressurreição
também (ROCHA, 1991, p. 31).
Assim, os mitos e lendas dos atuais povos indígenas ainda guardam lem-
branças de um passado que se perdeu na voragem da conquista. As rotas
comerciais que ligavam a selva amazônica às grandes civilizações andinas
ainda continuam traçadas nas entranhas da mata virgem, reconhecidas
apenas pelo olhar dos que sabem distinguir antigas veredas dissimuladas
pelas folhagens (SOUZA, 2001, p. 26).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1963.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1972.
FARIAS, Elson. Viajando com o boto no fundo do rio. Manaus: Valer, 2001.
GUARÁ, Roní Wasirí. Çaíçu’indé: o primeiro grande amor do mundo. Manaus: Editora
Valer, 2011.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Os Paradoxos da Memória. In: MIRANDA, Danilo Santos
de (org.). Memória e Cultura: a importância da memória na formação cultural
humana. São Paulo: Edições SESC, 2007.
OLIVEIRA, José Alcimar de. Cultura, História e Memória. 2. ed. Manaus: Editora Valer,
2014.
YAMÃ, Yaguarê. Pequenas Guerreiras. ilustrações Taisa Borges. Editora São Paulo: FTD,
2013.
18
LITERATURA INFANTOJUVENIL INDÍGENA
AMAZONENSE: UMA ANÁLISE SOBRE O IMAGINÁRIO
EM DUAS OBRAS DA ESCRITORA LIA MINAPOTY
Thayla Leite Alves 1
Delma Pacheco Sicsú 2
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Amazonas. Bacharel em
Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas. Especialista em Docência do Ensino Superior
pela Faculdade Única de Ipatinga – Minas Gerais. E-mail: [email protected]
2
Doutoranda em Literatura e Práticas Sociais pela UnB. Mestre em Letras e Artes pela Universidade
Estadual do Amazonas e professora do curso de Letras no Centro de Estudos Superiores de Parintins –
CESP/UEA. E-mail: [email protected]
216 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
Semanticamente falando, pode-se dizer que não há luz sem trevas, en-
quanto o inverso não é verdadeiro; a noite tem uma existência simbólica
autônoma. O Regime Diurno de Imagem define-se, portanto, de uma ma-
neira geral, como o regime da antítese. Este maniqueísmo das imagens
diurnas não escapou aos que abordam um estudo aprofundado dos poetas
da luz (DURAND, 1997, p. 67).
Para Durand, não existe luz sem trevas e vice-versa, apesar de se-
rem contrastantes, os fenômenos naturais do dia e da noite e são
relacionados à arte literária. O antropólogo busca articular a relação do
homem com a natureza, representados por meio das simbologias no
Thayla Leite Alves; Delma Pacheco Sicsú • 219
[...] necessita penetrar no seu universo interior, que é a sua “caverna” ín-
tima. As histórias infantis podem ajudá-la a atingir essa compreensão, e
com isto a habilidade de lidar com as coisas, não através da compreensão
racional da natureza e conteúdo de seu inconsciente, mas familiarizando-
se com este inconsciente, através de devaneios prolongados, pensando, re-
organizando e fantasiando sobre elementos adequados da história, em
resposta a pressões inconscientes, o que a capacita a lidar com este conte-
údo.
[A] LIJ é literatura sim, como qualquer outra. E é arte sim. Arte da palavra.
Da linguagem. Do trabalho com a linguagem. Creio que a LIJ tem apenas
uma especificidade, que é o seu leitor: a criança ou o jovem. Mas como é
literatura, dentro de todos os parâmetros da literatura, pode ser lida por
qualquer idade. A diferença é que ela pode começar a ser lida na infância.
Quando a LIJ tem qualidade estética, qualquer pessoa pode ler e se encantar
(RAMOS, 2005, p. 148).
A partir disso, o indígena ganha força legal para lutar ainda mais
pelo seu reconhecimento e com a possibilidade de escrever sua própria
história. Nesse sentido, no Amazonas, alguns autores vêm se desta-
cando, como Roni Wasiry Guará, Jaime Diakara e Yaguarê Yamã. Só para
citar alguns.
Thayla Leite Alves; Delma Pacheco Sicsú • 223
3
Cf.: MINAPOTY, Lia. Lua-menina e Menino-onça. Belo Horizonte: RHJ, 2014.
Thayla Leite Alves; Delma Pacheco Sicsú • 225
[...] o nome Maraguá provém da junção das duas palavras do seu vocabulá-
rio: Mará, que significa tacape (cacete) e guá, ou seja, gente, nação. Portanto,
226 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
Ouvindo isso, os líderes dos clãs Maraguá decidiram procurá-los, pois acha-
vam que a escuridão contida nos potes seria a misteriosa noite da qual os
antigos lhes contaram.
228 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
[...] os Maraguá dividem-se em seis clãs principais. Cada clã simbolizado por
animais representa uma família: Piraguáguá -gente do boto, Aripunãguá -
gente da vespa, Çukuyeguá - gente da cobra, Pirakêguá -gente do puraqué,
Tawatoguá -gente do gavião e Yaguareteguá - gente da onça. Assim, cada
clã tem um animal-símbolo. Quanto à sociedade no geral, tem como símbolo
o Guaruguá – peixe-boi (CINTRÃO, 2012, p. 27).
