Entre Elas Escritoras Mato Grossenses em Uma 2 Zab0nt
Entre Elas Escritoras Mato Grossenses em Uma 2 Zab0nt
Entre Elas Escritoras Mato Grossenses em Uma 2 Zab0nt
Entre
Elas
Escritoras
Mato-Grossenses
em uma Perspectiva
Interdisciplinar
Larissa Rodrigues Ribeiro Pereira
Diretora Comercial
CONSELHO EDITORIAL
ACADÊMICO
Prof. Me. Adriano Cielo Dotto (Una Catalão)
Prof. Dr. Aguinaldo Pereira (IFRO)
Profa. Dra. Christiane de Holanda Camilo (UNITINS/UFG)
Prof. Dr. Dagoberto Rosa de Jesus (IFMT)
Profa. Me. Daiana da Silva da Paixão (FAZAG)
Profa. Dra. Deise Nanci de Castro Mesquita (Cepae/UFG)
Profa. Me. Limerce Ferreira Lopes (IFG)
Profa. Dra. Márcia Gorett Ribeiro Grossi (CEFET-MG)
Prof. Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ)
Profa. Dra. Maria Adélia da Costa (CEFET-MG)
Profa. Me. Patrícia Fortes Lopes Donzele Cielo (Una Catalão)
Profa. Dra. Rosane Castilho (UEG)
Prof. Dr. Ulysses Rocha Filho (UFCAT)
CONSULTIVO
Nelson José de Castro Peixoto
Núbia Vieira
Welima Fabiana Vieira Borges
Gislei Martins de Souza Oliveira
Organizadora
ENTRE ELAS:
ESCRITORAS MATO-GROSSENSES EM
UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR
1ª edição
Goiânia - Goiás
Editora Alta Performance
- 2023 -
Copyright © 2023 by
Gislei Martins de Souza Oliveira
ISBN: 978-65-5447-115-2
CDU: 82.09
DIREITOS RESERVADOS
É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou
por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito dos autores.
A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido
pelo artigo 184 do Código Penal.
SUMÁRIO
• PREFÁCIO...........................................................................7
• O EU E A CIDADE: MODERNIDADE,
ANONIMATO E SOLIDÃO NOS POEMAS
“METRÓPOLE”, DE MARILZA RIBEIRO, E
“CONFISSÃO”, DE CHARLES BAUDELAIRE...........37
Vanderluce Moreira Machado Oliveira
5
• TEMPO COMUM, DE LUCINDA PERSONA:
UM DIÁLOGO COM A TRADIÇÃO
LITERÁRIA BRASILEIRA..............................................98
Cristina Mascarenhas da Silva
• A NARRADORA-CLOWN EM HERANÇA,
DE HILDA MAGALHÃES..............................................113
Gislei Martins de Souza Oliveira
• SOBRE OS AUTORES....................................................154
6
PREFÁCIO
7
Aliás, o que é ser mulher? É nadar contra a corrente? O que
é ser mulher que escreve? Mulher-artista, escritora? E que pro-
duz conhecimento acadêmico-científico? É alimentar angústias,
sentir a insegurança, questionar-se, ser questionada, afrontada,
agredida, ter dúvidas de si, tudo como consequência devastadora
de um aparato estrutural de longo alcance, vale dizer, de séculos
de opressão, de silenciamentos, de morte. É, por isso, realmente
notável o empenho por protagonismo, seja na academia, seja na
vida, destas mulheres que aqui se tornam autoras e personagens,
sujeitos de análise e analistas, num intercâmbio, perseverando
dentro de uma sociedade que reiteradamente tenta cristalizar um
referencial feminino subalterno, condicionado socialmente à ma-
ternidade, e determinado por um padrão de beleza irreal.
Neste livro coletivo, os autores exercem o ofício da escrita
com leveza e segurança. Possibilitam, desse modo, a construção
de debates acerca da produção literária de escritoras mato-gros-
senses: algumas ainda pouco conhecidas e estudadas pelo públi-
co universitário; já outras, célebres e renomadas internacional-
mente. Daí a pertinência e a importância sem igual da presente
obra: por meio de sua exegese, tornar acessível o trabalho de mu-
lheres escritoras, artesãs da palavra livre, que conferem signifi-
cado material ao verbo “resistir”. Ora, para nós, mulheres, existir
não é senão um ato de pura resistência.
E na literatura brasileira não canônica, idem. Como, em seu
artigo, observa Alda Maria Quadros do Couto:
8
que não se deixa tocar pela realidade, para o bem e para o
mal (QUADROS DO COUTO)1.
9
cálida que simbolizaria nosso inconsciente”. Dessa forma, nosso
inconsciente seria comparado a um terreno fértil, sem limites, do
qual emergem nossos sonhos inexplicáveis e desejos mais pesso-
ais, como o fragmento citado abaixo:
[...]
5. com a umidade transparente
6. em meu refúgio cálido de mulher
7. anunciadora das inquietudes desejantes
8. fluentes gotas de
9. gostosa intimidade
[...]
24. Resolvo, depois tão calmamente, desligar-me desses
25. campos oníricos e descansar adormecendo todo meu
26. ser agitado no sono que me devolve a paz
27. no repouso do intervalo.
(RIBEIRO, 2016, p. 101 apud PEREIRA; MAGALHÃES)
10
Machado Oliveira também percebe aqui a amplitude de questões
que atravessa a longa obra de Marilza Ribeiro, inscrevendo-a
tanto na tradição pré-modernista de representação da realidade,
quanto revelando um perfil poético mais ousado, inclassificável,
pois, inquieto; próprio do juízo estético de sua contemporaneida-
de. Da constatação dessa grandeza da poeta mato-grossense, e do
seu igualmente vasto universo de motivos, Oliveira então aproxi-
ma, numa análise comparativa, a composição rebelde de Ribeiro
em “Metrópole” com os versos austeros de Baudelaire, em “Con-
fissão”. Ao assinalar a estrutura gramatical livre da poeta brasi-
leira com a observação rígida da métrica dos versos, no francês,
Oliveira demonstra que está interessada, sobretudo, nas diferen-
ças, nos contrastes bem marcados. Em sua investigação, nota-se
de fato certa dualidade na qualificação da cidade.
11
se sentido, ambos aproveitam para denunciar a ‘coisificação’ das
pessoas” (OLIVEIRA). Pelo registro lírico, a relação com a ci-
dade torna-se então uma projeção de si, dos valores e anseios de
cada tempo. Não por acaso, assinala Oliveira, o uso reiterado de
estratégias que remetem para a metáfora do corpo, em Ribeiro e
em Baudelaire. Mas também a compreensão do corpo, isto é, a
compreensão do ser, é distinta em Ribeiro e em Baudelaire.
Em “Tereza Albuês e Lindanor Celina – Berros e Rupturas”,
Quadros do Couto aproxima a obra dessas autoras pela perspec-
tiva da memória. Mas não como apanágio, nostalgia de origem,
senão como subversão, como a transgressão de um gênero literá-
rio tradicionalmente vinculado à condição feminina, isto é, con-
sagrado ao desejo de evasão do ambiente doméstico. Conforme
a pesquisadora, pelo cânone, a escrita memorialista “seria sem-
pre metafórica, a partir de um eixo ‘vertical’, o ponto de vista
de quem fica ‘parada na sua casa, lembrando (...)’” (PICCHIO,
1997, p. 647 apud QUADRO DO COUTO). O que não é o caso
de Albues e/ou de Celina, já que ambas viveram e morreram lon-
ge de “casa”, em exílio: a mato-grossense em Nova York; a para-
ense, em Paris. Quadros do Couto, então, inscreve a sua literatu-
ra, de uma e de outra, em um panorama de contestação, rebeldia
e inovação, promotora de tensionamentos sobre o modelo fixo
do que seja e do que deva ser a literatura de memória. Sua aná-
lise fornece, adicionalmente, um dado objetivo ao que já é am-
plamente notado, de que “não conhecemos o variado, completo
e complexo quadro da literatura brasileira, especialmente no que
diz respeito a escritoras, a mulheres que escrevem” (QUADROS
DO COUTO).
Ainda na trilha dos significados – ora ocultos, ora explíci-
tos – que os deslocamentos mnemônicos de Tereza Albues ofe-
recem e instigam, Thalita Sampaio desenvolve um exame das
12
possibilidades de apreciação de Travessia dos Sempre Vivos, de
Albues, em uma interpretação conceitual, dentro dos critérios de
definição da epopeia. Para Sampaio, a multiplicidade de sentidos
experimentados no decorrer de Travessia..., transcenderia o re-
gional; operando, assim, em uma chave universalista. Na prosa
de Albues, acompanhamos a trajetória física e intersubjetiva da
protagonista Taisha, que emula – buscando encaixar as pegadas
nas mesmas pegadas – o percurso realizado antes pelo avô, João
Padre. Com efeito, a descrição dos cenários interiores de Mato
Grosso, situado entre o “capão”, “armadilhas e choças abando-
nadas” (ALBUES, 2019, p. 45 apud SAMPAIO, 2023, p. 53) do-
ta os espaços narrados com um estatuto de não lugar e, aos con-
flitos de Taisha, um caráter elevado, heroico. Logo, em “Efeitos
de sentido do épico em a Travessia dos Sempre Vivos de Tereza
Albues”, Thalita Sampaio destaca como a paisagem e os perso-
nagens mato-grossenses tornam-se arquétipos de uma realidade
mimetizada pela palavra e poetizada pela memória.
Já no texto “‘Tempo comum’, de Lucinda Persona: um di-
álogo com a tradição literária brasileira”, de autoria de Cristina
Mascarenhas da Silva, podemos contemplar como a poeta cons-
trói, nessa obra, a noção de tempo por meio da subjetividade. O
livro de Persona está dividido em quatro partes, quais sejam: dos
seres, dos objetos, dos lugares e dos sonhos. De acordo com Sil-
va, a poeta ressalta que “o tempo comum litúrgico quanto a obra
de Persona busca a celebração do cotidiano, do trivial, do deta-
lhe”. Promovendo, assim, um profícuo diálogo entre o cânone da
literatura com a literatura mato-grossense, destacando, não obs-
tante, as diferentes esferas da realidade, efêmera e cotidiana.
Para completar nosso itinerário, tem-se por fim o texto de
Gislei Martins de Souza Oliveira, qual seja, “A narradora-Clo-
wn em Herança, de Hilda Magalhães”. A obra de Magalhães é
13
um caleidoscópio, um exercício metanarrativo erudito e singular.
No romance, acompanhamos dois narradores, dois poetas em en-
frentamento, o velho e o novo. Ambos se mantêm na ilusão de
criar ou intervir ou compor as realidades da fantasia proporcio-
nadas pelo carnaval. O carnaval fornece a estrutura ordenadora
dos capítulos da obra e funciona, em diversos níveis, como me-
táfora. É um espaço de transmutação, de experiência catártica:
de origem religiosa e, portanto, de enredamento do místico com
o mundano. E aí tudo é alegoria. Tudo é tensionamento. Nesse
sentido, a festividade carrega um inegável caráter político. Um
instante para a inversão de valores, para a quebra de hierarquias.
É, portanto, libertação, desforra. Para Souza Oliveira, a escritora
mato-grossense agencia “a subjetividade fragmentária que ema-
na do Carnaval” e, desse modo, a “vida monótona tem a possi-
bilidade de ser transformada com a alegria trazida pela festa”.
A linguagem empregada por Magalhães é igualmente alegórica.
Ora, veja, “[...] O ônibus multicolor fauna-flora chega em alarido
efusivo de cores multimil-fauniflórios. Bárbara-banana e Preto-
-cabeça-de-onça entram e sentam-se à frente de dois enormes pa-
litos de fósforo, um virgem, o outro já incendiando”. E, adiante,
“aquele homem-onça, aquelas pessoas bicho-árvores ulalando”
(MAGALHÃES, 1992, p. 32, p. 45 apud OLIVEIRA) Conforme
Souza Oliveira, “outros seres mitológicos são mencionados em
um misto de mascaramento e transmutação identitária que reve-
la o foco narrativo dual assumido pela narradora no decorrer de
Herança” (OLIVEIRA).2
E, com efeito, existe em Magalhães um esforço efetivo de
articulação do universal com o regional, de superação da condi-
ção local. Ao longo do romance, acrescenta a pesquisadora, di-
2
Ver nesta coletânea.
14
versos personagens interagem com a festividade e seus nomes
e características aludem a histórias e clássicos da literatura oci-
dental. Por exemplo, na conversa entre a neta e o avô, Oliveira
vê menções à “Chapeuzinho Vermelho”; a hesitação da bailarina
esquecida e atrapalhada, “O lago dos Cisnes”; mais tarde, é Bea-
triz, que remete à importante personagem de Dante, em “A divi-
na comédia”; em certos momentos, é Sísifo, em outros trechos, é
Pandora. Como em Orfeu da Conceição, o espetáculo teatral es-
crito por Vinicius de Moraes, de 1954, a margem ou a favela re-
veste-se, por um instante, com os mitos de origem dos mares de
além-mar... submetendo, a margem ou a favela, e uma vez mais,
aos inevitáveis processos de transculturação, a mestiçagens. Lo-
go, conclui Oliveira, ao “assumir diversas posições no discurso
literário, a narradora desterritorializa o imaginário localista do
Estado ao introduzir a tópica da identidade voltada a elementos
(mascaramento, mistura, felicidade, tristeza, etc.) que tocam o
ser humano de um modo geral” (OLIVEIRA).
A profusão dos símbolos, notadamente a persistência do
ícone arbóreo, é o que orienta a contribuição de Maria Cleuni-
ce Fantinati da Silva e Elisabeth Battista para esta coleção. Em
“As metáforas poéticas de Luciene Carvalho e Conceição lima:
a representação na busca pela ancestralidade”, Fantinati da Sil-
va e Battista exploram os expedientes poéticos empregados pela
mato-grossense Luciene Carvalho, em Porto, e pela são tomense
Conceição Lima, em A dolorosa raiz do micondó, ambos publi-
cados em 2006, em que a árvore é um emblema simultaneamen-
te afetivo e político. Para as autoras do referido capítulo, “a pre-
sença das árvores é sinônimo de reaproximação entre os sujeitos
da natureza aliando o prosaico ao poético, retomando a ligação
existente desde tempos ancestrais” (SILVA; BATTISTA, 2020,
15
p. 6)3. De fato, seja em Carvalho, seja em Lima, as ramificações
arborícolas desdobram-se como linhas de um conjunto cujo prin-
cípio remonta ao mesmo tronco genealógico, com a partilha de
uma raiz comum, vale dizer, de um mesmo passado desconheci-
do. Existe aí uma forte relação com o tempo. A ânsia pelo preté-
rito – ou por marcas de sua continuidade, encarnadas na metáfora
vegetal – traduz o esforço de constituição de uma história longa-
mente acalentada, mas silenciada, fragmentada pelo agente colo-
nizador moderno. Conforme Silva e Battista, a “falta de vínculo
com os antepassados cria uma forma de despersonalização, pois
o sujeito desconhece suas raízes” (SILVA; BATTISTA, 2020. p.
10). E, sem história, o sujeito carece de identidade.
O resgate de traços de um passado ancestral, portanto, con-
siste não em uma pretensão de retorno ao estado original, de su-
posta pureza então maculada, senão que participa de um empre-
endimento mais amplo de afirmação de uma singularidade defi-
nidora. Caracterizadora, inclusive, de um lento amadurecer pos-
terior, ou seja, de uma definição de si, que por sua vez depende
da articulação e interação com o outro, para assim garantir per-
tencimento e reconhecimento: no passado, no presente e no fu-
turo; em uma família ou em uma comunidade. A árvore, pois, é
interpretada aqui enquanto instância que permanece, enraizada,
em uma paisagem que segue em movimento, em fluxo, em cons-
tante alteração e mudança, uma testemunha da passagem. E, por
sua própria natureza fixa, contrastante com o cenário movente,
proporcionaria “um vínculo com a eternidade” (THOMAS, 2010
[1983], p. 308). Garantindo, então, um futuro que esteja a salvo
do esquecimento.
