Tese - Versão Final Entrega Secretaria UFF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 178

1

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE LITERATURA

LUCIANNE MICHELLE DE MENEZES

DIMENSÕES DA LEITURA E FIGURAÇÕES DO LEITOR NA NARRATIVA DE


EÇA E MACHADO

NITERÓI-RJ
2016
2

LUCIANNE MICHELLE DE MENEZES

DIMENSÕES DA LEITURA E FIGURAÇÕES DO LEITOR NA NARRATIVA DE


EÇA E MACHADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Doutora em Letras.

Orientadora:

Maria Elizabeth Chaves de Mello

NITERÓI-RJ
2016
3

M543 Menezes, Lucianne Michelle de.


Dimensões da leitura e figurações do leitor na narrativa de Eça e
Machado / Lucianne Michelle de Menezes. – 2016.
177 f.
Orientadora: Maria Elizabeth Chaves de Mello.
Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2016.
Bibliografia: f. 165-168.
1. Leitura. 2. Personagem literário. 3. Literatura. 4. Queiróz, Eça
de, 1845-1900. 5. Assis, Machado de, 1839-1908. I. Mello, Maria
Elizabeth Chaves de. II. Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras. III. Título.
4

LUCIANNE MICHELLE DE MENEZES

DIMENSÕES DA LEITURA E FIGURAÇÕES DO LEITOR NA NARRATIVA DE


EÇA E MACHADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Doutora em Letras.

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Maria Elizabeth Chaves de Mello – UFF


Orientadora

Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Sousa -UERJ

Profª Drª Maria Cristina Ribas-UERJ

Prof. Dr. José Luiz Jobim-UFF

Profª Drª Claudete Daflon-UFF

NITERÓI-RJ
2016
5

AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo apoio incondicional, especialmente Cristina e Thiago, cujo incentivo
vem desde a primeira viagem ao Rio, para a prova de seleção, há quatro anos.

À professora Beth Chaves, pela acolhida tão generosa e pela oportunidade de desenvolver
minhas leituras, sob sua supervisão amável e encorajadora.

Aos professores André Dias e Lúcia Helena (UFF), pelas aulas que expandiram ideias e
reafirmaram, para mim, como ler literatura.

Ao professor Carlos Reis, pelo aceite na Universidade de Coimbra, onde pude redescobrir
Eça, explorando o universo português. Também pelos vários livros, gentilmente cedidos, que
alargaram minha percepção.

À amiga-irmã, Alice Riberto cujos cuidados e companheirismo irrestrito fizeram dos meses,
vividos em Niterói, uma fase que inspira saudade. Destaco também, nesse período, o convívio
feliz com Sofia, Olívia e Ibsen.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão


da “bolsa sanduíche”, para período riquíssimo de estudos em Portugal.
6

[...] queria em prosa alguma coisa de cristalino, de


aveludado, de ondeante, de marmóreo, que só por
si, plasticamente, realizasse uma absoluta beleza
— e que expressionalmente, como verbo, tudo
pudesse traduzir, desde os mais fugidios tons de
luz até os mais sutis estados de alma...
(Eça de Queirós)
7

RESUMO

Este trabalho investiga como a construção de personagens leitoras, nas narrativas de Eça e
Machado, configura-se como um expediente de criação literária que elucida a composição dos
agentes ficcionais. Mediante as escolhas e modos pelos quais desempenham suas leituras, as
personagens revelam-se, pois sobressaem seus temperamentos, constituição moral,
preferências. Observam-se também, nos movimentos das personagens, diferentes acepções
para o ato de ler, considerando desde a leitura interpretativa de textos literários, como também
as leituras de mundo, de ambientes e até mesmo de comportamentos e expressões. A fim de
delimitar uma base teórica, foram destacados os elementos que compõem o foco de discussão:
leitura, personagem, compreensão do literário, mediante abordagens de Jouve, Iser, Eco, além
das contribuições de leitores críticos de Eça e Machado, como Reis e Bosi, respectivamente.
Na observação e análise da relação que as personagens mantêm com a leitura e do modo
como tal aspecto interfere no desenvolvimento das narrativas, destaca-se também a figura do
leitor real, como elemento central, cuja participação no desvendar das obras constitui-se
também como atividade de criação literária.
Palavras-chave: leitura, personagem, literatura.
8

ABSTRACT

This work investigates how the construction of reading characters, in the narratives
of Eça and Machado, is configured as a literary creation expedient that elucidates
the composition of the fictional agents. Through the choices and ways by which
they perform their readings, the characters reveal themselves, for their
temperaments, moral constitution and preferences stand out. There are also, in the
actions of the characters, different meanings for reading, considering from the
interpretative reading of literary texts, as well as the readings of the world, of
environments and even of behaviors and expressions. In order to delimit a
theoretical basis, elements that make up the discussion focus were highlighted:
reading, character, literary comprehension, using approaches by Jouve, Iser, Eco, as
well as the contributions of critical readers of Eça and Machado, such as Reis and
Bosi, respectively. In the observation and analysis of the relation that the characters
maintain with the reading and of how this aspect interferes in the development of
the narratives, the figure of the real reader is also emphasized, as central element,
whose participation in the unveiling of the works constitutes also as literary
creation activity.

Keywords: reading, character, literature.


9

RESUMEN

Este trabajo investiga cómo la construcción de personajes lectores, en las narrativas de Eça y
Machado, se configura como un expediente de creación literaria que elucida la composición
de los agentes ficcionales. Frente a las elecciones y modos por los cuales desempeñan sus
lecturas, los personajes se revelan, pues sobresalen sus temperamentos, constitución moral,
preferencias. Se observan también, en los movimientos de los personajes, distintas acepciones
para el acto de leer, considerando desde la lectura interpretativa de textos literarios, así como
las lecturas del mundo, de ambientes e incluso de comportamientos y expresiones. A fin de
delimitar una base teórica, se destacaron los elementos que componen el foco de discusión:
lectura, personaje, comprensión de lo literario, mediante abordajes de Jouve, Iser, Eco,
además de los aportes de lectores críticos de Eça y Machado, como Reis y Bosi,
respectivamente. En la observación y análisis de la relación que los personajes mantienen con
la lectura y del modo cómo tal aspecto interfiere en el desarrollo de las narrativas, se destaca
también la figura del lector real, como elemento central, cuya participación en el desvendar de
las obras se constituye también como actividad de creación literaria.
Palabras-llave: lectura, personaje, literatura.
10

SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................1

1. Construção da personagem e intervenções do leitor........................................6

1.1 Modos de criação da personagem.......................................................................6


1.2 A personagem como um efeito de leitura..........................................................24

2. Modos de ser, modos de ler ............................................................................35

3. Além da palavra escrita....................................................................................69

3.1 Releitura: ler e contestar ...................................................................................69


3.2 Leitura e transcendência....................................................................................84
3.4 Lendo olhares, expressões, comportamentos....................................................98

4. Leitura e criação literária...............................................................................118

4.1 A singularização do leitor: entre perfis e personagens....................................118


4.2 Leitor: coautor ................................................................................................138

Conclusão.............................................................................................................156

Referências...........................................................................................................165
1

 Introdução

A operação de ler é, sobretudo, uma atitude de percepção, que se desdobra em


amplas configurações. Uma observação mais apurada evidencia que, ao ler, o indivíduo
não apenas compreende os escritos à sua frente, mas, envolve-se com o objeto que é
alvo de sua leitura. O ato de ler articula recursos úteis à compreensão e se efetiva por
meio de um olhar entrecortado por várias “imagens” que compreendem o repertório
cultural, intelectual, além das vivências íntimas e sociais por que passa, continuamente,
todo leitor. Este se configura como um sujeito múltiplo, cuja pluralidade de aspectos
que o compõem – gênero, classe social, formação cultural e/ou profissional,
temperamento, gostos, habilidades – influenciará seus modos de leitura, seu
desempenho como leitor.

Considerando os amplos domínios do ler, este trabalho tem como base de


investigação a leitura literária e discute como se dá a inscrição de personagens leitoras
em narrativas de Eça e Queirós e Machado de Assis. As criações de ambos revelam que
eles foram, sobretudo, leitores da sociedade oitocentista, exercitando assim uma
observação crítica dos valores e costumes de sua época – e que podem conectar-se ao
presente, sob relações diversas. Essa leitura se estende à sua produção literária,
mediante a composição de cenas em que tal ato se estabelece e se repete, revelando
sempre aspectos significativos tanto para a compreensão de personagens em si mesmas
(traços particulares, maneiras distintas, papeis sociais) como também para a percepção
da ativa participação do “leitor empírico” - termo usado por Eco (1993) para referir-se
ao leitor real - na construção de sentidos para as obras.

Enfatiza-se, nesta pesquisa, como o exercício do ler converte-se em mecanismo


de criação literária, revelando a composição de personagens que comumente figuram,
em cenas narrativas, como leitores. Na observação investigativa da relação que os entes
ficcionais mantêm com a leitura e considerando as implicações disso na compreensão
das obras, destaca-se a participação crucial do leitor real, pois é nele que se processam
as associações, inferências e elaboração de sentidos a respeito dos textos.

No primeiro capítulo, são discutidos modos de construção da personagem,


apoiados em dados relativos à trajetória evolutiva da narrativa, quando esta passou a
2

enfocar o sujeito humano, em suas relações consigo próprio e na interação em


sociedade. A atribuição de nomes às personagens, por exemplo, destacou-se como um
recurso que chega ao século XIX, revelando-se como um eficiente dispositivo de
individualização e até mesmo, em certos casos, de caracterização dos agentes ficcionais.

Salienta-se também como a densidade referencial, que aproxima os seres da


ficção dos seres reais, se configura de forma distinta em Eça e Machado, pois, enquanto
aquele prima pela minúcia, que confere um “efeito de real” ao que se lê, esse último
explora as dubiedades e imprecisões, criando marcas de perfis psicológicos originais.
Logo, verifica-se que uma forma de conexão com o mundo extraficcional se dá pela
construção precisa e nítida de indivíduos, no caso das narrativas queirosianas, ou pela
complexidade de questões que as sinuosas personagens machadianas levantam e que se
coadunam com as experiências humanas.

Ainda no primeiro capítulo, relacionam-se os modos de construção dos agentes


ficcionais à ideia de que a personagem pode ser considerada como um efeito de leitura,
pois é no leitor que se opera o preenchimento das “lacunas” da obra, o decifrar do “não-
dito” do texto. Considera-se a elaboração mental da personagem, que vai ganhando
vida, à medida que o leitor reúne e confronta informações, indícios fornecidos pelo
texto. Embora não seja uma criação definitiva, pois pode sofrer alteração no avanço do
processo de leitura – que suscitará novos olhares sobre o texto – enfatiza-se a
contribuição do leitor na formulação bem particular do ente ficcional, em consonância
com o delineamento proposto na obra.

No segundo capítulo, considerando a associação entre os modos de ser e os


modos de ler, explora-se a correspondência entre o comportamento, o temperamento das
personagens e o seu desempenho como leitoras, observando a relação que mantêm com
a leitura. Analisam-se, portanto, personagens masculinas e femininas que se permitem
ser lidas através da maneira como leem na trama. Investigam-se também, através de
suas leituras, características acerca da sociedade que elas integram: comportamentos,
hábitos, tradições, mentalidades, disparidades e estereótipos sociais. A leitura, enquanto
um processo de compreensão apurada de textos, inclusive literários, é observada na
prática usual de várias personagens. Figuram como leitores, nessa perspectiva,
personagens do romance A Capital, dos contos No moinho e Um poeta lírico (obras de
Eça) e dos contos Singular ocorrência, A desejada das gentes e A senhora do Galvão
3

(textos de Machado). Verifica-se como as práticas de leitura da ficção esclarecem não


apenas a composição dos indivíduos ficcionais mas também a interferência desse
delineamento na construção do enredo e na identificação dos temas provocativos, ali
inscritos.

A leitura realizada pelas personagens é considerada também a partir de distintas


acepções, ou seja, ultrapassando a ideia regular que define a operação do ler como
decodificação, interpretação de signos gráficos e encadeamento lógico de segmentos
textuais. Assim, são exploradas, no terceiro capítulo, diferentes concepções, variadas
dimensões da leitura e sua relação com a atuação das personagens e com a participação
do leitor real, “reivindicada” a partir do modo como se inscrevem as temáticas, nos
textos.

Na acepção de releitura, o ato de ler é enfocado como uma contestação de


valores e de convenções consagradas, para assim realçar como são lançadas novas
possibilidades de entendimento e expansão de ideias, a partir do que se discute nas
obras. Tal modalidade de leitura se efetiva no romance O crime do padre Amaro (Eça),
no conto Adão e Eva e nos romances Esaú e Jacó e D. Casmurro (Machado). Nota-se
que tais textos oferecem, ao leitor real, possibilidades de reflexão, mediante a
observação dos questionamentos levantados pelos leitores ficcionais ou mesmo pelos
posicionamentos de quem narra.

Ressalta-se ainda, nesse mesmo capítulo, a leitura que transcende a palavra


escrita e se estende à interpretação de ambientes, ações, ou mesmo gestos, expressões e
olhares. São analisadas, nas narrativas, situações em que a leitura se atém a elementos
que não estão codificados linguisticamente, como um olhar, por exemplo. Verifica-se
como tais elementos convertem-se em escritura, sendo passíveis de serem lidos; assim,
ganham destaque os significados diversos a que eles remetem, uma vez que contêm
expressiva carga comunicativa. Figuram como leitores, nessa acepção, personagens de
A Capital, O crime do padre Amaro, A ilustre casa de Ramires, Um poeta lírico (textos
de Eça), além de Galeria póstuma, Esaú e Jacó, A senhora do Galvão, Singular
ocorrência e D. Casmurro (textos de Machado). As dimensões da leitura, que se
revelam em possibilidades variadas e estratégias distintas, vão possibilitar que figurem,
nos textos de Eça e Machado, perfis de leitores cuja composição e atuação contribuem
para o entendimento mais profundo das obras.
4

O delineamento do leitor se dá, nos textos de ambos os autores, constituído na


categoria de personagem, porém, em narrativas machadianas, particularmente, o leitor
empírico também é traçado, singularizado, à maneira de uma personagem. Tal
mecanismo de criação literária é abordado no quarto e último capítulo, em que se
analisa a atribuição de características bem específicas ao leitor real, inclusive as que são
relativas ao seu temperamento, configurando um processo de singularização desse
leitor. Verifica-se a suposição de reações de leitura que ele poderia manifestar (figuram
vários exemplos em Esaú e Jacó e D. Casmurro), destacando-se a interferência da
criação desses perfis de leitores na condução das narrativas. E essa ênfase ao receptor
conduz à reflexão de que, muito mais que observar e interpretar tramas e indivíduos da
ficção, a leitura literária se configura como recriação, como interação produtiva.

