Robert Graves - Eu Cláudio
Robert Graves - Eu Cláudio
Robert Graves - Eu Cláudio
Graves
Eu, Cláudio
COM BASE NA AUTOBIOGRAFIA DE TIBÉRIO CLÁUDIO
IMPERADOR DOS ROMANOS
NASCIDO EM 10 A.C.
ASSASSINADO E DEIFICADO
EM 54 D.C.
LYON EDIÇÕES
Título original: Claudius
Tradução de Maria de Lourdes Medeiros
Revisão de Sérgio Coelho
© Penguin Books
Direitos reservados por Lyon Multimédia Edições, Lda.
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passíveis de procedimento judicial.
Execução técnica: Gráfica Europam Lda., Mem Martins
Editores: Francisco Pedro Lyon de Castro e Nuno Lyon de Castro
LYON MULTIMÉDIA EDIÇÕES, LDA.
Apartado 7
2726 Mem Martins Codex Portugal
Depósito Legal n° 203728/03 Edição publicada em Dezembro de 2003
Ao Sr. A. K. Smith, do I.C.S., agradeço a versão latina dos versos sibilinos mencionados no
primeiro capítulo. Foram aqui impressos pela primeira vez:
Púnica centenas durabit poena per annos:
Rés Romana viro parebit caesariato:
Calvus caesarie dominus dominabitur urbi:
Omnibus ille viris mulier mas ille puellis:
Rex equitabit equo bifidis equus unguibus ibit:
Filius imbelli fictus mactaverit ictu.
Imperium hinc alterfido patre caesariato
Caesariae crinitus habet, qui mármore Romae
Mutabit lateres. Nin visis vinciet Urbem
Compedibus. Fictae secreto coniugis astu
Occidet ut fictus bonafilius occupet heres.
Tertius hinc sumetficto patre caesariato
Calvus caesarie regnum cui sanguine limus
Commixtus. Victrix penes ilium et vicia vicissim
Roma erit. Ille instar gladii pulvinar habebit,
Filius et fictus regni potietur iniqui.
Quartus habet soliumficto patre caesariato
Calvus caesarie invenis, cui Roma ministrae est.
Feta venefiáis Urbs ímpia serviet uni.
Quo puer ibat equo vectus calcatus eodem
Se iuvenem ferro cecidisse fatetur equino
Caesariatus ad hoc quintus numerabitur hirtus
Caesarie, toti genti contemptus avitae.
Imbecillus iners, aestivas addere Romae
Aptus aquas populo frumenta hiemalia praebet.
Ille tamenfictae secreto coniugis astu
Occidet ut fictus bonafilius occupet heres.
Sextus habet regnum fido patre caesariato.
Flamma pavor citharoedus eunt tria monstra per urbem.
Sanguine dextra rubet materno. Septimus heres
Nemo erit, ai sexti busto cruor ibit ab imo.
R.G.
Galmpton, Brixham
1941
A versão original destes versos, em inglês, poderá ser consultada na nota de rodapé da pg. 18 (N. do T.)
”... Uma história que originou toda a espécie de ideias falsas, tanto por parte daqueles que
viveram na altura como em tempos subsequentes: tão verdadeira que todas as transacções de
maior importância estão envoltas em dúvida e obscuridade; enquanto alguns tomam como factos
seguros os rumores mais precários, outros transformam os factos em falsidade; e ambos são
exagerados pela posteridade.”
TÁCITO
Nota Biográfica
Robert Graves nasceu em 1895 em Wimbledon, sendo filho de Alfred Percival Graves, escritor irlandês, e
de Amália von Ranke. Saiu da escola para a primeira Guerra Mundial, onde se tornou capitão dos Reais
Fuzileiros Galeses. A sua principal vocação era a poesia e os seus Selected Poems foram publicados pela
Penguin. Aparte o ano em que foi professor de Literatura Inglesa na Universidade do Cairo, em 1926,
ganhou a vida a escrever, sobretudo romances históricos. Entre eles, contamse: Claudius (Eu, Cláudio);
Claudius the God (Cláudio o Deus); Sergeant Lamb ofthe Ninth (O Sargento Lamb da Nona); Count
Belisarius (O Conde Belisário); Wife to Mr. Milton (Uma Esposa para o Sr. Milton); Proceed, Sergeant
Lamb (Continue, Sargento Lamb); The Golden Fleece (O Veio de Ouro); They HangedMy Saintly Billy
(Enforcaram o Meu Santo Billy); The Isles of Unwisdom (As Ilhas da Insensatez). Escreveu a sua
autobiografia, Goodbye To Ali That (Adeus a Tudo Isto), em 1929, que rapidamente se afirmou como um
clássico moderno. O suplemento literário do Times aclamouo como ”um dos mais cândidos autoretratos
de um poeta, com verrugas e tudo, que alguma vez foi pintado”, além de ser de um valor excepcional
como documento de guerra. Os seus dois livros de nãoficção mais discutidos são The White Goddess (A
Deusa Branca), que apresenta uma visão nova do impulso poético, e The Nazarine Gospel Restored (O
Evangelho do Nazareno Recuperado) com Joshua Podro, que consiste numa análise renovada da
cristandade primitiva. Traduziu Apuleio, Lucan e Suetónio para os Clássicos da Penguin e compilou o
primeiro dicionário moderno da mitologia grega, The GreekMyths (Os Mitos Gregos). A sua tradução de
The Rubáiyát of Ornar Khayyám (com Ornar AliShah) foi também publicada pela Penguin. Foi eleito
professor de Poesia em Oxford em 1961 e tornouse Membro Honorário do St. John’s College, Oxford,
em 1971.
Robert Graves morreu a 7 de Dezembro de 1985, em Maiorca, onde vivia desde 1929. Por altura da sua
morte, o Times escreveu a seu respeito: ”Ele será lembrado pelos seus sucessos como prosador, autor de
romances históricos e de memórias, mas, acima de tudo, como o grande paradigma do poeta dedicado, o
maior poeta do amor em língua inglesa desde Dorme.”
Nota do Autor
A moeda de ouro usada aqui como unidade monetária corrente é o aureus latino, que vale 100
sestércios ou vinte e cinco denários (moedas de prata): pode atribuirselhe o valor aproximado
de uma libra esterlina ou cinco dólares americanos, ao valor de antes da guerra.
A milha é a milha romana, cerca de trinta passos mais curta que a milha inglesa. Por uma questão
de conveniência, as datas foram indicadas de acordo com o cálculo cristão: o cálculo grego usado
por Cláudio contava os anos a partir da primeira Olimpíada, que teve lugar em 776 AC. Também
por uma questão de conveniência, foram usados os nomes geográficos mais familiares: assim
França e não Gália Transalpina, porque a França cobre mais ou menos a mesma área territorial e
seria inconsistente chamar cidades como Nimes, Bologne e Lyon pelos seus nomes modernos os
clássicos não seriam reconhecidos pela generalidade dos leitores ao mesmo tempo que eram
colocadas na Gália Transalpina ou, como era designada pelos gregos, a Galatia (a terminologia
geográfica grega é muito confusa: a Germânia era o país dos celtas). Da mesma forma, foram
usadas as formas mais familiares dos nomes próprios Lívio para Titus Lívius, Cimbelino para
Cunobelinus, Marco António para Marcus Antonius.
Foi difícil por vezes encontrar correspondentes adequados para termos técnicos militares, legais e
outros. Para dar um único exemplo, temos a palavra azagaia. O aviador T. E. Shaw (a quem
aproveito a oportunidade para agradecer a leitura cuidadosa destas provas) põe em causa o meu
uso de azagaia para o germânico framea ou pfreim. Sugere antes javelina. Mas eu não adoptei a
sugestão, como adoptei com gratidão outras que me fez, porque precisava de javelina para pilum,
a arma de arremesso utilizada pela disciplinada infantaria romana; e azagaia tem uma
ressonância mais violenta. A palavra azagaia é usada há 300 anos e adquiriu um vigor renovado
no século xix, com as guerras contra os Zulus. A framea de haste longa e cabeça de ferro era
usada, segundo Tácito, como arma de arremesso e como arma branca. O mesmo acontecia com as
azagaias
dos guerreiros AmaZulu, com quem os germanos do tempo de Cláudio tinham muito em comum
culturalmente. Para conciliar as afirmações de Tácito, primeiro quanto ao fácil manejo daframea
na luta corpo a corpo e depois quanto à sua inutilidade no meio das árvores, o mais provável é
que os germanos tenham feito o mesmo que os Zulus partiam a ponta da longa haste daframea
quando entravam na luta corpo a corpo. Mas isso raramente acontecia, porque os germanos
preferiam sempre uma táctica de ataque e fuga quando se defrontavam com a infantaria romana,
que dispunha de armas melhores.
Suetónio, nos seus Doze Césares, referese às histórias de Cláudio como tendo sido escritas com
inépcia, mais do que com deselegância. No entanto, se certas passagens do presente trabalho
estão escritas não apenas com inépcia mas também com uma certa falta de elegância, isso não
entra em desacordo com o estilo literário de Cláudio, tal como o podemos encontrar no seu
discurso em latim sobre a Aeduan, do qual ainda nos restam fragmentos. Na verdade, o discurso
abunda em deselegâncias deste tipo, mas também não esqueçamos que se trata provavelmente de
uma transcrição do registo estenografado oficial das palavras exactas de Cláudio ao Senado o
discurso de um homem cansado, numa oratória conscenciosamente improvisada a partir de
algumas notas simples.
Eu, Cláudio é uma escrita de tom coloquial; tal como o grego é, na verdade, uma língua muito
mais coloquial que o latim. A recémdescoberta carta de Cláudio aos Alexandrinos, em grego,
que pode no entanto ser em parte obra de um secretário imperial, é de leitura muito mais fácil que
o citado discurso.
Tenho a agradecer a Miss Eirlys Roberts a sua ajuda na exactidão clássica e a Miss Laura Riding
a sua crítica quanto à congruência do inglês.
RG. 1934
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CAPÍTULO I
Eu, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, Istoaquiloeaqueloutro (pois não pretendo
aborrecervos para já com todos os meus títulos), que fui em tempos, e não há muito, conhecido
pelos meus amigos, parentes e associados como Cláudio o Idiota, ou Esse Cláudio ou Cláudio o
Gago ou ClauClauCláudio, ou ainda, na melhor das hipóteses, como Pobre Tio Cláudio, estou
agora a escrever esta estranha história da minha vida; começando com a minha primeira infância
e continuando, ano após ano, até atingir o fatal ponto de mudança em que, há cerca de oito anos,
com cinquenta e um de idade, me encontrei repentinamente apanhado por aquilo a que posso
chamar de predestinação dourada, da qual nunca mais consegui libertarme.
Este não é de forma alguma o meu primeiro livro: na verdade, a literatura, e em especial a escrita
sobre a história que em jovem estudei aqui em Roma, com os melhores mestres contemporâneos,
foi, até que se deu a mudança, a minha única profissão e interesse ao longo de mais de vinte e
cinco anos. Os meus leitores não devem portanto ficar surpreendidos com o meu estilo
trabalhado: é realmente o próprio Cláudio que está a escrever este livro e não um mero secretário
seu, nem um desses analistas oficiais a quem os homens públicos têm o hábito de comunicar as
suas lembranças, na esperança de que uma escrita elegante disfarce a escassez do assunto e de
que a lisonja atenue os vícios. Na presente obra, juro por todos os Deuses que sou o meu único
secretário e o meu próprio analista oficial: escrevo pelo meu próprio punho. E que favores
poderia esperar alcançar de mim mesmo através da lisonja? Posso acrescentar que esta não é a
primeira história da minha vida que escrevo. Em tempos escrevi outra, em oito volumes, como
contribuição para os arquivos da Cidade. Foi uma tarefa monótona, à qual dei pouco valor, e
apenas o fiz para corresponder a um pedido público. Para ser franco, durante a sua composição,
que teve lugar há dois anos, encontravame extremamente ocupado com outras questões. Ditei a
maior parte dos primeiros quatro volumes a um secretário grego e disselhe que não alterasse
nada enquanto escrevia (excepto, quando necessário, para melhorar o equilíbrio das frases ou
para evitar contradições ou repetições). Mas admito que quase toda a segunda metade do
trabalho, e pelo menos alguns capítulos da primeira,
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foram compostos por este mesmo indivíduo, Políbio (a quem eu próprio baptizara, sendo ele
ainda rapaz e escravo, pensando no famoso historiador), a partir de material fornecido por mim.
Ele modelou com tanta exactidão o seu estilo pelo meu que, na realidade, quando terminou,
ninguém teria conseguido distinguir a parte que fora feita por mim da que tinha sido feita por ele.
Repito que era um livro monótono. Eu não estava em posição de criticar o Imperador Augusto,
que era meu tioavô pelo lado materno, ou a sua terceira e última esposa, Lívia Augusta, que era
minha avó, porque ambos tinham sido deificados e, na qualidade de sacerdote, encontravame
ligado aos seus cultos; embora pudesse ter criticado acerbamente os dois imprestáveis sucessores
imperiais de Augusto, não o fiz por uma questão de decência. Teria sido injusto absolver Lívia, e
mesmo o próprio Augusto, na medida em que ele se submeteu a essa mulher notável e deixaime
que o diga de imediato abominável, ao mesmo tempo que dizia a verdade sobre os outros dois,
cujas memórias não estavam protegidas da mesma forma pelo respeito religioso.
Deixei que fosse um livro monótono, registando apenas factos incontroversos, tais como, por
exemplo, FulanodeTal casou com FulanadeTal, filha Daquele e da Outra que tinha este ou
aquele número de honras públicas a seu favor, mas sem falar nas razões políticas por trás do
casamento ou das negociações secretas entre as famílias. Ou então, escrevia que FulanodeTal
morrera de repente, depois de comer um prato de figos africanos, mas sem falar em veneno, ou a
quem a morte aproveitava, a menos que os factos estivessem apoiados por um veredicto do
Tribunal Criminal. Não contei mentiras, mas também não disse a verdade no sentido em que
tenciono fazêlo aqui. Quando hoje consultei esse livro, que está na Biblioteca de Apolo, no
Monte Palatino, para refrescar a minha memória sobre alguns detalhes quanto a datas, sentime
interessado ao depararemseme passagens nos capítulos públicos que teria jurado não ter escrito
ou ditado. Se eram da autoria de Políbio, constituíam uma peça de mímica extremamente hábil
(ele tinha as minhas outras histórias para estudar, admito), mas se eram realmente da minha
autoria, então a minha memória está ainda pior do que o afirmam os meus inimigos. Relendo
aquilo que acabei de escrever, vejo que devo estar a suscitar e não a desarmar a suspeita, em
primeiro lugar quanto à minha autoria exclusiva daquilo que se segue, depois, quanto à minha
integridade enquanto historiador, e finalmente, quanto à minha memória dos factos. Mas vou
deixar que fique assim: sou eu próprio a escrever aquilo que sinto e, à medida que a história
avançar, o leitor estará mais preparado para constatar que nada escondo por mais que isso
contribua para o meu descrédito.
Esta é uma história confidencial. Mas quem, poderão perguntar, são os meus confidentes? A minha
resposta é: aqueles que hão de vir, a posteridade.
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Não me refiro aos meus bisnetos, nem aos meus tetranetos. Falo de uma posteridade
extremamente remota. No entanto, a minha esperança é que vós, os meus leitores eventuais,
daqui a uma centena de gerações ou mais, sintais que vos falo directamente, como um
contemporâneo: como muitas vezes Heródoto e Tucídides, mortos há muito, parecem falar
comigo. E porque especifico uma posteridade tão remota como essa? Passo a explicar.
Fui a Cumas, na Campânia, há pouco menos de dezoito anos e visitei a Sibila na sua gruta
rochosa no Monte Gauro. Há sempre uma Sibila em Cumas, porque, assim que morre uma,
sucedelhe a sua noviçaassistente; mas nem todas são igualmente famosas. A algumas delas, em
todos os seus longos anos de serviço, nunca Apolo concede a profecia. Outras profetizam de
facto, mas parecem mais inspiradas por Baco do que por Apolo, a julgar pelos despropósitos
ébrios que debitam. E tudo isto tem trazido descrédito ao oráculo. Antes da sucessão de Deífobe,
que Augusto consultava com frequência, e de Amalteia, que ainda está viva e é muito famosa,
tinha havido uma série de Sibilas muito fracas durante quase
300 anos. A gruta fica por trás de um pequeno templo grego de grande beleza, consagrado a
Apolo e a Artémis Cumas era uma colónia grega eólica. Há um frizo antigo dourado sobre o
pórtico, atribuído a Dédalo, embora isto seja nitidamente absurdo, dado que não tem mais de 500
anos e, mesmo que os tenha, Dédalo viveu pelo menos há 1.100 anos. O frizo representa a
história de Teseu e do Minotauro, que ele matou no Labirinto de Creta. Antes de ser autorizado a
visitar a Sibila, tive que sacrificar ali um boi e uma ovelha, respectivamente, a Apolo e a Artémis.
Fazia um tempo frio de Dezembro. A gruta era um lugar aterrador, cavado na rocha maciça; o
acesso era íngreme, tortuoso, escuro como breu e cheio de morcegos. Fui disfarçado, mas a Sibila
reconheceume. Deve ter sido a gaguez que me traiu. Em criança eu gaguejava muito, embora,
seguindo os conselhos de especialistas da fala, tivesse aprendido gradualmente a controlar esse
defeito em ocasiões públicas determinadas; mesmo assim, em privado e em situações não
premeditadas, ainda me acontece, embora em menor escala, enrolarseme a língua
nervosamente. E foi exactamente o que se passou em Cumas.
Cheguei à caverna interior depois de ter tacteado penosamente o meu caminho escada acima, a
quatro; vi a Sibila, mais parecida com um macaco do que com uma mulher, sentada numa cadeira
dentro de uma gaiola suspensa do tecto. Estava vestida de vermelho; por entre um único raio de
luz vermelha, que descia não sei bem de onde, vislumbravamse os seus olhos fixos e brilhantes.
A boca sem dentes sorria. À minha volta havia um cheiro a morte. Mas consegui arrancar de mim
mesmo a saudação que tinha preparado. Ela não me respondeu. Só algum tempo depois fiquei a
saber que aquele era o corpo mumificado de Deífobe, a Sibila anterior, que morrera recentemente
com a idade de 110 anos; as pálpebras
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eram sustidas por bolas de vidro, prateadas na parte de trás para as fazer brilhar. A Sibila reinante
sempre vivera com a sua predecessora. Bom, eu devo ter ficado alguns minutos diante de
Deífobe, a tremer e a fazer caretas propiciatórias. Pareceume uma eternidade. Finalmente, a
Sibila viva, cujo nome era Amalteia, uma mulher bastante jovem, fez a sua aparição. O raio de
luz vermelha deixou de ser visível e Deífobe desapareceu, alguém, provavelmente a noviça, tinha
tapado a minúscula janela de vidro vermelho e um novo raio, branco, desceu e iluminou
Amalteia, sentada sobre um trono de marfim, no meio das sombras do fundo da gruta. Tinha um
rosto belo e de aspecto louco, com a testa alta, e estava sentada tão imóvel como Deífobe. Mas
tinha os olhos fechados. Os joelhos tremiamme e pusme a gaguejar, sem conseguir parar.
Oh Sib... Sib... Sib... Sib... Sib... Comecei. Ela abriu os olhos, franziu a testa e imitoume.
OhClau...Clau... Clau...
Aquilo deixoume envergonhado e lá consegui lembrarme do que tinha vindo perguntar. Com
grande esforço, disselhe:
Oh, Sibila: vim interrogarte sobre o destino de Roma e sobre o meu.
Gradualmente o seu rosto modificouse; o poder profético apoderouse dela, debateuse,
arquejou. Ouviuse um ruído, precipitandose em todas as galerias; as portas batiam, asas
roçavamme a face, a luz desapareceu e ela pronunciou um verso grego na voz do Deus:
Quem sob a Maldição Púnica geme
E da bolsa os cordões sufoca
Antes de recuperar, muito terá de piorar.
A sua boca viva, moscas azuis gerará,
E em volta dos seus olhos as larvas rastejarão
Nenhum homem poderá prever o dia em que ela morrerá.
Depois, lançando os braços por cima da cabeça, recomeçou:
Dez dias, cinquenta dias e três,
ClauClauClau receberá
Uma dádiva que todos desejam menos ele.
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Perante companhia bajuladora Háde gaguejar, cacarejar, engasgarse, Com a baba do lábio a
pingarlhe.
Mas quando emudecer e aqui não mais estiver, Dentro de mil e novecentos anos ou perto, Clau
ClauCláudio com clareza falará.
O Deus riuse de novo pela boca dela; um som magnífico mas terrível Ho! ho! ho!
Eu obedeci; volteime rapidamente e saí aos tropeções, estatelandome ao comprido no primeiro
lanço de escadas partido, ferindo a cabeça e os joelhos. Foi uma saída penosa, com aquele riso
tremendo a perseguirme.
Falando agora como adivinho experimentado, historiador profissional e sacerdote que teve
oportunidades de estudar os livros sibilinos tal como foram regularizados por Augusto, posso
interpretar os versos com alguma confiança. Ao falar na Maldição Púnica, a Sibila referiase
nitidamente à destruição de Cartago por nós, os romanos. Há muito que estamos sob uma
maldição divina por causa disso. Jurámos amizade e protecção a Cartago em nome dos nossos
Deuses mais importantes, incluindo Apolo; e depois, invejosos da sua rápida recuperação dos
estragos da Segunda Guerra Púnica, levámola a entrar na Terceira Guerra Púnica e destruímola
completamente, massacrando os seus habitantes e cobrindolhe os campos de sal. Os cordões da
bolsa são os principais instrumentos desta maldição uma loucura pelo dinheiro que sufocou Roma
desde que ela destruiu o seu principal rival no comércio, tornandose senhora de todas as riquezas
do Mediterrâneo. Com a riqueza veio o desleixo, a cobiça, a crueldade, a desonestidade, a
cobardia, o efeminamento e todos os outros vícios impróprios dos romanos. Qual era a dádiva
que todos desejavam excepto eu e ela, chegou exactamente dez anos e cinquenta e três dias mais
tarde é o que haveis de ler na devida altura. As linhas que se referiam a Cláudio, falando com
clareza, intrigaramme durante anos, mas finalmente acho que as entendo. São, estou convencido,
uma recomendação para que escreva o presente trabalho. Quando estiver terminado, vou tratálo
com um fluído de preservação, selálo num cofre de chumbo e enterrálo bem fundo, algures,
para que a posteridade o encontre e leia. Se a minha interpretação estiver correcta, ele virá a ser
encontrado daqui a uns 1900 anos. Nessa altura, quando todos os outros autores deste tempo
cujas obras tiverem sobrevivido parecerem estar a arrastar os pés e a gaguejar, por terem escrito
com cautelas e apenas para o momento presente,
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a minha história soará com clareza e ousadia. Talvez, pensando melhor, não me dê ao trabalho de
a selar num cofre. Vou deixála por aí. Na realidade, a minha experiência como historiador diz
me sobretudo que os documentos sobrevivem devido ao acaso e não tanto à intenção. Apolo fez a
profecia; portanto, deixarei que Apolo tome conta do manuscrito. Como vedes, decidi escrever
em grego, porque essa língua, estou convencido, háde ser sempre a principal língua literária do
mundo. E se Roma entrar em decomposição, como a Sibila indicou, não se decomporá com ela a
sua língua? Além disso, o grego é a língua do próprio Apolo.
Serei cuidadoso com as datas (que, como vedes, ponho à margem) e com os nomes próprios. Ao
compilar as minhas histórias da Etrúria e de Cartago passei mais horas conturbadas do que me é
grato recordar, tentando descobrir em que ano este ou aquele acontecimento tiveram lugar e se
FulanodeTal era realmente FulanodeTal e se era filho ou neto ou bisneto ou se não tinha
qualquer parentesco. Tenciono poupar os meus sucessores a esta espécie de irritação. Assim, por
exemplo, os vários personagens desta história que têm o nome de Druso o meu pai, eu próprio,
um filho meu, o meu primo em primeiro grau, o meu sobrinho, cada um deles será
cuidadosamente identificado sempre que referido. E, ainda como exemplo, ao falar do meu tutor,
Marco Pórcio Catão, é necessário esclarecer que não se tratava de Marco Pórcio Catão, o Censor,
instigador da terceira Guerra Púnica; nem do seu filho com o mesmo nome, o famoso jurista; nem
do seu neto, o Cônsul do mesmo nome; nem do bisneto com o mesmo nome, inimigo de Júlio
César; nem do quadrineto do mesmo nome, que morreu na batalha de Filipos; mas de um
tetraneto totalmente obscuro, também com o mesmo nome, mas que nunca teve qualquer cargo
público nem mereceu têlo. Augusto fez dele meu tutor e depois mestreescola de outros jovens
nobres romanos e filhos de reis estrangeiros. Porque, embora o seu nome lhe pudesse dar acesso a
uma posição da mais alta dignidade, a sua natureza severa, estúpida e pedante não lhe permitia
ser mais do que um elementar mestreescola.
Para fixar a data à qual pertencem estes acontecimentos, penso que o melhor que posso fazer é
mencionar que o meu nascimento ocorreu no
744° ano após a fundação de Roma por Rómulo, e no 767° ano
10 a.C. depois da primeira Olimpíada; e que o Imperador Augusto, cujo
nome é pouco provável que se apague mesmo passados 1900 anos de história, governava então
havia vinte anos.
Antes de concluir este capítulo introdutório, tenho ainda alguma coisa a acrescentar sobre a Sibila
e as suas profecias. Já referi que, em Cumas, quando uma Sibila morre outra lhe sucede. Contudo,
há algumas que se
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tornam mais famosas que outras. Houve uma muito famosa, Demófila, que Eneias consultou
antes da sua descida ao Inferno. E houve uma outra mais tarde, Herófila, que procurou o rei
Tarquínio e lhe ofereceu uma colecção de profecias por um preço mais alto do que ele desejava
pagar. Como ele recusasse, diz a história, ela queimou uma parte e ofereceulhe o restante pelo
mesmo preço, o que ele voltou a recusar. Depois, queimou outra parte e ofereceulhe o que
restava, sempre pelo mesmo preço que ele, por curiosidade, pagou. Os oráculos de Herófila eram
de dois tipos: avisos ou profecias esperançosas para o futuro e indicações quanto aos sacrifícios
propiciatórios adequados que deviam ser feitos quando tais portentos ocorressem. A estes foram
acrescentados, com o tempo, todos os oráculos notáveis e comprovados anunciados a pessoas
privadas. Assim, sempre que Roma parece estar sendo ameaçada por estranhos presságios ou por
desastres, o Senado ordena que os livros sejam consultados pelos sacerdotes encarregados dos
mesmos, encontrandose sempre um remédio. Duas vezes os livros foram parcialmente destruídos
pelo fogo e as profecias perdidas reconstituídas a partir das memórias conjuntas dos sacerdotes
encarregados. Em muitos casos, as memórias parecem ter sido extremamente deficientes: essa é a
razão porque Augusto decidiu criar um cânon fiável das profecias, rejeitando aditamentos ou
reconstituições nitidamente não inspiradas. Também recolheu e destruiu todas as colecções
particulares não autorizadas de oráculos sibilinos, bem como todos os outros livros de profecias
públicas a que conseguiu deitar mão e cujo número total ascendeu a mais de 2000. Quanto aos
livros sibilinos revistos, colocouos numa arrecadação fechada à chave, situada sob o pedestal da
estátua de Apolo, no templo que ele construiu para o Deus perto do seu palácio do Monte
Palatino. Um único livro da biblioteca histórica privada de Augusto veio parar ás minhas mãos,
algum tempo após a sua morte. Chamavase: Curiosidades Sibilinas: profecias que foram
encontradas incorporadas no cânon original e rejeitadas como apócrifas pelos sacerdotes de
Apoio. Os versos foram copiados na bela caligrafia do próprio Augusto, com os erros de
ortografia característicos que, originariamente nascidos da ignorância, ele posteriormente adoptou
por uma questão de orgulho. Era evidente que a maior parte destes versos nunca foram
pronunciados pela Sibila, quer durante o êxtase quer fora dele, mas sim compostos por pessoas
irresponsáveis que desejavam glorificarse a si próprios ou às suas casas ou amaldiçoar as casas
de rivais, proclamando a autoria divina das fantasiosas previsões contra eles. A família Claudiana
tinha estado particularmente activa, segundo me apercebi, nestas falsificações. No entanto,
encontrei uma ou duas peças cuja linguagem comprovou serem respeitavelmente arcaicas, cuja
inspiração parecia divina e cujo sentido, claro e alarmante, fizera evidentemente com que
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Augusto a palavra dele era lei entre os sacerdotes de Apolo não as incluísse no seu cânon. Este pequeno
livro já não está na minha posse. Mas recordo praticamente cada palavra da mais memorável destas
profecias, aparentemente genuína, que foi registada no grego original e também (como a maior parte das
peças mais antigas do cânone) em ásperos versos latinos. Dizia assim: Cem anos após a Maldição Púnica
Roma será escrava de um homem cabeludo, Um homem cabeludo com falta de cabelo,
A mulher de todos os homens e o homem de todas as mulheres. O garanhão que ele monta terá pés em vez
de cascos.
Ele morrera pela mão do seu filhonão filho, E não no campo de batalha.
O cabeludo seguinte que háde escravizar o Estado Será filhonão filho, deste último cabeludo,
O seu cabelo será uma esfregona generosa. Ele dará a Roma mármore em vez de argila E acorrentálaá
com correntes invisíveis, E morrerá à mão de sua esposanão esposa, Para benefício do seu filhonão
filho.
Optámos por apresentar aqui uma tradução literal (não poética), no sentido de não desvirtuarmos o sentido
original destes versos. Exceptuamos aqui a expressão son, no son, que resolvemos equivaler a filhonão
filho, na medida em que o autor pretende insinuar, no estilo irónico que percorre todos estes versos, que
aquele que era designado por filho do imperador em causa não o seria efectivamente ou, em outros casos,
pelos seus actos e atitudes, não parecia sêlo.
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O terceiro cabeludo a escravizar o Estado
Seráfilhonão filho deste último cabeludo.
Será lama bem misturada com sangue,
Um homem cabeludo com falta de cabelo.
Ele dará a Roma vitórias e derrotas
E morrerá para benefício do seu filhonão filho
Uma almofada será a sua espada.
O quarto cabeludo a escravizar o Estado Será filhonão filho, deste último cabeludo. Um homem
cabeludo que tem falta de cabelo, Ele dará a Roma venenos e blasfémias E morrerá de um coice
do velho cavalo Que o transportou em criança.
O quinto cabeludo a escravizar o Estado,
A escravizar o Estado, embora contra sua vontade,
Será aquele idiota que todos desprezavam.
Ele terá cabelo, qual esfregona generosa.
Ele dará a Roma água e pão para o Inverno
E morrerá à mão de sua esposanão esposa,
Para benefício de seu filhonão filho.
O sexto cabeludo a escravizar o Estado
Será filhonão filho, deste último cabeludo.
Ele dará a Roma músicos, medo e fogo.
A sua mão estará vermelha do sangue de um parente.
Nenhum sétimo cabeludo lhe sucederá
E o sangue jorrará do seu túmulo.
Ora bem, deve ter sido evidente para Augusto que o primeiro dos cabeludos, isto é, dos Césares
(porque César significa cabeça de cabelo), era o seu tioavô Júlio, que o adoptou. Júlio era careca
e famoso pelos seus deboches com ambos os sexos; e o seu cavalo de guerra, como consta dos
registos públicos, era um monstro que tinha dedos nos pés em vez de cascos. Júlio escapou vivo
de muitas batalhas renhidas para acabar por ser assassinado, no Senado, por Brutus. E Brutus,
embora filho de outro, era, diziase, filho natural de Júlio. ”Também tu, meu filho!”, disse Júlio,
quando Brutus foi direito a ele com um punhal. Sobre a maldição Púnica já eu escrevi. Augusto
deve ter reconhecido em si próprio o segundo dos Césares. Na verdade, ele próprio no fim da
vida se gabou, olhando para os templos e edifícios públicos que reedificara de forma esplêndida,
e pensando também no esforço da sua vida para fortalecer e
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glorificar o Império, que tinha encontrado uma Roma de argila e a deixara em mármore. Mas no que diz
respeito à forma como morreu, ele deve ter achado a profecia ininteligível ou incrível: no entanto, o
escrúpulo impediuo de a destruir. Quem eram o terceiro, o quarto e o quinto cabeludos, esta história o
mostrará claramente; e eu sou na realidade um idiota se, dada a infalível exactidão do oráculo em todos os
aspectos, até ao presente, não reconhecer o sexto cabeludo, regozijandome em nome de Roma por não
haver nenhum sétimo cabeludo que lhe suceda.
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CAPíTULO 1
Não me recordo do meu pai, que morreu quando eu era criança. Contudo, em jovem, nunca perdi a
oportunidade de reunir informações, o mais detalhadas possível, sobre a sua vida e personalidade junto de
todas as pessoas senadores, soldados ou escravos que o tivessem conhecido. Comecei a escrever a sua
biografia, enquanto trabalho de aprendiz de historiador. E, embora tivesse sido interrompido pela minha
avó, Lívia, continuei a reunir material, na esperança de um dia vir a conseguir acabálo. Acabeio na
realidade, mas apenas há pouco tempo. Mesmo agora, não faz sentido tentar pôlo em circulação. O
sentimento que dele emana é tão republicano que, no momento em que Agripina minha presente esposa
viesse a saber da sua publicação, todos os exemplares seriam suprimidos e os meus pobres escribas
copistas sofreriam pelas minhas indiscrições. Teriam sorte se escapassem sem os braços partidos e os
polegares e indicadores cortados, o que seria uma indicação típica da satisfação de Agripina. Como essa
mulher me detesta!
O exemplo do meu pai guioume ao longo da vida mais fortemente que o de qualquer outra pessoa, à
excepção do meu irmão Germânico. E Germânico era, todos concordam, a imagem viva do meu pai nas
feições, no corpo (à excepção das pernas finas), na coragem, intelecto e nobreza; assim, combinoos
facilmente no meu espírito como uma figura única. Se eu pudesse com justiça começar esta história com
um relato da minha infância, sem retroceder mais atrás do que a meus pais, certamente o faria, porque as
genealogias e as histórias de família são entediantes. Mas não posso deixar de escrever com certo detalhe
sobre a minha avó Lívia (a única dos meus quatro avós que estava viva quando nasci) porque,
infelizmente, ela é uma figura principal na primeira parte da minha história e, a menos que eu faça um
bom relato dos primeiros anos da sua vida, as suas acções posteriores não serão inteligíveis. Referi que ela
foi casada com o Imperador Augusto: este foi o seu segundo casamento, depois de se ter divorciado do
meu avô. Após a morte do meu pai, tornouse a chefe virtual da família, suplantando a minha mãe
Antónia, o meu tio Tibério (o chefe legal) e o próprio Augusto sob cuja custódia poderosa o meu pai nos
colocara no seu testamento.
Lívia, tal como meu avô, pertencia à família Claudiana, uma das mais antigas de Roma. Há uma balada
popular, que por vezes ainda é cantada
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pelas pessoas mais antigas, cujo refrão diz que a árvore Claudiana produz dois tipos de frutos: a maçã
doce e a azeda; mas diz também que as maçãs azedas são em maior número. Dentro do tipo azedo, o autor
da balada coloca: Ápio Cláudio o Altivo, que pôs Roma inteira em tumulto por ter tentado escravizar e
seduzir uma rapariga nascida livre chamada Virgínia; Cláudio Druso, que nos tempos da República se
tentou proclamar a si próprio Rei de toda a Itália; e Cláudio o Formoso que, quando as galinhas sagradas
se recusaram a comer, as atirou ao mar, gritando ”Pois então que bebam”, perdendo assim uma importante
batalha naval. Entre a primeira espécie, o autor da balada menciona; Ápio o Cego, que dissuadiu Roma de
formar uma aliança perigosa com o Rei Pirro; Cláudio o Tronco, que expulsou os cartagineses da Sicília;
Cláudio Nero (que, no dialecto sabino significa O Forte), que derrotou Asdrúbal quando ele deixou a
Espanha para se juntar ao irmão, o grande Aníbal. Estes três eram todos eles homens virtuosos, além de
ousados e sensatos. O autor diz ainda que também as mulheres Claudianas são, algumas delas, pêras
doces, havendo outras que são mais to tipos azedo. Contudo, uma vez mais, as azedas são mais numerosas
que as doces.
O meu avô era um dos melhores entre os Claudianos. Acreditando que Júlio César era um homem
suficientemente poderoso para dar a Roma paz e segurança naqueles tempos difíceis, juntouse à sua causa
e lutou com bravura do lado de Júlio na Guerra do Egipto. Quando suspeitou que Júlio tinha em mira a
tirania pessoal, o meu avô não esteve disposto a apoiar as suas ambições em Roma, embora não pudesse
arriscarse a uma ruptura declarada. Consequentemente, pediu e obteve a dignidade de pontífice e, como
tal, foi enviado para França para fundar ali colónias de soldados veteranos. Quando regressou, depois do
assassinato de Júlio conquistou a inimizade do jovem Augusto, filho adoptivo de Júlio, então conhecido
como Octaviano, e do seu aliado, o grande Marco António, propondo arrojadamente honras para os
tiranicidas. Foi obrigado a fugir de Roma. Nos tempos conturbados que se seguiram, aliouse ora com um
partido ora com outro, conforme a razão parecia estar de um ou de outro lado. Tão depressa estava com o
jovem Pompeu, como com
o irmão de Marco António lutando contra Augusto, em Perúsia, na Etrúria. Mas, convencendose
finalmente de que Augusto,
ainda que obrigado por uma questão de lealdade a vingar o assassinato de Júlio, seu pai adoptivo dever
que ele executou implacavelmente , não tinha alma de tirano e pretendia restabelecer as antigas
liberdades do povo, colocouse do seu lado e instalouse em Roma com a minha avó Lívia e o meu tio
Tibério, ao tempo apenas com dois anos de idade. Deixou de tomar parte das Guerras Civis, contentando
se com os seus deveres pontificais.
A minha avó Lívia era uma das piores Claudianas. É bem possível, que tenha sido uma reencarnação
daquela outra Cláudia, irmã de Cláudio
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o Formoso, que foi acusada de alta traição porque, certa vez em que a carruagem dela foi detida pela
multidão na rua, terá gritado:
Ah, se o meu irmão estivesse vivo! Ele saberia como afastar as multidões usando o chicote.
Quando um dos tribunos da plebe se aproximou e lhe ordenou irado que se calasse, recordandolhe que o
irmão, com a sua desumanidade, perdera uma frota romana, replicou:
Mais uma razão para desejar que estivesse vivo. Assim, poderia perder mais uma frota e depois outra,
com a vontade dos Deuses, diminuindo um pouco esta malfadada multidão. E acrescentou. Vejo que
sois um Protector do Povo e que a vossa pessoa é legalmente inviolável, mas não esqueçais que nós,
Claudianos, já demos boas tareias em alguns de vós, sem nos ralarmos com a vossa inviolabilidade.
Era exactamente assim que, naquela altura, a minha avó Lívia falava do povo romano.
Ralé e escravos! A República sempre foi um embuste. Do que Roma precisa realmente é de ter
novamente um rei.
Pelo menos, foi assim que ela falou com o meu avô, insistindo que Marco António e Augusto (ou
Octaviano, deveria dizer) e Lépido (um nobre rico mas frouxo), que entre si governavam agora o mundo
romano, acabariam por cair; e que, se ele fizesse bem o seu jogo, poderia usar a dignidade de pontífice e a
reputação de integridade que lhe era atribuída por todas as facções para se tornar ele próprio rei. O meu
avô replicou com severidade que, se ela voltasse a falar daquela maneira, se divorciaria dela; pois,
segundo os moldes antigos do casamento romano, o marido poderia afastar a mulher sem qualquer
explicação pública, devolvendolhe o dote mas conservando os filhos. Ao ouvir isto, a minha avó ficou
silenciosa e fingiu submissão, mas todo o amor entre ambos morreu naquele momento. Sem que o meu
avô soubesse, ela começou imediatamente a trabalhar para despertar as paixões de Augusto.
Não era coisa difícil, pois Augusto era jovem e impressionável e ela fizera um estudo cuidadoso dos
gostos dele: além disso, ela era por veredicto popular uma das três mulheres mais belas do seu tempo.
Escolhera Augusto por o achar melhor instrumento para as suas ambições do que António Lépido não
contava e que nada o deteria na obtenção dos seus fins e proscrições; tinhao demonstrado dois anos
antes, quando
2.000 cavaleiros e 300 senadores pertencentes à facção oposta tinham sido sumariamente executados, de
longe o maior número que caíra às mãos de Augusto. Quando se sentiu segura de Augusto, instigouo a
repudiar Escribónia uma mulher mais velha do que ele, com quem se casara por razões políticas
dizendolhe que tinha conhecimento do adultério de Escribónia com um amigo próximo do meu avô.
Augusto apressouse a acreditar, sem pedir que lhe fossem fornecidas provas. Divorciouse de
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Escribónia, embora ela estivesse inocente, no próprio dia em que deu à luz a filha dele, Júlia, que ele
retirou imediatamente do quarto sem que
Escribónia tivesse sequer olhado a pequena criatura, entregandoa à mulher de um dos seus escravos
libertos para a criar. A minha avó então apenas com dezassete anos, sendo nove anos mais nova que
Augusto foi ter com o meu avô e disse:
Agora divorciate de mim. Estou grávida de cinco meses e não és tu o pai da criança. Fiz a promessa de
não voltar a gerar mais nenhum filho de um cobarde e tenciono cumprila.
O meu avô, independentemente do que possa ter sentido quando ouviu tal confissão, limitouse a dizer:
Chama aqui o adúltero, para discutirmos a questão em privado. O filho na realidade era dele, mas isso
não o podia saber e, quando a minha avó lhe disse que era de outro, ele acreditou.
O meu avô ficou espantado ao descobrir que fora o seu suposto amigo Augusto que o traíra, mas concluiu
que Lívia o tentara e que ele não tinha resistido à beleza dela; e que talvez Augusto ainda sentisse algum
ressentimento por causa da infeliz moção que ele em tempos apresentara no Senado, em que recompensou
os assassinos de Júlio César. Fosse como fosse, não censurou Augusto. Limitouse a dizer:
Se amas esta mulher e tencionas desposála honradamente, fica com ela; respeita apenas as
conveniências.
Augusto jurou que casaria imediatamente com ela e nunca a repudiaria enquanto ela lhe fosse fiel;
comprometeuse com os mais terríveis juramentos. E o meu avô divorciouse dela. Foime dito que ele
considerou que esta paixão de Lívia era um castigo divino contra ele próprio por, uma vez na Sicília e
instigado pela minha avó, ter armado escravos para lutarem contra cidadãos romanos; além disso, ela era
uma Claudiana, pertencente à sua própria família. Por estas duas razões, ele não desejava que incorresse
em desonra pública. Não foi certamente por medo de Augusto que ele assistiu pessoalmente ao casamento
de minha avó algumas semanas mais tarde, levandoa ao altar como um pai faria à própria filha e
acompanhando o hino do seu casamento. Quando penso que ele a amava profundamente e que através da
sua generosidade se arriscou a ser chamado cobarde e perverso, enchome de admiração pelo seu
comportamento.
Mas Lívia era ingrata ficou furiosa e envergonhada por ele parecer aceitar a situação com tanta calma,
deixandoa ir como se se tratasse de uma coisa de pouco valor. E quando o filho dela, meu pai, nasceu,
três meses mais tarde, ficou profundamente vexada com a irmã de Augusto, Octávia, mulher de Marco
António estes eram os meus outros dois avós , por causa de um epigrama em grego dizendo que felizes
eram os pais que tinham filhos de três meses: uma gestação tão curta fora até
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ali apanágio das gatas e das cadelas. Ignoro se Octávia foi realmente a autora do epigrama, mas, se o foi,
Lívia fêla pagar caro por isso. Era pouco provável que o fosse, pois ela própria se casara com Marco
António estando grávida do filho de um marido que tinha morrido; e, como diz o provérbio, os coxos não
troçam dos coxos. No entanto, o casamento de Octávia era assumidamente político, legalizado por um
decreto especial do Senado: não fora provocado pela paixão por um lado e pela ambição por outro. Se
perguntarem como foi que o Colégio dos Altos Pontífices consentiu em admitir a validade do casamento
de Augusto com Lívia, a resposta é que o meu avô e Augusto eram ambos pontífices e que o Alto
Pontífice era Lépido, que fazia exactamente o que Augusto lhe dizia.
Logo que o meu pai foi desmamado, Augusto mandouo de volta para casa do meu avô, onde foi criado
com meu tio Tibério, quatro anos mais velho. O meu avô, logo que as crianças chegaram à idade do
entendimento, passou ele próprio a ocuparse da sua educação, em vez de a confiar a um tutor, como era já
o costume generalizado. Nunca deixou de lhes instilar o ódio à tirania e a devoção aos velhos ideais de
justiça, liberdade e virtude. A minha avó queixavase havia muito por os dois rapazes não estarem a seu
cargo embora na realidade a visitassem diariamente no palácio de Augusto, muito próximo da sua casa
no Monte Palatino ; quando descobriu os moldes em que estavam a ser educados ficou muito contrariada.
O meu avô morreu de repente enquanto
jantava com alguns amigos e suspeitouse que tivesse sido envenenado, mas a questão foi abafada porque
Augusto e Lívia encontravamse entre os convidados. Segundo o seu testamento, os rapazes ficaram à
guarda de Augusto. O meu tio Tibério, apenas com nove anos, fez a oração fúnebre no funeral do meu avô.
Augusto amava ternamente a irmã Octávia e ficara muito desgostoso por ela quando, pouco depois de ela
casar, soube que António, tendo partido para Leste por causa de uma guerra na Pártia, parara no caminho
para reatar a sua intimidade com Cleópatra, rainha do Egipto; e ainda mais desgostoso ficou com a carta
cheia de desprezo que Octávia recebera de António quando ela se pôs a caminho para o ajudar no ano
seguinte com homens e dinheiro para a campanha. A carta que lhe chegou às mãos, quando já ia a meio
caminho, ordenavalhe friamente que voltasse para casa e se ocupasse dos assuntos domésticos; no
entanto, aceitava o dinheiro e os homens. Lívia ficou secretamente encantada com o incidente, pois há
muito que se dedicava insistentemente a criar malentendidos e invejas entre Augusto e António, situações
que por sua vez Octávia era igualmente insistente em minimizar. Quando Octávia regressou a Roma, Lívia
pediu a Augusto que a convidasse a deixar a casa de António e ir viver com eles. Ela recusouse a fazêlo,
em parte porque não confiava em Lívia e também porque não queria tornarse na causa da guerra
iminente. Finalmente
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António, incitado por Cleópatra, enviou a Octávia um pedido de divórcio e declarou guerra a Augusto.
Esta foi a última das guerras civis, um duelo de morte entre os dois únicos homens que continuavam de pé
se é que posso usar tal metáfora depois de um duelo sem tréguas no anfiteatro universal. Lépido
continuava vivo, claro, mas prisioneiro em tudo excepto no nome e totalmente inofensivo tinha sido
obrigado a lançarse aos pés de Augusto e suplicar que lhe poupasse a vida. Também o jovem Pompeu, a
única outra pessoa com importância, cuja frota havia muito tempo comandava o Mediterrâneo, tinha
entretanto sido capturado por Augusto e morto por António. O duelo entre Augusto e António foi breve.
António foi totalmente derrotado na batalha naval em frente da costa de Áccio, na Grécia. Fugiu para
Alexandria e aí pôs fim à
própria vida como o fez também Cleópatra. Augusto assumiu como suas as conquistas de António no
Leste e tornouse, tal como Lívia planeara, o único governante do mundo romano. Octávia permaneceu
fiel aos interesses dos filhos de António não apenas do filho dele por uma esposa anterior mas, na
verdade, dos seus três filhos com Cleópatra: uma rapariga e dois rapazes educandoos com as suas duas
filhas. A mais nova delas, Antónia, viria a ser minha mãe. Esta nobreza de espírito suscitou a admiração
geral de Roma.
Augusto dirigiu o mundo, mas Lívia dirigiu Augusto. E eu tenho que explicar aqui a influência notável
que teve sobre ele. Foi sempre causa de espanto não haver filhos do casamento, uma vez que a minha avó
não se tinha revelado estéril e que Augusto era pai de quatro filhos naturais, além da filha Júlia, que não
há razões para duvidar que fosse filha dele. Além disso, sabiase que era apaixonadamente dedicado à
minha avó. A verdade não é fácil de acreditar. A verdade é que o casamento nunca foi consumado.
Augusto, embora suficientemente apto com outras mulheres, ficava impotente como uma criança quando
tentava ter relações com a minha avó. A única explicação razoável é que Augusto era, no fundo, um
homem piedoso, embora a crueldade e mesmo a má fé lhe tivessem sido impostas pelos perigos que se
seguiram ao assassinato do tioavô Júlio César. Ele sabia que o casamento era ímpio: este pensamento, ao
que parece, afectavao, deixandoo nervoso e pondolhe na carne uma contenção interior.
A minha avó, que quisera Augusto como um instrumento da sua ambição mais do que como amante,
estava mais satisfeita do que triste com a impotência dele. Achava que podia usála como uma arma para
submeter a vontade dele à sua. A atitude dela consistia em censurálo constantemente por a ter seduzido,
afastandoa do meu avô, a quem afirmava ter amado, com protestos de paixão profunda e com ameaças
secretas dirigidas a ele de que, se não a libertasse, ela o faria deter como inimigo público (esta última parte
era totalmente falsa). E agora bastava ver, dizia
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ela, como tinha sido enganada! O amante apaixonado não era homem nenhum; qualquer pobre
carvoeiro ou escravo era mais homem do que ele! Até mesmo Júlia não era sua filha verdadeira e ele
sabiao. Tudo aquilo para que ele servia, dizia, era para acariciar, tocar, beijar e fazer olhinhos como
qualquer eunuco cantor. Augusto protestava em vão que, com outras mulheres, era um verdadeiro
Hércules. Ela ou se recusava a acreditar ou o acusava de esbanjar com essas outras mulheres aquilo que
lhe negava a ela. Mas para que não viesse a público nenhum escândalo relacionado com tudo isto, ela
fingiu a dada altura que estava grávida dele e, depois, que tinha abortado. A vergonha e a paixão insaciada
ligavam Augusto mais fortemente a ela do que se os seus anseios mútuos tivessem sido satisfeitos todas as
noites ou se ela lhe tivesse dado uma dúzia de filhos sãos e escorreitos. Como Lívia se ocupava bem da
sua saúde e conforto e lhe era fiel, pois a sua concupiscência apenas almejava o poder, sentiase de tal
forma grato que a deixava guiálo e dirigilo em todos os actos públicos e privados. Ouvi afirmar com
segurança pelos velhos funcionários do palácio que, depois de casar com a minha avó, Augusto nunca
mais olhou para outra mulher. No entanto, corriam em Roma toda a espécie de histórias sobre as suas
aventuras com mulheres e filhas de notáveis; e depois da sua morte, ao explicar como era possível que
tivesse tido um domínio tão completo sobre as afeições dele, Lívia costumava dizer que não era apenas
por lhe ter sido fiel, mas também por nunca ter interferido com as suas aventuras amorosas passageiras.
Estou convencido de que ela punha todos estes escândalos à sua volta para ter alguma coisa a censurar
lhe.
Caso seja interrogado sobre as minhas fontes para esta curiosa história, citálasei. A primeira parte,
relativa ao divórcio, soubea pela própria Lívia no ano em que ela morreu, O restante, sobre a impotência
de Augusto, ouvio a uma mulher chamada Brises, camareira da minha mãe, que servira anteriormente
como aia de minha avó e que, tendo então apenas sete anos de idade, era autorizada a ouvir conversas que
todos pensavam que ela era demasiado jovem para entender. Acredito que o meu relato é verdadeiro e
continuarei a acreditar nele até que seja suplantado por outro que se ajuste igualmente bem aos factos.
Segundo a minha maneira de pensar, o verso da Sibila que refere esposa, nãoesposa confirma a questão.
Não posso concluir aqui este assunto. Ao escrever esta passagem, com a ideia, suponho, de proteger o
bomnome de Augusto, tenho estado a esconder uma coisa que afinal vou revelar agora. É que, como diz o
provérbio, a verdade ajuda a consolidar a história. É o seguinte. A minha avó Lívia consolidou
engenhosamente o seu ascendente sobre Augusto dandolhe em segredo, por sua iniciativa, belas jovens
para dormirem com ele sempre que notava que a paixão o deixava inquieto. O facto de ela lhe
proporcionar tal coisa, e sem dizer uma palavra antes ou depois,
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refreando o ciúme que, como esposa, estava convencido que ela devia sentir; tudo feito com muita
decência e discrição, as jovens (escolhidas pela própria Lívia no mercado de escravos sírio ele preferia as
sírias) eram introduzidas no quarto de Augusto durante a noite com uma pancada e um tilintar de corrente
como sinal, e chamadas para se irem embora de manhã com uma pancada e um tilintar iguais; o facto
delas se manterem silenciosas na sua presença como se fossem súcubos que aparecessem em sonhos o
facto dela executar tudo isto com tanto cuidado ao mesmo tempo que lhe permanecia fiel apesar da sua
impotência em relação a ela, deve terlhe surgido como a prova perfeita do amor mais sincero. Podeis
contrapor que Augusto, na posição que ocupava, podia ter tido as mulheres mais belas do mundo, escravas
ou livres, casadas ou solteiras, para satisfazer o seu apetite, sem a assistência de Lívia como alcoviteira.
Isso é verdade, mas também é verdade que depois do seu casamento com Lívia ele não tocava em carnes
como ele próprio disse uma vez embora talvez noutro contexto; que ela não tivesse declarado adequadas
para serem consumidas.
Das mulheres, portanto, Lívia não tinha razões para sentir ciúme, à excepção da cunhada, a minha outra
avó, Octávia, cuja beleza suscitava tanta admiração como a sua virtude. Lívia sentira um prazer malicioso
em lhe manifestar a sua simpatia por causa da infidelidade de António. Tinha chegado ao ponto de sugerir
que fora em grande parte culpa da própria Octávia, por se vestir com tanta modéstia e se comportar com
tanto decoro. Marco António, fezlhe notar, era um homem de paixões fortes e, para uma mulher o reter
com êxito, tinha que temperar a castidade de matrona romana com as artes e extravagâncias de uma
cortesã oriental. Octávia devia ter retirado uma folha do livro de Cleópatra, pois a egípcia, embora inferior
a Octávia no aspecto físico e mais velha oito ou nove anos, sabia bem como alimentar o apetite sexual de
António.
Os homens como ele, os verdadeiros homens, preferem o estranho ao saudável, concluiu Lívia com ar
sentencioso. Para eles, o queijo verde com lagarta é mais saboroso que a coalhada fresca.
Guardai para vós as vossas lagartas, ripostou Octávia furiosa. Lívia vestiase ricamente e usava os mais
dispendiosos perfumes asiáticos; mas não permitia a menor extravagância na sua casa, que se gabava de
dirigir à velha moda romana. As suas regras eram: comida simples mas abundante, devoções familiares
com regularidade, nada de banhos quentes depois das refeições, trabalho constante para todos e nada de
desperdícios. Todos não se referia apenas aos escravos e libertos, mas a todos os membros da família.
Sobre a infeliz Júlia recaíam as expectativas de um exemplo de diligência. Levava uma vida muito
cansativa. Tinha uma tarefa diária de cardar lã e fiar, tecer e coser, era obrigada a levantarse da cama dura
ao amanhecer e mesmo antes do
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amanhecer nos meses de Inverno, para dar conta do recado. E como a madrasta acreditava numa educação
liberal para as raparigas, cabialhe, entre outras tarefas, aprender de cor toda a Ilíada e a Odísseia de
Homero.
Júlia tinha ainda que manter um diário pormenorizado, para benefício de Lívia, do trabalho que fazia, dos
livros que lia, das conversações que tinha e assim por diante; o que era um fardo enorme para ela. Não lhe
eram permitidas amizades com homens, embora a sua beleza fosse muito celebrada. Um jovem de uma
família antiga e de moral irrepreensível, filho de um Cônsul, foi suficientemente ousado para se lhe
apresentar um dia em Baiae sob um pretexto cortês, quando ela dava o passeio de meia hora à beira mar
que lhe era permitido, acompanhada apenas pela sua aia. Lívia, que sentia inveja da beleza de Júlia e da
afeição de Augusto por ela, mandou que enviassem ao jovem uma carta muito ríspida, dizendolhe que
nunca poderia aspirar a um cargo público sob os auspícios do pai da rapariga cujo bom nome ele tentara
manchar com esta insuportável familiaridade. A própria Júlia foi punida com a proibição de dar os seus
passeios fora dos terrenos da villa. Por esta altura Júlia ficou careca. Não sei se Lívia teve alguma coisa a
ver com isso: não me parece impossível, embora sem dúvida a calvície fosse uma característica da família
César. De qualquer forma, Augusto arranjou um fabricante de perucas egípcio que lhe fez uma das mais
esplêndidas cabeleiras louras que alguma vez foi vista e os encantos da jovem foram desta forma
aumentados e não diminuídos por aquele infortúnio; o seu cabelo natural nada tinha de notável. Dizse que
a cabeleira não foi armada, à maneira habitual, sobre uma rede de cabelo, mas que se tratava do escalpe
completo da filha de um chefe germânico que foi encolhido para tomar a dimensão exacta da cabeça de
Júlia e que era mantido vivo e flexível com a aplicação ocasional de um unguento especial. No entanto,
devo dizer que não acredito nisso.
Todos sabiam que Lívia mantinha Augusto sob uma disciplina estrita e que, embora não se pudesse dizer
que tivesse realmente medo dela, tomava de qualquer forma o maior cuidado em não a ofender. Um dia,
na sua qualidade de Censor, fazia uma prelecção a alguns homens ricos por deixarem as respectivas
mulheres encheremse de jóias.
O adorno excessivo não é apropriado para uma mulher, disse.
É dever do marido afastála da luxúria. Deixandose transportar pela própria eloquência, acrescentou
infelizmente, Por vezes, tenho a oportunidade de admoestar a minha própria esposa neste sentido.
Ouviuse uma exclamação de deleite vinda dos culpados.
Oh, Augusto, disseram, contanos por favor com que palavras admoestas Lívia. Isso servirnosá de
modelo.
Augusto ficou alarmado e sobressaltado.
Ouvistes mal, atalhou, eu não disse que alguma vez tivesse tido ocasião de repreender Lívia. Como
bem sabeis, ela é um modelo de
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modéstia feminina. Mas eu certamente não teria qualquer hesitação em a admoestar caso ela esquecesse a
sua dignidade no vestir, como acontece com algumas das vossas esposas, como uma dançarina de
Alexandria que por alguma estranha reviravolta da sorte se tornasse rainhamãe da Arménia.
Nessa mesma noite, Lívia tentou amesquinhar Augusto aparecendo à mesa do jantar com os atavios mais
fantasticamente espampanantes que conseguiu arranjar, baseados num dos trajos de cerimónia de
Cleópatra. Mas ele saiuse bem da situação embaraçosa, elogiandoa pela sua humorística e oportuna
caricatura do exacto defeito que ele tinha estado a condenar.
Lívia tornarase mais sensata desde o tempo em que aconselhara o meu avô a pôr um diadema na cabeça e
proclamarse a si mesmo rei. O título de rei continuava a ser execrado em Roma por causa da impopular
dinastia de Tarquínio à qual, segundo a lenda, o primeiro Brutus (chamolhe assim para o distinguir do
segundo Brutus, que assassinou Júlio César) tinha posto fim expulsando a família real da Cidade e
tornandose um dos primeiros dois Cônsules da República Romana. Lívia compreendia agora que o título
de rei podia ser adiado desde que Augusto conseguisse controlar os poderes substanciais da realeza.
Seguindo o conselho dela, ele concentrou gradualmente na sua pessoa todas as dignidades republicanas
importantes. Foi Cônsul em Roma e, quando passou o cargo para um amigo de confiança, assumiu em
troca o Alto Comando que, embora nominalmente estivesse ao nível do consulado, na prática estava
acima deste ou de qualquer outra magistratura. Tinha também controlo absoluto sobre as províncias e
poder para designar os governadoresgerais das mesmas, além do comando de todos os exércitos e o
direito de reunir tropas e fazer a guerra ou a paz. Em Roma votaramlhe o cargo vitalício de Protector do
Povo, que lhe servia de garantia contra toda e qualquer interferência na sua autoridade, lhe dava o poder
de vetar as decisões de outros dignitários, e tinha implícita a inviolabilidade da sua pessoa. O título de
Imperador, que anteriormente significava apenas marechal de campo, mas que acabou por adquirir
recentemente o significado de monarca supremo, partilhavao com outros generais de sucesso. Tinha
também o cargo de Censor, que lhe dava autoridade sobre duas das principais ordens sociais: a dos
Senadores e a dos Cavaleiros; sob o pretexto de falhas de ordem moral, ele podia destituir qualquer
membro de uma dessas ordens das suas dignidades e privilégios uma desgraça que se fazia sentir com
agudeza. Tinha controlo do Tesouro Público: era seu dever apresentar contas periodicamente, mas nunca
ninguém ousou pedir uma auditoria, embora se soubesse que havia malabarismos constantes entre o
Tesouro e o Erário Privado.
Desta forma, ele tinha o comando dos exércitos, o controlo das leis a sua influência no Senado era de tal
ordem que votavam o que quer que
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fosse que ele sugerisse , o controlo das finanças públicas, o controlo do comportamento social e a
inviolabilidade pessoal. Tinha mesmo o direito de condenar sumariamente qualquer cidadão romano,
desde o camponês ao senador, à morte ou ao desterro perpétuo. A última dignidade que assumiu foi a de
Alto Pontífice, que lhe deu o controlo de todo o sistema religioso. O Senado estava ansioso por lhe votar
qualquer cargo que ele quisesse aceitar, excepto o de Rei: receavam votarlhe a realeza, com medo do
povo. O seu verdadeiro desejo era ser chamado Rómulo, mas Lívia desaconselhouo de promover tal
coisa. O argumento dela era que Rómulo tinha sido rei e que o nome era portanto perigoso; além disso, ele
era uma das divindades tutelares romanas e, portanto, tomarlhe o nome poderia parecer blasfémia. Mas o
que ela sentia no fundo era que esse título não seria suficientemente grandioso. Rómulo fora um simples
chefe de bandidos e não se encontrava entre os deuses de primeira grandeza. A conselho dela, deu a
entender ao Senado que o título de Augusto lhe seria agradável. E o Senado votoulho. Augusto tinha uma
conotação semidivina e o vulgar título de Rei não era nada em comparação.
Quantos simples reis pagaram tributo a Augusto! Quantos foram feitos desfilar acorrentados nos triunfos
romanos! Não tinha o próprio Alto Rei da remota índia, ao ouvir falar da fama de Augusto, enviado
embaixadores a Roma, pedindo a protecção da sua amizade, com presentes propiciatórios de sedas e
especiarias notáveis; e rubis, esmeraldas e sardonix; e tigres, então a serem vistos pela primeira vez na
Europa; e o Hermes indiano, o famoso rapaz sem braços que conseguia fazer as coisas mais
extraordinárias com os pés? Não tinha Augusto posto fim àquela linhagem de reis no Egipto, que datava
de pelo menos 5.000 anos antes da fundação de Roma? E nessa fatal interrupção da história, que
monstruosos portentos não tinham sido vistos? Não tinha havido faiscar de armaduras nas nuvens e queda
de chuva ensanguentada? Não tinha aparecido na rua principal de Alexandria uma serpente gigantesca que
produzia um sibilar incrivelmente forte? Não tinham também aparecido os fantasmas de faraós mortos?
As suas estátuas não tinham franzido as testas com severidade? Ápis, o boi sagrado de Mênfis, não tinha
soltado um mugido lamentoso e choroso? Era assim que a minha avó raciocinava para consigo mesma.
A maior parte das mulheres tem tendência para estabelecer limites modestos para as suas ambições:
algumas, raras, estabelecem limites ousados. Mas Lívia era única em não pôr qualquer limite à sua, ao
mesmo tempo que permanecia perfeitamente lúcida e controlada naquilo que seria considerado em
qualquer outra mulher como loucura furiosa. Só gradualmente, com todas as excelentes oportunidades que
tinha de a observar, acabei por descobrir de uma maneira geral quais as intenções dela. Mas mesmo assim,
quando chegou o momento da revelação final,
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ela veio como um choque de surpresa. Talvez seja melhor registar aqui vários actos na sua sequência
histórica, em vez de me alongar sobre os seus motivos escondidos.
A conselho seu, Augusto convenceu o senado a criar duas novas divindades, designadamente, a Deusa
Roma, que representava a alma feminina do Império Romano, e o Semideus Júlio, o herói guerreiro que
era Júlio César em apoteose (honras divinas tinham sido oferecidas a Júlio, no Oriente, quando ainda
estava vivo; o facto de não as ter recusado fora uma das razões do seu assassinato). Augusto conhecia o
valor de um laço religioso para unir a província à Cidade, um laço muito mais forte que aquele que se
baseava apenas no medo ou na gratidão. Acontecia por vezes que, depois de um longo período de
residência no Egipto ou na Ásia Menor, mesmo os romanos da melhor água passavam a adorar os deuses
que encontravam por lá e esqueciam os seus, tornandose assim estrangeiros, em tudo excepto no nome.
Por outro lado, Roma tinha importado tantas religiões das cidades que conquistara, dando às divindades
estrangeiras, tais como ísis e Cibele, templos nobres na cidade e não apenas para conveniência dos
visitantes , que era razoável que resolvesse agora, numa troca justa, implantar deuses seus nessas cidades.
Roma e Júlio, portanto, deviam ser adorados pelos provincianos, que eram cidadãos romanos e desejavam
ser recordados da sua herança nacional.
O passo que Lívia tomou a seguir foi arranjar delegações de provincianos, não suficientemente
afortunados para terem a cidadania completa, que visitassem Roma para pedir que lhes fosse dado um
Deus romano, a quem pudessem adorar com lealdade e sem presunção. A conselho de Lívia, Augusto
disse ao Senado, meio a brincar, que a estes pobres diabos, embora não fosse possível permitírlhes que
adorassem as divindades superiores, Roma e Júlio, não devia serlhes negada uma qualquer espécie de
Deus, por mais humilde que fosse. Neste ponto, Mecenas, um dos ministros de Augusto, com quem este já
discutira se seria ou não aconselhável adoptar o nome de Rómulo, disse:
Dêmoslhes um Deus que tomará bem conta deles. Demoslhes o próprio Augusto.
Augusto mostrouse um tanto embaraçado, mas admitiu que a sugestão de Mecenas era razoável. Era um
costume enraizado entre os orientais, e que podia muito bem ser aproveitado a favor dos romanos, prestar
honras divinas aos seus governantes; mas visto que era nitidamente impraticável para as cidades orientais
adorar todo o Senado de uma vez, pondo 600 estátuas em cada um dos seus santuários, uma maneira de
sair dessa dificuldade era certamente que eles adorassem o chefe do executivo do senado, que, por
coincidência, era ele próprio. Assim o Senado, sentindose gratificado, na medida em que cada um dos
seus
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membros tinha em si pelo menos uma seiscentésima parte de divindade, votou com agrado a moção de
Mecenas e, na Ásia Menor, imediatamente foram erigidos santuários dedicados a Augusto. O culto
espalhouse mas, de início, apenas nas províncias fronteíríças, que estavam sob o controlo directo de
Augusto, não nas províncias do próprio país, que estavam nominalmente sob o controlo do Senado, nem
na Cidade em si.
Augusto aprovava os métodos educativos de Lívia em relação a júlia e as suas disposições e economias
domésticas. Ele, pessoalmente, tinha gostos simples. O seu palato era tão insensível que não notava a
diferença entre o azeite virgem e o produto de qualidade inferior obtido depois da pasta de azeitona ter
passado na prensa pela terceira vez. Usava roupas de tecido grosseiro. Diziase com razão que, embora
Lívia fosse uma megera, se não fosse a sua incansável actividade, Augusto nunca teria conseguido
empreender a imensa tarefa que impôs a si próprio: a de devolver a Roma a paz e a segurança depois dos
estragos prolongados das Guerras Civis nas quais ele próprio, claro, tivera um papel tão destrutivo. O
trabalho de Augusto ocupavao catorze horas por dia, mas o de Lívia, diziase, ocupava vinte e quatro.
Não só dirigia da maneira eficiente que descrevi a sua enorme casa, mas suportava com ele, em partes
iguais, os negócios públicos. Um relato completo de todas as reformas legais, sociais, administrativas,
religiosas e militares que levaram a cabo entre ambos, para não falar das obras públicas que
empreenderam, dos templos que reedificaram, das colónias que implementaram, encheria muitos volumes.
No entanto, havia muitos romanos distintos da geração mais antiga que não conseguiam esquecer que esta
reconstituição aparentemente admirável do Estado só tinha sido viabilizada pela derrota militar, pelo
assassínio secreto ou pela execução pública de praticamente todas as pessoas que tinham desafiado o
poder daquele casal enérgico. Se o seu poderio único e arbitrário não tivesse aparecido disfarçado sob as
formas da liberdade antiga, eles nunca o teriam conseguido manter por muito tempo. Mesmo assim, houve
nada menos de quatro conspirações contra a vida de Augusto por aspirantes a Brutus.
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CAPíTULO III
O nome Lívia está relacionado com a palavra latina que significa Malignidade. A minha avó era uma
actriz consumada e a pureza exterior da sua conduta, a agudeza do seu espírito e a graciosidade dos seus
modos enganavam praticamente todos. Mas, na realidade, ninguém gostava dela: a malignidade suscita
respeito, mas não afeição. Ela tinha a capacidade de fazer com que pessoas vulgares e despreocupadas se
sentissem, na sua presença, fortemente conscientes das suas falhas intelectuais e morais. Sintome na
obrigação de pedir desculpa por continuar a escrever sobre Lívia, mas é inevitável: como todas as histórias
romanas honestas, esta é escrita de fio a pavio. Prefiro a meticulosidade romana ao método de Homero e
dos gregos em geral, que adoram saltar para o meio das coisas e depois recuar ou avançar, conforme a
inclinação do momento. Sim, tive muitas vezes a ideia de reescrever a história de Tróia em prosa latina,
para benefício dos nossos cidadãos mais pobres, que não sabem ler grego; começando com o nascimento
de Helena e continuando, capítulo após capítulo, seguindo o fio dos acontecimentos, até que os pavios se
acendessem para iluminar a grande festa em celebração do regresso de Ulisses e da sua vitória sobre os
pretendentes da própria esposa. Nos pontos em que Homero é obscuro ou silencioso sobre qualquer
aspecto, eu consultaria naturalmente os poetas posteriores ou do anterior Dares, cujo relato, embora cheio
de divagações poéticas, me parece mais fiável que o de Homero, pois ele participou realmente na guerra,
primeiro com os troianos, depois com os gregos.
Vi uma vez uma estranha pintura no interior de uma velha arca de cedro, vinda, julgo, de algum lugar no
norte da Síria. A inscrição, em grego, era Veneno é Rainha e o rosto de Veneno, embora executado mais
de cem anos antes do nascimento de Lívia, era, sem sombra de dúvida o da própria Lívia. Neste contexto,
tenho que escrever acerca de Marcelo, filho de Octávia com um marido anterior. Augusto, que sentia
grande estima por Marcelo, adoptarao como filho, confiandolhe tarefas administrativas muito para além
da sua idade; e casarao com Júlia. A opinião corrente em Roma era que ele tencionava fazer de Marcelo
seu herdeiro. Lívia não se opôs à adopção e, na realidade, pareceu aceitála como uma maneira mais fácil
de conquistar a afeição e a confiança de Marcelo. A
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sua afeição por ele parecia inquestionável. Foi a conselho seu que Augusto lhe proporcionou um progresso
tão rápido; e Marcelo, que sabia disto, sentia para com ela uma forte gratidão.
O motivo de Lívia em favorecer Marcelo era visto por alguns observadores astutos como sendo o de
provocar o ciúme de Agripa. Agripa era o homem mais importante de Roma a seguir a Augusto: um
homem de baixa condição, mas o mais antigo amigo de Augusto e o general e almirante de maior sucesso.
Até então, Lívia fizera tudo para manter a amizade de Agripa por Augusto. Ele era um homem ambicioso,
mas só até certo ponto. Nunca teria a presunção de disputar a soberania de Augusto, a quem admirava
excessivamente e não desejava maior glória que a de ser o ministro em quem ele mais confiava. Tinha,
além disso, uma forte consciência das suas origens humildes e Lívia, no seu papel de grande dama
patrícia, sempre o dominou. A importância dele para Lívia e Augusto não residia, no entanto, apenas nos
seus serviços, lealdade e popularidade junto do povo e do Senado. Era assim: por uma ficção que a própria
Lívia criara originariamente, incumbialhe manter uma posição de vigilância, em nome da nação, sobre a
conduta política de Augusto. No famoso debate simulado ocorrido no Senado, após a queda de António,
entre Augusto e os seus dois amigos, Agripa e Mecenas, o papel de Agripa consistira em aconselhálo
contra a tomada do poder de soberania; apenas para permitir que as suas objecções fossem contrariadas
pelos argumentos de Mecenas e pelos pedidos entusiásticos do senado. Agripa declarara então que serviria
fielmente Augusto enquanto a soberania fosse benéfica e não se tratasse de uma tirania arbitrária. A partir
daí, ganhou o respeito e a confiança populares, como um baluarte contra possíveis infiltrações da tirania; e
aquilo que Agripa deixava passar, a nação deixava passar. Pensavam agora os mesmos observadores
argutos que Lívia estava a jogar um jogo muito perigoso, ao suscitar em Agripa sentimentos de inveja em
relação a Marcelo. Os acontecimentos eram observados com grande interesse. Talvez a devoção dela para
com Marcelo fosse falsa e a sua verdadeira intenção fosse levar Agripa a afastálo do caminho. Havia
rumores em como um membro dedicado da família de Agripa se teria oferecido para provocar uma
desavença com Marcelo e matálo: mas que Agripa, embora não sentisse menos inveja do que Lívia
desejava, era demasiado nobre para aceitar uma sugestão tão baixa.
Era ponto assente, de uma maneira geral, que Augusto tinha feito Marcelo seu herdeiro principal e que
Marcelo herdaria não apenas a sua imensa riqueza, mas a monarquia, tudo no mesmo pacote pois de que
outra forma posso eu escrever sobre isso a não ser assim? Agripa, portanto, fez saber que, embora fosse
dedicado a Augusto e nunca tivesse lamentado a decisão de apoiar a sua autoridade, havia uma coisa que
nunca iria permitir: designadamente, que a monarquia se tornasse hereditária.
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Mas Marcelo era agora quase tão popular como Agripa e muitos jovens de posição e de família, a quem a
pergunta Monarquia ou República? parecia já uma questão acadêmica, tentavam ganharlhe as boas
graças, esperando alcançar dele honras importantes quando sucedesse a Augusto. Esta prontidão
generalizada para acolher a continuação da monarquia parecia agradar a Lívia, mas ela anunciou em
privado que, na eventualidade lamentável da morte ou incapacidade de Augusto, a condução imediata dos
negócios do Estado, enquanto outras disposições não fossem tomadas por decreto do senado, devia ser
confiada a mãos mais experientes que as de Marcelo. No entanto, Marcelo gozava de tal favoritismo junto
de Augusto que, embora as declarações de Lívia em privado acabassem geralmente como éditos públicos,
ninguém lhe prestou muita atenção naquele momento: e cada vez mais pessoas cortejavam Marcelo.
os observadores argutos perguntavam a si mesmos como é que Lívia encararia esta nova situação; mas a
sorte parecia estar do lado dela. Augusto apanhou uma ligeira constipação, que teve uma evolução
inesperada, com febres e vómitos: Lívia preparavalhe a comida com as suas próprias mãos enquanto
esteve doente, mas o estômago dele estava tão delicado que não conseguia guardar a comida. Ele foi
ficando cada vez mais fraco e sentiu, por fim, que estava à beira da morte. Muitas vezes lhe tinha sido
pedido que nomeasse o seu sucessor,
mas não o fizera com medo das consequências políticas e também porque o pensamento da própria morte
lhe era extremamente desagradável. Agora, sentia que era seu dever nomear alguém e pediu a Lívia que o
aconselhasse. Disse que a doença lhe tinha roubado toda a capacidade de raciocínio; escolheria qualquer
sucessor que, dentro dos limites do razoável, lhe fosse sugerido por ela. Assim, Lívia tomou a decisão por
ele e Augusto aceitou. chamou então à cabeceira do doente o seu colega Cônsul, os magistrados da cidade
e certos senadores e cavaleiros representativos. Ele estava demasiado fraco para dizer o que quer que
fosse, mas entregou ao Cônsul um registo das forças militares e navais e uma declaração dos rendimentos
públicos; depois, chamou Agripa com um aceno e deulhe o seu anel de sinete; o que equivalia a dizer que
Agripa lhe sucederia, embora com a cooperação estreita dos Cônsules. Isto surgiu como uma grande
surpresa. Todos esperavam que Marcelo fosse o escolhido.
A partir daquele momento, Augusto começou a melhorar misteriosamente: a febre baixou e o estômago
passou a aceitar a comida. No entanto, o crédito pela sua cura não foi para Lívia, que continuava a ocupar
se dele pessoalmente, mas para um certo médico chamado Musa, que tinha a mania inofensiva de recorrer
às loções e poções frias. Augusto ficou tão grato a Musa pelos seus supostos serviços, que lhe ofertou o
seu próprio peso em moedas de ouro, o que o Senado duplicou. Musa, embora fosse um escravo liberto,
recebeu o grau de cavaleiro, o que lhe dava o direito
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de usar um anel de ouro e de se candidatar ao serviço público; e um decreto ainda mais extravagante foi
promulgado pelo Senado, concedendo isenção de impostos a toda a classe médica.
Marcelo ficou nitidamente mortificado por não ter sido declarado herdeiro de Augusto. Com os seus 20
anos, era ainda muito jovem. Os favores anteriores de Augusto tinhamlhe dado uma noção exagerada,
tanto dos seus talentos como da sua importância política. Tentou enfrentar a situação sendo abertamente
maleducado para com Augusto, num banquete público. Agripa controlou com dificuldade a irritação, mas
o facto do incidente não ter tido consequências levou os apoiantes de Marcelo a convenceremse que
Agripa tinha medo dele. Disseram mesmo uns aos outros que, se Augusto não mudasse de opinião dentro
de um ou dois anos, Marcelo usurparia o poder Imperial. Tornaramse tão desordeiros e fanfarrões, sem
que Marcelo fizesse grande coisa para os controlar, que houve conflitos frequentes entre eles e o partido
de Agripa. Agripa estava profundamente incomodado com a insolência daquele cachorrinho, como lhe
chamava ele, que detivera a maior parte dos principais cargos públicos e ganhara uma série de
campanhas. Mas a sua decepção estava misturada com alarme. A impressão criada por estes incidentes era
de que Marcelo e ele estavam disputando de maneira indecente quem deveria usar o anel de sinete de
Augusto depois da morte deste.
Ele estava pronto a fazer praticamente qualquer sacrifício para evitar parecer que fazia tal papel. Marcelo
era o ofensor e Agripa desejava pôr o fardo completo nos ombros dele. Decidiu retirarse de Roma. Foi
procurar Augusto e pediu para ser nomeado Governador da Síria. Quando Augusto lhe perguntou as
razões daquele pedido inesperado, ele explicou que pensava poder, uma vez detentor daquele cargo, fazer
um acordo valioso com o rei da Pártia. Poderia persuadir o Rei a devolver as Águias regimentais e os
prisioneiros capturados aos romanos trinta anos antes, em troca pelo filho do rei, que Augusto detinha
cativo em Roma. Não disse nada sobre o desentendimento com Marcelo. Augusto, que ficara ele próprio
bastante incomodado com o caso, dividido entre uma amizade antiga por Agripa e um indulgente amor
paternal por Marcelo, não se permitiu reconhecer até que ponto o comportamento de Agripa era generoso,
pois isso teria sido uma confissão de fraqueza; por conseguinte, também não fez qualquer referência a essa
questão. Acedeu com entusiasmo ao pedido de Agripa, afirmando como era importante recuperar as
Águias e os cativos se é que alguns ainda continuavam vivos, ao fim de tanto tempo e perguntou
quando é que ele estaria pronto para começar. Agripa ficou magoado, interpretando mal a atitude de
Augusto. Pensou que este se queria ver livre dele, acreditando de facto que estava em disputa com
Marcelo por causa da sucessão. Agradeceulhe ter acedido
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ao pedido, protestando friamente a sua lealdade e amizade, e disse que estava pronto para embarcar no dia
seguinte.
Não foi para a Síria. Não passou da ilha de Lesbos, mandando à frente o seu lugartenente para
administrar a província por ele. Sabia que a sua estada em Lesbos seria interpretada como uma espécie de
desterro, em que incorrera por causa de Marcelo, Não visitou a província, porque, se o tivesse feito, isso
teria dado aos partidários de Marcelo um pretexto contra ele: certamente teriam dito que ele fora para o
Oriente a fim de reunir um exército para marchar contra Roma. Mas lisonjeavao saber que Augusto não
tardaria a precisar dos seus serviços; e estava totalmente convencido de que Marcelo planeava usurpar a
monarquia. Lesbos gozava de uma proximidade de Roma bastante conveniente. Nao esqueceu a sua
incumbência e abriu as negociações, através de intermediários, com o rei da Pártia, mas não esperava
concluilas tão depressa. É preciso bastante tempo e paciência para conseguir um acordo vantajoso com
um monarca oriental.
Marcelo foi eleito magistrado da cidade, o seu primeiro cargo público, e fez disso a ocasião para uma
demonstração magnífica de jogos Públicos. Não só ergueu tendas nos próprios teatros, contra o sol e a
chuva, decorandoos com tapeçarias esplêndidas, como transformou toda a Praça do Mercado num
gigantesco pavilhão em várias cores. O efeito era deslumbrante, particularmente no interior, quando
atravessado pelo sol. Para fazer as tendas, usou uma quantidade fabulosa de tecido vermelho, amarelo e
verde que, uma vez os jogos terminados, foi cortado em pedaços e distribuído pelos cidadãos para fazerem
vestuário e roupa de cama. Um grande número de animais selvagens fora importado de África para os
combates no anfiteatro, incluindo numerosos leões, e houve uma luta entre cinquenta cativos germanos e
igual número de guerreiros negros de Marrocos. O próprio Augusto contribuiu largamente para as
despesas; assim como Octávia, como mãe de Marcelo. Quando Octávia apareceu na procissão cerimonial,
foi saudada com um aplauso tão vibrante que Lívia mal conseguiu conter as lágrimas de raiva e inveja.
Dois dias mais tarde, Marcelo adoeceu. Os sintomas eram precisamente os mesmos que Augusto revelara
durante a sua doença recente e, como é natural, Musa foi novamente requisitado. O médico tinhase
tornado imensamente rico e famoso, cobrando 1.000 moedas de ouro por uma simples visita profissional;
e tudo como se fosse um favor. Em todos os casos em que a doença não se apoderara dos doentes com
demasiada força, a simples menção do seu nome era o suficiente para provocar a cura imediata. O crédito
ia para as loções e poções frias, as prescrições secretas que recusava comunicar a quem quer que fosse. A
confiança de Augusto nos poderes de Musa era tão grande que não prestou muita atenção à doença de
Marcelo e os Jogos continuaram. Mas, de alguma forma, apesar
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da atenção constante de Lívia e das loções e poções mais frias que Musa podia receitar, Marcelo morreu.
O desgosto, tanto de Octávia como de Augusto, foi imenso, e a morte foi considerada uma calamidade
pública. Havia, no entanto, numerosas pessoas de bomsenso que não lamentaram o desaparecimento de
Marcelo. Teria certamente havido uma nova guerra civil entre ele e Agripa, se Augusto morresse e ele
tentasse tomar o seu lugar: agora, Agripa era o único sucessor possível. Mas isto era um cálculo feito sem
Lívia, cuja ideia fixa era, quando Augusto morresse Cláudio, Cláudio, disseste que não referirias os
motivos de Lívia, mas apenas os seus actos continuar a governar o Império através do meu tio Tibério,
com o apoio do meu pai. Arranjaria maneira de eles serem adoptados como herdeiros de Augusto.
A morte de Marcelo deixou Júlia livre para casar com Tibério e tudo teria corrido bem para os planos de
Lívia, se não tivesse havido um surto perigoso de desassossego político em Roma, enquanto as multidões
clamavam pela restauração da República. Quando Lívia tentou dirigirlhes a palavra das escadas do
Palácio, bombardearamna com ovos podres e lixo. Augusto estava ausente, de visita às províncias
orientais, na companhia de Mecenas, e tinha chegado a Atenas quando recebeu a notícia. Lívia escreveu
lhe numa nota breve e apressada que a situação na Cidade não podia ser pior e que era preciso conseguir a
ajuda de Agripa por qualquer preço. Augusto fêlo vir imediatamente de Lesbos e suplicoulhe, em nome
da amizade, que voltasse com ele para Roma e restabelecesse a confiança pública. Mas Agripa nutria a sua
mágoa havia tempo demais para que pudesse agora ficar agradecido por este chamamento. Ficouse na sua
dignidade. Em três anos, Augusto sescreveralhe apenas três cartas, qualquer delas num rígido tom oficial.
Depois da morte de Marcelo, sem dúvida, era seu dever têlo chamado. Porque havia de ir agora em seu
auxílio? Era Lívia, na realidade, a responsável por este afastamento; calculara mal a situação política ao
deixar cair Agripa cedo demais. Tinha mesmo sugerido a Augusto que Agripa, embora ausente em
Lesbos, sabia mais do que a maior parte das pessoas acerca da misteriosa e fatal doença de Marcelo;
alguém, disse ela, tinhalhe dito que Agripa, ao ouvir a notícia, não mostrara qualquer surpresa e sim uma
forte complacência. Agripa informou Augusto que ficara longe de Roma havia tanto tempo que não estava
ao corrente da política da Cidade e não se sentia capaz de empreender a tarefa que lhe era pedida.
Augusto, receando que Agripa, se fosse para Roma naquele estado de espírito, se sentisse mais inclinado a
apresentarse como campeão das liberdades populares do que a apoiar o governo Imperial, deixouo ficar
de fora, com palavras que exprimiam graciosamente o seu pesar. Apressadamente, convocou Mecenas,
para lhe pedir conselho. Mecenas desejava permissão para falar livremente com Agripa em nome de
Augusto e procurou saber por ele exactamente
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em que termos estaria disposto a fazer o que lhe era pedido. Augusto suplicou a Mecenas que, pelo amor
aos Deuses, o fizesse ”tão rapidamente como espargos cozidos” (uma das suas expressões favoritas).
Assim, Mecenas chamou Agripa à parte e disse:
Ora bem, meu velho amigo, o que é que tu queres? Compreendo que sentes que te trataram mal, mas
garantote que Augusto tem o direito de se sentir igualmente injuriado por ti. Não consegues entender até
que ponto te portaste mal para com ele por não teres sido franco? Foi um insulto, tanto para a sua justiça
como para a sua amizade para contigo. Se tivesses explicado que a facção de Marcelo te colocou numa
posição muito desconfortável, e que o próprio Marcelo te tinha insultado garantote que Augusto nunca
soube disso até há pouco tempo , ele teria feito tudo o que estivesse no seu poder para remediar as coisas.
A minha opinião sincera é que te portaste como uma criança amuada; e ele tratoute como um pai, que
não se deixa dominar por esse tipo de comportamento. Dizes que ele te escreveu cartas muito frias? E as
tuas, nessa altura, foram escritas em termos afectuosos? E que espécie de despedida lhe tinhas feito?
Agora, quero ser o mediador entre ambos, porque, se esta ruptura se mantiver, será a ruína de todos nós.
Qualquer dos dois tem uma profunda estima pelo outro, como seria de esperar dos dois maiores romanos
vivos. Augusto dísseme que está pronto, logo que lhe mostres a abertura de antigamente, a renovar a
amizade nos mesmos termos de então, ou mesmo ainda mais íntimos.
Ele disse isso?
As palavras são dele. Posso dizerlhe como estás desgostoso por o ter ofendido e posso explicar que se
tratou de um malentendido; que saíste de Roma pensando que ele estava ao corrente do insulto de Marcelo
para contigo no banquete? E que agora estás ansioso, pelo teu lado, por compensar as falhas de amizade
do passado e que confias nele para vir ao teu encontro?
Agripa disse:
Mecenas, tu és um indivíduo como deve ser e um verdadeiro amigo. Diz a Augusto que estou às suas
ordens como sempre.
Mecenas replicou:
Dirlhoei com o maior prazer. Acrescentarei, como opinião minha, que não seria seguro mandarte
agora de volta à Cidade, para restabelecer a ordem, sem uma marca notória de confiança pessoal.
Então, Mecenas foi procurar Augusto.
Consegui acalmálo. Fará tudo o que desejares. Mas quer estar certo de que o amas realmente, como um
filho que sente ciúme do amor do pai por outro filho. Acho que a única coisa que o satisfaria realmente
seria que o deixasses casarse com Júlia.
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Augusto teve que pensar rapidamente. Lembravase de que o relacionamento de Agripa com a mulher,
que era irmã de Marcelo, não estava lá muito bem desde a disputa com Marcelo e que Agripa, ao que
parecia, estava apaixonado por Júlia. Desejou que Lívia estivesse presente para o aconselhar, mas não
tinha como escapar a uma decisão imediata: se ofendesse Agripa agora, nunca mais poderia contar com o
seu apoio. Lívia tinha escrito por qualquer preço: portanto, estava livre de tomar as disposições que lhe
aprouvessem. Mandou de novo chamar Agripa e Mecenas encenou uma cena de reconciliação cheia de
dignidade. Augusto disse que, se Agripa consentisse em casar com a filha, isso seria para ele a prova de
que a amizade, que prezava acima de qualquer outra no mundo, estava firmada numa base segura. Agripa
chorou lágrimas de alegria e pediu perdão pelas suas faltas. Tentaria ser digno da amorosa generosidade
de Augusto.
Agripa regressou a Roma com Augusto e imediatamente se divorciou da mulher, para casar com Júlia. O
casamento foi tão popular e a celebração tão magnífica e pródiga, que os distúrbios políticos
imediatamente se apagaram. Agripa conquistou também grande crédito para
Augusto, levando a cabo as negociações para o regresso dos estandartes com a Águia, que foram
formalmente entregues a Tibério,
como representante pessoal de Augusto. As Águias eram objectos sagrados; mais genuinamente sagrados
para os corações romanos do que quaisquer estátuas de mármore dos Deuses. Alguns cativos regressaram
também, mas, depois de trinta e dois anos de ausência, não estavam em estado de receber grandes
manifestações. A maior parte deles preferiram ficar na Pártia, onde se tinham instalado e casado com
mulheres nativas.
A minha avó Lívia ficou tudo menos satisfeita com o acordo feito com Agripa o único aspecto que lhe
agradava era a desonra que representava para Octávia o divórcio da filha. Mas disfarçou os seus
sentimentos. Passaram nove anos antes que os serviços de Agripa
pudessem ser dispensados. Depois, ele morreu de repente, na sua casa de campo. Augusto estava na
Grécia na altura; por isso,
não houve qualquer inspecção ao cadáver. Agripa deixou um grande número de filhos, três rapazes e duas
raparigas, como herdeiros de Augusto, por afinidade. Seria difícil para Lívia pôr de lado as suas
pretensões a favor dos próprios filhos.
No entanto, Tibério casou com Júlia, que tinha tornado as coisas mais fáceis para Lívia ao apaixonarse
por ele e ao pedir a Augusto que usasse a sua influência junto de Tibério, a favor dela. Augusto consentiu
apenas porque Júlia ameaçou suicidarse se ele se recusasse ajudála. O próprio Tibério detestava ter que
se casar com Júlia, mas não ousou recusar. Foi obrigado a divorciarse da mulher, Vipsânia, filha de
Agripa por um casamento anterior, que ele amava apaixonadamente. Mais tarde, encontroua
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acidentalmente uma vez na rua e seguiua com os olhos com uma expressão de tal forma
desesperada que Augusto, quando ouviu falar nisso, deu ordens para que, por uma questão de
decência, aquilo não voltasse a acontecer. Uma vigilância especial devia ser exercida pelos
funcionários de ambas as casas, para evitar um encontro. Vipsânia casou, não muito tempo
depois, com um nobre jovem e ambicioso de nome Caio. E antes que me esqueça, tenho que
referir o casamento de meu pai com minha mãe, Antónia, a filha mais nova de Marco António e
Octávia. Teve lugar no ano da doença de Augusto e da morte de Marcelo.
o meu tio Tibério era um dos maus claudianos. Era taciturno, reservado e cruel, mas tinha havido
três pessoas que controlavam estes elementos na sua natureza. Primeiro havia o meu pai, um dos
melhores claudianos, alegre, aberto e generoso; em seguida, havia Augusto, um homem muito
honesto, alegre, bondoso, que não gostava de Tibério mas que o tratava generosamente por causa
da mãe; e por fim, havia Vipsânia. A influência do meu pai foi afastada, ou diminuída, quando
ambos atingiram a idade de fazer o serviço militar e foram enviados em campanha para diferentes
pontos do Império. Depois, veio a separação de Vipsânia e, a esta, seguiuse uma frieza com
Augusto, que se sentia ofendido com o desagrado, mal disfarçado, do meu tio em relação a Júlia.
Uma vez perdidas estas três influências, passouse gradualmente para o lado mau.
Creio que devia, neste ponto, descrever o seu aspecto físico. Era um homem alto, de cabelos
escuros e pele clara, bem constituído, com um magnífico par de omoplatas e umas mãos tão
fortes que conseguia partir uma noz ou perfurar uma maçã de casca verde e rija entre o polegar e
o indicador. Se não fosse tão lento nos seus movimentos, teria dado um campeão de boxe: uma
vez, matou um camarada numa luta amigável com as mãos livres, sem as habituais luvas em
metal , dandolhe um golpe num dos lados da cabeça que lhe fez estalar o crânio. Caminhava
com o pescoço ligeiramente atirado para a frente e com os olhos virados para o chão. O seu rosto
teria sido belo, se não estivesse desfigurado por tantas borbulhas, se não tivesse os olhos tão
salientes e se não andasse sempre de testa franzida. As suas estátuas fazemno parecer
extremamente belo, porque deixam de fora estes defeitos. Falava pouco e muito devagar, de
forma que, ao conversar com ele, as pessoas sempre se sentiam tentadas a terminar as suas frases
e a responderlhes de seguida. Mas, quando queria, era um brilhante orador público. Ficou careca
muito novo, excepto na parte de trás da cabeça, onde deixou o cabelo crescer e ficar comprido, à
maneira da antiga nobreza. Nunca estava doente.
Tibério, apesar da sua pouca popularidade na sociedade romana, era, mesmo assim, um general
de grande sucesso. Fez reviver vários rigores disciplinares antigos, mas, como não se poupava a
si próprio em campanha,
43
r
aramente dormindo numa tenda, comendo e bebendo o mesmo que os seus homens e atacando sempre na
frente de batalha, eles preferiam servir sob as suas ordens do que com outro comandante bemhumorado e
descontraído, em cuja capacidade de chefia não tivessem a mesma confiança. Tibério nunca dirigia aos
homens um sorriso ou uma palavra de louvor e, muitas vezes, obrigavaos a marchas exageradas e a
trabalhos excessivos.
Não faz mal que me odeiem, disse uma vez, desde que me obedeçam.
Mantinha os coronéis e oficiais do regimento numa ordem tão estrita como os soldados; por isso, não
havia queixas quanto à sua parcialidade. Servir sob as ordens de Tibério não deixava de ter vantagens;
normalmente, conseguia capturar e saquear os acampamentos e cidades do inimigo. Fez a guerra com
êxito na Arménia, Pártia, Germânia, Hispânia, Dalmácia, Alpes e França.
O meu pai era, como disse, um dos melhores claudianos. Era tão forte como o irmão, muito mais bem
parecido, mais rápido no falar e nos movimentos e de maneira alguma com menos êxito como general.
Tratava todos os soldados como cidadãos romanos e, portanto, como seus iguais, excepto na patente e na
educação. Detestava ter que lhes infligir castigos. Dava ordens para que, na medida do possível, todas as
ofensas contra a disciplina fossem tratadas pelos próprios camaradas do ofensor, que partia do princípio
serem zelosos do bomnome da sua secção ou companhia. Deu a saber que, se achassem que qualquer
ofensa estava além dos seus poderes de correcção, pois não permitia que matassem um culpado ou que o
incapacitassem para os seus deveres militares diários
deviam submeter o caso ao coronel dos respectivos regimentos, mas, na medida do possível desejava que
os seus homens fossem juízes de si próprios. Os capitães podiam chicotear, com autorização dos coronéis
dos regimentos, mas apenas nos casos em que o delito, tal como cobardia em batalha ou o roubo a um
camarada, mostrasse uma baixeza de carácter que tornasse o açoitamento apropriado; mas também
ordenava que um homem, uma vez açoitado, nunca mais servisse como combatente; tinha que ser
despromovido para os transportes ou serviço administrativo. Qualquer soldado que considerasse que tinha
sido injustamente condenado pelos camaradas ou pelo seu capitão podia apelar para ele; mas parecialhe
pouco provável que tais sentenças necessitassem de ser revistas. Este sistema funcionava admiravelmente,
porque o meu pai era tão bom soldado que inspirava as tropas a agirem dentro de um padrão de virtude, da
qual os outros comandantes não os julgavam capazes. Mas é fácil de compreender até que ponto era
perigoso para soldados que tinham sido tratados desta forma serem depois comandados por um general
vulgar. A dádiva da independência, uma vez concedida, não pode
44
ser retirada de ânimo leve. Havia sempre problemas quando os soldados que tinham servido sob as ordens
do meu pai acabavam por ser recrutados para serem comandados pelo meu tio. O contrário era também
verdade: os soldados que tinham servido sob o meu tio reagiam com desprezo e suspeita ao sistema de
disciplina do meu pai. Tinha sido seu hábito ocultarem os crimes uns dos outros e orgulharemse da sua
astúcia em evitar a detecção e, uma vez que, sob o comando do meu tio, um homem podia ser chicoteado,
por exemplo, por se dirigir a um oficial sem que ele se dirigisse a ele primeiro, ou por falar com excessiva
franqueza, ou por se comportar com independência em qualquer situação, era uma honra e não uma
desgraça para um soldado poder mostrar as marcas do chicote nas costas.
As maiores vitórias do meu pai foram nos Alpes, em França, nos Países Baixos, mas especialmente na
Germânia, onde o seu nome, creio, nunca será esquecido. Ele estava sempre no ponto mais renhido da
batalha. A sua ambição era realizar um feito que só tivesse sido realizado duas vezes na história de Roma:
designadamente, como general, matar o general inimigo com as suas próprias mãos e despojálo das
armas. Esteve muitas vezes à beira do sucesso, mas a sua presa sempre lhe escapou. Ou o indivíduo
galopava para fora do campo, ou se rendia em vez de lutar, ou um qualquer soldado raso se intrometia e
recebia o golpe primeiro. Os veteranos, ao contaremme histórias do meu pai, muitas vezes soltaram
risadas de admiração:
Fazianos bem ao coração ver o vosso pai no seu cavalo negro, a jogar às escondidas no campo de
batalha com um desses chefes germânicos. Às vezes, era obrigado a abater nove ou dez dos seus guarda
costas, homens valentes também, antes de conseguir chegar junto do estandarte e, nessa altura, já o
pássaro manhoso tinha voado.
O maior orgulho dos homens que tinham servido sob as ordens de meu pai era o facto dele ter sido o
primeiro general romano a marchar de uma ponta à outra do Reno, desde a Suiça ao Mar do Norte.
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CAPíTULO IV
O meu pai nunca esquecera os ensinamentos do meu avô sobre a liberdade. Ainda rapazinho, tinhase
atirado a Marcelo, cinco anos mais velho que ele, a quem Augusto deu o título de Chefe de Cadetes. Tinha
dito a Marcelo que o título lhe fora concedido apenas para uma ocasião específica (uma luta simulada
chamada Gregos e Troianos, realizada no Campo de Marte entre duas forças de cadetes de cavalaria,
filhos de cavaleiros e senadores) e que o mesmo não implicava nenhum dos poderes judiciais gerais que
Marcelo assumira desde então; e que ele, pela sua parte, romano nascido livre, não iria submeterse a tal
tirania. Recordou a Marcelo que o grupo adversário da luta simulada tinha sido chefiado por Tibério e que
este tinha ganho as honras do recontro. Por fim, desafiou Marcelo para um duelo. Augusto ficou muito
divertido quando soube da história e, durante muito tempo, não se referia ao meu pai a não ser, brincando,
como o romano nascido livre.
Sempre que se encontrava em Roma, o meu pai irritavase com o crescente espírito de subserviência em
relação a Augusto que encontrava por toda a parte, ansiando sempre por voltar para a vida militar.
Enquanto desempenhou o cargo de um dos magistrados principais da Cidade, durante a ausência em
França de Augusto e de Tibério, desagradoulhe profundamente a preponderância da caça ao posto e dos
favoritismos políticos. Disse em privado a um amigo, por quem vim a sabêlo anos mais tarde, que se
podia encontrar mais do velho espírito romano de liberdade numa só companhia dos seus soldados do que
em toda a classe dos senadores. Pouco antes de morrer, escreveu a Tibério, de um acampamento no
interior da Germânia, uma carta amarga nesse sentido. Dizia que desejava, por tudo o que havia de mais
alto, que Augusto seguisse o exemplo glorioso do Ditador Sula que, senhor absoluto de Roma depois das
primeiras Guerras Civis, quando todos os seus inimigos estavam pacificados ou subjugados, só se detivera
para resolver a seu gosto alguns assuntos de Estado, antes de depor as insígnias do ofício e tornarse de
novo um cidadão comum. Se Augusto não fizesse o mesmo muito em breve, e ele sempre dera a
entender que essa era a sua finalidade última
seria tarde demais. As fileiras da velha nobreza estavam tristemente enfraquecidas: as proscrições e as
guerras civis tinham levado os mais
47
ousados e os melhores; os sobreviventes, perdidos no meio da nova nobreza, mostravamse inclinados a
comportarse cada vez mais como escravos de família de Augusto e Lívia. Em breve, Roma teria
esquecido o que significava a liberdade e cairia finalmente sob uma tirania tão bárbara e arbitrária como as
do leste. Não era para promover uma calamidade dessas que ele fizera tantas campanhas esgotantes sob o
comando supremo de Augusto. Mesmo o seu amor e profunda admiração pessoal por Augusto, que fora
para ele um segundo pai, não o impediam de expressar estes sentimentos. Pediu a opinião de Tibério: não
poderiam os dois, em conjunto, persuadir, mesmo obrigar, Augusto a retirarse?
Se ele consentir, o meu amor e admiração por ele tornarseão mil vezes superiores ao que antes eram;
mas lamento dizer que o orgulho secreto e ilegítimo que a nossa mãe Lívia retira do seu exercício de poder
supremo através de Augusto será o maior empecilho que iremos provavelmente encontrar nesta questão.
Por infelicidade, a carta foi entregue a Tibério enquanto ele estava na presença de Augusto e Lívia.
Uma missiva do vosso nobre irmão! gritou o correio imperial, entregandolha.
Tibério, não suspeitando que houvesse alguma coisa na carta que não devesse ser comunicada a Lívia e a
Augusto, pediu permissão para a abrir e ler de imediato. Augusto disse:
Claro que sim, Tibério, mas na condição que a leias em voz alta para nós.
Fez sinal aos criados para que saíssem da sala: Vamos, não percamos tempo. Quais foram as suas
últimas vitórias? Estou impaciente por saber. As cartas dele são sempre bem escritas e interessantes, muito
mais que as tuas, meu caro, se me desculpas a comparação.
Tibério leu em voz alta as primeiras palavras e, depois, pôsse muito vermelho, Tentou saltar a parte
perigosa, mas descobriu que havia pouco mais que perigo por toda a carta, excepto mesmo no fim, quando
meu pai se queixava de vertigens por causa de um ferimento na cabeça e falava da sua marcha difícil até
ao Elba. Curiosos portentos tinham ocorrido ultimamente, escrevia. Um espectáculo extraordinário de
estrelas cadentes, noite após noite; sons semelhantes a um lamento de mulheres vindos da floresta; e dois
jovens divinais montados em cavalos brancos e vestindo trajos gregos, não germânicos, tinham
atravessado de repente o acampamento ao alvorecer. Finalmente, uma mulher germânica, de uma estatura
superior à dos mortais, tinha aparecido à porta da sua tenda e falado com ele em grego, dizendolhe que
não fosse mais longe, porque o destino era contra isso. Tibério lia uma palavra aqui, outra ali, tropeçava,
dizia que a escrita estava ilegível, recomeçava, tropeçava de novo e, finalmente, pediu para parar.
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O que é isto? disse Augusto. Com certeza consegues decifrar mais do que isso.
Tibério controlouse
Para falar verdade, senhor, consigo, mas a carta não merece ser lida. É evidente que o meu irmão não
estava bem quando a escreveu. Augusto ficou alarmado.
Não está gravemente doente, espero? Mas a minha avó Lívia, como se a sua ansiedade de mãe, por uma
vez, se sobrepusesse às boas maneiras, embora, claro, tivesse compreendido imediatamente que havia
alguma coisa na carta que Tibério receava ler, porque se reflectia quer em Augusto, quer nela própria
arrancoulha da mão. Leua do princípio ao fim, franzindo a testa sombriamente e passoua a Augusto,
dizendo:
Esta é uma questão que só vos diz respeito a vós. Não me compete a mim punir um filho, por mais
natural que isso seja; isso competevos a vós, como seu tutor e chefe do Estado.
Augusto ficou alarmado, perguntando a si mesmo o que poderia estar a acontecer? Leu a carta, mas ela
parecia merecer reprovação, mais por ter escandalizado a minha avó do que por qualquer coisa escrita
contra ele. Na realidade, à parte a chocante palavra forçar, ele concordava secretamente com os
sentimentos expressos na carta, embora o insulto à minha avó se reflectisse nele, por se ter deixado
persuadir mesmo contra as suas convicções. O Senado estava, sem dúvida, a tornarse vergonhosamente
obsequioso nos seus modos para com ele, a sua família e o seu pessoal. A situação desagradavalhe tanto
como ao meu pai e era verdade que, havia bastante tempo, antes da derrota e morte de António, ele tinha
prometido publicamente retirarse quando já não houvesse nenhum inimigo público em campo contra ele.
Depois disso, referirase várias vezes nos seus discursos ao dia feliz em que a sua tarefa estaria concluída.
Estava fatigado dos constantes negócios do estado e das honras constantes; desejava repouso e anonimato.
Mas a minha avó nunca lhe permitiria que desistisse; havia de dizer sempre que a tarefa dele ainda nem
chegara a meio, que não havia outra coisa a esperar, a não ser a desordem civil, se ele se retirasse agora.
Sim, ele trabalhava muito, admitia, mas ela trabalhava ainda mais e sem qualquer recompensa pública
directa. E ele não podia ser simplista: logo que deixasse as suas funções e se tornasse um mero cidadão
privado, ficava sujeito a ser acusado por traição e mesmo exilado, ou pior ainda; para não falar nas raivas
secretas dos parentes dos homens que ele tinha morto ou desonrado. Como cidadão privado, teria que
abdicar dos guardacostas, assim como dos seus exércitos. Seria melhor continuar por mais dez anos e, ao
fim desse tempo, talvez as coisas tivessem mudado para melhor. Assim, ele cedia sempre e continuava a
governar. Aceitou os privilégios monárquicos em prestações.
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Foi votado para mais cinco anos ou dez, mas mais provavelmente dez.
A minha avó olhou com dureza para Augusto quando ele acabou de ler a malfadada carta:
Então? perguntou.
Concordo com Tibério, disse ele brandamente. O jovem deve estar doente. É uma perturbação
causada pelo excessivo estado de tensão. Vêse no parágrafo final, quando fala nos resultados do
ferimento que tem na cabeça e das visões que está a ter; bom, isso provao. Ele precisa descansar. A
generosidade natural do seu espírito foi pervertida pelas ansiedades da campanha. Essas florestas
germânicas não são o lugar indicado para um homem doente de espírito, pois não, Tibério? O uivar dos
lobos deve ser o pior que há para os nervos: o lamento das mulheres de que ele fala eram certamente
lobos. Que tal mandálo regressar, agora que já deu a esses germânicos uma sacudidela que eles nunca
hãode esquecer? Seria bom para mim têlo de volta aqui a Roma. Sim, temos que o mandar vir. Vós
ficareis feliz, minha querida Lívia, por terdes de novo o vosso menino, não é verdade?
A minha avó não respondeu directamente. Disse, ainda com a testa franzida:
E vós, Tibério?
O meu tio era mais político que Augusto. Conhecia melhor a natureza da mãe. Replicou:
O meu irmão sem dúvida parece doente, mas mesmo a doença não consegue explicar um comportamento
tão indigno de um filho e uma loucura tão grosseira. Concordo que ele devia ser chamado para lhe ser
recordada a infâmia de ter acalentado pensamentos tão baixos sobre a mais dedicada e incansável das
mães e da enormidade de os ter posto no papel e enviado pelo correio através de um país hostil. Além
disso, o argumento sobre o caso de Sula é infantil. Logo que Sula deixou o poder, as Guerras Civis
começaram de novo e a nova constituição foi derrubada.
Assim, Tibério saiuse bastante bem do incidente, mas uma boa parte da sua severidade contra o meu pai
foi genuína, por o ter colocado numa posição bastante embaraçosa,
Lívia estava sufocada de raiva contra Augusto, por permitir que insultos à sua pessoa fossem deixados
passar com tanta ligeireza e, ainda por cima, na presença do filho. A sua raiva contra o meu pai era
igualmente violenta. Sabia que, quando ele voltasse, era muito provável que pusesse em prática o seu
plano para forçar Augusto a retirarse. Também compreendeu que, agora, nunca conseguiria governar
através de Tibério
mesmo que conseguisse garantirlhe a sucessão , enquanto meu pai, um homem com uma enorme
popularidade em Roma e com todos os regimentos ocidentais a apoiálo, estivesse à espera para forçar o
restabelecimento
50
das liberdades populares. E o poder supremo acabara por se tornar para ela mais importante que a vida ou
a honra; já lhe tinha sacrificado muita coisa. No entanto, conseguia disfarçar os seus sentimentos. Fingiu
aceitar o ponto de vista de Augusto (que o meu pai estava apenas doente) e disse a Tibério que achava a
censura dele demasiado severa. Concordou, no entanto, que o meu pai devia ser chamado imediatamente.
Agradeceu mesmo a Augusto a generosidade com que atenuou a falha do pobre filho e disse que lhe
enviaria o seu próprio médico confidencial com uma porção de heléboro, de Anticira, na Tessália, que era
um famoso medicamento específico para casos de fraqueza mental.
O médico pÔsse a caminho no dia seguinte, na companhia do correio que levou a carta de Augusto. A
carta continha as suas felicitações calorosas pelas vitórias que alcançara e lamentava o ferimento na
cabeça; permitialhe também que regressasse a Roma, mas numa linguagem que dava a entender que tinha
que regressar, quer quisesse quer não.
O meu pai respondeu alguns dias mais tarde, expressando o seu agradecimento pela generosidade de
Augusto. Disse que regressaria logo que a saúde lho permitisse, mas que a carta lhe chegara às mãos no
dia a seguir a um ligeiro acidente: o cavalo que montava caíra debaixo dele em pleno galope, rolaralhe
sobre a perna e comprimiraa de encontro a uma pedra afiada. Agradecia à mãe a sua solicitude, a oferta
do heléboro e o facto de lhe ter enviado o seu médico, de cujos serviços se servira imediatamente. Mas
receava que mesmo a sua reconhecida habilidade não tivesse impedido que a ferida se tivesse tornado
grave. Dizia por fim que teria preferido continuar no seu posto, mas que os desejos de Augusto eram
ordens para ele; e repetia que, logo que estivesse novamente bem, regressaria à Cidade. Estava
presentemente acampado perto do Saal Turíngeo.
Ao ouvir tais notícias, Tibério, que estava com Augusto e Lívia em Pavia, pediu de imediato permissão
para ir dar assistência ao irmão no leito da doença. Augusto concedeulha e ele montou no seu cavalo e
galopou em direcção ao norte, com uma pequena escolta, procurando o caminho mais rápido para
atravessar os Alpes. Tinha diante dele uma viagem de 500 milhas, mas podia contar com mudanças
frequentes de cavalos nos postos da malaposta e, quando se sentisse demasiado cansado para continuar
em cima da sela, poderia sempre pedir um carro de duas rodas e dormir nele algumas horas, sem retardar a
marcha. O tempo favoreceuo. Atravessou os Alpes e desceu para a Helvécia; depois, seguiu a rota
principal do Reno e chegou a um lugar chamado Manheim, sem ter sequer parado para tomar uma refeição
quente. Aí, atravessou o rio e rumou a nordeste por estradas inóspitas, através de um país agreste. Estava
sozinho, quando chegou ao seu destino na noite do terceiro dia, quando a sua escolta original há muito
desistira e a nova escolta, que
51
reunira em Manheim, também não conseguira acompanhálo. Afirmase que, no segundo dia e noite,
viajou quase 200 milhas entre o meiodia de um dia e o meiodia do seguinte. Chegou a tempo de saudar o
meu pai, mas não a tempo de lhe salvar a vida, porque, entretanto, a perna gangrenara até à coxa. O meu
pai, embora às portas da morte, ainda teve a presença de espírito necessária para ordenar ao acampamento
que prestasse a meu tio Tibério as honras devidas a um comandante do exército. Os irmãos abraçaramse e
o meu pai sussurrou: Ela leu a minha carta?
Antes que eu próprio a lesse, gemeu o meu tio Tibério. Nada mais foi dito a não ser pelo meu pai, que
suspirou:
Roma tem uma mãe severa: Lúcio e Caio têm uma madrasta perigosa. Estas foram as suas últimas
palavras e o meu tio Tibério não tardou a fecharlhe os olhos.
Ouvi este relato a Xenofonte, um grego da ilha de Cos, que era na altura um homem ainda jovem. Era o
médico do meu pai e ficara muito desgostoso por o médico do meu avô lhe ter tirado o caso das mãos.
Caio e Lúcio, devo explicar, eram os netos de Augusto, filhos de Júlio e Agripa. Adoptaraos como seus
próprios filhos quando ainda eram crianças. Havia um terceiro rapaz, Póstumo, assim chamado por ter
nascido após a morte do pai; Augusto não o adoptou como aos outros, mas deixou que ele adoptasse o
nome de Agripa.
O acampamento onde morreu meu pai foi baptizado de Amaldiçoado e o seu corpo foi levado em
procissão militar para o quartel de Inverno do exército, em Mairiz, sobre o Reno, acompanhado por meu
tio Tibério durante todo o caminho como principal lamentador. O exército desejava enterrar ali o corpo,
mas ele levouo de volta a Roma para aí fazer o funeral, tendo sido queimado sobre uma pira monstruosa
nos Campos de Marte. O próprio Augusto pronunciou a oração fúnebre, no decorrer da qual disse:
Peço aos Deuses que façam meus filhos Caio e Lúcio homens tão nobres e virtuosos como este Druso, e
que me concedam a mim uma morte tão honrosa como a sua.
Lívia não estava certa até que ponto podia confiar em Tibério. Quando ele regressou com o corpo de meu
pai, a simpatia dele pareceralhe forçada e pouco sincera e, quando Augusto formulou o desejo de ter uma
morte tão honrosa como a de meu pai, ela viu um breve meiosorriso atravessarlhe o rosto.
Tibério que, ao que parece, há muito suspeitava que o meu avô não morrera de morte natural, estava
decidido agora a não contrariar de forma alguma a vontade da mãe. Jantando tantas vezes à mesa dela,
sentiase completamente à sua mercê. Esforçouse muito para ganhar o seu favor. Lívia compreendia o
que se passava no espírito dele e isso não lhe desagradava.
52
Ele era o único que suspeitava da sua ligação com venenos e, certamente, iria guardar para si essas
suspeitas. Ela tinha sobrevivido ao escândalo do casamento com Augusto e era agora citada na Cidade
como um exemplo de virtude, na sua forma mais estrita e desagradável. O Senado votou que quatro
estátuas suas fossem erigidas em vários locais públicos; isto era uma forma de a consolar pela sua perda.
Também a inscreveram por uma ficção legal entre as Mães de Três Filhos (segundo a legislação de
Augusto, as mães de três ou mais filhos tinham privilégios especiais, especialmente como legatárias as
solteironas e as mulheres estéreis não eram autorizadas a beneficiar de testamentos e a sua perda era o
ganho das suas irmãs fecundas).
Cláudio, meu velho maçador, aqui estás, a poucos centímetros do final do quarto rolo da tua autobiografia,
e ainda nem sequer chegaste ao sítio onde nasceste. Escreveo de imediato ou nunca chegarás sequer a
meio da tua história. Escreve: ”O meu nascimento ocorreu em Lião, na França, no dia 1 de Agosto, um
ano antes da morte de meu pai.” Pronto. Os meus pais tinham tido seis filhos antes de mim, mas, como a
minha mãe acompanhava sempre o meu pai nas suas campanhas, uma criança tinha que ser muito
resistente para sobreviver. Apenas o meu irmão Germânico, cinco anos mais velho que eu, e a minha irmã
Livila, um ano mais velha, estavam vivos: ambos herdaram a magnífica constituição de meu pai. Eu não.
Quase morri em três ocasiões antes do meu segundo ano e, se a morte do meu pai não tivesse trazido a
família de regresso a Roma, é pouco provável que esta história alguma vez tivesse sido escrita.
53
CAPíTULO V
Em Roma, vivíamos na grande casa que pertencera ao meu avô e que ele deixara em testamento a minha
avó. Ficava no Monte Palatino, perto do palácio de Augusto e do templo de Apolo construído por
Augusto, onde se encontrava a biblioteca. O Monte Palatino ficava sobranceiro à Praça do Mercado. Sob a
parte mais íngreme do penhasco havia o Templo dos Deuses Gémeos, Castor e Pólux (este era o templo
antigo, construído com madeira e blocos de terra, que dezasseis anos mais tarde Tibério substituiu, às suas
custas, por uma magnífica estrutura de mármore, com o interior pintado e dourado e tão sumptuosamente
mobilado como o boudoir de uma dama nobre e rica. A minha avó Lívia obrigouo a fazer isto para
agradar a Augusto, posso dizer. Tibério não tinha um espírito religioso e era muito parcimonioso com o
dinheiro). O ambiente era mais saudável na colina do que cá em baixo, na cova junto ao rio; a maior parte
das casas que lá havia pertenciam a senadores. Eu era uma criança enfermiça ”um verdadeiro campo de
batalha de doenças”, diziam os médicos e talvez só tivesse vivido porque as doenças não conseguiam
pôrse de acordo sobre qual deveria ter a honra de me levar. Para começar, nasci prematuramente, apenas
de sete meses e, ainda por cima, o leite da minha ama de criação não me caía bem, de forma que a minha
pele cobriuse com uma erupção grave, acrescida depois de malária e sarampo, que me deixou
ligeiramente surdo de um ouvido; sofri ainda de erisipela, colite e, finalmente, paralisia infantil, que me
encurtou a perna, condenandome a um coxear permanente. Devido a uma ou outra destas doenças, tenho
tido durante toda a minha vida uma tal fraqueza nas pernas que nunca me foi possível correr ou caminhar
longas distâncias: uma grande parte das minhas viagens teve que ser feita numa liteira. E há ainda a dor
insuportável, que me ataca frequentemente o estômago depois de comer. É algo de tão doloroso que, em
duas ou três ocasiões, se não fosse a intervenção dos meus amigos, eu teria enterrado uma faca de cortar
carne (que agarrei desvairado) no sítio do tormento. já ouvi dizer que esta dor, a que chamam paixão
cardíaca, é pior do que qualquer
1 Boudoir: Palavra de origem francesa, que se poderá traduzir por saladeestar. (N. do R.)
55
outra dor conhecida do homem, se exceptuarmos a estrangúria. Bom, acho que devo sentirme grato por
nunca ter tido estrangúria.
Hãode pensar que minha mãe Antónia, uma nobre e bela mulher criada na mais estrita virtude por sua
mãe Octávia, a paixão da vida do meu pai, se teria ocupado de mim com todo o amor, sendo eu o seu filho
mais velho, e que teria mesmo tido grande preferência por mim, com pena dos meus infortúnios. Mas não
foi isso que aconteceu. Fez por mim tudo o que se podia esperar dela como um dever; nada mais. Não me
tinha amor. Não, tinha mesmo uma grande aversão por mim, não só por causa do meu estado enfermiço,
mas também por ter tido comigo uma gravidez extremamente difícil, seguida de um parto doloroso, do
qual mal escapou com vida e que a deixou mais ou menos inválida durante anos. O meu nascimento
prematuro foi devido a um choque que ela recebeu na festa dada em honra de Augusto, quando ele visitou
o meu pai em Lyon, para inaugurar ali o Altar de Roma e Augusto: o meu pai era Governador das Três
Províncias de França e Lyon era o seu quartelgeneral. Um escravo siciliano louco, que estava a trabalhar
como criado na festa, puxou repentinamente de um punhal e brandiuo no ar atrás do pescoço do meu pai.
Só a minha mãe viu o que aconteceu. Cruzou o olhar com o do escravo e teve a presença de espírito
suficiente para lhe sorrir e sacudir a cabeça num gesto de reprovação, fazendolhe sinal para que guardasse
o punhal. Enquanto ele hesitava, dois outros criados seguiram o olhar da minha mãe e chegaram a tempo
para o dominar e desarmar. Então, ela desmaiou e começou imediatamente com as dores. Pode muito bem
ser por causa disto que eu sempre tive um receio mórbido do assassinato; dizse que um choque prénatal
pode ser herdado. Mas claro que não há qualquer razão séria para se falar de uma influência prénatal.
Quantos membros da família imperial morreram de morte natural?
Como eu era uma criança afectuosa, a atitude da minha mãe causavame muito desgosto. Soube por minha
irmã Livila, uma rapariga bela mas cruel, fútil e ambiciosa numa palavra, uma Claudiana típica da
variedade má , que a minha mãe me tinha chamado ”um mau presságio humano”, dizendo que, quando eu
nasci, os livros sibilinos deveriam ter sido consultados. Disse também que a natureza me tinha começado,
mas nunca me acabara, atirandome para o lado como uma inutilidade. E ainda que os antigos eram mais
sensatos e mais nobres que nos: expunham as crianças débeis numa colina inóspita, para o bem da raça.
Lívila pode ter empolado alguns comentários menos severos pois as crianças de sete meses são objectos
horríveis , mas eu sei que, uma vez, quando a
1 Doença originada por uma inflamação da uretra, traduzindose em dificuldade de urinar. (N. do R.)
56
minha mãe se zangou ao saber que um senador qualquer tinha introduzido uma moção tola no Senado,
exclamou:
Esse homem devia ser afastado! É estúpido que nem um burro! O que estou eu a dizer?! Em
comparação, os burros são animais sensíveis; ele é tão estúpido como... como ... Céus, ele é tão estúpido
como o meu filho Cláudio!
Germânico era o seu favorito, tal como era o favorito de toda a gente, mas, longe de o invejar pelo amor e
admiração que conquistava para onde quer que fosse, regozijavame por ele. Germânico tinha pena de
mim e fazia o máximo que lhe era possível para tornar a minha vida mais feliz, recomendandome aos
mais velhos como uma criança de bom coração, que recompensaria um tratamento generoso e cuidado. A
severidade apenas servia para me assustar, dizia, e tornarme mais nervoso do que eu normalmente era.
Ele estava certo. O tique nervoso das minhas mãos, as sacudidelas nervosas da cabeça, a gaguez, os
problemas de enjoo e má digestão, a baba que me escorria constantemente da boca, deviamse sobretudo
aos terrores a que era submetido, em nome da disciplina. Quando Germânico se erguia em minha defesa, a
minha mãe costumava rirse com indulgência e dizer:
Nobre coração, arranja um sujeito melhor para os teus transportes! Mas a maneira de falar da minha avó
Lívia era:
Não sejas pateta, Germânico. Se ele reagir favoravelmente à disciplina, tratáloemos com a gentileza
que merece. Estás a pÔr o carro diante dos bois.
A minha avó raramente falava comigo e, quando falava, fazíao com ar de desprezo e sem olhar para mim;
na maior parte dos casos, para dizer:
Sai desta sala, pequeno, que eu quero ficar aqui.
Quando tinha a oportunidade de me repreender, nunca o fazia por palavras, mas enviandome uma nota
breve e fria. Por exemplo: ”Chegou ao conhecimento de Dona Lívia que o rapaz Cláudio tem andado a
esbanjar o seu tempo a deambular na Biblioteca de Apolo. Até que consiga tirar partido dos manuais
elementares que lhe foram fornecidos pelos seus professores, é absurdo que ele se intrometa com as obras
mais sérias que se encontram nas prateleiras da biblioteca. Além do mais, as suas andanças perturbam os
verdadeiros estudantes. Essa prática tem que acabar.”
Quanto a Augusto, embora nunca me tratasse com uma crueldade calculada, detestava estar na mesma sala
comigo, tal como acontecia com a minha avó. Ele gostava imenso de rapazitos pequenos (tendo sido ele
próprio, até ao fim da vida, um rapaz crescido), mas apenas do género que ele designava como
”rapazinhos varonis e impecáveis”, como o meu irmão Germânico e os seus netos, Gaio e Lúcio, todos
eles extremamente
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bem parecidos. Havia vários filhos de reis ou de chefes confederados mantidos como reféns, para
assegurar o bom comportamento dos pais
haviaos de França, da Germânia, da Pártia, Norte de África e Síria , que eram educados com os netos
dele e com os filhos dos senadores principais no Colégio dos Rapazes. Ele aparecia muitas vezes nos
claustros para jogar com bolinhas, ossinhos ou à apanhada. Os seus grandes favoritos eram os rapazinhos
escuros, mouros, partos e sírios: e aqueles que conseguiam falar descontraidamente com ele, na sua
linguagem infantil, tratandoo como se fosse um deles. Uma única vez, ele tentou dominar a enorme
repugnância que sentia por mim e deixoume participar num jogo de bolinhas com os seus favoritos: mas
foi um esforço tão antinatural, que me deixou mais nervoso do que de costume e pusme a gaguejar e a
tremer como um louco. Ele não voltou a tentar. Detestava anões, aleijados e deformidades de uma maneira
geral, dizendo que davam azar e deviam ser mantidos fora das vistas. No entanto, no fundo do meu
coração, nunca consegui odiar Augusto como acabei por odiar a minha avó, pois o desagrado que sentia
por mim não continha malícia e ele fazia os possíveis por o dominar. Na verdade, eu devia ser uma
coisinha estranha e miserável; uma calamidade para um pai tão forte e magnífico e uma mãe tão bela e
majestosa. O próprio Augusto era um indivíduo bemparecido, ainda que um pouco baixo, com cabelos
claros e encaracolados (que só se tornaram grisalhos numa fase adiantada da sua vida), olhos vivos, um
rosto alegre e um carácter gracioso e recto.
Recordome de ter ouvido uma vez um epigrama elegíaco que ele fez sobre mim, em grego, para
apresentar a Atenodoro, um filósofo estóico de Tarso na Cilícia, cujos conselhos simples e sérios ele
procurava muitas vezes. Eu tinha cerca de sete anos e eles chegaram perto de mim, junto ao lago das
carpas, no jardim da casa de minha mãe. Não me recordo exactamente de como era o epigrama, mas o
sentido era o seguinte: ”Antónia é uma pessoa antiquada: não compra um sagui de estimação por alto
preço a um negociante oriental. E porquê? Ela própria faz criação deles.” Atenodoro ficou um momento a
pensar e respondeu com severidade na mesma métrica: ”Antónia, que está longe de comprar um sagüi de
estimação aos negociantes orientais, nem sequer mima e alimenta com ameixas e compota o pobre filho,
que teve com o seu nobre marido.” Augusto ficou um tanto desconcertado. Devo esclarecer que nem ele
nem Atenodoro, a quem eu sempre fora apresentado como um tonto, suspeitavam de que eu pudesse
entender aquilo que diziam. Assim, Atenodoro puxoume para ele e disse em tom de brincadeira, em
latim:
E o que é que o jovem Tibério Cláudio pensa desta questão?
