Análise Do Poema Acordando de Antero de Quental

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Análise do Poema «Acordando» de Antero

de Quental»
ACORDANDO
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer, esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,


Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das coisas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...

Mas, de repente, um vento húmido e frio


Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda - A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como dantes, a meu lado...


Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!

No poema “Acordando”, de Antero de Quental, “é nítida a


oposiçãoSonho/Realidade, que constitui precisamente o tema do poema. Na verdade,
estes dois aspetos estão perfeitamente delimitados no texto, estando
o Sonho expresso nas quadras e a Realidade nos tercetos. Assim, poderemos
distinguir dois momentos neste soneto:

- o primeiro, correspondente às duas primeiras estrofes, onde o poeta manifesta


o desejo de se evadir da realidade, que lhe provoca sofrimento, através do sonho;

- o segundo, constituído pelos dois tercetos, iniciado pela conjunção


coordenativa adversativa "Mas" que marca, precisamente, a oposição ao sonho do
qual o sujeito poético desperta em consequência da ação do vento que o leva
novamente para a realidade fria, desconfortável e desoladora.

A oposição entre o sonho e a realidade é precisamente o tema do soneto


"Acordando", composto, como é de lei, por duas quadras e dois tercetos, com o
esquema rimático abba, ccd, eed, de versos decassílabos interpolados (a a, d d) e
emparelhados (bb, cc, ee). O sonho está expresso sobretudo nas quadras – primeiro
momento -, através de vocabulário de carácter positivo: “o sonhar quebranta...”, "a
cotovia", "Céu", "canta", "luz", "alvorada", "estrela", "dia", "enlevo", "alegria" e "amor".
Sente-se a atração, a magia que este conjunto semântico de felicidade exerce sobre o
sujeito poético.

Com efeito, é através do sonho que o Poeta se eleva para o "Céu", para o ideal,
aquele mundo perfeito que Platão soube expor em textos ainda sedutores e
identificados com o desejo do "Bem Absoluto", aspiração que mora na alma de cada
ser humano. Comparando-se a uma cotovia, é embalado pelo canto desta ave: a
repetição do verbo "subir" e do verbo "cantar" acentua essa evasão para o paraíso do
sonho. De realçar o gerúndio "cantando" a sugerir a permanência do canto/sonho, e
ainda a expressividade da substância fónica dos versos 3 e 4 realizada, quer pelas
leves aliterações /c/, /t/, /s/, quer pelo tom nasal, quer pela repetição da vogal /i/. Nesta
quadra, encontra-se já claramente definida a oposição entre o sonho e a realidade. Há
dois campos semânticos opostos: sofrer, agonia", cotovia, Céu.

A rima explicita também esta oposição: quebranta/canta, agonia/cotovia. O


entusiasmo, a magia do canto é muito mais evidente na segunda quadra. Na verdade,
o verbo cantar, repetido anaforicamente, dá O tom a todo um discurso embalador, feito
sobretudo da enumeração assindética de muitos elementos, todos eles apelando para
um mundo pleno de alegria. A rima entre santa e alevanta, dia e alegria, o vocabulário
positivo, luminoso, a pontuação suspensiva, a construção paralelística (vv. 5-6, 7-8)
são aspetos bem sugestivos de que no mundo do sonho paira um mar de felicidade.
Todavia, nos versos 1 e 2, há um indício claro de que o sonho é passageiro e a
realidade persiste: "às vezes, se o sonhar quebranta/Este meu vão sofrer, esta
agonia". É essa realidade que se instala no primeiro terceto e no primeiro verso do
segundo terceto - segundo momento do texto.

A adversativa "Mas" impõe uma oposição. Por isso, o discurso regressa à


realidade, trazendo para o texto todo um vocabulário negativo: "vento húmido e frio",
"um calafrio", "A noite é negra e muda", "a dor", recupera-se o vocabulário dos versos
1 e 2 da primeira quadra, numa circularidade simbólica, a sugerir o eterno retorno à
realidade cruel.

Personificando o vento, caracterizado pelo duplo adjetivo "húmido" e "frio", faz


dele o elemento destruidor do mundo onírico: "Sopra sobre o meu sonho", que acorda,
em calafrio, o Poeta. Repare-se no travessão como divisória, afastando o sonho e
impondo a crueldade da realidade: "A noite é negra e muda". As palavras de sentido
negativo, a aliteração do som nasal [ n ] e [m], a dupla adjetivação, tudo se agrupa
num campo semântico para criar a relação antitética entre dia e noite,
sonho e realidade.

Em consequência, nova realidade antitética se gera: a alegria e a dor. Já não há


canto, já não há aves, já não há luz, já não 'há amor; só a dor aparece vigilante. O
encavalgamento estrófico é elucidativo do estado de tristeza que avassala a realidade.
O verbo "velar", do campo semântico da vigilância, que não pode permitir evasões,
impõe a dor, personificada, feita companheira inseparável do sujeito poético.
Compreende-se a expressividade do título "Acordando", um gerúndio, a sugerir a
dificuldade do abandono do sonho e da entrada na realidade.
m sinal de honestidade, o sujeito poético não deixa de, num terceiro momento, se
dirigir em apóstrofe ao seu destinatário "anjo adorado", lembrando-lhe que os seus
cantos – os seus poemas - são "sonho só" e nada mais. Ele sonha o "seu amor". Nova
circularidade a ressaltar que a passagem do mundo real ao mundo irreal se faz "às
vezes", mas a realidade acaba sempre por se impor.

Poema belo, simples e dramático. Vocabulário fácil e expressivo, realidade


dramática: o "eu" não consegue libertar-se do mundo real, que o oprime.

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