Do privilégio da memória como substância poética, ao es-
3
Ver o quarto capítulo desta coletânea.
16
forço de captura do tempo e a busca pela identidade em percursos
físicos e afetivos, os capítulos que seguem não apenas articulam
“o variado, completo e complexo quadro da literatura brasileira”
(QUADROS DO COUTO) em especial a mato-grossense, como
a insere decididamente em uma perspectiva universal, cosmopo-
lita, dentro de um mundo que se expande ininterruptamente e não
cessa de alargar-se. Falo, claro, do país de Mato Grosso. Mas,
também, e de maneira ainda mais enfática, do país das mulheres-
-escritoras.
Desejamos a cada um,cada uma experiência de leitura ini-
gualável. Boa aventura!
17
TRANSA:
AS TRANÇAS DO
BALAIO AMARELO
19
Desse modo, procuramos tecer algumas reflexões sobre o
trabalho dessa poetisa delineado em alguns fragmentos de textos
que compõem essa obra, sem, contudo, esgotar as interpretações e
sentidos possíveis de serem descobertos, sentidos e analisados em
cada construção poética. Assim sendo, buscamos compreender,
primeiramente, as bases simbólicas, míticas e arquetípicas que
ajudam a moldar as poesias dessa coletânea e, em seguida, como
as construções estéticas dessa autora guiam o leitor por caminhos
que se cruzam e que revelam a complexa teia que nos forma.
Nesse percurso, os textos de Balaio Amarelo traçam ques-
tionamentos acerca de como o ser humano encontra prazer e so-
frimento em relações dialógicas que se articulam e nos moldam
desde nossos primórdios. Assim, os poemas combinam senti-
mentos ancestrais e dramas característicos da sociedade contem-
porânea numa representação de como se configura a “ópera em
andante” (RIBEIRO, 2016, p. 53), que é a própria vida, e co-
mo na referência ao trecho musical, tem sua execução moderada,
nem muito rápido, nem muito devagar, portanto, não é entregue
a uma lenta ociosidade preguiçosa do passado e tampouco ao rá-
pido frenesi enlouquecido de nossa época, demonstrando, à vista
disso, a singularidade e sabedoria que se manifesta na produção
estética dessa escritora.
• AS TRANÇAS DO BALAIO
20
2015, p. 41), ou seja, o inconsciente coletivo. É do inconscien-
te coletivo que brota o imaginário, que, na concepção de Gil-
bert Durand (2019), seria um conjunto de elementos simbólicos
constituído por imagens, símbolos e arquétipos e, seria, também,
uma atividade transformadora do mundo em busca de ordenança
e aprimoramento.
Marilza Ribeiro parece ter consciência dessas instâncias e
de sua força tanto na representação quanto na compreensão do
mundo que nos rodeia, já que ela deliberadamente se apodera de
construções simbólicas, míticas e manifestações arquetípicas na
elaboração de seus textos. Provavelmente seja por isso que no
primeiro poema, intitulado O balaio, fique claro que: “quem es-
creve criando possui dentro de si/ correntezas de impulsos predo-
minando a arte de tecer signos dos/ mais simples aos mais sofisti-
cados como saídos de uma enorme e/ inexplicável fonte guarda-
da nos abismos de seus canyons” (RIBEIRO, 2016, p. 15, grifo
da autora).
Ao longo dos poemas de Marilza Ribeiro nessa obra, como
nos versos mencionados anteriormente, identificamos um sujeito
lírico que traz a reflexão do próprio fazer poético, ou seja, per-
cebemos que seus poemas, além das reflexões sobre o ser e suas
diversas situações e conflitos, também nos revelam que o ato de
escrever vem das “correntezas de impulsos predominando a arte
de tecer signos” (RIBEIRO, 2016, p. 15), ou seja, nesses versos
o sujeito lírico reconhece que escrever é tecer, o que nos remete
a inúmeros mitos (Ariadne; Penélope, entre tantos outros), que
apontam que esse ato em si é um constante ir e vir, de pensamen-
tos, memórias, vivências. A autora Marilza Ribeiro lança-se fren-
te a esse universo, de tecer, o tecido fino e ao mesmo tempo sútil
da escrita poética, que traz à tona as vivências e experiências de
um sujeito lírico.
21
Ainda podemos observar nesses versos a imagem poética
do abismo e do canyon, ou seja, o ato de escrever é trazer à tona
as experiências, vivências, vozes, que estão no mais recôndito da
alma. Ao mesmo tempo, é olhar para esse abismo, que ao mes-
mo tempo, retorna esse olhar e é capaz de gritar, aquelas vozes
silenciadas, escondidas, que precisam ser ditas e escancaradas. O
balaio, objeto com um grande fundo, como um abismo, que nos
permite guardar inúmeros objetos, representa o próprio momen-
to da escrita, guardamos nesse cesto nossas vivências e dele são
retirados no momento da escrita.
Ou seja, uma representação poética que pode tanto estar
relacionada com o nosso inconsciente coletivo ou com o nosso
imaginário, como destacado no parágrafo anterior. Dessa manei-
ra, a autora direciona o leitor ao contraste de percepções exte-
riores e interiores, ao delicioso desvendamento de nossa “gosto-
sa intimidade/onde brotam/ escritos... narrações...” (RIBEIRO,
2016, p. 101) e muito mais, como podemos encontrar em Alcova
do imaginário:
22
16. dos milênios ou dos esquemas do agora fatos dos
17. fios das memórias alinhavando fragmentos tênues
18. que a memória concorda desvelar.
19. Contos carregando fardos e dores
20. dramas sangrando segredos
21. beijos ardentes viagens por
22. tantos desertos e oásis no
23. entrejogo da criação.
24. Resolvo, depois tão calmamente, desligar-me desses
25. campos oníricos e descansar adormecendo todo meu
26. ser agitado no sono que me devolve a paz
27. no repouso do intervalo.
(RIBEIRO, 2016, p. 101)
23
verso. Há que mencionar que o poema traz algumas imagens da
“carne”, das “pulsões”, da “gostosa intimidade”, isto é, que reve-
lam um sujeito lírico feminino, expresso no poema, em que suas
narrações apontam para um desejo de escrever que é íntima, que
pulsa, que traz à tona as tramas da vida, ligadas a ela, os dramas
da existência, que está na própria carne.
Desse modo, é possível observar que os versos finais nos
apresentam um “intervalo” no qual descansaríamos tranquila-
mente de nossas interações com o mundo exterior, assim, nos re-
fugiaríamos em nossa alcova, nossa intimidade imaginária. Lo-
go, a Alcova do imaginário representaria o espaço onde pode-
ríamos ser tão somente nós mesmos, longe das máscaras e si-
mulacros, representações que tentam dar veracidade a algo que
não é real (BAUDRILLARD, 1991). Nota-se que esses dois ter-
mos aparecem com frequência nos poemas dessa autora e indi-
cam que há um jogo de aparências sociais, de representações bi-
dimensionais da realidade, como diria Jung (2014b) ao se referir
às personas. Essas representações elevam-se da coletividade e,
muitas vezes, preenchem nossas vidas sem que sejamos capazes
de encontrar-nos, verdadeiramente, em meio aos nossos próprios
“perfis” sociais, sobrando-nos, tão somente, pequenos recintos
que nos fornecem breves instantes de descanso, nossos oásis que
nos afugentam de todo o tumulto. Um lugar que parece ser muito
caro à obra dessa escritora como se seus textos impulsionassem
o leitor a buscar um paraíso perdido dentro de si.
No poema em questão, além disso, nos versos iniciais, po-
de-se perceber um tipo de feminilidade, desejante, íntima e cálida
que simbolizaria nosso inconsciente. À vista disso, nosso incons-
ciente seria comparado a um terreno fértil, sem limites, do qual
emergem nossos sonhos mais inexplicáveis, nossas ideias mais
criativas e, também, nossos desejos mais pessoais, como fica im-
24
plícito a partir do verso 12. Assim, poderíamos compreender que
nosso consciente seria nossa parte masculina, pois ela tenta sepa-
rar, dividir e esclarecer tudo à luz de nossa racionalidade e mate-
rialidade. Portanto, supomos que nosso inconsciente “feminino”
se relacionaria com nosso consciente “masculino” diariamente
em nossa construção. Enfim, consciente e inconsciente se entre-
cruzam e relacionam como as tranças que formam o balaio é por
isso que o “entrejogo da criação” (RIBEIRO, 2016, p. 101) apa-
rece no poema como um conglomerado de fardos, dores, dramas,
segredos, beijos e viagens, ou seja, revelando nossa composição
entrelaçada de experiências que se expandem do interior para o
exterior e vice-versa. É nesse momento que a poética de Marilza
Ribeiro se alça ao universal, pois lida com os elementos das vi-
vências humanas, de seus dramas e conflitos. Demonstra a com-
plexidade que envolve o ato de viver, isto é, vivemos em meio
às adversidades, às complexidades, e aos contrapontos. É a par-
tir dessa mesma composição que o sujeito-lírico indica a gênese
literária, ao que nos remete à metapoesia, sugerindo que tal qual
nascemos desse diálogo interior e exterior, é desse movimento
dialógico que a poesia floresce.
Da mesma maneira, é em meio ao entrecruzamento com o
outro que somos forjados, um processo que nos dá prazer e, tam-
bém, dor. É por isso que vários poemas desta coletânea apresen-
tam um tom acentuado de sensualidade e, por que não, de sexua-
lidade, pois essa é a representação materializada de nossos atra-
vessamentos de “enredos, carne e pulsões”, como o próprio po-
ema deixa explícito nos versos 11 e 12: “escritos... narrações...
descrevendo enredos/ carne e pulsões dos meus dilemas tramas”.
Além disso, é o desejo pelo outro que nos leva adiante, me-
taforicamente ou não, afinal, desejamos outros corpos, outras
companhias, outros pensamentos e outras energias sem os quais
25
teríamos uma vida monocromática, insípida e estéril: é a mistura
que dá vida e, principalmente, que dá sabor à vida. Mas também,
é preciso frisar, desejamos outros de nós: melhores, aprimorados,
que nos destaquem ou que nos satisfaçam mais completamente
de alguma maneira e isso coloca-nos em movimento, um movi-
mento constante de aprimoramento e autodescoberta. Assim, não
é difícil perceber que uma de nossas maiores riquezas é o outro,
é o diferente que ajuda em nosso processo de autoformação, já
que é da alteridade que nasce a identidade, como apresentado
nos versos 14 a 18: “mascarados/ inexplicáveis sentidos desenro-
lados pergaminhos/ dos milênios ou dos esquemas do agora fa-
tos dos/ fios das memórias alinhavando fragmentos tênues/ que a
memória concorda desvelar”.
Assim, os versos nos levam não só a refletir sobre nossas vi-
vências, mas também a pensar sobre a construção de nossa identi-
dade, carregada pelas diferenças, ou seja, somos múltiplos, com-
postos de muitos “eus”, que só se constituem em contato com o
outro. Ao mesmo tempo, como mencionado, o outro nos faz so-
frer, nos tira de nosso conforto, nos enlouquece e nos obriga a
esconder nossos instintos e nossos comportamentos socialmente
pouco aceitáveis, atrás de máscaras, como verificamos no texto
Máscaras da carne: “cada um de nós enlouquece sob a escuridão
da máscara/ enquanto a cidade tensa marcha e repete o mito e a
farsa” (RIBEIRO, 2016, p. 27). Nota-se, ainda, nesse fragmento,
o contraponto com o espaço urbano, frenético, tenso, que promo-
ve a repetição quase mecânica de atos, muitas vezes, vazios de
significados, sendo por isso que o “repouso do intervalo” nos é
tão caro e tão íntimo e necessário. A cor da máscara faz lembrar
o conceito junguiano de sombra, ou seja, o lado sombrio da per-
sonalidade, onde está nossa primitividade e tudo aquilo que não
é aprovado pela mente consciente que procura se adequar às nor-
26
mas do convívio social, ou em nossa “rede de enigmas/ masca-
rados” (RIBEIRO, 2016, p. 101). Comumente, é o descompasso
entre o ego e a sombra que provoca o sofrimento que, como re-
tratado em Aparência híbrida, às vezes, encontra atenuante nas
“mágicas pedrinhas-de-sonhar”, ou seja, em medicamentos, pílu-
las que aliviam os “auto-enganos”, os “sensacionais modismos”
e a “frivolidade tristonha” (RIBEIRO, 2016, p. 67).
De uma forma ou de outra, ambos os poemas deixam clara
a necessidade de voltar para um recanto interior e ali encontrar a
paz que nos falta da exterioridade. O próprio título desse poema
já traz uma carga imagética profunda, Aparência híbrida, nunca
somos somente um, somos o composto de nossa multiplicidade,
somos híbridos, somos vários em um só. Manifestamos nossas
interioridades, em diversas aparências.
Assim, nosso “balaio” tem várias tranças: biológicas, histó-
ricas, sociais, transculturais e filogenéticas, como fica delineado,
especialmente, até o verso 24 de Alcova do imaginário e que de-
monstra como nossas imagens emprestadas pelos poetas no ato
da criação aparecem quase sem alterações (CHKLOVSKI, 1976)
ao longo do tempo, afinal, é esse emaranhado complexo e singu-
lar que ajuda a criar nossa versão única, cujos dramas mais ca-
ros e íntimos não são tão diferentes assim em diferentes períodos
históricos.
Nessa perspectiva, poderíamos dizer que é essa constituição
que Marilza Ribeiro manipula tão bem, levando-nos a reflexões
de nossos entrelaçamentos, especialmente no que se refere ao
nosso diálogo com o mundo, à manifestação de nossas personas
e suas relações com o ego e, também, com outrem, e, ainda, acer-
ca dos sentimentos, emoções e pensamentos que brotam dessa
experiência única e intransferível que é viver, descobrir-se e des-
cobrir os “mistérios de Eros – o tecelão dos sonhos” (RIBEIRO,
27
2016, p. 128). Destaca-se que esse ser mitológico só realiza sua
mágica, fazendo-nos voar, quando há um Outro para que possa-
mos vasculhar as nossas (do outro e do eu) intimidades, trançan-
do-as a fim de preencher o vazio do nosso ser e proporcionando
uma experiência que, ainda que passageira, é infinita.
• MÁSCARAS AMARELAS
O BALAIO
[...] quem escreve criando possui dentro de si correntezas
de impulsos predominando a arte de tecer signos dos mais
simples aos mais sofisticados como saídos de uma enorme
e inexplicável fonte guardada nos abismos de seus canyons
com suas grutas, rochas, matas, subterrâneos, perplexida-
des, sustos [...]
(RIBEIRO, 2016, p. 15, grifo da autora).
28
CESTAS E BALAIOS
[...] do nosso íntimo balaio dos secretos embustes ou ajus-
tes que aceitamos em trançar/destrançar/retrançar como
feitos que apreendemos nos ardis dos sentimentos e resga-
tes no instante em que acendemos em nós o poema vivo do
amor.
(RIBEIRO, 2016, p. 17)
29
de ofuscar nosso verdadeiro eu. Logo, uma pergunta parece fir-
memente ecoar das entrelinhas dos textos: quem seríamos sem as
personas que assumimos socialmente?