1 género de pequeno macaco, de cauda longa e fina e comum no oriente e em algumas regiões tropicais.
(N. do R.)
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Eu estava escondido de Augusto pelo corpo volumoso de Atenodoro e, de alguma forma, esqueci a
minha gaguez. Disselhe de imediato, em grego:
A minha mãe Antónia não me dá mimos, mas fezme aprender grego com alguém que o aprendeu
directamente com Apolo.
O que eu queria dar a entender era que compreendia o que eles diziam. A pessoa que me tinha ensinado
grego era uma mulher que fora sacerdotisa de Apolo numa das ilhas gregas, mas fora capturada por piratas
e vendida ao dono de um bordel em Tiro. Tinha conseguido escapar, mas não lhe era permitido voltar a
ser sacerdotisa, por ter sido prostituta. Minha mãe Antónia, reconhecendolhe os dons, aceitoua na
família como preceptora. Esta mulher costumava dizerme que aprendera directamente de Apolo, e eu
estava apenas a repetirlhe as palavras. Mas como Apolo era o Deus do conhecimento e da poesia, o meu
comentário apresentouse mais inteligente que a minha intenção. Augusto teve um sobressalto e
Atenodoro disse:
Falaste bem, pequeno Cláudio: os saguis não entendem uma palavra de grego, pois não?
Eu respondi:
Não, e têm longas caudas e roubam maçãs da mesa,
No entanto, quando Augusto começou a interrogarme ansiosamente, afastandome de Atenodoro, senti
me de novo intimidado e a gaguez voltou, mais forte que nunca. Mas a partir daí, Atenodoro tornouse
meu amigo.
Há uma história acerca de Atenodoro e de Augusto que é muito lisonjeira para ambos. Um dia, Atenodoro
disse a Augusto que ele não tomava a mínima precaução ao admitir visitantes à sua presença; um dia, seria
trespassado por algum punhal. Augusto replicou que ele estava a dizer disparates. No dia seguinte, dia do
aniversário da morte do pai, Augusto foi informado de que a irmã, Octávia, estava lá fora e desejava
saudálo. Ele deu ordens para que a fizessem entrar imediatamente. Ela era uma inválida crónica quando
isto aconteceu foi no ano da sua morte e era sempre transportada de um lado para o outro numa liteira
fechada. Quando a liteira foi trazida, as cortinas afastaramse e do seu interior saltou Atenodoro,
empunhando uma espada, que apontou ao coração de Augusto. Este, longe de ficar zangado, agradeceu a
Atenodoro, e confessou que tinha sido um grande erro tratar com tanta ligeireza a advertência que lhe
tinha feito.
Há um acontecimento extraordinário da minha infância que não posso esquecerme de registar. Um Verão,
quando eu tinha apenas oito anos de idade, o meu irmão Germânico, minha irmã Livila e eu estávamos de
visita a minha tia Júlia, numa bela casa de campo perto do mar, em Âncio.
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Eram cerca das seis horas da tarde e nós estávamos no exterior, saboreando a brisa numa vinha. Júlia não
estava connosco, mas o filho de Tibério esse Tibério Druso a quem mais tarde chamávamos sempre
deCastor
e Póstumo e Agripina, filhos de Júlia, faziam parte do grupo. De repente, ouvimos um barulho de
guinchos por cima de nós. Olhámos para o ar e vimos várias águias a lutar. Penas caíam flutuando no ar.
Tentámos apanhálas. Germânico e Castor apanharam uma cada um, antes delas caírem, e enfiaramnas no
cabelo, Castor tinha uma pena pequena, da asa, mas Germânico apanhou uma esplêndida, da cauda.
Ambas estavam manchadas de sangue. Salpicos de sangue caíram no rosto de Póstumo, voltado para
cima, e nos vestidos de Livila e Agripina. Depois, uma coisa escura caiu dos ares. Não sei porque o fiz,
mas estendi uma dobra da minha túnica e apanheia. Era uma pequena cria de lobo, ferida e aterrorizada.
As águias desceram em voo picado para recuperar o animal, mas eu tinhao bem escondido e, quando
gritámos e atirámos paus, as águias levantaram voo assustadas e afastaramse aos guinchos, Eu sentiame
embaraçado. Não queria o pequeno lobo. Livila agarrouo, mas a minha mãe, com um ar muito sério,
obrigoua a devolvermo.
Caiu nas mãos do Cláudio, disse. Ele tem que ficar com ele. Perguntou a um velho nobre, membro do
Colégio dos Augures, que estava connosco: Dizeime qual é o presságio,
O velho nobre respondeu:
Como posso dizêlo? Pode ter um grande significado ou nenhum.
Não receeis. Dizei o que parece significar para vós.
Primeiro, afastai as crianças disse ele.
Não sei se ele lhe deu a interpretação que, depois de lerdes a minha história, vos háde aparecer como a
única possível. Tudo O que sei é que, enquanto nos mantínhamos à distância o meu querido Germânico
tinha encontrado outra pena da cauda para mim, enterrada num espinheiro, e eu punhaa orgulhoso no
cabelo , Livila trepou curiosa por trás de uma roseira alta e escutou qualquer coisa. Largou a rir,
ruidosamente:
Pobre Roma, tendoo a ele como protector! Pelos Deuses, espero morrer antes disso!
O Augure voltouse para ela e apontoulhe o dedo...
Rapariga insensata, disse, Deus vai sem dúvida concederte o que desejas, e de uma forma que não
vais gostar!
Vais ser fechada num quarto sem teres que comer, disse a minha mãe. Agora que as recordo, essas
palavras também foram agourentas. Livila passou o resto das férias na região fronteiriça. Vingavase em
mim de variadas maneiras, engenhosas e malévolas. Mas não podia dizernos
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o que ouvira ao Augure, porque fizera um juramento a Vestal e aos Lares, que nunca se referiria ao
presságio, quer directa quer indirectamente, durante a vida de qualquer dos presentes. Fomos todos
obrigados a fazer esse juramento. Uma vez que há muitos anos sou o único sobrevivente daquele grupo a
minha mãe e o Augure, embora muito mais velhos, sobreviveram a todos os outros , já não estou ligado
ao voto de silêncio. Durante algum tempo depois do sucedido, dei muitas vezes com a minha mãe a olhar
me curiosa, quase com respeito, mas não me tratava melhor do que antes.
Não me foi permitido ir para o Colégio dos Rapazes, porque a fraqueza das pernas não me deixaria
participar nos exercícios de ginástica, que eram uma parte importante da educação, além de que as
doenças me tinham atrasado muito nas lições e a minha surdez e gaguez eram um obstáculo. Assim, estava
raramente na companhia dos rapazes da minha idade e classe e os filhos dos escravos da casa é que eram
chamados para brincar comigo: dois destes, Calon e Palas, ambos gregos, viriam a ser mais tarde meus
secretários, sendolhes confiados assuntos da mais alta importância. Calon foi pai de dois outros
secretários meus, Narciso e Políbio. Passei também grande parte do meu tempo com as mulheres de minha
mãe, escutandolhes as conversas enquanto fiavam, cardavam ou teciam. Muitas delas, tal como a minha
preceptora, eram mulheres com uma educação liberal e devo confessar que tinha mais prazer na sua
companhia do que na de qualquer grupo de homens, entre os quais me colocaram desde então: elas tinham
espíritos abertos, eram astutas, modestas e generosas.
O meu preceptor já o mencionei, Marco Pórcio Catão, que era, pelo menos segundo os seus próprios
cálculos, a encarnação viva da antiga virtude romana que os seus antepassados tinham demonstrado, um a
seguir ao outro. Estava sempre a gabarse dos seus antepassados, como é hábito das pessoas estúpidas que
têm consciência de que não têm nada de pessoal para se gabarem. Gabavase principalmente de Catão o
Censor, que, de todas as figuras da história romana, é talvez o mais odioso para mim, por
1 Divindade adorada pelos romanos, considerada protectora das mulheres. As vestais eram as suas
sacerdotisas, normalmente, gozavam de grande prestígio social Contudo, para poderem ambicionar a essa
posição, tinham de ser, à partida, formosas e castas (N do R)
2 culto aos Lares remonta aos primeiros tempos de Roma Entidades consideradas menos poderosas que os
Deuses, garantiam contudo a protecção do lar e das zonas habitacionais (por exemplo, contra incêndios,
inundações ou outras calamidades). Por essa mesma razão, em muitos cruzamentos da antiga Roma,
apareciam pequenas estátuas a eles referentes Para além dos Lares, existiam outras divindades da mesma
categoria, destinadas à protecção de outros aspectos sociais, como sejam os Manes (almas dos
antepassados, que Supervisionavam pelo destino e boa fortuna dos familiares vivos) ou os Penates
(assistência na morte). (N do R)
61
ter defendido persistentemente a causa da antiga virtude, tornandoa idêntica no espírito do povo a
grosseria, pedantismo e rudeza. Fui obrigado a ler as obras autoglorificadoras de Catão o Censor, à guisa
de livros de texto, e o relato que ele fez numa delas da sua campanha na Hispânia, onde destruiu mais
cidades do que os dias que passou naquele país, causoume mais repulsa pela sua desumanidade do que
admiração pelas artes militares ou pelo patriotismo que desejava transmitir. O poeta Virgílio disse que a
missão dos romanos é governar: ”Poupar os conquistados e, pela guerra, dominar os orgulhosos.” Catão
dominou os orgulhosos, sem dúvida, mas menos pela guerra verdadeira do que através da gestão
inteligente das invejas intertribais na Hispânia: chegou mesmo a empregar assassinos para afastar
inimigos temíveis. Quanto a poupar os vencidos, passou à espada multidões de homens desarmados,
mesmo quando rendiam incondicionalmente as suas cidades; regista orgulhosamente que muitas centenas
de iberos preferiam cometer suicídio, com todas as suas famílias, de preferência a conhecerem a vingança
romana. Seria para admirar que as tribos se rebelassem de novo logo que conseguiam reunir algumas
armas e que continuassem a ser, desde então, um espinho constantemente cravado na nossa carne? Tudo o
que Catão queria era saque e um triunfo: um triunfo não era concedido, a menos que se pudessem contar
uns tantos cadáveres acho que nessa altura eram
5.000 , e ele estava a certificarse de que ninguém o pudesse contestar, tal como ele contestara por inveja
vários rivais por terem fingido um triunfo sobre uma colheita insuficiente de cadáveres.
Os triunfos, a propósito, têm sido uma praga para Roma, Quantas guerras desnecessárias foram travadas
porque os generais queriam a glória de serem transportados, coroados, pelas ruas de Roma, com cativos
inimigos acorrentados atrás deles e os despojos de guerra amontoados em carros de desfile? Augusto
compreendeu isto: a conselho de Agripa, decretou que, a partir dali, nenhum general, a menos que se
tratasse de um membro da família imperial, teria direito ao triunfo público. Este decreto, publicado no ano
em que nasci, dava a impressão de que Augusto sentia inveja dos seus generais, pois nessa altura já ele
pessoalmente acabara com a vida activa de campanha e nenhum membro da sua família tinha idade
suficiente para conquistar triunfos. Mas o que o decreto realmente significava era que ele não desejava
que alargassem mais os limites do Império e que compreendia que os seus generais não levariam as tribos
da fronteira a cometer actos de guerra, se não pudessem alimentar esperanças de lhes serem concedidos
triunfos por causa da sua vitória sobre eles, Mesmo assim, permitia que ornamentos triunfais uma túnica
bordada, uma estátua, uma grinalda e assim por diante fossem concedidos àqueles que, de outra forma,
teriam ganho um triunfo; isto devia ser incentivo suficiente para que qualquer bom soldado fizesse
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uma guerra necessária. Além disso, os triunfos são muito maus para a disciplina militar. Os soldados
embebedamse e ficam incontroláveis e, geralmente, acabam o dia a destruir tabernas, a lançar fogo às
lojas dos azeiteiros e a insultar as mulheres, comportandose, de uma maneira geral, como se Roma fosse
a cidade que tinham conquistado, não um qualquer miserável acampamento de cabanas de madeira na
Germânia ou uma aldeia marroquina enterrada na areia. Após um triunfo celebrado por um sobrinho meu,
de quem vos falarei em breve, 400 soldados e perto de
4.000 simples cidadãos perderam a vida, de uma maneira ou de outra cinco grandes blocos de habitações
no bairro das prostitutas da cidade foram totalmente destruídos pelo fogo e trezentas tabernas foram
saqueadas, além de muitos outros estragos.
Mas eu estava a falar de Catão o Censor. O seu manual de economia doméstica foi transformado no meu
livro de leitura obrigatório e, cada vez que me enganava numa palavra, costumava receber dois tabefes:
um na orelha esquerda, pela minha estupidez; outro na direita, por ter insultado o nobre Catão. Recordo
me de uma passagem no livro, que retratava muito bem a mesquínhês do indivíduo: ”O senhor de uma
casa deve vender os seus bois velhos e todo o gado com cornos que seja de constituição delicada; todos os
seus carneiros que não sejam robustos, a sua lã e até mesmo a sua pele; deve vender os carros velhos e os
seus velhos instrumentos de lavoura; deve vender os escravos que estejam velhos e enfermos e tudo o
mais que esteja gasto ou que seja inútil,” Pela minha parte, quando vivia como um senhor da terra na
minha pequena propriedade de Cápua, fazia questão de pôr os meus animais mais enfraquecidos em
trabalhos ligeiros e, depois, apenas na pastagem, até que a idade parecia tornarse um fardo demasiado
pesado para eles; nessa altura, mandava darlhes uma pancada na cabeça. Nunca me rebaixei a vendêlos
por uma ninharia a um qualquer camponês, que os obrigasse a trabalhar cruelmente até ao último alento.
Quanto aos meus escravos, sempre os tratei generosamente, tanto na doença como na saúde, tanto na
juventude como na idade avançada. Em troca, esperava deles o mais alto grau de devoção. Raras vezes me
decepcionei, embora, quando abusaram da minha generosidade, não tenha tido piedade deles. Não tenho
dúvidas que os velhos escravos de Catão estavam sempre a cair doentes, na esperança de serem vendidos
para um senhor mais humano e também me parece provável que, de uma maneira geral, ele recebesse
deles trabalho e serviços menos honestos que eu dos meus. É loucura tratar os escravos como gado. Eles
são mais inteligentes que o gado; além disso são capazes de causar numa semana mais estragos numa
propriedade com o seu descuido voluntário e a sua estupidez, do que o preço que a mesma custou. Catão
gabase de nunca gastar mais do que algumas libras num escravo: qualquer indivíduo com mau aspecto e
olhos tortos
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que parecesse ter bons músculos e bons dentes lhe servia. Como é que ele conseguia arranjar
compradores para essas belezas, quando já não as queria, não sei dizer. Por aquilo que conheço do carácter
do seu descendente, que se diz ser muito parecido com ele no aspecto físico cabelos de um louro
desbotado, olhos verdes, voz áspera e corpulento e no carácter, acho que ele obrigava os pobres dos
vizinhos a aceitar, pelo preço de novo, tudo o que ele rejeitava.
O meu querido amigo Póstumo, que era um pouco menos de dois anos mais velho que eu o amigo mais
verdadeiro, à excepção de Germânico, que alguma vez tive disseme que tinha lido num livro
contemporâneo que o velho Catão era um verdadeiro escroque, além de sovina: era responsável por
algumas manobras desonestas no comércio de navegação, mas evitou cair publicamente em desgraça
fazendo de um dos seus exescravos comerciante nominal. Como Censor, encarregado da moral pública,
fez algumas coisas bastante estranhas: alegou que agia em nome da decência pública mas, na realidade, ao
que parece, satisfazia os seus rancores pessoais. Por iniciativa própria, expulsou um homem da ordem dos
senadores por que demonstrara ”falta de seriedade romana” tinha beijado a mulher à luz do dia na
presença da filha! Quando questionado por um amigo do homem expulso, outro senador, quanto à justiça
da sua decisão e interrogado sobre se ele próprio e a mulher nunca se abraçavam a não ser durante o acto
marital, Catão respondeu, acalorado:
Nunca! O quê, nunca? Bom, há uns dois anos, para ser franco, a minha mulher pôsme os braços em
volta do corpo durante uma trovoada que estava a assustála, mas, felizmente não havia ninguém por perto
e eu garantovos que háde passar muito tempo antes que ela volte a fazêlo.
Ah, disse o senador, fingindo não o compreender, pois Catão queria dizer, suponho, que fizera à mulher
uma prelecção terrível sobre a sua falta de seriedade. Lamento ouvir isso. Algumas mulheres não são
muito carinhosas com os maridos menos belos, por mais rectos e virtuosos que eles sejam. Mas deixai,
talvez Júpiter seja suficientemente bondoso para mandar em breve outra trovoada.
Catão não perdoou a esse senador, que era um parente distante. Um ano mais tarde, passava em revista as
actas dos senadores, o que era seu dever como Censor, perguntando a cada um por sua vez se era casado.
Havia uma lei, que entretanto foi revogada, segundo a qual todos os senadores deviam ser honrosamente
casados. Chegou a vez do tal parente ser examinado e Catão perguntou, usando a fórmula habitual, que
exortava o senador a responderna sua confiança e honestidade:
Se tens uma esposa, na tua confiança e honestidade, responde!” entoou Catão, na sua voz rouca.
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O homem sentiuse um tanto ridículo, porque, depois de ter gracejado sobre a afeição da mulher de Catão
pelo mesmo, descobrira que a sua própria mulher perdera a tal ponto a afeição por ele, que se via agora
forçado a divorciarse. Assim, para mostrar boa vontade e voltar o gracejo decentemente contra si próprio,
replicou:
Sim, na verdade, tenho uma esposa, mas ela já não está na minha confiança e também não dou grande
coisa pela sua honestidade. Catão expulsouo da ordem por irreverência,
E quem fez cair a Maldição Púnica sobre Roma? Esse mesmo velho Catão que, sempre que lhe
perguntavam a opinião no Senado sobre um dado assunto, fosse ele qual fosse, terminava o seu discurso
dizendo: ”Esta é a minha opinião; além disso, é minha opinião que Cartago devia ser destruída, pois
constitui uma ameaça para Roma.” Insistindo sempre nessa mesma nota da ameaça de Cartago, provocou
um tal nervosismo público que, como eu já disse, os romanos acabaram por violar os seus compromissos
mais solenes e arrasaram Cartago, não deixando pedra sobre pedra.
Escrevi mais do que tencionava sobre o velho Catão, mas não o fiz de ânimo leve. No meu espírito, ele
está associado tanto com a ruína de Roma, pela qual é tão responsável como os homens cuja ”luxúria
efeminada”, como ele dizia, ”enervavam o Estado”, como com a recordação da minha infância infeliz, em
que era dominado por aquele almocreve, o seu tetraneto. Agora sou um velho, e o meu preceptor está
morto há cinquenta anos. No entanto, o meu coração ainda se enche de indignação e ódio quando penso
nele.
Cermânico defendiame perante os mais velhos de uma forma amável e persuasiva, mas Póstumo era um
campeão com garras leoninas. Parecia não ligar a ninguém. Ousava mesmo falar sem rodeios à minha avó
Lívia. Augusto fez de Póstumo o seu favorito; por isso, durante algum tempo, Lívia fingiu ficar divertida
com aquilo a que chamava a sua impulsividade juvenil. A princípio, Póstumo confiava nela, sendo ele
próprio incapaz de fingimento. Um dia, quando eu tinha doze anos e ele catorze, calhou passar em frente
da sala onde Catão me estava a dar as lições. Ouviu o som de pancadas e os meus pedidos de compaixão e
irrompeu pela sala, furioso.
Pára imediatamente de lhe bater! gritou.
Catão olhouo com ar surpreendido e cheio de desprezo e desferiume novo golpe, que me fez cair do
banco.
Póstumo disse:
Aqueles que não conseguem bater no asno batem na sela é um provérbio romano.
Descaramento. O que queres dizer com isso? berrou Catão,
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Quero dizer, replicou Póstumo que te estás a vingar em Cláudio daquilo que consideras ser uma conspiração
generalizada para não te deixar subir. Tu és na verdade bom demais para estares aqui a ensinálo, não é? Póstumo
era inteligente: sabia que isto iria enfurecer Catão, a ponto de o deixar fora de si. E Catão mordeu a isca, gritando no
meio de uma enfiada de velhos impropérios que, nos tempos do seu antepassado, para cuja memória aquele fedelho
gago era um insulto, ai da criança que se mostrasse irreverente para com os mais velhos; pois nesse tempo a
disciplina era imposta com mão pesada. Enquanto que nestes tempos degenerados os chefes de Roma dão todas as
liberdades a qualquer imbecil (esta era para Póstumo) ou a qualquer criaturinha insignificante, débil de espírito e
com um corpo decrépito (esta era para mim)...
Póstumo interrompeuo com um sorriso de advertência:
Quer dizer que eu tinha razão. O degenerado Augusto insulta o grande Censor ao darlhe emprego na sua família de
degenerados. Imagino que tenhas dito a Dona Lívia como te sentes em relação a isso?
Catão teria arrancado a língua, de tal forma se sentiu vexado e inquieto. Se Lívia viesse a saber o que ele tinha dito,
seria o fim; até ali, sempre expressara a sua mais profunda gratidão pela honra de lhe ter confiado a educação do
neto, para não falar na devolução gratuita dos bens da família
confiscados na batalha de Filipos, onde o pai morrera a lutar contra Augusto. Catão era suficientemente prudente ou
suficientemente cobarde para captar a mensagem e, a partir daí, os meus tormentos diários foram consideravelmente
reduzidos. Três ou quatro meses mais tarde, para meu grande deleite, ele deixou de ser meu preceptor, por ter sido
nomeado director do Colégio dos Rapazes. Póstumo foi seu educando aí.
Póstumo era muito forte. Ainda com menos de catorze anos conseguia dobrar uma vara de ferro da grossura do meu
polegar de encontro aos joelhos e, além disso, vio passearse no recreio com dois rapazes sobre os ombros, um nas
costas e outro apoiando um pé em cada uma das mãos de Póstumo. Não era estudioso, mas tinha um intelecto muito
superior ao de Catão, o que é o mínimo que se pode dizer e, nos dois últimos anos em que frequentou o Colégio, os
rapazes elegeramno seu chefe. Em todos os jogos da escola, ele era O Rei é estranho como a palavra rei
sobreviveu entre os estudantes e mantinha uma disciplina rígida entre os colegas. Catão tinha que ser muito
delicado com Póstumo, se queria que os outros rapazes fizessem o que ele queria; todos eles seguiam as indicações
de Póstumo.
Catão tinha agora que apresentar a Lívia relatórios semestrais sobre os seus alunos; entretanto, ela comunicoulhe
que, se achasse que eles eram de interesse para Augusto, lho daria a saber. Catão compreendeu por esse comentário
que os seus relatórios deviam ser isentos de opiniões pessoais, a menos que recebesse alguma indicação dela para
que louvasse
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ou censurasse alguém em especial. Muitos casamentos eram arranjados enquanto os rapazes ainda
estavam no Colégio e um relatório podia ser útil para Lívia, como argumento a favor ou contra alguma
ligação em vista. Os casamentos da nobreza em Roma tinham que ser aprovados por Augusto como Alto
Pontífice e eram, na maior parte dos casos, ditados por Lívia. Aconteceu um dia que Lívia visitou os
claustros do Colégio e encontrou Póstumo sentado numa cadeira a ditar decretos como Rei. Catão notou
que ela franziu o sobrolho ao ver a cena. Isso deulhe coragem para escrever no relatório seguinte: ”Muito
contra vontade, mas no interesse da virtude e da justiça, sou obrigado a registar que o jovem Agripa
póstumo tende a revelar um carácter selvático, dominador e intratável.” Depois disto, Lívia tratouo com
tal amabilidade que o relatório seguinte foi ainda mais forte. Lívia não mostrou os relatórios a Augusto,
mas guardouos de reserva e o próprio Póstumo não teve conhecimento de nada.
Sob o reinado de Póstumo, tive os dois anos mais felizes da minha juventude; posso mesmo dizer da
minha vida. Ele deu ordens aos outros rapazes para que eu fosse admitido sem reservas nos jogos dos
claustros, embora não fosse membro do colégio, e fez saber que consideraria qualquer indelicadeza ou
insulto para com a minha pessoa como uma indelicadeza ou insulto à sua pessoa. Assim, tomava parte em
todos os desportos quando a minha saúde o permitia e só quando Augusto ou Lívia apareciam é que eu
desaparecia. Em lugar de Catão, tinha agora o bom velho Atenodoro como preceptor. Aprendi mais com
ele em seis meses do que aprendera com Catão em seis anos. Atenodoro nunca me batia e usava da maior
paciência. Costumava encorajarme, dizendo que o facto de eu ser coxo devia ser um incentivo para a
minha inteligência. Vulcano, o Deus de todos os artífices inteligentes, também era coxo. Quanto à minha
gaguez, Demóstenes, o mais nobre orador de todos os tempos, nascera gago, mas tinhase corrigido com
paciência e concentração. Demóstenes utilizara precisamente o mesmo método que ele agora me estava a
ensinar. Na verdade, Atenodoro faziame declamar com a boca cheia de seixos: ao tentar ultrapassar a
obstrução dos seixos, esqueci a gaguez e, depois, os seixos foram sendo retirados um de cada vez, até não
restar nenhum; e eu descobri, para minha surpresa, que conseguia falar tão bem como qualquer pessoa.
Mas apenas quando declamava. Numa conversa normal gaguejava fortemente. Atenodoro fez do facto de
eu conseguir declamar tão bem um segredo entre ele e mim.
Um dia, Cercopithecion, havemos de surpreender Augusto, dizia. mas espera um pouco mais.
Quando me chamava Cercopithecion (pequeno sagüi) faziao com afeição e não por desprezo e eu sentia
me orgulhoso do nome. Quando eu me portava mal, ele despejava:
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Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, lembraivos de quem sois e do que estais fazendo.
Com Póstumo, Atenodoro e Germânico como amigos, comecei gradualmente a ganhar autoconfiança.
Atenodoro disseme, logo no primeiro dia a seguir a terse tornado meu preceptor, que se propunha ensinarme não
os factos, que eu podia recolher por mim mesmo em qualquer lado, mas a apresentação correcta dos factos. E foi o
que ele fez. Um dia, por exemplo, perguntoume, com simpatia, porque é que eu estava tão excitado; parecia incapaz
de me concentrar na minha tarefa. Eu disselhe que acabava de ver um grande destacamento de recrutas em parada
nos Campos de Marte, a serem inspeccionados por Augusto antes de serem enviados para a Germânia, onde a guerra
recomeçara havia pouco,
Bom, disse Atenodoro, sempre no mesmo tom de simpatia,
uma vez que estás tão preocupado com isso que não consegues apreciar as belezas de Hesíodo, Hesíodo pode
esperar até amanhã. Afinal, ele já esperou setecentos anos ou mais; portanto, não nos vai levar a mal mais um dia. E
entretanto, se te sentasses, pegasses nas tuas tabuinhas e me escrevesses uma carta, um breve relato de tudo o que
viste nos Campos de Marte; como se eu estivesse ausente de Roma há cinco anos e tu me mandasses uma carta para
o outro lado do mar, digamos para a minha cidade de Tarso. Isso ocuparia as tuas mãos inquietas e seria bom para
praticares.
Assim, pusme a escrever alegremente sobre a cera e, seguidamente, lemos a carta, para corrigir os erros de
ortografia e de sintaxe. Fui forçado a admitir que relatara ao mesmo tempo coisas a mais e coisas a menos e que
pusera os factos pela ordem errada. A passagem que descrevia as lamentações das mães e das namoradas dos jovens
soldados, e como a multidão se precipitara para a cabeça da ponte para dirigir uma saudação final à coluna que
partia, devia ter aparecido em último lugar, não em primeiro. E não precisava ter mencionado que a cavalaria tinha
cavalos: as pessoas partiam do princípio que sim. E tinha mencionado duas vezes o incidente em que o cavalo de
Augusto tropeçava: uma vez era o bastante, se o cavalo só tinha tropeçado uma vez. E o que Póstumo me contara,
quando íamos a caminho de casa, sobre as práticas religiosas dos judeus, era interessante mas não tinha cabimento
ali, porque os recrutas eram italianos e não judeus. Além disso, em Tarso, ele teria provavelmente mais
oportunidades de estudar os costumes judeus do que Póstumo tinha em Roma. Por outro lado, eu não mencionara
várias coisas que ele estaria interessado em saber quantos recrutas havia na parada, até que ponto estavam
adiantados no seu treino militar, para que cidade estavam a ser enviados, se pareciam satisfeitos ou desgostosos por
irem, o que Augusto lhes dissera no seu discurso.
68
Três dias mais tarde, Atenodoro fezme escrever uma descrição de uma rixa entre um marinheiro e um
negociante de roupas que tínhamos presenciado juntos naquele dia, quando caminhávamos no mercado de
roupa; e eu saíme muito melhor. Ele aplicou primeiro esta disciplina à minha escrita, depois à
declamação e, finalmente, de uma maneira geral, às minhas conversas com ele. Trabalhava
incansavelmente comigo e, pouco a pouco, torneime menos distraído, pois ele nunca deixava passar sem
um comentário qualquer frase minha que fosse descuidada, irrelevante ou inexacta.
Ele tinha tentado interessarme na filosofia especulativa, mas, quando viu que eu não tinha inclinação para
isso, não me forçou a exceder os limites habituais de uma boa educação sobre o assunto. Foi ele o
primeiro a despertar o meu interesse pela história. Possuia os primeiros vinte volumes da história de Roma
de Lívio, que me deu a ler como exemplo de uma escrita lúcida e agradável. As histórias de Lívio
encantavamme e Atenodoro prometeume que, logo que eu tivesse dominado a minha gaguez, me seria
dado conhecer Lívio, que era seu amigo pessoal. E cumpriu o prometido. Seis meses mais tarde, levoume
à biblioteca de Apolo e apresentoume a um homem encurvado e de barba, com cerca de sessenta anos,
um rosto amarelado, olhar feliz e uma maneira precisa de falar, que me saudou cordialmente como o filho
de um homem que ele admirara tanto. Lívio ia nessa altura ainda não exactamente a meio da sua história,
que viria a ser completada em cento e cinquenta volumes, indo dos mais recuados tempos lendários, até à
morte do meu pai, havia cerca de doze anos. Era nesta data que ele tinha começado a publicar a sua obra,
ao ritmo de cinco volumes por ano, tendo chegado agora à data em que Júlio César nascera. Lívio
felicitoume por ter Atenodoro como preceptor. Atenodoro disse que eu o compensava bem do trabalho
que tinha comigo. Depois, transmiti a Lívio todo o prazer que sentia com a leitura dos seus livros, desde
que Atenodoro mos recomendara como modelo de escrita. Assim, toda a gente ficou satisfeita,
especialmente Lívio.
O quê! Também vais ser historiador, meu caro jovem? perguntou.
Bem gostaria de ser merecedor desse nome honroso, repliquei
embora na verdade nunca tivesse considerado seriamente tal possibilidade. Depois, sugeriu que eu
escrevesse uma biografia do meu pai e ofereceuse para me ajudar, pondome em contacto com as fontes
históricas mais confiáveis. Sentime muito lisonjeado e decidido a começar o livro no dia seguinte. Mas
Lívio disse que a escrita era a última tarefa do historiador: primeiro, ele tinha que reunir o seu material e
aguçar a pena. Atenodoro emprestarmeia o seu pequeno canivete bem afiado, gracejou.
Atenodoro era um ancião majestoso, com uns meigos olhos escuros, nariz aquilino e a barba mais
maravilhosa que alguma vez cresceu num queixo humano. Espalhavaselhe em ondas até à cintura e era
branca como as asas de um cisne. Havia alguns cisnes domesticados num lago artificial nos Jardins de
Salusto, onde Atenodoro e eu uma vez lhes atirámos
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pão de um barco; recordome de ter reparado que a barba dele e as asas daquelas aves, enquanto ele se
debruçava da amurada, eram exactamente da mesma cor. Atenodoro costumava cofiar a barba lenta e
ritmicamente enquanto falava; uma vez, disseme que era isso que a fazia crescer tão luxuriante. Disse que
sementes de fogo invisíveis brotavam dos seus dedos e eram um alimento para os cabelos. Esta era uma
piada estóica típica, às custas da filosofia especulativa epicúrea.
Por falar na barba de Atenodoro, lembreime agora de Sulpício que, quando eu tinha treze anos, foi
escolhido por Lívia para meu preceptor especial de história. Sulpício tinha, penso eu, a barba mais
miserável que eu alguma vez vi: era branca, mas do branco da neve nas ruas de Roma, depois de um
degelo de um cinzento encarniçado e muito irregular. Costumava enrolála nos dedos quando estava
preocupado e chegava mesmo a pôr as pontas na boca, que mascava. Lívia escolherao, penso, porque o
achava o homem mais aborrecido de Roma e esperava, tornandoo, meu preceptor, desencorajar as minhas
ambições históricas, pois não tardou a ouvir falar delas. Lívia tinha razão: Sulpício era um génio em fazer
as coisas mais interessantes parecerem totalmente insípidas e mortas. Mas mesmo a falta de interesse de
Sulpício não conseguiu desviarme do meu trabalho e havia nele uma vantagem: a de ter a memória mais
excepcionalmente exacta para as datas. Se eu alguma vez precisava da informação mais remota, como por
exemplo as leis da sucessão à chefia entre uma das tribos alpinas contra as quais o meu pai tinha lutado,
ou o significado e etimologia do seu estranho grito de batalha, Sulpício sabia qual a autoridade que tratara
essas questões, em que livro e qual a prateleira de que estante e em que sala de qual biblioteca se podiam
encontrar. Não tinha qualquer sentido crítico e escrevia pessimamente, com os factos a abafaremse uns
aos outros como flores num viveiro que não foi desbastado. Mas mostrouse um assistente valioso quando,
mais tarde, aprendi a usálo como tal, e não como preceptor; e assim trabalhou para mim até morrer, com
a idade de oitenta e sete anos, quase trinta anos depois, com uma memória que se manteve intacta até ao
fim e com uma barba tão desbotada, fraca e desarranjada como sempre.
1 estoicismo é uma corrente filosófica que remonta à Grécia antiga, cuja criação é normalmente atribuída
ao sofista Zenão. Caracterizase pela austeridade de comportamentos dos seus seguidores e pela defesa do
relativismo com que todas as coisas deverão ser encaradas. Por outro lado, esta filosofia aconselha
também a indiferença e o desprezo pelos males físicos e morais, procurando aniquilar os nossos desejos e
paixões, no sentido destes darem lugar à razão e à virtude. Em Roma, o imperadorfilósofo Marco
Aurélio revelarse ia como um dos mais acérrimos defensores do estoicismo.
2 O epicurismo, introduzido no universo da filosofia por Epicuro, defende que o indivíduo deverá guiar a
sua vida pela procura do prazer, dando predominância ao de cariz intelectual ou moral.
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CAPíTULO VI
Tenho agora que recuar alguns anos para escrever sobre meu tio Tibério, cuja sorte não é de forma alguma
irrelevante para esta história. Ele encontravase numa posição infeliz, forçado contra sua vontade a
manterse continuamente sob os olhares públicos, ora como
general nalguma campanha de fronteira, ora como Cônsul em 6 a.C. Roma ou comissário especial nas
províncias, quando tudo o que
ele queria era um descanso prolongado e privacidade. Honrarias públicas pouco significavam para ele,
quanto mais não fosse porque lhe eram concedidas, como ele uma vez se queixou a meu pai, mais por ser
o principal moço de recados de Augusto e Lívia, do que por actuar por direito próprio e à sua própria
responsabilidade. Além disso, com a dignidade da família imperial a manter e Lívia a espiálo
constantemente, tinha que tomar o maior cuidado com a sua moral privada. Tinha poucos amigos, pois
era, como creio que já disse, de temperamento desconfiado, ciumento, reservado e melancólico; aos que
eram mais interesseiros do que realmente amigos, tratavaos com o desprezo cínico que mereciam. E, por
fim, as coisas tinham ido de mal a pior entre ele e Júlia, desde que a desposara havia cinco anos. Tinham
tido um filho que morrera e, a parti daí, Tibério recusarase a voltar a dormir com ela; por três razões. A
primeira era que Júlia estava agora a entrar na meiaidade e a perder a figura esbelta Tibério preferia
mulheres imaturas, quanto mais arrapazadas melhor, e Vipsânia era uma criaturinha minúscula. A segunda
era que Júlia lhe fazia exigências apaixonadas, às quais ele era incapaz de corresponder, ficando histérica
quando ele a repelia. A terceira foi que ele descobriu, depois de a ter repelido, que ela se vingava
arranjando galanteadores que lhe davam o que ele negava.
Infelizmente, ele não conseguiu arranjar provas das infidelidades de Júlia, aparte as declarações dos
escravos, pois ela fazia as coisas com todo o cuidado; e as declarações dos escravos não eram suficientes
para apresentar a Augusto como motivo para ele fazer o divórcio da sua única filha bemamada. Contudo,
de preferência a falar no caso a Lívia, pois na realidade odiavaa tanto quanto desconfiava dela, preferiu
sofrer em silêncio. Ocorreulhe que, se conseguisse afastarse de Roma e de Júlia, era bem provável que
ela baixasse as defesas e que Augusto viesse a descobrir
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por si próprio qual o comportamento dela. A sua única possibilidade de fuga seria que outra guerra
estalasse algures, numa das fronteiras que eram suficientemente importantes para que o mandassem para
lá como comandante de operações. Mas não havia sinais de guerra em qualquer dos quadrantes e, além
disso, ele estava farto de lutar. Sucedera ao meu pai no comando dos exércitos da Germânia (júlia insistira
em o acompanhar ao Reno) e havia agora alguns meses que estava de regresso a Roma. Mas Augusto
fizerao trabalhar como um escravo desde o seu regresso, dandolhe a tarefa, difícil e desagradável, de
investigar a administração das casas de trabalho e, de uma maneira geral, as condições de trabalho nos
bairros mais pobres de Roma. Um dia, num momento de descontracção, dissera de repente para Lívia:
Oh mãe, gostaria de estar livre, nem que fosse por alguns meses, desta vida intolerável.
Ela assustouo, não lhe dando resposta e saindo da sala com ar altivo. Mais tarde, no mesmo dia, chamou
o à sua presença e surpreendeuo dizendo que decidira concederlhe o seu desejo e conseguirlhe uma
licença temporária junto de Augusto. Ela tomou essa decisão, em parte porque desejava criarlhe uma
dívida de gratidão para com ela e porque sabia agora dos casos amorosos de Júlia, partilhando a mesma
ideia de Tibério quanto a darlhe a corda com que se enforcaria a si própria. Mas a sua razão principal era
que os irmãos mais velhos de Póstumo, Caio e Lúcio, estavam a crescer, e as relações entre eles e o
padrasto Tibério eram tensas. Caio, que no fundo não era mau tipo (tal como Lúcio também não o era),
acabara por preencher, até certo ponto, o lugar que Marcelo ocupara nas afeições de Augusto. Mas ele
estragavaos a ambos de forma tão descarada, apesar das advertências de Lívia, que era de admirar não se
terem tornado piores do que eram. Tinham o hábito de tratar com insolência os mais velhos,
particularmente aqueles para com quem sabiam que Augusto desejaria secretamente que se comportassem
dessa forma, e viviam com grande extravagância. Quando Lívia viu que era inútil tentar controlar o
nepotismo de Augusto, mudou de atitude e passou a encorajálo e a favorecêlos mais do que nunca. Ao
fazêlo e ao deixálos a eles saber que ela o fazia, esperava ganharlhes a confiança. Calculava também
que, se a sua presunção aumentasse um pouco mais, eles acabariam por perder a cabeça e tentar apoderar
se da monarquia. O seu sistema de espionagem era excelente e ela não deixaria de ser informada de um tal
plano a tempo de os mandar prender. Encorajou Augusto a mandar eleger Caio para Cônsul durante quatro
anos, quando ele tinha apenas quinze (embora a idade mínima com que um homem se podia tornar Cônsul
tivesse sido fixada por Sula nos quarenta e três anos e, para além disso, com a condição de ter
anteriormente preenchido três cargos de magistratura diferentes e de importância ascendente). Mais tarde,
Lúcio recebeu a mesma honra.
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Lívia sugeriu também que Augusto os apresentasse ao Senado como Chefes dos Cadetes. O título não lhes
era concedido, como acontecera com Marcelo, apenas para uma ocasião específica, mas deixavaos numa
posição de permanente autoridade sobre todos os seus iguais em idade e posição. Parecia agora
perfeitamente claro que Augusto tencionava fazer de Caio seu sucessor; por isso, não era de admirar que o
mesmo tipo de jovens nobres que tinham alardeado as capacidades ainda não experimentadas do jovem
Marcelo contra a reputação ministerial e militar do veterano Agripa, fizessem agora o mesmo pelo filho de
Agripa, Caio, contra a reputação de veterano de Tibério, que submetiam a muitas injúrias. Lívia
tencionava que Tibério seguisse o exemplo de Agripa. Se ele se retirasse agora, com tantas vitórias e
honras públicas a seu favor, para qualquer ilha grega próxima e deixasse a arena política livre para Caio e
Lúcio, isto causaria melhor impressão e ganharlheia de longe maior simpatia popular do que se se
deixasse ficar para a disputar (o paralelismo histórico tornarseia ainda mais próximo, se Caio e Lúcio
morressem durante o afastamento de Tibério e se Augusto sentisse de novo necessidade dos serviços
dele). Assim, ela prometeu instar com Augusto para que lhe concedesse permissão para se ausentar
indefinidamente de Roma e demitirse de todos os seus cargos oficiais, mas dandolhe o cargo honorífico
de Protector do Povo que o garantiria contra a eventualidade de vir a ser assassinado por Caio, caso este
viesse a pensar em se desembaraçar dele.
Lívia teve grande dificuldade em manter a sua promessa, pois Tibério era o mais útil e experiente dos
ministros de Augusto, bem como o seu general com maior sucesso; durante muito tempo, Augusto
recusouse a tomar o pedido a sério. Mas Tibério invocou Problemas de saúde e insistiu em que a sua
ausência pouparia a Caio e a Lúcio grande constrangimento, admitindo que não se dava muito bem com
eles. Mesmo assim, Augusto não lhe deu ouvidos. Caio e Lúcio não passavam de dois rapazes, ainda
totalmente inexperientes na guerra ou nos assuntos de estado, e não lhe serviriam de nada se surgisse
algum problema sério na cidade, nas províncias ou na fronteira. Compreendia, talvez pela primeira vez,
que Tibério era agora o seu único apoio numa emergência desse tipo. Mas irritavao que essa compreensão
tivesse sido forçada. Recusou o pedido de Tibério e disse que não ia escutar quaisquer argumentos.
Portanto, como não havia nada a fazer, Tibério foi ter com Júlia e disselhe com uma brutalidade estudada
que o seu casamento se tinha tornado uma farsa tal que já não conseguia ficar na mesma casa com ela um
dia mais que fosse. Sugerialhe que fosse procurar Augusto e se queixasse de ter sido maltratada pelo seu
rufião de marido e que não se sentiria feliz enquanto não tivesse o divórcio. Augusto, disse ele, era pouco
provável, por razões familiares, que concedesse o divórcio, mas, provavelmente, baniloia de
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Roma. Estava preparado até para suportar o exílio, de preferência a continuar a viver com ela.
Júlia decidiu esquecer que alguma vez tivesse amado Tibério. Sofrera muito com ele. Tibério não só a
tratava com o maior desprezo sempre que estavam a sós, como começara ultimamente a experimentar
cautelosamente essas práticas ridiculamente imundas que mais tarde tornaram o seu nome tão detestável a
todas as pessoas decentes; e ela já descobrira isso. Assim, tomouo à letra e queixouse a Augusto em
termos bem mais violentos do que Tibério (que era suficientemente vaidoso para acreditar que, apesar de
tudo, ela ainda o amava) poderia ter imaginado. Augusto sempre tivera grande dificuldade em esconder a
sua antipatia por Tibério como Genro o que, como é evidente, encorajara a facção de Caio e agora
caminhava furioso de um lado para o outro no seu gabinete, chamando a Tibério todos os nomes que lhe
vinham à cabeça. Mesmo assim, ainda recordou a Júlia que só se podia queixar de si própria pela
decepção sofrida com um marido sobre cujo carácter ele nunca deixara de a prevenir. E, por muito que a
amasse e sentisse pena dela, não podia dissolver o casamento. Era impensável que a filha e o enteado se
separassem depois de uma união à qual tinha sido dada tanta importância política e, estava certo, Lívia
veria a questão da mesma forma que ele. Assim, Júlia suplicou que Tibério fosse enviado para qualquer
lugar durante um ano ou dois, porque de momento ela não podia suportar a sua presença a menos de cem
milhas dela. Ele acabou por concordar com isto e, alguns dias mais tarde, ia a caminho da ilha de Rodes,
que ele próprio escolhera, muito antes disto, como o sítio ideal para se retirar. Mas Augusto, embora lhe
concedesse o posto de Protector, sob a insistência premente de Lívia, deixou bem claro que não sentiria
qualquer desgosto se nunca mais o visse na sua frente.
Ninguém, a não ser os principais implicados neste curioso drama, sabiam a razão por que Tibério estava
deixando Roma e Lívia usou a má vontade de Augusto em discutir o assunto publicamente a favor de
Tibério. Disse às suas amigas, em confidência, que Tibério tinha decidido retirarse como protesto contra
o comportamento escandaloso do partido de Caio e Lúcio. Disse também que Augusto tinha mostrado
uma enorme compreensão para com ele e que, de início, recusara a sua demissão, prometendo silenciar os
ofensores; Tibério insistira então que não desejava criar maior desentendimento entre ele próprio e os
filhos da mulher, e demonstrara firmeza do seu propósito, ficando sem comer durante quatro dias. Lívia
manteve a farsa acompanhando Tibério ao seu navio em óstia, o porto de Roma, e suplicandolhe, em
nome de Augusto e no seu próprio, que reconsiderasse aquela decisão. Fez também com que todos os
membros da sua família mais chegada o filho mais novo de Tibério, Castor, a minha mãe, Germânico,
Livila e eu próprio fôssemos com
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ela e tornássemos a ocasião mais comovente, juntando às dela as nossas súplicas. Júlia não apareceu e a
sua ausência encaixava bem na impressão que Lívia estava a tentar criar que ela tomara o partido dos
filhos contra o marido. Foi uma cena ridícula mas bem encenada. A minha mãe fez bem a sua parte e as
três crianças, que tinham sido cuidadosamente ensinadas, representaram realmente os seus papéis como se
os sentissem. Eu fiquei estupefacto e mudo até que Livila me deu um beliscão que me fez largar a chorar,
saindome assim ainda melhor do que eles. Tinha eu quatro anos de idade quando tudo isto aconteceu, mas
já tinha feito doze, antes de Augusto ter sido forçado, apesar de relutante, a chamar meu tio de regresso a
Roma, pois a situação política tinhase alterado profundamente. Mas Júlia merece muito mais simpatia do
que aquele que conquistou junto do público, Estou convencido de que era, naturalmente, uma mulher
decente e de bom coração, ainda que amante dos prazeres e da excitação e a única entre as minhas
parentes femininas que tinha uma palavra bondosa para me dizer. Também estava convencido de que não
havia fundamento para as acusações feitas contra ela muitos anos mais tarde, de infidelidade para com
Agripa, quando estava casada com ele. Sem dúvida, todos os seus filhos se pareciam muito com ele. A
verdadeira história é como se segue. Na sua viuvez, como relatei, apaixonouse por Tibério e persuadiu
Augusto a deixála casar com ele. Tibério, furioso por ter que se divorciar da mulher por causa dela,
tratoua com grande frieza. Ela foi então suficientemente imprudente para ir falar com Lívia, a quem
receava mas em quem confiava, pedindolhe conselho. Lívia deulhe um filtro de amor, que ela devia
beber, dizendo que, no espaço de um ano, isso a tornaria irresistível para o marido, mas que teria que o
tomar uma vez por mês, com a lua cheia e fazer certas orações a Vénus, sem dizer nada a esse respeito a
quem quer que fosse; senão, a droga perdia o efeito e faria muito mal. O que Lívia lhe deu, com toda a
crueldade, foi uma destilação dos corpos esmagados de umas certas pequenas moscas verdes vindas da
Hispânia, que lhe estimulavam de tal forma o apetite sexual que ela se tornou como que demente
(explicarei mais adiante como vim a saber de tudo isto). Na realidade, durante algum tempo, ela conseguiu
incendiar o apetite de Tibério com o abandono lascivo que a droga lhe provocou, ao contrário da sua
modéstia natural; mas em breve o cansou e ele recusouse a continuar a ter relações com ela. Assim, foi
obrigada, sob o efeito da droga, que suponho se tenha tornado num hábito para ela, a satisfazer os seus
desejos sexuais através de ligações adúlteras com qualquer cortesão em quem pudesse confiar para se
comportar com discrição. Quero dizer que procedeu assim em Roma, na Germânia e em França,
seduzindo soldados rasos da guarda pessoal de Tibério e mesmo escravos germanos, ameaçando, se eles
hesitavam, acusálos de lhe oferecerem
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familiaridades e mandálos chicotear até à morte. Como ela ainda era uma mulher bonita, eles, ao que
parecia, não hesitavam muito.
Depois do afastamento de Tibério, Júlia tornouse descuidada e toda Roma não tardou a saber das suas
infidelidades. Lívia nunca disse uma palavra a Augusto, confiante que, a seu tempo, ele viria a saber por
qualquer outra fonte. Mas o amor cego de Augusto por Júlia era proverbial e ninguém ousava dizerlhe
nada. Passado algum tempo, era do consenso geral que ele não podia continuar na ignorância e que o seu
perdão tácito perante o comportamento dela era mais uma advertência a favor do silêncio. As orgias
nocturnas de Júlia na Praça do Mercado e na própria Plataforma de Oratória tinhamse tornado causa de
um grave escândalo público. No entanto, passaramse quatro anos antes que um leve rumor chegasse aos
ouvidos de Augusto. Depois, viria a ouvir a história completa, justamente pela boca dos filhos, Caio e
Lúcio, que se apresentaram juntos diante dele e lhe perguntaram com irritação durante quanto tempo ia
permitir que ele próprio e os seus netos fossem envergonhados. Compreendiam, disseram, que a
preocupação com o bomnome da família o tivesse tornado muito paciente em relação à mãe, mas
certamente havia um limite para aquele sofrimento prolongado. Seria que deviam esperar até que ela os
presenteasse com uma ninhada de irmãos bastardos, filhos de diversos pais, antes que tomasse
conhecimento oficial das proezas dela? Augusto escutouos com horror e espanto, e durante um bom
bocado, não conseguiu fazer outra coisa senão ficar de boca aberta e mexer os lábios. Quando conseguiu
recuperar a voz, foi para chamar por Lívia, num tom meio estrangulado. Eles repetiram a história na
presença da mãe e ela fingiu soluçar, dizendo que aqueles três anos em que Augusto deliberadamente
fechara os ouvidos à verdade tinham sido o seu maior desgosto. Por várias vezes, disse, arranjara coragem
para falar com ele, mas tinhaselhe tornado evidente que ele não queria escutar uma palavra do que ela
tinha para dizer.
Estava confiante de que sabíeis tudo sobre o assunto, mas que era uma questão demasiado dolorosa para
que a pudésseis discutir mesmo comigo.
Augusto, chorando, com a cabeça entre as mãos, murmurava que nunca tinha ouvido o mais ligeiro rumor
ou alimentado a mais leve suspeita de que a filha não fosse a mulher mais casta de Roma. Lívia
perguntoulhe então porque achava que o filho Tibério tinha ido para o exílio. Por amor ao exílio? Não;
era por não ter conseguido controlar os excessos da mulher, sentindose ao mesmo tempo magoado por
Augusto os acobertar, pois era isso que pensava; e, como não desejava entrar em conflito com Caio e
Lúcio, os filhos dela, pedindo a Augusto permissão para se divorciar, não lhe restava outra solução a não
ser desaparecer de cena com toda a decência.
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A conversa relativamente a Tibério não teve qualquer efeito em Augusto, que lançou uma das dobras da
túnica sobre a cabeça e saíu a tatear em direcção à passagem que levava ao seu quarto, onde se fechou;
não foi visto por ninguém, nem mesmo por Lívia, durante quatro dias, no decorrer dos quais não comeu
nem bebeu nada, não dormiu e, o que seria uma prova ainda mais forte caso ela fosse necessária da
violência do seu desgosto, ficou todo esse tempo sem se barbear. Finalmente, puxou o fio que atravessava
um orifício na parede e fez soar uma pequena campainha de prata no quarto de Lívia. Lívia apareceu a
correr, com um ar de preocupação amorosa e Augusto, ainda não muito seguro da própria voz, escreveu
numa tabuinha de argila uma só frase em grego: ”Que ela seja banida para sempre, mas digamme para
onde.” Entregou a Lívia o seu anel de sinete, para ela poder escrever cartas ao Senado em seu nome,
recomendando a expulsão (a propósito, este sinete era a grande esmeralda talhada com a cabeça de
Alexandre o Grande, de elmo, de cujo túmulo tinha sido roubada, juntamente com uma espada, um
peitoral e outros ornamentos pessoais do herói. Lívia insistiu em que ele a usasse, apesar dos seus
escrúpulos ele tinha a noção do que isso tinha de presunçoso , até que uma noite teve um sonho no qual
Alexandre, com uma expressão zangada, cortou com a sua espada o dedo que a usava. Nessa altura,
Augusto mandou fazer o seu próprio sinete, um rubi da índia, cortado pelo famoso ourives Dioscurides;
desde aí, todos os seus sucessores o têm usado, como sinal de soberania).
Lívia escreveu a recomendação de exílio em termos muito fortes. Foi composta no estilo literário de
Augusto, que era fácil de imitar, porque sacrificava sempre a elegância à clareza por exemplo, através da
repetição voluntária da mesma palavra, quando ela ocorria várias vezes numa dada passagem, em vez de
procurar um sinónimo ou uma paráfrase (o que é a prática literária corrente). Tinha também uma tendência
para exagerar o uso de preposições. Lívia não mostrou a carta a Augusto e envioua directamente para o
Senado, que votou de imediato um decreto de exílio perpétuo. Ela fizera uma lista dos crimes de Júlia de
tal forma detalhada e atribuíra a Augusto expressões de repúdio de tal forma calmas que lhe tornava
impossível vir a mudar de opinião e pedir ao Senado que cancelasse a decisão. Fez ainda um bom trabalho
por acréscimo, escolhendo para uma referência especial como parceiros de Júlia nos seus actos de
adultério três ou quatro homens que estava interessada em destruir. Entre eles, encontravase um tio meu,
lulo, filho de António, a quem Augusto mostrara grande benevolência por causa de Octávia, fazendoo
ascender ao Consulado. Lívia, ao nomeálo na sua carta para o Senado, acentuou fortemente a ingratidão
que mostrara para com o seu benfeitor e sugeriu que ele e Júlia estariam a conspirar em conjunto para
lançar mão do poder supremo. lulo suicidouse. Creio que a acusação de conspirador não tinha
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fundamento mas, como único filho vivo de António, por parte da mulher Fúlvia Augusto mandara matar
Antilo, o mais velho, logo após o suicídio do pai, os outros dois, Ptolomeu e Alexandre, filhos de
Cleópatra, tinham morrido novos e, como exCônsul e marido da irmã de Marcelo, de quem Agripa se
divorciara, ele parecia perigoso. O descontentamento popular em relação a Augusto exprimiase muitas
vezes por um desejo de que tivesse sido António a ganhar a batalha de Áccío. Os outros homens que Lívia
acusou de adultério foram banidos.
Uma semana depois, Augusto perguntou a Lívia se um certo decreto tinha sido devidamente promulgado
pois nunca mais voltou a pronunciar o nome de Júlia e raramente se referia a ela, mesmo indirectamente,
embora fosse evidente que a tinha bem presente nos seus pensamentos. Lívia disselhe que uma certa
pessoa tinha sido sentenciada à reclusão perpétua numa ilha e que ia a caminho. Perante isto, ele pareceu
ficar ainda mais abatido por Júlia não ter tomado a única atitude honrosa que ainda lhe restava:
designadamente, pôr fim à própria vida. Lívia mencionou que Phoebe, aia de Júlia e sua principal
confidente, se enforcara logo que o decreto do exílio tinha sido publicado. Augusto disse:
Prouvera a Deus que eu fosse o pai de Phoebe.
Retardou a sua aparição em público por mais quinze dias; recordome bem desse mês horrível. Nós, as
crianças, fomos obrigadas, por ordem de Lívia, a usar luto, não nos sendo permitido brincar, fazer
qualquer ruído ou mesmo sorrir. Quando voltámos a ver Augusto, ele parecia dez anos mais velho;
passaramse meses antes que ele tivesse coragem para visitar o recreio no Colégio dos Rapazes ou mesmo
retomar o seu exercício matinal diário, que consistia num passeio em passo vivo à volta dos terrenos do
palácio, com uma corrida final sobre alguns obstáculos baixos.
Tibério soube de imediato por Lívia a notícia relativa a Júlia. Instado por ela, escreveu duas ou três cartas
a Augusto, suplicandolhe que perdoasse a Júlia, como ele próprio perdoava e dizendo que, por pior que
ela se tivesse portado como esposa, desejava que ela guardasse todas as propriedades que alguma vez
transferira para ela. Augusto não respondeu. Estava firmemente convencido de que a frieza inicial de
Tibério e a sua crueldade para com Júlia, além dos exemplos de imoralidade que lhe dera, eram
responsáveis pela sua degradação moral. Longe de o chamar de regresso a Roma, recusouse mesmo a
renovar o seu Protectorado, quando este chegou ao fim no ano seguinte.
Há uma balada de marcha de soldados chamada Os Três Desgostos de Augusto, composta no estilo
tragicómico primitivo de acampamento e que foi cantada muitos anos mais tarde pelos regimentos
estacionados na Germânia. O tema afirma que Augusto sofreu primeiro por causa de Marcelo, depois por
causa de Júlia e uma terceira vez por causa das Águias perdidas de Varo. Sofreu profundamente com a
morte de Marcelo, mais
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profundamente com a desgraça de Júlia, mas mais profundamente ainda por causa das Águias, porque,
com cada uma das Águias, tinha desaparecido um regimento inteiro dos homens mais valorosos de Roma.
A balada lamenta em alguns versos o malogrado destino do Décimo Sétimo, Décimo Oitavo e Décimo
Nono Regimentos que, quando eu tinha dezanove anos, foram vítimas de uma emboscada e massacrados
pelos germanos numa floresta pantanosa distante; conta como, depois das notícias deste desastre sem igual
lhe terem chegado, Augusto não parava de bater com a cabeça na parede:
O Grande Augusto não parava de gritar Enquanto partia a própria cabeça,
Varo, Varo, General Varo,
Dáme de volta as minhas três dguias!
O Grande Augusto rasgou as roupas da cama, Cobertores, lençol e colcha,
Varo, Varo, general Varo,
Dáme de volta os meus Regimentos!
Os versos seguintes dizem que, após esse incidente, ele nunca mais formou novos regimentos com os
números dos três que tinham sido destruídos, mantendoos em aberto na Lista do Exército. É obrigado a
jurar que a vida de Marcelo e a honra de Júlia nada tinham sido para ele em comparação com a vida e a
honra dos seus soldados, e que o seu espírito ”não teria mais descanso que uma pulga numa fogueira”, até
as três Aguias serem recuperadas e postas em segurança no Capitólio. Mas, embora depois disso os
germanos tenham sido batidos uma vez e outra em batalha, ninguém tinha conseguido descobrir onde as
Águias perdidas tinham feito o ninho os cobardes mantinhamnas bem escondidas. Foi desta maneira que
os soldados desvalorizaram o sofrimento de Augusto por Júlia; mas, na minha opinião, por cada hora que
ele sofreu pelas Águias, deve ter sofrido um mês inteiro por ela.
Não quis saber para onde a tinham mandado, porque isso teria significado que o seu espírito estaria
continuamente a voltarse para lá e ele mal conseguiria controlarse para não apanhar um barco e ir visitá
la. Por isso, foi fácil para Lívia tratar Júlia da forma mais vingativa. Não lhe era permitido o acesso a
vinho, cosméticos, roupas elegantes ou qualquer espécie de luxos e a sua guarda era composta por
eunucos e homens muito idosos. Não tinha autorização de receber visitas e era mesmo obrigada a trabalhar
diariamente numa roca de fiar, como nos seus tempos de escola. A ilha ficava em frente da costa da
Campânia. Era muito pequena e Lívia aumentavalhe deliberadamente o sofrimento, mantendo lá os
mesmos
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guardas ano após ano sem serem rendidos e eles, naturalmente, culpavamna a ela pelo seu exílio naquele
lugar apertado e insalubre. A única pessoa que se sai bem desta história desagradável é a mãe de Júlia,
Escribónia, de quem, estarão recordados, Augusto se divorciara para poder casar com Lívia. Agora uma
mulher já idosa, que tinha vivido retirada por vários anos, apresentouse ousadamente diante de Augusto e
pediu permissão para partilhar o exílio da filha. Disselhe na presença de Lívia que a filha lhe tinha sido
roubada logo que nasceu, mas que ela sempre a adorara à distância e, agora que o mundo inteiro estava
contra a sua querida filha, desejava mostrar o que era o verdadeiro amor de mãe. Na sua opinião, a
pobrezita não tinha culpa de nada: tinhamlhe tornado as coisas muito difíceis. Lívia riuse com desprezo,
mas deve terse sentido bastante desconfortável. Augusto, controlando a própria emoção, assinou em
como o pedido estava concedido.
Cinco anos mais tarde, no dia do aniversário de Júlia, Augusto perguntou repentinamente a Lívia:
De que tamanho é a ilha?
Qual ilha? inquiriu Lívia.
A ilha... onde está vivendo uma infeliz.
Oh, chegase de uma ponta à outra em poucos minutos, creio,
disse Lívia com uma indiferença afectada.
Alguns minutos! Estás a brincar? Imaginaraa no exílio numa ilha grande, como Chipre, Lesbos ou
Corfu. Passado um bocado, perguntou: Como é que se chama?
Chamase Pandatária!
O quê? Oh, Deuses, esse lugar desolado? Oh, crueldade! Cinco anos em Pandatária!
Lívia olhouo com severidade e disse:
Suponho que a queirais de volta a Roma?
Augusto pôsse então a estudar o mapa de Itália, gravado numa fina folha de ouro com pequenas jóias
cravadas a marcarem as cidades, que estava suspenso na parede do quarto onde se encontravam. Ele foi
incapaz de falar, mas apontou para Reggio, uma agradável cidade grega no estreito de Messina.
Assim Júlia foi enviada para Reggio, onde lhe foi concedido um pouco mais de liberdade, sendolhe
mesmo permitido receber visitas mas qualquer visitante tinha que solicitar primeiro a permissão de
Lívia. Tinha que explicar a razão porque queria avistarse com Júlia e preencher um passaporte detalhado
para Lívia assinar, indicando a cor do cabelo e dos olhos e enumerando os sinais e marcas particulares,
para que só ele o pudesse usar. Poucos estavam interessados em se submeter a esses preliminares. A filha
de Júlia, Agripina, pediu autorização para ir, mas Lívia recusou, por uma questão de consideração, disse
ela, pela moral de
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Agripina. Júlia continuava sob uma disciplina severa e não tinha nenhuma pessoa amiga a viver com
ela, uma vez que a mãe morrera de febre na ilha.
Uma ou duas vezes, quando Augusto caminhava pelas ruas de Roma, ouviramse gritos dos cidadãos:
”Traz a tua filha de volta! Ela já sofreu bastante! Traz a tua filha de volta!” Isso era muito doloroso para
Augusto. Um dia, mandou a sua guarda policial apanhar no meio da multidão dois homens que gritavam
estas palavras a plenos pulmões e disselhes, com o seu ar mais grave, que Júpiter certamente puniria a sua
loucura, fazendo com que fossem enganados e desgraçados pelas suas mulheres e filhas. Estas
demonstrações não tinham tanto a ver com um sentimento de piedade por Júlia, como de hostilidade por
Lívia, a quem todos, com justiça, culpavam pela severidade do exílio de Júlia e por ter mexido de tal
forma com o orgulho de Augusto, que ele não se podia permitir um sentimento de piedade.
Quanto a Tibério, na sua ilha confortavelmente espaçosa, sentiuse bem durante um ano ou dois. O clima
era excelente, a comida era boa e tinha bastante tempo livre para retomar os seus estudos literários. O seu
estilo de prosa grega não era de todo mau e escreveu vários poemas elegíacos gregos, elegantes e tolos,
imitando poetas como Euphorion e Parténio. Tenho um livro deles algures. Tibério passava uma boa parte
do seu tempo a discutir com os professores na universidade. O estudo da mitologia clássica divertiao e
fez uma enorme carta genealógica, em forma circular, com os braços irradiando do nosso mais antigo
antepassado Caos, o pai do Pai Tempo, e espalhandose num perímetro confuso, densamente povoado de
ninfas, reis e heróis. Ele costumava deleitarse a confundir os peritos em mitologia, enquanto construía a
sua carta, fazendolhes perguntas como: ”Qual era o nome da avó materna de Heitor?” e ”A Quimera teve
alguma descendência masculina?”: depois, desafiavaos a recitarem o verso dos poetas antigos que
confirmava a sua resposta. Foi, a propósito, pensando nesta tabela, agora em meu poder, que muitos anos
mais tarde o meu sobrinho Calígula disse a sua famosa piada contra Augusto: ”Ah, sim, ele era meu tio
avô. Tinha precisamente a mesma relação para comigo que o Cão Cerebero tinha com Apolo.” De facto,
agora que penso nisso, Calígula cometeu um erro aqui, não foi? O tioavô de Apolo era certamente o
monstro Tifon que, segundo algumas autoridades, era o pai e, segundo outras, o avô de Cerebero. Mas a
única árvore genealógica dos Deuses é tão confusa e cheia de ligações incestuosas filho com mãe, irmão
com irmã , que é possível que Calígula tivesse conseguido provar o seu caso.
Como Protector do Povo, Tibério era tido com muito respeito pelos habitantes de Rodes; e os funcionários
provinciais que partiam para ocupar os seus postos no Leste ou que regressavam de lá, faziam sempre
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questão de se desviarem da sua rota para lhe apresentar os seus respeitos. Mas ele insistia em que não
passava de um mero cidadão privado e protestava contra as honras públicas que lhe dirigiam. Em geral,
dispensava a sua escolta oficial de criados. Só uma vez exerceu os poderes judiciais inerentes ao seu
Protectorado: prendeu e condenou sumariamente a um mês de prisão um jovem grego que, num debate
gramatical ao qual ele presidia, tentou desafiar a sua autoridade para o cargo. Mantinhase em boa forma
montando a cavalo e tomando parte nos desportos no ginásio, e estava ao corrente do que se passava em
Roma recebia mensalmente boletins informativos de Lívia. Além da sua casa na capital da ilha, possuía
uma pequenavilla a uma certa distância, construída num alto promontório com vista para o mar. Havia um
caminho secreto que subia o rochedo até à casa, pelo qual um liberto da sua confiança, um homem com
grande força física, conduzia as figuras menos respeitáveis prostitutas, adivinhos e mágicos , com quem
costumava passar os serões. Dizse que muitas vezes essas criaturas, se acaso tinham desagradado a
Tibério, de alguma forma escorregavam no caminho da volta e caíam no mar, muitos metros mais abaixo.
Já referi que Augusto se recusou a renovar o Protectorado de Tibério quando expiraram os cinco anos. É
fácil imaginar que isto o colocou numa posição muito ingrata em Rodes, onde a sua pessoa era muito
impopular: os rodienses, ao vêlo destituído da sua escolta de criados, dos poderes magisteriais e da
inviolabilidade da sua pessoa, começaram a tratálo primeiro com familiaridade, depois com insolência.
Por exemplo, um famoso professor de filosofia grego a quem solicitou permissão para assistir às suas
aulas, disselhe que não tinha vagas, mas que podia voltar daí a uma semana para ver se já havia alguma.
Depois, vieram notícias de Lívia, informando que Caio tinha sido enviado para o Leste como Governador
da Ásia Menor. Mas, embora não se encontrasse longe, em Quios, Caio não fez a Tibério a visita esperada.
Tibério soube por um amigo que Caio acreditava nos falsos relatos que circulavam em Roma, que ele e
Lívia estavam a planear uma revolta militar e que um membro da comitiva de Caio se tinha mesmo
oferecido, num banquete público em que toda a gente estava um bocado bebida, para tomar um barco até
Rodes e trazer a cabeça do Exilado. Caio dissera ao indivíduo que não tinha medo do Exilado. Ele que
conservasse a cabeça inútil em cima dos ombros inúteis. Tibério engoliu o seu orgulho e, uma vez, tomou
o barco para Quios, para fazer as pazes com o enteado, a quem tratou com uma humildade que foi muito
comentada. Tibério, o romano vivo mais distinto depois de Augusto, a adular um rapaz, ainda na
adolescência, e filho da sua própria mulher caída em desgraça! Caio recebeuo com frieza, mas ficou
muito lisonjeado. Tibério pedíulhe que não tivesse receios, pois os rumores que tinham chegado até ele
eram tão infundados quanto
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maliciosos. Disse que não tencionava retomar a carreira política que interrompera por consideração para
com o próprio Caio e seu irmão Lúcio; tudo o que queria agora era que lhe fosse permitido passar o resto
da sua vida na paz e privacidade que aprendera a valorizar acima de todas as honrarias públicas.
Caio, lisonjeado com a possibilidade de ser magnânimo, encarregouse de mandar uma carta para Roma,
pedindo a permissão de Augusto para o regresso de Tibério, carta que ele endossou com a sua própria
recomendação pessoal. Nesta carta, Tibério dizia que deixara Roma apenas para não embaraçar os jovens
príncipes, seus enteados, mas que agora, como eles tinham crescido e estavam firmemente estabelecidos,
os obstáculos para que ele vivesse tranquilamente em Roma já não existiam; acrescentou que estava
cansado de Rodes e ansiava por voltar a ver os seus amigos e parentes. Caio enviou a carta com o endosso
prometido. Augusto respondeu, a Caio e não a Tibério, que Tibério se tinha afastado, apesar das súplicas
veementes dos seus amigos e parentes, quando o Estado mais precisava dele; não podia agora criar as
condições para o seu próprio regresso. O conteúdo desta carta tornouse do conhecimento público e a
ansiedade de Tibério aumentou. Ouvira dizer que o povo de Nímes, em França, tinha derrubado as
estátuas ali erigidas em memória das suas vitórias e que Lúcio também recebera agora informações falsas
contra ele, que estava inclinado a acreditar, Retirouse da cidade e passou a viver numa pequena casa
numa parte remota da ilha, visitando apenas ocasionalmente a villa do promontório. Deixou de se
preocupar com a sua condição física e mesmo com o seu aspecto pessoal; raramente se barbeava e andava
de um lado para o outro em camisa de dormir e pantufas. Finalmente, escreveu uma carta particular a
Lívia, explicandolhe a situação perigosa em que se encontrava. Comprometiase, se ela conseguisse
arranjarlhe autorização para voltar, a ser guiado unicamente por ela em todas as situações, enquanto os
dois vivessem. Disse que se dirigia a ela não tanto como sua mãe dedicada, mas como verdadeira, embora
até então não reconhecida, timoneira do Barco do Estado.
Isto era precisamente o que Lívia desejava; abstiverase propositadamente até ali de persuadir Augusto a
fazer regressar Tibério. Pretendia que este ficasse tão cansado da inacção e dos insultos públicos, como o
estava anteriormente da acção e das honras públicas. Ela respondeulhe com uma mensagem breve,
dizendo que tinha a carta em segurança
e que o assunto se resolveria sem dificuldade. Alguns meses mais tarde, Lúcio morreu misteriosamente em
Marselha, quando se dirigia para a Híspânia. Enquanto Augusto estava ainda sob o efeito do choque, Lívia
começou a trabalharlhe os sentimentos, dizendo quanto tinha sentido durante todos aqueles anos a falta
do apoio do seu querido filho Tibério, por cujo regresso não ousara até ali suplicar. Ele sem dúvida
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procedera mal, mas certamente já aprendera a sua lição e, de todas as cartas pessoais que ele lhe escrevia,
transpirava a maior devoção e lealdade para com Augusto. Gaio, que endossara a petição pelo seu
regresso, insistiu, iria precisar, agora que o irmão estava morto, de um colega em quem pudesse confiar.
Uma noite, um adivinho chamado Trasilo, árabe de nascimento, visitou Tibério na sua casa do
promontório. já aí tinha estado duas ou três vezes antes e fizera algumas previsões muito encorajadoras,
mas nenhuma delas se tinha ainda realizado. Tibério, que começava a ficar céptico, disse ao seu liberto
que, se Trasilo não o satisfizesse inteiramente desta vez, iria perder o equilíbrio ao descer a escarpa no
caminho de volta. Quando Trasilo chegou, a primeira coisa que Tibério disse foi:
Qual o aspecto das minhas estrelas hoje?
Trasilo sentouse e fez cálculos astrológicos muito complicados com um pedaço de carvão sobre uma
mesa de pedra. Finalmente, declarou:
Estão numa conjuntura invulgarmente favorável. A difícil crise da tua vida está agora finalmente a
chegar ao fim. A partir daqui, não gozarás senão de boa sorte.
Excelente, disse Tibério com secura. E agora vejamos a tua. Trasilo fez mais uma série de cálculos e,
depois, levantou os olhos, acometido de um terror verdadeiro ou fingido.
Céus! exclamou.
Ameaçame um perigo terrível, vindo do ar e das águas.
Alguma probabilidade de o evitar? perguntou Tibério.
Não sei dizêlo. Se conseguir sobreviver nas próximas doze horas, a minha sorte será, à sua medida, tão
feliz como a vossa; mas quase todos os planetas maléficos estão em conjunção contra mim e o perigo
parece realmente inevitável. Só Vénus me pode salvar.
O que foi que acabaste de dizer acerca dela? Esquecime.
Que ela está a entrar em Escorpião, que é o teu signo, pressagiando uma mudança maravilhosamente
propícia nos teus destinos. Deixame tentar mais uma dedução deste importantíssimo movimento: em
breve entrarás na casa Juliana que, não preciso de to recordar, descende directamente de Vénus, a mãe de
Eneias. Tibério, o meu humilde destino está curiosamente ligado ao teu destino ilustre. Se te chegarem
boas notícias antes do amanhecer, é sinal de que eu tenho quase tantos anos de felicidade diante de mim
como tu próprio.
Estavam sentados na varanda e, de repente, uma carriça ou outra pequena ave parecida saltou para o
joelho de Trasilo e, inclinando a cabeça para um lado, pôsse a pipilar para ele. Trasilo disse para a ave:
Obrigado irmã! Foi mesmo a tempo. Depois, voltouse para Tibério, O céu seja louvado! O pássaro
disse que aquele navio traz boas notícias para ti e eu estou salvo. O perigo foi evitado.
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Tibério levantouse de um salto e abraçou Trasilo, confessando quais eram as suas intenções. E, claro, o
navio trazia despachos imperiais de Augusto, informando Tibério da morte de Lúcio e dizendo que, dadas
as circunstâncias, lhe era graciosamente permitido que regressasse a Roma, embora de momento apenas
como cidadão privado.
Quanto a Caio, Augusto teve o maior cuidado em garantir que não lhe fosse atribuída nenhuma tarefa para
a qual não tivesse aptidão e que o Leste se mantivesse tranquilo enquanto ele fosse governador.
Infelizmente, o Rei da Arménia revoltouse e o rei de Pártia ameaçou unir as suas forças às dele, o que
deixou Augusto num dilema. Embora Caio se tivesse mostrado um governador competente em tempos de
paz, Augusto não o julgava capaz de conduzir uma guerra como aquela; e ele próprio estava demasiado
velho para ir combater, além de que tinha numerosas questões a que atender em Roma. No entanto, não
podia enviar mais ninguém para tomar a Caio os regimentos de Leste, porque Caio era Cônsul e nunca lhe
deveria ter sido permitido tomar conta do cargo sendo incapaz de assumir o alto comando militar. Não
havia nada a fazer, a não ser deixar ficar Caio e esperar que tudo corresse pelo melhor.
A princípio, Caio teve sorte. O perigo por parte dos Arménios foi afastado pela invasão da sua fronteira
oriental por uma tribo de bárbaros. O Rei da Arménia foi morto enquanto tentava expulsálos. O Rei da
Pártia, ao saber disto e também do grande exército que Caio estava a reunir, entrou em negociações com
ele, para grande alívio de Augusto. Mas Augusto acabava de nomear um Medo para o trono da Arménia, o
que não era aceitável para a nobreza arménia; quando Caio já tinha reenviado para Roma as tropas extra,
por as considerar desnecessárias, eles acabaram por lhe declarar a guerra. Caio reuniu de novo o exército e
marchou sobre a Arménia, onde, alguns meses mais tarde, foi ferido à traição por um dos generais
inimigos, que o convidara para conferenciarem. Não foi um ferimento grave. Na altura, pouca atenção lhe
deu e concluiu a campanha com êxito. Mas, de alguma forma, deramlhe o tratamento errado e a sua
saúde, que, sem que se percebesse porquê, lhe tinha dado problemas nos últimos dois anos, foi seriamente
afectada: perdeu todo o poder de concentração mental. Por fim, escreveu a Augusto, pedindolhe
permissão para se retirar para a vida privada. Augusto ficou desgostoso,
mas acedeu ao seu pedido, Caio morreu no caminho para casa. Assim, dos filhos de Júlia, só restava agora
Póstumo, de quinze anos de idade, e Augusto estava de tal forma reconciliado com Tibério que, tal como
Trasilo previra, o fez entrar na casa Juliana adoptandoo, juntamente com Póstumo, como seu filho e
herdeiro.
O oriente ficou tranquilo por algum tempo, mas quando a guerra, que voltara a estalar na Germânia
mencionei o facto em ligação com a minha composição escolar para Atenodoro , tomou uma feição
grave.
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Augusto elegeu Tibério comandante do exército e mostrou a sua confiança renovada, concedendolhe o
Protectorado por dez anos. A campanha foi séria e Tibério conduziua com a sua antiga força e habilidade.
Lívia, no entanto, insistiu que ele fizesse visitas frequentes a Roma, para não perder o contacto com os
acontecimentos políticos que decorriam ali. Tibério mantinha a sua parte do acordo que fizera com ela e
permitialhe que o orientasse em tudo.
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CAPíTULO VII
Recuei alguns anos no tempo para falar de meu Tio Tibério, mas, ao seguir essa história até à sua adopção
por Augusto, acabei por avançar em relação à minha própria história. Tentarei dedicar os próximos
capítulos exclusivamente aos acontecimentos que ocorreram entre os meus nove e dezasseis anos. Tratase
na sua maior parte do registo dos noivados e casamentos dos jovens nobres como eu. O primeiro a atingir
a idade foi Germânico o seu décimo quarto aniversário foi a trinta de Dezembro, mas as celebrações
davamse sempre em Março. Como era costume, ele saíu da nossa casa no Palatino de manhã cedo,
engrinaldado e vestindo pela última vez o seu traje de rapaz orlado a púrpura. Multidões de crianças
corriam à frente, cantando e espalhando flores; uma escolta dos amigos nobres caminhava com ele e uma
onda imensa de cidadãos seguia atrás, alinhados conforme a sua condição. A procissão desceu lentamente
a encosta do Monte e atravessou a Praça do Mercado, onde Germânico foi saudado ruidosamente.
Retribuiu a saudação com um discurso breve. Por fim, a procissão começou a subir a encosta do Monte
Capitolino. No Capitólio, Augusto e Lívia aguardavam para o saudar e ele sacrificou um touro branco no
templo ali existente, dedicado a Júpiter Capitolino, o QueFazTrovejar, vestindo pela primeira vez a sua
túnica branca de homem adulto. Com grande desapontamento da minha parte, não me foi permitido ir
também. A caminhada teria sido demasiado árdua para mim e teria causado má impressão se fosse
transportado numa liteira. Tudo o que presenciei das cerimónias foi a oferenda que ele fez aos deuses do
lar do seu traje e ornamentos de rapaz, quando regressou; e a distribuição de bolos e dinheiro à multidão,
dos degraus da casa.
Germânico casou um ano depois. Augusto fazia tudo o que lhe era permitido pela legislação para
encorajar os casamentos entre homens de família. O Império era muito grande e precisava de mais
funcionários e oficiais superiores do exército do que a nobreza e a plebe conseguiam arranjar, apesar do
recrutamento constante entre a populaça para as suas fileiras. Quando havia queixas por parte de homens
de família sobre a rudeza desses recémchegados, Augusto costumava responder secamente que escolhia
os menos rudes que conseguia encontrar, O remédio estava nas mãos deles, disse: todos os homens e
mulheres de posição deviam
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casar novos e iniciar uma família tão grande quanto possível. A diminuição regular do número de
nascimentos e casamentos nas classes governantes tornouse uma obsessão para Augusto.
Numa ocasião em que a Nobre Ordem dos Cavaleiros, no seio da qual os senadores eram escolhidos, se
queixou da severidade das suas regras contra os celibatários, convocou toda a ordem a comparecer na
Praça do Mercado para uma prelecção. Quando já ali estavam reunidos, dividiuos em dois grupos, os
casados e os solteiros. Os solteiros formavam um grupo muito maior que o dos casados e ele dirigiu
discursos diferentes a cada grupo. Entrou numa grande excitação enquanto falava para os solteiros,
chamandolhes animais e rufiões e, usando de uma estranha metáfora, assassinos da sua posteridade.
Nessa altura, Augusto era já um homem idoso, com toda a petulância e mau humor de um velho que,
durante toda a vida, esteve à frente dos acontecimentos. Perguntoulhes se tinham tido alguma alucinação
de que eram Virgens Vestais. Pelo menos uma Virgem Vestal dormia sozinha, o que era mais do que
qualquer deles fazia. Seria que lhe podiam explicar por que razão, em vez de partilharem as suas camas
com mulheres decentes da sua classe, gerando nelas filhos saudáveis, desperdiçavam toda a sua energia
viril com escravas sebosas e prostitutas sórdidas asiáticogregas? E, a acreditar naquilo que ouvia, a
companhia que levavam para a cama para as suas diversões nocturnas era, na maior parte dos casos, uma
dessas criaturas com uma profissão repelente que ele nem iria nomear, para que o facto de admitir a sua
existência na Cidade não pudesse ser tomado como aceitação. Por sua vontade, um homem que se
esquivasse às suas obrigações sociais e, simultaneamente, vivesse uma vida de deboche sexual, deveria ser
submetido às mesmas severas punições que uma Vestal que esquecia os seus votos ser enterrado vivo.
Em relação aos homens casados, na altura eu fazia parte desse número, feznos o mais esplêndido elogio,
abrindo os braços como se nos quisesse abraçar.
Sois muito poucos, em comparação com o número de habitantes da Cidade. Sois bem menos numerosos
do que os vossos companheiros daquele lado, que não se mostram dispostos a cumprir os seus deveres
sociais naturais. No entanto, por esta mesma razão, o meu louvor para vós é ainda maior e estouvos
duplamente grato por vos terdes mostrado obedientes aos meus desejos e por terdes feito tudo o que
podíeis para dar homens a esta Cidade. É através de vidas vividas desta maneira que os romanos do futuro
se tornarão uma grande nação. A princípio, éramos um mero punhado, como sabeis, mas quando
começámos a casarnos e a gerar filhos, conseguimos rivalizar com os estados vizinhos, não apenas na
masculinidade dos nossos cidadãos, mas na quantidade da nossa população. Temos que nos lembrar
sempre disto. Temos que consolar a parte
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mortal da nossa natureza com uma interminável sucessão de gerações, como portadores de archotes numa
corrida, para que, através uns dos outros, possamos imortalizar o lado da nossa natureza em que não
alcançamos a felicidade divina. Foi principalmente por esta razão que o primeiro Deus que nos criou
dividiu a raça humana em duas partes: Fez uma das metades masculina e a outra feminina, implantando
nessas metades o desejo uma pela outra, tornando as suas relações frutíferas para que, através da
procriação contínua, ele possa, de certa forma, tornar a própria mortalidade imortal. Na verdade, a tradição
diz que alguns dos próprios Deuses são machos e outros fêmeas e que estão todos ligados por laços
sexuais de parentesco. Portanto, como vedes, mesmo entre esses seres, que na realidade não necessitam de
tal estratagema, o casamento e a gestação de filhos foram aprovados como um costume nobre.
Eu tinha vontade de rir, não só porque estava a ser elogiado por aquilo que me tinha sido imposto bem
contra minha vontade em breve vos falarei de Urgulanila, com quem estava casado na altura , mas
porque toda aquela questão era uma farsa total. De que servia Augusto dirigirse a nós daquela forma,
quando ele sabia muito bem que não eram os homens que estavam a esquivarse, como ele dizia, mas as
mulheres? Se ele tivesse convocado as mulheres, talvez tivesse conseguido alguma coisa, falando com
elas da maneira certa.
Lembrome de ter ouvido uma vez duas das libertas de minha mãe discutirem o casamento moderno do
ponto de vista de uma mãe de família. O que é que a mulher ganhava com isso? perguntavam. A moral
era agora tão permissiva que já ninguém tomava o casamento a sério. É certo que alguns homens
antiquados respeitavamno o suficiente para terem preconceitos contra o facto dos seus amigos ou criados
fazerem filhos nas mulheres deles; é também certo que algumas mulheres antiquadas respeitavam
suficientemente os sentimentos dos maridos e tinham o maior cuidado em não se deixar engravidar por
nenhum dos amantes. Mas, em regra, qualquer mulher bonita hoje em dia podia dormir com qualquer
homem que quisesse. Se se casasse e depois se cansasse do marido, como geralmente acontecia, e quisesse
outra pessoa com quem se pudesse divertir, podia vir a ter que enfrentar o orgulho ou o ciúme do marido.
E, de uma maneira geral, também não ficava em melhor situação financeira depois de casar. O seu dote
passava para as mãos do marido, ou do sogro como chefe da família, caso ainda estivesse vivo; e um
marido, ou sogro, era habitualmente uma pessoa mais difícil de manobrar do que um pai ou um irmão
mais velho, cujos pontos fracos ela já conhecia há muito. Estar casada, apenas representava o assumir de
tremendas responsabilidades. Quanto aos filhos, quem é que queria têlos? Interferiam com a saúde e os
divertimentos da mulher durante vários meses antes do nascimento e, mesmo que arranjasse uma ama para
eles logo a seguir,
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precisava de tempo para recuperar da situação desgraçada do parto; acontecia muitas vezes, depois de ter
tido mais de dois filhos, que isso lhe arruinava a figura. Basta ver como a bela Júlia tinha mudado depois
de satisfazer obedientemente o desejo de Augusto de ter descendentes. E o marido de uma dama, caso ela
gostasse dele, não podia comprometerse a manter à distância as outras mulheres durante todo o período
de gravidez dela e, de qualquer forma, ele pouco ligava à criança depois dela nascer. Ainda por cima,
como se isso não bastasse, as amas eram terrivelmente descuidadas e era frequente o bebé morrer. Era
uma bênção os médicos gregos serem tão habilidosos, se a coisa não tivesse ido longe demais eles eram
capazes de desembaraçar uma dama de uma criança não desejada em dois ou três dias, e ninguém tinha
que se preocupar ou que saber. Claro que algumas mulheres, mesmo as mais modernas, ansiavam por
crianças de uma forma antiquada, mas podiam sempre comprar uma criança para adopção para entrar na
família do marido, de alguém com um nascimento decente mas a quem os credores faziam a vida negra...
Augusto deu à Nobre Ordem dos Cavaleiros a permissão de casar com mulheres do povo, mesmo com
libertas, mas isto não melhorou muito as coisas. Os cavaleiros, mesmo que se casassem, casavam por
causa dos dotes, não pelos filhos ou por amor, e uma liberta não era um grande partido; além disso, os
cavaleiros, especialmente aqueles que tinham ascendido recentemente à ordem, tinham fortes objecções a
casar com alguém de condição inferior. Nas famílias da antiga nobreza a dificuldade era ainda maior. Não
só havia menos mulheres entre as quais escolher dentro do grau de parentesco correcto, como a cerimónia
do casamento era mais estrita. A mulher ficava de forma mais absoluta sob o poder do chefe da família
para a qual entrava. Qualquer mulher sensata pensava duas vezes antes de se comprometer com tal
contrato, para o qual não havia outra saída além do divórcio; e, depois do divórcio, tornavase difícil
recuperar a propriedade que tinha trazido como dote. Nas famílias que não eram propriamente as antigas
famílias nobres, no entanto, uma mulher podia casar legalmente com um homem e, mesmo assim, manter
se independente e ter o controlo das suas propriedades se ela desejasse, poderia estipular que dormiria
três noites do ano fora da casa do marido, pois esta condição interrompia o direito do marido sobre ela
como um bem permanente. As mulheres gostavam desta forma de casamento por razões óbvias, as
mesmas pelas quais ela desagradava aos maridos. A prática começou entre as famílias mais baixas da
Cidade, mas foi subindo gradualmente e, em breve, tornouse regra em todas as famílias, com excepção
das da antiga nobreza. Aqui, havia uma razão religiosa que se lhe opunha. Os sacerdotes do Estado eram
escolhidos nestas famílias e, pela lei religiosa, um sacerdote tinha que ser um homem casado, da forma
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mais rigorosa, e filho igualmente de um casamento que obedecesse aos mais rigorosos preceitos. Com o
passar do tempo, candidatos adequados para o sacerdócio tornaramse cada vez mais difíceis de encontrar.
Por fim, havia vagas nos colégios de sacerdotes que não se conseguiam preencher e era preciso fazer
alguma coisa; portanto, os legistas arranjaram uma solução. As mulheres de posição foram autorizadas, ao
contrair casamentos na forma antiga, a estipular que a entrega completa delas próprias e da sua
propriedade ”era coisa sagrada” e que, de outra forma, gozavam de todos os benefícios do casamento
livre.
Mas isso foi mais tarde. Entretanto, o melhor que Augusto podia fazer, além da penalização legal dos
celibatários e homens casados sem filhos, era pressionar os chefes de família para casarem os seus jovens
(com instruções para que crescessem e se multiplicassem) enquanto eram ainda demasiado jovens para
compreender aquilo a que se comprometiam ou para fazer qualquer coisa além de obedecer. Portanto, para
dar um bom exemplo, todos nós, os membros mais jovens das famílias de Augusto e Lívia, ficámos noivos
e casámos o mais cedo possível. Pode parecer estranho, mas Augusto foi bisavô com a idade de cinquenta
e quatro anos e foi trisavô antes de morrer, com a idade de setenta e seis; Júlia, também em consequência
do seu segundo casamento, teve uma neta com idade casadoira antes dela própria ultrapassar a idade em
que podia ter filhos. As gerações sobrepunhamse um tanto desta forma e a árvore genealógica da família
imperial rivalizava em complexidade com a do Olimpo. Isto não apenas por causa das adopções
frequentes e do casamento de membros com um grau de parentesco mais próximo do que o costume
religioso na verdade permitia na verdade, a família Imperial estava entretanto a tornarse superior à lei ,
mas porque, logo que um homem morria, a sua viúva era levada a casar de novo, sempre no mesmo
pequeno círculo de relações. Farei agora os possíveis para aclarar as coisas neste ponto, sem me alongar
demasiado.
Mencionei os filhos de Júlia (os principais herdeiros de Augusto, agora que a própria Júlia tinha sido
exilada e cortada do seu testamento), designadamente, Caio, Lúcio e Póstumo, e as duas filhas, Júlia e
Agripina. Os membros mais jovens da família de Lívia eram o filho de Tibério, Castor, e os seus três
primos directos, a saber, o meu irmão Germânico, a minha irmã Livila e eu próprio. Mas não posso
esquecer a neta de Júlia
na ausência de qualquer marido possível saído da família de Lívia, Julila casou com um senador
abastado chamado Emílio (seu primo em primeiro grau por um casamento anterior de Escribónia) e tinha
lhe dado uma filha chamada Emília. O casamento de Julila foi infeliz, pois Lívia levava a mal que uma
neta de Augusto casasse com alguém que não fosse seu neto; mas, como não tardareis a ver, isso não a
incomodou por muito tempo. Entretanto, Germânico casou com Agripina, uma rapariga
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séria e bonita de quem ele aliás já gostava havia muito. Caio casou com a minha irmã Livila, mas morreu
pouco depois, sem deixar filhos. Lúcio, que estivera noivo de Emília sem ter chegado a casar, já tinha
morrido.
Com a morte de Lúcio, pôsse a questão de encontrar um casamento adequado para Emília. Augusto tinha
a noção perspicaz de que Lívia tencionava escolher como marido para Emília nem mais nem menos do
que eu próprio, mas ele tinha uma grande ternura pela pequena e não podia suportar a ideia de a casar com
uma criatura enfermiça como eu. Resolveu oporse a essa ligação: por uma vez, prometeu a si mesmo que
Lívia não levaria a sua avante. Aconteceu pouco depois da morte de Lúcio que Augusto estava a jantar
com Medulino, um dos seus generais mais idosos, cuja descendência datava do ditador Camilo. Medulino
disselhe, sorrindo, depois das taças de vinho terem sido cheias várias vezes, que tinha uma jovem neta de
quem gostava muito. Ela mostrara de repente um progresso surpreendente nos seus estudos literários e
tinha conhecimento de que devia agradecer esse facto a um jovem parente do seu muito ilustre conviva.
Augusto ficou admirado.
Quem poderá ser? Não ouvi falar em nada. O que é que se passa? Tratase de um caso amoroso com
tempero de literatura?
Sim, uma coisa desse género. disse Medulino, sorrindo Falei com o jovem e, apesar dos seus
infortúnios e incapacidades de ordem física, não posso deixar de gostar dele. É de uma natureza franca e
nobre e, como jovem estudante, causoume uma impressão profunda.
Augusto perguntou, incrédulo:
O quê, não estás a falar do jovem Tibério Cláudio?
Sim, esse mesmo, disse Medulino.
O rosto de Augusto iluminouse com uma resolução repentina e ele perguntou de forma mais apressada do
que era permitido pela decência:
Escuta, Medulino, meu velho amigo, terias alguma objecção a que
ele se tornasse marido da tua neta? Se concordares com essa união, terei todo o prazer em a proporcionar.
O jovem Germânico é agora nominalmente o chefe da família, mas, em questões como esta, ele recebe o
conselho dos mais velhos. Bom, não é qualquer rapariga que consegue ultrapassar a repugnância física por
esse pobre aleijado, surdo e gago, e Lívia e eu próprio temos um sentimento de delicadeza natural em o
tornar noivo de qualquer jovem. Mas se a tua neta, de sua própria vontade... Medulino disse:
Foi ela própria que me falou deste casamento e pesou a questão muito cuidadosamente. Ela dizme que o
jovem Tibério Cláudio é modesto, sincero e bondoso; e que o facto de ser coxo nunca lhe permitirá ir para
a guerra e ser morto...
Ou correr atrás de outras mulheres, acrescentou Augusto, rindo.
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E que a surdez é apenas de um lado e, quanto à sua saúde, de uma maneira geral...
Suponho que a pequena atrevida já percebeu que ele não é aleijado naquela parte do corpo pela qual as
esposas honestas mostram a maior solicitude? Sim; porque não seria ele capaz de lhe dar filhos
perfeitamente saudáveis?! O meu velho garanhão coxo e sibilante, Bucéfalo, foi pai de mais triunfadores
de corridas de carros do que qualquer outro cavalo de Roma. Mas, brincadeiras aparte, Medulino, a tua é
uma casa muito ilustre e a família de minha mulher terá todo o orgulho em se ligar a ela pelo casamento.
Falas sério ao dizer que aprovas essa união?
Medulino disse que a rapariga podia fazer um casamento muito pior; mesmo pondo de parte a honraria
inesperada de se ligar dessa forma ao Pai da Pátria.
Ora Medulina, a neta, foi o meu primeiro amor, e nunca, juro, se viu uma criança tão bela no mundo
inteiro. Conhecia numa tarde de Verão no Jardim de Salusto, onde fui levado por Sulpício na ausência de
Atenodoro, que não estava a sentirse bem. A filha de Sulpício era casada com o tio de Medulina, Fúrio
Camilo, um soldado distinto que foi Cônsul seis anos mais tarde. Quando a vi pela primeira vez, senti um
choque de surpresa, não apenas pela sua beleza, mas pela aparição repentina, pois ela surgiu do lado em
que eu era surdo, enquanto lia um livro; quando levantei os olhos, ela estava ali inclinada sobre mim,
rindo da minha preocupação. Era esbelta, com cabelos negros e abundantes, pele branca e os olhos de um
azul muito escuro. Todos os seus movimentos eram rápidos como os de um pássaro.
Como te chamas? perguntou em tom cordial.
Tibério Cláudio Druso Nero Germânico.
Deuses, tudo isso! O meu é Medulina Camila. Que idade tens?
Treze, respondi, dominando bem a minha gaguez.
Eu só tenho onze, mas aposto que sou capaz de correr mais depressa que tu até àquele cedro e voltar.
Então és campeã de corridas?
Corro mais que qualquer rapariga em Roma e até mesmo que os meus irmãos mais velhos.
Bom, aqui acho que vais ganhar por defeito. Eu não posso correr, sou COXO.
Oh, coitado. Mas como foi que vieste até aqui? A coxear todo o caminho?
Não, Camila, vim numa liteira, como um velho preguiçoso.
Porque me chamas pelo meu segundo nome?
Porque é o mais apropriado.
Como é que chegaste a essa ideia, espertinho?
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Porque, entre os etruscos, Camila é o nome que eles dão às jovens sacerdotisas caçadoras dedicadas a
Diana. Com um nome como Camila, só se pode ser campeã de corridas.
É interessante. Nunca tinha ouvido isso. A partir de agora, vou fazer com que todos os meus amigos me
tratem por Camila.
E a mim, tratame por Cláudio, está bem? Esse é o nome indicado para mim. Significa aleijado. A minha
família geralmente tratame por Tibério e isso não está certo, porque o Tibre corre muito rápido.
Ela riuse.
Está bem, Cláudio. Agora, dizme o que fazes durante todo o dia, se não podes andar por aí a correr com
os outros rapazes?
Passo a maior parte do tempo a ler e a escrever. já li dezenas de livros este ano e só estamos em junho.
Este é em grego.
Ainda não sei ler grego. Apenas conheço o alfabeto. O meu avô está aborrecido comigo eu não tenho
pai, sabes , diz que sou preguiçosa. Claro que compreendo o grego quando ouço alguém falar: temos
sempre que falar grego às refeições e quando temos visitas. Que livro é esse?
É parte da história de Túcídides. Esta passagem conta como um político, um espirituoso chamado Cléon,
começou a criticar os generais que estavam a bloquear OS espartanos numa ilha. Disse que não estavam a
dar tudo por tudo e que, se ele fosse general, traria consigo toda a força espartana, como cativos, em vinte
dias. Os atenienses estavam tão fartos de o ouvir que o nomearam para comandar as tropas.
Que ideia tão engraçada. E o que aconteceu?
Ele manteve a sua promessa. Escolheu um bom oficial do estadomaior e disselhe que lutasse da
maneira que quisesse, desde que ganhasse a batalha; o homem sabia o que estava a fazer e, por isso, no
espaço de vinte dias, Cléon trouxe de volta para Atenas cento e vinte espartanos da mais alta posição.
Camila disse:
Ouvi o meu tio Fúrio dizer que o chefe mais inteligente é aquele que escolhe pessoas inteligentes para
pensarem por ele. Depois, acrescentou, Tu deves ser muito sensato, Cláudio.
A opinião geral é que eu sou um perfeito tolo e, quanto mais leio, mais tolo eles pensam que sou.
Eu acho que és muito ajuizado. Contas as coisas de uma maneira tão interessante!
Mas gaguejo. A minha língua também é claudiana.
Talvez seja só uma questão nervosa. Tu não conheces muitas raparigas, pois não?
Não, disse eu, e tu és a primeira que conheço que não se riu de mim. Não poderíamos encontrarnos
de vez em quando, Camila? Tu
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não podes ensinarme a correr, mas eu posso ensinarte a ler grego. Gostavas?
Sim, gostava muito. Mas ensinasme a ler em livros interessantes?
Em qualquer livro que tu queiras. Gostas de história?
Acho que o que eu gosto mais é de poesia; na história, há muitas datas e nomes para recordar. A minha
irmã mais velha adora os poemas de amor de Parténio. já leste alguns?
Alguns, mas não gosto. É tudo muito artificial. Eu gosto de livros reais.
Eu também. Mas há algum livro grego de poemas de amor que não seja artificial?
Há Teócrito. Gosto muito dele. Pede à tua tia que te traga aqui amanhã à mesma hora, que eu trago o
Teócrito e podemos começar imediatamente.
Garantes que não é aborrecido?
Não, é muito bom.
Depois disto, passámos a encontrarnos no jardim quase todos os dias, sentávamonos juntos à sombra,
líamos Teócrito e conversávamos. Obriguei Sulpício a prometerme que não falaria naquilo a ninguém,
com medo que Lívia viesse a saber e me impedisse de continuar a ir. Camila disse um dia que eu era o
rapaz mais gentil que ela conhecia e que gostava mais de mim do que de todos os amigos do irmão. Então,
eu disselhe que gostava muito dela; tendo ficado muito satisfeita, beijoume timidamente. Perguntoume
se haveria alguma possibilidade de virmos a casar um com o outro. Disseme que o avô faria qualquer
coisa por ela e que, um dia, o ia trazer aos jardins para nos apresentar; mas estaria Augusto de acordo?
Quando lhe disse que não tinha pai e que tudo dependia de Augusto e Lívia, ela ficou deprimida. Até aí,
não tínhamos falado muito sobre famílias. Ela nunca ouvira nada de bom acerca de Lívia, mas eu dísselhe
que era possível que ela consentisse, porque a minha pessoa lhe era de tal modo desagradável que não me
parecia que se importasse muito com o que eu pudesse fazer, desde que não a envergonhasse,
Medulino era um homem directo e digno e tinha qualquer coisa de historiador, o que tornava a
conversação entre nós muito fácil. Ele fora oficial superior do meu pai na sua primeira campanha e sabia
muitas histórias sobre ele, muitas das quais anotei, agradecido, para a minha biografia. Um dia,
começámos a falar do antepassado de Camila, Camilo, e, quando me perguntou qual a acção de Camilo
que eu mais admirava, disselhe:
Quando o mestreescola traiçoeiro de Faléria atraiu as crianças que tinha à sua guarda para os muros de
Roma, dizendo que os Falerienses aceitariam quaisquer condições para as ter de volta, Camilo desdenhou
a oferta. Mandou que o despissem e lhe amarrassem as mãos atrás das costas e deu aos rapazes varas e
açoites para fustigarem o traidor e obrigálo a regressar. Não foi magnífico?
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Ao ler esta história, eu tinha imaginado o mestreescola como Catão, os rapazes como Póstumo e eu
próprio e, por isso, o meu entusiasmo por Camilo era um pouco confuso. Mas Medulino ficou satisfeito.
Quando foi pedida a Germânico a sua aprovação para o nosso casamento, ele deua com satisfação, pois
eu tinhalhe contado do meu amor por Camila; e o meu tio Tibério não levantou objecções; a minha avó
Lívia escondeu a irritação, como de costume, e felicitou Augusto por ter sido tão rápido a pegar na palavra
de Medulino ele devia estar bêbedo, disse, para ter aprovado tal ligação, embora o dote fosse pequeno e a
aliança grande para um homem da sua família. A casa de Camilo não tinha gerado homens com
capacidades ou reputação notáveis havia muitas gerações.
Germânico disseme que tudo tinha sido arranjado e que a cerimónia do noivado teria lugar no próximo
dia fasto. Nós, os romanos, somos muito supersticiosos quanto aos dias; ninguém nem sequer sonharia,
por exemplo, fazer uma batalha, casar ou comprar uma casa no dia 16 de Julho, o dia do desastre de Ália,
no tempo de Camilo. Mal conseguia acreditar na minha boa sorte. Também eu receara que me obrigassem
a casar com Emília, uma rapariguinha malhumorada e afectada, que imitava a minha irmã Livila a
arreliarme e a fazer de mim parvo sempre que vinha a nossa casa de visita, o que acontecia muitas vezes.
A cerimónia do noivado, insistiu Lívia, devia ser tão discreta quanto possível, porque não podia ter
confiança em que eu não fizesse figuras tristes se me encontrasse perante uma multidão. Eu também
preferia que assim fosse: odiava cerimónias. Apenas as necessárias testemunhas estariam presentes e não
haveria festa; unicamente, seria efectuado o sacrifício ritual habitual de um carneiro, cujas entranhas
seriam depois examinadas, para averiguar se os auspícios eram favoráveis. Claro que iam ser; Augusto,
oficiando como sacerdote, em honra de Lívia, ocuparseia disso. Depois, seria assinado um contrato para
a segunda cerimónia, que teria lugar logo que eu atingisse a idade, com estipulações para o dote. Camila e
eu daríamos as mãos, beijarnosíamos e, depois, eu darlheia um anel de ouro e ela regressaria à casa do
avô tranquilamente, como tinha vindo, sem qualquer séquito de acompanhantes a cantar.
Ainda agora me dói escrever sobre esse dia. Eu estava muito nervoso, com a minha grinalda e uma túnica
limpa, ao lado de Germânico, junto do altar da família, esperando que Camila aparecesse. Ela estava
atrasada. Estava muito atrasada. As testemunhas começavam a impacientarse e a criticar a falta de
cortesia do velho Medulino, deixandoos à espera numa ocasião cerimonial como aquela. Finalmente, o
porteiro anunciou o tio de Camila, Fúrio, e este entrou, com o rosto lívido e vestido de luto. Após um
breve discurso de saudação e desculpas, dirigido a Augusto e ao resto da companhia pelo seu atraso e
aparição agourenta, disse:
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Aconteceu uma grande calamidade. A minha sobrinha está morta. Morta! exclamou Augusto. Que
brincadeira é esta? Recebemos uma mensagem há apenas meia hora que ela já vinha a caminho.
Morreu envenenada. Uma multidão reuniuse em frente da porta, como acontece com as multidões,
quando ouviram dizer que a filha da casa ia sair para o seu noivado. Quando a minha sobrinha apareceu,
todas as mulheres se comprimiram cheias de admiração à volta dela. A dada altura, soltou um pequeno
grito, como se alguém a tivesse pisado, mas ninguém ligou importância e ela entrou para a liteira. Ainda
não tínhamos chegado ao fim da rua quando minha mulher, Sulpícia, que a acompanhava, a viu
empalidecer e lhe perguntou se estava assustada, ao que respondeu: ”Oh, tia, aquela mulher espetoume
uma agulha no braço e eu sintome fraca.” Essas foram as suas últimas palavras, meus amigos. Morreu
poucos minutos depois, Apresseime a vir para cá logo que mudei de fato. Desculparmeão.
Eu larguei a chorar e comecei a soluçar histericamente. A minha mãe, furiosa com a minha conduta
deselegante, disse a um dos libertos que me levasse para o meu quarto, onde fiquei dias a fio, com uma
febre nervosa e incapaz de comer ou dormir. Se não fosse o conforto que esse querido Póstumo me deu,
acho que teria enlouquecido. A assassina nunca foi encontrada e ninguém conseguia explicar que motivo
ela podia ter tido. Lívia informou Augusto alguns dias mais tarde que, segundo relatos que pareciam
fiáveis, uma das mulheres que se encontravam na multidão era uma rapariga grega que considerava, sem
dúvida infundadamente, ter sido lesada pelo tio da jovem e que, provavelmente, teria decidido vingarse
daquela forma monstruosa.
Quando já me encontrava de novo bem, ou não mais doente que o habitual, Lívia queixouse a Augusto
que a morte da jovem Medulina Camila tinha sido um acontecimento muito infeliz. Apesar do perdoável
sentimento de Augusto contra tal casamento, ela receava que a jovem Emília tivesse agora que acabar por
ficar noiva daquele seu impossível neto: toda a gente, disse, tinha ficado surpreendida por essa ligação não
ter sido efectivada antes. Assim, como de costume, Lívia levou a sua avante. Algumas semanas mais
tarde, fiquei noivo de Emília e vivi a cerimónia sem desonra, porque o desgosto da morte de Camila me
tornara completamente indiferente. Os olhos de Emília estavam vermelhos quando ela chegou, mas as
lágrimas eram de raiva, não de desgosto.
Agora, falando de Póstumo, pobre criatura, ele estava apaixonado por minha irmã Livila, que via com
frequência porque ela tinha ido viver para o palácio quando casara com seu irmão Caio, continuando por
lá. Era ideia corrente, de uma maneira geral, que acabariam por casar, para reatar a ligação entre as
famílias, rompida pela morte do irmão. Livila sentiase lisonjeada com a devoção apaixonada que ele lhe
mostrava.
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Desafiavao constantemente, mas não sentia amor por ele. A sua escolha era Castor um indivíduo cruel,
dissoluto, bem parecido, que parecia feito para ela. Eu sabia do entendimento entre Livila e Castor, que
tinha descoberto por acidente; e isto deixavame muito infeliz por causa de Póstumo, tanto mais que este
não tinha suspeitas sobre o carácter dela e eu não ousava dizerlhe nada. Sempre que Livila, eu e ele
estávamos juntos, ela costumava mostrarme uma afeição fingida, que parecia tão tocante a Póstumo,
quanto me irritava a mim. Sabia bem que, logo que ele se afastasse, ela retomaria as suas brincadeiras
malévolas. Lívia teve conhecimento da intriga entre Livila e Castor e passou a vigiálos cuidadosamente:
uma noite, foi recompensada com uma mensagem de um criado de confiança, segundo a qual Castor
acabava de trepar a janela de Livila pela varanda. Ela pôs um guarda armado na varanda e, depois, bateu à
porta de Livila, chamandoa pelo nome. Passado um minuto, mais ou menos, Livila abriu a porta, fingindo
que estava a dormir profundamente; mas Lívia entrou e foi encontrar Castor atrás do reposteiro. Falou
lhes abertamente e parece terlhes dado a entender que o assunto não seria transmitido aAugusto, que
certamente os enviaria para o exílio, mas apenas sob certas condições; e, se essas condições fossem
estritamente observadas, ela arranjaria mesmo com que eles se casassem. Não muito tempo depois do meu
noivado com Emília, Lívia arranjou as coisas de tal forma com Augusto que Póstumo ficou noivo, com
grande desgosto seu, de uma rapariga chamada Domícia, minha prima em primeiro grau pelo
lado de minha mãe; e Castor casou com Livila. Este foi o ano em que Tibério e Póstumo foram adoptados
como filhos por Augusto.
Lívia considerava Julila e o marido Emílio como um possível obstáculo aos seus desígnios. Entretanto,
teve a sorte de arranjar provas de que Emílio e Cornélio, neto de Pompeu o Grande, estavam a conspirar
para retirar o poder a Augusto e dividir os seus cargos entre eles próprios e alguns exCônsules, entre eles
Tibério, embora este ainda não tivesse sido consultado. A conspiração não foi muito longe, porque o
primeiro exCÔnsul que Emílio e Cornélio contactaram recusouse a ter que ver com o assunto. Augusto
não puniu Emílio nem Cornélio com a morte ou o exílio. O facto deles terem conseguido tão pouco apoio
para a conspiração fora uma boa prova da força dele e, ao poupálos, mostrouse ainda mais forte.
Limitouse a chamálos à sua presença e a repreendêlos pela sua loucura e ingratidão. Cornélio caíulhe
aos pés e agradeceulhe de forma abjecta a clemência que demonstrara, o que levara Augusto a pedírlhe
que não continuasse a fazer de tolo. Ele não era nenhum tirano, disse, para que conspirassem contra ele ou
para que o adorassem por mostrar a clemência de um tirano; era simplesmente um funcionário estatal da
República Romana, a quem tinham sido temporariamente concedidos amplos poderes para a melhor
manutenção da ordem. Era evidente que Emílio o tinha
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desencaminhado com ideias erróneas. A melhor cura para tal disparate seria que Cornélio se tornasse
Cônsul no ano seguinte, satisfazendo assim a sua ambição de alcançar um poder igual ao seu; pois não
havia posto mais elevado que o de Cônsul em Roma (teoricamente, isso era verdade). Emílio era
orgulhoso e mantevese de pé; Augusto disselhe que, como seu parente pelo casamento, devia ter
mostrado mais decência, e que, como exCônsul, devia ter mostrado maior sensatez. Por isso lhe retirava
todas as honras.
O lado divertido deste caso foi Lívia ter alcançado todos os créditos pela clemência de Augusto,
afirmando que tinha suplicado, com ternura de mulher, pelas vidas dos dois conspiradores, os quais, disse,
Augusto decidira praticamente transformar num exemplo. Obteve o consentimento dele para a publicação
de um pequeno livro que escrevera chamado Debate de Almofada sobre a Força e a Gentileza, cheio de
toques íntimos. Augusto é apresentado como inquieto e preocupado e incapaz de dormir. Lívia pedelhe
com doçura que fale abertamente e, juntos, analisam a questão do tratamento adequado para Emílio e
Cornélio.
Augusto explica que não deseja condenálos à morte; no entanto, receia ter que o fazer, porque, se os
deixar impunes, irão pensar que tem medo deles e outros se sentirão tentados a conspirar contra ele.
Encontrarse permanentemente sob a necessidade de exercer vingança e infligir castigos é uma posição
muito dolorosa para qualquer homem de honra, minha querida esposa.
Lívia responde:
Estais absolutamente certo e eu tenho um conselho para vos dar; isto é, se estíverdes disposto a aceitálo
e se não levardes a mal que ouse, embora seja mulher, sugerirvos qualquer coisa que mais ninguém, nem
mesmo os vossos amigos mais íntimos, ousariam sugerir.
Falai, seja o que for. Lívia responde:
Dirvosei sem hesitação, pois tenho igual quinhão da vossa boa ou má sorte e, enquanto estiverdes em
segurança, também tenho a minha parte no vosso reinado; enquanto que, se algo de mal vos acontecer, o
que Deus não permita, isso será igualmente o meu fim... E aconselha o perdão. Palavras brandas
afastam a ira, da mesma forma que palavras ásperas excitam a raiva, mesmo num espírito bondoso. O
perdão fará derreter o coração mais arrogante, como o castigo fará endurecer mesmo o mais humilde...
Não quero dizer com isto que tenhamos que poupar todos os criminosos sem distinção, pois existe aquilo
que se chama depravação incurável e persistente, perante a qual a bondade é desperdício. Um homem que
ofende desta forma deve ser retirado imediatamente, como um cancro no corpo político. Mas no caso dos
restantes, cujos erros, cometidos, intencionalmente ou não, são devidos à juventude, à
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ignorância ou a ideias erróneas, devemos, na minha opinião, limitarnos a repreendêlos ou
castigálos da forma mais branda possível. Portanto, façamos essa experiência começando com
estes mesmos homens.
Augusto aplaude a sensatez dela e confessase persuadido. Mas notem o comentário
tranquilizador para o mundo que, com a morte de Augusto, terminará o governo de Lívia; e
notem também, e não esqueçam, a expressão ”depravação incurável e persistente.” A minha avó
Lívia era astuta.
Depois, Lívia disse a Augusto que o casamento proposto entre Emília e a minha pessoa tinha que
ser cancelado, como sinal de desagrado Imperial com os pais dela. Augusto ficou encantado em
concordar com isto, porque Emília tinhaselhe queixado amargamente da sua pouca sorte em ter
que casar comigo. Lívia não tinha agora grande coisa a recear de Julila, que Augusto suspeitava
de ser cúmplice nos esquemas do marido. Mas, antes de terminar, tinha também que se certificar
em relação a ela. Entretanto, tinha que pagar uma dívida de honra à sua amiga Urgulanila, uma
mulher que ainda não mencionei, mas que é uma das figuras mais desagradáveis da minha
história.
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CAPíTULO VIII
Urgulanila era a única confidente de Lívia e estava ligada a ela pelos mais fortes laços de interesse e
gratidão. Tinha perdido o marido, partidário do Jovem Pompeu, nas Guerras Civis e, com o filho ainda
criança, fora abrigada por Lívia, então casada com o meu avô, da brutalidade dos soldados de Augusto.
Lívia, ao casar com Augusto, insistira em que ele restituísse a Urgulanila as propriedades do marido que
tinham sido confiscadas e a convidasse a ir viver com eles, como um membro da família. Por influência de
Lívia porque, em nome de Augusto, Lívia podia forçar Lépido, o Alto Pontífice, a fazer as nomeações
que desejasse , ela foi colocada numa posição de autoridade espiritual sobre todas as mulheres nobres
casadas de Roma, Tenho que explicar isto. Todos os anos, nos princípios de Dezembro, estas mulheres
tinham que estar presentes num importante sacrifício à Boa Deusa, presidido pelas Virgens Vestais, e de
cuja boa execução dependeria a riqueza e segurança de Roma nos doze meses seguintes. Nenhum homem
estava autorizado a profanar estes mistérios, sob pena de morte. Lívia, que se pusera nas boas graças das
Vestais ao reconstruir o seu Convento, decorandoo num estilo luxuoso e conseguindolhes, através de
Augusto, muitos privilégios do Senado, sugeriu à Vestal principal que a castidade de algumas das
mulheres que assistiam aos sacrifícios não estava acima de suspeitas. Ela disse que os problemas de Roma
durante as Guerras Civis podiam muito bem deverse à ira da Boa Deusa, perante a lascívia daqueles que
assistiam aos seus mistérios. Sugeriu ainda que, se fosse feito um juramento solene a qualquer mulher que
confessasse ter cometido um lapso contra a austeridade moral, que a sua confissão não seria repetida a
qualquer ouvido humano, não sendo ela assim envolvida em desgraça pública; haveria assim uma maior
probabilidade da Deusa ser servida apenas por mulheres castas, apaziguando assim a sua ira.
A Chefe das Vestais, uma mulher de espírito religioso, aprovou a ideia, mas inquiriu da autoridade de
Lívia para esta inovação. Lívia disselhe que vira a Deusa num sonho na noite anterior e que ela lhe pedira
que, uma vez que as próprias Vestais não tinham qualquer experiência em questões de sexo, uma viúva de
boa família devia ser nomeada Madre Confessora para esse mesmo efeito. A Chefe das Vestais perguntou
se os
101
pecados confessados deviam ficar Impunes. Lívia replicou que não poderia ter exprimido uma opinião se,
por sorte, a Deusa não tivesse feito uma declaração sobre este ponto no mesmo sonho: que à Madre
Confessora devia ser conferido o poder de prescrever castigos expiatórios e que os castigos deviam ser
uma questão de confiança sagrada entre a acusada e a Madre Confessora. A Chefe das Vestais, disse ela,
seria informada apenas de que tal mulher não estava em condições de tomar parte nos mistérios daquele
ano; ou que tal mulher acabava de cumprir o seu castigo. Isto convinha perfeitamente à Chefe das Vestais,
mas ela receava sugerir um nome, com medo que Lívia o recusasse. Lívia disse então que o Alto Pontífice
era, evidentemente, o homem que devia fazer a nomeação e que, se a Chefe das Vestais autorizasse, ela
lhe explicaria a questão e lhe pediria que nomeasse uma pessoa adequada, depois de realizar as cerimónias
necessárias para garantir uma escolha favorável à Deusa. Assim, Urgulanila foi escolhida e, claro, Lívia
não contou a Lépido ou a Augusto os poderes inerentes à nomeação. Falou no assunto ocasionalmente,
como de um lugar de conselheira assistente da Chefe das Vestais em questões morais, pois ”a Chefe das
Vestais, pobrezita, conhecia tão pouco do mundo.”
O sacrifício realizavase em geral na casa de um Cônsul, mas nem sempre no palácio de Augusto, porque
ele tinha uma posição superior à dos Cônsules. Isto era conveniente para Urgulanila, que fazia as mulheres
irem ao quarto dela no palácio (que estava arranjado de maneira a inspirar receio e lealdade), obrigavaas
a dizer a verdade por meio de juramentos assustadores e, quando elas tinham confessado, mandavaas
embora, enquanto pensava no castigo apropriado. Lívia, que estava no quarto escondida atrás de um
reposteiro, sugerialhe um. As duas divertiamse bastante com este jogo, que proporcionava a Lívia muitas
informações úteis e que muito a ajudava nos seus planos.
Como Madre Confessora ao serviço da Boa Deusa, Urgulanila consideravase acima da lei. Mais adiante,
contarei como uma vez, quando intimada por um senador a quem devia uma grande soma de dinheiro a
comparecer perante o magistrado no Tribunal dos Devedores, ela recusou obedecer à intimação; e como,
para evitar o escândalo, Lívia pagou a dívida. Noutra ocasião, foi citada como testemunha num inquérito
senatorial; não tendo qualquer intenção de ser interrogada, desculpouse de comparecer e um magistrado
foilhe enviado para receber por escrito o depoimento dela. Era uma velha horrenda, com o queixo fendido
e o cabelo pintado de negro com fuligem de candeeiro (o cinzento era bem visível nas raízes), e viveu até
uma idade avançada. O filho, Silvano, fora cônsul havia pouco tempo e era um daqueles que Emílio
contactara na altura da conspiração. Silvano foi direito a Urgulanila e informoua das intenções de Emílio.
Ela passou a notícia para Lívia e esta prometeu recompensálos
102
por esta valiosa informação, casando a filha de Silvano, Urgulanila, comigo, e aliandoos dessa forma à
família imperial. Urgulanila gozava da confiança de Lívia e tinha a certeza de que meu tio Tibério não
Póstumo, embora este fosse o herdeiro mais próximo de Augusto , seria o Imperador seguinte: portanto,
este casamento era ainda mais honroso do que parecia.
Eu nunca tinha visto Urgulanila. Ninguém a vira. Sabíamos que vivia com uma tia em Herculano, uma
cidade nas encostas do Vesúvio, onde a velha Urgulanila tinha propriedades, mas nunca ia a Roma, nem
mesmo de visita. Concluíamos que devia ser delicada. Mas, quando Lívia me escreveu uma das suas notas
secas e cruéis, dandome a conhecer que tinha sido decidido num conselho de Família que eu devia casar
com a filha de Silvano Pláucio e que esta era uma união mais apropriada para mim, considerando as
minhas enfermidades, do que as duas anteriormente projectadas, suspeitei de que havia alguma coisa mais
seriamente errada com esta Urgulanila do que a simples falta de saúde. O palato fendido, talvez, ou uma
mancha cor de vinho que lhe cobria metade do rosto? Fosse como fosse, uma coisa que a tornava
inapresentável. Talvez fosse aleijada como eu. Não me importaria com isso. Talvez fosse mesmo uma boa
rapariga, mas incompreendida. Podia até ser que tivéssemos muita coisa em comum. Claro que não seria a
mesma coisa que casar com Camila, mas podia, pelo menos, ser melhor do que casar com Emília.
Foi escolhido o dia para o noivado. Interroguei Germânico sobre Urgulanila, mas ele estava tão às escuras
como eu e parecia um tanto envergonhado por ter consentido no casamento sem fazer uma cuidadosa
investigação prévia. Ele estava muito feliz com Agripina e desejava que eu fosse igualmente feliz. Bom,
chegou o dia, um diafasto, e ali estava eu de novo com a minha grinalda e a túnica limpa, aguardando
junto do altar da família que a noiva chegasse.
A terceira vez é a da sorte, disse Germânico. Tenho a certeza que ela é uma beleza, a sério, e bondosa
e sensível; mesmo a pessoa certa para ti.
Mas seria que o era? Bom, na minha vida já tive que suportar muitos gracejos cruéis e de mau gosto, mas
este acho que foi o mais cruel e o pior de todos. Urgulanila era... bom, resumindo, ela estava à altura do
nome que lhe tinham dado e que é a forma latina de Herculanila. Ela era, na verdade, uma jovem Hércules
feminina. Embora apenas com quinze anos de idade, tinha mais de um metro e oitenta e cinco de altura e
ainda estava a crescer, sendo proporcionalmente larga e forte, com os maiores pés e mãos que alguma vez
vi num ser humano em toda a minha vida, com uma única excepção: o gigantesco refém parto que desfilou
num cortejo triunfal, muitos anos mais tarde. As feições dela eram regulares mas pesadas e apresentava
permanentemente uma expressão carrancuda.
103
Tinha o corpo inclinado para a frente, Falava tão lentamente como o meu tio Tibério (com quem, a
propósito, ela se parecia muito falavase mesmo que talvez fosse sua filha). Urgulanila não tinha
conhecimentos, espírito, dotes ou quaisquer qualidades atraentes. E é estranho, mas os primeiros
pensamentos que me ocorreram quando a vi foram: ”Esta mulher é capaz de me matar num acesso de
violência” e ”Vou ter muito cuidado desde o início em esconder a minha repugnância por ela e não lhe dar
motivos para que sinta qualquer ressentimento contra mim. Porque, se alguma vez ela chegar a odiarme, a
minha vida não estará segura.” Sou bastante bom como actor e, embora a solenidade da cerimónia fosse
quebrada por risos maliciosos, piadas sussurradas e expressões trocistas por parte da assistência,
Urgulanila não teve qualquer razão para me culpar por aquela falta de decoro. Depois de terminada a
cerimónia, fomos ambos chamados à presença de Lívia e Urgulanila. Quando a porta se fechou e ficámos
os dois diante delas eu próprio nervoso e desassossegado, Urgulanila maciça e inexpressiva, abrindo e
fechando os punhos enormes , a solenidade daquelas duas velhas avós maléficas evaporouse e ambas
largaram num riso incontrolável. Eu nunca tinha ouvido qualquer das duas rir daquela forma e o efeito era
assustador. Não se tratava de um riso decente e saudável, mas de um soluçar e guinchar demoníaco, como
o de duas velhas prostitutas ébrias, a assistirem a uma tortura ou crucificação.
Oh, minhas duas belezas! soluçou Lívia por fim, limpando os olhos. O que eu não daria para ver os
dois na cama juntos na vossa noite de núpcias! Seria a cena mais cómica depois do Dilúvio de Deucalion!
E o que aconteceu de particularmente engraçado nessa famosa ocasião, minha cara? perguntou
Urgulanila.
O quê, não sabes? Deus destruiu o mundo inteiro com um dilúvio, excepto Deucalion e a família e
alguns animais, que se refugiaram no cimo das montanhas. Não leste O Dilúvio, de Aristófanes? É a
minha preferida entre as peças dele. A cena tem lugar no Monte Parnasso. Vários animais estão reunidos;
infelizmente, apenas um de cada espécie e cada um deles se considera o único sobrevivente da sua
espécie. Por isso, para de alguma forma repovoar a terra com animais, eles têm que acasalar uns com os
outros e, apesar dos escrúpulos morais e das dificuldades óbvias, o Camelo é prometido, por Deucalion, à
Elefanta.
Camelo e Elefanta! Essa é boa! exclamou Urgulanila com uma risada. Olha para o pescoço comprido
de Tibério Cláudio, o corpo magro e a cara idiota e alongada. E os pés grandes da minha Urgulanila e as
enormes orelhas de abano e os olhos pequeninos, como os de um porco! Ha, Ha, Ha, Ha! E qual foi a
descendência deles? Uma girafa? Ha, Ha, Ha, Ha!
104
A peça não vai tão longe. Iris aparece no palco para fazer o discurso do mensageiro e informa que existe
outro refúgio de animais no Monte Atlas. Iris interrompe o noivado mesmo a tempo.
E o Camelo ficou decepcionado?
Muito!
E a Elefanta?
A Elefanta limitouse a fazer cara feia.
Beijaramse quando se separaram?
