(1111111) A Civilização Bizantina
(1111111) A Civilização Bizantina
(1111111) A Civilização Bizantina
RUNCIMAN
A CIVILIZAÇÃO BIZANTINA
ZAHAR EDITÔRES
RIO DE JANEIRO
Titulo Original:
BYZANTINE CIVILIZATION
capa de Érico
1961
ZAHAR EDITORES
B. Z. ” Byzantinische Zeitschrift.
H. Z. ” Historische Zeitschrift.
As datas e locais de edição dos vários livros citados podem ser encontrados nas
bibliografias acima mencionadas.
I. A FUNDAÇÃO DE
CONSTANTINOPLA
A cidade de Bizâncio foi fundada por marinheiros de Mégara no ano 657 a. C.,
num dos extremos da Europa, onde o Bósforo se abre para o Mar de Marmara.
Esse litoral não era desconhecido dos colonizadores gregos. Uns poucos anos
antes, outros megáricos haviam fundado a cidade de Calcedônia, na margem
asiática oposta, tornando-se proverbialmente conhecidos pela cegueira de não
perceber que o melhor local estava do outro lado do mar. Mesmo assim,
Calcedônia dispunha de vantagens que poucas cidades do Bósforo, em sua
situação, possuíam.
Calcedônia não está mal colocada, mas mesmo assim seus fundadores foram
curiosa mente cegos, pois a costa europeia dispunha de uma vantagem que
faltava à oriental. No ponto em que as águas do Bósforo passam para o Marmara
estende-se para o noroeste uma soberba baía de uns onze quilômetros de
extensão, curva como uma foice ou um chifre, e conhecida na História como o
Chifre de Ouro. Entre ela e o Marmara fica um promontório montanhoso, na
forma aproximada de um triângulo isósceles, cujo vértice rombudo está voltado
para a Ásia. Uma cidade fundada sobre tal promontório não só estaria provida de
um porto natural, onde uma grande armada poderia abrigar-se em perfeita
segurança, como também protegida pelo mar por quase todos os lados. A única
desvantagem era o clima. Durante todo o inverno e a primavera um vento norte
quase incessante sopra do Mar Negro, vindo das estepes geladas, enregelando o
colono habituado aos vales abrigados da Grécia e contrastando excessivamente
com os cálidos verões que so seguem. E esse vento norte, combinado com a forte
corrente do Bósforo no rumo sul, frequentemente impedia que os navios a vela
contornassem a ponta e chegassem ao Chifre de Ouro.
Foi possivelmente o clima que impediu Bizâncio de se tornar, por quase mil
anos, uma grande cidade. Além disso, nos grandes dias da Grécia, era mais fácil
e mais seguro para os mercadores asiáticos, devido ao estado bárbaro da Trácia,
passar à Europa através de Esmirna ou Éfeso. Sua importância como fortaleza,
porém, foi logo compreendida. Na guerra do Peloponeso foi louvada por sua
posição de comando sobre a entrada do Mar Negro, em cuja margem norte
estavam as plantações de cereais onde Atenas se alimentava. Filipe da
Macedônia e seu filho Alexandre reconheceram nela a principal porta para a
Ásia. Os imperadores romanos chegaram a considerar sua força estratégica como
uma ameaça. Vespasiano revogou seus privilégios; Severo, a cujas tropas resistiu
durante dois anos em defesa da causa perdida de Pescênio Niger, desmontou
todas as suas fortificações- Caracala, porém, reconstruiu-as. Galieno seguiu o
exemplo de Severo, e em consequência os piratas godos puderam velejar
impunemente pelos Estreitos, até o Egeu. Diocleciano foi, por isso, obrigado a
levantar as muralhas mais uma vez. Sua potencialidade total como fortaleza,
porém, não foi descoberta senão na segunda Guerra Licínia, de 322-3, quando
Licínio transformou-a no centro de toda sua campanha contra Constantino.
Licínio foi arruinado pela perda de sua frota no Helesponto, e seu exército caiu
finalmente em Crisópole; após sua rendição, não era necessário que a fortaleza
continuasse a resistir. A estratégia de Licínio foi observada por seu grande
adversário — Constantino viu possibilidades ainda maiores em Bizâncio. Mal
acabara a guerra e o imperador já levava arquitetos e agrimensores a visitar a
cidade e seus arredores, e as operações de construção tiveram início.
O ano 330 é a melhor data para tomar como ponto de partida da história
bizantina (1). Mas a fundação de Constantinopla, embora a mais importante, foi
apenas uma das reformas e modificações que já haviam começado a transformar
gradualmente o império pagão de Roma naquilo que chamamos de Império
Bizantino. Ao término do século III A. D., o Império Romano ressentia-se da
necessidade de reformas. Não é este o momento de contar detalhadamente as
causas do desmoronamento do velho mundo romano (2). De uma forma
resumida, podemos dizer que elas foram principalmente o caos e a tibieza
administrativa e financeira, o poder excessivo nas mãos de soldados ambiciosos,
e uma nova série de perigos nas fronteiras. Roma havia conquistado seu império
territorial graças a um permanente senso de oportunidade. A província capturada
era pacificada o mais depressa possível, com a permissão de conservar muitos
dos direitos e costumes locais. Consequentemente, cada província demandava
um tipo diferente de administração. O estado em que se encontrava o governo
central aumentava tal diversidade. A Diarquia, tão anunciada por Augusto, e na
qual o Senado participava da soberania com o imperador e governava totalmente
certas províncias, apenas contribuiu para aumentar a confusão sem se constituir
num controle eficiente do poder do imperador. As finanças refletiam essa
desordem. Os impostos eram altos, mas variados e irregulares, e uma
considerável parte deles permanecia nas mãos dos cidadãos que compravam ao
governo o direito de recolhê-los. A riqueza tinha uma distribuição muito
desigual. Os milionários eram ainda numerosos, ao passo que províncias inteiras
mergulhavam na pobreza. O império vinha, além de tudo, sofrendo há muito de
uma posição adversa nas trocas comerciais. Já na época de Plínio as importações
da Índia excediam as exportações, anualmente, em cerca de 600.000 libras
esterlinas, e a desvantagem, com relação à China, era de 100.000 libras. Essa
deficiência não foi corrigida nunca. Durante o início do império, as emissões
imperiais se foram depreciando gradualmente, e a partir do reino de Caracala a
queda de valor foi rápida, até que, finalmente, só as moedas de cobre não
continham ligas, ao passo que as de prata chegaram a consistir de apenas 2%
desse metal.
A única força realmente existente estava com os chefes do Exército. Roma não
podia viver sem suas legiões. Eram longas as fronteiras a guardar, necessária a
polícia nas províncias cuja rebeldia natural se inflamava pela exploração
econômica. Todos os governadores das grandes províncias tinham uma legião à
sua disposição e por vezes comandavam até mesmo exércitos maiores. Isso não
teria sido, talvez, perigoso, se existisse um governo central forte e uma norma de
sucessão fixa para o império. Poucas dinastias imperiais, porém, chegaram
sequer à terceira geração. O trono era, cada vez mais o prêmio a ser conquistado
pelo chefe militar mais forte, pelos generais ambiciosos que abundavam.
Durante o século III havia quase que invariavelmente alguma província nas
mãos de um usurpador e, na prática, o império dificilmente poderia ser
considerado como uma comunidade unida.
A desordem tornou-se muito mais séria no século III pelas novas pressões
surgidas nas fronteiras. Desde os primeiros dias do Império, a fronteira asiática,
que ia da Armênia à Arábia, suscitava problemas relativamente pequenos. O
reino parto dos Arsácidas entrara em lento declínio. Mas no início do século III
uma nova dinastia surgira na Pérsia, a dos Sassânidas, popular, nacionalista e
zoroastriana, que durante quatro séculos seria inimiga agressiva dos romanos. Os
Sassânidas derrotaram quatro imperadores no século III, chegando mesmo a
aprisionar o Imperador Valeriano. Sua força parecia crescer de ano para ano. Ao
mesmo tempo, a fronteira europeia necessitava de vigilância adicional. Desde os
dias de César, o governador da Gália tinha a seu cargo uma tarefa árdua, a de
guardar a fronteira do Reno contra as prolíficas tribos da Alemanha Ocidental,
que ansiavam por libertar-se de suas florestas constrangedoras. A pressão agora,
porém, era no Danúbio. Tribos da Alemanha Oriental, os godos em particular,
instalavam-se nas margens fronteiras, e qualquer novo movimento ou migração
nas Estepes provavelmente as incitara a atravessar o rio. O problema godo
constituía claramente uma ameaça e, apesar dos esforços de imperadores como
Cláudio II, não mostrava sinais de qualquer solução.
Em seu avanço gradual, o cristianismo foi sem dúvida auxiliado pela lenda de
seus santos e de seus comprovados milagres, pois aquela época era de
superstições, A idade da razão augustiniana teve vida curta. Os homens
voltavam a falar dos feitos maravilhosos de Apolônio de Tiana e acreditavam em
histórias com as que Apuleu narrara. A previsão do futuro e a magia tinham
grande desenvolvimento. A demonologia elevou-se a ciência. Todas as
superstições que fizeram da civilização bizantina objeto de ridículo para os
historiadores do século XVIII vieram dessa época do velho império, embora
muitas outras, ainda pagãs, tivessem sido transferidas para a Igreja Cristã. Até a
filosofia seguiu a tendência popular, No Ocidente, o estoicismo conseguiu
produzir Marco Aurélio antes de desaparecer, mas no Oriente já há algum tempo
apenas o neoplatonismo mantinha sua vitalidade. Nas mãos de Porfírio e
Jâmblico, o neoplatonismo recebia influxos de taumaturgia e magia, e de um
politeísmo geral. Na verdade, os ensinamentos dos apóstolos cristãos estavam
provavelmente mais próximos do platonismo do que as doutrinas criadas nas
escolas dos filósofos.
No ano 284 o poder imperial passou às mãos do primeiro grande estadista que
Roma produziu desde Augusto — Diocleciano, nascido na Ilíria. Tinha ele plena
consciência da situação do império e dedicou seu reinado a um programa de
reformas de longo alcance. Suas principais intenções eram a de centralizar e
introduzir uniformidade na administração, colocar o exército sob o controle do
governo, restaurar a situação financeira pela estabilizarão da moeda e consolidar
essa obra elevando a posição do imperador.
A tentativa de estabilizar a moeda teve menor êxito: foi impossível fazê-la voltar
à posição que desfrutara sob Augusto. As várias tentativas, feitas por
Diocleciano, de emitir uma moeda integral levou por fim, para sua surpresa, a
uma elevação dos preços. Para contrabalançar isso, o imperador promulgou o
famoso decreto de 301, que fixava os preços de todas as mercadorias. O decreto
não teve êxito, e coube a Constantino estabilizar a moeda do império numa base
permanente.
Mas havia uma grande parte da comunidade que não podia dar aos imperadores
a adoração que exigiam. Os cristãos, com sua distinção clara entre o que era de
César e o que era de Deus, portavam-se como bons cidadãos enquanto não
fossem obrigados a cultuar o Estado. Mas cultuar um ser humano, mesmo sendo
o imperador, era algo que certamente não podiam tolerar. Diocleciano viu que
não podia permitir à mais forte organização religiosa do império rejeitar sua
majestade. Procurou usar a coação, e encontrou uma resistência fanática:
começou então a Grande Perseguição. Os cristãos continuaram não-
conformistas. Foi o Imperador Constantino quem encontrou a solução para a
fusão de césar com Deus.
O império reformado por Diocleciano mal resistiu à sua abdicação em 305. Seus
vários aspectos permaneceram, mas com uma exceção fundamental. Diocleciano
fizera o império depender do imperador, mas o sistema de dois imperadores e
uma norma de sucessão ao trono só poderia perdurar se os candidatos imperiais
fossem homens de espírito elevado, isentos de ciúmes e suspeitas. O título de
césar era também perigoso, muito alto, mas ainda não bastante alto. Desapareceu
rapidamente. Em 311 havia quatro imperadores, Licínio e Maximino no Oriente,
Maxêncio e Constantino, filho de Constâncio, no Ocidente. A cena estava,
evidentemente, preparada para a guerra civil.
Qualquer que fosse sua concepção pessoal, após a batalha de Saxa Rubra, parece
certo — por suas moedas e seus decretos — que Constantino estava
comprometido com o cristianismo. Esmagara Maxêncio corno campeão cristão,
lutara ao lado de Licínio como campeões contra o perseguidor Maximino, e
promulgara o famoso Edito de Milão, de 313, que pela primeira vez reconhecia
legalmente a comunidade cristã. Mas Licínio continuou pagão. Também ao
atacá-lo, Constantino era o soldado cristão. O cristianismo e Constantino tinham
dívidas entre si.
No ano 325 Constantino surgiu como patrono do cristianismo, de uma nova
maneira. A Igreja estava às voltas com a disputa entre Ario, sacerdote de
Alexandria, e seu bispo, sobre a natureza da divindade de Cristo. Constantino
tomou a si a incumbência de convocar os bispos da Igreja para uma reunião em
Nicéia, na grande assembléia conhecida na História como o Primeiro Concilio
Ecumênico, na qual, sob sua presidência, os bispos decidiram que Ario estava
errado. Esse primeiro concilio do Nicéia foi importante não apenas pela
formulação da doutrina cristã, mas como o primeiro exemplo de cesaropapismo.
Constantino pretendia que a Igreja Cristã fosse estatal, tendo como chefe o
imperador. Em sua gratidão, os cristãos não lhe fizeram objeção.
Mas era também uma cidade romana. Por mais de dois séculos a Corte e uma
grande proporção de seus habitantes falavam o latim, que era ainda a língua culta
do interior dos Balcãs. Em seu desejo de reunir uma população vinda de todo o
império, Constantino deu à ralé da cidade o privilégio de pão e circo livres,
desfrutado pelo populacho de Roma. As classes mais elevadas foram induzidas,
segundo a lenda, a se transportarem para o Bósforo graças às dádivas de palácios
que reproduziam exatamente suas casas romanas. Constantinopla deveria ser
uma outra Roma. “Nova Roma que é Constantinopla” foi seu título oficial até o
fim, e seus cidadãos eram também Rômaioi. A grande contribuição de Roma
para o novo império foram suas teorias administrativas, suas tradições militares e
o seu direito. Mas os habitantes de Constantinopla se consideravam romanos por
nacionalidade, ainda muito depois que o latim deixara de ser ouvido no Bósforo
e os vestígios de sangue italiano tornaram-se raros. Mesmo no século XII era
pretensão dos aristocratas ter ascendentes no séquito que acompanhou
Constantino à nova cidade.
O terceira elemento era o Oriente Cristão. Constantinopla devia ser uma cidade
cristã. Os templos da antiga Bizâncio puderam continuar por mais algum tempo,
e parece até que alguns deles foram erguidos pelos pagãos que construíam a
cidade. Uma vez concluído o trabalho, porém, nenhum outro foi levantado. O
Oriente e seu misticismo já tinham invadido o mundo romano e lhe ensinado a
considerar o monarca como divino. Constantino prestou homenagem a Tique, a
Fortuna da cidade, e fez construir uma grande coluna de Apolo, na qual o resto
da estátua fora alterado para representar o seu. E ali ficou ele, com todos os
atributos do Deus-Sol, para ser adorado pelos pagãos, mitraístas e cristãos, ao
mesmo tempo. O cristianismo era uma religião oriental. A filosofia grega dera-
lhe uma forma aceitável à Europa, mas fundamentalmente ele permanecia semita
em suas concepções. O cidadão de Constantinopla tinha plena consciência da
herança greco-romana, mas sua forma de ver a vida era, nos aspectos básicos,
diferente. Experimentava menor satisfação no mundo, detendo-se de preferência
nas coisas eternas. Esse estado de espirito tornava-o mais receptivo às ideias
vindas do Oriente do que as oriundas do Ocidente. E a história do Império
Bizantino é a história da infiltração das ideias orientais até colorirem as tradições
da Grécia e Roma e da reação periódica a essa Infiltração. A despeito dela, as
tradições greco-romanas perduraram até o final. Mesmo no século XV os
homens de Constantinopla discutiam a natureza de sua civilização; eram
Rômaioi: seriam também helenos? O último grande cidadão do império deu-lhes
a resposta: ‘‘Embora seja heleno pela fala, nunca diria que sou um heleno, pois
não acredito nas coisas em que os helenos acreditavam. Gostaria de tomar meu
nome na minha crença, e se alguém me perguntasse o que sou, responderia:
cristão. (...) Embora meu pai habitasse a Tessália, não me considero tessaliano,
mas sim bizantino, pois sou de Bizâncio.” (5)
Juliano conquistou fama imortal por sua apostasia, sua volta ao paganismo. O
movimento, contudo, foi um fracasso. O mundo não suportava o politeísmo
intelectualizado — o cristianismo servia-lhe melhor. Também nas atividades
militares Juliano foi infeliz. Tentou invadir a Pérsia, mas avançou demasiado e
morreu numa retirada penosa, no verão de 363. O exército apressou-se a escolher
um soldado cristão, Joviano, que fez com a Pérsia uma onerosa paz de trinta
anos, cedendo-lhe quatro satrapias e a suserania da Armênia. No princípio da
primavera seguinte Joviano morreu.
Esse desastre teve piores consequências para o Ocidente do que para o Oriente.
Graciano escolheu para sucessor de seu tio o espanhol Teodósio, a quem a
posteridade agradecida chamou Teodósio, o Grande. Com seu tato, pacificou os
godos, fazendo deles servos úteis do Estado. Ortodoxo entusiasta, impôs
restrições aos pagãos e heréticos, e no Segundo Concilio Ecumênico, em
Constantinopla, em 381, impôs a unidade ao mundo cristão. Em 387 celebrou
novo e satisfatório tratado com a Pérsia, dividindo a Armênia. Em 392 passou a
controlar o Ocidente, após a morte de Graciano, de seu irmão Valentiniano II e
de um usurpador, Eugênio, e pela última vez um homem governou o mundo, da
Bretanha ao Eufrates. Ao morrer, em 395, deixou o império a seus filhos — o
Oriente para Arcádio e o Ocidente para Honório. O reinado de Teodósio marcara
o começo de uma nova era para o Império Romano, que se tornara o Império
Ortodoxo. Com sua morte, Leste e Oeste separaram-se para sempre.