Assim, na busca por uma resposta minimamente satisfató-
ria, os olhares, as aparências e os espelhos aparecem com frequ-
ência, inclusive nos títulos das poesias, e direcionam o leitor a
um outro olhar, a fazer “caretas/ em nudez pela [de si]” (RIBEI-
RO, 2016, p. 59) e a revelar-se para além das “sombras/ erran-
tes entre a multidão” (RIBEIRO, 2016, p. 50), que vagueia de
um canto ao outro e que não encontra parada, descanso e, por is-
so, “sob véus e máscaras [...] enlouquece!” (RIBEIRO, 2016, p.
100). Desse modo, é possível perceber a redundância simbólica
da máscara nos textos dessa coletânea e, a partir desse objeto, en-
tender um tipo de angústia que paira no ar em cada poema e que
oculta um grito de liberdade e de busca do “eu”, um grito costu-
rado em sílabas, palavras e versos, a fim de servir como “o fio de
Ariadne” (RIBEIRO, 2016, p. 127) para afastar-nos do perigo de
nos perdermos nos labirintos da modernidade que são feitos de
“cartazes/ luminosos a esconder o corpo demente das matrizes”
(RIBEIRO, 2016, p. 50), ou seja, modelos perturbados, enlou-
quecidos e presos para sempre entre as paredes das imposições
sociais. Além disso, a referência mítica parece indicar, no campo
da lógica, a utilização da solução mais óbvia e simples para a elu-
cidação de um problema aparentemente complicado, que, nesse
caso, poderia ser compreendido como a tomada de um novo po-
sicionamento, uma nova atitude, afinal, é uma libertação que de-
pende exclusivamente do indivíduo.
As máscaras que aparecem nas poesias ora ocultam dese-
jos, ora são sinônimo de morte e ora são possibilidades de fuga
e, portanto, são cenas, estágios de um “teatro delirante” (RIBEI-
RO, 2016, p. 49) que é viver, relacionar-se e tentar descobrir al-
30
gum propósito de existir em meio a uma miríade de cores, sabo-
res, texturas, cheiros e formas. Assim, as máscaras são nossas
proteções contra o mundo estranho e exterior, são as criações que
utilizamos para nos situar no espaço e no tempo, entretanto, elas
podem também se transformar em prisões, à medida que vamos
perdendo a capacidade de extrair, de sob a pele das representa-
ções, algo que seja nitidamente puro, original e singular de nos-
sa individualidade, ou seja, algo que devolva o brilho do nosso
olhar, a cor rubra de nossas faces e o carmim de nossos lábios.
Duas cores que, de diferentes formas (vermelho, encarnado, es-
carlate, etc.), aparecem demarcadas na obra da autora como si-
nônimo de vida, de feminilidade, de poder, de erotismo, logo são
cores que evidenciam um ser humano que se sobressai num oce-
ano de faces pálidas e falsas.
O movimento dessas ininterruptas e “ardentes viagens” (RI-
BEIRO, 2016, p. 101) gira a roda de nossa evolução ao longo do
tempo numa contínua altercação de mostrar-se e esconder-se, ato
que na obra é configurado pela própria palavra poética em seu
“avesso sentido”, em suas “formas incertas” (RIBEIRO, 2016,
p. 75) e sua mudez maliciosa que nos ajudam a expandir nossos
conhecimentos sobre o mundo e, principalmente, sobre nós mes-
mos ao nos possibilitar construir realidades que possuem a ver-
dade da própria existência, como afirma Octavio Paz (2015).
Nesse sentido, as palavras, assim como os próprios seres
humanos, revelam suas superfícies, expõem suas formas, mas
omitem sentidos, encobrem e disfarçam significados que se cons-
troem e se mesclam em contextos diversos num processo fértil
de criação que, geralmente, está sempre além daquilo que somos
capazes de explicar. Talvez seja devido a essa característica que
a palavra ganhe status de mágica, capaz de harmonizar e dar or-
dem ao caótico universo que nos habita e, além disso, torna pos-
31
sível desfiar e fragmentar as verdades autoconstruídas ao sabor
dos ventos do tempo. Portanto, são sempre “anúncio de prima-
vera/ sorridente banhando o ar” (RIBEIRO, 2016, p. 101), pois
comunicam a chegada do novo, de uma nova época, de uma no-
va compreensão que nasce dos “rumores [que] ressoam por entre
folhagens/ molhadas pela chuva” (RIBEIRO, 2016, p. 101), ou
seja, dos ecos dos discursos que nos atravessam, umedecidos pe-
la busca curiosa de si entre multidões que servem de adubo para
que nossa semente individual germine e desponte.
Destarte, os poemas semeiam referências culturais, científi-
cas das mais variadas possíveis, que são representadas pelos ru-
mores, pelas folhagens, logo, tanto pelas vozes imateriais quanto
pela “massa” material, palpável e visível que preenchem nosso
cotidiano. Assim, percebemos a tentativa de aumentar o desafio
da exploração do texto, a fim de que os mais variados tipos de
leitor tenham suas experiências de leitura incrementadas, poten-
cializadas, pelos sentidos guardados sob o véu de cada uma das
criações, mas, também, na intertextualidade que transita pelos
textos dessa coletânea e que vão de mitos e lendas às teorias de
pensadores de nossa época. Além disso, fundamentados em Vic-
tor Chklovski (1976), é preciso acrescentar que o procedimento
da arte é justamente, mediante ao trabalho com a forma, construir
obstáculos à percepção imediata e o reconhecimento simplório
do objeto estético.
Esse efeito enriquece as construções estéticas de Marilza
Ribeiro possibilitando à sua obra a capacidade de atingir o mais
variado tipo de público possível, não encontrando limitações etá-
rias ou sociais, assim, poderíamos dizer que essa poetisa pare-
ce agir metaforicamente como uma semeadora passando para os
leitores a tarefa de colher dentre os sinais deixados ao longo do
caminho aqueles que sejam capazes, sem que isso, contudo, des-
32
caracterize a experiência que o leitor incorpora e transforma em
repertório, em referência e em vivência para o poema seguinte.
Afinal, o ato da criação, como diz Salles (1998), é um gesto ina-
cabado, no qual o artista apropria-se da realidade a fim de mol-
dar e transformar o objeto estético que, por sua vez, encontrará
as condições necessárias para se concretizar e florescer na men-
te do leitor.
• CONSIDERAÇÕES FINAIS
33
cionam à transcendência, ou seja, ao atravessamento de um ní-
vel psíquico ao outro (JUNG, 2015). Esse processo só é possí-
vel a partir do diferente, do distanciamento do cômodo e do ha-
bitual e se dá no conflito de nosso ego com um mundo estranho
que se abre a cada dia a dia. É nesse percurso que o ser humano
vai, aos poucos, descobrindo que o mundo não é proporcionado,
repartido e segmentado em isto ou aquilo, em certo ou errado,
em velho e novo. Tudo é uma mistura de elementos heterogêne-
os que orbitam em nosso interior e exterior, e depende de cada
um encontrar o melhor ângulo, mudar de perspectiva, reavaliar
as próprias escolhas, questionar valores e afirmações, especial-
mente as mais convictas e, assim, ser capaz de penetrar outras
realidades que, diga-se de passagem, são sempre ficcionais, afi-
nal, de acordo com Jung (2014a), nossos conceitos, princípios
e explicações para o mundo nada mais são que frutos de nossas
condições apriorísticas de pensamento e de nossas disposições
psíquicas.
É nesse sentido que os poemas desta coletânea revitalizam
nossas convivências com símbolos, representações arquetípicas,
imagens primordiais e personagens míticos que tendem a ener-
gizar nosso contato com as palavras que traçam os caminhos
propostos pela autora e que impulsionam o leitor à tessitura de
sentidos que se dá no interior de cada construção estética. E só
consegue realizar sua mágica quando o leitor se sente estimu-
lado a vasculhar as intimidades da poesia como quem explora
um quebra-cabeças de muitas mil partes e cada uma delas com
muitas dimensões que se compõem e recompõem sob diferen-
tes olhares, fazendo florescer a complexidade e a abundância
multifacetada dos textos que podem ser apreendidos pelo ins-
trumento de elaboração da realidade que é a imaginação (SAL-
LES, 1998).
34
• REFERÊNCIAS
35
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite.
São Paulo: Perspectiva, 2015.
36
O EU E A CIDADE:
MODERNIDADE, ANONIMATO
E SOLIDÃO NOS POEMAS
“METRÓPOLE”, DE MARILZA
RIBEIRO, E “CONFISSÃO”, DE
CHARLES BAUDELAIRE
38
bre a mulher em seu cotidiano. Atuou ainda como facilitadora de
biodança e desenhista. Foi também uma mulher sensível e preo-
cupada com o alcance de suas obras a seus leitores – em 2005 ti-
ve dificuldades para encontrar sua obra completa para realização
de uma pesquisa, a contatei e ela gentilmente enviou-me o arqui-
vo em formato Word de sua antologia poética intitulada Palavras
de mim. Na ocasião, somente solicitou-me que usasse o que pre-
cisasse para minha pesquisa e posteriormente deletasse o arqui-
vo porque ela lançaria o livro ainda naquele ano. Fiquei comovi-
da com tamanha demonstração de gentileza e confiança, tão logo
selecionei os poemas para análise, deletei o arquivo e em 2006,
quando a poeta foi merecidamente homenageada na Literaméri-
ca em Cuiabá, a encontrei e obtive um exemplar da coletânea que
foi devidamente autografado pela poeta.
Neste texto, apresento uma leitura crítica do poema “Me-
trópole”, de Marilza Ribeiro, no qual observo como a poeta ado-
tava uma dicção firme para sua poética e sobre como enxergava
seu tempo de modo a não se furtar a discutir sobre as mazelas so-
ciais. A leitura também tem o escopo de verificar como o eu e a
cidade se encontram numa relação tensiva neste poema e ainda
podem ser observados em outras composições líricas da autora.
Ainda faço um exercício comparativo com o poema “Confissão”,
do poeta simbolista francês Charles Baudelaire, considerado co-
mo o inventor da modernidade – nesta sua composição também
entrevejo uma relação de tensão entre o eu e a cidade.
A partir da leitura de seu corpus literário, constatei que a
poeta transita por uma temática variada em sua criação literária,
mas insiste na tensão entre o eu e a cidade em alguns de seus po-
emas, a exemplo de “Metrópole”. Ribeiro emprega uma dicção
intrigante em seu fazer poético, a qual pode ser observada tanto
39
nos motivos, na forma quanto na construção de imagens descon-
certantes. Em sua primeira obra poética, Meu grito-poemas pa-
ra um tempo de angústia (1973), existe uma preocupação com
o questionamento existencial e, ao mesmo tempo, com a denún-
cia social, a qual é uma constante na produção da poeta.
Em Corpo desnudo (1981), há uma mescla de erotismo e
de crítica social. De acordo com Hilda Gomes Dutra Magalhães
(2001, p. 229): “Nessa poetisa harmonizam-se o sensual e o crí-
tico-social sem nenhuma fratura, mas, pelo contrário, através de
uma unidade raramente conseguida”. Já em sua terceira obra,
Cantos da terra do sol (1996), fundem-se o misticismo, o ero-
tismo, o crítico social e o questionamento existencial.
Na obra de Ribeiro, há inovação de estilo, na estrutura for-
mal e é latente a preocupação com concepção artística. Estava
atenta às concepções estéticas de seu tempo, bem como fazia ex-
perimentos desarranjando os gêneros.
Nos livros Corpo desnudo e Contos da terra do sol, a es-
critora adensou para a prosa poética, a saber, a poesia é expressa
numa linguagem versificada em prosa, os versos são mais longos
– hibridismo de gênero na acepção de Emil Staiger (1993, p. 72):
“[...] cada poesia participa, em maior ou em menor escala de to-
dos os gêneros literários, já que nenhum deles, como a obra artís-
tica baseada na língua, consegue furtar-se totalmente à essência
da linguagem”. Staiger ressalta que não há gêneros puros, e que,
em certa medida, eles se mesclam. Assim, a poesia pode conter
traços da prosa tal como a prosa pode conter traços da poesia. Em
Corpo desnudo há quarenta e quatro poemas, sendo dezessete
deles poesia em prosa, e em Cantos da terra do sol há quarenta
e três poemas, e dezenove deles se inscrevem na característica de
poesia em prosa, a exemplo o poema: “A mulher redeira encanto
e desencanto do tempo...”:
40
A mulher tece a rede.
Laçada por laçada, compõe a textura do objeto-símbolo:
a rede-abrigo para um corpo desconhecido repousar.
A rede é a metáfora da sensual indolência. Marca e envolve
o tempo sagrado
do sonho. (RIBEIRO, 1996, p. 10).
41
Na sequência, passo à análise comparativa dos poemas
“Metrópole” e “Confissão”, nos quais verifico as relações de sen-
tido entre os aspectos de sua constituição poética, gráfica, fônica,
sintática e semântica.
No poema “Metrópole”, Marilza Ribeiro não empregou
uma estrutura formal rígida. No todo, ele se compõe de trinta e
sete versos divididos em quatro estrofes, todas irregulares, obe-
dientes aos preceitos do verso livre e os versos oscilam entre cur-
tos e um pouco mais alongados. Parece-me que, numa tentativa
de criar a imagem irregular da ramagem que contorna o espaço
e simultaneamente cria uma imagem que causa estranheza pelo
emprego de elementos opostos – a natureza coexistindo com os
elementos sólidos que constituem a cena da cidade:
42
enroladas nos fios de aço
da formidável teia
da cidade. (CTS, 32).
43
recurso retórico, expresso no texto pelo uso dos parênteses, co-
mo pode ser observado no excerto acima. Em “Metrópole”, nos
versos 7,10 e 33 há o uso de hífen para demarcar as digressões,
as quais promovem a estrutura linear do discurso, indicando uma
superposição de ideias e sentimentos, assim sugerem o livre flu-
xo de consciência. Por meio desses recursos são demonstrados
os estados de espírito do sujeito poético, no caso de “Confissão”,
um sentimento de nostalgia marcado pela rememoração de um
tempo perdido, de um tempo bom, gravado na alma do eu como
tatuagem. No segundo momento de “Confissão”, o sujeito poéti-
co descreve o menino mesquinho, na verdade narra seu interior,
dá ênfase à sua angústia, à sua dor e seus sentimentos sobre o ser
humano. O que dá margem para o leitor inferir que, na verdade, o
sujeito poético fala de si mesmo, sobre quando era criança, agora
sob sua perspectiva de adulto:
44
passa de uma ilusão, pois os sentimentos negativos, como o ego-
ísmo, sempre serão descobertos.
Nesse sentido, ele elucida que os sentimentos verdadeiros
sempre vêm à tona. Essa denúncia provoca uma reflexão acerca
do caráter dos homens e, ao mesmo tempo, mostra a fragilidade
do ser humano. Depreendemos que os sentimentos do “menino”
de fato não estão totalmente equivocados, mas, por mais que nos
deparemos com situações angustiantes e decepcionantes, ainda
que os homens sejam capazes de gestos grotescos também o são
de gestos sublimes. Estamos num mundo que serve tanto aos ti-
ranos quanto às vítimas.
A poeta emprega poucos sinais de pontuação, dando uma
sequência rápida às ideias, mais próxima da correria da vida mo-
derna, pois, segundo Fernando Paixão, o ritmo mudou, assim
como mudou o ritmo da vida das pessoas. Já Baudelaire utiliza
vários sinais de pontuação no poema “Confissão”, o que deter-
mina uma leitura mais compassada dos versos, que evidencia
um clima de tranquilidade aparente, sugere uma caminhada pe-
las ruas da cidade em ritmo lento, na qual é possível observar
cada acontecimento e simultaneamente retê-los na memória, en-
tretanto, a caminhada é solitária e evidencia o contraste entre o
eu e a cidade.