Ainda no quarto capítulo, com base nos romances Esaú e Jacó e A ilustre casa
de Ramires, enfatizam-se, respectivamente, as imprecisões nos relatos e as diferentes
versões para um mesmo fato, para demonstrar de que maneira é incitada a participação
do leitor real, na elucidação dos eventos inscritos nas obras. Como expõe Compagnon
(2012), “escritura e leitura coincidem: a leitura será uma escritura, da mesma forma que
a escritura era uma leitura” (p. 142). De outro modo: o processo criativo origina-se de
leituras amplas, a obra literária, por sua vez, pressupõe o ato de ler e este se constitui
também como um ato de criação, um “entendimento produtivo [...], a realização de um
novo potencial do texto, uma visão diferente dele” (EAGLETON, 2006, p. 109). A
leitura, portanto, revela-se como coautoria, uma vez que requer a intervenção do
receptor, na construção de sentidos.

No tocante aos textos literários discutidos neste trabalho, verifica-se que as


personagens que ali figuram, além de serem construídas mediante o exercício do ler,
desempenhado pelo leitor externo à obra, ainda definem-se, particularizam-se por meio
dos seus comportamentos como leitoras. A maneira como leem e suas preferências de
leitura constituem dados que favorecem o seu delineamento, colocando-as em
evidência, a partir de um movimento ativo de compreensão, orquestrado pelo leitor
empírico.

Nesta pesquisa, portanto, o ato de leitura é analisado com base em um


movimento duplo: para dentro da esfera textual, em que a composição de personagens
leitoras e de cenas de leitura funciona como elemento revelador da constituição desses
5

seres; e ainda, para além da realidade ficcional, uma vez que a leitura literária favorece
ao receptor o desenvolvimento, com certa independência, de uma pluralidade de
leituras.
6

1. Construção da personagem e intervenções do leitor

Explicações comem tempo e papel, demoram a ação


e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção!
(Machado de Assis)

1.1 Modos de criação da personagem

O florescimento do gênero romanesco marca o início de uma grande ruptura


com as tendências observadas nos gêneros literários que o precederam e a grande marca
de diferença é a fidelidade à experiência individual humana, narrada de modo bastante
espontâneo, justamente para conferir à leitura uma maior “sensação de veracidade”.
Para Watt (2007), as formas literárias anteriores seguiam convenções formais pré-
estabelecidas, além de conter no enredo motivos da história, da lenda ou da mitologia.
No romance, o enredo envolvia pessoas que, embora fictícias, eram específicas, em
circunstâncias também próximas daquelas observadas na realidade humana, muito
embora a crítica explicitasse sua predileção pelos clássicos, com temas e personagens
universais.

Lukács (2000), em análise a respeito da estrutura formal da épica e da tragédia,


afirma que o verso jamais proporcionará um efeito de trato humano e psicológico entre
as personagens, como acontece no texto em prosa. O autor também destaca uma
diferença significativa que marca o gênero épico: os homens ali retratados não diferem
qualitativamente entre si – “claro que há heróis e vilões, justos e criminosos, mas o
maior dos heróis ergue-se somente um palmo acima da multidão de seus pares, e as
palavras solenes dos mais sábios são ouvidas até mesmo pelos mais tolos” (LUKÁCS,
2000, p. 66). Assim, observa-se que no mundo épico não há uma construção da
personagem de modo a torná-la única, com características próprias, especificidades que
lhe confiram autenticidade; esta será uma característica encontrada no romance, a partir
do romantismo. Mesmo porque o objeto típico da epopeia não é um destino pessoal,
mas sim, o de uma comunidade. As aventuras épicas terão sua importância na medida
em que são relevantes à vida de um povo ou de uma classe. “O herói da epopeia nunca
é, a rigor, um indivíduo” (LUKÁCS, 2000). O ser humano representado enquanto
indivíduo é encontrado nas criações romanescas, que se voltam à interioridade, fazendo
emergir assim as diferenças entre os sujeitos, a unicidade de cada um – o romance cria e
desenvolve verdadeiras personalidades. Isto passa a ocorrer sobretudo nas obras
7

realistas, em que são enfocados aspectos como temperamento, moralidade, costumes e


as consequentes situações advindas da oscilação desses fatores.

Aguiar e Silva (1988) salienta que, na epopeia e na tragédia clássicas, o mito


greco-latino desempenha uma função primordial. O autor acrescenta ainda que esses
gêneros não estavam condizentes com uma sociedade que se tornava desmitificada e
passava a se orientar sob leis firmes, condicionando assim a atividade pública e privada
do ser humano; os temas próprios da épica, portanto, destoavam da atmosfera de uma
sociedade individualista. Tal concepção é semelhante à de Lukács (2000), pois este
afirma que o romance é uma forma representativa de uma época, já que suas categorias
estruturais com ela coincidem. Evidencia-se, portanto, que não mais era concebido,
diante do mundo burguês, um olhar absolutamente subjetivo, mítico, apoiado nas
diretrizes impostas pelas divindades; esse mundo não condiz com o momento sócio-
histórico em que o romance floresce. “Heróis da epopeia percorrem uma série variegada
de aventuras, mas que vão superá-las, tanto interna quanto externamente, isso nunca é
posto em dúvida; os deuses que presidem o mundo têm sempre de triunfar sobre os
demônios [...]” (LUKÁCS, 2000, p. 91). No universo romanesco, contudo, os
“demônios” parecem ser, comumente, criações do próprio indivíduo, ou seja, conflitos,
angústias e tensões que envolvem o seu pensamento e lhe tiram a serenidade. A
superação passa a ser consequência de um embate entre o sujeito e o seu próprio “eu”.

No século XIX, a ampliação do público leitor, mediante a intensa impressão de


livros, jornais e periódicos, além de um maior acesso à escolarização, tudo isso favorece
que a vigilância, com relação à leitura, vá aos poucos esvaecendo. Nas últimas décadas
do referido século, de acordo com Paiva (1999), vai-se engendrando uma laicização da
escola e do Estado, de modo que o discurso da censura se reorganiza e a Igreja, em vez
de simplesmente vetar, passa a arbitrar quais as boas e más leituras. Diante de um
cenário de evolução de costumes, desenvolvimento industrial da imprensa, além de
generalizada escolarização, não havia mais como sustentar a orientação de que as únicas
leituras necessárias, para um cristão, eram as do evangelho e da vida dos santos.
Condenar declaradamente o romance – gênero que se tornava bastante popular, pois
refletia a moderna sociedade burguesa individualista – não era uma atitude acertada e
eficaz, portanto, a estratégia passava a ser a aceitação do livro, com a ressalva de
distinguir aqueles “formadores de imaginação sadia, de coração e de consciência
cristãos ou, ao menos, inofensivos” (PAIVA, 1999, p. 417). A censura religiosa buscava
8

não mais rechaçar em absoluto as leituras romanescas, mas eleger aquelas de fundo
moral, engajando-se assim no moderno cenário repleto de formas impressas, “sob pena
de suicídio” (PAIVA, 1999, p. 418). Em um momento histórico marcado pelo
materialismo e pelas teorias científicas, a cultura não poderia mais se ordenar ao redor
apenas da crença religiosa, do dogma católico. Por isso, permitia-se a leitura, mas, era
imperativa a necessidade de se fazer uma triagem das obras, a fim de assegurar a
propagação da fé e a própria manutenção do poderio da Igreja.

Paiva (1999) destaca a atuação do frei alemão Sinzig (1875-1952), naturalizado


brasileiro, diretor da editora “Vozes de Petrópolis” e que escreveu o Através dos
romances: guia para as consciências (1915), por meio do qual se podia entrever o
discurso da censura católica à leitura, no Brasil. Para a pesquisadora, o ideal de proteção
à estabilidade da família, na verdade, mascarava a preocupação da sobrevivência da
própria Igreja como instituição de poder e influência, por isso, fazia-se necessário o
ataque aos livros que representavam uma “ameaça”: “Diva, de José de Alencar, é uma
rapariga cujas maneiras não devem ser imitadas. A carne, de Júlio Ribeiro, é um dos
romances mais obscenos que mancham a literatura brasileira” (SINZIG, p. 621 apud
PAIVA, p. 425). O naturalismo, tendência em voga no Brasil e que “recrutava” muitos
leitores, também era condenado enfaticamente:

Zola é o representante mais forte do naturalismo no romance, que não recua


de descrever o que há de mais baixo e animal no homem, pelo que é muito
prejudicial. [...] Flaubert, discípulo de Balzac, foi tão realista na descrição de
cenas ambíguas e imorais que seu romance Mme. Bovary foi impugnado
diante do tribunal. Seus livros não podem ser lidos por quem preza a moral
cristã. (SINZIG, p. 41, apud PAIVA, p. 425).

O alvo dessas exortações era o público feminino, que representava grande parte
dos consumidores de romances. Ao mesmo tempo, havia uma preocupação com o que
era lido pela mulher porque cabia a ela a responsabilidade de zelar pela moralidade da
família, mediante a educação dos filhos. Quanto mais a estrutura romanesca se
desenvolvia e abria margem à inserção de temas variados – e até ousados para a época –
mais as obras representavam um risco, uma afronta a valores morais solidificados.

E o próprio modo de retratar o ser humano transformava-se: a composição de


personagens revelava-as não mais como indivíduos destoantes da realidade ao redor,
não se constituíam como seres idealizados, nem tampouco se convertiam na gasta
fórmula que antagoniza heróis e vilões. Nos agentes ficcionais, portanto, vão
9

transparecendo características subjetivas – e por vezes contraditórias – que não


permitem enquadrá-los em definições exatas, pois cada um, comumente, apresenta
traços de personalidade bem peculiares, nos quais transparecem virtudes e falhas,
variando em maior ou menor grau. Há que se considerar também que a noção, acerca do
que é virtude e do que é falha, vai depender muito de quem avalia, como o faz e dos
critérios que lhe servem de base.

Convém, nesse sentido, expor as ressalvas feitas por Rosenfeld (1998) sobre o
fato de que a noção a respeito de um ser, construída por outro ser, será sempre
incompleta, fragmentada, afinal, “os seres são, por sua natureza, misteriosos,
inesperados.” (p. 56). Muitas vezes as ideias acerca de alguém têm origem em dados
superficiais, a exemplo de afirmações por ele proferidas, atos, breves informações
concedidas, a partir dos quais é elaborada uma caracterização, uma imagem ou mesmo
um juízo de valor sobre o indivíduo em questão. No tocante às narrativas, uma cena, um
comentário, um comportamento ou mesmo o "auxílio" do narrador, ao fazer uma
digressão ou avaliação de uma personagem, incita que se crie determinada impressão a
respeito dela. Mas, tal ideia não é definitiva, haverá, na leitura, sempre uma busca por
algo a se decifrar. Ao apresentar os fatos, dificilmente o narrador o fará de modo isento,
mas, ao contrário, deixará vestígios e enfocará aspectos que poderão influenciar o leitor
a acatar e aceitar, como se fossem suas, as formulações que na verdade vêm daquele que
conduz o fio narrativo.

Em criações literárias oitocentistas, a particularização do ente ficcional, com


suas contradições e incompletudes, tornou-se mais frequente e desenvolveu-se com
mais apuro, especialmente na segunda metade do século, quando as personagens não
mais eram translúcidas, mas prescindiam das intervenções do leitor, numa busca por
uma compreensão mais ampla. Rosenfeld (1998) afirma que o mistério dos seres,
produzindo condutas inesperadas, sempre esteve presente nas criações, basta lembrar as
personagens de Shakespeare, por exemplo; entretanto, tal mecanismo só foi
conscientemente explorado por certos escritores do século XIX.

Observa-se, na expansão do romance moderno, um crescente desenvolvimento


na construção da personagem, de modo que sua constituição psíquica vai sendo
aprofundada, problematizada. Tal artifício supera a simples caracterização e tem
implicações ao longo de todo o percurso narrativo. Os perfis ficcionais, portanto, vão-se
revelando gradativamente e, em alguns casos, como se percebe em criações
10

machadianas, permanecem dúbios, imprecisos. Cabe ao leitor o exercício não apenas de


compreensão, mas a verdadeira construção de sentidos e possibilidades, com base nos
atributos que vão sendo descortinados, muitas vezes de modo bastante sutil. E isto
quando não há uma engenhosa – e por isso mesmo discreta – manipulação do leitor, de
maneira que ele seja estimulado a partilhar dos raciocínios e impressões orquestrados
pelo narrador. É o que se nota, por exemplo, no romance D. Casmurro (1899), em que o
protagonista apresenta os fatos segundo sua perspectiva, ou mesmo em outras narrativas
machadianas em que, embora o narrador não atue diretamente na trama, ainda assim vai
engendrando ideias, na tentativa de convencimento do leitor.

De modo reverso, em certos textos queirosianos, a persuasão do leitor se dá de


forma mais incisiva, quase apelativa, como se observa em O crime do padre Amaro
(1880). De qualquer maneira, as estratégias de criação e particularização de personagens
estão totalmente relacionadas aos efeitos de sentidos infiltrados e pretendidos. E o
século XIX foi marcado pela inovação, no que se refere aos recursos empregados para
que os entes ficcionais fossem esculpidos como seres individualizados.

O uso de nomes próprios, na construção de personagens, marcava, segundo


Watt (2007), a expressão da particularidade dos seres retratados. Tal uso já se notava em
formas literárias mais antigas, porém, nestas, a escolha de nomes obedecia a uma norma
e, de certo modo, excluía qualquer sugestão de vida real e contemporânea; em geral não
eram atribuídos nome e sobrenome, apenas um deles, justamente para generalizar o
indivíduo. Para Aguiar e Silva (1988), o nome da personagem funciona como um
indício que expõe a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo
psicológico e/ou ideológico). Observa-se, por exemplo, em A Capital (1925), de Eça de
Queirós, uma personagem, cuja interação com o protagonista Artur se dá ao longo de
toda a narrativa, e que tem no nome uma referência ao ofício: João Meirinho. São raros
os momentos em que o prenome – João – é referido, em geral não aparece: “- Faze-me o
favor de me estimar, disse o meirinho enternecido [...]”. (QUEIRÓS, 1992, p. 205, grifo
meu). Ainda no mesmo romance, por refletir acerca do nome, a personagem Artur
idealiza uma mulher, às vésperas de conhecê-la:

[...] considerava D. Galateia como uma “beleza”. E por aquele nome literário,
pelo que sabia do seu amor por romances, do seu talento no piano, viera a
conceber uma mulher de olhos tristes e alma impressionável, sofrendo da
existência mesquinha da aldeia e desejando um amor. (QUEIRÓS, 1992, p.
127).
11

Ele esboça um perfil para a mulher e vai reunindo características com base em
algumas informações, que já possuía a seu respeito, mas também por atribuir, ao seu
nome, um ideal de beleza. É provável que tenha associado tal figura feminina à
personagem da mitologia grega, de mesmo nome, muito embora tenha mudado
drasticamente a referência, assim que a viu de fato: “atravessara o largo em chinelos,
com fitas verdes no cabelo, um cartucho de rebuçados na mão – e a sua conversa sobre
o leite da ama [...] e a canastra de marmelo que comprara, nesta tarde, revoltou Artur,
que a considerou uma vaca”. (QUEIRÓS, 1992, p. 127, grifo do autor). O aspecto físico
e o teor da conversa eram os critérios para a avaliação e enquadramento pejorativo da
personagem.