O século V viu o declínio do império no Ocidente, batido pelas invasões
bárbaras, e até a abdicação de Rômulo Augustulo em 476, e a morte de Júlio
Nepos em 480, ninguém no Ocidente teve o título de imperador. O império do
Oriente teve melhor sorte. Consolidado pela obra de Teodósio o Grande, e com
uma capital invencível, parecia aos bárbaros demasiado forte para ser atacado.
Visigodos, hunos e ostrogodos cruzaram sucessivamente o Danúbio, mas
acabaram preferindo buscar fortuna no Ocidente, sem que essas invasões
tivessem muito efeito sobre o bem-estar material do Oriente, até que em 439 os
vândalos se estabeleceram na África e lançaram, de Cartago, uma esquadra que
destruiu o monopólio romano do mar. Os portos do Mediterrâneo, habituados a
uma segurança que durara séculos, tiveram de construir fortificações, e
Constantinopla foi obrigada a enfrentar o problema dos vândalos,
Em toda essa obra Justiniano teve, até 548, o auxílio da mais notável mulher da
época — sua esposa, a antiga atriz Teodora. Sua coragem, visão e falta de
escrúpulos foram de grande valia para ele, e o poder por ela desfrutado era maior
mesmo do que o de seu marido. Divergiam, porém, numa questão política:
Teodora era monofisita e usou de sua influência para obter o triunfo da heresia.
Não teve êxito, mas enquanto viveu os monofisitas tiveram a segurança de sua
proteção e estímulo. Se lhe tivessem feito a vontade, Egito e Síria poderiam ter
continuado como províncias leais ao império. Mas Justiniano, com suas
ambições ocidentais, temia desagradar o Oeste ortodoxo. Além disso,
considerava-se um teólogo, e o monofisismo não o convencera. Esperava,
porém, encontrar uma fórmula intermediária que lhe fosse possível impor a toda
a cristandade. Ele e Teodora concordavam em que todos, mesmo patriarcas e
papas, deviam seguir a teologia imperial. O Papa Vigílio, que ousou considerar-
se como o repositório da ortodoxia, foi punido por uma longa prisão em
Constantinopla, durante a qual acedeu às ordens de Teodora, primeiramente, e
mais tarde, às de Justiniano. Mas foi somente após a morte de Teodora que
Justiniano deu toda a rédea à sua paixão pela teologia e elaborou uma fórmula
que podia satisfazer aos monofisitas sem infringir os decretos do Concilio de
Calcedônia. Em 553 o Quinto Concilio Ecumênico condenou, por ordem de
Justiniano, a abstrusa heresia dos Três Capítulos, que ele próprio criara
artificialmente alguns anos antes, e completou a humilhação do papado. Mas
suas tentativas de aproximação com os heréticos não foram bem recebidas —
eles não modificavam sua heresia, preferindo a perseguição. Mergulhou ainda
mais nas sutilezas cristológicas, em busca de uma solução, convencendo-se cada
vez mais da inteligência da política de Teodora, quando não de sua fé.
Finalmente, em 565 chegava a uma heterodoxia inegável, morrendo naquele
mesmo ano considerado pela grande maioria de seus súditos como um herege
aftartocatártico (*).
Seu reinado marcou também, incidentalmente, o fim do latim, embora fosse esta
a língua de Justiniano, e nela tivesse deixado seu grande código. Mas nenhuma
outra literatura latina, além disso, se produziu na corte, e as últimas Novelas
foram promulgadas em grego.
Justiniano teve como sucessor seu sobrinho Justino II, que se casara com a
sobrinha de Teodora, Sofia. Procuraram imitar, sem êxito, seus grandes
predecessores. No leste, as guerras persas foram um desastre, no norte uma nova
tribo bárbara, os avaros, faziam pressão; no oeste, outra tribo, a dos lombardos,
invadiu uma Itália gasta e apática. Sofia comprou a paz com a Pérsia e escolheu
um general, Tibério, para suceder ao seu marido. Em 547, num breve intervalo
de lucidez, Justino adotou Tibério como filho e coroou-o césar. Em 578 Tibério
o sucedia como imperador (7).
Em 726 Leão III promulgou um decreto proibindo o culto das imagens ao qual
se seguiu uma destruição geral de ícones representando Cristo e os santos. Sua
razão original era, provavelmente, teológica, mas o movimento adquiriu logo
uma base política, como um ataque à Igreja — particularmente aos mosteiros,
cujo crescente poder aumentava pelo fato de possuírem quadros e imagens
sagrados. Sob Constantino V, ele mesmo teólogo com tendências unitárias
heréticas, esse aspecto antimonástico tornou-se bastante acentuado. Os monges
estavam na linha de frente dos iconódulos, os adoradores de imagem. O
iconoclasmo teve certo êxito na Ásia Menor e entre os soldados, que em sua
maioria eram asiáticos. Encontrou, porém, uma resistência apaixonada,
especialmente na Europa. Motins e levantes ocorreram em Constantinopla, e
uma grande rebelião com a subida de Constantino V. Na Itália, o movimento foi
tão impopular que pouca resistência encontraram os lombardos, ao invadirem
Ravena e os últimos distritos imperiais, até que em 751 nada restava ao
imperador, ao norte da Calábria. Provocou, ainda, um rompimento com o
papado, de consequências profundas. Os papas procuraram novos aliados nos
francos, enquanto o império perdia seus últimos vínculos latinos e se tornava
uma unidade exclusivamente de língua grega.
A Constantino V sucedeu seu filho Leão IV, chamado o Cazar, por ter sido sua
mãe princesa daquela raça turca. Reinou apenas cinco anos (775-780), sendo
substituído pelo filho de apenas dez anos, Constantino VI, sob a regência da
imperatriz-mãe, a ateniense Irene, que, como europeia, era iconódula. Em 787
fez ela a paz com Roma e convocou o Sexto Concilio Ecumênico em Nicéia,
para restaurar o culto das imagens. Essa restauração agradou à Igreja e ao povo
comum, mas desagradou aos soldados asiáticos, que se ressentiam do governo de
uma mulher, particularmente quando o poderio árabe começava a reviver, sob os
califas Abácidas de Bagdá. Mas o jovem imperador não tinha habilidade para
resistir à mãe, e seu caráter não inspirava respeito. Em 7117, após uma longa
sequência de querelas, Irene finalmente aprisionou seu filho, cegou-o e reinou
sozinha por cinco anos (797-802). Foi durante esse reinado feminino que o Papa
Leão coroou Carlos, o Grande, imperador do Ocidente.
A dinastia amória, ou frigia, fundada por Miguel II, durou quase meio século.
Miguel II (820-829) era um iconoclasta apaixonado, e irritou ainda mais a Igreja
casando-se pela segunda vez com uma monja, Eufrosina, filha de Constantino
VI. A ele sucedeu seu filho, Teófilo (329-842), iconoclasta como o pai, mas
menos ardoroso. Foi bom administrador e patrono da cultura, e seu reinado
presenciou a renascença da cultura secular e da magnificência artística,
grandemente influenciadas pela civilização dos Abácidas de Bagdá. Suas guerras
contra os árabes, porém, nem sempre tiveram o mesmo êxito. Após sua morte
em 842, a viúva, Teodora, tornou-se regente do filho, Miguel III. Tal como a
última imperatriz regente, Irene, Teodora era iconódula, e em 843 restaurou o
culto da imagem, para a satisfação da grande maioria de seus súditos. A paz
religiosa, associada à reconstrução política dos isáurios e de Teófilo, trouxe ao
Império um novo período de prosperidade. Mas o prudente governo de Teodora
foi seguido, em 856, pela extravagância de Miguel, que graças a seus hábitos
recebeu o nome de Beberrão. Soube, porém, escolher conselheiros capazes,
como seu tio Bardas e um escravo chamado Basílio, que após provocar a morte
de Bardas, em 867, assassinou o imperador e assumiu o poder imperial. Durante
o reinado de Miguel III houve novo rompimento com Roma, provocado pelas
ambições em conflito do Papa Nicolau, o Grande, e do Patriarca Fócio, luta essa
intensificada pela conversão dos búlgaros e dos eslavos da Europa Central.
Com a morte de Basílio começou o declínio. Seu irmão Constantino VIII reinou
sem eficiência durante três anos (1025-1028), após os quais morreu, deixando
três irmãs de meia-idade: Eudócia, monja marcada pela varíola, Zoé e Teodora.
Nas décadas que se seguiram, os maridos e protegidos de Zoé governaram o
império. O primeiro deles, Romano III Argiro (1028-1034), era um homem de
valor, mas extravagante, ocioso e fraco. Após sua morte em circunstâncias
suspeitas, Zoé apressou-se a casar com um jovem e belo paflagônio, que
governou por sete anos (1034-1041), como Miguel IV, Era um homem capaz e
vigoroso, que conseguiu dominar uma séria rebelião dos búlgaros, mas sofria de
epilepsia. A falta de saúde obrigou-o a ser um mero oportunista. Quando morreu,
Zoé foi induzida a adotar seu sobrinho Miguel, cognominado o Calafate, ou
fabricante de velas, devido à profissão de seu pai. Miguel V tinha esquemas de
reformas que implicavam a queda de sua benfeitora, Zoé. A dinastia, porém, era
muito amada para que um simples fabricante de velas pudesse destroná-la. Um
levante popular em Constantinopla derrubou Miguel, colocando como únicas
soberanas Zoé e sua irmã Teodora, em 1012. Mas as irmãs tinham ciúmes
mútuos, e, para reduzir o poder de Teodora, Zoé casou-se, outra vez, com um
velho devasso, Constantino Monômaco. Constantino IX (10-12-1054) não era
incompetente, mas preguiçoso e corrupto, e nada fez para deter o crescente poder
da Igreja e da aristocracia. O Patriarca Miguel Cerulário comportava-se quase
que como um papa oriental e em 1054 provocava o cisma final entre as Igrejas
Orientais e Roma. Sob Constantino a área do império foi aumentada com a
anexação da Armênia independente, mas ao mesmo tempo aventureiros
normandos a assolar a Itália bizantina, e a Sicília (12), e as tentativas do exército
imperial de defender tais províncias constituíram um fracasso. Com a morte de
Constantino em 1054 (Zoé morrera em 1050), a envelhecida Teodora assumiu o
controle e governou por dois anos com surpreendente firmeza. Em 1036 a
dinastia macedônia extinguia-se.
O governo dos Angeles, Isaac II (1185-1195) e seu irmão Aleixo III, que o
derrubou e sucedeu (1195-1203), é uma história de melancólica fraqueza, de
maiores desordens e pobreza no império, e de novas concessões aos italianos. A
Bulgária conquistou a independência, Chipre revoltou-se. Finalmente em 1203
uma Cruzada do Oriente, que deveria dirigir-se à Terra Santa, foi desviada para
Constantinopla pela cobiça veneziana. Seu aparecimento recolocou efetivamente
no tronco Isaac II e seu filho Aleixo IV, durante algum tempo, mas em 1204
irrompeu um motim que deu aos cruzados o pretexto para a captura e saque da
cidade.
O mal, porém, era irreparável. Miguel entrou numa cidade despovoada e meio
em ruínas. Foi uma retomada compensadora, pois ninguém no Oriente Próximo
podia permitir a seus inimigos a posse de Constantinopla, e foi um ato glorioso
para o prestígio do império. Trouxe, porém, problemas e gastos que estavam
acima de suas posses. Os genoveses tinham sido seus aliados, e era necessário
pagar-lhes com privilégios comerciais que reduziram as rendas do império. Os
latinos tiveram um campeão e provável vingador em Carlos de Anjou, então rei
das Duas Sicílias. Teve ele de ser envolvido por um movimento de União com a
Igreja Latina, movimento esse que enfureceu os súditos do imperador sem
arrastar Carlos. A moeda imperial, estabilizada pela economia dos imperadores
de Nicéia, começou a oscilar novamente, e Miguel, incapaz de manter o sistema
de pagar a suas tropas de fronteira com doações de terras livres de impostos,
aboliu as posições na Ásia, enfraquecendo assim as defesas. Com a morte de
Miguel em 1282, o império evidenciou a impossibilidade de sua renascença
política. A única realização positiva do reino, além da tomada da capital, fora no
Peloponeso, onde a vitória de Pelagônia em 1259 colocara nas mãos do
imperador as importantes fortalezas de Mistra, Monenvásia e Maina.
Mas o princípio eletivo tinha, na prática, uma grande modificação. Era parte da
soberania do imperador o direito de escolher outro imperador. Assim, não
haveria nunca uma interrupção no governo do império. Os eleitores tinham,
apenas, de dar seu consentimento formal pela aclamação, que nunca foi negado.
A grande maioria dos imperadores subiram ao trono por já terem sidos coroados
ainda em vida de seu predecessor; a sequência era ainda mais preservada pelo
fato de que na ausência do imperador a imperatriz podia dispor do trono. Não
havia limites para o número de imperadores que podiam coexistir. Sob Romano
I, houve cinco. Sob Constantino IV, o exército exigiu três, pensando, com uma
religiosidade admirável, que o imperador devia seguir o exemplo de seu
protótipo, a Deidade. Mas só um Imperador exercia o poder, o Autocrator
Basileus (14). Os outros nada faziam, mas com a morte do autocrata, o
imperador mais antigo automaticamente assumia o poder imperial. Era possível
dessa forma estabelecer dinastia que perduravam enquanto seu representante
fosse competente — e até mesmo por mais tempo, O caso da Imperatriz Zoé
mostra como o sentimento dinástico podia medrar nessa monarquia eletiva,
mesmo quando despertado por um rei evidentemente indigno.
Depois de ter sido eleito ou escolhido como co-imperador, restava-lhe ainda ser
coroado, o que dava uma sanção religiosa à sua autoridade, para que pudesse
realmente executar as funções de vice-rei de Deus na Terra. A ideia de um
diadema e de uma coroação veio dos persas, cujo rei era coroado pelo Sumo
Sacerdote Mago. Mas quando Diocleciano adotou o costume, já sendo Pontífice
Máximo, dispensou o auxílio de outro sacerdote, e seus sucessores cristãos
seguiram-lhe o exemplo. A coroação era executada por um destacado
representante dos eleitores. Valentiano I foi coroado pelo prefeito da cidade. Aos
poucos, predominou o sentimento de que o patriarca de Constantinopla era a
figura representativa mais adequada, pois ocupava o posto mais alto sob a Coroa.
Marciano provavelmente foi coroado pelo patriarca, e Leão I certamente o foi.
Daí para o futuro, passou essa a ser a regra. A única exceção foi o último
imperador, Constantino XI, mas seu caso é inteiramente excepcional, por ter sido
coroado em Mistra. Em todas as esferas, o patriarca agia como o cidadão mais
importante do império, não como um sacerdote. Focas, foi, realmente, o primeiro
imperador a ser coroado numa igreja. Consequentemente, quando se coroava um
co-imperador, o imperador já existente perfazia a Cerimônia, embora o patriarca
pudesse ajudar, particularmente quando o imperador titular era um menor. O
patriarca podia ocasionalmente exigir concessões do imperador, antes de
consentir em coroá-lo, e nesse caso agia oficialmente como representante do
povo. Sua única arma legítima contra o imperador era a ameaça de excomunhão,
e até mesmo essa era posta em dúvida. Por vezes, porém, exigiam-se certas
promessas de um imperador, antes de sua coroação. Anastásio, cuja ortodoxia
era suspeita, teve de garantir por escrito a manutenção da organização
eclesiástica existente e a isenção de ressentimentos contra seus antigos inimigos;
outros imperadores, posteriores, que gozavam fama de heterodoxos, foram
obrigados a declarações semelhantes. No governo dos Psicólogos houve um
juramento de coroação regulamentar, no qual os imperadores prometiam
observar os decretos dos Concílios Ecumênicos e as várias doutrinas e direitos
aceitos pela Igreja, a legislar com justiça e moderação, e a reprovar tudo o que
fosse anatematizado pela Igreja. Após o século V, teria sido impossível a um
herege declarado tornar-se imperador-
A coroação realizava-se desde o século VII em Santa Sofia; era presenciada pelo
Senado e representantes do exército e do povo que aclamavam o novo
imperador, na igreja e nas suas imediações. Antes, realizava-se no Hebdomon,
fora da cidade. A cerimônia, detalhadamente descrita por Constantino VII, foi
seguida, com pequenas alterações, pelos Paleólogos, que introduziram o hábito
ocidental da unção (15). Realizavam-se, por vezes, cerimônias adicionais para
fortalecer os direitos dos menores. Governadores de “temas”, ministros, e todas
as pessoas de certa importância, bem como todos os soldados da capital e
representantes de todas as classes de cidadãos, especialmente das corporações,
tiveram de prestar um juramento solene de fidelidade ao menino-imperador,
Constantino VI, na véspera de sua coroação.
Por vezes, não obstante, eles entravam em acordo. Juntamente com o exército,
insistiram para que Justino I fosse levado ao trono. Em 532 os pesados impostos
e taxas urbanas de Justiniano levou-os a se unirem contra ele nos levantes de
Nica. Justino II, controlado pelos aristocratas, tentou limitá-los, mas Tibério
julgou mais prudente dar-lhes força e lançá-los contra a aristocracia. Maurício
caiu em grande parte por tê-los ofendido, tentando impor às Peráticas novos
deveres militares. A posição constitucional desses grupos se evidencia pelo
modo com que Justiniano teve de parlamentar com eles e ouvir sua opinião no
Hipódromo. Durante o século VII a força dos demes feneceu, e após a ascensão
dos isáurios, as Políticas tornaram-se organizações puramente nominais, que
representavam o povo nas ocasiões solenes. Os demarcas dos Azuis e dos
Verdes tinham na corte a posição de titulares de sinecuras. As Peráticas, por sua
vez, tornaram-se o núcleo dos guardas palacianos e da guarnição da cidade, que
formavam o exército imperial, em oposição ao exército provincial. Com o
declínio dos demes, o povo de Constantinopla perdeu seu meio constitucional de
expressão. Seus desejos só se podiam expressar, a partir de então, pela agitação e
pelo motim.