A poeta dispensa preocupação com as rimas, em todo o po-
ema somente encontramos duas ocorrências de rimas em cada es-
trofe. O mais curioso é que esses pares de rimas são agradáveis
aos ouvidos, mas sob o ponto de vista da razão podem ser consi-
derados inquietantes, a exemplo: “insignificância” e “inconstân-
cia”, encontradas na primeira estrofe, que chama a atenção para
a situação do homem contemporâneo, deixando claro que ele não
possui uma identidade una que, na verdade, é cambiante. O que
45
causa estranheza nos poemas em estudo, trata-se de uma caracte-
rística da poesia moderna:
46
melódico em que há o predomínio de um tom dominante de tu-
multo, de melancólico, de soturno, envolto em brumas e fuma-
ças. Isso cria a figura de uma metrópole caótica, perturbadora,
que evidencia um ruído mudo pautado nas raízes do grotesco, no
qual as personagens envolvidas nesse drama são aparentemente
mudas, em que a ausência de tranquilidade é notória. Há nele o
predomínio de inquietude interior, como nos versos 33, 34, 35,
36, 37 e 38, a última estrofe. O Grotesco, acepção de Vitor Hu-
go, força um olhar do homem para si mesmo, o faz reconhecer a
sua dupla natureza: aquela que é pura e ilibada, e a que é fadada
a erros e vícios, nesse sentido, faz o homem transformar-se, exa-
tamente o caminho que se trava entre essas polaridades.
Em Baudelaire, assim como em Ribeiro, é perceptível uma
preocupação latente com a forma; [...] o misticismo da “arte pe-
la arte” –, a exigência da observação e da fixação impessoal das
coisas; o desejo, em palavra de uma substância mais sólida e
de uma forma mais erudita e mais pura (grifos do autor)” (VA-
LERY, 1999, p. 23). No poema “Confissão” percebe-se esse ri-
gor formal, vale destacar que isso era um traço característico de
seu tempo, do movimento estético ao qual se filiava e comum
entre seus coetâneos. Quanto às rimas, o poema é composto por
versos polirrimos, pois os versos que rimam apresentam mais de
uma rima:
47
correspondência acontece a partir das sílabas tônicas: calma, al-
ma, nova, cova. As rimas são ricas, pois há a utilização de dife-
rentes categorias gramaticais no poema, como adjetivo, pronome
pessoal, substantivo e verbo: calma, meu, alma, morreu. Essa ob-
servação é pertinente à primeira estrofe, mas mantém-se constan-
te em todo o poema. Prevalece a rima grave, feminina composta
por vários substantivos comuns, que dão a ideia de fatos corri-
queiros, mas de onde irrompe algo extraordinário que chama a
atenção do leitor por tratar-se de assuntos de cunho existencial,
da dor de ser e estar no mundo.
A preocupação com a dor existencial de viver é tratada tan-
to no poema “Confissão” quanto em “Metrópole”. A diferença é
que em “Metrópole”, logo na primeira estrofe é possível perce-
ber algo estranho, uma atmosfera sombria na descrição da cidade
feita pelo sujeito poético, o qual assume uma dicção narrativa ao
se enunciar. O primeiro verso se inicia com uma metáfora com-
parativa, logo em seguida, a poeta emprega um recurso retórico,
o enjambement, e separa o substantivo do adjetivo conferindo
uma pausa entre um verso e outro, o que cria uma pluralidade de
leituras no poema. Observa-se que este é um recurso que ocorre
com frequência no poema.
Em “Metrópole” há uma cadeia sonora melancólica com as-
sonância da vogal baixa /a/ e a vogal fechada /o/. Aliteração da
fricativa /f/ formando encontro consonantal no verso: “Os corpos
em frenesi se esfregam e se afagam”. Nesse verso, percebe-se
uma sonoridade fechada que provoca uma sensação de inquieta-
ção, e que também se traduz numa atmosfera obscura, mais evi-
dente nos versos: “Enquanto sombrios becos/Abrigam seus so-
nâmbulos”. Observa-se que a impressão de obscuridade se colo-
ca com mais clareza na seleção dos vocábulos e encontra apoio
nos efeitos sonoros mencionados. Na composição “Confissão”
48
também há uma cadeia sonora melancólica com assonância da
vogal baixa /a/ e a vogal fechada /o/ e as consoantes aliteradas
são: as bilabiais /m/ e /p/, a alveolar /l/ e a linguodental /t/, o que
garante uma oscilação no ritmo enriquecendo a sonoridade do
poema.
O emprego de adjetivos também é bastante comum nos dois
poemas, o que caracteriza os aspectos da existência e conflitos
do eu com o mundo/cidade, espaço no qual se gesticula. Desse
modo, há a exposição dos conflitos das vozes líricas dos poemas.
Verifique esse aspecto primeiramente em “Metrópole”:
E em “Confissão”, os versos:
49
Parece pertinente dizer que isso acontece por causa da vida atro-
pelada das pessoas que vivem no mundo moderno. Isso está mais
evidente no poema de Ribeiro, embora Baudelaire seja conside-
rado o poeta precursor da modernidade, creio que seja a diferen-
ça temporal dos dois escritores.
De acordo com Friedrich (1991, p. 42) Baudelaire concei-
tua o progresso como “decaimento progressivo da alma, predo-
mínio progressivo da matéria”, [...] atrofia do espírito”. Baude-
laire retrata o drama da humanidade e a poeta mato-grossense
também, pois através de sua criação literária ela, tal como o po-
eta francês, expõe a fragmentação e o caos do mundo moderno,
nesse sentido, ambos aproveitam para denunciar a “coisificação”
das pessoas.
É importante destacar que Marilza Ribeiro, tal como o po-
eta, tem uma voz firme e que em sua poesia trata de temas como
conflitos existenciais mesclados à crítica social:
50
que causam choque ao leitor. Na última estrofe, dentre as metá-
foras, há também um processo metonímico no verso 33. A pala-
vra “fumaças”, na verdade, relaciona pessoas que se encontram
num bar, um não lugar, um espaço de passagem com o intuito de
se distraírem momentaneamente de suas mazelas, assim buscam
evasão e escapismo do jugo pesado do cotidiano e da dor exis-
tencial de viver.
No poema, é perceptível um leve tom de erotismo, que po-
de se observar nos versos 15, 16, 17, 18, e 19, em que é feita
uma metáfora por comparação entre meninas e bonecas. Pessoas
transmutadas em seres fabricados, alienadas de si. A estrofe intei-
ra configura-se como uma metáfora sinestética em que é confe-
rido um grau elevado de poeticidade, assim, desperta vários sen-
tidos, o que mais uma vez aproxima o poema de Ribeiro ao de
Baudelaire. Esse era um recurso caro aos simbolistas:
51
derna nas grandes cidades. Ao mesmo tempo provoca no leitor
uma sensação conflituosa, um misto de beleza e terror. Em con-
trapartida, na metrópole de Baudelaire a presença da multidão é
secreta, as ruas estão vazias, ele demonstra o isolamento dos in-
divíduos:
52
cem simbolizar o homem contemporâneo numa época em que
tudo se processa rapidamente, num automatismo compulsivo em
que mesmo essas pessoas estando próximas na verdade estão dis-
tantes umas das outras – a tensão entre o eu e a cidade. No ver-
so 30 verifica-se isso, mesmo que os corpos tenham contato di-
reto uns com os outros na correria diária, nos pontos de ônibus,
nos metrôs, nas ruas movimentadas ninguém faz uma pausa para
conversar com o outro, cada um guarda intimamente seus pro-
blemas, seus medos, fragilidades e incertezas. A palavra “sonâm-
bula” no verso 32 demonstra que ainda que as pessoas estejam
acordadas parecem em estado letárgico, num transe, tão dura é a
carga de seu dia a dia.
Essas imagens relacionadas ao corpo também são encontra-
das em “Confissão”, nos versos 1 e 2 e nos versos 29, 30, 31 e 32.
A diferença é que as de “Metrópole”, como já disse, são de partes
do corpo e as de “Confissão” são do corpo completo.
A última estrofe dos dois poemas demonstra a situação frá-
gil do ser humano, e aponta as misérias e os horrores que o perse-
guem. Embora vivendo em sociedade e tendo contato com seres
da mesma espécie, apresentam-se de forma cada vez mais inter-
nalizada, mais solitária.
Na comparação de dois poetas de tempos distintos, a saber,
a contemporânea Marilza Ribeiro, é o simbolista, Charles Bau-
delaire, depreendo que, mesmo um obedecendo à rigidez formal,
mesmo porque isso era uma característica de seu período, e a ou-
tra escrevendo com liberdade criativa, mas que também segue
uma estética literária de seu tempo, foi possível observar bastan-
te semelhanças em suas criações poéticas, isso no tange a alguns
aspectos tais como: as figuras, os tropos, o tema, além, é claro,
do motivo. No caso dos escritores em questão, os conflitos do ser
humano, sua introspecção, seus medos e dramas.
53
• REFERÊNCIAS
54
ECO, Umberto. Obra aberta. Trad.: Giovanni Cutolo. São Pau-
lo: Perspectiva, 2008.
55
TRINGALI, Dante. A retórica antiga e as outras retóricas: a
retórica como crítica literária. São Paulo: Musa editora, 2014.
56
TEREZA ALBUES E
LINDANOR CELINA
- BERROS E RUPTURAS
58
(romance, 1994); Crônicas intemporais (publicação póstuma em
2003); Para Além dos Anjos: Aquele Moço de Caen (romance,
escrito em 1973, de publicação póstuma, em 2003).
Tereza Albues (1936, Cuiabá, Mato Grosso - 2005, Nova
York), escritora mato-grossense, graduada pela UFRJ em Direito,
Letras e Jornalismo, é autora dos romances: Pedra Canga (Philo-
biblion: Rio de Janeiro, 1987), Chapada da Palma Roxa (Athe-
neu: Rio de Janeiro, 1991), A Travessia dos Sempre Vivos (Cuia-
bá: EdUFMT, 1993), O Berro do Cordeiro em Nova York (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1995), A Dança do Jaguar (Paris:
Editions 00h00, 2001). Tem contos publicados na antologia Na
Margem Esquerda do Rio: Contos de Fim de Século (São Paulo:
Via Lettera, 2002). O conto “Buquê de Línguas”, que, em 1999,
recebeu Menção Honrosa no Concurso de Contos Guimarães Ro-
sa, promovido pela Radio France Internationale, de Paris, dá títu-
lo ao livro póstumo Buquê de Línguas, coletânea publicada pela
Editora Tanta Tinta/Carlini & Caniato, Cuiabá, 2008. É mencio-
nada no livro História da Literatura de Mato Grosso – Séc. XX,
de Hilda Magalhães (Unicen Publicações, 2001); na Enciclopé-
dia de Literatura Brasileira, direção de Afrânio Coutinho e J.
Galante de Souza (Rio de Janeiro: FBN/DNL/Academia Brasi-
leira de Letras, 2001); e no Dicionário Crítico de Escritoras Bra-
sileiras, de Nelly Novaes Coelho (São Paulo: Escrituras, 2002).
Viveu muitos anos de sua vida em Nova York, onde constituiu
família e veio a falecer aos sessenta e nove anos.
Para Luciana Stegagno Picchio, autora da primeira História
da Literatura Brasileira escrita por uma mulher, fora do país, “o
memorialismo sempre foi considerado apanágio da literatura fe-
minina”, cuja escrita seria sempre metafórica, a partir de um ei-
xo ‘vertical’, o ponto de vista de quem fica “parada na sua casa,
lembrando (...)” (PICCHIO, 1997, p. 647).
59
Em oposição à memorialística masculina, de escrita “ho-
rizontal”, sempre metonímica, decorrente das viagens, dos des-
locamentos no tempo e no espaço, essa concepção da memó-
ria na literatura escrita por mulheres estaria “progressivamente
mudando, nivelando-se nas escolhas estéticas como uma con-
sequência da mudança da qualidade da vida” (PICCHIO, 1997,
p. 647).
A historiadora também define alguns critérios que norteiam
a sua explanação a respeito da escrita das mulheres brasileiras,
considerando a reconstrução sob um perfil não “rigorosamente
geracional”, correspondente a “um tempo in progress, isto é, em
mutação”, porque seria impossível reconstruir, até então, “plau-
síveis ‘famílias’ estéticas” (PICCHIO, 1997, p. 648).
Lindanor Celina, Tereza Albues e as respectivas obras aqui
observadas encontram-se, de certa forma, com as considerações
da historiadora italiana, mas pelo viés da distinção, por não esta-
rem, até hoje, destacadas no cânone repetitivo da historiografia
literária brasileira, mesmo sob o suposto distanciamento de um
enfoque estrangeiro.
Se, por um lado, ambas correspondem ao memorialismo as-
sim tipificado, por outro, ultrapassam expressivamente o “eixo
vertical” da escrita feminina a que se refere Luciana Picchio. E
poderiam pertencer à ‘família estética’ da contestação, entre ou-
tras hipóteses.
Do ponto de vista biográfico, um dos traços que aproximam
Lindanor e Tereza é justamente o fato de elas não terem perma-
necido “em sua casa” de origem. Lindanor mudou-se em defini-
tivo para a França e Tereza, da mesma forma, para Nova York.
A simples leitura de Menina que vem de Itaiara, escrito pela
paraense Lindanor Celina, e O Berro do Cordeiro em Nova York,
de autoria da mato-grossense Tereza Albues, aponta a memória
60
enquanto elemento estético literário organizador da narrativa, em
similitude com estudos realizados a respeito das duas escritoras,
individualmente ou comparadas a outras. Porém, não será a me-
morialística o principal traço comum às duas obras.
Considerando o processo criativo de Lindanor Celina, Gu-
temberg A. D. Guerra afirma que:
61
No entanto, apesar da relevância das observações, o analista
não relega Lindanor Celina ao “apanágio da literatura feminina”
apontado por Luciana Picchio (1997). Segue pelos caminhos das
mudanças que o tempo impõe e afirma que os textos da cearense
não são apenas textos memoriais, porque:
62
“capaz de preencher as lacunas provocadas pelo esquecimento e
pela limitação da percepção e da apreensão do vivido pela narra-
dora” (PEREIRA, 2010, s/p).
Por outro, deve-se considerar, em complementação: é justa-
mente na inserção do imaginário que a memória recua e dá lugar
à criação de uma linguagem renovada, ficcional e poderosa no
sentido da instauração do construto estético, alcançado pelos ar-
tistas mais privilegiados em talento e capacidade de trabalho em
áreas tão delicadas.
“A formação da(s) protagonista(s) está entrelaçada às pró-
prias escrituras do eu, tendo como ápice desse processo a autono-
mia da obra de arte em relação a seu criador” (PEREIRA, 2010,
s/p). Esse é um dos sentidos em que a escrita de Tereza Albues
e, no caso do presente estudo, também a escrita de Lindanor Ce-
lina, transcende o memorialismo como “apanágio da literatura
feminina”. As duas romancistas transgridem a condenação para
“sempre metafórica”, extrapolando o “‘eixo vertical’” do ponto
de vista de quem fica ‘parada na sua casa, lembrando’ (...)”. As-
sim, a concepção de Picchio (1997) deixa apenas entreaberta a
passagem do tempo e das transformações ilimitadas da criação
para a escritura feminina brasileira.
As experiências de vida das protagonistas, estruturadas a
partir das respectivas relações familiares e sociais, abrangendo
percursos da infância à vida adulta, são aqui focalizadas em suas
primeiras fases. Esse recorte se impôs pelo fato de que a heroína
de Lindanor Celina, Irene, tem suas lembranças reunidas em uma
trilogia, enquanto Tereza Albues resume em um único livro todas
as fases de sua existência.