Aristófanes não o diz. Mas tenho a certeza que sim. Vamos, Animais. Beijaivos!
Eu fiz um sorriso idiota. Urgulanila fez cara feia.
Beijaivos, já disse, insistiu Lívia, num tom que deixava claro que tínhamos que obedecer.
Portanto beijámonos, e pusemos as duas velhas outras vez a rir histericamente. Quando já estávamos de
novo fora do quarto, sussurrei para Urgulanila:
Desculpa. Não é culpa minha.
Mas ela não respondeu; apenas me deitou um olhar mais furioso do que antes.
Ainda faltava um ano para que o casamento se realizasse, porque a família decidira que eu só atingiria a
idade aos quinze anos e meio e muita coisa podia acontecer entretanto. Se ao menos Iris entrasse em cena!
Mas não entrou. Póstumo também estava com problemas: já atingira a idade e, agora, só faltavam alguns
meses para que Domícia tivesse também idade para casar. Meu pobre Póstumo... continuava apaixonado
por Livila, embora ela estivesse casada. Mas, antes de continuar com a história de Póstumo, tenho que
contar o meu encontro com o último dos Romanos.
105
CAPÍTULO IX
O nome dele era Pólio e vou recordar exactamente as circunstâncias em que nos conhecemos, o que
aconteceu precisamente uma semana depois do meu noivado com Urgulanila. Eu estava a ler na Biblioteca
de Apolo, quando apareceram Lívio e um homenzinho idoso todo despachado, com uma túnica de
senador. Lívio dizia:
Parece portanto que mais vale abandonarmos todas as esperanças de o encontrar, a menos talvez... Bom,
ali está Sulpício! Se alguém sabe, é ele! Bom dia, Sulpício! Preciso que faças um favor a Asínio Pólio e a
mim. Há um livro em que queremos dar uma vista de olhos, um comentário de um grego chamado
Polemocles às Tácticas Militares de Políbio. Acho que me lembro de o ter encontrado aqui uma vez, mas
não está mencionado no catálogo e os bibliotecários são verdadeiramente incapazes.
Sulpício ficou um momento a mordiscar a barba e depois disse:
Tendes o nome errado. Polemócrates é o nome e ele não era grego, apesar do nome, mas judeu. Há uns
quinze anos, recordome de o ter visto ali em cima, naquela prateleira, o quarto a contar da janela, atrás, e
na etiqueta do título liase apenas Dissertação sobre Táctica. Eu vou buscálo. Não creio que, entretanto,
o tenham mudado.
Nessa altura, Lívio viume.
Olá, meu amigo, como vai isso? Conheces o famoso Asínio Pólio? Saudeios e Pólio disse:
O que estás a ler rapaz? Lixo, com certeza, pelo ar envergonhado com que o escondes. Hoje em dia, os
jovens só lêem porcarias. Voltouse para Lívio, Aposto dez moedas em como é uma porcaria do género
A Arte do Amor, ou qualquer patetice pastoral arcádica ou outra coisa do género.
Aceito a aposta, disse Lívio. O jovem Cláudio não é de todo esse tipo de jovem. Bom, Cláudio, qual
de nós dois é que ganha? Respondi, gaguejando, e dirigindome a Pólio:
Alegrame dizer, senhor, que sois vós a perder. Pólio olhoume de testa franzida, furioso:
O que é que dizes? Alegrate que seja eu a perder? Isso é maneira de falar a um velho como eu e, ainda
por cima, senador?
107
Bom, eu disseo com todo o respeito, senhor. Alegrame que sejais vós a perder. Não gostaria de ouvir
chamar lixo a este livro. É a vossa própria história das Guerras Civis e, se posso permitirme elogiálo, é
um belo livro.
A expressão de Pólio mudou. Abriuse num grande sorriso, soltou uma risada e puxou da bolsa,
empurrando as moedas para Lívio. Lívio, com quem parecia manter uma animosidade amistosa se é que
sabeis o que quero dizer , recusouas com uma insistência cheia de falsa gravidade.
Meu caro Pólio, não posso aceitar esse dinheiro. Tu estavas absolutamente certo: estes jovens hoje em
dia lêem as coisas mais vis. Nem mais uma palavra, por favor: eu concordo que perdi a aposta. Aqui estão
as minhas dez moedas de ouro e pagoas com todo o prazer.
Pólio apelou para mim.
Vamos senhor, eu não sei quem sois, mas pareceisme um rapaz com bom senso; já lestes as obras do
nosso amigo Lívio?
Sorri.
Bom, pelo menos são mais fáceis de ler.
Mais fáceis, einh? Como é isso?
Ele faz o povo da Antiga Roma comportarse e falar como se estivessem vivos agora.
Pólio estava deliciado.
Ele apanhoute, Lívio, no teu ponto mais fraco. Tu atribuis aos romanos de há sete séculos, motivos,
hábitos e falas impossivelmente modernos. Sim, é muito fácil de ler, mas não é história.
Antes de continuar a registar a sequência desta conversa, tenho que dizer algumas palavras sobre o velho
Pólio, talvez o homem mais dotado do seu tempo, mesmo mais do que Augusto. Tinha agora quase oitenta
anos, mas estava na posse plena das suas faculdades mentais e, aparentemente, com melhor saúde física
que muitos homens de sessenta. Tinha atravessado o Rubicão com Júlio César e lutado com ele contra
Pompeu; servira sob o comando do meu avô António, antes da sua disputa com Augusto, tendo sido
Cônsul e Governador da Hispânia Ocidental e da Lombardia e tendo ganho um triunfo por uma vitória nos
Balcãs. Fora amigo pessoal de Cícero, até que se decepcionou com ele, e patrono dos poetas Virgílio e
Horácio. Além de tudo isto, era um orador distinto e escritor de tragédias. Mas era melhor historiador do
que autor de tragédias ou orador, porque tinha o amor da verdade literal, chegando mesmo ao campo do
pedantismo, o que não conseguia conciliar dentro das convenções destas outras formas literárias. Com os
despojos da campanha dos Balcãs tinha fundado uma biblioteca pública, a primeira biblioteca pública de
Roma. Havia agora mais duas: aquela onde nos encontrávamos e outra denominada de Octávia, em
honra da minha avó; mas a de Pólio
108
estava muito melhor organizada para fins de leitura do que qualquer das outras.
Entretanto, Sulpício tinha encontrado o livro e, depois de lhe agradecerem, eles retomaram a discussão.
Lívio disse:
O problema de Pólio é que, quando ele escreve história, se sente obrigado a suprimir todos os
sentimentos mais belos e mais poéticos e fazer os seus personagens agirem com uma insipidez
conscienciosa e, quando põe palavras na sua boca, negalhes a mínima habilidade oratória. Pólio disse:
Sim, Poesia é Poesia, Oratória é Oratória e História é História; não se pode misturálas.
Não pode? Na verdade eu posso, atalhou Lívio. Pretendes dizerme que eu não posso escrever
História com um tema épico, porque isso é uma prerrogativa da Poesia, ou pôr belos discursos de vésperas
de campanha na boca dos meus generais, porque compor tais discursos é prerrogativa da Oratória?
É precisamente isso que quero dizer. A história é o registo verdadeiro daquilo que aconteceu, como as
pessoas viveram e morreram, aquilo que fizeram e disseram; um tema épico apenas serve para distorcer
esse registo. Quanto aos discursos dos generais, eles são admiráveis como oratória, mas terrivelmente
dissociados da história: não só não há neles nada de factual, como são inadequados. Ouvi mais discursos
de véspera de campanha do que a maior parte dos homens e, embora os generais que os faziam,
especialmente César e António, fossem notáveis oradores públicos, eram também demasiadamente bons
soldados para tentarem fazer jogos de oratória com as tropas. Falavam com eles num tom coloquial, não
oratório. Que espécie de discurso fez César antes da Batalha de Farsália? Acaso nos pediu para pensarmos
nas nossas mulheres e filhos e nos templos sagrados de Roma, nas glórias das nossas campanhas
anteriores? Céus, não! Trepou ao tronco cortado de um pinheiro, com um desses rabanetes gigantes numa
mão e um naco de pão duro na outra, gracejando entre duas mastigadelas. Nada de gracejos delicados, mas
a realidade, dita da forma mais directa: sobre quão casta era a vida de Pompeu comparada com a sua
própria vida de réprobo. As coisas que ele fez com aquele rabanete teriam feito rir um boi. Lembrome de
uma anedota licenciosa sobre como Pompeu ganhou o seu cognome de O Grande Ah, aquele rabanete! , e
outra ainda pior, sobre como ele próprio perdera o cabelo no Bazar de Alexandria. Contavate agora
qualquer delas, se não estivesse aqui este rapaz, e também porque estou certo que não entenderias bem a
intenção, já que não foste educado no acampamento de César. Nem uma palavra sobre a batalha que se
avizinhava, a não ser
109
no fim: ”Pobre velho Pompeu! Tomar armas contra Júlio César e os seus homens! Que oportunidade pode
ter!”
Não puseste nada disso na tua história, disse Lívio.
Não nas edições para o público, disse Pólio. Não sou doido. Mesmo assim, se quiseres consultar o
Suplemento particular que acabei de escrever, encontrarás tudo isso lá. Mas talvez não te dês a esse
trabalho. Eu contote o resto: César era um mimo espantoso e reproduziulhes o discurso de Pompeu à
hora da morte, quando se preparava para cair sobre a sua espada (o rabanete de novo com a extremidade
arrancada com os dentes). Invectivou os Deuses Imortais, em nome de Pompeu, por sempre permitirem
que o vício triunfasse sobre a virtude. Como eles se riam! E depois berrou: ”E não é verdade, embora
Pompeu o diga? Negai se sois capazes, malditos cães fornicadores!” E atiroulhes o meio rabanete. O riso
redobrou! Nunca houve soldados como os de César. Lembraste da canção que eles cantaram no seu
triunfo sobre os gauleses?
Trazemos de volta o careca aproveitador de putas,
Romanos, trancai em casa as vossas mulheres.
Lívio disse:
Pólio, meu caro, não estávamos a discutir a moral de César, mas a maneira correcta de escrever a
história.
Pólio replicou:
Sim, é verdade. O nosso jovem amigo inteligente estava a criticar o teu método, sob o disfarce respeitoso
de louvar a tua clareza. Rapaz, tens mais algumas acusações a fazer a este nobre Lívio?
Eu disse:
Por favor, senhor, não me façais corar. Admiro enormemente a obra de Lívio.
A verdade, rapaz! lá alguma vez o apanhaste em algumas inexactidões históricas? Parecesme um
indivíduo que lê bastante.
Prefiro não tentar...
Vamos, deita isso cá para fora. Tem que haver alguma coisa, Então eu disse:
Há uma coisa que me confunde, confesso. É a história de Porsena. Segundo Lívio, Portela não conseguiu
capturar Roma, tendo sido impedido, em primeiro lugar, pelo comportamento heróico de Horácio na ponte
e, depois, desencorajado pela espantosa ousadia de Sabela; Lívio relata que Sabela, capturado depois de
uma tentativa para assassinar
110
Porsena, enfiou a mão nas chamas do altar e jurou que trezentos romanos como ele se tinham unido por
um juramento para tirar a vida a Portela. E assim Lars Porsena fez a paz. Mas eu vi o túmulo labiríntico de
Lars Porsena em Oclusivo e há nele um friso de romanos a emergirem dos portões da Cidade, sendo
conduzidos sob um jugo. Há um sacerdote etrusco com uma tesoura a cortar as barbas dos Senadores. E
mesmo Dióniso de Halicarnasso, cuja disposição nos era muito favorável, afirma que o Senado votou para
Porsena um trono de marfim, um ceptro, uma coroa de ouro e uma túnica triunfal; o que só pode querer
dizer que lhe prestavam honras de soberano. Assim, talvez Lars Porsena tenha capturado Roma, apesar de
Horácio e Scaevola. E Aruns, o sacerdote de Cápua (dizse que ele é o último homem que sabe ler
inscrições etruscas), disseme no Verão passado que, segundo os registos etruscos, o homem que expulsou
os Tarquínios de Roma não foi Brutus, mas Porsena, e que Brutus e Colatino, os primeiros dois Cônsules
de Roma, eram apenas funcionários da cidade nomeados para receber os impostos.
Lívio ficou muito zangado.
Estou surpreendido contigo, Cláudio. Não tens respeito pela tradição romana, para dares ouvidos dessa
maneira às mentiras contadas pelos nossos inimigos antigos, para diminuir a nossa grandeza?
Eu só perguntei, respondi humildemente, o que foi que aconteceu na realidade.
Vamos, Lívio, disse Pólio, responde ao jovem estudante. O que aconteceu na realidade?
Lívio respondeu:
Noutra altura. Agora, não nos afastemos do assunto em causa, que é uma discussão sobre a maneira
correcta de escrever a história. Cláudio, meu amigo, tu tens ambições nesse sentido. Qual de nós dois,
velhos consagrados, escolherás como modelo?
Estão a tornar a situação muito difícil para o rapaz, seus invejosos,
entrepôs Sulpício. O que esperais que ele vos responda?
A verdade não ofenderá nenhum de nós, replicou Pólio. Olhei de um para o outro. Finalmente, disse:
Acho que escolheria Pólio. Como tenho a certeza que não posso ter esperanças de atingir a inspirada
elegância literária de Lívio, farei tudo o que puder para imitar a exactidão e diligência de Pólio.
Lívio soltou um grunhido e preparavase para se ir embora, mas Pólio deteveo. Contendo a alegria, tanto
quanto lhe era possível, disse:
Vamos, Lívio, não me vais regatear um pequeno discípulo, pois não, quando tu os tens em regimentos
por todo o mundo? Olha rapaz, já alguma vez ouviste falar no velho de Cádiz? Não, não é uma história
porca. Aliás, é um bocado triste. Ele veio a pé até Roma, para ver o quê? Não os templos ou os teatros,
nem as multidões, as lojas ou o edifício do
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Senado. Mas um homem. Que homem? O homem cuja cabeça está nas moedas? Não, não. Um maior que
ele. Ele veio ver nem mais nem menos que o nosso amigo Lívio, cujos trabalhos, ao que parece, ele
conhecia de cor. Viuo, saudouo e voltou directamente para Cádiz onde morreu imediatamente; a
desilusão e a longa caminhada tinham sido demais para ele.
Lívio disse:
De qualquer forma, os meus leitores são leitores genuínos. Rapaz, sabes como foi que Pólio construiu a
sua reputação? Bom, ele é rico e tem uma casa muito grande e bonita e um cozinheiro espantosamente
bom. Convida uma grande multidão de gente de letras para jantar, dálhes uma refeição perfeita e, depois,
com toda a naturalidade, pega no seu último volume de história. Diz humildemente: ”Meus Senhores, há
algumas passagens aqui das quais não estou muito seguro. Já as trabalhei muito a sério, mas ainda
precisam do polimento final para o qual conto convosco. Com vossa licença...” Depois, começa a ler.
Ninguém escuta com muita atenção. Todos estão de barriga cheia. ”O cozinheiro é UM génio”, pensam
todos eles. ”A mugem com molho picante, aqueles tordos gordos recheados e o javali selvagem com
trufas... quando foi a última vez em que eu comi assim tão bem? Não desde a última leitura de Pólio,
pareceme. Ah, aqui vem outra vez o escravo com o vinho. Esse excelente vinho de Chipre. Pólio tem
razão: é melhor do que qualquer vinho grego que há no mercado.” Entretanto, a voz de Pólio uma voz
muito agradável de ouvir, como a de um sacerdote no sacrifício da tarde durante o Verão , continua com
suavidade e, de vez em quando, pergunta humildemente: ”Isto está bem, acham?” E todos respondem,
pensando outra vez nos tordos ou, talvez, nos pequenos bolinhos com fruta: ”Admirável. Admirável,
Pólio.” De vez em quando, faz uma pausa e pergunta: ”Bom, qual é a palavra certa para usar aqui? Devo
dizer que os enviados que regressavam persuadiram ou excitaram esta tribo à revolta? Ou devo antes
dizer que o relato que fizeram da situação influenciou a tribo na sua decisão de ir para a revolta? Na
verdade, penso, eles fizeram um relato imparcial daquilo que tinham visto.” Depois, um murmúrio ergue
se dos leitos de repouso: ”Influenciou, Pólio. Usa influenciou!”. ”Obrigado, meus amigos”, diz ele, ”sois
muito amáveis. Escravo, a minha faca e a pena! Se me desculpam, vou alterar imediatamente a frase.”
Depois, publica o livro e envia a cada um dos convivas um exemplar gratuito. Eles dizem para os seus
amigos, enquanto conversam nos Banhos Públicos: ”Livro admirável, este. já o leste? Pólio é o maior
historiador da nossa época, o que não o impede de pedir conselho em pequenas questões de estilo a
homens de bom gosto. Esta palavra influenciou fui eu mesmo que lha indiquei.” Pólio retorquiu:
112
Isso é verdade. O meu cozinheiro é excelente. Da próxima vez, peçote que me emprestes o teu e
algumas garrafas do chamado vinho de Falerno, e então terei algumas críticas sinceras.
Sulpício fez um gesto de súplica:
Meus senhores, meus senhores, isto está a tornarse pessoal. Lívio ia já a afastarse. Mas Pólio sorriu em
direcção a ele e disse em voz alta, para que o ouvisse:
Um tipo decente, esse Lívio, mas tem uma coisa má. Uma doença chamada Paduanidade.
Isto fez com que Lívio estacasse e desse meia volta.
O que é que há de mal em Pádua? Não vou permitir que digam mal desse lugar.
Pólio explicoume.
Foi onde ele nasceu, sabes. Algures nas Províncias do Norte. Têm lá uma nascente de águas termais com
propriedades extraordinárias. Conseguese sempre distinguir um paduano. Banhandose na água da
nascente ou bebendoa e, segundo me dizem, fazem ambas as coisas ao mesmo tempo , os paduanos são
capazes de acreditar naquilo que lhes apetece e fazemno com tal força que obrigam qualquer outra pessoa
a acreditar também. É por isso que a cidade tem uma tão maravilhosa reputação comercial. Os cobertores
e tapetes que eles fazem não são na realidade melhores do que os de qualquer outro lado; de facto, são até
inferiores, porque os carneiros locais são amarelos e têm uma lã grosseira, mas, para o paduano, são
macios e brancos como penas de pato. E persuadiram o resto do mundo de que assim é.
Eu disse, entrando no jogo dele:
Carneiros amarelos! Isso é uma raridade. Como é que eles tomam essa cor?
Ora, bebendo a água da nascente. Tem enxofre. Todos os paduanos são amarelos. Olha para Lívio.
Lívio encaminhouse lentamente em direcção a nós.
Uma graça é uma graça, Pólio, e eu sei aceitar uma graça. Mas está também em causa uma questão séria,
que é a maneira adequada de escrever história. Pode ser que eu tenha cometido erros. Qual o historiador
que está livre disso? Pelo menos, não contei falsidades deliberadamente: não me acusareis disso. Qualquer
episódio lendário contido em escritos históricos antigos e que tenha a ver com o meu tema da antiga
grandeza de Roma, terei todo o prazer em o incorporar na história. Embora possa não ser verdadeiro
quanto aos detalhes factuais, é verdadeiro no seu espírito. Se se me deparam duas versões do mesmo
episódio, escolho a que estiver mais próxima do meu tema e não me encontrareis a fossar nos cemitérios
etruscos à procura de um terceiro relato que possa contradizer os outros dois. De que serviria isso?
113
Serviria a causa da verdade, disse Pólio suavemente. Isso não seria importante?
E se, ao servir a causa da verdade, admitirmos que os nossos veneráveis antepassados foram cobardes,
mentirosos e traidores? Como é então?
Vou deixar que seja este rapaz a responder a essa pergunta. Ele está a dar os primeiros passos. Vamos,
rapaz, responde!
Eu disse ao acaso:
Lívio começa a sua história lamentando a maldade moderna e prometendo acompanhar o declínio
gradual da antiga virtude, à medida que as conquistas proporcionavam riqueza a Roma. Ele diz que terá o
maior prazer em escrever os capítulos iniciais porque, ao fazêlo, conseguirá fechar os olhos à maldade
dos tempos modernos. Mas, ao fechar os olhos à maldade dos tempos modernos, não terá ele por vezes
fechado igualmente os olhos à maldade antiga?
Então? perguntou Lívio, semicerrando os olhos.
Então, fiquei à procura. Talvez não haja muita diferença realmente entre a maldade deles e a nossa.
Pode ser apenas uma questão de lugar e oportunidade.
Pólio disse:
Na realidade, rapaz, o paduano não conseguiu fazerte ver as suas peles cor de enxofre como brancas de
neve?
Eu sentíame muito constrangido.
Tenho mais prazer na leitura de Lívio do que na de qualquer outro autor, repeti.
Sim, claro, Pólio sorriu, foi precisamente isso que disse o velho de Cádiz. Mas, tal como o homem de
Cádiz, senteste agora um pouco decepcionado, não é? Lars Porsena, Scaevola, Brutus e companhia estão
te entalados na garganta?
Não é decepção, senhor. Vejo agora, embora não tivesse pensado nisso antes, que há duas maneiras
distintas de escrever a história: uma, é levar os homens à virtude pela persuasão; a outra, consiste em
forçálos a ver a verdade. A primeira é a maneira de Lívio; a outra é a vossa: e talvez as duas não sejam
irreconciliáveis.
Bom, meu rapaz, tu és um orador, disse Pólio maravilhado. Sulpício que estava apoiado numa perna,
segurando o pé com a mão, como era seu hábito quando estava excitado ou impaciente, e a retorcer a
barba formando nós, entrepôs:
Sim, Lívio nunca terá falta de leitores. As pessoas adoram ser levadas à antiga virtude pela persuasão e
por um escritor cheio de encanto, particularmente quando lhes dizem ao mesmo tempo que a civilização
moderna tornou essa virtude inatingível. Mas os meros contadores de verdades ”cangalheiros que
expõem o cadáver da história”, para citar
114
o epigrama do pobre Catulo sobre o nobre Pólio , pessoas que não registam nada além daquilo que
realmente aconteceu, tais homens só conseguem ter quem os escute enquanto dispuserem de um bom
cozinheiro e de uma garrafeira de vinho cipriota
Isto deixou Lívio realmente furioso Declarou
Pólio, esta conversa é inútil. Aqui o jovem Cláudio sempre foi considerado imbecil pela família e pelos
amigos, mas, até hoje, eu não tinha concordado com o veredicto geral. Podes ficar com o teu discípulo E
Sulpício pode aperfeiçoarlhe a imbecilidade não há melhor professor para a imbecilidade em Roma. E
deunos o seu golpe de parto: Et apud Apollinem istum Polhonis Pollinctorem diutissime polleat O que
quer dizer, embora o jogo de palavras se perca em grego: ”E possa ele brilhar por muito tempo no
santuário daquele Cangalheiro Apolo de Pólio.” Depois, afastouse com uma risada
Pólio gritoulhe, alegremente
Quod certe pollicitur Pollio. Pollucibiliter pollebit puer (”Pólio promete que o fará. O rapaz háde
brilhar a grande altura”).
Quando ficámos sozinhos os dois, depois de Sulpício se ter afastado para procurar um livro, Pólio
começou a interrogarme
Quem és tu, rapaz? O teu nome é Cláudio, não é? É óbvio que vens de uma boa família, mas eu não te
conheço
Sou Tibério Cláudio Druso Nero Germânico
Meu Deus! Mas Lívio está certo A opinião geral é que és um imbecil
Sim A minha família tem vergonha de mim porque gaguejo e sou coxo e estou muitas vezes doente, por
isso apareço pouco em sociedade
Mas imbecil? És um dos jovens mais inteligentes que conheci de há muitos anos a esta parte
Sois muito amável, senhor
De maneira nenhuma Pelos Deuses, foi um grande golpe para o velho Lívio, aquela do Lars Porsena.
Lívio não tem consciência, essa é que é a verdade. Estou sempre a apanhálo. Pergunteilhe uma vez se
tinha sempre a mesma dificuldade em encontrar as placas de latão que queria no meio do lixo do Gabinete
dos Registos Públicos. Ele respondeu ”Não, não tenho qualquer dificuldade” E veiose a saber que ele
nunca tinha lá estado uma única vez, a confirmar o que quer que fosse. Dizme, porque estavas a ler a
minha história?
Estava a ler a vossa narrativa do cerco de Perúsia. O meu avô primeiro marido de Lívia, como sabeis
esteve lá. Estou interessado naquela época e estou a reunir material para escrever a vida do meu pai. O
meu tutor, Atenodoro, indicoume o vosso livro, disse que era verdadeiro. O meu antigo tutor, Marco
Pórcio Catão, disserame uma vez que era uma colecção de mentiras Por isso, sentime mais inclinado a
acreditar em Atenodoro
115
Sim, Catão não havia de gostar do livro. Os da família dele lutaram do lado errado. Eu ajudei a expulsar
o avô dele da Sicília. Mas penso que és o primeiro historiador jovem que alguma vez conheci. A história é
um jogo de velhos. Quando vais ganhar batalhas como o teu pai e o teu avô?
Talvez na minha velhice.
Ele riuse.
Não vejo razão para que um historiador que passou a vida a estudar tácticas militares não seja invencível
como comandante, se dispuser de boas tropas e de coragem...
E de bons oficiais, acrescentei, recordando Cléon.
E de bons oficiais, sem dúvida, mesmo que ele nunca tenha realmente manejado uma espada ou um
escudo em toda a sua vida.
Tive a ousadia suficiente para perguntar a Pólio porque lhe chamavam frequentemente O último dos
Romanos. Ele pareceu satisfeito com a pergunta e replicou:
Augusto deume esse nome. Foi na altura em que me convidou para me juntar a ele na sua guerra contra
o teu avô António. Perguntoume por que espécie de homem ele me tomava: António fora um dos meus
melhores amigos. ”Asínio Pólio”, disse ele, ”acredito que és o último dos romanos. O título não tem nada
a ver com aquele assassino do Cássio.” ”E se eu sou o último dos romanos,” repliquei, ”quem tem culpa
disso? E de quem será a culpa quando tiverdes destruído António, se ninguém a não ser eu jamais ousara
ficar de cabeça erguida na vossa presença ou falar quando lhe apetece?” ”Minha não, Asínio”, disse, como
que a desculparse: ”foi António que declarou a guerra, não eu. E, logo que António tiver sido derrotado,
vou evidentemente reinstaurar um governo republicano.” (se Dona Lívia não interpuser o seu veto,
poderia acrescentarse). Nesta altura, o velho homem tomoume pelos ombros.
A propósito, vou dizerte uma coisa, Cláudio. Eu já tenho muita idade e, embora o meu espírito esteja
lúcido, já cheguei ao fim. Dentro de três dias estarei morto, eu sei. Pouco antes de uma pessoa morrer,
vemlhe uma estranha lucidez. Diz palavras proféticas. Agora ouve! Queres viver uma longa vida activa,
com honra no final?
Sim.
Então, exagera o teu coxear, gagueja deliberadamente, fingete doente com frequência, deixa o teu
espírito vaguear, sacode a cabeça e faz movimentos bruscos com as mãos em todas as ocasiões públicas e
semipúblicas. Se pudesses ver aquilo que eu vejo, saberias que esta é a tua única esperança de salvação e,
eventualmente, de glória.
Eu disse:
A história de Lívio sobre Brutus refirome ao primeiro Brutus pode não ser histórica, mas é adequada.
Brutus também fingiu ser um imbecil, para melhor poder restabelecer a liberdade popular.
116
O que é isso? Liberdade popular? Acreditas nisso? Julgava que a frase tinha morrido para a geração mais
jovem.
Meu pai e meu avô ambos acreditavam nela...
Sim, interrompeu Pólio com aspereza, foi por isso que morreram.
O que quereis dizer?
Quero dizer que foi por isso que foram envenenados.
Envenenados! Por quem?
Hmm! Não tão alto, rapaz. Não, não vou falar em nomes. Mas vou darte uma indicação segura de que
não estou apenas a repetir escândalos sem fundamento. Estás a escrever uma biografia do teu pai,
disseste?
Sim.
Bom, verás que não te vai ser permitido ir além de um certo ponto nesse trabalho. E a pessoa que te
impedir...
Sulpício voltou a arrastar os pés e nada mais de interesse foi dito, excepto quando me despedi de Pólio e
ele me puxou para o lado e murmurou:
Pequeno Cláudio, adeus! Mas não sejas tolo sobre essa questão da liberdade popular. Isso não pode vir
ainda. As coisas têm que se tornar muito piores antes de poderem melhorar. Depois, levantou a voz,
Mais uma coisa. Se, depois de eu morrer, encontrares algum ponto importante nas minhas obras que te
pareça menos histórico, doute permissão e vou estipular que tens autoridade, para por as correcções num
suplemento. Mantémnas em dia. Os livros, quando perdem a actualidade, só servem para embrulhar o
peixe.
Respondi que esse seria um dever honroso.
Três dias depois, Pólio morreu. Deixoume no seu testamento uma colecção de histórias latinas primitivas,
mas as mesmas não me foram entregues. Meu tio Tibério disse que era engano: que a intenção era deixar
lhas a ele, os nossos nomes é que eram muito semelhantes. Quanto à sua determinação sobre a minha
autoridade para fazer correcções, toda a gente achou que se tratava de uma brincadeira; mas eu cumpri a
promessa que fizera a Pólio, uns vinte anos mais tarde. Descobri que ele escrevera com muita severidade
sobre o carácter de Cícero um indivíduo vaidoso, vacilante, timorato e, embora não discordasse deste
veredicto, senti a necessidade de assinalar que ele não era também um traidor, como Pólio o retratara.
Pólio basearase em alguma correspondência de Cícero que eu consegui provar ter sido forjada por Clódio
Pulcro. Cícero conquistara a inimizade de Clódio, ao servir de testemunha contra ele quando o acusaram
de ter assistido ao sacrifício da Boa Deusa disfarçado de mulhermúsica. Este Clódio era outro dos maus
Claudianos.
117
CAPíTULO X
Quando atingiu a idade, Tibério recebera recentemente ordens de Augusto no sentido de adoptar
Germânico como filho, embora já tivesse Castor como herdeiro, transferindoo assim da família Claudiana
para a Juliana. Assim me encontrei como chefe do ramo mais velho dos Claudianos e na posse
indisputável do dinheiro e das propriedades herdadas do meu pai. Torneime tutor da minha mãe
entretanto, ela tinha voltado a casar , o que ela encarou como uma humilhação. Tratavame com bastante
mais severidade do que antigamente, embora todos os seus documentos de negócios tivessem que passar
por mim primeiro para serem assinados e eu fosse o sacerdote da família. A cerimónia da minha
maioridade contrastou curiosamente com a de Germânico. Vesti a minha túnica de homem à meianoite e,
sem quaisquer assistentes ou procissão, fui levado para o Capitólio numa liteira, onde executei o
sacrifício, tendo sido levado de volta para a cama, Germânico e Póstumo teriam comparecido, mas, para
chamar o menos possível as atenções sobre mim, Lívia tinha arranjado nessa noite um banquete no
Palácio, ao qual eles não podiam ser dispensados de assistir.
Quando casei com Urgulanila, aconteceu a mesma coisa. Muito poucas pessoas tiveram conhecimento do
nosso casamento até ao dia seguinte à celebração. Não houve nada de irregular na cerimónia. Os sapatos
cor de açafrão de Urgulanila e o véu cor de fogo, a observação dos auspícios, a ingestão do bolo sagrado,
os dois banquinhos cobertos com pele de carneiro, a libação que eu servi, o unguento que apliquei nela à
entrada da porta, as três moedas, o presente que lhe dei de fogo e água tudo em boa ordem, excepto a
procissão dos archotes, que foi omitida, e o facto de todo o cerimonial ter sido levado a cabo sem
empenhamento, à pressa e sem graça. Para que não tropece no limiar da casa do noivo, a primeira vez que
lá entra, uma noiva romana é sempre erguida ao passálo. Os dois Claudianos encarregados de o fazer
eram ambos idosos e não estavam à altura do peso dela. Um deles escorregou no mármore e Urgulanila
caiu com uma pancada seca, arrastandoos com ela e ficando os três estatelados uns por cima dos outros.
Não há pior presságio para um casamento que uma coisa dessas. No entanto, seria falso se disséssemos
que foi um casamento infeliz; não havia tensão suficiente
119
entre nós para justificar o termo infeliz. A princípio, dormíamos juntos, porque parecia ser isso que
esperavam de nós; e tivemos mesmo, ocasionalmente, relações sexuais a minha primeira
experiência de sexo , porque isso também parecia fazer parte do casamento e não por luxúria ou
afeição. Fui sempre tão atencioso e delicado com ela quanto possível e ela recompensavame com
indiferença, que era o melhor que eu podia esperar de uma mulher com o seu carácter. Ficou
grávida três meses depois do casamento e deume um filho chamado Drusilo, em relação a quem me
foi impossível nutrir qualquer sentimento paternal. Saíu a minha irmã Livila na malevolência e ao
irmão de Urgulanila, Pláucio, no resto do seu carácter. Em breve vos falarei de Pláucio, que era o
meu exemplo e modelo moral, nomeado por Augusto.
Augusto e Lívia tinham o hábito metódico de nunca chegarem a qualquer decisão sobre um assunto
importante relacionado com a família ou com o Estado sem a registarem por escrito, tanto no que
dizia respeito a uma decisão como às deliberações que conduziam a ela, geralmente sob a forma de
cartas trocadas entre ambos. Do conjunto da correspondência que deixaram para trás ao morrer, fiz
várias transcrições, que ilustram a atitude de Augusto em relação a mim nesta altura. O primeiro
extracto data de três anos antes do meu casamento.
Minha querida Lívia,
É meu desejo registar algo de estranho que aconteceu hoje. Nem sei como interpretar tal coisa. Estava a
falar com Atenodoro e calhou dizerlhe: ”Receio que o papel de tutor do jovem Tibério Cláudio seja uma
tarefa muito cansativa. Pareceme que ele toma dia após dia um ar mais infeliz, nervoso e incapaz.”
Atenodoro disse: ”Não julgueis o rapaz com demasiada severidade. Ele sente profundamente a decepção
da família em relação à sua pessoa e as humilhações que encontra por toda a parte. Mas está muito longe
de ser um incapaz e, quer acrediteis quer não, tenho muito prazer na sua companhia. Nunca o ouvistes
declamar, pois não?” ”Declamar!”, exclamei, rindo. ”Sim, declamar”, repetiu Atenodoro. ”Deixai que vos
faça uma sugestão. Escolhei um tema para ele declamar e, dentro de meia hora, vinde ouvir o que ele fez
daí. Mas escondeivos atrás de uma cortina, ou não ouvireis nada que valha a pena.” Escolhi o tema
Conquistas Romanas na Germânia e, quando me pus à escuta meia hora mais tarde atrás daquela cortina,
nunca me senti tão admirado em toda a minha vida. Ele tinha os factos na ponta dos dedos, os tópicos
principais eram bem escolhidos e os pormenores colocados na relação correcta e na proporção devida;
mais do que isso, a voz estava sob controlo e ele não gaguejava. Deus me faça cair morto se não foi
verdadeiramente agradável e instrutivo ouvilo! Mas como é que um indivíduo cuja conversa diária é tão
desesperadamente tola, consegue fazer um discurso
120
organizado, e em pouco tempo, num estilo tão perfeitamente racional e mesmo erudito, é uma coisa que eu não
entendo. Afasteime silenciosamente, pedindo a Atenodoro que não mencionasse o facto de eu ter estado ali ou como
ficara surpreendido; mas sintome na obrigação de vos contar o sucedido e mesmo de sugerir que, a partir de agora,
lhe permitíssemos ocasionalmente que jantasse connosco à noite, quando houver poucos convidados presentes, com
a condição dele ficar de boca calada e com os ouvidos bem abertos. Se houver, como me sinto inclinado a acreditar,
alguma esperança de que ele se venha a tornar um membro responsável da família, devia habituarse gradualmente a
misturarse com os seus iguais do ponto de vista social. Não podemos mantêlo eternamente aferrolhado com os seus
professores e libertos. Existe, claro está, uma grande disparidade de opiniões sobre a questão das suas capacidades
mentais. Seu tio Tibério, a mãe Antónia e a irmã Livila são unânimes em o considerar um idiota. Por outro lado,
Atenodoro, Sulpício, Póstumo e Germânico juram que ele é tão sensato, quando quer, como qualquer homem, mas
que é facilmente desestabilizado pelo nervosismo. Eu, pela minha parte, não consigo ainda chegar a uma conclusão a
esse respeito.
Ao que Lívia respondeu:
Meu querido Augusto,
A surpresa que tivestes atrás daquela cortina não foi maior nem inferior à surpresa que tivemos em tempos quando
o Embaixador Indiano tirou o pano de seda que cobria a gaiola dourada que o seu senhor o Grande Rei nos tinha
enviado, e nós vimos a ave Papagaio pela primeira vez, com as suas penas cor de esmeralda e o colar cor de rubi e o
ouvimos dizer ”Avé, César, Pai da Pátria!” Não foi a importância da frase, porque qualquer criança balbuciante é
capaz de a dizer, mas o facto de ser um pássaro a pronunciála. E ninguém, a não ser um tolo, louvaria o Papagaio
pela sua esperteza em ter pronunciado as palavras certas, porque ele não sabia o significado de nenhuma delas. O
crédito vai para o homem que treinou a ave, com uma paciência incrível, a repetir a frase, porque, como sabeis, para
outras ocasiões ele está treinado a dizer outras coisas; e, numa conversa geral, ele diz os disparates mais arrogantes e
nós temos que lhe tapar a gaiola para o calar. Assim acontece com Cláudio, embora não seja muito lisonjeira para o
Papagaio, uma ave inegavelmente bela, comparálo com o meu neto: aquilo que ouvistes foi, sem sombra de dúvida,
um discurso que, por coincidência, ele tinha aprendido de cor. Afinal, As Conquistas Romanas da Germânia é um
assunto muito óbvio e Atenodoro pode muito bem têlo treinado a pronunciar com perfeição meia dúzia ou mais
declamações modelo do mesmo tipo. Mas atenção, eu não estou a dizer que não fiquei satisfeita em saber que ele é
tão permeável ao
121
treino: estou extremamente satisfeita. Isso quer dizer, por exemplo, que poderemos treinálo para a cerimónia do seu
casamento. Mas a sugestão de o deixarmos jantar connosco é ridícula. Recusome a comer na mesma sala que esse
indivíduo: teria uma indigestão.
Quanto ao testemunho a favor da sua sanidade mental, examinaio. Germânico, ainda criança, jurou ao pai
moribundo amar e proteger o irmão mais novo. Conheceis a nobreza de alma de Germânico e sabeis que, para não
trair essa incumbência sagrada, seria capaz de apresentar sob a melhor luz possível a inteligência do irmão, na
esperança de que um dia ela pudesse melhorar. É igualmente óbvio por que razão Atenodoro e Sulpício fingem
considerálo susceptível de melhorar: são bem pagos para isso e as suas funções dãolhes uma desculpa para
andarem pelo Palácio e daremse ares de conselheiros privados. Quanto a Póstumo, há meses que me queixo; é
verdade que não consigo de todo entender esse jovem. Considero que a Morte foi extremamente injusta ao levar os
seus dois talentosos irmãos, deixandoo apenas a ele. Ele adora entrar em discussão com os mais velhos, em
situações em que a discussão é desnecessária, pois os factos estão para além de qualquer discussão, apenas para nos
exasperar e mostrar a sua importância como vosso único neto vivo. A sua defesa da inteligência de Cláudio é um
caso agudo. Ele foi absolutamente insolente comigo no outro dia, quando eu fiz um comentário no sentido de que
Sulpício estava a perder o seu tempo a ensinar o rapaz: disse mesmo que, na sua opinião, Cláudio tinha uma
inteligência mais penetrante do que a maior parte dos seus parentes mais próximos
o que, suponho, tinha a intenção de me incluir! Mas Póstumo é outro problema. De momento, a questão gira em
volta de Cláudio: não posso, repito, aceitar que jante na minha companhia, por razões de ordem física que espero
compreendais.
Lívia
Augusto escreveu a Lívia um ano mais tarde, quando ela estava ausente por alguns dias no campo:
Quanto ao jovem Cláudio, vou aproveitar a vossa ausência para o convidar para cear comigo todas as noites. Admito
que a presença dele ainda me constrange, mas não acho que seja bom para ele jantar sempre sozinho com Sulpício e
Atenodoro. A conversa que tem com eles é exclusivamente centrada nos livros e, ainda que ambos sejam pessoas
excelentes, não são os companheiros ideais para um rapaz com a idade e posição dele. Desejaria sinceramente que
escolhesse um jovem de posição em cuja postura, maneira de vestir e comportamento se pudesse inspirar. Mas a sua
timidez e falta de confiança em si próprio impedemno. Adora o nosso querido Germânico como um herói, mas sente
tão profundamente
122
as suas próprias limitações que nunca ousaria imitálo, da mesma forma que eu próprio não ousaria andar por aí
vestido com uma pele de leão e uma clava e chamar a mim mesmo Hércules. A pobre criatura é infeliz; pois em
questões importantes (quando o seu espírito não está a divagar) a sua nobreza de coração tornase bem evidente...
Uma terceira carta, escrita pouco depois do meu casamento, quando eu acabava de ser nomeado sacerdote de Marte,
é também interessante:
Minha querida Lívia,
Tal como me aconselhastes, discuti com o nosso Tibério o que havemos de fazer em relação ao jovem Cláudio,
quando estes Jogos em honra de Marte se realizarem. Agora que ele atingiu a maioridade e foi nomeado para o lugar
vago no Colégio dos Sacerdotes de Marte, não podemos adiar muito mais a nossa decisão quanto ao seu futuro.
Estamos de acordo neste ponto, não é verdade? Se ele é suficientemente são de espírito e de corpo para ser
eventualmente reconhecido como membro respeitável da família como estou convencido que é, senão não teria
adoptado Tibério e Germânico, deixandoo a ele como chefe do ramo principal da casa Claudiana , então é evidente
que ele deve ser acompanhado, recebendo as mesmas oportunidades de progresso que Germânico. Admito que posso
continuar enganado as suas melhorias recentes não foram espectaculares. Mas, se decidirmos que, afinal, as
enfermidades do seu corpo estão ligadas a uma enfermidade crónica do espírito, não devemos dar às pessoas
maliciosas a oportunidade de troçarem dele e de nós. Repito, temos que decidir rapidamente e de uma vez por todas
como encarar o rapaz, quanto mais não seja porque seria um incómodo e um constrangimento constantes se
tivéssemos que decidir de novo em cada ocasião que se apresentasse se o considerávamos ou não capaz de
empreender os deveres de Estado para os quais o seu nascimento o recomenda.
Bom, a questão imediata é o que fazer com ele nestes Jogos. Eu não teria qualquer objecção a que o encarregassem
da messe dos sacerdotes, mas com a condição dele deixar tudo nas mãos do cunhado, o jovem Pláucio Silvano,
fazendo apenas o que lhe disserem. Ele pode aprender muito desta forma e não há razão para que caia em desgraça se
aprender bem a lição. Mas claro que está fora de questão que ele se sente comigo no camarote Presidencial,
juntamente com a estátua Sagrada, porque toda a gente no teatro estará constantemente a olhar nessa direcção e
qualquer singularidade no seu comportamento seria logo comentada.
Outro problema é o que fazer com ele no Festival Latino. Germânico vai para o Monte Albano com os Cônsules,
para tomar parte no sacrifício, e Cláudio deseja, segundo ouvi dizer, ir com ele. Mas, mais uma vez, não
123
tenho a certeza se podemos confiar em que não faça papel de tolo. Germânico vai estar ocupado com os
seus deveres e será incapaz de tomar conta dele durante todo o tempo. E se ele realmente for, as pessoas
vão querer saber o que está lá a fazer, vão perguntar porque não o nomeámos Guardião da Cidade em
Roma enquanto durar o festival, na ausência dos magistrados uma honra que, deveis estar lembrada,
atribuímos sucessivamente a Caio, Lúcio, Germânico, ao jovem Tibério e a Póstumo, logo que atingiram a
maioridade, como estreia nas funções oficiais. A melhor maneira de sair desta dificuldade é anunciar que
ele está doente, porque, claro está, nomeálo Guardião da Cidade está fora de questão.
Se desejardes mostrar esta carta a Antónia, não tenho qualquer objecção: garantilhe que não tardaremos a
tomar uma decisão sobre o filho, de uma forma ou de outra. É uma posição incongruente para ela estar
legalmente sob a sua tutoria.
Augusto
À parte ter sido o meu primeiro cargo público, não há nada de notável a registar sobre a minha gestão da
messe dos sacerdotes. Pláucio, um homenzinho vaidoso, elegante e presumido, fez todo o trabalho por
mim e nem sequer se deu ao trabalho de me explicar o sistema de aprovisionamento e as regras de
precedência sacerdotal; recusouse mesmo a responder às minhas perguntas sobre tais assuntos. Tudo o
que fez foi treinarme em certos gestos e frases formais que eu devia usar ao receber os sacerdotes e em
várias fases da refeição, proibindome de voltar a abrir a boca. Isto foi extremamente desagradável para
mim porque, em muitas ocasiões, poderia ter participado na conversa de forma útil e o meu silêncio e
subserviência a Pláucio causaram má impressão. Os jogos em si não cheguei a vêlos.
Haveis de ter notado os comentários depreciativos de Lívia sobre Póstumo. A partir desta altura, eles
tornaramse cada vez mais frequentes nas cartas dela e Augusto, embora a princípio tentasse defender o
neto, vem a admitir gradualmente que está decepcionado com ele. Acho que Lívia deve ter dito a Augusto
muito mais do que consta na sua correspondência, para que Póstumo tivesse perdido tão facilmente a sua
protecção, mas certas coisas são notórias. Primeiro, Tibério terseia queixado; segundo, as palavras de
Lívia, acerca de um comentário atrevido de Póstumo sobre a Universidade de Rodes. Depois Catão, ainda
segundo relato de Lívia, queixase das más influências de Póstumo sobre os estudantes mais novos,
desafiando a sua disciplina; depois, Lívia apresenta os relatórios confidenciais de Catão, dizendo que os
reteve todo esse tempo na esperança de que houvesse uma mudança. A seguir, vêm as referências cheias
de preocupação à sua melancolia e mau humor, esta foi a época em que Póstumo se decepcionou com
Livila e sofreu o
124
desgosto da morte do irmão Caio. Seguese uma recomendação, quando ele atinge a maioridade, para
que toda a herança que lhe vem do pai, Agripa, não seja posta em seu nome nos anos mais próximos, pois
isso ”poderia darlhe a oportunidade de uma libertinagem ainda maior que aquela a que já se entrega!”
Quando é alistado juntamente com os outros jovens em idade militar, vai para a Guarda como simples
tenente e não recebe qualquer das honras extraordinárias concedidas a Caio e Lúcio. O próprio Augusto é
de opinião que este é o caminho mais seguro, pois Póstumo é ambicioso: não deve criarse o mesmo tipo
de situação constrangedora ocorrida quando os jovens nobres apoiaram Marcelo contra Agripa ou Caio
contra Tibério. Em breve, Póstumo reagirá mal a isto, dizendo a Augusto que não deseja as honras pelas
honras em si, mas porque o facto de não lhe terem sido conferidas foi mal interpretado pelos seus amigos,
que acreditam que ele está mal visto no Palácio.
Depois vêm alguns sinais mais graves. Póstumo perdeu a calma com Pláucio mas nenhum dos dois dirá a
Lívia, mais tarde, quais as circunstâncias que envolveram o desentendimento , que levantou e atirou para
uma fonte, na presença de vários homens de posição e dos seus lacaios. E então chamado a prestar contas
a Augusto e não mostra arrependimento, insistindo que Pláucio merecia o mergulho por ter falado comigo
de forma insultuosa; simultaneamente, queixase a Augusto de que a sua herança está a ser injustamente
retida. Não tarda a ser repreendido por Lívia pela mudança nas suas maneiras e pelo mau humor contra
ela. ”O que foi que te envenenou?”, pergunta. Ele responde com um sorriso: ”Talvez andeis a pôr alguma
coisa na minha sopa.” Quando ela lhe pede uma explicação para esta brincadeira extraordinária, ele
replica, com um sorriso ainda mais dúbio: ”Pôr coisas na sopa é um velho truque das madrastas.” Pouco
depois disto, Augusto recebe uma queixa do general de Póstumo, pelo facto dele não se misturar com os
outros jovens oficiais e passar todo o tempo livre no mar a pescar. Isso fezlhe ganhar a alcunha de
Neptuno.
Os meus deveres como sacerdote de Marte não eram árduos e Pláucio, que era sacerdote no mesmo
colégio, foi informado de que devia vigiarme sempre que houvesse alguma cerimónia. Eu começava a
odiar Pláucio. A observação insultuosa pela qual Póstumo o atirara para a fonte era apenas uma de muitas.
Tinhame chamado lémure e dissera que só a lealdade para com Augusto e Lívia o impedia de cuspir
para cima de mim cada vez que eu lhe fazia perguntas tolas e supérfluas.
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CAPÍTULO XI
O ano anterior a eu atingir a maioridade e casar, tinha, sido um ano mau para Roma. Houve uma
série de terramotos no sul de Itália, que destruíram várias cidades. Na primavera, pouca chuva
caiu e as culturas tinham um ar miserável por todo o país. Depois, pouco antes das colheitas,
houve chuvas torrenciais que dobraram e estragaram os poucos pés de milho que chegaram a dar
maçarocas. As chuvadas foram tão violentas que o Tibre levou a ponte e tornou a parte baixa da
Cidade navegável por barco durante sete dias. A fome era uma ameaça e Augusto enviou
emissários ao Egipto e a outros lados para comprar grandes quantidades de trigo. Os celeiros
públicos tinham sido esvaziados por causa de uma má colheita no ano anterior embora não tão
má como esta. Os enviados conseguiram comprar algum trigo, mas por um preço muito alto e não
em quantidade suficiente. Houve muita aflição nesse Inverno, tanto mais que Roma estava
superpovoada a população da Cidade dobrara nos últimos vinte anos; e Óstia, o porto, era de
navegação insegura durante o Inverno, o que fazia com que os comboios marítimos de grão
apenas pudessem livrar a sua carga passado semanas. Augusto fez o possível para restringir a
fome. Temporariamente, baniu de Roma várias famílias, obrigandoas a ir viver para a província,
nunca a menos de 100 milhas de Roma, apontando uma comissão de supervisão composta por ex
cônsules. Proibiu também os banquetes públicos, incluindo no dia do aniversário do próprio.
Muito do grão era importado às suas próprias custas, sendo distribuído sem encargos aos mais
necessitados. Como de costume, a fome trouxe consigo tumultos que, por sua vez, trouxeram
consigo incêndios: ruas inteiras de lojas eram incendiadas à noite por magotes meioesfomeados,
provenientes dos bairros operários. Augusto organizou uma brigada de vigilantes nocturnos,
composta por sete divisões, no sentido de evitar este tipo de ocorrências. Essa brigada provou ser
tão útil, que nunca seria extinta. Mas foram enormes os danos provocados pelos tumultuosos. Por
esta altura, foi criado um novo imposto, no sentido de reunir dinheiro para as guerras
Germânicas; deste modo, com a fome, os
127
incêndios e os impostos, os cidadãos comuns começaram a impacientarse e a discutir
abertamente a necessidade de uma revolução. Vários manifestos eram pregados à noite na porta
de edifícios públicos. Diziase que estava em curso uma grande conspiração. O senado ofereceu
uma recompensa por informações que levassem à captura dos cabecilhas, e foram muitos os que a
tentaram merecer, dando informações contra os seus vizinhos; mas isto apenas serviu para
aumentar a confusão. Ao que parece, não existia nenhuma conspiração; apenas se falava com
esperanças de que houvesse uma. Por fim, o trigo começou a vir do Egipto, onde a colheita se faz
muito mais cedo do que aqui, e a tensão abrandou.
Entre as pessoas afastadas de Roma durante a fome, estavam os gladiadores. Não eram
numerosos, mas Augusto pensou que, se houvesse distúrbios civis, o mais provável seria que eles
assumissem um papel perigoso. Formavam um bando de desesperados, pois alguns eram homens
de posição que tinham sido vendidos como escravos por causa de dívidas a compradores que
tinham concordado em os deixar ganhar o preço da sua liberdade lutando enquanto gladiadores.
Se um jovem cavalheiro contraía dívidas, como algumas vezes acontecia, sem que fosse por sua
culpa ou por actos impensados da juventude, os parentes distantes salvavamno da escravatura;
ou então, era o próprio Augusto a intervir. Por isso, esses cavalheiros lutadores eram homens que
ninguém considerara que valessem ser salvos do seu destino e que, tornandose os chefes naturais
da Guilda do Gladiadores, tinham o perfil indicado para chefiar uma rebelião armada.
Quando as coisas melhoraram foram chamados de volta e foi decidido pôr toda a gente de bom
humor, exibindo uma grande luta pública de gladiadores e uma caçada aos animais selvagens nos
nomes de Germano e no meu próprio, em memória do nosso pai. Lívia desejava fazer recordar a
Roma os seus grandes feitos, com a intenção de chamar as atenções para Germano, que se parecia
tanto com ele e que, em breve, esperavase, seria enviado para a Germânia para ajudar seu tio
Tibério, outro soldado famoso, a ganhar ali novas vitórias. A minha mãe e Lívia contribuíram
para as despesas do espectáculo, mas o fardo maior recaiu sobre mim e Germano. No entanto,
considerouse que Germano, na sua posição, precisava de mais dinheiro do que eu; por isso,
minha mãe explicoume que seria normal eu contribuir com o dobro do que ele contribuía. Fiquei
muito contente em fazer tudo o que podia por Germano. Mas quando descobri, depois de tudo
terminar, aquilo que se tinha gasto, fiquei estupefacto; o espectáculo foi planeado sem olhar a
custos e, além das despesas habituais da luta de gladiadores e da caçada aos animais selvagens,
lançámos chuvas de moedas de prata à populaça.
Na procissão até ao anfiteatro, Germano e eu viajámos, por decreto do Senado, no velho carro de
guerra do nosso pai. Acabávamos de oferecer
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um sacrifício em sua memória, no grande túmulo que Augusto construíra para si próprio quando
viesse a morrere onde tinha enterrado as cinzas do nosso pai, juntamente com as de Marcelo.
Descemos a Via Ápia e passámos por baixo do arco dedicado ao nosso pai, sobre o qual se via a
colossal figura equestre que o representava e que fora decorada com ramos de loureiro em honra
da ocasião. Soprava um vento nordeste e os médicos não me permitiam que saísse sem uma capa;
por isso, com uma só excepção, eu era a única pessoa presente na luta de gladiadores (onde,
enquanto coPresidente, me sentei ao lado de Germano) que usava capa. A excepção era o
próprio Augusto, que se sentava do outro lado de Germano. Ele era muito sensível ao calor e ao
frio extremos e, no Inverno, usava nada menos que quatro casacos, além duma túnica muito
espessa e de um casaco comprido. Alguns dos presentes viram um augúrio nesta semelhança
entre as minhas roupas e as de Augusto, comentando ainda que eu nascera no primeiro dia do
mês que tinha o nome dele e também na cidade de Lião, no mesmo dia em que ele dedicara ali
um altar a si próprio. De qualquer forma, foi isso que eles disseram que tinham dito, muitos anos
depois. Lívia também estava no camarote uma honra especial que lhe era conferida como mãe de
meu pai. Normalmente, sentavase com as Virgens Vestais. A regra era que as mulheres e os
homens se sentassem separadamente.
Foi a primeira luta de gladiadores a que me foi permitido assistir e, por essa razão, era ainda mais
embaraçoso para mim encontrarme no Camarote do Presidente. Germano fez todo o trabalho,
embora fingisse consultarme quando era preciso tomar alguma decisão, e levou a tarefa por
diante com muita segurança e dignidade. Por sorte minha, esta luta foi a melhor que alguma vez
se exibiu no anfiteatro. No entanto, sendo a primeira para mim, não consegui apreciar a sua
excelência, por não ter outras demonstrações prévias às quais recorrer para fins comparativos.
Mas certamente que nunca vi outra melhor depois e devo ter visto cerca de um milhar de lutas
importantes. Lívia queria que Germano ganhasse popularidade como filho de seu pai e não se
poupara a despesas para contratar os melhores lutadores de Roma para darem tudo por tudo.
Habitualmente, os gladiadores profissionais eram muito cuidadosos em não se magoarem a si
próprios nem aos outros e gastavam a maior parte das sua energia em ataques simulados, paradas
e arremetidas que pareciam e soavam homéricas mas que, na realidade, eram perfeitamente
inofensivas, como os golpes que os escravos davam uns aos outros com os cacetes de palco em
espectáculos de baixa comédia. Só ocasionalmente, quando se enraiveciam uns com os outros ou
se tinham algumas velhas contas a ajustar, é que valia a pena observálos. Desta vez, Lívia tinha
reunido os chefes da Guilda dos Gladiadores e disselhes que queria ser compensada pelo
dinheiro que gastara. A menos que cada luta fosse real,
129
ela faria dissolver a guilda: tinha havido demasiadas lutas combinadas no Verão anterior. Assim,
os lutadores foram prevenidos pelos mestres da guilda que, desta vez, não poderia haver moleza,
ou seriam despedidos.
Nos primeiros seis combates um homem foi morto, outro tão gravemente ferido que morreu nesse
mesmo dia e um terceiro ficou com o braço que envergava o escudo decepado pelo ombro, o que
causou trovoadas de riso. Em cada um dos outros três combates, um dos homens foi desarmado
pelo seu contendor, mas não antes de ter dado tão boa conta de si próprio que Germano e eu,
quando chamados a pronunciarnos, pudemos confirmar a aprovação da assistência, erguendo os
polegares em sinal de que a sua vida devia ser poupada. Um dos vencedores tinha sido um
cavaleiro rico, um ou dois anos antes. Em todos estes combates, a regra era que os antagonistas
não deviam lutar com o mesmo tipo de arma. Era espada contra lança, ou espada contra machado,
ou lança contra clava. O sétimo combate foi entre um homem armado com uma espada normal do
exército e um escudo redondo antigo com tiras de latão e um homem armado com uma lança de
apanhar trutas, com três pontas, e uma rede curta. O homem da espada, ou perseguidor, era um
soldado da Guarda que tinha sido recentemente condenado à morte por se ter embriagado e batido
no seu capitão. A pena tinha sido convertida numa luta contra aquele homem de rede e tridente
um profissional da Tessália, muitíssimo bem pago, que tinha morto mais de vinte opositores nos
cinco anos anteriores, segundo me contou Germano.
As minhas simpatias estavam com o soldado, que entrou na arena muito pálido e a tremer tinha
passado vários dias na prisão e a luz forte incomodavao. Mas toda a sua companhia, que ao que
parece simpatizava muito com ele, porque o capitão era um tirano e um animal, gritoulhe em
uníssono que ganhasse coragem e defendesse a honra da companhia. Ele endireitouse e gritou:
”Farei tudo o que puder, rapazes!” Acontecia que a alcunha dele no acampamento era Barata e
isso bastava para pôr a maior parte da assistência do lado dele, embora os Guardas não fossem
muito populares na Cidade. Se uma barata conseguisse matar um pescador, seria uma boa piada.
Ter o anfiteatro do seu lado é meia batalha ganha, para um homem que luta pela própria vida. O
tessaliano, um indivíduo magro, de pernas e braços compridos, aproximouse em passo balançado
por trás dele, vestindo apenas uma túnica e um boné de couro, redondo e duro. Estava de bom
humor, trocando piadas com a bancada da frente, pois o seu adversário era um amador e Lívia
pagavalhe 1.000 moedas de ouro pela tarde e mais 500 se ele matasse o homem depois de uma
boa luta. Apresentaramse juntos diante do Camarote e saudaram primeiro Augusto e Lívia e
depois Germano e eu próprio, como presidentes conjuntos, usando a fórmula habitual:
”Saudações, senhores.
130
Nós vos saudamos na sombra da Morte!” Nós retribuímos a saudação com um gesto formal, mas
Germano disse para Augusto:
Mas, senhor, aquele perseguidor é um dos veteranos de meu pai. Conheçoo bem. Usou uma
coroa na Alemanha por ter sido o primeiro a saltar uma paliçada inimiga.
Augusto ficou interessado.
Óptimo, disse isso quer dizer que esta será uma boa luta. Mas, nesse caso, o homem da rede deve
ser dez anos mais novo e os anos contam neste jogo.
Nesta altura, Germano fez sinal para que soassem as trombetas e a luta começou.
O Barata mantevese firme, enquanto o tessaliano dançava em volta dele. O Barata não era tão
tolo que fosse desperdiçar as forças correndo em volta do adversário com as suas armas leves ou
então deixarse ficar paralisado. O tessaliano tentou fazêlo perder a calma escarnecendo dele,
mas o Barata não se deixou levar. Apenas uma vez, quando o tessaliano chegou à distância de
uma estocada, é que ele mostrou disposição para tomar a ofensiva e a rapidez do seu golpe
arrancou um brado de satisfação das bancadas. Mas o tessaliano afastouse a tempo. Em breve, a
luta tornouse mais animada; o tessaliano desferia golpes, altos e baixos, com o tridente
comprido, que o Barata aparava facilmente, mas com um olho na rede, carregada com pequenas
bolas de chumbo, que o tessaliano manobrava com a mão esquerda.
Belo trabalho! ouvi Lívia dizer para Augusto. O homem que melhor maneja a rede em Roma. Ele
está a brincar com o soldado. Reparaste? Podia têlo enredado e desferido então o seu golpe, se
quisesse. Mas está a fazer durar a luta.
Sim, disse Augusto. Receio que o soldado esteja arrumado. Devia terse mantido longe da bebida.
Augusto mal acabara de falar, quando o Barata deu uma pancada no tridente e saltou em direcção
ao adversário, rasgando a túnica de couro do tessaliano entre o braço e o corpo. Este afastouse
como um relâmpago e, ao mesmo tempo que corria, fez girar a rede de encontro ao rosto do
Barata. Por má sorte deste, uma bola de chumbo bateulhe no olho, cegandoo
momentaneamente. Ele vacilou e o tessaliano, vendo que estava em vantagem, voltouse e fez
saltarlhe a espada da mão. De um salto, o Barata tentou recuperála, mas o tessaliano chegou lá
primeiro, correu com ela para a barreira e atiroua para o outro lado, para um rico patrono que
estava sentado na primeira fila, reservada aos Cavaleiros. Depois, voltou para a tarefa agradável
de espicaçar e arrumar um homem desarmado. A rede assobiava em volta da cabeça do Barata e o
tridente picava aqui e além; mas o Barata ainda não desanimara e, num gesto
131
rápido, quase agarrou o tridente. O tessaliano tinhao empurrado em direcção ao nosso Camarote
para fazer uma morte espectacular.
Basta! disse Lívia, num tom casual Já chega desta brincadeira. É tempo de acabar com ele.O
tessaliano não precisava que o encorajassem. Ao mesmo tempo que fazia girar a rede em volta da
cabeça do Barata, arremeteu com o tridente de encontro à barriga. E então, que brado subiu no ar!
O Barata tinha agarrado a rede com a mão direita e, atirando o corpo para trás, deu um pontapé
com toda a força no cabo do tridente, a uns cinquenta centímetros da mão do seu inimigo. A arma
voou para cima, passou sobre a cabeça do tessaliano, deu uma volta no ar e foi enterrarse,
vibrante, na barreira de madeira. O tessaliano detevese um momento, surpreso; depois, deixou a
rede nas mãos do Barata e lançouse em corrida para ir buscar o tridente. O Barata deu um salto
em frente e para o lado e embateulhe nas costelas, em plena corrida, com os espigões que lhe
revestiam o escudo. O tessaliano caiu de gatas, arquejante. O Barata recompôsse rapidamente e,
com um golpe brusco do escudo, de cima para baixo, apanhouo pela parte de trás do pescoço.
O golpedocoelho! disse Augusto. Nunca o tinha visto aplicado numa arena. E vós, querida
Lívia? Einh? Deve têlo morto, aposto.
O tessaliano estava morto. Eu esperava que Lívia ficasse muito aborrecida, mas a única coisa que
disse foi:
Bem feito para ele. É o que acontece quando se subestima o adversário. Estou decepcionada com
esse lutador da rede. Mesmo assim, poupoume quinhentas moedas de ouro; portanto, acho que
não me posso queixar.
Para coroar o divertimento daquela tarde, houve uma luta entre dois reféns germanos que calhou
pertencerem a dois clãs rivais e que se tinham envolvido voluntariamente num duelo de morte.
Não foi uma luta bonita, mas sim um ataque selvagem com espada comprida e alabarda; cada um
deles usava um pequeno escudo profusamente ornamentado, preso com correias ao antebraço
esquerdo. Era uma maneira invulgar de lutar, porque o soldado germano normal faz todo o seu
trabalho com a azagaia de cabo fino e cabeça estreita: a alabarda de cabeça larga e a espada
comprida são marcas de uma posição elevada. Um dos combatentes, um homem de cabelos
louros com mais de um metro e oitenta, não tardou a arrumar o outro, fazendolhe cortes terríveis
antes de desferir um último golpe esmagador na parte lateral do pescoço. A multidão fez ouvir
um aplauso sonoro que lhe subiu à cabeça, pois começou a fazer um discurso numa mistura de
germano e latim de acampamento militar, dizendo que era um guerreiro famoso no seu país e
tinha morto seis romanos em batalha, incluindo um oficial, antes de ter sido entregue como refém
por um tio invejoso, o chefe tribal. Agora, desafiava qualquer romano de posição para se
defrontar com ele, espada contra espada, e proporcionarlhe a sorte de matar o sétimo.
132
O primeiro campeão que saltou para o ringue foi um jovem oficial do estadomaior de uma
família antiga mas arruinada, chamado Cássio Chaerea. Aproximouse do Camarote a correr,
pedindo permissão para aceitar o desafio. O pai, disse ele, tinha sido morto na Germânia sob
aquele glorioso general, em cuja memória estava a ser feita aquela demonstração: serlheia
permitido sacrificar aquele gabarola ao espírito do seu pai? Cássio era melhor espadachim. Eu
tinhao visto muitas vezes nos Campos de Marte. Germano aconselhouse com Augusto e depois
comigo; quando Augusto deu o seu consentimento e eu murmurei o meu, Cássio recebeu ordens
para se armar. Foi aos vestiários e pediu emprestados a espada, o escudo e a armadura do Barata,
para lhe darem sorte e em homenagem a este.
Não tardou a que começasse uma luta bem mais grandiosa do que qualquer das que tinham sido
mostradas pelos outros lutadores, com o germano a fazer rodar a grande espada e Cássio a aparar
com o escudo e a tentar sempre penetrar na guarda do adversário mas este era tão ágil como era
forte, e por duas vezes obrigou Cássio a ajoelhar. A multidão guardava no mais perfeito silêncio,
como se estivessem a observar uma cerimónia religiosa; não se ouvia outra coisa além do
entrechocar do aço contra aço e do matraquear dos escudos. Augusto disse:
Receio que o germano seja forte demais para ele. Não devíamos ter permitido isto. Se Cássio for
morto, gerarseá uma má impressão na fronteira, quando lá chegar a notícia.
Depois, o pé de Cássio escorregou numa poça de sangue e ele caiu de costas. O germano pôsse
sobre ele com uma perna de cada lado e um sorriso triunfante no rosto e nessa altura... nessa
altura houve um rugido nos meus ouvidos e um negrume diante dos meus olhos e eu desmaiei. A
emoção de ver homens serem mortos pela primeira vez na minha vida, o combate entre o Barata e
o tessaliano, no qual todas as minhas simpatias iam para o Barata, e agora esta luta, em que
parecia ser eu próprio a lutar desesperadamente pela vida com o germano tudo isso foi demais
para mim. Por isso, não presenciei a maravilhosa recuperação de Cássio, quando o germano
ergueu aquela espada horrível para lhe esmagar o crânio, o impulso repentino de baixo para cima
atirando a orla do escudo às virilhas do germano, o rolar para o lado e o golpe rápido e decisivo
por baixo da axila. Sim, Cássio matou o seu homem. Não esqueçais este Cássio, pois duas vezes,
três vezes, desempenha um papel importante nesta história. Quanto a mim, durante algum tempo,
ninguém reparou que eu tinha desmaiado e, quando repararam, já estava a voltar a mim.
Puseramme de novo direito no meu lugar até o espectáculo terminar formalmente. Eu ser levado
em braços para fora teria sido uma vergonha para todos.
No dia seguinte os Jogos continuaram, mas eu não estive presente. Foi anunciado que me encontrava
doente. Perdi um dos combates mais
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espectaculares a que jamais se assistiu no anfiteatro, entre um elefante indiano muito maior do
que a espécie africana e um rinoceronte. Os conhecedores apostaram no rinoceronte, pois embora
fosse de longe o animal mais pequeno, a sua pele era muito mais espessa que a do elefante e era
esperado que desse cabo do elefante com aquele seu longo corno afiado. Em África, diziam, os
elefantes tinham aprendido a evitar as paragens onde havia rinocerontes, que detêm um domínio
incontestado no seu próprio território. Este elefante indiano, no entanto, tal como Póstumo me
descreveu posteriormente, não mostrou qualquer ansiedade ou medo quando o rinoceronte entrou
à carga na arena, recebendoo todas as vezes com as suas presas e avançando pesadamente atrás
dele com uma velocidade desajeitada quando se retirava confuso. Mas achandose incapaz de
penetrar a espessa armadura do pescoço do animal quando atacava, esta criatura fantástica
recorreu à astúcia. Apanhou com a tromba uma vassoura grosseira, feita de espinheiro, que um
varredor tinha deixado sobre a areia e enfioua na cara do inimigo quando ele voltou a atacar:
conseguiu cegarlhe primeiro um dos olhos e depois o outro. O rinoceronte, tomado pela fúria e
pela dor, precipitouse para um lado e para o outro, perseguindo o elefante, e acabou por se enfiar
em cheio de encontro à barreira de madeira, atravessandoa e esmigalhando o corno, indo
atordoarse depois na barreira de mármore, do outro lado. Então surgiu o elefante, com a boca
aberta como se estivesse a rirse e, alargando primeiro a brecha na madeira, começou a pisar o
crânio do inimigo caído, que esmagou. Depois pôsse a abanar a cabeça, como que a seguir um
ritmo musical, e não tardou a afastarse tranquilamente. O seu condutor indiano apareceu a correr
com uma enorme taça cheia de doces, que o elefante despejou para a boca enquanto a assistência
rugia o seu aplauso. Depois, o animal ajudou o guarda a subirlhe para o pescoço, oferecendolhe
a tromba como escadote e aproximouse de Augusto: aí, fez ouvir a saudação real que estes
elefantes são ensinados a dirigir apenas a monarcas e ajoelhou em homenagem. Mas como, já
disse, perdi esta actuação.
Nessa noite, Lívia escreveu a Augusto:
Meu querido Augusto,
O comportamento nada viril de Cláudio no dia de ontem, desmaiando perante a visão de dois homens em
luta, para não falar nos estremecimentos grotescos das mãos e da cabeça, que num festival solene em
comemoração das vitórias do pai foram ainda mais vergonhosos e infelizes, teve pelo menos uma
vantagem, a de podermos finalmente decidir de uma vez por todas que, excepto na dignidade de sacerdote
uma vez que as vagas dos colégios têm que ser preenchidas de alguma forma e Pláucio conseguiu treinálo
o suficiente nos seus deveres, Cláudio está
134
perfeitamente incapaz de aparecer em público. Temos que nos contentar em pôlo de lado como uma
oportunidade perdida, excepto talvez para procriação, pois ouvi dizer que ele cumpriu a sua obrigação
com Urgulanila mas não posso ter a certeza disso enquanto não vir a criança, que pode muito bem ser um
monstro como ele.
Antónia surripiou hoje do estúdio dele aquilo que parece ser um livro de notas de material histórico, que
ele tem estado a reunir para uma biografia do pai; com ele, encontrou ainda uma introdução
laboriosamente composta para o trabalho projectado, que junto vos envio. Notareis que Cláudio escolheu
para objecto de louvor a conhecida falha intelectual do seu querido pai aquela cegueira obstinada perante a
marcha do tempo, a ilusão política de que as formas políticas que convinham a Roma quando não passava
de uma pequena cidade em guerra com as pequenas cidades vizinhas podiam ser restabelecidas depois de
Roma se ter tornado o maior reino conhecido desde os tempos de Alexandre. Vejase o que aconteceu
quando Alexandre morreu e não foi possível encontrar ninguém que fosse suficientemente forte para lhe
suceder como supremo monarca bom, o Império pura e simplesmente desmembrouse. Mas não quero
desperdiçar o meu tempo e o vosso com trivialidades políticas.
Atenodoro e Sulpício, com quem acabo de conferenciar, dizem que não tinham visto esta introdução até
que eu lha mostrei e concordam que não é nada recomendável. Juram que nunca puseram quaisquer ideias
subversivas na cabeça dele e sugerem que as deve ter colhido em livros antigos. Pessoalmente, acho que
as herdou o avô tinha a mesma curiosa enfermidade, como estais lembrado e é mesmo típico de Cláudio
ter escolhido essa fraqueza como herança e ter recusado qualquer legado de saúde física ou moral! Graças
a Deus por Tibério e Germano! Esses não defendem tolices republicanas, tanto quanto sei.
Naturalmente estou a dar instruções a Cláudio no sentido de o fazer desistir das suas tarefas biográficas,
dizendo que, se ele envergonha a memória do pai ao desmaiar durante os Jogos solenes feitos em sua
honra, é evidente que não está preparado para escrever a vida dele: será bom que arranje outra ocupação
para a pena.
Lívia
Desde que Fólio me contara acerca do envenenamento do meu pai e do meu avô, que eu me
sentia fortemente perplexo. Não conseguia chegar a uma conclusão se o velho estaria a dizer
disparates devido à senilidade ou a alguma brincadeira, ou se ele sabia realmente alguma coisa.
Quem, a não ser o próprio Augusto, estaria suficientemente interessado na monarquia para ter
envenenado um nobre apenas porque acreditava num governo republicano? No entanto, eu não
podia acreditar que Augusto fosse um assassino: o veneno era um modo mesquinho de matar, o
modo
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de um escravo, e Augusto nunca teria descido a isso. Além disso, ele não era nenhum hipócrita e, quando
falava do meu pai, era sempre com admiração e afecto. Consultei duas ou três histórias recentes, mas elas
não me disseram nada que eu não tivesse já ouvido a Germano sobre as circunstâncias da morte do meu
pai.
Foi apenas uns dois dias antes dos jogos que calhou estar a conversar com o nosso porteiro, que tinha sido
ordenança de meu pai ao longo das suas campanhas. O honesto homem tinha andado a beber um pouco
demais, porque o nome do meu pai andava nos lábios de todos nessa altura e os seus veteranos tinham
vindo receber o reflexo da sua glória.
Contame o que sabes da morte de meu pai, disselhe abertamente, Corriam algumas histórias no
acampamento que a morte dele tivesse sido causada por outros meios que não um acidente?
Ele replicou:
Eu não o diria a ninguém, senhor, a não ser a vós, mas eu posso confiar em vós, senhor. Sois filho do
vosso pai e eu nunca conheci nenhum homem que não confiasse nele. Sim, senhor, corria um rumor e
havia mais alguma coisa por trás dele do que na maior parte dos rumores de acampamento. Vosso
corajoso e nobre pai, senhor, foi envenenado, estou convencido disso. Uma certa pessoa, cujo nome não
vou mencionar, porque já o sabeis mesmo sem que eu o diga, sentia inveja das vitórias de vosso pai e
envíoulhe uma ordem para que regressasse. Isso não é nenhuma historieta, nem um boato, mas sim
história. A ordem veio quando vosso pai tinha partido uma perna; nada de grave e estava a correr tudo
bem, até que um tal doutor chegou de Roma, ao mesmo tempo que a mensagem, com o seu saquinho de
venenos na mão. Quem enviou esse médico? A mesma pessoa que enviou a mensagem. Dois e dois são
quatro, não é verdade, senhor? Nós, os ordenanças, queríamos matar o tal doutor, mas ele regressou a
Roma são e salvo com uma escolta especial.
Quando li o bilhete de minha avó Lívia dizendome que desistisse de escrever a vida de meu pai, a minha
perplexidade aumentou. Pólio não podia ter tido a intenção de apontar a minha avó como a assassina do
antigo marido e do filho? Era impensável. E qual seria o motivo dela? No entanto, quando considerava a
questão, erame mais fácil acreditar que tivesse sido Lívia do que Augusto.
Nesse Verão, Tibério precisava de homens para a guerra na Germânia do Leste e foram chamados recrutas
da Dalmácia, uma província que ultimamente tinha estado muito tranquila e dócil. Mas quando o
contingente se reuniu, calhou o cobrador de impostos andar a fazer a sua visita anual àquelas regiões e
exigir à província nada mais que a soma fixada por Augusto, mas que era mais do que eles podiam
facilmente pagar. Houve sonoros protestos de miséria. O cobrador de impostos exerceu o seu direito de se
apoderar das crianças bonitas da aldeia e leválas para
136
serem vendidas como escravas. Os pais de algumas das crianças assim apanhadas eram membros do
contingente e, naturalmente, fizeram grande clamor. Toda a força se revoltou. Uma tribo bósnia sublevou
se por simpatia e, em breve, todas as nossas províncias da fronteira entre a Macedónia e os Alpes estavam
em fogo. Felizmente, Tibério conseguiu fazer a paz com os germanos a instâncias deles, não suas e
marchar contra os rebeldes. Os dálmatas recusaram enfrentálo numa luta declarada e dividiramse em
pequenas colunas, levando a cabo uma hábil luta de guerrilha. Tinham armas leves e conheciam bem o
país e, quando chegou o Inverno, ousaram mesmo fazer incursões na Macedónia.
Augusto, em Roma, não podia compreender as dificuldades que Tibério tinha que enfrentar e suspeitava
que ele atrasasse deliberadamente as operações por razões secretas e privadas, que lhe escapavam
inteiramente. Decidiu enviar Germano com um exército seu, para incitar Tibério à acção.
Germano, que ia agora nos vinte e três anos, acabava de assumir, cinco anos antes da idade habitual, a sua
primeira magistratura na Cidade. A sua missão militar causou surpresa: todos esperavam que fosse
Póstumo o escolhido. Póstumo não tinha cargos de magistratura, mas estava ocupado nos Campos de
Marte a treinar os recrutas para este novo exército: ele tinha agora o posto de comandante dos regimentos.
Era três anos mais novo que Germano, mas o seu irmão Caio tinha sido enviado para governar a Ásia com
a idade de dezanove anos e tinhase tornado Cônsul no ano seguinte. Póstumo não era de forma alguma
menos capaz que Caio, isso era ponto assente, e, afinal de contas, era o único neto vivo de Augusto.
Os meus próprios sentimentos ao ouvir a notícia, que ainda não fora tornada pública, ficaram divididos
entre a alegria por causa de Germano e a tristeza por causa de Póstumo. Fui procurar Póstumo e cheguei
aos seus aposentos no Palácio ao mesmo tempo que Germano. Póstumo saudounos a ambos
afectuosamente e felicitou Germano pelo seu posto de comando.
Germano disse:
Foi por causa disto que vim, caro Póstumo. Sabes muito bem que me sinto orgulhoso e satisfeito por ter
sido escolhido, mas a reputação militar não representa nada para mim, se com isso te fizer mal. És um
soldado tão capaz como eu e, como herdeiro de Augusto, devias evidentemente ter sido escolhido. Com o
teu consentimento, proponho ir procurálo agora e oferecerme para abdicar a teu favor. Farlheei notar a
má interpretação que a Cidade não deixará de fazer da sua preferência pela minha pessoa em relação a ti.
Ainda não é tarde para fazer a alteração. Póstumo respondeu:
Caro Germano, és muito generoso e nobre e, por essa razão, vou falar francamente. Tens razão quando
dizes que a Cidade tratará isto como menosprezo pela minha pessoa. O facto dos teus deveres como
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magistrado estarem a ser interrompidos pela nomeação, enquanto eu estou perfeitamente livre para partir,
agrava a questão. Mas, acreditame, a decepção que sinto é amplamente recompensada por mais esta
prova que me deste da tua amizade; e desejote rápido restabelecimento e todos os êxitos possíveis.
Depois disse:
Se me desculpardes ambos por expressar uma opinião, acho que Augusto analisou o caso com mais
cuidado do que aquele que lhe atribuis. A julgar pelo que ouvi a minha mãe esta manhã, presumo que ele
desconfia que Tibério esteja propositadamente a prolongar a guerra. Se ele enviasse Póstumo com as
novas forças, depois dessa velha história do desentendimento entre meu tio e os irmãos de Póstumo, o meu
tio poderia ficar desconfiado e ofendido. Póstumo aparecerlheia como um espião e um rival. Mas
Germano é seu filho adoptivo e pareceria ter sido enviado meramente como reforço. Pareceme que não há
mais nada a dizer, a não ser que Póstumo terá a sua oportunidade noutro lugar, sem dúvida, e que isso não
tardará.
Ficaram ambos muito satisfeitos com esta nova visão do caso, que fazia crédito a ambos e todos nos
separámos na mais amigável das disposições.
Nessa mesma noite, ou antes, às primeiras horas da manhã seguinte, eu estava a trabalhar tarde no meu
quarto no andar superior da nossa casa, quando ouvi gritos distantes e, daí a pouco, ruídos abafados na
varanda. Fui à porta e vi aparecer uma cabeça na parte superior da varanda e depois um braço. Era um
homem em trajo militar, que atirou uma perna por cima da varanda, impelindo o corpo para cima. Fiquei
paralisado por um momento e o primeiro pensamento desvairado que me ocorreu foi: Ӄ um assassino
enviado por Lívia.” Preparavame para gritar por socorro quando ele disse em voz baixa:
Shh! Está tudo bem! Sou Póstumo.”
Oh, Póstumo! Que susto me pregaste. Porque entras assim a esta hora da noite como um assaltante? E o
que é que tens? O teu rosto está a sangrar e tens o casaco rasgado.
Vim despedirme, Cláudio.
Não entendo. Augusto mudou de ideias? julgava que a nomeação já tinha sido tornada pública.
Dáme de beber, estou com sede. Não, não vou para as guerras. Longe disso. Mandaramme ir pescar.
Não fales em enigmas. Aqui está o vinho. Bebe depressa e dizme qual é o problema. Onde vais pescar?
Ah, para qualquer pequena ilha. Não creio que já tenham escolhido.
Queres dizer...? O meu coração bateu mais forte e senti a cabeça andar à roda.
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Sim, estou a ser exilado, como a minha pobre mãe.
Mas porquê? Que crime cometeste?
Nenhum crime que possa ser oficialmente referido ao Senado. Calculo que a frase seja depravação
incurável e persistente. Lembraste daquele Debate de Almofada?
Oh Póstumo! A minha avó...?
Ouve com atenção, Cláudio, porque o tempo urge. Estou sob prisão apertada, mas agora mesmo
consegui derrubar dois dos meus acompanhantes e fugir. A guarda do Palácio foi chamada e todos os
possíveis meios de fuga estão bloqueados. Eles sabem que estou algures nestes edifícios e vão revistar
cada quarto. Senti que precisava falarte, porque quero que saibas a verdade e não acredites nas acusações
que eles inventaram a meu respeito. E quero que contes tudo a Germano. Envialhe as minhas mais
carinhosas saudações e contalhe tudo, exactamente como to estou a dizer agora. Não me interessa o que
os outros pensam de mim, mas quero que Germano e tu saibam a verdade e pensem bem de mim.
Não esquecerei uma palavra, Póstumo. Depressa, contame tudo desde o princípio.
Bom, tu sabes que, ultimamente, não tenho estado nas boas graças de Augusto. A princípio não entendia
porquê, mas em breve se tornou evidente que Lívia lhe estava a envenenar o espírito contra mim. Augusto
é extraordinariamente fraco em relação a ela. Imagina viver com ela há quase cinquenta anos e continuar a
acreditar em cada palavra que diz! Mas Lívia não foi a única nesta conspiração. Livila esteve envolvida
também.
Livila! Oh, lamento muito!
Sim. Sabes como eu a amava e quanto sofri por causa dela. Uma vez referiste, há cerca de um ano, que
Livila não merecia que me preocupasse com ela e lembraste de como fiquei zangado contigo. Não te falei
durante vários dias. Lamento agora terme zangado, Cláudio. Mas tu sabes como é quando alguém está
desesperadamente apaixonado por uma pessoa. Não te expliquei nessa altura que, pouco antes de se casar
com Castor, ela me disse que Lívia lhe impusera esse casamento e que, na realidade, ela só me amava a
mim. Acreditei nela. Porque não havia de ter acreditado? Tinha esperança que algum dia alguma coisa
acontecesse a Castor e ela e eu pudéssemos ficar livres para nos casarmos. Desde então, essa ideia temme
acompanhado noite e dia. Hoje à tarde, logo após ter falado contigo, estava sentado com ela e Castor
debaixo da latada junto do grande lago das carpas. Ele começou a zombar de mim. Compreendo agora que
tudo tinha sido cuidadosamente ensaiado de antemão entre eles. A primeira coisa que ele disse foi: ”Então,
preferiram Germano a ti, einh?” Eu disselhe que considerava a nomeação sensata e que acabava de
felicitar Germano. Então, ele acrescentou num tom irónico: ”Quer dizer que
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a nomeação foi aprovada por ti como príncipe? A propósito, ainda esperas suceder ao teu avô como
Imperador?” Mantive a calma em atenção a Livila, mas disse que não me parecia decente discutir a
sucessão enquanto Augusto estava ainda em vida e de posse de todas as suas faculdades. Depois,
pergunteilhe ironicamente se estava a oferecerse como candidato rival. Ele retorquiu, com um sorriso
desagradável: ”Bom, se o fizesse, acho que teria mais possibilidades de sucesso do que tu, Geralmente,
consigo o que quero. Uso a cabeça. Conquistei Livila usando a cabeça. Sinto vontade de rir quando penso
na facilidade com que convenci Augusto de que tu não eras o marido indicado para ela, Talvez dessa
maneira eu consiga também outras coisas que quero. Quem sabe?” Isto deixoume realmente a ferver.
Pergunteilhe se queria dizer que tinha andado a contar mentiras a meu respeito. Ele disse: ”Porque não?
Eu queria Livila e foi assim que a consegui.” Volteime para Lívíla e pergunteilhe se sabia disto. Ela
fingiu que estava indignada e disse que não sabia absolutamente nada, mas que acreditava que Castor era
capaz de qualquer atitude desonesta. Obrigouse a verter uma ou duas lágrimas e disse que Castor não
prestava e que ninguém podia imaginar como tinha sofrido com ele e que desejaria estar morta.
Sim, esse é um dos velhos truques dela. Chora quando lhe convém. Leva todos à certa. Se eu te tivesse
contado tudo o que sei dela, talvez me tivesses odiado durante algum tempo, mas terteia poupado tudo
isto. E depois, o que aconteceu?
Esta noite, ela mandoume uma mensagem verbal por uma aia, dizendo que Castor estaria provavelmente
fora toda a noite numa das suas orgias habituais e que, quando eu visse uma luz na janela, pouco depois da
meianoite, fosse ter com ela. Uma janela seria deixada aberta mesmo por baixo da luz e eu podia entrar
tranquilamente. Queria dizerme uma coisa muito importante. Claro que isso só podia significar uma coisa
e o meu coração bateu mais forte. Esperei no jardim durante horas, até que vi a luz aparecer por momentos
na janela dela. Depois, encontrei a janela aberta em baixo e entrei. A criada de Livila estava lá e
encaminhoume para o andar de cima. Indicoume como podia entrar no quarto de Livila, saltando de
uma janela para outra até alcançar a janela certa; isto para evitar o guarda que estava colocado no
corredor, junto à porta do quarto. Bom, encontrei Lívíla à minha espera em camisa de noite, com os
cabelos soltos, de uma beleza infernal. Disseme como Castor se comportara para com ela de forma cruel.
Que não lhe devia nada como esposa porque, como ele próprio confessara, se casara com ela por meio de
fraude e a tratara com a maior brutalidade. Atirou os braços à minha volta, eu pegueilhe e leveia até à
cama. Estava louco de desejo por ela. Depois, repentinamente, ela começou a gritar e a socarme. Por
momentos, pensei que tivesse endoidecido e puslhe a mão sobre a boca para a acalmar. Ela
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lutou para se libertar, derrubando uma pequena mesa que tinha em cima um candeeiro e um jarro de
vidro. Depois, pôsse a gritar ”Estupro! Estupro!”; a porta foi arrombada e a guarda do Palácio entrou por
ali dentro com archotes. Adivinhas quem se encontrava à frente deles?
Castor?
Lívia. Levounos, tal como estávamos, à presença de Augusto. Castor estava com ele, embora Livila me
tivesse dito que tinha ido jantar do outro lado da cidade. Augusto mandou sair a Guarda e Lívia, que até aí
mal tinha pronunciado uma palavra, começou o seu ataque contra mim. Disselhe que, por sugestão dele,
tinha ido aos meus aposentos para me informar em privado das acusações de Emília e perguntarme que
explicação eu podia dar.
Emília! Qual Emília?
A minha sobrinha.
Não sabia que ela tinha alguma coisa contra ti.
E não tem. Ela também estava implicada no esquema. Assim, Lívia disse que, não me tendo encontrado
nos meus aposentos, se tinha informado e lhe disseram que a patrulha me tinha visto sentado no jardim
debaixo de uma pereira do lado sul. Ela mandou um soldado procurarme, mas ele voltou e disse que eu
não estava lá e que tinha uma coisa suspeita a relatar: tinha visto um homem a trepar de uma das varandas
superiores para outra mesmo por cima do relógio solar. Ela sabia de quem eram aqueles quartos e ficou
muito alarmada. Por sorte, chegou mesmo a tempo. Tinha ouvido os gritos de Livila a pedir socorro: eu
introduzirame no quarto dela através da varanda e estava a tentar violála. Os guardas tinham arrombado
a porta e afastaramme à força ”da jovem mulher aterrorizada e seminua”. Tinhame levado para lá
imediatamente, assim como Livila, para servir de testemunha. Enquanto Lívia contava a sua história,
aquela prostituta da Livila soluçava e escondia a cara. Tinha a camisa de noite rasgada deve têla rasgado
ela mesma de propósito. Augusto chamoume besta e sátiro e perguntoume se tinha endoidecido. Claro
que eu não podia negar que tivesse estado no quarto dela ou mesmo que tivesse feito amor com ela. Disse
que tinha lá ido por convite e tentei explicar tudo desde o princípio, mas Livila pôsse a gritar: ”É mentira.
É mentira. Eu estava a dormir e ele entrou pela janela e tentou violarme.” Então, Lívia disse: ”E suponho
que a tua sobrinha Emília te tenha convidado para a violares a ela também? Pareces ser muito popular
junto das mulheres jovens.” Lívia foi muito esperta. Tive que me justificar em relação a Emília e deixar a
história de Livila. Disse a Augusto que tinha jantado com minha irmã Julila na noite anterior e que Emília
estava presente, mas aquela era a primeira vez que eu via a rapariga nos últimos seis meses. Perguntei em
que ocasião é que poderia têla violado e Augusto respondeu que eu sabia muito bem quando depois do
jantar,
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durante a ausência temporária dos pais dela, que foram chamados por um alarme de assalto , e que só
tinha sido impedido de o fazer pelo regresso dos pais da jovem. A história era tão ridícula que, embora
estivesse furioso, não consegui deixar de me rir; mas isso aumentou a fúria de Augusto. Esteve quase a
levantarse da cadeira de marfim e a baterme. Eu interrogueio:
Não entendo. Houve realmente algum alarme de assalto?
Sim, e Emília e eu ficámos sozinhos por minutos, mas a conversa foi inofensiva e a governanta dela
estava presente! Estivemos a discutir árvores de fruto e pestes das plantas até que Julila e Emílio voltaram
e disseram que tinha sido um falso alarme. Julila e Emílio não recebem ordens de Lívia, podes ter a
certeza eles odeiamna , portanto, deve ter sido tudo arranjado por Emília. Pusme a pensar rapidamente
qual o rancor que poderia ter contra mim, mas não consegui lembrarme de nada. De repente, ocorreume
a explicação. Julila disserame em segredo que Emília estava finalmente a conseguir o que queria: ia
casarse com Ápio Silano. Conheces aquele jovem afectado, não conheces?
Sim. Mas não estou a perceber.
É muito simples. Eu disse para Lívia: ”A recompensa de Emília por esta mentira vai ser o casamento
com Silano, não vai? E o que é que recebe, Lívia? Prometesteslhe envenenar o actual marido e arranjar
lhe um mais atraente?” Logo que pronunciei a palavra envenenar, percebi que estava condenado. Por isso,
decidi dizer tudo o que podia enquanto tinha essa oportunidade. Perguntei a Lívia como é que tinha
arranjado o envenenamento de meu pai e irmãos e se preferia os venenos lentos ou os rápidos. Cláudio,
achas que ela os matou? Eu tenho a certeza que sim.
Ousaste perguntarlhe isso? É muito provável. Eu também acho que ela envenenou o meu pai e o meu
avô repliquei, e não creio que tenham sido as suas únicas vítimas. Mas não tenho provas.
Nem eu, mas gostei de a acusar. Gritei com todas as minhas forças, de forma que metade do Palácio deve
ter ouvido. Lívia saíu apressada e foi chamar a Guarda. Vi Livila sorrir. Deiteilhe as mãos ao pescoço,
mas Castor meteuse de permeio e ela fugiu. Lutei com Castor, partilhe o braço e dois dentes da frente,
que caíram sobre o chão de mármore. Mas não lutei com os soldados. Teria sido aviltante. Além disso,
eles estavam armados. Dois deles seguravam cada um dos meus braços, enquanto Augusto me lançava
insultos e ameaças. Disse que serei exilado para o resto dos meus dias na ilha mais desolada dos seus
domínios e que apenas a sua filha desnaturada podia terlhe dado um neto tão desnaturado. Disselhe que,
de nome, ele era Imperador dos Romanos, mas que, na realidade, era menos livre que qualquer escrava de
um dono de bordel ébrio e que, um dia, os seus olhos haveriam de se abrir para os crimes e
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embustes desnaturados da sua abominável esposa. Mas entretanto, disse, o meu amor e lealdade para com
ele permaneciam inalterados.
O alarido ressoava agora no andar inferior da nossa casa. Póstumo disse:
Não quero comprometerte, meu caro Cláudio. Não devo ser encontrado no teu quarto. Se tivesse uma
espada usavaa agora. É melhor morrer lutando do que apodrecer numa ilha.
Paciência, Póstumo. Cede agora e a tua oportunidade virá mais tarde. Prometote que virá. Quando
Germano souber a verdade, não vai descansar enquanto não estiveres livre de novo e eu também não. Se
fizeres com que te matem, isso será apenas um triunfo barato para Lívia,
Nem tu nem Germano podem explicar todas as provas reunidas contra mim. Só te metias em problemas
se tentasses.
A oportunidade háde chegar, digote eu. Lívia tem tido tudo a seu jeito tempo demais e háde acabar por
se tornar descuidada. Não pode deixar de ter alguma falha em breve. Não seria humana se isso não
acontecesse.
Não creio que ela seja humana, disse Póstumo.
E quando Augusto de repente perceber como tem sido enganado, não achas que vai ser tão impiedoso
para com ela como foi com a tua mãe?
Ela envenenao primeiro.
Germânico e eu velaremos para que não o faça. Preveniloemos. Não desesperes, Póstumo. Tudo estará
bem no fim. Heide escreverte cartas sempre que puder e enviarte livros para leres. Não tenho medo de
Lívia. Se não receberes as minhas cartas, saberás que estão a ser retidas. Olha cuidadosamente para a
sétima página de qualquer livro cosido que te chegue vindo de mim. Se tiver alguma mensagem particular
para ti, escrevoa aí com leite. É um truque usado pelos egípcios. A escrita é invisível, até que a aqueças
diante do lume. Ouve as portas a bater. Agora tens que ir. Estão ao fundo do próximo corredor.
Ele tinha lágrimas nos olhos. Abraçoume ternamente sem mais uma palavra e encaminhouse rápido para
a varanda. Trepou para o parapeito, acenou com a mão num gesto de despedida e deslizou pela velha
trepadeira por onde tinha subido. Ouvio afastarse correndo pelo meio do jardim e, um instante depois,
ouvi gritos e brados da guarda.
Não tenho qualquer memória daquilo que aconteceu no mês seguinte ou mesmo mais. Fiquei doente de
novo: tão doente que eles falavam de mim como se já estivesse morto. Quando comecei a recuperar,
Germano
143
já andava nas guerras e Póstumo tinha sido deserdado e exilado para o resto da vida. A ilha escolhida para
ele foi Planásia. Ficava a cerca de doze milhas de Elba na direcção da Córsega e nenhum humano
guardava memória dela ter sido habitada. Mas havia lá algumas cabanas de pedra préhistóricas que foram
convertidas em habitação
para Póstumo e quartel para a guarda. Planásia tinha uma forma aproximadamente triangular, tendo o
lado mais comprido cerca de cinco milhas. Era desprovida de árvores e rochosa e apenas visitada pelos
barqueiros de Elba no Verão, quando vinham preparar as armadilhas para as lagostas. Por ordem de
Augusto, esta prática foi interrompida, com medo de que Póstumo subornasse alguém e fugisse.
Tibério era agora o único herdeiro de Augusto, com Germano e Castor para continuar a linhagem depois
dele a linhagem de Lívia.
144
CAPíTULO XII
Se limitasse o meu relato dos acontecimentos dos próximos vinte e cinco anos ou mais às minhas próprias
intervenções, não gastaria muito papel e a leitura resultaria bem monótona; mas a parte final desta autobiografia, na
qual figuro com maior proeminência, só será inteligível se continuar aqui com as histórias pessoais de Lívia, Tibério,
Germano, Póstumo, Castor, Livila e o resto, que estão longe de ser monótonas, isso vos prometo eu.
Póstumo estava no exílio e Germano na guerra; dos meus verdadeiros amigos, apenas restava Atenodoro. Também
ele não tardou a deixarme para regressar à sua Tarso nativa. Não lhe dificultei a partida, porque ele foi atender ao
chamamento urgente de dois sobrinhos que lá tinha e que lhe suplicaram que os ajudasse a libertar a cidade da tirania
do seu governador. Escreveramlhe que este governador se insinuara com tanta esperteza nas boas graças do seu
Deus Augusto, que seria necessário o testemunho de um homem como Atenodoro, em cuja integridade o seu Deus
Augusto tinha total confiança, para o persuadir de que a expulsão daquele indivíduo era justificada. Atenodoro
conseguiu libertar a cidade daquele parasita, mas depois descobriu que lhe era impossível regressar a Roma, como
era sua intenção. Os sobrinhos precisavam dele para os ajudar a reconstruir a administração da cidade em alicerces
sólidos. Augusto, a quem escreveu um relato detalhado dos seus actos, mostrou a sua gratidão e confiança
concedendo a Tarso, como um favor pessoal para ele, uma remissão de cinco anos do tributo imperial. Correspondi
me regularmente com o bom velho até ao momento da sua morte, dois anos mais tarde, com a idade de oitenta e dois
anos. Tarso honrou a sua memória com um festival e sacrifício anuais, no qual os cidadãos mais proeminentes liam à
vez a sua História Breve de Tarso, de fio a pavio, começando ao nascer do sol e terminando depois do solposto.
Germânico escreviame ocasionalmente, mas as suas cartas tinham tanto de breve como de afectuosas: o comandante
de verdade não tem tempo para escrever cartas para a família; todo o tempo de que dispõe entre duas campanhas é
dedicado a conhecer os seus homens e os seus oficiais, a estudar o seu conforto, aumentarlhes a eficiência militar e
reunir informações sobre a disposição e planos do inimigo. Germânico era um
145
dos comandantes mais conscienciosos que alguma vez serviram no exército romano e mais amado ainda
que o nosso pai. Eu sentiame muito orgulhoso quando ele escrevia a pedirme que elaborasse para ele, tão
depressa e tão meticulosamente como me fosse possível, um resumo de todos os relatos confiáveis que
conseguisse encontrar nas bibliotecas sobre os hábitos domésticos das várias tribos balcânicas contra as
quais lutava, a força e situação geográfica das suas cidades, as suas tácticas e artimanhas militares
tradicionais, particularmente na guerra de guerrilha. Dizia que não conseguia reunir localmente um
número suficiente de informações confiáveis: Tibério tinha sido pouco comunicativo. Com a ajuda de
Sulpício e de um pequeno grupo de pesquisadores e copistas, trabalhando dia e noite, consegui reunir
exactamente o que ele precisava e enviarlhe uma cópia apenas um mês depois do seu pedido. Sentime
mais orgulhoso do que nunca quando ele me escreveu pouco tempo depois, pedindo uma edição de vinte
exemplares do livro para fazer circular entre os seus oficiais superiores, pois o mesmo já provara ser da
maior utilidade para ele. Disse que cada parágrafo era claro e relevante, sendo as secções mais úteis
aquelas que davam pormenores da irmandade militar secreta extratribal contra a qual, e não propriamente
contra as próprias tribos, a guerra estava a ser feita; e também sobre as diversas árvores e arbustos
uma espécie diferente era venerada por cada tribo , sob cuja sombra protectora os homens da tribo
costumavam enterrar as suas reservas de trigo, dinheiro e armas, quando tinham que abandonar
precipitadamente as suas aldeias. Prometia falar a Tibério e a Augusto dos meus valiosos serviços.
Não houve qualquer menção pública deste livro, talvez porque, se o inimigo tivesse sabido da sua
existência, teriam alterado as suas tácticas e disposições. Assim, convenceramse de que estavam a ser
constantemente traídos por informadores. Augusto recompensoume, sem carácter oficial, nomeandome
para uma vaga no Colégio dos Augures, mas era evidente que atribuía todo o crédito da compilação a
Sulpício, embora este não tivesse escrito uma só palavra ele limitouse a arranjarme alguns dos livros.
Uma das minhas fontes principais foi Pólio, cuja campanha na Dalmácia tinha sido um modelo de
exactidão militar, combinada com um brilhante trabalho de recolha secreta de informações. Embora o seu
relato dos costumes e condições locais parecesse estar uns cinquenta anos atrasado, Germânico achou os
meus extractos do mesmo bem mais úteis do que qualquer história de campanhas mais recente. Gostaria
que Pólio pudesse estar vivo para ouvir aquilo. No entanto, conteio a Lívio, que disse com alguma
irritação que nunca negara a Pólio o crédito de ter escrito manuais militares competentes; apenas lhe
negara o título de historiador, no sentido mais elevado.
146
A isto devo acrescentar que, se eu tivesse tido mais tacto, estou certo que Augusto me teria louvado no seu
discurso ao Senado no final da guerra. Mas as minhas referências às suas próprias campanhas nos Balcãs tinham sido
mais reduzidas do que poderiam ter sido no caso dele escrever um relato detalhado das mesmas, como Pólio fez em
relação às suas; ou se os historiadores oficiais estivessem menos preocupados em lisonjear o seu Imperador e mais
em registar os seus sucessos e revezes de uma forma imparcial, técnica. Destes panegíricos, pouco ou nenhum
material útil consegui extrair e Augusto, ao ler o meu livro, deve terse sentido ofendido. Ele identificavase a tal
ponto com o sucesso da guerra que, durante as duas últimas épocas de combates, se mudou de Roma para uma
cidade junto à fronteira nordeste de Itália, para estar o mais perto possível da luta; e, como ComandanteemChefe
dos Exércitos Romanos, enviava constantemente a Tibério conselhos militares que de pouco serviam.
Eu estava agora a trabalhar num relato da participação do meu avô nas Guerras Civis; mas ainda não tinha ido longe
quando, uma vez mais, fui detido por Lívia. Apenas conseguira completar dois volumes. Ela disseme que eu era tão
incapaz de escrever uma biografia do meu avô como do meu pai e que me comportara de forma desonesta ao fazêlo
nas suas costas. Se queria um emprego útil para a minha pena, faria melhor em escolher um assunto que não
envolvesse tantas ideias erróneas. E ela ofereciame um: a reorganização da religião por Augusto, depois da
Pacificação. Não era um assunto que suscitasse grande entusiasmo, mas não tinha sido tratado anteriormente de
forma detalhada e eu estava disposto a empreender essa tarefa. As reformas religiosas de Augusto tinham sido, quase
sem excepção, excelentes: ele tinha feito reviver várias sociedades antigas de sacerdotes, construído e mantido com
as suas doações oitenta e dois novos templos em Roma e arredores, reconstruido vários templos antigos que estavam
a cair em ruínas, introduzido cultos estrangeiros para benefício dos visitantes das províncias e reinstituído numerosos
festivais públicos, antigos e interessantes, que se tinham perdido uns a seguir aos outros durante os distúrbios civis
do meio século anterior. Mergulhei no assunto com o maior cuidado e completei o meu estudo poucos dias depois da
morte de Augusto, seis anos mais tarde. Fílo em quarenta e um volumes, com uma média de cinco mil palavras
cada, mas uma boa parte disto consistia de transcrições de decretos religiosos, listas nominais de sacerdotes,
catálogos de ofertas feitas aos tesouros dos templos, e assim por diante. O volume mais valioso era o da introdução,
que tratava do ritual primitivo em Roma. Aqui, encontreime em dificuldades, porque as reformas de Augusto no
campo dos rituais se basearam nas conclusões de uma comissão religiosa que não executara devidamente o seu
trabalho. Ao que parece, não havia nenhum perito em antiguidade entre os
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membros da comissão, de forma que uma série de interpretações grosseiramente erróneas das antigas
fórmulas religiosas tinham sido íncorporadas nas novas liturgia oficiais. Nenhuma pessoa que não tenha
feito um estudo das línguas etrusca e sabina é capaz de interpretar os nossos encantamentos religiosos
mais antigos; e eu dediquei uma boa parte do meu tempo a dominar os rudimentos de ambas. Nesta altura,
havia alguns camponeses que em casa ainda falavam exclusivamente o sabino e persuadi dois deles a vir a
Roma e a fornecer a Palas, que me servia agora de secretário, o material necessário para um breve
dicionário de sabino. Pagueilhes bem por isso. Enviei a Cápua o melhor dos meus secretários, Calon, para
recolher material para um dicionário semelhante da língua etrusca junto de Aruns, o sacerdote que me dera
a informação sobre Lars Porsena, que tanto agradara a Pólio e aborrecera Lívio. Estes dois dicionários,
que mais tarde alarguei e publiquei, permitiramme esclarecer, para minha satisfação, uma série de
problemas importantes dos antigos cultos religiosos; mas eu tinha aprendido a ser cuidadoso e nada do que
escrevi envolvia qualquer crítica aos conhecimentos e opiniões de Augusto.
Não gastarei tempo algum a relatar a Guerra dos Balcãs, para além de dizer que, apesar da inteligente
actuação do meu tio Tibério como general, da competente assistência que lhe deu meu avô Silvano e dos
feitos ousados de Germânico, ela se arrastou ao longo de três anos. No final, todo o país ficou reduzido e
praticamente transformado num deserto, porque estas tribos, homens e mulheres, lutavam com um
desespero extraordinário e só reconheciam a derrota quando o fogo, a fome e a doença tinham dizimado
mais de metade da população. Quando os chefes rebeldes foram procurar Tibério para tratarem da paz, ele
fezlhes um interrogatório cerrado. Em primeiro lugar, queria saber porque se lhes metera na cabeça
revoltaremse e, depois, porque se entregaram a uma resistência tão desesperada. O chefe dos rebeldes, um
homem chamado Bato, respondeu:
A culpa é unicamente vossa. Mandastes para guardiães dos vossos rebanhos nem pastores nem cães de
guarda, mas sim lobos.
Isto não era exactamente verdade. Augusto escolhia pessoalmente os governadores das suas províncias
fronteíríças, pagavalhes um salário substancial e vigiava para que não desviassem nenhuma parte dos
rendimentos imperiais para o seu próprio bolso. Os impostos eramlhes pagos directamente a eles, não
mais a empresas de cobrança de impostos sem princípios. Os governadores de Augusto nunca foram
lobos, como tinham sido a maior parte dos governadores republicanos, cujo único interesse nas províncias
era ver aquilo que conseguiam arrancarlhes. Muitos deles eram bons cães de guarda e alguns eram
mesmo pastores honestos. Mas acontecia muitas vezes que Augusto fixava inadvertidamente um imposto
num valor demasiado alto, não considerando o prejuízo causado por uma
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má colheita, uma epidemia no gado ou um terramoto; e, em vez de se queixarem a ele que o cálculo
fora demasiado alto, os governadores recolhiam até ao último tostão, mesmo com risco de provocar uma
revolta. Poucos deles sentiam algum interesse pessoal pelo povo que tinham que governar. O governador
instalavase na capital romanizada onde havia belas casas e teatros, templos, banhos públicos e mercados e
nem sequer pensava em visitar os distritos mais afastados da sua província. A verdadeira governação era
feita por representantes e por representantes dos representantes e deve ter havido bastante opressão por
parte dos pequenos burocratas. E foi talvez a esses que Bato chamou lobos, embora pulgas tivesse sido
uma palavra mais adequada. Não pode haver dúvidas que, sob a governação de Augusto, as províncias
eram infinitamente mais prósperas do que durante a República; digase também que as províncias pátrias,
que eram governadas por indivíduos nomeados pelo Senado, tinham uma situação muito inferior à das
províncias de fronteira, governadas por indivíduos nomeados por Augusto. Esta comparação forneceu um
dos raros argumentos plausíveis que alguma vez ouvi proferir contra o governo republicano, ainda que
baseado na hipótese insustentável de que os padrões de moral pessoal entre as principais figuras de uma
república vulgar tendem a ser inferiores aos da moral pessoal de um monarca absoluto vulgar e dos
subordinados por ele escolhidos; baseiase também na ideia errónea de que a questão de como as
províncias são governadas é mais importante do que a questão do que acontece na Cidade. Recomendar
uma monarquia por causa da prosperidade que ela dá às províncias pareceme o mesmo que recomendar
que um homem deve ter a liberdade de tratar os filhos como escravos, se ao mesmo tempo tratar os
escravos com razoável consideração.
Por esta guerra dispendiosa e fútil, foi decretado pelo Senado um grande triunfo para Augusto e Tibério.
Deveis estar recordados que, por esta altura, apenas ao próprio Augusto ou a membros da sua família era
permitido um verdadeiro triunfo, enquanto aos outros generais era concedido aquilo a que chamavam
ornamentos triunfais. Germânico,
embora fosse um César, apenas recebeu esses ornamentos por razões técnicas. Augusto podia ter alargado
o âmbito, mas sentiase tão grato a Tibério pela forma cheia de sucesso como conduzira a guerra, que não
desejava antagonizálo dando a Germânico honras iguais às suas. Germânico subiu também um ponto na
escala de magistrado e foilhe ainda permitido tornarse Cônsul vários anos antes da idade habitual.
Castor, embora não tivesse tomado parte na guerra, recebeu o privilégio de assistir às sessões do Senado
antes de se tornar seu membro e subiu também um ponto na escala de magistrado.
Em Roma, a populaça aguardava o triunfo com o maior entusiasmo, pois ele significaria trigo e dinheiro
com abundância e toda a espécie de
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coisas boas: mas uma grande decepção os aguardava. Um mês antes da data fixada para o triunfo, foi
observado um terrível presságio nos Campos de Marte, o templo do Deus da Guerra foi atingido por um
raio e quase ficou destruído e, alguns dias mais tarde, chegaram notícias da Germânia do mais violento
revês militar sofrido pelos exércitos romanos desde Carros, eu diria mesmo desde Ália, não havia ainda
exactamente 400 anos. Três regimentos tinham sido chacinados e todas as conquistas a leste do Reno se
tinham perdido de um só golpe; parecia que nada iria impedir os germanos de atravessarem o rio e
arrasarem as três províncias de França, colonizadas e prósperas.
já falei do efeito esmagador que esta notícia teve sobre Augusto. Sentiua tanto mais fortemente quanto ele
não era apenas oficialmente responsável pelo desastre, como era o homem encarregado pelo Senado
romano e pelo povo da segurança de todas as fronteiras, mas também moralmente responsável. O desastre
deverase à sua imprudência, ao tentar forçar a civilização sobre os bárbaros com demasiada rapidez. Os
germanos conquistados pelo meu pai tinhamse adaptado gradualmente à maneira dos romanos,
aprendendo o uso da cunhagem de moeda, organizando mercados regulares, construindo e mobilando
casas num estilo civilizado e reunindose mesmo em assembleias que não terminavam, como era costume
com as suas assembleias anteriores, em batalhas campais. Eram aliados de nome e, se lhes tivesse sido
permitido esquecer gradualmente as suas velhas maneiras bárbaras e confiar na guarnição romana, para
que os protegesse dos seus vizinhos ainda incivilizados enquanto eles gozavam os luxos da paz provincial,
poderiam talvez, dentro de duas gerações ou mesmo menos, teremse tornado tão pacíficos e dóceis como
os gauleses da Provença. Mas Varo, um parente meu, a quem Augusto nomeou Governador da Germânia
do Outro Lado do Reno, começou a tratálos não como aliados, mas como uma raça subjugada: era um
homem com mau carácter e mostrava pouco respeito pelas convicções extremamente fortes dos Germanos
sobre a castidade das suas mulheres. Depois, Augusto precisava de dinheiro para o tesouro militar, que a
Guerra dos Balcãs tinha esvaziado. Impôs uma série de novos impostos, dos quais os germanos do Outro
ladodoReno não estavam isentos. Varo aconselhouo quanto à capacidade de pagamento da província e,
com todo o seu zelo, sobrestimou essa capacidade.
Havia no acampamento de Varo dois chefes germanos, Hérmann e Siegmyrgth, que falavam latim
fluentemente e pareciam estar completamente romanizados. Hérmann tinha comandado tropas auxiliares
germânicas na guerra anterior e a sua lealdade era inquestionável. Passara algum tempo em Roma e fora
mesmo incluído entre os nobres cavaleiros. Estes dois tinham muitas vezes comido à mesa de Varo e
encontravamse nos termos da amizade mais íntima com ele. Encorajaramno a admitir que
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os seus compatriotas não eram menos leais e gratos a Roma pelos benefícios da civilização do que eles
próprios. Mas estavam em comunicação constante e secreta com outros chefes descontentes, que
persuadiram a, nos tempos mais próximos, não oferecerem resistência armada ao poder romano e a pagar
os seus impostos com a maior demonstração possível de boa vontade. Em breve receberiam o sinal para a
rebelião em massa. Hermann, cujo nome significa guerreiro, e Siegmyrgth ou chamemoslhe antes
Segímero , cujo nome significa alegre vitória, eram demasiado espertos para Varo. Membros do seu
estadomaior estavam constantemente a prevenilo de que os germanos andavam anormalmente bem
comportados nos últimos meses e que estavam a tentar desarmar as suas suspeitas antes de fazerem uma
sublevação repentina; mas ele riase da sugestão. Disse que os germanos eram uma raça muito estúpida e
incapazes quer de conceber tal plano, quer de o executar sem traírem o segredo muito antes dele estar
maduro. A sua docilidade era mera cobardia; com quanto mais força se batia num germano, mais ele vos
respeitava. Ele era arrogante na prosperidade e na independência, mas, uma vez derrotado, vinha
rastejando até aos vossos pés como um cão e aí se conservava a partir dessa altura. Recusouse mesmo a
escutar os avisos que lhe foram feitos por outro chefe germano que tinha rancor a Hermann e via
claramente os seus desígnios. Em vez de manter as tropas concentradas, como deveria ter feito num país
apenas parcialmente subjugado, fraccionouas.
Seguindo instruções secretas de Hermann e Segímero, comunidades afastadas enviaram a Varo pedidos de
protecção militar contra bandidos e escoltas para transporte de mercadorias de França. A seguir, veio uma
rebelião armada na extremidade leste da província. Um cobrador de impostos e o seu pessoal foram
mortos. Quando Varo reuniu as forças que tinha disponíveis para uma expedição punitiva, Hermann e
Segímero escoltaramno durante uma parte do caminho e, depois, escusaramse a continuar a acompanhá
lo, prometendo reunir as suas tropas auxiliares e vir em sua ajuda, se necessário, logo que os mandasse
chamar. Estas tropas auxiliares já estavam armadas e colocadas para uma emboscada a alguns dias de
viagem à frente de Varo e na sua linha de marcha. Os dois chefes preveniram então as comunidades
afastadas para que caíssem sobre os destacamentos romanos enviados para as proteger e que não
deixassem escapar um só homem.
Não chegou qualquer informação de Varo sobre este massacre, porque não houve sobreviventes. De
qualquer forma, ele não estava em contacto com o seu quartelgeneral. O caminho que seguia era um mero
trilho da floresta. Mas ele não tomou a precaução de mandar à frente uma guarda avançada de batedores
ou guardas de flanco e, em vez disso, deixou que toda a força que continha grande número de não
combatentes desfilasse numa coluna desordenada, com tão pouca precaução como se
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estivesse a umas cinquenta milhas de Roma. A marcha era muito lenta, porque era constantemente
necessário derrubar árvores e arranjar pontes sobre os cursos de água para permitir a travessia aos carros
com abastecimentos; e isto deu tempo a que um grande número de membros da tribo se juntassem às
tropas que formavam a emboscada. O tempo mudou de repente; uma forte chuvada, que durou vinte e
quatro horas ou mais, ensopou os escudos de couro, tornandoos demasiado pesados para a luta e pondo os
arcos dos arqueiros fora de combate. O trilho barrento tornouse de tal forma escorregadio que era difícil
para os homens manter o equilíbrio e os carros estavam constantemente a atolarse. A distância entre a
frente e a retaguarda da coluna aumentou. Então, um sinal de fumo elevouse de uma colina vizinha e os
germanos atacaram de repente pela frente, pela retaguarda e pelos dois flancos.
Eles não se podiam comparar com os romanos numa luta leal e Varo não exagerara muito a sua cobardia.
A princípio, apenas ousaram atacar indivíduos isolados e condutores de transportes, evitando a luta corpo
acorpo, mas atirando saraivadas de azagaias e dardos, mantendose a coberto e correndo de volta para a
floresta mal um romano se punha a sacudir a espada e a gritar. Mas causaram muitas baixas com esta
táctica. Grupos conduzidos por Hermann, Segímero e outros chefes bloquearam o caminho juntando
carros capturados, aos quais quebravam as rodas, e derrubando árvores que lhes atravessavam por cima.
Fizeram vários destes bloqueios e deixaram membros das tribos atrás deles para importunar os soldados
quando eles tentavam abrir caminho. Isto atrasou de tal forma os homens na cauda da coluna que, receosos
de perderem o contacto, abandonaram todos os carros que estavam ainda na sua posse e precipitaramse
para a dianteira, esperando que os germânicos estivessem tão ocupados com a pilhagem que não
voltassem a atacar tão depressa.
O regimento que seguia à frente tinha alcançado uma colina onde não havia muitas árvores por causa de
um incêndio recente na floresta e ali formaram em segurança e aguardaram os outros dois. Eles ainda
conservavam o seu transporte e só tinham perdido algumas centenas de homens. Os outros dois
regimentos estavam em muito pior situação. Os homens ficaram separados das suas companhias e novas
unidades foram formadas, tendo entre cinquenta a 200 homens, cada uma com uma guarda traseira, uma
guarda avançada e guardas de flanco. Os guardas de flanco apenas podiam avançar muito lentamente,
porque a floresta era densa e pantanosa e, frequentemente, perdiam o contacto com as suas pequenas
unidades; as guardas avançadas sofriam fortes perdas nas barricadas e a retaguarda estava constantemente
a ser atacada por trás com azagaias. Quando se fez a chamada nessa noite, Varo descobriu que quase um
terço dos seus homens estava morto ou desaparecido. No dia seguinte, abriu
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caminho até sair da floresta para campo aberto, mas tinha sido obrigado a abandonar o que restava do
seu transporte. A comida era escassa e, no terceiro dia, teve que se embrenhar de novo na floresta. As
baixas no segundo dia não tinham sido numerosas, pois uma grande parte do inimigo estava ocupada a
pilhar os carros e a levar o saque, mas quando foi feita a chamada, ao fim do terceiro dia, só um quarto da
força original estava presente para responder ao chamamento. No quarto dia, Varo continuava a avançar,
pois era demasiado casmurro para admitir a derrota e abandonar o objectivo inicial, mas o tempo, que
tinha melhorado um pouco, tornavase agora pior que nunca e os germanos, acostumados a violentas
chuvadas, tornavamse cada vez mais ousados ao verem a resistência enfraquecer. Aproximaramse então
do adversário.
Por volta do meiodia, Varo percebeu que tudo estava acabado e matouse, de preferência a cair vivo nas
mãos do inimigo. A maior parte dos oficiais superiores que tinham sobrevivido seguiram o seu exemplo,
assim como muitos dos soldados. Apenas um oficial manteve a calma o mesmo Cássio Chaerea que lutou
naquele dia no anfiteatro. Ele comandava a retaguarda, composta por montanheses da Sabóia, que se
sentiam mais à vontade na floresta que a maioria; e quando veio a notícia, por um fugitivo, de que Varo
estava morto, as Águias capturadas e que não mais de 300 homens do corpo principal estavam ainda de
pé, ele decidiu salvar o que pudesse da carnificina. Deu meia volta e investiu contra o inimigo num ataque
repentino. A grande coragem de Cássio, da qual conseguiu transmitir um pouco aos seus homens,
espantou os germanos. Deixaram sozinho aquele pequeno corpo de homens resolutos e correram em frente
para fazer conquistas mais fáceis. É talvez um dos maiores feitos de guerra dos tempos modernos que, dos
120 homens que Cássio tinha com ele quando fez meia volta, tenha conseguido, após uma marcha de oito
dias através de um país hostil, trazer oitenta de volta em segurança, sob o estandarte da companhia, até à
fortaleza de onde tinham partido vinte dias antes.
É difícil transmitir a sensação de pânico que reinava em Roma quando os rumores do desastre foram
confirmados. As pessoas começaram a empacotar os seus pertences e a carregálos em carroças, como se
os germanos já estivessem às portas da cidade. Na realidade, havia boas razões para essa ansiedade. As
baixas na Guerra dos Balcãs tinham sido tão pesadas que quase todas as reservas de combatentes
disponíveis na Itália tinham sido utilizadas. Augusto estava aflito para arranjar um exército que pudesse
enviar sob o comando de Tibério, para garantir as pontes do Reno que, ao que parecia, os germanos ainda
não tinham ocupado. Dos cidadãos romanos capazes para o serviço, poucos se apresentaram
voluntariamente ao ser publicada a ordem de chamamento; marchar contra os germanos parecia ser
sinónimo de ir ao encontro de uma morte
153
certa. Então, Augusto fez sair uma segunda ordem, pela qual, entre aqueles que não se oferecessem no
espaço de três dias, cada quinto homem perderia os direitos civis e seria privado de tudo o que lhe
pertencesse. Muitos ficaram quietos mesmo depois disto; então, mandou executar alguns como exemplo e
obrigou os restantes a irem para as fileiras, onde alguns deles, de facto, se tornaram bons soldados.
Também chamou um grupo de homens com mais de trinta e cinco anos e realistou vários veteranos que
tinham completado os seus dezasseis anos de serviço. Com estes e um regimento ou dois compostos de
libertos, que normalmente não estavam sujeitos a serviço militar (embora os reforços de Germânico na
Guerra dos Balcãs contassem com eles em grande número), reuniu um exército imponente e enviou cada
companhia sozinha para o Norte, logo que ficou armada e equipada.
Foi para mim a maior das vergonhas e dos desgostos que nesta hora de suprema necessidade de Roma eu
fosse incapaz de servir como soldado em sua defesa. Fui ter com Augusto e supliqueilhe que me enviasse
numa qualquer missão em que a minha fraqueza física não fosse um impedimento: sugerilhe ir para junto
de Tibério como oficial dos serviços secretos e ocuparme de tarefas tão úteis como reunir e analisar
informações sobre os movimentos do inimigo, interrogar prisioneiros, fazer mapas e dar instruções
especiais a espiões. Tendo falhado esta nomeação (para a qual me considerava qualificado, porque tinha
feito um estudo cuidadoso das campanhas na Germânia e tinha aprendido a pensar de maneira ordenada e
a dirigir o pessoal), apresenteime como voluntário para servir de Mestre Quarteleíro Geral a Tibério:
pediria a Roma os fornecimentos militares necessários e, à sua chegada à base, encarregarmeia de os
verificar e distribuir. Augusto pareceu satisfeito por eu me ter apresentado de minha livre vontade e disse
que falaria a Tibério da minha oferta. Mas não deu em nada. Talvez Tibério me achasse incapaz de
qualquer serviço útil; talvez ficasse simplesmente aborrecido por eu ter feito aquele pedido, quando o seu
filho Castor se deixara ficar para trás e persuadira Augusto a enviálo para o sul de Itália para reunir e
treinar soldados. No entanto, Germânico estava na mesma situação que eu, o que sempre me dava algum
conforto. Oferecerase como voluntário para servir na Germânia, mas Augusto precisava dele em Roma,
onde era muito popular, para o ajudar a dominar os distúrbios civis que, receava, não tardassem a rebentar
logo que as tropas saíssem da cidade.
Entretanto, os germanos perseguiram todos os fugitivos do exército de Varo e sacrificaram dezenas deles
aos seus deuses da floresta, queimandoos vivos em gaiolas de verga. Aos restantes, conservaramnos
como cativos (alguns deles foram mais tarde resgatados pelos seus parentes por um preço
extravagantemente elevado, mas Augusto proibiuos de alguma vez voltarem a por os pés em Itália). Os
germanos também
154
estiveram sujeitos a uma longa série de tremendas crises e bebedeira com o vinho capturado e lutaram de
forma sangrenta pela glória e pelo saque. Passou muito tempo até que voltassem a estar activos e
compreendessem a fraca oposição que encontrariam se marchassem sobre o Reno. Mas logo que o vinho
começou a desaparecer, atacaram as fortalezas fronteiriças com a sua fraca guarnição e, uma a seguir a
outra, capturaramnas e saquearamnas. Uma única fortaleza ofereceu uma resistência decente: a que
estava nas mãos de Cássio. Os germanos têlaiam ocupado tão facilmente como as outras, porque a
guarnição era pequena, mas Hermann e Segimero estavam noutro lado e nenhum dos restantes entendia a
arte romana do cerco com catapultas, a tartaruga e a escavação de túneis. Cássio tinha na fortaleza um
bom fornecimento de arcos e flechas e ensinou toda a gente, mesmo mulheres e escravos, a usálos.
Derrotou com êxito vários ataques selváticos às suas portas e tinha sempre grandes caldeirões com água a
ferver prontos para despejar sobre quaisquer germanos que tentassem escalar os muros com escadas. Os
germanos estavam tão ocupados a tentar capturar aquele lugar, onde esperavam encontrar um saque
valioso, que não avançaram para as pontes do Reno, inadequadamente guardadas.
Chegaram notícias da aproximação rápida de Tibério à frente do seu novo exército. Hermann reuniu
imediatamente as suas tropas, decidido a capturar as pontes antes de Tibério lá chegar. Foi deixado um
destacamento para cercar a fortaleza, que se sabia estar mal fornecida de provisões. Cássio, que teve
conhecimento dos planos de Hermann, decidiu fugir enquanto era tempo. Numa noite de tempestade,
conseguiu sair com toda a guarnição e logrou ultrapassar os dois primeiros postos avançados do inimigo
antes que o choro de algumas das crianças que estavam com ele desse o alarme. No terceiro posto
avançado houve uma luta corpo a corpo e, se os germanos não estivessem tão ansiosos por entrar na
cidade e saqueála, Cássio e a sua gente não teriam tido hipótese de sobreviver. Mas, de alguma forma, ele
conseguiu safarse e, meia hora mais tarde, disse aos seus trombeteiros que fizessem ouvir o toque de
avançar em marcha acelerada levando os germanos a acreditar que estavam a chegar reforços; por isso,
não os seguiram. As tropas que estavam na ponte mais próxima ouviram o som distante das trombetas
romanas, pois o vento soprava de leste, e, adivinhando o que estava a acontecer, enviaram um
destacamento para escoltar a guarnição a porto seguro. Dois dias depois, Cássio defendeu a ponte com
êxito contra um ataque em massa dos homens de Segimero; depois disso, chegou a vanguarda de Tibério e
a situação foi salva.