Observa-se, ainda, nessa relação entre nome e atributo físico, o contraste entre as
personagens Joãozinho Coutinho e Adrião – do conto No moinho (1902), de Eça.
Aquele que carrega um duplo diminutivo no nome é enfermo, vive acamado, aos
cuidados da esposa: “[...] e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de
Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde
rapaz fora sempre entrevado”. (QUEIRÓS, 1951, p. 17). Já Adrião parece carregar no
nome uma expressão de vivacidade e disposição, sugeridas pela forma aumentativa,
harmônica à descrição que ele possuía: “sua fama, que chegara até à vila, num vago de
legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa,
amado das fidalgas, impetuoso e brilhante [...]”. (QUEIRÓS, 1951, p. 18). Instaurava-
se, portanto, uma nítida assimetria entre as personagens que, inclusive, influenciará a
mudança de comportamento da esposa de Coutinho, atraída por uma imagem avessa à
figura masculina com quem convivia. O texto sugere a discrepância entre os homens,
exatamente pelo nome atribuído a cada um.

Convém expor o que salienta Reis (2015): “[...] normalmente as personagens


têm um nome próprio que funciona como dispositivo discursivo de figuração, às vezes
com sugestão comportamental” (p. 136). Acrescenta-se a isso o fato de que, nos casos
em que não é propriamente o nome da personagem que viabiliza tal processo, as
sugestões de imagem ou de modos de agir advêm das alcunhas, das referências à sua
vida profissional ou mesmo à sua situação social: “Desde as quatro horas da tarde, no
calor e no silêncio do domingo de junho, o Fidalgo da Torre, em chinelos [...]
trabalhava”. (QUEIRÓS, 2010, p. 11, grifo meu). Em vários momentos, na narrativa de
A ilustre casa de Ramires (1900), o nome da personagem é substituído por uma
12

referência social que a definia e é o adjetivo que passa a ter a função de nomear: “O
fidalgo arremessou a toalha, limpou pensativamente as unhas”. (QUEIRÓS, 2010, p.
101, grifo meu). A carga semântica dos nomes por vezes auxilia a composição dos
agentes ficcionais, revestindo-os de informações que sinalizam, para o leitor real,
elementos importantes que auxiliarão na compreensão da obra.

No romance D. Casmurro (1899), tem-se o exemplo de Bento Santiago ou


Bentinho, nome atribuído à personagem no período de sua juventude. E a alcunha de D.
Casmurro surge numa idade mais madura, em que tal nome parece expressar
exatamente as características que definem a personagem e permitem sua identificação,
ainda que com certo teor de ironia, como ele próprio demonstra na sua narração:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe
dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom
veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. [...] também não achei
melhor título para minha narração; se não tiver outro daqui até o fim do livro,
vai este mesmo. (ASSIS, 1995, p. 13)

Outra questão, colocada por Watt (2007), é que as personagens de fato se


individualizam quando estão situadas em um tempo e espaço específicos. É
característica do romance uma estrutura mais coesa, já que seu enredo se distingue da
maior parte da ficção produzida anteriormente por ter, nos fatos do passado, a causa das
ações do presente e, desse modo, vai-se revelando o desenvolvimento das personagens
com o passar do tempo. O contexto espacial também confere à narrativa uma ideia de
“transcrição da vida real”, através de um realismo formal que fornece ao leitor detalhes
das épocas e dos locais onde ocorrem as ações descritas. Observa-se também que essas
atribuições são tão específicas que podem até mesmo sugerir, por exemplo, uma
interação entre personagem e espaço, de modo a montar uma composição bastante
singular, como se nota neste exemplo ainda do romance D. Casmurro: “O resto é saber
se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada
naquela por efeito de algum caso incidente.” (ASSIS, 1995, p. 184) Há, neste caso, uma
tentativa de definição do perfil da personagem a partir de uma referência ao seu
comportamento no passado – associado à rua de Matacavalos, onde vivia na juventude –
e o seu comportamento mais adiante, já casada – quando residia na praia da Glória.
Tempo e espaço se unem na composição de registros que se relacionam com a
personalidade a ser “investigada”. E esse conjunto de caracteres bem específicos
13

aproxima os sujeitos fictícios – personagens – do universo dos sujeitos reais – os


leitores.

Para Vieira (2008), nomear a personagem bem como proceder à sua


caracterização realista – condizente com elementos do “mundo real” – compreendem
processos que intensificam a densidade referencial, de modo que é ativado um processo
de dissimulação da ficcionalidade da personagem, conferindo-lhe individualização e
verossimilhança. Nesse sentido, convém acrescentar um exemplo em que se podem
explorar os mecanismos observados na apresentação da personagem Maria da Piedade
(No moinho):

[...] era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um
tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e
doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a
gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo
vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua
costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes saía. (QUEIRÓS,
1951, p.17)

A personagem é logo de início retratada como uma distinta senhora cuja


conduta, considerando os padrões da época, era irrepreensível. Os adjetivos “recolhida”
e “séria” corroboram a impressão de haver uma plena adequação entre Piedade e o
comportamento feminino típico de uma mulher casada que vive em função do lar e da
família, conforme ditavam os preceitos de então. A densidade referencial se constrói
também pela constituição física em que os traços indicam atributos perfeitamente
condizentes com imagens femininas que podem ser encontradas na esfera extraficcional:
“loura, perfil fino, pele ebúrnea”. Por outro lado, o brilho do olhar, ao mesmo tempo
doce e sombrio, identifica-a como um ser uno, que contém alguma coisa que não foi
revelada – talvez o “mistério” a que alude Rosenfeld, como já referenciado – e que
instiga o leitor à busca por respostas. Estas lhe chegam, de certo modo, mais adiante,
quando há uma transformação na conduta da personagem: “Vieram as primeiras
revoltas. Tornou-se impaciente e áspera [...] Passava horas só, num mutismo à janela,
tendo sob seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma apaixonada.” (QUEIRÓS,
1951, p. 21). O próprio texto fornece elementos que justificam a mudança em Piedade: a
rotina tediosa e lúgubre ao lado do marido e dos filhos enfermos, a paixão pelo
romancista Adrião que vem lhe apresentar novas alternativas de vida. Há, portanto, um
certo ajuste entre os fatos e a composição da personagem, de maneira que, embora suas
14

atitudes possam causar alguma surpresa ao leitor, são fundamentadas nas referências
encontradas na narrativa, numa relação de causa e consequência.

Em Machado, porém, a busca por decifrar a personagem é tarefa que exige ainda
mais do receptor, pois a configuração sinuosa e as ambiguidades, que sugerem uma
relativização do caráter, são aspectos marcantes na edificação dos seres ficcionais,
especialmente no que se refere a perfis femininos. Observe-se o caso de Marocas, do
conto Singular ocorrência (1884):

Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome


familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de
meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na Rua do
Sacramento. Já então era esbelta e, seguramente, mais linda do que hoje;
modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido,
sem espavento, arrastava a muitos. (ASSIS, 2008, p.125,126).

Ao mesmo tempo em que apenas insinua qual era a profissão da personagem,


sem citá-la efetivamente – pois isto poderia causar constrangimento ao interlocutor
(neste caso, a personagem que ouve o relato, na trama) – o narrador também salienta as
virtudes dessa mulher: “modos sérios, linguagem limpa”. Cria-se assim uma incerteza
com relação à definição de Marocas ou admite-se que a contradição, a imprecisão e a
dubiedade são inerentes ao ser humano, afinal, este nunca se revela por inteiro, nem a si
mesmo, estando em processo contínuo de descoberta, de investigação de si próprio.

As características físicas da personagem também se destacam e atestam o fato de


ela despertar as atenções de muitos. Mas todo o conto transcorre numa tentativa, ao
menos aparente, de convencer o leitor de que Marocas afastou-se completamente da
rotina de vida que levava: “despediu todos os seus namorados, e creio que não perdeu
pouco; tinha alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade,
não querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse”. (ASSIS, 2008,
p.127).

Entretanto, à maneira de Capitu (D. Casmurro), a personagem vai instigar a


dúvida, quando lhe atribuem um envolvimento com outro homem. E o ponto de atenção
não é avaliar a sua atitude, seja nos moldes da cultura da época descrita, ou mesmo ao
sabor do que se observa hoje, a questão é perceber como as personagens machadianas se
edificam, inquietando o leitor, permitindo que sejam entrevistas, mas, nunca
inteiramente reveladas. Elas se mostram e se ocultam, num movimento que atrai a
atenção e suscita a formulação de hipóteses, porém, nunca afirmações taxativas.
15

Diferentemente das “mulheres de Eça” em que a “transgressão” é, de certo modo,


justificada pela estreiteza do universo feminino no século XIX, como também é
comumente atrelada ao desempenho que elas têm como leitoras. Em Machado, o que se
nota são comportamentos e perfis que se definem por si mesmos, contrariando
expectativas, principalmente pelos contrastes que revestem e particularizam o indivíduo
ali construído.

A configuração de personagens se dá a partir de dados da experiência real sem,


no entanto, repeti-los ou reafirmá-los tão somente. Por outro lado, é marcante o vínculo
existente entre os “habitantes” das narrativas ficcionais e os indivíduos que circulam no
mundo convencional. E tal vinculação ocorre exatamente porque se encontram, no texto
literário, artifícios de linguagem que conferem aos seres ficcionais um aspecto
dinâmico, vivo, de maneira a se criar uma sensação de realidade que retoma e, ao
mesmo tempo, transfigura o contexto extraliterário.

Por meio de mecanismos de caracterização e construção da personagem, vão-se


delineando os contornos que a erigem como um ente particular, com aspectos próprios e
bem definidos. Entretanto, essa atribuição de qualidades distintivas não limita o alcance
que pode vir a ter a personagem, no sentido de surpreender, desafiando possíveis
expectativas alimentadas no início da leitura de um romance, por exemplo. Comumente,
a entidade ficcional revela-se de maneira gradual, o que permite que lhe sejam
percebidas as contradições, as oscilações de temperamento ou mesmo de caráter. Tal
circunstância, por sua vez, a aproxima dos indivíduos reais, marcados tantas vezes pelo
desacordo entre suas emoções, opiniões, desejos ou crenças.

Observa-se, desse modo, que os mecanismos de elaboração e manipulação da


linguagem favorecem a construção de seres que se confundem com indivíduos reais, no
que diz respeito à complexidade e multiplicidade de questões e temáticas que as suas
existências podem revelar. Porém, é válido frisar que essa concepção de personagem,
enquanto entidade em torno da qual se revestem aspectos dignos de atenção e análise,
evidenciou-se em consonância com o desenvolvimento e a ascensão do gênero
romanesco. Candido (1989) afirma que, até o século XIX, as formas romanescas
encontravam-se num estado de “timidez” em que o trabalho estético não era priorizado
e a construção ficcional mais parecia um pretexto para a transmissão de valores morais
referentes a um dado momento histórico. A fórmula do romance era a edificação moral
infiltrada pelo divertimento.
16

Para Rosenfeld (1998), o período compreendido entre o século XVIII e o início


do século XX foi marcado por acentuar a tendência de se conceber as personagens de
dois modos principais:

1) como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados duma vez por


todas com certos traços que os caracterizam; 2) como seres complicados, que
não se esgotam nos traços característicos, mas têm certos poços profundos,
de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério. Deste ponto
de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século
XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem
simples, para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada.
(ROSENFELD, 1998, p. 60).

No século XIX, o romance se reconfigura e se desenvolve, em decorrência de


mudanças em sua estrutura, motivadas pela afirmação da burguesia como novo público
leitor e pela inserção de novas temáticas nos enredos. É nesse período que as
personagens também acabam por ganhar novos contornos e, sobretudo na segunda
metade dos oitocentos, articulam-se de modo a trazer a lume aspectos que envolvem as
relações do indivíduo no seu meio social e as repercussões disso na esfera íntima, além
dos conflitos internos advindos dos questionamentos do indivíduo para consigo.

Convém destacar a observação feita por Vieira (2008) quando aponta que, no
romance, como há um amplo espaço narrativo que favorece a caracterização e o
entrecruzamento das personagens, cria-se uma ilusão referencial, não comparável à
novela ou ao conto, por exemplo. E no caso dos romances realistas, esse “efeito
ficcional da realidade” (VIEIRA, 2008, p. 538) é ainda mais marcante. Essa acepção
dialoga com aquela proposta por Barthes (2004) que, ao analisar o realismo literário do
século XIX, precisamente através da obra de Flaubert, destaca o emprego de recursos
descritivos na narrativa e afirma que “há ruptura entre a verossimilhança antiga e o
realismo moderno; mas por isso mesmo também, nasce uma nova verossimilhança, que
é precisamente o realismo (entenda-se todo discurso que aceita enunciações só
creditadas pelo referente)”. (p. 189). Referindo-se ao romance Madame Bovary (1857),
Barthes (2004) salienta que os pormenores contidos nas descrições do texto não têm um
emprego aleatório, mas possuem uma finalidade estética. Cria-se um “efeito de real” (p.
190) quando uma cena, um objeto ou um detalhe são apresentados ao leitor sob
determinados artifícios que sugerem uma mescla com o mundo real, como se “a
exatidão do referente, superior ou indiferente a qualquer outra função, ordenasse e
justificasse sozinha, aparentemente, descrevê-lo” (p. 186). Ainda que certos móveis ou
17

utensílios de um cenário sejam úteis como indícios, por exemplo, de um padrão burguês
das personagens, observam-se, na literatura realista, muitas descrições que somente se
apresentam para sugerir esteticamente um efeito de real, inclusive no tocante à
pormenorização dos aspectos físicos dos indivíduos ali retratados.

No que se refere ao detalhamento dos espaços bem como dos traços físicos das
personagens, nota-se que tal aspecto foi duramente combatido por Machado de Assis,
na célebre crítica ao romance O primo Basílio (1878): “Porque a nova poética é isto, e
só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se
compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha” (ASSIS, 1994, p. 82). Para o
escritor brasileiro, naquele momento de sua trajetória literária, o desenvolvimento do
enredo deveria estar embasado nas motivações interiores das personagens, o que, por
sua vez, resultaria em ações coerentes com os modos de ser dos indivíduos que se
movimentam no enredo. Em outros termos, em vez da valorização do panorama exterior
como principal responsável pelo desencadear de fatos e comportamentos, estes
deveriam atrelar-se ao universo íntimo da personagem. É o que justifica a classificação
de Luísa como um títere, por deixar-se conduzir ora por Basílio, ora pela criada Juliana:
“Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo
outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência”. (ASSIS,
1994, p. 83).