Enquanto Menina de Itaiara é um romance estruturado em
níveis ficcionais que vão da narrativa em primeira pessoa à polifo-
nia dos dois livros subsequentes (Memórias do tempo foi e Eram
63
seis assinalados), O Berro do Cordeiro alcança a categoria de ro-
mance de memórias pela linguagem elaborada e pelo plano refle-
xivo e imperativo da narradora, que permanece colada à autora.
No romance Menina que vem de Itaiara tem-se a narrativa
de ficção à qual os estudiosos atribuem base biográfica: a narra-
dora chama-se Irene e o arcabouço literário, que se estende por
uma trilogia, corresponde à vida da autora e ganha brilho, entre
outros aspectos, pela pluralidade de vozes.
O berro do cordeiro em Nova York, em um único volume,
narrado em primeira pessoa, apresenta a trajetória da autora, do
nascimento à vida adulta, em seus percursos pelo país, até a resi-
dência nos Estados Unidos. É o trabalho da linguagem e da estru-
tura não linear da narrativa que leva o texto de Tereza à categoria
de romance e notável obra de arte literária.
Para Gerald Thomas (2005), dramaturgo brasileiro, nova-ior-
quino radicado e amigo da escritora, “seu livro mais conhecido ‘O
Berro do Cordeiro em Nova York’ (não se pode chamá-lo de roman-
ce, apesar de sê-lo: trata-se de uma autobiografia ‘em disfarce’)”.
Ao distanciamento físico alia-se a muito mais importan-
te realização estética alcançada pelas duas escritoras, cada uma
à própria maneira. No entanto, para a proposta de certo modo
comparatista pela qual este pequeno estudo opta, as semelhanças
constituirão os tópicos observados.
Sem dúvidas contestadoras e transgressoras sob muitas óti-
cas, Lindanor Celina e Tereza Albues impõem a evidência de que
não conhecemos o variado, completo e complexo quadro da lite-
ratura brasileira, especialmente no que diz respeito a escritoras, a
mulheres que escrevem.
Alcançando relativo reconhecimento em suas regiões de
origem, ambas permanecem pouco conhecidas para a historio-
grafia nacional, com raras exceções, talvez.
64
As afirmativas de que o memorialismo e a consciência ex-
plícita do ato de escrever estão bem delineados nos dois roman-
ces podem ser identificadas pela leitura mais atenta. Ao mencio-
nar um dos lugares do interior do estado do Pará onde viveu Ire-
ne, a protagonista, Lindanor Celina delimita:
65
da viagem cósmica que o meu espírito rebelde iniciou sem
pedir consentimento (TA, 1995, p. 218).
66
Assim, a característica do fantástico que alinha a ironia da
linguagem de Tereza Albues, aliada à fragmentação da narrativa,
ao fluxo da consciência, imprime ao mapeamento da autobiogra-
fia dissimulada, da história pessoal em desdobramento até o com-
pleto envolvimento ficcional.
A narradora reporta-se ao próprio nascimento, já indicando
a personalidade diferenciada das pessoas comuns: “Minha mãe
me pariu de pé, tanta pressa tinha eu de vir ao mundo” (TA, 1995,
p. 11). “Foi o que Siá Rumânia me disse, nasceste galopando,
corcoveando mesmo, impaciente e rebelde ao comum das coi-
sas” (TA, 1995, p. 218).
O inusitado das imagens quebra o lugar-comum do choro
do recém-nascido para delinear a marca registrada da narradora,
seu impulso irrefreável de viver intensamente, para além das re-
gras e convenções sociais.
Ao narrar a visão com uma das personagens da sua histó-
ria, Benjamim Barbudo, um andarilho que a fascina, o texto de
Tereza fraciona o tempo, passa da curiosidade da infância que a
tudo outorga a névoa do mistério para a vida adulta, com filhos
pequenos e um universo pessoal ampliado pela maturidade e pela
capacidade de compreensão, em poucas linhas. Leva o leitor por
esses extremos, como se, juntos, desfrutássemos de uma brinca-
deira consentida:
67
Contemporâneas, as duas ousadas autoras apresentam em
suas narrativas alguns temas que se destacam pela crítica decla-
rada às estruturas familiares e sociais. Provenientes do interior,
suas trajetórias representam as mulheres brasileiras em geral. Já
as peculiaridades que os leitores encontram nos seus textos apon-
tam para uma aguda consciência diante dos núcleos de repressão
que ainda interferem na vida das mulheres no mundo inteiro, com
nuances, para mais ou para menos, entre países e até continentes
mais desenvolvidos, entre populações mais ricas ou mais pobres.
Encontram-se bem delineados na narrativa os alvos familia-
res e sociais a serem atingidos pela ironia, pelo inconformismo
ou pela indiferença na escrita de Lindanor e Tereza.
A Religião Cristã, respectivamente a Igreja Católica e o Es-
piritismo Kardecista, é um dos alvos a serem identificados no
processo de desmascaramento da repressão. Na ultrapassagem
do controle, a rebeldia alcança os traços da irreverência e da iro-
nia. Logo nas primeiras páginas, Lindanor Celina põe nas pala-
vras de Irene um humor hilariante, disfarçado em inocência, ao
descrever os primeiros contatos da menina com a Igreja, aonde
chega pelas mãos da mãe, em uma sexta-feira santa:
68
porções alarmantes para a mentalidade da pequena cidade, até o
final da trilogia, instigante nesse sentido.
A conversão da mãe de Irene ao espiritismo e a neutralidade
do pai darão à vida religiosa da protagonista uma liberdade ambí-
gua, que a levará a escolhas transgressoras, com desenlaces que
quebram o previsível nessa tradição.
Tereza Albues apresenta, em O berro do cordeiro..., entre
outras passagens de tom semelhante ao que se lê em Menina que
vem de Itaiara, uma releitura bíblica de uma das etapas mais im-
portantes da história cristã, transferindo as tradicionais figuras
da serpente e da maçã para a sua região de origem, devidamente
adaptadas:
69
ga”, após expor o conflito entre os ditos proprietários e as crian-
ças gulosas, tratadas como invasores: “O quê? E desde quando
marmelos silvestres são plantados pela mão humana, têm cer-
tidão de nascimento, pertencem a feudos, burgos, latifúndios?”
(TA, 1995, p. 78).
Como se vê, a “lengalenga” pode levar o leitor muito além
de maçãs e marmelos, e a consciência dos enlaces entre a Igreja
e o poder econômico toma, sutil ou arrebatadoramente, o lugar
da devoção.
Mas a vida religiosa das protagonistas de Lindanor e Tere-
za continua e os relatos chegam ao momento decisivo da primei-
ra comunhão. Aí a rebeldia intensifica-se e as diferenças entre as
abordagens acentuam-se.
O drama de Irene tem, por assim dizer, um sentido ético de
dúvida e insegurança a respeito de sua própria conduta:
70
nenhum”: “Com sapato apertado, podia haver amor ardente a Je-
sus, a ninguém no mundo?” (LC, 1995, p. 77).
Para Tereza Albues a eucaristia também ocorre entre a frus-
tração com as roupas e a insegurança da própria fé. Menina po-
bre, a pequena observadora é precisa: “Levei algum tempo para
perceber por que as outras meninas me olhavam tanto, cochicha-
vam, soltavam risinhos (...). Como se não bastasse ser a menina
mais mal vestida ainda me veio outra constatação atroz” (TA,
1995, p. 60).
A constatação diz respeito à condição de filha de emprega-
dos. As meninas bem vestidas zombam, uma delas identifica as
“criadinhas”. A reação, os sentimentos de ódio e revolta, inade-
quados para a ocasião, atingem a pretendida “compostura”, e o
próprio Cristo é enquadrado: “(...) queria esbofetear a menina ar-
rogante, onde estava o Deus de Amor que não vinha em nossa de-
fesa e dali a pouco entraria no coração das enfatuadas, comoda-
mente instalado desfrutando luxo e riqueza?” (TA, 1995, p. 60).
A narradora classifica o dia como um “suplício” sem fim,
foge para casa sem participar da programação pós-missa, ouve
um sermão da mãe e toma decisões que afetarão sua vida futura.
A educação programada para submeter a vontade e a turbulência
dos temperamentos leva um duro golpe no momento que deveria
ser definitivo.
Para ambas as narradoras protagonistas a crítica à Igreja Ca-
tólica consolida-se nas oposições de caráter religioso e espiritual,
nas escolhas familiares e nas alternativas vislumbradas. A mãe de
Irene filia-se ao espiritismo e a filha a observa. Tereza narra suas
experiências extrassensoriais com seriedade e o irmão converte-
-se ao espiritismo. Percursos semelhantes em diferentes regiões
do país refletem a relevância do papel da religião na sociedade,
a partir das práticas das famílias predominantemente católicas.
71
No entanto, Lindanor e Tereza não contribuem para a manu-
tenção do status quo. Os questionamentos e as transgressões são
contundentes, os fatos narrados são decisivos para a vida das per-
sonagens. Outro pilar familiar e social abatido é a figura paterna.
Os pais, nos dois livros, são personalidades inseguras, instáveis e
frustradas, mas permanecem em seus papéis e arrastam suas fa-
mílias para muitas situações arriscadas.
A família de Irene vive momentos de mudanças radicais, se-
guindo o pai, em busca de um emprego melhor, de condições de
vida mais confortáveis, desde o início da sua história. A mãe é a
mais inconformada: “Falava constante daquela viagem em noite
de breu, deixando, assim tão brusco, o nosso Buritizal para um
incerto lugar” (LC, 1995, p. 9).
Às frequentes promessas do pai de que compraria nova casa
própria, as crianças assistiam à mesma reação:
72
daquele pai fujão, jamais concordei em condená-lo por isso, an-
tes me parecia um herói, embarcado, tão menino, numa canoazi-
nha de nada, noite escura, com uns caboclos mal-encarados, rio
Maritaquara a baixo” (LC, 1995, p. 10).
Tereza passa por situações muito semelhantes quanto à ins-
tabilidade paterna que leva a família a períodos de nomadismo
na região centro-oeste, no então estado de Mato Grosso uno, em
décadas anteriores à divisão política que criou o estado de Mato
Grosso do Sul, em 1977.
73
Sem rotular as autoras nos termos do feminismo, seja qual
for a tendência, é inevitável constatar que as trajetórias pessoais e
profissionais de ambas correspondem aos principais sentidos que
orientaram o movimento que até hoje altera profundamente o pa-
pel das mulheres na sociedade ocidental.
Em uma época em que Lindanor Celina e Tereza Albues
viviam amplas transformações de suas vidas, em planos nacio-
nais e internacionais, na Europa, destino da cearense, os acon-
tecimentos políticos e literários portugueses resultaram em um
livro cuja importância e características mapeiam, indiretamente,
as contribuições existenciais e artísticas de nossas escritoras para
com o universo feminino.
Para as autoras de Novas Cartas Portuguesas, o mito do
‘eterno feminino’ requer uma “oposição tão veemente que não
deixe dúvidas”. Pode-se afirmar que qualquer manifestação es-
tética e/ou política envolvendo mulheres, em qualquer grau de
comprometimento:
74
As autoridades da Igreja Católica na sociedade e do pai no
núcleo familiar são desconstruídas em sua essência, não são me-
ras críticas, arrebatamentos combativos ou refinadas ironias, tão
comuns e brilhantes na história literária brasileira e universal que
é melhor nem começar uma lista que seria demasiado efêmera.
Na escrita de Lindanor o pai protagonizará momentos cru-
ciais da vida da filha, ao longo da trilogia, mas não será uma voz
predominante na orquestração polifônica dos narradores, como
acontecerá com a mãe no último volume, Eram seis assinalados,
entre outras passagens da obra como um todo.
Tereza carregará seu pai insano, em uma mescla de culpa e
compaixão, até deixá-lo em um manicômio, para sempre estag-
nado entre sua memória de menina e seu amor de adulta inserida
em realidades e culturas distantes.
Com certeza uma análise psicanalítica desvendaria muito
mais profundamente a paternidade descrita nos dois romances,
mas aqui se trata de um rápido registro da desconstrução dos es-
tereótipos nos redutos da memória que se reveste de valores es-
tético-literários.
E, especialmente, trata-se da anotação da coincidência de
dois pilares socioculturais em diferentes regiões do Brasil, na
mesma época, exatamente na segunda metade do século vinte. Aí
a história e a sociologia seriam abordagens adequadas.
A uma análise, ainda que rápida, de abordagem teórico-li-
terária, sem dúvida, ainda faltaria, além dos tradicionais compo-
nentes da narrativa, o deslindar da configuração da linguagem,
que aqui permanecerá nas condições de esboço, de desafio.
Entre as muitas características excepcionais da escrita de
Lindanor Celina deve-se destacar a leveza da linearidade no pri-
meiro volume, Menina que vem de Itaiara. É nesse tom que se
identifica o surgimento da imagem figurativa que se impõe a es-
75
tas observações: o vocábulo “berro”, em suas variações até a me-
táfora que dará título ao livro de Tereza, O berro do cordeiro em
Nova York.
Em uma brincadeira infantil, os meninos da vizinhança leva-
ram Irene a confrontar-se com uma “ruindade” deles, a única que
sua lembrança guardou: “ Fui, dei com a caveira de dente e olho ace-
so, e saí aos berros, em tempo de ter um ataque” (LC, 1995, p. 21).
O berro de Irene é trivial, decorre da natural condição da
infância, banha-se no lirismo da memória dos tempos em que a
imaginação comporta a maior força, que será levada para a cria-
ção literária, a ficção, em termos de uma consciência construtora
determinada.
Em Tereza o berro da recém-nascida chega à idade adul-
ta, estrutura-se na condição dramática da posição social de clas-
se, no estágio terceiro-mundista que reverbera e reveste-se do
caráter fantástico de um enredo maravilhoso, entre continentes.
Transcendental, o berro seculariza a aventura da encarnação, en-
gaja-se aos protestos contra todas as injustiças:
Para de berrar que ninguém aguenta mais. Não paro, não sei
de onde saiu esta dor infernal que me atormenta, eu também
não aguento mais, berro. Que Nova York inteira ouça meu
berro, as velhinhas de chapéus floridos convocarão um mee-
ting às pressas pra encontrar uma solução, o problema é gra-
ve (...) (TA, 1995, p. 85).
76
O “filete de voz”, capaz de tessituras pelas quais uma pes-
soa pode dizer-se a outras, que assim aprendem a dizer-se tam-
bém, através do “canto do self”, ou melhor, através das “encan-
tações do self” (LIBOREL, 1998, p. 383). Ou seja, o self corres-
pondendo à memória, as encantações do self à imaginação e à
criação artística.
Como era inevitável, tratando-se do feminino, “o fiar in-
cessante das mulheres (...) foi motivo de inquietação tanto para
os homens quanto para a igreja e a sociedade”. Pensamentos se-
cretos, de caráter sagrado ou profano, manufaturaram sonhos em
que percorriam outros caminhos, até alcançar “outro estatuto so-
cial” (LIBOREL, 1998, p. 383-384).
Lindanor e Tereza inquietaram-se e inquietaram tantos ou-
tros, questionaram e transgrediram tantas regras, um sistema in-
teiro. Miraram suas escritas poderosas contra sustentáculos secu-
lares e abalaram certezas decisivas. Deus, pai e filho, os próprios
genitores perderam o lugar da autoridade diante da plurissignifi-
cação que revestiu as menores lembranças, os fatos mais triviais
e os mais graves. Sapatos apertados, frutos exóticos, empregos,
inconstâncias, saúde mental.
Cada detalhe, por mais despercebido, é arrancado da memó-
ria, as imagens, as figuras da linguagem polissêmica constroem
um ponto de partida irreversível e ilimitado. Lindanor anotou as
lembranças e elaborou, teceu, sobre elas, suas passagens secre-
tas: “As cartas do moço Luizinho, o diploma do Círculo Esoté-
rico, as exclamações de meu pai, eram pontes através das quais
eu ia-me embora, nos devaneios, ia bater em São Paulo” (LC,
1995, p. 25).