Assim a noite apareceu para os Maraguá. Durou doze horas, mas assim
como disse o malilyi, ela reapareceu e a até hoje existe mais os Maraguá e os
demais indígenas e não indígenas moradores do Guakáp, o planeta Terra
(MINAPOTY, 2011, p. 23).
sociedades tem sua origem relacionada com a água doce”. Muitas socie-
dades dependem da pesca e caça de animais que estão na floresta, dentro
ou à beira dos rios. Para os indígenas, os animais são seres que devem ser
respeitados e a relação do Homem com eles pode ser de harmonia ou de-
sarmonia quando caçados/pescados em demasia.
Também com o objetivo de investigar o imaginário literário indí-
gena, tomamos como objeto de pesquisa a obra A árvore de carne e outros
contos, de Lia Minapoty em parceria com Yaguarê Yamã. A obra é sub-
dividida em seis pequenos contos que propiciam o leitor conhecer em
torno do imaginário da etnia Maraguá e ainda traz um tópico especial-
mente dedicado em conhecer ao povo indígena que habita a região do
rio Abacaxis, no estado do Amazonas. Os autores afirmam:
malyli Piraí passa por provações para ser digno do colar com poder da
cura. “Piraí morreu já faz muito tempo, mas os poderes do colar conti-
nuaram. Todo malyli que dele precisa vai até o colar e o pega emprestado
do velho do lago” (MINAPOTY e YAMÃ, 2012, p. 17). Já no conto “Um ca-
samento na aldeia” (2012), o malyli é representado como aquele que
ditava as leis e antigamente era proibido o casamento de membros de
diferentes etnias. Por sua vez, “A lagoa encantada” (2012) mostra um
pajé altruísta que, pelo bem de seu povo, é capaz de se sacrificar:
Inconformado com a perda tão dramática de Mayé, o malyli pediu que seus
companheiros fechassem os olhos. Então, concentrado, passou a rezar em
voz alta. Sem demora, uma voz veio em socorro do pajé.
- A malvadeza das almas perdidas está pior que antes – disse a voz. – Em
vez de a cada cem anos, agora virão de dois em dois dias.
- O que faremos? – perguntou o malyli.
- Só há um jeito. Para salvar seu povo, você precisa se sacrificar
(MINAPOTY e YAMÃ, 2012, p. 36).
As lendas e os mitos são histórias sem autoria conhecida. Foram criadas por
povos de diferentes lugares e épocas para explicar fatos como o surgimento
da Terra e dos seres humanos, do dia e da noite e de outros fenômenos da
natureza. Também falam de heróis, heroínas, deuses, deusas, monstros e
outros seres fantásticos (BARROS, 2013, p. 17).
4
Seres malignos, metade gente, metade morcego, que habitam a região do rio Abacaxis, na bacia
amazônica (MINAPOTY e YAMÃ, 2012, p. 50).
234 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
em: http://dspace.unive.it/bitstream/handle/10579/12778/835449-1215883.pdf?
sequence=2. Acesso em: 16 nov. 2021.
CRUZ, Maria Nazaré da. Imaginário, imaginação e relações sociais: reflexões sobre a
imaginação como sistema psicológico. Cad. Cedes, Campinas, v. 35, n. Especial, p.
361-374, out., 2015.
RAMOS, Anna Cláudia. “O jogo do faz-de-conta”. In: OLIVEIRA, Ieda de. O que é
qualidade em literatura infantil e juvenil?: com a palavra, o escritor. São Paulo:
DCL, 2005, p. 147-166.
238 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, Professor licenciado
em Letras/ Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Mestrando Pelo
Programa de Pós-graduação em Letras e Artes – PPGL&A. E-mail: [email protected]
240 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
2
Autopoieses, conceito de Maturana e Varela (1995), em que um sistema autopoiético é ao mesmo
tempo produtor e produto de si mesmo. São ao mesmo tempo autônomos e dependentes, não
podendo ser entendidos na racionalidade maquínica, binária e de partes separadas.
Weslley Dias Cerdeira • 243
Figura 1: Obra O canto do Uirapuru – Uma história de amor verdadeiro, de Thiago Hakiy.
Fonte: coletivoleitor.com.br
Silencia a nascente
Cala o murmúrio da cascata
Canta uirapuru
Canta Uirá...canta uirá
Canta uirapuru
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa
terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas
margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América
Latina [...]. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda tanto que
as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses
filhotes da terra de sua mãe.
252 • Reescrevendo a terra à vista: a literatura de autoria indígena amazonense em destaque
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução Luiz
Orlandi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
GUATTARI, Felix. As três ecologias. Traduzido por Maria Cristina F. Bittencourt. 11 ed.
Campinas, SP: Papirus, 2001.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 6ªEd. Trad. Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2002.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
TRINDADE, Liana Sálvia. O que é imaginário / liana Trindade, François Laplantine. São
Paulo; Brasiliense, 2000.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário – obras
escolhidas. São Paulo: Escrituras, 2001.
Weslley Dias Cerdeira • 255
MORIN, Edgar. O método 6 – Ética. Trad. Juremir Machado da Silva. 4.ed. Porto Alegre:
Sulina, 2011.
www.editorafi.org
[email protected]