Por outro lado, nas entrelinhas da crítica machadiana, vê-se uma preocupação
com os possíveis efeitos que a influência da criação realista/naturalista de Eça poderia
causar na literatura brasileira, uma vez que era eleita naquela ocasião, por Machado, a
obra O Guarani (1857), de Alencar, como referência literária no Brasil, além de textos
de Garret e Herculano, em Portugal. O próprio Machado acaba por descortinar que a sua
censura é muito mais de ordem moral que necessariamente atrelada a falhas de
construção de enredo e personagens, pois, ele declara que há no livro algo
“aproveitável”, desde que feitas as “devidas” ressalvas:

Digo isto no interesse do talento do Sr. Eça de Queirós, não no da doutrina


que lhe é adversa; porque a esta o que mais importa é que o Sr. Eça de
Queirós escreva outros livros como O Primo Basílio. Se tal suceder, o
Realismo na nossa língua será estrangulado no berço; e a arte pura,
apropriando-se do que ele contiver aproveitável (porque o há, quando se não
despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no ridículo), a arte pura,
digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias, d'O Monge de Cister, d'O
Arco de Sant' Ana e d'O Guarani. (ASSIS, 1994, p.86).
18

A arte “pura” seria, portanto, a que fosse desprovida de qualquer elemento que
“exalasse” sensualidade, erotização, pois estes, por si mesmos, não deveriam atrair a
atenção, deveriam estar sempre atrelados à trama, em perfeita consonância com os
perfis psicológicos traçados. Como observa Franchetti (2000), há uma “condenação da
sensualidade queirosiana” (p. 52), de modo que Machado faz uma direta correlação
entre ela e o acessório, o superficial. É como se as ações das personagens tivessem que
obrigatoriamente ser explicadas pelos seus caracteres psíquicos e/ou atributos morais,
quando o que ocorre, em textos de Eça, é a focalização de certos elementos, inclusive
físicos, sensuais, porque se revelam atrativos por si mesmos. “A arte de Eça encontra
nesse gosto pelo exterior, pela superfície, a sua modernidade, na medida em que se
liberta do compromisso com a introspecção, vivendo a profundidade da pele”.
(SANTIAGO, 1978, p. 58). Seja em descrições com um apelo à sensualidade ou
naquelas que detalham processos orgânicos, o ponto de atenção muitas vezes é o
detalhe, o atributo em si mesmo, desarticulado da ação.

Em romances de Machado, lançados posteriormente ao que fora alvo de sua


crítica, encontram-se personagens densas, profundas, mas que não obedecem a uma
lógica precisa de composição – mecanismo que parecia ter sido imposto ao romancista
português. Tais personagens não são dedutíveis por nenhum traço psicológico
previamente esboçado, ou, nas palavras do Conselheiro Aires (Esaú e Jacó, 1904):
“Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável” (ASSIS, 1999, p. 108, grifo
meu). A observação confirma justamente a habilidade do texto machadiano em deixar
margem para a conjectura, para um exercício de leitura que não se esgote, que tente
sondar as contradições, as indefinições do sujeito humano, representado no ambiente
ficcional. No conto Galeria póstuma (1883), por exemplo, acompanham-se,
gradativamente, revelações acerca do caráter de uma personagem que, intimamente,
contrariava sobremaneira o temperamento que manifestava em público, de modo que,
quando o seu sobrinho tem acesso aos seus escritos particulares, exclama: “estou lendo
um coração, livro inédito [...] Mas quem imaginaria nunca... Ora o tio Joaquim!”
(ASSIS, 2008, p. 129). Nota-se, portanto, a baixíssima previsibilidade do indivíduo
ficcional que, na narrativa de Machado, surpreende tanto o leitor real quanto as próprias
personagens, relacionadas entre si.

Atentando para a evolução da escrita machadiana, Rocha (2013) destaca que os


textos críticos acerca de O primo Basílio “não foram escritos com a pena da galhofa e a
19

tinta da melancolia do defunto autor, cuja certidão de batismo data de 1880. Em outras
palavras: o leitor de O primo Basílio foi o autor de Iaiá Garcia (1878) e não o criador
das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881).” (p. 109). Nesse sentido, compreende-
se que a criação machadiana, da década de 80, tornaria ultrapassados os critérios
estéticos e juízos de valor observados na censura ao texto de Eça.

O “novo” Machado vai desestabilizar certezas, provocar, sugerir, zombar, sem


qualquer fidelização a uma rígida coerência narrativa, tão duramente cobrada outrora,
diante do romance português. A coerência passa a ser uma construção que pressupõe
tanto a sinalização semântica proposta pelo texto, como a habilidade do leitor em
percebê-la, podendo ainda transcendê-la. Nesse sentido, vale criar, por exemplo, uma
personagem defunta que narra a própria trajetória, ou contos em que a dissimulação e a
vaidade dão o tom das relações sociais, desarticulando e subvertendo qualquer ordem
moral. Não há mais a pretensão à “arte pura” e a extraordinária habilidade do autor
brasileiro se revela exatamente por relativizar certezas, sentimentos, crenças, ideias.

A construção das personagens machadianas é um expediente fundamental na


observação de um processo evolutivo de sua criação. Rocha (2013) aponta que as
transformações não foram repentinas: “O ritmo machadiano foi lento. O primo Basílio
teria sido um elemento catalizador de potências textuais que Machado já exercitava aqui
e ali, embora de forma isolada e às vezes tímida.” (p. 13). Convém acrescentar a isso –
talvez não seja um risco supor – que algumas personagens da “primeira fase” como
Guiomar e Luís Alves (A mão e a luva, 1874) já trariam em si alguns aspectos de
adequação às conveniências e de dissimulação, mais tarde explorados em outras
personagens, a exemplo de Maria Olímpia (A senhora do Galvão, 1884) ou mesmo de
Cristiano e Sofia (Quincas Borba, 1891).

Voltando à observação trazida por Rocha (2013), nota-se que a leitura do


romance português teria propiciado que Machado redimensionasse os seus modos de
criação, permitindo-se aventurar por novos procedimentos narrativos, novas técnicas de
organização e manipulação da linguagem. Logicamente, como expõe o pesquisador, não
se trata de um fenômeno simples, como uma ordinária relação de causa e efeito, mas
compreende sim um processo complexo, razão de ser do escritor Machado de Assis.
Para além da censura ao modo de Eça tratar temas como o desejo erótico, o corpo e a
sensualidade, contrários ao rígido padrão moral da época, nota-se que o desconforto,
causado pela leitura de O primo Basílio, teria provocado o autor brasileiro a ousar,
20

inovar, reunindo expedientes de criação literária, outrora já manifestos sutilmente.


Vieram à tona novos escritos, novas elaborações de linguagem, reinventando e
aprimorando recursos narrativos, inclusive os que dizem respeito à construção de
personagens e até mesmo a aproximação destas com o leitor real, como será discutido
mais adiante, no quarto capítulo. O ponto destacado por Rocha (2013) é o de que:

O êxito de O crime do padre Amaro e de O primo Basílio não teria deixado o


brasileiro indiferente, representando um acicate poderoso para que o sempre
solícito Machadinho decidisse tudo arriscar, metamorfoseando-se no
Machado que se admira em todo o mundo. Não se trata de questão
“psicológica”, mas de insatisfação do autor com sua obra; dilema agravado
pelo aparecimento do jovem romancista português. (ROCHA, 2013, p. 12).

Nesse sentido, o Machado, leitor de Eça, acaba por aprimorar suas produções,
mas não por eleger a obra portuguesa como modelo de criação e sim por ver nas
ousadias queirosianas uma possível provocação à releitura da sua própria narrativa,
renovando assim os seus procedimentos de composição bem como o horizonte temático
dos seus textos. “[...] uma consequência imprevista da reação machadiana ao romance
de Eça foi o resgate da noção clássica de aemulatio, que o levou a desenvolver a poética
da emulação.” (ROCHA, 2013, p. 11). Tal expediente de criação configura-se como
uma leitura inventiva de um texto clássico, tradicional, de maneira a reorganizar práticas
retóricas, produzindo algo novo, transformado. Nesse contexto, destacam-se os modos
de construção das personagens machadianas, como criações ambíguas, oscilantes, que
pressupõem a colaboração do leitor para serem, pelo menos até certo ponto,
desvendadas. E se a leitura dos romances de Eça contribuiu para reconfiguração da
escrita machadiana, depreende-se que a composição de personagens, à maneira do autor
português, também requer atenta investigação.

Enquanto Machado desenvolve uma releitura bem-humorada e inovadora da


tradição literária, Eça dialoga com Flaubert, em um “processo de concentração formal,
característico da reescritura de Madame Bovary” (Rocha, 2013, p. 147). Em outros
termos, tanto o brasileiro quanto o português reinventam, recriam textos amplamente
conhecidos, estendendo-lhes os domínios, transformando as impressões, a respeito das
obras lidas, em novas produções. Santiago (1978) vai mais longe, nesse sentido e afirma
que, apesar da acusação de plágio que por vezes rondou o autor português, aclara-se
“não a sua dívida para com Flaubert, mas o enriquecimento que ele trouxe para o
romance de Emma Bovary; se não enriquecimento, pelo menos como Madame Bovary
se apresenta mais pobre diante da variedade de O Primo Basílio”. (p. 52).
21

No tocante à construção de personagens, nota-se que tanto em Luísa quanto


em Emma, o elemento motivador da “transgressão” é a leitura de romances, o que
conduz à discussão acerca da “nociva influência” do gênero às senhoras de então, uma
vez que a obra moralizante é que era bem recebida socialmente. Abre margem ainda a
considerar o estreito alcance da leitura feminina que tomava personagens da ficção
como modelos de ação. De qualquer modo, apesar de a base da conduta ser a mesma em
cada uma das personagens em questão, ainda assim a condução dos comportamentos se
diferencia, concentrando aspectos específicos e significativos, o que corrobora a ideia
de reescritura, remodelagem inventiva.
Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o interesse
da literatura não vêm tanto de uma originalidade do modelo, do arcabouço
abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da transgressão que se
cria a partir de um novo uso do modelo pedido de empréstimo à cultura
dominante. Assim, a obra de arte se organiza a partir de uma meditação
silenciosa e traiçoeira por parte do artista que surpreende o original nas suas
limitações, desarticula-o e rearticula-o consoante a sua visão segunda e
meditada da temática apresentada em primeira mão na metrópole .
(SANTIAGO, 1978, p. 53).

Essa desarticulação transcendente implica a admissão de que sempre haverá


semelhanças entre as obras, especialmente no que diz respeito ao comportamento das
personagens e que tais aproximações é que irão marcar o ponto de partida para as
inovações. Porém, estas são significativas quando se considera o âmbito global do
romance e não as minúcias que porventura podem parecer a marca de diferença. Assim,
certas atitudes desempenhadas por Emma e Luísa – e até mesmo por Amélia (O crime
do padre Amaro, 1880), cuja atuação também se deve ao seu comportamento como
leitora – são ações, de certo modo, esperadas, previstas; a inovação, portanto, se dá
numa dimensão mais ampla, ou seja, na totalidade do universo ficcional construído.
Considerando os modos de construção da personagem realista, Reis (2015) salienta que
ela é, normalmente, caracterizada com acentuada nitidez, revelando uma coerência e
uma previsibilidade que a lógica do romance impõe, nesse período, de maneira a abrir
pouco espaço ao inusitado – a menos que este, de algum modo, fosse também previsto.

Machado, entretanto, surpreende e, nesse sentido, se distancia da estética


realista, já que o inusitado, nos seus textos, comumente vem afrontar as expectativas do
leitor. Como o foco em questão são os modos de criação de personagens, observa-se
que usualmente os indivíduos, inscritos na sua ficção, contrariam o que porventura se
esperava deles, ou ainda, em outras situações, simplesmente não há como prever quais
22

as atitudes e reações desses seres, dada a sua complexidade e a dubiedade de sua


configuração.

Por outro lado, convém trazer a lume uma observação feita por Reis (2015),
quando elucida que, apesar de a personagem realista de Eça estar bem demarcada,
inclusive por seus atributos físicos, podem surgir diferentes olhares, oriundos da própria
ficção, que favorecem novas perspectivas acerca de uma mesma personagem. Isto
ocorre, por exemplo, no modo como D. Felicidade (O primo Basílio) reage diante da
calva do conselheiro Acácio, pois, enquanto para o leitor em geral seria apenas uma
característica banal, as reações daquela senhora, ao observar tal peculiaridade, sugerem
que um mesmo dado pode parecer corriqueiro a alguns e extremamente relevante a
outros. “[...] mesmo que a personagem pareça aperreada pelas suas características
físicas, há mais vida para além daqueles atributos, como o sugerem Dona Felicidade e,
com ela, as Donas Felicidades da vida e das leituras que nela se fazem.” (REIS, 2015, p.
83). Nesse sentido, percebe-se que mesmo a formatação mais exata de uma personagem
pode abrir margem a leituras variadas, de maneira que a ênfase pode recair em um
determinado aspecto ou em outro, iluminando diferentes ângulos de observação e
demonstrando que os pontos que chamam a atenção do leitor também se diversificam.
Ou ainda, como adverte Manguel (2007): “algo de revelador sobre a natureza criativa do
ato de ler está presente no fato de que um leitor pode se desesperar e outro rir
exatamente na mesma página” (p. 113). Diferentes reações de leitura advêm, muitas
vezes, das configurações observadas nos modos de construção da personagem.

Considerando a obra machadiana, percebe-se que indivíduos ficcionais não


apresentam os contornos precisos, bem definidos, se os confrontarmos aos “moldes”
realistas. Eles são na verdade mais sinuosos, revelam-se gradativa e sutilmente,
deixando sempre algo em suspenso, como se fossem oferecidos fragmentos desses seres
para que, no percurso da leitura, venham a ser reunidos, relacionados, no intuito de se
buscar uma compreensão mais ampla tanto dessas personagens em si como também do
universo em que elas figuram.

Carneiro (2015) destaca a atualidade da criação de Machado, a ponto de


distanciá-lo do século XIX, situando-o para além do modernismo do século XX. Para o
pesquisador, os textos machadianos não se afinam com os modernos porque estes se
empenharam numa luta entre opostos, ou seja, no duelo novidade versus tradição. A
ideia de combate, seja no campo estético ou ideológico, não combina com o estilo
23

“escorregadio” de Machado, em que se destaca o exercício de convívio entre opostos


que se relacionam em tensão. Desse modo, “a obra de Machado, embora possa ser lida
numa aproximação com os cânones modernistas, está mais afinada com o que veio nas
décadas de 80-90 e nos primeiros anos do século XXI.” (CARNEIRO, 2015, p. 4).

Ao problematizar de forma irônica e bem-humorada as relações sociais e as


possibilidades de linguagem, a obra de Machado atualiza-se, favorecendo assim um
convite a leituras mais abrangentes, em que o leitor interroga não apenas o texto mas a
si mesmo. E para além disso, ele vê figuradas personagens que instigam, pois ocultam-
se, traduzindo-se assim num convite à construção de sentidos.