Imagens e figuras elaboradas para justificar e permitir a
grande saída, a mudança, a travessia. As notas altas que para os
pais de Tereza não eram mais que obrigação, para ela eram pas-
77
sos seguros rumo à libertação em seus máximos sentidos, “força
conscientizadora” que fez dela “uma combatente aos oito anos”
enxergando tão claro o seu “destino” (TA, 1995, p. 76-77).
• REFERÊNCIAS
78
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-21102010-
123220/pt-br.php. Acesso em: 9 dez. 2021.
79
EFEITOS DE SENTIDO DO
ÉPICO EM A TRAVESSIA
DOS SEMPRE VIVOS,
DE TEREZA ALBUES
Thalita Sampaio
Neste trabalho nos ocupamos da compreensão dos sentidos
articulados em uma obra que coloca em pauta os confins de Ma-
to Grosso. Uma obra que não se ajeita no que é considerado re-
gional, pois ultrapassa essas fronteiras e significa a partir da no-
ção de universal, assim como Moraes (1993, p. 2 apud MAGA-
LHÃES, 2001, p. 18) define, “a obra foge às limitações do na-
tivismo – não é de nenhum lugar; por seu valor, por sua beleza,
pertence à Humanidade, a todos os tempos e a todos os lugares e
será tanto maior quanto mais refletir o universal”. A obra da qual
iremos tratar materializa esse aspecto universal da literatura, en-
quanto arte, por sentidos que se dão a partir de uma memória.
Propomo-nos à compreensão dos sentidos que significam
pela memória discursiva, pela história, pela paráfrase e pela po-
lissemia, materializando sentidos na/pela língua, posta em fun-
cionamento na obra A Travessia dos Sempre Vivos, de Tereza Al-
bues (2019). Para tanto, nos inscrevemos nos pressupostos teóri-
cos da Análise de Discurso, que tem como precursores Pêcheux,
na França, e Orlandi, no Brasil, buscando compreender os modos
pelos quais a língua produz sentidos.
Ao compreendermos a língua por um viés discursivo, nos
inserimos no ambiente das possibilidades de sentidos, uma vez
que pela Análise de Discurso a língua se constitui por uma opa-
cidade, em que não se é possível fixar os sentidos, pois eles estão
à deriva, podendo sempre significar de outra maneira. Todavia,
os sentidos não se dão à revelia, pelo contrário, há uma deter-
minação que atravessa o discurso e faz com que a língua signi-
fique por um já dado. Há sentidos em circulação antes de nós. A
língua se nos configura, assim, como uma materialidade signifi-
cante produtivamente plástica, cujos desdobramentos metafóri-
cos movimentam o que é da ordem do mesmo e que, a partir daí,
pode então emergir algo que é da ordem do diferente. É nesse jo-
81
go entre o mesmo e o diferente que reside a obra A Travessia dos
Sempre Vivos.
A obra conta a história da travessia de Taisha, que sai em
busca de refazer o caminho percorrido por seu avô João Padre,
pelo interior de Mato Grosso, na região de Livramento, uma pe-
quena cidade que está próxima à capital, Cuiabá. A história é per-
meada pelo sobrenatural e narra a busca de Taisha e os feitos do
avô através da travessia. O modo como a narrativa se constrói co-
loca em funcionamento a existência de mais de um narrador, em
que o leitor é capturado para o interior da obra e durante a leitu-
ra se estabelece uma alternância da narrativa em que, ora Taisha
narra, ora João Padre narra, de modo que não há uma separação
estabelecida, ela se constrói na fluidez da leitura, como podemos
ver nos seguintes excertos:
82
A história começa sendo contada por Taisha, na sequência
é tomada pela narração de João Padre, como podemos verificar
no excerto n. 1 e segue no excerto n. 2 com a narração sendo fei-
ta por Taisha. A autora não usa de nenhum recurso de escrita pa-
ra marcar essas posições no texto, é de modo sutil que o leitor é
capturado por um outro narrador. A história se constrói nessa al-
ternância que não é feita de maneira confusa, mas sim, fluida e
sagaz, em que vamos conhecendo o herói João Padre e a traves-
sia de Taisha.
Compreender esse aspecto narrativo da obra é importante
para o que pretendemos neste trabalho, que é olhar de que modo
A Travessia dos Sempre Vivos pode significar como uma epopeia
mato-grossense, pois há sentidos que colocam em funcionamen-
to a memória discursiva e se marcam na obra, que mobilizam
sentidos, produzindo um efeito épico. O livro não se pretende en-
quanto epopeia, porém significa como uma, colocando em jogo
o mesmo e o diferente.
A memória discursiva, para a Análise de Discurso, faz mo-
vimentar todos os sentidos preexistentes que são retomados em
nosso dizer. Segundo Orlandi (2012b, p. 31) “[...] é o que chama-
mos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível
todo dizer”. As formulações que compõem a memória discursiva
do dizer definem o interdiscurso, como vemos:
83
É na formulação linear das palavras, no encadeamento da
língua (intradiscurso) que o interdiscurso (memória) se materiali-
za, em cujas frestas da estrutura nos deparamos com o funciona-
mento da ideologia, do equívoco e da contradição. Desse modo,
pela Análise de Discurso a produção de sentidos se constituirá no
cruzamento entre toda a possibilidade de dizer e o que é dito na
linearidade, cientificamente constituído pelo inter e intradiscurso.
Courtine (1981) e Orlandi (2008) nos mostram esse fun-
cionamento através de dois eixos que se cruzam, o intradiscur-
so, que se constitui na linearidade, no fio discursivo, e o interdis-
curso, que é a memória discursiva que permeia todo dizer, que
se materializa então no intradiscurso. Por isso é retratado a partir
desses eixos que se cruzam, que se atravessam. Assim, as formu-
lações existentes atravessam o “novo”, o aqui, o agora, de modo
a atualizar, dessa memória discursiva, os sentidos. O que justifica
o emprego do termo “atravessamento” ideológico, pois é a mate-
rialização do interdiscurso, atravessando, marcando pela ideolo-
gia, que constitui o fio intradiscursivo. Segundo Pêcheux (2007,
p. 50), a “memória deve ser entendida aqui não no sentido dire-
tamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em
práticas, e da memória construída do historiador”.
Quando nos referimos à história, a concebemos como ali-
cerce para os sentidos que circulam antes de nós, pois somos in-
seridos em um mundo que já significa. Esses sentidos, que estão
aí funcionando pela evidência construída pela ideologia, se mo-
vimentam na possibilidade de significar de outro modo. Assim
define Orlandi (2012, p. 36):
84
siderarmos que todo o funcionamento da linguagem se as-
senta na tensão entre processos parafrásticos e processos
polissêmicos. Os processos parafrásticos são aqueles pelos
quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é,
o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno
aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes for-
mulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do
lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que te-
mos é deslocamento, ruptura de processos de significação.
Ela joga com o equívoco.
85
Vinculamos ao gênero o uso de um passado mítico no qual
se imiscuem acontecimentos de fundo histórico e narrações
fantásticas, que normalmente se ligam ao passado de todo
um povo. Também não é incomum o épico ser relacionado a
narrativas fundacionais de tempos passados. De forma que
o gênero tende a dialogar com farto material tradicional de
forte apelo intertextual.
Para compreendermos melhor essas ligações, tomemos por
referência as obras de Homero, Ilíada e Odisséia, citadas
aqui como exemplo. Essa tradição a que fazemos alusão é o
conjunto de poemas que narram os grandes feitos dos heróis
de um passado grego relacionados aos poemas, contados e
recontados pelos aedos durante séculos. A guerra de Tróia
serviu de argumento a todo um ciclo épico, chamado de “ci-
clo troiano”. A Ilíada em si relata apenas uma pequena par-
te da guerra de Tróia, que teria durado ao todo cerca de dez
anos. Para que tenhamos apenas uma noção de tempo, Pier-
re Carlier nos fornece um dado interessante, pois segundo
seus cálculos a narrativa contida na Ilíada “estende-se ape-
nas por cinqüenta e seis dias”. (CARLIER, 2008, p. 86 apud
GONÇALVES; SOUZA, 2014, p. 18).
86
ficou a me levar até um certo trecho, de lá a senhora segue
viagem a cavalo, meus bois já não aguentam o estirão todo
até o Quilombo, acertado. No caminho ele foi me contando
tantas estórias de sua longa experiência nas estradas, gen-
te, animais, tempestades, almas penadas, mulas sem cabeça,
que nem percebi o avanço do tempo, chegamos no lugar da
separação, montei meu cavalo Veludo, nos despedimos, me
vi sozinha galopando coração mais veloz do que as pernas
do animal ao encontro da legendária mulher que tão perto de
João Padre chegara. (ALBUES, 2019, p. 17).
1
Expressão latina retirada da Arte Poética de Horácio (Semper ad eventum festinat et in me-
dias res non secus ac notas auditorem rapit), que significa literalmente “no meio dos aconte-
cimentos”. Sendo uma característica própria da epopeia, Horácio reconhece na Odisseia e na
Ilíada a interrupção dos acontecimentos. Ou seja, a narração não é relatada no início temporal
da ação, mas a partir de um ponto médio do seu desenvolvimento. Disponível em: https://edtl.
fcsh.unl.pt/encyclopedia/in-medias-res/. Acesso em: 20 jan. 2022.
87
Comeu três pratadas, calado, a mulher respeitando o silên-
cio, quando ele quiser conversar conversa, não é hora de tá
puxando assunto. Deixou a mesa direto para a rede, minutos
depois o ressonar profundo. Ela vigiando não pregou o olho.
Ele dormiu a noite inteira, acordou bem disposto, sorriden-
te, abraçando a mulher, brincando com os filhos. Depois do
quebra-torto chamou Teodora, tantas coisas pra contar, sabe
que noite passada vi papai sorrindo e me abençoando? (AL-
BUES, 2019, p. 72).
88
sem. A construção do personagem João Padre vai ao encontro do
que é necessário para compor um herói épico. Assim como Odis-
seu, João Padre é exaltado por sua nobreza, pela intelectualidade,
pelo caráter elevado, por ser honrado, corajoso, etc. Na seguinte
passagem podemos constatar que há uma exaltação dos perigos
enfrentados por Odisseu, bem como de seu nobre caráter:
89
A partir do discurso fundador do herói épico da Odisseia,
significa também o herói em A travessia dos Sempre Vivos, pois
há um processo simbólico que produz sentidos por um já-dito,
que funciona pela Odisseia como um discurso fundador. Sobre
isso, Orlandi (2003, p. 13) afirma que:
90
sor duma existência que só em espírito se tem a exata di-
mensão do conteúdo.
– Então posso concluir que você o conheceu profundamente?
– Taí o engano. No profundo daquela turbulência quem se
atreveu a mergulhar? Talvez Teodora, sua mulher, a que
chegou mais perto. Ele a conheceu na primeira missa, por
causa dela largou a batina, enfrentou adversidades, sofreu
pressões e revanches de toda natureza. Combatente destemi-
do, defendia com furor e exaltação a liberdade de comandar
sua vida. (ALBUES, 2019, p. 24).
91
tureza, isso através da narração imbricada de Taisha e João Pa-
dre. A obra significa como um discurso fundador de Mato Gros-
so, pois imita com excelência o que por aqui já temos, assim co-
mo determina o conceito mimético de Aristóteles (2005, p. 244):
92
sa tal e qual nas epopeias, mas pela memória discursiva, significa
como uma musa, como podemos verificar nos excertos:
93
ma épico clássico se dirigia. Calíope, musa da eloquência,
dona de bela voz é também considerada musa da epopeia,
é, por isso, uma das presenças mais frequentes nas invoca-
ções épicas.
94
de coda na sílaba, em um jogo sonoro se imbrica: cobra corá e a
personagem Corá: “Cobra corá... Você já botou tento em como ela
anda, toda se requebrando, toda num ziguezague, num remeleixo
de cobra a se arrastar no chão?” (MESQUITA, 2001, p. 8). Assim
produzindo sentidos para a mulher mato-grossense.
No percurso da obra A Travessia do Sempre Vivos podemos
perceber o funcionamento da memória discursiva que coloca em
movimento os sentidos da epopeia. Embora a estrutura da obra
de Albues não esteja nos moldes como determina o gênero épi-
co, por exemplo, não atendendo aos versos poéticos e estando es-
crito em prosa, os sentidos atestam a plasticidade da língua que
vai significando nas brechas, nas possibilidades. Pela Análise de
Discurso há sempre a possibilidade de significar de outra manei-
ra, é assim que os sentidos funcionam em A Travessia dos Sem-
pre Vivos. Isso pois a epopeia diz dos grandes feitos de povo e de
um lugar, por essa memória discursiva, a obra de Albues produz
sentidos sobre e para Mato Grosso.
• REFERÊNCIAS
95
(org.). Grandes Epopeias da Antiguidade e do Medievo. Blu-
menau: Edifurb, 2014.
96
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento.
Tradução: Eni P. Orlandi. 6. ed. Campinas, SP: Pontes Editores,
2012.
97
TEMPO COMUM,
DE LUCINDA PERSONA:
UM DIÁLOGO COM A
TRADIÇÃO LITERÁRIA
BRASILEIRA
99
Mistérios de Cristo, que chamamos Tempo Comum durante
o ano (TEMPESTA, 2016, s/p).
100
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar
nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos en-
tender fundindo texto e contexto numa interpretação dialé-
tica íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que expli-
cava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela
convicção de que a estrutura é virtualmente independente,
se combinam como momentos necessários do processo in-
terpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o so-
cial) importa, não como causa, nem como significado, mas
como elemento que desempenha um certo papel na consti-
tuição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (SOU-
ZA, 2000, p. 6, grifos do autor).
• DOS SERES
101
notório”) as coisas simples, o evangelho cotidiano, o sagrado o
dia a dia.
Por consequência, o seu poema incorpora o título da obra:
102
céltico, figurado pelo ouriço-do-mar fóssil, o ovo cuspido
pelo Kneph egípcio, e até pelo dragão chinês, representam
a produção da manifestação pelo Verbo Outras vezes, o Ho-
mem primordial nasce de um ovo: é o caso de Prajapati, de
Panku. Outros heróis chineses nascem mais tarde de ovos
fecundados pelo Sol, ou do fato de suas mães terem ingerido
ovos de pássaros. Com maior freqüência ainda, o ovo cós-
mico, nascido das águas primordiais, chocado na sua super-
fície (pela gansa Hamsa, da qual se diz, na Índia, que é u Es-
pírito, o Sopro divino), separa-se em dum metades para dar
nascimento ao Céu e a Terra: é a polarização do Andrógino.
Assim o Brahmanda hindu se divide em duas semi-esferas
de ouro e prata; do ovo de Leda nascem os dois Dióscuros,
possuindo cada um seu ornato de cabeça hemisférico; o yin-
-yang chinês, polarização da Unidade primordial, apresenta
um símbolo idêntico em suas duas metades preta e branca.
O ovo primordial do Xintô se divide, da mesma forma, em
uma metade leve (o Céu) e uma metade densa (a Terra). Ibn
al-Walid figura, de modo bastante similar, a Terra, densa co-
mo a gema do ovo coagulada, o Céu. (CHEVALIER; GHE-
ERBRANT, 2015, p. 672).
103
pa por entre a língua e dentes, ensaiando uma espiral, é um som
que desliza.
• DOS OBJETOS
104
Como não repetir nesta manhã
(noventa anos depois do poeta)
que há um tinir de louças de café?
Como não dizer que ainda soam aqueles sinos?
Como não dizer que a vida é
menos que um sopro
na permanência do azul? (PERSONA, 2009, p. 36).
105
bração, é um lembrete da liturgia, relacionado ao título do livro
Tempo Comum.