O Senado, por outro lado, não desapareceu nunca, embora seus dias gloriosos
tivessem sido os dos séculos VI e VII. (19) O Senado de Constantinopla jamais
foi como o velho Senado Romano. Mesmo quando em 359 passou a gozar dos
mesmos privilégios desfrutados pelo Senado de Roma — tornando-se assim um
eleitor oficial — sua composição permaneceu diversa e destituída da tradição do
outro. Até mesmo seu nome era menos venerável — no grego, foi traduzido não
como gerousia, mas sim sugklétos, a assembléia. O Senado de Constantinopla
era formado de pessoas que ocupavam, ou tinham ocupado, cargos de certo nível
e situação social e por seus descendentes. Era, portanto, um amplo organismo
amorfo, incluindo gente de destaque, de riqueza e de responsabilidade no
império.
Tendo o Direito uma posição tão reverenciada, era essencial que fosse
codificado de modo claro e cuidadoso. A era da codificação iniciou-se com
Diocleciano. Cerca do ano 300 dois advogados, Gregório e Hermogeniano,
realizaram compilações sucessivas da legislação do último século. Cem anos
mais tarde, Teodósio II iniciava um esquema de codificação geral de todo o
Direito Romano, embora não tivesse ido além de uma série de constituições
imperiais, que abrangiam apenas uma limitada área do campo. Por fim
Justiniano, irritado pelas repetições e contradições, obscuridades e
desatualização de grande parte do Direito existente, determinou a reorganização
de toda a sua estrutura. Eficientemente auxiliado por seu Questor, o advogado
Tribônio, nomeou dez pessoas para esboçarem, com a maior rapidez possível,
um código que consubstanciasse a legislação existente, e que foi baixado em
529. Em seguida, dezesseis peritos foram nomeados para compilar, das duas mil
obras de grandes juristas do passado, todas as passagens ainda relevantes e úteis
no presente, ao mesmo tempo preservando para a posteridade as opiniões das
melhores autoridades sobre as bases legais em que se firmava o Estado Romano.
Essa enorme compilação, conhecida como o Digesto, foi publicada em 533,
constituindo a autoridade final sobre todas as questões legais. Ao mesmo tempo,
preparou-se um manual para os estudantes, naquele mesmo ano, incluindo os
aspectos mais recentes da legislação imperial. E em 534 fez-se uma nova edição
melhorada do código de Justiniano. Apesar de tudo isso, sua atividade no setor
da legislação não estava concluída. A partir de 534 até o fim do reinado,
publicou uma longa série de leis suplementares, as Novellae. Quando deixou o
trono, havia atualizado e revisto todo o Direito Romano.
Nas leis criminais, o cristianismo se fez sentir pela restrição da pena de morte e
sua substituição pela mutilação. No Direito Civil, sua influência evidenciou-se
pela legislação do casamento. Só o casamento cristão passou a ser reconhecido,
os motivos para divórcios foram reduzidos a quatro (21), embora não tivessem
sido inteiramente abolidos, tal como desejava a Igreja. Os graus de parentesco
proibidos foram aumentados de quatro para seis: foi proibido o casamento de
primos em segundo grau. A Ecloga melhorou ainda mais a posição das
mulheres: a esposa tinha participação igual à do marido nos bens do casal e na
guarda dos filhos, que por sua vez foram emancipados do Patria Potestas. A
Igreja obteve o controle da guarda dos órfãos.
Mais ou menos na mesma época surgiram três manuais não oficiais, abrangendo
ramos suplementares do Direito: o Código Militar, o Código Náutico ou Rodiano
e o Código Agrícola, cada um deles ilustrando os hábitos e costumes da época.
Os membros da família imperial não ocupavam, como tal, nenhum cargo. Seu
poder estava restrito à influência não-oficial — uma influência sobre cujos
perigos Cecaumeno advertiu o imperador. Raramente trabalhavam na
administração, exceto como soldados, embora habitualmente tivessem altos
títulos. O herdeiro ostensivo era quase invariavelmente coroado imperador ainda
em vida de seu predecessor, se bem que originalmente Diocleciano pretendesse
que tais herdeiros tivessem o título de César. Gradualmente, porém, esse título se
foi tornando menos definido. O César era coroado, mas sua coroa não levava a
cruz, e sua posição hierárquica era inferior à do Patriarca. Era, portanto, uma
situação adequada a um alto príncipe de linhagem, um regente ou mesmo um
herdeiro presuntivo. Tibério, quando regente do louco Justino II, teve o título de
César; Heráclio e Constantino V nomearam seus segundo e terceiro filhos como
Césares, tendo provavelmente em vista uma sucessão pacífica, caso morresse o
primogênito, de saúde delicada; Teófilo fez o mesmo com seu genro Aleixo
Musele, pois na época não tinha filhos e queria fazer dele seu sucessor. Mas a
mulher de Aleixo, Maria, morreu, ele retirou-se para um mosteiro, e Teófilo
coroou a filha Tecla como imperatriz, para que o marido pudesse sucedê-lo.
Finalmente, porém, nasceu-lhe um filho, Miguel, que nomeou César seu tio
Bardas, o regente. Romano Lecapeno tomou tal título como um degrau para o
trono, Nicéforo Focas atribuiu-o a seu velho pai. Com Aleixo I, o título decaiu
um grau, pois a nova honraria de Sebastocrator tomou-lhe precedência. Sob os
Paleólogos, o mais alto título principesco era o de Déspota, que tinha porém um
sentido territorial. César passou à terceira classe. Os demais títulos reservados à
família imperial, até os dias dos Comnenos, eram Nobilíssimos e Curopalates. O
último, entretanto, foi dado como título hereditário ao rei da Ibéria por Leão VI e
foi atribuído a titulares não-reais, francamente, no século XI. Aleixo I inventou
novos títulos, colocados abaixo de César — Sebasto, Protessebastos e Pan-
hipersebasto; os sogros ambiciosos dos imperadores podiam usar o título de
Basileopator. Os portadores de tais títulos, e suas mulheres, podiam sentar-se à
mesa imperial, como também a Zoste Patrícia, a principal dama de companhia,
que habitualmente era, segundo parece, membro da família. (24) O sobrenome
de Porfirogêneto, dado aos filhos da imperatriz, cujos partos ocorriam sempre na
Câmara Purpúrea do Palácio, aparentemente não significava uma posição oficial,
embora seu prestígio fosse enorme.
O título mais alto (25) ao alcance de todos foi, durante muitos séculos, o de
Patrício, inicialmente atribuído com muita parcimônia por Constantino, o
Grande. Gradualmente, porém, o número de Patrícios aumentou, e alguns deles
adquiriram certa precedência, como os Patrícios Antipatos; no século X havia
um título superior, o de Magister, que acabou por se tornar muito difundido,
tendo Nicéforo II inventado o título de Proedro, superior a ele. Abaixo dos
Patrícios, havia no século X outros onze títulos, que na época dos Paleólogos
tinham, em sua maioria, desaparecido. Os numerosos títulos então em uso eram
antigas denominações de cargos. Quase todos os seus portadores haviam
exercido anteriormente uma função, que acabaram perdendo. Os eunucos
dispunham de títulos próprios, privativos. Quando as honrarias eram idênticas,
gozavam de precedência, e dessa forma o eunuco patrício estava em posição
superior aos patrícios comuns. No século X eram oito os títulos dados aos
eunucos. Todos os títulos tinham urna insígnia especial: o Espatário, por
exemplo, tinha uma espada de punho de ouro, o Patrício uma placa de marfim
com inscrições, o Magister uma túnica branca com bordados de ouro.
Havia certos cargos, chamados Axiai eidikai, que não podemos classificar com
precisão. O mais importante deles era o de Reitor, cujas obrigações
desconhecemos, e o de Syncellus, funcionário imperial que agia como oficial de
ligação entre o imperador e o patriarca, aparentemente para os casos de suspeita
de heresia (heresia era crime contra o Estado) e que habitualmente sucedia ao
patriarca. Roma e os patriarcas orientais podem ter tido seus Syncellus, também,
e Constantino IX nomeou um para os católicos armênios — seu sobrinho e
sucessor designado. Os demais portadores do axiai eidikai eram ajudantes-de-
ordens e secretários pessoais do imperador. Um deles, o Protostrator, chegou
mais tarde a atingir uma alta posição.
Esse sistema administrativo central perdurou praticamente inalterado, até que foi
abruptamente encerrado em 1204 pela captura da cidade pelos cruzados. O
sistema provincial era necessariamente mais elástico, mudando com as
alterações de fronteiras do império. Na fronteira oriental havia vários pequenos
distritos sob a lei marcial, chamados Clissurae, onde os grande barões militares
das fronteiras, como Digenes Akritas, dominavam quase que soberanamente.
Com o recuo das fronteiras, essas Clissurae passaram a “temas”, e seus
estrategos tiveram de ser enquadrados na hierarquia imperial. Quando Antióquia
foi recapturada, colocaram-na sob um governador militar especial, conhecido
como Dux, ou Duque. Províncias difíceis, como a Longobárdia, tinham de ser
reorganizadas. Cerca do ano 975 o estratego da Longobárdia foi promovido ao
novo posto de Catepan e recebeu poderes de vice-rei sobre o “tema” da Calábria
e os Estados-vassalos italianos. O mesmo título foi dado, anos mais tarde, ao
governador do recém-conquistado “tema” armênio de Vaspurakan. Quando
Basílio II conquistou a Bulgária, fundou dois “temas” ali, a Bulgária e Paristrion,
o primeiro sob o governo de um Pronoctes. Mas, de acordo com os preceitos
citados por Constantino Porfirogêneto, permitiu-se aos búlgaros conservar seus
métodos nacionais de justiça e impostos, Na península grega, a presença de
eslavos e albaneses trouxe muitos problemas para o governo dos “temas” da
Hélade e do Peloponeso. Somente no reinado de Irene, o Peloponeso pôde ser
controlado com eficiência, e ainda mesmo no século X havia ali tribos que só
pagavam um tributo anual, sem qualquer outra interferência das autoridades
imperiais. Quando Romano I aumentou os tributos, eles se revoltaram e as taxas
antigas tiveram de ser restauradas. A data de sua absorção final é duvidosa.
A questão dos impostos per capita é particularmente obscura. Havia uma taxa
chamada de Kephaletion, ou taxa por pessoa, possivelmente limitada aos súditos
não-cristãos. Kapnikon, ou imposto predial, é ainda menos claro. Tudo o que
podemos dizer é que na época de Nicéforo I havia um kapnikon de 2 miliaressia
(ou 2,10 francos-ouro) per capita. Nicéforo insistia rigorosamente em seu
pagamento e os contribuintes isentados por Irene tiveram de pagar os atrasados.
Miguel II ganhou popularidade reduzindo-o. Segundo o árabe Ibn Ifauqat, no
século X havia um imposto de dois dinares para cada casa nos “temas”
marítimos, e de dez dinares para cada pai de família, nos outros “temas”, usado
para as despesas navais e militares. Um texto cipriota diz que os cipriotas tinham
de pagar por sua defesa no século X um imposto predial, aparentemente de 1
numisma (14,40 francos) nas cidades e de 3 numismas nos distritos rurais.
Nicetas Acominato, fazendo trocadilho com os impostos, diz que no fim do
século XII os corfiotas preferiam o fogo da escravidão estrangeira (aos
normandos) à fumaça do imposto. Do imposto chamado aerikon, criado por
Justiniano e que produziu três mil libras de ouro, nada sabemos, embora seja
mencionado novamente na Tactica, de Leão VI. Provavelmente era uma espécie
de taxa sobre terras, em propriedades urbanas — cada bizantinólogo, porém, dá
uma explicação diferente. Havia também um sistema de impostos fúnebres,
introduzidos por Augusto e lançados sobre as heranças não-provenientes de
ancestrais, sistema esse que foi rejeitado por Justiniano e retomado mais tarde,
recaindo inclusive sobre a herança direta. Nicéforo I, que o cobrou com rigor,
inventou também uma taxa sobre bens ganhos sem trabalho, considerando-os
como tesouros descobertos, dos quais o Estado tinha direito a uma parte. Os
impostos indiretos consistiam de direitos alfandegários, direitos portuários,
direitos de mercado, taxas e, durante certo tempo, selos de recibos. Apenas sobre
os primeiros temos informações dignas de crédito: haviam sido elevados, no
século IV, para a taxa uniforme de 12,5% e aí se mantiveram, aparentemente. Os
direitos de importação eram taxados em Abidos, no Helesponto, ou Hierão, no
Bósforo, e os direitos de exportação, em Constantinopla. Para evitar o
contrabando de escravos, uma tarifa especial de 2 numismas (28,80 francos) foi
estabelecida por Nicéforo para os escravos do sul, vendidos em qualquer parte
do império a oeste de Abidos. Os impostos alfandegários devem ter
proporcionado somas consideráveis. O namoro de Irene com o comércio livre,
abolindo impostos em Abidos, atingiu suas rendas muito seriamente, e Nicéforo
voltou à política de tarifas, mantendo os preços baixos com o recurso mais sutil
de limitar a moeda em circulação. Quando, sob os Comnenos, as repúblicas
italianas conquistaram o direito de importar com o imposto de apenas 4%, o
imperador perdeu muito de sua renda, além do golpe que isso representou para o
comércio do império.
Havia, ocasionalmente, supertaxas, como o dikeraton, o 1/12 extra que Leão, o
Isáurio, instituiu para reparar as muralhas de Constantinopla; ocasionalmente,
também os coletores de impostos aumentavam os lançamentos para ganhar mais
dinheiro. O Estado também ganhava dinheiro com as fábricas estatais e o
monopólio da seda, e pela venda de títulos. Controlava o comércio de cereais, e
alguns imperadores, como Nicéforo II, foram acusados de obter com isso lucros
pessoais. Nicéforo I proibiu a usura e os empréstimos de dinheiro e passou a
fazer empréstimos pelo Tesouro com juros de 16,5% — seus sucessores, porém,
não seguiram o método. Com os Paleólogos, quando a situação era desesperada,
João Cantacuzeno tentou coletar um tributo voluntário entre todas as classes,
para despesas de guerra, mas dificilmente alguém podia ou desejava contribuir.
Havia, porém, uma classe que não se enquadrava nesse permanente culto do
Estado. Era a aristocracia latifundiária. A existência de grandes proprietários de
terra criara um problema para os velhos imperadores romanos, mas as
dificuldades que perduraram do século V ao VIII, quando nenhuma província
estava livre da devastação bárbara ou da emigração, destruíram o valor da terra e
desmembraram a maioria das grandes propriedades. Mas, em meados do século
IX, as províncias asiáticas, e um século mais tarde as europeias, gozavam de
relativa segurança, e a terra tornou-se, em virtude das restrições governamentais
sobre o comércio, o investimento mais lucrativo. Surgiu uma classe de
aristocratas, cuja riqueza provinha de propriedades que buscavam ampliar
constantemente. O pequeno proprietário tendia a ser comprado, e tornava-se um
arrendatário ou desaparecia. Isso prejudicou o sistema de impostos, bem como o
sistema de recrutamento militar, que estava ligado à propriedade da terra. Além
do mais, os afortunados nobres com um imenso séquito de servos e agregados,
aos quais armavam, constituíam uma ameaça óbvia ao Estado. A administração
estabelecia uma distinção clara entre os ricos — os dunatoi, ou poderosos — e
os pobres — os penêles. De modo geral, procurava confiar os aristocratas aos
assuntos militares, deixando livre e democrático o serviço público. Em todo o
século X os imperadores se preocupavam com a legislação contra o poder que
tinham os magnatas para adquirir terras aos pobres. Romano I proibiu-os de
adquirir qualquer terra nas aldeias, e ele e Constantino VII e Basílio II dedicaram
tempo e energia à imposição e elaboração de tais medidas. Basílio II foi
particularmente enérgico; como Henrique VII da Inglaterra, verificou durante
uma viagem que seus anfitriões eram extremamente poderosos e reduziu seu
poder e os puniu. Chegou mesmo a tomar medidas contra os latifundiários que
vieram do nada. Velhas famílias aumentavam seus domínios e novas famílias
surgiam. Mas o governo falhou. Até mesmo a retomada, por Basílio II, da
allelengyon, para multar os proprietários de terra, não pôde destruir-lhes o poder.
E já Nicéforo II, membro de uma grande família de proprietários, sustentava essa
política imperial. Em meados do século XI, os latifundiários, entre os quais se
incluía então a hierarquia religiosa, eram bastante fortes para tomar o governo
em meio ao caos causado pelas vitórias dos seljuques. Daí em diante, embora as
invasões e conquistas estrangeiras limitassem suas terras, os aristocratas
realmente comandaram a administração. O ingresso no serviço público dependia
menos dos méritos do que da influência familiar, e a perda de uma parte tão
grande do território significava que novas famílias dificilmente poderiam
prosperar. A aristocracia cerrava suas fileiras. Nas províncias já se acentuava a
tendência de uma independência semifeudal, quando chegou a conquista latina e
completou de uma vez a transformação. Os imperadores ainda faziam guerra aos
Magisters e os Comnenos e imperadores de Nicéia mais fortes mantiveram-nos,
deliberadamente, sob controle. Mas Miguel Paleólogo, no século XIII, e João
Cantacuzeno, no século XIV, mostraram sua força. Em Tessalônica, no século
XIV, o movimento conhecido como o dos fanáticos foi provocado em grande
parte por sua arrogância e pela tentativa de desafiar-lhes o poder, mas foi inútil.
Já no anoitecer do império a aristocracia, que perdera há muito suas terras para
os conquistadores estrangeiros, tornou-se quase um serviço público hereditário e
como tal era de utilidade para o governo. Mas o dano já fora causado.
Entretanto, até o final do império o serviço público continuou aberto a todos, e o
plebeu de mérito podia ainda subir muito alto. A administração manteve sempre
uma eficiência desconhecida na Europa ocidental. Os impostos podiam ser
pesados e pouco produtivos, mas eram recolhidos; os desejos do imperador,
manifestados pelos seus secretários, eram difundidos por todos os seus domínios
e, exceto quando se chocavam com a opinião pública, eram observados.