Nas narrativas de Eça, o delineamento de personagens se dá de modo mais


preciso, muito embora isto não inviabilize o alargamento das possibilidades de leitura
para as quais tais seres podem sinalizar, sobretudo quando se revelam por meio de seu
desempenho como leitores, em cenas diversas. Em textos machadianos, por sua vez, há
uma relativização do próprio fazer literário, não afeito a doutrinas nem a fixidez de
regras, possibilitando assim a intervenção do leitor, no exercício de busca pelo
desvendar de ideias para as quais o texto desperta. Em ambos os casos, o que se nota é
exatamente a atuação do leitor, erigindo a personagem como um efeito da operação
ativa e dinâmica do ler, como se discute no tópico a seguir.
24

1.2 A personagem como um efeito de leitura

Iser (1979), revitalizando o conceito de Ingarden, trata dos “vazios” (p. 91) do
texto ficcional que se oferecem para a ocupação pelo leitor, em um processo de
interação que culmina em uma atividade de comunicação, marcada pela construção de
sentidos. Enquanto para Ingarden o preenchimento dos espaços de indeterminação do
texto, por meio do ato de leitura, diz respeito tão somente à atualização de dados
potencialmente inscritos no texto – e por isso mesmo previamente lançados em uma
perspectiva unidirecional – para Iser (1979), há entre o texto e o leitor uma assimetria
(p. 89) que vai justamente permitir variadas possibilidades de comunicação.

Ao se deparar com o não-dito do texto, o leitor é convidado a uma atividade de


coparticipação e esta inclui o (re)conhecimento da personagem ficcional que se
configura, se constitui como imagem, a partir de um efeito de leitura. Informações não
explícitas, acerca do ser apresentado e inscrito na obra, compreendem um estímulo ao
leitor para projetar ideias e assim ir preenchendo as “lacunas”, valendo-se tanto do que a
linguagem da obra oferece quanto do que a sua imaginação compõe, com base no que
foi lido.

O processo de comunicação se realiza não através de um código, mas sim


através da dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala. O que se
cala impulsiona o ato de constituição, ao mesmo tempo que este estímulo
para a produtividade é controlado pelo que foi dito, que muda, de sua parte,
quando se revela o que fora calado. (ISER, 1979, p. 90).

Considerando a construção da personagem, pode-se observar que os dados


fornecidos pelo texto – descrições, características, informações acerca de temperamento
e conduta – incitam o leitor da obra a reunir ideias, em um constante exercício de
encadeamento e concatenação, de maneira a selecionar as possibilidades de sentido mais
coerentes e assim criar a sua ideia acerca do ser ficcional. Tal ideia pode, logicamente,
ser reformulada no correr da leitura, quando novos dados se apresentam e contribuem
para reforçar impressões já percebidas ou para contrariar e surpreender expectativas
projetadas.

Jauss (1979) distingue três reações que a leitura de uma obra literária pode
suscitar: a transmissão de valores sociais dominantes, de modo a difundi-los, reforçá-
los; a legitimação de novos valores, apresentados de modo a promover uma evolução
25

nas mentalidades – embora muitas vezes sigam os moldes de uma determinada classe
social – e, finalmente, a ruptura com valores tradicionais, renovando o horizonte de
expectativas do público.

Uma produção literária, ao ser publicada, depara-se com preceitos sociais,


culturais, padrões estéticos e linguísticos instituídos e que correspondem a uma
determinada época. Tais dados constituem o conhecimento prévio de quem lê, o que
pode condicionar a recepção das obras. Estas têm maior ou menor relevância na
imediata proporção do impacto que causam por subverter o “horizonte de expectativas”
dos leitores, inovando e contrariando os pressupostos socioculturais dominantes. Assim,
segundo Jauss (1994), uma produção literária se particulariza quando não se limita a
adequar-se a um padrão pré-estabelecido, pois este se caracteriza por “não exigir
nenhuma mudança de horizonte, mas simplesmente atender a expectativas que
delineiam uma tendência na medida em que satisfaz a demanda pela produção do belo
usual.” (JAUSS, 1994, p. 32). A ficção de Eça de Queirós e Machado de Assis desafiou
as expectativas projetadas pelos leitores do século XIX, ao apresentar temas que
subvertem códigos de conduta e normas sociais impostas, incitando a reinterpretação de
valores e comportamentos inerentes a certos grupos sociais.

Posicionar-se diante do que se lê é uma reação de leitura que revela tanto as


preferências do leitor diante de temas e formas textuais, como também as implicações
de ordem cultural e social que direcionam seu olhar sobre o que é lido. Assim como há
quem leia um texto literário e perceba o teor de criticidade e a vasta profundidade com
que podem ser tratados aspectos relativos ao ser humano, seja na perspectiva de suas
relações sociais ou no seu universo interior, há também quem, diante do mesmo texto,
manifeste indiferença ou mesmo uma reação absolutamente inesperada. De qualquer
modo, é no leitor que se vai processar a compreensão de cada obra e, especialmente no
que se refere à configuração da personagem, é ele quem irá reunir dados que lhe
pareçam relevantes e encadeá-los a ponto de se criar uma imagem, uma ideia, mesmo
não definitiva, acerca do ente ficcional e os desdobramentos de sua atuação na trama
narrada.

É válido, nesse sentido, fazer uma ressalva: o fato de o leitor contribuir na


construção da personagem, não o faz defini-la de modo decisivo, mesmo porque o
próprio exercício do ler já demanda um constante redirecionamento do olhar sobre o
26

texto, de maneira a que se tenha, ao longo do contato com a obra, transformação ou


alargamento de expectativas e pontos de vista. Por outro lado, o fato de não se
esgotarem as possibilidades de significar a personagem também não remete à ideia de
que tal operação seja feita indefinidamente ou ainda sem critério que assegure certa
coerência com os segmentos textuais. “O léxico selecionado e a sua disposição
sintagmática impedem a aleatoriedade interpretativa da personagem romanesca, ou seja,
que a sua reconstrução pelo leitor resulte num objeto infinitamente variável” (VIEIRA,
2008, p. 34).
Ainda a respeito do exercício do ler e de suas implicações na construção da
personagem, Reis (2015) argumenta que o leitor preenche os pontos de indeterminação
do texto, de maneira a constituir uma imagem do ente ficcional “por sua conta e risco,
mas não de forma aleatória” (p. 81). Os indícios que avultam nas sequências textuais,
voltadas à personagem, bem como certa coerência entre o seu temperamento e suas
atitudes impedem que as ideias do leitor a seu respeito sejam fortuitas. Logicamente, o
comportamento da personagem pode vir a surpreender, revelando-se bastante diverso
daquele imaginado pelo leitor, porém, mesmo diante de uma possível discrepância entre
perfil e conduta, o delineamento da personagem, feito por quem lê, não ocorre sem se
considerar e relacionar os atributos e dados colhidos no texto, acerca do ser ficcional.

Ao ser construída, seja a partir da criação autoral ou mesmo mediante a


reconstrução empreendida pelo leitor, uma personagem comumente manifesta aspectos
que a conectam ao mundo extratextual, de maneira que se possa notar, inclusive, quais
elementos teriam sido selecionados do “universo real” para a sua caracterização.

Enquanto que as personagens particulares e eventos que constituem essas


narrativas ficcionais [realistas] geralmente são inventadas, assumimos que as
leis físicas existentes em tais ficções são compartilhadas com as leis do
universo, e que os contextos sociais e realidades históricas a que aludem
também serão retratados com precisão (pelo menos dentro de um certo grau
de tolerância). Quanto mais a ficção se afasta dessas condições, tenderemos
menos a pensar nela como “realista” neste sentido. (SMITH, 2012, p. 129).

Essa proximidade entre o contexto extraficcional e a esfera em que se


movimentam as personagens, no que diz respeito ao partilhar das mesmas leis físicas,
pode atrair o leitor real, aproximando-o dos indivíduos da ficção. Isto ocorre porque ele
pode reconhecer afinidades em circunstâncias vividas por ele mesmo e lidas nas páginas
da obra, ou ainda porque se compraz no exercício imaginativo de conceber alguém
numa experiência próxima do real e ao mesmo tempo curiosa, impactante, eufórica,
27

sombria, enfim, de algum modo convidativa, ainda que seja pela forma como tal
situação foi descrita, apresentada.

Entretanto, a ficcionalidade se configura menos por estabelecer uma conexão


direta com a realidade que por envolvê-la em um processo de ressignificação. “Mesmo
quando o personagem é concebido de tal forma que é capaz de simular a sua realidade,
esta não é um fim em si mesmo, mas um signo. O emprego da realidade simulada como
um signo não se esgota na vontade de puramente descrever a realidade conhecida.”
(ISER, 1979, p. 104). É nesse sentido que o teórico destaca a função comunicativa que
tem o texto ficcional, uma vez que, sem estar imbuído da função de espelhar uma dada
realidade, ele na verdade oferece mecanismos de inserção no universo que simula. Este
pode, inclusive, transcender a realidade conhecida, pois, é perfeitamente possível que,
no ato de leitura, surjam reações e reformulações de ideias que acabam por confrontar o
que está dito, de maneira que o não-dito, enquanto uma formulação do leitor, adquira
vida, constituindo-se como um modo de representação.

Tal raciocínio traz a lume a ideia de que a construção da personagem como um


efeito de leitura congrega tanto as informações propostas pela estrutura textual como
também aquelas provenientes do repertório de conhecimentos e ideias que o leitor traz
consigo. A personagem, portanto, vai-se configurando mediante a fusão dos apelos
textuais e da habilidade de representação desenvolvida pelo leitor. Este pode, inclusive,
expandir e reorientar a sua compreensão acerca daquele ser, por meio do exercício
imaginativo que consiste não apenas em preencher os vazios do texto, mas também em
estabelecer conexões entre os seus segmentos, por vezes aparentemente fragmentados.

Iser (1979) destaca a marcante diferença que se nota no uso da linguagem em


um texto expositivo e no ficcional, apontando naquele a conectabilidade das partes,
regulada de modo pragmático, como também um emprego linguístico habitual. Já na
ficção, a conexão dos segmentos textuais é realizada de modo a desafiar os padrões
usuais do leitor, criando assim “vazios” que vão exatamente abrir espaço aos atos de
projeção do receptor.

Com base nessas constatações, observa-se que, pensar o processo criativo,


decorrente da leitura literária, viabiliza duas assertivas: primeiramente, a confirmação
da potencialidade comunicativa do texto literário, já que cabe ao leitor “finalizá-lo”,
orquestrando a concatenação de esquemas textuais e suas respectivas ideias e, por fim, a
percepção das variadas possibilidades de construção de sentido, favorecida pelas
28

diferentes combinações de partes do texto, o que implicará uma atitude seletiva por
parte do leitor. Desse modo, é válido destacar que, ao reformular para si o traçado
textual que lhe foi oferecido, o leitor seleciona, com base nos seus saberes, habilidades e
estratégias, as opções de sentido que lhe pareçam mais propícias, o que constitui um
processo de representação criativa. Nesse sentido, pode-se perfeitamente pensar a
construção da personagem ficcional como um efeito do exercício de leitura que, ao ser
desempenhado, exige tanto a associação de ideias como o encadeamento das partes
textuais.

Sobre esse aspecto é válido apresentar a proposição de Iser (1979) quando este
enfatiza a atuação do leitor, equilibrando-a entre a plena liberdade de associação de
significados e a função comunicativa proveniente da própria linguagem literária, que
lança possibilidades de sentido. Desse modo, observa-se que há um horizonte implícito
de expectativas – leitor implícito – proposto pela obra e que se mantém o mesmo, já que
o texto comumente conserva-se sem alterações significativas; e há também os fatores
extraliterários – leitor explícito – condicionando modos de recepção, que variam de
acordo com as vivências pessoais e os códigos sociais de uma época. Todos esses
contribuem para a atribuição de ideias à obra, uma vez que poderão dialogar com a
produção literária. A concretização do sentido, portanto, desenvolve-se a partir desses
dois planos relacionados entre si: a elaboração textual que por si mesma já fornece
dados e informações, como também o contexto sociocultural em que a obra foi
produzida e recebida. Em ambas as abordagens, destaca-se a figura do leitor como
elemento preponderante nas construções de significado.

A produção literária, por revestir-se de um amplo potencial metafórico, permite-


se ser lida como uma alegoria, evocando elementos externos à matéria textual. O teor
simbólico abre margem a diferentes significados, relacionados a informações obtidas
em leituras diversas. Os recursos linguísticos, que favorecem um efeito estético, podem
ser decodificados em associação com aspectos distintos; entretanto, convém esclarecer
que o texto possui certa “autoridade” e esta deve ser respeitada, de modo a não se
confundir a liberdade de atuação do leitor com uma total incoerência com relação à
atribuição de sentidos ao texto.

A respeito do envolvimento do leitor na construção da personagem, Vieira


(2008) esclarece que a competência cultural o influenciará a estabelecer relações entre o
29

que lhe é apresentado na obra e o seu universo de referências. A distinção linguística


entre personagens femininas e masculinas, por exemplo, vai depender não apenas dos
designadores e demais descrições empregados, mas, fundamentalmente, daquilo que é
verossímil, considerando como se constitui, em geral, um homem e uma mulher. São
ainda acrescidos a essas caracterizações outros elementos que individualizam o ente
ficcional. Nesse sentido, é trazido o conceito de “figurativização” como um
procedimento de construção que permite ao leitor identificar uma personagem como
uma figura individualizada, ou de outro modo: “a figurativização isola-a de um conjunto
caótico de dados contextuais para a fazer sobressair aos olhos do leitor” (VIEIRA, 2008,
p. 524). Tal conceito dialoga com aquele apresentado por Reis (2015) que define a
“figuração” como um “processo ou um conjunto de processos constitutivos de entidades
ficcionais de feição antropomórfica, conduzindo à individualização de personagens em
universos específicos, com os quais essas personagens interagem”. (p.121,122).

A composição da personagem, portanto, comumente pressupõe a ativação de


referências que a relacionem a um contexto verossímil, ou seja, em consonância com o
que se espera designar como atributo humano. Para além disso, nota-se que há também
certos dados referenciais a serem considerados mas que não se fixam de modo redutor,
pois sofrem as influências dos panoramas culturais e históricos. Deste modo, um dado
comportamental relativo à sociedade oitocentista, por exemplo, possui aspectos bem
específicos que podem não corresponder a outros contextos de criação. É válido
sublinhar também o fato de a personagem constituir-se como ser ficcional e, como tal,
sua referencialidade passa a ser um efeito de leitura ou de percepção já que, embora
possa apresentar marcantes conexões com figuras históricas ou tipos sociais, ainda
assim constitui-se como elemento da criação artística, literária.

Smith (2012) discorre acerca da dualidade que possui a personagem, quando


pensada do ponto de vista de quem a assiste ou lê. De um lado, vê-se que essas “pessoas
virtuais” (p. 132) assemelham-se a pessoas reais e, portanto, pode-se falar sobre elas ou
discutir sobre as questões que as envolvem. De outro lado, os leitores têm consciência
do estado configuracional da personagem – o seu “estado desenhado” (p. 132) – pois ela
compreende um elemento de representação. Essa dualidade baseia-se no
reconhecimento da qualidade da atenção humana a objetos e fatos, que varia em
diferentes graus, desde uma consciência periférica até uma completa atenção. Ou seja,
alguém pode se dedicar a uma tarefa doméstica de forma “automática” e ao mesmo
30

tempo divertir-se com o som de uma música, estando também atento aos ruídos que
porventura venham de outro cômodo da casa. Nesse sentido, quando se retém a atenção
a uma personagem literária – por meio de um processo ativo de leitura – é possível
envolver-se com seus conflitos e questões sem que se perca a consciência de que se trata
de um artefato.