O tinir das louças e os sinos produzem sons similares, eles
despertam para a vida, por meio de um som trivial e até mesmo
incômodo.
Ao associar a vida ao sopro, que é uma associação comum,
mas dentro do campo fônico, ao pensar que a onomatopeia de so-
pro é um s sibilado, também se pode notar que esse próprio som
está próximo do significado da palavra.
• DOS LUGARES
FLORENÇA, OUTONO
E muito ao longe
fora do campo de minha língua
aos meus olhos se apegaram
algumas folhas de ouro claro
algumas folhas de ouro escuro
106
Ali chegando
de algum lugar do mundo
tropecei desprevenida
numa fórmula melancólica
que estava por terra
em vasta medida
Tudo articulado
num plano de sustentação passivo
Quantas folhas amarelas
em estado de repouso
E até castanho-escuras
E até apodrecidas (PERSONA, 2009, p. 46).
107
signos, seja qual for sua forma de expressão (pictórica, ges-
tual, etc.). (FIORIN, 2008, p. 52).
• DOS SONHOS
108
O poema escolhido foi:
PEDAÇO DO TEMPO
E por último
(depois de todos)
este momento
tão sem forma e tom
De passagem
como o vento
que não vejo por dentro
que não vejo por fora
este momento
tão alheio à vida e à morte
Assemelha-se ao pólen
solto na floresta
este momento
pedaço do tempo
profundamente escondido
em todo lugar
Que trabalho
não posso apanhá-lo
com palavra alguma (PERSONA, 2009, p. 66).
109
• CONCLUSÃO
110
• REFERÊNCIAS
111
MAGRO, Sinara Dal; SILVA, Rosana Rodrigues da. A contem-
plação dos pequenos seres na poética de Lucinda Persona. Revis-
ta Caletroscópio, v. 6, n. 2, jul.-dez. 2018.
112
A NARRADORA
-CLOWN EM HERANÇA,
DE HILDA MAGALHÃES
114
Em face disso, cria personagens que provocam a dialética
entre estruturas vigentes degradadas, incapazes de concre-
tizar os ideais, os conceitos que prega, e um olhar para no-
vas estruturas, ainda em estado de fervura, às quais eles se
acham vinculados. Daí emerge uma ironia refinada, que pro-
põe e ultrapassa o ponto de vista dos personagens, como a
discussão, arrolada na narrativa, que trata das condições de
criação e valorização de literatura, a inventividade e a opção
vigilante, literatura e não-literatura, articulação entre ato es-
tético e ato humano. (REIS, 2008, p. 1).
115
niano de carnavalização para estabelecer o modo pelo qual a obra
de Magalhães almeja elucidar as vozes contrastantes que se har-
monizam na trama romanesca.
De fato, o carnaval constitui uma arena de disputas pelo po-
der na qual vários sujeitos buscam seu “lugar ao sol”. Para Luiz
Felipe Ferreira (2005), o carnaval possui uma estrutura composta
pelas redes de relação entre os sujeitos e os objetos representati-
vos da festividade. Assim sendo, o autor pondera sobre a orga-
nização carnavalesca que, no seu argumento, “[...] gera ininter-
ruptamente (em graus diferentes, de acordo com o caso) incerte-
zas, ambivalências, transgressões e resistências e, portanto, uma
contínua renovação” (FERREIRA, 2005, p. 22). Propondo uma
retomada histórica, Ferreira aponta a existência do diálogo entre
as manifestações de cunho popular e a cultura da elite dominan-
te, já que o carnaval constitui uma festa que amalgama as diver-
sas classes sociais, mesmo que ainda haja um distanciamento en-
tre elas.
Nesse tocante, propomos a seguinte indagação: o que seria,
por sua vez, o carnaval se não a transmutação do eu em Alterida-
de completa? O imaginário do carnaval construído ao longo da
história, principalmente no Brasil, traz a ideia de subversão, já
que possibilita ao sujeito se libertar das amarras da vida cotidia-
na e experimentar outra identidade a partir do ato de se fantasiar.
Muitos veem a festividade como algo profanador, numa espécie
de retomada do mito de Dionísio. O riso e a irreverência presen-
tes no carnaval trazem a convivência dos opostos: eu e Alterida-
de, realidade e fantasia, coletivo e individual, entre outros. Nesse
sentido, verticalizamos Herança, de Hilda Magalhães, a fim de
compreender de que modo a incorporação do carnaval à estrutu-
ra romanesca é construída por meio da ambivalência presente no
foco narrativo. Acreditamos que a narradora da referida obra as-
116
sume o paradoxo constitutivo tanto do espetáculo carnavalesco,
como também da principal figura protagonista do palco circense,
a saber, o clown.
Já no primeiro bloco, intitulado “Área de concentração”, te-
mos a imagem do escritor Machado de Assis que aparece em so-
nho querendo estrangular a personagem alcunhada de novo poe-
ta. Bastante inusitada, a cena vai se desenhando na oposição en-
tre o novo e o velho poeta. Enquanto ao primeiro “pesam-lhe os
livros que não escreveu” (MAGALHÃES, 1992, p. 21), ao ou-
tro “os livros que escreveu, os prêmios que ganhou” (MAGA-
LHÃES, 1992, p. 22). Para essa balança não há equilíbrio, pois
vemos que a narradora constrói uma teia discursiva na qual a
oposição entre as duas concepções de poeta vai se tornando cada
vez mais discrepante.
Ao velho poeta, o tema do reconhecimento vem à tona,
mas somente quando já não mais conseguir levantar-se da cama:
“Mais tarde ainda, quando estiver inerte, os olhos fechados, não
poderá haver mais nenhuma tentativa de poesia. Então os jornais
anunciarão numa coluna de miúdos mais uma vaga de imortal na
Academia” (MAGALHÃES, 1992, p. 27). Sendo assim, a con-
dição atemporal da literatura também é trazida como representa-
ção da historicidade que acompanha o posicionamento do escri-
tor acerca do exercício da profissão na sociedade de seu tempo.
O poeta, ser à margem da sociedade, mesmo debatendo temas re-
levantes para o entendimento da condição humana, não tem vez
ou voz e somente ganha reconhecimento quando o passado se
torna ruínas.
Labor poético e dom também constituem um paradoxo a ser
compreendido na figura do novo poeta: “O poeta aproveita para
fechar as cortinas. Sente fome. Por isso pega o saco de versos e
vai ao açougue e oferece dois quilos de poesia por um pedaço de
117
língua” (MAGALHÃES, 1992, p. 28). O intercâmbio, além de
enfatizar a indigência do artista na sociedade, ainda aponta pa-
ra a função mercadológica da arte que rebaixa o deleite poético
ao mero entretenimento. Se outrora o dom era visto como fator
de criação, agora a atividade poética traz o esmero e a argúcia
do poeta na composição de seu corpus de trabalho. Essa discus-
são desemboca na imagem do indivíduo que diante do marasmo
da televisão tem sua vida interrompida pelo perfilar das escolas
de samba:
118
mento e transmutação identitária que revela o foco narrativo dual
assumido pela narradora no decorrer de Herança.
Tal dualidade encontra-se não somente na figura da narra-
dora, como também na ação mesma do romance que glosa os ca-
racteres díspares do carnaval, permitindo ao sujeito experimentar
a Alteridade sem deixar de ser si mesmo. Assim, acontece com
a personagem Bárbara, que busca vestir sua fantasia carnavales-
ca de “folha-de-bananeira com bananas” enquanto uma criança
ressona em um barraco de favela. Até chegar ao ponto de ônibus,
várias referências são feitas às situações inusitadas que aconte-
cem na favela durante a festividade:
119
cola de samba durante sua apresentação no desfile carnavales-
co: “E, como um milagre, a escola toda irrompe lá no início da
avenida e o mito se refaz. Porque é tempo de emoção” (MAGA-
LHÃES, 1992, p. 35).
O capítulo seguinte recebe o título de “Bloco I – Ô abre alas
que eu quero passar” e apresenta uma epígrafe que trata sobre a
definição do enredo de uma escola de samba. Há, ainda, a pré-
via do que acontece nas arquibancadas do sambódromo, o que
mostra um olhar da narradora que se lança para fora da narrativa.
O espectador, ou mesmo leitor, também participa dos festejos e
todo o processo de metamorfose causado pela festividade carna-
valesca. Aqui a trama ganha uma outra roupagem que trabalha
com um viés memorialístico, pois faz o retorno ao passado da
personagem Cinti brincando com seu papagaio Rabicó.
Observamos o diálogo com a tradição literária no momen-
to em que vem à cena uma conversa de Cinti com o avô como se
fosse a Chapeuzinho Vermelho com o lobo mau. Mais uma vez
observamos o diapasão narrativo quando o avô implora para co-
mer o papagaio, já que tinha fome e, inclusive, havia comido o
gato Goteira. O colóquio entre a neta e o velhinho é bastante in-
teressante e mostra a insistência deste: “Então mato o bichinho
e cozinho com mandioca, minha netinha...” (MAGALHÃES,
1992, p. 41). Em meio a orações, o profano aparece com a defi-
nição do que seria a festa:
120
Sandra-Madalena, tonta em seu rodopio, tentando se situar,
segura com força os dois bastões de aço que lhe servem de
hastes. Cinti repetia o pedido:
– Quero fazer xixi... (MAGALHÃES, 1992, p. 43).
121
quirem certa indistinção e a narradora enfatiza: “o mito se refaz”
(MAGALHÃES, 1992, p. 44). Nessa empreitada, elas acabam
retornando ao lugar de origem e outras figuras aparecem enre-
dadas como em uma aparição: “O asfalto, o cãozinho, o lobo,
Rabicó, o gadame, aquele homem-onça, aquelas pessoas bicho-
-árvores ulalando” (MAGALHÃES, 1992, p. 45). Além dessas,
outra personagem que ressurge é o velho poeta e por ele Sandra
samba e festeja.
O segundo bloco intitula-se “Onde está meu tamborim?” e
compõe-se de duas epígrafes. A primeira, refere-se à descrição da
bateria enquanto a outra cita os nomes de cada sujeito com seu
instrumento. Esse capítulo trata da história de Nice, uma bailari-
na que se atrapalha com os preparativos para a sua apresentação.
A todo o instante, essa personagem procura por suas sapatilhas
sem encontrá-las, o que causa maior desconforto para ela. A de-
mora para o início do balé coaduna com a reflexão que ela faz so-
bre o amor por Raul. Assim, fica evidente também a menção ao
clássico do balé mundial “O lago dos Cisnes”, que foi estreado
pelo teatro Bolshoi em 1877, na Rússia. Mais uma vez é possível
evidenciar o diálogo que a narradora procura estabelecer com a
tradição numa tentativa de alçar o romance a um patamar mais
elevado.
Acreditamos que Magalhães recorra a uma vasta gama de
procedimentos narrativos no intuito de evidenciar o novo lugar
que a literatura produzida em Mato Grosso assumiu a partir do
século XX com a expansão econômica e a integração efetiva do
estado às demais regiões brasileiras. Em Literatura e poder em
Mato Grosso (2002), Magalhães investiga as relações de poder
registradas na literatura do nosso estado na tentativa de elucidar
o itinerário que levou à consolidação dessa manifestação cultu-
ral. Sendo assim, a autora sinaliza de que modo o surgimento de
122
grêmios literários e jornais no começo do século XX foi crucial
para promover o debate em torno da literatura.
Além disso, a pesquisadora destaca como, a partir de 1950,
Mato Grosso foi inserido nos programas de ocupação do cen-
tro-norte do país que, implementados pelo governo de Getúlio
Vargas, recebeu grande contingente de migrantes. Com isso, não
apenas os centros urbanos se expandiram, como também aumen-
tou o número de escolas e universidades. Um ponto delineado
por Magalhães (2002) nessa obra refere-se ao desconhecimen-
to da comunidade acadêmica em relação à produção literária do
estado. Por mais que essa realidade esteja ultrapassada nos dias
atuais, já que as universidades (Unemat e UFMT) e o Instituto
Federal de Mato Grosso (IFMT) trabalharam para reverter esse
quadro, observamos que o conhecimento da literatura produzida
em Mato Grosso ainda está restrito a uma parcela da população
que se compõe de estudantes e universitários.
Magalhães, portanto, além de ser referência na constru-
ção de um repertório de crítica literária no estado, ainda buscou
fazer com que sua produção romanesca, mais especificamente
com a obra Herança, pudesse contribuir para o enriquecimento
das novas tendências de escrita na modernidade. Por esse mo-
tivo, podemos dizer que a autora não buscou tratar apenas de
assuntos limitados à região mato-grossense, mas principalmen-
te de uma tópica quase universal: a subjetividade fragmentária
que emana do carnaval. Isso explica, ainda, o título da obra que
mostra como a nossa literatura também se insere no patrimônio
nacional e que, por sua vez, precisa ser perpetuada pelas gera-
ções vindouras.
Nesse sentido, o terceiro bloco, denominado “Desenredo”,
traz a personagem Luíza com os seus conflitos cotidianos, bem
como outras figuras desconhecidas do leitor: tio Agenor, Paulo,
123
Iracema e Gigi. Todas as cenas são intercaladas com as imagens
alegóricas do carnaval com seus foliões. A vida monótona tem a
possibilidade de ser transformada com a alegria trazida pela fes-
ta e, assim, Luíza tenta escapar dos próprios pensamentos: “Mas,
apesar de tudo, essa sequência de coisas fatais tinha uma alegria
clara, suave e sublime. Viver é assim. E pagamos com a vida, a
aventura de viver” (MAGALHÃES, 1992, p. 60). Muitas são as
reflexões feitas por ela até o porvir com a narração do nascimento
de Iracema, o que enfatiza não somente uma perspectiva genea-
lógica, como também realça a importância da fantasia para esca-
par aos percalços da vida.
O próximo capítulo traz a figura de Beatriz, que encontra
ressonância na personagem de nome homônimo da obra A Divi-
na Comédia, escrita por Dante Alighieri no século XIV. A Bea-
triz de Herança (1992) também encontra em seu caminho admi-
radores de toda sorte, que são denominados pela narradora como
Virgílios. Aqui a narradora encena a epifania de Beatriz com os
seus questionamentos sobre as ações dessa personagem. A passa-
gem final é tão enigmática quanto a própria Beatriz, que se torna-
rá protagonista de si mesma ao deixar o poeta em estado contem-
plativo: “Beatriz não o ouve. A coroa de doze estrelas, a serpen-
te sob os pés, o talhe de esfígie, mulher-mármore, mártir-mãe.
A avenida escorre por todos os lados” (MAGALHÃES, 1992,
p. 68). Mais uma vez, um elemento da festividade carnavalesca
aparece com o objetivo de dinamizar a narrativa.
Os recursos narrativos empregados em Herança (1992)
muito contribuem para o entendimento de que a narradora tema-
tiza ainda a própria ideia de produção ficcional e, consequente-
mente, a crise do ato criativo instaurada na literatura moderna.
Para tanto, retomamos o pensamento de Theodor Adorno (2003),
que trata a respeito da posição do narrador no romance contem-
124
porâneo. O autor acredita que o foco narrativo do romance tradi-
cional sofreu uma transformação profunda que teve como marco
o surgimento da imprensa e os meios da indústria cultural, so-
bretudo o cinema. Adorno também compactua com a perspectiva
benjaminiana de que a perda da experiência na modernidade re-
sultou na desintegração da identidade e, portanto, da narração de
um mundo administrado por uma voz diegética. Desse modo, as
novas formas de narrar criadas por autores como Joyce, Kafka,
Proust, dentre outros, apagaram a ilusão de realidade e renuncia-
ram às convenções da representação.