O governo tinha sua tarefa facilitada pelo respeito inato à lei que os bizantinos
herdaram de Roma, e sua eficiência se ilustra melhor pela administração da
justiça. O imperador era o juiz supremo, sendo sempre possível apelar para ele.
Certos imperadores ouviam pessoalmente os recursos: Justiniano gostava de
exercer tal função, e Teófilo ouvia os reclamantes durante sua caminhada através
da cidade, até Blachernae. Habitualmente, porém, as petições eram recebidas e
preparadas para o imperador pelo ministro epi tôn deeseôn. As decisões dos
prefeitos pretorianos, porém, eram inapeláveis em seus distritos. É provável que
o exarca italiano tenha herdado tal direito. Em Constantinopla, o prefeito da
cidade (ou seu sucessor, o Grande Drungário) e o questor dividiam a
administração da justiça. Nas províncias, havia juízes na capital de cada “tema”,
que ouviam os casos de interesse local ou de menor importância; processos de
maior vulto, porém, eram levados para Constantinopla, a uma Alta Corte de doze
juízes. Um processo judicial era uma das poucas justificativas aceitas para uma
visita a Constantinopla, e imperadores pios como Romano I construíram
hospedarias para abrigar litigantes durante sua permanência na cidade. Os casos
nos quais os eclesiásticos estavam envolvidos eram ouvidos nos tribunais
eclesiásticos, que também podiam decidir os processos civis, se ambas as partes
concordassem. Aleixo I ampliou a competência desses tribunais, atribuindo-lhes
audiência em casos relacionados com casamentos e com doações de caridade. A
propósito disso, devemos lembrar que a Igreja era um departamento do Estado e
que Aleixo principalmente tinha sobre ela um controle muito firme. No governo
dos Paleólogos, quando os patriarcas desempenhavam um papel cada vez maior
na administração, a competência dos tribunais da Igreja foi ampliada, e na época
da conquista turca sua organização já era bastante grande para assumir toda a
jurisdição das populações: cristãs.
Os primeiros cristãos haviam determinado que a Igreja, para obter a mais ampla
influência possível, deveria modelar-se pela organização do Estado secular.
Desde os dias dos Apóstolos, as sés do cristianismo haviam sido colocadas nas
três capitais do mundo mediterrâneo — Roma, Alexandria e Antióquia — tendo
as outras cidades bispos e hierarquias segundo sua importância civil. Quando
Diocleciano reorganizou o Estado, a Igreja o acompanhou. A hierarquia teve
nova distribuição, para atender às novas províncias. A fundação da capital por
Constantino revolucionou a administração eclesiástica do mesmo modo pelo
qual revolucionara a administração secular. Bizâncio fora um bispado menor,
sob a jurisdição do metropolita de Heracléia, posição essa evidentemente
inadequada à nova capital cristã do mundo. O bispo de Bizâncio foi logo elevado
a patriarca de Constantinopla. Mas dentro da Igreja as velhas sés eram ciumentas
e resistentes: os imperadores heréticos e pagãos da Casa de Constantino não
puderam impor a nova autoridade do Estado. Somente sob o ortodoxo Teodósio
I reconheceu-se publicamente a nova situação eclesiástica de Constantinopla. O
Segundo Concilio Ecumênico deu ao patriarca de Constantinopla o segundo
lugar entre os patriarcas, “porque Constantinopla é a nova Roma”. O bispo da
Velha Roma tinha precedência, mas os patriarcas de Alexandria e Antióquia, e
seu recém-criado colega de Jerusalém, vinham depois dele. As províncias sobre
as quais a sé de Constantinopla passou a ter jurisdição foram a Ásia Menor e a
maior parte da península balcânica.
O Papa Leão coroou Carlos Magno num momento em que as Igrejas estavam
novamente em comunhão, e com isso tornou impossível ao governo imperial
acreditar futuramente no papado. Constantinopla considerou tal atitude como um
ato de traição. Mal se havia encerrado a questão iconoclasta, quando uma nova
disputa irrompeu; o Papa Nicolau I tentou intervir, estimulado pela parte
derrotada, numa querela interna da Igreja de Constantinopla. Quando se elegia
um novo patriarca para qualquer das grandes sés, era hábito que ele emitisse uma
declaração de fé, apresentando-a antes a seus colegas para aprovação. Nicolau
recusou-se a aprovar a carta de entronização do Patriarca Fócio, não devido à sua
fé, mas pelas dúvidas legais sobre sua eleição. Mas Fócio não se deixou
intimidar — os dois pontífices se excomungaram mutuamente, e pouco depois
Fócio, com grande satisfação, descobriu o papa subscrevendo uma heresia.
A disputa em torno de Fócio foi exacerbada por uma luta para assegurar-se o
domínio da nascente Igreja da Bulgária — luta em que Constantinopla foi
vitoriosa. Uma paz — sabiamente imprecisa — se fez após a segunda queda de
Fócio e durante século e meio as Igrejas viveram em comunhão completa,
ignorando a palavra Filioque. O Imperador Leão VI chegou a invocar a
autoridade doutrinária do papa para contrapô-la à do patriarca, na questão dos
quatro casamentos.
A história das relações entre as duas grandes Igrejas não é motivo de orgulho
para a cristandade. Tentar distinguir o bem do mal, moral ou historicamente, é
inútil, e os apologistas que escrevem longos trabalhos para justificar uma das
duas partes perdem seu tempo. A dificuldade essencial estava no fato de que
cada Igreja tinha sua concepção da organização e da autoridade cristã. Enquanto
Roma avançava cada vez mais pela trilha da infalibilidade papal, Constantinopla
permanecia fiel às ideias democráticas dos primeiros cristãos. “Como podemos
aceitar decretos sobre os quais não fomos consultados?” perguntava Nicetas da
Nicomédia a Anselmo de Havelbergue, quando debateram a questão da União,
no século XII. A exigência de completa submissão, feita em Roma, não
constituía uma resposta a essa pergunta.
Foram muitas essas Igrejas autocéfalas filiadas, pois a Igreja Bizantina era uma
grande força missionária. O Cáucaso, a península balcânica, as planícies russas,
todos devem seu cristianismo a Constantinopla, e Cirilo e Metódio, os apóstolos
da Europa Central, foram enviados diretamente da corte imperial. Parece ter
havido, na época de Fócio, uma escola em Constantinopla para a educação de
missionários que pretendiam catequizar os eslavos. O Governo secular tinha,
naturalmente, interesse em estimular uma obra que tendia a aumentar sua esfera
de influência, mas não há razões para duvidar das intenções verdadeiramente
altruístas da Igreja, nem para depreciar as vantagens da civilização que assim,
eram levadas às nações convertidas.
A Igreja Bizantina não tem sido tratada com simpatia pelos historiadores. Seu
espírito religioso não era o mesmo do Ocidente. Seu monasticismo tendia, cada
vez mais, a transformar-se em quietismo. Atribuía um valor quase histérico ao
arrependimento. Suas paixões se levantavam facilmente, e muitos de seus
sínodos e concílios foram marcados por cenas da mais imprevista violência.
Enquanto no Ocidente o problema escatológico era o que ocupava
principalmente o espírito dos cristãos, a Igreja Oriental ansiava pelo estado de
graça, pela relação adequada com Deus, aqui e agora. Para tanto, a natureza da
Encarnação de Cristo, seu Mediador, era de capital importância, e se lhe fosse
possível a união mística com Deus, todas as outras formas de religião
pareceriam, em comparação, indignas. Frequentemente, porém, a Igreja
Ortodoxa tem sido denunciada como não-intelectual e não-progressista.
Nenhuma dessas duas acusações tem fundamento. O quietismo e a doutrina da
Graça não demandam, é certo, um apoio intelectual, mas a longa série de
autores, de São Paulo a Genádio, de cujos serviços ela se utilizou, constitui uma
refutação suficiente. É verdade que a Igreja de Bizâncio não produziu um Tomás
de Aquino, e sua doutrina não foi muito além dos Sete Concílios. A razão disso,
porém, era uma certa tolerância, um sentimento de que o cristão devia abrir seu
próprio caminho para a salvação dentro dos estreitos limites das ortodoxas
determinações de fé dos Concílios. Não devia haver um escolasticismo rígido
para determinar-lhe o que e como pensar. Muitos problemas doutrinários eram
deixados sem solução, particularmente os de natureza escatológica, como a
existência do Purgatório. Estimulava-se o estudo da filosofia grega, desde que
não levasse à heterodoxia, como o neopaganismo de João Ítalo. O homem
comum sentia realmente que, por vezes, o estudo dessa filosofia ia longe demais,
constituindo uma ameaça ao Estado. Mas João Mauropo, bispo de Eucaita,
escreveu no século XI um poema em que pedia a Cristo considerasse Platão e o
neoplatonista Plutarco como cristãos, porque suas doutrinas eram extremamente
nobres. Psellos julgou aconselhável, quando mergulhava profundamente na
taumaturgia e na astrologia, assegurar às autoridades eclesiásticas de que nada
fazia contrário à doutrina cristã, e para tanto bastou dar sua palavra. Gemisto
Pléton, que previa o desaparecimento da cristandade nuns poucos anos, opôs-se
violentamente à Igreja Latina, numa disputa entre esta e a Igreja Grega, por
considerá-la como uma ameaça maior ao pensamento. Após a queda do império,
o último livro de Pléton foi banido da Igreja Grega, o que não pode surpreender,
dada a sua natureza abertamente anticristã. Genádio entristeceu-se muito com a
necessidade de suprimir um trabalho intelectual tão bom. (37)
A Igreja não tinha uma atitude intolerantemente rígida para com suas práticas.
Os ortodoxos podiam combater nos latinos o uso do pão ázimo e o jejum aos
sábados, mas os bons religiosos aprendiam que era necessário fazer concessões e
que, sob certas circunstâncias, as regras podiam ser violadas. São Simeão, o
Novo Teólogo, reprovou severamente seu discípulo Ârsênio, que se
escandalizara pelo fato de ter o Santo dado a um visitante dispéptico a carne de
pomba exigida por sua dieta, embora fosse dia de abstinência.
I. O EXÉRCITO (39)
A administração de Bizâncio estava intimamente relacionada com suas forças
militares. Com o império cercado de inimigos o governo não pôde nunca sentir-
se, nem por um momento, livre do perigo de uma invasão, de uma incursão que
poderia ameaçar a própria capital. Sua existência mesma dependia do controle
adequado das nações que o cercavam — da eficiência e da vigilância do exército
e da marinha e de uma diplomacia incessante.
Isso, porém, não bastava. O exército envelhecia, tanto nas táticas como no
equipamento. O legionário pesado já não era adversário para o cavaleiro dos
bárbaros. A vitória de Juliano contra os germanos em Estrasburgo, em 357, foi a
última vitória da infantaria romana. Vinte e um anos mais tarde, no colossal
desastre de Adrianópolis, ela deixou patente sua impotência contra os cavaleiros
godos. A utilidade da cavalaria já fora percebida, e seus efetivos aumentados.
Essa necessidade, porém, superava os contingentes existentes. Teodósio I,
convocado para reconstruir o império o mais depressa possível, revolveu usar,
contra a cavalaria bárbara, a própria cavalaria bárbara. Organizou os foederati,
regimentos bárbaros ou tribos inteiras, que serviam junto com os romanos, sob a
chefia de seu príncipe. Foi um remédio ditado pelo desespero, e arruinou o
Ocidente. Os foederati podiam conter Atila, mas seus chefes, transformados em
generais romanos, eram poderosos demais. Bárbaros como Ricimero e Odoacro
dispuseram da coroa imperial a seu bel-prazer, até se convencerem de que era
mais simples não ter nenhum imperador na Itália. No Oriente, após a derrota do
godo Gainas, a família imperial conseguiu conter os foederati até que Leão I e
seu genro Zeno lhes reduziram o poder, convocando tribos mais selvagens do
império, para enfrentá-los: os isáurios e armênios das montanhas asiáticas.
Foi o exército reorganizado por Tibério e Maurício que Heráclio levou à vitória
nas prolongadas Guerras Persas, e que, exausto, foi dominado pelas invasões
árabes. As conquistas sarracenas roubaram ao império o Egito, a África e a Síria,
e foi com dificuldade, após anos caóticos, que a fronteira da Ásia Menor pôde
ser defendida contra eles. Durante esse período, a reorganização do exército foi
completada, através de fases que não podemos acompanhar; até que no século
VIII, finalmente, os imperadores isáurios aperfeiçoaram o sistema do “temas”.
Tais recursos podem ter sido úteis, mas a força real dos bizantinos estava na
inteligência com que enfrentavam seus vários inimigos. Aprendiam os métodos
bélicos particulares de cada um dos adversários, e o melhor processo de anulá-
los. Assim, os francos foram vítimas de sua precipitação, pois facilmente se
deixavam levar a emboscadas. Seu abastecimento era mau, e a fome provocava
deserções. Eram indisciplinados e corruptos. Evitando uma batalha direta, onde a
coragem e força individual muito os ajudavam, constituíam um adversário fácil
de desgastar. Os turcos, que incluíam os magiares e os petchenegos, eram
também astutos, e suas tropas se constituíam de hordas de cavaleiros com armas
leves. O general bizantino devia, ao enfrentá-los, precaver-se contra emboscadas
e forçá-los à batalha o mais depressa possível. Seus cavaleiros pesados podiam
derrotá-las sem que os turcos conseguissem atingir as linhas da infantaria
bizantina. Os eslavos, infantes de armas leves, só eram perigosos em terreno
montanhoso e difícil. Nas planícies, seu armamento deficiente e sua indisciplina
não lhes permitiam resistir às tropas imperiais. Os sarracenos eram, portanto, os
inimigos mais importantes. Podiam reunir exércitos enormes, moviam-se com
grande rapidez e haviam feito estudos da arte da guerra. Continuavam, porém,
um tanto desorganizados, e seu ânimo se alquebrava à derrota. Um ataque
noturno num momento em que, carregados com os resultados das pilhagens, se
viam obrigados a mover-se mais devagar, podia lançá-los em pânico. Também o
clima os atingia, principalmente o frio e a chuva. Homem por homem, seus
cavaleiros não eram adversários para os bizantinos e portanto estes não temiam a
batalha aberta, exceto quando a proporção numérica era muito desfavorável.
Também a arte do sítio tinha suas regras especiais, segundo a natureza da cidade
sitiada e da região que a circundava. Tais regras foram cuidadosamente
estabelecidas, mas não eram rígidas. Um recurso novo era sempre bem recebido.
Cecaumeno pedia aos generais que pensassem sempre em novos métodos, e Ana
Comnena louvava seu pai, Aleixo I, pelas novidades por ele criadas. Os sitiados
deviam examinar e descobrir a força e o temperamento do inimigo. Cecaumeno
recomendava sortidas e certas artimanhas. Por outro lado, as fortificações foram
objeto de um estudo cuidadoso.
Informações diversas são dadas quanto ao salário das tropas. Os estrategos dos
“temas” militares da Ásia recebiam entre 20 a 40 fibras de ouro por ano. Os
turmarcas recebiam aparentemente pelo menos 3 libras, e os oficiais de menor
patente, 2 ou 1. Entre os soldados, os recrutas, ao que parece, ganhavam 1
numisma no primeiro ano, 2 no segundo, e assim por diante, até chegar a 12 ou
mesmo 18. Cecaumeno recomendava enfaticamente que o salário dos soldados
não fosse nunca reduzido. Calculou-se que os exércitos dos “temas” ocidentais,
inclusive a Trácia e a Macedônia, custavam ao Tesouro pelo menos 500.000
libras esterlinas, ou 22.500.000 francos-ouro por ano. O pagamento era efetuado
pelo cartulário de cada “tema”, autoridade essa controlada pelo governo central.
Frequentemente, porém, o pagamento dos soldados se fazia em terras. Os
soldados da cavalaria eram recrutados principalmente entre os pequenos
proprietários, que tinham uma obrigação hereditária de prestar serviço militar, e
em compensação estavam isentos de todos os impostos, exceto o territorial. A
obrigação do serviço militar podia, entretanto, ser evitada. A mãe de santo
Eutímio, o Jovem (n. cerca de 820), que era viúva, casou-o muito cedo para que,
tendo duas mulheres e uma casa a sustentar, pudesse ele livrar-se do serviço
militar. Os hetaerii eram tão bem remunerados que os estrangeiros costumavam
pagar para ser admitidos às suas fileiras.
No princípio do século XI, fora uma norma fixa não dar altos comandos a
estrangeiros. Pedro, sobrinho do rei da Germânia, que serviu sob Basílio II, com
todos os seus méritos não teve posto superior ao de “doméstico” provincial. No
governo dos Comnenos, os estrangeiros foram colocados em posições de grande
importância. O grande heteriarca de Aleixo era um cítio, mas apesar disso
Boemundo foi considerado como impertinente quando reivindicou o cargo de
“doméstico” do Oriente. Manuel I e Maria de Antióquia deram muitos dos
lugares mais importantes aos latinos.
Foi uma política errônea. No século IX, as frotas árabes voltaram a aparecer e
tomaram ao império a Sicília e, pior ainda, Creta, transformando-a numa base de
piratas que punha em perigo todo o litoral do Egeu. Tornava-se necessário
ressuscitar a armada. Seu renascimento coincidiu, possivelmente com razão, com
a morte final do iconoclasmo. Teodora e Miguel III, e, após eles Basílio I,
reorganizaram toda a marinha. Restauraram-se os “temas” marítimos e, um
pouco mais tarde, o “tema” de Samos, incluindo Estruma, foi criado. Os temas
europeus da Hélade, do Peloponeso, da Cefalônia e os temas italianos receberam
instalações navais. Uma grande frota imperial deveria estacionar em
Constantinopla, sob o comando do Grande Drungário, um dos altos oficiais da
hierarquia. Os estrategos dos “temas” navais tinham, porém, salário menor do
que seus colegas militares: apenas dez libras de ouro por ano.