Podemos falar livremente de personagens fictícias como se literalmente


habitassem no nosso mundo, mas ao fazê-lo, não perdemos de vista o seu
estado inventado. Longe de sugerir ingenuidade, este tipo de conversa revela
a facilidade, sofisticação e naturalidade com que lidamos com personagens
fictícias. (SMITH, 2012, p. 146).

Assim, é o leitor que reconhece o aspecto dual da personagem, ao notar que ela
se assemelha a um indivíduo real, sem ignorar o fato de que ela também é produto de
uma construção, de uma elaboração de linguagem. Nessa condição de artefato, a
personagem abre margem a efeitos de sentido que são produzidos pelo leitor, a partir do
modo como este a concebe e das associações que faz entre esse indivíduo “virtual” e o
universo ficcional em que está inserido. Para além disso, verifica-se também que o
indivíduo ficcional, a partir do leitor, também poderá criar conexões de significado com
a esfera real de existência.

Quando transcende a ficção, a personagem não invoca para si um estatuto de


verdade ou de representação fidedigna de um indivíduo real. A transcendência pode
ocorrer sob outros prismas, como aqueles elencados por Reis (2015), ao tratar de
situações em que a personagem se projeta para além das fronteiras da ficção, o que se
observa, por exemplo, nas situações em que se alude a um indivíduo virtual,
estabelecendo uma correspondência entre ele e um indivíduo real, por meio da criação
de um adjetivo que faz alusão ao ser ficcional – “quixotesco”, “acaciano”. Há ainda a
interação entre uma obra e o repertório cultural do leitor, de maneira a permitir a
transcendência da personagem, que passa a figurar não apenas no ambiente ficcional,
mas acaba também por relacionar-se às referências e saberes de quem lê:

[...] a especificação de elementos de diferenciação em que se percebem


componentes de ordem psicológica, social e cultural, bem como
potencialidades acionais (a desenvolver numa eventual intriga romanesca)
dão às personagens o impulso para atravessarem as fronteiras da ficção.
Noutros termos: elas significam alguma coisa para o leitor, porque a
figuração impõe a dinâmica transficcional que leva a reconhecer aqueles
componentes psicossociais como fazendo parte do mundo do leitor [...].
(REIS, 2015, p. 29).
31

A habilidade de atualizar um texto, através da leitura, é uma operação que,


conforme expõe Jauss (1979), redimensiona a questão da historicidade literária. Esta
sempre foi alvo de questionamentos porque a literatura era estudada apenas do ponto de
vista histórico, muitas vezes como mero reflexo de uma época, sem qualquer atenção à
sua natureza artística – situação infelizmente ainda muito comum, ao se observar alguns
livros didáticos. A análise da literatura também já foi marcada pelo foco nas elaborações
estéticas (por meio de abordagens imanentistas), sem que se considerasse o contexto
histórico e social. Jauss (1979) propõe uma inter-relação entre a historicidade e o teor
artístico do texto literário. Como a obra pode aflorar a sensibilidade estética do receptor,
este é convidado a renovar sua percepção acerca das várias temáticas que a arte pode
suscitar. Nesse sentido, uma obra literária pode ser atualizada por efeito da leitura, uma
vez que tal prática se desenvolve de várias maneiras, relacionando inclusive diferentes
momentos históricos, de modo a que não ocorra uma correlação imediata e fixa entre
uma produção literária e um período histórico específico, determinando um sentido
único, atemporal. A literatura atualiza-se por meio da atividade de leitura, pois dialoga
com novas questões, ainda que a obra tenha sido produzida em uma época distinta. É o
que faz com que leitores até hoje percorram, por exemplo, os trajetos literários de Eça e
Machado, buscando, em textos oitocentistas, elementos para reflexão e análise que não
ficaram restritos ao passado, pois permitem desvendar facetas do homem nas suas
relações consigo mesmo e com os outros.

O “horizonte de expectativas” do público leitor, correspondente à época do


lançamento da obra, modifica-se em épocas subsequentes e dialoga com novas
possibilidades de entendimento, criando-se assim novas “chaves” de leitura, sem que se
pretenda manter um sentido outrora atribuído e nem modernizar o texto. A grande
questão é divisar o potencial significativo do literário, o que permite que a obra se
projete para além do seu tempo.

A esse respeito, Sartre (1993) categoriza a literatura como “alienada” quando,


em determinada época, ela se submete aos poderes e condicionamentos temporais,
considerando-se como um meio e não como um fim em si mesma, ou seja, quando se
coloca a serviço de um conteúdo ou de uma ideologia, sem mediar a reflexão. O filósofo
francês ainda caracteriza como “abstrata” a literatura cuja autonomia se estabelece
apenas do ponto de vista formal, de modo a desconsiderar o aspecto temático da obra.
Nessa perspectiva, nota-se que o literário se inventa e se reinventa a partir da técnica
32

formal, mas sem se subordinar a ela. Para além disso, observa-se que a percepção da
eficácia dessa junção forma/conteúdo vai depender das habilidades do leitor, do seu
desempenho na atividade de leitura.

Considerando a criação da personagem como um efeito de leitura, há que se


levar em conta que sempre haverá especificidades no desempenho de cada leitor,
atreladas a aspectos de ordem cultural, histórica e até mesmo de temperamento (afinal,
este pode determinar ritmos e modos de leitura). Portanto, os aspectos da obra que
sofrerão maior ênfase, os detalhes de caracterização, que vão despertar maior atenção e
interesse, estarão necessariamente atrelados à condição do sujeito leitor, de que fala
Barthes (2004), isto é, à particularização da operação do ler e, consequentemente, do
erigir da personagem ficcional, à maneira da constituição ideológica, social e até
emocional de quem recebe o texto.

Para além desses atributos, o exercício de ler pressupõe também ativar certas
“competências linguísticas”, seja no que se refere ao domínio do código linguístico
utilizado – “toda mensagem postula uma competência gramatical por parte do
destinatário” (ECO, 1993, p. 53) – ou ainda no que se refere ao conhecimento semântico
que permita, ao leitor, perceber que um termo é, em si mesmo, incompleto, pois, mesmo
os sentidos regulares, dicionarizados, carecem, muitas vezes, da contextualização e esta,
por sua vez, pode conduzir ao aflorar de outras “propriedades semânticas” (ECO, 1993,
p. 54) associadas ao termo. Assim, para que se dê a compreensão plena de uma
determinada construção textual, faz-se necessário ativar, além da competência
linguística, a capacidade de discernir e de notar que o emprego da linguagem adequa-se
à situação de uso – contexto discursivo – sendo relevante observar também que o
processo de elaboração textual está em consonância com o efeito de sentido desejado.
Tal habilidade é nomeada por Eco (1993) como “competência circunstancial
diversificada” (p. 56), já que considera a compreensão efetiva da linguagem em
diferentes contextos de leitura.

Sobre os domínios do ato de ler, Jouve (2002) esclarece que o receptor do texto
deve buscar desvendar a linguagem simbólica da obra: “É preciso que leve em
consideração os processos de deslocamento metafóricos e metonímicos” (p. 64). Em
outros termos, é preciso perceber e compreender as atribuições de sentido que se dão de
modo associativo, figurativo, contextualizando assim o que se lê. Esse exercício de
33

leitura amplia-se para uma atividade criadora que revela novos potenciais do texto ou,
nas palavras de Sartre (1993): “o leitor tem consciência de desvendar e ao mesmo tempo
de criar; de desvendar criando, de criar pelo desvendamento”. (p. 37). Tal perspectiva
alarga as dimensões da operação do ler, permitindo uma participação mais efetiva, mais
livre e por isso mesmo mais convidativa. O fato de não se considerar uma possibilidade
única e restrita, para o que se lê, favorece que os meandros narrativos possam ser
reunidos de forma surpreendente e ainda assim harmônica.

Reis (2015), em referência a Jouve, destaca a atuação do leitor na criação da


“imagem-personagem”, como uma elaboração mental induzida pelo ato de leitura. Tal
imagem, no texto, se constitui de modo relativamente escasso, no sentido de precisar da
intervenção do leitor para melhor defini-la, configurá-la. Assim, sobressaem dois
importantes componentes na criação da personagem: “a sua dimensão extratextual, que
remete para a memória de experiências empíricas do leitor, e a sua dimensão
intertextual, apelando a enciclopédias de leituras (como diria Umberto Eco) de quem
lê.” (REIS, 2015, p. 82).

Mesmo as personagens realistas, cuja constituição se dá de modo mais próximo


da exatidão – como se pode perceber em criações queirosianas como a personagem
Amaro (O crime do padre Amaro), Maria da Piedade (No moinho) ou Gonçalo (A
ilustre casa de Ramires) – ainda assim permitem-se ser elaboradas, de modo
complementar ou suplementar, a depender do caso. Isto ocorre mediante operações de
leitura que podem, ainda que bastante apoiadas na clareza do texto, estender as ideias e
características ali expostas, associando-as, por vezes, às vivências e ao repertório
particular de leituras do receptor. Dessa maneira, uma mesma personagem pode erigir
com uma imagem e certas características para um leitor e, para outro, pode constituir-se
de modo bastante diferente, seja porque se instalou, porventura, um processo de
identificação, ou simplesmente porque ela despertou certas reações, lembranças ou
mesmo a atenção criativa de alguém, enquanto, para um outro receptor, não houve
relevância.

Tais oscilações, considerando as criações machadianas, tornam-se ainda mais


acentuadas, uma vez que a indeterminação e a dubiedade, manifestas nas personagens,
podem fomentar o inusitado, tanto nos “desvios de rota” do que se poderia esperar no
enredo, como também no próprio efeito de leitura a se criar. Esses indivíduos ficcionais
34

têm sua formatação menos precisa, revelam-se e ocultam-se ao mesmo tempo,


transmitindo impressões que são contestadas, modificadas, à medida que a leitura
avança. Evidencia-se assim que tais seres configuram-se por mecanismos do ler.

A participação do leitor é que dá vida à obra artística, é por meio dele que o
texto pode transcender a subjetividade do autor, adquirindo dinamismo, expressividade.
Como descreve Sartre (1993), “o objeto literário é um estranho pião, que só existe em
movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele
só dura enquanto essa leitura durar. Fora daí, há apenas traços negros sobre o papel”
(p.35).
35

2. Modos de ser, modos de ler

[...] olhava com certo desdém os que


passavam, no movimento da vida trivial –
enquanto ela ia para uma hora tão
romanesca da vida amorosa!
(Eça de Queirós)

O comportamento e mesmo o desempenho de personagens, no tocante às leituras


que realizam, nas tramas ficcionais de Eça e Machado, compreendem fontes de
significado que em muito auxiliam a compreensão acerca desses seres. Seus hábitos,
preferências e modos de ler constituem elementos-chave no decifrar de temperamentos
e caráteres, como também expõem perfis sociais que emolduram cada personagem. Por
aquilo que leem e pela maneira como o fazem, acabam por revelarem-se ou, ao menos,
indicam pistas que instigam o leitor real a decifrar tais figuras ficcionais.

Com relação às criações de Eça de Queiros, afirma Cunha (2004) que “a leitura é
uma prática comum às personagens diretamente intervenientes na ação” (p. 270). A
variedade de temas, a escolha de autores e as influências, que as práticas de leitura
trazem, marcam o delineamento da personagem, fazendo transparecer, muitas vezes, as
características-base de sua formatação. É o que se nota no romance A Capital (1925) em
que, da apresentação do protagonista Artur, sobressai a sua intensa emotividade, o seu
gosto pelo tom lírico, exaltado por sentimentalismo. Os traços de sua personalidade vão
surgindo quase sempre combinados ao teor das obras de seu agrado:

[...] tinha a palidez, a graça nervosa duma menina. Uma porta que de repente
batia fazia-o despedir um grito. A sua sensibilidade era como a corda muito
afinada duma rabeca; uma história triste, um não de recusa, punham-lhe logo
nas pálpebras duas grossas lágrimas. A sua memória, que retinha longas
poesias, espantava sempre os amigos de casa; e já quando tinha oito anos, era
para o pai todo um orgulho ouvi-lo, nas noites de partida, entre o semicírculo
enternecido dos vizinhos, começar uma melopeia:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo véu...

[...]
Já então os seus fins de tarde depois da aula eram passados encostado à janela
do quintal, lendo algum volume da pequena livraria do papá, um tomo de
Filinto Elísio, Os Mártires de Chateaubriand, sobretudo as novelas da
BIBLIOTECA DAS DAMAS. (QUEIRÓS, 1992, p. 100, 101, grifos do
autor).
36

Em Artur é destacada uma natureza feminina detectada, desde a infância, por


comportamentos que, à época, comumente eram atribuídos às mulheres: comoção,
emotividade latente, sobressaltos. E tal configuração harmonizava-se à atração por
poemas ultrarromânticos, como aquele declamado pela personagem, ainda criança,
numa referência ao texto de João de Lemos – mesmo poema satirizado em Os Maias
(1888), também de Eça. A leitura de poetas com exacerbado lirismo ou de obras como a
de René de Chateaubriand (traduzida para o português pelo também poeta Filinto
Elísio), Les Martyrs, que viria a influenciar a literatura romântica europeia, todos esses
são elementos que marcam a composição da personagem Artur, cujas atitudes, no correr
da narrativa, só reafirmam o que suas leituras já sinalizavam: um caráter emotivo, frágil,
todo entregue às ondulações do sentimento.

A atribuição de um traço feminino – considerando os perfis associados à mulher,


nos oitocentos – é novamente destacada, no caráter de Artur, na referência à coleção de
textos destinada especificamente à mulher: a “biblioteca das damas”. Os temas de
interesse do leitorado feminino de então eram comumente os de cunho amoroso,
fantasioso, romântico. Assim, buscava-se proteger as damas das influências “nocivas”
de leituras outras, cujos temas poderiam despertá-las para algo além dos limites
domésticos, familiares ou relativos ao vestuário em voga. A leitura literária direcionada
às mulheres só reforçava o que se esperava delas: o posicionamento acrítico e alheio às
questões sociais, encerrando-as em um universo afim ao perfil que lhes era imposto
socialmente. À personagem Artur não eram vetadas outras possibilidades de leitura e de
atuação social, ele escolhia, por gosto, por afinidade, o sentimentalismo, nada lhe era
imputado.