Com isso, vemos que a própria narradora de Herança
(1992) tem consciência disso ao sempre retomar a figura do poeta
ou, até mesmo, do escritor: “O escritor bate palmas para as suas
crianças, fora ou dentro de uma folha de papel” (MAGALHÃES,
1992, p. 74). A narradora delega a todo o instante o ato narrati-
vo nas mãos do leitor que precisa construir por si só seu percur-
so interpretativo, a fim de unir os diversos estilos entrelaçados
no romance da escritora mato-grossense. Nesse processo de lei-
tura também é preciso mobilizar diferentes fios memorialísticos
não apenas da história de Mato Grosso, mas principalmente da
nacional. Isso pode ser visto na referência aos processos migra-
tórios no momento em que a narradora retoma a infância da per-
sonagem Jovelino na cidade de Santa Mônica, Paraná. Essa refe-
rência encontra-se no bloco quinto, que se intitula “Salve, lindo
pendão da esperança”, no qual a epígrafe mais uma vez descre-
ve duas figuras da festividade carnavalesca, a porta-bandeira e o
mestre-sala.
Contudo, a porta-bandeira da história narrada nesse capí-
tulo é um homem chamado Jovelino, que na escola primária so-
fre com os castigos e opressões da professora e colegas. Sandra
também surge com tanto medo de ser repreendida pela diretora a
125
ponto de nem “poder ao menos respirar” (MAGALHÃES, 1992,
p. 75). Em contraste com essa espécie de ditadura disciplinar, o
carnaval finaliza o capítulo, a fim de propiciar um escape a esse
massacrante cotidiano. Aqui a liberdade torna-se signo e a porta-
bandeira reluz na avenida:
126
Esse fragmento é bastante significativo do processo de tran-
sição que ocorreu no bojo da formação da literatura em Mato
Grosso que, nas palavras de Franceli Aparecida da Silva Mello
(2003), foi marcado por forças progressistas e conservadoras. Is-
so porque, conforme aponta a pesquisadora, não houve uma polí-
tica de fomento e incentivo às artes literárias no estado, que ainda
se debatem com a deficiência dos meios de publicação. Em ou-
tra abordagem crítica, Hilda Magalhães (2001) aponta que houve
um atraso, por assim dizer, para a introdução de novos estilos de
escrita, como o Modernismo, por exemplo, que até meados dos
anos 50 não havia sido incorporado por muitos intelectuais da re-
gião. Então, percebemos que a obra Herança, de algum modo,
resgata uma problemática que esteve no bojo do debate em torno
da produção literária em Mato Grosso.
O décimo segundo capítulo do romance de Magalhães traz a
marchinha de carnaval “Ô abre alas que eu quero passar” e, ain-
da, uma advertência ao leitor para que seja cantada: “O leitor de-
ve imaginar um grande coro, a voz uníssona e uma grande praça
celestial da paz, em paz” (MAGALHÃES, 1992, p. 243). O efei-
to dialógico com o leitor mostra-nos uma posição paternalista da
narradora, que mais uma vez se mascara para encenar um foco
narrativo múltiplo. Já o último bloco, “Gente em apoteose”, re-
toma a querela entre o velho e o novo poeta que, conjuntamente,
irão restaurar o mito dos plurais:
127
dos plurais. Festejar é o destino de todos. O canto, a felici-
dade, é o nosso fim. (MAGALHÃES, 1992, p. 252).
128
Sendo assim, relacionamos o argumento acima com o mo-
do pelo qual Magalhães estrutura a matéria de composição do
romance Herança (1992), trazendo luz à universalidade de con-
ceitos mobilizados pela imagética carnavalesca e que atuam na
construção dos sentidos envoltos na identidade do ser mato-gros-
sense. Ao assumir diversas posições no discurso literário, a nar-
radora desterritorializa o imaginário localista do estado ao intro-
duzir a tópica da identidade voltada a elementos (mascaramen-
to, mistura, felicidade, tristeza, etc.) que tocam o ser humano de
um modo geral. De modo bastante particular, observamos co-
mo a narradora carrega em si a ambiguidade presente na figura
do clown, revelando uma subjetividade fragmentada em virtude
de seu modo de trabalhar a matéria narrada, a saber, a constru-
ção do próprio romance. Com esse recurso, a narradora transita
entre diversos temas que, de uma forma ou de outra, estão atre-
lados à temática maior que seria a diversidade cultural que cir-
cunda a identidade brasileira, como também o lugar do escritor
na sociedade.
• REFERÊNCIAS
129
FERREIRA, Luiz Felipe. Inventando Carnavais: o surgimento
do carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavales-
cas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
130
A METÁFORA ARBÓREA
E A BUSCA PELA
ANCESTRALIDADE NA POESIA
DE LUCIENE CARVALHO
E CONCEIÇÃO LIMA
132
poesia morreu com eles e que não possa adquirir novas formas,
como agora, outras vozes com a contribuição da escrita feminina.
2
Será utilizada, neste estudo, a segunda edição do livro, visto que a primeira edição foi publi-
cada em 2005. Na segunda edição, o livro foi publicado em português e espanhol. A tradução
para o espanhol foi de Adriana Gonçalves e foi adotada por escolas do Chile.
133
xonado de Luciene Carvalho. O povo do Porto continua
sendo povo, que das suas memórias e “dia-a-dia”, fazem
uma projectação do imaginário rumo ao tempo futuro. [...].
(CARVALHO, 2006, p. 17).
134
De acordo com as palavras de Luciene Carvalho, essa ima-
gem refere-se a um carvalho3, e através dessa árvore faz uma
busca da sua representação genealógica. O carvalho faz uma
alusão aos antepassados de seu pai, pois a escritora não tem ne-
nhuma informação sobre a hereditariedade paterna. Os nomes
que cobrem o carvalho pertencem à família materna “Concei-
ção”, exceto o nome de seu pai: Basílio Sales de Carvalho, que
aparece nessa reconstituição desvinculado de seus antecedentes,
porque:
3
Substantivo masculino angiosperma, comum a árvores e arbustos do gên. Quercus, da fam.
das fagáceas, muito cultivados como ornamentais, pela casca, glandes e galhas taníferas, e
pela madeira, ger. dura e pardacenta, us. para diversas finalidades.
135
Minha poesia mora no Porto
Junto a minha ancestralidade.
[...]
(CARVALHO, 2006, p. 35).
136
O lugar de enunciação de Luciene Carvalho, conforme vi-
mos, é, especialmente, o bairro do Porto que, segundo Matos
(2016), é lá que estão as raízes do povoamento e desenvolvimen-
to da cidade de Cuiabá e do estado, por meio de formas e histó-
rias de vidas que ali foram construídas.
A concepção de ancestralidade que permeia a poética luciê-
nica está explícita nos versos “Minha poesia mora no Porto/ jun-
to com minha ancestralidade”. Nesses versos, é perceptível que
Luciene empreende em sua poesia um movimento de afirmação
e de revisão de sua identidade. A voz poética prossegue nessa re-
visão identitária, pois:
[...]
No Porto encontro o rio
Que une mil tempos,
Em quinze mil lugares.
No Porto, encontro sempre,
Sempre novos ares.
(CARVALHO, 2006, p. 35).
137
Quando os navios aportavam, a população se aglomerava
no Cais do Porto, seja para recepcionar os filhos, parentes
e visitantes, mas também para receber a correspondência
acondicionada em malotes. Era uma ocasião de alegria e
de esperança por boas novas, embaladas pelo som da boa
música orquestrada por uma banda. Momento de festa. As
fotografias da época nos revelam a elegância dos trajes
dos viajantes que no Cais desembarcavam. (MIRANDA,
2019, p. 1).
138
A concepção de ancestralidade, aqui fundida a uma espécie
de um itinerário poético por entre árvores e a vida noturna nas
imediações do Porto, à qual a autora recorre para criar a sua obra
poética e aponta para as árvores da praça que entrelaçadas brin-
cam de ciranda. Na perspectiva de Crichyno (2017), a presença
de árvores é sinônimo de reaproximação entre os sujeitos da na-
tureza, aliando o prosaico ao poético, retomando a ligação exis-
tente desde tempos ancestrais. A árvore percepcionada inclui o
olhar particular, realçando o que nela há de mais atrativo, o que
mais sensibiliza o escritor. E nesse olhar ocorrem a sua identifi-
cação e o vínculo com seu lugar poético na paisagem.
A árvore e a poeta mato-grossense mantêm uma relação in-
trínseca, pois assistiram juntas a toda a transformação que o bair-
ro sofreu no processo histórico e permanecem ali, sobrevivem no
tempo. Ao personificar as árvores, firma-se uma parceria entre
seres inanimados e animados que juntos assistiram às transfor-
mações ocorridas no bairro, mas permanecem ali, uma, enquanto
criança, brinca de ciranda e a outra, poetiza. Recorremos à con-
cepção de Fonseca (2018, p. 214), pois:
139
poético busca recursos para a sua poesia é subjetivo, e repleto de
significações que só a memória resgata no tempo. Nos versos do
poema “No Porto” (p. 43), a primeira estrofe apresenta essa rela-
ção entre passado e presente. “No porto/ a praça, as gentes. /Ca-
sarões entrelaçam estórias, / a glória do tempo de um rio”.
O Porto, nesse poema, é personificado e carrega as lembran-
ças com o eu poético acompanhando o movimento no tempo, vis-
to que “Porto medo, / que acorda mais cedo/ p’ra acompanhar a
jornada, /Porto pobre sortudo, /Porto que é dono de nada, /Porto
que é dono de tudo”. A produção poética contida no livro Porto
(2006) revela que esse bairro é muito mais do que um profundo
conhecedor da história de Cuiabá, mas tomou para si o papel de
guardião dessa história, pois no poema “Lindo Lugar” (p. 57) o
eu poético traz consigo os aspectos do espaço focalizado, pois es-
tá impregnado de vivências poéticas:
[...]
Sempre bem cuidadinho,
é tratado com carinho;
tem um corredor de sombras
que, frescas fazem a entrada.
[...]
Esse lugar é uma aula de história,
desperta o melhor de mim.
E tem também suas glórias
No papel de acolhedor:
inda outro dia,
no espaço de semana,
recebeu Dunga Rodrigues
e o nosso Choco Amorim.
(CARVALHO, 2006, p. 57).
140
de observação para configurar-se como uma forma de representa-
ção do discurso poético de Luciene Carvalho. Praticamente todos
os poemas do livro Porto (2006) estabelecem uma relação entre
o espaço focalizado, as memórias e as vivências do eu poético.
141
sa a ser a representação histórica de São Tomé e Príncipe e toda
a sua diversidade, porque:
142
• A PAISAGEM METAFÓRICA NA BUSCA PELA
ANCESTRALIDADE EM CONCEIÇÃO LIMA
5
O micondó, ou imbondeiro, é uma árvore considerada sagrada por muitos povos africanos.
Espécie de baobá, é conhecida como árvore da vida, devido à sua incrível longevidade, que
chega a seis mil anos.
143
garem ao Arquipélago, em 1470, João de Santarém e Pedro
Escobar, mas resistiu através dos séculos.
144
A retomada do micondó traz uma significação de resistência do
povo santomense, visto que famílias inteiras foram desintegradas
de seus núcleos familiares cortando, assim, as raízes, os vínculos
de inúmeras gerações resultando numa sensível perda identitária
porque, no período da colonização:
145
Em Libreville7
Não descobri a aldeia de meu primeiro avô.
7
Capital e a maior cidade do Gabão, oficialmente República Gabonesa - África.
146
A viagem em busca dos antepassados não corresponde às
expectativas do eu- poético, pois, na página 14, afirma que “não
encontrou em Libreville o caminho para a aldeia de Juffure8”. E
poetiza o desencontro com suas raízes na estrofe composta por
um único verso: “Perdi-me na linearidade das fronteiras”. A es-
trutura da estrofe composta por um único verso revela que o eu
poético está só e desvinculado da sua árvore genealógica. Em se-
guida remete-se aos griots:
E os velhos griots9/
os velhos que detinham os segredos/
de ontem e de antes de ontem/
[...]
partiram levando a raiz do micondó/
partiram
levando nos olhos o horror
e a luz da sua verdade e das suas palavras.
(LIMA, 2006, p. 14).
147
va, “Toma o ventre da terra/ e planta no pedaço que te cabe/ esta
raiz enxertada de epitáfios”. A poeta toma como ponto de parti-
da a raiz enxertada pela dor e sofrimento para ser plantada. Cada
santomense deve fazer a sua parte e, desse modo, reconstruir a
nação. O desejo de semear a terra mãe também se manifesta no
poema “Soya” (p. 67). Logo nos dois primeiros versos carrega-
dos de esperança, pois “Há de nascer de novo o micondó – belo,
imperfeito, no centro do quintal”. Micondó é uma árvore consi-
derada sagrada para o povo de São Tomé e Príncipe e representa
na poética de Lima uma metáfora para a busca de suas origens.
Segundo Mata (2006, p. 250):
148
• CONSIDERAÇÕES FINAIS
149
São Tomé e Príncipe, resultante da opressão colonial. Ao poeti-
zar o micondó, metaforicamente, convida o povo para resgatar as
origens, ou seja, é preciso retornar a casa para reconstruir a his-
tória da nação e munir-se de esperança e anseios para as trans-
formações.
As poetas Luciene Carvalho e Conceição Lima comungam
das lembranças para escreverem suas poesias. A voz poética ma-
to-grossense sente-se desvinculada de sua hereditariedade pater-
na, mas seus poemas não clamam pela busca desses antepassa-
dos. Apenas a imagem da árvore genealógica reflete a ausência
da ancestralidade paterna. Entretanto, ao marcar a falta desse elo,
fica implícita a esperança de encontrar as origens dos Carvalhos.
Por outro lado, Conceição Lima projeta encontrar suas raízes e
faz o mesmo percurso de Alex Haley. Entretanto, não consegue
reconstituir sua ancestralidade.
A busca pela memória é o ponto unificador de encontro en-
tre as vozes enunciadoras das poetas. Revestidas de suas lem-
branças as poetas buscam a construção da história de seus es-
paços firmando-se na metafórica força imagética dos arbóreos.
Enquanto a poesia de Conceição Lima lança semente na terra de
São Tomé e Príncipe, Luciene Carvalho contempla as transfor-
mações do Porto e rememora a história plantada no “Lindo Lu-
gar”, pois lá tem uma linda Cuiabá e, também, suas transforma-
ções cotidianas.
O ponto de partida na busca pela ancestralidade em Concei-
ção Lima é a elaboração da metáfora do micondó pela voz poé-
tica. Enquanto Luciene Carvalho traz imagens de árvores perso-
nificadas que poetizam sincronicamente a história de um bairro,
visto que o carvalho genealógico faz apenas alusão à busca pelas
raízes paternas e aparentemente desvinculada dos poemas.
150
• REFERÊNCIAS
151
LIMA, Conceição. A Dolorosa Raiz do Micondó. Lisboa: Edi-
torial Caminho, 2006.
152
so/cuiaba/a-historia-de-cuiaba-passa-pelo-porto/. Acesso em: 11
jun. 2020.
153
SOBRE OS AUTORES
Elisabeth Battista
Docente da pós-graduação Stricto Sensu - Mestrado e Doutorado
- em Estudos Literários (PPGEL), da Universidade do Estado de
Mato Grosso (Unemat), Campus Universitário de Cáceres “Jane
Vanini”. E-mail: [email protected]
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Maria Cleunice Fantinati da Silva
Doutoranda do PPGEL - Estudos Literários. Unemat- Tanga-
rá da Serra. Professora IFMT- Língua Portuguesa e Literatura/
Espanhol - Campus Avançado Tangará da Serra- MT. E-mail:
[email protected].
Thalita Sampaio
Doutora em Linguística e professora da Universidade do Estado
de Mato Grosso - Unemat.
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