A nova marinha era eficiente e teve êxito. Não pôde salvar a Sicília, mas
reconquistou o sul da Itália para o império, e suas expedições no Adriático,
comandadas pelo grande almirante de Basílio I, Oorifas, obrigaram a costa
dalmácia a recordar-se de uma aliança há muito esquecida. O pirata sarraceno
Leão de Trípoli conseguiu, apesar de tudo, saquear Tessalônica em 904, mas isso
lhe custou a vida alguns anos mais tarde. Sob Zoé Carbopsina, destruiu um
reduto de ladrões sarracenos no rio Garigliano, e sob Romano I realizou tarefa
semelhante bem mais longe, indo até Fréjus. Em 961 Creta foi retomada, após
duas tentativas fracassadas, em 902 e 949. Com isso, o poder marítimo dos
árabes estava encerrado, e Nicéforo Focas pôde dizer, sem mentir, ao
embaixador italiano Liudprand, “Somente eu domino o mar”. Já Constantino VII
havia reivindicado o direito de supremacia sobre o estreito de Gibraltar.
Mas o poder marítimo de Bizâncio, por sua vez, declinava. Em parte, a razão
disso era o poder excessivo a que podia chegar um almirante — Romano
Lecapeno teve em seu comando naval o melhor trampolim para o trono — o que
provocou a deliberada redução dos armamentos pelos imperadores civis do
século XI. A ausência de qualquer forte potência marítima rival fazia com que a
frota parecesse uma extravagância desnecessária. Já em 992 Basílio II atribuiu
aos venezianos o policiamento do Adriático, e permitiu-lhe levar tropas
imperiais, quando necessário. No Oriente, as conquistas dos seljuques
desorganizaram os temas marítimos. Na época de Aleixo Comneno, quando o
império necessitava novamente de navios para sua defesa, mercenários italianos
tiveram de ser contratados. Aleixo tentou reconstruir a armada imperial e
conseguiu uma frota capaz de enfrentar os pisanos e genoveses. Tempos depois,
entretanto, os Comnenos não dispunham nem de homens nem de dinheiro.
Manuel I gastou todos os recursos existentes em campanhas militares, e a frota
desapareceu. O resultado foi o desastre de 1204.
O navio de guerra bizantino era usualmente uma dromunda, birreme que podia
ter de 100 a 300 homens. Havia birremes de outros tipos, aparentemente mais
rápidas, chamadas panfilias. A nave capitânia era, no século X, uma panfília.
Havia ainda galeras com um único banco de remos. Também os barcos
mercantes podiam ser adaptados para a guerra. A armada de Justiniano II que
lutou contra Quersônia, incluía navios de carga, e foi uma frota improvisada de
velhos navios e cargueiros que derrotou os russos na invasão de 941, quando a
armada imperial estava longe, no Egeu.
Os navios podiam dispor de aríetes, mas sua grande arma era o fogo grego, (41)
substância química de composição variada e usada de formas diversas,
principalmente como granada de mão que explodia e se incendiava ao atingir o
navio inimigo ou, ainda, lançada em grande quantidade, pelo ar, através de
catapultas. Ao que parece, a pólvora foi usada, de alguma forma, para lançar
combustíveis através de tubos, a certa distância, A fórmula do fogo grego era
conservada em segredo rigoroso e jamais deveria ser conhecida. Havia depósitos
do fogo nas grandes cidades marítimas. A captura de Mesêmbria por Krum em
812 constituiu um grande desastre pelo fato de ter colocado nas mãos do cã da
Bulgária certa quantidade do fogo. A invenção é atribuída a uma certo Calinico
de Heliopolis no século VII e serviu para derrotar os árabes nos grandes sítios de
Constantinopla. Entretanto, é provável que suas várias formas só tenham sido
aperfeiçoadas no século IX. Leão VI fala do fogo como de uma descoberta nova.
No século X, Marcos, o Grego, dá sua fórmula, um tanto vagamente; e, ao que
parece, os árabes aprenderam a fabricá-lo antes das Cruzadas. O fogo só caiu em
desuso no século XIV, quando foi superado pela pólvora e pelo canhão.
As táticas recomendadas por Leão VI para a marinha são ainda mais cautelosas
do que as recomendadas para operações militares. As batalhas diretas deveriam
ser evitadas, exceto quando a armada inimiga estivesse em situação de
inferioridade; aconselhavam-se as escaramuças isoladas. Se a batalha fosse
inevitável, recomendava-se a disposição em forma de meia-lua, preferida dos
gregos antigos. A sinalização era feita com bandeiras e, à noite, com luzes. A
navegação era estudada com cuidado — ventos e correntes deviam ser
conhecidos e contra eles tomadas as devidas precauções. Evitavam-se os litorais
difíceis. Entretanto, se as condições atmosféricas pudessem ser usadas para
destruir uma esquadra inimiga, essa era a forma de vitória mais barata e, por
conseguinte, melhor.
III. A DIPLOMACIA
Embora organizassem bem seu exército e sua marinha, os bizantinos preferiam
economizá-los. Mantinham, por isso, uma diplomacia ativa, intrigando as nações
estrangeiras umas com as outras, a fim de manter um equilíbrio que impedia
qualquer inimigo em potencial de invadir o território do império.
Se Bizâncio devia sua força e segurança à eficiência dos seus Serviços Públicos,
era o comércio que lhe permitia pagá-los. Sua história é fundamentalmente a
história da sua política financeira e a do comércio da Idade Média.
Até Colombo e Vasco da Gama abrirem uma nova era, o principal comércio do
mundo realizava-se do Extremo Oriente para o Mediterrâneo. A esfera
mediterrânea podia abastecer-se de alimentos e suprir as próprias necessidades;
mas, sempre que se tornava próspera, punha-se a desejar os artigos de luxo que
só o Oriente podia fornecer. Nos primeiros séculos da era cristã, o comércio
oriental era muito florescente. Roma importava largamente especiarias, ervas e
madeira de sândalo das Índias e, acima de tudo, seda bruta da China. Tudo isso
custava bom preço e as exportações de vidro, esmalte e artigos manufaturados
do Mediterrâneo não eram suficientes para pagá-lo. Uma soma enorme de ouro
ia anualmente para o Leste e essa drenagem conduziu à depressão que
gradualmente envolveu o mundo romano. Mas a procura da seda continuava e a
busca de uma rota menos dispendiosa para importá-la passou a constituir a
preocupação das autoridades.
Várias rotas eram utilizadas pelo comércio oriental. Podia seguir através do
Turquestão até o Cáspio e daí, quer pelo norte até o Volga e o Mar Negro, no
Quersoneso, quer pelo sul, através da Pérsia Setentrional até Nisibin, na fronteira
imperial, ou através da Armênia, para Trebizonda. Podia atravessar a Índia e o
Afeganistão e o centro da Pérsia, até Nisibin ou a Síria; ou podia seguir por mar
até o Golfo Pérsico e então atravessar para a Síria; ou ainda fazer todo o trajeto
marítimo, Mar Vermelho acima até o Egito. Apenas duas rotas evitavam a
Pérsia, a do extremo norte, que dependia da rara estabilidade dos povos das
Estepes ou a do extremo sul, a rota marítima, que exigia uma frota mercante a
leste de Suez. A Pérsia constituía uma ameaça ao comércio. Levantava altas
barreiras tarifárias e, em tempo de guerra, cortava todo o abastecimento. Na
realidade, restrições forçadas periódicas não eram más para o equilíbrio
comercial do império, mas provocavam o desemprego nas suas fábricas de seda.
A diplomacia imperial, durante todo o século V e especialmente o VI, procurou
salvaguardar as duas rotas livres, negociando com os reinos dos hunos e turcos,
nas Estepes, ou com os abissínios, cujo Reino de Axum comandava o Mar
Vermelho.
Mesmo no século VIII, o comércio se desviara pelo Egito, África, Sicília e, por
Monenvásia, para o Egeu — a rota escolhida pela praga que devastou
Constantinopla sob Constantino V. Mas, gradualmente, as mercadorias orientais
redescobriram o caminho por terra através da Ásia Menor ou foram, com
frequência cada vez maior, ao Mar Negro, em Trebizonda, de onde naves gregas
as transportavam para o mercado de Constantinopla. A indústria da seda estava
crescendo, entretanto, e a fábrica imperial de Constantinopla logo se viu dona do
monopólio mundial de artigos manufaturados preciosos. Os árabes, a leste, e os
cazares, ao norte, assim como as nações ocidentais, todos clamavam pela compra
dos brocados de Bizâncio.
Nos séculos IX e X, o comércio bizantino atingiu o apogeu. Naves gregas
entregavam-se de preferência ao comércio de cabotagem, especialmente no Mar
Negro. O comércio do Mediterrâneo Oriental era pequeno. A importação de
milho do Egito e da África cessou com a conquista árabe e o constante
desenvolvimento da agricultura na Ásia Menor; e os piratas árabes do Egeu
desencorajavam os empreendimentos marítimos. Mas as mercadorias do
Extremo Oriente e as ervas da Índia ainda eram importadas, viajando, quer
através da Pérsia e da Armênia para Trebizonda, ou Golfo Pérsico acima para
Bagdá e daí na direção norte para o mesmo porto. Os árabes tinham dominado
todo o comércio do Oceano Índico — o Reino Axumita caíra — mas não
queriam abrir a rota de Suez. Harum Al-Raxide pensara em construir um canal
ali, mas temia que os navios gregos viessem a tomar o comércio do Mar
Vermelho. Mas isso apenas aumentava a importância de Trebizonda, que se
tornou o grande porto do Oriente. Depois da reconquista de Antióquia, certa
parcela do comércio oriental foi desviada por Alepo para Antióquia e para o mar,
em Selêucia. Entrementes, o comércio setentrional estava crescendo. As peles,
os escravos, o peixe salgado das Estepes eram trazidos pelos cazares e seus
vizinhos para Quersônia, na Crimeia, ou transportados por navios russos do
Dnieper para Constantinopla, enquanto o âmbar do Báltico e as peles e metais da
Europa Central se dirigiam a Tessalônica, de onde eram distribuídos por navios
gregos. Também navios gregos transportavam parte do comércio entre
Constantinopla e o Ocidente. Bari, a capital da Itália bizantina, era um porto
florescente, se bem que servido principalmente pela marinha mercante local. E
gradualmente as frotas mercantes italianas expulsaram os gregos das águas
italianas. O incremento da riqueza do Ocidente significava nova atividade em
todos os portos italianos. Cerca do século X, Amalfi e, em menor escala,
Nápoles e Gaeta, tinham desenvolvido amplas relações além-mar e, um pouco
mais tarde, apareceram os comerciantes pisanos e genoveses. Por volta do século
X, havia um Residente Amalfiense permanente em Constantinopla e uma
colônia crescente; em cerca de 1060, o patrício amalfiense Pantaleso possuía ali
um palácio magnífico. Mas o principal porto do Ocidente era Veneza,
admiravelmente situado para realizar tanto o comércio com a Lombardia como
com a Alemanha. Em fins do século X, o Adriático estava nas mãos dos
venezianos. Estes ainda eram nominalmente vassalos do império, e as
autoridades imperiais continuamente e com êxito variável publicavam editos
proibindo-os de negociar com os árabes. Basílio II concedeu-lhes privilégios
especiais; permitiu-lhes que pagassem um imposto de exportação reduzido à
saída de Constantinopla, sob a condição de policiarem o Adriático e garantirem
o transporte das tropas imperiais. O mercado de escravos de Veneza era
particularmente famoso. O embaixador de Basílio I ali adquiriu alguns
missionários eslavônicos e surgiam protestos frequentes contra a venda de
cristãos aos infiéis. Os embaixadores do Ocidente, tais como Liudprand, em
geral viajavam em navios venezianos, que também transportavam o correio.
Foi sua posição nas rotas do comércio mundial que deu a Constantinopla seus
grandes dias de prosperidade. Uma taxa geral de 10% recaia sobre todas as
exportações e importações. Os direitos de importação eram cobrados em Abidos,
no Helesponto, ou em Hierão, no Bósforo; os direitos de exportação, em
Constantinopla. Até que os italianos obtivessem privilégios especiais, nenhuma
mercadoria podia passar pelos canais sem pagar direitos. Estes forneceram ao
Tesouro Imperial um fluxo constante de riqueza, enquanto os vizinhos do
império foram bastante prósperos para comprar mercadorias aos preços gravados
por essa sobrecarga. Quando o mundo inteiro, como no século VII, ou mesmo
apenas o Oriente, como no século XI, se encontrou num estado de desordem e
empobrecimento, imediatamente o império veio a sofrer. Suas alfândegas
tornaram o comércio de trânsito demasiado dispendioso.
Ele também sofreu pelo fato de as manufaturas locais serem de artigos de luxo.
As fábricas situavam-se sobretudo em Constantinopla. A maior delas era
provavelmente o gineceu imperial, em que numerosos operários e mulheres eram
empregados na confecção das sedas, brocados e tecidos dourados que faziam o
encanto do mundo. Os ourives e joalheiros tinham quase a mesma importância.
As taças de ouro, os relicários esmaltados, os entalhes em marfim ou pedras
preciosas de Bizâncio eram igualmente famosos, e de vez em quando produziam
uma obra-prima como os leões de ouro do Palácio, que rugiam. Várias partes do
império também produziam vinhos, vendidos às tribos do Norte. Essas
exportações eram severamente controladas. Não interessava às autoridades
permitir que os artigos de luxo se tornassem muito vulgarizados fora do império.
Seu preço e sua raridade tinham que ser mantidos. Alguns tecidos nem sequer
eram colocados no mercado e só chegavam ao exterior como presentes
ocasionais a cortes estrangeiras. Liudprand, o embaixador italiano, que tentou
contrabandear algumas sedas para fora de Constantinopla em 968, viu-as
confiscadas pelos funcionários da alfândega. As mercadorias, antes de
exportadas, tinham de ser marcadas com o sinete do Estado.
Outras cidades possuíam suas fábricas. Antes da conquista árabe, Tiro, Bérito e
Alexandria fabricavam seda e, por volta do século XI, Tebas e Corinto eram
centros dessa indústria. Fabricavam-se tapetes no Peloponeso. Cerca do século
X, Esparta os exportava para a Itália.
Tudo era circunscrito. O dinheiro só podia ser emprestado a uma taxa de juros
fixa. Antes de Justiniano, a taxa máxima tinha de ser de 12%. Justiniano
permitiu 12% apenas para dinheiro empregado em empreendimentos
ultramarinos; os agiotas profissionais (em geral, os ourives) podiam cobrar 8%,
as pessoas comuns 6% e os magnatas ricos apenas 4%. Mas esses cálculos
tinham sido efetuados originalmente quando havia 100 numismas para 1 libra de
ouro. Constantino reduziu o número de numismas para 72 e através da história
bizantina a taxa fixa de juros tendeu sempre a ajustar-se ao novo valor, com
vantagens para o agiota, até que, cerca do século X, 6% tinham-se transformado
em 6 numismas por 1 libra de ouro, o que significa 8,33%. Mas isto ainda não
era bastante; tempestades, piratas, cartas geográficas defeituosas, representavam
demasiados perigos de viagem. Os investidores, particularmente porque o
processo legal de recuperação de dívidas era difícil e demorado e causava
prejuízos aos usurários, preferiam naturalmente investir em terras, em
detrimento, em última análise, do império. Os riscos do comércio marítimo são
melhor ilustrados pelo “Código Ródio”, a lei comercial dos Isáurios. Segundo
essa lei, a hipótese era a de que o mercador e o armador, em geral o comandante,
trabalhavam de sociedade e compartilhavam os encargos de qualquer dano
sofrido pela carga, embora os passageiros também pudessem ser sócios da
companhia. É provável que essas condições se tenham mantido mesmo depois da
legislação isáuria se ter tornado obsoleta.
Nenhuma outra raça imigrou em escala tão importante quanto a armênia, mas
através da história bizantina um fluxo de aventureiros, provenientes de inúmeros
países, veio buscar fortuna sob o imperador. A passagem de um lado para o
outro da fronteira sarracena era contínua. Os bizantinos passavam-se para o Islã
e os árabes para o cristianismo, conforme o imperador ou o califa oferecessem
melhores oportunidades. O pai do herói épico Digenes Acritas era um converso
sarraceno; o Imperador Nicéforo I era de sangue árabe. Os imigrantes do Norte e
do Oeste, especialmente nos últimos séculos do império, tendiam a voltar aos
seus lares uma vez feita fortuna — os varangios para as brumas da Escandinávia
ou da Inglaterra, os francos para a Flandres ou a Catalunha. Mas por vezes
ficavam; casavam-se; seus filhos mestiços podiam vir a governar o império na
próxima geração. Havia muito pouco preconceito racial entre os bizantinos, seu
sangue era misturado demais. Quem fosse ortodoxo e falasse grego era aceito
como cidadão. Seu profundo desprezo pelos estrangeiros dirigia-se aos heréticos
e selvagens ignorantes dos refinamentos da civilização imperial. O estrangeiro
convertido e naturalizado podia desposar qualquer bizantino, qualquer que fosse
sua origem. As mulheres nobres bizantinas casavam-se livremente com
aventureiros francos ou orientais, e entre as noivas dos imperadores contam-se
duas cazares de pura origem turca e inúmeras princesas ocidentais. É verdade
que quando Justiniano II obrigou uma dama de família do Senado a desposar seu
cozinheiro negro, os cortesãos se sentiram ultrajados, mas com certeza mais por
preconceito social do que racial. O crescente contato com o Ocidente e o lento
martírio do império às mãos das repúblicas italianas tornaram os estrangeiros
mais odiados em Constantinopla, mas era antes a civilização do que o sangue
que constituía o anátema. As nações eslavas que deviam sua cultura a Bizâncio
só abrigavam esses ódios raciais em tempo de guerra e mesmo os turcos, que
copiavam os engodos de Bizâncio, pareciam preferíveis aos seus irmãos cristãos
francos.