Machado de Assis também explora essa relação entre leitura e estereótipo social,
apresentando a personagem Mariana, do conto Capítulo dos chapéus (1884), como uma
mulher extremamente metódica, que conservava sempre os mesmos hábitos, de modo
repetitivo e exaustivo, inclusive no que se refere à escolha de livros:

Nem o gabinete do marido escapava às exigências monótonas da mulher, que


mantinha sem alteração a desordem dos livros, e até chegava a restaurá-la. Os
hábitos mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui
poucas noções, e nunca lera senão os mesmos livros: — A Moreninha de
Macedo, sete vezes; Ivanhoé e O Pirata de Walter Scott, dez vezes; o Mot de
l'Énigme, de Madame Craven, onze vezes. (ASSIS, 1994, p. 29).
37

Observa-se que Mariana apreciava a rotina, a estabilidade, a permanência, de


modo que até mesmo os objetos, no ambiente doméstico, deviam manter-se sempre na
mesma disposição, de maneira a “exalar” a fixidez do cotidiano. Essa atração pelo
inalterável se estendia aos hábitos de leitura da personagem, uma vez que ela optava por
ler sempre os mesmos livros, repetidas vezes. E, sem contrariar o esperado para o perfil
feminino da época, ela lia apenas títulos que se associavam, na ótica dos leitores
oitocentistas, a um padrão de sentimentalismo e emotividade. Estas características
configuravam-se como tipicamente femininas e manter tal estereótipo era, para Mariana,
um hábito cultivado com prazer, mesmo sendo uma imposição social. Os romances de
cunho romântico eram textos destinados à mulher e a personagem absorvia bem o papel
social que lhe era atribuído.

Já o homem tinha a vantagem de ser um leitor livre e poder escolher o tipo de


texto que preferisse. Desse modo, tanto poderia realizar as leituras afins aos interesses
masculinos da época ou variar os temas, optando por outras possibilidades. Personagens
masculinas, no universo ficcional queirosiano, muitas vezes têm os seus hábitos e
preferências de leitura condizentes com o seu papel social. É o caso de Jorge, de O
primo Basílio (1878), que se interessa por escritores que divulgavam experiências
científicas ou conteúdos de economia e, na literatura, lia autores com tendências
clássicas. O seu perfil delineava-se embasado na praticidade, nos temas que tinham
maior impacto na sociedade, o que reafirmava a estreita relação entre o perfil de leitor e
o papel social desempenhado. Já Basílio manifestava outro temperamento, mas ainda
afim a um estereótipo masculino: o conquistador. E para isso lia e oferecia à prima
Luísa, como estratégia de sedução, o romance A mulher de fogo (Belot) que, segundo
Cunha (2004), integrava uma coleção designada como “Leituras para homens”. Luísa
seria instigada pela “leitura proibida” e teria contato com uma obra que ampliaria o seu
universo de leitora, para além de títulos como o “Almanaque das senhoras” (1871 a
1928), citado ironicamente por Eça, no mesmo romance.

Por outro lado, enquanto os estereótipos masculinos eram reafirmados em perfis


como o de Jorge, Basílio e suas leituras correlatas, a personagem Artur (A Capital)
destoava desse padrão e encaixava-se no molde de um leitor romântico, passivo e
sentimental. Por isso mesmo, destacava-se, no correr da narrativa, a sua “natureza
efeminada” (QUEIRÓS, 1992, p. 271), pois o exagero de sua sensibilidade e
emotividade revelava traços ajustados a comportamentos observados em mulheres, à
38

época. Quando, em Coimbra, ele é levado à meretriz mais cara da região – e que,
inclusive, “usava um robe-de-chambre cor de fogo e lia A dama das camélias” (p. 111).
– logo transfere, para o momento de que desfrutava, junto à mulher, as sensações que
obtivera com a leitura desse mesmo romance.

Na madrugada, em que ele saiu do seu leito, extenuado de amor, sentiu que
toda a melancolia daqueles meses passados se lhe dissipara como uma névoa:
a sua vida tinha agora um centro e uma significação: queria ser o Armand
Duval daquele anjo, regenerá-lo, e imortalizá-lo num poema como o
Intermezzo. (QUEIRÓS, 1992, p. 112).

O fato de a cortesã estar lendo A dama das camélias instigava Artur a uma fusão
entre a situação que vivia e o enredo desse romance, de maneira a traçar para a própria
vida a mesma trajetória lida na obra, assumindo para si o papel de Armand Duval, o
enamorado amante de Marguerite Gautier. Mais adiante, quando é abandonado, novas
referências de leitura guiam suas ações, ideias e sentimentos: “Lançou-se então
desesperadamente na Arte; considerou-se cínico à Musset e à Byron; quis como eles dar
à sua vida um delírio romântico; recomeçou a embebedar-se”. (p. 112). Considerava
suas leituras e as sensações que elas lhe despertavam como rotas a serem seguidas,
como modelos de ação, sendo que o estilo escolhido e admirado era o lírico-romântico,
pois a ele agradava deixar-se conduzir pelos sentimentos.

E mesmo as referências acerca da sociedade lisboeta, que fora conhecer e à qual


pretendia integrar-se, também eram baseadas em leituras romanescas, das quais extraía
as expectativas acerca do que iria encontrar ou mesmo do que já ia percebendo na
cidade: “Lisboa! – Concebia a vida que a enchia, violenta e grandiosa, como o mundo
da Comédia Humana, de Balzac.” (QUEIRÓS, 1992, p. 148) Transferia, portanto, o que
encontrara nos livros para a realidade que o circundava, lendo-a como se também fosse
uma obra literária.

Por outro lado, à medida que vai se adaptando e descortinando os reais valores e
interesses burgueses, naquele ambiente, a personagem Artur oscila entre o amor e o
ódio àquela sociedade. Nos momentos em que se sentia rejeitado e hostilizado por
tantos com quem desejou afinar-se, passa a notar que a sua natureza emotiva e sua
predileção pelo lirismo destoavam daqueles indivíduos: “sentia circular em redor um
enorme egoísmo burguês, feito do orgulho do dinheiro e do desprezo das ideias; e os
rostos, como as fachadas, tomavam para ele um aspecto obtuso e duro que alguns
39

pobres versos delicados nunca poderiam comover!” (QUEIRÓS, 1992, p. 191). O


individualismo, a objetividade, a extrema valorização das posses eram contrários à
natureza da personagem, que se constituía e se revelava totalmente em consonância com
a sensibilidade romântica, advinda de suas leituras e do modo como as realizava.

Os momentos de raiva e frustração de Artur concentram as críticas, tão


frequentes nos textos queirosianos, ao modo de vida burguês. Iluminava-se a
“podridão”, ricamente ornada, da elite burguesa de então: seus valores, princípios,
aparências, vaidades, exibicionismo, hipocrisia. “Achou aquela gente artificial, egoísta,
amaneirada!” (p. 261). E são esses sentimentos que levam o protagonista a aproximar-se
de revolucionários, contrários aos ideais que ele agora acreditava detestar. Faz amizade
com Nazareno, um republicano que atraíra a sua atenção, exatamente porque se opunha
aos valores burgueses. E mais uma vez são as preferências de leitura e os discursos
sobre ela que delineiam cada personagem, fazendo sobressaírem os seus ideais, crenças:

— Sobre o que é o seu livro de versos? — perguntou-lhe o outro.


Para dar uma ideia das tendências do seu livro, falou então na “Ode à
Liberdade”, na “Sátira à Sociedade”. Era um livro democrático... A poesia
moderna [...] devia ser revolucionária. – Mas Nazareno detestava a poesia: as
suas formas luxuosas, fatalmente idealistas, serviam apenas para amolecer a
virilidade... Nunca lia poetas.
Artur, ofendido, disse: — Mas Alfred de Musset, Garrett...
— Pulhas! — disse dogmaticamente o republicano. Musset era um libertino,
um bêbado, um boêmio, que nunca compreendeu o seu tempo e que o que
soube celebrar foi a luxúria! E Garrett, um janota! Usava espartilhos – e em
pleno século XIX vem-nos falar de romances de cavalaria e doutras pieguices
góticas... Um vendido!
Artur sentia-se indignado. E que tinha que dizer de Lamartine?
— Um erótico! (QUEIRÓS, 1992, p. 275).

Cada indivíduo, nessa cena, se define pelo que lê, pelo modo como avalia o que
lê. A personagem Artur percebia nitidamente o contraste entre ele e o republicano, além
disso, acabava por revelar-se através dos seus gostos literários, seriamente afrontados
pela opinião do novo amigo. As referências portuguesa e francesa de literatura
romântica, tão apreciadas pelo protagonista, não encontravam ressonância na análise do
outro. Na sequência da cena, vê-se a tentativa de Artur de adequar o drama, que havia
escrito, ao perfil de leitor que reconhecia em Nazareno:

— E o seu drama, o que é? — disse o Nazareno, que tinha o tom interrogante


do pedagogo. Artur, que aquele interesse lisonjeou, descreveu-lho, insistindo
40

no lado democrático — a glorificação do amante plebeu, a humilhação do


mando fidalgo — ocultando o elemento lírico e romanesco do trabalho. O
plano, assim contado, pareceu satisfazer o outro; deu-lhe conselhos: — para
que dar ao protagonista, ao filho do povo, a profissão estéril e imoral de poeta
lírico? Devia-o fazer engenheiro, médico, empregado duma companhia; e
devia-o seduzir a duquesa não pelo brilho do seu lirismo, mas pela justeza
das suas ideias. Mas a verdadeira obra de teatro era a comédia satírica à
Molière, a comédia aristofanesca - a exposição dos vícios, das infâmias, das
imbecilidades desta canalha lisboeta: alguma coisa de fustigante, de
vergastante!... E com um acento de ódio que lhe passava entre os dentes,
atirava bengaladas ao ar, como se açoutasse num só dorso toda uma
Sociedade. (p. 275, 276).

Nota-se que o protagonista modificava o cerne da obra que criara, a fim de


agradar ao Nazareno, porém, sua tentativa fracassa, pois as sugestões que partiam desse
homem só reafirmavam o quanto aquele texto (cujo estilo era embasado no repertório de
leituras românticas) destoava da perspectiva revolucionária que Artur fingia manifestar.
A Nazareno atraía a comédia satírica (Molière, Aristófanes), de maneira que o drama
escrito pelo amigo evidenciaria o grande contraste entre ambos, manifesto pelos seus
comportamentos como leitores.

Por outro lado, o ódio à burguesia, naquele momento, unia-os; compraziam-se


em criticar os hábitos, a moral, os modos daquela sociedade. Mas a natureza de Artur
gritava-lhe o tom de suas ações, dos pensamentos, e ele permanecia todo entregue a
agitações de ideias, no habitual ânimo, repleto de fantasias e romantismo, mesmo
quando julgava afastar-se de tal padrão:

[...] decidia-se, agora, a abandonar todos os hábitos de sociedade, as


esperanças nos amores fictícios, a literatura puramente lírica: queria trabalhar
para o estabelecimento da República, compor comédias satíricas, à
Casamento de Fígaro, que abalassem o velho regime; e vinha-lhe um desejo
de se dar a todos os que sofrem, como se as palavras de Nazareno lhe
tivessem posto na alma uma tão grande energia de amor humanitário, que só
se satisfizesse esposando a miséria universal! E ao mesmo tempo,
recordações de leituras da História da Revolução Francesa lhe voltavam ao
espírito, dando-lhe moldes para conceber atitudes, situações, episódios: [...]
via-se, brandindo uma espada, à frente de operários que um antigo opróbrio
enchia de furor; via-se, de noite, numa vaga sala baixa, onde vagas sombras
se agitavam, decretando incêndios de palácios [...]. (QUEIRÓS, 1992, p.
278).

A ideia de que passaria a apoiar a causa republicana, desdobrando-a em


intenções humanitárias e conspirações inspiradas na revolução francesa, instigavam-lhe
o espírito, mas, o modo como concebia e arquitetava as ideias só reforçava a sua índole
impressionável, sonhadora e sentimental. E os títulos de obras que lhe vinham à mente
41

eram condizentes com a euforia momentânea de quem se supunha um radical,


progressista. Atrelava, portanto, suas referências de leitura às conjecturas e devaneios da
ocasião, tomando mais uma vez, como modelo de ação e conduta, os textos lidos.

Há casos, entretanto, em que os modelos de comportamento se baseiam em


leituras de símbolos sociais, como por exemplo, aqueles que indicam poder. O conto
machadiano, Capítulo dos chapéus, trata da valorização social sob o aspecto da
aparência, demonstrando como o uso de um determinado acessório, na composição do
traje, poderia definir o status social de um homem. A ênfase é dada ao fato de a
personagem Conrado optar por usar um chapéu baixo, contrariando a convenção que
ditava o uso de chapéus altos. A atitude de Conrado foi totalmente desaprovada pelo seu
sogro e por sua esposa, Mariana, cuja predileção por costumes e convenções já fora
anteriormente comentada. O acessório diferenciado causa mal-estar e preocupação, pois
a leitura que se faz da peça é a de que ela pode simbolizar um rebaixamento social, já
que os de chapéu alto eram aqueles que possuíam elevada posição na sociedade.

Tal era o sogro de Conrado; como supor que ele aprovasse o chapéu baixo do
genro? Suportava-o calado, em atenção às qualidades da pessoa; nada mais.
Acontecera-lhe, porém, naquele dia, vê-lo de relance na rua, de palestra com
outros chapéus altos de homens públicos, e nunca lhe pareceu tão torpe. De
noite, encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o coração; pintou-lhe o chapéu
baixo como a abominação das abominações, e instou com ela para que o
fizesse desterrar. (ASSIS, 1994, p. 29).

O chapéu baixo era lido como um acessório que denegria a imagem. Fazia-se
necessário igualar-se aos homens de poder, identificar-se como integrante do mesmo
grupo, pelo uso do mesmo tipo de chapéu. A personagem Mariana também recodifica o
acessório a partir do momento em que ele passa a simbolizar, na leitura que ela fazia
dos fatos, a intransigência de Conrado, pois este não atendeu aos apelos dela, à
insistência para que voltasse a usar o chapéu de costume. Mariana sente-se humilhada,
julgando que o marido reagiu com sarcasmo diante do pedido que ela lhe fizera. Uma
simples peça do vestuário masculino passa a provocar amplas divagações, de modo que
a esposa de Conrado começa a reavaliar suas próprias atitudes, julgando-se injustiçada e
ao mesmo tempo passiva: “Chamava-se tola, moleirona; se tivesse feito como tantas
outras, a Clara e a Sofia, por exemplo, que tratavam os maridos como eles deviam ser
tratados, não lhe aconteceria nem metade, nem uma sombra do que lhe aconteceu”.
(ASSIS, 1994, p. 30). E, ao encontrar a amiga Sofia e ouvir-lhe a opinião acerca do fato,
42

sentiu que a dimensão do problema era ainda maior, pois a amiga demonstrava que, na
sua rotina, algo assim jamais aconteceria:

Olhe; eu cá vivo muito bem com o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não
lhe peço uma coisa que ele me não faça logo; mesmo quando não tem
vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obedece logo. Não era ele que
teimaria assim por causa de um chapéu! Tinha que ver! Pois não! Onde iria
ele parar! Mudava de chapéu, quer quisesse, quer não.
Mariana ouvia com inveja essa bela definição do sossego conjugal. (ASSIS,
1994, p. 31).