O fim do ano foi marcado pelo exílio de Julila, sob acusação de adultério promíscuo tal como sua mãe
Júlia , para Tremero, uma pequena ilha na costa da Apúlia. A verdadeira razão do exílio foi que ela estava
155
quase a ter outro filho que, se fosse rapaz, seria bisneto de Augusto e não aparentado com Lívia; Lívia não
queria correr riscos. Julila já tinha um filho, mas tratavase de um indivíduo delicado, timorato e incapaz,
que podia ser ignorado, O próprio Emílio forneceu a Lívia motivos para a acusação. Tinha discutido com
Julila e, agora, acusavaa na presença da filha de ambos, Emília, de tentar fazêlo passar por pai do filho
de outro homem. Citou Décimo, um nobre da Família Silano, como sendo o adúltero. Emília, que era
suficientemente esperta para compreender que a sua própria vida e segurança dependiam de se manter nas
boas graças de Lívia, foi procurála e contoulhe o que tinha ouvido. Lívia fêla repetir a história na
presença de Augusto. Depois, Augusto convocou Emílio e perguntoulhe se era verdade não ser ele o pai
do filho de Júlia. Não ocorreu a Emílio que Emília pudesse têlo traído a ele e à mãe e partiu do princípio
que a intimidade de que ele suspeitava entre Júlia e Décimo fosse um escândalo corrente. Manteve
portanto a sua acusação, embora fosse fundada mais no ciúme que no conhecimento. Augusto tomou a
criança logo que ela nasceu e mandou expôla na montanha. Décimo exilouse voluntariamente e vários
outros homens acusados de terem sido amantes de Julila, numa altura ou noutra, seguiramno: entre eles,
estava o poeta Ovídio, de quem Augusto, por mais estranho que pareça, fez o principal bode expiatório,
por ter também escrito (muitos anos antes) A Arte do Amor. Fora este poema, afirmou Augusto, que tinha
debochado o espírito da neta. Ordenou que todos os exemplares fossem procurados para serem queimados.
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CAPíTULO XIII
Augusto tinha mais de setenta anos de idade. Até há pouco tempo, ninguém pensava nele como um velho.
Mas estas novas calamidades públicas e privadas operaram uma grande mudança nele. O seu humor
tornouse instável e eralhe cada vez mais difícil receber visitantes ocasionais com a sua afabilidade
habitual, ou não perder a paciência em banquetes públicos. Tinha mesmo tendência a mostrarse irritadiço
com Lívia. No entanto, continuava o seu trabalho conscienciosamente como sempre e aceitou mesmo um
novo período de dez anos de monarquia. Tibério e Germânico, quando estavam na cidade, ocupavamse
de muitas tarefas que normalmente teria sido ele a executar e Lívia trabalhava mais do que nunca. Durante
a Guerra dos Balcãs, ela ficara em Roma enquanto Augusto estava ausente e, armada com um duplicado
do selo dele e em contacto permanente com ele através de estafetas, tratara ela própria de tudo. Augusto
estava cada vez menos favorável à perspectiva da sucessão por Tibério. Achavao capaz de governar
razoavelmente bem, com a ajuda de Lívia, e de levar por diante as medidas por ele decretadas, mas
também se sentia lisonjeado com a ideia de que todos sentiriam a falta do Pai da Pátria quando ele
morresse e falariam da Era de Augusto como falavam da Época de Ouro do Rei Numa. Apesar dos
serviços notáveis prestados a Roma, Tibério era pessoalmente impopular e, certamente, não ganharia
maior popularidade quando fosse Imperador. Era uma satisfação para Augusto que Germânico, sendo mais
velho que Castor, seu irmão adoptivo, fosse o sucessor natural de Tibério e que os filhos pequenos de
Germânico, Nero e Druso, fossem seus bisnetos. Embora o Destino decretasse que os seus netos não lhe
sucederiam, ele havia de voltar a reinar um dia, nas pessoas dos bisnetos. Nesta altura, Augusto já tinha
esquecido a República, como quase toda a gente, e aceitado a ideia de que os seus quarenta anos de
serviço duro e cheio de ansiedade em prol de Roma lhe tinham proporcionado o direito de nomear os seus
sucessores imperiais, mesmo até à terceira geração, se lhe aprouvesse.
Quando Germânico estava na Dalmácia, não lhe escrevi a falar de Póstumo com medo que algum agente
de Lívia interceptasse a minha carta, mas conteilhe tudo logo que ele voltou da guerra. Ficou muito
perturbado e disse que não sabia o que pensar. Tenho que explicar que está na natureza
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de Germânico recusarse sempre a pensar mal de alguém até que uma prova positiva desse mal lhe seja
imposta e, caso contrário, a atribuir a isso todos os motivos mais elevados. Esta extrema simplicidade era
lhe geralmente útil. A maior parte das pessoas com quem entrava em contacto sentiamse lisonjeadas com
a elevada opinião por ele formada do seu carácter moral e, ao tratar com ele, tentavam estar à altura dessa
reputação. Se alguma vez se encontrasse à mercê de uma criatura verdadeiramente maléfica, esta
generosidade de coração seria sem dúvida a sua perda; mas, por outro lado, se alguém tinha qualquer coisa
de bom dentro de si, Germânico parecia sempre conseguir trazêla à superfície. Por isso, naquele momento
disseme que não podia espontaneamente acreditar que quer Livila quer Emília fossem capazes de uma tal
baixeza criminosa, embora ultimamente, admitiu, se sentisse decepcionado com Livila. Também disse que
eu não deixara bem claros os possíveis motivos delas, excepto arrastando para o assunto nossa avó Lívia,
o que era francamente ridículo. Quem no seu juízo perfeito, perguntava, repentinamente indignado, podia
suspeitar que Lívia as incitasse a uma tão grande maldade? Era o mesmo que suspeitar que a Boa Deusa
envenenara os poços da cidade. Mas quando lhe perguntei por minha vez se ele realmente acreditava que
Póstumo fosse culpado de duas tentativas de estupro em noites sucessivas, ambas extremamente
imprudentes, ou que ele fosse capaz de mentir a Augusto e a nós dois sobre esse assunto, mesmo que fosse
culpado, ele ficou silencioso. Sempre amara e confiara em Póstumo. Aproveitando a minha vantagem, fi
lo jurar pela alma de nosso defunto pai que, se alguma vez se lhe deparasse a mais ligeira prova de que
Póstumo tinha sido injustamente condenado, ele contaria a Augusto tudo o que sabia sobre o caso e forçá
loia a trazer Póstumo de volta e punir os mentirosos como eles mereciam.
Na Germânia, não se passava grande coisa. Tibério dominava as pontes mas não tentou atravessar o Reno,
pois ainda não tinha confiança nas suas tropas, que andava ocupado a pôr em forma. Os germanos também
não tentaram atravessar. Augusto impacientouse de novo com Tibério e insistiu com ele para que
vingasse Varo sem mais demoras e reconquistasse as Águias. Tibério respondeu que nada estava mais
próximo do seu coração, mas que as tropas ainda não estavam preparadas para tentar esse feito, Augusto
enviou Germânico logo que ele terminou o seu mandato na magistratura e Tibério, então, teve que mostrar
alguma actividade; na verdade, ele não era preguiçoso nem cobarde, mas apenas extremamente cauteloso.
Atravessou o Reno e percorreu veloz algumas partes da província perdida, mas os germanos evitaram
entrar em luta; e Tibério e Germânico, ambos muito cuidadosos para não caírem em nenhuma emboscada,
não fizeram muito mais do que queimar alguns acampamentos
158
inimigos perto do Reno e exibir a sua força militar. Houve algumas escaramuças das quais se saíram bem
e fizeram algumas centenas de prisioneiros. Ficaram naquela região até ao Outono, quando voltaram a
atravessar o Reno; na Primavera seguinte, o muito esperado triunfo sobre os dálmatas foi celebrado em
Roma, ao qual acrescentaram um outro por esta expedição à Germânia, apenas para restabelecer a
confiança. Não posso deixar de dar crédito a Tibério por um acto generoso ao qual Germânico o
persuadiu: depois de exibir Bato, o rebelde dálmata capturado, no seu triunfo, deulhe a liberdade e um
grande presente em dinheiro, instalandoo confortavelmente em Ravena. Bato merecia tudo isso: Tivera
em tempos um acto cavalheiresco, deixando Tibério escapar de um vale onde estava encurralado com o
seu exército.
Germânico era cônsul agora e Augusto escreveu uma carta especial recomendandoo ao Senado e o
Senado a Tibério (recomendando assim o Senado a Tibério, e não o contrário, Augusto mostrava ao
mesmo tempo que tencionava ter Tibério como seu sucessor imperial, com autoridade sobre o Senado, e
que não desejava pronunciar um discurso elogioso sobre ele, como fizera com Germânico). Agripina
acompanhava sempre Germânico quando ele ia para as guerras, como minha mãe tinha acompanhado o
meu pai. Faziao sobretudo por amor por ele, mas também porque não queria ficar sozinha em Roma e ser
chamada à presença de Augusto por causa de alguma falsa acusação de adultério, Não tinha a certeza de
como era vista por Lívia. Ela era a típica matrona dos tempos antigos forte, corajosa, modesta,
espirituosa, piedosa, fértil e casta. já dera quatro filhos a Germânico e ainda havia de lhe dar mais cinco.
Germânico, embora a regra de Lívia contra a minha presença à sua mesa continuasse de pé, e embora a
minha mãe também não evidenciasse qualquer mudança nos seus sentimentos para comigo, levavame
para junto dos seus nobres amigos sempre que a ocasião se apresentava. Por causa dele, eu era tratado com
um certo respeito, mas a opinião da família sobre as minhas capacidades era conhecida e sabiase que
Tibério a partilhava; por isso, ninguém se dava ao trabalho de cultivar uma relação comigo. A conselho de
Germânico, fiz saber que iria fazer uma leitura do meu recente trabalho histórico e convidei um número de
figuras literárias proeminentes para assistirem. O livro que tinha escolhido para ler era um em que
trabalhara arduamente e que deveria ter sido muito interessante para o meu público por causa das
fórmulas usadas durante as abluções rituais pelos sacerdotes etruscos, em cada caso com uma tradução
latina que lançava uma luz sobre muitos dos nossos ritos lustrais, cujo significado exacto tinha sido
obscurecido pelo tempo. Germânico leuo de antemão de uma ponta à outra e mostrouo à minha mãe e a
Lívia, que o aprovaram; depois, foi suficientemente generoso para se sentar a meu lado durante o ensaio
da leitura. Felicitoume tanto pelo trabalho
159
como pela apresentação e acho que deve ter falado muito no assunto, porque a sala na qual eu iria fazer a
leitura estava cheia. Lívia não estava presente, nem Augusto, mas a minha mãe assistiu, tal como
Germânico e Livila.
Eu estava muito bem disposto e nada nervoso. Germânico sugerira que me fortalecesse antes com uma
taça de vinho e achei que era uma boa ideia. Foi posta uma cadeira para Augusto, caso ele aparecesse, e
outra para Lívia, ambas verdadeiramente esplêndidas as cadeiras que eram sempre reservadas para eles
quando visitavam a nossa casa. Depois de todos terem chegado e se terem sentado, as portas foram
fechadas e comecei a ler, Estava a sairme lindamente, consciente de que não estava a ler depressa demais
nem com demasiada lentidão, ou demasiado alto ou muito baixo, mas sim no tom certo, e que a
assistência, que não viera com grandes expectativas a meu respeito, não podia deixar de se sentir
interessada, quando ocorreu um incidente muito infeliz. Ouviuse uma pancada forte na porta e depois,
como ninguém fosse abrir, uma outra. Então, o puxador foi sacudido violentamente e irrompeu na sala o
homem mais gordo que alguma vez vi na minha vida, em trajo de cavaleiro e trazendo na mão uma grande
almofada bordada. Parei de ler porque, entretanto, tinha chegado a uma passagem difícil e importante e
ninguém estava a ouvir todos os olhos estavam postos no cavaleiro. Ele reconheceu Lívio e saudouo
numa espécie de cantilena, que vim a saber mais tarde ser o sotaque característico de Pádua; depois, fez
uma saudação geral ao resto da companhia, o que provocou risos escondidos. Não prestou nenhuma
atenção especial a Germânico como Cônsul, nem à minha mãe ou a mim mesmo, como anfitriões, Depois,
olhou em volta à procura de assento e viu o de Augusto, mas parecia demasiado apertado para ele; por
isso, apoderouse do de Lívia. Pôslhe a almofada em cima, serrou a túnica em volta dos joelhos e sentou
se com um grunhido. E claro está, a cadeira, que era uma peça antiga vinda do Egipto, parte do espólio do
palácio de Cleópatra, e um trabalho muito delicado, foise abaixo com grande estrondo.
Todos excepto Germânico, Lívio, a minha mãe e os membros mais sérios da assistência riram
ruidosamente; mas depois do cavaleiro se ter levantado gemido, praguejado e de ter sido escoltado para
fora da sala por um liberto, enquanto se esfregava, fezse um silêncio atento e eu tentei continuar. Mas fui
acometido de um riso quase histérico. Talvez fosse o vinho que tinha bebido ou talvez fosse porque tinha
visto a expressão na cara do indivíduo quando a cadeira começara a ceder debaixo dele, o que mais
ninguém vira porque ele estava na primeira fila e eu era o único que me encontrava de frente para ele; mas
fosse como fosse, a concentração nos ritos lustrais dos etruscos tornouseme impossível. A princípio, o
público mostrouse compreensivo com o meu divertimento
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e chegou mesmo a rir comigo, mas quando, lutando para chegar ao fim de outro parágrafo, com grande
dificuldade, calhou eu ver pelo canto do olho a cadeira que o cavaleiro partira e que estava equilibrada e
insegura sobre as pernas estilhaçadas, fuime novamente abaixo e a assistência começou a impacientarse.
Para piorar ainda mais as coisas, depois de ter lutado comigo mesmo e retomado o fio à meada, com alívio
notório por parte de Germânico, as portas abriramse num ímpeto e quem havia de entrar senão Augusto e
Lívia! Emcaminharamse com ar grandioso pelo meio das filas de cadeiras e Augusto sentouse. Lívia
preparavase para fazer o mesmo quando reparou que alguma coisa não estava bem. Ela perguntou numa
voz bem sonora e vibrante:
Quem é que esteve sentado na minha cadeira?
Germânico fez o possível por explicar a situação, mas ela decidiu que estava a ser insultada. Foise
embora. Augusto, com ar constrangido, seguiua. Alguém me pode culpar por ter feito uma autêntica
confusão do resto da minha leitura? O cruel Deus Momo deve ter estado naquela cadeira porque, cinco
minutos depois, as pernas da mesma voltaram a cair e, mais uma vez, ela desmoronou; uma pequena
cabeça de leão em ouro partiuse de um dos braços, deslizou pelo chão e foi parar debaixo do meu pé
direito, que estava ligeiramente levantado. Descontroleime de novo, engasgandome, ofegante e soltando
gargalhadas.
Germânico veio ter comigo e imploroume que me controlasse, mas eu apenas consegui apanhar a cabeça
do leão e apontar desesperadamente para a cadeira. Se é que alguma vez vi Germânico aborrecido comigo
foi nessa ocasião. Perturboume muito vêlo aborrecido e acalmei imediatamente. Mas perdera a confiança
em mim mesmo e comecei a gaguejar tão fortemente que a leitura terminou de forma desastrosa.
Germânico fez o possível por conseguir um voto de agradecimento pelo meu interessante trabalho
lamentando que um acidente inesperado me tivesse perturbado a meio e que, em consequência desse
mesmo acidente, o Pai da Pátria e Dona Lívia sua esposa se tivessem retirado da nossa presença,
esperando que num dia mais auspicioso no futuro próximo eu pudesse fazer nova leitura. Nunca houve um
irmão tão atencioso como Germânico, nem homem tão nobre. Mas desde então, não voltei a fazer
qualquer leitura pública dos meus trabalhos.
Germânico veio procurarme um dia com um ar muito sério. Levou bastante tempo a decidirse a falar,
mas finalmente disse:
Falei com Emílio esta manhã e calhou abordarmos o assunto do pobre Póstumo. Foi ele o primeiro a
abordálo, perguntandome quais tinham sido exactamente as acusações contra Póstumo, e disse,
aparentemente com toda a ingenuidade, que, tanto quanto sabia, Póstumo tinha tentado violar duas
mulheres nobres, mas que ninguém parecia saber quem elas eram. Olheio com dureza quando ele disse
isto, mas vi que
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estava a falar verdade. Por isso, oferecime para trocar o que eu sabia pelos conhecimentos dele, mas
apenas se prometesse guardar só para ele aquilo que lhe dissesse. Quando lhe disse que fora a própria filha
dele que acusara Póstumo de ter tentado violála e na sua própria casa, ele ficou admirado e recusouse a
acreditar, Ficou muito zangado. Disse que a governanta de Emília certamente estivera com eles o tempo
todo. Queria ir ter com Emília e perguntarlhe se a história era verdadeira e, se fosse, porque é que era
aquela a primeira vez que ele ouvia falar disso? Detiveo, recordandolhe a promessa que me fizera. Eu
não tinha confiança em Emília. Em vez disso, sugeri que devíamos interrogar a governanta, mas não de
forma a alarmála. Assim, mandámos chamála e perguntámoslhe qual fora a conversa entre Emília e
Póstumo, durante aquele alarme de assalto, da última vez que jantara com eles. A princípio, ela pareceu
vaga, mas quando lhe perguntei: ”Não foi sobre árvores de fruto?”, ela disse: ”Sim, claro, sobre pragas das
árvores de fruto.” Em seguida, Emílio quis saber se tinha havido alguma outra conversa na sua ausência e
ela disse que achava que não. Lembravase que Póstumo tinha estado a explicar novos métodos gregos
para tratar a peste designada por manchas negras e que ela ficara extremamente interessada, porque
percebia de jardins. Disse que não tinha deixado a sala nem por um momento. Assim, fui procurar Castor
em seguida e mencionei Póstumo com toda a naturalidade. Estais lembrados que as propriedades de
Póstumo foram confiscadas e vendidas enquanto eu estava na Dalmácia e que o produto foi colocado no
tesouro militar? Bom, eu pergunteilhe o que tinha acontecido a umas certas peças de baixela que me
pertenciam e que Póstumo me pedira emprestadas para um banquete; ele disseme como podia recuperá
las. Depois, discutimos o seu exílio. Castor falou abertamente e satisfazme dizer que estou agora
plenamente convencido no meu íntimo de que ele não fez parte da maquinação.
Admites agora que foi uma maquinação? perguntei ansioso.
Receio que, ao fim e ao cabo, essa seja a única explicação. Mas o próprio Castor estava inocente, tenho a
certeza. Ele disseme, sem ser forçado a isso, que, por sugestão de Livila, tinha arreliado Póstumo no
jardim, tal como Póstumo te disse que ele tinha feito. Explicou que o fizera apenas porque Póstumo
andava a dirigir olhares a Livila e ele, como marido, não gostava disso. Mas disse que não lamentava têlo
feito
embora talvez não fosse um gracejo de muito bom gosto , porque a tentativa de Póstumo para violar
Livila e os danos graves que ele próprio sofrera às mãos daquele louco tornavam qualquer arrependimento
despropositado.
Ele acreditava que Póstumo tinha tentado violar Lívia?
Sim. E eu não desfiz o engano. Não quis que Livila soubesse aquilo de que tu e eu suspeitamos. Porque,
se ela soubesse, isso chegaria aos ouvidos de Lívia.
162
Germânico, acreditas agora que Lívia planeou tudo? Ele não respondeu.
Vais falar com Augusto?
Deite a minha palavra. Eu respeito sempre a minha palavra.
Quando é que vais?
Agora.
O que aconteceu na entrevista não sei e nunca o saberei. Mas Germânico parecia muito mais feliz nessa
noite ao jantar e a maneira como evitou as minhas perguntas mais tarde, sugeria que Augusto acreditara
nele e lhe jurara segredo de momento. Passou muito tempo antes que eu soubesse da sequência dos
acontecimentos, aquilo que vos posso contar agora. Augusto escreveu aos corsos, que havia anos se
queixavam de incursões dos piratas nas suas costas, que em breve iria em pessoa investigar o caso; no
caminho, iria parar em Marselha, onde tencionava consagrar um templo. Pouco depois fezse ao mar, mas
interrompeu a viagem em Elba por dois dias. No primeiro dia, ordenou que os guardas de Póstumo em
Planásia fossem substituídos imediatamente por um grupo totalmente novo. Assim se fez. Na mesma
noite, ele navegou em segredo para o outro lado da ilha num pequeno barco de pesca, acompanhado
apenas por Fábio Máximo, um amigo próximo, e um tal Clement, que em tempos fora escravo de Póstumo
e tinha uma forte semelhança com o seu antigo senhor. Ouvi dizer que Clement era filho natural de
Agripa. Tiveram a sorte de encontrar Póstumo logo que desembarcaram. Ele tinha andado a armar as
linhas de pesca para a noite e vira a vela do barco à distância, à luz de uma lua forte: estava sozinho.
Augusto mostrouse e estendeu a mão, gritando:
Perdoame, meu filho! Póstumo tomoulhe a mão e beijoua. Depois os dois afastaramse, enquanto
Fábio e Clement vigiavam. O que foi falado entre eles ninguém sabe; mas Augusto chorava quando
voltaram juntos. Depois, Fábio e Clement trocaram as roupas e os nomes e Póstumo voltou a Elba com
Augusto e Fábio; Clement tomou o lugar de Póstumo em Planásia, até chegar a ordem para a sua
libertação, que Augusto disse que não demoraria muito. A Clement foi prometida a liberdade e uma
grande quantia em dinheiro se fizesse bem o seu papel. Devia fingirse doente nos dias mais próximos e
deixar crescer o cabelo e a barba, para que ninguém notasse o embuste, especialmente porque nessa tarde
ele não tinha sido visto pela nova guarda durante mais de alguns minutos.
Lívia suspeitava que Augusto estivesse a fazer alguma coisa nas suas costas. Conhecia o seu desagrado
pelo mar e sabia que nunca viajava de barco quando podia ir por terra, mesmo que isso significasse perder
um tempo precioso. Era verdade que ele não poderia ter ido até à Córsega a não ser por mar, mas os
piratas não eram uma ameaça séria e ele podia
163
facilmente ter enviado Castor ou qualquer um de vários outros subordinados para investigar o assunto da
sua parte. Assim, ela começou a investigar e acabou por saber que, quando Augusto parou em Elba, tinha
ordenado que a guarda de Póstumo fosse trocada e que ele e Fábio tinham saído a apanhar chocos na
mesma noite num barco pequeno, acompanhados apenas por um escravo.
Fábio tinha uma mulher chamada Márcia que partilhava todos os seus segredos, e Lívia, que nunca lhe
dera muita atenção, começou agora a cultivar esse relacionamento. Márcia era uma mulher simples e fácil
de enganar. Quando Lívia ficou com a certeza de ter conquistado totalmente a confiança de Márcia,
chamoua à parte um dia e perguntou:
Vamos, minha querida, dizeime, Augusto ficou muito afectado quando voltou a encontrar Póstumo, ao
cabo de tantos anos? Ele é muito mais sentimental do que aparenta. Fábio tinha dito a Márcia que a
história da viagem a Planásia era um segredo que ela não podia contar a ninguém neste mundo, ou as
consequências poderiam ser fatais para ele. Por isso, a princípio, ela não quis responder. Lívia riuse e
disse:
Ali, vós sois cuidadosa. Sois como a sentinela de Tibério na Dalmácia, que não queria deixar o próprio
Tibério entrar no acampamento uma noite, quando ele voltou de uma cavalgada, porque não sabia a senha:
”Ordens são ordens, meu General”, disse o idiota. Minha querida Márcia, Augusto não tem segredos para
mim, nem eu para Augusto. Mas louvo a vossa prudência.
Assim, Márcia pediu desculpa e disse:
Fábio diz que ele se fartou de chorar. Lívia replicou:
Claro que sim. Mas talvez seja mais sensato não dizer a Fábio que falámos disto Augusto não gosta que
as pessoas saibam quanto ele confia em mim. Calculo que Fábio vos tenha falado do escravo?
Isto era um tiro no escuro. O escravo podia não ter tido qualquer importância, mas era uma pergunta que
valia a pena fazer. Márcia respondeu:
Sim, Fábio disse que ele era extraordinariamente parecido com Póstumo, apenas um pouco mais baixo.
Não vos parece que os guardas vão notar a diferença?
Fábio disse que acha que não. Clement fazia parte do pessoal da casa de Póstumo; portanto, se for
cuidadoso, não se vai trair pela ignorância; e, como sabeis, a guarda foi mudada.
Portanto, agora, Lívia só tinha que descobrir onde estava Póstumo, que calculava estivesse escondido
algures sob o nome de Clement. Pensava que Augusto estivesse a planear restituirlhe o seu favor e podia
mesmo passar por cima de Tibério e nomeálo seu sucessor imediato à monarquia, à guisa de
compensação. Fez Tibério seu confidente, e
164
preveniuo das suas suspeitas. Os problemas tinham recomeçado nos Balcãs e Augusto pensava enviar
Tibério para os reprimir antes que as coisas se tornassem sérias. Germânico estava em França a recolher
impostos. Augusto falava em enviar Castor para fora também, para a Germânia; e tinha andado a ter
conversas frequentes com Fábio, que Lívia concluiu estar a servir de seu intermediário junto de Póstumo.
Logo que o caminho estivesse livre, Augusto sem dúvida enviaria Póstumo repentinamente para o Senado,
faria revogar o decreto contra ele e nomeáloia seu colega no lugar de Tibério. Com Póstumo reabilitado,
a via dela já não estaria segura: Póstumo tinhaa acusado de envenenar o pai e os irmãos e Augusto não
teria voltado a darlhe o seu favor se não estivesse convencido de que as acusações eram bem fundadas.
Pôs os seus agentes de maior confiança a espiar os movimentos de Fábio com a finalidade de localizar um
escravo chamado Clement, mas eles não conseguiram descobrir nada. De qualquer forma, ela decidiu não
perder tempo e desembaraçarse de Fábio. Foi assaltado na rua uma noite a caminho do Palácio e recebeu
doze punhaladas: os assaltantes mascarados fugiram. No funeral, aconteceu uma coisa escandalosa.
Márcia atirouse sobre o corpo do marido e suplicoulhe que a perdoasse, dizendo que só ela tinha sido
responsável pela sua morte, com o seu próprio descuido e desobediência. No entanto, ninguém
compreendeu do que ela estava a falar e pensaram que o desgosto a tinha enlouquecido.
Lívia disse a Tibério que se mantivesse em comunicação constante com ela no seu caminho para os Balcãs
e que viajasse o mais lentamente possível, pois podia ser mandado chamar a qualquer momento.
Augusto, que o acompanhara até Nápoles, viajando serenamente ao longo da costa, sentiuse doente: tinha
o estômago desarranjado. Lívia preparavase para o tratar, mas ele agradeceulhe e disselhe que não era
nada; que podia tratarse a si mesmo. Foi ao seu armário de medicamentos e escolheu uma purga forte;
depois, fez jejum durante um dia. Proibiua claramente de se preocupar com a saúde dele; já tinha bastante
com que se preocupar. Rindo, recusouse a comer outra coisa do que estava em cima da mesa a não ser
pão, beber água de um jarro que ela própria usava e ingerir uns figos verdes que ele tinha apanhado da
árvore com as próprias mãos. Nada nos seus modos para com Lívia parecia ter mudado, tal como ela não
mudara em relação a ele, mas cada um lia o pensamento do outro.
Apesar de todas as precauções, o estômago dele voltou a piorar. Teve que interromper a viagem em Nola;
daí, Lívia enviou uma mensagem chamando Tibério. Quando este chegou, recebeu a notícia de que
Augusto estava em franco declínio e chamando por ele muito seriamente. já se despedira de certos ex
cônsules, que tinham vindo apressados de Roma ao saber a notícia da sua doença. Perguntaralhes com um
sorriso se
165
achavam que ele tinha representado bem a farsa; que é a pergunta que os actores de comédia fazem ao
público no final da peça. Retribuindolhe o sorriso, embora muitos deles tivessem lágrimas nos olhos, eles
responderam: ”Nunca houve melhor, Augusto.” ”Então, deixaime ir com o vosso aplauso”, disse ele.
Tibério acorreu à sua cabeceira, onde ficou umas três horas, e depois apareceu para anunciar cheio de
tristeza que o Pai da Pátria acabava de morrer nos braços de Lívia, com uma última saudação carinhosa
para ele próprio, para o Senado e para o povo de Roma. Agradecia aos deuses ter chegado a tempo para
fechar os olhos do seu pai e benfeitor. Na realidade, Augusto já estava morto havia um dia, mas Lívia
escondera esse facto apresentando relatórios tranquilizadores ou desencorajantes com intervalos de poucas
horas. Por uma estranha coincidência, ele morreu no mesmo quarto em que morrera o pai, setenta e cinco
anos antes. Recordome bem de como a notícia me chegou. Foi no dia 20 de Agosto. Eu estava a dormir
até mais tarde depois de ter trabalhado quase toda a noite na minha história; no Verão, erame mais fácil
trabalhar de noite e dormir durante o dia. Fui acordado pela chegada de dois velhos cavaleiros, que se
desculparam por me incomodarem, mas disseram que o assunto era urgente. Augusto estava morto e a
Nobre Ordem dos Cavaleiros reunira apressadamente e elegeramme seu representante junto do Senado.
Eu devia pedir que lhes fosse concedida a honra de trazer o corpo de Augusto aos ombros de volta para a
Cidade. Ainda estava meio a dormir e não pensava no que dizia. Gritei:
Veneno é Rainha! Veneno é Rainha!
Eles entreolharamse ansiosos e constrangidos e eu recompusme e pedi desculpa, dizendo que tivera um
sonho terrível e estava a repetir as palavras que ouvira nele. Pedilhes que repetissem a sua mensagem;
depois de o terem feito, agradecilhes a honra que me davam e apresseime a fazer o que me pediam. Não
era propriamente uma honra, claro, ser escolhido como um cavaleiro distinto. Todos os que tinham
nascido livres, não tinham de forma nenhuma caído em desgraça e possuíam propriedades acima de um
dado valor, poderiam tornarse cavaleiros; com as minhas ligações de família, se eu tivesse mostrado
capacidades mesmo médias, já seria nesta altura um membro respeitado do Senado, como o meu
contemporâneo Castor. Fui escolhido de facto por ser o único membro da família imperial que ainda
pertencia a uma ordem inferior e para evitar invejas entre os outros cavaleiros. Esta foi a primeira vez que
visitei o Senado durante uma sessão. Fiz o pedido sem gaguejar ou esquecer as palavras e sem cair em
desgraça por qualquer outra razão.
166
CAPíTULO XIV
Embora se tivesse tornado claro que os poderes de Augusto estavam a falhar e que ele não tinha muitos
mais anos de vida, Roma não conseguia habituarse à ideia da sua morte. Não é uma comparação gratuita
dizer que a Cidade se sentia como um rapazinho que perdeu o pai. Que o pai tenha sido um homem
corajoso ou um cobarde, justo ou injusto, generoso ou mesquinho, pouco significa: ele era o pai desse
rapaz e nenhum tio ou irmão mais velho poderá alguma vez ocupar o seu lugar. A verdade é que a
governação de Augusto tinha sido muito longa e um homem tinha que ter já passado da meiaidade para se
lembrar de como fora para trás. Não era portanto totalmente antinatural que o Senado reunisse para
deliberar se as honras divinas que lhe tinham sido prestadas, mesmo em vida, pelas províncias, lhe deviam
ser prestadas agora pela própria Cidade. O filho de Pólio, Caio odiado por Tibério por ter casado com
Vipsânia (primeira mulher de Tibério, como deveis estar lembrados, de quem ele tinha sido obrigado a
divorciarse por causa de Júlia) e por ele ter uma língua mordaz e nunca ter feito um desmentido público
do boato que fazia dele o verdadeiro pai de Castor , foi o único senador que ousou pôr em causa a
propriedade da moção. Levantouse para perguntar que prodígio divino ocorrera para sugerir que Augusto
seria bem recebido nas Mansões Celestiais apenas mediante recomendação dos seus amigos e
admiradores mortais?
Seguiuse um silêncio desconfortável, mas, finalmente, Tibério levantouse devagar e disse:
Há cem dias, estareis lembrados, o frontão da estátua de meu pai Augusto foi atingido por um raio. A
primeira letra do seu nome foi apagada, o que deixou as palavras AESAR AUGUSTUS. Qual é o
significado da letra C? É o símbolo de cem. O que significa AESAR? Eu digovos. Significa Deus, na
língua etrusca. Nitidamente, cem dias após a queda do raio, Augusto deverá tornarse um Deus em Roma.
Que prodígio mais evidente que este podereis desejar?
Embora Tibério assumisse sozinho o crédito por esta interpretação, fora eu o primeiro a dar sentido a
AESAR (a estranha palavra tinha sido muito discutida), sendo a única pessoa em Roma que estava
familiarizada com a língua etrusca. Falei nisso a minha mãe e ela chamoume louco
167
fantasista, mas deve ter ficado suficientemente impressionada para repetir a Tibério o que eu dissera, uma
vez que não falei no caso a ninguém a não ser a ela.
Caio perguntou por que é que Júpiter havia de transmitir as suas mensagens em etrusco e não em grego ou
em latim? Alguém podia jurar ter observado qualquer outro augúrio mais conclusivo? Era muito fácil
decretar novos deuses a ignorantes provincianos asiáticos, mas a Ilustre Casa devia fazer uma pausa antes
de ordenar a cidadão educados que adorassem um dos seus próprios membros, ainda que distinto. É
possível que Caio tivesse conseguido bloquear o decreto através deste apelo ao orgulho e sanidade de
Roma, se não fosse um homem chamado Ático, um magistrado superior. Ele ergueuse solenemente para
dizer que, quando o corpo de Augusto tinha sido queimado nos Campos de Marte, ele vira uma nuvem
descer do céu e o espírito do morto subir para ela, precisamente da mesma maneira que a tradição relata
que os espíritos de Rómulo e Hércules ascenderam. Ele juraria por todos os Deuses que estava a
testemunhar a verdade.
Este discurso foi acolhido com retumbantes aplausos e Tibério, triunfante, perguntou se Caio tinha mais
algum comentário a fazer. Caio disse que sim. Recordavase, disse, de outra tradição primitiva sobre a
morte repentina e desaparecimento de Rómulo, que aparecia nas obras, mesmo dos historiadores mais
sérios, como uma alternativa à citada pelo seu respeitável e verídico amigo Ático: designadamente, que
Rómulo era de tal forma odiado pela sua tirania sobre um povo livre que um dia, aproveitando um
nevoeiro repentino, o Senado o assassinou, cortou em pedaços e levou esses mesmos pedaços sob as
túnicas.
E Hércules? perguntou alguém apressadamente. Caio disse:
O próprio Tibério, na sua eloquente oração durante o funeral, repudiou a comparação entre Augusto e
Hércules. As suas palavras foram: ”Hércules, na sua infância, só enfrentou serpentes, e em adulto, apenas
um veado ou dois, um javali selvagem que matou e um leão; e mesmo isto fêlo com relutância e por
ordem de outra pessoa, enquanto que Augusto lutou não apenas com animais, mas com homens e por sua
livre vontade” e assim por diante. Mas a mínha razão para repudiar a comparação reside nas
circunstâncias da morte de Hércules.
Em seguida, sentouse. A referência era perfeitamente clara para qualquer pessoa que analisasse a questão;
na verdade, segundo a lenda, Hércules morreu por causa do veneno que lhe foi ministrado pela própria
mulher.
Mas a moção que visava a deificação de Augusto foi levada por diante. Santuários dedicados à sua pessoa
foram construídos em Roma e nas cidades vizinhas. Uma ordem de sacerdotes foi formada para
administrar os seus rituais e Lívia, que ao mesmo tempo recebera os títulos de Júlia e
168
Augusta, foi nomeada Sacerdotisa Suprema. Ático foi recompensado por Lívia com uma oferta de dez mil
moedas de ouro e foi nomeado um dos novos sacerdotes de Augusto, tendolhe sido mesmo perdoado o
pesado ónus de iniciação. Fui também nomeado sacerdote, mas tive que fazer um pagamento mais elevado
que qualquer um pela iniciação, por ser neto de Lívia. Ninguém ousou perguntar o motivo porque aquela
visão da ascensão de Augusto só fora presenciada por Ático. E o mais divertido era que, na noite anterior
ao funeral, Lívia tinha escondido uma águia numa gaiola no topo da pira, gaiola que deveria ser aberta
logo que a pira estivesse acesa, por alguém que puxaria um cordão pela parte de baixo. Então, a águia
levantaria voo e a ideia era que fosse tomada pelo espírito de Augusto. Infelizmente, o milagre não se
produzira. A porta da gaiola não se abriu. Em vez de ficar calado e deixar que a águia ardesse, o
funcionário encarregado trepou pela pira e abriu a porta da gaiola por suas próprias mãos. Lívia teve que
dizer que a águia tinha sido solta por ordem sua como um acto simbólico.
Não vou escrever mais nada sobre o funeral de Augusto, embora nunca se tivesse visto nenhum tão
magnífico em Roma, pois tenho que começar agora a omitir todos os pormenores na minha história,
excepto os de primeira importância. já enchi mais de treze rolos do melhor papel da nova fábrica que
equipei recentemente e ainda não cheguei a um terço do caminho. Mas não posso deixar de falar do
conteúdo do testamento de Augusto, cuja leitura era aguardada com interesse e impaciência gerais.
Ninguém estava mais ansioso para saber o que ele continha do que eu, e vou explicar porquê.
Um mês antes da sua morte, Augusto aparecera de repente à porta do meu estúdio acabava de visitar a
minha mãe, que estava a convalescer de uma longa doença e, depois de mandar sair os seus
acompanhantes, começara a falar comigo de uma forma desconexa, sem me olhar directamente, mas
comportandose de um modo tão tímido como se ele fosse Cláudio e eu Augusto. Pegou num livro da sua
história e leu uma passagem.
Excelente escrita! disse. E quando é que o trabalho ficará terminado?
Eu respondi:
Dentro de um mês ou menos. Ele felicitoume e disse que, nessa altura, daria ordens para que houvesse
uma leitura pública às suas custas, convidando os seus amigos para assistirem. Fiquei perfeitamente
espantado com isto, mas ele continuou de uma forma amigável, perguntandome se não preferia um
declamador profissional para fazer justiça ao trabalho, em vez de ser eu a ler: disse que a leitura em
público do próprio trabalho devia ser muito embaraçosa embora o velho Pólio tivesse confessado que
ficava sempre nervoso nessas ocasiões. Agradecilhe com
169
toda a sinceridade e afeição e disse que um profissional seria evidentemente mais adequado, se o meu
trabalho na verdade merecia essa honra. Depois, ele estendeume repentinamente a mão:
Cláudio, tens algum ressentimento contra mim?
Que podia eu responder? As lágrimas inundaramme os olhos e murmurei que o venerava e que ele nunca
fizera nada para merecer o meu ressentimento. Ele disse com um suspiro:
Não mas, por outro lado, fiz pouco para ganhar o teu amor. Aguarda mais alguns meses, Cláudio, e
espero ser capaz de ganhar tanto o teu amor como a tua gratidão. Germânico faloume de ti. Diz que és
leal a três coisas: aos teus amigos, a Roma e à verdade. Eu sentirmeia muito orgulhoso se Germânico
pensasse o mesmo de mim.
O amor de Germânico por vós não está longe de uma verdadeira adoração, repliquei. Dissemo ele
muitas vezes.
O rosto dele iluminouse.
Juras? Sintome muito feliz. Portanto agora, Cláudio, há um laço forte entre nós, que é a boa opinião de
Germânico. E o que eu vim dizerte é o seguinte: trateite muito mal durante todos estes anos e lamentoo
sinceramente e, a partir de agora, verás que as coisas vão mudar. Fez uma citação em grego. Aquele
que te feriu é que te háde curar. E, dizendo isto, abraçoume. Quando se voltou para se ir embora, disse
por cima do ombro, Acabo de fazer uma visita às Virgens Vestais e fiz algumas importantes alterações
num documento meu que lhes foi entregue; visto que tu próprio és parcialmente responsável por estas
alterações, dei maior proeminência ao teu nome do que ele tinha antes. Mas nem uma palavra! Nem uma
palavra!
Podeis confiar em mim, disse.
Ele só podia querer dizer uma coisa com aquilo: que tinha acreditado na história de Póstumo tal como eu a
contara a Germânico e estava agora a repôlo no seu testamento (que estava à guarda das Vestais) como
seu herdeiro; e que eu iria beneficiar também, como recompensa pela minha lealdade para com ele. Nessa
altura, claro, eu não sabia da visita de Augusto a Planásia, mas esperava confiante que Póstumo havia de
ser trazido de volta e tratado com honra. Bom, fiquei decepcionado. Como Augusto tinha sido tão discreto
quanto ao novo testamento, ao qual Fábio Máximo e alguns velhos sacerdotes decrépitos tinham servido
de testemunhas, era fácil suprimilo a favor de um que tinha sido feito seis anos antes, na altura em que
Póstumo fora deserdado. A frase de abertura era: ”Na medida em que um destino sinistro me fez perder
Caio e Lúcio, meus filhos, é agora meu desejo que Tibério Cláudio Nero César se torne herdeiro, em
primeiro lugar, de dois terços dos meus bens; e que do terço que resta e também em primeiro lugar, é
agora meu desejo que minha amada esposa Lívia se torne minha herdeira, caso o Senado tenha a
170
benevolência de permitir que ela herde tudo isso (pois ultrapassa o que está determinado por estatuto
como legado para uma viúva), fazendo uma excepção no seu caso por se ter tornado tão merecedora da
benevolência do Estado.” Em segundo lugar isto é, no caso dos beneficiários mencionados em primeiro
lugar morrerem ou ficarem de qualquer outra forma incapacitados de herdar , ele pôs aqueles dos seus
netos e bisnetos que fossem membros da casa juliana e não tivessem caído publicamente em desgraça;
mas Póstumo tinha sido deserdado. Portanto, isto referiase a Germânico, como filho adoptivo de Tibério e
marido de Agripina, e à própria Agripina e aos filhos desta; e a Castor, Livila e seus filhos. Neste segundo
lugar, o testamento nomeava diversos senadores e parentes distantes, mais como uma marca de favor do
que como uma probabilidade de benefício. Augusto não podia ter esperado sobreviver a tantos herdeiros
da primeira e segunda posição. Os herdeiros da terceira posição foram agrupados em três categorias: os
dez mais favorecidos foram inscritos como herdeiros conjuntos de metade dos bens; os cinquenta que
vinham a seguir foram inscritos para partilhar um terço dos bens e o terceiro grupo continha os nomes de
outros cinquenta, que deviam herdar o restante sexto. O último nome nessa lista da última posição era
Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, o que queria dizer ClauClauCláudio, ou Cláudio o Idiota, ou,
como os filhos pequenos de Germânico estavam já aprendendo a chamarlhe, O pobre tio Cláudio na
realidade, eu próprio. Não havia qualquer referência a Júlia ou a Julila, excepto uma cláusula que proibia
as suas cinzas de serem enterradas no mausoléu ao lado do seu próprio corpo, quando viessem a morrer.
Embora Augusto tivesse nos vinte anos anteriores beneficiado dos testamentos dos velhos amigos a quem
sobrevivera, no montante de nada menos que 140 milhões de moedas de ouro, e tivesse vivido uma vida
extremamente frugal, gastara tanto em templos e obras públicas, em donativos e entretenimentos para a
populaça, em guerras de fronteira (quando já não restava dinheiro algum no tesouro militar) e em despesas
oficiais do mesmo género, que daqueles 140 milhões e de um considerável volume de tesouro privado,
proveniente de várias origens, apenas quinze milhões restavam para o legado, uma boa parte dos quais não
era facilmente realizável em dinheiro. No entanto, isto não incluía certas somas importantes de dinheiro,
não incluídas no espólio e prontas e amarradas em sacos nos cofres do Capitólio; dinheiro esse que tinha
sido posto de lado para legados especiais a reis confederados, aos senadores e cavaleiros, aos seus
soldados e aos cidadãos de Roma. Este, perfazia mais dois milhões. Havia ainda uma soma posta de lado
para as despesas do funeral. Toda a gente ficou surpreendida com a exiguidade do património e toda a
espécie de rumores desagradáveis foram postos a correr, até que as contas de Augusto foram apresentadas
e ficou claro que não havia fraude por parte dos
171
executores. Os cidadãos ficaram muito descontentes com os seus magros legados e, quando uma peça
comemorativa foi exibida em honra de Augusto à custa do erário público, houve uma desordem no teatro:
o Senado tinha restringido a tal ponto a doação, que um dos actores da peça se recusou a aparecer para
receber o pagamento que lhe era oferecido. Do descontentamento do Exército falarei em breve. Mas
primeiro vamos a Tibério,
Augusto tinha feito Tibério seu colega e herdeiro, mas não podia legarlhe a monarquia ou, pelo menos,
não abertamente. Apenas podia recomendálo ao Senado, para quem todos os poderes que ele exercera
revertiam agora. O Senado não gostava de Tibério e não desejava que ele fosse Imperador, mas
Germânico, a quem eles teriam escolhido se tivessem tido essa oportunidade, estava longe. E os direitos
de Tibério não podiam ser ignorados.
Assim, ninguém ousou mencionar qualquer nome a não ser o de Tibério e não houve desacordo quanto à
moção, apresentada pelos Cônsules, que o convidava a tomar o trabalho de Augusto no ponto em que ele o
deixara. Ele deu uma resposta evasiva, acentuando a imensa responsabilidade que estavam a tentar pôr
sobre ele e a sua própria ausência de ambição. Disse que só o Deus Augusto tinha sido capaz daquela
poderosa tarefa e que, na sua opinião, seria melhor dividir os encargos de Augusto em três partes,
dividindo assim também a responsabilidade.
Senadores ansiosos por captar as suas boas graças alegaram que o triunvirato, ou a governação de três
homens, já tinha sido tentada mais de uma vez no século precedente e que a monarquia se apresentara
como o único remédio para as consequentes guerras civis. Seguiuse uma cena infeliz. Senadores fingiram
chorar e lamentarse e abraçaram os joelhos de Tibério, implorandolhe que fizesse o que eles pediam.
Tibério, para pôr fim àquilo, disse que não desejava esquivarse a qualquer encargo que fosse posto nos
seus ombros, mas mantinha a sua afirmação de que não estava à altura de suportar todo o fardo. Já não era
nenhum jovem: tinha cinquenta e seis anos e a sua vista não estava boa. Mas encarregarseia de qualquer
parcela que lhe confiassem, Tudo isto foi feito para que ninguém pudesse acusálo de agarrar o poder com
excessiva ansiedade: e especialmente para que Germânico e Póstumo (onde quer que estivessem)
pudessem ficar impressionados com a força da sua posição na Cidade. Na verdade, ele tinha medo de
Germânico, cuja popularidade junto do exército era infinitamente maior que a sua. Não acreditava que
Germânico fosse capaz de tomar o poder pelos seus próprios objectivos egoístas, mas pensava que, se ele
soubesse do testamento suprimido, podia tentar restituir a Póstumo a herança que lhe cabia de direito e
mesmo fazer dele a terceira figura Tibério, Germânico e Póstumo no novo triunvirato. Agripina era
muito dedicada a Póstumo e Germânico
172
seguia os seus conselhos tão consistentemente como Augusto seguira os de Lívia. Se Germânico
marchasse sobre Roma, o Senado acorreria num só corpo para lhe dar as boas vindas. Tibério sabiao. E,
na pior das hipóteses, comportandose agora com modéstia, poderia escapar com vida e viver tranquila e
honradamente.
O Senado compreendeu que Tibério desejava realmente aquilo que recusava com tanta modéstia e
preparavamse para renovar os seus apelos quando Caio interveio num tom prático:
Muito bem, Tibério, qual a parte do governo que desejas que te seja atribuída?
Tibério ficou confundido com aquela pergunta incómoda e inesperada. Mantevese algum tempo em
silêncio e finalmente disse:
O mesmo homem não pode simultaneamente fazer a divisão e escolher; mesmo que isto fosse possível,
seria falta de modéstia da minha parte escolher ou rejeitar um dado ramo da administração quando, tal
como expliquei, o que realmente desejo é que me dispensem de todos eles.
Caio insistiu de novo:
A única divisão possível do Império seria: primeiro, Roma e toda a Itália; segundo, os exércitos; e
terceiro, as províncias. Qual escolherias? Como Tibério ficasse silencioso, Caio continuou:
Bom. Eu sei que não há resposta. Foi por isso que fiz a pergunta. Queria que admitisses com o teu
silêncio que era uma insensatez falar em dividir em três partes um sistema administrativo que foi
construído e coordenado de forma centralizada por um único indivíduo. Ou temos que retomar a forma de
governo republicana, ou continuar com a monarquia. É desperdiçar o tempo da Casa, que parece terse
decidido a favor da monarquia, continuar a falar em triunviratos. Foite oferecida a monarquia. É pegar ou
largar.
Outro senador, um amigo de Caio, disse:
Como Protector do Povo, tens o poder de vetar a moção dos Cônsules oferecendote a monarquia. Se
realmente não a queres, devias ter usado o teu veto meia hora atrás.
Assim, Tibério foi obrigado a pedir desculpa ao Senado e a dizer que a rapidez e o inesperado de tal honra
o tinham subjugado: pedia permissão para considerar um pouco mais longamente a sua resposta.
O Senado então suspendeu os trabalhos e, em sessões posteriores, Tibério gradualmente aceitou ser
votado, um por um, para todos os cargos de Augusto. Mas nunca usou o nome de Augusto, que lhe tinha
sido transmitido, excepto quando escrevia cartas a reis estrangeiros; e tinha o cuidado de desencorajar
qualquer tendência para lhe prestarem honras divinas. Havia outra explicação para este seu
comportamento cauteloso, designadamente o facto de Lívia se ter gabado em público de que ele
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estava a receber a monarquia como presente das mãos dela. Fez essa afirmação não só para fortalecer a
sua posição como viúva de Augusto, mas para prevenir Tibério de que, se os seus crimes alguma vez
viessem a ser conhecidos, ele seria olhado como seu cúmplice, sendo a pessoa que mais beneficiava com
eles. Naturalmente, ele desejava aparecer como não tendo qualquer obrigação para com ela e sim como
tendo sido obrigado pelo Senado a aceitar a monarquia, mesmo contra vontade.
O Senado era prolífico em lisonjas a Lívia e queria conferirlhe honras em que nunca se ouvira falar, Mas
Lívia, como mulher, não podia assistir aos debates do Senado e estava agora legalmente sob a tutela de
Tibério
ele tornarase o chefe da casa Juliana. Assim, depois de ter recusado para si próprio o título de Pai da
Pátria, recusara em nome dela o título de Mãe da Pátria que lhe tinha sido oferecido, alegando que a
modéstia não lhe permitia que o aceitasse. No entanto, ele estava imensamente receoso de Lívia e, a
princípio, totalmente dependente dela para aprender os segredos internos do sistema imperial. Não se
tratava apenas de entender a rotina. Os processos criminais de cada homem com alguma importância nas
duas Ordens e da maioria das mulheres importantes, relatórios dos serviços secretos de naturezas diversas,
a correspondência particular de Augusto com reis confederados e os seus parentes, cópias de cartas
traiçoeiras interceptadas mas devidamente remetidas tudo isto estava à guarda de Lívia e escrito em
código e Tibério não podia ler nada sem a ajuda dela. Mas, ao mesmo tempo, sabia que Lívia era
extremamente dependente dele. Havia entre ambos um entendimento de cooperação cautelosa. Ela
agradeceulhe mesmo ter recusado o título que lhe era oferecido, dizendo que tivera razão em fazêlo; em
troca, ele prometeu que faria com que lhe votassem todos os títulos que ela desejasse, logo que as suas
posições parecessem asseguradas. Como prova de boa fé, pôs o nome dela ao lado do seu em todas as
cartas oficiais. Lívia, como prova da sua, deulhe a chave da cifra comum, embora não a da cifra
extraordinária, o segredo da qual, alegou, tinha morrido com Augusto. Era na cifra extraordinária que os
processos estavam escritos.
Falemos agora de Germânico. Quando, em Lião, soube da morte de Augusto, dos termos do seu
testamento e da sucessão de Tibério, sentiu que era seu dever acatar lealmente o novo regime. Era
sobrinho e filho adoptivo de Tibério e, embora não houvesse uma verdadeira afeição entre ambos, tinham
conseguido trabalhar juntos e sem fricção, tanto em Roma como em campanha. Não suspeitava que
Tibério tivesse tido qualquer cumplicidade na intriga que resultara no afastamento de Póstumo e estava
convencido de que este continuava em Planásia Augusto não falara a ninguém excepto a Fábio, quer da
visita quer da substituição. Decidiu, no entanto, regressar a Roma logo que pudesse e discutir francamente
o caso de Póstumo com Tibério. Explicarlheia que Augusto lhe dissera
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particularmente que tencionava restabelecer Póstumo em situação de favor, logo que tivesse provas
da sua inocência para oferecer ao Senado; e que, embora a morte o tivesse impedido de pôr em prática as
suas intenções, elas deviam ser respeitadas. Iria insistir no regresso imediato de Póstumo, na devolução
dos bens que lhe tinham sido confiscados e na sua elevação a um cargo honroso; e por fim, no afastamento
compulsivo de Lívia dos negócios do Estado, por ter injustamente engendrado o exílio dele. Mas, antes
que pudesse fazer qualquer coisa nesse sentido chegaram notícias de Mainz de um motim do exército do
Reno. Depois, quando se apressava para ir debelálo, veio a notícia da morte de Póstumo. Póstumo, tal era
a informação, tinha sido morto pelo capitão da guarda, que tinha ordens de Augusto para não deixar que o
neto lhe sobrevivesse. Germânico ficou chocado e desgostoso com a execução de Póstumo mas, no
momento, não tinha tempo para pensar noutra coisa que não fosse o motim. Podeis ter a certeza, no
entanto, de que a notícia causou o mais profundo desgosto ao pobre Cláudio, pois, nesta altura, não lhe
faltava tempo livre. Pelo contrário, o pobre Cláudio tinha muitas vezes dificuldade em encontrar ocupação
para o seu espírito. Ninguém consegue escrever história durante mais de cinco ou seis horas por dia,
especialmente quando há poucas esperanças de que alguém venha alguma vez a lêla. Assim, entreguei
me ao meu desespero. Como é que podia saber que a vítima tinha sido Clement e não Póstumo e que o
assassinato não só não fora ordenado por Augusto, mas que Lívia e Tibério também estavam inocentes
neste caso?
O verdadeiro responsável pelo assassinato de Clement tinha sido um velho cavaleiro chamado Crispo,
proprietário dos Jardins de Salusto e amigo íntimo de Augusto. Em Roma, logo que soube da morte de
Augusto, não esperara para consultar Lívia e Tibério em Nola e enviara de imediato a ordem para a
execução de Póstumo, dirigida ao capitão da guarda em Planásia, apondolhe o selo de Tibério. Tibério
tinhalhe confiado um duplicado do selo para que assinasse alguns papéis de negócios que ele não tinha
conseguido arrumar antes de ser enviado para os Balcãs. Crispo sabia que Tibério ia ficar zangado, ou
fingir que o estava, mas explicou a Lívia, cuja protecção reclamou imediatamente, que se desembaraçara
de Póstumo ao ser informado de uma conspiração por parte de alguns oficiais da Guarda para mandar um
navio libertar Júlia e Póstumo e conduzilos até aos regimentos de Colónia; aí, Germânico e Agripina não
poderiam deixar de os receber e abrigar e os oficiais forçariam então Germânico e Póstumo a marchar
sobre Roma. Tibério ficou furioso por o seu nome ter sido usado daquela forma, mas Lívia resolveu
encaminhar as coisas para o lado melhor e fingiu que realmente era Póstumo que tinha morrido. Crispo
não foi processado e o Senado foi informado particularmente de que Póstumo morrera por ordem do
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seu avô divinizado, que previra sensatamente que o jovem de temperamento fugaz havia de tentar usurpar
o poder supremo logo que recebesse a notícia da sua morte; como ele realmente fizera. O motivo de
Crispo para mandar matar Póstumo não era o desejo de ganhar favor aos olhos de Tibério e Lívia, ou de
impedir a guerra civil. Estava sim a vingar um insulto. Na verdade, Crispo, que tinha tanto de preguiçoso
como de rico, gabarase uma vez de nunca ter tido qualquer cargo, contentandose em ser um simples
cavaleiro romano. Póstumo replicara:
Um simples cavaleiro romano, Crispo? Então faríeis melhor em receber algumas lições simples de
equitação romana.
Tibério ainda não ouvira falar no motim. Escreveu a Germânico uma carta amistosa, dandolhe os
pêsames pela perda de Augusto e dizendo que Roma agora contava com ele e com o irmão adoptivo
Castor para a defesa das fronteiras, sendo ele agora demasiado idoso para o serviço no estrangeiro e
solicitado pelo Senado para dirigir os assuntos em Roma. Referindose à morte de Póstumo, disse que
deplorava a violência a ela associada, mas que não podia pôr em causa a sensatez de Augusto quanto a
essa questão. Não disse nada sobre Crispo. Germânico só podia concluir que Augusto tinha uma vez mais
mudado de opinião em relação a Póstumo, com base em alguma informação da qual ele próprio nada
sabia; durante algum tempo, contentouse em deixar o assunto por aí.
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CAPíTULO XV
O motim no Reno tinha estalado por simpatia com um motim entre as forças dos Balcãs. A decepção dos
soldados com os legados previstos no testamento de Augusto uns meros quatro meses de soldo como
prêmio, três moedas de ouro por cada homem , agravou algumas queixas antigas; e eles acharam que a
insegurança da posição de Tibério o forçaria a satisfazer quaisquer pretensões razoáveis que lhe
apresentassem para lhes conquistar a boa vontade. Estas pretensões incluíam um aumento do soldo, tempo
de serviço limitado a dezasseis anos, abrandamento da disciplina no acampamento. O pagamento era sem
dúvida insuficiente: os soldados tinham que se armar e equipar com ele e os preços tinham subido. E, sem
dúvida, a exaustão das reservas militares tinha mantido sob os estandartes de Roma milhares de soldados
que deviam ter sido desmobilizados havia anos e tinham mesmo sido chamados para o serviço veteranos
que já não estavam em condições de combater. Para além disso, os destacamentos formados por escravos
recémlibertos eram uma força de combate de tão má qualidade, que Tibério achara necessário apertar a
disciplina, escolhendo para capitães os militares mais exigentes e dandolhes instruções para que
mantivessem os homens constantemente ocupados em trabalho duro, mantendo eles por sua vez as varas
de videira nova distintivas da sua posição constantemente ocupadas nas costas deles.
Quando a notícia da morte de Augusto chegou às tropas dos Balcãs, três regimentos encontravamse
juntos num acampamento de Verão e o General deulhes alguns dias de férias das revistas e das faxinas.
Esta experiência de descontracção e ociosidade desestabilizouos e eles recusaramse a obedecer aos seus
capitães, quando chamados de novo à parada. Formularam certas exigências. O General disselhes que não
tinha autoridade para satisfazer tais pedidos e preveniuos do perigo de uma atitude de rebeldia. Eles não
lhe ofereceram violência, mas recusaramse a ser forçados a obedecer e, finalmente, obrigaramno a enviar
o filho a Roma para transmitir as suas exigências a Tibério. Depois do enviado ter deixado o
acampamento para cumprir essa missão, a desordem cresceu. Os homens menos disciplinados começaram
a pilhar o acampamento e as aldeias vizinhas e, quando o General prendeu os cabecilhas, os outros
invadiram
177
a sala da guarda e libertaramnos, acabando por matar um capitão que tentou fazerlhes frente. Este
capitão tinha a alcunha de Velho dácáOutra porque, depois de quebrar as vergastas nas costas de um
homem, pedia logo outras e outras e outras. Quando o filho do General chegou a Roma, Tibério enviou
Castor para apoiar o General à frente de dois batalhões de Guardas, um esquadrão de cavalaria da Guarda
e quase todo o Batalhão Interno, formado por germanos; um oficial do estadomaior chamado Sejano,
filho do Comandante dos Guardas e um dos poucos amigos íntimos de Tibério, foi com Castor como seu
tenente. Sobre este Sejano, terei outras coisas para escrever mais tarde. À chegada, Castor dirigiuse à
multidão dos soldados num tom destemido e cheio de dignidade e leulhes uma carta do pai, prometendo
tomar conta dos invencíveis regimentos com quem partilhara os rigores de tantas guerras e negociar com o
Senado sobre as suas reivindicações logo que se tivesse refeito do desgosto pela morte de Augusto.
Entretanto, escrevera, o filho vinha ao encontro deles para fazer quaisquer concessões imediatas que
fossem praticáveis o resto, tinha que ser reservado ao Senado.
Os amotinados fizeram um dos capitães agir como portavoz e apresentar as suas exigências, pois nenhum
soldado se arriscaria a fazêlo com medo de ser apontado mais tarde como agitador. Castor disse que
lamentava muito, mas que o limite de dezasseis anos para o serviço, a desmobilização dos veteranos e o
aumento do soldo para uma moeda de prata por dia eram solicitações que ele não tinha autoridade para
conceder. Só o pai ou o Senado podiam fazer tais concessões.
Isto deixou os homens com uma disposição terrível. Perguntaramlhe por que diabo viera até ali, se não
tinha poder para fazer nada por eles. O pai, Tibério, disseram, costumava sempre pregarlhes a mesma
partida quando apresentavam as suas queixas: costumava esconderse atrás de Augusto e do Senado. O
que era o Senado, afinal? Um bando de preguiçosos ricos e inúteis, a maior parte dos quais morreria de
medo se alguma vez avistasse um escudo inimigo ou se visse uma espada desembainhada com fúria!
Começaram a atirar pedras aos homens de Castor e a situação tornouse perigosa. Mas foi salva nessa
noite por um acaso feliz. A lua estava em eclipse, o que afectou o exército todos os soldados são
supersticiosos de uma forma surpreendente. Tomaram o eclipse por um sinal de que o Céu estava
zangado com eles por terem assassinado o Velho DácáOutra e por desafiarem a autoridade. Havia um
número de lealistas secretos entre os amotinados e um deles foi procurar Castor, sugerindolhe que se
servisse de outros como ele próprio e os enviasse pelas tendas em grupos de dois ou três, para tentar
chamar à razão os descontentes. Isso foi feito. De manhã, o ambiente no acampamento era muito diferente
e Castor, embora consentisse em enviar de novo o filho do General a Tibério com as mesmas solicitações
endossadas por ele
178
próprio, prendeu os dois homens que pareciam ter começado o motim e executouos em público. Os
outros não protestaram e entregaram mesmo voluntariamente os cinco assassinos do capitão, como prova
da sua fidelidade. Mas havia ainda uma recusa firme às revistas e a quaisquer faxinas, a não ser as mais
necessárias, até que viesse uma resposta de Roma. O tempo sofreu um agravamento e a chuva inundou o
acampamento, impossibilitando os homens de se manterem em comunicação de tenda para tenda. Isso foi
tomado como um novo aviso do Céu e, antes que o mensageiro tivesse tempo de regressar, o motim estava
acabado, com os regimentos a marcharem obedientemente para os quartéis de Inverno, sob o comando dos
seus oficiais.
Mas o motim no Reno foi uma coisa muito mais séria. A Germânia romana era agora limitada a leste pelo
Reno e dividida em duas províncias, a Superior e a Inferior. A capital da Província Superior, que se
estendia até à Helvécia, era Mainz, e a da Província Inferior, que chegava a norte ao Scheldt e a Sambre,
era Colónia. Um exército de quatro regimentos guarnecia cada uma das províncias e Germânico era
ComandanteemChefe. As desordens irromperam num acampamento de Verão do Exército Inferior. Aqui,
as queixas eram as mesmas que no exército dos Balcãs mas a conduta dos amotinados foi mais violenta
por causa da maior proporção de libertos da Cidade recémrecrutados nas suas fileiras. Estes libertos eram
ainda escravos por natureza e acostumados a uma vida muito mais ociosa e envolta em luxos do que os
cidadãos nascidos livres, na sua maioria camponeses pobres, que formavam o grosso do exército. Esses
libertos davam soldados verdadeiramente maus e o que tinham de mau não era controlado por qualquer
espritdecorp do regimento. Estes, na realidade, não eram os regimentos que tinham estado sob o
comando de Germânico na recente campanha; eram homens de Tibério.
O General perdeu a cabeça e não conseguiu controlar a insolência dos amotinados, que se apinharam à
volta dele com queixas e ameaças. O seu nervosismo encorajouos a cair sobre os capitães mais odiados,
cerca de vinte dos quais mataram à vergastada com as suas próprias varas de videira, atirando os corpos ao
Reno. Os restantes foram escarnecidos e insultados e expulsos do acampamento. Cássio Chaerea foi o
único oficial superior que fez alguma tentativa para se opor àquele comportamento monstruoso e nunca
visto. Foi assaltado por um grande grupo, mas, em vez de fugir ou suplicar misericórdia, correu direito
para o meio deles com a espada desembainhada, acutilando à direita e à esquerda, e abriu caminho até à
plataforma sagrada do tribunal, onde sabia que nenhum soldado ousaria tocarlhe.
Germânico não tinha batalhões de Guardas para o apoiarem, mas dirigiuse imediatamente para o
acampamento amotinado, levando
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apenas uma pequena escolta atrás. Ainda não estava ao corrente do massacre. Os homens reuniramse à
sua volta numa multidão desordenada, tal como tinham feito com o seu General, mas Germânico recusou
calmamente dizerlhes o que quer que fosse, enquanto não tivessem formado decentemente em
companhias e batalhões sob os respectivos estandartes, para saber a quem se dirigia. Parecia uma pequena
concessão à autoridade e eles queriam ouvir o que tinha para lhes dizer. Logo que retomaram a formação
militar voltoulhes o sentido de disciplina e, embora através do assassinato dos seus oficiais se tivessem
colocado para além de qualquer esperança de confiança ou de perdão, os seus corações, de repente,
puseramse do lado dele como um homem corajoso, humano e respeitável. Um antigo veterano havia
muitos ali que tinham estado a servir na Germânia vinte e cinco e trinta anos antes exclamou: ”Como ele
se parece com o pai!” E outro: ”Tem que ser tremendamente bom, para ser tão tremendamente bom como
ele.” Germânico começou, no tom de quem conduzia uma conversa normal, para atrair mais a atenção.
Primeiro, falou da morte de Augusto e do grande desgosto que ela inspirara, mas garantiulhes que
Augusto deixara para trás uma obra indestrutível e um sucessor capaz de levar por diante o governo e
comandar os exércitos da maneira que ele próprio teria desejado.
Vós não desconheceis as gloriosas vitórias de meu pai na Germânia. Muitos de vós partilharam delas.
Nunca houve um melhor general nem um homem melhor, gritou um veterano. Um bravo por
Germânico, pai e filho!
Serve para ilustrar a extrema simplicidade do meu irmão o facto dele não ter compreendido o efeito que as
suas palavras estavam produzindo. Ao falar em pai
ele queria dizer Tibério (que era também muitas vezes chamado Germânico), mas os veteranos pensaram
que se referia ao seu verdadeiro pai; e ao dizer sucessor de Augusto, ele referiase de novo a Tibério, mas
os veteranos pensaram que estava a falar de si próprio. Sem se aperceber destes malentendidos, continuou
referindo a harmonia que prevalecia em Itália e a fidelidade dos gauleses, de cujo território acabava de
chegar, e disse que não podia compreender o sentimento repentino de pessimismo que se apoderara deles.
O que os afligia? O que tinham feito com os seus capitães, os seus coronéis e os seus generais? Porque não
estavam esses oficiais na parada? Tinham realmente sido expulsos do acampamento, como lhe haviam
dito?
Alguns de nós estamos ainda vivos e presentes, César, disse alguém; Cássio atravessou as fileiras a
coxear e fez a continência a Germânico. Não muitos! Arrancaramme da plataforma do tribunal e
puseramme amarrado na sala da guarda, sem comida há quatro dias. Um velho soldado acaba de ter a
bondade de me libertar.
180
A ti, Cássio! Eles fizeramte isso a ti! O homem que trouxe os oitenta de volta da Floresta de
Teutoburger? O homem que salvou a ponte do Reno?
Bom, pelo menos pouparamme a vida, disse Cássio. Com horror na voz, Germânico perguntou:
Homens, isto é verdade?
Eles é que tiveram a culpa, gritou alguém e depois ergueuse um burburinho terrível. Alguns homens
despiramse completamente para mostrar as cicatrizes reluzentes das feridas honrosas que tinham no peito
e as marcas irregulares e descoradas dos açoites sobre as costas. Um velho decrépito destacouse das
fileiras e, correndo em frente, abriu a boca com os dedos, para mostrar as gengivas sem dentes. Depois,
gritou:
Sem dentes não posso comer comida sólida, General, e não posso marchar e lutar alimentandome de
levedura. Servi sob as ordens de vosso pai na sua primeira campanha nos Alpes e, nessa altura, já tinha
completado seis anos de serviço. Tenho dois netos a servir na mesma companhia que eu. Deixaime ir
embora, meu General; fizvos saltar nos meus joelhos quando éreis criança! Olhai, meu General, tenho
uma ruptura e eles esperam que eu marche vinte milhas com cinquenta quilos de peso às costas.
Volta para as fileiras, Pompónio ordenou Germânico, que reconhecera o velho e ficara chocado por o
encontrar ainda no activo.
Estás fora de ti. Depois vou ver o teu caso. Pelo amor de Deus, dá um bom exemplo aos soldados jovens!
Pompónio fez a continência e voltou para as fileiras. Germânico levantou a mão a pedir silêncio, mas os
homens continuaram a gritar sobre o seu soldo e as faxinas desnecessárias a que os obrigavam, de tal
forma que não tinham um momento para eles desde a alvorada ao recolher e que a única maneira que um
homem tinha agora de ser dispensado do exército era cair morto de velhice. Germânico não fez qualquer
tentativa para falar até ficarem todos de novo em silêncio. Nessa altura, disse:
Em nome de meu pai Tibério prometovos justiça. Ele tem o vosso bemestar no coração, tal como eu, e
tudo o que puder ser feito por vós sem perigo para o Império, ele fáloá. Eu respondo por isso.
Oh, Tibério que vá para o diabo! gritou alguém, e o brado foi repetido por todos os lados com gemidos
e gritos. De repente, todos começaram a gritar:
Viva Germânico! Tu és o nosso Imperador! Atirem Tibério ao Tibre! Viva Germânico! Germânico a
Imperador! Tibério que vá para o inferno! Aquela cabra da Lívia que vá para o inferno! Viva Germânico!
Marchemos sobre Roma! Somos os teus homens! Viva Germânico, filho de Germânico! Germânico a
Imperador!
Germânico estava fulminado. Gritou:
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Homens, deveis estar loucos para falardes dessa maneira. O que pensais que eu sou? Um traidor?
Um veterano gritou:
Nada disso, meu General! Dissestes agora mesmo que iríeis assumir o trabalho de Augusto. Não recueis!
Germânico compreendeu então o seu erro e, quando as aclamações de Viva Germânico continuaram,
saltou da plataforma do tribunal e encaminhouse apressadamente para o sítio onde deixara o cavalo
amarrado a um poste, com a intenção de montar e galopar a toda a velocidade para longe daquele
acampamento maldito. Mas os homens puxaram das espadas e barraramlhe o caminho.
Germânico, fora de si, gritou:
Deixaime passar ou, pelos Deuses, eu matome.
Para nós, vós sois o Imperador, responderam.
Germânico desembainhou a espada, mas alguém lhe agarrou o braço. Era evidente para qualquer homem
decente que Germânico estava a falar a sério, mas muitos dos exescravos pensavam que ele estivesse
apenas a fazer um gesto hipócrita de modéstia e virtude. Um deles, riuse e gritoulhe:
Aqui, tomai a minha espada. Está mais afiada!
O velho Pompónio, que estava ao lado deste indivíduo, ergueuse numa fúria e atingiuo na boca.
Germânico foi levado à pressa pelos amigos para a tenda do General. O General estava estendido na cama,
meio morto de pavor, com a cabeça escondida debaixo da coberta. Passouse bastante tempo antes que ele
conseguisse levantarse e apresentar os seus respeitos a Germânico. A sua vida e a dos seus oficiais tinha
sido salva pela sua guarda pessoal, mercenários da fronteira Helvética.
Um conselho foi convocado à pressa. Cássio disse a Germânico que, por uma conversa que tinha escutado
enquanto estava estendido na casa da guarda, os amotinados preparavamse para enviar uma delegação aos
regimentos da Província Superior, para assegurar a sua cooperação numa revolta militar geral. Falavase
em deixar o Reno sem guarda e marchar para França, saqueando cidades, raptando as mulheres e
instaurando um reino militar independente no sudoeste, protegido na retaguarda pelos Pirinéus. Roma
ficaria paralisada com este movimento e eles ficariam à sua vontade o tempo suficiente para conseguirem
tornar o seu reino inexpugnável.
Germânico decidiu ir imediatamente para a Província Superior e fazer os regimentos que lá se
encontravam jurar aliança a Tibério. Estas eram as tropas que tinham havia pouco servido directamente
sob o seu comando e ele acreditava que permaneceriam leais se ele chegasse antes da delegação dos
amotinados. Sabia que tinham as mesmas queixas quanto a pagamento e tempo de serviço, mas os seus
capitães eram gente melhor,
182
escolhidos por ele próprio pela sua paciência e qualidades militares, e não pela reputação. Mas primeiro,
alguma coisa tinha que ser feita para acalmar os regimentos amotinados. Havia apenas um caminho a
seguir. E ele cometeu o primeiro e único crime da sua vida: forjou uma carta que pretensamente vinha de
Tibério e fez que lha entregassem à porta da tenda na manhã seguinte. O correio tinha sido enviado para
fora do acampamento em segredo durante a noite, com instruções para que roubasse um cavalo do próprio
acampamento, cavalgasse vinte milhas para sudoeste e depois regressasse, galopando a toda a velocidade
por uma outra estrada.
A carta dizia que Tibério tivera conhecimento de que os regimentos da Germânia tinham feito ouvir
algumas queixas legítimas e que ele estava ansioso por as satisfazer rapidamente. Faria com que o legado
de Augusto lhes fosse pago sem demora e, como penhor da sua confiança na lealdade deles, dobráloia,
às suas próprias custas. Iria negociar com o Senado o aumento do soldo. Daria dispensa imediata e sem
restrições a todos os homens com vinte anos de serviço e dispensaria com uma condição aqueles que
tinham completado dezasseis anos estes, não seriam chamados para qualquer serviço militar, excepto
para o de guarnição.
Germânico não era um mentiroso tão astuto como seu tio Tibério, sua avó Lívia ou a irmã Livila. O cavalo
do correio foi reconhecido pelo seu proprietário, tal como o correio, um dos moços do próprio Germânico.
Correu o rumor de que a carta era forjada. Mas os veteranos foram a favor de a tratar como autêntica e
reclamar imediatamente a dispensa prometida e o legado. Fizeramno e Germânico replicou que o
Imperador era um homem de palavra e que as dispensas seriam concedidas nesse mesmo dia. Mas pediu
lhes que tivessem paciência quanto ao legado, que só poderia ser pago por inteiro quando eles
regressassem aos seus quartéis de Inverno. Não havia dinheiro suficiente no acampamento, disse, para que
todos os homens recebessem as suas seis moedas de ouro, mas ele faria com que o General entregasse o
que havia. Isto acalmouos, embora as opiniões se tivessem voltado um pouco contra GermâniCO, que
não era aquilo que eles tinham julgado que fosse: tinha medo de Tibério, disseram, e não estava acima de
fazer uma falsificação. Enviaram grupos à procura dos seus capitães e voltaram a obedecer às ordens do
seu General. Germânico dissera ao General que faria com que o Senado o desacreditasse por cobardia, se
ele não se controlasse imediatamente.
Assim, depois de ver que as desmobilizações eram feitas na devida forma e que todo o dinheiro disponível
era distribuído, Germânico dirigiuse à Província Superior. Encontrou os regimentos à espera de notícias
do que estava a acontecer na Província Inferior; mas ainda não estavam declaradamente amotinados, pois
Sílio, o seu General, era um
183
homem de espírito forte. Germânico leulhes a carta forjada e fêlos jurar aliança a Tibério, o que eles
fizeram de imediato.
Houve grande emoção em Roma quando chegou a notícia do motim do Reno. Tibério, que tinha sido
fortemente criticado por enviar Castor para o motim dos Balcãs que ainda não fora debelado , em vez de
ter ido ele próprio, era agora vaiado nas ruas enquanto lhe perguntavam por que razão as tropas que se
amotinavam eram as que ele comandara pessoalmente, enquanto as outras permaneciam leais (o regimento
que Germânico tinha comandado na Dalmácia também ainda não se tinha amotinado). Foi chamado para
ir imediatamente para a Germânia e resolver a sua própria embrulhada no Reno, em vez de deixar tudo por
conta de Germânico. Portanto, disse ao Senado que iria para a Germânia e começou lentamente a fazer os
preparativos, escolhendo os seus oficiais e preparando uma pequena frota. Mas quando tudo ficou pronto,
a aproximação do Inverno tornava a navegação perigosa e as notícias da Germânia eram mais
esperançosas. Por isso, não chegou a ir. Também não tencionava fazêlo.
Entretanto, eu recebera uma carta apressada de Germânico, pedindome que retirasse imediatamente
200.000 moedas de ouro do seu espólio, mas debaixo do maior segredo; elas eram necessárias para a
segurança de Roma. Não disse mais nada, mas envioume uma autorização assinada que me permitia agir
em seu nome. Fui procurar o administrador principal de Germânico, que disse que apenas conseguia
realizar metade daquela quantia sem vender nenhuma propriedade e que a venda de alguma propriedade
iria causar falatório, que era o que Germânico nitidamente desejava evitar. Portanto, tive que arranjar eu
próprio o resto, 50.000 do meu cofreforte, o que me deixou apenas 10.000, depois de ter pago a despesa
da minha iniciação ao novo sacerdócio e mais 50.000 da venda de uma propriedade na Cidade, que o
meu pai me deixara felizmente, já tinha uma oferta para ela , e da venda de alguns escravos que podia
dispensar, mas apenas os homens e mulheres que eu considerava como particularmente dedicados ao meu
serviço. Envieilhe o dinheiro dois dias depois de ter recebido a carta a pedilo. A minha mãe ficou
extremamente zangada quando soube que a propriedade tinha sido vendida, mas eu comprometerame a
não dizer as razões que me tinham levado a precisar do dinheiro. Por isso, disse que, ultimamente, tinha
andado a jogar dados com apostas excessivamente altas e que, ao tentar recuperar as minhas pesadas
perdas, perdera duas vezes mais. Ela acreditoume e jogador passou a ser mais um pau para me bater. Mas
a ideia de que não tinha deixado ficar mal nem Germânico nem Roma era compensação suficiente para os
insultos dela.
Devo dizer que, nesta altura, eu jogava bastante, mas nunca ganhava nem perdia muito. Costumava jogar
para me descontrair do meu trabalho.
184
Depois de terminar a minha história das reformas religiosas de Augusto, escrevi um pequeno livro
humorístico sobre dados, dedicado à divindade de Augusto, e que serviu para arreliar a minha mãe. Citava
uma carta que Augusto, que gostava muito de dados, escrevera em tempos a meu pai: nela dizia como lhe
tinha agradado o seu jogo da noite anterior, porque o meu pai era o melhor perdedor que ele alguma vez
conhecera. O meu pai, escrevia ele, soltava sempre um brado misturado com uma gargalhada contra o
destino sempre que lhe saía Cão, mas, se outro companheiro de jogo tirava Vénus, ele parecia tão contente
como se a jogada tivesse sido sua.
”É na verdade um prazer ganharte, meu caro, e dizer que este é o mais alto elogio que posso dedicar a um
homem, pois geralmente detesto ganhar, por causa da visão que isso me permite do íntimo dos
supostamente meus amigos mais dedicados. Todos, excepto os melhores, têm aversão a perder para mim
porque sou o Imperador e, segundo pensam, imensamente rico e, obviamente, os deuses não deviam dar
mais a um homem quejá tem demais. A minha política, portanto, talvez já o tenhas notado, é fazer
sempre um erro nas contas depois de uma ou duas jogadas. Anuncio menos do que ganhei, como que por
engano, ou pago mais do que devo e, praticamente, ninguém a não seres tu, essa é a minha experiência, é
suficientemente honesto para me corrigir (teria gostado de citar uma outra passagem, na qual havia uma
referência à falta de desportivismo de Tibério, mas claro que não podia).
Nesse livro, comecei com uma investigação pretensamente séria sobre a antiguidade dos dados, citando
um número de autores não existentes e descrevendo várias maneiras fantasiosas de sacudir o copo de
dados. Mas o assunto principal era naturalmente perder e ganhar, e o título era Como Ganhar aos Dados.
Augusto tinha escrito noutra carta que, quanto mais tentava perder, mais parecia que ganhava e, mesmo
fazendo batota contra si próprio nas contas, era raro levantarse da mesa mais pobre do que quando se
sentava. Citei uma declaração oposta atribuída por Pólio a meu avô António, no sentido de que, quanto
mais tentava ganhar aos dados, mais parecia perder. juntando as duas afirmações, deduzi que a lei
fundamental dos dados era que os deuses, a menos que tivessem alguma coisa contra ele por outras razões,
sempre deixavam ganhar o homem que menos desejava o lucro. A única maneira de ganhar aos dados,
portanto, era cultivar um desejo genuíno de perder. Escrito num estilo pesado que parodiava o do meu
atormentador Catão, esse era, gabome disso, um livro muito engraçado, cujo argumento era tão
perfeitamente paradoxal. Citei o velho provérbio que promete a um homem 1.000 moedas de ouro cada
vez que ele encontrar um desconhecido montado numa mula malhada, mas com a condição dele não
pensar na cauda da mula até receber o dinheiro. Esperava que esta sátira agradasse às pessoas que
185
achavam as minhas histórias indigestas. Mas não agradou. Ela não foi lida como uma obra de humor.
Devia ter compreendido que leitores antiquados, que tinham crescido a ler Catão, não eram propriamente
o tipo de pessoas que se iriam divertir com uma paródia do seu herói. Portanto, o livro foi tratado como
uma produção fantasticamente monótona e estúpida, escrita com uma seriedade lamentável e provando,
para além de qualquer dúvida, a minha tão falada incapacidade mental.
Mas isto foi uma digressão mal calculada, em que deixei Germânico esperando ansiosamente o seu
dinheiro, enquanto escrevia um livro sobre dados. O velho Atenodoro criticarmeia com bastante
severidade, acho eu, se ainda estivesse vivo.
186
CAPíTULO XVI
Uma delegação de senadores enviada por Tibério foi ao encontro de Germânico em Bona. Na realidade,
foram ver se Germânico estivera a exagerar ou a minimizar a gravidade do motim. Levavam também uma
carta particular de Tibério aprovando as promessas feitas aos homens em seu nome, com excepção da
duplicação do legado, que teria agora que ser prometida ao exército inteiro e não apenas aos regimentos da
Germânia. Tibério felicitava Germânico pelo aparente sucesso da artimanha, mas deplorava a necessidade
da falsificação. Acrescentava que, se ele ia ou não cumprir as promessas, dependia do comportamento dos
homens (com isto, ele não queria dizer, como Germânico supos, que, se os homens regressassem à
obediência, ele cumpriria as promessas, mas exactamente o contrário). Germânico escreveulhe
imediatamente em resposta, pedindo desculpa pela despesa envolvida na duplicação do legado, mas
explicava que o dinheiro estava a ser pago as suas próprias custas e que os homens não saberiam que não
era Tibério o seu benfeitor; e que, na carta forjada, ele tornara claro que apenas os regimentos da
Germânia beneficiariam, tornando o pagamento uma recompensa pelo êxito da sua recente campanha do
outro lado do Reno. Quanto às outras promessas específicas, os veteranos com vinte anos de serviço já
tinham sido dispensados e aguardavam apenas a chegada do dinheiro do prêmio.
Cermânico mal podia suportar este pesado ónus sobre o seu património e escreveu a pedirme que lhe
desse algum tempo para pagar os meus 50.000. Respondilhe que não tinha sido um empréstimo, mas uma
oferta que tinha orgulho em ter podido fazer. Mas voltemos à ordem dos acontecimentos. Dois dos
regimentos estavam nos seus quartéis de Inverno, em Bona, quando chegou a delegação. A sua marcha de
regresso, sob as ordens do seu General, tinha sido um triste espectáculo: os sacos que tinham contido o
dinheiro foram amarrados a compridas varas e transportados com a boca para baixo, entre dois
estandartes. Os outros dois regimentos tinhamse recusado a deixar o acampamento de Verão até que todo
o legado lhes fosse pago. Os regimentos de Bona, o Primeiro e o Vigésimo, suspeitaram que a delegação
tivesse sido enviada para cancelar as concessões e começaram de novo os distúrbios. Alguns, eram a favor
de marcharem de imediato para o seu novo reino e, à meianoite, um grupo
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irrompeu pelo aquartelamento de Germânico, onde a Águia do Vigésimo regimento estava guardada
num santuário fechado e, arrancandoo da cama, arrancaram a chave do santuário da fina corrente de ouro
que ele usava ao pescoço, abriram o santuário e lançaram mão da Águia. Quando marchavam aos brados
pelas ruas, chamando os seus camaradas para seguirem a Águia, encontraram os senadores da delegação,
que tinham ouvido o barulho e vieram a correr para proteger Germânico. Os soldados praguejavam e
desembainhavam as espadas. Os senadores mudaram de direcção e precipitaramse para o quartelgeneral
do Primeiro Regimento, onde se puseram a guardar a Águia. Mas os seus perseguidores estavam
enlouquecidos com a raiva e a bebida e, se o PortaÁguia não fosse um homem corajoso e, ao mesmo
tempo, um bom espadachim, o chefe da delegação teria ficado com o crânio rachado a meio um crime
que teria inculpado o regimento para além de qualquer perdão e que teria sido o sinal para a guerra civil
em todo o país.
As desordens continuaram ao longo da noite, mas felizmente sem derramamento de sangue, excepto em
resultado de brigas de bêbedos entre soldados de companhias rivais. Quando nasceu o dia, Germânico
disse ao trombeteiro para tocar a reunir e dirigiuse ao tribunal, deixando o chefe da delegação senatorial
atrás dele. Os homens estavam nervosos e irritáveis e sentiamse culpados, mas a coragem de Germânico
fascinavaos. Ele pôsse de pé, ordenou silêncio e depois soltou um grande bocejo. Cobriu a boca com a
mão e pediu desculpa, dizendo que não dormira bem por causa das corridas dos ratos no seu
aquartelamento. Os homens apreciaram a piada e riramse. Germânico não se riu com eles.
O céu seja louvado por ter chegado a aurora. Nunca conheci noite pior. Num dado momento, sonhei que
a Águia do Vigésimo tinha voado para longe. Que alívio vêla na parada esta manhã! Havia espíritos
destruidores pairando sobre o acampamento, enviados sem dúvida por algum Deus a quem ofendemos.
Todos haveis sentido a loucura e só por milagre fostes impedidos de cometer um crime sem paralelo na
história de Roma: o assassinato gratuito de um embaixador da vossa própria cidade, que se abrigara das
vossas espadas junto das vossas próprias Divindades regimentais! Explicou então que os delegados tinham
vindo apenas para confirmar as promessas originais em nome do Senado e para verificar se estavam a ser
fielmente executadas por ele.
Bom, e então? Onde está o resto do prêmio? gritou alguém e o grito foi repetido. Queremos o nosso
prêmio!
Mas, por um acaso feliz, os carros com o dinheiro foram avistados nesse momento, entrando no campo
acompanhados por um destacamento de auxiliares de cavalaria. Germânico aproveitou a situação para
enviar rapidamente os senadores de regresso a Roma escoltados por esses mesmos auxiliares; depois,
supervisionou a distribuição do dinheiro,
188
tendolhe sido difícil impedir que alguns dos homens pilhassem a parte que se destinava a outros
regimentos.
Nessa tarde, a desordem aumentou; tanto dinheiro nas bolsas dos homens significava que bebiam
desregradamente e se entregavam desenfreados ao jogo. Germânico decidiu que não era seguro para
Agripina, que estava agora com ele, permanecer no acampamento. Ela encontravase de novo grávida; e
embora os seus jovens filhos, os meus sobrinhos Nero e Druso, estivessem aqui em Roma com a minha
mãe e comigo, Agripina tinha com ela o pequeno Caio. Esta bela criança tinhase tornado a mascote do
exército e alguém lhe fizera, em miniatura, um fardamento militar completo, com peitoral metálico,
espada, elmo e escudo. Todos o mimavam. Quando a mãe o vestia com roupas normais e sandálias, ele
chorava e reclamava a sua espada e as pequenas botas para ir visitar as tendas. Por isso lhe puseram a
alcunha de Calígula, ou Bota Pequena.
Germânico insistiu na partida de Agripina, embora ela jurasse que não tinha medo de nada e que preferia,
de longe, morrer com ele ali, do que receber a notícia de que se livrara de ser assassinada com ele pelos
amotinados. Mas ele perguntoulhe se achava que Lívia daria uma boa mãe para os filhos órfãos e isso
decidiua a fazer o que ele lhe pedia. Com ela foram algumas mulheres de oficiais com os filhos, todas em
pranto e vestidas de luto. Atravessaram lentamente o acampamento a pé, como fugitivas de uma cidade
amaldiçoada. Uma mera carruagem grosseira, puxada por uma mula, era todo o seu transporte. Cássio
Chaerea acompanhouas como guia e seu único protector. Calígula ia às costas de Cássio, como se
montasse um cavalo de batalha, gritando e desferindo no ar os golpes de espada e fazendo as paradas da
praxe, tal como os soldados de cavalaria lhe tinham ensinado. Deixaram o acampamento de manhã muito
cedo e praticamente ninguém os viu partir; não havia guardas no portão e ninguém se deu ao trabalho de
tocar a despertar, pois a maior parte dos homens dormiram como porcos até às dez ou onze horas. Alguns
velhos soldados, que acordaram cedo por uma questão de hábito de longa data, andavam fora do
acampamento a apanhar lenha para fazer o pequenoalmoço e gritaramlhes, perguntando onde iam as
senhoras.
A Treves, gritou Cássio, O ComandanteemChefe está colocando a mulher e o filho sob a protecção
dos aliados franceses de Treves incivilizados mas leais, de preferência a arriscar que sejam assassinados
pelo famoso primeiro Regimento. Dizei isso aos vossos camaradas.
Os velhos soldados regressaram apressadamente ao acampamento e um deles, o velho Pompónio, pegou
numa trombeta e fez soar o alarme. Os homens saíram das tendas aos tombos, ainda meio adormecidos,
com as espadas na mão.
O que é que se passa? O que foi que aconteceu?
189
Ele foi mandado para longe de nós. Acabouse a nossa boa sorte e nunca mais o voltaremos a ver.
Quem é esse? Quem é que foi mandado para longe?
O nosso menino. Bota Pequena. O pai diz que não confia no Primeiro Regimento; por isso o mandou
para os malditos aliados franceses. Só os Deuses sabem o que lhe vai acontecer por lá. Sabeis como são os
franceses. A mãe também foi mandada embora. Grávida de sete meses e a caminhar a pé, como uma
escrava, pobre senhora. Oh, rapaziada! A mulher de Germânico é filha do velho Agripa, a quem
chamávamos de Amigo dos Soldados! E o nosso Bota Pequena!
Os soldados são realmente uma raça extraordinária de homens: rijos como o couro dos seus escudos,
supersticiosos que nem egípcios e sentimentais como avós sabinas. Dez minutos mais tarde, havia cerca de
2.000 homens em volta da tenda de Germânico, num êxtase ébrio de desgosto e arrependimento,
implorandolhe que deixasse a mulher voltar com o seu querido menino.
Germânico apareceulhes com um rosto pálido e zangado e disselhes que não o incomodassem mais.
Tinhamse desgraçado a si próprios e a ele, assim como ao nome de Roma; por isso, não poderia confiar
neles enquanto vivesse; não lhe tinham feito nenhuma gentileza ao arrancarlhe a espada da mão, quando
estava à beira de a enterrar no peito.
Diznos o que temos a fazer, General. Faremos qualquer coisa que nos digas. Juramos que não
voltaremos a amotinarnos. Perdoanos. Seguirteemos até ao fim do mundo. Mas devolvenos o nosso
pequeno companheiro.
Germânico disse:
Estas são as minhas condições. Jurai aliança a meu pai Tibério e destacai de entre vós os homens
responsáveis pela morte dos vossos capitães, pelo insulto à delegação e pelo roubo da Águia. Se fizerdes
isto tereis o meu perdão, a ponto de vos deixar ter de volta o vosso pequeno companheiro. A minha
mulher, no entanto, não será trazida de novo para se deitar neste acampamento, enquanto ele não tiver sido
purgado do mal. A hora dela está a chegar e eu não quero que qualquer má influência possa ensombrar a
vida da criança. Mas posso enviála para Colónia em vez de Treves, se não quereis que se diga que a
confiei à protecção dos bárbaros. O meu perdão completo só será concedido quando tiverdes apagado a
recordação dos vossos crimes sangrentos com uma vitória ainda mais sangrenta sobre os inimigos do
vosso país, os germanos.
Juraram respeitar as condições dele. Assim, Germânico enviou um mensageiro para alcançar Agripina e
Cássio; ele devia explicar a situação e trazer Calígula de volta. Os homens correram para as tendas e
chamaram todos os camaradas leais para se juntarem a eles e prenderem os instigadores do motim. Cerca
de 100 homens foram apanhados e arrastados até
190
ao tribunal, em volta do qual o que restava dos dois regimentos formou um quadrado côncavo com as
espadas desembainhadas. Um coronel fez cada um dos prisioneiros subirem à vez a uma plataforma
grosseira montada ao lado do tribunal e, se os homens da sua companhia o julgavam culpado, era atirado
para baixo e decapitado por eles. Germânico não disse nada ao longo das duas horas deste julgamento
sumário, permanecendo sentado de braços cruzados e rosto impassível. Todos, à excepção de alguns raros
prisioneiros, foram considerados culpados.
Depois de ter rolado a última cabeça e dos corpos terem sido levados para fora do acampamento para
serem queimados, Germânico chamou todos os capitães à vez ao tribunal e pediu pormenores dos
respectivos serviços. Se o indivíduo tinha uma boa folha e era evidente que não fora nomeado por
favoritismo, Germânico apelava para os veteranos da companhia para que lhe dessem a sua opinião sobre
ele. Se lhe dessem um bomnome e se o coronel do batalhão não tivesse nada contra ele, o homem era
confirmado no seu posto. Mas se a folha fosse má e se houvesse queixas da companhia, ele era
despromovido e Germânico recorria à companhia para que escolhessem o melhor homem que tivessem
entre eles para lhe suceder. Seguidamente, Germânico agradeceu aos homens a sua colaboração e
solicitoulhes que fizessem o juramento de aliança a Tibério. Fizeramno com solenidade e, momentos
depois, ouviuse uma ruidosa aclamação. Viram o mensageiro de Germânico aproximarse a galopar;
sentado à sua frente vinha Calígula, gritando na sua vozita aguda e acenando com a espada de brinquedo.
Germânico abraçou o filho e disse que tinha mais uma coisa a acrescentar, Mil e quinhentos veteranos que
já tinham ultrapassado o seu tempo de serviço tinham sido dispensados dos dois regimentos, segundo as
instruções de Tibério. Mas se alguns deles, disse, desejavam o seu perdão por inteiro, que os
companheiros em breve alcançariam atravessando o Reno e vingando a derrota de Varo, ainda podiam
conseguilo. Ele permitiria aos homens mais activos que voltassem a alistarse nas suas antigas
companhias; enquanto que aqueles que apenas estavam em condições de fazer trabalho auxiliar se podiam
alistar numa força especial para serviço no Tirol, onde se tinham registado ultimamente perigosas
incursões por parte dos germanos. Custa a acreditar! todos os homens deram um passo em frente e mais
de metade ofereceuse para o serviço activo do outro lado do Reno. Entre estes voluntários activos estava
Porapónio, que proclamou que estava em tão boa forma como qualquer soldado do exército, apesar das
gengivas sem dentes e da hérnia. Germânico, fêlo sua ordenança e colocou os netos dele na sua guarda
pessoal. Assim, tudo ficou de novo em ordem em Bona e os homens disseram a Calígula que ele tinha
debelado o motim sozinho e que, um dia, haveria de ser
191
um grande imperador e de alcançar vitórias maravilhosas; o que foi muito mau para a criança, que já era,
como eu disse, terrivelmente mimada.
Mas ainda restavam os outros dois regimentos, que estavam num local chamado Xanten, para serem
chamados à razão. Tinham continuado a comportarse como amotinados, mesmo depois do pagamento do
prêmio, e o seu General não conseguia fazer nada deles. Quando veio a notícia da mudança de atitude dos
regimentos de Bona, os chefes do motim ficaram seriamente alarmados quanto à sua própria segurança e
agitaram os seus camaradas a novos actos de violência e devastação. Germânico mandou informar o seu
General de que seguia imediatamente para o Reno à frente de um poderoso destacamento e que, se os
homens leais que ainda continuavam sob o seu comando não seguissem rapidamente o exemplo dos
regimentos de Bona, executando os agitadores, ele próprio mandaria passar todos à espada,
indiscriminadamente. O General leu a carta em privado aos portaestandartes, todos eles sargentos, e a
alguns velhos soldados dignos de confiança, dizendolhes que não havia tempo a perder, pois Germânico
podia cairlhes em cima a qualquer momento. Eles prometeram fazer o que pudessem e, partilhando o
segredo, que ficou bem guardado, com mais alguns homens leais, precipitaramse para as tendas à meia
noite, a um sinal combinado, e começaram a massacrar os amotinados. Estes defenderamse o melhor que
puderam e mataram alguns dos homens leais, mas em breve foram subjugados. Quinhentos homens foram
mortos ou feridos nessa noite. Os restantes, deixando apenas sentinelas no acampamento, marcharam ao
encontro de Germânico, suplicandolhe que os conduzisse imediatamente para o outro lado do Reno, para
enfrentar o inimigo.
Embora a época das campanhas estivesse a chegar ao fim, o tempo continuava favorável e Germânico
prometeu fazer o que eles pediam. Lançou uma ponte flutuante sobre o rio e atravessouo à frente de
12.000 soldados da infantaria romana, vinte e seis batalhões de aliados e oito esquadrões de cavalaria.
Pelos seus agentes no território inimigo ficou a saber de uma vasta concentração de tropas inimigas nas
aldeias de Münster, onde estava a realizarse um festival anual de Outono em honra do Hércules germano.
As notícias do motim tinham chegado aos germanos os amotinados tinham mesmo feito um tratado com
Hermann e trocado presentes com ele e estavam apenas a aguardar que os regimentos partissem para o
seu novo reino no sudoeste, para atravessarem o Reno e marcharem directamente para Itália. Germânico
seguiu um caminho da floresta que raramente era usado e surpreendeu completamente os germanos,
apanhandoos a beber cerveja (cerveja é uma bebida fermentada feita com cereal em infusão; nas suas
celebrações, bebemna de forma excessiva). Germânico dividiu as tropas em quatro colunas e devastou a
região numa frente de cinquenta milhas, queimando as aldeias e chacinando
192
os habitantes, sem respeitar a idade ou o sexo. Ao regressar, encontrou destacamentos de várias tribos
vizinhas preparados para disputar a sua passagem através da floresta; mas ele avançou em ordem de peleja
e estava a conseguir fazer recuar o inimigo, quando houve um alarme repentino por parte do Vigésimo
Regimento, que estava servindo de retaguarda. Germânico descobriu que um grande destacamento de
germanos, sob o comando pessoal de Hermann, estava prestes a cair sobre eles. Felizmente, as árvores
naquele ponto não eram densas e deixavam espaço de manobra. Germânico recuou até à posição onde o
perigo era maior e gritou: ”Rompei a linha deles, Vigésimo, e tudo será perdoado e esquecido.” Os
homens do Vigésimo lutaram como possessos e fizeram recuar os germanos no meio de grande
mortandade, perseguindoos até ao campo aberto ao fundo do bosque. Germânico avistou Hermann e
desafiouo para combater, mas os seus homens tinhamse posto em fuga; podia ter sido a morte dele
aceitar o desafio. Afastouse galopando. Germânico foi tão desafortunado como o fora nosso pai na
perseguição dos chefes inimigos; mas alcançou as suas vitórias com o mesmo estilo e o nome de
Germânico, que herdara, usavao agora por direito. Fez marchar o exército exultante em segurança até aos
seus acampamentos, do outro lado do Reno.
Tibério nunca compreendeu Germânico, nem Germânico compreendeu Tibério, Tibério, como já disse,
era um dos maus claudianos. No entanto, era por vezes facilmente tentado pela virtude e, numa época
nobre, podia facilmente ter passado por um espírito nobre: na verdade, era um homem de não poucas
capacidades. Mas a época não era nobre e o seu coração tinhase endurecido e a principal culpa desse
endurecimento, haveis de concordar, cabia a Lívia. Germânico, por outro lado, era totalmente inclinado
para a virtude e, por mais maléfica que fosse a época em que nasceu, nunca poderia ter agido de maneira
diferente daquela como agiu. De tal forma era assim que, quando recusou a monarquia que lhe foi
oferecida pelos regimentos germanos e os fez jurar aliança a Tibério, este não conseguiu compreender
porque ele teria feito tal coisa. Concluiu que Germânico devia ser ainda mais subtil que ele próprio e estar
a jogar um jogo bem profundo. A simples explicação que Germânico punha a honra acima de todos os
outros considerandos e estava ligado a Tibério por uma aliança militar e por ter sido adoptado como seu
filho, nunca lhe ocorreu. Mas Germânico, tendo em conta que Tibério nunca o insultara ou injuriara (pelo
contrário, elogiouo fortemente pela maneira como tratou o motim e decretoulhe um triunfo completo
pela sua campanha em Münster), e uma vez que não suspeitava da sua cumplicidade nos desígnios de
Lívia, considerava as intenções dele tão honrosas como as suas próprias, achandoo apenas um pouco
ingénuo por ainda não se ter apercebido das intenções de Lívia. Decidiu ter uma conversa franca
193
com Tibério logo que regressasse do triunfo. Mas a morte de Varo ainda não tinha sido vingada;
passaramse três anos até que Germânico regressasse. O tom das cartas trocadas entre Germânico e
Tibério durante este período foi fixado por Germânico, que escrevia sempre com a afeição devida. Tibério
respondialhe no mesmo tom afectuoso, porque pensava que, ao fazêlo, estava a derrotar Germânico no
seu próprio jogo de astúcia. Encarregouse de o reembolsar pela quantia do legado dobrado e de estender
também o prémio aos regimentos dos Balcãs. Por uma questão de estratégia, pagou aos regimentos dos
Balcãs o extra de três moedas de ouro por homem havia ameaças de novo motim , mas adiou o
reembolso a Germânico por alguns meses, com base em dificuldades financeiras. Naturalmente,
Germânico não o pressionou por causa do dinheiro e, claro, Tibério nunca lho restituiu. Germânico
escreveu de novo para me perguntar se podia esperar para me pagar até que Tibério lhe pagasse a ele, e eu
escrevilhe dizendo que estava a falar a sério quando disse que o dinheiro era uma oferta.
Pouco depois da tomada de posse de Tibério, escrevilhe dizendo que havia algum tempo que andava a
estudar lei e administração o que era verdade , na esperança de que me fosse dada finalmente uma
oportunidade de servir o meu país numa posição de alguma responsabilidade. Ele respondeu dizendo que,
sem dúvida, era uma anomalia que um homem que era irmão de Germânico e seu próprio sobrinho se
apresentasse como um simples cavaleiro e que, uma vez que me estava a tornar agora sacerdote de
Augusto, certamente me seria permitido usar a túnica de senador; na verdade, se eu conseguisse não fazer
figuras tristes nessa roupagem, ele pediria autorização para que eu usasse a túnica de brocado, que era
agora usada pelos Cônsules e exCônsules. Escrevilhe imediatamente para dizer que preferiria um cargo
sem indumentária a uma indumentária sem cargo; mas a sua única resposta a isto foi enviarme um
presente de quarenta moedas de ouro ”para comprar brinquedos no próximo Dia dos Bobos”. O Senado
votoume a túnica de brocado e, em sinal de deferência para com Germânico, que estava agora no meio de
uma nova campanha bem sucedida na Germânia, propôs consagrarme um lugar na Casa entre os ex
Cônsules. Mas aqui Tibério entrepôs o seu veto, dizendo que, na sua opinião, eu era incapaz de fazer um
discurso sobre assuntos de estado que não se tornasse num suplício para a paciência dos outros membros.
Outro decreto foi proposto ao mesmo tempo e igualmente vetado por ele. As circunstâncias eram as
seguintes: Agripina tinha dado à luz, em Colónia, uma rapariga chamada Agripinila; e devo dizer para já
que esta Agripinila veio a ser o pior elemento da família claudiana na verdade, posso dizer que ela
mostra indícios de ultrapassar todos os seus antepassados, homens ou Mulheres, em arrogância e vício.
Agripina ficou
194
alguns meses doente depois do parto e incapaz de controlar devidamente Calígula; por isso, ele foi
enviado de visita a Roma logo que Germânico começou a sua campanha da Primavera. A criança tornou
se uma espécie de herói nacional. Sempre que saía a passear com os irmãos era aclamado, admirado e
mimado. Ainda não tinha três anos de idade e já era de uma precocidade maravilhosa, o que o tornava
extremamente difícil, apenas agradável quando lisonjeado e somente dócil se tratado com firmeza. Foi
instalado em casa da bisavó Lívia, mas ela não tinha tempo para se ocupar devidamente dele e, como
Calígula estava sempre a meterse em sarilhos e a guerrear com os irmãos mais velhos, o pequeno acabou
por ir viver com a minha mãe e comigo. A minha mãe nunca o lisonjeava, mas também não o tratava com
a firmeza necessária, até que um dia ele lhe cuspiu em cima num acesso de raiva e ela lhe deu uma boa
tareia.
Sua germana velha e horrenda, disse ele, Heide queimar a tua casa germana!
Usava a palavra germano como o pior insulto que conhecia. Nessa tarde, esgueirouse até uma
arrecadação que ficava ao lado do sótão dos escravos e que estava cheia de velhos móveis e de lixo,
pegando fogo a uma pilha de velhos colchões de palha. O fogo não tardou a alastrar a todo o piso superior
e, como se tratava de uma casa velha, com os madeiramentos podres e respiradouros de chaminés por toda
a parte, não houve maneira de o apagar, mesmo com uma interminável cadeia de baldes até ao tanque das
carpas. Consegui salvar todos os meus papéis e outras coisas de valor e parte da mobília, não se tendo
registado perda de vidas, à excepção de dois velhos escravos que estavam na cama doentes; mas nada
restou da casa, a não serem as paredes nuas e as caves. Calígula não foi punido, por causa do susto que
apanhou com o incêndio. Quase foi apanhado pelo fogo, escondido com a sua culpa debaixo da cama até
que o fumo o fez sair de lá aos gritos.
O Senado queria decretar que a minha casa fosse reconstruída a expensas do Estado, dado que tinha sido a
residência de tantos membros distintos da minha família: mas Tibério não permitiu tal coisa. Disse que o
fogo tinha sido causado por negligência da minha parte e que os estragos podiam facilmente ter sido
confinados às águasfurtadas, se eu não tivesse agido de forma irresponsável; e que, em vez de deixar o
Estado pagar, ele mesmo se encarregaria de reconstruir e voltar a mobilar a casa. Fortes aplausos do
Senado. Isto era totalmente injusto e desonesto, especialmente porque ele não tinha qualquer intenção de
levar por diante esse empreendimento. Fui obrigado a vender a minha última propriedade importante em
Roma, um quarteirão de casas perto do Mercado de Gado e um grande lote de terreno para construção que
lhe ficava ao lado, para reconstruir a casa às minhas custas. Nunca disse a Germânico que tinha sido
Calígula o incendiário, porque ele se teria sentido obrigado a reparar ele próprio
195
o estrago; e estou convencido de que, de certa forma, foi um acidente, porque uma criança tão pequena
não podia ser considerada responsável.
Quando os homens de Germânico partiram a combater de novo, os germanos tinham uma nova adenda
para a balada dos Três Desgostos de Augusto, da qual me recordo de dois ou três versos e de umas linhas
soltas, na sua maioria ridículas:
Seis moedas por homem ele nos deixou Para comprarmos porco efeijões,
Para comprarmos queijo e biscoitos Nas cantinas secas dos germanos.
O Deus Augusto caminha no Céu,
O Fantasma Marcelo nada no Estige,1 Júlia estd morta efoi ter com ele
É ofim das artimanhas de Júlia.
Mas as nossas Águias continuam perdidas E movidos pela vergonha e pelo desgosto Para o túmulo do
Deus Augusto
Traremos de volta cada ave perdida.
Havia outro que começava:
O germano Hermann perdeu a namorada E a sua canequinha de cerveja...
Mas não me lembro do fim e o verso não é importante, a não ser para me lembrar de falar da namorada de
Hermann. Ela era filha de um chefe chamado, em germano, Siegstoss ou qualquer coisa parecida; mas o
seu nome romano era Segestes. Tinha estado em Roma, tal como Hermann, e alistarase entre os
cavaleiros, mas, ao contrário de Hermann, sentirase moralmente ligado pelo juramento de amizade que
fizera a Augusto. Foi este Segestes que preveniu Varo quanto a Hermann e Segímero e sugeriu que Varo
os prendesse durante o banquete para o qual os convidara antes de começar a sua desastrosa expedição.
Segestes tinha uma filha preferida, que Hermann levara consigo e desposara. Segestes nunca lhe perdoou
tal injúria. Não podia, no entanto, sair abertamente ao lado dos romanos contra Hermann, que era um herói
Nota: Do grego Styx, rio mitológico que conduzia as almas ao reino dos mortos. (N. do T.)
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nacional; tudo o que tinha podido fazer até ali era manter uma correspondência secreta com Germânico,
dandolhe informações sobre movimentos militares e assegurandolhe constantemente que a sua lealdade a
Roma continuava inalterável, aguardando apenas uma oportunidade para o provar. Mas agora escreveu a
Germânico que estava a ser cercado por Hermann na sua aldeia fortificada, que aquele jurara não lhe dar
quartel e que não poderia aguentar muito mais. Germânico fez uma marcha forçada, derrotou os sitiantes,
que não eram numerosos o próprio Hermann estava ausente, ferido e libertou Segestes: foi quando
descobriu que tinha um prêmio valioso à sua espera a mulher de Hermann, que estava de visita ao pai
quando a disputa estalou entre eles e o marido e que estava em adiantado estado de gravidez. Germânico
tratou Segestes, bem como os membros da sua casa, com toda a gentileza, dandolhes uma propriedade do
lado ocidental do Reno. Hermann, que estava furioso com a captura da mulher, receava que a clemência
de Germânico pudesse induzir outros chefes germanos a fazer aberturas de paz. Construiu uma nova
confederação de tribos, tornandoa forte e incluindo algumas que até então tinham sido favoráveis a
Roma. Germânico não se deixou intimidar. Quantos mais germanos se mostrassem declaradamente contra
ele, mais satisfeito se sentia. Nunca confiara neles como aliados.
Antes de terminar o Verão, tinhaos derrotado numa série de batalhas, forçara Segímero a renderse e
recuperara a primeira das três Águias perdidas, a do décimo Nono Regimento. Visitou também o local da
derrota de Varo e deu aos ossos dos seus camaradas de armas um enterro decente, colocando com as suas
próprias mãos o primeiro punhado de terra no seu túmulo. O General, que se comportara com tanta moleza
por ocasião do motim, lutou com bravura à frente do seu destacamento e, a dada altura, transformou
aquilo que parecia uma derrota inevitável numa vitória confirmada. Notícias prematuras de que a batalha
estava perdida e que os conquistadores germanos marchavam em direcção ao Reno causaram tal
consternação na ponte mais próxima, que o capitão da guarda deu ordens aos seus homens para que
retirassem para o outro lado e depois a destruíssem: o que teria significado abandonar à sua sorte todos os
que estavam do outro lado. Mas Agripina estava lá e contrariou a ordem. Disse aos homens que, agora, o
capitão da guarda era ela, e continuaria a sêlo até que o marido regressasse para tomar dela o posto.
Quando finalmente as tropas vitoriosas regressaram, ela estava no seu posto para lhes dar as boas vindas.
A sua popularidade era agora quase comparável à do marido. Tinha organizado um hospital para os
feridos, à medida que Germânico os ia mandando de volta depois de cada batalha, e deralhes o melhor
tratamento médico possível. Normalmente, os soldados feridos ficavam junto das suas unidades até
morrerem ou se restabelecerem. O hospital foi pago por ela às suas próprias custas.
197
Mas, entretanto, mencionei a morte de Júlia. Quando Tibério se tornou Imperador, o abastecimento diário
de comida fornecido a Júlia em Régio foi reduzido para quatro onças de pão por dia e uma onça de queijo.
Ela já sofria de tuberculose devido à insalubridade do seu alojamento e esta dieta de fome não tardou a
acabar com ela. Mas continuava a não haver notícias de Póstumo, e Lívia, até ter a certeza de que ele tinha
morrido, não conseguia ter sossego.
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CAPíTULO XVII
Tibério continuava a governar com moderação e consultava o Senado antes de tomar qualquer medida da
mais ínfima importância política. Mas o Senado votava havia tanto tempo segundo as instruções que
recebía, que parecia ter perdido o poder de decidir independentemente; e Tibério nunca tornava claro em
que sentido queria que eles votassem, mesmo quando estava ansioso por que votassem de uma forma ou
de outra. Desejava evitar qualquer aparência de tirania e, ao mesmo tempo, manter a sua posição de chefe
dos acontecimentos. O Senado, em breve descobriu que, se ele falava com uma elegância estudada a favor
de uma moção, isso queria dizer que desejava que votassem contra ela; e se falasse com uma elegância
estudada contra ela, era porque queria que a moção passasse; e que, nas raras ocasiões em que falava
sucintamente e sem qualquer retórica, desejava ser tomado literalmente. Caio e um velho gracejador,
chamado Hatério, costumavam deleitarse a fazer discursos em calorosa concordância com Tibério,
desenvolvendo os seus argumentos a um ponto que roçavam o absurdo e, depois, votando da maneira que
ele realmente queria que votassem, mostrando assim que compreendiam perfeitamente os seus truques. No
debate sobre a tomada de posse de Tibério, este Hatério tinha gritado:
Oh, Tibério, por quanto tempo vais deixar que a infeliz Roma fique sem cabeça? o que o ofendera,
porque ele sabia que Hatério via através dos seus desígnios. No dia seguinte, Hatério continuou com a sua
piada caindo aos pés de Tibério e pedindolhe perdão por não ter sido suficientemente caloroso. Tibério
recuou com repulsa, mas Hatério agarrouo pelos joelhos e Tibério caiu, batendo com a parte de trás da
cabeça no chão de mármore. A guarda germana de Tibério não entendeu o que se estava a passar e
saltaram em frente para matar o atacante do seu amo; Tibério conseguiu detêlos no último momento.
Hatério era um cómico excelente. Tinha uma voz potente, uma cara cómica e uma grande fertilidade de
invenção. Sempre que Tibério introduzia nos seus discursos alguma frase mais rebuscada ou arcaica,
Hatério pegava nela e tornavaa a chave da sua resposta (Augusto sempre dissera que as rodas da
eloquência de Hatério necessitavam de uma corrente que as travasse, mesmo quando subia uma encosta).
Tibério,
199
com o seu espírito lento, não chegava para Hatério. O dom de Caio ia no sentido de um zelo fingido.
Tibério era extremamente cuidadoso em não parecer candidatarse a quaisquer honras divinas e recusava
se a permitir que falassem dele como tendo atributos sobre humanos: nem sequer permitia aos
representantes das províncias que lhe construíssem templos. Caio gostava portanto de se referir a Tibério,
como que por acidente, chamandolhe Sua Sagrada Majestade. Quando Hatério, que estava sempre pronto
a levar por diante a brincadeira, se levantava para o repreender por esta maneira incorrecta de falar, ele
desculpavase profusamente e afirmava que nada estava mais longe do seu espírito do que fazer o que quer
que fosse em desobediência às ordens de Sua Sagrada... oh, Deuses, era tão fácil cair nessa maneira errada
de falar, mais uma vez mil desculpas... o que ele queria dizer era contrariamente aos desejos dos seu
ilustre amigo e colegasenador Tibério Nero César Augusto.
Augusto não, idiota, dizia Hatério, num sussurro de palco.
Ele já recusou esse título dúzias de vezes. Só o utiliza quando escreve cartas a outros monarcas.
Tinham ainda um hábito que aborrecia Tibério mais do que qualquer outro. Se ele fazia alguma
demonstração de modéstia quando o Senado lhe prestava agradecimentos por ter executado algum serviço
de interesse nacional tal como encarregarse de completar os templos que Augusto deixara inacabados ,
eles elogiavam a sua honestidade em não aceitar os créditos pelo trabalho da mãe e felicitavam Lívia por
ter um filho tão cumpridor. Quando perceberam que não havia nada que Tibério detestasse tanto como
ouvir elogiar Lívia, não pararam mais de o fazer. Hatério sugeriu mesmo que, tal como os gregos eram
chamados pelo nome do pai, Tibério deveria ser chamado pelo nome da mãe, e que seria um crime
chamarlhe outra coisa que não Tibério Livíades ou talvez Livigena fosse a forma latina mais correcta.
Caio descobriu outro ponto fraco na armadura de Tibério, designadamente a maneira como odiava
qualquer referência à sua estada em Rodes. A coisa mais ousada que ele fez foi elogiar Tibério um dia
pela sua clemência precisamente no dia em que chegou à cidade a notícia da morte de Júlia e contar a
história do professor de retórica em Rodes, que recusara o pedido modesto de Tibério para assistir às suas
aulas, alegando que, de momento não havia vagas, e dizendolhe que devia voltar daí a sete dias. Caio
acrescentou:
E o que pensais que Sua Sagrada... peço desculpa, o que eu devia dizer era, o que pensais que o meu
ilustre amigo e colegasenador Tibério Nero César fez quando da sua recente ascensão a monarquia,
quando o mesmo indivíduo impertinente chegou para apresentar os seus respeitos à nova divindade? Será
que lhe decepou a cabeça sem vergonha e a deu à sua guarda germana, para com ela jogarem? De maneira
nenhuma: com um espírito apenas igualado pela sua clemência, disselhe que, de
200
momento, não tinha vagas no seu corpo de bajuladores e que ele tinha que voltar dentro de sete anos.
Creio que isto foi uma invenção, mas o senado não tinha razões para duvidar e aplaudiuo tão
entusiasticamente que Tibério teve que deixar passar a história como verdadeira.
Um dia, Tibério conseguiu finalmente fazer calar Hatério, dizendo muito devagar:
Peçote que me desculpes, Hatério, se te falo com maior franqueza do que é habitual de um senador para
outro, mas tenho que dizer que te acho terrivelmente enfadonho e nada espirituoso. Depois, voltouse
para a Casa, Peço que me desculpeis, meus senhores, mas sempre disse e heide continuar a dizer que,
visto que tivestes a gentileza de me investir de um tal poder absoluto, não devo envergonharme de o usar
para o bem comum. Usandoo agora para silenciar os bufões que vos insultam, a vós e à minha pessoa,
com as suas ridículas encenações, tenho confiança de que conseguirei a vossa aprovação. Sempre haveis
sido generosos e pacientes comigo. Sem Hatério, Caio ficava limitado a jogar sozinho.
Embora Tibério odiasse a mãe mais do que nunca, continuou a deixar que ela o dirigisse. Todas as
nomeações que fez para Cônsules ou governadores de província vinham realmente dela; e eram muito
sensatas, na medida em que todos os homens eram escolhidos por mérito, não por influência familiar ou
porque a tivessem lisonjeado ou lhe tivessem prestado algum serviço particular. Na verdade, tenho que
deixar bem claro, embora nem sempre o tenha feito, que, por mais criminosos que tenham sido os meios
usados por Lívia para chamar a si a direcção dos acontecimentos, primeiro através de Augusto e depois
através de Tibério, ela era sem dúvida uma governante excepcionalmente capaz e justa, e só quando ela
deixou de dirigir o sistema que construíra é que as coisas deram para o torto.
lá falei de Sejano, o filho do Comandante da Guarda. Ele sucedera agora ao pai no comando e era um dos
únicos três homens com quem Tibério, de alguma forma, se abria, Trasílio era outro; tinha vindo para
Roma com Tibério e nunca perdera a sua influência sobre ele. O terceiro era um senador chamado Nerva.
Trasílio nunca discutia assuntos de estado com Tibério e nunca lhe pediu qualquer posto oficial; e quando
Tibério lhe dava grandes somas de dinheiro, aceitavaas com naturalidade, como se o dinheiro fosse uma
coisa com pouca importância para ele. Tinha um grande observatório numa sala abobadada do Palácio,
que dispunha de janelas de vidro tão límpidas e transparentes que praticamente não se dava por elas.
Tibério costumava passar uma boa parte do seu tempo ali com Trasílo, que lhe ensinava os rudimentos da
astrologia e muitas outras artes mágicas, incluindo a da interpretação de sonhos ao estilo caldaico.
201
Tibério parecia ter escolhido Sejano e Nerva pelas suas personalidades totalmente opostas. Nerva nunca
fazia um inimigo e nunca perdia um amigo. O seu único defeito, se é que se pode chamar assim, era o de
se manter silencioso na presença do mal quando a palavra não poderia remediálo. Tinha um
temperamento suave, generoso e dotado de coragem; era absolutamente verdadeiro e nunca se lhe
conheceu qualquer inclinação para a mais ligeira fraude, mesmo que isso prometesse bons resultados. Se
tivesse estado na posição de Germânico, por exemplo, nunca teria forjado aquela carta, embora a sua
própria segurança e a do Império dependessem dela. Tibério nomeou Nerva superintendente dos
aquedutos da Cidade e mantinhao constantemente junto dele; suponho que era uma forma de se prover a
si próprio com um conveniente padrão de virtude tal como Sejano servia, sem dúvida, como um
conveniente padrão de maldade. Quando jovem, Sejano fora amigo de Caio, tendo servido sob as suas
ordens no Leste e tendo sido suficientemente esperto para prever que Tibério recuperaria a situação de
favor; ele próprio contribuíra para isso, garantindo a Caio que Tibério era sincero quando afirmava não ter
qualquer ambição de governar e incitandoo a escrever essa carta de recomendação a Augusto. Na altura,
deu a conhecer a Tibério que fizera isso e este escreveulhe uma carta, que ele ainda guarda, prometendo
nunca esquecer os seus serviços. Sejano era um mentiroso, mas era tão bom comandante das suas mentiras
que sabia organizálas numa formação vigilante e disciplinada este foi um comentário inteligente de
Caio, não meu , que levaria sempre a melhor em qualquer recontro com desconfianças ou num embate
geral com a verdade. Tibério invejavalhe este talento, tal como invejava a honestidade de Nerva; porque,
embora tivesse progredido bastante no sentido do mal, ainda se sentia constrangido por inúmeros impulsos
na direcção do bem.
Foi Sejano quem começou a envenenarlhe o espírito contra Germânico, dizendolhe que um homem que
era capaz de forjar uma carta do pai, fossem quais fossem as circunstâncias, não merecia confiança, e que
Germânico tinha realmente em mira a monarquia mas agia com precaução
conquistando primeiro a afeição dos homens através do suborno e certificandose depois das suas
capacidades para a luta e da sua própria posição de chefia, através desta campanha desnecessária do outro
lado do Reno. Quanto a Agripina, Sejano disse que ela era uma mulher perigosamente ambiciosa: bastava
ver como se tinha comportado fezse a si própria capitão da ponte e deu as boas vindas ao regimento no
seu regresso, como se fosse sabem os Deuses quem! Que a ponte estivesse em perigo de ser destruída, era
provavelmente uma invenção sua. Sejano disse também que sabia por um dos seus libertos, que em
tempos fora escravo em casa de Germânico, que Agripina, de alguma forma, estava convencida que Lívia
e Tibério eram responsáveis pela morte dos seus
202
três irmãos e pelo exílio da irmã e jurara que se vingaria. Sejano começou também a descobrir toda a
espécie de conspirações contra Tibério e mantinhao num receio constante de vir a ser assassinado, ao
mesmo tempo que lhe assegurava que não precisava ter o mais leve traço de ansiedade, estando ele de
guarda. Encorajava Tibério a contrariar Lívia em coisas insignificantes, para lhe mostrar que ela
sobrestimava a solidez da sua posição. Foi ele que, alguns anos mais tarde, organizou a Guarda,
transformandoa num corpo disciplinado. Até ali, os três batalhões estacionados em Roma tinham estado
aquartelados por secções em diferentes partes da cidade, em estalagens e lugares semelhantes, e eram
difíceis de reunir em parada com rapidez, mostrando desleixo no vestuário e movimentos. Sugeriu a
Tibério que se lhes construísse um único acampamento permanente fora da Cidade: isso darlhesia um
forte sentimento de união, impedindoos ao mesmo tempo de serem influenciados pelos boatos e ondas de
sentimentos políticos que atravessavam constantemente a Cidade e ligandoos mais estreitamente à pessoa
de Tibério, como seu Imperador. Tibério aperfeiçoou esta sugestão, chamando os seis batalhões restantes
dos pontos onde se encontravam estacionados em várias partes de Itália e fazendo o novo acampamento
suficientemente grande para os receber a todos 9.000 soldados de infantaria e 2.000 de cavalaria. Aparte
os quatro batalhões da Cidade, um dos quais ele enviou para Lião, e várias colónias de veteranos
desmobilizados, estes eram os únicos soldados em Itália. A guarda germana não contava como soldados,
pois eram tecnicamente escravos. Mas eram homens escolhidos e mais fanaticamente leais ao seu
Imperador do que qualquer verdadeiro romano. Não havia nenhum de entre eles que desejasse realmente
regressar à sua terra fria, rude e bárbara, embora estivessem sempre a cantar baladas tristes sobre ela; mas
sentiamse bem demais aqui.
Quanto aos processos criminais aos quais Tibério, por causa do receio de conspirações contra a sua vida,
estava agora extremamente ansioso por ter acesso, Lívia continuava a fingir que a chave do código se
tinha perdido. Tibério, por sugestão de Sejano, disselhe uma vez que eles não tinham interesse para
ninguém e que se encarregaria de os queimar. Ela respondeu que podia fazêlo se quisesse, mas não seria
melhor guardálos para o caso da chave aparecer? Talvez até ela pudesse de repente lembrarse da chave.
Muito bem, mãe, replicou. Até que isso aconteça, eu tomo conta deles; entretanto, vou passar os meus
serões a tentar descobrir a cifra sozinho.
Assim, levouos para o seu quarto e fechouos num armário. Tentou com todas as suas forças encontrar a
chave da cifra, mas em vão. A cifra comum estava escrita de forma simples: E latino para Alpha grego,
latino para beta grego, G para Gama, H para Delta e assim por diante.