A única raça instalada no império que nunca pôde ser assimilada devido a
religião foi a judaica. Os judeus nunca foram, porém, muito numerosos. Havia
colônias suas, de língua grega, na Ásia Menor, mas no século XII, pelo menos,
encontravam-se pequenas colônias judaicas em todas as cidades bizantinas; nos
negócios, porém, eles não eram mais astutos do que os gregos e armênios e, ao
que parece, estavam sujeitos a impostos maiores e perseguições periódicas. No
caso de se converterem, porém, podiam até unir-se às fileiras da aristocracia. A
irmã da Imperatriz Irene desposou um descendente de um certo Sarantapequis,
judeu renegado de Tiberíades.
Junto ao Palácio havia dois outros grandes centros da vida da Cidade, a Igreja da
Sabedoria Divina, Santa Sofia, e o Circo ou Hipódromo. O Hipódromo era uma
vasta construção, capaz de conter umas 10.000 pessoas sentadas. Nos edifícios
que se aglomeravam em torno ficavam os estábulos de todos os animais usados
nas lutas, e os tugúrios dos inúmeros empregados do Circo. Os espetáculos eram
gratuitos, subsidiados pelo Estado. Assistir aos jogos no Hipódromo, aos
combates com animais e às corridas de carros eram as grandes distrações do
populacho e, na competição entre as facções do Circo, os Azuis e os Verdes, as
paixões eram tão exaltadas que chegavam a causar complicações políticas e
motins. O imperador e a imperatriz eram obrigados a assistir aos espetáculos;
podia-se chegar ao camarote imperial vindo diretamente do Palácio. Seus
movimentos obedeciam a um ritual complicado, que prescrevia todo o processo
da corrida e da premiação. Nos primeiros séculos, o Hipódromo tornou-se o
local onde o imperador podia avistar-se com o povo e fazer-lhe proclamações.
Ali era aclamado imperador. Foi lá que Ariadne anunciou a seus súditos quem
havia escolhido para esposo e imperador; foi lá que Justiniano discutiu com os
amotinados enfurecidos na sedição de Nica. Mais tarde, porém, cerca do século
X, essas cenas passaram a ter lugar na grande praça fronteira ao Palácio. Foi ali
que o populacho exigiu Constantino VII como imperador em 944 e Zoé como
imperatriz em 1032. O Hipódromo tornava-se menos popular. Os corredores de
carros dos séculos V e VI, como Porfírio, no reino de Anastásio, tinham sido os
ídolos da cidade e as intrigas do Hipódromo, tais como as que cercavam o
juventude de Teodoro, podiam afetar a política do império. Por volta do século
IX, tudo estava mudado. O corredor de carro profissional mergulhou na
obscuridade. Era o cavaleiro amador, como Basílio, o Macedônio, que atraía a
atenção, ou como Filoreu, o moço de cavalariça do século X, que foi alvo da
admiração de toda Bizâncio por ter galopado em redor do Circo de pé sobre o
cavalo, manejando a espada com ambos as mãos. A introdução da cavalaria
ocidental por Manuel Comneno fez do Hipódromo durante algum tempo o local
de torneios de cavalaria. Sob os Paleólogos, foi praticamente abandonado,
embora jovens príncipes e nobres o frequentassem de tempos em tempos para
praticar a cavalaria e para jogar polo.
Todos os nobres que dispunham de recursos possuíam casas na cidade, embora
pudessem visitar suas residências de campo no verão; no entanto, a residência
permanente forçada nestas últimas equivalia ao exílio e à desgraça. Em geral, os
homens ocupavam alguma posição no governo e passavam o tempo
desempenhando essas funções. Em caso contrário, com suas mulheres,
ocupavam-se na corte imperial — nos dias de festa os homens desfilavam
cerimoniosamente diante do imperador e as senhoras diante da imperatriz — e
entregavam-se às intrigas. Tanto quanto possível transformavam seus palácios
em pequenas cortes, formando um círculo de clientes, santos e poetas. A
primitiva nobreza do império tinha a fortuna e o poder durante as invasões do
século VII e sob a tirania dos imperadores, tais como Focas e Justiniano II. Até o
século IX a terra constituía um investimento incerto. À única grande família que
sobreviveu foi a dos Melissenos, que parece ter sido originária de Constantinopla
e obtido sua riqueza provavelmente através de propriedades urbanas, embora
mais tarde se tenha estabelecido na península grega e ainda era florescente no
próprio crepúsculo do império — a última duquesa de Atenas era uma
Melissena. Mas, a partir da segunda metade do século IX, as famílias parecem
possuir grandes propriedades na Ásia Menor, por exemplo, os Focas, os Ducas,
os Escleros, os Comnenos. Um pouco mais tarde, depois que a conquista da
Bulgária fixou as províncias da Europa, as grandes famílias europeias entraram
em cena: os Cantacuzenos, os Briênios ou os Tornicas, uma casa principesca da
Armênia, estabeleciam-se nas proximidades de Adrianópolis, enquanto os Ducas
adquiriam propriedades na Europa. Traçar a descendência das grandes famílias
bizantinas é, porém, difícil, de vez que, quer por requinte, quer por amor à
variedade, os filhos frequentemente tomavam o nome da mãe, e não o do pai.
Assim, o pai de Ana Dalassena chamava-se Cáron, sendo Dalassena o nome de
sua mãe; o último Ducas, segundo Psellos, só era Ducas pela linha feminina; os
filhos de Ana Comnena tinham os sobrenomes Comneno e Ducas, enquanto seu
pai era um Briênio.
A vida dos pobres é mais ou menos igual em qualquer época ou país e decorre
numa ansiosa luta pelos meios de subsistência. Os pobres de Constantinopla
viviam em grande miséria, seus casebres acotovelando-se ao lado dos palácios
dos ricos, mas passavam talvez melhor do que os pobres de muitas nações. O
Circo, sua única recreação, era-lhes aberto gratuitamente. A distribuição gratuita
de pão tinha cessado com Heráclio, mas os homens que trabalhavam para o
Estado na conservação dos parques e aquedutos, na reparação ou no serviço das
padarias do Estado ainda recebiam comida de graça. Era função do questor
providenciar para que os desvalidos tivessem trabalho útil e que não houvesse
desemprego. Para promover esse estado de coisas, ninguém podia entrar na
cidade, a não ser autorizado. Havia, além disso, abrigos e hospitais para os
velhos e enfermos, fundados em geral pelo imperador ou por algum nobre,
anexos a um mosteiro ou convento, que os administravam. Possuímos vários
títulos de diversas fundações dos Comnenos. Para os filhos dos pobres havia
orfanatos do Estado. O orfanótrofo, funcionário encarregado dos orfanatos, tinha
sido a princípio considerado um membro importante da hierarquia do Estado,
dispondo de enormes somas sob seu controle. Sob os iconoclastas, a Igreja,
durante certo tempo, apoderou-se dos orfanatos, mas os imperadores macedônios
os retomaram para as autoridades civis e realçaram a posição do orfanótrofo. O
maior orfanato ficava dentro dos muros do Grande Palácio. Um terremoto o
destruiu no remado de Romano III, mas Aleixo I tornou a fundá-lo, esquecendo
os encargos do Estado quando cuidava das crianças.
Com todas essas instituições de caridade era provável que existisse de fato pouca
fome. Note-se que quando o populacho se sublevava em arruaças nunca era
levado por desejos anárquicos ou comunistas. O povo podia depor um ministro
opressor ou destruir estrangeiros odiados, mas nunca procurava alterar a
estrutura da sociedade. Na realidade, era para salvar o rubro sangue imperial do
excesso de ousadia de algum usurpador que o povo, o mais das vezes, dava
expressão à sua soberania básica.
Havia, no entanto, além dos pobres livres, uma considerável população escrava.
Qual era seu número é impossível dizer. Logo se sentiu que não era correto
escravizar cristãos, embora os servos dos distritos rurais fossem pouco menos do
que escravos. Mas em todo caso, até o século XII, os infiéis e os escravos pagãos
eram empregados no serviço particular, nas minas do Estado e em outras obras
oficiais. Eram cativos sarracenos não-resgatados ou, mais frequentemente,
vinham como mercadorias, trazidos pelos mercadores das Estepes. Em particular
os russos costumavam vender as vítimas das suas incursões nos mercados de
Constantinopla. Mas durante todo o tempo havia um sentimento crescente contra
a escravatura. Teodoro de Estúdio proibiu os mosteiros de empregar escravos e
lançou um imposto especial sobre estes últimos. Aleixo I, em particular, legislou
no sentido de permitir que eles se casassem livremente. No entanto, mesmo em
fins do século XII, o Arcebispo Eustátio de Tessalônica possuía um grande
número de escravos que exigiu fossem libertados após a sua morte, porque a
escravidão não era natural. Gradualmente, o desenvolvimento da civilização
elevou o preço da mercadoria humana a alturas impossíveis, mas ainda se
encontravam escravos domésticos em Constantinopla no século XIV. Os
escravos em mãos de particulares provavelmente levavam vida bastante
confortável e não intolerável, embora seus companheiros de propriedade do
Estado pudessem ser tratados como gado (47).
A narrativa de Psellos sobre a vida familiar, na oração fúnebre a sua mãe, mostra
uma família muito unida, que ela dominava inteiramente, A única pessoa que
Psellos verdadeiramente amava era uma irmã, morta aos dezoito anos. Não eram
muito abastados, mas tinham um ou dois criados, e Teódote achou tempo, depois
de seu casamento, para aprender a ler e escrever corretamente, porque sua
educação tinha sido descurada de maneira invulgar. O pai era mercador, mas
Psellos, com suas aptidões excepcionais, foi educado para ser erudito e até o
mandaram viajar, para estudar com os melhores mestres. Era uma família muito
piedosa, especialmente Teódote, que alimentava uma esperança de que Psellos
abrigasse ambições eclesiásticas.
A casa do turmarca de Dizia era um pouco mais rica. Possuía diversos criados e
um gineceu, mas sua tentativa para manter a esposa dentro do gineceu foi
consideraria como errada, e pouco cristã a atitude de impedir que ela fosse à
festa do domingo anterior à Páscoa.
Para que um rapaz tivesse realmente êxito poderia ser sensato mandar castrá-lo,
porque Bizâncio era o paraíso dos eunucos. Mesmo os pais mais nobres não
hesitavam em mutilar seus filhos para promover o seu progresso, nem havia
nisso nenhuma desgraça. Um eunuco não podia usar a coroa imperial nem
tampouco, por sua natureza, transmitir direitos hereditários e nisso residia seu
poder. Um menino nascido muito perto do trono podia ser, assim, afastado da
sucessão, seguir tranquilo, atingindo altas posições. Assim Nicetas, filho de
Miguel I, foi castrado quando seu pai caiu e mais tarde, apesar do seu
nascimento perigoso, chegou a ser o Patriarca Inácio. Romano I castrou não
apenas seu filho bastardo Basílio, que, como Paracomomeno, o Grande
Camareiro, dirigiu o império durante várias décadas, mas também seu filho
legítimo mais moço, Teofilacto, que ele desejava viesse a ser patriarca. Grande
proporção dos patriarcas de Constantinopla era de eunucos, e os eunucos
recebiam estímulos especiais no serviço civil, onde um portador castrado de um
título tinha precedência sobre o competidor não-mutilado e onde muitas carreiras
eram reservadas apenas aos eunucos. Mesmo no exército e na marinha o eunuco
ocupava frequentemente um comando. Narses, no século VI, e Nicéforo Urano,
no X, foram talvez os exemplos mais brilhantes. Aleixo I tinha um eunuco por
almirante, Eustátio Cimineano, e após o desastre de Manziquerte foi um eunuco,
Nicéforo, o Logóteta, que conseguiu reformar o exército. Uns poucos postos, tais
como a prefeitura da cidade, lhes eram tradicionalmente vedados; entretanto,
somente quando as noções ocidentais de sexo e cavalaria começaram a
influenciar Bizâncio foi que se começou a estigmatizar a castração. Na realidade,
foi o emprego de eunucos, de uma forte burocracia controlada por eunucos, a
grande arma de Bizâncio contra a tendência feudal da concentração do poder nas
mãos de uma nobreza hereditária, que provocou tantas perturbações no Ocidente.
A significação dos eunucos na vida bizantina era a de que davam ao imperador
uma classe dirigente na qual ele podia confiar. Não há tampouco nenhuma
evidência de que suas limitações físicas deformassem seu caráter. Através da
história bizantina, os eunucos não parecem mais corruptos nem intrigantes, nem
menos vigorosos ou padiolas do que seus companheiros mais completos.
Nas classes inferiores, os eunucos eram mais raros, embora pudesse ser de
utilidade para a clientela de um médico o fato de ser ele castrado, como neste
caso poderia atender os conventos e hospitais de mulheres. Algumas instituições
femininas porém eram tão estritas que só permitiam médicas.
A fluidez geral da sociedade era fomentada pelo interesse geral pelo comércio. A
ideia de que ganhar dinheiro fosse coisa degradante é outra noção ocidental
alheia a Bizâncio. A corte imperial era a maior casa comercial de
Constantinopla, com o seu monopólio do negócio da seda, Nicéforo Focas
especulava no comércio do trigo, com lucro maior do que honestidade, enquanto
João Vatatzes ganhou com a sua granja avícola dinheiro bastante para comprar
uma nova coroa para a imperatriz. A nobreza frequentemente entregava-se a
atividades comerciais; a viúva Danielis era fabricante de tapetes e o favorito de
Leão VI, Músico, tinha interesses no porto de Tessalônica. Até a Igreja figura
ocasionalmente como empresa bancária, financiando as guerras de Heráclio
contra os persas. Não era porém possível fazer uma grande fortuna no comércio.
Com os severos regulamentos impostos pelo Estado para o bem-estar dos
cidadãos, os lucros eram forçosamente mantidos em baixo nível. Mas é provável
que o controle do Estado fosse exercido com certa elasticidade. Os pais de São
Tomás de Lesbos, cujo negócio ia mal na ilha, foram autorizados a mudar se
para Calcedônia e ali instalar seu comércio, apesar da desaprovação oficial à
movimentação dentro do império, e a proibição de imigração em Constantinopla
não impedia um grande número de armênios de se transferirem para a capital e
abrir lojas e fábricas.
A vida nos distritos rurais não era, em absoluto, uniforme. Nos distritos europeus
podiam-se encontrar eslavos, albaneses ou valáquios levando uma existência
pastoral segundo velhos costumes tribais através das propriedades da nobreza
greco-romana. Mesmo na Ásia Menor havia pequenas colônias de raças
alienígenas, sírios, possivelmente, ou búlgaros, esparsos pelas terras. Em
conjunto, o campo era ocupado pelas comunidades rurais de duas espécies, a
serva e a livre (48). O aldeão, ou servo, estava preso ao solo, cujo proprietário
pagava os impostos, mas também tomava o produto da terra. Os filhos dos
servos eram servos como seus pais, embora por favor dos senhores pudessem ser
liberados e entrar em outras profissões, tais como a Igreja. Havia também
agricultores arrendatários em muitas propriedades de ricos, que pagavam o
aluguel em dinheiro ou em espécie e eram contados como homens livres, mas na
prática não tinham possibilidade de mudar seu destino para melhor. Estavam
fixados onde se encontravam. O aldeão estava quase igualmente preso ao solo,
porque as autoridades centrais não gostavam de deserções da terra. Sua grande
preocupação era o abastecimento de Constantinopla e para tal os trigais das
províncias, da Trácia e da Ásia Menor, tornavam-se cada vez mais necessários.
O aldeão livre devia pagar certos impostos sobre sua propriedade, o mesmo
ocorrendo a seus herdeiros, o que dificultava sua liberação da terra. Por
conseguinte, não podia deixar a aldeia. Outro sistema estreitou esses laços ainda
mais. A comunidade rural foi taxada como comunidade. Assim, se qualquer
membro faltasse ao pagamento do imposto, um ônus extra recaía sobre todos os
seus vizinhos. Era de interesse deles, portanto, conservá-lo trabalhando em seu
meio.
Os aldeãos servos tinham sido mais comuns no tempo dos grandes proprietários
de terras do começo do império, mas no caos dos fins do século VI e do século
VII, a sociedade rural foi reorganizada e as comunidades livres tornaram-se a
regra geral. O Estado costumava pagar aos soldados com doações de terras,
conservadas sob condição de serviço militar, criando assim uma classe de
pequenos proprietários rurais militares hereditários. Gradualmente, à medida que
a ordem era restaurada, o grande proprietário rural reaparecia. O rico assumia as
obrigações do homem pobre e assim transformava-o num locatário ou num
servo. Às vezes a safra falhava e o pequeno proprietário não podia mais existir
como homem livre. Ou um aldeão piedoso morria e deixava sua propriedade
para a Igreja, e a Igreja, tal como a nobreza, procurava investir seus bens em
terras. Assim, apareciam novos magnatas territoriais leigos e eclesiásticos, que
eram perigosamente ricos e cuja intervenção perturbava o sistema tributário.
Contra isto legislaram, em vão, vários imperadores. Romano I em seus estatutos
da preempção ordenava que apenas os pobres podiam comprar terras dos pobres
e o comprador devia pertencer a uma comunidade rural, tendo os parentes
precedência na oferta. Mas embora os imperadores subsequentes insistissem
nessas determinações elas eram sem dúvida inúteis porque nas épocas difíceis
apenas os ricos tinham dinheiro para pagar os impostos que o Estado exigia sem
piedade. Era um círculo vicioso, levando inevitavelmente o pequeno proprietário
livre a se tornar cada vez menos frequente à medida que os séculos avançavam;
os Isáurios haviam tentado abolir a servidão; os Macedônios foram obrigados a
restaurar seu direito legal.
O amor que dedicavam à beleza era ainda mais profundo. A beleza humana os
atraía. No século VII, os soldados quiseram fazer do armênio Mizizo imperador
porque o achavam belo. A absurda Imperatriz Zoé salvou-se do ridículo pela sua
beleza. Mesmo nos sessenta anos parecia uma jovem, com seus cabelos louros e
sua pele impecável, e os simples vestidos brancos que usava eram objeto de
grande admiração. Amavam as belas paisagens. Jardins, parques e flores
constituíam para eles objetos de encantamento — os jardins de Digenes Acritas
são descritos com grande entusiasmo — e construíam seus mosteiros em locais
de onde se descortinavam os mais belos panoramas que pudessem encontrar.
Seus edifícios, seus tecidos, seus livros, tudo refletia o mesmo anseio de beleza,
mas uma beleza não inteiramente deste mundo. A beleza possuía um sentido
interior para eles. Ajudava-os na contemplação mística; era parte da glória de
Deus. A vida era monótona e feia, mas o adorador, o cidadão de Santa Sofia ou o
eremita do Monte Atos estava longe de tudo isso. A arquitetura humana da
Catedral e a divina arquitetura da Montanha o elevavam acima do mundo
comum e o aproximavam de Deus e da Realidade Verdadeira. Para os
bizantinos, a beleza e a religião caminhavam de mãos dadas, para vantagem de
ambas.
Uma boa educação era o ideal de todo bizantino. Apaideusia, a falta de cultura
mental, era considerada um infortúnio e uma desvantagem, quase um crime. O
ignorante era alvo de constantes zombarias — o grosseiro Imperador Miguel II,
vítima de inúmeros libelos, o patrício eslavo Nicetas, de quem Constantino VII
zombava, o filósofo João Ítalo, que nunca perdera o sotaque italiano, e
Constantino Margarites, cuja linguagem era tão vulgar (parecia criado com
cevada e farelo) — enquanto escritores tais como Ana Comnena elogiavam
sempre a pessoa dotada de espírito bem cultivado.
O Imperador Romano III, que se orgulhava da própria cultura, nada fez para
remediar a situação. Mas Constantino IX impelido pela lamentável situação do
conhecimento jurídico — os advogados eram quase todos autodidatas e
incompetentes — fundou em 1045 uma escola de Direito que todos os
advogados eram obrigados a frequentar antes de exercer a profissão; e ao mesmo
tempo estabeleceu uma cadeira de Filosofia, compreendendo Teologia e os
clássicos. O professor de Direito, a Nomophylax, era o reitor da Universidade.
Constantino nomeou para o posto um juiz notável, João Xifilim, enquanto
Psellos se tornava professor de Filosofia. Parece que esta organização durou até
1204. As facilidades educacionais aumentaram quando Aleixo I voltou a fundar
as escolas-orfanatos. A Universidade do Estado e os Orfanatos estavam
diretamente subordinados ao Imperador. Ele nomeava, pagava e demitia os
professores e frequentemente inspecionava as aulas, fazendo perguntas e
assistindo às preleções — existe ainda um retrato de Miguel VII ouvindo uma
conferência de Psellos. Aleixo advogava, acima de tudo, o estudo da Bíblia, mas
no tempo dos Comnenos o ensino dos clássicos teve um impulso que nunca
alcançara antes. É no entanto difícil dizer até que ponto o ensino atingia as várias
camadas sociais. O poeta paupérrimo Pródromo estudou Gramática, Retórica,
Aristóteles e Platão, mas queixava-se de que os sotaques ásperos da praça do
mercado tinham expulsado a prosódia elegante e que os pobres não dispunham
de bibliotecas para estudar. De fato a falta de bibliotecas parece ter constituído
uma dificuldade constante. Desde 476 não havia biblioteca pública. Os mosteiros
e as igrejas possuíam frequentemente bibliotecas, mas, se a coleção de livros do
estabelecimento de São Cristódulo em Patmos era típica, aquelas eram em
primeiro lugar teológicas. De 330 livros de Patmos, 129 eram de liturgia e
apenas 15 seculares. Por certo existiam grandes bibliotecas particulares, às quais
sem dúvida tinham acesso os eruditos; e havia numerosos escribas —
principalmente leigos, embora alguns monges fossem copistas — que copiavam
manuscritos; os belos livros constituíam um dos produtos de exportação de
Bizâncio. Mas os livros continuavam caros. No princípio do século X, Aretas, o
bibliófilo bispo de Cesaréia, pagou 4 numismas — quase CrS 900.00, segundo o
poder aquisitivo atual — por uma boa edição de Euclides.
Se havia alguma escola do Estado no tempo dos Paleólogos, não se pode saber.
Gregos de todo o mundo, particularmente os cipriotas, ainda gostavam de vir a
Constantinopla para seus estudos; mas é provável que tivessem que estudar em
academias particulares de diversos professores. As escolas religiosas
provavelmente continuavam, mas agora seus currículos se limitavam, sem
dúvida, à Teologia. Apesar disso, a extensão do ensino era com certeza muito
ampla e viajantes estrangeiros ficavam vivamente impressionados pela pureza do
grego falado pelos poucos habitantes da Cidade até as vésperas de sua queda.
A História também não era matéria de erudição. Pelo contrário, a julgar pelo
número de historiadores e ainda mais de cronistas populares e as edições
frequentes das crônicas, parece tratar-se de assunto de interesse geral. Os
bizantinos gostavam de ler a respeito das passadas glórias do império e as
crônicas preferidas chegavam até à Criação e a Adão e Eva, incluindo a Lenda
de Tróia. Os imperadores e santos do passado surgiam vividos diante dos seus
olhos. Um dos mais comoventes momentos da reconquista de Constantinopla em
1201 foi quando Miguel Paleólogo encontrou numa capelinha diante das
muralhas o corpo de seu grande antecessor, Basílio, o matador de búlgaros. O
imperador morto há tanto tempo foi novamente sepultado com o maior
entusiasmo. E Constantino XI, quando a cidade estava caindo, pôde estimular
seus concidadãos a um esforço final, falando das proezas de seus ancestrais da
antiga Grécia e de Roma.
À Teologia continuou uma ciência à parle, sob o controle da Igreja. Mas era uma
ciência muito complicada e a sutileza e a erudição dos grandes teólogos — João
Damasceno ou Fócio, Marcos de Éfeso ou Bessarion — eram imensas. Homens
educados gostavam de se dedicar à Teologia — Fócio deve ter adquirido seus
vastos conhecimentos como leigo — principalmente os imperadores como
Chefes Supremos da Igreja, mas esses amadores imperiais raramente eram bons
teólogos. Os Isáurios, de fato, levaram o império a heresias horríveis. Justiniano
e Heráclio, apesar de sua admirável piedade, enveredaram por um caminho
errado e Manuel I tentou ser hábil demais na questão do halosfirismo, enquanto
muitos dos Paleólogos enganaram-se com os erros dos latinos. Até o erudito
João Vatatzes demonstrou uma lamentável ignorância em relação a duas
espécies de culto, proskunêsis e latreia. Era mais sensato admirar a Teologia de
longe. Ana Comnena ficou vivamente surpreendida ao descobrir que a leitura
favorita de sua mãe eram as obras do místico do século VII, Máximo, o
Confessor.
Nos séculos VI e VII, houve ainda grandes escritores religiosos, tais como
Leôncio de Bizâncio e o místico Máximo, o Confessor, cujas obras eram difíceis
demais para a compreensão de Ana Conmena, embora sua mãe quase não lesse
outras. Mas já a Teologia se tornava polêmica e de certo modo perdera sua
antiga plenitude. Os grandes teólogos iconódulos, João Damasceno, Teodoro de
Estúdio e o Patriarca Nicéforo, e mais tarde o anti-romano Fócio, estavam
demasiado ocupados em contar pontos na argumentação de suas obras teológicas
para possuírem o alcance dos Pais primitivos. Depois de Fócio, a Teologia em
Bizâncio quedou adormecida por mais de dois séculos, até que no tempo dos
Paleólogos floresceram o grande antibogomilo Eutímio Zigabeno e os teólogos
humanistas dos fins do século XII, Eustátio de Tessalônica e Miguel Acominato
de Cone. Na época dos Paleólogos, a questão hesicasta e a questão romana
deram novo ímpeto à Teologia. Os participantes da última, Marcos de Éfeso e
Genádio, de um lado, e Bessarion, de outro, não passavam de secos polemistas,
mas do hesicasina emergiam algumas das mais belas obras do misticismo
oriental, os de Palamas e Nicolau Cabasilas.
Próximos dos historiadores e até mais numerosos foram os biógrafos. Estes eram
quase exclusivamente hagiógrafos. Desde que Atanásio escreveu sua Vida de
Santo Antônio, raro o eminente eclesiástico que não foi objeto de uma Vida, em
geral variando de mérito de acordo com a posição do herói. Há poucas vidas de
santos dos primeiros séculos, exceto por diversas biografias curtas escritas por
Cirilo de Citópolis, no século VI, e Leóncio de Nápoles, no VII, mas foi a
perseguição dos iconoclastas que produziu a primeira grande safra de biografias.
Humildes mártires iconódulos, os patriarcas ortodoxos, até a piedosa Imperatriz
Teodora, tiveram seus feitos cantados por admiradores devotos. Logo
apareceram mais e mais biografias: biógrafos contavam dos estilitas, de
mulheres sovadas pelos maridos, assim como de bispos e patriarcas. Algumas
dessas obras eram de alto valor literário, tal corno a vida fragmentária do
Patriarca Eutímio, ou a vida do século XI de São Simeão, o Menor, por Nicetas
Estétato, que dava como testemunha dos incidentes relatados a abadessa Ana ou
outros amigos seus. No século X, a maior parte das vidas de santos foram
coletadas por Simeão Metafrastes e ordenadas num menológio. Nem sempre era
ele porém cuidadoso na redação; na vida de São Teoctiste deixou ficar um trecho
que dizia que a glória tinha desaparecido com Leão VI, o que tanto irritou
Basílio II que este tentou destruir toda a edição. Depois do século XI, a
hagiografia tornou-se um pouco mais frequente. Biografias menores foram
produzidas em orações fúnebres, em que amigos falavam a respeito de mortos
distintos. A maioria das que sobreviveram, tais como a de Teodoro de Estúdio
sobre sua mãe, a do bibliófilo bispo Aretas de Cesaréia sobre o Patriarca
Eutímio, ou as inúmeras escritas por Psellos sobre sua mãe, sobre o jurista
Xifilino, o estadista Lieudes e o patriarca Miguel Cerulário são belas obras de
literatura retórica.
A nova arte, composta desses elementos, surgiu no início mesmo do século. Nas
estátuas que representam a tetrarquia de Diocleciano os retratos imperiais dos
séculos anteriores, nos quais o imperador era apresentado com um porte
magnífico, para distingui-lo dos súditos, haviam dado lugar a uma arte impessoal
simbólica que acentuava diretamente a majestade de Roma frente aos bárbaros.
O cristianismo completou o movimento. O público cristão exigia da arte um
apelo emocional direto, ao invés da perfeição técnica, tal como as autoridades
imperiais exigiam que o retrato do imperador representasse antes a soberania
romana e não uma semelhança individual com os vários imperadores efêmeros.
Os artistas helênicos, tendo esgotado todos os segredos técnicos de sua arte,
enfrentavam o problema de adaptar sua técnica ao novo mundo. Provavelmente,
tal como os requintados, atiraram fora, de boa vontade, os antigos desenhos que
copiavam caprichosamente a vida com uma anatomia cuidadosa e exagerada,
com suas perspectivas brilhantes e sua riqueza de detalhes, para fazer
experiências com a nova corrente artística. Enquanto isso, o artista oriental ainda
rude viu-se apoiado pela corte. Não lhe era possível mostrar o mesmo domínio
técnico dos artistas requintados, e o gosto pela arte elaborada foi diminuindo.
Assim, ocorreu durante o século IV uma revolução, da qual Constantinopla saiu
como a capital do novo mundo estético.
A nova arte era direta, mas não simples. A adoração, principalmente dos
imperadores, devia ser retratada com fausto. O artista bizantino teve de atingir
essa suntuosidade com seus próprios recursos. O pintor bizantino preferia
trabalhar com mosaicos do que com tintas, em painéis ou afrescos. Mesmo nos
trabalhos em painel usava um fundo de ouro. E o ouro dominava as iluminuras
dos manuscritos. As estátuas eram talhadas em pórfiro, em bronze colorido ou
dourado. Nos tecidos, sedas e brocados, os fios de ouro tinham um papel
saliente. Esse amor pelos materiais ricos evitou que a magnificência ficasse
limitada ao volume, apenas. Eram materiais muito raros, de alto custo. Exceto
quando as finanças do império vinham em seu auxílio — o que aconteceu
quando Justiniano construiu Santa Sofia ao custo de, segundo diziam 320.000
libras de ouro (53) — o artista bizantino trabalhava habitualmente em escala
pequena, e frequentemente era nos trabalhos mais delicados, nos pequenos
entalhes de esteatita, nos baixos-relevos de marfim ou nas placas esmaltadas em
miniaturas que sua arte atingia o equilíbrio perfeito, a riqueza de tessitura ou de
cor que correspondia à simplicidade da linha.
É difícil falar das formas das construções seculares, pois muito poucas
sobreviveram. As salas dos palácios, como o crisotriclínio ou o triconco no
Grande Palácio, eram formadas, como as igrejas da época, com cúpulas, absides,
nártexes e trifólios. A casa de campo ideal, de Digenes Acritas, tinha três
cúpulas, e sua principal sala de recepções era cruciforme. Nas casas antigas, na
Fanar de hoje, muitas salas têm absides e trifólios, frequentemente. Mas uma
casa não podia ter a unidade de uma igreja. O Palácio era, na verdade, um
aglomerado de salas, galerias, igrejas, banheiros, guarda-roupas, salas de armas,
bibliotecas e conjuntos de aposentos, museu, tudo isso ajuntado sem unidade de
planejamento, em três grupos principais. As alas residenciais eram
habitualmente de dois andares, estando no primeiro os aposentos principais. O
andar térreo era baixo e quase sempre abria para uma arcada num jardim interno.
Dificilmente os edifícios tinham mais de dois andares, exceto as torres militares.
Digenes Acritas gaba-se de um palácio de quatro pavimentos — mas ao redor
deles, tudo era notável. Para as fortificações, aquedutos e pontes, copiavam-se e
aperfeiçoavam-se os modelos romanos, e o Circo, embora mais comprido do que
os romanos, tinha naqueles a sua inspiração. As cisternas subterrâneas de
Constantinopla, construídas nos séculos V e VI, eram mais originais. Uma de
suas características são as numerosas e bem trabalhadas colunas que sustentavam
o teto.
Enquanto isso, os mosaicos de chão, que por sua natureza tinham uma função
mais decorativa, seguiram o mesmo movimento de afastamento do helenismo.
Os pássaros e árvores continuaram naturalistas, mas eram envoltos por motivos
de natureza meramente decorativa, que acabaram por superá-los. Os mosaicos
são mais comuns na Síria e Palestina, e parecem ter sido feitos principalmente
por alexandrinos e armênios. Os primeiros conservaram, naturalmente,
tendências helênicas de Alexandria. O mapa em mosaico, do século V, existente
em Jerash, é evidentemente helênico. O mapa da Palestina e do Egito, que se
encontra em Madaba, no Moabe, e feito no século VI, é menos formal, embora
persista ainda uma certa delicadeza de desenho. Os armênios trabalhavam
segundo sua própria síntese de desenhos geométricos e naturalismo. Os
mosaicos de chão tornam-se raros após o século VI. Ao invés deles, os pisos são
cobertos com grandes formas geométricas, de mármore colorido.
Dessa forma, a arte pictórica bizantina do século VI havia chegado a uma síntese
difícil, na qual predominava a contribuição oriental. As conquistas árabes do
século VII provocaram uma revolução. As províncias semíticas foram decepadas
do império, e cresceu a influência armênia. Os muçulmanos, que não tinham
pela arte representativa nenhuma simpatia, encontraram no Irã, à medida que
avançavam para o Leste, uma arte ornamental que se adaptava admiravelmente
ao seu gosto. Adotaram-na, revitalizando-a. A arte aramaica, com suas figuras
rígidas e intensas, tornou-se privativa dos monges de Bizâncio. O século VII foi
muito agitado para produzir grande número de trabalhos de arte. As únicas
coleções de mosaicos importantes estão em território muçulmano, na cúpula da
Rocha, em Jerusalém, e nos jardins da mesquita de Omã, em Damasco. Os
antigos califas empregavam artistas e arquitetos gregos, mas essas duas obras
parecem antes trabalho de nativos. A primeira consiste de ricos ornamentos com
folhas e decorações geométricas, evidentemente de inspiração iraniana. A
segunda é uma magnífica série de paisagens, árvores, montes e casas, dispostos
num desenho fluente, ricamente coloridos e desenhados com leveza. Mas o
naturalismo não é helênico: o desenho, e não a composição, é o mais importante.
As duas séries representam o auge a que a arte síria chegara, antes que a força
esterilizante do Islã tivesse tempo para atuar (61).
A vitória das imagens trouxe a religião de volta à arte. Mas seus patronos,
especialmente em Constantinopla, passaram a gostar do estilo neo-helênico. Os
pintores religiosos tiveram de adaptar-se a um público helenista, tal como os
pintores helênicos, quatro séculos antes, a um público religioso. A síntese desse
conflito constituiu um êxito notável. Os séculos X e XI são os melhores períodos
da arte bizantina, tanto na escultura como nas artes da pintura. As duas correntes,
a helênica e a aramaica, ainda podem ser identificadas, mas agindo em conjunto.
Os pintores religiosos, como os artistas que decoraram a Igreja de São Lucas, em
Fócia, no século X, têm todo o fervor e intensidade dos séculos primitivos, o
desenho e o colorido têm a mesma ousadia, mas já sem aquela rudeza, com
grande variedade de atitudes, e transformando a antiga rigidez em dignidade de
porte. O Livro dos Salmos existente no Museu Britânico, e que foi completado
em 1066 por Teodoro da Cesaréia, é do mesmo gênero. As figuras são bem
desenhadas, e embora não tenham fundo, guardam um sentido de profundidade.