203
A chave da cifra superior era praticamente impossível de descobrir. Estava contida nas primeiras cem
linhas do primeiro livro da Ilíada, que tinham que ser lidas simultaneamente com a escrita da cifra, em
que cada letra que se escrevia era representada pelo número de letras do alfabeto situadas entre ela e a
letra correspondente em Homero. Assim, a primeira letra da primeira palavra da primeira linha do
primeiro livro da Ilíada é
Mu; supondo que a primeira letra da primeira palavra de uma anotação no processo é Upsilon, e que há
sete letras no alfabeto grego entre Mu e Upsilon, portanto, Upsilon seria escrito como 7. Neste plano, o
alfabeto seria considerado circular: Omega, a última letra, precedia Alfa, a primeira, de forma que a
distância entre Upsilon e Alfa seria 4, mas a distância entre Alfa e Upsilon seria 18. Foi uma invenção de
Augusto e deve ter levado bastante tempo a escrever e a descodificar, mas creio que, com a prática,
acabaram por conhecer a distância entre duas letras quaisquer do alfabeto sem terem que contar, o que era
uma grande economia de tempo. E como é que eu sei tudo isto? Porque muitos, muitos anos mais tarde,
quando os processos me chegaram às mãos, eu próprio descodifiquei a cifra. Encontrei por acaso um rolo
do primeiro livro de Homero, escrito numa pele de carneiro e guardado no meio dos outros rolos. Era
evidente que só as primeiras cem linhas tinham sido estudadas, porque a pele de carneiro estava muito
suja e marcada com tinta no princípio e perfeitamente limpa no fim. Quando olhei com mais atenção e vi
algarismos minúsculos 6, 23, 12 numa escrita fina por baixo das letras da primeira linha, não foi difícil
relacionálos com a cifra. Fiquei surpreendido por Tibério ter ignorado esta pista.
Falando do alfabeto, eu estava interessado nesta altura num plano simples para tornar o latim
verdadeiramente fonético. Pareciame que faltavam três letras. Estas três eram: o U consoante (distinto do
U vogal); uma letra que correspondesse ao Upsilon grego (que é uma vogal entre o
1 e o U latinos), para ser usado em palavras gregas que foram latinizadas; e uma letra que simbolizasse a
consoante dupla que agora escrevemos em latim como BS, mas que pronunciamos como o grego Psi. Era
importante, escrevi, para as províncias que aprendiam o latim, aprendêlo correctamente; se as letras não
correspondessem ao som, como poderiam evitar erros de pronúncia? Por isso, sugeri para o U consoante o
F invertido (que é usado para esse fim em etrusco): assim, LAFINIA em vez de LAUINIA; e um H
quebrado para o Upsilon grego: assim BHBLIOTHECA em vez de BIBLIOTHECA; e um C invertido
para BS: assim ACQUE para ABSQUE. A última letra não era assim tão importante, mas as outras duas
pareciamme essenciais. Sugeri o H quebrado e o F e o C invertidos, porque essa seria a maneira de causar
menos incómodo aos indivíduos que usam os moldes das letra para metal ou argila: não teriam que fazer
moldes novos. Publiquei o livro e uma ou duas pessoas disseram que a
204
minha sugestão era sensata; mas claro que isso não deu qualquer resultado. A minha mãe disseme que
havia três coisas impossíveis no mundo: que as lojas se pudessem estender atravessando a baía de Baiae
para Puteoli, que eu dominasse a ilha da GrãBretanha e que qualquer uma destas novas letras absurdas
aparecesse alguma vez em inscrições públicas em Roma. Nunca esqueci este comentário dela, pois teve
uma sequência.
A minha mãe andava muito irritadiça comigo nos últimos tempos, porque a reconstrução da nossa casa
estava demorada, porque a mobília nova que eu comprei não era igual à antiga e porque os seus
rendimentos tinham sofrido uma redução significativa por causa da sua participação nestas despesas eu
não teria conseguido arranjar todo o dinheiro sozinho. Vivemos dois anos nuns aposentos do Palácio (que
não eram muito bons) e ela descarregou a sua irritação sobre mim com uma tal constância que, por fim, eu
já não podia suportála mais e saí de Roma para ir viver na minha villa perto de Cápua, limitandome a
visitar a cidade quando as minhas funções sacerdotais o exigiam, o que não acontecia muitas vezes.
Deveis interrogarvos sobre Urgulanila. Ela nunca foi a Cápua; em Roma, tínhamos pouco em comum.
Ela mal me saudava quando nos encontrávamos e não me dava qualquer atenção, excepto quando havia
visitas, para salvar as aparências; e dormíamos sempre separados. Ela parecia gostar bastante do nosso
filho, Drusilo, mas, na prática, não fazia grande coisa por ele. A sua educação era deixada à minha mãe,
que governava a casa e nunca pedia qualquer ajuda a Urgulanila. A minha mãe tratava Drusilo como se
fosse seu próprio filho e, de alguma forma, conseguia esquecer quem eram os pais dele. Eu próprio nunca
aprendi a gostar de Drusilo; era uma criança malhumorada, pouco viva e insolente e a minha mãe
repreendiame com tanta frequência na sua presença que ele aprendeu a não sentir qualquer respeito por
mim.
Não sei como é que Urgulanila passava os dias. Mas nunca parecia entediada, comia imenso e, tanto
quanto sei, não tinha amantes secretos. No entanto, esta estranha criatura tinha uma paixão Numantina, a
mulher do meu cunhado Silvano, uma criaturinha minúscula, loura, semelhante a um elfo, que um dia
fizera ou dissera qualquer coisa (não sei o quê) que atravessara aquela pele grossa e o corpo volumoso e
musculado e tocara aquilo que servia de coração a Urgulanila. Urgulanila tinha na sua sala de estar um
retrato de Numantina em tamanho natural. Acho que costumava ficar sentada a contemplálo durante
horas sempre que não tinha a oportunidade de contemplar a própria Numantina. Quando me mudei para
Cápua, Urgulanila ficou em Roma com a minha mãe e Drusilo.
O único inconveniente de Cápua como local de residência, era a ausência de uma boa biblioteca. No
entanto, comecei um livro para o
205
qual não precisava de biblioteca uma história da Etrúria. Entretanto, fizera grandes progressos em
Etrusco; Aruns, com quem passava algumas horas todos os dias, foi muito prestável, facultandome o
acesso aos arquivos do seu templo meio arruinado. Dísseme que tinha nascido no dia em que apareceu o
cometa que anunciara o começo do décimo e último ciclo da raça etrusca. Um ciclo é um período
calculado pela vida mais longa: quer dizer, não se encerra até à morte de todos os que estavam vivos na
altura do festival que celebrou o encerramento do ciclo anterior. Os etruscos calculavamno em 110 anos.
O ciclo actual, segundo os etruscos, corresponderia ao último dos ciclos, prevendo eles que terminaria
com o desaparecimento total do etrusco como língua falada. A profecia estava praticamente realizada,
porque ele não tinha sucessores no seu ofício sacerdotal e porque, agora, as pessoas da região falavam
latim mesmo nas suas casas; por isso ele se sentia feliz em me ajudar a escrever a minha história, dizia,
como um mausoléu para as tradições de uma raça outrora grandiosa. Comeceia no segundo ano do
reinado de Tibério e termineia vinte e um anos mais tarde. Consideroa o meu melhor trabalho:
certamente, foi aquele em que trabalhei mais arduamente. Tanto quanto sei, não há nenhum outro livro
sobre os etruscos e eles foram na realidade uma raça muito interessante. Acho que os historiadores do
futuro me ficarão gratos.
Tinha Calon e Palas comigo e vivia uma vida regrada e tranquila. Interesseime pelo terreno agrícola
ligado à villa e saboreei as visitas ocasionais de amigos de Roma, que vinham passar umas férias. Havia
uma mulher que vivia permanentemente comigo: chamavase Actê, era prostituta profissional e uma
mulher muito decente. Nunca tive qualquer aborrecimento com ela nos quinze anos que esteve comigo. A
nossa relação era estritamente de negócios. Ela escolhera deliberadamente a profissão de prostituta e eu
pagavalhe bem; era uma pessoa absolutamente razoável. De certa forma, gostávamos bastante um do
outro. Finalmente, ela disseme que desejava reformarse, com aquilo que já ganhara. Havia de se casar
com um homem decente, de preferência um velho soldado, instalarse numa das colónias e ter filhos, antes
que fosse tarde demais. Ela sempre quisera ter uma casa cheia de filhos. Beijeia, disselhe adeus e deilhe
um dote suficiente para lhe tornar a vida bem fácil. No entanto, ela não se foi embora enquanto não
arranjou uma sucessora em quem pudesse confiar para tratar de mim como devia ser. Arranjoume
Calpúrnia, que era tão parecida com ela que muitas vezes pensei que devia ser sua filha. Actê mencionou
uma vez que tinha tido uma filha que entregara a uma ama, porque não se podia ser ao mesmo tempo
prostituta e mãe. Bom, Actê casou com um exsoldado da Guarda que a tratava muito bem e teve cinco
filhos com ela. Sempre acompanhei a vida daquela família. Falei nela apenas porque os meus leitores
deviam
206
interrogarse sobre o tipo de vida sexual que eu levava quando separado de Urgulanila. Não creio que seja
natural para um homem normal viver muito tempo sem uma mulher e, uma vez que Urgulanila era
impossível como esposa, não creio que me possam levar a mal ter vivido com Actê. Ela e eu tínhamos um
tal entendimento que, enquanto estivéssemos juntos, nenhum de nós teria nada com mais ninguém. Isto
não era sentimento, mas uma precaução médica: havia um grande surto de doenças venéreas em Roma a
propósito, esse foi mais um dos legados fatais das Guerras Púnicas.
Quero deixar aqui registado que nunca, em qualquer altura da minha vida, tive práticas homossexuais.
Não me sirvo do argumento de Augusto, de que isso impede os homens de terem filhos para apoiar o
Estado, mas sempre pensei que era ao mesmo tempo patético e repulsivo ver um homem adulto, um
magistrado talvez, com uma família, a babarse de luxúria para cima de um rapazinho gorducho com a
cara pintada e cheio de pulseiras; ou um antigo senador a fazer de Rainha Vénus diante de um jovem
Adónis alto da cavalaria da Guarda, que tolera o velho tolo apenas porque ele tem dinheiro.
Quando tive que ir a Roma, fiquei lá o menos tempo possível. Sentia qualquer coisa de desagradável no ar
no Monte Palatino, que pode muito bem ter sido a tensão crescente entre Tibério e Lívia.
Tibério tinha começado a construir um imenso palácio para ele a noroeste da colina e agora mudarase
para o piso inferior antes da parte de cima estar terminada, deixandoa a ela sozinha de posse do palácio
de Augusto. Lívia, como que para mostrar que a nova construção de Tibério, embora três vezes maior,
nunca teria o prestígio da antiga, colocou uma magnífica estátua de Augusto em ouro na sua entrada e
propos, como Sacerdotisa Suprema do seu culto, convidar todos os senadores e suas esposas para o
banquete inaugural. Mas Tibério fezlhe notar que, primeiro, ele teria que pedir ao Senado que votasse
sobre isso: era uma ocasião de Estado, não um entretenimento privado. Conduziu assim o debate de que o
banquete tivesse lugar simultaneamente em duas partes: os senadores na entrada, com ele como anfitrião;
as esposas numa grande sala adjacente, com Lívia como anfitriã. Ela engoliu o insulto não o tratando
como tal, mas apenas como se de uma disposição sensata se tratasse, mais de acordo com o que o próprio
Augusto desejaria; mas deu ordens aos cozinheiros do Palácio para que as mulheres fossem servidas
primeiro, com as melhores peças de carne, doces e vinho. Também reservou os pratos e taças mais
valiosos para a sua festa. Levouo à certa nessa ocasião e todas as mulheres dos senadores riram bastante à
custa de Tibério e dos maridos.
Outro aspecto desagradável das vindas a Roma era que nunca conseguia deixar de me encontrar com
Sejano. Desagradavame ter que lidar
207
com ele, embora fosse sempre deliberadamente delicado comigo e nunca me dirigisse qualquer injúria
directa. Espantavame que um homem com uma cara e uns modos como os dele, e que não era nem bem
nascido nem um lutador afamado ou mesmo especialmente rico, tivesse conseguido um tal sucesso na
Cidade: ele era agora o homem mais importante a seguir a Tibério, sendo extremamente popular junto da
Guarda. Tinha uma cara que não inspirava a mínima confiança dissimulado, cruel e de feições
irregulares e aquilo que lhe dava alguma unidade era uma certa força e resolução animal. O que me
parecia ainda mais estranho era dizerse que algumas mulheres de boas famílias rivalizavam pelo seu
amor. Ele e Castor não se entendiam bem, o que era natural, pois havia rumores de que Livila e Sejano
tinham uma espécie de entendimento. Mas Tibério parecia confiar totalmente nele.
Mencionei Briseis, a velha liberta de minha mãe. Quando lhe disse que ia deixar Roma e instalarme em
Cápua, ela disse que sentiria muito a minha falta, mas que eu fazia bem em ir.
Tive um sonho estranho a vosso respeito a noite passada, menino Cláudio, se me perdoais. Éreis um
rapazinho coxo e os ladrões entraramlhe em casa e mataramlhe o pai e muitos parentes e amigos; mas
ele conseguiu escaparse pela janela da dispensa e foi a coxear para o bosque vizinho. Trepou a uma
árvore e esperou. Os ladrões saíram da casa e sentaramse debaixo da árvore onde ele estava escondido,
para dividirem o roubo. Em breve, começaram a discutir sobre quem devia ter o quê e um dos ladrões foi
morto e depois mais dois; então, os restantes começaram a beber vinho e a fingir que eram grandes
amigos; mas o vinho tinha sido envenenado por um dos ladrões mortos e todos morreram em grande
agonia. O rapaz coxo desceu da árvore e apanhou as coisas roubadas, encontrando também no meio delas
muito ouro e jóias que tinham sido roubados a outras famílias; mas levou tudo para casa com ele e ficou
muito rico,
Eu sorri.
Esse é um sonho estranho, Briseis. Mas ele continuou tão coxo como sempre e toda essa riqueza não
conseguiu restituir a vida ao pai e à restante família, pois não?
Não, meu querido menino, mas talvez ele tenha casado e arranjado uma família. Portanto escolhei uma
boa árvore e não desçais dela enquanto o último dos ladrões não estiver morto. Era isso que o meu sonho
queria dizer.
Se eu puder evitar, nem nessa altura desço da árvore. Não quero ser o consignatário de artigos roubados.
Podeis sempre devolvêlos, menino Cláudio.
Tudo isto foi bastante notável à luz do que aconteceu posteriormente. Não tenho grande fé nos sonhos.
Certa vez, Atenodoro sonhou que havia
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um tesouro na toca de um texugo, num bosque perto de Roma. Encontrou o caminho para o local
preciso, que ele nunca visitara antes, e ali, num declive, estava a abertura que conduzia à toca. Chamou
alguns camponeses para escavar o declive até alcançarem a toca ao fundo do buraco, onde encontraram
uma velha bolsa apodrecida contendo seis moedas de cobre bolorentas e uma moeda falsa, o que nem
chegou para pagar aos camponeses pelo trabalho que tinham feito. E um dos meus inquilinos, um
comerciante, sonhou uma vez que um bando de águias voava em volta da sua cabeça e uma lhe pousava
no ombro. Tomou isso como um sinal de que um dia havia de ser Imperador, mas tudo o que aconteceu foi
que um piquete da Guarda o visitou na manhã seguinte (eles tinham águias nos escudos) e o cabo o
prendeu por uma transgressão que o colocou sob jurisdição militar.
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CAPíTULO XVIII
Numa tarde de Verão em Cápua, eu estava sentado num banco de pedra atrás dos estábulos da minha villa,
pensando em qualquer problema da história etrusca e lançando os dados ociosamente, da mão esquerda
para a direita, sobre a rude mesa de madeira que tinha diante de mim. Um homem andrajosamente vestido
aproximouse e perguntou se eu era Tibério Cláudio Druso Nero Germânico: em Roma, tinhamno
dirigido para ali, disse.
Tenho uma mensagem para vós, senhor. Não sei se vale a pena entregála, mas eu sou um velho soldado
vagabundo, um dos veteranos de vosso pai, senhor e vós sabeis como é; fico contente por ter uma
desculpa para tomar um caminho e não outro.
Quem te deu a mensagem?
Um indivíduo que encontrei nos bosques, perto do Cabo Cosa. Um indivíduo curioso. Estava vestido
como um escravo, mas falava como um César. Um indivíduo grande e forte que parecia meio morto de
fome.
Que nome é que ele deu?
Não deu nome nenhum. Disse que vós saberíeis quem ele era pela mensagem e que ficaríeis surpreendido
por ter notícias suas. Fezme repetir a mensagem duas vezes para ter a certeza de que eu a tinha percebido
bem. O que eu tinha que dizer é que ele continua a pescar, mas que um homem não podia viver
exclusivamente de peixe e que vós devíeis passar a palavra ao cunhado e que, se o leite foi enviado, nunca
lhe chegou às mãos; e que gostava de ter um livrito para ler, com sete páginas pelo menos. E que vós não
devíeis fazer nada até voltar a ter notícias dele. Isso faz sentido, senhor, ou seria que o homem estava
maluco?
Enquanto ele dizia aquilo, eu nem podia acreditar no que ouvia. Póstumo! Mas Póstumo estava morto.
Ele tem o queixo largo, olhos azuis e uma maneira de inclinar a cabeça para um lado quando faz alguma
pergunta?
É isso mesmo, senhor.
Servilhe uma bebida, com a mão a tremer de tal forma que entornei metade. Depois, fazendolhe sinal
para que esperasse ali por mim, entrei em casa. Arranjei duas boas túnicas simples e alguma roupa
interior, umas sandálias, um par de navalhas de barbear e sabão. Depois, peguei no
211
primeiro livro de folhas cosidas que me veio à mão calhou ser uma cópia de alguns discursos recentes de
Tibério ao Senado e, na sétima página, escrevi com leite: Que alegria! Vou escrever imediatamente a G.
Tem cuidado, Manda buscar tudo o que precisares. Onde posso verte? Enviote os meus mais afectuosos
sentimentos. Aqui vão vinte moedas de ouro, tudo o que tenho de momento, mas as ofertas rápidas são
ofertas dobradas, espero.
Aguardei que a página secasse e, depois, dei ao homem uma trouxa com o livro e as roupas e uma bolsa
com as moedas. Disselhe:
Toma estas trinta moedas de ouro. Dez são para ti. Vinte são para o homem dos bosques. Trazme de
volta uma mensagem dele e receberás mais dez. Mas fica de boca calada e volta depressa.
Está bem, senhor, disse. Não vos vou deixar ficar mal. Mas o que é que me impede de desaparecer
com esta trouxa e o dinheiro todo? Respondi:
Se fosses um homem desonesto, não fazias essa pergunta. Portanto, vamos lá tomar mais uma bebida
juntos e depois fazte ao caminho. Resumindo, ele foise embora com a trouxa e o dinheiro e, alguns dias
mais tarde, trouxeme de volta uma resposta verbal de Póstumo, pela qual agradecia o dinheiro e a roupa,
dizendo também que eu não deveria procurálo, que a mãe do Crocodilo saberia onde ele estava, que o seu
nome agora era Pantero e pedindo que lhe mandasse a resposta do cunhado logo que possível. Paguei ao
velho soldado as dez moedas que lhe prometera e mais dez pela sua lealdade. Compreendi a quem
Póstumo se referia ao falar na mãe do Crocodilo. O Crocodilo era um velho liberto de Agripa, a quem
tratávamos assim por causa da sua inércia e voracidade e por ter umas mandíbulas enormes. Tinha a mãe a
viver em Perúsia, onde mantinha uma estalagem. Eu conhecia bem esse lugar. Enviei imediatamente uma
carta a Germânico para lhe contar a novidade; envieia para Roma por Palas, dizendolhe que a fizesse
seguir com o primeiro correio para a Germânia. Na carta, dizia simplesmente que Póstumo estava vivo e
escondido não dizia onde e pedia a Germânico que acusasse de imediato a recepção da carta. Depois,
esperei e tornei a esperar uma resposta, mas não obtive nenhuma. Escrevi de novo, de forma um tanto
mais detalhada; mas continuei a não ter resposta. Enviei uma mensagem à mãe do Crocodilo por um
carreteiro do campo, informando que ainda não tinha chegado nenhuma mensagem para o Pantero da parte
do cunhado.
Não voltei a receber notícias de Póstumo. Ele não desejava comprometerme mais e, agora que tinha
dinheiro e podia andar de um lado para o outro sem ser preso por suspeita de se tratar de algum escravo
fujão, já não dependia da minha ajuda. Alguém na estalagem o reconheceu e ele teve que sair de lá por
uma questão de segurança. Em breve, o rumor de que ele estava vivo se espalhou por toda a Itália. Em
Roma, toda a
212
gente falava nisso. Uma dúzia de pessoas, incluindo três senadores, deixaram a Cidade para me vir
procurar e perguntarme em privado se era verdade. Disselhes que não o tinha visto, mas que tinha
conhecido alguém que o vira e que não havia qualquer dúvida que se tratava de Póstumo. Na volta,
pergunteilhes o que tencionavam fazer se ele aparecesse em Roma e ganhasse o apoio da populaça. Mas a
franqueza da minha pergunta embaraçouos e magoouos, não tendo obtido resposta.
Diziase que Póstumo tinha visitado várias cidades nas vizinhanças de Roma, mas, aparentemente, ele
tomava a precaução de não entrar nelas antes do cair da noite e de sair sempre, disfarçado, antes do nascer
do dia. Nunca era visto em público, mas alojavase numa estalagem qualquer e deixava para trás uma
mensagem de agradecimento pela amabilidade que lhe tinham mostrado assinada com o seu nome
verdadeiro. Finalmente, um dia, desembarcou em óstia de uma pequena embarcação costeira. O porto
sabia, algumas horas antes, que ele vinha, tendo recebido uma tremenda ovação no cais assim que pôs os
pés em terra. Escolheu desembarcar em óstia porque era o quartel de Verão da Frota, da qual seu pai
Agripa tinha sido Almirante. O seu navio arvorava um galhardete verde que Augusto dera a Agripa o
direito de usar sempre que estava no mar (e aos seus filhos depois dele), em memória da sua vitória
marítima em frente de Áccio. A memória de Agripa era respeitada em óstia quase mais ainda que a de
Augusto.
Por causa da sua reaparição pública em Itália, Póstumo encontravase em grande perigo de vida, estando
ainda sob sentença de exílio e, portanto, foradalei. Fez um breve discurso de agradecimento à multidão
pelas boas vindas. Disse que, se a Fortuna fosse generosa para com ele e se recuperasse a estima do
Senado e do povo de Roma, que tinha perdido por causa de certas acusações mentirosas que os seus
inimigos tinham feito contra ele acusações que o avô, o Deus Augusto, compreendera demasiado tarde
que não eram verdadeiras , recompensaria os homens e mulheres de óstia e sem qualquer mesquinhês.
Uma companhia de Guardas estava presente com ordens para o prender, pois, de alguma forma, Lívia e
Tibério também tinham sabido da notícia. Mas os homens não teriam tido qualquer hipótese contra aquela
multidão de marinheiros. Sensatamente, o capitão não fez qualquer tentativa para cumprir a sua missão;
ordenou a dois homens que se vestissem de marinheiros e não perdessem Póstumo de vista. Mas quando
acabaram de mudar de roupa, já ele tinha desaparecido e não conseguiram encontrarlhe o rasto.
No dia seguinte, Roma estava cheia de marinheiros que faziam piquete nas ruas principais: sempre que
encontravam um cavaleiro, um senador ou um funcionário público, perguntavamlhe a senha. A senha era
Neptuno e, se ele não a soubesse já, diziamlha e faziamno repetila três vezes, se não quisesse levar uma
tareia. Ninguém queria uma tareia
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e os sentimentos populares estavam de tal forma imbuídos de simpatia por Póstumo e contra Tibério e
Lívia que, se tivesse chegado uma simples palavra favorável de Germânico, a Cidade inteira, incluindo a
Guarda e os batalhões da Cidade, teriam passado imediatamente para o lado dele. Mas, sem o apoio de
Germânico, qualquer movimentação a favor de Póstumo teria significado uma guerra civil; e ninguém
tinha muita confiança nas hipóteses de Póstumo, se chegasse a haver uma luta com Germânico.
Nesta crise, o mesmo Crispo que tinha antagonizado Tibério dois anos antes, dando a morte a Clement na
ilha (mas tinha sido perdoado), veio oferecerse para redimir a sua falta, não errando desta vez em relação
a Póstumo. Tibério deulhe pulso livre. Ele descobriu de alguma forma onde era o quartel general de
Póstumo e, indo procurálo com uma avultada soma em dinheiro que disse ser para o pagamento dos seus
marinheiros, que já tinham perdido dois dias de trabalho por causa dos piquetes, tratou de levar a guarda
pessoal germânica para junto de Póstumo logo que deu o sinal. já lhes tinha pago, disse, avultados
subornos. Póstumo acreditou nele. Combinaram um encontro para duas horas depois da meianoite, à
esquina de uma certa rua onde os marinheiros de Póstumo também se deviam reunir em força. Depois,
marchariam para o Palácio de Tibério. Crispo daria ordens à guarda para que deixassem entrar Póstumo.
Tibério, Castor e Lívia seriam presos e Crispo disse que Sejano, embora não participasse activamente da
conspiração, se tinha encarregado de trazer a Guarda para apoiar o novo regime logo que o primeiro golpe
tivesse sido desferido com êxito: com a condição de manter o comando.
Os marinheiros compareceram pontualmente ao encontro, mas Póstumo não apareceu. A essa hora, não
havia nenhum cidadão nas ruas; por isso quando uma força combinada de Germanos da guarda pessoal e
homens escolhidos por Sejano caíram de repente sobre os marinheiros
que estavam na sua maioria embriagados e não mantinham qualquer espécie de formação regular a
senha Neptuno perdeu o seu poder. Muitos deles foram mortos ali mesmo, um número ainda maior morreu
ao tentar fugir e os restantes, dizse, não pararam enquanto não chegaram de novo a Ostia. Crispo e mais
dois soldados tinham armado uma cilada a Póstumo numa ruela estreita entre o seu quartel general e o
ponto de encontro, atordoaramno com um saco de areia, amordaçaramno e amarraramno, puseramno
numa liteira coberta e transportaramno até ao Palácio. No dia seguinte, Tibério fez uma declaração ao
Senado. Um certo escravo de Póstumo Agripa, chamado Clement, disse, tinha causado um forte e
desnecessário alarme na Cidade, fazendose passar pelo seu falecido amo. Aquele indivíduo ousado tinha
fugido ao cavaleiro da província que o comprara quando o espólio de Póstumo foi vendido e
214
tinhase escondido num bosque na costa da Toscana até a barba lhe crescer o suficiente para esconder o
queixo recuado ponto principal da dissemelhança entre ele e Póstumo. Alguns marinheiros turbulentos
em óstia tinham fingido acreditar nele, mas apenas como uma desculpa para marcharem até Roma e lá
criarem desordem. Tinhamse reunido nos subúrbios nessa manhã um pouco antes da alvorada,
comandados por ele com o objectivo de marcharem até ao centro da Cidade e saquearem lojas e casas
particulares. Quando se defrontaram com um destacamento de Vigilantes tinham dispersado e desertado
do seu chefe, que acabara por ser executado: portanto, a Casa não precisava albergar qualquer ansiedade
quanto a esse assunto.
Ouvi contar mais tarde que Tibério fingira não reconhecer Póstumo quando este foi levado perante ele no
Palácio e lhe perguntou em ar de troça: ”Como foi que conseguiste tornarte um dos Césares?” Ao que
Póstumo respondeu: ”Da mesma maneira e no mesmo dia que tu. já te esqueceste?” Tibério mandou um
escravo bater na boca de Póstumo por causa da sua insolência e, de seguida, foi posto na roda e convidado
a revelar os nomes dos outros conspiradores. Mas ele limitavase a contar anedotas escandalosas sobre a
vida privada de Tibério, que eram tão repelentes e tão circunstanciais que este perdeu o controlo e lhe
amassou a cara com os enormes punhos ossudos. Os soldados acabaram a tarefa sangrenta, decapitandoo
e cortandoo em pedaços nas caves do Palácio.
Que maior desgosto pode haver do que carpir um amigo estimado por ter sido morto no final de um
longo e imerecido exílio e depois, a seguir à alegria breve e espantosa, de ouvir que ele de alguma forma
ludibriou os seus executores, ter que o carpir pela segunda vez agora sem esperança de erro e sem
mesmo o ter visto no intervalo por ter sido traiçoeiramente recapturado e vergonhosamente torturado e
morto? A minha única consolação era que, quando Germânico soubesse do que se tinha passado e eu iria
escreverlhe imediatamente a contar tudo o que sabia daquela história , ele deixaria as suas campanhas na
Germânia e marcharia de volta a Roma à frente de todos os regimentos que pudessem ser dispensados do
Reno, para vingar a morte de Póstumo em Lívia e Tibério. Escrevi, mas ele não respondeu; voltei a
escrever e continuei a não obter resposta. Mas finalmente veio uma carta longa e afectuosa, na qual havia
uma referência perplexa ao êxito que Clement tivera ao fazerse passar por Póstumo como é que ele
tinha conseguido uma coisa dessas? Esta frase deixava bem claro que nenhuma das minhas importantes
cartas tinha chegado: a única a chegar tinha sido enviada pelo mesmo correio que a segunda. Nesta, eu
deralhe apenas detalhes de um assunto de negócios que ele me pedira para tratar em seu nome: agora,
agradeciame a informação, dizendo ser exactamente aquilo que
215
ele queria. Compreendi com um sentimento de medo súbito que Lívia ou Tibério deviam ter interceptado
todas as outras cartas.
A minha digestão sempre tinha sido má e o receio do veneno em cada prato nada fez para a melhorar.
Voltei a gaguejar e a ter ataques de afasia
brancas repentinas no espírito que me expunham ao ridículo: se me apanhavam no meio de uma frase,
acabavaa de qualquer forma. O resultado mais lamentável desta fraqueza foi ter baralhado os meus
deveres como sacerdote de Augusto, função que até ali tinha desempenhado sem dar razões para que
ninguém se queixasse. Há um costume antigo em Roma que, se algum erro é praticado no ritual de um
sacrifício ou de outro serviço, todo o processo tem que ser repetido desde o princípio. Agora, acontecía
me frequentemente, quando estava oficiando, perderme no meio de uma oração ou repetir a mesma
sequência de frases duas ou três vezes, antes de me aperceber do que estava a fazer; ou então pegava na
faca de pederneira para cortar o pescoço da vítima, antes de lhe polvilhar a cabeça com a farinha e o sal
rituais e esta espécie de coisa significava voltar de novo ao princípio. Era entediante fazer três ou quatro
tentativas para levar por diante um serviço antes de conseguir executálo com perfeição e a congregação
costumava impacientarse. Finalmente, escrevi a Tibério como Sumo Pontífice e pedilhe que me liberasse
por um ano de todas as minhas obrigações religiosas, alegando falta de saúde. Ele concedeume o pedido
sem comentários.
216
CAPÍTULO XIX
O terceiro ano da guerra de Germânico contra os germanos foi ainda mais cheio de êxito que os dois
primeiros. Ele tinha concebido um novo plano de campanha, através do qual apanharia os germanos de
surpresa e pouparia os seus homens a longas marchas perigosas e cansativas. Este plano consistia em
construir no Reno uma frota com perto de mil transportes, embarcar com a maior parte das suas tropas e
navegar rio abaixo, pelo canal que o nosso pai em tempos abrira, através dos lagos holandeses, seguindo
depois por mar até à foz do Ems. Aqui, ele tencionava ancorar os seus transportes na margem mais
próxima, à excepção de alguns poucos que serviriam para construir um pontão. Então, atacaria as tribos do
outro lado do Véser, um rio que se podia passar a vau nalguns sítios e que corre paralelo ao Ems,
cinquenta milhas para lá. O plano resultou em todos os detalhes.
Quando a guardaavançada chegou ao Véser, encontraram Hermann e alguns chefes aliados aguardando
na outra margem. Hermann gritou para o outro lado para perguntar se Germânico estava no comando.
Quando lhe responderam que sim, ele perguntou se lhe entregavam uma mensagem, A mensagem era:
”Corteses saudações de Hermann a Germânico”; perguntava também se lhe seria permitido chegar à fala
com o irmão. Este chamavase, em germano, qualquer coisa como Goldkopf, ou, de qualquer forma, um
nome tão bárbaro que era de tradução impossível para latim tal como Hermann tinha sido transformado
em Arminius ou Siegmyrgth em Segímero, o dele foi traduzido como Flávio, o que significa com a cabeça
dourada. Flávio estava há anos no Exército Romano e, como se encontrava em Lião na altura do desastre
de Varo, fizera aí uma declaração da sua lealdade continuada para com Roma, repudiando todos os laços
de família que o ligavam ao irmão traidor Hermann. Na campanha de Tibério e Germânico, no ano
seguinte, ele tinha lutado corajosamente e perdido um olho.
Germânico perguntou a Flávio se desejava dirigirse ao irmão. Flávio disse que não estava muito
interessado, mas que poderia tratarse de uma proposta de rendição. Assim, os dois irmãos começaram a
gritar um para o outro de lados opostos do rio. Hermann começou a falar em germano, mas Flávio disse
que, a menos que ele falasse em latim, a conversa
217
terminava ali. Hermann não queria falar latim, que os outros chefes não entendiam, com receio que
pensassem que ele era um traidor e Flávio não queria ser considerado traidor pelos romanos, que não
compreendiam o germano. Por outro lado, Hermann queria causar uma impressão sobre os romanos e
Flávio sobre os germanos. Hermann tentou continuar com o germano e Flávio com o latim, mas, à medida
que a discussão se tornava mais acalorada, caíram numa mistura de tal maneira horrível de ambas as
línguas que, tal como Germânico me escreveu, ouvilos, era tão bom como assistir a uma comédia. Cito o
relato do diálogo, tal como foi feito por Germânico:
Hermann Olá, irmão. O que aconteceu à tua cara? Essa cicatriz é uma deformidade horrível. Perdeste um
olho?
Flávio Sim, irmão. Por acaso apanhaste algum? Perdio naquele dia em que fugiste do bosque a galope,
com o escudo coberto de lama, para que Germânico não te reconhecesse.
Hermann Estás enganado, irmão. Não era eu. Deves ter andado de novo a beber. Eras sempre assim
antes de uma batalha: um bocado nervoso, a menos que tivesses bebido pelo menos meio litro de cerveja;
e tinhas que ser amarrado à sela quando soavam as trombetas de guerra.
Flávio Isso é mentira, claro, que bebida bárbara de fazer apodrecer os intestinos é a vossa cerveja
germana. Agora já não a bebo, nem mesmo quando chega ao acampamento alguma grande remessa vinda
de uma das vossas aldeias capturadas. Os homens só a bebem quando tem que ser: dizem que é melhor
que a água dos pântanos estragada pelos cadáveres germanos.
Hermann Sim, eu também gosto do vinho romano. Ainda me restam algumas centenas de jarros dos que
capturei a Varo. Este Verão vou arranjar outro bom fornecimento, se Germânico não tiver cuidado. A
propósito, que recompensa é que ele te deu por perderes o olho?
Flávio (com grande dignidade) Os agradecimentos pessoais do ComandanteemChefe e três
condecorações, incluindo a Coroa e a Corrente.
Hermann Oh, Oh! A Corrente! Usala em volta dos tornozelos, escravo romano?
Flávio Prefiro ser escravo dos romanos, a traílos. A propósito, a tua querida Thrusnelda está muito bem,
assim como o teu filho. Quando vens a Roma para os visitar?
Hermann No final desta campanha, irmão. Oh, Oh!
Flávio Queres dizer, quando caminhares atrás do carro de Germânico no triunfo dele e a multidão te
atirar ovos podres? Como me vou rir! Hermann Será melhor que te rias tudo antes, porque, se dentro de
três dias ainda tiveres garganta para te poderes rir eu deixarei de me
218
chamar Hermann. Mas chega desta conversa. Tenho uma mensagem da nossa mãe para ti.
Flávio (sério de repente e soltando um profundo suspiro) Ah, minha querida, querida mãe! Que
mensagem é que a minha mãe me envia? Ainda tenho a sua santa bênção, irmão?
Hermann Irmão, feriste a alma da nossa sensata, nobre e prolífica mãe. Ela diz que transformará a sua
bênção numa maldição, se continuares a ser um traidor para a tua família, a tua tribo e a tua raça e se não
voltares imediatamente para nós e servires como General, juntamente comigo.
Flávio (em germano, largando a chorar de raiva) Oh, ela nunca disse isso, Hermann. Ela não podia ter
dito isso. É uma mentira que tu próprio inventaste só para me tornares infeliz. Confessa que é uma
mentira, Hermann.
Hermann Ela deute dois dias para te decidires.
Flávio (para o seu moço) Eh, tu, oh cara de porco feio, dáme o meu cavalo e as minhas armas! Vou para
o outro lado do rio lutar com o meu irmão. Hermann, meu velhaco, vou lutar contigo!
Hermann Então vem, escravo zarolho comedor de feijões!
Flávio saltou para o cavalo e preparavase para o fazer nadar para o outro lado, quando um coronel
romano o agarrou pela perna e o puxou para fora da sela: ele sabia germano e conhecia a veneração
absurda que os germanos têm pelas suas mulheres e mães. E se Flávio realmente tencionasse desertar? Por
isso, disselhe que não se importasse com Hermann nem acreditasse nas suas mentiras. Mas Flávio não
podia resistir a dizer a última palavra. Secou os olhos e gritou para o outro lado:
Vi o teu sogro a semana passada. Tem uma bela propriedade perto de Lião. Ele disseme que Thrusnelda
veio para o pé dele porque não podia suportar a desgraça de estar casada com um homem que quebrou o
seu juramento solene como aliado de Roma e traiu um amigo a cuja mesa tinha comido. Disse que a única
maneira como poderás alguma vez recuperar a sua estima é não usando as armas que te deu no dia do
casamento contra aqueles a quem juraste lealdade. Ainda não te foi infiel, mas isso não vai durar muito se
não caíres em ti imediatamente.
Depois, foi a vez de Hermann chorar, invectivar e acusar Flávio de contar mentiras. Germânico destacou
em segredo um capitão para vigiar cuidadosamente Flávio durante a próxima batalha, com instruções para
o trespassar ao menor sinal de traição.
Germânico raramente escrevia, mas, quando o fazia, as suas cartas eram longas e punha nelas, dizia, todas
as coisas interessantes e divertidas que não lhe pareciam indicadas para a sua correspondência oficial com
Tibério: eu vivia para essas cartas. Nunca me sentia ansioso pela segurança de Germânico quando ele
andava a lutar com os germanos: quando os
219
enfrentava, tinha a mesma espécie de confiança com eles que um apicultor experiente tem com as abelhas,
o apicultor consegue entrar ousadamente na colmeia e tirar o mel sem que as abelhas de alguma forma o
piquem, como aconteceria convosco ou comigo se tentássemos fazer o mesmo. Dois dias depois de ter
atravessado o Véser, travou uma batalha decisiva com Hermann. Sempre me interessei pelos discursos
feitos antes de uma batalha: não há nada que seja mais esclarecedor do carácter de um general. Germânico
não saturava os seus homens com um estilo oratório nem gracejava com eles de forma obscena, como
Júlio César. Era sempre muito sério, muito preciso e muito prático. Nessa ocasião, o seu discurso foi sobre
o que ele realmente pensava dos germanos. Disse que eles não eram soldados. Tinham uma certa coragem
e lutavam bem em grupo, como acontece com o gado selvagem, e tinham também uma certa astúcia
animal, que tornava imprudente negligenciar as precauções normais quando se lutava com eles. Mas,
depois do primeiro ataque furioso, em breve se cansavam e não tinham disciplina no verdadeiro sentido
militar, mas apenas um espírito de rivalidade mútua. Os seus chefes não podiam contar com eles para
fazer aquilo que se desejava: ou faziam demais ou de menos,
Os germanos, disse, são a nação mais insolente e gabarola do mundo quando as coisas lhes correm
bem, mas, quando são derrotados, tornamse extremamente cobardes e abjectos. Nunca confieis num
germano perdendoo de vista, mas nunca o receeis quando o tiverdes frente a frente. E isso é tudo o que é
necessário dizer, à excepção de que: a maior parte da luta de amanhã será no meio destes bosques, onde,
tanto quanto se sabe, o inimigo ficará tão apertado que não irá ter espaço de manobra. Ide direitos a eles
sem vos importardes com as suas azagaias e aproximaivos bem. Acutilaios na cara: é a coisa que mais
detestam.
Hermann tinha escolhido cuidadosamente o seu campo de batalha: uma planície que estreitava entre o
Véser e uma cordilheira de colinas arborizadas. Ele lutaria na parte estreita da planície, com um grande
carvalho e uma floresta de faias atrás, o rio à direita e as colinas à esquerda. Os germanos apresentavamse
em três destacamentos. O primeiro deles, constituído por jovens das tribos locais armados com azagaias,
devia avançar para a planície para se defrontar com os regimentos romanos da frente, que provavelmente
seriam auxiliares franceses, e obrígálos a recuar. Depois, quando aparecessem os reforços romanos,
deviam abandonar a luta e fingir que fugiam em pânico. Os romanos então avançariam na direcção da
floresta e, neste ponto, o segundo destacamento, formado pela própria tribo de Hermann, atacaria de um
ponto de emboscada na colina, apanhandoos pelo flanco. Isto iria causar grande confusão e o primeiro
destacamento devia então regressar, apoiado de perto pelo terceiro os homens mais velhos e experientes
das tribos locais,
220
empurrando os romanos para o rio. A cavalaria germana, nesta altura, teria avançado vinda do
outro lado da colina, apanhando os romanos pela retaguarda.
Teria sido um bom plano, se Hermann estivesse à frente de tropas disciplinadas. Mas as coisas
correram ridiculamente mal. A ordem de batalha de Germânico era como se segue: primeiro, dois
regimentos de infantaria pesada francesa no flanco do rio, e dois de auxiliares germanos, no
flanco da montanha; depois, os arqueiros a pé e quatro regimentos regulares, seguidos de
Germânico, com dois batalhões da Guarda e com a cavalaria regular. Apareciam seguidamente
mais quatro regimentos regulares, arqueiros montados franceses e infantaria ligeira francesa.
Quando os auxiliares germanos avançaram pelos contrafortes da montanha, Hermann, que
observava os acontecimentos do cimo de um pinheiro, gritou excitado para o sobrinho que se
encontrava em baixo à espera de ordens: ”Ali vai o traidor do meu irmão! Não deve sair com vida
desta batalha.” O sobrinho estúpido saltou em frente, gritando: ”Ordens de Hermann para atacar
imediatamente!” Precipitouse para baixo para a planície com cerca de metade da tribo. Hermann
conseguiu com dificuldade conter os restantes. Germânico fez sair de imediato a cavalaria regular
para atacar o bando de loucos no flanco antes que conseguissem alcançar os homens de Flávio; os
arqueiros montados franceses cortaramlhes a retirada.
O destacamento germano de tropas de escaramuça tinha entretanto saído da floresta, mas a carga
da cavalaria romana fez recuar para cima deles os homens comandados pelo sobrinho de
Hermann e os primeiros entraram em pânico e recuaram também. O terceiro destacamento dos
germanos, o corpo principal, saiu então da floresta, esperando que as tropas de escaramuça
parassem e voltassem para trás com eles, como estava combinado. Mas a única coisa em que os
tropas de escaramuça pensavam era em fugir da cavalaria: fugiram para trás pelo meio do
destacamento principal. Neste momento, surgiu o presságio mais encorajador para os romanos
oito águias que se tinham assustado com a movimentação, afastandose da montanha e voando
em círculos pela planície, soltando gritos agudos, voaram agora todas juntas na direcção da
floresta. Germânico gritou: ”Segui as Águias! Segui as Águias Romanas!” Todo o exército
repetiu o grito: ”Segui as Águias!” Entretanto, Hermann tinha atacado com o resto dos seus
homens e apanhado de surpresa os arqueiros a pé, matando alguns; mas o regimento da
retaguarda de infantaria pesada francesa deu meia volta para ir em auxílio dos arqueiros. O
exército de Hermann, formado por uns 15.000 homens, ainda podia ter salvo a batalha
esmagando a infantaria francesa e, desta forma, conseguindo uma penetração formidável entre a
guarda avançada romana e o corpo principal. Mas o sol brilhoulhes nas caras, reflectido pelas
armas, peitorais, escudos
221
e elmos das longas fileiras de infantaria regular que avançavam para eles; isso fez com que os germanos
perdessem a coragem. A maior parte deles correu a refugiarse na colina. Hermann reuniu um ou dois
milhares de homens, mas não os suficientes e, entretanto, já dois esquadrões da cavalaria regular tinham
voltado ao ataque pelo meio dos fugitivos, cortandolhes a retirada para a colina. Como é que ele
conseguiu fugir é um mistério, mas é convicção generalizada que tenha esporeado o cavalo em direcção ao
bosque e alcançado os auxiliares germanos que avançavam para o atacar. Então gritou:
Abram passagem, suas bestas! Eu sou Hermann!
Ninguém ousou matálo porque era o irmão de Flávio e Flávio sentirseia obrigado, em nome da honra de
família, a vingar a sua morte.
já não era uma batalha, mas sim uma chacina. A principal força germana foi dominada e obrigada a recuar
até ao rio, que muitos conseguiram atravessar a nado, mas não todos. Germânico arrastou a sua segunda
linha de infantaria regular para o bosque e expulsou de lá as tropas de escaramuça que aguardavam ali, na
vaga esperança de que a batalha pudesse de repente virar a seu favor (os arqueiros ocuparamse em fazer
descer das árvores os germanos que tinham trepado a elas e que estavam escondidos no cimo, por entre a
folhagem). Acabara toda a resistência. Desde as nove da manhã até às sete da tarde, quando começou a
escurecer, a mortandade continuou. Num raio de dez milhas para lá do campo de batalha, os bosques e as
planícies estavam juncados de corpos germanos. Entre os cativos, encontravase a mãe de Hermann e
Flávio. Ela suplicou pela própria vida, dizendo que sempre tentara persuadir Hermann a abandonar a sua
resistência fútil aos conquistadores romanos. Assim, a lealdade de Flávio estava agora assegurada.
Um mês mais tarde travouse nova batalha, numa floresta densa nas margens do Elba. Herman tinha
escolhido uma emboscada e tomou disposições que podiam ter sido altamente eficazes se Germânico não
tivesse sabido de tudo algumas horas antes, por alguns desertores. Assim, em vez dos romanos terem sido
encaminhados para o rio, os germanos foram obrigados a recuar através da floresta, na qual se
encontraram demasiado apertados para usar a sua táctica habitual de ataque e fuga alguns milhares foram
empurrados para um pântano fervilhante, onde se afundaram e desapareceram lentamente, gritando de
raiva e desespero. Hermann, que tinha ficado incapacitado com o ferimento de uma seta na batalha
anterior, não apareceu muito desta vez. Mas conduziu a luta no bosque o mais obstinadamente que
conseguiu e, encontrandose por acaso com o irmão Flávio, trespassouo com uma azagaia. Ele escapou
atravessando o pântano, saltando de moita em moita com extraordinária destreza e muita sorte.
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Germânico ergueu uma enorme pilha de troféus com armas germanas e pôs sobre ela a seguinte inscrição:
As forças de Tibério César, tendo subjugado as tribos entre o Reno e o Elba, consagram este memorial da
sua vitória a Júpiter, a Marte e a Augusto. Sem qualquer menção a ele próprio. As baixas que sofreu no
total das suas batalhas não ultrapassaram os 2.500 homens, entre mortos e feridos graves. Os germanos
devem ter perdido, pelo menos, 25.000.
Germânico considerou que tinha feito o suficiente naquele ano e enviou alguns dos seus homens de
regresso ao Reno por terra, embarcando os outros em transportes. Mas depois veio a desgraça; uma
tempestade repentina vinda de sudoeste apanhou a frota pouco depois dos barcos terem levantado âncora,
espalhandoos em todas as direcções. Muitos navios foram ao fundo e apenas o navio do próprio
Germânico conseguiu alcançar a foz do Véser, onde se culpou a si mesmo, qual segundo Varo, pela perda
de todo um exército romano. Só com dificuldade foi impedido pelos seus amigos de saltar para o mar para
se juntar aos mortos. No entanto, alguns dias mais tarde, o vento mudou para norte e, um por um, os
navios dispersos voltaram, quase todos sem remos e alguns com capas esticadas a fazer de velas, enquanto
os menos afectados se revezavam para rebocar aqueles que mal conseguiam flutuar.
Germânico apressouse a lançar mãos ao trabalho para reparar os cascos danificados e enviou todos os
navios que se encontravam em bom estado para procurarem os sobreviventes nas desoladas ilhas vizinhas.
Muitos foram encontrados aí, mas meio mortos de fome, tendose mantido vivos à custa de crustáceos e
das carcaças de cavalos que foram atiradas para a praia. Muitos mais apareceram vindos de outros pontos
mais longínquos da costa; tinham sido tratados com respeito pelos habitantes, que ultimamente se tinham
visto forçados a jurar aliança a Roma. O carregamento de cerca de vinte navios regressou de sítios tão
distantes como a Britânia, que vinha pagando um tributo nominal desde a sua conquista setenta anos antes
por Júlio César, enviado pelos reis menores do Kent e do Sussex. No final, só se perdeu um quarto dos
homens desaparecidos e quase 200 foram encontrados anos mais tarde, na Britânia Central. Foram
retirados das minas de chumbo, onde os tinham posto a fazer trabalhos forçados.
Os germanos do interior, quando souberam deste desastre, pensaram que os seus deuses os tinham
vingado. Derrubaram o troféu do campo de batalha e começaram mesmo a falar de uma marcha até ao
Reno. Mas, repentinamente, Germânico atacou de novo, enviando uma expedição de sessenta batalhões de
infantaria e 100 esquadrões de cavalaria contra as tribos do Véser superior, enquanto ele próprio marchava
com mais oitenta batalhões de infantaria e cem esquadrões de cavalaria contra as tribos de entre o baixo
Reno e o Ems. Ambas as expedições foram totalmente
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coroadas de êxito e, o que foi melhor do que matar milhares de germanos, a Águia do Décimo Oitavo
Regimento foi encontrada num templo subterrâneo na floresta, tendo sido levada em triunfo. Apenas
faltava resgatar a Águia do Décimo Sétimo e Germano prometeu aos seus homens que, no ano seguinte, se
ainda detivesse o comando, resgataríam essa também, Entretanto, conduziuos de regresso ao quartel de
Inverno.
Nessa altura, Tibério escreveulhe pressionandoo a voltar a Roma para o triunfo que lhe tinha sido
decretado, pois ele sem dúvida já fizera o suficiente. Germânico escreveu em resposta que não se daria por
satisfeito enquanto não tivesse derrotado completamente o poder dos germanos, para o qe não eram
necessárias muitas mais batalhas, e recuperado a terceira Águia. Tibério escreveulhe de novo, dizendo
que Roma não podia suportar baixas tão numerosas, mesmo com a recompensa de tão esplêndidas
vitórias: ele não estava a criticar as capacidades de Germânico como general, pois as suas batalhas tinham
sido muito económicas em vidas, mas entre as baixas em combate e o desastre marítimo tinhase perdido o
equivalente a dois regimentos completos, que era mais do que Roma se podia permitir. Recordou a
Germânico que ele próprio tinha sido enviado nove vezes para a Germânia por Augusto e, portanto, não
falava por falta de experiência. A sua opinião era que a vida de um único romano não era compensada
pela morte de dez germanos que fosse. A Germânia era como uma Hidra: quanto mais cabeças se
cortavam, mais cresciam. A melhor maneira de controlar os germanos era jogar com as suas rivalidades
intertribais e fomentar a guerra entre os chefes vizinhos: encorajálos a mataremse uns aos outros sem
ajuda externa. Germânico escreveu uma vez mais pedindo apenas um outro ano para completar o seu
trabalho de subjugação. Mas Tibério disselhe que ele era necessário novamente em Roma como Cônsul e
tocoulhe no ponto mais sensível, dizendo que devia pensar no irmão Castor. A Germânia era agora o
único país onde se travava uma guerra de alguma importância e, se ele insistisse em ser ele a terminála,
Castor não teria qualquer oportunidade de ganhar um triunfo ou o título de marechal de campo.
Germânico não insistiu mais, mas disse que os desejos de Tibério eram a sua lei e que regressaria logo que
fosse substituído.
Voltou no princípio da Primavera e celebrou o seu triunfo. Toda a população de Roma se deslocou a uma
distância de vinte milhas da cidade para lhe dar as boas vindas. Um grande arco em comemoração das
Águias recuperadas foi consagrado perto do templo de Saturno. A procissão triunfal passou por baixo
dele. Havia carros empilhados com os despojos dos templos germanos e com escudos e armas inimigos;
outros, carregavam quadros representando batalhas ou deuses germanos dos rios ou das montanhas
dominados pelos soldados
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romanos. Thrusnelda e o filho iam num carro com cordas em volta do pescoço, seguidos por um enorme
cortejo de prisioneiros germanos com os punhos amarrados. Germânico, coroado, ia no seu carro, com
Agripina sentada a seu lado; sentados atrás, iam os seus cinco filhos Nero, Druso, Calígula, Agripinila e
Drusila. Ele recebeu mais aplausos que qualquer outro general triunfante alguma vez recebera, desde o
triunfo de Augusto em Accio.
Mas eu não estive presente. De todos os lugares do mundo, encontravame em Cartago! Apenas um mês
antes do regresso de Germânico, tinha recebido uma nota de Lívia com instruções para que me preparasse
para uma viagem a África. Era necessário um representante da família imperial para consagrar um novo
templo a Augusto em Cartago, e eu era o único que estava disponível para essa tarefa. Sermeiam
fornecidos todos os conselhos sobre como me conduzir e como realizar a cerimónia, e era de esperar que
eu não fizesse, uma vez mais, figura de tolo, mesmo perante os representantes de África. Compreendi
imediatamente porque me estavam a mandar para lá. Não havia qualquer razão para uma partida imediata,
pois o templo só estaria concluído daí a uns três meses. Estavam a desembaraçarse de mim. Enquanto
Germânico estivesse na Cidade não me seria permitido regressar e todas as cartas que enviasse para Roma
seriam abertas. Assim, nunca tive a oportunidade de dizer a Germânico o que tinha estado a guardar para
ele durante tanto tempo. Por outro lado, Germânico teve a sua conversa com Tibério. Disselhe que sabia
que o exílio de Póstumo se tinha devido a uma maquinação cruel por parte de Lívia tinha provas
concludentes disso. Lívia devia, sem dúvida, ser afastada dos negócios públicos. Os seus actos não podiam
ser justificados por qualquer subsequente mau comportamento por parte de Póstumo. Era apenas natural
que ele tentasse escapar de um exílio indevido. Tibério declarouse chocado com a revelação de
Germânico; mas disse que não podia criar um escândalo público destituindo repentinamente a mãe: acusá
laia particularmente do crime e, pouco a pouco, retirarlheia os poderes.
O que ele realmente fez foi ir ter com Lívia e contarlhe exactamente o que Germânico lhe tinha dito,
acrescentando que Germânico era um tolo crédulo, mas parecia estar a falar sério; e era de tal forma
popular em Roma e no Exército, que talvez fosse aconselhável para Lívia convencêlo que não era culpada
daquilo de que ele a acusava, a menos que achasse tal atitude demasiado indigna para ela. Acrescentou
que ia afastar Germânico para qualquer lado logo que possível, provavelmente para o Leste, e que iria pôr
de novo ao Senado a questão dela ser chamada Mãe da Pátria, um título que bem merecia. Tinha tomado
exactamente a atitude certa. Lívia ficou satisfeita por ele ainda a recear o suficiente para lhe contar tudo
aquilo e chamoulhe filho respeitador. jurou que não tinha arranjado acusações falsas contra Póstumo: esta
história tinha provavelmente
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sido inventada por Agripina, a quem Germânico seguia cegamente e que estava a tentar persuadilo a
usurpar a monarquia. O plano de Agripina, disse, era sem dúvida provocar o desentendimento entre
Tibério e a sua extremosa mãe. Tibério, abraçandoa, disse que, apesar dos pequenos desentendimentos
que pudessem ocorrer ocasionalmente, nada quebraria os laços que os unia. Lívia suspirou; agora estava a
ficar velha
já avançara na casa dos setenta e começava a achar o seu trabalho demasiado: talvez ele arranjasse
maneira de a libertar da parte mais aborrecida e consultála apenas sobre questões importantes de
nomeações e decretos? Nem sequer ficaria ofendida se ele pusesse de lado a sua prática de pôr o nome
dela acima do seu em todos os documentos oficiais: não queria que se dissesse que ele estava sob a sua
tutela. Mas, disse, quanto mais depressa convencesse o Senado a darlhe aquele título, mais satisfeita
ficaria. Portanto, houve mostras de reconciliação: mas nenhum dos dois confiava no outro.
Tibério nomeou Germânico seu colega no Consulado e dísselhe que persuadira Lívia a retirarse dos
assuntos públicos, embora, para manter as aparências, continuasse a fingir que a consultava. Isto pareceu
satisfazer Germânico. Mas Tibério não se sentia de forma alguma confortável. Agripina mal lhe falava e,
sabendo que Germânico e ela eram uma alma só, não conseguia acreditar na sua lealdade duradoura. Além
disso, passavamse coisas em Roma que um homem com o carácter de Germânico naturalmente detestava.
Em primeiro lugar, os informadores. Uma vez que Lívia não lhe dava acesso aos processos criminais e não
o deixava partilhar do seu eficientíssimo sistema de espionagem ela dispunha de um agente pago em
quase todas as casas ou instituições importantes ele tinha que adoptar outros métodos. Promulgara um
decreto pelo qual, se alguém fosse considerado culpado de conspirar contra o Estado ou de blasfemar
contra o Deus Augusto, os seus bens seriam confiscados e divididos entre os seus leais acusadores.
Conspirações contra o Estado eram menos fáceis de provar que as blasfémias contra Augusto. O primeiro
caso de blasfémia contra Augusto foi o de um gracejador, um jovem lojista, que calhou estar ao lado de
Tibério na Praça do Mercado quando passava um funeral. Saltou em frente e sussurrou qualquer coisa ao
ouvido do cadáver. Tibério ficou curioso de saber do que se tratava. O homem explicou que estava a pedir
ao morto para dizer a Augusto, quando o encontrasse lá em baixo, que os seus legados ao povo de Roma
ainda não tinham sido pagos. Tibério mandou prender e executar o homem por falar de Augusto como se
ele fosse um simples fantasma, não um Deus imortal, e disse que ia enviálo lá para baixo para o
convencer do seu erro. Um mês ou dois mais tarde, a propósito, pagou os legados por inteiro. Num caso
como este, Tibério tinha uma certa justificação; mas,
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mais tarde, os mais inofensivos abusos do nome de Augusto eram suficientes para que um homem fosse
condenado à morte.
Surgiu entretanto uma classe de informadores profissionais, com quem se podia contar para criar um caso
contra qualquer homem que lhes fosse indicado, como tendo incorrido no desagrado de Tibério. Assim,
os processos criminais baseados no registo de uma verdadeira delinquência eram supérfluos. Sejano era o
intermediário de Tibério junto destes patifes. No ano que antecedeu o regresso de Germânico, Tibério
tinha posto os informadores a trabalhar no caso de um jovem que era bisneto de Pompeu e primo de
Agripina, através da avó Escribónia. Sejano tinha prevenido Tibério de que Libo era perigoso e tinha
andado a fazer comentários desrespeitosos sobre ele: mas Tibério teve o cuidado, naquela fase, de não
tomar o desrespeito para com ele próprio uma ofensa imputável; portanto, teve que inventar outras
acusações. Para disfarçar a sua associação com Trasilo, Tibério expulsara de Roma todos os astrólogos,
mágicos, adivinhos e intérpretes de sonhos, proibindo toda e qualquer pessoa de consultar algum deles que
se tivesse deixado ficar em segredo. Alguns permaneceram com a conivência de Tibério, na condição de
apenas realizarem sessões com um agente imperial escondido na sala. Libo foi persuadido por um senador,
que se tinha tornado informador profissional, a visitar uma destas armadilhas e a deixar que lhe lessem as
sortes. As perguntas que fez foram anotadas pelo agente escondido. Em si mesmas, elas não tinham nada
de traiçoeiro, sendo apenas tolas: queria saber até que ponto iria ficar rico e se alguma vez seria o homem
mais proeminente de Roma, e assim por diante. Mas no seu julgamento foi apresentado um documento
forjado, que se dizia ter sido descoberto por escravos no quarto dele uma lista, que parecia ter sido feita
na caligrafia dele, com os nomes de todos os membros da família imperial e dos principais senadores, com
curiosos caracteres caldaicos e egípcios em frente de cada um, a margem. O castigo por consultar um
mágico era o exílio, mas o castigo pela prática pessoal de magia era a morte. Libo negou a autoria do
documento e o depoimento de escravos, mesmo sob tortura, não seria suficiente para o condenar: o
testemunho de escravos só era aceite quando a acusação era de incesto. Não havia o depoimento de
nenhum liberto, porque o liberto de Libo não se deixou persuadir a testemunhar contra ele; por outro lado,
não era possível torturar um liberto para o obrigar à confissão. No entanto, a conselho de Sejano, Tibério
criou uma nova disposição legal: quando um homem era acusado de um crime grave, os seus escravos
podiam ser comprados por um preço justo pelo Procurador Público, sendolhes assim permitido prestar
declarações sob tortura. Libo, que não conseguira arranjar um advogado suficientemente corajoso para o
defender, viu que estava perdido e pediu que o julgamento fosse adiado para o dia seguinte. Quando o
adiamento foi concedido, foi para casa e
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matouse. Ainda assim, a acusação contra ele foi levada por diante pelo Senado com a mesma formalidade
como se ele estivesse vivo, tendo sido declarado culpado de todas as acusações. Tibério disse que era
lamentável que aquele jovem tolo se tivesse suicidado, porque teria intercedido pela sua vida. O espólio de
Libo foi dividido entre os seus acusadores, entre os quais se contavam quatro membros do senado. Uma
farsa ignominiosa como esta nunca teria tido lugar quando Augusto era Imperador, mas, no tempo de
Tibério, isso aconteceu mais que uma vez, com variantes. Apenas um homem fez um protesto público, um
certo Calpúrnio Piso, que se ergueu no Senado para dizer que estava tão enojado com o ambiente de
intriga política na Cidade, a corrupção da justiça e o espectáculo degradante dos seus colegas senadores
que actuavam como informadores pagos, que ia abandonar Roma de vez e retirarse para uma aldeia,
numa parte remota de Itália. Tendo dito isto, saiu. O discurso causou uma forte impressão na Casa.
Tibério mandou alguém chamar Calpúrnio de volta e, quando ele estava de novo no seu lugar, disselhe
que, se havia má administração da justiça, qualquer senador era livre de chamar a atenção para o facto na
hora das perguntas. Disse também que um certo volume de intriga política era inevitável na capital do
maior Império que o mundo alguma vez conhecera. Estaria Calpúrnio a sugerir que os Senadores não
apresentariam as suas acusações se não tivessem a esperança de uma recompensa? Disse que admirava a
seriedade e a independência de Calpúrnio, e invejava os seus talentos; mas não seria melhor ele empregar
estas nobres qualidades na melhoria da moralidade social e política em Roma, do que enterrálas em
qualquer lugarejo miserável dos Apeninos, no meio de pastores e bandidos? Assim, Calpúrnio teve que
ficar. Mas, pouco tempo depois, mostrou a sua seriedade e independência citando a velha Urgulanila para
comparecer em tribunal pelo não pagamento de uma avultada soma em dinheiro, que lhe devia por alguns
quadros e estatuária: a irmã de Calpúrnio morrera e tinha havido uma venda. Quando Urgulanila leu a
citação, que pedia a sua comparência imediata no Tribunal de devedores, disse aos seus transportadores
que a levassem directamente ao Palácio de Lívia. Calpúrnio seguiua e foi recebido no vestíbulo por Lívia,
que o mandou irse embora. Calpúrnio desculpouse com cortesia, mas, firmemente, disse que Urgulanila
tinha que obedecer sem falta à citação, a menos que estivesse demasiado doente para o fazer, o que
evidentemente não era o caso. Mesmo as Virgens Vestais não estavam isentas de comparecer em tribunal
quando convocadas. Lívia disse que o comportamento dele era um insulto pessoal para ela e que o filho, o
Imperador, saberia como vingála. Tibério foi mandado chamar e tentou acalmar as coisas, dizendo a
Calpúrnio que Urgulanila certamente tencionava comparecer logo que se tivesse recomposto do choque
repentino da convocatória, dizendo a Lívia que, sem dúvida, se tratava de um erro;
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que Calpúrnio certamente não tencionava faltarlhe ao respeito e que ele próprio assistiria ao
julgamento e faria com que Urgulanila tivesse um advogado competente e um julgamento justo. Saíu do
Palácio caminhando ao lado de Calpúrnio na direcção do tribunal e falando com ele de uma coisa e outra.
Os amigos de Calpúrnio tentaram persuadilo a desistir da acusação, mas ele replicou que era um homem
antiquado: gostava que lhe pagassem o dinheiro que lhe deviam. O julgamento nunca se deu. Lívia enviou
um mensageiro a cavalo atrás deles com a soma total da dívida em ouro nos alforges: o homem alcançou
Calpúrnio e Tibério antes deles chegarem à porta do Tribunal.
Mas eu estou a escrever sobre informadores e o efeito desmoralizador que eles tiveram na vida de Roma, e
também sobre a corrupção judicial. Preparavame para registar que, enquanto Germânico esteve em
Roma, não se ouviu uma única acusação nos tribunais de blasfémia contra Augusto e de conspiração
contra o Estado e os informadores foram avisados para que permanecessem absolutamente inactivos.
Tibério arvorou o seu melhor comportamento e os seus discursos ao Senado eram modelos de franqueza.
Sejano retirouse do primeiro plano, Trasilo foi deslocado de Roma para se ir recolher na aldeia de Tibério
na ilha de Capri e Tibério parecia não ter outro amigo íntimo a não ser o honesto Nerva, cujo conselho
pedia constantemente.
De Castor, nunca consegui aprender a gostar. Era um indivíduo desbocado, sanguinário, de temperamento
violento, dissoluto. O seu carácter evidenciavase com a maior clareza numa luta de espada, em que ele
tinha maior prazer em ver o sangue jorrar de uma ferida do que em qualquer acto de destreza ou de
coragem por parte dos combatentes. Mas devo dizer que se comportou muito bem para com Germânico e
parecia sofrer uma verdadeira mudança de atitude na sua companhia. Facções da Cidade tentaram forçar
os dois à desafortunada posição de rivais à sucessão na monarquia, mas nunca, em qualquer ocasião, eles
encorajaram este ponto de vista. Castor tratava Germânico com a mesma consideração fraterna que
Germânico lhe testemunhava. Castor não era exactamente um cobarde, mas era mais um político que um
soldado. Quando foi enviado para o outro lado do Danúbio, em resposta a um pedido de ajuda por parte
das tribos da Germânia do Leste, que estavam a travar uma luta defensiva e sangrenta contra a
confederação ocidental de Hermann, conseguiu, através de uma intriga astuta, chamar para a guerra as
tribos da Boémia e da Bavária. Ele estava a concretizar a política de Tibério de encorajar os germanos a
exterminaremse uns aos outros. Marobodo (Aquele que caminha sobre o fundo do lago), o reisacerdote
dos Germanos orientais, fugiu para procurar protecção no acampamento de Castor. Foi concedido a
Marobodo um retiro seguro em Itália; e, uma vez que os germanos de leste tinham feito um juramento de
perpétua
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aliança, ficou dezoito anos como refém pelo bom comportamento deles. Estes germanos de leste eram
uma raça mais feroz e poderosa do que os do oeste e Germânico teve sorte em não os ter tido em guerra
com ele também. Mas Hermann tornarase um herói nacional por causa da derrota de Varo e Marobodo
invejavalhe o sucesso. Para que Hermann não se tornasse Rei supremo de todas as nações germanas, o
que era a sua ambição, Marobodo recusara darlhe qualquer ajuda na sua campanha contra Germânico, até
mesmo criando uma diversão noutra fronteira.
Tenho pensado muitas vezes em Hermann. À sua maneira, foi um homem notável; e, embora seja difícil
esquecerlhe a traição contra Varo, este tinha feito muito para provocar a revolta e Hermann e os seus
homens estavam, sem dúvida, a lutar pela liberdade. Tinham um desprezo genuíno pelos romanos. Não
conseguiam entender em que medida a disciplina extremamente severa do exército romano sob o comando
de Varo, Tibério e quase todos os generais à excepção do meu pai e do meu irmão, era diferente de uma
verdadeira escravatura. Ficavam chocados com os açoites disciplinares e consideravam o sistema de pagar
aos soldados um tanto por dia, em vez de os contratar com promessas de glória e saque, como
extremamente baixo. Os germanos sempre foram castos na sua moral e os oficiais romanos praticavam
abertamente vícios que, na Germânia, se os mesmos viessem à luz do dia o que era muito raro , seriam
punidos afogando os dois culpados em lama. Quanto à cobardia germana, todos os povos bárbaros são
cobardes. Se os germanos alguma vez se tornarem civilizados, então será a altura de ajuizar se eles são
cobardes ou não. Parecem, no entanto, ser um povo excepcionalmente nervoso e brigão e não consigo
decidir se haverá alguma probabilidade deles se tornarem verdadeiramente civilizados. Germânico
pensava que não havia nenhuma. Se a sua política de exterminação era justificada ou não (certamente não
era a política romana habitual com as tribos da fronteira), isso depende da resposta à primeira pergunta.
Claro que as Águias capturadas tinham que ser reconquistadas e Hermann não se mostrara misericordioso
depois da derrota de Varo, quando tinha assolado a província; e Germânico, que era o mais gentil e
humano dos homens, detestava tanto o massacre geral, que deve ter tido muito boas razões para o ordenar.
Hermann não morreu em combate. Quando Marobodo foi forçado a fugir do país, Hermann pensou que o
seu caminho estava agora aberto para uma monarquia sobre todas as nações da Germânia. Mas estava
errado: não conseguiu sequer tornarse monarca da sua própria tribo, que era uma tribo livre, pois o chefe
não tinha poder para comandar, apenas para guiar, aconselhar e persuadir. Um dia, um ano ou dois mais
tarde, tentou promulgar ordens como um rei. A família, que até ali lhe
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era altamente dedicada, ficou de tal forma escandalizada que, sem primeiro discutirem a questão em
conjunto, se precipitaram todos sobre ele com as suas armas e fizeramno em pedaços. Tinha trinta e sete
anos quando morreu, tendo nascido um ano antes de meu irmão Germânico, o seu maior inimigo.
231
CAPÍTULO XX
Fiquei quase um ano em Cartago (foi no ano em que Lívio morreu, em Pádua, onde o seu coração sempre
estivera). A Velha Cartago tinha sido completamente arrasada e esta era uma nova cidade, construída por
Augusto no sudeste da península e destinada a tornarse a primeira cidade de África. Desde os meus
tempos de bebé, era a primeira vez que estava fora de Itália. Achei o clima muito duro, os nativos
africanos selvagens, doentes e esgotados pelo trabalho; os residentes romanos insípidos, brigões,
mercenários e fora do tempo; os enxames de insectos desconhecidos rastejantes e voadores eram
absolutamente horríveis. Aquilo de que mais sentia a falta era da floresta. Em Trípoli não há nada de
intermédio entre a terra normalmente plantada
pomares de figueiras e oliveiras ou campos de trigo e o deserto nu, pedregoso, espinhoso. Estava
alojado em casa do Governador, que era aquele Fúrio Camilo, tio da minha querida Camila, sobre quem já
escrevi; era muito bondoso comigo. Quase que a primeira coisa que me disse foi como o meu Sumário dos
Balcãs lhe tinha sido útil nessa campanha e que eu devia certamente ter sido publicamente recompensado
por o ter compilado tão bem. Fez tudo o que podia para tornar a minha cerimónia de consagração um
sucesso e conseguir das figuras locais o respeito devido à minha posição. Foi também muito assíduo em
me fazer conhecer os sítios mais interessantes. A cidade mantinha um comércio florescente com Roma,
exportando não apenas vastas quantidades de trigo e azeite, mas escravos, tintas púrpura, esponjas, ouro,
marfim, ébano e animais selvagens para os Jogos. Mas eu tinha pouco com que me ocupar e Fúrio sugeriu
que seria bom para mim, enquanto lá estava, reunir materiais para uma história completa de Cartago. Esse
livro não existia nas bibliotecas de Roma. Os arquivos da velha cidade tinhamlhe chegado recentemente
às mãos, descobertos por nativos que andavam a escavar as ruínas à procura de tesouros escondidos; se eu
quisesse usálos, seriam meus. Disselhe que não tinha qualquer conhecimento da língua fenícia, mas ele
respondeu que se encarregava, se eu estivesse suficientemente interessado, de entregar a um dos seus
libertos a tarefa de traduzir os manuscritos mais importantes para grego.
233
A ideia de escrever a história agradoume muito: sentia que nunca tinha sido feita justiça histórica aos
Cartagineses. Passei o meu tempo livre a fazer um estudo das ruínas da Velha Cidade, com a ajuda de uma
planta contemporânea e, de uma maneira geral, familiarizandome com a geografia do país. Também
aprendi suficientemente bem os rudimentos da língua para conseguir ler inscrições simples e compreender
as poucas palavras fenícias usadas pelos autores que escreveram sobre as Guerras Púnicas do lado dos
romanos. Quando regressei a Itália, simultaneamente com a minha história etrusca, comecei a escrever o
livro. Gosto de ter duas tarefas a decorrer ao mesmo tempo: quando me canso de uma voltome para a
outra. Mas talvez seja um autor demasiado cuidadoso. Não me satisfaço apenas em copiar das autoridades
antigas enquanto existe algum meio possível de verificar as suas afirmações consultando outras fontes de
informação sobre o mesmo assunto, particularmente relatos de escritores de partidos políticos rivais.
Assim, estas duas histórias, cada uma das quais eu podia ter escrito num ano ou dois se tivesse sido menos
consciencioso, mantiveramme ocupado durante cerca de vinte e cinco anos. Por cada palavra que escrevi,
devo ter lido muitas centenas; no final, torneime um bom estudioso, tanto do etrusco como do fenício,
tendo adquirido um conhecimento de trabalho de várias outras linguas e dialectos, tais como o númida, o
egípcio, o oscense e o falisco. Conclui primeiro a História de Cartago.
Pouco depois de ter feito a consagração do templo, que decorreu sem incidentes, Fúrio teve
repentinamente que partir para a guerra contra Tacfarinas com os únicos exércitos disponíveis na
província um regimento regular, o Terceiro, juntamente com alguns batalhões de auxiliares e dois
esquadrões de cavalaria. Tacfarinas era um chefe númida, originariamente um desertor das fileiras dos
auxiliares romanos e um bandido com um êxito notável. Nos últimos tempos, tinha reunido uma espécie
de exército segundo o modelo romano no interior do seu próprio país e aliarase aos sarracenos para uma
evasão da província pelo Oeste. Os dois exércitos juntos eram mais numerosos que o destacamento de
Fúrio, numa proporção de, pelo menos, cinco para um. Encontraramse em campo aberto a cerca de
cinquenta milhas da Cidade e Fúrio teve que decidir se iria atacar os dois regimentos semidisciplinados
de Tacfarinas que estavam no centro das indisciplinadas forças Árabes do flanco. Enviou a cavalaria e os
auxiliares, na sua maioria arqueiros, para entreter os Árabes e, com o seu regimento regular, marchou ao
encontro dos númidas de Tacfarinas. Eu observava a batalha de uma colina à distância de cerca de 350
metros tinha cavalgado até lá de mula e nunca antes ou depois, acho eu, me senti tão orgulhoso de ser
romano. O Terceiro mantinha uma formação perfeita: podia tratarse de uma parada cerimonial nos
Campos de Marte. Avançaram em três fileiras com trinta e cinco
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metros de distância. Cada uma era constituída por 150 filas, com oito homens de profundidade. Os númidas
detiveramse numa posição defensiva. Estavam dispostos em seis filas, com uma frente igual à nossa. O Terceiro não
parou e marchou direito a eles sem se deter um momento e só quando estavam a setenta metros de distância é que a
fila da frente descarregou os seus dardos, qual aguaceiro reluzente. Depois, puxaram das espadas e atacaram, escudo
contra escudo. Fizeram recuar a primeira linha do inimigo, constituída por homens armados com lanças, de encontro
à segunda. Depois, romperam a nova linha com outra saraivada de dardos cada soldado estava armado com dois.
Então, a linha de apoio romana passou pelo meio deles, dandolhes uma oportunidade para se reorganizarem. Não
tardei a ver nova chuva de dardos, lançados ao mesmo tempo e voando a brilhar sobre a terceira linha númida. Os
sarracenos dos flancos, que estavam a ser fortemente atacados pelas setas dos auxiliares, viram os romanos abrindo
caminho até ao centro. Começaram aos uivos como se a batalha estivesse perdida e dispersaram em todas as
direcções. Tacfarinas teve que entrar numa luta difícil de retaguarda para regressar ao acampamento. A única
recordação desagradável que guardei desta vitória foi o banquete com que ela foi celebrada: no seu decorrer, o filho
de Fúrio, que se chamava Escriboniano, fez referências satíricas ao apoio moral que eu tinha dado aos soldados. Fez
isto sobretudo para chamar a atenção para a própria bravura que, na sua opinião, não tinha sido suficientemente
elogiada. Depois, Fúrio fêlo pedirme desculpa. O Senado votou a Fúrio ornamentos triunfais ele foi o primeiro
membro da família a receber uma distinção militar, desde que o seu antepassado Camilo salvou Roma, mais de 400
anos antes.
Quando fui finalmente chamado de novo a Roma, Germânico já tinha partido para Leste, onde o Senado lhe votara o
comando supremo de todas as províncias. Com ele foram Agripina e Calígula, agora com oito anos de idade. Os
filhos mais velhos ficaram em Roma com a minha mãe. Embora Germânico ficasse muito decepcionado por ter que
deixar a Guerra da Germânia inacabada, decidiu tirar o melhor proveito possível daquela oportunidade e melhorar a
sua educação visitando lugares famosos na história ou na literatura. Visitou a Baía de Áccio e viu aí o templo
comemorativo dedicado a Apolo por Augusto, e o acampamento de António.
Como neto de António, aquele lugar tinha uma fascinação melancólica para ele. Estava a explicar o plano da batalha
ao jovem Calígula, quando a criança o interrompeu com uma risada tola:
Sim, pai, o meu avô Agripa e o meu bisavô Augusto deram ao vosso avô António uma boa tareia. Pergunto a mim
mesmo se não vos envergonhais de me contar a história.
Esta foi apenas uma de muitas ocasiões recentes em que Calígula tinha falado insolentemente com Germânico; este,
decidiu que não valia a pena
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tratálo da mesma maneira gentil e amigável com que tratava os outros filhos que o único
caminho a seguir com Calígula era a disciplina estrita e os castigos severos.
Visitou Tebas Beócia, para ver o quarto onde nascera Píndaro, e a ilha de Lesbos, para ver o
túmulo de Safo. Aqui nasceu outra das minhas sobrinhas, que recebeu o nome infeliz de Júlia. No
entanto, sempre a tratámos por Lésbia. Depois visitou Bizâncio, Tróia e as famosas cidades
gregas da Ásia Menor. De Mileto, escreveume uma longa carta descrevendo a viagem em termos
de um interesse tão maravilhado, que tornava nítido que já não lamentava muito ter sido afastado
da Germânia.
Entretanto, as coisas em Roma voltaram ao estado em que se encontravam antes do Consulado de
Germânico; e Sejano reavivou os antigos receios de Tibério em relação a Germânico. Relatou um
comentário de Germânico feito num jantar privado, no qual um dos seus agentes estivera
presente, no sentido de que os regimentos de Leste, provavelmente, precisavam do mesmo tipo de
revisão que ele dera aos do Reno. Este comentário tinha na realidade sido feito, mas não
significava mais do que a ideia de que estas tropas estavam possivelmente a ser mal conduzidas
por oficiais inferiores, de maneira muito semelhante ao que acontecera com as outras: e que ele
passaria em revista todas as nomeações na primeira oportunidade. Sejano fez com que Tibério
compreendesse essa observação como querendo dizer que a razão porque Germânico demorara
tanto a sua usurpação do poder, era o facto de não poder contar com a afeição dos regimentos de
Leste: afeição essa que ele ia agora conquistar deixando os homens escolher os seus próprios
capitães, dandolhes presentes e abrandando a severidade da sua disciplina tal como fizera no
Reno.
Tibério ficou alarmado e achou mais prudente consultar Lívia: contava com a colaboração dela.
Ela soube imediatamente o que fazer. Nomearam um homem chamado Gneo Piso para
governador da província da Síria uma nomeação que lhe daria o comando, sob as ordens de
Germânico, da maior parte dos regimentos orientais e disseramlhe em privado que podia contar
com o apoio de ambos se Germânico tentasse interferir com algumas das suas decisões políticas
ou militares. Foi uma escolha inteligente. Gneo Piso, um tio daquele Lúcio Piso que tinha
ofendido Lívia, era um velho altivo que, vinte e cinco anos antes, tinha conquistado o ódio
amargo dos iberos, quando enviado para eles por Augusto como Governador, pela sua crueldade
e avareza. Ele estava profundamente endividado e a sugestão de que podia comportarse como
lhe aprouvesse na Síria, desde que provocasse Germânico, parecia um convite para que fizesse
uma nova fortuna para substituir aquela que fizera na Hispânia e que há muito delapidara.
Detestava Germânico pela sua seriedade e
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piedade e costumava chamarlhe velha supersticiosa; ao mesmo tempo, sentiase extremamente
invejoso dele.
Germânico, quando visitara Atenas, tinha mostrado o seu respeito pelas antigas glórias,
aparecendo aos portões da cidade apenas com um criado como escolta. Fizera também um
discurso longo e sério a elogiar os poetas, soldados e filósofos atenienses, num festival
organizado em sua honra. Piso passou igualmente por Atenas a caminho da Síria e, como não
fazia parte da sua província e ele não fez qualquer esforço para ser delicado, os atenienses
também não fizeram qualquer esforço para serem delicados com ele. Um homem chamado
Teófilo, o irmão de um dos credores de Piso, acabava de ser condenado por falsificação por um
voto da Assembleia da Cidade. Piso pediu como um favor pessoal que o homem fosse perdoado,
mas recusaram o seu pedido, o que deixou Piso muito zangado: se Teófilo tivesse sido perdoado,
o irmão teria certamente cancelado o débito. Fez um discurso violento, no qual disse que os
atenienses dos tempos modernos não tinham o direito de se identificar com os grandes atenienses
dos tempos de Péricles, Demóstenes, Esquilo, Platão. Os antigos atenienses tinham sido
exterminados por guerras e massacres repetidos e estes eram mestiços, degenerados e
descendentes de escravos. Disse que qualquer romano que os elogiasse, como se eles fossem os
herdeiros legítimos desses antigos heróis, estava a rebaixar a dignidade do nome romano, e que,
pela sua parte, não podia esquecer que, na última Guerra Civil, se tinham declarado contra o
grande Augusto e apoiado esse cobarde traidor de António.
Então, Piso deixou Atenas e navegou para Rodes, a caminho da Síria. Germânico estava também
em Rodes, visitando a Universidade, e a notícia do discurso, que lhe era nitidamente dirigido,
chegou até ele um pouco antes de se avistarem os navios de Piso. Entretanto, levantouse uma
tempestade repentina com vento e chuva e viuse que os navios de Piso estavam em dificuldades.
Duas embarcações mais pequenas afundaramse diante dos olhos de Germânico e a terceira, que
era a de Piso, perdeu os mastros e estava a ser arrastada para as rochas do promontório a norte.
Quem, a não ser Germânico, não teria abandonado Piso à sua sorte? Mas Germânico enviou duas
galeras bem providas de homens que, remando desesperadamente, conseguiram alcançar o barco
antes do embate e rebocálo em segurança para o porto. Ou quem, a não ser um homem tão
depravado como Piso, não teria recompensado o seu salvador com gratidão e devoção para o
resto da vida? Mas a verdade é que Piso ainda se queixou que Germânico tinha atrasado o
salvamento até ao último momento, na esperança de chegar tarde demais; sem parar um dia em
Rodes, afastouse de novo enquanto o mar ainda estava tempestuoso, para chegar à Síria antes de
Germânico.
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Logo que chegou a Antióquia, começou a revisão dos regimentos exactamente no sentido oposto
ao que Germânico tencionava. Em vez de afastar os capitães descuidados e tirânicos, deslocou
para as fileiras todos os oficiais que tinham boas folhas de serviços e nomeou para o lugar deles
malandrins seus favoritos mediante acordo de que uma comissão correspondente a metade
daquilo que conseguissem ganhar com essas nomeações lhe seria paga a ele e sem perguntas.
Assim começou um ano mau para os sírios. Os negociantes nas cidades e os agricultores no
campo tinham que pagar secretamente o dinheiro de protecção aos capitães locais: se recusassem
pagar, haveria uma incursão nocturna de homens mascarados, as suas casas seriam queimadas e
as respectivas famílias assassinadas. A princípio, foram feitos a Piso numerosos apelos contra
este terrorismo pelas guildas da cidade, associações de agricultores e outras entidades. Ele
prometia sempre fazer um inquérito imediato, mas isso nunca acontecia; e os queixosos eram
geralmente encontrados mortos por espancamento no caminho de casa. Uma delegação foi
enviada a Roma, para se informar em privado junto de Sejano se Tibério estava ao corrente do
que se passava e, na afirmativa, se ele o aprovava. Sejano disse aos emissários que Tibério não
sabia de nada oficialmente e que, embora ele lhes prometesse sem dúvida proceder a um
inquérito, Piso já fizera o mesmo, ou não? Talvez que o melhor caminho a tomar, disse, seria
pagarem o dinheiro de protecção que lhes era exigido sem fazer muito alarido. Entretanto, o
padrão de disciplina de acampamento nos regimentos da Síria tinha descido tão baixo, que o
exército de bandidos de Tacfarinas, em comparação, pareceria um modelo de eficiência e
dedicação ao dever. Uma delegação foi também procurar Germânico em Rodes e ele ficou
revoltado e espantado com as revelações. Na sua recente digressão pela Ásia Menor, fizera
questão de se inteirar pessoalmente de todas as queixas de má administração e afastar os
magistrados que tivessem agido de forma ilegal ou opressiva. Depois, escreveu a Tibério,
falandolhe dos relatos que tinham chegado até ele sobre o comportamento de Piso, dizendo que
ia partir imediatamente para a Síria, pedindo permissão para afastálo e para pôr um indivíduo
melhor no lugar dele, mesmo que apenas algumas das queixas fossem justificadas. Tibério
respondeu que também ouvira algumas queixas, mas que pareciam ser infundadas e maliciosas;
ele tinha confiança em Piso como um Governador capaz e justo. Germânico não suspeitava da
desonestidade das palavras de Tibério; por isso, sentiu confirmada a opinião que já fazia dele,
como sendo uma pessoa simples e facilmente influenciável. Lamentou ter escrito a pedir
permissão para fazer aquilo que devia ter feito de imediato sob sua própria responsabilidade.
Entretanto, ouviu outra acusação grave contra Piso, designadamente, que ele estava a conspirar
com Vonones, o rei deposto da Arménia, que estava refugiado na Síria, para
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reconquistar o trono. Vonones era imensamente rico, tendo fugido para a Síria com a maior parte
do conteúdo do tesouro arménio; portanto, Piso esperava darse bem com o negócio. Germânico
partiu imediatamente para a Arménia, convocou uma conferência de nobres e, com as suas
próprias mãos, mas em nome de Tibério, pôs o diadema na cabeça do homem que eles tinham
escolhido para rei. Depois, ordenou a Piso que visitasse a Arménia à frente de dois regimentos
para cumprimentar como vizinho o novo monarca. Ou, se fosse retido por algum assunto de
maior importância, que enviasse o filho. Piso não enviou o filho nem foi pessoalmente.
Germânico, tendo visitado outras províncias distantes e alguns reinos aliados e tendo resolvido aí
todos os assuntos a contento, dirigiuse à Síria e foi procurar Piso no quartel de Inverno do
Décimo Regimento.
Estiveram vários oficiais presentes como testemunhas deste encontro, porque Germânico não
queria que Tibério fosse mal informado sobre aquilo que se disse. Começou, na voz mais gentil
que conseguiu, por pedir a Piso que explicasse a desobediência às ordens. Disse que, se não
houvesse qualquer explicação, a não ser a mesma animosidade pessoal e falta de cortesia que
mostrara no seu discurso em Atenas, nos seus comentários cheios de ingratidão em Rodes e em
várias ocasiões posteriores, um relatório violento teria que ser enviado ao Imperador. Prosseguiu
queixandose que, para tropas que viviam em condições de paz num aquartelamento saudável e
popular, encontrava o Décimo Regimento numa situação de indisciplina e sujidade chocantes.
Piso disse, sorrindo:
Sim, eles estão bem sujos, não estão? O que teria pensado o povo da Arménia se eu os tivesse
enviado para lá como representantes do poder e majestade de Roma? (O poder e majestade de
Roma era uma das frases favoritas do meu irmão.)
Germânico, controlandose com dificuldade, disse que a deterioração parecia datar apenas da
chegada de Piso à província e que iria escrever a Tibério nesse sentido.
Piso fez um pedido irónico de perdão, aliado a um comentário insultuoso sobre os altos ideais da
juventude, que muitas vezes têm que ceder, neste mundo duro, a políticas menos exaltadas mas
mais práticas.
Com o olhar faiscante, Germânico interrompeuo:
Muitas vezes, Piso, mas nem sempre. Amanhã, por exemplo, vou sentarme contigo no tribunal
de apelação e veremos se os altos ideais da juventude são controlados por algum obstáculo; e se a
justiça devida aos habitantes das províncias lhes pode ser negada por qualquer debochado
sexagenário incompetente, avarento e sanguinário.
Assim terminou a entrevista. Piso escreveu imediatamente a Tibério e a Lívia, contando o sucedido. Citou
de tal forma a última frase de
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Germânico, que Tibério acreditou que o debochado sexagenário incompetente, avarento e
sanguinário era ele próprio. Tibério respondeu que tinha a maior confiança em Piso e que se uma
certa pessoa influente continuasse a falar e a agir daquela forma desleal, quaisquer medidas, por
mais ousadas, tomadas por um subordinado para controlar tal deslealdade, seriam sem dúvida
agradáveis ao Senado e ao povo de Roma. Entretanto, Germânico sentouse no tribunal e ouviu
os apelos das gentes da província contra sentenças injustas dos tribunais. A princípio, Piso fez
tudo o que podia para o embaraçar com obstrucionismo legal, mas como Germânico manteve a
paciência e continuou a ouvir os casos sem qualquer interrupção para comer ou descansar,
desistiu dessa política e pretextou não poder continuar a assistir por razões de saúde.
A mulher de Piso, Plancina, tinha inveja de Agripina, porque, como mulher de Germânico, esta
tinha precedência sobre ela em todas as funções oficiais. Engendrou vários insultos mesquinhos
para a aborrecer, principalmente faltas de cortesia por parte de subordinados, que podiam ser
explicadas como tendo sido causadas por acidente ou ignorância. Quando Agripina retaliou,
ignorandoa em público, ela foi ainda mais longe. Uma manhã, na ausência de Piso e Germânico,
apareceu na parada com a cavalaria e fêla realizar uma série de movimentos burlescos diante do
quartelgeneral de Germânico. Fêlos rodopiar pelo meio de um campo de trigo, atacou uma fila
de tendas vazias, que foram feitas às tiras, fez soar todos os toques, desde o Recolher ao alarme
de incêndio, e provocou embates entre esquadrões. Finalmente, fez galopar todo o regimento em
círculos cada vez mais apertados e depois, quando o espaço central não tinha mais de uns
escassos metros, deu ordem de Rodar para a direita, como que para inverter o movimento. Muitos
cavalos caíram, atirando ao chão os seus cavaleiros. Nunca se vira tal confusão em toda a história
das manobras de cavalaria. Os indivíduos mais desordeiros aumentaramna, espetando punhais
nos cavalos dos vizinhos para os fazer empinar ou pondose a lutar em cima da sela. Vários
homens receberam coices violentos ou partiram as pernas, por os cavalos terem caído em cima
deles. Um homem foi levantado já morto. Agripina enviou um jovem oficial do estadomaior
para pedir a Plancina que parasse de fazer figuras ridículas à custa dela própria e do Exército.
Plancina ripostou, parodiando as palavras corajosas da própria Agripina na ponte do Reno: ”Até
que o meu marido regresse, eu assumo o comando da cavalaria. Estou a preparálos para a
próxima invasão da Partia.” Alguns embaixadores partos acabavam na realidade de chegar ao
acampamento e observavam este espectáculo com espanto e desprezo.
Vonones, antes de ser rei da Arménia, tinha sido rei da Partia, de onde fora expulso rapidamente.
O seu sucessor tinha enviado aqueles embaixadores a Germânico para propor que a aliança entre
Roma e a Partia fosse
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renovada e para dizer que, em honra de Germânico, ele iria até ao Rio Eufrates (a fronteira entre
a Síria e a Partia) para o saudar. Entretanto, solicitava que não fosse permitido a Vonones
continuar na Síria, onde lhe seria fácil manter uma correspondência traiçoeira com certos nobres
partos. Germânico replicou que, como representante de seu pai, o Imperador, teria o maior prazer
em se encontrar com o rei e renovar a aliança e que afastaria Vonones para qualquer outra
província. Assim, Vonones foi enviado para a Cilícia e as esperanças de Piso de fazer fortuna
desvaneceramse. Plancina estava tão furiosa como o marido; Vonones vinhaa presenteando
quase diariamente com belas jóias.
No início do ano seguinte, Germânico recebeu notícias de grande escassez no Egipto. A última
colheita não tinha sido boa, mas ainda havia bastante trigo de dois anos antes armazenado nos
celeiros. Os grandes corretores de trigo mantinham o preço alto, pondo apenas quantidades muito
pequenas no mercado. Germânico navegou de imediato para Alexandria e obrigou os corretores a
vender por um preço razoável todo o trigo que era necessário. Sentiase satisfeito por ter aquela
desculpa para visitar o Egipto, que o interessava ainda mais que a Grécia. A cidade de Alexandria
era então, tal como agora, o verdadeiro centro cultural do mundo e ele mostrou o respeito que
nutria pelas suas tradições entrando na cidade com um trajo grego simples, descalço e sem guarda
pessoal. De Alexandria navegou Nilo acima, visitando as pirâmides e a Esfinge, as ruínas
gigantescas da Tebas egípcia, uma antiga capital, e a enorme estátua de Mémnon em pedra (cujo
peito é oco e que, pouco depois do sol nascer, começa a cantar, porque o ar nessa concavidade
aquece e sobe pela garganta em forma de tubo). Chegou até às ruínas de Elefantina, mantendo um
diário cuidadoso de todas as suas viagens. Em Mênfis, visitou a área de recreio do grande Deus
Ápis, encarnado como um touro com marcas peculiares; mas Ápis não lhe deu qualquer sinal
encorajador e afastouse dele logo que se encontraram frente a frente, entrando para o estábulo
maléfico. Agripina estava com ele, mas Calígula tinha sido deixado em Antióquia ao cuidado de
um tutor, como castigo pela sua contínua desobediência.
Germânico não podia agora fazer nada que não encorajasse as suspeitas de Tibério a seu respeito;
mas a ida ao Egipto foi o pior erro que alguma vez cometeu. Vou explicar porquê. Augusto,
compreendendo logo no início do seu reinado que Roma dependia agora sobretudo do Egipto
para o seu abastecimento de trigo e que o Egipto, se caísse nas mãos de um aventureiro, podia ser
defendido com êxito por um exército bem pequeno, tinha decretado como um preceito do
governo que nenhum cavaleiro ou senador romano podia, a partir daí, ser autorizado a visitar a
província sem uma autorização expressa dele próprio. Era aceite, de uma maneira geral, que a
mesma regra se mantinha sob a governação de
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Tibério. Mas Germânico, alarmado com os relatos da escassez de trigo no Egipto, não perdera
tempo à espera de obter permissão para ir até lá. Tibério tinha agora a certeza de que Germânico
se preparava para desferir o golpe que adiara por tanto tempo: certamente, fora para o Egipto para
conquistar a guarnição local para o seu lado; o passeio Nilo acima tinha sido apenas uma
desculpa para visitar a guarda da fronteira; de uma maneira geral tinha sido um grande erro
mandálo para Leste. Apresentou uma queixa pública no Senado por aquela infracção tão ousada
das recomendações estritas de Augusto.
Quando Germânico regressou à Síria, sentindose muito magoado com a reprimenda de Tibério,
descobriu que todas as ordens que dera aos regimentos e às cidades tinham sido ou ignoradas ou
ultrapassadas por outras, contraditórias, vindas de Piso. Repetiu as ordens iniciais e agora, pela
primeira vez, deu a conhecer publicamente o seu desagrado
Imediatamente executou uma proclamação, segundo a qual todas as ordens emanadas de Piso
durante a sua ausência no Egipto eram por aquele meio canceladas e que, até informação em
contrário, nenhuma ordem assinada por Piso seria válida na província, a menos que endossada
por ele próprio. Mal acabara de assinar esta proclamação, caía doente. Tinha o estômago de tal
forma desarranjado, que não conseguia conservar nada nele. Suspeitou que a sua comida
estivesse a ser envenenada e tomou todas as precauções possíveis contra isso. Agripina
preparavalhe ela própria as refeições e ninguém do pessoal da casa tinha qualquer possibilidade
de manipular a comida antes ou depois de cozinhada. Mas demorou algum tempo antes que
estivesse suficientemente restabelecido para sair da cama e sentarse recostado numa cadeira. A
fome tornoulhe o sentido do olfacto anormalmente agudo e ele disse que havia um cheiro a
morte na casa. Ninguém mais o sentia e Agripina, a princípio, considerou a queixa como uma
fantasia de doente. Mas ele insistiu. Dizia que o cheiro se tornava pior de dia para dia.
Finalmente, a própria Agripina apercebeuse dele. Parecia estar em todos os quartos. Queimou
incenso para limpar o ar, mas o cheiro persistiu. O pessoal de casa ficou alarmado e sussurrava
que havia bruxas em acção.
Germânico sempre fora extremamente supersticioso, como todos os membros da nossa família,
excepto eu: sou só um pouco supersticioso. Germânico não só acreditava que certos dias ou
presságios traziam sorte ou azar, mas criara ele próprio uma rede completa de superstições só
suas. O número dezassete e o cantar dos galos à meianoite eram as duas coisas que mais o
perturbavam. Considerava como um sinal altamente desafortunado o facto de, tendo conseguido
recuperar as Águias perdidas do Décimo Oitavo e Décimo Nono Regimentos, o terem feito
regressar da Germânia antes de conseguir recuperar a do Décimo Sétimo. Aterrorizavao a magia
negra do tipo usado pelas bruxas tessalianas e dormia
242
sempre com um
talismã, que delas o protegia, debaixo da almofada: uma figura de jaspe verde da deusa Hécate (a
única que tem poder sobre bruxas e fantasmas), representada com uma tocha numa das mãos e as
chaves do inferno na outra.
Suspeitando que Plancina estivesse a praticar bruxaria contra ele ela tinha fama de bruxa, fez um
sacrifício propiciatório de nove cachorrinhos negros a Hécate; essa era a atitude a seguir, quando
se era vítima de tais situações. No dia seguinte, um escravo relatou, com o terror estampado na
face, que, quando estava a lavar o chão no vestíbulo, tinha reparado que havia um ladrilho solto e,
ao levantálo, tinha encontrado por baixo o que parecia ser o cadáver nu e em decomposição de
um bebé, com a barriga pintada de vermelho e cornos atados à testa. Foi feita uma busca imediata
em todos os quartos, de onde resultou uma dúzia de achados igualmente sinistros debaixo de
ladrilhos ou em nichos escavados nas paredes atrás das cortinas. Incluíam o cadáver de um gato
com asas rudimentares a cresceremlhe nas costas e a cabeça de um negro com a mão de uma
criança a sairlhe da boca. Com cada uma destas relíquias horrendas havia uma pequena placa de
chumbo com o nome de Germânico. A casa sofreu uma limpeza ritual e Germânico começou a
recuperar a alegria, embora o estômago continuasse a darlhe problemas.
Pouco tempo depois, começaram as assombrações na casa. Penas de galo sujas de sangue foram
encontradas no meio das almofadas e símbolos nefastos foram rabiscados a carvão nas paredes,
por vezes tão baixos que pareciam ter sido escritos por um anão, outras vezes tão altos como se
um gigante os tivesse escrito um homem enforcado, a palavra Roma de pernas para o ar, uma
doninha; e, embora só Agripina soubesse da sua superstição pessoal com o número dezassete,
este número aparecia constantemente. Depois, apareceu o nome de Germânico de pernas para o
ar, cada dia com uma letra a menos. Teria sido possível a Plancina esconder amuletos na casa
durante a sua ausência no Egipto, mas para estas assombrações continuadas não havia explicação.
Os criados não eram suspeitos, porque as palavras e os sinais apareciam escritos em quartos aos
quais eles não tinham acesso, e num quarto fechado com uma janela demasiado pequena para que
um homem conseguisse passar por ele, cobriam as paredes desde o chão até ao tecto. A única
consolação de Germânico era a coragem com que Agripina e o pequeno Calígula se
comportavam. Agripina fazia todos os possíveis por aligeirar as assombrações e Calígula dizia
que se sentia seguro, porque um bisneto do Deus Augusto não podia ser afectado por bruxas, e
que, se se encontrasse com uma bruxa, a atravessaria com a sua espada. Mas Germânico viuse
forçado a ficar novamente de cama. A meio da noite que se seguiu ao dia em que apenas
restavam três letras do seu nome, Germânico foi acordado pelo barulho do cantar de um galo.
Fraco como estava, saltou
243
da cama, pegou na espada e correu para o quarto ao lado, onde Calígula e Lésbia dormiam. Aí, viu um
grande galo negro com um anel dourado em volta do pescoço, cantando como se quisesse acordar os
mortos. Tentou cortarlhe a cabeça, mas ele saíu voando pela janela. Germânico desmaiou. Agripina, de
alguma forma, conseguiu leválo de volta para a cama, mas, quando recuperou a consciência, ele disselhe
que estava condenado.
Não enquanto tiveres a tua Hécate contigo, disse ela. Tacteou a figura debaixo da almofada e a sua
coragem voltou.
Quando chegou a manhã, escreveu uma carta a Piso, à velha maneira romana, declarando uma guerra
privada entre ambos; ordenandolhe que abandonasse a província e desafiandoo a fazer o pior que
conseguisse. Piso, no entanto, já se tinha feito ao mar e estava agora em Quios, aguardando notícias da
morte de Germânico e pronto para regressar e governar a província logo que a notícia chegasse até ele. O
meu pobre irmão estava a ficar mais fraco de uma hora para a outra. No dia seguinte, enquanto Agripina
estava ausente do quarto e ele jazia meio insensível, sentiu um movimento debaixo da almofada. Voltou
se e procurou o amuleto, aterrorizado. Tinha desaparecido e não havia ninguém no quarto.
No dia seguinte, reuniu os seus amigos e disselhes que estava a morrer e que Piso e Plancina eram os seus
assassinos. Encarregouos de dizer a Tibério e a Castor o que lhe tinham feito e imploroulhes que
vingassem a sua morte cruel.
E dizei ao povo de Roma, acrescentou, que confio à sua guarda a minha querida esposa e os meus seis
filhos e que não devem acreditar em Piso nem em Plancina, se eles fingirem que receberam instruções
para me matarem; ou, se nisso acreditarem, não devem por essa razão perdoarlhes.
Morreu no dia nove de Outubro, o dia em que apenas a letra C era visível na parede do quarto em frente
da cama, e ao décimo sétimo dia de doença. O seu corpo devastado foi exposto na praça do mercado em
Antióquia, para que toda a gente pudesse ver a borbulhagem vermelha na barriga e as unhas azuladas. Os
seus escravos foram submetidos a tortura. Também os libertos foram interrogados à vez, cada um durante
vinte e quatro horas seguidas e sempre por inquiridores diferentes; no final, estavam de tal forma
destruídos espiritualmente que, se soubessem alguma coisa, certamente a teriam revelado, só para serem
deixados em paz. O máximo que foi possível descobrir, no entanto, quer pelos libertos quer pelos
escravos, foi que uma bruxa notória, uma tal Martina, tinha sido vista com frequência na companhia de
Plancina e que tinha mesmo estado na casa um dia com Plancina, quando ninguém lá estava a não ser
Calígula. E que uma tarde, pouco antes do regresso de Germânico, a casa
244
tinha ficado guardada apenas por um velho porteiro surdo, porque todo o restante pessoal tinha ido ver
uma luta de gladiadores exibida por Piso no anfiteatro local. No entanto, não havia qualquer explicação
natural para o galo, para a escrita nas paredes ou para o desaparecimento do talismã.
Houve um encontro de comandantes de regimento e de todos os outros romanos de posição na Província,
para designar um Governador temporário. Foi escolhido o Comandante do Sexto Regimento. Ele prendeu
imediatamente Martina e mandoua sob escolta para Roma. Se Piso fosse levado a julgamento, ela seria
uma das testemunhas mais importantes.
Quando soube que Germânico estava morto, Piso, em vez de esconder a sua alegria, ofereceu sacrifícios
de acção de graças nos templos. Plancina, que perdera recentemente uma irmã, foi ao ponto de tirar o luto
e voltar a pôr as suas roupas mais alegres. Piso escreveu a Tibério dizendo que só tinha sido afastado do
seu posto de Governador, para o qual fora pessoalmente designado por Tibério, por causa da sua oposição
destemida aos desígnios traiçoeiros de Germânico contra o Estado; ia regressar agora à Síria para
reassumir o comando. Também se referiu à luxúria e insolência de Germânico. Na realidade, ele tentou
regressar à Síria e conseguiu mesmo algumas tropas que o apoiassem, mas o novo governador cercou a
fortaleza na Cilícia, que ele tinha transformado no seu baluarte, forçandoo a renderse e enviandoo para
Roma para responder às acusações que, certamente, ali seriam apresentadas contra ele.
Entretanto, Agripina navegara para Itália com os dois filhos e as cinzas do marido numa urna. Em Roma, a
notícia da sua morte causara um tal desgosto que era como se cada casa na cidade tivesse perdido o seu
membro mais amado. Três dias completos, embora não houvesse decreto do Senado ou ordem dos
magistrados nesse sentido, foram consagrados ao luto público: lojas fechadas, tribunais desertos, não se
realizou qualquer espécie de negócio, todos estavam de luto. Ouvi um homem na rua dizer que era como
se o sol se tivesse posto para não voltar a nascer. Sobre a minha própria dor, não consigo escrever.
245
CAPíTULO XXI
Lívia e Tibério fecharamse nos seus palácios e fingiram estar tão abalados com o desgosto que não
podiam mostrar os rostos em público. Agripina deveria ter vindo por terra, porque o Inverno já tinha
começado e a época da navegação terminara. Mas, apesar das tempestades, fezse ao mar; alguns dias
mais tarde alcançou Corfu, de onde se demora
apenas um dia, com uma brisa favorável, para alcançar o porto de Brindisi. Aqui ela descansou um pouco,
enviando mensageiros à frente para avisar que vinha colocarse sob a protecção do povo de Itália. Castor,
que estava agora de regresso a Roma, os seus outros quatro filhos e eu próprio, saímos de Roma para ir ao
encontro dela. Tibério tinha enviado imediatamente dois batalhões da Guarda para o porto, com instruções
para que os magistrados dos distritos da província por onde as cinzas passassem prestassem ao seu filho
morto os últimos respeitos. Quando Agripina desembarcou, recebida com um silêncio respeitoso por uma
enorme multidão, a urna foi posta sobre um carro fúnebre e transportada para Roma aos ombros dos
oficiais da Guarda. Os estandartes do batalhão não apresentavam condecorações, como sinal de
calamidade pública, e os machados e bastões eram transportados em posição invertida. Quando a
procissão, composta por muitos milhares, passou pela Calábria, Apúlia e Campânia, todos vieram em
bando, a gente do campo vestida de negro, os cavaleiros com mantos púrpura, com lágrimas e lamentos
sonoros, queimando ofertas de perfumes para o fantasma do seu herói morto.
Encontrámonos com a procissão em Terracina, cerca de sessenta milhas a sudeste de Roma, onde
Agripina, que tinha caminhado de olhos secos e rosto de mármore, sem dirigir palavra a ninguém todo o
caminho desde Brindisi, deixou que o seu desgosto jorrasse livremente ao ver os quatro filhos sem pai.
Gritou para Castor:
Pelo amor que tinhas pelo meu querido marido, jura que defenderás as vidas dos seus filhos com a tua
própria e que vingarás a sua morte! Foi a sua última recomendação para ti.
Castor, chorando, talvez pela primeira vez desde a infância, jurou que aceitaria o encargo.
Se perguntardes porque razão Livila não nos acompanhou, a resposta é que ela acabava de dar à luz
gémeos: dos quais, a propósito, Sejano
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parece ter sido o pai. Se perguntardes porque razão a minha mãe não foi, a resposta é que Tibério
e Lívia não lhe permitiram sequer assistir ao funeral. Se o desgosto avassalador os impedia a eles
próprios de estarem presentes, como avó e pai adoptivo do falecido, era nitidamente impossível
para ela, como sua mãe, comparecer. E foram sensatos em não se ter mostrado. Se o tivessem
feito, mesmo fingindose desgostosos, teriam certamente sido atacados pela populaça, e eu penso
que a Guarda se teria deixado ficar, sem levantar um dedo para os proteger. Tibério não se tinha
dado ao trabalho de fazer sequer os preparativos que eram habituais nos funerais de pessoas
muito menos distintas: as máscaras de família dos Claudianos e dos Julianos não apareceram,
nem a habitual efígie do próprio morto, deitado numa cama; não foi feito o discurso fúnebre da
Plataforma de Oratória; não se cantaram hinos fúnebres. A desculpa de Tibério foi que o funeral
já tinha sido celebrado na Síria e que os Deuses ficariam ofendidos se os rituais fossem repetidos.
Mas nunca em Roma houve uma demonstração de desgosto de tal forma unânime e sincera como
nessa noite. Os Campos de Marte estavam iluminados com todas as tochas e a multidão reuniase
em volta do túmulo de Augusto, sobre o qual a urna foi reverentemente colocada por Castor; era
tão densa que muitas pessoas morreram esmagadas. Por toda a parte as pessoas diziam que Roma
estava perdida, que não restava mais esperança, pois Germânico fora o seu último baluarte contra
a opressão. Agora, tinha sido vilmente assassinado. Por toda a parte Agripina foi louvada e
lamentada, tendo sido feitas oferendas pela segurança dos seus filhos.
Tibério fez uma proclamação alguns dias mais tarde, dizendo que, embora muitos romanos
ilustres tivessem morrido pelo bem comum, nenhum tinha sido tão universalmente e
veementemente lamentado como o seu querido filho. Mas era agora tempo do povo se recompor
e regressar aos seus trabalhos diários: os príncipes eram mortais, mas a pátria era imortal. Apesar
disso, o Festival do Dia dos Bobos, em finais de Dezembro, passou sem os gracejos e as alegrias
habituais e só por altura do Festival da Grande Mãe, em Abril, é que o luto terminou e os
assuntos públicos normais foram retomados. As suspeitas de Tibério estavam agora concentradas
em Agripina. Ela visitouo no Palácio na manhã a seguir ao funeral e disselhe, sem medo, que o
consideraria responsável pela morte do marido até que ele provasse a sua inocência e se vingasse
em Piso e Plancina. Ele interrompeu bruscamente a entrevista, citandolhe versos gregos:
se não fores rainha, minha querida, Sentirteás injustiçada?
248
Piso não regressou a Roma durante algum tempo. Enviou o filho à frente para interceder por ele junto
de Tibério, enquanto ele próprio foi visitar Castor, que estava agora de novo com as legiões do Danúbio.
Esperava que Castor se mostrasse grato para com ele por ter afastado um herdeiro rival à monarquia e
pronto a acreditar na história da traição de Germânico. Castor recusouse a recebêlo e disse publicamente
ao mensageiro de Piso que, se os rumores correntes fossem verdadeiros, era sobre Piso que ele teria que
infligir a vingança que jurara pela morte do seu querido irmão e que seria aconselhável que Piso se
mantivesse longe até ter estabelecido plenamente a sua inocência. Tibério recebeu o filho de Piso sem
nenhuma gentileza particular, mas também sem qualquer desfavor, como que para mostrar que continuaria
numa posição de imparcialidade até que tivesse sido feito um inquérito público sobre a morte de
Germânico. Por fim, Piso apareceu em Roma com Plancina. Vieram navegando pelo Tibre e
desembarcaram com uma série de apoiantes junto do túmulo de Augusto, onde quase provocaram um
motim, pavoneandose com grandes sorrisos pelo meio da multidão hostil que não tardou a reunirse e
instalandose numa carruagem enfeitada puxada por uma parelha de belos cavalos brancos franceses, que
os aguardava na estrada Flamínia. Piso tinha uma casa que dava para a Praça do Mercado e esta também
estava enfeitada. Convidou todos os seus amigos e parentes para um banquete celebrando o seu regresso e
causou bastante confusão: simplesmente para mostrar ao povo de Roma que não tinha medo e que contava
com o apoio de Tibério e Lívia. Tibério tinha planeado que Piso fosse acusado no tribunal Criminal
Ordinário por um certo senador em quem se podia confiar, para o fazer de um modo tão desajeitado,
contradizendose a si próprio e negligenciando a apresentação de provas consistentes para apoiar as
acusações, que o processo só podia terminar com a absolvição. Mas os amigos de Germânico,
especialmente os três senadores que o tinham acompanhado na Síria e regressado com Agripina,
opuseramse à escolha de Tibério. Este, acabou por ser obrigado a julgar ele próprio o caso, e ainda por
cima no Senado, onde os amigos de Germânico podiam contar com todo o apoio de que precisavam. O
Senado tinha votado uma série de honras excepcionais à memória de Germânico cenotáfios, arcos
memoriais, rituais semidivinos , que Tibério não tinha ousado vetar.
Castor regressara uma vez mais do Danúbio e, embora uma ovação (ou um triunfo menor) lhe tivesse sido
decretada pela forma como tratara do caso Marobodo, entrou na Cidade a pé como qualquer cidadão
privado e não a cavalo e com uma coroa na cabeça. Depois de visitar o pai, foi directamente procurar
Agripina e juroulhe que podia contar com ele para que se fizesse justiça.
249
Piso pediu a quatro senadores que o defendessem; três deles desculparamse, pretextando doença ou
incapacidade; o quarto, Caio, disse que nunca defendia ninguém de uma acusação de assassinato, a menos
que houvesse pelo menos uma probabilidade de agradar à família imperial. Calpúrnio Piso, embora não
tivesse estado presente no banquete do tio, ofereceuse para o defender pela honra da família e três outros
juntaramse posteriormente a ele, porque tinham a certeza que Tibério absolveria Piso, fossem quais
fossem as provas, e que seriam recompensados mais tarde pela sua participação no julgamento. Piso
sentiuse satisfeito por ser julgado pelo próprio Tibério, porque Sejano lhe garantira que seria tudo
devidamente controlado; Tibério ia fingir ser muito severo mas, no fim, adiaria o julgamento sine die, para
aguardar novas provas. Martina, a principal testemunha, já tinha sido afastada estrangulada por agentes
de Sejano e a acusação tinha agora um caso pouco consistente.
A acusação apenas dispôs de dois dias e o homem que tinha sido originariamente encarregado de baralhar
as coisas para bem de Piso adiantouse e fez todos os possíveis para usar todo esse tempo apresentando
acusações vazias contra ele de mau governo e corrupção na Hispânia, no tempo de Augusto. Tibério
deixouo continuar com aquelas acusações irrelevantes durante horas, até que os elementos do Senado,
arrastando os pés, tossindo e fazendo chocar as tabuinhas de escrever, o preveniram de que as principais
testemunhas tinham que ser ouvidas, senão haveria problemas. Os quatro amigos de Germânico tinham o
seu caso bem preparado e, cada um por sua vez, ergueramse e testemunharam sobre a corrupção que Piso
imprimira à disciplina militar na Síria, o seu comportamento insultuoso com Germânico, e com eles
próprios, a sua desobediência às ordens, as intrigas com Vonones, a opressão das gentes da província.
Acusaramno de assassinar Germânico com veneno e bruxaria, de oferecer sacrifícios de acção de graças
pela sua morte e, finalmente, de ter feito um ataque armado à Província com tropas privadas ilegalmente
recrutadas.
Piso não negou as acusações de corrupção da disciplina militar, de insultar e desobedecer a Germânico ou
de oprimir a população da província; disse apenas que elas eram exageradas. Mas negou com indignação a
acusação de usar venenos e bruxaria. Os acusadores não mencionaram os acontecimentos sobrenaturais de
Antióquia, com medo de encorajarem risos cépticos, como também não podiam acusar Piso de interferir
com os criados e escravos da casa de Germânico, porque já tinha sido provado que eles não tinham nada a
ver com o assassinato. Assim, Piso foi acusado de envenenar a comida de Germânico enquanto estava
sentado ao lado dele num banquete na casa do próprio Germânico. Piso ridicularizou esta acusação: como
podia ter feito uma coisa dessas sem que alguém o
250
notasse, quando todos os presentes, para não falar nos criados, observavam cada um dos seus
movimentos? Por meio de magia, talvez?
Ele tinha um maço de cartas na mão que todos sabiam, pelo tamanho, pela cor e pela maneira como
estavam atadas, que eram de Tibério. Os amigos de Germânico lançaram uma moção que quaisquer
instruções que Piso tivesse recebido de Roma deviam ser lidas. Piso recusouse a ler as cartas, alegando
que estavam seladas com o selo da Esfinge (originariamente de Augusto), o que as tornava secretas e
confidenciais: lêlas seria uma traição. Tibério pronunciouse contra a moção, dizendo que seria perda de
tempo ler as cartas, que nada continham de importância. O Senado não conseguiu levar a sua avante. Piso
entregou as cartas a Tibério, como sinal de que confiava nele para lhe salvar a vida.
Lá fora, ouviramse sons irados vindos da multidão, que ia sendo informada do progresso do julgamento;
um homem, com uma voz potente e roufenha, gritou através de uma janela:
Ele pode escaparvos a vós, senhores, mas a nós não escapará! Um mensageiro veio dizer a Tibério que
algumas estátuas de Piso tinham sido agarradas pela multidão e estavam a ser arrastadas para a Escada das
Lamentações, para serem feitas em pedaços. A Escada das Lamentações era um lanço de escadas na base
do Monte Capitolino, onde os cadáveres dos criminosos eram normalmente expostos antes de serem
arrastados por um gancho espetado na garganta até ao Tibre, para onde eram atirados. Tibério ordenou que
as estátuas fossem recolhidas e postas de novo nos seus pedestais. Mas queixouse que não podia
continuar a julgar um caso em tais condições e adiouo para o fim da tarde. Piso foi levado dali sob
escolta.
Plancina, que até então se gabava de que partilharia o destino do marido fosse ele qual fosse, e se
necessário morreria com ele, começou a ficar alarmada. Decidiu fazer a sua defesa separadamente e
contou com Lívia, com quem tivera uma relação estreita, para a livrar. Piso não sabia nada desta traição.
Quando o julgamento recomeçou, Tibério não lhe deu qualquer mostra de simpatia e, embora dissesse aos
acusadores que deviam ter apresentado provas de envenenamento mais conclusivas, preveniu Piso de que
a tentativa armada para recuperar a sua província nunca poderia ser perdoada. Em casa, nessa noite, Piso
fechouse no quarto e foi encontrado na manhã seguinte ferido de morte e com a espada ao lado. Não foi,
na realidade, um suicídio.
Piso tinha guardado a carta mais incriminatória de todas, uma que lhe tinha sido escrita por Lívia mas em
nome de Tibério e dela própria, e sem estar selada com o selo da Esfinge (que Tibério reservava para seu
uso pessoal). Ele disse a Plancina que negociasse as suas vidas com essa carta. Plancina foi procurar Lívia.
Lívia disselhe que esperasse enquanto consultava Tibério. Lívia e Tibério tiveram nessa altura o seu
primeiro
251
desentendimento declarado. Tibério ficou furioso com Lívia por ter escrito a carta e Lívia disse que era
culpa dele, por não a autorizar a usar o selo da Esfinge, queixandose de que se vinha comportando de
forma muito insolente para com ela. Tibério perguntou quem era o Imperador, ele ou ela? Lívia disse que,
se era ele, era com a conivência dela e que era insensato tratála dessa forma porque, da mesma forma que
arranjara maneira de o fazer subir, também saberia arranjar maneira de lhe causar a destruição. Tirou uma
carta da bolsa e começou a lêla: era uma velha carta que Augusto lhe escrevera durante a ausência de
Tibério em Rodes, acusandoo de traição, crueldade e bestialidade e dizendo que, se não fosse filho dela,
não teria nem mais um dia de vida.
Isto é apenas uma cópia, disse tenho o original bem guardado. É apenas uma de muitas cartas do
mesmo teor. Não gostarias que circulassem pelo senado, pois não?
Tibério controlouse e pediu desculpas pelo seu mau humor: disse que era claro que ela e ele eram
capazes de se arruinar um ao outro e que, portanto, era absurdo discutirem. Mas como poderia poupar a
vida de Piso, especialmente depois de ter dito que, se a acusação de organizar um exército privado e tentar
reconquistar a Síria com elas fosse provada, isso significaria pena de morte, sem qualquer esperança de
perdão?
Plancina não organizou nenhum exército, pois não?
Não vejo o que é que isso tem a ver com o caso. Não consigo recuperar a carta das mãos de Piso apenas
com a promessa de poupar Plancina.
Se prometeres poupar Plancina, eu consigo tirar a carta a Piso; deixa isso comigo. Se Piso for morto, isso
irá satisfazer a opinião pública. E se tens medo de poupar Plancina à tua responsabilidade, podes dizer que
fui eu que intercedi por ela. É justo, porque admito que foi uma carta que eu escrevi que provocou toda
esta confusão.
Assim, Lívia foi ter com Plancina e disselhe que Tibério se recusava a dar ouvidos à razão e que preferia
sacrificar a própria mãe ao ódio popular, do que arriscar a pele ficando do lado dos amigos. Tudo o que
tinha conseguido dele, ainda que contrariado, disse, era uma promessa de perdão para ela, se a carta lhe
fosse entregue. Assim, Plancina foi ter com Piso com uma carta em nome de Tibério, forjada por Lívia,
dizendo que tinha arranjado tudo da melhor maneira e que ali estava a promessa de absolvição. Quando
Piso lhe entregou a outra carta, em troca, ela esfaqueouo de repente na garganta com um punhal.
Enquanto ele jazia agonizante, mergulhou a ponta da espada do marido no sangue, cerroulhe a mão em
volta do punho e deixouo. Levou a carta e a promessa forjada de novo a Lívia, como combinado.
No Senado, no dia seguinte, Tibério leu uma declaração que disse ter sido feita por Piso antes de se
suicidar, proclamando a sua completa inocência dos crimes de que era acusado, protestando a sua lealdade
a
252
Lívia e a ele próprio e implorando a sua protecção para os filhos, que não tinham de forma alguma tomado
parte nos acontecimentos que levaram à sua depreciação. Começou então o julgamento de Plancina. Ficou
provado que ela tinha sido vista na companhia de Martina, e a reputação de Martina como envenenadora
era facto jurado, tendose verificado, quando o corpo de Martina estava a ser preparado para o funeral, que
um frasco de veneno fora encontrado atado aos seus cabelos. O velho Pompónio, ordenança de
Germânico, testemunhou quanto às horríveis relíquias pútridas espalhadas pela casa e quanto à visita de
Plancina, acompanhada de Martina, na ausência de Germânico; e, quando interrogado por Tibério, deu
provas detalhadas dos assombramentos. Ninguém apareceu a defender Plancina. Ela protestou inocência
com lágrimas e juramentos e disse que não sabia da reputação de Martina como envenenadora e que a sua
única ligação com ela fora a compra de perfumes. Disse que a mulher que tinha ido com ela a casa de
Germânico não era Martina, mas sim a mulher de um dos coronéis. E que certamente era um acto inocente
ir fazer uma visita e não encontrar ninguém em casa, a não ser um rapazinho. Quanto aos seus insultos a
Agripina, estava profundamente arrependida e pedialhe humildemente perdão, mas estava a obedecer a
ordens do marido, como é o dever de uma esposa. Ainda por cima, o marido disseralhe que Agripina
andava a conspirar com Germânico contra o Senado; por isso, fizera ainda com mais vontade aquilo que
era esperado dela.
Tibério fez o ponto de situação. Disse que parecia haver certas dúvidas quanto à culpabilidade de
Plancina. A sua ligação com Martina parecia provada e o mesmo acontecia com a reputação de Martina
como envenenadora. Mas, se se tratava de uma ligação culposa, era uma pergunta em aberto. A acusação
nem sequer apresentara em tribunal o frasco encontrado no cabelo de Martina ou qualquer prova de que o
conteúdo do mesmo era venenoso: podia ter sido uma poção sonífera ou afrodisíaca. Sua mãe Lívia tinha
boa opinião do carácter de Plancina e desejava que o Senado lhe desse o benefício da dúvida, caso a prova
de culpa não fosse conclusiva; o fantasma do seu amado neto tinhalhe aparecido num sonho, pedindolhe
que não permitisse que os inocentes sofressem pelos crimes de um marido ou pai.
Assim, Plancina foi absolvida e, dos filhos de Piso, um foi autorizado a herdar o espólio do pai e o outro,
que participara da luta na Cilícia, foi simplesmente exilado por alguns anos. Um senador propôs que
fossem apresentados agradecimentos públicos à família do herói morto Tibério, Lívia, minha mãe
Antónia, Agripina e Castor , por terem vingado a sua morte. Esta moção estava prestes a ser votada
quando um amigo meu, um excônsul que tinha sido Governador de África antes de Fúrio, se levantou
para fazer uma correcção. A moção, objectou, não estava em
253
ordem: tinha sido omitido um nome importante, o do irmão do herói morto, Cláudio, que tinha feito mais
do que qualquer outra pessoa para preparar o caso para a acusação e para proteger as testemunhas de
serem molestadas. Tibério encolheu os ombros e disse que estava surpreendido por saber que me tinham
pedido qualquer colaboração e que talvez, se isso não tivesse acontecido, as acusações contra Piso
tivessem sido apresentadas com maior clareza (era verdade que eu tinha presidido a uma reunião dos
amigos do meu irmão e decidido quais as provas que cada testemunha deveria apresentar; tinhaos de
facto aconselhado a não acusar Piso de ministrar veneno no banquete com as suas próprias mãos, mas eles
tinham recusado. E tinha mantido Pompónio, o neto deste e três dos libertos do meu irmão escondidos em
segurança numa herdade perto da minha villa em Cápua, até ao dia do julgamento. Tinha tentado também
esconder Martina na casa de um mercador meu conhecido, em Brindisi, mas Sejano descobriua). Bom,
Tibério deixou que o meu nome fosse incluído no voto de agradecimento; mas isso pouco significou para
mim, comparado com os agradecimentos de Agripina: ela disse que agora compreendia o que Germânico
queria dizer quando declarou, pouco antes de morrer, que o amigo mais verdadeiro que alguma vez tivera
era o seu pobre irmão Cláudio.
Os sentimentos contra Lívia eram tão fortes, que Tibério fez disso uma desculpa perante ela para mais
uma vez, não pedir ao Senado que lhe votasse o título que lhe tinha prometido tantas vezes. Todos
queriam saber qual era o significado de uma avó conceder entrevistas benevolentes à assassina do neto e
salvála da vingança do Senado. A resposta só podia ser que a avó tinha instigado ela mesma o assassinato
e que estava de tal forma envergonhada de si mesma, que a mulher e os filhos da vítima não lhe
sobreviveriam por muito tempo.