A própria Constantinopla preferia um sabor mais helênico nessa síntese. O Livro
de Salmos do século X, existente na Biblioteca Nacional de Paris, e o de Basílio
II, atualmente em Veneza, (62) recuam quase até o helenismo do século V,
sendo talvez influenciados por um antigo modelo alexandrino. Apenas uma certa
objetividade na composição demonstra a influência da Igreja. O famoso
Menológio de Basílio II, existente no Vaticano, mostra uma mistura de origem
um pouco maior ainda — e que foi melhor sucedida, embora uma certa
monotonia prejudique um pouco o efeito. Nele, a figura principal se destaca, por
vezes com intensidade, contra um fundo simples de arquitetura formal, ou de
paisagem. O desenho é simples, mas elegante e funcional; o colorido é rico, mas
bem graduado. Cada quadro é emoldurado por uma margem de desenho
diferente. À mesma síntese pode ser observada nos mosaicos da Igreja de Nea
Moni, em Quios, e numa forma ainda mais perfeita, na Igreja de Dafni, na Ática
— ambas construídas no século XI. Falta-lhes, porém, a força e o sentimento dos
mosaicos de São Lucas, e em Dafni o corpo inclinado e as faces delicadas dos
santos tornam-se ainda mais graciosas e frágeis em contraste com o Cristo
Pantocrator da cúpula, onde um hábil artista monástico deu toda asa à sua
concepção da majestade de Deus, sem procurar conciliá-la com o gosto de
Constantinopla.
A conquista latina não teve sobre a arte bizantina o efeito mortal que se tem
pretendido, A queda da cidade causou a diáspora; o trabalho das escolas e suas
tradições foram interrompidos. Além disso, durante o século XIII as condições
políticas eram muito instáveis para permitir o florescimento artístico, e depois
dele o império, mesmo após a retomada de Constantinopla, era muito pobre para
patrocinar a aquisição dos materiais até então usados. Os mosaicos, que haviam
sido o meio de expressão favorito, eram caros. Os afrescos tomaram lugar de
destaque nos palácios. A pintura do afresco fora praticada desde as épocas
remotas como substitutivo do mosaico nas regiões mais pobres, ou nos locais das
igrejas e palácios considerados menos importantes. Seu estilo seguia o dos
mosaicos contemporâneos, exceto em regiões remotas, como as igrejas de rocha
na Capadócia, onde uma austera, mas eficiente, tradição monástica aramaica
permaneceu ininterrupta. Os novos afrescos tornaram-se, então, as formas mais
importantes de pintura. A técnica do afresco introduzia novas possibilidades,
permitindo uma certa dramaticidade, quase sentimentalismo, praticamente
impossível nos mosaicos. Os bizantinos da época dos Paleólogos eram clássicos
convictos — o helenismo revigorara suas energias, mais uma vez. Reapareceram
neles a perspectiva, os desenhos complicados da figura humana, os fundos. Era
porém um helenismo sem alegria de viver. O vigor presente neles era antes fruto
da vontade do que espontâneo, e deixa entrever, através de uma certa tensão, o
misticismo acendrado dos ortodoxos. O resultado foi uma arte muito próxima da
praticada pelos pintores de Siena, e possivelmente influenciada por eles, já que
Oriente e Ocidente estavam em contato íntimo, então. Entretanto, as datas
inscritas em alguns afrescos desse tipo, nos altares laterais de São Demétrio da
Tessalônica são muito antigas para justificar tal hipótese. (63) Talvez seja
possível ver a origem comum da pintura italiana e da pintura de Bizâncio na fase
final, na Armênia Cilícia, cujos manuscritos iluminados do século XIII
combinam riqueza e força com um humanismo gracioso, que os bizantinos não
conheceram nunca. As iluminuras bizantinas voltavam, entretanto, aos velhos
modelos helênicos, ao estilo alexandrino dos séculos IV e V, tornados mais leves
por um toque da decoração posterior.
Somente os painéis de ícones permitiam ainda ao artista uma certa (64) latitude,
e poucos dos painéis anteriores ao século XVI sobreviveram, embora sua pintura
devesse ter sido frequente desde os primeiros dias do império, e tenham chegado
até nós alguns pequenos painéis em mosaicos. Mas o painel de madeira, ou o de
tela, mais raro, era provavelmente demasiado perecível.
Fazer justiça à arte bizantina num espaço tão limitado é difícil. Durante muito
tempo, ela foi desprezada e somente agora começa a receber a devida
apreciação. A energia da pesquisa moderna está ampliando seu âmbito,
propiciando melhor compreensão. Afrescos desconhecidos são descobertos,
mosaicos há muito ocultos por várias camadas de tintas estão sendo recuperados.
Historiadores e estudiosos da estética concentram suas atenções sobre essas
descobertas, com uma intensidade nova. Dentro de uns poucos anos, poderemos
avaliar melhor a grande dívida que o mundo da beleza tem para com os artistas
de Bizâncio.
XII. OS VIZINHOS DE BIZÂNCIO
Era uma civilização muito bizantina, apesar de ter um alfabeto próprio. Simeão,
filho de Bóris, que se intitulava tzar e principal patrono da nova cultura, fora
educado em Constantinopla, onde lera muito Demóstenes e João Crisóstomo. Os
tradutores afluíram à sua corte para passar ao eslavo as crônicas, homílias e
romances gregos; seus edifícios na enorme capital, Preslav, copiavam e
concorriam ambiciosamente com os esplendores de Constantinopla — embora
escavações mais recentes mostrem acentuada influência iraniana, como na maior
parte da arte búlgara primitiva. Isso se deve, sem dúvida, em grande parte aos
artesãos armênios, que já haviam chegado, em grande número, à Bulgária.
Entretanto, os modernos historiadores búlgaros veem nela traços de uma arte
nativa proto-búlgara, levada pelos nômades búlgaros ao norte do Mar Negro,
durante as migrações.
O Tzar Simeão inaugurou nova moda, copiada por seus sucessores e pelos
vizinhos sérvios, até os dias de Fernando, o Coburguense. Sonhava ele em reinar
em Constantinopla, como herdeiro de todos os césares. Coroou-se imperador e
deu à sua Igreja um patriarca, lançando-se em seguida contra as muralhas de
Constantinopla. Foi em vão. Seu filho Pedro (927- 969), embora mantivesse o
título imperial e patriarcal, desposou uma princesa bizantina, e o governo como a
cultura caiu sob a influência bizantina,
O Império Sérvio foi mais faustoso. Na verdade, no século XIV o Tzar Estêvão
Dusan era provavelmente o monarca mais poderoso da Europa, e Constantinopla
parecia indubitavelmente ao seu alcance. O disciplinado sistema de governo
búlgaro prestava-se facilmente à imperialização. A Sérvia tinha, porém, um
sistema nativo que quase podia ser chamado de feudal — o monarca não era, de
forma alguma, senhor absoluto de seus vassalos. A Sérvia não chegou, por isso,
a ser inteiramente bizantina, mas sofreu constantemente sua influência. Várias
princesas bizantinas casaram-se ali, muitas embaixadas partiram de
Constantinopla para a corte sérvia — que princesas e embaixadores descreveram
como desconfortável e austera. (68) Quando Estêvão Dusan resolveu promulgar
um código, foi nos livros de Direito de Bizâncio que mais se inspirou, mantendo
entretanto o feudalismo básico do país. A arte pictórica sérvia era muito
bizantina, embora a arquitetura tivesse desenvolvido características nacionais. A
proximidade da Dalmácia e uma rainha latina, Helena, filha do imperador latino
e mulher de Estêvão Uros I, deram à Sérvia no século XIII uma tintura ítalo-
gótica. No século XIV, sua idade de ouro, os ideais e as rainhas bizantinas
dominavam novamente; os arquitetos sérvios, porém, conservaram ideias
próprias. Mas como a Rússia, nem a Bulgária nem a Sérvia tiveram tempo de
levar seu desenvolvimento à plena maturidade. Os turcos logo os reduziram à
escravidão, e sua civilização desmoronou — salvando-se apenas o que a Igreja,
lutando com humildade contra dificuldades inumeráveis, conseguiu, pela
tenacidade, preservar.
Não é, portanto, justo julgar a obra missionária bizantina pelo estado atual dos
países balcânicos, pois estes só recentemente emergiram de uma noite de quatro
séculos. Ao invés disso, deveríamos compará-los, tal como eram antes da
conquista turca, com o Ocidente do século XIV — comparar a Catedral de
Salisbury com a grande igreja servia de Gratchenitsa. A primeira pode alçar-se
em direção ao céu, graciosamente; a segunda, com a simplicidade de seu
desenho, a economia de seu equilíbrio, a rica mas discreta decoração de seu
interior, é obra de um povo não menos espiritual, mas muito mais requintado e
culto.
Em outros países da Europa a influência bizantina não chegou nunca a dar frutos
maduros. Na Hungria como na Croácia, seus primeiros êxitos deram lugar à
influência de Ocidente e de Roma. Na Valáquia e na Moldávia só surgiram
Estados permanentes durante o declínio de Bizâncio. A influência bizantina se
fez sentir neles indiretamente, através de búlgaros e sérvios, e possivelmente
com mais intensidade, através dos russos, sobre os lituanos, e destes de volta ao
Danúbio — mas o problema da influência lituana e de suas origens é ainda
assunto controverso. Foi somente sob os turcos que os governadores Fanariotas
deram a seus principados uma forma superficial e deturpada de bizantinismo.
Mas a anexação foi inútil. Em três décadas, a Armênia e grande parte da Ásia
Menor, tinham passado às mãos dos turcos. Como os povos balcânicos alguns
séculos mais tarde, o povo do Ararate foi esmagado pela servidão — só sua
Igreja manteve vivo o ânimo, governando-o da Igreja metropolitana de
Etchmiadzan, onde ainda existem os ossos de seus mártires, um pedaço da Cruz
e uma tábua da arca de Noé.
Havia ligações também mais para o sul. Até mesmo em vida de Teodoro de
Estúdio seus hinos eram citados na Sardenha e a reconquista do sul da Itália por
Basílio I ampliou as vias de ligação. As cidades comerciais do sul — Nápoles,
Amalfi e Gaeta — aproveitaram-se das oportunidades comerciais que surgiam.
Também elas enviaram missões a Constantinopla, que voltaram trazendo ideias
bizantinas. Seus principais magistrados enviavam os filhos para concluir sua
educação na corte imperial, e os príncipes lombardos do sul seguiram o exemplo.
Em Roma, os nomes greco-cristãos tornaram-se moda e, mais ao norte, o Rei
Hugo da Itália cortejava o imperador com embaixadas frequentes. As emoções
do embaixador Liudprand ao visitar Constantinopla, seu orgulho por conhecer o
grego, sua admiração por tudo o que era bizantino, ilustram bem a época —
época em que Desidério, abade de Monte Cassino, mandava fazer sua placa
dourada de abade em Constantinopla. Mas a moda não se generalizou, fora da
Itália, e mais tarde no mesmo século, foi modificada pela conquista saxônica.
Italianos oportunistas acharam prudente dirigir sua admiração para o imperador
que lhes estava às portas. Quando Liudprand visitou Constantinopla novamente,
como enviado de Oto I, num momento escolhido com pouco tato, teve uma
recepção fria, e regressou declarando que tudo em sua terra natal era muito
melhor, embora tivesse feito o possível para contrabandear peças de brocados.
Poucos anos depois a moda voltou, quando Oto II casou-se com a princesa
Teófano. No séquito dessa dama de espírito determinado, afluíram gregos do
oriente e do sul da Itália, que se dirigiram para o norte e acompanharam a corte à
Alemanha, onde ela escandalizava os habitantes tomando banhos e usando seda
— hábitos horríveis que a mandariam para o inferno (onde uma freira a vira, em
sonhos) — tal como sua prima Maria Argira provocara um choque no bom São
Pedro Damiano, introduzindo garfos em Veneza.
O filho de Teófano, Oto III, tinha extremo orgulho de seu sangue grego. Gostava
de falar o grego e cercou-se do que julgava ser o verdadeiro cerimonial imperial.
Sob seu patrocínio, muitos gregos foram para a Alemanha. Monges gregos
estabeleceram-se em Reichenau, em Constança, muito antes de fins do século X.
Na mesma época um certo Gregório — que segundo se dizia era aparentado com
a Imperatriz Teófano — fundava a casa religiosa de Burlscheid próximo de
Aachen, e monges gregos construíam a capela de São Bartolomeu na Catedral de
Paderbom. Pouco mais tarde, monges gregos, provavelmente ganhando pão
como artesãos, eram tão numerosos que o bispo Codehard de Hildesheim
anunciava que eles só poderiam passar duas noites nos albergues que lhes eram
destinados — o bispo não aprovava os monges errantes. A marca desses artistas
bizantinos pode ser vista nos ricos ornamentos da arquitetura germano-
romanesca.
Pois a tragédia foi, realmente, final. A 29 de maio de 1453 uma civilização foi
irrevogávelmente destruída. Deixara um legado glorioso na cultura e na arte,
tirara do barbarismo países inteiros e dera refinamento a outros; sua força e
inteligência constituíram, por séculos, a proteção do cristianismo. Durante onze
séculos, Constantinopla fora o centro do mundo de luzes. Seu brilho, seu
interesse pela estética dos gregos, a orgulhosa estabilidade e a competência
administrativa dos romanos, a intensidade transcendental dos cristãos do
Oriente, amai gamados numa massa sensível, foram apagados. Constantinopla
deveria tornar-se o centro da força bruta, da ignorância, do mau gosto
esplendoroso. Apenas nos palácios russos, para os quais fugiu a águia de duas
cabeças da Casa dos Paleólogos, perduram vestígios de Bizâncio por mais alguns
séculos, — somente ali, e em sombrias salas do Chifre de Ouro, ocultas entre as
casas do Fanar, onde o patriarca mantinha sua corte sombria, desfrutando a
permissão de governar o povo cristão sujeito e dar-lhe alguma sensação de
segurança, que lhe era concedida pela capacidade de estadista do sultão
conquistador, e pelos esforços de Genádio...
Mas a águia de duas cabeças já não paira sobre a Rússia, e o Fanar está perdido
em incerteza e modo. Os últimos remanescentes estão agonizando ou mortos.
I. A FUNDAÇÃO DE CONSTANTINOPLA
(1) Sobre as reformas de Diocleciano e Constantino, v. especialmente Stein,
Geschichte des spätrömischen Reiches, I passim; Maurice, Numismatique
Constantinienne vol. II, Introdução, e Constantin le Grand; Leclercq, artigo
sobre Constantino, no Dictioneire d'Archéologie Chrétienne, pp. 2262-95, de
Cabrol. Baynes, Constantine and the Christian Church, in British Academy vol.
XV (com bibliografia completa).
(2) Essas causas são apresentadas em Rostovtzeff, Social and Economic History
of the Roman Empire; Bury, Later Roman Empire, I.
(*) Montanistas, adeptos de Montano, do século II, que se julgava possuído pelo
Espirito Santo, e por ele utilizado como instrumento para purificar os homens e
guiá-los na vida cristã. (N. do T.)
(4) Ut puto, deus fio — Creio que me estou transformando num deus.
(11) A paternidade de Leão á duvidosa. Sua mãe foi amante de Miguel III.
(12) Sicília, perdida para os árabes em fins do século IX, fora parcialmente
reconquistada em princípios do século XI.
(16) Augusta foi sempre o título formal, embora do século VII em diante
Basilissa fosse adotado como expressão coloquial.
(17) A coroação não é descrita em nenhum documento, mas ela visava o título
de Augusta.
(18) Para os demes, v. Bury, Appendix 10 a Gibbon, Decline and Fall, vol. 4,
531 ss.; idem, Later Roman Empire, I, 84 ss.; e especialmente Uspenski, Circuit
Factions and Demes in Constantinopla.
(19) V. Bury, Later Roman Em pire, I, 12 ss.; Buckler, Anna Comnena, 274-6;
Diehl, Le Sónat et le Peuple Byzantin, em Byzantion, vol. I, 201.
IV. A ADMINISTRAÇÃO
(23) V. Bury, Luter Roman Empire, II, 334-48; idem, Imperial Administratitive
System in the Ninth Century (British Academy, Supplemental Papers, I) — o
trabalho mais importante sobre o assunto.
(28) Para exposições mais completas, v. Dölger, Beitrage sur Geschichte der
Byzantivischen Finanzenverivaltung (Byz. Arch., 1927); Ostrogorsky, Die
Ländliche Steuergemeinde em Vierteljahrsschrijt fur Sozia- und
Wirtschaftsgeschichte, vol. 20, 108 e ss.; e artigo de Andreades sobre esses dois
livros, em B. Z., vol. 28, 287 e ss.
V. A RELIGIÃO E A IGREJA
(29) Reconheceu-a apenas durante a ocupação latina de Constantinopla, quando
a sé estava firmemente sob seu controle. (Manst, Concilia, vol. 22, 991).
(40) V. Neumann, Die Byzantinische Marine, H. Z., vol. 45, 1 e ss.; Bury,
Apêndice 5 a Gibbon. Decline and Fall, vol. 6, e Naval Policy, em Centenário di
M. Amari, II, 21-34; Baynea, Byzantine Empire, 143-9, 217-20; Buckler, Anna
Comnena, 381-6.
(41) Bury, loc. cit.; Schlumberger, Récits de Byzance, 2me. série, 37-48.
VII. COMÉRCIO
(43) Quanto a seda, ver Bury, Later Roman Empire, II, 330 e ss.
(47) Quanto à questão da escravatura, ver Chalandon, Jean ler Comnène, 612;
Constantinescu, Bulletin of the Roumanian academy, v. 11, 100; Boissonnade,
Le Travaíl dans l'Europe Chrétienne au Moyen Age, 53, 76, 413 (diminuindo a
extensão da escravatura).
(50) Ana menciona um grego que sabia o normando francês, (Anna Comnena,
343).
(64) Restam vários quadros da Virgem, o melhor deles talvez um do século XII,
Nossa Senhora de Vladimir, atualmente em Moscou. A maioria desses retratos
foi atribuída ao pincel de São Lucas.
(67) Para maiores detalhes sobre os russos, v. Soloviev, História da Rússia, (em
russo); Uspenaki, Rússia e Bizâncio (em russo); Kluchevsky, História da Rússia
(existe uma tradução Inglesa de Hogarth); Golubmski, História da igreja, Russa
(em russo); Leib, Kiev, Roma et Byzance; Vasiliev, Was old Rússia a Vassal-
State of Byzantium? em Speculum, vol. 7, 350.
(73) Bury, Later Roman Empire from Arcadius to Irene, II, 392-3; James,
Learning and Literatura, em Cambridge Medieval History, vol. 3, 502 e ss.