254
CAPÍTULO XXII
Germânico estava morto, mas Tibério não se sentia muito mais seguro do que antes. Sejano veio
procurálo com histórias sobre o que este ou aquele homem proeminente tinha sussurrado contra
ele durante o julgamento de Piso. Em vez de dizer, como dissera uma vez dos seus soldados, ”que
importa que tenham medo de mim, desde que me obedeçam”, disse agora a Sejano: ”que me
importa que me odeiem, desde que tenham medo de mim.” A três cavaleiros e dois senadores,
que tinham sido absolutamente sinceros nas suas críticas recentes a seu respeito, condenouos à
morte sob a acusação absurda de terem mostrado prazer ao ouvir dizer que Germânico estava
morto.
Por esta altura, o filho mais velho de Germânico, Nero, atingiu a maioridade e, embora mostrasse
poucas promessas de vir a ser um soldado tão capaz ou um administrador tão talentoso como o
pai, tinha muito da sua beleza física e doçura de carácter e a Cidade esperava muito dele. Houve
grande regozijo popular quando ele casou com a filha de Castor e Livila, a quem a princípio
chamávamos Helena por causa da sua surpreendente beleza (o seu nome verdadeiro era Júlia),
mas depois Heluo, o que significa Glutona, porque ela estragou a sua beleza comendo
excessivamente. Nero era o favorito de Agripina. A família estava dividida, sendo de origem
claudiana, em bons e maus; ou, usando as palavras da balada maçãs azedas e doces, as maçãs
azedas eram mais numerosas que as doces. Dos nove filhos que Agripina deu a Germânico, três
morreram novos duas raparigas e um rapaz e, por aquilo que vi deles, este rapaz e a rapariga mais
velha eram os melhores dos nove. O rapaz, que morreu no dia do seu oitavo aniversário, era de
tal forma um favorito de Augusto que o velho guardava um retrato dele, vestido de Cupido, no
seu quarto e costumava beijálo todas as manhãs logo que saía da cama. Mas dos filhos
sobreviventes só Nero tinha um carácter genuinamente bom. Druso era taciturno e nervoso e
facilmente inclinado para o mal. Drusila era como ele. Calígula, Agripinila e a mais nova, a quem
chamávamos Lésbia, eram totalmente maus, como a mais nova das raparigas que tinham morrido
também parecia ser. Mas a cidade julgava toda a família por Nero porque,
Nota: Este Nero não deve ser confundido com o Nero que se tornou Imperador. (N da T)
255
até ali, ele era o único com idade suficiente para causar uma impressão pública forte. Calígula ainda tinha
apenas nove anos de idade.
Agripina visitoume um dia numa grande aflição, quando eu me encontrava em Roma, e pediume
conselho. Disse que, para onde quer que fosse, sentia que estava a ser seguida e espiada, é que isso
começava a deixála doente. Perguntoume se conhecia alguém, além de Sejano, que tivesse alguma
influência sobre Tibério. Tinha a certeza de que ele decidira matála ou exilála, se conseguisse encontrar
o mais leve pretexto. Disselhe que só conhecia duas pessoas que tinham alguma influência no bom
sentido sobre Tibério. Uma era Cocceio Nerva e a outra era Vipsânia. Tibério nunca conseguira arrancar
do seu coração o amor por Vipsânia. Quando ela e Caio tiveram uma neta, que com a idade de quinze anos
se assemelhava exactamente a Vipsânia tal como ela era quando esposa de Tibério, este não podia suportar
a ideia de alguém a desposar a não ser ele próprio; e a única coisa que o impediu de o fazer foi o facto dela
ser sobrinha de Castor, o que tornaria o casamento tecnicamente incestuoso, Por isso, nomeoua Chefe das
Vestais, sucedendo à velha Occia, que acabara de morrer. Disse a Agripina que, se estabelecesse relações
de amizade com Cocceio e Vipsânia faria tudo o que estivesse ao seu alcance para a ajudar, assim como
aos seus filhos. Ela seguiu o meu conselho. Vipsânia e Caio, que sentiam muita pena dela, permitiramlhe
que usasse livremente a sua casa e as três villas que tinham no campo e preocuparamse bastante com as
crianças. Caio, por exemplo, escolheu novos tutores para os rapazes, porque Agripina suspeitava que os
antigos fossem agentes de Sejano. Nerva não lhe serviu de grande coisa. Era um jurista e a maior
autoridade viva em leis do contrato, sobre as quais escrevera vários livros; mas, em todos os outros
assuntos, era tão distraído e negligente que quase parecia um simplório. Foi gentil para com ela, como era
para todos, mas não compreendeu aquilo que esperava dele.
Infelizmente, Vipsânia morreu pouco depois e o efeito sobre Tibério foi imediatamente visível. Não fez
mais qualquer esforço para disfarçar a sua depravação sexual, cujos rumores todos tinham evitado tomar à
letra. Na verdade, algumas das suas perversidades eram tão chocantes e horríveis que ninguém podia com
seriedade associálas à dignidade de um Imperador de Roma, o sucessor escolhido por Augusto. Nenhuma
mulher e nenhum rapaz estava agora em segurança diante dele, nem mesmo as mulheres e os filhos dos
senadores; e, se prezavam as próprias vidas e as dos maridos e pais, faziam de boa vontade o que era
esperado deles. Mas uma mulher, esposa de um Cônsul, suicidouse depois na presença dos amigos,
dizendolhes que tinha sido obrigada a salvar a jovem filha da concupiscência de Tibério, consentindo em
se prostituir ela própria, o que era vergonha suficiente; mas nessa altura o Bode Velho aproveitarase da
256
sua complacência para com ele, obrigandoa a actos de tal forma abomináveis e sujos que ela preferia
morrer a continuar vivendo com tais recordações.
Nesta altura, puseram a circular uma canção popular que começava com as palavras: ”Porquê, oh, porquê
o Bode Velho...?” Eu teria vergonha de citar o resto da canção, mas ela tinha tanto de espirituosa como de
obscena e pensavase que tivesse sido escrita pela própria Lívia. Lívia foi a autora de várias sátiras
semelhantes contra Tibério, que fazia circular anonimamente através de Urgulanila. Sabia que, mais tarde
ou mais cedo, chegariam até ele, que era extremamente sensível a sátiras; pensava que, enquanto sentisse a
sua posição insegura por causa disso, não ousaria romper com ela. Fazia agora também todos os esforços
para ser agradável a Agripina e disselhe mesmo em confidência que Tibério sozinho é que tinha dado a
Piso as instruções para apanhar Germânico. Agripina não confiava nela, mas era evidente que Lívia e
Tibério se tinham tornado inimigos e sentia, disseme, que, se tivesse que escolher entre a protecção de
um ou de outro, preferiria estar sob a protecção de Lívia. Eu, por mim, sentiame inclinado a concordar
com Agripina. Tinha observado que nenhum favorito de Lívia tinha ainda sido feito vítima dos
informadores de Tibério. Mas tinha grandes apreensões sobre o que poderia acontecer quando Lívia
morresse.
O que começara a impressionarme como particularmente agourento, embora não soubesse explicar
totalmente os meus sentimentos, era o laço forte entre Lívia e Calígula. Calígula tinha em geral apenas
duas maneiras de se comportar: ou era insolente ou servil. Para Agripina, para minha mãe e para mim,
assim como para os irmãos e para Castor, por exemplo, era insolente. Para Sejano, Tibério e Lívia era
servil. Mas para Lívia ele era qualquer coisa mais, difícil de exprimir. Era quase como seu amante. Não
era o habitual laço de ternura que liga os rapazinhos às avós ou bisavós indulgentes, embora seja verdade
que ele, certa vez, se deu a grandes trabalhos para copiar uns versos afectuosos para o seu septuagésimo
quinto aniversário e que ela lhe estava sempre a dar presentes. O que quero dizer é que se tinha a
impressão forte de existir um segredo desagradável entre ambos não, não pretendo sugerir que houvesse
qualquer relação indecente entre eles. Agripina sentia isto também, dissemo, mas não conseguia descobrir
nada de definido.
Um dia, comecei a compreender porque Sejano tinha sido tão delicado comigo. Sugeriume o noivado
entre a filha dele e o meu filho Drusilo. O meu sentimento pessoal contra esse casamento era que, para a
rapariga, que me parecia uma jovem bastante agradável, seria uma infelicidade estar ligada a Drusilo, que
cada vez que via mais labrego me parecia. Mas não podia dizêlo. Ainda menos podia dizer que detestava
a ideia de estar, ainda que remotamente, ligado por um casamento a um patife
257
como Sejano. Ele notou a minha hesitação em responder e quis saber se eu achava a ligação abaixo da
dignidade da minha família. Gaguejei e disse que não, certamente que não: o seu ramo da família Aeliana
era muito honroso. Sejano, ainda que filho de um simples cavaleiro da província, tinha sido adoptado
ainda jovem por um rico senador da família Aeliana, um Cônsul, que lhe deixara todo o seu dinheiro;
havia um escândalo ligado a esta adopção, mas o facto era que Sejano era um Aeliano. Ele insistiu
ansiosamente para que eu explicasse a minha hesitação e perguntou se tinha algum sentimento contra essa
união; pedia desculpa por ter falado nisso, mas que o fizera apenas por sugestão de Tibério. Assim, disse
lhe que, se Tibério Propunha o casamento, eu teria muito prazer em dar o meu consentimento:
que o meu sentimento principal era que a idade de quatro anos era demasiado prematura para uma rapariga
ficar noiva de um rapaz de treze, que teria vinte e um anos antes de poder consumar legalmente o
casamento e que, nessa altura, já poderia ter criado outras ligações. Sejano sorriu e disse que confiava em
mim para manter o rapaz fora de complicações graves. Houve grande alarme na Cidade quando se soube
que Sejano se iria ligar à família Imperial, mas todos se apressaram a felicitálo, incluindo eu próprio.
Alguns dias mais tarde, Drusilo estava morto. Foi encontrado atrás de um arbusto no jardim de uma casa
em Pompeia, para onde tinha sido convidado, de Herculano, por alguns amigos de Urgulanila. Uma
pequena pêra foi encontrada entalada na garganta dele. Foi dito no inquérito que o tinham visto a atirar
fruta ao ar e a tentar apanhála com a boca: a sua morte fora, indubitavelmente, devida a um acidente. Mas
ninguém acreditou nisto. Era evidente que Lívia, não tendo sido consultada sobre o casamento de um dos
seus bisnetos, arranjara maneira de ele ser estrangulado e a pêra enfiada depois pela garganta abaixo.
Como era costume em tais casos, a pereira foi acusada de assassinato e sentenciada a ser arrancada e
queimada.
Tibério pediu ao Senado que decretasse Castor Protector do Povo, o que equivalia a indicálo como
herdeiro da monarquia. O pedido causou alívio geral. Foi tomado como um sinal de que Tibério estava
consciente das ambições de Sejano e que tencionava controlálas. Quando o decreto foi promulgado,
alguém propôs que ele fosse gravado nas paredes da Casa a letras de ouro. Ninguém compreendeu que foi
por sugestão do próprio Sejano que Castor foi honrado dessa forma: ele sugerira a Tibério que Castor,
Agripina, Lívia e Caio tinham formado uma aliança e propôs esta como a melhor maneira de ver quem
mais pertencia ao partido. Foi um amigo dele que fez a proposta sobre a inscrição a ouro e os nomes dos
senadores que apoiaram a extravagante moção foram cuidadosamente anotados. Castor era mais popular
agora entre os melhores cidadãos do que fora antes. Abandonara os seus hábitos de bebida a morte de
Germânico parecia têlo chamado à razão e, embora tivesse uma
258
paixão excessiva pelo derramamento de sangue nas lutas de gladiadores, era um magistrado consciente e
um amigo leal. Eu tinha pouca ligação com ele, mas, quando nos encontrávamos, tratavame com muito
mais consideração do que antes da morte de Germânico.
O ódio amargo entre ele e Sejano ameaçava sempre deflagrar numa contenda, mas Sejano teve sempre o
cuidado de não provocar Castor enquanto não pudesse tirar proveito disso. A ocasião chegara. Sejano foi
ao Palácio felicitar Castor pelo seu protectorado e encontrouo no estúdio com Livila. Não havia nenhum
escravo ou liberto presente; portanto, Sejano podia dizer o que lhe apetecesse. Entretanto, Livila estava tão
apaixonada por ele que podia contar com ela para trair Castor da mesma forma que em tempos traíra
Póstumo de alguma forma, ele conhecia essa história e tinha mesmo havido uma conversa entre ambos,
na qual tinham lamentado não serem Imperador e Imperatriz para fazerem o que lhes apetecesse. Sejano
disse:
Bom, Castor, eu prepareite bem as coisas! Parabéns?
Castor olhouo irado. Só era Castor para alguns mais íntimos. Ganhara o nome, como penso que já
expliquei, por causa da sua semelhança com um gladiador bem conhecido, mas o nome ficaralhe porque
um dia se tinha enfurecido numa discussão com um cavaleiro. O cavaleiro disseralhe sem rodeios num
banquete que ele estava bêbedo e incapaz, e Castor (gritando ”Estou bêbedo e incapaz, estou? Eu mostro
te se estou bêbedo e incapaz”) inclinouse no seu leito e deu um tal golpe na barriga do cavaleiro que ele
vomitou tudo o que comera. Agora, Castor disse para Sejano:
Não permito a ninguém que se me dirija com uma alcunha, a não ser um amigo ou um igual, e tu não és
uma coisa nem outra. Para ti sou Tibério Druso César. E não sei o que pretendes ter preparado para mim.
Também não quero as tuas felicitações, seja pelo que for. Portanto sai. Livila disse:
Se me permites, acho uma cobardia insultares Sejano desta forma, para não falar da ingratidão de o
enxotares como um cão quando ele vem felicitarte pelo teu protectorado. Sabes bem que teu pai nunca to
teria concedido, a não ser por recomendação de Sejano.
Castor respondeu:
Estás a dizer disparates, Livila. Este espião sujo não teve mais a ver com a minha nomeação do que o
meu eunuco, Lygdus. Está só a fazerse de importante. E dizme, Sejano, que história é esta de cobardia?
Sejano disse:
A tua mulher está certíssima. Tu és um cobarde. Não terias ousado falar comigo desta forma antes de eu
te ter feito nomear Protector, tornandote uma pessoa sacrossanta. Sabes perfeitamente que te teria dado
uma sova.
259
E teria sido bem feito, disse Livila.
Castor olhou de um para o outro e disse lentamente:
Quer dizer que há qualquer coisa entre ambos, não é verdade? Livila sorriu desdenhosa:
E se houver? Quem é o melhor dos dois? Castor gritou:
Muito bem, minha menina, vamos ver. Esquece por um momento que eu sou o Protector do Povo,
Sejano, e levanta os punhos.
Sejano cruzou os braços.
Eu disse que levantasses os punhos, cobarde.
Sejano não disse nada e Castor, abrindo a mão, bateulhe com força.
Agora sai!
Sejano saíu com uma obediência irónica e Livila foi atrás dele.
Esta bofetada decidiu o destino de Castor. O relato que Tibério ouviu de Sejano, que foi procurálo ainda
com a marca da mão de Castor na face, foi que Castor estava embriagado quando Sejano o felicitara pela
nomeação e lhe batera na cara dizendo:
Sim, é bom sentir que posso fazer isto sem receio de que me batas também. E podes dizer ao meu pai
que farei o mesmo a cada um dos seus espiões sujos.
Livila confirmou isto no dia seguinte, quando foi queixarse de que Castor lhe tinha batido; disse que ele
lhe batera por ela ter afirmado que estava decepcionada com ele por ter batido num homem que não podia
ripostar e por ter insultado o pai. Tibério acreditou neles. Não disse nada a Castor, mas colocou uma
estátua de Sejano em bronze no teatro de Pompeia, uma honra extraordinária para ser feita a um homem
ainda em vida. Isto foi interpretado como querendo dizer que Castor não estava nas boas graças de
Tibério, apesar do protectorado (Sejano e Lívia tinham feito circular a sua versão do confronto) e que
Sejano era agora a única pessoa cujas boas graças valia a pena conquistar. Foram portanto feitas
numerosas réplicas da estátua, que os seus partidários puseram em lugar de honra nas suas entradas, à
direita da estátua de Tibério; estátuas de Castor raramente se viam. O rosto de Castor mostrava agora tão
claramente o seu ressentimento sempre que se encontrava com o pai, que a tarefa de Sejano foi facilitada.
Disse a Tibério que Castor andava a sondar vários senadores quanto à sua disposição de o apoiarem se ele
usurpasse a monarquia e que alguns deles lhe tinham prometido ajuda. Aqueles que pareciam mais
perigosos a Tibério foram portanto detidos, sob a acusação familiar de blasfemarem contra Augusto. Um
homem foi condenado à morte por ter entrado numa latrina com uma moeda de ouro de Augusto na mão.
Outro, foi acusado de ter incluído uma estátua de Augusto numa lista de móveis para venda numa villa no
campo. Teria sido condenado à morte, se o Cônsul que estava a julgar o caso não tivesse
260
pedido a Tibério que desse primeiro o seu voto. Tibério teve vergonha de votar a pena de morte e o
homem foi absolvido, mas condenado logo em seguida por outra razão.
Castor começou a ficar alarmado e pediu ajuda a Lívia contra Sejano. Lívia disselhe que não tivesse
medo: ela em breve chamaria Tibério à razão. Mas Lívia não tinha confiança em Castor como aliado. Foi
ter com Tibério e disselhe que Castor acusara Sejano de debochar Livila, de abusar da sua posição de
confiança chantageando homens ricos em nome de Tibério e de almejar à monarquia, que ele dissera que,
a menos que Tibério afastasse o patife, em breve tomaria o assunto nas suas próprias mãos, tendo pedido a
colaboração dela. Pondo o caso desta forma a Tibério, esperava fazêlo sentir tanta desconfiança de Sejano
quanto de Castor e, assim, retomar o velho hábito de dependência em relação a ela. Pelo menos durante
algum tempo, conseguiuo. Mas depois, um acidente repentino convenceu Tibério de que Sejano lhe era
tão dedicadamente leal como afirmava e como todos os seus actos até ali tinham demonstrado. Estavam
um dia juntos num piquenique com três ou quatro amigos numa gruta natural à beira mar, quando se ouviu
de repente um chocalhar; num ápice, parte do tecto desabou, matando alguns dos presentes e enterrando
outros, ao mesmo tempo que bloqueava a entrada. Sejano agachouse com as costas arqueadas por cima de
Tibério nenhum dos dois se magoou , para o proteger de outro possível desmoronamento. Quando os
soldados os retiraram, uma hora mais tarde, ele foi encontrado ainda na mesma posição. Trasilo também
fez subir a sua reputação nesse dia: ele tinha dito a Tibério que, por volta do meiodia haveria uma hora de
escuridão. Tibério tinha a garantia de Trasilo de que sobreviveria a Trajano por muitos anos e que Sejano
não era perigoso para ele. Penso que Sejano tenha arranjado isto com Trasilo, mas não tenho provas:
Trasilo não era totalmente incorruptível, mas, quando fazia profecias para satisfazer os desejos dos seus
clientes, elas pareciam sair tão bem como as profecias normais. Tibério sobreviveu a Sejano, na realidade,
por vários anos.
Tibério deu mais um sinal público de que Castor perdera as boas graças, censurandoo no Senado por
causa de uma carta que escrevera. Castor escusarase de atender o sacrifício quando a Casa abriu depois
da pausa do Verão, explicando que um outro assunto público o impedia de regressar à Cidade a tempo.
Tibério disse, desdenhoso, que qualquer pessoa pensaria que o jovem estava em campanha na Germânia
ou numa visita diplomática à Arménia: quando o único assunto público que o detinha era andar de barco e
tomar banho em Terracina. Disse que ele próprio, agora no declínio da vida, poderia ser desculpado por
uma ausência ocasional da cidade: poderia alegar que a sua energia ficara exausta devido ao prolongado
serviço público com a espada e com a pena. Mas que outra coisa, a não ser a insolência, poderia deter o
filho?
261
Isto era extremamente injusto: Castor tinha sido encarregado de fazer um relatório sobre a defesa costeira
durante essa pausa e não conseguira ainda reunir todos os elementos. Em vez de perder tempo numa
viagem a Roma para depois voltar a Terracina, estava a terminar a sua tarefa.
Quando Castor regressou, adoeceu quase imediatamente. Os sintomas eram os de uma tuberculose
galopante. Perdeu a cor e o peso e começou a cuspir sangue. Escreveu ao pai e pediulhe que viesse visitá
lo no seu acreditava que quarto ele vivia na outra extremidade do Palácio,
estava a morrer e pedialhe que o perdoasse por qualquer ofensa que tivesse cometido. Sejano advertiu
Tibério contra essa visita: a doença podia ser real, mas, por outro lado, podia facilmente tratarse de uma
armadilha para o assassinar. Assim, Tibério não o visitou e, poucos dias depois, Castor morreu.
A morte de Castor não causou muita pena. A violência do seu temperamento e a reputação de crueldade
tinham deixado a Cidade muito apreensiva sobre o que aconteceria se sucedesse ao pai. Poucos
acreditavam na sua modificação recente. A maioria pensava que fora apenas um truque para ganhar a
afeição popular e que teria sido tão mau como o pai logo que se encontrasse no lugar deste. Agora, os três
filhos de Germânico estavam a crescer Druso também
acabava de atingir a maioridade e eram indubitavelmente os herdeiros de Tibério. Mas o Senado, por
respeito para Tibério, carpiu a morte de Castor o mais ruidosamente possível e votou as mesmas honras
em sua memória que tinha votado por Germânico. Tibério não fingiu qualquer desgosto nesta ocasião e
pronunciou o panegírico que tinha preparado para Castor numa voz firme e soante. Quando viu lágrimas
rolando pela face de alguns senadores, fez ouvir, num aparte sonoro para Sejano, que estava a seu lado:
Pffi! Isto aqui cheira a cebola!
Seguidamente, Caio levantouse para cumprimentar Tibério pela forma como conseguira dominar o
desgosto. Recordou que mesmo o Deus Augusto, durante sua presença entre eles em forma mortal, dera
largas aos seus sentimentos quando da morte de Marcelo, seu filho adoptivo (nem mesmo filho
verdadeiro), que, quando estava a agradecer à Casa a sua simpatia, tivera que fazer uma pausa a meio,
incapaz de continuar com a emoção. Enquanto que o discurso que acabavam de ouvir era uma obraprima
de contenção. Posso dizer aqui que, quando quatro ou cinco meses mais tarde delegados chegaram de
Tróia para dar a Tibério as condolências pela morte do seu filho único, Tibério agradeceulhes desta
forma:
E eu douvos as minhas condolências, senhores, pela morte de Heitor.
Então, Tibério mandou chamar Nero e Druso e, quando estes chegaram à Casa, tomouos pela mão e
apresentouos:
262
Meus senhores, há três anos, entreguei estas crianças sem pai ao tio, meu querido filho, que
hoje todos nós choramos amargamente, desejando que ele os adoptasse como filhos, embora já
tivesse filhos dele e os criasse como dignos herdeiros da tradição familiar. ”Ouçam, ouçam!”,
Gritou Caio, seguindose um aplauso geral Mas agora, que ele foi arrancado do meio de nós
pelo destino cruel gemidos e lamentos
façovos o mesmo pedido. Na presença dos Deuses, diante do vosso amado País, suplicovos,
recebeios sob a vossa protecção, tomaios sob a vossa orientação, a estes nobres bisnetos de
Augusto, descendentes de antepassados cujos nomes ressoam na história romana: fazei com que o
vosso dever e o meu para com eles sejam honrosamente cumpridos. Netos, estes senadores estão
agora no lugar de vossos pais, e o vosso nascimento é tal que, seja qual for o bem ou mal que
recaia sobre vós, ele significará o bem ou o mal de todo o Estado Aplausos ribombantes,
lágrimas, bênçãos, brados de lealdade.
Mas, em vez de ficar por ali, estragou todo o efeito terminando no tom já familiar com as velhas
frases gastas sobre como se iria retirar em breve e restaurar a república quando ”os Cônsules ou
qualquer outra pessoa tirassem o fardo do governo dos seus ombros idosos.” Se não tencionava
que Nero e Druso (ou um deles) fossem seus sucessores imperiais, o que pretendia ao identificar
o seu destino tão de perto com o do Estado?
O funeral de Castor foi menos impressionante que o de Germânico, tendo sido marcado por
muito poucas expressões de genuíno desgosto; por outro lado, foi muito mais magnífico. Todas
as máscaras de família dos Césares e Claudianos foram usadas na procissão, começando com as
de Eneias, o fundador da Família Juliana, e Rómulo, o fundador de Roma, e terminando com as
de Caio, Lúcio e Germânico. A máscara de Júlio César apareceu porque, como Rómulo, ele era
apenas um semideus, mas a de Augusto não, porque ele era uma divindade maior.
Sejano e Livila tinham que considerar agora a maneira de concretizarem a sua ambição de se
tornarem Imperador e Imperatriz. Nero, Druso e Calígula eram empecilhos e teriam que ser
removidos. Três parecia um número demasiado elevado para fazer desaparecer com segurança,
mas, como Livila fez notar, a avó parecia ter conseguido livrarse de Caio, Lúcio e Póstumo
quando quisera colocar Tibério no poder. E Sejano estava nitidamente em muito melhor posição
do que Lívia para levar por diante os seus planos. Para mostrar a Livilla que tencionava realmente
casar com ela, como prometera, Sejano divorciouse da mulher Apicata, com quem tivera três
filhos. Acusoua de adultério e afirmou que estava prestes a tornarse mãe de um filho que não
era seu. Não nomeou publicamente o nome do amante dela, mas disse particularmente a Tibério
que suspeitava de Nero. Nero, disse, estava a ficar com má reputação por causa das
263
suas aventuras com as esposas de homens proeminentes e parecia pensar que, como presumível herdeiro
da monarquia, podia comportarse agora como lhe aprouvesse. Livila, entretanto, fazia todos os possíveis
para afastar Agripina da protecção de Lívia, advertindoa de que Lívia estava apenas a usála como arma
no seu conflito com Tibério o que por acaso era verdade e prevenindo Lívia, por intermédio de uma das
suas aias, de que Agripina estava apenas a usála pelas mesmas razões
o que também era verdade. Fez com que cada uma delas acreditasse que a outra jurara matála logo que
deixasse de lhe ser útil.
Os doze pontífices passaram agora a incluir Nero e Druso nas preces habituais que ofereciam pela saúde e
prosperidade do Imperador e os outros sacerdotes seguiram o seu exemplo. Tibério, como Sumo Pontífice,
envioulhes uma carta a queixarse, dizendo que eles não tinham feito diferença entre aqueles rapazes e a
sua pessoa, um homem que detivera honrosamente a maior parte dos mais altos cargos do Estado vinte
anos antes deles nascerem, e tudo o resto depois disso: não era decente. Chamouos à sua presença e
perguntoulhes se Agripina os tinha pura e simplesmente convencido a fazer esse acrescento à oração, ou
se ela os coagira a fazêlo por meio de ameaças. Eles negaram, claro, que ela tivesse feito qualquer das
coisas, mas ele não se convenceu; quatro dos doze, incluindo Caio, estavam de alguma forma ligados a
ela pelo casamento e cinco outros mantinham relações de amizade com ela e com os filhos. Tibério
repreendeuos severamente. No seu discurso seguinte, preveniu o Senado para ”não conceder mais
distinções prematuras que possam encorajar os espíritos estonteados de indivíduos jovens a entrever
aspirações presunçosas.”
Agripina encontrou um aliado inesperado em Calpúrnio Piso. Ele disselhe que defendia o tio Gneo Piso
apenas por respeito para com as honras da família e que não devia ser considerado como seu inimigo;
faria tudo o que pudesse para a proteger e aos seus filhos. Mas Calpúrnio não viveu muito tempo depois
disto. Foi acusado no Senado de ”palavras traiçoeiras ditas em privado”, de guardar veneno em casa e de
ter ido ao Senado armado com um punhal. Estes dois últimos artigos eram tão absurdos que foram
abandonados, mas foi fixada uma data para julgamento sob a acusação de palavras traiçoeiras. Suicidouse
antes de se realizar o julgamento,
Tibério acreditou na história de Sejano de que havia um partido secreto, chamado de Verde Claro, que
estava a ser formado por Agripina, a marca do qual era uma extravagante parceria com a facção do Verde
Claro das corridas de carros no Circo. Nestas corridas havia quatro cores escarlate, branco, azul marinho e
verde claro. A facção do Verde Claro era nessa altura a que gozava de maior preferência e a escarlate a
menos
264
popular. Por isso, quando Tibério ia ver as corridas nos feriados públicos, como era obrigado a fazer dada
a sua posição oficial embora até aí não estivesse de todo interessado nelas e desencorajasse conversas
vazias sobre corridas no Palácio ou nos banquetes para os quais era convidado , começou pela primeira
vez a notar o tipo de apoio que as diferentes cores recebiam e ficou altamente perturbado ao ouvir o Verde
Claro ser tão aclamado. Foralhe igualmente dito por Sejano que Escarlate era o símbolo secreto usado
pelos Verdes Claros quando desejavam referirse aos seus próprios apoiantes e notou que, sempre que um
carro Escarlate ganhava, o que era raro, ouviamse fortes gemidos e assobios. Sejano era esperto: sabia
que Germânico sempre apoiara o Verde Claro e que Agripina, Nero e Druso, por razões sentimentais,
continuavam a preferir essa cor.
Havia um nobre chamado Sílio que fora durante muitos anos comandante de uma unidade no Reno. Acho
que já falei dele como sendo o General dos quatro Regimentos da Germânia que não tomou parte no
grande motim. Tinha sido o comandante mais capaz do meu irmão e foramlhe concedidos ornamentos
triunfais pelos seus sucessos contra Hermann. Recentemente, à frente de tropas combinadas das Províncias
Superior e Inferior, debelara uma perigosa rebelião das tribos francesas nas vizinhanças do lugar onde
nasci, Lião. Ele não era um homem modesto, mas também não era particularmente gabarola e talvez tenha
realmente dito em público, como foi referido, que, se não fosse a sua judiciosa orientação desses quatro
regimentos durante o motim, eles se teriam juntado aos amotinados e que, portanto, se não fosse ele,
Tibério não teria qualquer Império para governar bom, o que não estava longe da verdade. Mas
naturalmente Tibério não gostava da ideia, quanto mais não fosse porque os regimentos amotinados eram,
tal como expliquei, aqueles com os quais ele próprio tinha maior ligação. A mulher de Sílio, Sósia, era a
melhor amiga de Agripina. Aconteceu que Sílio, nos grandes Jogos Romanos que tiveram lugar nos
princípios de Setembro, estava a apostar fortemente na cor Verde Claro. Sejano gritoulhe:
Aposto contigo o que quiseres. O meu dinheiro está no Escarlate. Sílio respondeulhe:
Estás a apoiar a cor errada, meu caro. O condutor Escarlate não faz a menor ideia de como usar as
rédeas. Tenta fazer tudo com o chicote. Aposto mil contigo em como o Verde Claro vai ganhar. Aqui o
jovem Nero diz que vai até quinze mil; ele é um entusiasta do Verde Claro.
Sejano olhou de maneira significativa para Tibério, que ouvira toda a conversa e estava espantado com a
ousadia de Sílio. Pareceulhe um bom presságio que o condutor do carro Verde Claro tivesse caído perto
da marca na última volta e que o Escarlate tivesse ganhado sem dificuldade.
Dez dias mais tarde, Sílio foi acusado perante o Senado. A acusação era alta traição. Foi acusado de ter
conspirado na revolta francesa na sua
265
fase inicial e de ter tomado um terço do saque como pagamento da sua nãointervenção, de ter tornado a
sua vitória numa desculpa para novo saque das províncias leais e de ter imposto depois taxas de
emergência excessivas sobre a província para pagar as despesas da campanha. Sósia foi acusada de
cumplicidade nos mesmos crimes. Sílio tornarase impopular no Palácio depois da rebelião francesa.
Tibério incorrera em pesadas críticas por não ter entrado em campo contra os rebeldes e por ter mostrado
mais interesse nos julgamentos por traição que estavam a decorrer ao tempo, do que na campanha.
Desculparase perante o Senado invocando a sua idade e Castor estava ocupado com assuntos
importantes
e explicou que se mantivera durante todo o tempo em contacto com o quartelgeneral de Sílio, dandolhe
conselhos valiosos. Tibério era muito sensível a toda a questão da revolta francesa. Quando os franceses
foram derrotados, ele tinha sido coberto de ridículo pela moção de um senador jocoso, um imitador dos
truques de Caio, defendendo que devia serlhe concedido um triunfo como o homem realmente
responsável pela vitória. Ficou tão descontente com isto concluindo que, de qualquer forma a vitória não
merecia ser falada , que ninguém ousou votar a Sílio os ornamentos triunfais que ele bem merecia. Sílio
ficara decepcionado e aquilo que dissera sobe o motim do Reno fora devido ao ressentimento pela
ingratidão de Tibério.
Sílio não se deu ao trabalho de responder às acusações de traição. Não era culpado de qualquer
entendimento com os rebeldes e se os soldados sob o seu comando tinham, em alguns casos, ignorado a
diferença entre os bens dos rebeldes e os bens dos partidários, isso já era de esperar: muitos falsos
partidários estavam a financiar secretamente a rebelião. Quanto aos impostos, a verdade era que Tibério
lhe prometera uma doação especial, do Tesouro, para cobrir as despesas da campanha e para indemnizar
os cidadãos romanos pela perda das suas casas, colheitas e gado. Antecipando o pagamento desta doação,
Sílio impusera uma taxa a certas tribos do norte, prometendo reembolsar o dinheiro quando ele lhe fosse
pago por Tibério: o que nunca aconteceu. Sílio era mais pobre em 20.000 moedas de ouro depois da
revolta do que antes, porque tinha reunido um destacamento de voluntários a cavalo, que armou e pagou
às suas custas. O seu principal acusador, que era um dos Cônsules do ano, apresentou as acusações de
extorsão com grande malícia. Ele era amigo de Sejano e era também filho do governador militar da
Província Inferior, que desejara tomar o comando supremo das hostes romanas contra os franceses, tendo
sido forçado a afastarse a favor de Sílio. Este não podia sequer apresentar prova da doação prometida por
Tibério, porque a carta na qual ela era referida estava selada com a Esfinge. E as acusações de extorsão
eram de qualquer forma irrelevantes, porque o julgamento dizia respeito a traição e não a extorsão.
266
Por fim, ele falou:
Meus senhores, eu podia dizer muita coisa em minha defesa, mas não vou dizer nada, porque este
julgamento não está a ser conduzido de uma forma constitucional e o veredicto há muito que foi decidido.
Compreendi que o meu verdadeiro crime foi ter dito que, se não fosse pela minha actuação em relação a
eles, os regimentos da Germânia Superior terseiam amotinado. Ponho agora a minha culpabilidade nesta
questão fora de qualquer dúvida. Direi que, se não fosse pela forma como Tibério lidou com eles
anteriormente, os soldados da Germânia Inferior não se teriam amotinado. Meus senhores, eu sou vítima
da avareza, inveja, crueldade, tirania de um...
O resto do discurso foi afogado por um brado de protesto horrorizado saído da Casa. Sílio saudou Tibério
e saíu com a cabeça erguida. Quando chegou a casa, abraçou Sósia e os filhos, transmitiu uma afectuosa
mensagem de despedida a Agripina, Nero, Caio e aos seus outros amigos e, retirandose para o seu quarto,
atravessou a garganta com a espada.
A sua culpabilidade foi considerada como provada pelos insultos a Tibério. Todos os seus bens foram
confiscados, com a promessa de que os habitantes das província seriam reembolsados dos impostos
injustos através desses bens, e que os seus acusadores receberiam um quarto do que ficasse, como a lei
requeria, e que o dinheiro que lhe fora deixado segundo o testamento de Augusto como penhor de lealdade
devia ser restituído ao Tesouro como tendo sido pago por engano. Os habitantes das províncias não
ousaram insistir no reembolso do imposto e, assim, Tibério guardou três quartos do espólio: na realidade,
já não havia uma distinção nítida entre o Tesouro Militar, o Tesouro Público e o Tesouro Privado. Esta foi
a primeira vez que ele beneficiou directamente da confiscação de um espólio ou que permitiu que um
insulto proferido contra ele fosse transformado em prova de traição.
Sósia tinha bens pessoais e, para lhe salvar a vida e impedir que os filhos ficassem na miséria, Caio
apresentou uma moção para que ela fosse exilada e metade dos bens entregues aos seus acusadores e a
outra metade deixada aos filhos. Mas um primo de Agripina pelo casamento, que era confederado de Caio,
propôs que os acusadores recebessem apenas um quarto, que era o mínimo legal, dizendo que Caio era
mais leal ao Imperador do que a Sósia; esta, era sabido, pelo menos tinha censurado o marido, quando ele
jazia moribundo, pelas suas declarações traiçoeiras e cheias de ingratidão. Assim, Sósia foi apenas exilada
foi viver em Marselha; e como Sílio, logo que soube que o julgamento lhe custaria a vida, dera em
segredo a Caio e a alguns outros amigos a maior parte do seu dinheiro para que o guardassem para os
filhos, a família ficou em boa situação. O filho mais velho viveu o tempo suficiente para me causar
grandes aborrecimentos.
267
A partir de agora, Tibério, que até ali fizera as suas acusações de traição ligadas a supostas blasfémias
contra Augusto, deu cada vez maior ênfase ao édito promulgado no primeiro ano da sua monarquia,
segundo o qual era traição da parte de quem quer que fosse atacar de alguma forma a sua honra e
reputação. Acusou um senador, que suspeitava de pertencer ao partido de Agripina, de ter recitado um
epigrama grosseiro visando a sua pessoa. O facto era que a mulher do senador uma manhã reparou numa
folha de papel que estava pregada a uma certa altura no portão da casa. Pediu ao marido que lesse o que
dizia o papel ele era mais alto. O senador decifrouo devagar:
Agora já não se embriaga com vinho Como se embriagava então: Aquecese com uma taça mais rica O
sangue de homens assassinados.
Inocentemente, ela perguntou o que queriam dizer os versos, ao que ele respondeu:
Não é seguro explicálo em público, minha querida.
Um informador profissional estava junto ao portão para a hipótese de, quando o senador lesse o epigrama,
que era obra de Lívia, dizer alguma coisa que valesse a pena relatar. O informador foi direito a Sejano. O
próprio Tibério interrogou o senador, perguntandolhe o que queria dizer com ”não ser seguro”, e a quem,
na sua opinião, se dirigia o epigrama. O senador procurou esquivarse e não deu nenhuma resposta directa.
Tibério disse então que muitos libelos tinham sido postos a circular quando era mais jovem, todos eles
acusandoo de beberrão e que, nos últimos anos, os médicos lhe tinham ordenado que se abstivesse de
beber vinho por causa de uma tendência para a gota, e que outros libelos tinham sido publicados
ultimamente acusandoo de sanguinário. Perguntou ao acusado se não tinha conhecimento destes factos e
se pensava que o epigrama se pudesse referir a alguém que não fosse o seu Imperador. O pobre homem
concordou que tinha ouvido os libelos sobre a embriaguez de Tibério, mas que sabia que, na verdade, não
tinham fundamento, e que não estabelecera qualquer ligação no seu espírito entre eles e o que estava
pregado no seu portão. Foilhe depois perguntado porque não informara o Senado sobre os primeiros
libelos, como era seu dever. Ele respondeu que, quando os ouvira, ainda não era crime punível escutar ou
repetir um epigrama, por mais grosseiro, escrito contra quem quer que fosse, mesmo uma pessoa virtuosa;
não era traição pronunciar ou repetir grosserias dirigidas mesmo contra o próprio Augusto, desde que não
fossem publicadas por escrito. Tibério perguntou a que tempos ele se referia, pois
268
Augusto, no fim da vida, também proclamara um édito contra as grosserias faladas. O senador
respondeu:
Foi durante o teu terceiro ano em Rodes. Tibério gritou:
Meus senhores, como permitis que este indivíduo me insulte desta forma?
Assim, o Senado condenouo a ser atirado da rocha Tarpeia, um castigo geralmente reservado aos piores
traidores generais que vendiam batalhas ao inimigo e coisas semelhantes.
Outro homem, um cavaleiro, foi condenado à morte por escrever uma tragédia sobre o Rei Agamémnon,
na qual a rainha de Agamémnon, que o matou no banho, gritava enquanto erguia o machado:
Fica sabendo, tirano sanguinário, que não é crime Vingar assim o mal que mefoifeito.
Tibério disse que a figura de Agamémnon o visava a ele e que os versos citados eram um incitamento para
que o assassinassem. Assim, a tragédia, da qual todos se tinham rido por ter sido composta de forma tão
desajeitada e pobre, ganhou uma espécie de dignidade por ter tido todas as suas cópias reunidas e
queimadas e o seu autor executado. Este processo foi seguido, dois anos mais tarde mas estou a escrevê
lo agora porque a história de Agamémnon. me faz recordar , por um outro contra Cremúcio Cordo, um
velho que entrara em colisão com Sejano algum tempo antes, por uma ninharia. Sejano, ao entrar na Casa
num dia de chuva, tinha pendurado a capa num cabide que sempre fora o de Cremúcio e este, quando
entrou, não sabendo que a capa pertencia a Sejano, tinhaa mudado para outro cabide para pendurar a sua.
A capa de Sejano tinha caído do novo cabide e alguém com as sandálias enlameadas tinhaa pisado.
Sejano retaliou de diversas maneiras cheias de malícia e Cremúcio acabou por detestar a tal ponto a cara
dele e o som do seu nome que, quando ouviu dizer que a estátua de Sejano tinha sido colocada no Teatro
de Pompeia, exclamou:
Isso dá cabo do teatro.
Por isso, foi nomeado perante Tibério como um dos principais simpatizantes de Agripina. Mas como ele
era um velho venerável e brando, sem um inimigo no mundo além de Sejano e nunca dizia uma palavra
além do necessário, era difícil apoiar qualquer acusação contra ele com provas que mesmo um Senado
amedrontado pudesse aceitar decentemente. No final, Cremúcio foi acusado de ter escrito em louvor de
Brutus e Cássio, os assassinos de Júlio César. A prova apresentada era um trabalho histórico que ele
escrevera trinta anos antes e que se sabia que o próprio
269
Augusto, filho adoptivo de Júlio, incluíra na sua biblioteca particular e consultava ocasionalmente.
Cremúcio fez uma defesa fogosa contra esta acusação absurda, dizendo que Brutus e Cássio estavam
mortos há tanto tempo e tinham sido louvados tantas vezes pelo seu feito por historiadores subsequentes,
que ele não podia acreditar que o julgamento não fosse uma brincadeira uma brincadeira como a que um
jovem viajante sofrera recentemente na cidade de Larissa. Este jovem foi publicamente acusado de ter
assassinado três homens, embora eles não passassem de odres com vinho, suspensos no exterior de uma
loja, que ele esquartejara na escuridão por os ter confundido com ladrões. Mas este julgamento de Larissa
tivera lugar no festival anual do Riso, o que deu certa força aos acontecimentos e o jovem era um ébrio,
demasiado pronto com a espada e que talvez merecesse uma lição. Mas ele, Cremúcio Cordo, era
demasiado velho e sóbrio para que o fizessem de parvo daquela forma e aquele não era nenhum festival do
Riso mas, pelo contrário, o quadricentésimo septuagésimo sexto aniversário da promulgação solene das
Leis das Doze Tábuas, esse glorioso monumento ao génio legislativo e à rectidão moral dos nossos
antepassados. Cremúcio foi para casa e deixouse morrer à fome. Todos os exemplares do seu livro foram
recolhidos e queimados, excepto dois ou três que a filha escondeu algures e voltou a publicar muitos anos
mais tarde, quando Tibério já estava morto. A escrita não era grande coisa: o livro teve mais fama do que
realmente merecia.
Durante todo este tempo, eu dizia para mim mesmo: ”Cláudio, tu és um pobre diabo e não serves de
grande coisa neste mundo; tens vivido uma vida bastante desgraçada, ora por uma coisa ora por outra,
mas, pelo menos, a tua vida está segura.” Assim, quando o velho Cremúcio, que eu conhecia muito bem
tínhamonos encontrado e cavaqueado muitas vezes na Biblioteca , perdeu a vida por uma acusação como
esta, o facto foi um grande choque para mim. Sentime como um homem que vivesse na encosta de um
vulcão, quando este repentinamente vomita uma torrente avisadora de cinzas e pedras incandescentes. Eu
próprio tinha escrito coisas muito mais susceptíveis de serem apodadas de traição do que Cremúcio. A
minha história das reformas religiosas de Augusto continha várias frases que podiam facilmente
transformarse na base de uma acusação. E embora o meu património fosse tão diminuto que mal valia o
trabalho do acusador em me denunciar por causa de um quarto do mesmo, eu compreendia bem que todas
as vítimas recentes dos julgamentos por traição eram amigos de Agripina, a quem eu continuava a visitar
sempre que ia a Roma. E não tinha a certeza até que ponto o facto de ser cunhado de Sejano seria
protecção suficiente para mim.
Sim; ultimamente, tornarame cunhado de Sejano. Agora, vou contarvos como isso aconteceu.
270
CAPíTULO XXIII
Um dia, Sejano disserame que eu devia voltar a casar, pois parecia que não me entendia muito bem com a
minha esposa. Eu disse que Urgulanila tinha sido a escolha de minha avó Lívia e que não podia divorciar
me dela sem a sua permissão.
Oh não, claro que não, disse ele , eu compreendo isso, mas deve ser uma situação muito infeliz para ti,
sem uma mulher.
Obrigado, repliquei, tenho passado muito bem.
Ele fingiu achar isto uma boa piada e soltou uma risada sonora, dizendo que eu era um homem muito
sensato, mas depois acrescentou que, se por algum acaso eu encontrasse uma possibilidade de me
divorciar, o procurasse. Tinha na ideia a mulher certa para mim bem nascida, jovem e inteligente.
Agradecilhe, mas sentime constrangido. Quando já me ia embora, ele disse:
Meu amigo Cláudio, tenho um conselho a darte. Apoia o escarlate amanhã em todas as corridas e não te
importes de perder algum dinheiro a princípio; ao fim e ao cabo não perderás. E não apoies o Verde Claro:
hoje em dia é uma cor malfadada. Não digas a ninguém que te dei este conselho.
Sentime muito aliviado por Sejano pensar que ainda valia a pena cultivar o relacionamento comigo, mas
não consegui encontrar qualquer sentido naquilo que me disse. No entanto, na corrida de carros do dia
seguinte era o festival de Augusto , Tibério víume ocupar o meu lugar no Circo e, encontrandose num
estado de espírito afável, mandoume chamar e perguntoume:
O que tens feito, meu sobrinho?
Gaguejei que estava a escrever uma história dos antigos etruscos, com sua licença.
Ele disse:
Ah sim? Isso faz jus ao teu discernimento. Não resta nenhum etrusco antigo para protestar, nem etruscos
modernos para se preocuparem: portanto, podes escrever como te apetecer. Que mais estás a fazer?
Esccccrevo uma história dos antigos CCCCCCartigineses, com vossa licença.
271
Esplêndido! E que mais? Despachate com essa gaguez. Eu sou um homem ocupado.
De momento estou aaaaa...
A começar uma história do MMMMundo da FFFFantasia?
Nnão senhor, a aaapoiar o Escarlate.
Ele deitoume um olhar perspicaz:
Estou a ver, meu sobrinho, que não sois um tolo completo. O que te faz apoiar o Escarlate?
Fiquei em apuros, porque não podia dizer que Sejano me dera essa sugestão. Por isso disse:
Sonhei que o Verde Claro era desclassificado por usar o chicote nos adadadversários e que o Escarlate
ffficava em primeiro lugar. Ele deume uma bolsa com dinheiro e murmuroume ao ouvido:
Não digas a ninguém que te dei dinheiro, mas põe isto no Escarlate e vejamos o que acontece.
Acabou por ser o dia do Escarlate e, apostando com o jovem Nero em todas as corridas, ganhei perto de
2.000 moedas de ouro. Nessa noite, pareceume sensato visitar Tibério no Palácio e dizerlhe:
Aqui está a bolsa da sorte, senhor, com uma família de pequenas bolsas que nasceram ao longo do dia.
Tudo meu? exclamou. Bom, estou com sorte. O Escarlate é a cor, einh?
Isto era típico do meu tio Tibério. Não deixara claro quem devia guardar os ganhos e eu tinha pensado que
seriam para mim. Mas se eu tivesse perdido todo o dinheiro, ele teria dito alguma coisa para me fazer
sentir em dívida para com ele por essa quantia. Podia pelo menos terme dado uma comissão.
Na vez seguinte em que fui a Roma, encontrei a minha mãe de tal forma abstracta que a princípio, não
ousei dizer o que quer que fosse na sua presença, com medo que se irritasse e me batesse. Soube que o seu
desassossego estava relacionado com Calígula, então com doze anos, e Drusila, então com treze, que
estavam em casa dela. Drusila estava fechada no quarto sem comida e Calígula andava em liberdade, mas
parecia completamente apavorado. Ele visitoume nessa noite e disse:
Tio Cláudio. Pedi a vossa mãe que não conte ao Imperador. Nós não estávamos a fazer mal nenhum,
juro. Era apenas um jogo. Não podeis acreditar numa coisa vinda de nós. Dizei que não.
Quando ele explicou o que não queria que contassem ao Imperador, e jurou pela honra do pai que ele e
Drusila estavam completamente inocentes, sentime obrigado a fazer o que pudesse pelos pequenos. Fui
procurar minha mãe e disselhe:
Calígula jura que estais enganada. Jura pela honra do pai; se existe a mínima dúvida no vosso espírito
quanto à culpabilidade dele, devíeis
272
respeitar esse juramento. Pela minha parte, não consigo acreditar que um rapaz de doze anos...
Calígula é um monstro e Drusila não lhe fica atrás; e tu és um cabeça dura. Acredito mais nos meus
olhos do que nos juramentos deles ou nos teus disparates. Amanhã cedo vou procurar Tibério.
Mas, Mãe, se disserdes ao Imperador, não são só esses dois que vão sofrer. Por uma vez, falemos
francamente e ao diabo os informadores! Eu posso ser um cabeça dura, mas sabeis tão bem como eu que
Tibério suspeita que Agripina tenha envenenado Castor para que os filhos mais velhos se tornassem
herdeiros da monarquia e que ele vive no terror de uma sublevação repentina a seu favor. Se vós, como
sua avó, acusardes estas crianças de incesto, achais que ele não irá arranjar uma maneira de envolver os
membros mais idosos da família nessa acusação?
És um cabeça dura, é o que eu digo. Não posso suportar a maneira como a tua cabeça estremece e a tua
maçãdeadão anda para cima e para baixo.
Mas compreendi que tinha causado alguma impressão nela e decidi que, se me mantivesse fora da sua
vista durante o resto da minha visita a Roma, para que a minha presença não lhe fizesse lembrar o meu
conselho, era provável que Tibério não tivesse notícias dela sobre o caso. Empacotei algumas coisas e fui
para casa de meu cunhado Pláucio, para lhe pedir que me arranjasse alojamento (nesta altura, já Pláucio
avançara bastante na sua carreira e, dentro de quatro anos, seria Cônsul). O jantar já tinha acabado havia
muito quando eu cheguei e ele estava a ler documentos legais no seu estúdio. A mulher já tinha ido para a
cama, disse. Pergunteilhe:
Como é que ela está? Pareceume bastante preocupada a última vez que a vi.
Ele riuse.
O quê, meu campónio, não soubeste de nada? Há um mês ou mais que me divorciei de Numantina.
Quando eu disse a minha mulher referiame à minha nova esposa, Aprónia, filha do homem que deu
recentemente aquela tareia monumental a Tacfarinas.
Pedi desculpa e disse que me parecia que era o momento de lhe apresentar as minhas felicitações.
Mas porque te divorciaste de Numantina? Julgava que ambos se entendiam muito bem.
É verdade, não nos dávamos nada mal. Mas para dizer a verdade, ultimamente, tenho andado com
problemas por causa de dívidas. Tive pouca sorte há alguns anos como jovem magistrado. Sabes quanto se
espera que gastemos do nosso próprio bolso com os Jogos. Bom, para começar, gastei mais do que podia
e, além disso, tive muito pouca sorte, deves estar lembrado. Por duas vezes ocorreu um erro nos
procedimentos
273
a meio dos Jogos e eu tive que recomeçar do princípio no dia seguinte. A primeira vez foi culpa minha:
usei uma forma de oração que tinha sido alterada por estatuto dois anos antes. Da vez seguinte, um
trombeteiro que estava a fazer ouvir um som prolongado não tinha enchido suficientemente o peito de ar:
interrompeu o toque e isso foi suficiente para fazer parar tudo pela segunda vez. Assim, tive que pagar aos
gladiadores e aos aurigas por três vezes. A partir daí, nunca mais me vi livre das dívidas. Acabei por ter
que fazer qualquer coisa quanto a isso, porque os meus credores estavam a tornarse difíceis. O dote de
Numantina já fora gasto há muito, mas consegui chegar a um acordo com o tio dela. Ele recebeua de
volta sem o dote, com a condição de eu o deixar adoptar o nosso filho mais novo. Deseja ter um herdeiro e
engraçou com o rapaz. Aprónia, por sua vez, é muito rica; por isso, agora estou bem. Claro que Numantina
não gostou nada de me deixar. Tive que lhe dizer que estava só a fazer isto porque recebera uma indicação
de um Certo Amigo de um Certo Personagem que, se não casasse com Aprónia, que está apaixonada por
mim e tem influência no Tribunal, seria acusado de blasfémia contra Augusto. No outro dia, um dos meus
escravos tropeçou e deixou cair no meio do vestíbulo uma taça de alabastro cheia de vinho. Tinha comigo
um chicote de montar e, quando ouvi o estrondo, corri para o escravo e comecei a baterlhe. Estava cego
de fúria. Ele gritou:
Parai, Senhor, vede onde estamos!
E o bruto tinha um pé dentro daquele quadrado sagrado de mármore branco que rodeava a estátua de
Augusto. Deixei cair imediatamente o chicote, mas devo ter sido visto por meia dúzia de libertos. Estou
confiante que eles não irão depor contra mim, mas Numantina ficou preocupada com o incidente; por isso,
useio para a reconciliar com a ideia do divórcio. A propósito, isto é inteiramente confidencial. Confio que
não irás falar disto a Urgulanila. Posso dizerte que ela está bastante aborrecida com a história de
Numantina.
Actualmente nunca a vejo.
Bom, se a vires, não lhe vais contar que eu te disse? jura que não.
Juro pela Cabeça Divina de Augusto.
Assim está bem. Lembraste do quarto onde ficaste da última vez que aqui estiveste?
Sim, obrigado. Se estás ocupado, eu vou já para a cama. Foi um dia longo e também tenho problemas em
casa. A minha mãe pôsme praticamente fora de casa.
Despedimonos e eu fui para cima. Um liberto deume um candeeiro, com um olhar um tanto estranho, e
eu fui para o quarto que ficava no corredor, quase em frente do de Pláucio. Depois de fechar a porta,
comecei a despirme. A cama ficava atrás de uma cortina. Tirei a roupa e lavei as mãos e os pés no
pequeno lavatório do outro lado do quarto. De repente,
274
ouvi um andar pesado atrás de mim e o meu candeeiro apagouse. Disse para mim mesmo: ”Estás perdido,
Cláudio. Há aqui alguém com um punhal.” Mas disse em voz alta e o mais calmamente que consegui:
Por favor, acendei o candeeiro, quem quer que sois, e vede se podemos conversar tranquilamente. Se
decidirdes matarme, vereis melhor com o candeeiro aceso.
Uma voz funda respondeu:
Ficai onde estais.
Houve um arrastar de pés, um grunhido e o som de alguém a vestirse e depois uma pederneira a raspar no
aço; finalmente, o candeeiro acendeuse. Era Urgulanila. Não a via desde o funeral de Drusilo e ela não
tinha ficado minimamente mais bela nesses cinco anos. Estava mais espadaúda que nunca, colossalmente
espadaúda, e com a cara inchada; havia força suficiente naquele Hércules feminino para dominar uma
centena de Cláudios. Eu tenho bastante força nos braços; mas bastava que ela se atirasse para cima de mim
para me matar por esmagamento. Ela avançou para mim e disse lentamente:
O que estás a fazer no meu quarto?
Expliqueime como pude e disse que era uma fraca piada de Pláucio terme mandado para ali sem me
dizer que ela estava lá. Eu tinha o maior respeito por ela, disse, e apresenteilhe as minhas desculpas
sinceras pela intrusão, dizendolhe que a deixaria imediatamente e que dormiria num leito nos Banhos.
Não, meu querido, agora estás aqui para ficar! Não é muitas vezes que tenho o prazer da companhia do
meu marido. Por favor, compreende que, uma vez aqui, já não podes escapar. Metete na cama e dorme;
juntarmeei a ti mais tarde. Vou ler um livro até sentir sono. Há várias noites que não consigo dormir
como deve ser.
Lamento muito terte acordado...
Metete na cama.
Lamento muito o divórcio de Numantina. Não sabia de nada até que o liberto me contou há pouco.
Metete na cama e pára de falar,
Boa noite, Urgulanila. Estou na verdade muito...
Calate. Ela aproximouse e fechou a cortina.
Embora estivesse morto de cansaço e mal pudesse ter os olhos abertos, fiz todos os possíveis por ficar
acordado. Estava convencido que Urgulanila iria esperar até eu adormecer para me estrangular.
Entretanto, ela puserase a ler muito devagar um livro muito aborrecido, uma história de amor grega das
mais idiotas, virando ruidosamente as folhas e soletrando cada sílaba lentamente para si própria num
sussurro meio rouco.
Oh sábio, dizia ela, provaste agora o mel e ofel, Tem cuidado não vá a doçura do teu prazer tor
narse amanhã na amargura do arrependimento!
275
Pfff, repliquei, Minha Querida, estou pronto, se me deres outro beijo como o anterior, para ser
torrado em fogo lento como um frango ou um pato.
Ela soltou uma risada ao ler isto e depois disse em voz alta:
Dorme, marido. Estou à espera que comeces a ressonar. Protestei:
Então, não devias ler histórias tão excitantes. Passado um bocado, ouvi Pláucio ir para a cama.
Oh céus, pensei Ele vai adormecer dentro de alguns minutos e, com duas portas a separarnos, não vai
ouvir os meus gritos quando Urgulanila me estrangular.
Urgulanila parou de ler e deixei de ter o seu murmúrio e o roçar do papel para me ajudar a lutar contra o
sono. Sentime adormecer, Adormeci. Sabia que estava a dormir e que tinha que acordar. Lutei
freneticamente para ficar acordado. Finalmente acordei. Houve uma pancada seca e um restolhar de papel.
O livro devia ter sido soprado de cima da mesa para o chão. A porta parecia estar aberta. Escutei
atentamente durante cerca de três minutos. Seguramente, Urgulanila não estava no quarto.
Enquanto estava a tentar decidirme sobre o que havia de fazer, ouvi o grito mais pavoroso parecia muito
próximo. Uma mulher gritava:
Não me façam mal! Não me façam mal! Isto é coisa de Numantina! Oh! Oh!
Depois ouviuse o embate de um objecto de metal pesado a cair, seguido do estalar de vidros partidos,
outro grito, uma pancada distante, seguida de passos apressados no corredor. Alguém estava de novo no
meu quarto. A porta foi fechada devagar e trancada. Reconheci a respiração ofegante de Urgulanila.
Ouviaa tirar a roupa e pôla numa cadeira. Logo que a senti deitada a meu lado, fingi que dormia. Ela
tateoume a garganta na escuridão. Eu disse, como se estivesse a acordar:
Não faças isso, querida. Fazme cócegas. E eu tenho que ir a Roma amanhã e comprarte uns cosméticos.
Depois, numa voz mais desperta,
Oh Urgulanila! És tu? O que é todo este barulho? Que horas são? já estamos a dormir há muito tempo?
Ela disse:
Não sei. Devo ter dormido umas três horas. Está quase a amanhecer. Parece que aconteceu alguma coisa
de terrível. Vamos ver.
Assim, levantámonos, vestimonos à pressa e abrimos a porta. Pláucio nu, apenas com uma coberta
enrolada à pressa em volta do corpo, encontravase no meio de uma multidão excitada, munida de
archotes. Ele mostravase perturbado e dizia repetidamente:
Não fui eu que fiz isto. Eu estava a dormir. Senti que ma arrancavam dos braços e ouvia ser levada
pelos ares a gritar por socorro; depois, ouvi o barulho de qualquer coisa a cair e outro estrondo, quando ela
saíu
276
pela janela. Estava escuro como breu. Ela gritava: ”Não me façam mal! Isto é coisa de Numantina.”
Diz isso aos juízes, atalhou a voz do irmão de Aprónia, aproximandose, e vais ver se eles te
acreditam. Foste tu que a mataste. Ela tem o crânio esmagado.
Não fui eu, disse Pláucio. Como é que eu podia ter feito isso? Estava a dormir. Foi bruxaria.
Numantina é bruxa.
Ao romper do dia, ele foi levado diante do Imperador pelo pai de Aprónia. Tibério interrogouo
severamente. Disse agora que, enquanto ele dormia profundamente, ela se arrancara dos seus braços e se
pusera aos saltos pelo quarto e aos gritos, atirandose pela janela e estatelandose no pátio. Tibério obrigou
Pláucio a acompanhálo imediatamente ao local do crime. A primeira coisa que ele notou no quarto foi o
seu presente de casamento a Pláucio, um belo candelabro egípcio em bronze e ouro retirado do túmulo de
uma rainha e que jazia agora quebrado no chão. Levantou os olhos e viu que tinha sido arrancado do tecto.
Disse:
Ela agarrouse a ele e fêlo cair. Estava a ser transportada para a janela aos ombros de alguém. Reparai
como o buraco da janela está alto. Ela foi atirada, não saltou sozinha.
Foi bruxaria, disse Pláucio. Ela foi arrastada pelos ares por um poder invisível. Gritou e culpou a
minha primeira mulher, Numantina, Tibério fez um riso de troça. Os amigos de Pláucio compreenderam
que ele ia ser acusado de assassinato e executado e os seus bens confiscados. A avó Urgulanila envioulhe
portanto um punhal, dizendolhe que pensasse nos seus herdeiros, que seriam autorizados a conservarlhe
os bens caso ele se antecipasse ao veredicto com o suicídio imediato. Ele era um cobarde e não conseguiu
enterrar o punhal. Por fim, meteuse num banho quente e ordenou a um médico que lhe cortasse as veias;
lentamente e sem dor esvaiuse em sangue. Sentime muito mal com a morte dele, Não tinha acusado
imediatamente Urgulanila do assassinato, porque me teriam perguntado porque não tinha saltado da cama
e salvado Aprónia quando ouvi os primeiros gritos. Decidira esperar pelo julgamento e só me apresentar a
depor se houvesse indicações de que Pláucio ia ser condenado. Não soube nada sobre o punhal até ser
tarde demais. Consoleime com o pensamento de que ele tinha tratado Numantina com grande crueldade e,
além do mais, tinha sido um mau amigo para mim. Para aclarar a memória de Pláucio, o irmão dele
acusou Numantina de ter perturbado o espírito de Pláucio com bruxarias. Mas Tibério interveio e disse
que constatara que Pláucio estava em pleno poder das suas faculdades na altura. Numantina foi absolvida.
Não houve qualquer outra troca de palavras entre Urgulanila e eu próprio. Mas, um mês mais tarde,
quando passava por Cápua, Sejano visitoume de surpresa. Estava na companhia de Tibério, a caminho de
277
Capri, uma ilha perto de Nápoles onde Tibério tinha doze villas e onde ia frequentemente para se
divertir. Sejano disse:
Agora poderás divorciarte de Urgulanila. Ela vai ter um filho dentro de cinco meses, segundo me
informaram os meus agentes. E é a mim que tens que agradecer. Eu sabia da obsessão de Urgulanila por
Numantina. Calhou eu ver um jovem escravo, um grego, que podia ter sido gémeo de Numantina. Ofereci
o a Urgulanila e ela apaixonouse imediatamente por ele. O seu nome é Boter.
O que podia eu fazer, a não ser agradecerlhe?! Depois, perguntei:
E quem vai ser a minha nova esposa?
Quer dizer que te lembras da nossa conversa? Bom, a dama que tenho na ideia é a minha irmã adoptiva:
Élia. Conhecela, claro. Conhecia, mas escondi o desapontamento e limiteime a perguntar se
alguém tão jovem, bela e inteligente, se contentaria em casar com um velho tolo, coxo, doente e gago
como eu.
Ah, respondeu ele brutalmente, não se vai importar minimamente. Vai casar com o sobrinho de
Tibério e tio de Nero e é só nisso que ela pensa. Não imagines que está apaixonada por ti. Pode mesmo
chegar a ter um filho contigo por causa da sua linhagem, mas quanto a sentimentos...
Na verdade, aparte a honra de me tornar teu cunhado, não valia a pena divorciarme de Urgulanila, pois
não haverá grande melhoria na minha vida.
Ah, tu arranjaste bem, riu. Não levas uma vida muito solitária aqui, a julgar pelo que vejo neste
quarto. Dá para perceber que há por aí uma bela mulher. Luvas, um espelho de mão, um bastidor, essa
caixa de guloseimas, flores cuidadosamente arranjadas. E Élia não irá sentir ciúmes. Provavelmente,
também tem as suas amizades com homens, embora eu não me imiscua na sua vida.
Está bem, disse. Eu caso,
Não me pareces muito agradecido.
Não se trata de ingratidão. Tiveste bastante incómodo por minha causa e não sei como agradecerte
devidamente. Estava apenas a sentirme um bocado nervoso. Por aquilo que sei de Élia, ela é um tanto
crítica, se percebes o que quero dizer.
Ele largou a rir.
Ela tem uma língua que é como uma agulha de coser sacas. Mas certamente já estás couraçado contra
simples descomposturas. A tua mãe deute um bom treino, não é verdade?
Ainda tenho a pele um bocado sensível, repliquei, em certas áreas.
Bom, não posso ficar aqui mais tempo, meu caro Cláudio. Tibério deve estar a pensar onde terei ido.
Está então combinado?
278
Sim, e agradeçote muito.
Oh, a propósito, foi Urgulanila quem matou a pobre Aprónia, não foi? Eu estava mais ou menos à espera
de uma tragédia. Urgulanila recebeu uma carta de Numantina, pedindolhe que a vingasse. Numantina não
foi propriamente quem escreveu a carta, entendes?
Não sei de nada. Estava a dormir profundamente na altura.
Como Pláucio?
Ainda mais profundamente que Pláucio.
Muito sensato! Bom, adeus, Cláudio. Adeus, Élio Sejano.
Ele foise embora.
Divorcieime de Urgulanila, depois de ter escrito primeiro à minha avó a pedir autorização. Lívia escreveu
que a criança devia ser abandonada logo que nascesse; era este o desejo dela, assim como de Urgulanila.
Enviei um liberto de confiança a Urgulanila em Herculano, para a informar das ordens que eu recebera,
prevenindoa que, se queria que a criança vivesse, a devia trocar, logo que nascesse, por um bebé morto;
eu tinha que ter um bebé qualquer para abandonar e, desde que não estivesse morto há muito tempo,
qualquer um servia. Assim, a criança foi salva dessa forma e, mais tarde, Urgulanila retiroua aos pais
adoptivos, de quem recebera o bebé morto. Não sei o que aconteceu a Boter, mas a criança, uma rapariga,
cresceu, tornandose o vivo retrato de Numantina, segundo dizem. Urgulanila já morreu há vários anos.
Quando ela morreu, tiveram que derrubar uma parede para retirar da casa o corpo enorme e era todo ele
maciço, nada de hidropisia. No seu testamento, rendeume um curioso tributo: ”Não me interessa o que as
pessoas dizem, mas Cláudio não é nenhum tolo.” Deixoume uma colecção de jóias gregas, alguns
bordados persas e o seu retrato de Numantina.
279
CAPÍTULO XXIV
Actualmente, Tibério e Lívia nunca se encontravam. Lívia tinha ofendido Tibério ao consagrar uma
estátua a Augusto em nome de ambos pondo primeiro o nome dela. Ele retaliou fazendo a única coisa que
ela não podia sequer fingir que perdoava quando embaixadores
da Hispânia o foram procurar, perguntandolhe se podiam erigir um templo a ele e à mãe, Tibério recusou
em nome de ambos.
Disse ao Senado que tinha, talvez num momento de fraqueza, permitido a consagração de um templo na
Ásia ao senado e ao seu Chefe (ou seja, ele próprio) simbolizando no seu conjunto o governo paternal de
Roma. O nome da mãe também apareceu na inscrição da dedicatória, como Suma Sacerdotisa do culto de
Augusto. Mas dar o seu assentimento à divinização dele próprio e da mãe seria levar a indulgência
demasiado longe.
Pela minha parte, meus senhores, o facto de ser um homem mortal, de estar preso aos obstáculos da
natureza humana e de preencher a vosso contento o lugar principal entre vós, se é que o faço, garantovos
solenemente que é o bastante para mim: é assim que prefiro ser lembrado pela posteridade. Se a
posteridade considerar que fui digno da minha ancestralidade, vigilante dos vossos interesses, inabalável
no perigo e na defesa do bem comum, destemido perante os inimigos privados, serei suficientemente
lembrado. A gratitude carinhosa do Senado, do povo de Roma e dos nossos aliados é o mais belo templo
que eu poderia erigir; um templo não de mármore, mas mais duradouro que o mármore, um templo do
coração. Os templos de mármore, quando os seres consagrados a quem são erigidos caem em desgraça,
são desprezados como meros sepulcros. Invoco portanto os Céus para que me concedam até ao fim da
minha vida um espírito sereno e uma capacidade de discernimento clara em todos os deveres humanos e
sagrados. Portanto, imploro também a todos os nossos cidadãos e aliados que, quando quer que a
decomposição se apoderar deste meu corpo mortal, eles celebrem a minha vida e os meus feitos (se disso
forem merecedores), com gratidão e louvores interiores, de preferência a pompas exteriores, à construção
de templos ou à execução de sacrifícios anuais. O verdadeiro amor que Roma sentia por meu pai Augusto
quando ele estava entre nós como homem já foi obscurecido, tanto pelo temor que a sua divindade excita
nas pessoas de
281
espírito religioso, como pelo uso indiscriminado do seu nome como imprecação na praça do mercado. Enquanto
estamos a falar deste assunto, meus Senhores, proponho que, a partir de agora, tornemos uma ofensiva criminosa o
uso do nome sagrado de Augusto sem ser na mais solene das ocasiões e que implementemos esta lei com todo o
vigor.
Não houve qualquer referência aos sentimentos de Lívia a esse respeito. Na véspera, ele tinhase recusado a nomear
um dos nomes indicados por ela para um juizado vago, a menos que lhe fosse permitido acrescentar à nomeação:
”Esta pessoa é escolha de minha mãe, Lívia Augusta, a cuja insistência a favor da mesma fui obrigado a ceder,
contra tudo o que sei sobre o seu carácter e capacidades.”
Pouco depois, Lívia convidou todos os nobres de Roma para um espectáculo que iria durar todo o dia. Havia
malabaristas e acrobatas, declamação de poemas, bolos maravilhosos, doces e bebidas e uma bela jóia para cada um
dos convidados como lembrança da ocasião. A concluir a sessão, Lívia fez uma leitura das cartas de Augusto. Estava
agora com oitenta e três anos, a sua voz era fraca e fazia sibilar fortemente os ”s”, mas, durante uma hora e meia,
manteve a assistência fascinada. As primeiras cartas que leu continham proclamações sobre a política de Estado e
todas elas pareciam ter sido especialmente escritas contra o presente estado de coisas em Roma. Havia alguns
comentários muito adequados sobre julgamentos por traição, incluindo o seguinte parágrafo:
Embora tenha sido obrigado a protegerme legalmente contra toda a espécie de libelos, empenharmeei ao máximo,
minha querida Lívia, para evitar pôr em andamento um espectáculo tão desagradável como um julgamento por
traição para benefício de qualquer historiador tolo, caricaturista ou autor de epigramas que tenha feito de mim o alvo
do seu humor ou eloquência. Meu pai Júlio César perdoou ao poeta Catulo os mais vis libelos difamatórios que
podeis imaginar: ele escreveu a Catulo que, se estava a tentar mostrar que não era nenhum bajulador servil como a
maior parte dos outros poetas, já tinha provado bem o que pretendia e podia retomar outros assuntos mais poéticos,
em vez das anormalidades sexuais de um estadista de meia idade; e aceitaria um convite para jantar no dia seguinte,
acompanhado por qualquer amigo que desejasse! Catulo veio e, a partir daí, os dois foram grandes amigos. Usar a
majestade da lei para vingar qualquer acto mesquinho de raiva pessoal é fazer uma confissão pública de fraqueza e
cobardia e revelar um espírito ignóbil.
Havia um parágrafo notável sobre informadores:
Excepto nos casos em que estou convencido de que um informador não espera beneficiar directa ou indirectamente
das suas acusações, mas
282
que as mesmas se devem a um sentimento de verdadeiro patriotismo e decência pública, não só recuso a sua
importância como prova, como aponho uma marca negra ao nome desse informador e não volto a empregálo em
qualquer posição de confiança...
Para terminar, leu uma série de cartas muito esclarecedoras. Lívia tinha dezenas de milhar de cartas de Augusto,
escritas ao longo de cinquenta e dois anos, cuidadosamente cosidas em forma de livro e indexadas. Escolheu entre
estes milhares as quinze mais devastadoras que encontrou. A série começou com queixas contra o comportamento
inaceitável de Tibério quando rapazinho, a sua falta de popularidade entre os colegas quando estudante, a sua
avareza e altivez na juventude, e assim por diante, com sinais de irritação crescente e a frase, muitas vezes repetida,
”e se não fosse por ele ser vosso filho, minha querida Lívia, eu diria... Depois, vinham as queixas da sua severidade
brutal com os soldados que estavam sob o seu comando ”quase um convite ao motim” e a sua lentidão em atacar o
inimigo, com comparações desfavoráveis entre os seus métodos e os de meu pai. Depois, uma recusa irada em o
considerar como genro e uma lista detalhada dos seus defeitos morais. Seguiamse mais cartas relacionadas com a
triste história de Júlia, escritas na sua maior parte em termos de uma aversão e uma repulsa quase doentias por
Tibério. Lívia leu uma carta importante, escrita na ocasião em que Tibério, foi chamado de Rodes:
Queridíssima Lívia,
Aproveito este quadragésimo segundo aniversário do nosso casamento para vos agradecer de todo o meu coração os
serviços extraordinários que prestastes ao Estado desde que unimos as nossas forças. Se eu sou chamado o Pai da
Pátria, pareceme absurdo que vós não sejais chamada a Mãe da Pátria: juro que fizestes duas vezes aquilo que eu fiz
durante a nossa grande obra de reconstrução pública. Porque me pedis para esperar mais alguns anos, antes de pedir
ao Senado para vos votar essa honra? A única forma que tenho de mostrar a minha absoluta confiança na vossa
lealdade desinteressada e julgamento profundo é aceder finalmente às vossas súplicas repetidas para que faça
regressar Tibério, um homem em relação a cujo carácter confesso que continuo a sentir a maior repugnância e peço
aos céus que, ao cedervos neste ponto, não esteja a infligir danos duradouros no bem público.
A última escolha de Lívia foi uma carta escrita cerca de um ano antes da morte de Augusto:
Experimentei um sentimento repentino do mais profundo pesar e desespero, minha querida esposa, ao discutir
política estatal com Tibério
283
ontem, ao pensar que o povo de Roma estava destinado a ser olhado com dureza por aqueles seus olhos
salientes, batido por aquele punho ossudo, mascado por aqueles maxilares terrivelmente lentos e pisado
por aqueles pés enormes. Mas, de momento, não estava a pensar em vós nem no nosso querido
Germânico. Se não acreditasse que, quando eu morrer, ele será guiado tanto por vós em todas as questões
de estado como envergonhado pelo exemplo de Germânico, seguindo algo que se assemelhe pelo menos a
uma vida decente, eu era capaz, mesmo agora, de o deserdar e pedir ao Senado que lhe retirasse todos os
títulos honoríficos. O homem é um animal e precisa que tomem conta dele.
Quando terminou, levantouse e disse:
Talvez, minhas senhoras, seja melhor não dizerdes nada aos vossos maridos sobre estas cartas tão
peculiares. Não me apercebi na realidade, quando comecei a ler, quão peculiares elas eram. Não
vos faço este pedido por causa de mim própria, mas pelo Império.
Tibério soube toda a história por Trajano, quando se preparava para ocupar o seu lugar no
Senado, tendo ficado cheio de vergonha, raiva e preocupação. Era o caso que o seu trabalho nessa
tarde consistia em ouvir uma acusação de traição levantada contra Lêntulo, um dos pontífices
sobre quem tinham recaído suspeitas na questão da prece por Nero e Druso e também por ter
votado a favor da mitigação da sentença de Sósia. Quando Lêntulo, um velho simples, que se
distinguia igualmente pelo nascimento, pelas suas vitórias em África sob o comando de Augusto
e pela sua brandura despretensiosa a alcunha dele era O Carneiro Guia soube que era acusado de
conspirar contra o Estado, largou a rir. Tibério, já perturbado, perdeu completamente o controlo e
disse, quase a chorar, para a Casa:
Se também Lêntulo me odeia, sou indigno de viver. Caio replicou:
Alegraivos, majestade peço perdão, tinhame esquecido que odiais o título , devia ter dito
Alegrate, Tibério César! Lêntulo não estava a rirse de ti, mas contigo. Estava a regozijarse
contigo por finalmente ter aparecido perante o Senado uma acusação de traição absolutamente
infundada.
E assim a acusação contra Lêntulo foi posta de lado. Mas Tibério já tinha causado a morte ao pai
de Lêntulo. Ele era imensamente rico e tinha ficado de tal forma assustado com as suspeitas de
Tibério a seu respeito, que se suicidara; como prova de lealdade deixara toda a sua fortuna a
Tibério que, depois disso, não podia acreditar que Lêntulo, que entretanto ficara pobre, não lhe
guardasse ressentimento.
Tibério não voltou a entrar no Senado durante dois meses completos: não conseguia olhar de
frente para os senadores, sabendo que as mulheres
284
deles tinham ouvido as cartas de Augusto a seu respeito. Sejano sugeriu que lhe faria bem à saúde deixar
Roma por algum tempo e ficar a algumas milhas de distância numa das suas villas, onde escaparia à
multidão diária de visitantes do Palácio e ao barulho e agitação da Cidade. Ele seguiulhe o conselho. A
atitude que tomou contra a mãe foi aposentála, omitir o seu nome de todos os documentos públicos e
acabar com as habituais honras de aniversário, deixando bem claro que qualquer associação do nome dela
com o seu ou qualquer louvor que lhe fosse dirigido no Senado seria considerado como muito próximo da
traição. Mas não ousou assumir uma vingança mais activa, Sabia que ela ainda tinha a carta que ele
escrevera de Rodes prometendolhe obediência para toda a vida e também a sabia capaz de a ler, embora
isso a pudesse incriminar como assassina de Caio e Lúcio.
Mas esta velhinha maravilhosa ainda não estava derrotada, como ireis ler. Um dia, recebi um bilhete dela:
”Dona Lívia Augusta espera a visita do seu querido neto Tibério Cláudio por ocasião do seu aniversário
para jantar com ela; espera também que ele esteja de boa saúde.” Não conseguia perceber. Eu, o seu
querido neto! Um interesse carinhoso pela minha saúde! Não sabia se devia rirme ou ter medo. Nunca em
toda a minha vida eu fora autorizado a visitála no dia do seu aniversário. Nunca tinha sequer jantado com
ela. Havia dez anos que não falávamos, a não ser no contexto cerimonial do festival Augustano. Qual
podia ser o motivo do convite? Bom, dentro de três dias saberia e, entretanto, tinha que lhe comprar um
presente verdadeiramente magnífico. Finalmente, compreilhe uma coisa que tinha a certeza que ela ia
apreciar um vaso para vinho, em bronze, de forma graciosa, com cabeças de serpente no lugar das asas e
um desenho complicado embutido a ouro e prata. Era, na minha opinião, um trabalho muito mais
requintado que qualquer dos vasos coríntios pelos quais os coleccionadores pagam preços tão absurdos
hoje em dia. Este tinha vindo da China! No centro do desenho tinham incrustado um medalhão de
Augusto em ouro que, de alguma forma, fora parar àquela terra maravilhosamente distante. Aquele vaso
custoume 500 moedas de ouro, embora não tivesse mais de cinquenta e cinco centímetros de altura.
Mas antes de falar da minha visita e da minha longa entrevista com ela, tenho que esclarecer um ponto
sobre o qual talvez vos tenha criado uma ideia errónea. Das minhas descrições dos julgamentos por traição
e outras atrocidades semelhantes, poderseá talvez deduzir que, durante a governação de Tibério, o
Império foi intoleravelmente mal governado em todos os aspectos. Isto está longe da verdade. Embora ele
não tivesse realizado trabalhos públicos novos de que valha a pena falar, contentandose apenas em
completar aqueles que tinham sido começados por Augusto, manteve a Marinha e o Exército eficientes e
com a força necessária, pagava
285
regularmente aos seus funcionários e faziaos apresentar relatórios detalhados quatro vezes por ano;
encorajou o comércio, garantiu à Itália um fornecimento regular de trigo, manteve as estradas e os
aquedutos em bom estado de conservação, limitou a extravagância pública e privada de diversas maneiras,
estabilizou os preços dos alimentos, fez diminuir a pirataria e o banditismo e constituiu uma considerável
reserva de dinheiro público para o caso de alguma emergência nacional.
Manteve ao serviço durante muitos anos os seus governadores provinciais, caso fossem bons, para não
criar insegurança, mantendoos no entanto sob apertada vigilância. Um governador, para mostrar a sua
eficiência e lealdade, enviou a Tibério mais tributo que o que lhe era devido. Tibério deulhe uma
reprimenda: ”Eu quero os meus carneiros tosquiados, não rapados.” Como resultado, houve poucas
guerras de fronteira depois de resolvido o problema da Germânia, com o bom acolhimento dado a
Marobodo em Roma e com a morte de Hermann. Tacfarinas era o inimigo principal. Foi conhecido
durante muito tempo como o distribuidor de louros, porque três generais o meu amigo Fúrio, Aprónio
(pai de Aprónia) e um terceiro, Blaeso, tio materno de Sejano o tinham derrotado, cada um por sua vez,
recebendo por isso ornamentos triunfais. Blaeso, que desbaratou o exército de Tacfarinas e capturou o
irmão dele, recebeu a honra invulgar de ser feito marechal de campo, uma honra geralmente reservada
apenas à família imperial. Tibério disse ao Senado que estava satisfeito por homenagear Blaeso daquela
forma por causa do seu parentesco com o seu fiel amigo Sejano; e quando, três anos mais tarde, um quarto
general, Dolabela, pôs um ponto final na Guerra Africana, que estalara de novo com força redobrada, não
apenas derrotando Tacfarinas, mas matandoo, apenas recebeu triunfos ornamentais, ”não fossem os
louros de Blaeso, tio do meu fiel amigo Sejano, perder o seu brilho.”
Mas eu estava a falar dos bons feitos de Tibério, não das suas fraquezas; e na verdade, do ponto de vista
do Império, de uma maneira geral, ele fora ao longo dos últimos doze anos um governante sensato e justo.
Isso ninguém pode negar. O cancro no âmago da maçã se me perdoam a metáfora não era visível na
pele nem prejudicava a saúde da pele. Dos 5.000.000 de cidadãos romanos, apenas 200 ou 300 sofreram
pelos
receios invejosos de Tibério. E eu não sei quantas dezenas de milhar de escravos, gentes da província e
aliados que eram súbditos
em tudo menos no nome, beneficiavam substancialmente com o sistema Imperial, tal como foi
aperfeiçoado por Augusto e Lívia e continuado dentro da mesma tradição por Tibério. Mas eu estava a
viver no âmago da maçã, por assim dizer, e posso ser perdoado se escrevo mais sobre esse cancro central
do que sobre a parte exterior, ainda intacta e perfumada.
Sempre que abres caminho a uma metáfora, Cláudio, o que é raro, levala longe demais. Deves certamente
lembrarte das exortações de
286
Atenodoro contra este tipo de coisa? Bom, chama a Sejano o verme e acaba com isso; depois, volta ao teu
estilo habitual, sem ornatos.
Sejano decidiu usar o sentido de vergonha de Tibério como meio para o manter afastado da cidade por
mais do que apenas dois meses. Encorajou um dos oficiais da Guarda a acusar um brincalhão consagrado
chamado Montano de denegrir o carácter privado de Tibério. Enquanto que até aí os acusadores tinham
sido impedidos de relatar outros abusos de Tibério, a não ser os de carácter mais geral como altivo, cruel
ou dominador , este soldado apresentouse a acusar Montano de libelos de um tipo muito particular e
substancial. Sejano encarregouse de que os libelos tivessem tanto de verdadeiros como de repelentes;
embora Montano, não tendo o conhecimento de Sejano sobre o que se passava no Palácio, não os tivesse
pronunciado. A testemunha, que era o melhor instrutor de treinos da Guarda, apregoou em voz bem alta as
alegadas obscenidades de Montano, não hesitando nas palavras ou frases mais obscenas e não deixando
que os protestos chocados dos senadores lhe abafassem a voz.
Jurei dizer toda a verdade, berrou, e, pela honra de Tibério César, não omitirei um único artigo da
repulsiva conversação do acusado, ouvido por mim na data indicada e nas circunstâncias relatadas. O
acusado declarou ainda que o nosso gracioso Imperador se está rapidamente a tornar impotente por causa
dos ditos alegados deboches e pelo abuso de medicamentos afrodisíacos, e que, para revigorar os seus
enfraquecidos poderes sexuais, organiza exibições privadas mais ou menos de três em três dias, numa sala
subterrânea do Palácio especialmente decorada. O acusado declarou que os que actuavam nestas
exibições, são chamados ”Spintrianos” e entram aos saltos, três de cada vez, completamente nus ...”
Continuou daquela forma durante meia hora e Tibério não ousou fazêlo parar ou talvez quisesse
descobrir até onde a situação era conhecida , até que a testemunha disse uma coisa mais (não interessa o
quê). Tibério, perdendo a cabeça, levantouse num salto repentino, com a face vermelha, e declarou que ia
de imediato ilibarse daquelas acusações monstruosas ou instaurar uma investigação judicial. Sejano
tentou acalmálo, mas ele continuou de pé, olhando em volta, furioso, até que Caio se levantou e lhe fez
lembrar que era Montano e não ele o acusado; que o seu carácter privado estava fora de suspeita; e que, se
a notícia de que tal investigação estava a ter lugar chegasse às províncias fronteiriças e aos estados
aliados, ela seria completamente pervertida.
Pouco depois, Tibério foi prevenido por Trasilo se isto foi arranjado por Sejano não sei de que devia
em breve deixar a Cidade e que, se voltasse a entrar nela, isso significaria a sua morte. Tibério disse a
Sejano que ia mudarse para Capri e deixálo a tomar conta de tudo em Roma. Ainda assistiu a mais um
julgamento por traição o da minha prima Cláudia Pulcra, viúva de Varo, que, agora que Sósia tinha sido
exilada,
287
era a amiga mais íntima de Agripina. Foi acusada de adultério, de prostituir as filhas e de feitiçaria contra
Tibério. Estava, creio eu, totalmente inocente de todas estas acusações. Logo que Agripina soube do que
se estava a passar, acorreu ao Palácio e, por acaso, encontrou Tibério oferecendo um sacrifício a Augusto.
Pouco antes da cerimónia estar terminada, aproximouse dele e disse:
Tibério, este comportamento é ilógico. Sacrificas flamingos e pavões a Augusto e persegues os seus
netos.
Ele disse lentamente:
Não entendo. Quais são os netos de Augusto que eu persigo que não tenham sido perseguidos por ele
próprio?
Não estou a falar de Póstumo e Julila. Falo de mim própria. Exilaste Sósia porque era minha amiga.
Obrigaste Sílio a suicidarse porque era meu amigo. E Calpúrnio porque era meu amigo. E agora a minha
querida Pulcra também está condenada, embora o seu único crime seja a sua tola estima por mim. As
pessoas estão a começar a evitarme, dizendo que lhes trago má sorte.
Tibério agarroua pelos ombros e disse uma vez mais:
E se nãofores rainha, minha querida, Sentirteás injustiçada?
Pulcra foi condenada e executada. O Promotor da Coroa era um homem chamado Afer, escolhido por
causa da sua eloquência. Alguns dias mais tarde, Agripina encontrouo por acaso fora do teatro. Parecia
envergonhado de si próprio e evitava cruzar o olhar com o dela. Agripina aproximouse e disselhe:
Não vale a pena escondereste de mim, Afer.
Depois citou Homero, mas com alterações adaptadas ao contexto, a resposta tranquilizadora de Aquiles
aos embaraçados arautos que foram procurálo com uma mensagem humilhante de Agamérrmon. Disse
lhe:
Ele obrigoute a isso. Emborafosses bem pago
A acção nãofoi tua, mas de Agamémnon.
Isto foi relatado a Tibério, (embora não por Afer); a palavra Agamémnon provocoulhe novo sobressalto.
Agripina adoeceu e pensou que estaria a ser envenenada. Fui na sua liteira ao Palácio para fazer um último
apelo de misericórdia a Tibério. Estava tão magra e pálida que Tibério ficou encantado: talvez ela
morresse em breve. Comentou:
Minha pobre Agripina, pareces gravemente doente. O que se passa contigo?
288
Ela respondeu com voz fraca:
Pode ser que tenha sido injusta contigo ao pensar que persegues os meus amigos só por eles serem meus
amigos. Pode ser que eu seja pouco feliz na minha escolha ou que as minhas opiniões estejam muitas
vezes erradas. Mas juro que te enganaste igualmente a meu respeito ao pensar que tenho o mais leve
sentimento de deslealdade para contigo, ou que tenho qualquer ambição de governar, quer directa quer
indirectamente. Tudo aquilo que peço é que me deixem em paz e peço o teu perdão por qualquer injúria
que possa terte feito inadvertidamente e... e...
Terminou a soluçar.
E que mais?
Oh Tibério, sê bom para os meus filhos! E sê bom para mim! Deixame voltar a casar. Estou tão só.
Desde que Germânico morreu que não consigo esquecer os meus problemas. à noite, não consigo dormir.
Se me deixares casar eu assento e perco esta minha inquietação; serei uma pessoa diferente. Talvez então
deixes de suspeitar que conspiro contra ti. Tenho a certeza que é só por eu parecer tão infeliz que pensas
que tenho maus sentimentos a teu respeito.
Quem é o homem com quem queres casar?
Um homem bom, generoso, ambicioso, que já passou da meiaidade e que é um dos teus ministros mais
leais.
Qual o nome dele?
Caio. Ele diz que está pronto para casar comigo imediatamente. Tibério deu meia volta e saíu do quarto
sem dizer mais nada. Alguns dias mais tarde, convidoua para um banquete. Era costume seu convidar
para jantar com ele as pessoas de quem desconfiava particularmente e ficar a olhálas durante a refeição,
como se tentasse lerlhes os pensamentos, o que abalava a presença de espírito de todos, com raras
excepções. Se eles se mostravam alarmados, ele interpretava isso como prova da sua culpa. Se o
encaravam sem vacilar, tomavao como prova de culpa ainda mais forte, acrescentandolhe a insolência.
Nesta ocasião, Agripina, ainda doente e incapaz de comer a não ser os alimentos mais ligeiros sem uma
sensação de náusea, ficou todo o tempo a olhar para Tibério e sentiuse profundamente infeliz. Ela não era
uma pessoa faladora e a conversa, que era acerca dos méritos relativos da música e da filosofia, não a
interessava minimamente, deixandoa impossibilitada de contribuir para a mesma. Fingiu que comia, mas
Tibério, que a obser vava com atenção, viu que ela deixava os pratos intactos, um a seguir ao outro.
Pensou que suspeitava que a estivessem a tentar envenenar e, para ter a certeza, pegou cuidadosamente
numa maçã que tirou da travessa que tinha diante dele e disse:
289
Minha querida Agripina, não comeste praticamente nada. Pelo menos, prova esta maçã. é excelente. Tive
um presente de árvores novas do Rei da Pártia há três anos e esta é a primeira vez que dão fruto.
A verdade é que todas as pessoas têm um inimigo natural se é que posso chamarlhe assim. Para algumas
pessoas, o mel é um veneno poderoso. Outros, ficam doentes só por tocarem num cavalo, entrarem num
estábulo ou mesmo por se deitarem num canapé com crina de cavalo. Outros ainda são desagradavelmente
afectados pela presença de um gato e, quando entram numa sala, dizem por vezes: ”Esteve aqui um gato,
desculpem que me retire.” Eu próprio sinto uma repugnância insuportável pelo cheiro do espinheiro em
flor. O inimigo natural de Agripina era a maçã. Ela recebeu a oferta da mão de Tibério e agradeceulhe,
mas com um estremecimento mal disfarçado, e disse que ia guardála, se ele lho permitia, para comer
quando chegasse a casa.
Só uma dentada agora, para veres como é boa.
Desculpame, por favor, mas não consigo. Entregou a maçã a um criado e disselhe que lha
embrulhasse cuidadosamente num guardanapo.
Porque é que Tibério não a julgou imediatamente sob acusação de traição, como Sejano insistia que
fizesse? Porque Agripina ainda estava sob a protecção de Lívia.
290
CAPÍTULO XXV
E assim cheguei ao relato do meu jantar com Lívia. Ela saudoume muito afavelmente, parecendo
genuinamente encantada com a minha oferta. Durante a refeição, à qual mais ninguém esteve presente a
não ser a velha Urgulanila e Calígula, agora com catorze anos de idade um rapaz alto e pálido, com os
olhos encovados e o rosto manchado de pústulas , ela surpreendeume com a sua agudeza de espírito e
clareza de memória. Perguntoume sobre o meu trabalho e, quando comecei a falar sobre a Primeira
Guerra Púnica, depreciando certos pormenores apresentados pelo poeta Névio (que tinha servido nesta
guerra), ela concordou com as minhas conclusões, mas apanhoume numa citação errada. Disse:
Agora estásme grato, não estás, meu neto, por não te ter deixado escrever aquela biografia de teu pai?
Achas que estarias a jantar aqui hoje, se eu não tivesse intervido?
Cada vez que o escravo enchia a minha taça eu tinhaa despejado imediatamente e agora, à décima ou
décima segunda dose, sentiame que nem um leão. Respondi desafrontadamente:
Extremamente grato, minha Avó, por me encontrar em segurança entre os cartaginenses e os etruscos.
Mas quereríeis explicarme porque estou eu a jantar hoje aqui?
Ela sorriu:
Bom, admito que a tua presença à mesa ainda me causa uma certa dose de... Mas deixemos isso. Se
quebrei uma das minhas regras mais antigas, isso é problema meu, não teu. Tu detestasme, Cláudio? Sê
franco.
Provavelmente tanto como vós me detestais a mim, minha Avó.
Seria possível que aquela fosse a minha própria voz que falava? Calígula fez um trejeito de troça,
Urgulanila riu em silêncio e Lívia riuse abertamente:
Suficientemente franco! A propósito, reparaste naquele monstro ali? Tem estado invulgarmente
sossegado durante a refeição.
Quem, Avó?
Aquele teu sobrinho.
E ele é um monstro?
Não finjas que não sabes. Tu és um monstro, não és, Calígula?
291
Se vós o dízeis, minha bisavó, replicou Calígula, com os olhos baixos,
Bom, Cláudio, aquele monstro ali, o teu sobrinho vou falarte dele. Vai ser o próximo Imperador.
Pensei que era uma brincadeira, Disse sorridente:
Se o dizeis, minha Avó, é porque assim é. Mas quais são as suas recomendações? Ele é o mais novo da
família e, embora tenha dado provas de grande talento natural...
Queres dizer que nenhum deles tem qualquer hipótese contra Sejano e a tua irmã Livila?
Fiquei espantado com a liberdade da conversa.
Não queria dizer nada disso. Nunca me preocupo com altas políticas. Apenas queria dizer que ele ainda é
jovem, demasiado jovem para ser Imperador e que, como profecia, me parece um tanto remota.
Nada disso. Tibério vai fazêlo seu sucessor. Quanto a isso não restam dúvidas. Porquê? Porque Tibério
é assim mesmo. Ele tem a mesma vaidade que tinha o pobre Augusto: não pode suportar a ideia de um
sucessor que seja mais popular do que ele. Mas, ao mesmo tempo, faz tudo o que pode para se fazer odiar
e temer. Assim, quando sentir que o seu tempo está a terminar, irá procurar alguém que seja um pouco
pior que ele para lhe suceder. E vai encontrar Calígula. Há um feito que Calígula já realizou, que o coloca
num nível de criminalidade superior ao que Tibério alguma vez alcançará.
Por favor, Bisavó... suplicou Calígula.
Muito bem, monstro, o teu segredo estará em segurança comigo desde que te portes bem.
Urgulanila está ao corrente do segredo? perguntei.
Não. Ele está apenas entre mim e o monstro.
Ele confessou voluntariamente?
Claro que não. Não é do tipo de confessar. Eu é que o descobri por acaso. Estava a revistar o quarto dele
uma noite, para ver se estava a tentar alguma partídinha de estudante contra mim se andava a fazer magia
negra como amador, por exemplo, a destilar venenos ou alguma coisa assim. Então encontrei...
Por favor, Bisavó.
Um objecto verde que me contou uma história notável. Mas depois deilho de volta.
Urgulanila disse com um riso irónico:
Trasilo diz que eu vou morrer este ano, portanto não terei o prazer de viver sob o teu reinado, Calígula, a
menos que te despaches a matar Tibério!
Volteime para Lívia,
Ele vai fazer isso, Avó?
292
Calígula disse:
É seguro contar coisas ao Tio Cláudio? Ou ides envenenálo? Ela respondeu:
Oh, ele é perfeitamente seguro, mesmo sem veneno. Quero que os dois se conheçam melhor. Há uma
razão para este jantar. Ouve, Calígula. O teu tio Cláudio é um fenómeno. É tão antiquado que, como fez o
juramento de amar e proteger os filhos do irmão, enquanto viveres, poderás sempre aproveitarte dele,
Escuta Cláudio. O teu sobrinho Calígula é um fenómeno. É traiçoeiro, cobarde, lascivo, vaidoso, falso e
háde pregarte algumas partidas muito sujas antes de chegar ao fim. Mas lembrate de uma coisa: ele
nunca te háde matar.
Porquê isso? perguntei, esvaziando de novo a minha taça. A conversa era do tipo daquelas que se têm
nos sonhos: louca mas interessante.
Porque tu és o homem que irá vingar a sua morte.
Eu? Quem o disse?
Trasilo.
Trasilo nunca comete erros?
Não. Nunca. Calígula vai ser assassinado e tu vingarás a sua morte. Fezse de repente um silêncio
sombrio que se estendeu até à sobremesa, quando Lívia declarou:
Vem, Cláudio, o resto da nossa conversa será em privado. Os outros dois levantaramse e deixaramnos
sós.
Eu disse:
A conversa pareceume muito estranha, minha Avó. Seria culpa minha? Terei bebido demais? O que
quero dizer é que algumas piadas não são seguras hoje em dia. É perigoso fazer certas brincadeiras.
Espero que os criados...
Ah, eles são surdosmudos. Não, não ponhas as culpas no vinho; e, no que me diz respeito, a conversa
foi absolutamente séria.
Mas... mas se o achais realmente um monstro, porque o encorajais? Porque não dais o vosso apoio a
Nero? Ele é um indivíduo como deve ser.
Porque Calígula, e não Nero, é que vai ser o próximo Imperador.
Mas, segundo aquilo que dizeis, ele vai ser maravilhosamente mau. E vós, que devotastes toda a vossa
vida ao serviço de Roma...
Sim. Mas não se pode lutar contra o Destino. E agora que Roma foi suficientemente ingrata e louca para
permitir que o patife do meu filho me pusesse na prateleira e me insultasse... a mim, consegues imaginar
uma coisa dessas, talvez a maior governante que o mundo alguma vez conheceu e ainda por cima, sua mãe
A voz dela tornouse esganiçada.
Eu estava ansioso por mudar de assunto. Disselhe:
293
Por favor, acalmaivos, Avó. Como dizeis, não se pode lutar contra o Destino. Mas não há alguma coisa
de especial que queirais dizerme, ligada a tudo isto?
Sim, é por causa de Trasilo. Consultoo com frequência. Tibério não sabe que o faço e que ele já esteve
aqui muitas vezes. Há alguns anos atrás, disseme o que iria acontecer entre Tibério e eu: que ele acabaria
por se rebelar contra a minha autoridade e tomar o Império inteiramente nas suas mãos. Nessa altura não
acreditei. Também me disse outra coisa: que, embora eu morresse como uma mulher velha e
decepcionada, seria reconhecida como Deusa muitos anos depois da minha morte. E anteriormente ele
tinha dito que alguém que tinha que morrer no ano que eu sei agora que é o ano em que eu tenho que
morrer, se tornará a maior Divindade que o mundo alguma vez conheceu e que, finalmente, nenhum
templo em Roma ou em qualquer outro lugar do Império será dedicado a outro Deus. Nem mesmo a
Augusto.
Quando ides morrer?
Daqui a três anos, na primavera. Sei exactamente em que dia,
Mas estais assim tão ansiosa por vos tornardes uma Deusa? O meu tio Tibério não está nada ansioso, ao
que parece.
É a única coisa em que penso, agora que o meu trabalho está terminado. E porque não? Se Augusto é um
Deus, é absurdo para mim ser unicamente sua sacerdotisa. Eu fiz todo o trabalho, ou não fiz? Augusto
também não tinha dentro dele a capacidade de se tornar um grande governante, tal como Tibério.
Sim, Avó. Mas não basta para vós saberdes o que fizestes, sem desejar ser adorada pela ralé ignorante?
Cláudio, deixame explicar. Concordo plenamente com a ralé ignorante. Não é tanto na minha fama
sobre a terra que eu penso, mas sim na posição que vou ocupar nos Céus. Fiz muitas coisas ímpias;
nenhum grande governante pode deixar de as fazer. Pus o bem do Império à frente de todas as
considerações humanas. Para manter o Império livre de facções tive que cometer muitos crimes. Augusto
fez todos os possíveis por destruir o Império com o seu ridículo favoritismo: Marcelo contra Agripa, Caio
contra Tibério. Quem salvou Roma de uma nova Guerra Civil? Eu. A tarefa desagradável e difícil de
afastar Marcelo e Caio caiu sobre mim. Sim, não finjas que nunca desconfiaste que eu os tivesse
envenenado. E qual é a recompensa adequada para um governante que comete tais crimes para o bem dos
seus súbditos? É evidente que a recompensa adequada é ser deificado. Acreditas que as almas dos
criminosos são eternamente atormentadas?
Sempre me ensinaram a acreditar que sim.
Mas os Deuses Imortais estão livres de qualquer receio do castigo, por mais crimes que cometam?
294
Bom, Júpiter depôs o pai e matou um dos seus netos, casando incestuosamente com a irmã e... sim,
concordo... Nenhum deles tem boa reputação moral. E certamente que os juízes dos Mortos Mortais não
têm jurisdição sobre eles.
Exactamente. Agora vês porque é tão importante para mim tornarme uma Deusa. E esta, se queres
saber, é a razão porque tolero Calígula. Ele jurou que, se eu guardar o seu segredo, ele me fará uma Deusa
logo que se tornar Imperador. E eu quero que tu jures que farás tudo o que puderes para que eu me torne
uma Deusa o mais depressa possível, porque... não estás a ver? Até ele fazer de mim uma Deusa eu estarei
no Inferno, sofrendo os tormentos mais horríveis, os mais extraordinários e inevitáveis tormentos.
A mudança repentina na voz dela, da fria arrogância Imperial à súplica aterrorizada, surpreendeume mais
do que qualquer outra coisa que tivesse ouvido até aí. Tinha que dizer alguma coisa. Por isso, disse:
Não vejo qual a influência que o pobre Tio Cláudio poderá vir a ter, quer sobre o Imperador, quer sobre
o Senado.
Não te preocupes com o que vês e o que não vês, idiota! Juras fazer o que te peço? Juras pela tua cabeça?
Respondi:
Avó, jurarei pela minha cabeça e por aquilo que ela vale, com uma condição.
Ousas pôrme condições, a mim?
Sim, depois da vigésima taça; e é uma condição bem simples. Depois de trinta e seis anos de abandono e
aversão, certamente não esperais que eu faça alguma coisa sem pôr condições, pois não?
Ela sorriu:
E qual é essa condição simples?
Há uma série de coisas que gostava de saber. Em primeiro lugar, quero saber quem matou o meu pai,
quem matou Agripa, quem matou o meu irmão Germânico e quem matou meu filho Drusilo...
Porque queres saber tudo isso? Alguma esperança imbecil de vingares em mim essas mortes?
Não, nem mesmo que fôsseis vós a assassina. Nunca me vingo, a menos que seja obrigado a fazêlo por
algum juramento ou em autodefesa. Acredito que o mal tem o seu próprio castigo. Tudo o que quero
agora é apenas saber a verdade. Sou um historiador profissional e a única coisa que realmente me interessa
é descobrir como as coisas aconteceram e porquê. Por exemplo, escrevo histórias mais para me informar a
mim mesmo do que para informar os meus leitores,
Vejo que o velho Atenodoro teve uma grande influência sobre ti.
Ele foi bondoso para comigo e eu fiqueilhe grato; por isso me tornei um Estóico. Nunca me misturo em
discussões filosóficas e isso
295
nunca me atraiu; mas adoptei a maneira Estóica de olhar as coisas. Podeis confiar que não repetirei uma
palavra do que me disserdes.
Convencia da veracidade das minhas palavras e, assim, durante quatro horas ou mais, fizlhe as perguntas
mais minuciosas. A todas ela respondeu sem evasão e tão calmamente como se fosse o administrador de
uma propriedade rústica a relatar acontecimentos sem importância ao proprietário que tivesse vindo de
visita. Sim, ela tinha envenenado o meu avô, mas não envenenara o meu pai, apesar das suspeitas de
Tibério; tinhase efectivamente tratado de uma gangrena natural. E sim, tinha envenenado Augusto,
espalhando veneno sobre os figos enquanto eles ainda estavam na árvore; contoume toda a história de
Júlia tal como a relatei e toda a história de Póstumo, cujos detalhes pude verificar; e sim, ela tinha
envenenado Agripa e Lúcio, assim como Marcelo e Caio; e sim, tinha interceptado as minhas cartas para
Germânico; mas não o tinha envenenado; Plancina fizerao por iniciativa própria. Mas Lívia tinhao,
marcado para ser morto, tal como marcara o meu pai, e pela mesma razão.
Que razão era essa, Avó?
Ele tinha decidido restabelecer a República. Não me interpretes mal: não de uma forma que violasse o
seu juramento de aliança com Tibério, embora isso significasse afastarme. Ele ia fazer com que Tibério
desse ele mesmo esse passo voluntariamente, dandolhe todo o crédito por isso e mantendose na sombra.
Quase persuadiu Tibério. Sabes como ele é cobarde. Tive que trabalhar muito, forjar muitos documentos e
contar muitas mentiras para impedir Tibério de fazer Sejano de tolo. Este Republicanismo é uma mancha
persistente nele. Tive mesmo que chegar a um acordo com a família. O teu avô tinhaa.
Eu tenhoa.
Ainda. É engraçado. Nero também a tem, tanto quanto sei. Não lhe vai trazer muita sorte. E não vale a
pena discutir convosco, republicanos. Recusaisvos a ver que não é possível restabelecer um governo
republicano nesta altura, como também não se podem impor os primitivos sentimentos de castidade nas
esposas e maridos modernos. É como tentar fazer recuar a sombra num relógio de sol: não há maneira de o
conseguir.
Confessou ter mandado estrangular Drusilo. Disseme como eu tinha estado perto da morte quando escrevi
pela primeira vez a Germânico sobre Póstumo. A única razão porque me tinha poupado era por causa da
possibilidade de eu lhe escrever dando informações sobre o paradeiro de Póstumo. O relato mais
interessante que me fez foi sobre os seus métodos de envenenamento. Fizlhe a pergunta de Póstumo se
preferia os venenos lentos ou os rápidos e ela respondeu sem o mais ligeiro constrangimento que preferia
doses repetidas de venenos lentos e sem sabor, que produziam um efeito de tuberculose, Pergunteilhe
como conseguia disfarçar tão bem todos os vestígios e como conseguia actuar a
296
distâncias tão grandes, pois Caio tinha sido assassinado na Ásia Menor e Lúcio em Marselha.
Recordoume que nunca perpetrara um assassinato que pudesse ser considerado como benefício directo e
imediato para ela. Não tinha, por exemplo, envenenado o meu avô senão algum tempo depois de se ter
divorciado dele, como também não envenenara nenhuma das suas rivais femininas Octávia, Júlia ou
Escribónia. As suas vítimas eram, na maioria, pessoas através de cujo afastamento os filhos e netos
ficavam mais próximos da sucessão. Urgulanila tinha sido a sua única confidente e era tão discreta,
habilidosa e dedicada que, não só era altamente improvável que os crimes que planeavam juntas viessem
alguma vez a ser detectados, como, mesmo que o fossem, nunca permitiriam que chegassem até ela. As
confissões anuais feitas a Urgulanila, em preparação para o festival da Boa Deusa, tinham sido uma
maneira útil de afastar várias pessoas que obstruíam o caminho dos seus planos. Explicou isto em detalhe.
Acontecia por vezes que a confissão era feita não apenas por adultério, mas por incesto com um irmão ou
um filho. Urgulanila declarava então que a única penitência possível era a morte do homem. A mulher
suplicava. Haveria outra penitência possível? Nessa altura, Urgulanila dizia que talvez houvesse uma
alternativa, que seria permitida pela Deusa. A mulher podia purificarse ajudando a Deusa na sua vingança
com a ajuda do homem que causara a vergonha. Urgulanila contavalhe então que uma confissão
igualmente deplorável tinha sido feita algum tempo antes por outra mulher que, no entanto, se abstivera de
matar o seu violador e, portanto, o desgraçado continuava vivo, embora a mulher tivesse sofrido. O
desgraçado foi sucessivamente Agripa, Lúcio, Caio. Agripa foi acusado de incesto com a filha Marcelina
cujo suicídio inexplicável deu cor à história; Caio e Lúcio de incesto com a mãe, antes dela ser exilada e
a reputação de Júlia também emprestou cor a esta história. Em cada um dos casos, a mulher ficava
satisfeitíssima por planear o assassinato e o homem por o executar. Urgulanila dava a sua assistência com
aconselhamento e os venenos adequados. A segurança de Lívia residia na distância a que se encontrava o
agente, que, se se viesse a tornar suspeito ou mesmo se fosse apanhado no acto, não poderia explicar o seu
motivo naquele assassinato sem se incriminar ainda mais a si próprio. Pergunteilhe se ela não tinha tido
escrúpulos em assassinar Augusto e em assassinar ou exilar tantos dos seus descendentes. Ela disse:
Nunca, nem por um momento, me esqueci de quem eu era filha.
E isso explicava muita coisa. O pai de Lívia, um Claudiano, tinha sido proscrito por Augusto depois da
Batalha de Filipos e tinha cometido suicídio, de preferência a cairlhe nas mãos.
Resumindo, ela contoume tudo o que eu queria saber, excepto no que dizia respeito às assombrações na
casa de Germânico em Antióquia.
297
Repetiu que não tinham sido ordens suas e que nem Plancina nem Piso lhe tinham dito nada sobre o
assunto e que eu estava em tão boa posição para esclarecer o mistério como ela própria. Vi que era inútil
insistir mais; por isso, agradecilhe a paciência que tivera comigo e, finalmente, jurei pela minha cabeça
recorrer a tudo o que estivesse no meu poder para fazer dela uma Deusa.
Quando me ia embora, entregoume um pequeno volume e disseme que o lesse quando estivesse em
Cápua. Era a colecção dos versos Sibilinos rejeitados sobre os quais escrevi nas primeiras páginas desta
história; quando cheguei à profecia chamada A Sucessão dos Cabeludos pensei que sabia porque razão
Lívia me tinha convidado para jantar e me obrigou a fazer aquele juramento. Se é que o tinha feito. Tudo
aquilo parecia um sonho de embriaguez.
298
CAPíTULO XXVI
Sejano escreveu uma petição a Tibério, solicitando que se lembrasse dele se pensassem procurar um
marido para Livila; dizendo que não passava de um cavaleiro, tinha consciência disso, mas Augusto falara
uma vez em casar a sua única filha com um cavaleiro e, pelo menos, Tibério não tinha súbdito mais leal
que ele próprio. Não tinha ambições de ascender à posição de senador e contentavase em continuar na
situação actual, como sentinela vigilante da segurança do seu nobre Imperador. Acrescentava que esse
casamento seria um golpe sério no partido de Agripina, que o reconhecia como o seu mais activo opositor.
Eles teriam receio de oferecer violência ao filho sobrevivente de Castor e Livila o jovem Tibério
Gemelo. A morte recente do outro gémeo recaía sobre Agripina. Tibério respondeu gentilmente que não
podia ainda dar uma resposta favorável ao pedido, apesar do seu forte sentido de obrigação para com
Sejano. Parecialhe pouco provável que Livila, cujos dois maridos anteriores tinham sido homens do mais
alto nascimento, se contentasse que ele continuasse cavaleiro; mas se ele subisse de posição e, ao mesmo
tempo, casasse com um membro da família imperial, isto causaria grandes invejas e serviria para
fortalecer o partido de Agripina. Disse que era precisamente para evitar essas invejas que Augusto tinha
pensado em casar a filha com um cavaleiro, um homem reformado que não estivesse de nenhuma maneira
envolvido com a política.
Mas concluiu com uma nota de esperança: ”Abstenhome de te revelar por agora quais os planos que
tenho para te aproximar de mim por afinidade. Mas sempre te digo uma coisa: que nenhuma recompensa
que te pudesse pagar pela tua devoção seria demasiado alta e que, quando a oportunidade se apresentar,
terei o maior prazer em fazer o que pretendo.”
Sejano conhecia demasiado bem Tibério para não compreender que o pedido tinha sido prematuro ele só
tinha escrito porque Livila insistira para que o fizesse e que causara uma ofensa considerável. Decidiu
que Tibério tinha que ser persuadido a deixar Roma imediatamente, nomeandoo Guardião da Cidade um
magistrado de cujas decisões só era possível apelar para o Imperador. Como Comandante dos Guardas, era
também encarregado do Corpo de Ordenanças e dos correios imperiais; portanto, seria ele a encaminhar
toda a correspondência de Tibério.
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Tibério dependeria também dele para decidir quais as pessoas que admitiria à sua presença; e quanto
menos pessoas ele tivesse que ver, melhor seria. Pouco a pouco, o Guardião da Cidade tornarseia o
detentor de todo o poder real e poderia agir como lhe apetecesse, sem perigo de interferência por parte do
Imperador.
Finalmente, Tibério deixou Roma. O pretexto foi a consagração de um templo a Júpiter em Cápua e outro
a Augusto, em Nola. Mas ele não tencionava voltar nunca mais. Sabíase que tomara esta decisão por
causa de uma advertência de Trasílo; e aquilo que Trasílo profetizava era aceite sem ser questionado,
como coisa que teria que acontecer. Era ponto assente que Tibério, agora com sessenta e sete anos de
idade e um aspecto pouco agradável, magro, alquebrado, careca, entorpecido, com o rosto ulcerado
salpicado de emplastros devia morrer dentro de muito pouco tempo. Ninguém poderia ter adivinhado que
ele estava destinado a viver mais onze anos. Isto pode ter sido porque, a partir daí, ele nunca chegou mais
perto da cidade que os subúrbios. De qualquer forma, foi assim que aconteceu.
Tibério levou com ele para Capri: um grupo de doutos professores gregos; um destacamento de soldados
escolhidos, incluindo a sua guarda pessoal germana; Trasilo; umas quantas criaturas pintadas de aspecto
estranho e sexo duvidoso; e a escolha mais curiosa de todas, Cocceio Nerva. Capri é uma ilha na Baía de
Nápoles a cerca de três milhas da costa. O seu clima é brando no Inverno e fresco no Verão. Há apenas
um local possível para o desembarque e o resto da ilha é protegido por penhascos em declive e matas
impenetráveis. A forma como Tibério passava ali o seu tempo livre quando não estava a discutir poesia e
mitologia com os gregos ou lei e política com Nerva é uma descrição demasiado revoltante, mesmo para
a história. Não direi mais, a não ser que ele trouxera consigo um conjunto completo dos famosos livros de
Elefantina, a mais copiosa enciclopédia de pornografia alguma vez compilada. Em Capri, ele podia fazer o
que não conseguia fazer em Roma praticar obscenidades ao ar livre, no meio das árvores e das flores ou
à beira de água, e fazer todo o barulho que lhe apetecia. Como alguns dos seus desportos de ar livre eram
extremamente cruéis, sendo o sofrimento dos companheiros uma boa parte do seu prazer, era sua opinião
que as vantagens resultantes da distância a que se encontrava Caprí eram bem superiores às desvantagens.
Não vivia permanentemente ali: costumava sair a visitar Cápua, Baiae e Antium. Mas Capri era o seu
quartelgeneral.
Passado algum tempo, deu a Sejano autoridade para afastar
os chefes do partido de Agripina pelos meios que lhe parecessem mais convenientes. Estava em contacto
diário com Sejano e aprovava todos os seus actos em cartas ao Senado. Celebrou em Cápua um Festival
de Ano Novo pronunciando a habitual oração de benção, como
300
Sumo Pontífice; depois, voltandose de repente para um cavaleiro chamado Sabino, que estava perto dele,
acusouo de tentar seduzir a lealdade dos seus libertos. Um dos homens de Sejano puxou imediatamente
para cima a túnica de Sabino, enroloulhe a cabeça nela e passoulhe uma corda em volta do pescoço,
arrastandoo dali para fora. Sabino gritava numa voz sufocada: ”Socorro, amigos, socorro!” Mas ninguém
se mexeu e Sabino, cujo único crime era ter sido amigo de Germânico e que tinha sido levado por um testa
de ferro de Sejano a exprimir em privado a sua simpatia por Agripina, foi sumariamente executado. Uma
carta de Tibério foi lida no dia seguinte no Senado, relatando a morte de Sabino e mencionando a
descoberta de Sejano de uma perigosa conspiração: ”Meus senhores, tende piedade de um infeliz velho
que leva uma existência de constante apreensão, com membros da própria família a conspirarem vilmente
contra a sua vida.” Era evidente que estas palavras visavam Agripina e Nero. Caio levantouse e
apresentou uma moção, no sentido de que o Imperador fosse convidado a explicar os seus receios ao
Senado e a permitir que os mesmos fossem tranquilizados: como, sem dúvida, seria fácil que fossem. Mas
Tibério ainda não se sentia suficientemente forte para se vingar de Caio.
No Verão daquele ano houve um encontro ocasional entre Lívia, numa liteira, e Tibério, a cavalo, na rua
principal de Nápoles. Tibério acabava de desembarcar de Capri e Lívia regressava de uma visita a
Herculano. Tibério tinha vontade de passar sem a saudar, mas a força do hábito obrigouo a puxar as
rédeas e a dirigirlhe algumas perguntas formais sobre a sua saúde. Ela replicou:
Ainda me sinto melhor depois do teu amável interesse, meu rapaz. E como mãe, o conselho que te dou é
o seguinte: toma muito cuidado com o barbo que comes na tua ilha. Alguns dos que se apanham por lá são
altamente venenosos.
Obrigado, Mãe, disse ele. Uma vez que a advertência vem da vossa parte, a partir de agora, limitar
meei religiosamente ao atum e à mugem.
Lívia soltou uma risada e, voltandose para Calígula, que estava com ela, disse em voz alta:
Bom, como eu dizia, o meu marido (teu bisavô, meu querido) e eu viemos a toda a pressa por esta rua
numa noite escura há sessenta e cinco anos, creio, a caminho das docas, onde o nosso navio aguardava em
segredo. Esperávamos a qualquer momento ser detidos e mortos pelos homens de Augusto... Como isso
parece estranho! O meu filho mais velho (tínhamos tido só um filho até ali) ia às costas do pai. De repente,
o que é que aquele pequeno animal havia de fazer, a não ser soltar um berro terrível: ”Oh pai, quero voltar
para Perúúúúsia.” Isso revelou a nossa presença. Dois soldados saíram de uma taberna e interpelaram
nos. Metemonos num portal escuro para os deixar passar. Mas Tibério continuava
301
a berrar. ”Eu quero voltar para Perúúúsia.” Eu disse: ”Matao! Mata o miúdo! É a nossa única
esperança.” Mas o meu marido era um tolo sentimental e recusou. Foi por um verdadeiro acaso que
escapámos.
Tibério, que parara para ouvir o final da história, enterrou as esporas na barriga do cavalo e afastouse
num repente furioso. Não voltaram a verse.
A advertência de Lívia quanto ao peixe destinavase apenas a deixálo desassossegado, a fazêlo pensar
que ela tinha os seus pescadores ou os seus cozinheiros a soldo. Ela conhecia o apreço de Tibério pelo
barbo e sabia portanto que ele iria ter, a partir dali, um conflito constante entre o apetite e o receio de
envenenamento. Houve uma sequência dolorosa. Um dia, Tibério estava sentado debaixo de uma árvore
na vertente oeste da ilha, gozando a brisa e planeando um diálogo versejado em grego entre a lebre e o
faisão, no qual, cada um por sua vez, reclamava a proeminência gastronómica. Não era uma ideia original:
ele próprio tinha premiado recentemente um dos poetas da sua corte com 2.000 moedas de ouro por um
poema semelhante, no qual os rivais eram um cogumelo, uma cotovia, uma ostra e um tordo. Na sua
introdução, tinha afastado todas estas pretensões como vãs, declarando que só a lebre e o faisão tinham
direito a disputar a coroa de salsa só a carne de ambos tinha dignidade sem ser pesada, delicadeza sem
ser insípida.
Procurava um adjectivo desagradável para qualificar a ostra, quando ouviu um restolhar repentino vindo
dos espinheiros que ficavam mais abaixo e um indivíduo de olhar feroz, desgrenhado, apareceu. Tinha o
fato molhado e em farrapos, o rosto a sangrar e uma navalha aberta na mão. Avançou pelo maciço,
gritando:
Toma, César; não é uma beleza?
Do saco que trazia ao ombro tirou um barbo monstruoso e atirouo, ainda a debaterse, para cima da erva,
aos pés de Tibério. Ele não passava de um pescador que acabava de fazer aquela pescaria notável e, ao ver
Tibério no alto da escarpa, decidira presenteálo. Tinha amarrado o barco a um rochedo, nadara para o
penhasco, subira com esforço por um caminho à beira do precipício até à cintura de espinheiros e abrira
caminho pelo meio deles com a sua navalha.
Mas Tibério ficara quase louco de pavor. Soprou num apito e gritou em germânico:
Socorro, socorro! Venham imediatamente! Wolfgang! Siegfried! AdeIstn! Um assassino! Schnell!
Aqui vamos, altíssimo Chefe, o de mais alto nascimento, o doador,
replicaram de imediato os germanos. Estavam de sentinela à direita, à esquerda e atrás dele, mas não
havia ninguém à frente, como era natural. Vieram aos saltos, brandindo as suas azagaias.
302
O homem não percebia germano e, fechando a navalha, disse alegremente:
Apanheio ao pé daquela gruta, ali adiante. Fazes ideia de quanto pesa? Uma verdadeira baleia, einh?
Quase me arrastou para fora do barco. Tibério, relativamente tranquilizado mas com a imaginação cheia
de peixes envenenados, gritou para os germanos:
Não, não o ataquem. Cortem essa coisa ao meio e esfreguemlho na cara.
O possante Wolfgang agarrou o pescador por trás em volta da cintura, de maneira que ele não pudesse
mexer os braços, enquanto os outros dois lhe esfregavam a cara com o peixe cru. O infeliz gritava:
Eh, parai com isso! Isto não é brincadeira! Que sorte eu não ter oferecido primeiro ao Imperador a outra
coisa que tenho no saco.
Vede do que se trata, ordenou Tibério.
Edelstein abriu o saco e encontrou nele uma enorme lagosta.
Esfregalhe a cara com isso, disse Tibério. Esfregalha bem. O desgraçado perdeu os dois olhos.
Depois, Tibério disse:
já chega. Deixaio ir!
O pescador ficou para ali aos tombos, a gritar e a delirar com a dor e não havia mais nada a fazer a não ser
atirálo ao mar do penhasco mais próximo.
Alegrame dizer que nunca fui convidado a visitar Tibério na sua ilha; tenho cuidadosamente evitado
cuidadosamente lá voltar, embora todos os vestígios das suas práticas vis tenham sido retirados há muito e
as suas doze villas sejam tidas como muito belas.
Tinha pedido permissão a Lívia para desposar Élia e ela derama, com votos maliciosos de felicidade. Foi
mesmo assistir ao casamento. Foi uma cerimónia esplêndida Sejano encarregouse disso e um dos
efeitos desse acto foi afastarme de Agripina e Nero e dos seus amigos. Pensavase que eu não conseguiria
guardar segredos de Élia e que esta contaria a Sejano tudo o que conseguisse saber. Isto entristeceume
bastante, mas compreendi que era inútil tentar tranquilizar Agripina (que estava agora de luto pela irmã
Julila, que acabava de morrer após um exílio de vinte anos naquela maldita pequena ilha de Tremero).
Assim, gradualmente, deixei de a visitar, para evitar constrangimentos. Eu e Élia éramos marido e mulher
apenas de nome. Assim que entrámos no quarto nupcial, a primeira coisa que ela me disse foi:
Tens que compreender, Cláudio, que não quero que me toques e que, se alguma vez tivermos que voltar
a dormir juntos na mesma cama, como esta noite, haverá uma coberta entre nós e, ao mais ligeiro
movimento que faças, empurrote para fora. Mais uma coisa: trata da tua vida que eu trato da minha...
Respondi:
303
Obrigado: tirasteme um grande peso de cima.
Ela era uma mulher horrível. Tinha a eloquência sonora e persistente de um leiloeiro no mercado de
escravos. Em breve, desisti de tentar ripostar. Claro que eu continuava a viver em Cápua e Élia nunca me
foi lá visitar, mas Sejano insistia que, quando eu visitasse Roma, devia ser visto o mais possível na sua
companhia.
Nero não tinha qualquer hipótese contra Sejano e Livila. Embora Agripina o avisasse constantemente de
que devia pesar todas as palavras que dizia, ele era de uma natureza demasiado aberta para esconder os
seus pensamentos. Entre os jovens nobres em quem confiava como amigos, havia vários agentes secretos
de Sejano e estes mantinham um registo das opiniões que exprimia em todas as ocasiões públicas. Pior
ainda, a mulher, a quem chamávamos Helena ou Heluo, era filha de Lívíla e contava a esta todas as
confidências dele. Mas o pior de tudo era o próprio irmão, Druso, a quem fazia ainda mais confidências do
que à mulher e que tinha ciúmes por Nero ser o filho mais velho e o favorito de Agripina. Druso foi
procurar Sejano e disse que Nero lhe tinha pedido que navegasse secretamente com ele para a Germânia
na primeira noite escura e que aí se colocariam sob a protecção dos regimentos, como filhos de
Germânico, organizando depois uma marcha sobre Roma; o que ele, claro, recusara com indignação.
Sejano disselhe que esperasse um pouco mais, até ser chamado a contar a história a Tibério: o momento
certo ainda não chegara.
Entretanto, Sejano fez circular o boato de que Tibério estava prestes a acusar Nero de traição. Os amigos
de Nero começaram a abandonálo. Logo que dois ou três começaram a escusarse de participar nos seus
jantares e a retribuir friamente as suas saudações quando o encontravam em público, os restantes
seguiramlhes o exemplo. Passados poucos meses, apenas lhe restavam os amigos verdadeiros. Entre eles
estava Caio que, agora que o próprio Tibério já não visitava o Senado, se concentrava em arreliar Sejano.
O seu método com Sejano era propor constantemente votos de agradecimento pelos seus serviços e a
concessão de honras especiais estátuas, arcos, títulos, orações e a celebração pública do seu aniversário,
O Senado não ousava oporse a estas moções e Sejano, não sendo Senador, não tinha voto na matéria; e
Tibério não queria ir contra o Senado vetando o seu voto, com receio de antagonizar Sejano e de parecer
ter perdido toda a confiança nele. Sempre que o Senado agora queria alguma coisa feita, mandava
primeiro representantes a Sejano, pedindo permissão para se dirigirem a Tibério sobre a questão. Se
Sejano os desencorajava, o assunto era abandonado. Um dia, Caio propôs que, tal como os descendentes
de Torquato tinham um torque (colar antigo) de ouro e os de Cincinato um caracol de cabelo, concedidos
pelo Senado como emblemas de família em comemoração dos serviços prestados pelos seus antepassados
ao Estado, também Sejano e os seus descendentes
304
deviam receber como emblema uma chave de ouro, em reconhecimento dos seus fiéis serviços como
porteiro do Imperador. O Senado votou unanimemente esta moção e Sejano, começando a ficar alarmado,
escreveu a Tibério e queixouse de que Caio propusera maliciosamente todas as honras anteriores, na
esperança de fazer com que o Senado sentisse ciúmes dele; talvez mesmo para levar o Imperador a
suspeitar de que tivesse ambições insolentes. A presente moção tinha sido ainda mais maliciosa uma
sugestão para o Imperador de que o acesso à presença imperial estava nas mãos de alguém que fizera uso
disso para o seu enriquecimento pessoal. Pedia ao Imperador que encontrasse uma razão técnica para vetar
o decreto e uma forma de silenciar Caio. Tibério respondeu que não podia vetar o decreto sem afectar a
credibilidade de Sejano, mas que, em breve, tomaria medidas para silenciar Caio: Sejano não precisava
ficar ansioso com o assunto e a sua carta mostrava verdadeira lealdade e um fino e delicado
discernimento. Mas a sugestão de Caio produzira o seu efeito. Repentinamente, Tibério apercebeuse de
que, enquanto as idas e vindas em Capri fossem conhecidas de Sejano e pudessem em grande medida ser
controladas pelo mesmo, ele próprio só saberia aquilo que Sejano se dava ao trabalho de lhe contar.
E agora cheguei a um momento crucial da minha história a morte de minha avó Lívia, com a idade de
oitenta e seis anos. Ela podia ter vivido muito mais, pois mantinha intactos a vista e o ouvido, assim como
o uso dos membros, para não falar do seu espírito e memória. Mas, recentemente, tinha sofrido de
resfriados repetidos por causa de uma infecção no nariz; por fim, um desses resfriados atacoulhe os
pulmões. Chamoume à sua cabeceira no Palácio. Calhou eu estar em Roma e fui de imediato. Viase que
estava a morrer. Recordoume novamente o meu juramento.
Não descansarei enquanto ele não tiver sido cumprido, Avó,
disselhe. Quando uma mulher muito velha está a morrer e ainda por cima é nossa avó, uma pessoa diz
tudo o que pode para lhe agradar.
Mas eu julgava que Calígula ia tratar disso para vós!
Ela demorou algum tempo a responder. Depois disse, com uma raiva debilitada:
Ele esteve aqui há dez minutos! Ficou a rirse para mim. Disse que eu podia ir para o Inferno e arder lá
para sempre, que tanto lhe fazia. Disse que, agora que eu estava a morrer, já não precisava de mim para
nada e que não se considerava preso a nenhum juramento, porque fora coagido a fazêlo. Disse que ele é
que ia ser o Deus Todo Poderoso que tinha sido profetizado, e não eu. Disse...
Não faz mal, Avó. Ainda haveis de vos rir dele no fim. Quando fordes a Rainha do Céu e ele estiver a ser
lentamente desfeito na roda eterna pelos homens de Minos, no Inferno...
305
E pensar que te chamei tolo, disse ela. Agora vou partir, Cláudio. Fechame os olhos e põeme na
boca a moeda que hásde encontrar debaixo da almofada. O Barqueiro vai reconhecêla e mostrarme o
devido respeito ...
Depois, ela morreu e eu fecheilhe os olhos, pondolhe a moeda na boca. Era uma moeda de ouro como eu
nunca vira antes, com a cabeça de Augusto e a dela de frente uma para a outra na parte de cima e um carro
triunfal no reverso.
Nada fora dito entre nós sobre Tibério. Em breve fiquei a saber que ele tinha sido prevenido quanto ao seu
estado com tempo suficiente para lhe prestar as últimas homenagens. Mas ele escreveu ao Senado
desculpandose por não a ter visitado, dizendo que estivera extremamente ocupado e que, sem falta, iria a
Roma para o funeral. Entretanto, o Senado decretara várias honras extraordinárias em sua memória,
incluindo o título de Mãe da Pátria, e tinha mesmo proposto fazêla semideusa. Mas Tibério reverteu
quase todos estes decretos, explicando numa carta que Lívia era uma mulher de uma modéstia singular,
avessa a todo o reconhecimento público dos seus serviços e com um sentimento peculiar contra qualquer
veneração religiosa que lhe fosse prestada depois de morta. A carta terminava com reflexões sobre a
inoportunidade das mulheres se intrometerem na política, ”para a qual não estavam preparadas e que
suscitavam nelas todos esses piores sentimentos de arrogância e petulância para os quais o sexo feminino
tem uma inclinação natural.”
Claro que ele não foi à Cidade para o funeral, embora, unicamente com o objectivo de limitar a sua
magnificência, tivesse tomado todas as disposições necessárias. E levou tanto tempo a fazêlo que o
Corpo, velho e mirrado como estava, atingira um adiantado estado de putrefacção antes de ser colocado
sobre a pira. Para surpresa de todos, Calígula fez a oração fúnebre, que devia ter sido feita pelo próprio
Tibério; e se não por Tibério, então por Nero, como seu herdeiro. O Senado decretara um arco em
memória de Lívia a primeira vez na história de Roma que uma mulher recebia tal honra. Tibério deixou
passar o decreto, mas prometeu construir o arco às suas custas: e nunca chegou a fazêlo. Quanto ao
testamento de Lívia, ele herdou a maior parte da fortuna, como seu herdeiro natural, mas ela deixara tudo
o que lhe era legalmente permitido a membros da sua casa e a outros dependentes de confiança. Tibério
não pagou a ninguém um único destes legados. Eu próprio deveria ter beneficiado da importância de
20.000 moedas de ouro.
306
CAPíTULO XXVII
Nunca teria pensado que seria possível sentir a falta de Lívia quando ela morresse. Em criança, noite após
noite, costumava rezar em segredo aos Deuses dos Infernos para que a levassem. E agora teria oferecido
os mais ricos sacrifícios que pudesse encontrar touros brancos sem mancha, antílopes do deserto e ibis e
flamingos às dúzias para voltar a têla de volta. Pois era claro que havia muito tempo que só o medo da
mãe fizera com que Tibério se mantivesse dentro dos limites. Alguns dias após a morte dela, Tibério
atacou Agripina e Nero. Entretanto, Agripina tinha recuperado da sua doença. Ele não os acusou de
traição. Escreveu ao Senado queixandose da total depravação sexual de Nero, do ”porte desdenhoso e
língua maléfica” de Agripina, e sugeriu que fossem tomadas medidas severas para os manter a ambos na
ordem.
Quando a carta foi lida no Senado, ninguém disse palavra durante bastante tempo. Todos perguntavam a si
próprios até que ponto a família de Germânico podia contar com o apoio popular, agora que Tibério se
preparava para os sacrificar; e se não seria mais seguro ir contra Tibério do que contra a populaça.
Finalmente, um amigo de Sejano ergueuse para sugerir que os desejos do Imperador deviam ser
respeitados e que algum decreto devia ser passado contra as pessoas mencionadas. Havia um Senador que
funcionava como escrivão oficial dos procedimentos do Senado e o que ele dizia tinha muito peso. Até ali,
ele tinha votado sem questionar tudo o que era sugerido nas cartas de Tibério e Sejano afirmara que
sempre se podia contar com ele para fazer o que lhe diziam. No entanto, foi este indivíduo que se levantou
para se opor à moção. Disse que a questão da moral de Nero e da postura de Agripina não devia ser
levantada naquele momento. Era sua opinião que o Imperador tinha sido mal informado e tinha escrito
precipitadamente e que, portanto, no seu próprio interesse, assim como no de Nero e Agripina, não devia
ser passado nenhum decreto até que lhe tivesse sido dado tempo para reconsiderar acusações tão graves
contra os seus parentes próximos. As notícias da carta tinhamse entretanto espalhado por toda a Cidade,
embora os procedimentos do Senado devessem ser considerados secretos até serem oficialmente
publicados por ordem do Imperador; multidões imensas
307
reuniramse à volta da Casa do Senado, fazendo demonstrações a favor de Agripina e Nero e gritando:
Viva Tibério! A carta é forjada! Viva Tibério! Isto é coisa de Sejano! Sejano enviou um mensageiro a
toda a velocidade a Tibério, que nessa ocasião se deslocara para uma villa a poucas milhas da Cidade, para
o caso de haver problemas. O mensageiro relatoulhe que o Senado recusara, seguindo uma moção do
Escrivão, tomar em conta a carta; que o povo estava à beira da revolta, chamando a Agripina a verdadeira
Mãe da Pátria e a Nero o seu Salvador; e que, a menos que Tibério agisse com firmeza e decisão, haveria
derramamento de sangue antes que o dia chegasse ao fim.
Tibério ficou assustado, mas aceitou o conselho de Sejano e escreveu uma carta ameaçadora ao Senado,
pondo as culpas no Escrivão por aquele insulto sem paralelo à dignidade imperial, pedindo também que a
questão fosse deixada inteiramente nas suas mãos, uma vez que mostravam tão pouco entusiasmo em
defender os seus interesses. O Senado cedeu. Tibério, depois de ter feito marchar a Guarda pela Cidade,
com as espadas desembainhadas e fazendo soar as suas trombetas, ameaçou reduzir para metade a
distribuição gratuita de trigo se tivessem lugar novas demonstrações sediciosas. Depois, exilou Agripina
em Pandatária, a mesma ilha onde a mãe, júlia, ficara detida no início, e Nero em Ponza, outra ilha
minúscula e rochosa, a meio caminho entre Capri e Roma, mas longe das vistas da costa. Disse ao Senado
que os dois prisioneiros tinham estado à beira de fugir da Cidade, na esperança de conquistarem a lealdade
dos regimentos de Reno. Antes de Agripina ir para a sua ilha, fêla vir à sua presença e fezlhe perguntas
irónicas sobre a maneira como se propunha governar o poderoso reino que acabava de herdar da mãe (a
sua virtuosa falecida esposa) e se tencionava enviar embaixadores ao filho, Nero, no seu novo reino, de
modo a encetar uma poderosa aliança militar com ele. Agripina não disse uma palavra. Ele irritouse e
berroulhe que respondesse e, como ela continuasse em silêncio, disse a um capitão da guarda que lhe
desse um golpe nos ombros. Finalmente, ela falou:
Lama Ensopada em Sangue é o teu nome. Foi isso que Teodoro de Gadarene te chamou, segundo dizem,
quando frequentaste as suas aulas de retórica em Rodes.
Tibério tirou a vergasta das mãos do capitão e fustigoua no corpo e na cabeça, até a deixar insensível.
Como consequência desta terrível tareia, ela perdeu a visão de um dos olhos.
Em breve, Druso foi também acusado de conspirar com os regimentos do Reno. Sejano apresentou cartas
comprovativas (que disse que tinha interceptado, mas que eram realmente forjadas) e também o
testemunho escrito de Lépida, mulher de Druso (com quem ele tivera uma ligação secreta), em como este
lhe pedira que entrasse em contacto com os
308
marinheiros de óstia que, segundo esperava, se lembrariam de que Nero e ele eram netos de Agripa. Druso
foi entregue pelo Senado a Tibério para que dispusesse dele e Tibério mandouo encarcerar numa água
furtada remota do Palácio, sob a vigilância de Sejano.
Caio foi a vítima seguinte. Tibério escreveu ao Senado que Caio tinha ciúmes de Sejano e fizera tudo o
que podia para o levar a cair em desgraça com o seu Imperador, através de louvores irónicos e outros
métodos cheios de malícia. Os membros do Senado ficaram tão desolados com a notícia do suicídio do
Escrivão, que receberam no mesmo dia, que enviaram imediatamente um magistrado para prender Caio.
Quando o magistrado chegou a casa de Caio, disseramlhe que ele estava fora da Cidade, em Baiae. Aí,
encaminharamno para a villa de Tibério, onde ambos foram encontrados a jantar. Tibério brindava Caio
com um copo de vinho e Caio respondia lealmente. Parecia haver uma tal atmosfera de bom humor e
alegria na sala de jantar, que o magistrado ficou embaraçado e sem saber o que dizer. Tibério perguntou
lhe porque tinha vindo.
Para prender um dos teus convivas, César, por ordem do Senado.
Que conviva? perguntou Tibério.
Asínio Caio, replicou o magistrado, mas parece tratarse de um erro.
Tibério tomou um ar grave.
Se o Senado tem alguma coisa contra ti, Caio, e enviaram este magistrado para te prender, receio que a
nossa agradável sessão tenha que ser interrompida. Não posso ir contra o Senado, como sabes. Mas digo
te o que vou fazer, agora que chegámos a um entendimento cordial: vou escrever ao Senado a pedir, como
um favor pessoal, que não tomem qualquer atitude sobre o teu caso até receberem notícias minhas. Isso
significa que estarás apenas detido, à guarda dos Cônsules nada de algemas ou qualquer coisa
degradante. Tratarei de garantir a tua libertação logo que possa.
Caio sentiuse obrigado a agradecer a Tibério a sua magnanimidade, mas tinha a certeza de que havia uma
armadilha em qualquer lado, que Tibério estava a retribuir ironia com ironia; e estava certo. Foi levado
para Roma e posto numa sala subterrânea do Senado. Não foi autorizado a ver ninguém, nem mesmo um
criado, ou a enviar quaisquer mensagens aos amigos ou à família. A comida eralhe dada todos os dias
através das grades. A sala estava escura, recebendo apenas a luz fraca que vinha através das grades e tendo
como única mobília um colchão. Disseramlhe que aquelas instalações eram apenas temporárias e que
Tibério, em breve, viria resolver o seu caso. Mas os dias transformaramse em meses, os meses em anos e
ele continuava lá. A comida era escassa cuidadosamente calculada por Tibério para o manter sempre
com fome, mas sem o deixar morrer. Não lhe era permitido usar uma faca para a cortar, com
309
medo que a usasse para se suicidar, nem qualquer outra arma afiada ou alguma coisa com que se pudesse
distrair, tal como material para escrever, livros ou dados. Davamlhe muito pouca água para beber e
nenhuma para se lavar. Se alguma vez se falava dele na presença de Tibério, o velho dizia sorrindo:
Ainda não fiz as pazes com Caio.
Quando soube da detenção de Caio, lamentei ter tido recentemente um desentendimento com ele. Foi
apenas um desentendimento literário. Ele tinha escrito um livro tolo chamado: Comparação entre meu
Pai, Asínio Pólio, e o seu Amigo Marco Túlio Cícero, como Oradores. Se a base da comparação fosse o
carácter moral ou a habilidade política ou mesmo a sabedoria, Pólio teria facilmente saído com a melhor
posição. Mas Caio estava a tentar provar que o pai era o orador mais polido. Isso era absurdo e eu escrevi
um pequeno livro para dizer isso mesmo; livro esse que, surgindo pouco depois da minha crítica aos
comentários do próprio Pólio a respeito de Cícero, aborreceu enormemente Caio. Teria de boa vontade
impedido o meu livro de ser publicado, se com isso pudesse ter aliviado a miserável vida de prisioneiro de
Caio, por muito pouco que fosse. Acho que foi tolice minha pensar desta forma.
Sejano conseguiu finalmente informar Tibério de que o poder do Partido Verde Claro estava destruído e
que ele não precisava de continuar a sentir qualquer ansiedade. Tibério recompensouo dizendo que tinha
decidido casálo com a neta Helena (cujo casamento com Nero ele tinha dissolvido) e insinuando ainda
maiores favores. Foi nesta altura que minha mãe, que, como deveis estar lembrados, era também mãe de
Livila, interveio. Desde a morte de Castor que Livila estava a viver com ela e tinha sido suficientemente
descuidada para a deixar descobrir que andava a manter uma correspondência secreta com Sejano. A
minha mãe sempre fora muito poupada e, agora na velhice, o seu maior prazer era guardar os coutos das
velas e derretêlos para fazer velas novas, vender os restos da cozinha aos criadores de porcos e misturar
pó de carvão com um líquido qualquer, para o amassar e fazer bolas que, depois de secas, ardiam quase
tão bem como o carvão. Livila, por outro lado, era muito extravagante e a minha mãe estava sempre a
repreendêla por isso. Um dia, a minha mãe calhou passar pelo quarto de Livila e viu um escravo sair de lá
com um cesto de papéis velhos.
Onde vais, rapaz? perguntou.
À fornalha, Senhora; ordens de Dona Livila. A minha mãe disse:
É um enorme desperdício alimentar a fornalha com bocados de papel em perfeito estado; sabes quanto
custa o papel? Bom, três vezes o preço do pergaminho. Alguns destes papéis parece que nem foram
escritos.
310
Dona Livila ordenou expressamente...
Dona Livila devia estar muito preocupada quando mandou destruir papel valioso. Dáme o cesto. As
partes não utilizadas podem ser úteis para fazer listas para a casa, além de outras coisas. Se não
estragarmos, nada nos vai faltar.
Levou os papéis para o quarto dela e preparavase para cortar as partes boas, quando lhe surgiu a ideia de
tentar tirar a tinta da folha toda. Até ali, abstiverase honrosamente de ler o que estava escrito; mas quando
começou a esfregar a tinta, a leitura tornouse impossível de evitar. De repente, compreendeu que se
tratavam de rascunhos ou começos não satisfatórios de uma carta para Sejano; depois de começar a ler já
não conseguiu parar e, antes de ter acabado, já sabia a história toda. Livila estava nitidamente zangada e
ciumenta por Sejano ter consentido em casar com outra pessoa ainda por cima, a sua própria filha! Mas
estava a tentar esconder os seus sentimentos. Cada rascunho da carta era um pouco mais contido.
Escrevialhe que tinha que agir rapidamente antes que Tibério suspeitasse de que ele não tinha a intenção
de se casar com Helena; e se ele ainda não estava preparado para assassinar Tibério e usurpar a
monarquia, não seria melhor que ela própria envenenasse Helena?
A minha mãe mandou chamar Palas, que estava a trabalhar para mim na Biblioteca, à procura de algum
facto histórico relacionado com os etruscos, e disselhe que fosse ter com Sejano e, em meu nome, como
se tivesse sido enviado por mim, pedisse permissão para falar com Tibério em Capri, a fim de o presentear
com a minha História de Cartago. Eu acabara recentemente esta obra e enviara uma cópia à minha mãe
antes de o mandar publicar). Em Capri, ele devia pedir ao Imperador, uma vez mais em meu nome, que
aceitasse que lhe dedicasse a obra. Sejano deu prontamente a sua permissão; sabia que Palas era um dos
escravos da nossa família e não suspeitou de nada. Mas no décimo segundo volume da História a minha
mãe tinha colado as cartas de Livila e uma carta dela a explicar, e disse a Palas que não deixasse ninguém
mexer nos volumes (que estavam todos selados) e que os desse a Tibério com as suas próprias mãos. Ele
devia acrescentar às minhas supostas saudações e ao meu pedido de permissão para dedicatória do livro a
seguinte mensagem: ”Dona Antónia também vos envia as suas saudações amistosas, mas é de opinião que
estes livros do filho não têm qualquer interesse para o Imperador, excepto o décimo segundo volume, que
contém uma digressão muito curiosa que, está confiante, vos interessará imediatamente.”
Palas parou em Cápua para me informar para onde ia. Disse que era estritamente contra as ordens da
minha mãe que me estava a pôr ao corrente daquela incumbência, mas, afinal, eu era o seu verdadeiro
senhor, não a minha mãe, embora ela agisse como se ele lhe pertencesse; e que
311
ele não faria nada voluntariamente que me criasse problemas; e que tinha a certeza que eu,
pessoalmente, não tinha qualquer intenção de oferecer a dedicatória ao Imperador. A princípio fiquei
confuso, especialmente quando mencionou o décimo segundo volume; por isso, enquanto ele se estava a
lavar e a mudar de roupa, quebrei o selo. Quando vi o que tinha sido inserido fiquei tão assustado que, por
momentos, pensei em queimar tudo. Mas isso era tão perigoso como deixar que a mensagem chegasse ao
seu destino; por isso, acabei por selar de novo o livro. A minha mãe tinha usado um duplicado do meu
selo, que eu lhe dera para usar em questões de negócios; portanto, ninguém saberia que eu tinha aberto
aquele volume, nem mesmo Palas. Este apressouse a tomar o caminho de Capri e, na volta, disseme que
Tibério tinha pegado no décimo segundo volume e o levara para fora, indo passear para a floresta. Se
quisesse, dissera, mas devia absterme de usar frases extravagantes ao fazêlo. Isto tranquilizoume um
pouco, mas nunca se podia confiar em Tibério quando ele se mostrava cordial. Naturalmente eu estava na
mais profunda ansiedade quanto ao que iria acontecer e sentia uma grande amargura contra a minha mãe
por ter posto a minha vida em tão grande risco, ao misturarme numa discórdia entre Tibério e Sejano.
Pensei em fugir, mas não tinha para onde.
A primeira coisa que aconteceu foi que Helena ficou inválida sabemos agora que não havia nada de errado
com ela, mas Livila deralhe a escolher entre ficar de cama como se estivesse doente ou ficar de cama por
estar doente. Foi levada de Roma para Nápoles, onde o clima era considerado mais saudável. Tibério deu
licença para que o casamento fosse adiado indefinidamente, mas dirigiase a Sejano como genro, como
se o casamento já tivesse tido lugar. Elevouo à posição de
Senador e fêlo seu colega no Consulado, além de pontífice. Mas depois fez alguma coisa que cancelou
estes favores: convidou Calígula para Capri por alguns dias e, em seguida, enviouo de volta armado com
uma carta da maior importância para o Senado. Na carta, dizia que tinha examinado o jovem, que era
agora seu herdeiro, e achado que ele era de um temperamento e carácter muito diferentes dos irmãos e que
se recusaria a acreditar em quaisquer acusações que pudessem ser apresentadas contra a sua moral ou
lealdade. Agora punha Calígula sob os cuidados de Élio Sejano, seu companheiro no Consulado, pedindo
lhe que guardasse o jovem de todo o mal. Nomeavao também pontífice e sacerdote de Augusto.
Quando a Cidade soube desta carta houve grande júbilo. Ao tornar Sejano responsável pela segurança de
Calígula, Tibério dava a entender que estava a prevenilo de que a sua contenda com a família de
Germânico já tinha sido levada suficientemente longe. O Consulado de Sejano era considerado como um
mau augúrio para ele. Era a quinta vez que Tibério exercia o cargo e todos os seus anteriores colegas
tinham morrido em
312
circunstâncias pouco afortunadas: Varo, Gneo Piso, Germânico, Castor. Por isso, novas esperanças
nasceram de que os problemas da nação não tardariam a ter fim: um filho de Germânico iria governálos.
Tibério podia talvez matar Nero, e Druso, mas era evidente que decidira salvar Calígula: Sejano não seria
o próximo Imperador. Todas as pessoas que Tibério auscultava sobre o assunto pareciam tão
genuinamente aliviadas com a sua escolha de um sucessor de alguma forma, eles tinhamse persuadido
de que Calígula herdara todas as virtudes do pai , que Tibério (que reconhecia o verdadeiro mal quando
ele se lhe deparava e tinha dito a Calígula, francamente, que sabia que ele era uma cobra venenosa e que o
tinha poupado por essa mesma razão) se sentia muito divertido e inteiramente satisfeito. Podia usar a
popularidade crescente de Calígula para controlar Sejano e Livila.
Entretanto, abriuse um pouco com Calígula e encarregouo de uma missão: descobrir, através de
conversas íntimas com homens da Guarda, qual dos seus capitães tinha maior influência pessoal no
acampamento da Guarda, a seguir a Sejano. Depois, certificarse de que ele era igualmente sanguinário e
destemido. Calígula envergou uma cabeleira e fato de mulher e, juntandose a duas jovens prostitutas,
começou a frequentar as tabernas suburbanas onde os soldados bebiam à noite. Com o rosto pesadamente
maquilhado e o corpo enchumaçado, ele passava por mulher, uma mulher alta e não muito atraente, mas
ainda assim uma mulher. A descrição que fazia de si mesmo nas tabernas era que estava a ser mantido por
um rico comerciante que lhe dava bastante dinheiro com base no que costumava pagar rodadas de
bebidas. Esta generosidade tornouo muito popular. Em breve, ficou por dentro de grande parte dos
mexericos do acampamento e o nome que surgia sempre no meio das conversas era o de um capitão
chamado Macro. Macro era filho de um dos libertos de Tibério e, segundo a opinião geral, era o indivíduo
mais duro de Roma. Os soldados falavam todos eles com admiração das suas festas com bebida e
mulheres, do seu domínio sobre os outros capitães e da sua presença de espírito em situações difíceis. O
próprio Sejano tinha medo dele, diziam; Macro era o único homem que alguma vez lhe fizera frente.
Assim, uma noite, Calígula aproximouse de Macro e apresentouse secretamente: foram dar um passeio
juntos e tiveram uma longa conversa.
Tibério começou então a escrever uma estranha série de cartas ao Senado: tão depressa dizia que estava
num péssimo estado de saúde e quase a morrer, como anunciava que se restabelecera de repente e chegaria
a Roma a qualquer instante. Escrevia de uma forma muito estranha sobre Sejano, misturando elogios
extravagantes com reprimendas cheias de petulância; e a impressão geral que isto criava era que ele tinha
ficado senil e estava a perder o juízo. Sejano ficou tão espantado com estas cartas que não conseguia
chegar a uma decisão quanto a tentar de imediato
313
uma revolta ou manter a sua posição, que ainda era muito forte, até que Tibério morresse ou pudesse ser
afastado do poder com base na imbecilidade. Queria visitar Capri e verificar por si mesmo como estavam
as coisas com Tibério. Escreveu a pedir permissão para o visitar no seu aniversário, mas Tibério
respondeu que, como Cônsul, ele devia ficar em Roma; já era suficientemente irregular ele próprio estar
permanentemente ausente. Sejano escreveu então a informar que Helena estava gravemente doente em
Nápoles e lhe pedira que a visitasse: não seria possível darlhe permissão para isso, apenas por um dia?
Além disso, Nápoles distava de Capri apenas uma hora, em barco a remos. Tibério respondeu que Helena
tinha os melhores médicos e devia ser paciente; e que ele próprio iria agora a Roma e desejava que Sejano
lá estivesse para o receber. Mais ou menos pela mesma altura, anulou uma acusação contra um ex
governador da Hispânia, que Sejano estava a acusar de extorsão, baseandose no facto das provas serem
contraditórias. Nunca antes ele deixara de apoiar Sejano num caso daqueles. Sejano começou a ficar
alarmado. O seu mandato como Cônsul expirou.
No dia fixado por Tibério para a sua chegada a Roma, Sejano estava à espera, à frente de um batalhão de
Guardas, no exterior do templo de Apolo, onde o Senado, por coincidência, estava reunido por causa das
reparações que nessa altura estavam em curso na Casa do Senado. De repente, Macro adiantouse e
saudouo. Sejano perguntoulhe porque deixara o acampamento. Macro replicou que Tibério lhe enviara
uma carta para entregar ao Senado.
Porquê vós? inquiriu Sejano, desconfiado.
Porque não?
Mas porque não eu?
Porque a carta é sobre vós! Depois, Macro sussurroulhe ao ouvido. As minhas mais calorosas
felicitações, General. Há uma surpresa para vós na carta. Ides ser nomeado Protector do Povo. Isso quer
dizer que sereis o próximo Imperador.
Na realidade, Sejano não esperava que Tibério aparecesse, mas tinha ficado muito ansioso com o recente
silêncio dele. Agora precipitouse, exultante, para o interior do Senado.
Nessa altura, Macro mandou pôr os Guardas em sentido. Disselhes:
O Imperador acaba de me nomear vosso General no lugar de Sejano. Estas são as minhas ordens. Deveis
regressar imediatamente ao acampamento, livres dos vossos deveres de guarda. Quando ali chegardes,
dizei aos outros indivíduos que Macro é quem manda agora e que haverá trinta moedas de ouro para cada
homem que saiba obedecer às ordens. Quem é o capitão mais antigo? TU? Leva os homens. Mas não
façam muito alarde da questão.
314
Os Guardas partiram e Macro contactou o comandante dos Vigias, que já tinha sido alertado, para que
fornecesse uma guarda para o lugar deles. Depois, entrou atrás de Sejano, entregou a carta aos Cônsules e
saíu de imediato, antes que tivessem lido uma só palavra. Verificou se os Vigias estavam devidamente
posicionados e depois seguiu apressadamente os Guardas que regressavam ao acampamento, para se
certificar de que não haveria distúrbios.
Entretanto, a notícia do Protectorado de Sejano correra o Senado e todos começaram a aclamálo e a
apresentarlhe as suas felicitações. O Cônsul mais velho fez uma chamada à ordem e passou a ler a carta.
Começava com as desculpas habituais de Tibério por não assistir à sessão pressão de trabalho e falta de
saúde e continuava discutindo tópicos de interesse geral, queixandose depois ligeiramente da pressa de
Sejano em preparar a acusação do exGovernador sem as necessárias provas. Aqui, Sejano sorriu, porque
esta petulância de Tibério fora sempre até ali um prelúdio à concessão de uma nova honraria. Mas a carta
continuava no mesmo tom de reprimenda, parágrafo a seguir a parágrafo, com uma severidade que
crescia gradualmente e o sorriso apagouse lentamente da cara de Sejano. Os senadores que o aclamavam
ficaram silenciosos e perplexos e um ou dois, que estavam sentados perto dele, apresentaram uma
desculpa qualquer e dirigiramse para o outro lado da Casa. A carta terminava dizendo que Sejano tinha
sido culpado de graves irregularidades, que dois dos seus amigos, o seu tio Júnio Bleso que triunfara de
Tacfarinas, e outro, deviam, na sua opinião, ser punidos, e que o próprio Sejano devia ser detido, O
Cônsul, que tinha sido prevenido por Macro na noite anterior do que Tibério desejava que ele fizesse,
gritou: ”Sejano, vem aqui!”. Sejano não podia acreditar no que ouvia. Estava à espera do final da carta e
da sua nomeação para o Protectorado. O Cônsul teve que o chamar duas vezes antes que ele
compreendesse. Disse:
Eu? Estás a falar para mim?
Logo que os seus inimigos compreenderam que Sejano caíra finalmente, começaram a vaiálo e a assobiá
lo bem alto; e os seus amigos e parentes, preocupados com a própria segurança, juntaramse a eles. De
repente, encontrouse sem um único apoiante. O Cônsul perguntou se o conselho do imperador devia ser
seguido. ”Sim, sim!”, gritaram todos em coro. O Comandante dos Vigias foi chamado e, quando Sejano
viu que os seus próprios Guardas tinham desaparecido e que os Vigias tinham tomado os seus lugares,
percebeu que estava derrotado. Foi levado para a prisão e a populaça, que soubera do que estava a
acontecer, apinhouse em volta dele e gritou, gemeu e bombardeouo com porcaria. Tapou a cara com a
túnica, mas eles ameaçaram matálo se não a descobrisse; quando ele obedeceu, alvejaramno ainda mais.
Nessa mesma tarde, o Senado, vendo que não havia Guardas por ali e que a multidão ameaçava
315
invadir a prisão para linchar Sejano, decidiram guardar o crédito para eles e condenaramno à morte.
Calígula enviou imediatamente a Tibério a notícia com sinais de farol. Tibério tinha uma frota pronta
preparada para o levar para o Egipto se os seus planos falhassem. Sejano foi executado e o seu corpo
atirado pela Escada das Lamentações, onde a populaça abusou dele durante três dias. Quando chegou a
altura de ser arrastado com um gancho atravessado na garganta até ao Tibre, o crânio tinha sido levado
para os Banhos Públicos e usado como bola e só restava metade do tronco. As ruas de Roma estavam
juncadas com os estilhaços dos membros partidos das suas numerosas estátuas.
Os filhos que tivera com Apicata foram condenados à morte por decreto. Havia um rapaz que já atingira a
maioridade, outro menor, e a jovem que tinha estado noiva de meu filho Drusilo ela tinha agora catorze
anos. O rapaz menor não podia legalmente ser executado; por isso, seguindo um precedente da Guerra
Civil, fizeramno vestir a túnica varonil para a ocasião. A rapariga, sendo virgem, era ainda mais
fortemente protegida pela lei. Não havia precedente de se executar uma virgem só por ser filha de quem
era. Quando a levaram para a prisão, ela não entendeu o que estava a acontecer e gritou: ”Não me leveis
para a prisão! Chicoteaime se quiserdes que eu não volto a fazer o mesmo!” Ao que parecia, ela tinha
uma qualquer maldade de rapariguinha na consciência. Macro deu ordens para que, no sentido de evitar a
má sorte que cairia sobre a Cidade se a executassem enquanto virgem, o executor público a violasse. Logo
que soube disto, disse para mim próprio: ”Roma, estás perdida; não pode haver expiação para um crime
tão horrível”. Invoquei os Deuses para que testemunhassem que, embora parente do Imperador, eu não
participara no governo do meu país e detestava o crime tanto quanto eles, embora fosse impotente para o
vingar.
Quando Apicata soube o que tinha acontecido aos filhos e viu a multidão insultando os corpos deles na
Escada, suicidouse. Mas primeiro escreveu uma carta a Tibério dizendolhe que Castor tinha sido
envenenado por Livila e que esta e Sejano tinham a intenção de usurpar a monarquia. Culpava Livila por
tudo. A minha mãe não soubera do assassinato de Castor. Tibério chamou a minha mãe a Capri,
agradeceulhe os seus bons serviços e mostroulhe a carta de Apicata. Disselhe que qualquer recompensa,
dentro do razoável, estava à sua disposição. A minha mãe disse que a única recompensa que pedia era que
o nome da família não caísse em desgraça: que a filha não fosse executada e o seu corpo atirado pela
Escada.
Então, como sugeris que ela seja punida? perguntou Tibério com aspereza.
Entregama a mim, disse a minha mãe. Eu a punirei.
316
Assim, Livila não sofreu qualquer procedimento público. A minha mãe fechoua num quarto ao lado do
dela e deixoua morrer à fome. Ouvialhe os gritos de desespero e as maldições, dia após dia, noite após
noite, enquanto enfraquecia gradualmente; mas conservoua ali, não numa cave qualquer onde não
pudesse ouvila, até morrer. Fêlo não por sentir prazer com a tortura, pois aquilo foi um sofrimento
inenarrável para ela, mas como castigo contra si própria por ter criado uma filha tão abominável.
Seguiuse toda uma série de execuções em resultado da morte de Sejano todos os seus amigos, que não
tinham sido suficientemente rápidos a fazer a mudança, e muitos daqueles que a tinham feito. Aqueles que
não anteciparam a morte com o suicídio foram atirados da Rocha Tarpeia, no Monte Capitolino. Os seus
bens foram confiscados. Tibério pagou pouco aos acusadores; estava a tornarse económico. A conselho
de Calígula, apresentou queixas contra os acusadores que tinham direito a benefícios mais elevados e,
assim, conseguiu confiscar também os seus bens. Cerca de sessenta senadores, 200 cavaleiros e 1.000 ou
mais cidadãos comuns morreram nesta altura. A minha aliança pelo casamento com a família de Sejano
podia facilmente terme custado a vida, se eu não fosse filho de Antónia. Foime agora permitido
divorciarme de Élia e guardar um oitavo do seu dote. Na realidade, devolvilho todo. Deve ter achado que
eu era um tolo. Mas filo como compensação por ter afastado dela a nossa filha Antónia, logo que esta
nasceu. Na verdade, Élia tinha aceitado engravidar de mim logo que sentiu que a posição de Sejano se
estava a tornar insegura. Pensou que isto lhe traria alguma protecção se ele caísse do poder; Tibério não
podia propriamente mandála executar, estando grávida do sobrinho. Aceitei com prazer o divórcio de
Élia, mas nunca lhe teria roubado a criança se não fosse a insistência de minha mãe: ela queria Antónia
para si, como coisa sua e para tratar como mãe chamase a isso fome de avó.
O único membro da família de Sejano que escapou foi o irmão, pela estranha razão de ter publicamente
troçado da calvície de Tibério. No último festival anual em honra de Flora, ao qual ele calhou presidir,
utilizou apenas homens carecas para realizar as cerimónias, que se prolongaram até à noite, e os
espectadores foram iluminados à saída do teatro por 5.000 archotes, sustentados por crianças cujas
cabeças tinham sido rapadas. Tibério foi informado disto na presença de Nerva por um senador que o
visitou e, para criar boa impressão em Nerva, disse:
Eu perdoolhe. Se Júlio César não levou a mal piadas à sua calvície, porque o faria eu?
Suponho que, após a queda de Sejano, Tibério decidiu, por um capricho semelhante, renovar a sua
magnanimidade.
317
Mas Helena foi punida, unicamente por ter fingido estar doente, através do casamento com Blando, um
indivíduo ordinário cujo avô, um cavaleiro da província, tinha vindo para Roma como professor de
retórica. Este foi considerado um comportamento muito baixo por parte de Tibério, porque Helena era sua
neta e, com esta aliança, ele estava a desonrar a sua própria casa. Diziase que não era preciso recuar
muito na linhagem de Blando para chegar aos escravos.
Tibério compreendia agora que os Guardas, a quem pagou um bónus de cinquenta moedas de ouro por
cabeça (e não trinta, como Macro prometera), eram a sua única defesa certa contra o povo e o Senado.
Disse a Calígula:
Não há um único homem em Roma que não gostasse de comer a minha carne.
Os Guardas, para mostrarem a sua lealdade a Tibério, queixaramse de que tinham sido injustiçados ao
serem preteridos a favor dos Vigias para escoltar Sejano até à prisão; como protesto, marcharam para fora
do acampamento para saquear os subúrbios. Macro deixouos gozar bem a noite, mas, quando o toque de
reunir soou na madrugada do dia seguinte, os homens que não estavam de regresso ao fim de duas horas
foram chicoteados quase até à morte.
Passado algum tempo, Tibério declarou uma amnistia. Mais ninguém podia ser julgado por ter estado
politicamente ligado a Sejano e, se alguém quisesse pôr luto por ele, recordando os seus feitos nobres,
agora que os maus tinham sido totalmente punidos, não seriam levantadas objecções. Bastantes homens o
fizeram, pensando que era isso que Tibério desejava, mas estavam enganados. Em breve as suas vidas
estavam em julgamento, sob acusações perfeitamente infundadas, sendo a mais comum o incesto. Foram
todos executados. Poderá perguntarse como foi que ainda sobraram senadores e cavaleiros, depois de
toda esta mortandade: mas a resposta é que Tibério mantinha as Ordens em força através de promoções
constantes. Nascimento livre, um registo limpo e alguns milhares de moedas de ouro eram as únicas
qualificações necessárias para admissão na Nobre Ordem dos Cavaleiros; e havia sempre bastantes
candidatos, embora o pagamento da iniciação fosse pesado. Tibério estava a tornarse mais ávido que
nunca; esperava que os homens ricos lhe deixassem pelo menos metade dos seus bens em testamento e, se
se descobria que não o tinham feito, declarava os testamentos tecnicamente inválidos por causa de uma
qualquer falha legal. Ele próprio chamava a si todos os bens, enquanto os herdeiros nada recebiam.
Praticamente, não gastava dinheiro nenhum em obras públicas, nem mesmo para completar o Templo de
Augusto, e limitava os donativos de trigo e as verbas destinadas aos divertimentos públicos. Pagava
regularmente aos exércitos e era tudo. Quanto às províncias, já não fazia o que quer que fosse por elas,
desde que os impostos
318
e os tributos chegassem regularmente; já nem sequer se incomodava em nomear novos governadores,
quando os anteriores morriam. Uma delegação da Hispânia veio uma vez queixarse de que havia quatro
anos que estavam sem governador e que o pessoal que trabalhara com o último deles andava a pilhar a
província de maneira vergonhosa. Tibério disse:
Não estais a pedir um novo governador, pois não? Mas um novo governador só traria pessoal novo e
ficaríeis ainda pior que antes. Vou contarvos uma história. Houve em tempos um homem gravemente
ferido que estava estendido no campo de batalha, à espera que o médico viesse tratarlhe da ferida, que
estava coberta de moscas. Um camarada, que estava ligeiramente ferido, viu as moscas e ia enxotálas.
”Oh não,” gritou o ferido, ”não faças isso. Estas moscas agora estão quase empanturradas com o meu
sangue e já não me magoam tanto como no início; se as enxotares, o seu lugar será imediatamente
ocupado por outras, esfomeadas, e isso acabará comigo.”
Deixou que os partos ocupassem a Arménia, que as tribos do Transélanúbio invadissem os Balcãs e que os
germanos fizessem incursões do outro lado do Reno, entrando em França. Confiscou os bens de uma série
de chefes aliados e pequenos reis de França, Hispânia, Síria e Grécia, usando os pretextos mais triviais.
Retirou a Vortones o seu tesouro deveis estar recordados que Vonones era o antigo rei da Arménia, por
causa de quem o meu irmão Germânico teve um desentendimento com Gneo Piso , enviando agentes que
o ajudaram a fugir da Cilícia (onde Germânico o pusera sob guarda), mandandoo depois perseguir e
matar.
Nesta altura, os informadores começaram a acusar os homens ricos de cobrarem mais do que o juro legal
nos empréstimos um e meio por cento era tudo o que estavam autorizados a cobrar. O estatuto que o
regulamentava há muito que estava suspenso e, praticamente, nenhum senador estava inocente de o ter
infringido. Mas Tibério confirmoulhe a validade. Uma delegação foi procurálo e pediu que fosse
concedido a todos o período de um ano e meio para ajustarem as suas finanças à letra da lei e Tibério,
como grande favor, acedeu ao pedido. O resultado foi que todas as dívidas foram imediatamente
reclamadas e isto provocou uma grande falta de liquidez. Para começar, as imensas e inúteis quantidades
de ouro e prata que Tibério guardava no Tesouro tinham sido responsáveis pela subida das taxas de juro, o
que gerou o pânico financeiro. Os valores da terra baixaram para zero. Tibério acabou por ser forçado a
minorar a situação emprestando aos banqueiros 1.000.000 de moedas de ouro do dinheiro público, sem
juros, para pagar a quem pedia empréstimos, em troca por garantias em terras. Ele nem teria feito tudo
isto, se não fossem os conselhos de Cocceio Nerva. Por vezes, Tibério ainda consultava Nerva, que,
vivendo em Capri, onde era cuidadosamente mantido à distância da cena dos deboches de Tibério e a
quem eram permitidas poucas notícias
319
de Roma, era talvez o único homem no mundo que ainda acreditava na bondade de Tibério. Perante Nerva
(foi Calígula quem mo disse, alguns anos mais tarde), Tibério explicava os seus favoritos pintados como
pobres órfãos de quem ele se apiedara, a maior parte deles um pouco tontos da cabeça, o que justificava a
maneira estranha como se vestiam e se comportavam. Mas seria que Nerva era realmente tão simples e tão
curto de vista, a ponto de ter acreditado nisto?
320
CAPíTULO XXVIII
Dos últimos cinco anos do reinado de Tibério, quanto menos se falar melhor. Não suporto escrever
detalhadamente sobre Nero, morto à fome, lentamente; ou sobre Agripina, que se alegrou com a notícia da
queda de Sejano, mas, quando viu que isso em nada melhorava as coisas, se recusou a comer e foi
alimentada à força durante algum tempo (depois, finalmente, deixaramna morrer, como ela desejava); ou
sobre Caio, que morreu de tuberculose; ou sobre Druso que, afastado por algum tempo da águafurtada do
Palácio para uma cave escura, foi encontrado morto com a boca cheia de lã do colchão, que se pusera a
mastigar por causa da fome. Mas, pelo menos, tenho que registar que Tibério escreveu cartas ao Senado
regozijandose com a morte de Agripina e de Nero acusavaa agora de traição e adultério com Caio e
lamentando, no caso de Caio, que ”a pressão dos assuntos públicos tivesse feito adiar constantemente o
seu julgamento, de forma que ele tinha morrido antes que se pudesse provar a sua culpa.” Quanto a Druso,
escreveu que este jovem era o patife mais lascivo e traiçoeiro que alguma vez encontrara. Ordenou que
fosse feita a leitura pública, pelo capitão da Guarda que estava encarregado dele, de todos os comentários
traiçoeiros que Druso proferira na prisão, Nunca antes um documento tão penoso tinha sido lido na Casa.
Era nítido, pelos comentários de Druso, que ele tinha sido espancado, torturado e insultado pelo próprio
capitão, pelos soldados comuns e mesmo por escravos e que recebera, de forma muito cruel, cada vez
menos alimento e bebida, migalha a migalha, gota a gota. Tibério ordenou mesmo ao capitão que lesse a
maldição de Druso moribundo. Era uma imprecação selvática mas bem construída, acusando Tibério de
avareza, traição, sordidez obscena, deleite na tortura, de ter assassinado Germânico e Póstumo e de toda
uma série de outros crimes (a maior parte dos quais ele cometera, mas nenhum deles tinha sido
publicamente mencionado antes); pedia a Deus que todo o incomensurável sofrimento e desgosto que
Tibério causara aos outros pesasse sobre ele com uma força cada vez maior, na vigília ou no sono, noite e
dia, enquanto vivesse, que o oprimisse na hora da sua morte e o obrigasse a eterna tortura no dia do
Julgamento infernal. Os senadores interromperam a leitura com exclamações de pretenso horror perante a
traição de Druso, mas estes ah’s e oh’s e gemidos
321
encobriam o seu espanto por Tibério ter voluntariamente fornecido uma tal revelação da sua própria
maldade. Tibério sentiu muita pena de si mesmo na altura (soubeo depois por Calígula), sendo
atormentado por insónias e receios supersticiosos; e contava realmente com a simpatia do Senado. Com as
lágrimas nos olhos, disse a Calígula que o assassinato dos seus parentes lhe tinha sido imposto pelas
ambições deles e pela política que herdara de Augusto (ele disse Augusto, não Lívia), de pôr a
tranquilidade do reino acima do sentimento pessoal. Calígula, que nunca mostrara o mais leve sinal de
desgosto pelo tratamento dispensado por Tibério à mãe e aos irmãos, compadeceuse com o homem mais
velho; depois, rapidamente, começou a falarlhe de um novo tipo de vício de que ouvira falar
recentemente a uns sírios. Uma conversa desse tipo era a única forma de alegrar Tibério, quando ele tinha
crises de remorso. Lépida, que traíra Druso, não lhe sobreviveu muito tempo. Foi acusada de adultério
com um escravo e, não tendo como negar a acusação (uma vez que foi encontrada na cama com ele),
suicidouse.
Calígula passava a maior parte do tempo em Capri, mas ocasionalmente ia a Roma por incumbência de
Tibério, para vigiar Macro. Macro fazia agora todo o trabalho de Sejano, e com muita eficiência, mas era
suficientemente sensato para dar a saber ao Senado que não queria que lhe votassem quaisquer honrarias e
que qualquer senador que as propusesse em breve seria julgado pela sua vida, com base numa qualquer
acusação de traição, incesto ou falsificação. Tibério indicara Calígula como seu sucessor por diversas
razões. A primeira, era que a popularidade de Calígula como filho de Germânico obrigava as pessoas a
comportarse o melhor possível, com medo de que qualquer perturbação da sua parte fosse punida com a
morte dele. A seguinte, era que Calígula era um excelente criado e um dos poucos que era suficientemente
mau para fazer com que Tibério se sentisse, por comparação, um homem virtuoso. A terceira, era que ele
não acreditava que Calígula viesse na realidade a ser Imperador. E que Trasilo, em quem confiava
totalmente (uma vez que nenhum acontecimento jamais sucedera contrariamente às suas predições) lhe
dissera: Calígula não tem mais possibilidades de se tornar Imperador do que de atravessar a cavalo
aquela baía, de Baiae a Puteoli.
Trasilo disse ainda, Daqui a dez anos, Tibério César ainda será Imperador. Isto era verdade, como se
veio a verificar, mas tratavase de outro Tibério César.
Tibério sabia muita coisa, mas algumas Trasilo não lhas revelava. Ele conhecia, por exemplo, o destino do
neto Gemelo, que não era realmente seu neto, porque o pai não era Castor e sim Sejano. Um dia, disse a
Calígula:
Vou fazerte meu herdeiro principal. Farei Gemelo meu segundo herdeiro, caso tu morras antes dele, mas
isto é apenas uma formalidade. Sei que tu matarás Gemelo; mas também outros te matarão a ti. Disse
322
isto na esperança de sobreviver a ambos. Depois, acrescentou, citando uma qualquer tragédia grega:
Quando eu estiver morto, que o Fogo destrua a Terra,
Mas Tibério ainda não estava morto. Os informadores continuavam em actividade e todos os anos cada
vez mais pessoas eram executadas. Praticamente, não restava nenhum senador que tivesse mantido o seu
lugar desde os tempos de Augusto. Macro tinha muito maior apetite pelo sangue e muito menos
escrúpulos em o derramar do que Sejano. Sejano era, de qualquer forma, filho de um cavaleiro; o pai de
Macro nascera escravo. Entre as novas vítimas contavase Plancina, que, agora que Lívia morrera, não
tinha quem a protegesse. Foi acusada uma vez mais de ter envenenado Germânico; a verdade é que ela era
uma mulher bastante rica. Tibério não permitira que a acusassem até Agripina morrer, porque, se Agripina
tivesse sabido a novidade, isso terlheia agradado enormemente. Não senti pena quando ouvi dizer que o
corpo de Plancina fora atirado da Escada, embora ela tivesse antecipado a execução com o suicídio.
Um dia, num jantar com Tibério, Nerva pediu perdão a este, explicando que não sentia fome e que não
queria qualquer alimento. Nerva tinhase mantido de perfeita saúde e bom humor durante todo aquele
tempo, mostrandose aparentemente satisfeito com a sua vida protegida em Capri. A princípio, Tibério
pensou que Nerva tivesse tomado algum purgante na noite anterior e estivesse a deixar descansar o
estômago, mas, quando ele prolongou o jejum pelo segundo e depois pelo terceiro dia, Tibério começou a
recear que ele tivesse decidido deixarse morrer à fome. Sentouse ao lado de Nerva e pediulhe que lhe
dissesse porque não estava a comer. Mas Nerva não fez mais do que voltar a pedir desculpa e dizer que
não tinha fome. Tibério pensou que talvez Nerva estivesse aborrecido com ele, por não ter seguido mais
cedo o seu conselho para evitar a crise financeira. Perguntou:
Comerias com mais apetite se eu revogasse todas as leis que limitam o juro sobre os empréstimos a um
valor que consideras demasiado baixo? Nerva disse:
Não, não é isso. Simplesmente não tenho fome. No dia seguinte, Tibério disse para Nerva:
Escrevi ao Senado. Alguém me disse que dois ou três homens ganham a vida actuando como
informadores profissionais contra aqueles que procedem mal. Nunca me ocorreu que, ao recompensar a
lealdade para com o Estado, estivesse a encorajar alguns homens a tentar os seus amigos ao crime e a traí
los em seguida, mas isso parece ter acontecido em mais do que um caso. Dei instruções ao Senado para
executar imediatamente qualquer pessoa de quem se prove que ganhou a vida com essa conduta infame.
Talvez agora comas alguma coisa?
323
Quando Nerva lhe agradeceu e louvou a sua decisão, mas disse que continuava sem qualquer apetite,
Tibério ficou muito deprimido.
Se não comeres vais morrer, Nerva, e eu o que faço? Sabes como aprecio a tua amizade e os teus
conselhos políticos. Por favor, por favor, come, suplicote. Se morresses, o mundo pensaria que eu era o
culpado ou, pelo menos, que te deixaste morrer à fome por me odiares. Oh, não morras, Nerva! És o único
amigo verdadeiro que me resta.
Nerva disse:
Não adianta pediresme que coma, César. O meu estômago recusaria qualquer coisa que lhe desse.
Certamente, ninguém poderia dizer essas coisas mal intencionadas que sugeres. Eles sabem que és um
governante sensato e um homem bondoso e tenho a certeza que não têm razões para supor que eu seja
ingrato, pois não? Se eu tiver que morrer, é porque tenho que morrer, mais nada. A morte é o destino
comum de todos e, pelo menos, terei a satisfação de não te sobreviver.
Tibério não se queria deixar convencer, mas, em breve, Nerva ficou demasiado fraco para poder responder
às suas perguntas: morreu ao nono dia.
Trasilo morreu. A sua morte foi anunciada por um lagarto. Era um lagarto muito pequeno e atravessou
correndo a mesa de pedra onde tomava o pequenoalmoço com Tibério ao sol, indo estenderselhe sobre
o indicador. Trasilo perguntou:
Vieste chamarme, irmão? Estava à tua espera a esta mesma hora.
Depois, voltandose para Tibério, disse:
A minha vida chegou ao fim, César. Adeus! Nunca te disse nenhuma mentira. Tu dissesteme muitas.
Mas toma cuidado, quando o teu lagarto te fizer um aviso.
Fechou os olhos e, momentos depois, estava morto.
Entretanto, Tibério escolhera para animal de estimação o bicho mais extraordinário que alguma vez se viu
em Roma. As girafas suscitaram grande admiração quando foram vistas pela primeira vez e o mesmo
aconteceu com o rinoceronte, mas este, embora não fosse tão grande, era muito mais fabuloso. Veio de
uma ilha para além da índia chamada Java, e era como um lagarto escamudo com quase três metros de
comprimento, uma cabeça feia e uma língua comprida e afiada. Quando Tibério olhou para ele, pela
primeira vez, disse que nunca mais se mostraria céptico acerca dos monstros que se dizia terem sido
feridos por Hércules e Teseu. Era chamado de Dragão sem Asas e Tibério alimentavao ele próprio todos
os dias com baratas, ratos mortos e outros animais semelhantes. Tinha um cheiro horrível, hábitos
nojentos e temperamento agressivo. O dragão e Tibério entendiamse perfeitamente. Ele pensava que
Trasilo tinha querido dizer que o dragão havia de o morder um dia, por isso,
324
meteuo numa jaula com grades suficientemente pequenas para que ele não pudesse passar a cabeça
horrenda entre elas.
Tibério tinha agora setenta e oito anos e o uso constante da mirra e de afrodisíacos semelhantes tornarao
extremamente fraco; mas vestiase com elegância e tentava comportarse como um homem que ainda não
tivesse passado da meiaidade. Sentiase cansado de Capri, agora que Nerva e Trasilo tinham
desaparecido, e, no princípio de Março do ano seguinte, determinou desafiar o Destino e visitar Roma. Fez
a viagem por etapas e a última paragem foi numa villa na Via Ápia, de onde se avistavam os muros da
Cidade. Mas, no dia a seguir à sua chegada, o dragão fezlhe o aviso profetizado. Tibério foi darlhe de
comer ao meiodia e encontrouo estendido na jaula, morto, com um enorme enxame de grandes formigas
negras a correremlhe por cima do corpo, tentando arrancarlhe pedaços de carne macia. Tomou isto como
um sinal de que, se se aproximasse mais da Cidade, morreria como o dragão e a populaça desfazerlheia o
corpo em pedaços. Por isso, regressou apressadamente. Apanhou um resfriado ao viajar contra o vento
leste, que ele ainda fez piorar assistindo a uns jogos exibidos pelos soldados de guarnição de uma cidade
que atravessou. Um javali selvagem foi solto na arena e Tibério convidado a atirarlhe uma lança do seu
camarote. Atirou uma e falhou; ficou irritado consigo próprio por ter falhado e pediu outra. Sempre se
orgulhara da sua habilidade no lançamento de dardos e não queria que os soldados pensassem que a idade
o derrotara. Por isso levantouse, excitado, lançando dardo a seguir a dardo, tentando acertar no javali a
uma distância impossível e, finalmente, teve que parar, exausto. O javali estava incólume e Tibério
ordenou que o libertassem, como recompensa pela sua destreza em evitar os ataques.
O resfriado tomoulhe conta do fígado, mas ele continuou a viagem de regresso a Capri. Chegou a
Míseno, que fica no extremo mais próximo da baía de Nápoles. A frota ocidental tem aqui o seu quartel
general. Tibério estava arreliado por encontrar o mar tão bravio, que não lhe permitia atravessar. No
entanto, tinha uma villa esplêndida no promontório de Míseno ela pertencera em tempos ao famoso
epicurista Iticulo. Instalouse lá com o seu séquito. Calígula tinhao acompanhado, tal como Macro; e,
para mostrar que não havia nada de errado com ele, Tibério deu um grande banquete para todos os
funcionários locais. A festa ja estava a decorrer havia algum tempo, quando o médico particular de Tibério
pediu permissão para deixar a mesa e ir tratar de uns assuntos profissionais: certas ervas, como sabeis, têm
maior virtude quando apanhadas à meianoite ou quando a lua está em determinada posição. Tibério
estava acostumado a que o médico se levantasse durante a refeição para atender a questões desse tipo.
Pegou na mão de Tibério para a beijar, mas seguroua mais tempo que o necessário. Tibério pensou, e com
razão,
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que o médico estava a tomarlhe o pulso para ver como estava fraco; por isso, mandouo sentar de novo
como castigo e fez com que o banquete durasse toda a noite, para provar que não estava doente. No dia
seguinte, Tibério estava num estado de prostração e a notícia de que ele estava a morrer correu Míseno,
espalhandose dali até Roma.
Ora, Tibério tinha ordenado a Macro que fossem encontradas provas de traição contra certos senadores
proeminentes de quem ele não gostava e deralhe ordens para garantir a condenação dos mesmos, fosse
por que meios fosse. Macro anotouos como cúmplices numa acusação que estava a preparar contra uma
mulher de quem tinha uma queixa, esposa de um antigo agente de Sejano: essa mulher tinha repelido os
seus avanços. Todos foram acusados de adultério com ela e de usarem o nome de Tibério em vão.
Intimidando libertos e torturando escravos, Macro conseguiu a prova necessária libertos e escravos já
tinham entretanto perdido a tradição de fidelidade para com os seus senhores. O julgamento começou.
Mas os amigos do acusado notaram que, embora o próprio Macro tivesse conduzido o exame das
testemunhas e a tortura dos escravos, a habitual carta Imperial aprovando os seus actos não estava em
cima da mesa; portanto, concluíram que talvez Macro tivesse juntado um ou dois inimigos pessoais à lista
que lhe fora dada por Tibério. A vítima principal destas acusações obviamente absurdas foi Arrúncio, o
membro mais antigo e mais digno do senado. Augusto, um ano antes de morrer, dissera que ele era a única
escolha possível para Imperador, na falta de Tibério; Tibério já uma vez tinha tentado acusálo de traição,
mas sem êxito. O velho Arrúncio era o único elo de ligação que ainda restava com a era de Augusto. Na
ocasião anterior, o sentimento contra os seus acusadores tinha sido tão forte, embora se acreditasse que
eles estavam a agir instigados por Tibério, que foram eles próprios julgados, acusados de perjúrio e
condenados à morte. Sabiase agora que Macro tivera recentemente uma disputa com Arrúncio por causa
de dinheiro; por isso, o julgamento foi adiado até que Tibério tivesse confirmado a incumbência de Macro.
Tibério descuidouse a responder à consulta do Senado e, assim, Arrúncio permaneceu na prisão durante
algum tempo. Finalmente, Tibério enviou a confirmação necessária e foi fixado o dia para o novo
julgamento. Arrúncio tinha decidido matarse antes que se desse o julgamento, para que os seus bens não
fossem confiscados e os seus filhos não ficassem na miséria. Estava a despedirse de alguns velhos
amigos, quando chegou a notícia do grave estado de saúde de Tibério. Os amigos pediramlhe que adiasse
o suicídio até ao último momento, porque, se a notícia fosse verdadeira, ele tinha boas hipóteses de
sobreviver a Tibério e de ser perdoado pelo seu sucessor. Arrúncio disse:
Não, eu já vivi tempo demais. A minha vida já foi bastante difícil quando Tibério partilhava o poder com
Lívia. Tornouse quase intolerável
326
quando ele o partilhava com Sejano. Mas Macro mostrou ser um vilão ainda pior do que o próprio Sejano
e, ouvi o que vos digo, Calígula, com a sua educação de Capri, será um Imperador ainda pior que Tibério.
Não posso, com a minha avançada idade, tornarme escravo de um novo senhor como ele.
Pegou num canivete e cortou uma artéria no pulso. Todos ficaram muito chocados, porque Calígula era
um herói popular, e esperavase que se tornasse num segundo Augusto, ainda melhor que o primeiro.
Ninguém pensava em culpálo pela sua pretensa lealdade a Tibério; pelo contrário, era muito admirado
pela sua esperteza em sobreviver aos irmãos e por esconder tão bem aquilo que julgavam serem os seus
verdadeiros sentimentos.
Entretanto, o pulso de Tibério quase parou e ele entrou em coma. O médico disse a Macro que dois dias
mais, externamente, era tudo o que ele tinha para viver. Portanto, toda a corte ficou em grande alvoroço.
Macro e Calígula estavam de perfeito acordo. De uma maneira geral, Calígula respeitava a popularidade
de Macro junto dos Guardas e Macro respeitava a popularidade de Calígula junto da nação: contavam com
o apoio um do outro. Além disso, Macro estava em dívida para com Calígula pela sua subida ao poder e
Calígula estava a ter um caso com a mulher de Macro, que este tinha sido suficientemente generoso para
ignorar. Tibério já comentara amargamente a maneira como Macro adulava Calígula, dizendo:
Fazes bem em abandonar o sol poente pelo nascente.
Macro e Calígula começaram a enviar mensagens para os comandantes de diferentes regimentos e
exércitos, dizendolhes que o Imperador se estava a afundar rapidamente e nomeara Calígula seu sucessor:
tinhalhe dado o seu anel de sinete. Era verdade que Tibério, num intervalo de lucidez, tinha chamado
Calígula e tirado o anel do dedo. Mas tinha mudado de opinião e voltara a pôlo, enclavinhando as mãos
uma na outra, como que para impedir que lho tirassem. Quando mergulhou de novo na inconsciência, não
dando mais sinais de vida, Calígula tiraralhe suavemente o anel e andava agora a pavonearse,
ostentandoo na cara de quem quer que encontrava e aceitando felicitações e homenagens.
Mas, mesmo agora, Tibério ainda não estava morto. Gemeu, mexeuse, sentouse e chamou os criados.
Estava fraco por causa do jejum prolongado, mas, quanto ao resto, estava lúcido. Era uma partida que já
pregara antes, fazerse de morto e depois voltar à vida. Chamou uma vez mais. Ninguém o ouviu. Os
criados estavam todos na adega, a beber à saúde de Calígula. Mas não tardou que um escravo mais
empreendedor aparecesse, para ver o que podia roubar no quarto do morto na ausência dos outros. O
quarto estava escuro e Tibério quase o matou de susto, ao gritar de repente:
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Onde diabo estão os criados? Não me ouviram chamar? Quero pão e queijo, uma omeleta, duas
costeletas de vaca e vinho de Chian... imediatamente! E mil Fúrias! Quem roubou o meu anel?
O escravo precipitouse para fora do quarto e quase chocou com Macro, que ia a passar.
O Imperador está vivo, senhor, e pede comida e o anel.
A notícia correu o Palácio e seguiuse uma cena cómica. A multidão que rodeava Calígula dispersou em
todas as direcções. Ouvíramse gritos.
Graças a Deus, a notícia era falsa. Viva Tibério!
Calígula estava num estado desgraçado de vergonha e terror. Arrancou anel do dedo e olhou em volta, à
procura de um sítio para o esconder. Apenas Macro manteve a calma.
É uma mentira sem sentido, gritou. O escravo deve ter perdido o juízo. Mandao crucificar, César!
Deixámos o velho Imperador morto, uma hora atrás. Sussurrou qualquer coisa a Calígula, que foi visto a
acenar com a cabeça num gesto de alívio e gratidão. Depois, acorreu ao quarto de Tibério. Este estava de
pé, praguejando, gemendo e cambaleando debilmente em direcção à porta. Macro tomouo nos braços,
atirouo de novo para a cama e sufocouo com uma almofada. Calígula estava ao lado dele.
Assim, os que tinham estado presos com Arrúncio foram soltos, embora a maior parte deles desejassem
mais tarde ter seguido o exemplo deste. Havia, além disso, cerca de cinquenta homens e mulheres que
tinham sido acusados de traição, separadamente destes. Não tinham qualquer influência no Senado, sendo
na sua maioria comerciantes que não tinham pago o dinheiro de protecção que os capitães de Macro agora
impunham a todos os tutelados da Cidade. Foram julgados e condenados e deviam ser executados no dia
16 de Março. Este foi precisamente o dia em que chegou a notícia da morte de Tibério e eles e os seus
amigos quase enlouqueceram de alegria, pensando que agora seriam salvos. Mas Calígula estava ausente
em Míseno e não foi possível apelar para ele a tempo e o director da prisão teve medo de perder o lugar
se tomasse a responsabilidade de adiar as execuções. Assim, foram mortos, e os seus corpos lançados nas
escadas da maneira habitual.
Este foi o sinal para um surto de ira popular contra Tibério. ”Ele pica como uma vespa morta”, gritou
alguém. Multidões juntaramse às esquinas das ruas em solenes cerimónias de denúncia, vigiadas por
chefes da guarda, suplicando à Terra Mãe e ao Juízes dos Mortos que não dessem sossego ou paz ao
cadáver e ao fantasma daquele monstro até ao dia da dissolução universal. O corpo de Tibério foi levado
para Roma sob uma forte escolta de Guardas. Calígula caminhava na procissão para carpir o morto e toda
a gente da região veio em bando ao seu encontro, não para carpir Tibério, mas vestidos de festa, chorando
de gratidão por os céus
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terem preservado um filho de Germânico para os governar. Velhas mulheres do campo gritavam:
Oh, doce e querido Calígula! Nosso pintainho! Nosso menino! A nossa estrela!
A poucas milhas de Roma, ele adiantouse para ir fazer os preparativos para a entrada solene do corpo na
Cidade. Mas, depois de passar, juntouse uma grande multidão que barricou a Via Ápia com tábuas e
blocos de pedra. Quando os batedores da escolta apareceram, ouviramse vaias, gemidos e gritos: ”Para o
Tibre, Tibério para o Tibre!”; ”Atiraio pelas Escadas!”; ”Condenação Eterna para Tibério!”. O chefe
gritou: ”Soldados, nós romanos não permitiremos que esse corpo maléfico entre na Cidade. Ele vai trazer
nos má sorte. Levaio de volta para Ateia e semiqueimaio no anfiteatro!”. Semiqueimar, devo explicar,
era o destino habitual dos miseráveis e dos infelizes e Ateia era uma cidade famosa por uma espécie de
rude mascarada ou farsa campesina que costumava ser representada ali todos os anos, durante o festival
das colheitas, desde os tempos mais antigos. Tibério tinha uma villa em Ateia e costumava assistir ao
festival quase todos os anos. Tinha convertido a inocente brejeirice rural da mascarada em sofisticada
baixeza. Fez os homens de Ateia construir um anfiteatro para apresentar o novo espectáculo, produzido
por ele próprio. Macro ordenou aos seus homens que investissem contra a barricada e vários cidadãos
foram mortos e feridos; três ou quatro soldados caíram inconscientes depois de terem sido agredidos com
pedras da calçada. Calígula impediu a continuação da desordem e o corpo de Tibério foi devidamente
queimado nos Campos de Marte. Calígula fez a oração fúnebre. Foi muito formal, irónica e muito
apreciada, porque havia nela muita coisa acerca de Augusto e Germânico, mas muito pouco sobre Tibério.
Num banquete nessa noite, Calígula contou uma história que fez todos chorar e que lhe permitiu
conquistar grande crédito. Ele disse que uma vez de manhã cedo, em Míseno, estando como de costume
sem conseguir dormir com o desgosto pelo destino da mãe e dos irmãos, tinha decidido, acontecesse o que
acontecesse, vingarse finalmente do seu assassino. Agarrou num punhal que tinha pertencido ao pai e
entrou destemidamente no quarto de Tibério. O Imperador jazia, gemendo e revolvendose na cama, no
meio de um pesadelo. Calígula ergueu lentamente o punhal para atacar, mas uma Voz Divina sooulhe
aos ouvidos:
Bisneto, detém o teu gesto! Matálo, seria ímpio. Calígula respondeu:
Oh, Deus Augusto, ele matou a minha mãe e os meus irmãos, teus descendentes. Será que não devo
vingálos, mesmo à custa de ser desprezado por todos os homens como um parricida?
Augusto retorquiu:
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Filho magnânimo, que hásde tornarte Imperador, não há necessidade de fazer o que pensaste fazer. Por
minha ordem, as Fúrias vingam todas as noites os teus entes queridos enquanto ele sonha.
Assim, ele tinha pousado o punhal em cima da mesa ao lado da cama e tinha saído. Calígula não explicou
o que tinha acontecido na manhã seguinte, quando Tibério acordou e viu o punhal em cima da mesa;
supunhase que Tibério não ousara mencionar o incidente.
330
CAPíTULO XXIX
Calígula tinha vinte e cinco anos quando se tornou Imperador. Raramente, se é que alguma vez, na história
do mundo um príncipe foi mais entusiasticamente aclamado na sua tomada de posse ou teve diante dele
uma tarefa mais fácil em satisfazer os modestos desejos do seu povo, que eram apenas de paz e segurança.
Com um tesouro a abarrotar, exércitos bem treinados, um excelente sistema administrativo, que precisava
apenas um pouco de cuidado para entrar de novo em perfeita ordem pois, apesar da negligência de
Tibério, o Império continuava a singrar bastante bem, sob o ímpeto que lhe fora dado por Lívia , com
todas estas vantagens, acrescidas do legado de amor e confiança de que gozava como filho de Germânico,
e com o imenso alívio resultante do afastamento de Tibério, que esplêndida oportunidade ele teve de ser
lembrado na história como Calígula o Bom, ou Calígula o Sábio ou Calígula o Salvador! Mas é perda de
tempo escrever desta forma. Porque, se ele fosse o tipo de homem por quem as pessoas o tomavam, nunca
teria sobrevivido aos irmãos ou sido escolhido por Tibério como seu sucessor. Cláudio, lembrate do
desprezo que o velho Atenodoro sentia por essas contingências impossíveis. Ele costumava dizer: ”Se o
cavalo de Madeira de Tróia tivesse tido crias, hoje em dia, os cavalos custariam menos a alimentar.”
A princípio, Calígula divertiase a encorajar a concepção absurdamente errada que todos, à excepção de
mim, da minha mãe, de Macro e de mais uma ou duas pessoas, tinham do seu carácter e mesmo a realizar
uma série de actos a condizer. Queria também certificarse da sua posição. Havia dois obstáculos para a
sua completa liberdade de acção. Um era Macro, cujo poder o tornava perigoso. O outro era Gemelo.
Quando o testamento de Tibério foi lido (o que, para manter o secretismo, ele fez testemunhar por alguns
libertos e pescadores analfabetos), descobriuse que o velho, apenas para criar problemas, não designara
Calígula como seu primeiro herdeiro, com Gemelo como segunda escolha em caso de acidente: fizeraos
coherdeiros, para governarem em anos alternados. No entanto, Gemelo ainda não atingira a idade e, por
isso, não podia sequer entrar no Senado, enquanto Calígula já era um magistrado de segunda categoria
alguns anos antes de ter idade para isso, sendo também pontífice. O Senado estava portanto absolutamente
preparado para aceitar
331
o ponto de vista de Calígula de que Tibério não estava no seu juízo perfeito quando fez o testamento e,
sem objecções, deu todo o poder a Calígula. A não ser nesta questão de Gemelo, cuja parte na Bolsa
Privada ele também reteve, baseandose no facto da Bolsa Privada ser parte integrante da soberania,
Calígula respeitou todas as cláusulas do testamento e pagou prontamente todos os legados.
Os Guardas deviam receber um prêmio de cinquenta moedas de ouro cada; Calígula, para garantir a sua
lealdade quando chegasse a altura do afastamento de Macro, dobrou essa quantia. Pagou ao povo de Roma
as
450.000 moedas de ouro que lhes foram deixadas e acrescentou três moedas por cabeça; disse que
tencionava darlhes aquela importância quando atingisse a maioridade, mas o velho Imperador tinhao
proibido. Aos exércitos, foi concedido o mesmo bónus que no testamento de Augusto, mas desta vez ele
foi pago prontamente. Mais ainda, pagou todas as importâncias que estavam em dívida segundo o
testamento de Lívia e que os legatários há muito tinham riscado como dívidas incobráveis. Para mim, as
duas cláusulas mais importantes do testamento de Tibério eram: a doação específica à minha pessoa dos
livros históricos que Pólio me deixara, mas que me tinham sido subtraídos, juntamente com uma série de
outros volumes valiosos, e a soma de 20.000 moedas de ouro; e uma doação à Chefe das Vestais, neta de
Vipsânia, de 100.000 moedas de ouro para ela gastar como lhe parecesse, com ela própria ou com o
Colégio. A Chefe das Vestais, na qualidade de neta do assassinado Caio, derreteu as moedas e fez com
elas uma urna para as cinzas dele.
Com estes legados de Lívia e Tibério, eu estava agora em boa situação financeira. Calígula espantoume
ao tomar ainda a iniciativa de me reembolsar das 50.000 moedas que eu arranjara para Germânico na
altura do motim: ele tinha sabido da história pela mãe. Não me permitiu que recusasse e disse que, se
continuasse a protestar, insistiria em me pagar também o juro acumulado: era uma dívida que ele tinha
para com a memória do pai. Quando falei a Calpúrnia da minha nova riqueza, ela pareceu mais
descontente do que satisfeita.
Não te vai trazer sorte alguma, disse. Mais vale estar modestamente desafogado, como tem sido o teu
caso, do que correr o risco de ver a fortuna serte arrancada por informadores sob acusação de traição.
Calpúrnia era a sucessora de Actê, como deveis estar lembrados. Era muito perspicaz para a idade tinha
dezassete anos.
Eu disse:
De que estás a falar, Calpúrnia? Informadores? Agora não há disso em Roma nem julgamentos por
traição.
Ela ripostou:
Não ouvi dizer que os informadores tenham sido despachados no mesmo barco que os Spintrianos. (Os
órfãos pintados de Tibério
332
tinham sido exilados por Calígula. Como um gesto público de pureza de sentimentos, tinha enviado todo
o bando para a Sardenha, uma ilha muito insalubre, e disseralhes que trabalhassem honestamente para
ganhar a vida como construtores de estradas. Alguns deles, limitaramse a deitarse e a morrer quando lhes
meteram nas mãos as picaretas e as pás, mas os restantes foram chicoteados até começarem a trabalhar,
mesmo os mais amaneirados. Em breve, tiveram um golpe de sorte. Um navio pirata fez uma incursão
repentina, capturouos e levouos para Tiro, onde foram vendidos como escravos a ricos libertinos de
leste).
Mas eles não ousariam repetir as suas velhas artimanhas, Calpúrnia! Ela pousou o bordado.
Cláudio, eu não sou política nem intelectual, mas posso pelo menos usar o meu espírito de prostituta e
fazer umas contas simples. Quanto dinheiro deixou o Imperador?
Cerca de vinte e sete milhões de moedas de ouro.
E quanto é que o novo Imperador pagou em legados e prêmios?
Cerca de três milhões e meio. Sim, pelo menos, isso.
E, desde que ele é Imperador, quantas panteras, ursos, leões, tigres, touros selvagens e coisas assim já
foram importadas, para os caçadores matarem nos anfiteatros e no Circo?
Cerca de vinte mil, talvez. Provavelmente mais.
E quantos outros animais foram sacrificados nos templos?
Não sei. Creio que uns cem a duzentos mil.
Esses flamingos, antílopes do deserto, zebras e castores britânicos devem terlhe custado bom dinheiro!
Portanto, com a compra de todos esses animais, o pagamento aos caçadores nos anfiteatros... e depois os
gladiadores, claro, que recebem quatro vezes o que recebiam no tempo de Augusto, segundo me dizem;
sem esquecer todos os banquetes do Estado, os carros decorados e os espectáculos de teatro. Dizem que,
quando ele chamou os actores que o velho Imperador tinha expulso, lhes pagou por todos os anos que eles
tinham ficado sem trabalho; nada mau, einh? E, pelos deuses, o dinheiro que ele gastou em corridas de
cavalos! Bom, com tudo isto, não lhe deve restar grande coisa dos vinte milhões, pois não?
Acho que tens razão, Calpúrnia.
Bom, sete milhões em três meses! Como é que o dinheiro vai durar a um ritmo destes, mesmo que todos
os homens ricos que morrerem lhe deixem todo o seu dinheiro? O rendimento Imperial é inferior agora ao
que costumava ser quando a tua velha avó dirigia e verificava as contas.
Talvez ele se torne mais económico, depois da primeira excitação de ter dinheiro para gastar. Ele tem
uma boa desculpa para gastar. Diz que a estagnação do dinheiro no Tesouro, no tempo de Tibério, teve um
333
efeito totalmente desastroso no comércio. Quer pôr novamente alguns milhões em circulação.
Tu conhecelo melhor do que eu. Talvez ele saiba quando deve parar. Mas, se continuar com este ritmo, dentro de
dois anos não lhe restará um tostão e, nessa altura, quem irá pagar? É por isso que falo de informadores e
julgamentos por traição.
Eu disse:
Calpúrnia, Calpúrnia... vou comprarte um colar de pérolas enquanto ainda tenho dinheiro. Tu és tão inteligente
como bonita. Só espero que sejas igualmente discreta.
Preferia dinheiro, disse ela. Se não te importares.
Deilhe quinhentas moedas de ouro no dia seguinte. Calpúrnia, uma prostituta e filha de prostituta, era mais
inteligente, leal, bondosa e honesta do que qualquer das quatro mulheres nobres com quem casei. Em breve, comecei
a confiarlhe os meus assuntos privados e posso dizer que nem uma só vez me arrependi de o fazer.
No momento em que o funeral de Tibério terminou, Calígula tinha embarcado, apesar do mau tempo, para as ilhas
onde a mãe e o irmão Nero estavam enterrados; juntoulhes os restos, meio queimados, e trouxeos de volta;
queimouos como deve ser e enterrouos piedosamente no túmulo de Augusto. Instituiu um novo festival anual, com
lutas de gladiadores e corridas de cavalos, em memória da mãe, e sacrifícios anuais ao seu espírito e ao dos irmãos.
Chamou ao mês de Setembro Germânico, pois o anterior tinha sido dedicado a Augusto. Também cumulou a minha
mãe por meio de um único decreto, com tantas honras como as que Lívia recebera em toda a sua vida, nomeandoa
Suprema Sacerdotisa de Augusto.
Em seguida, proclamou uma amnistia geral, chamando de volta todos os homens e mulheres exilados e soltando
todos os prisioneiros políticos. Reuniu mesmo um grande número de registos criminais que cobriam os casos da mãe
e dos irmãos e queimouos publicamente na Praça do Mercado, jurando que não os lera e que qualquer um que
tivesse agido como informador ou contribuído de alguma forma para o destino deplorável dos seus entes queridos,
não precisaria ter medo: todos os registos desses dias maléficos tinham sido destruídos. Na realidade, aquilo que ele
queimou eram apenas cópias: os originais guardouos. Seguiu o exemplo de Augusto, fazendo um escrutínio
cuidadoso das Ordens e rejeitando todos os membros indignos de qualquer delas, e o exemplo de Tibério, ao recusar
todos os títulos honoríficos excepto os de Imperador e Protector do Povo, proibindo igualmente que lhe erigissem
estátuas. Perguntei a mim mesmo quanto tempo iria durar aquele estado de espírito e por quanto tempo iria manter a
promessa que fizera ao Senado, na ocasião em que lhe tinham votado o poder Imperial, de o partilhar com eles e ser
seu fiel servidor.
334
Passados seis meses da sua monarquia, em Setembro, os Cônsules em exercício terminaram o seu
mandato e ele assumiu por algum tempo o cargo. E quem supõem que escolheu como colega? Escolheu
me a mim! E eu, que vinte e três anos antes pedira a Tibério que me dessem títulos reais e não títulos
vazios, teria agora de boa vontade abdicado do meu cargo a favor de qualquer outro. Não era que eu
quisesse voltar para a minha escrita (na verdade, acabava de completar e rever a minha história etrusca e
não tinha começado qualquer trabalho novo), mas tinha esquecido completamente todas as regras de
procedimento e as fórmulas e precedentes legais que em tempos estudara tão cuidadosamente, sentindo
me absolutamente constrangido no Senado. Além disso, por ter passado tão pouco tempo em Roma, não
sabia de todo como puxar os cordelinhos e conseguir com que as coisas andassem depressa,
desconhecendo quem eram os homens que realmente detinham o poder. Arranjei quase de imediato
grandes problemas com Calígula. Ele confioume a tarefa de mandar fazer estátuas de Nero e Druso que
deviam ser colocadas e consagradas na Praça do Mercado; a firma grega a quem as encomendei prometeu
fielmente têlas prontas no dia fixado para a cerimónia, em princípios de Dezembro. Três dias antes, fui
ver como estavam as estátuas. Os patifes não as tinham sequer começado. Apresentaram uma desculpa
qualquer sobre o mármore com a cor certa, que só agora tinham conseguido. Eu fiquei furioso (como me
acontece frequentemente em ocasiões como esta, mas a minha irritação não dura muito) e disselhes que,
se não pusessem homens a trabalhar nas pedras dia e noite, eu mandaria que a firma inteira proprietário,
encarregados e operários fossem expulsos da Cidade. Talvez os tenha deixado nervosos, porque, embora
a estátua de Nero tivesse ficado pronta na tarde que antecedeu a cerimónia
e ficou um bom trabalho , um escultor mais descuidado acabou por partir a mão de Druso à altura do
pulso. Há formas de reparar um acidente deste tipo, mas vêse sempre o sítio da emenda, e eu não podia
apresentar a Calígula uma peça remendada numa ocasião tão importante. A única coisa que consegui fazer
foi ir de imediato ter com ele e dizerlhe que Druso não ia estar pronto. Céus, como ele ficou zangado!
Ameaçou demitirme de Cônsul e recusouse ouvir qualquer explicação. Felizmente, já tinha decidido
demitirse ele próprio no dia seguinte e pedirme que fizesse o mesmo, a favor dos homens que tinham
originariamente sido escolhidos para isso; portanto, a ameaça não resultou em nada e eu fui mesmo
escolhido de novo para Cônsul, juntamente com ele, para os quatro anos seguintes.
Competiame ocupar uns dados aposentos no Palácio e, por causa dos discursos severos de Calígula contra
toda a espécie de imoralidade (à maneira de Augusto), não me foi possível ter Calpúrnia comigo, embora
não estivesse casado. Ela teve que ficar em Cápua, muito contra minha
335
vontade, e só ocasionalmente conseguia deslocarme ali para a visitar. No entanto, a moral dele parecia
não cair sob a alçada da sua severidade. Estava a ficar cansado da mulher de Macro, Énia, de quem
Macro se divorciara a pedido dele e com quem prometera casarse, mas costumava sair à noite à procura
de aventuras galantes, com um grupo de foliões a quem chamava Os Batedores. O grupo era geralmente
constituído por três jovens oficiais do estadomaior, dois famosos gladiadores, o actor Apeles, e Eutico, o
melhor carreteiro de Roma, que ganhava quase todas as corridas em que competia. Calígula tornarase um
forte partidário dos Verdes Claro e enviou os seus homens por toda a parte à procura dos cavalos mais
rápidos. Encontrou um pretexto religioso para as corridas de carros públicas, com vinte partidas diárias,
praticamente de sol a sol. Fez bastante dinheiro desafiando os homens ricos a acompanharem as suas
apostas contra as outras cores, o que eles faziam por uma questão de delicadeza. Mas o que ele ganhava
com isto não passava de uma gota, como é costume dizerse, no oceano das suas despesas. De qualquer
forma, costumava sair à noite com os seus Batedores foliões, disfarçado, visitando os locais mais
degradantes da Cidade e acabando, em geral, por entrar em conflito com os guardas da noite, fazendo
escapadelas tumultuosas que o Comandante dos Vigias tinha o cuidado de abafar.
As três irmãs de Calígula, Drusila, Agripinila e Lésbia, todas estavam casadas com nobres; mas ele
insistiu em que viessem para o Palácio e ficassem a viver lá. Agripinila e Lésbia foram convidadas a levar
os maridos com elas, mas Drusila teve que deixar o seu para trás; o nome dele era Cássio Longino e foi
enviado como governador para a Ásia Menor. Calígula exigia que as três fossem tratadas com o maior
respeito e deulhes todos os privilégios de que gozavam as Virgens Vestais. Mandou juntar os nomes delas
ao seu nas orações públicas pela sua saúde e segurança e mesmo no juramento público que os funcionários
e os sacerdotes faziam em seu nome por altura da sua consagração: ”Nem eu darei maior valor à minha
própria vida ou às vidas dos meus filhos, do que à sua vida ou às vidas das suas irmãs.” Calígula
comportavase para com elas de uma forma que espantava as pessoas mais como se fossem suas esposas
do que suas irmãs.
Drusila era a favorita. Embora estivesse livre do marido, agora parecia sempre infeliz; e, quanto mais
infeliz ela ficava, mais solícito era Calígula nas suas atenções. Casoua, para salvar as aparências, com um
primo seu, Emílio Lépido, de quem já falei como sendo um desleixado, irmão mais novo dessa Emília,
filha de Julila, com quem, em rapaz, quase casei. Este Emílio Lépido, que era conhecido como Ganimedes
por causa do seu aspecto efeminado e da sua servilidade para com Calígula, era um membro valioso do
grupo dos Batedores. Era sete anos mais velho que Calígula, mas este tratavao como um rapazito de treze
e ele parecia gostar
336
disso. Dru sila não o suportava. Mas Agripinila e Lésbia estavam constantemente a entrar e a sair do
quarto dele, rindo, gracejando e pregando partidas. Os respectivos maridos não pareciam importarse. Eu,
por mim, achava a vida no Palácio extremamente desorganizada. Não quero dizer que não me
proporcionassem bastante conforto ou que os criados não fossem bem treinados ou que não se
observassem as formalidades e cortesias normais para com os visitantes. Mas nunca percebi muito bem
quais eram as relações de ternura existentes entre uns e outros: Agripinila e Lésbia, a certa altura,
pareciam ter trocado de maridos; noutra ocasião, Apeles parecia ter uma certa intimidade com Lésbia e o
carreteiro com Agripinila. Quanto a Calígula e Ganimedes... acho que já referi o bastante para mostrar o
que quero dizer com desorganizado. Eu era o único entre eles que já passara da meiaidade e não
compreendia, de todo, as maneiras da nova geração, Gemelo também vivia no Palácio: era um rapaz
assustadiço, delicado, que roía as unhas até ao sabugo e passava geralmente o tempo sentado num canto, a
fazer desenhos de ninfas, sátiros e essa espécie de coisas usadas nos vasos. Não sei dizervos muito mais
acerca de Gemelo, a não ser que cheguei à fala com ele uma ou duas vezes, sentindo pena do rapaz,
porque, tal como eu, realmente não pertencia àquele grupo; mas talvez ele pensasse que eu estava a tentar
forçálo a abrirse e a dizer alguma coisa contra Calígula, pois só me respondia em monossílabos. No dia
em que envergou a sua túnica varonil, Calígula adoptouo como seu filho e herdeiro e nomeouo Chefe
dos Cadetes; mas isso não era de forma alguma o mesmo que partilhar a monarquia com ele.
Calígula adoeceu e, durante um mês, todos desesperaram da sua vida. A consternação popular em Roma
foi tão grande, que uma multidão de nunca menos de 10.000 pessoas se manteve noite e dia à volta do
Palácio, aguardando um boletim favorável. Mantinham um sussurrar e murmurar tranquilo e o som, ao
chegar à minha janela, era como o de um rio distante correndo sobre pedras. Houve diversas
manifestações de ansiedade bastante notáveis. Alguns homens colaram mesmo cartazes nas portas de suas
casas, dizendo que, se a Morte detivesse o seu gesto e poupasse o Imperador, prometiam darlhe as suas
próprias vidas como compensação. Por consenso geral, todos os ruídos de trânsito, pregões de rua e
música foram suspensos num raio de meia milha ou mais do Palácio. Isso nunca acontecera antes, nem
mesmo durante a doença de Augusto, aquela da qual se disse que a Musa o curou. O boletim dizia sempre:
”Sem alteração.”
Uma noite, Drusila bateu à minha porta e disse:
Tio Cláudio! O Imperador quer vervos urgentemente. Vinde já. Não pareis para nada.
Para que é que ele me quer?
337
Não sei. Mas, pelo amor aos Deuses, fazeilhe a vontade. Ele tem uma espada. Matavos se não disserdes
o que ele quer. Esta manhã, encostou a ponta à minha garganta. Disseme que eu não o amava. Tive que
jurar e tornar a jurar que sim, que o amava. Disselhe: ”Matame se quiseres, meu querido.” Oh, tio
Cláudio, porque é que eu nasci? Ele é louco. Sempre foi. Mas agora está pior do que louco. Está possuído.
Fui até ao quarto de Calígula, com as suas cortinas pesadas e tapetes espessos. Ao lado da cama, ardia a
luz fraca de um candeeiro a óleo. O ar cheirava a bafio. Fui saudado pela sua voz lamentosa.
Outra vez atrasado? Dissete que te despachasses. Não parecia doente, apenas pouco saudável. Dois
possantes surdosmudos, empunhando machados, encontravamse de guarda, um de cada lado da cama.
Respondi, saudandoo:
Oh, como me apressei! Se não tivesse uma perna coxa, teria aqui chegado quase antes de ter saído. Que
alegria encontrarvos vivo e ouvir de novo a vossa voz, César! Posso ousar esperar que estejas melhor?
Não estive propriamente doente. Estive apenas a descansar. E a passar por uma metamorfose. É o
acontecimento religioso mais importante da história. Não admira que a Cidade se mantenha tão silenciosa.
Senti que ele esperava que eu me mostrasse compreensivo, apesar de tudo.
E a metamorfose foi dolorosa, Imperador? Espero que não.
Tão dolorosa como se eu fosse mãe de mim mesmo. Tive um parto muito difícil. Felizmente, já esqueci
tudo. Ou quase tudo. É que fui uma criança muito precoce e lembrome nitidamente das caras de
admiração das parteiras quando me lavaram, depois de ter emergido para este mundo, e do gosto do vinho
que me puseram entre os lábios para me refrescar, depois do esforço.
Uma memória espantosa, Imperador. Mas posso perguntar, com toda a humildade, qual é precisamente o
carácter desta mudança gloriosa que desceu sobre vós?
Isso não se vê imediatamente? perguntou irritado.
A palavra possuído usada por Drusila e a conversa que eu tivera com a minha avó Lívia no seu leito de
morte deume a resposta. Caí com o rosto no chão e adoreio como a um Deus.
Passado um minuto ou dois, pergunteilhe do chão se eu era o primeiro homem a ter o privilégio de o
adorar. Ele disse que sim e eu desfizme em gratidão. Ele cutucavame com a ponta da espada na parte de
trás do pescoço, com ar pensativo. Convencime de que estava perdido.
Ele disse:
Admito que ainda estou no meu disfarce mortal; portanto, entendese que não tenhas notado de
imediato a minha Divindade.
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Não sei como foi possível eu ser tão cego. O teu rosto brilha como uma lanterna nesta luz fraca.
É verdade? perguntou ele interessado. Levantate e dáme aquele espelho.
Passeilhe o espelho de aço polido e ele concordou que o seu rosto brilhava intensamente. No meio daquele acesso
de bom humor, começou a contarme várias coisas a seu respeito.
Eu sempre soube que isto ia acontecer, disse. Nunca me senti outra coisa a não ser divino. Pensa nisso. Com dois
anos de idade desfiz um motim no exército do meu pai e salvei Roma. Foi uma coisa prodigiosa, como as histórias
que se contam sobre o Deus Mercúrio em criança, ou sobre Hércules, que estrangulou as víboras no seu próprio
berço.
E Mercúrio apenas roubou algumas vacas, disse eu, e tangeu uma ou duas notas na lira. Isso não foi nada em
comparação.
E o que é mais, com a idade de oito anos eu já tinha morto o meu pai. O próprio Júpiter nunca fez isso. Apenas
exilou o velho.
Tomei aquilo como uma continuação do delírio, mas pergunteilhe num tom natural.
Porque foi que fizestes isso?
Ele atrapalhavame. Tentou disciplinarme a mim, um jovem Deus, imagina só! Por isso mateio de susto.
Introduzi às escondidas coisas mortas na nossa casa de Antióquia e escondias debaixo de ladrilhos soltos; rabisquei
fórmulas encantatórias nas paredes e meti um galo no meu quarto, para lhe dar ordem de marcha. E roubeilhe a sua
Hécate. Olha, tenhoa aqui. Tenboa sempre debaixo da almofada. Ergueu no ar a estatueta de jaspe verde.
Quando a reconheci, o meu coração ficou frio como gelo. Numa voz horrorizada, disse:
Então éreis vós? E fostes vós que trepastes para aquele quarto trancado por aquela janela minúscula e fizestes lá os
vossos desenhos? Acenou com a cabeça cheio de orgulho e continuou a falar:
Não só matei o meu pai natural, como o meu pai de adopção: Tibério. E enquanto Júpiter apenas foi para a cama
com uma das suas irmãs, Juno, eu fui com as minhas três. Martina disseme que era o que eu tinha que fazer, caso
quisesse ser como Júpiter.
Quer dizer que conhecíeis bem Martina?
Conhecia, sim. Quando os meus pais estavam no Egipto, costumava visitála todas as noites. Ela era uma mulher
muito sábia. Digote mais uma coisa. Drusila também é divina. Vou anunciálo ao mesmo tempo que fizer o anúncio
sobre mim próprio. Como eu amo Drusila! Quase tanto como ela me ama a mim.
339
Posso perguntar quais são as vossas sagradas intenções? Esta metamorfose vai com certeza afectar Roma
profundamente.
Com certeza. Primeiro, vou pôr todo o mundo a venerarme. Não vou permitir que um bando de velhos
metediços continue a governarme. Vou mostrar... mas tu lembraste da tua velha avó, Lívia? Isso é que
era uma piada. De alguma forma, tinhaselhe metido na cabeça que era ela que ia ser o Deus eterno sobre
quem todos têm profetizado no Leste nos últimos mil anos. Julgo que foi Trasilo que a levou a acreditar
que se referiam a ela. Trasilo nunca mentiu, mas gostava de enganar as pessoas. Estás a ver, Lívia não
conhecia os termos precisos da profecia. O Deus será um homem e não uma mulher e não é nascido em
Roma, embora deva reinar em Roma (eu nasci em Antium); nascerá num tempo de profunda paz (como eu
nasci), mas estará destinado a ser a causa de inúmeras guerras depois da sua morte. Háde morrer novo e,
a princípio, será amado pelo seu povo, sendo depois odiado; finalmente, morrerá miserável, abandonado
por todos: ”Os seus criados beberlheão o sangue”, diz a profecia. Depois da sua morte, háde reinar
sobre todos os outros Deuses do mundo, em terras que ainda não conhecemos. Só posso ser eu. Martina
disseme que muitos prodígios tinham sido vistos nos últimos tempos no próximo oriente, o que provava
de forma conclusiva que o Deus tinha finalmente nascido. Os judeus eram os mais excitados; de alguma
forma, sentiamse particularmente envolvidos. Suponho que seja porque uma vez visitei a sua cidade de
Jerusalém com o meu pai e dei aí a minha primeira manifestação divina. Fez uma pausa.
Interessarmeia muito saber mais sobre isso, comentei.
Ah, não foi nada demais. Por brincadeira, entrei numa casa onde alguns dos seus sacerdotes e doutores
estavam a falar de teologia e, de repente, gritei: ”Sois um bando de velhos embusteiros ignorantes! Não
sabeis nada disso.” Isto causou grande sensação e um dos velhos de barba branca disse: ”Oh! E quem és
tu, meu filho? És aquele que os profetas anunciam?”; ”Sim”, respondi ousadamente. Ele disse, chorando
de emoção: ”Então ensinanos!” Eu respondi: ”Nem pensar! Isso está abaixo da minha dignidade”; e corri
de novo dali para fora. Devias ter visto as caras deles! Não; Lívia era uma mulher inteligente, à sua
maneira, bastante capaz um Ulisses feminino, como eu lhe chamei uma vez directamente ; um dia,
como prometi, talvez a díviníze. Mas não há pressa quanto a isso. Ela nunca será uma divindade
importante. Talvez a façamos patrona dos escriturários e contabilistas, porque ela tinha boa cabeça para os
números. Sim, e acrescentaremos os envenenadores, tal como Mercúrio tem os ladrões sob a sua
protecção, ao mesmo tempo que os mercadores e viajantes.
Isso será apenas justo, retorqui. Mas o que estou ansioso por saber imediatamente é o seguinte: Sob
que nome vos deverei adorar?
340
Será incorrecto, por exemplo, chamarvos Júpiter? Não sois vós maior que Júpiter?
Ele disse:
Oh, maior que Júpiter, sem dúvida, mas por enquanto anónimo. De momento, no entanto, acho que me
chamarei a mim mesmo de Júpiter: o Júpiter latino, para me distinguir do outro indivíduo grego. Vou ter
que ajustar contas com ele um destes dias. Há tempo demais que ele faz o que quer.
Pergunteilhe:
Como se explica que vosso pai não fosse também um Deus? Nunca ouvi falar de um Deus que não
tivesse um pai divino.
Isso é simples. O Deus Augusto foi o meu pai.
Mas ele nunca vos adoptou, pois não? Só adoptou os vossos irmãos mais velhos e deixouvos a vós para
continuardes a linhagem do vosso pai.
Não quero dizer que ele foi meu pai por adopção. O que eu quero dizer é que sou seu filho por incesto
com Júlia. Tenho que ser. É a única solução possível. Filho de Agripina não sou, com certeza: o pai dela
era um Zé ninguém. É ridículo.
Não fui tolo ao ponto de lhe fazer notar que, nesse caso, Germânico também não era seu pai e, portanto, as
irmãs eram apenas suas sobrinhas. Tentei agradarlhe como Drusila aconselhara e disse:
Este é o momento mais glorioso da minha vida. Permitame que me retire e vá imediatamente sacrificar
em vossa honra, com as forças que me restam. O ar divino que exalais é forte demais para as minhas
narinas mortais. Estou quase a desmaiar. O quarto estava horrivelmente abafado. Desde que tinha ficado
de cama, Calígula não permitira que se abrissem as janelas.
Disse:
Vai em paz. Pensei matarte, mas agora não o farei. Diz aos Batedores sobre a minha Divindade e o
brilho do meu rosto, mas não lhes digas mais nada. Quanto ao resto, imponhote o mais sagrado silêncio.
Baixeime novamente até ao chão e retireime, recuando. Ganímedes paroume no corredor e pediu
notícias. Disselhe:
Ele acaba de se tornar um Deus... e um Deus muito importante, segundo diz. O seu rosto brilha.
Isso são más notícias para nós mortais, disse Ganimedes. Mas eu já sabia que ia acontecer. Vou passar
a notícia aos outros. Drusila já sabe? Não? Eu digolhe.
Dizlhe que ela também é uma Deusa, acrescentei caso ela não tenha dado por isso,
Nota: Referência a Zeus. (N. do T.)
341
Voltei para o meu quarto e pensei para comigo:
É bom que isto tenha acontecido. Em breve, todos compreenderão que ele está louco e fechamno a sete
chaves. E agora já não há outros descendentes de Augusto com idade para se tornarem Imperadores, à
excepção de Ganimedes, e esse não tem a popularidade ou a força de carácter necessárias. A República
será restaurada. O sogro de Calígula é o homem indicado. Ele tem mais influência no Senado que qualquer
outro homem. Eu apoiáloei. Se ao menos conseguíssemos desembaraçarnos de Macro e arranjar um
comandante da Guarda decente para o lugar dele, tudo seria fácil. Os Guardas são o maior obstáculo.
Sabem muito bem que nunca teriam um bónus de cento e cinquenta moedas de ouro por cabeça votados a
seu favor por um Senado Republicano. Sim; foi ideia de Sejano transformálos numa espécie de exército
particular para meu tio Tibério, que deu à monarquia o seu absolutismo oriental. Devíamos acabar com o
acampamento e aquartelar os homens de novo em casas particulares, como costumávamos fazer.
Mas isto dá para acreditar? a divindade de Calígula foi aceite por todos sem questionar. Durante algum
tempo, contentouse em deixar a notícia circular num âmbito privado e continuar oficialmente como
mortal. Isso teria estragado as suas relações livres e fáceis com os Batedores e interrompido grande parte
do seu prazer, caso todos tivessem que se deitar com a cara no chão sempre que ele aparecesse. Mas, no
espaço de dez dias após o seu restabelecimento, que foi acolhido com um júbilo inenarrável, já tinha
chamado a si todas as honras mortais que Augusto aceitara ao longo da vida e mais uma ou duas
adicionais. Ele era César o Bom César o Pai dos Exércitos, o mais Gracioso e Poderoso César e até mesmo
Pai da Pátria, um título que Tibério recusara firmemente ao longo de toda a sua vida.
Gemelo foi a primeira vítima do terror. Calígula mandou chamar um Coronel da Guarda e disselhe:
Mata esse traidor, meu filho, imediatamente.
O coronel foi direito aos aposentos de Gemelo e cortoulhe a cabeça. A vítima seguinte foi o sogro de
Calígula. Pertencia à família de Silano
Calígula casara com sua filha, Junia, mas ela morrera de parto um ano antes de ele se tornar Imperador.
Silano gozava da distinção de ser o único Senador que Tibério nunca suspeitara de deslealdade: Tibério
sempre recusara ouvir qualquer recurso das suas sentenças judiciais. Calígula envioulhe agora uma
mensagem:
Ao nascer do dia de amanhã, tens que estar morto.
Depois disto, o infeliz disse adeus à família e cortou o pescoço com uma navalha. Calígula explicou numa
carta ao Senado que Gemelo morrera a morte de um traidor; durante a sua grave doença, não oferecera
quaisquer orações pelo seu restabelecimento, mas tinha tentado insinuarse junto
342
dos oficiais da guarda pessoal. Além disso, tomava antídotos contra veneno sempre que ia jantar ao
Palácio, de forma que toda a sua pessoa cheirava a isso. A esta atitude, respondia: ”Mas existe algum
antídoto contra César?”. O sogro, escreveu Calígula, era outro traidor: recusarase a ir para o mar com ele
naquele dia de temporal em que navegara para Pandatária e Ponza, para ir buscar os restos da mãe e do
irmão, e ficara para trás na esperança de se apoderar da monarquia, caso as tempestades afundassem o
navio.
Estas explicações foram aceites pelo Senado. A verdade de tudo isto é que Silano era tão mau marinheiro
que quase morria de enjoo cada vez que punha os pés num barco, mesmo com bom tempo, e foi o próprio
Calígula a recusar amavelmente a sua oferta de o acompanhar nessa viagem. Quanto a Gemelo, sofria de
uma tosse obstinada e cheirava ao remédio que tomava para suavizar a garganta, de forma a não se tornar
incómodo à mesa.
343
CAPíTULO XXX
Quando a minha mãe soube do assassinato de Gemelo, ficou muito desgostosa e veio ao Palácio pedindo
para falar com Calígula, que a recebeu de mau humor, pois sentia que ia ser censurado. Ela disse:
Neto, posso falar contigo em privado? É sobre a morte de Gemelo.
Não, de maneira nenhuma em privado, respondeu ele. Dizei o que tendes a dizer na presença de
Macro. Preciso ter uma testemunha comigo, se aquilo que tendes a dizer é assim tão importante.
Então, prefiro guardar silêncio. É um assunto de família, e não para os ouvidos de filhos de escravos. O
pai desse indivíduo era filho de um dos meus podadores. Vendio ao meu cunhado por quarenta e cinco
moedas de ouro.
Fazei o favor de me dizer imediatamente aquilo que tínheis para dizer, sem insultar os meus ministros.
Não sabeis que tenho o poder de obrigar qualquer pessoa neste mundo a fazer exactamente o que eu
quiser?
Não é nada que te seja agradável ouvir.
Dizei.
Como queiras. Vim dizer que o facto de teres assassinado o meu pobre Gemelo foi um crime malvado e
que desejo abdicar de todas as honras que recebi das tuas mãos maléficas.
Calígula riuse e disse para Macro:
Acho que a melhor coisa que esta velha senhora tem a fazer agora é ir para casa e pedir emprestada uma
tesoura de podar aos seus podadores, para cortar as próprias cordas vocais.
Macro disse:
Dei sempre o mesmo tipo de conselho à minha avó, mas a velha bruxa recusouse a aceitálo.
A minha mãe veio procurarme.
Vou suicidarme, Cláudio, disse. Encontrarás todos os meus assuntos em ordem. Há umas pequenas
dívidas a regularizar: pagaas pontualmente. Sê bondoso para o meu pessoal; todos eles foram fiéis
servidores. Lamento que a tua filhita não tenha agora ninguém para tomar conta dela: acho que devias
voltar a casar para lhe dar uma mãe. Ela é uma boa menina.
345
Exclamei:
O quê, Mãe! O suicídio? Porquê? Oh, não façais uma coisa dessas! Ela teve um sorriso amargo:
A vida é minha, não é verdade? Porque havias de me dissuadir de lhe pôr fim? Certamente, não vais
sentir a minha falta, pois não?
Sois a minha mãe, disse. Um homem tem só uma mãe.
Estou surpreendida por me falares com tanta submissão. Não fui uma mãe muito carinhosa para ti. Como
é que se podia esperar que o fosse? Sempre foste uma grande decepção para mim: uma coisinha
enfermiça, fraca, timorata, apatetada. Bom, fui bem punida pelos Deuses pela forma como te negligenciei.
O meu esplêndido filho Germânico assassinado, os meus pobres netos Nero, Druso e Gemelo
assassinados, e a minha filha Livila castigada pela sua maldade, pela sua abominável maldade, por minhas
próprias mãos; esse foi o maior sofrimento que alguma vez tive, pois nunca uma mãe sofreu outro pior.. e
as minhas quatro netas, todas passadas para o lado do mal... e este Calígula nojento, ímpio... Mas tu hásde
sobreviverlhe. Acho que sobreviverias a um Dilúvio Universal. A voz dela, calma a princípio, subira
para o tom habitual de irritação e censura.
Disselhe:
Mãe, não tendes uma palavra bondosa a dizerme, nem mesmo numa ocasião como esta? Em que foi que
eu alguma vez, intencionalmente, vos prejudiquei ou desobedeci?
Mas ela nem pareceu ouvir.
Já fui bem punida, repetiu. Quero que venhas a minha casa daqui a cinco horas. Nessa altura, já terei
tomado todas as minhas disposições. Conto contigo para me proporcionares os últimos rituais. Não quero
que assistas ao meu último suspiro. Se ainda não estiver morta quando chegares, espera na antecâmara até
que a minha criada Briseis te chame. Não te baralhes no discurso de despedida: eras bem capaz disso.
Encontrarás escritas todas as instruções para o funeral. Serás o principal representante. Não quero
nenhuma oração fúnebre. Não te esqueças de decepar a minha mão, para ser enterrada em separado; trata
se de um suicídio. Não quero perfumes na pira; fazse isso muitas vezes, mas é estritamente ilegal e
sempre o considerei como autêntico esbanjamento. Vou dar a liberdade a Palas; portanto, não te esqueças
disso, ele irá usar o barrete de liberto na procissão. Ao menos uma vez na vida, tenta levar até ao fim uma
cerimónia sem te enganares.
Foi tudo, excepto um Adeus bem formal. Nem beijo, nem lágrimas, nem bênção. Como filho submisso,
respeitei as suas últimas vontades, ao pormenor. Era estranho ela ter dado ao meu escravo pessoal a
liberdade. Fez o mesmo com Briseís.
346
Ao vêla arder na pira, da janela da sua sala de jantar, alguns dias mais tarde, Calígula disse para Macro:
Apoiasteme bem contra essa mulher. Vou recompensarte. Vou darte a posição mais honrosa de todo o
Império. É uma posição que, segundo Augusto anotou como um princípio do Estado, não deve de forma
alguma cair nas mãos de um aventureiro. Vou fazerte governador do Egipto.
Macro ficou encantado; actualmente, não sabia lá muito bem em que pé estava com Calígula e, se fosse
para o Egipto, ficaria em segurança. Tal como Calígula dissera, era uma nomeação importante: o
Governador do Egipto tinha o poder de deixar Roma morrer à fome se lhe cortasse o fornecimento de trigo
e a guarnição podia ser fortalecida com recrutamentos locais até ser suficientemente grande para defender
a província contra qualquer exército invasor que avançasse contra ela.
Assim, Macro foi liberto do comando dos Guardas. Durante algum tempo, Calígula não nomeou ninguém
para o seu lugar e deixou os nove coronéis dos batalhões comandarem à vez, cada um durante um mês.
Deu a saber que, ao fim desse tempo, o mais leal e eficiente assumiria o cargo permanentemente. Mas o
homem a quem ele prometeu secretamente o cargo era o Coronel do batalhão que apoia a Guarda do
Palácio
nem mais nem menos que o mesmo bravo Cássio Chaerea, cujo nome não podeis ter esquecido se lestes
esta história com alguma atenção ; o homem que matou o germano no anfiteatro, o homem que regressou
com a sua companhia do massacre do exército de Varo e que depois salvou a ponte; o homem também que
abriu caminho pelo meio dos amotinados no acampamento de Bona e que levou Calígula às costas naquela
manhã em que Agripina e os amigos tiveram que sair do acampamento a pé, sob a sua protecção. Cássio
tinha agora os cabelos brancos, embora ainda não tivesse sessenta anos; andava um pouco inclinado e as
mãos tremiamlhe, por causa de uma febre que quase o matara na Germânia, mas era ainda um belo
espadachim e, reputadamente, o homem mais corajoso de Roma. Um dia, um velho soldado da Guarda
enlouqueceu e pôsse a correr desvairadamente de lança em riste no pátio do Palácio. Pensava que estava a
matar rebeldes franceses. Todos fugiram à excepção de Cássio, que, embora desarmado, ficou firme até
que o louco investiu contra ele, altura em que lhe deu calmamente uma ordem de parada:
Alto, Companhia! Armas no chão! E o indivíduo louco, para quem a obediência às ordens se tornara
uma segunda natureza, parou e estendeu a lança ao comprido no chão. Companhia, meia volta, ordenou
novamente Cássio. Ordinário, marcha! E assim o desarmou. Nessa altura, Cássio era o primeiro
comandante temporário da Guarda e manteveos a todos em ordem, enquanto Macro estava a ser julgado
pela sua vida.
347
Na verdade, a nomeação de Macro para Governador do Egipto não passou de um truque de Calígula, o
mesmo tipo de truque que Tibério usara com Sejano. Macro foi preso quando embarcava em óstia e
trazido novamente para Roma a ferros. Foi acusado de ter provocado as mortes de Arrúncio e de vários
homens e mulheres inocentes. A esta acusação, Calígula acrescentou uma outra; designadamente, que
Macro fizera o papel de alcoviteiro, tentando leválo a apaixonarse por sua mulher Énia
uma tentação à qual ele, na sua inexperiência juvenil, admitia, quase tinha sucumbido. Macro e Énia
foram ambos forçados a suicidaremse. Fiquei surpreendido com a facilidade com que ele se
desembaraçou de Macro.
Um dia, Calígula, como Sumo Pontífice, foi celebrar um casamento entre um membro da família de Piso e
uma mulher chamada Orestila. Sentia um fraquinho por Orestila e, quando a cerimónia terminou e a maior
parte da alta nobreza de Roma estava reunida na festa nupcial, divertindose bastante, como é uso nessas
ocasiões, gritou de repente para o noivo:
Eh, parai de beijar essa mulher! Ela é minha esposa!
Levantouse e, no meio do silêncio de surpresa que se seguiu, ordenou aos guardas que agarrassem
Orestila e a conduzissem ao Palácio. Ninguém ousou protestar. No dia seguinte, ele casou com Orestila: o
marido foi obrigado a assistir à cerimónia, para lha entregar. Depois, enviou uma carta ao Senado, para
informar os magistrados de que celebrara um casamento ao estilo de Rómulo e Augusto referindose,
suponho, ao rapto das mulheres sabinas por Rómulo e ao casamento de Augusto com minha avó (com a
presença do meu avô). No espaço de dois meses, já se tinha divorciado de Orestila, que enviou para o
exílio, assim como ao primeiro marido, afirmando que andavam a cometer adultério nas suas costas. Ela
foi enviada para a Hispânia e ele para Rodes. Só lhe foi permitido levar dez escravos com ele, Quando
pediu como um favor que lhe fosse permitido duplicar esse número, Calígula disse:
Tantos quantos quiseres. Mas, por cada escravo a mais, terás que levar também um soldado a mais para
te guardar.
Drusila morreu. Tenho a certeza dentro de mim de que Calígula a matou, mas não tenho provas.
Contaramme que agora, sempre que beijava uma mulher, costumava dizer:
Branco e adorável como é esse teu pescoço, basta eu dizer uma palavra e... pronto, ele será cortado.
Se o pescoço fosse particularmente branco e adorável, às vezes, ele não conseguia resistir à tentação de
dizer essa palavra e ver a sua fanfarronada tornarse realidade. No caso de Drusila, acho que foi ele
próprio a dar o golpe, De qualquer forma, ninguém teve autorização de ver o corpo dela. Fez constar que
ela tinha morrido de tuberculose e fezlhe o
348
funeral mais extraordinariamente rico. Foi divinizada sob o nome de Pantea e foramlhe construídos
templos; homens e mulheres da nobreza foram nomeados seus sacerdotes e instituiuse um grandioso
festival anual em sua honra, mais esplêndido que qualquer outro no Calendário. Um homem ganhou
10.000 moedas de ouro por ter visto o espírito dela sendo recebido no céu por Augusto. Durante os dias de
luto público ordenados por Calígula em sua honra, era crime capital para qualquer cidadão rirse, cantar,
fazer a barba, ir aos banhos ou mesmo jantar com a família. Os tribunais estiveram fechados, não se
celebraram casamentos, os soldados não fizeram exercícios militares. Calígula mandou matar um homem
por ter vendido água quente nas ruas e outro por ter exposto navalhas de barbear para venda. A tristeza era
tão profunda e generalizada que ele próprio não conseguiu suportála (ou também podia ser o remorso);
assim, uma noite, deixou a Cidade e viajou para Siracusa, sozinho, à excepção de uma guarda de honra.
Não tinha nada a fazer lá, mas a viagem era uma distracção. Não foi mais longe do que Messina, onde
calhou encontrar o Etna numa ligeira erupção. A visão aterrorizouo de tal forma que regressou
imediatamente. Quando chegou de novo a Roma, não tardou a pôr as coisas em movimento como era
habitual, particularmente as lutas de gladiadores, as corridas de carros e a caça aos animais selvagens. De
repente, lembrouse que os homens que tinham oferecido as próprias vidas em troca pela sua quando
estava doente ainda não se tinham suicidado; obrigouos a fazêlo, não apenas por uma questão de
princípio, para os livrar do pecado de perjúrio, mas mais especialmente para impedir a Morte de voltar
atrás com o acordo que tinha sido feito.
Alguns dias mais tarde, ao jantar, eu enunciava, um tanto embriagado, a lei sobre a herança da beleza
feminina, citando exemplos, na minha argumentação, de que ela geralmente falhava numa geração, indo
da avó para a neta. Infelizmente, acabei por afirmar:
A mulher mais bonita de Roma quando eu era rapaz, reapareceu, feição por feição, membro por membro,
na pessoa da sua neta e homónima Lólia, mulher do actual governador da Grécia. Com a única excepção
de uma certa senhora que não vou nomear, porque ela está presente nesta sala, Lólia é, na minha opinião a
mais bela mulher viva actualmente.
Fiz esta excepção apenas por uma questão de tacto. Lólia era de longe mais bela que qualquer das minhas
sobrinhas, Agripinila ou Lésbia, ou do que qualquer outro membro do grupo. Posso dizer que não estava
apaixonado por ela, apenas reparara um dia que ela era perfeita e recordavame de ter feito exactamente a
mesma observação em relação à avó, quando era rapaz. Calígula ficou interessado e escreveu ao marido
de Lólia dizendolhe que regressasse a Roma e aceitasse um sinal de honra. O sinal de honra acabou por
ser divorciarse de Lólia e casála com o Imperador.
349
Outro comentário ocasional que fiz ao jantar por esta altura teve um efeito inesperado sobre Calígula.
Alguém mencionou a epilepsia e eu disse que os registos cartagineses mostravam que Aníbal era um
epiléptico e que Alexandre e Júlio César eram ambos sujeitos a esta doença misteriosa, que parecia ser
uma acompanhante quase inevitável de um génio militar superior. Calígula apurou o ouvido e, alguns dias
mais tarde, fez uma boa imitação de um ataque epiléptico, caindo no chão na Casa do Senado e gritando
com todas as suas forças e com os lábios brancos de espuma provavelmente, espuma de sabão.
O povo de Roma parecia bastante feliz. Calígula continuava a darlhes boas diversões com espectáculos
teatrais, lutas de gladiadores e caçadas a animais selvagens, corridas de carros e dádivas lançadas da
Plataforma de Oratória e das janelas superiores do Palácio. Os casamentos que ele contraía ou desfazia, os
cortesãos que assassinava, nada disso os interessava grandemente. Nunca ficava satisfeito, a menos que
todos os lugares do teatro ou do Circo estivessem ocupados e todas as passagens apinhadas; por isso,
sempre que havia um espectáculo, adiava todos os julgamentos e suspendia todo o luto, para não dar a
ninguém uma desculpa para não comparecer. Fez várias outras inovações. Permitiu às pessoas que
levassem almofadas para se sentarem e, no tempo quente, que usassem chapéus de palha e que fossem
descalços mesmo os senadores, que deviam dar um exemplo de austeridade.
Quando finalmente consegui visitar Cápua por alguns dias, pela primeira vez em quase um ano, quase que
a primeira coisa que Calpúrnia me perguntou foi:
Quanto é que resta na Bolsa Privada desses vinte milhões, Cláudio?
Menos de cinco milhões, creio eu. Mas ele tem andado a construir barcaças de recreio em madeira de
cedro, forrandoas a ouro, cravejandoas de jóias e instalando nelas banhos e jardins floridos, tendo
começado a trabalhar em sessenta novos templos. Fala em abrir um canal através do istmo de Corinto.
Toma banhos em óleo de nardo e de violeta. Há dois dias, deu a Eutico, o auriga do Verde Claro, um
presente de vinte mil em ouro, por ter ganho uma corrida renhida.
O Verde Claro ganha sempre?
Sempre. Ou quase sempre. O Escarlate ficou em primeiro lugar no outro dia e foi muito aclamado pelo
povo. Estavam a ficar cansados da monotonia do Verde Claro. O Imperador ficou furioso. No dia
seguinte, o auriga Escarlate e a sua equipa vitoriosa estavam todos mortos. Envenenados. A mesma coisa
já tinha acontecido antes.
Por esta altura, no ano que vem, as coisas vão correr mal para ti, meu pobre Cláudio. A propósito, queres
ver as tuas contas? Foi um ano de pouca sorte, como eu te escrevi. O gado valioso a morrer, os escravos a
roubarem à direita e à esquerda e as medas de trigo queimadas.
350
Perdestes duas mil moedas de ouro, se não mais. A culpa também não é do administrador. Ele faz tudo o
que pode e, pelo menos, é honesto. É por não estares aqui para vigiar que estas coisas acontecem.
Não há nada a fazer, disse. Para ser franco, actualmente, estou mais ansioso pela minha vida do que
pelo dinheiro.
És mal tratado?
Sim. Estão constantemente a fazer de mim parvo. Não gosto disso. O Imperador é quem mais me
atormenta.
O que te fazem?
Ora, pregamme partidas. Armadilhas com baldes de água suspensos por cima das portas. E rãs dentro da
cama. Ou horríveis amuletos a cheirar a mirra: sabes como detesto rãs e amuletos. Se calha eu dormir um
pouco depois de comer, atiramme pedrinhas, amarramme sapatos nas mãos ou fazem soar o alarme de
incêndio nos meus ouvidos. Nunca tenho tempo para trabalhar. Se chego a começar, despejamme o
tinteiro em cima do trabalho. E nada do que digo é alguma vez tomado a sério.
Mas tu és o único alvo que eles têm?
Sou o preferido. O alvo oficial.
Cláudio, tens mais sorte do que imaginas. Conserva bem essa tua posição. Não deixes ninguém usurpá
la.
O que é que queres dizer, pequena?
Quero dizer que as pessoas não matam os seus objectos de zombaria. São cruéis para eles, assustamnos
e roubamnos: mas não os matam.
Disselhe:
Calpúrnia, tu és muito inteligente. Escutame agora. Eu ainda tenho dinheiro. Vou comprarte um belo
vestido de seda, uma caixa de cosméticos em ouro, um sagüi e um pacote de paus de canela.
Ela sorriu.
Preferia o presente em dinheiro. Quanto é que ias gastar?
Cerca de setecentas moedas.
óptimo. Vai fazerme jeito um destes dias. Obrigada, meu bom Cláudio.
Quando voltei para Roma, soube que tinha havido problemas. Calígula tinha sido perturbado uma noite
pelo barulho distante de pessoas a reuniremse no anfiteatro, pouco antes da alvorada, empurrandose e
debatendose para se aproximarem dos portões e poderem apanhar as filas da frente dos lugares livres,
logo que os mesmos se abrissem. Calígula enviou uma companhia de Guardas com bastões, para
restabelecer a ordem. Os Guardas ficaram de mauhumor por os fazerem sair da cama para aquela tarefa e
puseramse a bater à direita e à esquerda, matando uma quantidade de pessoas, incluindo alguns cidadãos
com uma certa posição. Para mostrar o seu desagrado por lhe terem perturbado o sono
351
com a confusão inicial e com o barulho muito maior que as pessoas fizeram quando dispersaram aos gritos diante
dos bastões dos Guardas, Calígula não apareceu no anfiteatro senão já pela tarde dentro, quando todos estavam
cansados de esperar e também com fome. Quando os Verdes Claro fizeram uma demonstração equestre, foram
assobiados e vaiados. Calígula saltou do seu lugar, irado:
Gostaria que tivésseis um único pescoço. Cortavao de um só golpe! No dia seguinte, devia haver uma luta e uma
caçada aos animais selvagens. Calígula cancelou tudo o que combinara antes e apresentou a mais miserável colecção
de animais, que se podiam comprar por atacado no mercado de vendas leões e panteras sarnentos, ursos doentes e
touros velhos e gastos, o tipo de animais que eram enviados para cidades de guarnição distantes, nas províncias, onde
o público não é exigente e os caçadores amadores não apreciam animais de boa qualidade. Os caçadores pelos quais
Calígula substituiu os que estavam anunciados eram condizentes com os animais: veteranos gordos, com as
articulações emperradas e a respiração difícil. Alguns deles, talvez tivessem sido homens hábeis no seu tempo na
época de ouro de Augusto. A multidão troçou deles e vaiouos. Era o que Calígula esperava. Mandou os seus
funcionários prender os homens que estavam a fazer mais barulho e pôlos na arena, para ver se conseguiam fazer
melhor. Os leões e as panteras sarnentos, os ursos doentes e os touros cansados deram cabo deles num instante.
Ele estava a tornarse impopular. Que a multidão sempre gosta de feriados, é do conhecimento comum. Mas quando
o ano inteiro se transforma num feriado prolongado e ninguém tem tempo para tratar da sua vida, quando o prazer se
torna compulsivo, então as coisas são diferentes. As corridas de carros tornaramse cansativas. Estava tudo muito
bem para Calígula, que tinha um interesse pessoal nas equipas e nos condutores e costumava, por vezes, conduzir ele
próprio um carro. Não era mau com as rédeas e o chicote e os aurigas em competição tinham o cuidado de não lhe
ganhar. Os espectáculos teatrais em breve se tornaram igualmente cansativos. Todas as peças de teatro se parecem
demasiado, excepto para os entendidos: ou, de qualquer forma, sãono para mim. Calígula imaginavase um
conhecedor e estava também sentimentalmente ligado a Apeles, o actor trágico filistino, que escreveu muitas das
peças em que actuava. Uma que Calígula admirava particularmente porque tinha feito sugestões que Apeles
introduzira no seu papel , era representada constantemente, até que todos começaram a odiar vêla e ouvila. Ele
tinha uma afeição ainda mais forte por Mnester, o dançarino principal dos bailados mitológicos, então muito na
moda. Costumava beijar Mnester à vista de toda a assistência sempre que ele fazia uma coisa particularmente bem
feita. Um cavaleiro começou a tossir uma vez
352
durante um espectáculo, sem conseguir parar, acabando por ter que sair. O barulho que fez ao tentar passar
entre os joelhos das pessoas, os pedidos de desculpas, a tosse, o abrir caminho nas passagens apinhadas,
perturbaram Mnester, que parou no meio de uma das suas danças mais requintadas ao som brando de uma
flauta e esperou que todos se aquietassem de novo. Calígula ficou furioso com o cavaleiro, mandou que o
levassem à sua presença e deulhe uma boa tareia com as suas próprias mãos. Depois, despachouo a toda
a velocidade numa viagem a Tanger, com uma mensagem selada para o Rei de Marrocos (o Rei, um
parente meu
a mãe dele era a minha Tia Selena, filha de António e Cleópatra , ficou muito espantado com a
mensagem. Dizia apenas: ”Por gentileza, enviai o portador de regresso a Roma”). Os outros cavaleiros
levaram muito a mal este incidente. Mnester era apenas um liberto e davase ares de general triunfante.
Calígula recebia lições particulares de dicção e dança de Apeles e Mnester e, passado algum tempo,
aparecia frequentemente no palco nos seus papéis. Depois de fazer um discurso numa tragédia qualquer,
voltavase por vezes e gritava para Apeles, que estava fora de cena: ”Foi perfeito, não foi? Tu próprio não
podias ter feito melhor.” Depois de um gracioso salto e de uma pirueta ou duas, mandava parar a
orquestra, erguia as mãos a pedir silêncio absoluto e repetia os movimentos sem acompanhamento.
Tal como Tibério tinha um dragão de estimação, Calígula tinha um garanhão preferido. O nome original
deste cavalo era Porcelo (o que significa porco pequeno), mas Calígula não o achava suficientemente
grandioso e mudoulhe o nome para incitatus, que significa Veloz. Incitatus nunca perdia uma corrida e
Calígula estimavao de uma maneira tão extravagante, que o tornou primeiro cidadão e depois senador;
finalmente, pôlo na lista dos seus eleitos para o Consulado, com quatro anos de antecedência. Incitatus
passou a ter uma casa e criados. Tinha um quarto de mármore com um grande tapete de palha a servir de
cama, que era substituído todos os dias, assim como uma manjedoura de ouro, um balde de ouro para
beber água e retratos de artistas famosos nas paredes. Era convidado para jantar connosco sempre que
ganhava uma corrida, mas preferia uma tigela de aveia à carne e ao peixe que Calígula sempre lhe
oferecia. Tínhamos que beber à saúde dele mais de vinte vezes.
O dinheiro desaparecia cada vez mais depressa e, por fim, Calígula, decidiu fazer economias. Como
exemplo, certo dia, disse:
De que serve pôr homens na prisão por falsificação, roubo e por romperem a paz? Eles não se divertem
lá dentro e são uma grande despesa para mim, que tenho que os alimentar e guardar. No entanto, se os
deixasse sair, eles iriam recomeçar a sua carreira de crime. Vou visitar as prisões hoje e analisar a questão.
353
E fêlo. Separou os homens que considerava como os criminosos mais empedernidos e mandouos
executar. Os seus corpos foram cortados aos bocados e usados como carne para os animais selvagens que
esperavam para ser mortos no anfiteatro: o que resultou numa dupla economia. Passou a fazer a ronda das
prisões todos os meses. O crime diminuiu ligeiramente. Um dia, o seu Tesoureiro, Calisto, informouo que
havia apenas um milhão de moedas de ouro no Tesouro e apenas meio milhão na Bolsa Privada.
Compreendeu que fazer economias não bastava: era preciso aumentar o rendimento. A princípio, começou
a vender sacerdócios, magistraturas e monopólios, e isso trouxelhe bastante dinheiro, mas não o
suficiente; depois, tal como Calpúrnia previra, começou a usar informadores para condenar os homens
ricos de crimes reais ou imaginários, para ficar com os seus bens. Abolira a pena capital por traição logo
que se tornou Imperador, mas ainda havia bastantes outros crimes puníveis com a morte.
Celebrou a sua primeira série de condenações com uma caçada aos animais selvagens particularmente
esplêndida. Mas a multidão estava de mau humor. Vaiaram e gemeram, recusaramse a prestar atenção ao
que estava a acontecer. Depois, um grito levantouse do lado oposto ao do Camarote Presidencial,
ocupado por Calígula: ”Desiste dos informadores! Desiste dos informadores!”. Calígula levantouse para
ordenar silêncio, mas eles vaiaramno. Enviou os Guardas com bastões para o lado onde o barulho era
mais forte e eles atingiram alguns homens na cabeça, mas o barulho recomeçou ainda mais violento noutro
sítio. Calígula ficou alarmado. Deixou o anfiteatro à pressa, gritandome que tomasse a presidência por
ele. Isto não me agradou nada e fiquei muito aliviado, quando me levantei para falar, por a multidão me
escutar atenta e terem mesmo gritado ”Feliciter”, o que significa ”Boa sorte para ti!”. A minha voz não é
forte. A de Calígula era muito forte: conseguia fazerse ouvir de uma ponta à outra dos Campos de Marte.
Eu tive que arranjar alguém para repetir o meu discurso à medida que falava. Mnester ofereceuse, e fêlo
soar muito melhor do que realmente era.
Anunciei que o Imperador, infelizmente, tinha tido que se ausentar por causa de um importante negócio de
Estado. Isso pôs todos a rir; Mnester fez alguns belos gestos ilustratívos da importância e da urgência
daquele negócio de Estado. Depois, disse que os deveres da Presidência tinham sido transferidos para a
minha infeliz e indigna pessoa. O encolher de ombros desesperado de Ninester e o leve agitar do indicador
junto às têmporas exprimiu de forma excelente o que queria dizer. Depois, acrescentei:
Continuemos com os Jogos, meus amigos. Mas o brado ergueuse de novo:
Desiste dos informadores!
354
Mas eu perguntei e Mnester repetiu a pergunta de boa vontade:
E se o Imperador consentir em desistir deles, o que acontece? Alguém irá informar contra eles?
Não houve resposta para isto, a não ser um zumbido confuso. Fizlhes ainda outra pergunta. Perguntei
lhes qual era a pior espécie de criminoso um informador? Ou um informador contra um informador? Ou
um informador contra um informador contra um informador? Disse que, quanto mais longe se levasse a
ofensa, mais infame ela se tornava e mais pessoas prejudicava. A melhor política era não fazer nada que
pudesse dar aos informadores qualquer razão para agirem. Se todas as pessoas, disselhes, vivessem uma
vida da mais estrita virtude, a raça maldita morreria por falta de alimento, como ratos na cozinha de um
avarento. Não podeis imaginar a tempestade de gargalhadas que este argumento provocou. Quanto mais
simples e tola for a piada, mais o grande público a aprecia (o maior aplauso que alguma vez alcancei com
um gracejo foi uma vez no Circo, quando calhou estar eu a presidir, na ausência de Calígula. As pessoas
clamavam iradas por um espadachim chamado Pigeon Pombo , que tinha sido anunciado mas não
apareceu. Por isso, disse: ”Paciência, amigos! Primeiro, apanhai o vosso Pombo; depois, depenaio!” No
entanto, piadas minhas realmente espirituosas têmse perdido completamente).
Continuemos com os jogos, meus amigos! repeti; desta vez, os gritos pararam. Os jogos acabaram por
ser muito bons. Dois espadachins mataramse um ao outro, com estocadas simultâneas na barriga; isto é
um acontecimento muito raro. Ordenei que as armas me fossem trazidas e mandei fazer pequenos
canivetes com elas; esses pequenos canivetes são os amuletos mais eficazes que se conhecem, para usar
em casos de epilepsia. Calígula apreciaria a oferta caso me perdoasse por ter acalmado a multidão onde
ele tinha falhado. A verdade é que ele estava de tal forma assustado, que saíra de Roma a toda a
velocidade na direcção de Antium; e não voltou a ser visto durante vários dias.
Tudo acabou bem. Ele ficou satisfeito com as pequenas facas, que lhe deram a oportunidade de alargar o
esplendor da sua doença; e, quando perguntou o que tinha acontecido no anfiteatro, disselhe que
prevenira a multidão do que ele faria se eles não se arrependessem da sua deslealdade e ingratidão. Disse
que tinham trocado os gritos de rebelião por uivos de medo e culpa e súplicas de perdão.
Sim, disse ele, fui demasiado generoso com eles. Estou decidido agora a não ceder nem uma
polegada. Rigor inamovível é a palavra de ordem a partir de agora. E, para não correr o risco de esquecer
esta decisão, passou a praticar todas as manhãs caras assustadoras diante do espelho do quarto e gritos
terríveis na sua casa de banho privativa, que tinha um belo eco.
355
Pergunteilhe:
Porque não anuncias publicamente a tua divindade? Isso provocarlhesia um respeito como nenhuma
outra coisa poderia fazer! Ele respondeu:
Tenho ainda alguns actos a realizar sob o meu disfarce humano. O primeiro desses actos foi ordenar aos
directores dos portos de Itália e da Sicília que detivessem todos os navios que tivessem acima de uma
certa tonelagem, que pusessem as suas cargas em retenção e os enviassem vazios sob escolta de navios de
guerra para a Baía de Nápoles. Ninguém compreendeu o que significava esta ordem. Calculouse que ele
estivesse a pensar numa invasão da Britânia e quisesse os navios para usar como transportes. Mas não era
nada disso. Estava simplesmente a justificar a afirmação de Trasilo, que ele podia tanto tornarse
Imperador como atravessar a cavalo a baía de Baiae. Reuniu cerca de 4.000 navios, incluindo
1.000 que foram construídos especialmente para a ocasião, e ancorouos de um lado ao outro da baía,
bancada contra bancada, numa linha dupla desde as docas de Puteoli até à sua villa de Bauli. As proas
estavam voltadas para fora e as popas enganchadas umas nas outras. As popas estavam demasiado altas
para o que ele pretendia; por isso, mandouas cortar rentes, serrando o assento do timoneiro e a figura de
popa de todos eles, o que deixou as tripulações muito infelizes, porque a figura de popa era a divindade
que guardava o navio. Seguidamente, fez pregar tábuas de um lado ao outro da dupla fieira, espalhou terra
sobre as tábuas e mandou molhar e calcar a terra. O resultado foi uma estrada firme e ampla, com cerca
de 4.500 metros de comprimento, de uma ponta à outra. Quando mais navios chegaram, vindos de viagens
ao leste, atouos uns aos outros formando cinco ilhas que ligou à estrada, cada uma a cerca de
750 metros. Mandou construir uma fileira de lojas de um lado ao outro e ordenou aos chefes das
guarnições de Roma que as abastecessem com mercadorias e pessoal em dez dias. Instalou um sistema de
água potável e plantou jardins. Às ilhas, transformouas em aldeias.
Felizmente, o tempo esteve bom enquanto duraram estes preparativos e o mar tranquilo como um espelho.
Quando tudo ficou pronto, pôs o peito de armas de Alexandre (Augusto não era digno de usar o anel de
Alexandre, mas Calígula usou o seu peito de armas) e, por cima dele, uma capa de seda púrpura com
bordados a ouro incrustados de jóias, que a mantinham rígida; depois, tomou a espada de Júlio César, o
famoso machado de guerra de Rómulo e o famoso escudo de Eneias, que estavam guardados no Capitólio
(ambos falsos, na minha opinião, mas falsificações tão antigas que eram quase genuínas), e coroouse com
uma grinalda de folhas de carvalho. Depois de um sacrifício propiciatório a Neptuno uma foca, por ser
um animal anfíbio e outro, um pavão, à Inveja (caso, como ele disse, algum Deus sentisse inveja dele),
montou Incitatus e
356
começou a trotar sobre a ponte, partindo do lado de Bauli. Toda a cavalaria da Guarda seguia atrás dele e,
mais atrás, uma grande força de cavalaria trazida de França, seguida por 20.000 soldados de infantaria.
Quando alcançou a última ilha, perto de Puteoli, ordenou aos seus trombeteiros que tocassem à carga e
lançouse tão ferozmente em direcção à cidade, como se estivesse a perseguir um inimigo em debandada.
Ficou em Puteoli nessa noite e a maior parte do dia seguinte, como se estivesse a descansar de uma
batalha. A noite, regressou num carro triunfal com as rodas e os lados chapeados a ouro. Incitatus e a égua
Penélope, com a qual Calígula o casara ritualmente, estavam atrelados ao carro. Calígula usava as mesmas
roupas esplêndidas que anteriormente, exceptuandose o facto da sua grinalda ser concebida com folhas de
louro, em vez de folhas de carvalho. Um longo cortejo de vagões seguiao, apinhados com aquilo que
pretendia serem os despojos da batalha
mobiliário, estátuas e ornamentos roubados das casas de ricos mercadores de Puteoli. Como prisioneiros,
usou os reféns que os pequenos reis do leste tinham que enviar para Roma como penhor de bom
comportamento e todos os escravos estrangeiros a que conseguiu deitar a mão, vestidos com os seus trajos
nacionais e carregados de correntes. Os seus amigos seguiam em carros decorados, usando túnicas
bordadas e cantando os seus louvores. Depois vinha o exército e, por fim, uma procissão de cerca de
200.000, pessoas em trajo de festa. Inúmeras fogueiras estavam acesas em todo o círculo de colinas que
rodeavam a baía e todos os soldados e cidadãos que seguiam na procissão levavam um archote. Foi o mais
impressionante espectáculo teatral, penso eu, que o mundo alguma vez viu; e tenho a certeza que foi o
mais inútil. Mas como agradou a todos! Um pinhal pegou fogo no Cabo Míseno, a sudoeste, envolvendo
se em labaredas magníficas. Logo que Calígula chegou de novo a Bauli, desmontou e pediu o seu tridente
com os dentes de ouro e a outra capa de púrpura, trabalhada com peixes e golfinhos de prata. Com estes,
entrou na maior das cinco barcaças de recreio construídas em cedro que estavam à espera do lado de terra
e foi levado a remos até à ilha que estava no meio das cinco, que era de longe a maior, seguido pela maior
parte do seus soldados em barcos de guerra.
Aqui desembarcou, subiu para uma plataforma forrada de seda e arengou as multidões à medida que
passavam na ponte. Havia guardas que os mantinham em movimento; por isso, ninguém ouvia mais de
algumas frases, excepto os amigos que estavam em volta da plataforma
entre os quais eu me encontrava e os soldados nos barcos de guerra mais próximos, que não tinham
sido autorizados a desembarcar. Entre outras coisas, chamou cobarde a Neptuno por se ter deixado pôr a
ferros sem lutar e prometeu, em breve, ensinar ao velho Zeus uma lição ainda mais violenta, (parecia
esquecer o sacrifício propiciatório que tinha feito).
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Quanto ao Imperador Xerxes, que em tempos construíra uma ponte no Helesponto no decorrer da
sua malfadada expedição contra a Grécia, Calígula riuse dele perdidamente. Disse que a famosa
ponte de Xerxes tinha apenas metade do comprimento daquela e não tinha metade da solidez.
Depois, anunciou que ia dar duas moedas de ouro a cada soldado para beberem à sua saúde e a
cada membro da multidão cinco moedas de prata.
As aclamações duraram meia hora, o que pareceu satisfazêlo. Interrompeuos e mandou pagar ali
mesmo o dinheiro. Toda a procissão teve que desfilar de novo diante dele e saco após saco de
moedas foi trazido e esvaziado. Ao cabo de umas duas horas, o fornecimento de dinheiro falhou e
Calígula disse aos que chegaram depois, que ficaram decepcionados, que se vingassem nos que
tinham chegado primeiro, cheios de sofreguidão. Isto, claro, gerou uma luta desenfreada.
Seguiuse uma das mais memoráveis noites de bebida e cantoria, jogos a cavalo, violência e folia
que alguma vez se conheceu. O efeito da bebida em Calígula era sempre o de o tornar um tanto
maléfico. À frente dos Batedores e da guarda germana, andou à carga pela ilha e pela frente das
lojas, empurrando as pessoas para o mar. As águas estavam tão calmas que só os que estavam a
cair de bêbedos, os decrépitos, os idosos e as crianças é que não conseguiram salvarse. Não
foram mais de 200 ou 300 os que se afogaram.
Cerca da meianoite, fez um ataque naval a uma das ilhas mais pequenas, destruindo a ponte de
um e de outro lado, abalroando depois, um a seguir ao outro, os navios da ilha, até que os
habitantes que ele tinha isolado se encontraram apinhados num espaço muito pequeno, a meio. O
ataque final estava reservado para o navio almirante de Calígula. Postouse no cimo do castelo de
popa, acenando com o seu tridente, lançouse sobre os sobreviventes aterrorizados e afundouos a
todos. Entre as vítimas desta batalha naval estava a peça mais notável exibida no cortejo triunfal
de Calígula Eleazar, o refém parto, que era o homem mais alto do mundo. Tinha mais de onze
pés de altura. A sua força, no entanto, não era proporcional à altura: a sua voz era como o balido
de um camelo e tinha as costas fracas, sendo ainda considerado como tendo um intelecto débil.
Era judeu de nascimento. Calígula mandou empalhar o corpo, vestido com uma armadura, e
colocou Eleazar do lado de fora da porta do seu quarto, para assustar possíveis assassinos.
358
CAPíTULO XXXI
Os custos destes dois dias de divertimento esgotaram completamente o Tesouro e a Bolsa Privada. Para
tornar as coisas ainda piores, Calígula, em vez de devolver os navios aos seus mestres e às tripulações,
ordenou que a ruptura da ponte fosse reparada e depois, regressando a Roma, ocupouse com outros
assuntos. Neptuno, para provar que não era nenhum cobarde, enviou uma forte tempestade sobre a ponte,
vinda de oeste, e afundou cerca de 1.000 navios. A maior parte dos restantes arrastaram as suas âncoras e
foram levados para a costa. Cerca de 2.000 enfrentaram a tempestade e foram puxados para a praia por
uma questão de segurança, mas a perda dos restantes causou grande falta de embarcações para o transporte
de trigo do Egipto e de África e, consequentemente, originou uma grave escassez de alimento na Cidade.
Calígula jurou vingarse de Neptuno. As suas novas maneiras de angariar fundos eram muito engenhosas e
divertiam toda a gente, excepto as vítimas e os seus amigos ou dependentes. Por exemplo, a quaisquer
jovens que ele deixasse tão fortemente endividados para com ele através de multas e confiscações,
tornavaos seus escravos e enviavaos para as escolas de gladiadores. Quando estavam treinados, punhaos
no anfiteatro para lutarem pela própria vida. A sua única despesa com eles era comida e casa: sendo
escravos, não recebiam remuneração. Se fossem mortos, era o fim deles. Se saíssem vitoriosos, leiloavaos
aos magistrados, cujo dever era organizar lutas semelhantes muitos eram atraídos por esta distinção , ou
a qualquer outra pessoa que quisesse fazer uma oferta. Fazia subir os preços a montantes absurdos,
fingindo que as pessoas tinham feito ofertas quando se tinham limitado a coçar a cabeça ou a esfregar o
nariz. O meu sacudir de cabeça nervoso arranjoume um grande problema: vime com três gladiadores, a
uma média de 2.000 moedas de ouro cada. Mas tive mais sorte que o magistrado de nome Apónio, que
adormeceu durante o leilão. Calígula vendeulhe lutadores que não pareciam interessar a mais ninguém,
subindo a parada cada vez que a cabeça lhe descaía sobre o peito: quando acordou, descobriu que tinha
nada menos de 90.000 moedas de ouro a pagar por treze lutadores, nos quais não tinha o menor interesse.
Um dos que eu comprei era um excelente lutador, mas Calígula apostou fortemente contra ele. Quando
chegou o dia de ele lutar, quase não se
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aguentava de pé e foi facilmente derrotado. Parece que Calígula lhe tinha drogado a comida. Muitos
homens ricos vinham a estes leilões e ofereciam de boa vontade grandes somas, não porque quisessem
lutadores, mas porque, se abrissem agora os cordões à bolsa, seria menos provável que Calígula viesse a
fazer alguma acusação contra eles mais tarde ou a roubarlhes a vida e o dinheiro.
No dia em que o meu lutador foi derrotado, aconteceu uma coisa divertida. Calígula tinha apostado forte
comigo contra cinco homens de rede e tridente escolhidos para lutar contra igual número de caçadores
armados com espada e escudo. Eu estava resignado a perder as 1.000 moedas de ouro que ele me fez
apostar, contra 5.000 suas; logo que a luta começou, percebi que os homens das redes tinham sido
subornados para perder a luta. Eu estava sentado ao lado de Calígula e disse:
Bom, pareceme que vais ganhar, mas, na minha opinião, esses homens das redes não estão a dar o seu
melhor.
Um por um, os caçadores começaram a cercar os homens das redes, que se renderam, e, por fim, os cinco
ficaram deitados com a cara na areia, cada um com um caçador de pé por cima dele, com a espada
erguida. A assistência voltou os polegares para baixo, como sinal de que deviam ser mortos. Calígula, na
qualidade de Presidente, tinha o direito de aceitar este conselho ou não, conforme lhe apetecesse. Aceitou.
Mataios! gritou. Não tentaram ganhar!
Isto era duro para os homens das redes, a quem ele prometera secretamente poupar a vida se eles se
deixassem vencer; pois eu não era de forma alguma o único homem que tinha sido forçado a apostar neles
Calígula ganharia 80.000 moedas se eles perdessem. Bom, um deles ficou tão furioso por estar a ser
enganado, que se atirou repentinamente ao seu caçador, o virou e conseguiu agarrar um tridente, que
estava no chão não muito longe dele, bem como uma rede, afastandose a correr. É difícil de acreditar,
mas acabei por ganhar 5.000 moedas! Primeiro, aquele homem da rede irado matou dois caçadores que se
encontravam de costas para ele e estavam ocupados a receber os aplausos da assistência, depois de terem
despachado as suas vítimas; depois, matou os outros três, um a seguir ao outro, à medida que avançavam a
correr direitos a ele, poucos metros atrás uns dos outros. Calígula chorou de raiva e exclamou:
Oh, o monstro! Vede, matou cinco espadachins prometedores com aquele seu horrível tridente!
Quando digo que ganhei os meus 5.000, quero dizer que os teria ganho, se não tivesse tido o tacto
suficiente para desistir da aposta.
Um homem matar cinco não é uma luta leal, afirmei.
Até esta altura, Calígula sempre falara de Tibério como um perfeito malandro e encorajava todos a
fazerem o mesmo. Mas um dia entrou no Senado e fez um longo discurso laudatório a seu respeito,
dizendo que
360
tinha sido um homem incompreendido e que ninguém devia dizer o que quer que fosse contra ele.
Na minha qualidade de Imperador, tenho o direito de o criticar se me apetecer, mas vós não tendes esse
direito. Na verdade, sois culpados de traição. No outro dia, um senador disse num discurso que os meus
irmãos Nero e Druso tinham sido assassinados por Tibério depois de terem sido detidos sob falsas
acusações. Que coisa espantosa de se dizer!
Em seguida, apresentou os registos que fingira ter queimado e leu longos extractos. Mostrou que o Senado
não tinha questionado as provas reunidas contra os irmãos por Tibério, votando unanimemente para que
fossem entregues para o castigo. Alguns, tinhamse mesmo oferecido para testemunhar contra eles.
Calígula disse:
Se sabíeis que as provas que Tibério apresentara diante de vós (com toda a boa fé) eram falsas, então os
assassinos sois vós, não ele; e só depois de ele ter morrido é que ousastes lançar sobre ele as culpas pela
vossa crueldade e traição. Ou, se pensastes na altura que as provas eram verdadeiras, então ele não foi
nenhum assassino e vós estais traiçoeiramente a difamar o seu carácter. Ou, se pensastes que eram falsas e
que ele sabia que o eram, então fostes tão culpados do assassinato como ele; e, ainda por cima, cobardes.
Franziu a testa com força imitando Tibério, agitou a mão à maneira de Tibério, num gesto brusco de quem
corta alguma coisa, o que fez reviver recordações assustadoras de julgamentos por traição. Com a voz
áspera de Tibério, disse:
Falaste bem, meu Filho! A tua confiança nestes malandros não pode ir mais longe que um pontapé. Vede
como fizeram de Sejano um pequeno Deus, antes de se voltarem e o desfazerem em pedaços! Farteão o
mesmo a ti, se tiverem uma oportunidade. Todos te odeiam e rezam pela tua morte. O conselho que te dou
é que não te ocupes de nenhum interesse, a não ser o teu próprio, e põe o prazer acima de tudo. Ninguém
gosta de ser governado e a única maneira como consegui conservar o meu lugar foi fazer esta escumalha
ter medo de mim. Faz o mesmo. Quanto pior os tratares, mais te honrarão.
Depois, Calígula reintroduziu a pena capital para o crime de traição, ordenou que o seu discurso fosse
imediatamente gravado numa placa de bronze e colocado na parede da Casa, por cima dos assentos dos
Cônsules. Depois, saíu apressado. Nesse dia, não se tratou de mais nada: estávamos todos demasiado
abatidos. Mas no dia seguinte despejámos louvores sobre Calígula como um governante sincero e piedoso
e votámos sacrifícios à sua Clemência. Que outra coisa podíamos fazer? Ele tinha o Exército por trás dele
e poder de vida e de morte sobre nós e, até que alguém fosse suficientemente ousado e esperto para fazer
uma conspiração bem sucedida contra a vida dele, a única coisa que podíamos fazer era agradarlhe e
esperar o melhor. Algumas noites depois, num banquete,
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foi de repente apanhado pelo mais extraordinário ataque de riso. Ninguém sabia qual era a piada. Os dois
Cônsules, que estavam sentados ao lado dele, perguntaram se lhes seria graciosamente permitido
participar dela. Isto fez Calígula rir ainda com mais força, com as lágrimas a caíremlhe dos olhos.
Não, disse meio sufocado, a questão é mesmo essa. Tratase de uma piada a que não acharíeis graça
nenhuma. Estava a rirme só de pensar que, com um aceno de cabeça, podia mandar cortar o pescoço a
ambos aqui mesmo.
Acusações de traição foram apresentadas contra os vinte homens reconhecidos como os mais ricos de
Roma. Não lhes foi dada a oportunidade de cometerem suicídio antes do julgamento e todos foram
condenados à morte. Um deles, um magistrado superior, acabou por se revelar como um homem bastante
pobre.
Calígula disse:
O idiota! Porque fingiu que tinha dinheiro? Fui levado. Ele não precisava ter morrido.
Apenas me lembro de um único homem que escapou com vida de uma acusação de traição. Foi Afer, o
homem que tinha processado a minha prima Pulcra, um advogado famoso pela sua eloquência. O seu
crime foi ter posto uma inscrição numa estátua de Calígula no vestíbulo da sua casa, dizendo que o
Imperador, no seu vigésimo sétimo anos de idade, já era cônsul pela segunda vez. Calígula achou que isto
era uma traição um riso de desprezo pela sua juventude e uma censura contra ele, por ter mantido o cargo
por mais tempo do que era legalmente permitido. Compôs um longo e muito cuidado discurso contra Afer
e apresentouo no Senado, pondo ao seu serviço toda a força da oratória, com cada gesto e entoação
cuidadosamente ensaiados antes. Calígula costumava gabarse de ser o melhor advogado e orador do
mundo e estava ainda mais ansioso por ofuscar Afer com a sua eloquência do que em assegurar a sua
condenação e confiscarlhe o dinheiro. Afer compreendeu isto e fingiuse espantado e subjugado pelo
génio de Calígula como promotor público. Repetiu as acusações contra ele próprio, ponto por ponto,
elogiandoas com um distanciamento profissional e murmurando: ”Sim, isso é irrefutável”; ”Ele
conseguiu dar todo o peso a esse argumento”; ”Um verdadeiro dilema”; ”Que extraordinário domínio da
linguagem!”. Quando Calígula chegou ao fim e se sentou com um sorriso triunfante, perguntaram a Afer
se tinha alguma coisa a dizer. Ele replicou:
Nada, a não ser que considero que tenho muito pouca sorte. Tinha contado usar os meus dotes oratórios
como uma leve compensação perante a ira do Imperador contra a minha indesculpável leviandade no que
diz respeito a essa malfadada inscrição. Mas o Destino viciou os dados contra mim. O Imperador tem todo
o peso, um caso indiscutível contra
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mim e mil vezes mais eloquência do que eu alguma vez podia esperar atingir, mesmo que escapasse à
condenação e estudasse até me tornar centenário.
Foi condenado à morte, mas a sentença foi suspensa no dia seguinte. Falando de dados viciados: quando
os cidadãos ricos da província vinham à cidade, eram sempre convidados a jantar no Palácio e a participar
depois num jogo amigável. Ficavam espantados e deslumbrados com a sorte do Imperador: saíalhe Vénus
a cada lançamento e tiravalhes tudo o que tinham. Sim, Calígula jogava sempre com dados viciados. Por
exemplo, demitiu os Cônsules do seu cargo e aplicoulhes pesadas multas com base em terem celebrado o
habitual festival em honra da vitória de Augusto sobre António em Áccio. Disse que se tratava de um
insulto ao seu antepassado António (a propósito, nomeou Afer para um dos lugares vagos de Cônsul).
Tinhanos dito ao jantar, alguns dias antes do festival, que, fizessem os Cônsules o que fizessem, os
puniria, porque, se não tivessem celebrado o festival, estariam a insultar o seu antepassado Augusto. Foi
nesta ocasião que Ganimedes cometeu um erro fatal. Gritou:
Tu és astuto, meu querido! Apanhalos de qualquer maneira. Mas os pobres idiotas hãode celebrar o
festival, se é que têm algum senso; porque Agripa fez a maior parte do trabalho em Accio e ele também
foi teu antepassado; portanto, eles estarão a honrar pelo menos dois de três dos teus antepassados.
Calígula disse:
Ganimedes, já não somos amigos.
Oh, disse Ganimedes, Não me digas isso, meu querido! Eu não disse nada que te ofendesse pois não?
Sai da mesa, ordenou Calígula.
Percebi imediatamente qual tinha sido o erro. Ganimedes, como primo de Calígula pelo lado materno, era
descendente de Augusto e de Agripa, mas não de António. Todos os seus antepassados tinham sido do
partido de Augusto. Portanto, devia ter tido o cuidado de evitar o assunto. E Calígula detestava que lhe
lembrassem que descendia de Agripa, um homem proveniente de uma família sem distinção. Mas, de
momento, não tomou qualquer atitude contra Ganimedes.
Divorciouse de Lólia, dizendo que ela era estéril, e casouse com uma mulher chamada Cesónia. Esta não
era jovem nem bonita e era filha de um capitão da Guarda, casada com um padeiro, ou alguém assim, de
quem já tinha três filhos. Mas havia qualquer coisa nela que atraiu Calígula, de uma forma que ninguém
conseguia explicar, ele menos que ninguém. Calígula costumava dizer muitas vezes que havia de tirar
dela o segredo, mesmo que tivesse que o fazer com a tortura da corda de violino, para saber porque a
amava tão completamente. Diziase que ela o conquistara com um filtro de amor e que este o enlouquecia.
Mas o filtro de amor era
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apenas uma desconfiança e ele já tinha começado a enlouquecer muito antes de conhecer Cesónia. De
qualquer forma, ela estava grávida dele e Calígula ficou tão excitado com a ideia de ser pai que, como já
disse, casou com ela. Foi pouco depois deste casamento com Cesónia que, pela primeira vez, declarou
publicamente a sua Divindade. Visitou o Templo de Júpiter no Monte Capitolino. Apeles estava com ele.
Calígula perguntou a Apeles:
Quem é o Deus maior: Júpiter ou eu próprio?
Apeles hesitou, pensando que Calígula estivesse a gracejar e não querendo blasfemar contra Júpiter no
próprio templo dele.
Calígula assobiou para dois germanos e mandou despir e chicotear Apeles à vista da estátua de Júpiter.
Mais devagar, disse Calígula para os germanos. Bem devagar, para ele sentir melhor.
Chicotearamno até ele desmaiar e, depois, reanimaramno com água sagrada, chicoteandoo novamente
até à morte. Depois, Calígula enviou cartas ao Senado anunciando a sua divindade e ordenou a construção
imediata de um grande santuário ao lado do templo de Júpiter, ”para eu poder habitar com o meu irmão
Júpiter”. Aí, mandou colocar uma imagem de si próprio com três vezes o tamanho natural, feita de ouro
maciço e onde aparecia vestido todos os dias com um trajo novo.
Mas em breve se zangou com Júpiter e ouviramno ameaçálo, irado:
Se não consegues perceber quem é o senhor aqui, mandote para a Grécia.
Júpiter deve ter pedido desculpas e Calígula disse:
Oh, fica lá com o teu maldito Monte Capitolino. Eu vou para o Palatino. Tem muito melhor situação,
Vou construir aí um templo digno de mim mesmo, velho aldrabão maltrapilho e cheio de ruídos
intestinais.
Outra coisa curiosa aconteceu quando visitou o templo de Diana, acompanhado por um antigo governador
da Síria chamado Vitélio. Vitélio tinha sido muito bem sucedido por lá, tendo surpreendido o Rei da
Pártia, que se preparava para invadir a província, atravessando o Eufrates numa marcha forçada.
Apanhado num terreno desfavorável para a batalha, o rei parto foi obrigado a assinar uma paz humilhante
e a entregar os filhos como reféns. Eu devia ter mencionado que Calígula levava o filho mais velho com
ele no seu carro, como prisioneiro, quando atravessou a ponte. Bom, Calígula tinha inveja de Vitélio e tê
loia mandado matar se este não tivesse sido prevenido por mim (ele era meu amigo) do que devia fazer.
Uma carta minha aguardavao em Brindisi quando lá chegou e, logo que alcançou Roma e foi admitido à
presença de Calígula, caiu prostrado e adorouo como a um Deus. Isto foi antes da notícia da divindade de
Calígula ser oficialmente conhecida; portanto, Calígula pensou que se tratava de um tributo genuíno.
Vitélio tornouse seu amigo íntimo
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e mostrou de muitas formas a sua gratidão para comigo. Como eu dizia, Calígula estava no templo de
Diana falando com a Deusa não a estátua, mas uma presença invisível. Perguntou a Vitélio se também a
via, ou se apenas via o luar. Vitélio tremeu violentamente, como que tomado de assombro e, sempre com
os olhos fixados no chão, disse:
Só a vós os Deuses, meu Senhor, é dado o privilégio de vos olhardes uns aos outros.
Calígula ficou satisfeito.
Ela é muito bela, Vitélio, e vem muitas vezes dormir comigo no Palácio.
Foi mais ou menos por esta altura que arranjei de novo complicações. A princípio, pensei que se tratava de
uma conspiração de Calígula para se desembaraçar de mim. Ainda não tenho a certeza que não fosse. Um
conhecido meu, um homem com quem jogava dados muitas vezes, forjou um testamento e deuse ao
trabalho de forjar o meu selo a testemunhálo. Felizmente para mim, ele não tinha notado uma pequena
falha na orla de ágata do selo, que sempre deixava uma marca na cera. Quando fui repentinamente detido
por conspiração e fraude e levado a tribunal, subornei um soldado para que levasse um pedido secreto ao
meu amigo Vitélio, suplicandolhe que me salvasse a vida, tal como eu salvara a dele. Pedilhe que falasse
na falha da pedra a Calígula, que estava a julgar o caso, e para ter um selo dos meus, genuíno, a postos,
para Calígula comparar com o falso. Mas Calígula devia ser encorajado a encontrar a diferença por si
próprio e a receber todo o crédito. Vitélio tratou do assunto com o maior tacto. Calígula notou a falha,
gabouse da acuidade da sua visão e absolveume com uma advertência severa, para que no futuro fosse
mais cuidadoso com as pessoas a quem me associava. O falsificador teve as mãos amputadas e penduradas
ao pescoço, como advertência. Se se tivesse concluído que eu era culpado, teria ficado sem cabeça.
Calígula dissemo nessa noite, ao jantar.
Repliquei:
Deus misericordioso, não compreendo por que te incomodas tanto com a minha vida.
Faz parte da natureza dos sobrinhos deleitaremse com a lisonja de um tio. Ele descontraiuse um pouco e
perguntoume, com um piscar de olhos para o resto da mesa:
E qual o valor exacto que porias na tua vida esta noite, posso perguntar?
já fiz o cálculo: um ceitil.
E como foi que chegaste a um número tão modesto?
Todas as vidas têm um valor que se pode calcular. O resgate que a família de Júlio César pagou aos
piratas que o tinham capturado e ameaçavam matálo embora a princípio eles pedissem bastante mais do
que
365
isso , não passou de vinte mil moedas de ouro. Assim, a vida de Júlio César não valia mais de vinte mil
moedas. A minha mulher Élia foi assaltada uma vez por ladrões, mas persuadiuos a pouparlhe a vida
entregandolhes um broche de ametista que apenas valia cinquenta moedas. Por isso, Élia não valia mais
de cinquenta. A minha vida acaba de ser salva por uma falha de ágata que pesará, segundo os meus
cálculos, não mais que a quadragésima parte de uma grama. Esse tipo de ágata vale talvez uma moeda de
prata por grama. A falha, se fosse possível encontrála, o que seria difícil, ou encontrar um comprador, o
que seria ainda mais difícil, valeria portanto a quadragésima parte de uma moeda de prata, ou seja,
exactamente um ceitil. Por isso, a minha vida vale exactamente um ceitil...
Se eu conseguisse arranjar um comprador, rugiu ele, encantado com a sua própria piada. Como todos o
aclamaram, incluindo eu próprio! A partir daí, durante muito tempo, fui tratado por Terúncio Cláudio no
Palácio, em vez de Tibério Cláudio. Terúncio é o nome latino para ceitil
Para ser venerado, Calígula precisava de sacerdotes. Ele era o seu próprio Sumosacerdote e os seus
subordinados eram a minha pessoa, Cesónia, Vitélio, Ganimedes, catorze exCônsules e o seu nobre
amigo, o cavalo Incitatus. Cada um destes subordinados tinha que pagar 80.000 moedas de ouro pela
honra. Ele ajudava Incitatus a arranjar o dinheiro, impondo um tributo anual em seu nome a todos os
cavalos de Itália: se eles não pagassem, seriam enviados para o abate. Ajudava Cesónia a arranjar o
dinheiro obrigando ao pagamento de um imposto em seu nome a todos os homens casados, pelo privilégio
de dormirem com as suas esposas. Ganimedes, Vitélio e os outros eram homens ricos; embora, em
algumas ocasiões, eles tivessem que vender alguma propriedade com prejuízo para arranjar as 80.000
moedas de um momento para o outro. Mesmo assim, a sua situação era confortável. O mesmo não
acontecia com o pobre Cláudio. As artimanhas anteriores de Calígula ao venderme lutadores à espada e
cobrandome pesadamente o privilégio de comer e dormir no Palácio, tinhamme deixado com umas
meras 30.000 moedas em dinheiro e sem nenhuma propriedade para vender, excepto a minha pequena
propriedade de Cápua e a casa que me fora deixada por minha mãe. Paguei a Calígula os 30.000 e disse
lhe nessa mesma noite, ao jantar, que ia pÔr imediatamente à venda todas as minhas propriedades para
conseguir pagar o que faltava, logo que arranjasse um comprador.
Não tenho mais nada para vender, disse. Calígula achou aquilo uma boa piada.
Mais nada para vender? O quê, então e a roupa que tens no corpo?
Entretanto, eu já descobrira que o mais sensato era fazerme de completamente idiota.
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Em nome dos céus, disse, tinhame esquecido disso. Não quererias ter a bondade de a leiloar por mim a toda esta
gente? Tu és o mais maravilhoso leiloeiro do mundo. Comecei a despir toda a roupa que trazia até ficar sem nada
em cima do corpo, a não ser um guardanapo que ele amarrou apressadamente à volta dos meus rins. Vendeu as
minhas sandálias a alguém por 100 moedas de ouro cada, e a minha túnica por
1.000 e assim por diante; de cada vez, eu exprimia um entusiasmo efusivo. Depois, quis leiloar o guardanapo. Eu
disse:
A minha modéstia natural não me impediria de sacrificar o meu último trapo, se o dinheiro que ele pudesse trazer
me ajudasse a pagar o resto do que te devo. Mas neste caso, infelizmente, alguma coisa ainda mais forte que a
modéstia impedeme de o vender.
Calígula franziu a testa.
E o que é isso? O que é mais forte que a modéstia?
A minha veneração por ti próprio, César. O guardanapo é teu. Um que tu graciosamente colocaste para meu uso
durante esta excelente refeição.
Esta pequena farsa apenas reduziu a minha dívida em 3.000 moedas. Mas serviu para convencer Calígula da minha
pobreza.
Tive que desistir dos meus aposentos e do meu lugar à mesa e alojeime por algum tempo com a velha Briseis, a
antiga criada de minha mãe que tomava conta da casa enquanto não arranjávamos um comprador. Calpúrnia veio
viver comigo ali, e quase não dá para acreditar que aquela criaturinha excelente ainda tinha o dinheiro que eu lhe
dera, em vez dos colares, dos sagüis e dos vestidos de seda, oferecendose para mo emprestar. Ainda por cima, o
meu gado não tinha realmente morrido, como ela fingira, nem as medas tinham ardido. Fora apenas um truque para
vender tudo secretamente por bom preço e pôr o dinheiro de lado para uma emergência. Entregoumo todo 2.000
moedas de ouro juntamente com uma explicação detalhada das transacções, assinada pelo meu administrador. E
assim nos arranjámos bastante bem. Mas, para manter a fachada de pobreza absoluta, eu saía todas as noites com um
jarro, usando uma muleta em vez da liteira, para ir comprar vinho às tabernas.
A velha Briseis costumava dizer:
Menino Cláudio, todos pensam que eu era uma liberta de vossa mãe. Não é verdade. Torneime vossa escrava
quando crescestes e fostes vós que me destes a liberdade, não ela, não é verdade?
Eu respondia:
Claro, Briseis. Um dia, heide afixar essa mentira em público.
Ela era uma boa velhinha e erame inteiramente devotada. Vivíamos juntos em quatro quartos, com um velho
escravo a servir de porteiro e, de uma maneira geral, fomos muito felizes.
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O bebé de Cesónia, uma menina, nasceu um mês depois de Calígula ter casado com ela. Calígula disse que
se tratava de um prodígio. Pegou na criança e deitoua sobre os joelhos de uma estátua de Júpiter isto foi
antes do seu desentendimento com Júpiter , como que para fazer dele seu colega honorário na
paternidade. Depois, pôla nos braços da estátua de Minerva e deixoua sugar por algum tempo os seios de
mármore da deusa. Chamoulhe Drusila, o nome que a irmã morta tinha posto de lado quando se tornou a
deusa Pantea. Esta criança foi também feita sacerdotisa. Arranjou o dinheiro para pagar a iniciação,
fazendo um apelo patético ao público, lamentandose do seu estado de pobreza e das enormes despesas da
paternidade e abrindo um fundo, chamado Fundo Drusila. Pôs caixas de esmolas em todas as ruas
assinaladas com as palavras Comida para Drusila, Bebida para Drusila e Dote de Drusila e ninguém
ousava passar diante dos Guardas ali estacionados sem colocar uma ou duas moedas.
Calígula amava ternamente a sua pequena Drusila, que se revelou uma criança tão precoce como o fora
ele próprio. Deliciavase a ensinarlhe o seu próprio rigor inabalável, começando as lições quando ela
ainda mal sabia andar e falar. Encorajavaa a torturar gatinhos e cachorros e a atacar com as unhas afiadas
os olhos dos seus pequenos companheiros de folguedos.
Não pode haver qualquer dúvida quanto à tua paternidade, minha bela, costumava dizer com uma
risada, quando ela mostrava alguma promessa particular. E uma vez, na minha presença, inclinouse e
disselhe em segredo, E ao primeiro crime verdadeiro que cometas, nem que se trate apenas do teu pobre
e velho tioavô Cláudio, faço de ti uma Deusa.
Fazes de mim uma Deusa se eu matar a Mamã? sussurrou o pequeno demónio, Odeio a mamã.
A estátua de ouro para o seu templo foi outra despesa. Pagoua publicando um édito em como receberia
prendas de Ano Novo ao portão principal do Palácio. Quando chegou o dia, enviou grupos de Guardas
para encaminhar as multidões da Cidade com a ponta da espada para o Monte Palatino e aí fazêlos
despejar toda as moedas que tinham com eles em grandes tinas espalhadas para o efeito. Foram avisados
de que, se tentassem fugir aos Guardas ou esconder uma só moeda, incorriam em morte imediata. Ao fim
do dia, duas mil enormes tinas tinham sido enchidas.
Foi por esta altura que ele disse a Ganimedes, Agripina e Lésbia:
Devíeis ter vergonha de vós próprios, zangãos inúteis. O que fazeis pelo vosso sustento? Sois uns meros
parasitas. Tendes consciência de que todos os homens e mulheres de Roma trabalham duramente para me
manter? Cada miserável bagageiro pagame alegremente um oitavo do seu salário e todas as pobres
prostitutas fazem o mesmo.
368
Agripinila disse:
Bom, irmão, já nos despojastes de todo o nosso dinheiro sob um pretexto ou outro. Isso não é o
suficiente?
Suficiente? Não, realmente não é. O dinheiro herdado não é o mesmo que o dinheiro ganho
honestamente. Vou pôlos a trabalhar. Assim, deu a saber no Senado, distribuindo folhetos, que em tal e
tal
noite um bordel requintado e exclusivo seria aberto no Palácio, com entretenimento adequado a todos os
gostos, proporcionado por pessoas do mais ilustre nascimento. A entrada custava apenas 1.000 moedas de
ouro, As bebidas eram gratuitas. Agripinila e Lésbia, lamento dizêlo, não protestaram muito
violentamente contra a infeliz proposta de Calígula, e pensaram mesmo que seria muito divertido. Mas
insistiram em que deviam ter o direito de escolher os seus próprios clientes e que Calígula não devia
retirar uma comissão demasiado alta do dinheiro ganho. Com grande desgosto da minha parte, fui
arrastado para este negócio ao ser vestido como porteiro cómico. Calígula, de máscara e disfarçando a
voz, era o senhor do bordel e fazia todos os truques característicos para privar os clientes do prazer e do
dinheiro. Quando eles protestavam, chamavamme para servir de segurança. Eu tenho bastante força nos
braços, mais do que a maior parte dos homens, posso dizêlo, embora as minhas pernas não me sirvam de
muito: por isso, as pessoas divertiamse muito com o meu andar desajeitado e com as valentes surras que
eu dava aos clientes quando conseguia agarrálos. Calígula declamava numa voz teatral os versos de
Homero:
Vulcano, com desajeitada graça o seu ofício domina E com um riso ininterrupto os céus abana e ilumina.
Esta era a passagem do Primeiro Livro da Ilíada, em que o Deus coxo vai mancando pelo Olimpo e os
outros Deuses todos se riem dele. Eu estava deitado no chão a socar o marido de Lésbia com os punhos
não era muitas vezes que tinha a oportunidade de ajustar velhas contas Erguendome, disse:
Então da sua bigorna o artesão coxo se levantou,
Aos tombos, com as distorcidas pernas, obliquamente caminhou.
E aos tombos aproximeime da mesa dos refrescos. Calígula estava deliciado e recitou duas novas linhas,
que precedem a passagem do riso ininterrupto:
Se te submeteres, o Trovejador deixase apaziguar, O Gracioso Deus aceita que lhe queiras agradar.
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Foi assim que me passou a chamar Vulcano, um título que eu tive prazer em ganhar, porque me dava uma
certa protecção contra os seus caprichos.
Depois, Calígula deixavanos tranquilamente, retirava o disfarce e voltava com o seu aspecto normal,
vindo do lado do pátio do Palácio pela porta onde me colocara. Fingiase totalmente surpreendido e
chocado com o que se estava a passar e punhase a declamar novamente Homero
a vergonha e a ira de Ulisses perante o comportamento das mulheres do palácio:
E assim resguardado ele jazia na varanda
Cenas de amores lúbricos seus olhos despertos observam Enquanto para as impuras alegrias nocturnas
se dirigem Com maléfica alegria as belas prostituídas.
Seu coração com raiva esta nova desonra feria,
Hesitantes, seus pensamentos se quedam suspensos em dúbio equilíbrio. Ou no instante saciar a culpada
chama
Com o sangue das próprias e interceptar a vergonha, Ou à sua luxúria permitir um último abraço
E deixar os seus pares consumar a desgraça, No seu coração alvoroçado a fúria contida ruge, Qual
mastimfêmea rosnando sobre a sua ninhada
E põe à distância o estranho: assim a ira comprimida, Recuando, murmurava tempestades no seu peito.
”Pobre coração sofredor”, gritou, ”suporta a dor
da honraferida e reprime a tua ira!
Nãoforam mais agudas as dores que destroçaram a tuaforça Quando os bravos companheiros dos teus
labores de dez anos O medonho Polífemo devorou: Então eu fui libertado
Pela prudência paciente da morte decretada.
Em vez de Polífemo leiase Tibério, explicou. Depois, bateu palmas para chamar a Guarda, que veio a
toda a velocidade.
Manda vir aqui imediatamente Cássio Chaerea! Cássio foi mandado chamar e Calígula disse:
Cássio, velho herói, servisteme de cavalo de guerra quando era criança, meu mais antigo e mais fiel
amigo de família; alguma vez viste uma cena tão triste e degradante como esta? As minhas duas irmãs a
prostituírem os corpos para os senadores no meu próprio Palácio, o meu tio Cláudio à porta a vender os
bilhetes de entrada! Oh, o que diriam os meus pobres pais se tivessem vivido para ver este dia!
370
Queres que os prenda a todos, César? perguntou Cássio ansiosamente,
Não, à sua luxúria concede um último abraço E que os nobres consumem a desgraça,
Replicou Calígula em tom resignado, ao mesmo tempo que continha uma espécie de ronco na
garganta. Cássio recebeu ordens para se ir de novo embora com a Guarda.
Esta não foi a última orgia do género no Palácio e, a partir daí, Calígula obrigava os senadores
que compareciam a trazer as mulheres e as filhas para ajudarem Agripinila e Lésbia. Mas o
problema de como arranjar dinheiro estava de novo a tornarse premente e Calígula decidiu
visitar a França e ver o que podia fazer por lá.
Primeiro, reuniu um grande número de soldados, mandando vir destacamentos de todos os
regimentos regulares, formando novos regimentos e recrutando soldados em todos os sítios
possíveis. Saíu de Itália à frente de 150.000 homens e aumentou o seu número, em França, para
250.000. A despesa de armar e equipar esta força imensa recaiu sobre as cidades por onde
passava: e encomendavalhes também os abastecimentos necessários. Ás vezes, avançava a
galope e fazia o exército marchar quarenta e oito horas seguidas, ou mais, para conseguir apanhá
lo; outras vezes, ia em frente a uma média de uma milha ou duas por dia, admirando a paisagem
de uma liteira transportada aos ombros de oito homens e detendose frequentemente para apanhar
flores.
Enviou cartas à sua frente, em que ordenava a presença em Lião, onde tencionava concentrar as
suas forças, de todos os oficiais de França e das províncias do Reno cujas patentes fossem acima
de capitão. Entre aqueles que obedeceram à convocatória estava Caetúlico, um dos mais
valorosos oficiais do meu querido irmão Germânico, que, nos últimos anos, estivera a comandar
os quatro regimentos da Província Superior. Era muito popular entre os soldados, porque
mantinha a tradição dos castigos brandos e da disciplina baseada no amor e não no medo. Era
popular também entre os regimentos da Província Inferior, comandados pelo seu sogro Aprónío
é que Caetúlico tinha casado com uma irmã dessa mesma Aprónia que o meu cunhado Pláucio
era acusado de ter atirado pela janela. Com a queda de Sejano, ele teria sido condenado à morte
por Tibério, porque tinha prometido a filha em casamento ao filho de Sejano, mas escapou
escrevendo ao Imperador uma carta ousada. Dizia que, ”enquanto mantivesse o comando”,
podiam contar com a sua aliança, assim como com a dos seus soldados. Sensatamente, Tibério
deixouo sossegado. Mas Calígula invejavalhe a popularidade e, assim que chegou, mandouo
prender.
371
Calígula não me tinha convidado para esta expedição; por isso não assisti ao que se seguiu e não posso
descrevêlo em pormenor. Tudo o que sei é que Ganimedes e Caetúlico foram acusados de conspiração
Ganimedes por ter pretensões à monarquia, Caetúlico por o apoiar. Ambos foram executados sem
julgamento. Lésbia e Agripinila (o marido da última tinha morrido recentemente de hidropisia) também
eram suspeitas de participar na conspiração. Foram exiladas para uma ilha na costa de África, perto de
Cartago. Era uma ilha muito quente e árida, onde a única indústria era a pesca de esponjas; Calígula
ordenoulhes que aprendessem a mergulhar para ir recolher as esponjas, pois, disse, já não tinha maneira
de continuar a mantêlas. Mas, antes de partirem para a sua ilha, foilhes confiada uma tarefa: tinham que
ir a pé até Roma, partindo de Lião, sob uma escolta armada, e carregarem à vez nos braços a urna onde
tinham sido colocadas as cinzas de Ganimedes. Isto era um castigo pelo seu persistente adultério com
Ganimedes, como Calígula explicou numa carta bastante arrogante que enviou ao Senado. Engrandecia a
sua própria clemência em não as ter condenado à morte. A verdade é que elas se tinham revelado piores
do que as prostitutas comuns: nenhuma prostituta honesta teria tido o descaramento de pedir os preços que
elas pediam, e recebiam, pelos seus deboches!
Eu não tinha razões para sentir pena das minhas sobrinhas. Eram tão más como Calígula, à sua maneira, e
tratavamme com desprezo. Quando o filho de Agripinila nasceu, três anos antes, ela pedira a Calígula que
lhe sugerisse um nome. Calígula disse:
Chamalhe Cláudio e ele certamente vai ser uma beleza. Agripinila ficou tão furiosa que quase lhe bateu,
mas, em vez disso, deu uma volta rápida e cuspiu na minha direcção. Seguidamente, largou a chorar. A
criança foi baptizada de Lúcio Domício. Lésbia era demasiado orgulhosa para me prestar atenção ou, de
alguma forma, reconhecer a minha presença. Se calhava cruzarmonos nalguma passagem estreita, ela
costumava seguir em frente, pelo meio, sem abrandar o passo, obrigandome a apertarme de encontro à
parede. Erame difícil lembrarme que eram as filhas do meu querido irmão e que eu tinha prometido a
Agripina fazer tudo o que pudesse para as proteger.
Fui incumbido da tarefa embaraçosa de ir a França, à frente de uma embaixada de quatro exCônsules,
para felicitar Calígula por ter anulado a conspiração. Esta era a primeira visita que fazia a França desde a
minha infância e só desejava não ter tido que a fazer. Tive que pedir dinheiro a Calpúrnia para as despesas
da viagem, porque a minha propriedade e a casa ainda não tinham comprador e eu não podia contar que
Calígula ficasse satisfeito por me ver. Fui por mar, de Óstia, desembarcando em
Nota: Que se viria a tornar imperador, sob o nome de Nero. (N. do T.)
372
Marselha. Parece que, depois de exilar as minhas sobrinhas, Calígula leiloara as jóias, ornamentos e
vestidos que tinham levado com elas. Os preços que conseguiu foram tão altos que também lhes vendeu os
escravos e depois os libertos, fingindo que eram igualmente escravos. As ofertas foram feitas por homens
ricos das províncias, que desejavam a glória de poder dizer: ”Sim, este e este pertenceram à irmã do
Imperador. Compreilhos a ele pessoalmente!” Isto deu a Calígula uma nova ideia. O velho Palácio onde
Lívia tinha vivido estava agora fechado. Estava cheio de mobiliário, de quadros valiosos e de relíquias de
Augusto. Calígula mandou buscar todas essas coisas a Roma e tornoume responsável pela sua rápida
chegada a Lião, em boas condições. Escreveu: ”Envia tudo por terra, não por mar. Tenho um contencioso
com Neptuno.” A carta só chegou no dia anterior à minha partida; por isso, encarreguei Palas de tratar de
tudo. A dificuldade era que todos os cavalos e carros disponíveis já tinham sido requisitados para o
transporte do exército de Calígula. Mas Calígula tinha dado a ordem e os cavalos e veículos tinham que
ser arranjados de alguma forma. Palas foi procurar os Cônsules e mostroulhes as ordens do Imperador.
Eles foram obrigados a requisitar carruagens públicas da malaposta e carros de padeiro e ainda os cavalos
que faziam girar os moinhos de trigo, o que causava grandes inconvenientes ao público.
Aconteceu que, numa noite de Maio, pouco antes do pôrdosol, Calígula, sentado na ponte em Lião e
embrenhado numa conversa imaginária com o deus do rio local, me viu aproximar ao longe, estrada fora.
Ele reconheceu a minha liteira pela prancha de dados que mandei instalar nela: entretenhome nas longas
viagens lançando dados comigo próprio. Gritou em tom zangado:
Então onde estão os carros? Porque não trouxeste os carros? espondi:
Que o Céu vos abençoe, Majestade! Os carros ainda vão demorar alguns dias, receio bem. Vêm por terra,
atravessando Génova. Os meus colegas e eu viemos por mar.
Então podes voltar por mar também, disse ele. Chega aqui! Quando cheguei à ponte, fui puxado para
fora da liteira por dois soldados germanos e levado para o parapeito por cima do arco central, onde me
sentaram de costas para o rio. Calígula avançou num ímpeto e empurroume. Fiz dois mortais para trás e
caí de uma altura que me pareceu ser de 300 metros antes de tocar na água. Lembrome de dizer para mim
mesmo: ”Nascido em Lião, morto em Lião!” O rio Ródano, é muito frio, muito profundo e muito rápido.
A túnica pesada manietavame os braços e as pernas, mas, de alguma forma, consegui manterme à
superfície e trepar para terra atrás de alguns barcos, cerca de meia milha mais abaixo, onde não podia ser
visto da ponte. Sou bem melhor a nadar
373
do que a caminhar: tenho bastante força nos braços e, sendo um bocado gordo por não poder fazer
exercício e por gostar de comer, flutuo como uma rolha. A propósito, Calígula não sabia nadar.
Ficou surpreendido, alguns minutos mais tarde, ao verme chegar a mancar pela estrada e riuse imenso do
meu estado lamacento e mal cheiroso.
Onde estiveste, meu querido Vulcano? gritou. Eu tinha a resposta certa:
Senti o poder do Trovejador,
Atirado de cabeça das alturas etéreas.
Lançado todo o dia às voltas em círculos rápidos Só quando o sol desceu toquei o solo,
Semfôlego caí, perdido em movimentos estonteantes; Os Sintianos me ergueram para a costa Lemniana.
Em vez de Lemniana ler Lionesa, acrescentei.
Ele estava sentado no parapeito com os meus três companheiros deitados no chão, em fila diante dele.
Tinha os pés nos pescoços de dois e a ponta da espada em equilíbrio entre as omoplatas do terceiro, o
marido de Lésbia, que soluçava por misericórdia.
Cláudio, gemeu ele, ao ouvir a minha voz, suplica ao Imperador que nos ponha em liberdade: nós
apenas viemos para lhe apresentar as nossas carinhosas felicitações.
Eu quero os carros, não as felicitações, disse Calígula.
Parecia que Homero tinha escrito a passagem que eu acabava de citar de propósito para esta ocasião.
Dirigime ao marido de Lésbia:
Sê paciente e obedece,
Querido como és, se Júpiter o braço estender, Só posso lamentar, ser incapaz de te defender. Que alma
tão ousada se moveria em teu auxílio Ou levantaria a mão contra o poder de Júpiter?
Calígula estava deliciado. Disse aos três suplicantes:
Quanto valem para vós as vossas vidas? Cinquenta mil moedas de ouro cada?
Tu é que sabes, César, responderam com voz fraca.
Então pagai ao pobre Cláudio essa importância logo que voltardes a Roma. Ele salvouvos a vida com a
prontidão da sua língua. Depois, foilhes permitido levantaremse e Calígula fêlos assinar uma
promessa, ali mesmo, em como me pagariam 150.000 moedas de ouro dentro de três meses. Eu disse para
Calígula:
374
Graciosíssimo César, as tuas necessidades são muito superiores às minhas. Aceitarás cem mil moedas de
ouro da minha mão, quando eles me pagarem, em agradecimento pela minha própria salvação? Se
condescenderes em aceitar essa oferta, ainda me vão sobrar cinquenta mil, o que me permitirá pagar a
totalidade do preço da minha iniciação. Tenho andado muito preocupado com essa dívida.
Ele respondeu:
Qualquer coisa que eu possa fazer para contribuir para a tua paz de espírito, e chamoume o seu Ceitil
de Ouro.
E foi assim que Homero, me salvou. Mas alguns dias mais tarde Calígula preveniume que não devia
voltar a citar Homero.
É um autor excessivamente valorizado. Vou mandar recolher os poemas dele e queimálos. Porque não
heide pôr em prática as recomendações filosóficas de Platão? Conheces A República? Uma
argumentação admirável. Platão era a favor de manter todos os poetas, fossem eles quais fossem, fora do
seu estado ideal. Ele disse que eram todos uns mentirosos e é o que eles são.
Perguntei:
E vossa Sagrada Majestade vai queimar mais alguns poetas, além de Homero?
Ah, sim, claro. Todos os que estão excessivamente valorizados. Virgílio para começar, É um sensaborão,
Tenta ser um Homero e não consegue.
E alguns historiadores?
Sim, Lívio. Ainda mais sensaborão. Tenta ser um Virgílio e não consegue.
375
CAPíTULO XXXII
Calígula pediu o mais recente senso oficial das propriedades e, depois de o examinar, chamou a Lião os
homens mais ricos de França, para que, quando os objectos do Palácio chegassem de Roma, pudesse ter a
certeza de conseguir bons preços. Pouco antes de começar o leilão, fez um discurso. Disse que era um
pobre falido com enormes responsabilidades, mas confiava que, pelo bem do Império, os seus dedicados
amigos da província e os aliados agradecidos não se aproveitariam da sua situação. Suplicoulhes que não
oferecessem menos do que o verdadeiro valor da herança familiar que, com grande desgosto seu, estava a
ser obrigado a pôr à venda.
Não havia nenhum truque dos leiloeiros normais que ele não tivesse aprendido e ainda inventou muitos
truques novos que estavam para além das capacidades dos bufarinheiros do mercado, em quem ele se
inspirara largamente para uma boa parte do seu arrazoado. Por exemplo, vendia o mesmo artigo várias
vezes a diferentes compradores, fazendo de cada uma das vezes um relato diferente das suas qualidades,
utilidade e história. E por verdadeiro valor esperava que os compradores entendessem valor sentimental,
que sempre se revelava cem vezes superior ao valor intrínseco. Por exemplo, ele dizia: ”Esta era a cadeira
de repouso favorita do meu bisavô Marco António”; ”O Deus Augusto bebeu por esta taça na sua festa de
casamento”; ”Este vestido foi usado pela minha irmã, a Deusa Pantea, numa recepção dada ao Rei Herodo
Agripa para celebrar a sua libertação do cativeiro”; e assim por diante. E vendeu aquilo que designou
como pechinchas cegas, pequenos artigos embrulhados num pano. Depois de ter instigado um homem a
comprar uma velha sandália ou um pedaço de queijo por 2.000 moedas de ouro, ficava tremendamente
satisfeito consigo próprio.
As ofertas começavam sempre com o preço mínimo; então, ele acenava para algum francês rico e dizia:
”Oferecestes quarenta mil moedas de ouro por aquela caixinha de alabastro? Obrigado. Mas vejamos se
conseguimos melhor. Quem dá quarenta e cinco mil?” Podeis imaginar como o medo tornava as ofertas
prontas. Esfolava cada um deles de tudo o que tinha e celebrava o feito com um magnífico festival de dez
dias.
Depois, continuou a sua avançada para as Províncias do Reno. jurava que estava à beira de fazer uma
guerra contra os germanos, que só
377
terminaria com o seu extermínio total. Iria completar piedosamente a tarefa começada pelo avô e pelo
pai. Enviou dois regimentos para o outro lado do rio, para localizar o inimigo mais próximo. Cerca de
1.000 prisioneiros foram trazidos de volta. Calígula passouos em revista e, depois de ter escolhido 300
belos jovens para a sua guarda pessoal, fez alinhar os restantes de encontro a um penhasco. Calígula deu a
ordem a Cássio:
Mataos, de uma ponta à outra, para vingar a morte de Varo.
A notícia deste massacre chegou aos germanos, que se retiraram para as suas florestas mais densas. Então,
Calígula atravessou o rio com o exército inteiro e encontrou toda a região deserta. No primeiro dia de
marcha, só para tornar as coisas mais excitantes, ordenou a alguns dos seus guardas germanos que
entrassem num bosque vizinho e, ao jantar, foilhe trazida a notícia de que o inimigo estava próximo. À
frente dos seus Batedores e de um destacamento de cavalaria da Guarda, lançouse ao ataque. Voltou com
os homens como prisioneiros, carregados de correntes, e anunciou uma vitória esmagadora contra uma
desigualdade espantosa. Recompensou os seus camaradas de armas com uma nova condecoração militar
chamada A Coroa dos Batedores, uma pequena coroa de ouro decorada com o Sol, a Lua e estrelas,
simbolizados por pedras preciosas.
No terceiro dia, a estrada passava por uma garganta estreita. O exército tinha que avançar em coluna e não
em formação de luta. Cássio disse para Calígula:
Foi num lugar como este, César, que Varo sofreu a emboscada. Enquanto for vivo, nunca esquecerei esse
dia. Eu marchava à frente da minha companhia e acabava de alcançar uma curva da estrada, como poderia
ser esta da qual nos aproximamos, quando de repente soou um terrível grito de guerra, como poderia vir
daquele maciço de abetos além, e trezentas ou quatrocentas azagaias abateramse a assobiar sobre nós...
Depressa, a minha égua, gritou Calígula em pânico, desimpedi o caminho.
Saltou da liteira, montou Penélope (Incitatus estava em Roma a ganhar corridas) e galopou para trás, ao
longo da coluna. Quatro horas depois estava de novo na ponte, mas encontroua tão entupida com
transportes de bagagem e estava com tanta pressa de atravessar, que desmontou e fez os soldados passálo
de mão em mão numa cadeira de um carro para outro, até se encontrar em segurança do outro lado. Pediu
de novo as suas armas, anunciando que o inimigo era demasiado cobarde para o enfrentar em batalha e
que iria portanto procurar novas conquistas noutras paragens. Quando todo o exército se tinha reunido de
novo em Colónia, marchou ao longo do Reno e depois atravessou para Bolonha, o porto mais próximo da
Britânia. Aconteceu que o herdeiro de Cimbelino, o Rei da Britânia, se tinha desentendido com o pai e, ao
saber que Calígula se
378
aproximava, fugiu para o outro lado do Canal com alguns seguidores e colocouse sob a protecção de
Roma. Calígula, que já tinha informado o Senado da sua total vitória sobre a Germânia, escreveu agora
dizendo que o Rei Cimbelino tinha enviado o filho para reconhecer a suserania Romana sobre todo o
arquipélago Britânico, das Ilhas Scilly às Orkneys.
Estive com Calígula durante esta expedição e tive grande dificuldade em tentar alegrálo. Queixavase de
insónia e dizia que o seu inimigo Neptuno, o estava a importunar constantemente, fazendolhe soar aos
ouvidos ruídos marinhos e costumando aparecerlhe de noite, ameaçandoo com um tridente. Retorqui:
Neptuno? No vosso lugar, não me deixaria abater por esse insolente. Porque não o punis, como punistes
os germanos? Já anteriormente o ameaçastes, lembrome disso; e, se ele continuar a importunarvos, seria
errado levar mais longe a vossa clemência.
Ele olhoume, pouco à vontade, com os olhos semicerrados.
Achas que estou louco? perguntou, passado algum tempo. Tive um riso nervoso.
Louco, César? Perguntaisme se acho que estais louco? Bom, vós estabeleceis o padrão de sanidade
mental para todo o mundo habitável.
Sabes, Cláudio, é muito difícil, disse em tom confidencial, é
muito difícil ser um Deus sob disfarce humano. Pensei muitas vezes que ia enlouquecer. Dizem que a cura
de heléboro em Anticira é muito boa. O que pensas disso?
Respondi:
Um dos maiores filósofos gregos, mas não me lembro exactamente qual, fez a cura de heléboro só para
ficar com o espírito já claro ainda mais claro. Mas, se me pedis que vos aconselhe, direi: ”Não o façais. O
vosso cérebro é límpido como uma nascente de água da rocha.”
Sim, disse ele, mas gostaria de conseguir dormir mais de três horas por noite.
Essas três horas são por causa do vosso disfarce mortal, repliquei.
Os Deuses que não andam disfarçados não dormem de todo.
Assim ele ficou reconfortado e, no dia seguinte, reuniu o exército em ordem de batalha junto ao mar:
arqueiros e fundibulários à frente; depois, as tropas auxiliares germanas; armadas com azagaias; seguiam
se as principais forças romanas, com os franceses na retaguarda. A cavalaria encontravase nos flancos e
as máquinas de cerco, as catapultas, estavam plantadas sobre dunas de areia. Ninguém sabia o que se iria
passar. Ele avançou para o mar, até Penélope ter a água pelos joelhos, e gritou:
Neptuno, velho inimigo, defendete. Desafiote para uma luta de mortais. Traiçoeiramente fizeste ir ao
fundo a frota de meu pai, não foi? Tenta o teu poder contra mim, se ousas.
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Depois, fez uma citação do combate de Ajax e Ulisses, em Homero:
Deixame levantarte, Chefe, ou levantame tu a mim.
Provemos nós a nossaforça...
Uma pequena onda veio rolando até junto de nós. Ele cortoua com a espada e riuse com desprezo.
Depois, retirouse calmamente e ordenou que tocassem para o ataque geral. Os arqueiros dispararam, os
fundibulários usaram as suas fundas, os lançadores de dardos soltaram os dardos, a infantaria regular
entrou pela água até às axilas e esquartejaram pequenas ondas, a cavalaria atacou pelos dois flancos e
nadou até uma certa distância, dando golpes com os sabres, as máquinas de cerco lançaram pedras e as
catapultas enormes azagaias e hastes com pontas de ferro. Calígula embarcou então num navio de guerra e
ancorou fora do alcance dos mísseis, proferindo desafios absurdos contra Neptuno, cuspindo para longe
por cima da amurada. Neptuno não fez qualquer tentativa para se defender ou para ripostar, exceptuando o
facto de um homem ter sido mordido por uma lagosta e outro picado por uma alforreca.
Finalmente, Calígula mandou tocar a reunir e disse aos seus homens que limpassem o sangue das espadas
e reunissem os despojos. Os despojos eram as conchas que havia na praia. Cada homem devia encher o
elmo e despejálo num amontoado comum. As conchas foram depois escolhidas e embaladas em caixas
para serem enviadas para Roma como prova desta vitória nunca vista. Os soldados acharam aquilo muito
divertido e, quando ele os recompensou com quatro moedas de ouro por cabeça, aclamaramno
estrondosamente. Como troféu da vitória, construiu um farol muito alto, segundo o modelo do famoso
farol de Alexandria, que tem sido desde então uma verdadeira bênção para os marinheiros naquelas águas
perigosas.
Seguidamente, marchou de novo Reno acima. Quando chegou a Bona, Calígula chamoume à parte e
sussurrou com voz sombria:
Os regimentos nunca foram punidos pelo insulto que uma vez fizeram ao amotinarse contra meu pai,
durante a minha ausência deste acampamento. Lembraste, eu tive que voltar e restabelecer a ordem para
ele.
Lembrome perfeitamente, ripostei, Mas isso foi há bastante tempo, não foi? Ao cabo de vinte e seis
anos, não pode haver homens que ainda sirvam nas fileiras que estivessem lá nessa altura. Vós mesmo e
Cássio Chaerea sois provavelmente os dois únicos veteranos sobreviventes desse dia terrível.
Então, talvez me limite a dizimálos, disse ele.
Os homens do Primeiro e do Vigésimo Regimentos receberam ordens para comparecer a uma assembleia
especial e foilhes dito que podiam
380
deixar as armas para trás, por causa do calor. A cavalaria da Guarda recebeu igualmente ordens para
comparecer, mas trazendo as suas lanças, bem como as espadas. Descobri um sargento que tinha o ar de
quem podia ter lutado em Filipos, de tal maneira era velho e cheio de cicatrizes. Disselhe:
Sargento, sabeis quem sou?
Não senhor. Não posso dizer que saiba, senhor. Pareceis um exCônsul.
Sou o irmão de Germânico.
Na verdade, senhor, nunca soube que existisse tal pessoa.
Não, não sou soldado nem ninguém importante. Mas tenho uma importante mensagem para todos vós:
Não deixeis as vossas espadas muito longe quando fordes à assembleia de hoje à tarde!
Porquê, senhor, se me é permitido perguntar?
Porque podeis precisar delas. Talvez haja um ataque dos germanos. Talvez de outros.
Olhoume fixamente e viu que eu estava a falar sério.
Muito agradecido, senhor, eu passo a palavra aos outros, respondeu.
A infantaria estava reunida em frente da plataforma do tribunal e Calígula falavalhes com uma expressão
zangada e reprovadora, batendo com os pés e agitando as mãos. Começou por lhes recordar uma certa
noite no princípio do Outono, havia muitos anos, quando, debaixo de um céu sem estrelas e ameaçador...
Aqui, alguns dos homens começaram a escaparse por uma abertura entre dois destacamentos de cavalaria.
Iam buscar as suas espadas. Outros, arrojadamente, retiraram as deles de baixo das capas militares onde as
tinham escondidas. Calígula deve terse apercebido do que estava a acontecer, porque, de repente, mudou
de tom a meio de uma frase. Começou a estabelecer um contraste feliz entre esses dias maus, felizmente
esquecidos, e o presente reinado de glória, riqueza e vitória.
O vosso pequeno companheiro de brincadeiras tornouse um homem, disse, e tornouse o mais
poderoso Imperador que este mundo alguma vez conheceu. Não existe nenhum inimigo, por mais feroz
que seja, que ouse desafiar as suas armas invencíveis.
O meu velho sargento correu em frente.
Está tudo perdido, César, gritou. O inimigo atravessou o rio em Colónia uma força de trezentos mil.
Vão a caminho para saquear Lião depois vão atravessar os Alpes e saquear Roma.
Ninguém acreditou naquela história mirabolante, a não ser Calígula. Voltouse, amarelo de medo, atirou
se da plataforma abaixo, deitou a mão a um cavalo, saltou para a sela e desapareceu do acampamento
como uma flecha. Um tratador galopou atrás dele e Calígula gritoulhe:
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Graças a Deus ainda tenho o Egipto. Pelo menos, aí estarei em segurança. Os germanos não são
marinheiros.
Como todos se riram! Mas um coronel foi atrás dele num bom cavalo e em breve o alcançou. Garantiu a
Calígula que a notícia era exagerada. Apenas um pequeno destacamento, disse, tinha atravessado o rio e
fora posto em debandada: as margens romanas estavam completamente livres do inimigo. Calígula parou
na cidade mais próxima e escreveu um despacho para o Senado, informandoos de que todas as suas
guerras estavam agora terminadas com êxito e que ia regressar imediatamente com os seus soldados
coroados de louros. Acusava severamente os cobardes que tinham ficado em casa, vivendo, segundo tudo
indicava, a vida habitual da Cidade teatros, banhos, grandes ceias , enquanto ele passara as mais
rigorosas dificuldades da batalha. Tinha comido, bebido e dormido como qualquer soldado raso.
O Senado estava sem saber como pacificálo, uma vez que tinham as ordens mais severas para não lhe
votarem quaisquer honras por sua própria iniciativa. Enviaramlhe no entanto uma embaixada, felicitando
o pelas suas magníficas vitórias e suplicandolhe que se apressasse a regressar a Roma, onde a sua falta
era sentida com tristeza. Ele ficou terrivelmente zangado por não lhe terem decretado nenhum triunfo,
apesar das suas ordens em contrário, e por não se referirem a ele na mensagem como Júpiter, mas apenas
como o Imperador Caio César. Bateu com a mão no punho da espada e gritou:
Apressarme a regressar? É o que vou fazer e com esta na mão. Tinha feito preparativos para um triplo
triunfo: sobre a Germânia, sobre a Britânia e sobre Neptuno. Como cativos britânicos, tinha o filho de
Cimbelino e os seus seguidores, aos quais acrescentou as tripulações de alguns navios mercantes
britânicos que detivera em Bolonha. Como cativos germanos, tinha 300 germanos verdadeiros e todos os
homens mais altos que conseguira encontrar em França, com cabeleiras amarelas e fatos germanos, que
falavam entre si num Jargão que era tomado como sendo germano. Mas, como digo, o Senado receara
votarlhe um triunfo formal; por isso, teve que se contentar com uma cerimónia informal. Entrou na
cidade arvorando o mesmo estilo de quando tinha atravessado a ponte em Baiae, e foi apenas por
intercessão de Cesónia, que era uma mulher sensata, que não passou todo o Senado à espada.
Recompensou o povo pela generosidade das dádivas que lhe tinham feito no passado, fazendo chover ouro
e prata do telhado do Palácio. Mas misturou a esta dádiva discos de ferro incandescentes, para lhes
recordar que ainda não lhes perdoara o seu comportamento no anfiteatro. Os seus soldados foram
informados de que podiam causar toda a perturbação que lhes apetecesse e embriagarse como lhes
aprouvesse, à custa do erário público. Eles aproveitaram bem esta autorização, saqueando as lojas de ruas
inteiras e
382
pegando fogo ao bairro das prostitutas. Durante dez dias, não foi restabelecida a ordem.
Era o mês de Setembro. Enquanto ele estava fora, os trabalhadores tinham estado ocupados com o novo
templo do Monte Palatino, do outro lado do Templo de Castor e Pólux, do Palácio Novo. Uma extensão
tinha sido feita até à Praça do Mercado. Agora, Calígula transformou o Templo de Castor e Pólux num
vestíbulo para o novo templo, abrindo uma passagem entre as estátuas dos Deuses. ”Os Gémeos Celestiais
são os meus porteiros”, gabouse. Depois, enviou uma mensagem ao Governador da Grécia para que
mandasse que todas as estátuas de Deuses mais famosas fossem retiradas dos seus templos e enviadas para
Roma. Propunhase tirarlhes as cabeças e substituilas pela sua. A que mais cobiçava era a estátua
colossal de Júpiter Olimpiano. Mandou construir um navio especial para a transportar para Roma. Mas o
navio foi atingido por um raio antes mesmo de ser lançado ao mar. Ou esta foi pelo menos a versão oficial
na realidade, estou convencido de que a tripulação supersticiosa o queimou de propósito. No entanto,
nessa altura, Júpiter Capitolino arrependeuse da sua contenda com Calígula (ou, pelo menos, foi o que ele
nos disse) e pediulhe que voltasse a viver de novo a seu lado. Calígula replicou que já terminara
praticamente um novo templo; mas, uma vez que Júpiter Capitolino se desculpara tão humildemente, ele
arranjaria uma solução de compromisso construiria uma ponte sobre o vale e juntaria as duas colinas. Fê
lo: a ponte passou por cima do Templo de Augusto.
Calígula era agora publicamente Júpiter. Era não apenas o Júpiter Latino, mas também o Júpiter do
Olimpo; e não apenas esse, mas também todos os outros Deuses e Deusas que ele decapitara e a quem
substituíra as cabeças. Por vezes era Apolo e por vezes Mercúrio; outras vezes era Plutão, usando sempre
em cada caso o trajo apropriado e exigindo sacrifícios específicos. Vio ir de um lado para o outro
apresentandose como Vénus, com uma longa túnica de seda leve, o rosto pintado, uma cabeleira ruiva, o
peito almofadado e sapatos de salto alto. Esteve presente como a Boa Deusa no festival de Dezembro: isso
foi um escândalo. Marte era também um dos seus favoritos. Mas a maior parte das vezes ele era Júpiter:
usava uma coroa de oliveira, uma barba de finos fios de ouro e uma capa de seda de um azul vivo; levava
ainda na mão um pedaço de electro, com entalhes para representar o raio. Certo dia, estava na Plataforma
Oratória na Praça do Mercado vestido de Júpiter e fazendo um discurso:
Nota: Liga constituída por ouro e prata, usada modernamente na condução de electricidade. Existe
também um género de âmbar que porta esse nome, também pelo facto de, quando friccionado, se revelar
bom condutor de electricidade. (N. do T.)
383
Em breve tenciono, declarou, construir uma cidade para mim no cimo dos Alpes. Nós os Deuses
preferimos o cume das montanhas aos insalubres vales dos rios. Dos Alpes, terei uma ampla visão do meu
Império: França, Itália, o Tirol e a Germânia. Se vir alguma traição a prepararse nalgum lado cá em
baixo, soltarei um rugido de trovão como advertência, assim! (Fez um rugido com a garganta.) Se a
advertência for ignorada, destruirei o traidor com o meu raio, assim! (Atirou a sua peça de metal para a
multidão. Ela bateu numa estátua e caiu sem fazer estragos). Um estranho que estava no meio da multidão,
um sapateiro de Marselha de visita a Roma, largou a rir, Calígula mandou que o prendessem e trouxessem
para junto da plataforma; depois, inclinandose, perguntoulhe com severidade:
Quem te parece que eu sou?
Um grande impostor, disse o sapateiro. Calígula ficou espantado.
Impostor? repetiu. Eu um impostor!?
Sim, disse o francês. Eu sou apenas um pobre sapateiro francês e esta é a minha primeira visita a
Roma. Sou um ignorante. Se alguém na minha terra fizesse o que vós fazeis, seria um grande impostor.
Calígula pôsse a rir também.
Pobre tolo, disse, claro que seria. É exactamente essa a diferença.
A multidão ria como louca, mas se estavam a rir de Calígula ou do sapateiro não se sabia. Pouco depois
disto, mandou fazer uma máquina de trovões e relâmpagos. Acendiase um rastilho e a máquina produzia
um rugido e um relâmpago e catapultava pedras em qualquer direcção. Mas sei de fonte segura que
sempre que havia uma trovoada a sério durante a noite, ele rastejava para baixo da cama. Há uma boa
história a esse respeito. Um dia, rebentou uma trovoada quando ele se andava a pavonear vestido de
Vénus. Pôsse aos gritos:
Pai, pai, poupa a tua bela filha!
Não tardou a gastar o dinheiro que tinha ganho em França, inventando então novas maneiras de aumentar
os seus rendimentos. A sua favorita era examinar judicialmente os testamentos dos homens que acabavam
de morrer e não lhe tinham deixado dinheiro: Apresentava então provas dos benefícios que os testadores
tinham recebido dele e declarava que ou tinham sido ingratos ou não estavam no seu Juízo perfeito na
hora de fazer o testamento; preferia pensar que não estavam no seu juízo perfeito. Cancelava os
testamentos e nomeavase a si próprio o herdeiro principal. Costumava aparecer no Tribunal de manhã
cedo e escrever, num quadro preto, a soma de dinheiro que tencionava ganhar nesse dia, geralmente
200.000 moedas de ouro. Quando já as tinha ganho, fechava o Tribunal. Uma manhã, fez um novo édito
sobre as horas de funcionamento permitidas nos diferentes tipos de loja. Fêlo escrever em letras muito
384
pequenas num cartaz minúsculo que, mandou afixar bem alto num pilar da Praça do Mercado, onde
ninguém se desse ao trabalho de o ler, por não se aperceberem da sua importância. Nessa tarde, os seus
funcionários anotaram os nomes de algumas centenas de negociantes que tinham involuntariamente
infringido o édito. Quando foram levados a julgamento; permitiu àqueles que podiam fazêlo que
alegassem para mitigar a sentença, que o tinham nomeado coherdeiro, juntamente com os filhos. Poucos
podiam. Tornouse então habitual para os homens com dinheiro notificar o Tesoureiro Imperial de que
Calígula figurava nos seus testamentos como herdeiro principal. Mas em vários casos isto revelouse
pouco prudente. É que Calígula utilizava a caixa de medicamentos que herdara de minha avó Lívia. Um
dia, enviou presentes de frutos com mel a alguns dos recentes testadores. Todos morreram de imediato.
Convocou também o meu primo, o Rei de Marrocos, para vir a Roma e condenouo à morte, dizendo
simplesmente:
Preciso da tua fortuna, Ptolomeu.
Durante a sua ausência em França, tinha havido comparativamente poucas condenações em Roma e as
prisões estavam quase vazias: isso significava uma escassez de vítimas para atirar aos animais ferozes. Ele
compensou a escassez usando membros da assistência, cortandolhes primeiro a língua, para que não
pudessem chamar os amigos para os salvarem. Estava a tornarse cada vez mais caprichoso. Um dia, um
sacerdote preparavase para lhe sacrificar um jovem touro no seu aspecto de Apolo. O procedimento
habitual para o sacrifício era que um diácono atordoasse o touro com um machado de pedra e, depois, o
sacerdote lhe cortasse a garganta. Calígula apareceu vestido de diácono e fez a pergunta habitual:
”Posso?”. Quando o sacerdote respondeu ”Fazeio”, ele deixou cair o machado com toda a força na cabeça
do sacerdote.
Eu continuava a viver pobremente com Briseis e Calpúrnia porque, embora não tivesse dívidas, também
não dispunha de dinheiro, além do pequeno rendimento que me vinha da propriedade. Tinha o cuidado de
dar a saber a Calígula como estava pobre e ele, graciosamente, permitiame que continuasse na Ordem
Senatorial, embora eu já não tivesse as necessárias qualificações financeiras. Mas sentia a minha posição
cada dia mais insegura. Uma vez, no princípio de Outubro, à meianoite, fui acordado por fortes pancadas
na porta de entrada. Pus a cabeça de fora da janela.
Quem está aí? perguntei.
Deveis comparecer imediatamente no Palácio. Disse:
Sois vós, Cássio Chaerea? Sabeis se vou ser morto?
A ordem que tenho é de vos levar imediatamente.
Calpúrnia e Briseis choraram; ambas se despediram beijandome ternamente. Enquanto me ajudavam a
vestir, disselhes apressadamente
385
como deviam dispor das poucas posses que me restavam, o que fazer com a pequena Antónia, quais as
disposições para o meu funeral e assim por diante. Foi uma cena muito penosa para todos nós e eu não
ousei prolongála. Em breve, segui mancando ao lado de Cássio em direcção ao Palácio. Ele disse com
voz áspera: ”Dois exCônsules foram igualmente chamados.” Disseme os seus nomes e eu fiquei ainda
mais alarmado. Os outros eram homens ricos, exactamente do tipo que Calígula acusaria de conspirarem
contra ele. Mas porquê eu? Fui o primeiro a chegar. Os outros dois apareceram a toda a pressa, logo a
seguir a mim, ofegantes com o medo e a precipitação. Fomos levados para a Sala da Justiça e fizeramnos
sentar em cadeiras numa espécie de palanque sobranceiro à plataforma do tribunal. Uma guarda de
soldados germanos encontravase atrás de nós, murmurando entre si na sua própria língua. A sala estava
completamente às escuras, a excepção de duas lâmpadas de azeite sobre o tribunal. Notámos que as
janelas atrás estavam cobertas com panos negros, bordados com estrelas de prata. Os meus companheiros
e eu serrámonos as mãos, silenciosamente, em sinal de despedida. Eram homens de quem eu recebera
muitos insultos numa altura ou noutra, mas, sob a sombra da morte, essas ninharias são esquecidas.
Ficámos sentados à espera de que acontecesse alguma coisa, até pouco antes do romper do dia.
De repente, ouvimos um vibrar de pratos e a música alegre de oboés e violinos. Escravos desfilaram para
o interior vindos de uma porta ao lado do tribunal, cada um deles trazendo duas lanternas que puseram em
cima de mesas a um lado; depois, a voz potente de um eunuco começou a cantar a bem conhecida canção
Quando as longas vigias da noite. Os escravos retiraramse. Ouviuse um roçar de tecido e, pouco depois,
entrou dançando a figura desajeitada de uma mulher num vestido de seda rosa, com uma coroa de rosas
falsas na cabeça. Era Calígula.
A deusa com os seus dedos rosados Desfiará a noite estrelada...
Aqui, ele afastou os panos da janela e fez aparecer os primeiros laivos da aurora. Depois, quando o eunuco
chegou à parte em que falava da Deusa de dedos rosados, soprando as luzes uma por uma, introduziu este
incidente na dança: Puff... Puff... Puff...
E onde os amantes jazem
Envoltos nas doces tarefas da paixão...
De uma cama que ele não tinha notado, porque ficava numa alcova, a Deusa Aurora fez então aparecer
uma jovem e um homem, nenhum deles
386
com quaisquer roupas vestidas e, numa demonstração silenciosa, indicou que era tempo de se separarem.
A jovem era muito bela. O homem era o eunuco que cantava. Separaramse indo em direcções opostas,
como se se sentissem profundamente abatidos. Quando veio o último verso:
Oh Aurora, das Deusas a maís bela, Que com o teu passo lento e adordvel Sanas qualquer querela...
Tive a sensatez de me prostrar no chão. Os meus companheiros não foram lestos a seguirme o exemplo.
Calígula saltou do palco e, pouco depois, fomos chamados para tomar o pequenoalmoço com ele. Eu
disse:
Oh, Deus dos Deuses, nunca na minha vida assisti a uma dança que me desse uma alegria espiritual tão
profunda como a que acabo de presenciar. Não tenho palavras para descrever a sua beleza.
Os meus companheiros concordaram comigo e disseram que lamentavam infinitamente que uma actuação
tão incomparável tivesse sido apresentada a uma audiência tão pequena. Ele disse, complacentemente, que
era apenas um ensaio. Em breve, no anfiteatro, apresentálaia perante toda a Cidade. Não percebi como é
que ele conseguiria arranjar o efeito do afastar das cortinas num anfiteatro ao ar livre com centenas de
metros de comprimento, mas não disse nada sobre isso. Tivemos um pequenoalmoço muito saboroso,
com o exCônsul mais velho sentado no chão e, alternadamente, comendo empada de tordo e beijando o
pé de Calígula. Eu estava apenas a pensar em como Calpúrnia e Briseis iam ficar satisfeitas ao verme de
volta quando Calígula, que estava de muito bom humor, disse de repente:
Ela era uma bonita rapariga, não era, Cláudio, meu velho devasso?
Muito bonita na verdade, Deus.
E ainda virgem, tanto quanto sei. Gostavas de te casar com ela? Podes, se quiseres. Entusiasmeime por
um momento, mas é engraçado; na verdade, já não gosto de mulheres imaturas. ...Ou de mulheres
maduras, aliás, à excepção de Cesónia. Reconheceste a rapariga?
Não, senhor; para falar verdade, só olhava para vós.
É a tua prima Messalina, filha de Barbato. O velho alcoviteiro não proferiu uma única palavra de
protesto quando pedi que ela me fosse enviada. Afinal, que cobardes que eles são, Cláudio!
Sim, Senhor Deus.
Está bem, vou casálos aos dois amanhã. Agora vou para a cama, acho eu.
Mil agradecimentos e homenagens, Senhor.
Deume o outro pé a beijar. No dia seguinte, cumpriu a promessa e casounos. Aceitou um décimo do dote
de Messalina como pagamento,
387
mas, à parte isso, comportouse com toda a cortesia. Calpúrnia tinha ficado encantada por me ver de
novo com vida e fingira não se importar com o meu casamento. Disse num tom natural:
Muito bem, meu querido. Eu volto para a fazenda e vou de novo tomar conta das coisas para ti. Não vais
sentir a minha falta tendo essa bela esposa. E, agora que tens dinheiro, terás que viver de novo no Palácio.
Disselhe que o casamento me tinha sido imposto e que, na verdade, sentiria muito a falta dela. Mas
Calpúrnia não me tomou a sério: Messalina tinha o dobro da beleza dela, três vezes a sua inteligência e
nascimento e, ainda por cima, tinha dinheiro. Eu já estava apaixonado por ela, disse Calpúrnia.
Sentime constrangido. Calpúrnia tinha sido a minha única amiga verdadeira ao longo daqueles quatro
anos de miséria. O que é que ela não tinha feito por mim? No entanto, ela tinha razão: eu estava
apaixonado por Messalina; e agora, Messalina ia ser a minha esposa. Não haveria lugar para Calpúrnia,
estando eu com Messalina.
Foi em pranto que ela partiu. E também eu fiquei em pranto. Não estava apaixonado por Calpúrnia, mas
ela era a minha amiga mais sincera e sabia que, se alguma vez precisasse dela, a encontraria pronta a
ajudarme. Não preciso dizer que, quando recebi o dinheiro do dote, não a esqueci.
388
CAPíTULO XXXIII
Messalina era uma jovem extremamente bela, esbelta e de movimentos ágeis, com os olhos negros como
azeviche e abundantes cabelos negros e encaracolados. Pouco falava e tinha um sorriso misterioso, que
quase me enlouquecia de amor por ela. Ficou tão contente por ter escapado a Calígula e foi tão rápida a
compreender as vantagens que lhe dava o casamento comigo, que se comportou de uma forma que me
deixou absolutamente convencido de que me amava tanto como eu a amava a ela. Esta era praticamente a
primeira vez que eu estava apaixonado por alguém desde os meus tempos de rapaz; e quando um homem
de cinquenta anos, nem muito inteligente nem muito atraente, se apaixona por uma jovem de quinze muito
atraente e muito inteligente, as perspectivas não são muito boas para ele. Casámos em Outubro. Em
Dezembro, ela estava grávida de mim. Mostravase muito carinhosa com a minha pequena Antónia, que ia
então nos dez anos, e era um alívio para mim a pequena ter agora alguém a quem pudesse chamar mãe,
alguém cuja idade era suficientemente próxima da sua para se tornar uma amiga e que lhe podia explicar
as maneiras da sociedade e levála a determinados sítios, como Calpúrnia não pudera fazer.
Messalina e eu fomos convidados a ir viver de novo para o Palácio. Chegámos numa má altura. Um
negociante chamado Basso tinha andado a fazer perguntas a um capitão da Guarda do Palácio sobre os
hábitos diários de Calígula se era verdade que ele deambulava pelos claustros de noite, porque não
conseguia dormir? A que horas fazia isso? Quais os claustros que habitualmente escolhia? Que Guardas
tinha com ele? O capitão relatou o incidente a Cássio e este relatouo a Calígula. Basso foi preso e
interrogado. Foi forçado a admitir que tencionara matar Calígula, mas negou, mesmo sob tortura, que
tivesse quaisquer cúmplices. Então, Calígula enviou uma mensagem ao velho pai de Basso, ordenandolhe
que assistisse à execução do filho. O velho, que não fazia ideia que Basso andara a planear assassinar
Calígula ou mesmo que ele tivesse sido preso, ficou muito chocado quando encontrou o filho a gemer no
chão do Palácio, com o corpo destroçado pela tortura. Mas conseguiu controlarse e agradeceu a Calígula
a sua gentileza em o ter chamado para fechar os olhos ao filho. Calígula riuse.
389
Fecharlhe os olhos na verdade! Ele não vai ter olhos para fechar, o assassino! Vou arrancarlhos dentro de
momentos. E os teus também. O pai de Basso disse:
Poupai as nossas vidas. Nós somos meros instrumentos nas mãos de homens poderosos. Eu douvos todos os
nomes.
Isto impressionou Calígula e, quando o velho mencionou o Comandante da Guarda, o Comandante dos Germanos, o
Tesoureiro Calisto, Cesónia, Mnester e mais três ou quatro, ele empalideceu de medo.
E quem é que eles fariam Imperador no meu lugar? perguntou.
Vosso tio Cláudio.
Ele também entrou na conspiração?
Não; eles iam apenas usálo como figura representativa.
Calígula afastouse apressadamente e mandou chamar o Comandante da Guarda, o Comandante dos Germanos, o
Tesoureiro e eu próprio, a uma sala particular. Perguntou aos outros, apontando para mim:
Essa criatura serve para ser Imperador? Eles responderam em tom de surpresa:
Não, a menos que vós o digais, Júpiter.
Depois, dirigiulhes um sorriso patético e exclamou.
Eu sou um e vós sois três. Dois de vós estais armados e eu estou indefeso. Se me odiais e quereis matarme, fazeio
imediatamente e colocai esse pobre idiota como Imperador no meu lugar.
Todos caímos de rosto no chão e os dois soldados entregaramlhe as espadas, dizendo:
Nós estamos inocentes de tais pensamentos de traição, Senhor. Se não acreditais em nós, matainos!
Sabeis uma coisa: ele esteve quase a matarnos! Mas, enquanto hesitava, eu disse:
Deus Todopoderoso, o coronel que me chamou para vir aqui contoume da acusação feita contra estes homens
leais pelo pai de Basso. A sua falsidade é evidente. Se Basso tivesse sido realmente empregado por eles, porque teria
precisado de interrogar o capitão sobre os vossos movimentos? Não teria antes conseguido destes generais toda a
informação necessária? Não; o pai de Basso tentou salvar a própria vida e a de Basso com uma mentira desajeitada.
Calígula pareceu ficar convencido com o meu argumento. Deume a mão a beijar, feznos levantar a todos e deu as
espadas de volta. Basso e o pai foram seguidamente cortados em pedaços pelos germanos. Mas Calígula não
conseguiu afastar do seu espírito o medo do assassinato, que, em breve, foi aumentado por uma série de presságios
infelizes. Primeiro, a casa do porteiro no Palácio foi atingida por um raio. Depois Incitatus, quando foi trazido para o
jantar uma noite, empinouse e deixou cair uma ferradura, que quebrou um vaso de alabastro que pertencera a
390
Júlio César, espalhando o vinho no chão. O pior de todos os presságios foi o que aconteceu em Olimpo
quando, de acordo com as ordens de Calígula, os trabalhadores do templo começaram a desmontar a
estátua de Júpiter para ser levada para Roma. A cabeça era a primeira peça a retirar, para servir de medida
para a nova cabeça de Calígula, que substituiria a de Júpiter quando a estátua fosse de novo montada.
Tinham fixado a roldana ao tecto do templo e atado uma corda em volta do pescoço; preparavamse para
içar a cabeça, quando de repente se ouviu uma gargalhada atroadora que ressoou por todo o edifício. Os
trabalhadores afastaramse em pânico. Não foi possível encontrar ninguém com a coragem suficiente para
os substituir.
Nesta altura, Cesónia aconselhouo uma vez que, com o seu inabalável rigor, ele fizera com que todos
tremessem só de lhe ouvir o nome) a governar com brandura e conquistar o amor do povo, em vez do seu
receio. Cesónia compreendia a posição perigosa em que ele se encontrava e que, se alguma coisa lhe
acontecesse, ela certamente perderia também a vida, a menos que se soubesse que tinha feito tudo para o
dissuadir das suas crueldades. Calígula comportavase agora da maneira mais imprudente. Foi procurar,
cada um por sua vez, o Comandante da Guarda, o Tesoureiro e o Comandante dos Germanos e fingiu que
os tomava na sua confiança, dizendo: ”Eu confio em ti, mas os outros estão a conspirar contra mim e
quero que os olhes como os meus mais mortais inimigos.” Os três compararam as suas informações e foi
por isso que, quando uma verdadeira conspiração se formou, eles fecharam os olhos. Calígula disse que
concordava com o conselho de Cesónia e agradeceulhe; iria certamente seguilo quando fizesse as pazes
com os seus inimigos. Mandou reunir o Senado e dirigiuselhe nestes termos:
Em breve vos concederei a todos uma amnistia, meus inimigos, e reinarei com amor e paz um milhar de
anos. Essa é a profecia. Mas, antes que cheguem esses tempos dourados têm que rolar cabeças pelo chão
desta Casa e o sangue jorrará até ao tecto. Vão ser cinco minutos de loucura.
Se os 1.000 anos de paz tivessem chegado primeiro e depois os cinco minutos de loucura, nós teríamos
preferido.
A conspiração foi formada por Cássio Chaerea. Ele era um soldado à moda antiga, acostumado a uma
obediência cega as ordens dos seus superiores. As coisas têm que estar extraordinariamente más para que
um homem desta têmpera pense em conspirar contra a vida do seu ComandanteemChefe, a quem ele
jurou aliança nos termos mais solenes que se possam imaginar. Calígula tratara Cássio extremamente mal.
Prometeralhe definitivamente o comando da Guarda e, depois, sem uma palavra de explicação ou de
desculpas, derao a um capitão com pouco tempo de serviço e sem qualquer distinção militar, como
recompensa
391
por um notável feito de bebida no Palácio: oferecerase como voluntário para despejar um jarro com litro e
meio de vinho sem o tirar dos lábios, e fizerao realmente eu vi ; ainda por cima, ficou com o vinho no
estômago. Calígula também o tinha feito senador. E Calígula empregava Cássio em todas as incumbências
e tarefas mais desagradáveis recebimento de impostos que na realidade não eram devidos, confiscação de
propriedades por ofensas nunca cometidas, execução de homens inocentes. Recentemente, fizerao
torturar uma bela rapariga bem nascida, chamada Quintília. A história era a seguinte. Vários jovens
tinham querido casar com ela, mas aquele que o tutor de Quintília tinha proposto, um membro dos
Batedores, não era de todo do agrado dela. Ajovem suplicoulhe que a deixasse escolher um dos outros;
ele consentiu e o dia do casamento foi fixado. O Batedor rejeitado foi procurar Calígula e apresentoulhe
uma acusação contra o seu rival, dizendo que ele blasfemara, falando do seu Augusto Soberano como
”aquela dama careca.” E citou Quintília como testemunha. Esta, juntamente com o noivo, foi levada
perante Calígula. Ambos negaram a acusação, mas ambos foram condenados à roda. O rosto de Cássio
revelou a sua repulsa, pois só os escravos podiam legalmente ser submetidos a tortura. Por isso, Calígula
ordenoulhe que se ocupasse da roda de Quintília e que fizesse girar os parafusos com as suas próprias
mãos. Quintília não disse uma palavra nem soltou um grito durante toda a sua provação. Depois, disse
para Cássio que, de tão abalado, chorava:
Pobre Coronel, eu não tenho nada contra vós. Às vezes deve ser difícil obedecer ás ordens.
Cássio disse com amargura:
Quem me dera ter morrido naquele dia com Varo, na Floresta de Teutoburger.
Ela foi levada de novo à presença de Calígula e Cássio relatou que não fizera qualquer confissão nem
permitira que lhe escapasse um único grito. Cesónia disse para Calígula.
Isso foi porque ela estava apaixonada pelo homem. O amor conquista tudo. Podias cortála em pedaços
que ela nunca o trairia. Calígula disse:
E serias tu assim tão gloriosamente corajosa por minha causa, Cesónia?
Sabes que sim, replicou.
Assim, o noivo de Quintília não foi torturado e recebeu o perdão; Quintília teve direito a um dote de 8.000
moedas de ouro do espólio do Batedor, que foi executado por perjúrio. Mas Calígula soube que Cássio
tinha chorado durante a tortura de Quintília e troçou dele, chamandolhe velho bebéchorão. Este não foi o
pior nome que encontrou. Afirmava que Cássio era um velho efeminado e estava sempre a dizer piadas
porcas
392
sobre ele aos outros oficiais da Guarda, que eram obrigados a rir entusiasticamente ao ouvilo. Cássio
costumava comparecer perante Calígula todos os dias ao meiodia, para receber a senha. Costumava
sempre ser Roma, Augusto, Júpiter, vitória ou coisa parecida; mas agora, para arreliar Cássio, Calígula
davalhe palavras absurdas tais como Laços de Espartilho, Muito Amor, ferros de Encaracolar ou Beija
me, Sargento. E Cássio tinha que as levar aos outros oficiais e aguentar a sua zombaria. Decidiu matar
Calígula.
Calígula estava cada vez mais louco. Entrou no meu quarto um dia e disse, sem qualquer palavra de
introdução:
Heide ter três cidades imperiais e Roma não será uma delas. Heide ter a minha cidade nos Alpes e hei
de reconstruir Roma em Antium, porque foi aí que nasci e o lugar merece essa honra, porque é junto ao
mar; e heide ter Alexandria, caso os germanos capturem as outras duas. Alexandria é um lugar muito
culto.
Sim, Deus, respondi humildemente. Ele lembrouse então que tinha sido chamado de dama careca.
Consciente de que o cabelo dele estava sem dúvida muito ralo no alto da cabeça, gritou:
Como ousas andar por aí com esse enorme e horrendo matagal de cabelos na minha presença? Isso é uma
blasfémia! Voltouse para o guarda germano. Cortalhe a cabeça.
Uma vez mais, pensei que estava perdido. Mas tive a presença de espírito para dizer asperamente para o
Guarda, que corria em direcção a mim com a espada:
O que estás a fazer, idiota? O Deus não disse cabeça! disse cabelo! Corre e vai imediatamente buscar
uma tesoura!
Calígula ficou estupefacto e talvez tenha mesmo pensado que tinha dito cabelo. Permitiu que o germano
fosse buscar a tesoura. E assim fiquei de cabeça rapada. Pedi permissão para dedicar as madeixas cortadas
a sua Divindade e ele graciosamente deu o seu consentimento. Depois, mandou rapar o cabelo a toda a
gente no Palácio, excepto aos germanos. Quando chegou a vez de Cássio, Calígula disse:
Oh, que pena! Esses lindos caracolinhos que o Sargento tanto ama!
Nessa noite, Cássio encontrou o marido de Lésbia. Ele tinha sido o melhor amigo de Ganimedes e, por
alguma coisa que Calígula dissera nessa manhã, não era provável que vivesse muito mais tempo. Ele
disse:
Boa noite, Cássio Chaerea, meu amigo. Qual é a senha hoje? Cássio respondeu:
Esta noite a senha é Caracolinhos. Mas, meu amigo Marco Vinício, se é que vos posso chamar amigo,
daime a senha Liberdade e a minha espada ficará ao vosso serviço.
Vinício abraçouo.
393
Não somos os únicos que estão prontos a dar o golpe pela Liberdade. O Tigre também está comigo.
O Tigre o verdadeiro nome dele era Cornélio Sabino era outro coronel da Guarda, que tomava o lugar de Cássio quando ele
largava o serviço. O grande Festival Palatino começava no dia seguinte. Este festival em honra de Augusto tinha sido instituído
por Lívia no princípio da monarquia de Tibério e realizavase anualmente no Pátio Sul do Palácio Velho. Começava com
sacrifícios a Augusto e uma procissão simbólica, continuando durante três dias com peças teatrais, dança, canto, malabarismo e
coisas do género. Erguiamse bancadas de madeira com assentos para as pessoas. Quando o festival terminava, as bancadas eram
desmontadas e guardadas até ao ano seguinte. Naquele ano, Calígula tinha prolongado os três dias para oito, intercalando as
representações com corridas de carros no circo e batalhas navais fingidas na Doca. Queria estar ininterruptamente entretido até ao
dia em que navegasse para Alexandria, o que sucederia a vinte e cinco de Janeiro. Porque ele ia mesmo para o Egipto para visitar
o país, para arranjar dinheiro com um rigor inabalável e com o mesmo tipo de truques que usara em França, para fazer planos para
a reconstrução de Alexandria e, por fim, como costumava gabarse, para pôr uma cabeça nova na Esfinge.
O Festival começou. Calígula fez sacrifícios a Augusto, mas de uma forma um tanto indiferente e desdenhosa, como um senhor
que, numa emergência, tem que prestar algum pequeno serviço a um dos seus escravos. Quando essa parte terminou, proclamou
que, se algum cidadão presente pedisse um favor que estivesse no seu poder conceder, fáloia graciosamente. Ultimamente, tinha
estado zangado com o povo pela sua falta de entusiasmo no último espectáculo de animais selvagens e tinhaos punido fechando
os celeiros da Cidade por dez dias; mas talvez já os tivesse perdoado agora, pois acabava de largar donativos do telhado do
Palácio. Assim, um brado alegre subiu no ar:
Mais pão, menos impostos, César! Mais pão, menos impostos! Calígula ficou muito zangado. Enviou um pelotão de germanos
ao longo das bancadas e 100 cabeças foram decepadas. Este incidente perturbou os conspiradores; era um recordar da
barbaridade dos germanos e da maravilhosa devoção que dedicavam a Calígula. Naquela altura, não devia haver praticamente um
cidadão em Roma que não ansiasse pela morte de Calígula, que não lhe tivesse de bom grado comido a carne, como costuma
dizerse; mas, para estes germanos, ele era o herói mais glorioso que o mundo alguma vez conhecera. E se ele se vestia de mulher;
ou se se afastava de repente a galopar do seu exército durante a marcha, ou fazia Cesónia aparecer nua diante deles e gabava a sua
beleza; ou se queimava a sua villa mais bela em Herculano, invocando que sua mãe Agripina estivera prisioneira ali durante dois
dias a caminho da ilha onde
394
morrera: estes comportamentos inexplicáveis apenas serviam para o tornar mais digno da sua adoração
como um ser divino. Costumavam acenar uns para os outros com ar avisado e dizer:
Sim, os Deuses são assim. Nunca se sabe o que vão fazer em seguida. Tuisco e Mann, lá na terra, na
nossa querida Pátria, são exactamente o mesmo.
Cássio era destemido e não se importava com o que lhe acontecesse a ele pessoalmente, desde que
Calígula fosse assassinado. Mas os outros conspiradores, cujo sentimento não era tão forte, começaram a
perguntar a si mesmos qual a vingança que os germanos tomariam sobre os assassinos do seu maravilhoso
herói. Começaram a apresentar desculpas e Cássio não conseguia leválos a concordar com um verdadeiro
plano de acção. Sugeriam deixar tudo ao acaso. Cássio começou a ficar ansioso. Chamoulhes cobardes e
acusouos de estarem a ganhar tempo. Disse que o que eles queriam era que Calígula chegasse são e salvo
ao Egipto. Chegou o último dia do festival e Cássio conseguira com grande dificuldade fazêlos concordar
com um plano exequível, quando Calígula, de repente, deu a saber que o festival iria continuar por mais
três dias. Disse que queria actuar e cantar num divertimento que ele próprio tinha composto para os
alexandrinos, mas que achava que seria justo mostrar aos seus compatriotas em primeiro lugar.
Esta mudança de planos deu aos mais timoratos dos conspiradores uma nova oportunidade para se
esquivarem.
Oh, mas Cássio, isto altera tudo. Torna tudo muito mais fácil para nós. Podemos matálo no último dia,
no momento em que ele sair do palco. É um plano muito melhor. Ou durante a representação. Como
preferires.
Cássio respondeu:
Fizemos um plano e jurámos seguilo e é o que temos que fazer. Tratase de um bom plano. Não tem
qualquer falha.
Mas agora temos muito tempo. Porque não esperar mais três dias? Cássio disse:
Se não executarmos o plano hoje, como todos haveis jurado fazer, terei que trabalhar sozinho. Não vou
ter muitas hipótese contra os germanos, mas farei o melhor que puder. Se eles forem demasiado fortes
para mim, gritarei: ”Vinício, Asprenas, Bubo, Aquila, Tigre, porque não estais aqui como prometestes?”
Assim, eles concordaram em levar por diante o plano original. Calígula devia ser persuadido por Vinício e
Asprenas a deixar o teatro ao meiodia para dar um mergulho na piscina e comer um almoço rápido.
Momentos antes, Cássio o Tigre e os outros capitães que estavam dentro da conjura, deviam escaparse
disfarçadamente pela porta do palco. Dariam a volta até à entrada para a passagem coberta, que dava
directamente do
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teatro para o Palácio Novo. Asprenas e Vinício tinham que persuadir Calígula a ir por aí.
A peça anunciada para esse dia era Ulisses e Circe e Calígula tinha prometido espalhar fruta, bolos e
dinheiro no fim. Fáloia naturalmente da extremidade mais próxima do portão, onde era o seu lugar.
Portanto, todos foram o mais cedo possível para o teatro, para arranjar lugares desse lado. Quando os
portões se abriram, a multidão precipitouse para o interior e correu para os lugares mais próximos.
Habitualmente, todas as mulheres se sentavam juntas a um lado e havia lugares reservados para cavaleiros
e senadores, para estrangeiros ilustres e assim por diante. Mas, naquele dia, todos estavam misturados. Vi
um senador que chegara atrasado ser obrigado a sentarse entre um escravo africano e uma mulher com
cabelos pintados cor de açafrão e envergando a túnica escura que as prostitutas vulgares usam como trajo
profissional.
Tanto melhor, disse Cássio para o Tigre. Quanto maior for a confusão, mais hipótese nós temos.
Aparte os germanos e o próprio Calígula, quase que a única pessoa no Palácio que ainda não ouvira falar
na conspiração era o pobre Cláudio. Isto porque o pobre Cláudio ia ser morto também, como tio de
Calígula. Toda a família de Calígula devia ser morta. Os conspiradores receavam, suponho, que eu me
fizesse a mim mesmo Imperador e vingasse a morte dele. Eles tinham decidido restaurar a República. Se
ao menos os idiotas tivessem confiado em mim, esta história teria tido um final muito diferente. Porque eu
era melhor republicano do que qualquer deles. Mas eles interpretaramme mal e, com toda a crueldade,
condenaramme à morte. De certa maneira, até Calígula sabia mais sobre a conspiração do que eu, pois
acabavam de lhe enviar um oráculo de advertência do Templo da Fortuna, em Antium: ”Cuidado com
Cássio.” Ele interpretouo mal e mandou regressar o primeiro marido de Drusila, Cássio Longino, da Ásia
Menor, onde era Governador. Pensava que Longino estivesse zangado com ele por ter assassinado Drusila
e lembrouse que ele era descendente daquele Cássio que ajudou a assassinar Júlio César.
Entrei no teatro nessa manhã às oito horas e descobri que os arrumadores me tinham reservado um lugar.
Fiquei entre o Comandante da Guarda e o Comandante dos Germanos.
O Comandante da Guarda inclinouse pela minha frente e perguntou:
Sabes a notícia?
Que notícia? perguntou o Comandante dos germanos.
Vão representar uma peça nova.
Qual?
A Morte do Tirano.
396
O Comandante dos germanos deitoulhe um olhar rápido e citou franzindo a testa:
Valente camarada, guarda o teu silêncio
Não vá alguém ouvirte, dos homens da Grécia.
Eu disse:
Sim, houve uma alteração no programa. Mnester vai darnos A Morte do Tirano. Há anos que não é
representada. É sobre o Rei Ciniras, que não quis entrar em guerra contra Tróia e foi morto pela sua
cobardia.
A peça começou e Mnester esteve na sua melhor forma. Quando morreu às mãos de Apolo, sujou a roupa
toda de sangue de uma pequena bolsa que tinha escondido na boca. Calígula mandou chamálo e beijouo
nas duas faces. Cássio e o Tigre escoltaramno até ao camarim, como se o quisessem proteger dos seus
admiradores. Depois, saíram pela porta dos artistas. Os capitães seguiramnos durante a confusão da
dádiva dos brindes. Asprenas disse para Calígula:
Foi maravilhoso. Que tal agora um mergulho e um almoço ligeiro?
Não, disse Calígula. Quero ver essas raparigas acrobatas. Dizse que são muito boas. Acho que vou
ver o espectáculo todo. É o último dia. Estava com uma disposição muito afável.
Vinício levantouse. Ia dizer a Cássio, ao Tigre e ao resto que não esperassem. Calígula puxouo pela
capa.
Meu caro, não te vás embora. Tens que ver essas raparigas. Uma delas executa uma dança chamada a
dança do peixe, que nos faz sentir como se estivéssemos debaixo de água.
Vinício sentouse e viu a dança do peixe. Mas primeiro ainda teve que assistir a um breve interlúdio
melodramático chamado Laureolus ou O Chefe dos Ladrões. Havia nele muita mortandade e os actores,
um elenco de segunda categoria, tinham todos arranjado pequenas bolsas com sangue para porem na boca,
a imitar Mnester. Nunca se viu porcaria mais agourenta que o que eles fizeram no palco! Quando a dança
do peixe terminou, Vinício levantouse de novo:
Para dizer a Verdade, Senhor, gostaria de ficar, mas Cloacina chamame. Qualquer coisa que comi.
Suaves mas coesas brotam as minhas oferendas,
Nem duramente rápidas, nem impudicamente lentas...
Calígula riuse:
Não me culpes, meu caro. Tu és um dos meus melhores amigos. Eu não ia adulterar a tua comida por
nada neste mundo.
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Vinício saíu pela porta dos artistas e encontrou Cássio e o Tigre no pátio.
É melhor voltardes, disse. Ele vai assistir até ao fim.
Cássio disse:
Muito bem. Voltemos então. Vou matálo no lugar onde está sentado. Espero que me apoies.
Nessa altura, um Guarda aproximouse de Cássio e disse:
Os rapazes estão finalmente aqui, Senhor.
Bom, ultimamente, Calígula tinha enviado cartas às cidades gregas da Ásia Menor, ordenando a cada uma
delas que lhe enviasse dez rapazes da mais pura nobreza para dançarem a dança nacional das espadas no
festival e cantarem um hino em sua honra. Isto era apenas uma desculpa para conseguir ter os rapazes sob
o seu domínio: eles dariam reféns muito úteis quando voltasse a sua fúria contra a Ásia Menor. Já deviam
ter chegado há vários dias, mas o mau tempo no Adriático tinhaos detido em Corfu. O Tigre disse:
”Informem imediatamente o Imperador.” E o Guarda dirigiuse apressado para o teatro.
Entretanto, eu estava a ficar com muita fome. Sussurrei para Vitélio, que estava sentado atrás de mim:
Bem gostaria que o Imperador desse o exemplo de sair para comer qualquer coisa.
Nessa altura, o Guarda chegou com a mensagem sobre a chegada dos rapazes e Calígula disse para
Asprenas:
Esplêndido! Vão poder actuar esta tarde. Tenho que falar imediatamente com eles e fazer um breve
ensaio do hino. Vamos, amigos! O ensaio primeiro, depois um banho, o almoço e voltamos!
Saímos. Calígula parou ao portão para dar ordens sobre a representação da tarde. Eu ia à frente com
Vitélio, um senador chamado Sêncio e os dois generais. Seguimos pela passagem coberta. Reparei que
Cássio e o Tigre estavam à entrada. Não me saudaram, o que achei estranho, pois saudaram os outros.
Chegámos ao Palácio. Eu disse:
Estou com fome. Sinto o cheiro de caça a ser cozinhada. Espero que o ensaio não demore muito.
Estávamos na antecâmara da sala de banquetes. É estranho, pensei, Não há aqui nenhum capitão, mas
apenas sargentos. Volteime com ar interrogador para os meus companheiros mas, outra coisa estranha,
descobri que todos eles tinham desaparecido em silêncio. Nessa altura, ouvi um som distante de brados e
gritos, depois mais brados. Perguntei a mim mesmo o que estaria a acontecer. Alguém correu diante da
janela gritando: ”Acabouse tudo. Ele está morto!” Dois minutos mais tarde, ouviuse a maior barulheira
vinda dos lados do teatro, como se toda a assistência estivesse a ser massacrada. Continuou por algum
tempo até que abrandou e, então, seguiramse aclamações vibrantes. Subi aos tombos até à minha sala de
leitura, onde me deixei cair, tremendo, para cima de uma cadeira.
398
Sobre os seus pedestais, os bustos de Heródoto, Políbio, Tucidides e Asínio Pólio olhavamme de frente.
Os seus rostos impassíveis pareciam dizer: ”Um verdadeiro historiador estará sempre acima dos distúrbios
políticos do seu tempo.” Decidi comportarme como um verdadeiro historiador.
399
CAPíTULO XXXIV
O que tinha acontecido era o seguinte. Calígula saíra do teatro. Uma liteira aguardava para o levar pelo
caminho mais longo em volta do Novo Palácio, entre duas filas de Guardas. Mas Vinício disse:
Vamos pelo caminho mais curto. Penso que os rapazes gregos estão à espera lá à entrada.
Bom, vamos então, disse Calígula.
As pessoas tentaram seguilo, mas Asprenas ficou para trás e obrigouas a recuar.
O Imperador não quer ser incomodado por vós, disse. Voltai para trás! E disse aos porteiros que
fechassem os portões.
Calígula encaminhouse para a passagem coberta. Cássio avançou e saudouo.
A senha, César? Calígula disse:
Einh? Ah, sim, a senha, Cássio. Vou arranjarte uma boa senha para hoje: Saiote de Velho.
O Tigre gritou por trás de Calígula:
Agora? Era o sinal combinado.
Sim, agora! berrou Cássio, puxando da espada e abatendoa sobre Calígula com todas as suas forças.
Tencionava racharlhe o crânio até ao queixo, mas, no seu acesso de raiva, falhou a pontaria e acertoulhe
entre o pescoço e a omoplata. A maior força do golpe recaíu sobre a parte superior do esterno. Calígula
cambaleou de dor e espanto. Olhou desesperadamente em volta, voltouse e largou a correr. Quando se
voltou, Cássio atacouo de novo e rachoulhe a queixada. Então, o Tigre derrubouo com um golpe mal
controlado, que lhe apanhou o lado da cabeça. Lentamente, ele conseguiu porse de joelhos.
Ataca outra vez! gritou Cássio.
Calígula levantou os olhos ao Céu com uma expressão de agonia:
Oh, Júpiter, suplicou.
De acordo, bradou o Tigre, e cortoulhe uma das mãos.
Um capitão chamado Auila deulhe o golpe final, uma estocada profunda na virilha, mas outras dez
espadas foramlhe enterradas depois
401
no peito e na barriga, só para terem a certeza. Um capitão chamado Bubo mergulhou a mão numa ferida
no lado de Calígula e depois lambeu os dedos, gritando: ”Jurei que lhe bebia o sangue!”
Tinhase juntado uma multidão e o alarme espalhouse.
Vêm aí os germanos.
Os assassinos não tinham qualquer hipótese contra um batalhão de germanos. Correram para o edifício
mais próximo, que, por acaso, era a minha antiga casa, que Calígula ultimamente me pedira emprestada
para servir de acomodação aos embaixadores estrangeiros que ele não queria ter dentro do Palácio.
Entraram pela porta da frente e saíram pela das traseiras. Todos conseguiram escapar a tempo, excepto o
Tigre e Asprenas. O Tigre teve que fingir que não era um dos assassinos e juntouse aos germanos nos
seus gritos de vingança. Asprenas correu para a passagem coberta, onde os germanos o apanharam e
mataram. Mataram dois outros senadores que lhe apareceram pela frente. Tratavase de um pequeno grupo
de germanos. O resto do batalhão marchou para o interior do teatro e fechou o portão. Iam vingar o seu
herói assassinado com um massacre em grande escala. Esses foram os brados e gritos que ouvi. Ninguém
no teatro sabia que Calígula estava morto ou que qualquer tentativa tinha sido feita contra a sua vida. Mas
as intenções dos germanos eram claras, porque eles estavam a pôr em prática o seu estranho cerimonial de
tocar e afagar as suas azagaias, falandolhes como se fossem seres humanos, como é seu costume
invariável antes de derramarem sangue com essas armas terríveis. Não havia saída. De repente, uma
trombeta tocou a Sentido de cima do palco, seguindose as seis notas que queriam dizer Ordens Imperiais.
Mnester entrou e ergueu a mão. Imediatamente a terrível barulheira acalmou, transformandose em meros
soluços e gemidos abafados, porque, quando Mnester subia ao palco, era regra que ninguém podia fazer
ouvir o mais leve som, sob pena de morte imediata. Os germanos também pararam o toque, o afagar e os
encantamentos. As Ordens Imperiais deixaramnos como estátuas.
Mnester gritou:
Ele não está morto, Cidadãos. Longe disso. Os seus assassinos atacaramno e bateramlhe, deixandoo de
joelhos, sim! Mas ele não tardou a levantarse de novo, sim! As espadas nada podem contra o nosso
Divino César. Ferido e ensanguentado como estava, ele levantouse, sim! Levantou a augusta cabeça e
caminhou, sim! Com uma passada divina por entre as fileiras dos seus assassinos cobardes e perplexos. As
suas feridas sararam, um milagre! Ele está agora na Praça do Mercado, falando aos seus súbditos da
Plataforma Oratória em voz bem alta e eloquente.
Uma forte aclamação subiu no ar e os germanos embainharam as espadas e marcharam para fora do teatro.
A mentira atempada de Mnester (sugerida aliás por uma mensagem de Herodo Agrípa, Rei dos Judeus, o
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o único homem em Roma que manteve a calma nessa tarde fatídica) tinha salvo 60.000 vidas ou mais.
Mas a verdadeira notícia tinha entretanto chegado ao Palácio, onde causou a maior confusão. Alguns
velhos soldados pensaram que a oportunidade de saquear era boa demais para ser desperdiçada. Fingiriam
que andavam à procura dos assassinos. Todos os quartos do Palácio tinham uma maçaneta de ouro na
porta, valendo cada uma delas seis meses de soldo, bastante fáceis de cortar com uma espada afiada. Ouvi
os gritos de ”Mataios, mataios! Vingai César!” E escondime atrás de uma cortina. Dois soldados
entraram. Viram os meus pés por baixo da cortina.
Sai daí, assassino. Não vale a pena escondereste de nós. Eu saí e prostreime no chão.
Não mmmme mmmmmmmattem, senhores, disse eu.
Nnão ttttive nnada a ver cccccom isso!
Quem é este velho? perguntou um dos soldados que era novo no Palácio. Não parece perigoso.
O quê? Não o conheces? É o irmão inválido de Germânico. Um velhote decente. Não faz mal a ninguém.
Levantaivos, senhor. Não vos faremos mal. O nome deste soldado era Grato.
Fizeramme descer de novo a escada com eles até à sala de banquetes, onde os sargentos e cabos estavam
reunidos em conselho de guerra. Um jovem sargento estava em cima de uma mesa a agitar os braços e a
gritar:
A República que se dane! Um novo Imperador é a nossa única esperança. Qualquer Imperador, desde
que possamos convencer os germanos a aceitálo.
Incitatus, sugeriu alguém com uma gargalhada.
Sim, por Deus. Mais vale o velho rocinante do que ficarmos sem Imperador. Precisamos de alguém
imediatamente para manter os germanos sossegados. De outra forma, eles tornamse incontroláveis.
Os meus dois captores abriram caminho por entre a multidão, arrastandome atrás deles. Grato chamou:
Eh, Sargento, veja só o que temos aqui! Uma sorte, acho eu. É o velho Cláudio. Porque não o velho
Cláudio para Imperador? É o homem mais indicado para isso que temos em Roma, embora coxeie e
gagueje um bocado.
Seguiramse aclamações ruidosas, risos e gritos de Viva o Imperador Cláudio!. O sargento desculpouse:
Bom, senhor, todos pensávamos que tivésseis morrido. Mas sois o nosso homem, sem dúvida.
Levantemno no ar, rapazes, para que todos possam vêlo!
Dois cabos corpulentos pegaramme pelas pernas e puseramme aos ombros.
Viva o Imperador Cláudio!
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Ponhamme no chão! gritei furioso. Ponhamme no chão! Não quero ser Imperador. Recusome a ser
Imperador. Viva a República! Mas eles limitaramse a rir.
Essa é boa. Não quer ser Imperador, diz ele. Modesto, einh?
Dêemme uma espada, gritei. Prefiro matarme. Messalina veio a correr direita a nós.
Por mim, Cláudio, faz o que eles te pedem. Pelo nosso filho. Vamos todos ser chacinados se recusares.
Eles já mataram Cesónia. Pegaram na pequenita pelos pés e fizeramlhe saltar os miolos de encontro a
uma parede.
Sentirvoseis bem, senhor, quando vos habituardes, disse Grato sorrindo. A vida de Imperador não é
assim tão má, pois não?
Não protestei mais. De que servia lutar contra o Destino? Levaramme à pressa para o Grande Pátio,
cantando o fantasioso hino de esperança composto para a tomada de posse de Calígula: Germânico está
aqui de novo, para libertar a Cidade e o seu Povo. E que eu também tinha o sobrenome de Germânico,
Obrigaramme a pôr a coroa dourada de folhas de carvalho que fora de Calígula e que tiraram a um dos
saqueadores. Para não me desequilibrar, tive que me agarrar com força aos ombros dos cabos, A coroa
deslizavame constantemente para o lado. Sentiame um idiota chapado. Dizem que mais parecia um
criminoso a ser levado para a execução. Bandos de trombeteiros faziam ouvir a Saudação Imperial.
Os germanos vieram aos gritos em direcção a nós. Acabavam de ter a confirmação da morte de Calígula
por um senador, que veio ao seu encontro todo vestido de luto. Ficaram furiosos por terem sido enganados
e queriam voltar para o teatro, mas agora este estava vazio; por isso, ficaram sem saber o que fazer em
seguida. Não havia ninguém por ali em quem se vingarem, excepto a Guarda, e esta estava armada. A
Saudação Imperial fêlos tomar uma decisão. Precipitaramse em frente gritando: ”Hoch! Hoch! Viva o
Imperador Cláudio!”; e começaram a dedicar freneticamente as suas azagaias ao meu serviço e a
esforçaremse por atravessar a multidão dos guardas para me beijar os pés. Griteilhes que ficassem
quietos e eles obedeceram, prostrandose diante de mim. Fui levado várias vezes à volta do Pátio.
E que pensamentos ou recordações achais que me atravessavam o espírito nesta ocasião extraordinária?
Pensaria na profecia da Sibila, no presságio do filhote de lobo, no conselho de Pólio ou no sonho de
Briseis? No meu avô e na liberdade? No meu pai? Nos meus três predecessores imperiais, Augusto,
Tibério, Calígula, nas suas vidas e nas suas mortes? No grande perigo em que ainda me encontrava por
parte dos conspiradores, do Senado e dos batalhões de Guardas do Acampamento? Em Messalina e no
nosso filho ainda por nascer? Na minha avó Lívia e na minha promessa de a deificar se alguma vez me
tornasse Imperador?
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Em Póstumo e Germânico? Em Agripina e Nero? Em Camila? Não, nunca seríeis capazes de adivinhar o
que me passava pelo espírito. Mas eu vou ser franco e dizervos o que era, embora a confissão seja
vergonhosa. O que eu estava a pensar era:
Muito bem, eu sou Imperador, não sou? Que disparate! Mas, pelo menos, agora vou fazer as pessoas ler
os meus livros. Recitais públicos a audiências numerosas. E bons livros também, que representam trinta e
cinco anos de trabalho árduo. Não vai ser imerecido. Pólio costumava arranjar audiências atentas
oferecendo jantares dispendiosos. Ele era um historiador muito bom e o último dos romanos. A minha
História de Cartago está cheia de episódios divertidos. Tenho a certeza que lhes vai agradar.
Era isso que eu pensava. Pensava também nas oportunidades que teria como Imperador de consultar os
arquivos secretos e descobrir exactamente o que aconteceu numa altura ou noutra. Quantas histórias
distorcidas ainda faltava esclarecer! Que sorte miraculosa para um historiador! E como já deveis ter visto,
aproveitei plenamente as minhas oportunidades. Posso mesmo dizer que praticamente não utilizei o
privilégio do historiador maduro, de engendrar conversas das quais apenas conhece a essência.
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