Eram os outros - o pai, a reação do marido e agora a opinião da amiga - que


davam a Mariana, naquele instante, a medida de si; ou seja, ela pautava sua vida pelo
que lia nas vidas e opiniões alheias. Mas, para além disso, a personagem instituía para o
seu cotidiano a equivalência exata com os padrões de estabilidade e fixidez que julgava
necessários ao seu bem-estar. E o gosto pela uniformidade acabou vencendo a
convenção, pois, quando mais tarde Mariana vê que finalmente o marido trocara o
chapéu, acaba pedindo que ele volte a usar o anterior, já que ela se habituara a vê-lo
sempre com aquela peça. E é uma referência de leitura que reforça mais uma vez o
caráter constante e regular da personagem:

Conrado entrava lentamente, olhando para a direita e a esquerda, com o


chapéu na cabeça, não o famoso chapéu do costume, porém outro, o que a
mulher lhe tinha pedido de manhã. O espírito de Mariana recebeu um choque
violento, igual ao que lhe dera o vaso do jardim trocado, — ou ao que lhe
daria uma lauda de Voltaire entre as folhas da Moreninha ou de Ivanhoé...
Era a nota desigual no meio da harmoniosa sonata da vida. (ASSIS, 1994, p.
36).

Embora tenha sido por influência alheia a tentativa de mudar a aparência do


marido, Mariana foi vencida pelo próprio temperamento que não admitia mudanças e
optava sempre pela constância, inclusive no tocante aos títulos que escolhia para ler.
Porém, é válido acrescentar que, embora fossem lidos sempre os mesmos textos, a
operação do ler nunca se desenvolve da mesma forma, pois, como afirma Jouve (2002):

[...] a parte ativa do leitor na construção do sentido afasta a própria ideia de


uma interpretação definitiva. O eu que se engaja na obra sempre é, de fato,
ele próprio um texto: o sujeito não é nada mais do que a resultante de
influências múltiplas. A interação que se produz na leitura é, portanto,
sempre inédita. O sentido, longe de ser imanente, se apresenta como o
resultado de um encontro: o do livro e do leitor. (p. 102, grifo do autor).
43

Nessa perspectiva, embora os significantes no texto literário sejam sempre os


mesmos, as influências que sofre o leitor serão sempre variáveis, de modo que os
sentidos nunca se repetirão uniformemente. Algo que foi detectado, pelo receptor da
obra, em determinada leitura, pode não mais ser visto da mesma maneira, pois as
circunstâncias de leitura serão outras e o seu olhar diante do que lê também será
diferenciado. Informações que podem não ter sido notadas, depreendidas do ato de ler,
em um novo momento poderão ser percebidas, analisadas. E, mesmo diante de uma
leitora como a personagem Mariana, cuja predileção pela estabilidade é notória, ainda
assim é válido afirmar que cada leitura sua, da mesma obra, seria uma nova leitura,
ainda que marcada pelo seu modo de ler, pelo seu temperamento particular.

Enquanto a referida personagem machadiana deleitava-se em manter o seu


padrão de comportamento que se estendia, inclusive, aos seus hábitos de leitura, há, na
trama queirosiana de O crime do padre Amaro (1880), um protagonista ávido por
alargar suas perspectivas, especialmente por caminhos ainda não explorados. Quando
vai morar em Leiria e passa a ser hóspede da senhora Joaneira, o padre tem a
oportunidade de aproximar-se de fato do sexo feminino e, como naquele ambiente,
passou a dividir espaço com a jovem Amélia – filha da dona da casa – foi possível
descobrir ali um universo novo e que lhe era bastante atrativo: a intimidade de uma
mulher. Observava às escondidas o quarto da moça, à maneira de quem lê um livro
proibido que lhe revela detalhes nunca antes contemplados.

Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro


olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado,
uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações
de sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. (QUEIRÓS, 2004,
p. 75).

À medida que o tempo de permanência na cidade se alargava, Amaro ia se


revelando um leitor astuto, eficaz. Ele logo percebeu que o comportamento dos
eclesiásticos, na prática, destoava muito dos discursos que apresentavam aos fieis, do
alto de sua “autoridade moral”. O desejo de quebrar os votos de castidade não era uma
prerrogativa exclusiva de Amaro. Na verdade, ele conseguiu realizar uma leitura do
ambiente social em que fora viver, descobrindo assim o que os demais habitantes do
lugar não conseguiam sequer imaginar: a disparidade entre o que se pregava na igreja e
o que se vivenciava de fato. Ao saber dos atos lúbricos do cônego Dias com a senhora
44

Joaneira, Amaro alegrou-se com a possibilidade de participar, a seu modo, das


aventuras “ilícitas” que ocorriam naquela casa:

[...] uma só ideia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como
o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e
regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego
cheio de dificuldades asmáticas – Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé,
apanhando as saias brancas [...]. Com que frenesi a esperaria! [...] a ideia
muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava
àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos
pulinhos pela rua – Que pechincha de casa! (QUEIRÓS, 2004, p. 80).

O rompimento com dogmas tão consagrados não perturbava o jovem padre, na


verdade a leitura que este faz da realidade encontrada, nos arredores de sua paróquia, só
reforça seus intentos, mesmo porque se até o religioso mais experiente não continha os
próprios desejos, ele, por sua vez, via-se quase destituído de culpa. Ironicamente, bem
ao gosto das tramas de Eça de Queirós, o narrador esclarece que o cônego Dias era o
“mestre de Moral” (QUEIRÓS, 2004, p. 79) de Amaro, portanto, imitar as ações do
mentor parecia, ao jovem, algo natural.

Por outro lado, embora se entusiasmasse bastante com as experiências que


poderia vir a ter na casa da senhora Joaneira, o pároco percebia que nutria, por Amélia,
um sentimento que, por vezes, ultrapassava os limites do desejo físico; desse modo, a
fim de investigar o caráter da jovem, cabia a ele recorrer a uma prática que soube
desenvolver bem, desde que chegara à cidade – a leitura – não mais apenas do ambiente,
mas de expressões e comportamentos. Assim, Amaro passa a observar Amélia
detidamente, buscando decodificar em seu rosto as informações acerca de sua índole:

Com aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto
as libertinagens da mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se
solidamente na segurança de um amor legal! – E Amaro, da sombra,
examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da
virgindade do seu passado. (QUEIRÓS, 2004, p. 81).

Mais adiante, convencido da inocência de Amélia, no tocante às “ilicitudes” da


mãe, o padre expande a leitura que faz sobre a jovem, a ponto de começar a perceber
que ele não teria nada a oferecer àquela moça, “só poderia dar-lhe sensações criminosas,
depois os terrores do pecado”. (QUEIRÓS, 2004, p. 82). Nota-se que Amaro é tomado
por um certo escrúpulo, com relação às suas fantasias e passa a imaginar que Amélia
desejaria para si o padrão social estipulado para a mulher oitocentista: “queria casar,
45

nada mais natural! [...] cobiçava uma situação legítima e duradoura, o respeito das
vizinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!” (p. 82). O casamento
representava o meio natural e aconselhável para a mulher obter respeito, dignidade. E,
logicamente, o pároco entendia que não seria possível proporcionar a Amélia os
protocolos sociais exigidos. Ainda assim, acabou por concluir que estava disposto a ir
em busca da realização dos seus desejos, pois “a sensação do amor místico que o
penetrara um momento, olhando a noite, passara; e deitou-se com um desejo furioso
dela e dos seus beijos”. (p. 83).

É válido destacar também que essa jovem constitui-se como leitora deficiente do
universo ao seu redor e, por isso, sofre as consequências desse seu comportamento – ela
não consegue ler a real figura de Amaro e ilude-se a respeito dos sentimentos que esse
homem nutre por ela. Apesar de toda uma série de evidências demonstrarem o caráter
manipulador do padre, Amélia decifra apenas o que a sua imaginação romântica e
sonhadora permite-lhe apreender. “[...] pensou que ele se fizera padre por um desgosto
de amor. Supunha-lhe uma natureza muito terna; fazia-se pálida à ideia de o poder
abraçar na sua longa batina preta! [...] Lia o seu livro de missa pensando nele como no
seu Deus particular.” (QUEIRÓS, 2004, p. 95). Eça representa em Amélia, bem como
em outras de suas personagens, a estreiteza de um perfil feminino, hegemônico à época
oitocentista e moldado, muitas vezes, em padrões românticos que fixavam a satisfação
feminina pelas vias da realização amorosa. No caso específico de Amélia, nota-se que,
mesmo antes de conhecer Amaro, ela já manifestava uma atração pela vida eclesiástica;
entretanto, a base dessa inclinação era o romantismo exagerado da personagem, pois
havia decidido ser freira por ter sofrido um desgosto amoroso e por ter ouvido uma
narrativa em que um homem buscara a vida religiosa pela mesma razão.

Pareceu-lhe então que não tornaria a ter alegria! Ainda lembrada daquele
moço da história do tio Cegonha, que por amor se escondera na solidão de
um convento, começou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoção,
manifestação exagerada das tendências que desde pequena as convivências de
padres tinham lentamente criado na sua natureza sensível; lia todo o dia
livros de rezas. (QUEIRÓS, 2004, p. 68).

As convicções de Amélia não tinham firmeza e suas leituras – tanto as


tradicionais1, pautadas nos livros (neste caso, apenas os religiosos), quanto as leituras de

1
O termo “tradicional” é, nesse trecho, utilizado para definir a leitura como um exercício de
decodificação e entendimento do texto escrito. Busca-se diferenciar a prática convencional da leitura de
46

mundo – aproximavam-na de um perfil feminino, típico da realidade oitocentista, em


que as possibilidades para a vida feminina comumente restringiam-se ao casamento ou à
vida em conventos, caso o matrimônio não se efetivasse. Diante de horizontes tão
restritos, a mulher, muitas vezes, acabava por desenvolver um modo de ler a realidade
que não a impulsionava ao progresso, à evolução enquanto ser humano e ser social. Tal
perspectiva estava infiltrada na crítica do astuto leitor – Eça de Queirós – que decifrava
a sociedade em que vivia e trazia a lume, por meio da sua narrativa, essas temáticas
acerca das barreiras sociais que dificultavam a vida feminina no século XIX. As
imposições destinadas à mulher poderiam minar sua capacidade subjetiva de
pensamento, de crítica. Embora houvesse alguma resistência a tal panorama, o padrão
de comportamento instaurava à figura feminina a condição de mero exemplar de uma
espécie, uma vez que, em muitos casos, restringia o seu potencial, enquanto um ser
pensante.

Machado de Assis também apresenta, no conto Singular ocorrência (1884), uma


mulher que busca ajustar-se ao padrão socialmente aceito e admirado no século XIX.
Marocas era uma prostituta que dissimulava a profissão e o fato de não saber ler.
Entretanto, do mesmo modo que a “respeitável” Luísa, em O primo Basílio, se
emociona com o enredo do romance de Alexandre Dumas Filho – A dama das camélias
– a personagem machadiana também manifesta sentimentalismo ao assistir à encenação
da mesma obra no teatro: “no último ato, chorou como uma criança” (ASSIS, 2008, p.
126). Embora em universos sociais distintos, ambas as personagens manifestam
semelhante reação diante do contato com a obra, em um nítido processo de identificação
que cada uma desenvolve à sua maneira.

Na busca por enquadrar-se em um perfil socialmente aceito, a personagem


Marocas, ao abandonar a profissão e passar a viver em função do seu amado Andrade,
vê na leitura um mecanismo que a aproximaria desse homem e, por essa razão, torna-se
uma leitora, sendo instruída por ele: “Andrade ensinou-lhe a ler. [...] o vexame de não
saber, o desejo de conhecer os romances de que ele lhe falava [...] o gosto de obedecer a
um desejo dele” (ASSIS, 2008, p. 127). A prática de leitura reafirma sua postura
submissa, centrada unicamente na figura masculina. Marocas, ao ler, não buscava uma

uma acepção mais ampla que a considera como a compreensão de dados e informações não representados
graficamente.
47

emancipação pessoal, ou mesmo descobertas e conhecimentos, mas sim a satisfação dos


desejos de Andrade.

Algumas representações femininas na ficção de Machado de Assis, por outro


lado, se compõem de modo distinto, pois há protagonistas que fogem ao padrão da
mulher burguesa oitocentista. Porém, são novamente os processos de leitura que
permitem traçar seus perfis e enquadramento social. Sobre esse aspecto, inclusive,
Brandão e Oliveira (2011) destacam: “[...] podemos ter esboços estéticos, intelectuais,
comportamentais e interesses a partir do que cada personagem lê” (p. 121).

É o caso de Quintília, do conto A desejada das gentes (1886), pois, desde o


início da narrativa ela rompe com o estereótipo de mulher que se deixa influenciar por
leituras românticas e não cede aos apelos amorosos de seus pretendentes: “um grupo de
moços que falavam dela como de uma fortaleza inexpugnável” (ASSIS, 2009, p. 316).
Além disso, o seu temperamento também é revelado na fala do narrador autodiegético
(que também a corteja), com base na observação do que a moça lê: “Foi então que a
estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os
incompreensíveis e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio” (ASSIS,
2009, p. 323). O tipo de obra, depreciada por Quintília, acentua um traço de
comportamento incomum às moças de sua época. Ela manifesta certa aversão ao
romantismo e aos exageros do sentimento.

Em A Capital, no entanto, ocorre exatamente o oposto: a personagem Artur


idealiza a figura de uma mulher que vê brevemente, imaginando qual o autor do livro
que ela lia, para assim projetar o seu perfil, as suas características:

Idealizava-a, como quem cobre um ídolo de camadas de ouro, tornando-a


cada dia mais digna da sua poesia, extraindo das menores coisas certezas da
sua perfeição: o seu chapelinho de penas provava a fina originalidade do seu
gosto; o livro que ela lia, Lamartine ou Musset, confirmava a sua inteligência
[...]. (QUEIRÓS, 1992, p. 146).

Enquanto, no conto machadiano, a personagem entedia-se e, por isso mesmo,


negligencia as leituras românticas, vê-se, no texto de Eça, pela avaliação do
protagonista, que a inteligência feminina era medida pelo fato de a mulher estar
supostamente lendo Lamartine ou Musset. O público feminino, inclusive, era o maior
consumidor de produções dessa natureza, corroborando assim o modelo de conduta
48

previsto para a mulher: sensível, amorosa, dedicada às questões do sentimento, da


família.

Já no conto No moinho (1902), Eça delineia uma personagem que a princípio


parecia adaptar-se e conformar-se resignadamente com o padrão de vida a ela destinado.
Porém, aos poucos, a leitura do texto revela que Maria da Piedade, no íntimo, ansiava
por algo que a transpusesse a outras experiências, a novas sensações.

Casada com um homem enfermo, que havia aceitado como marido apenas para
livrar a si e aos pais da miséria, Piedade passava os dias a cuidar dos filhos, também
doentes, de modo que “aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-
lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na” (QUEIRÓS, 1951,
p. 17). E sua rotina transcorria atada ao zelo com que se dedicava aos seus, ignorando a
si própria enquanto um ser dotado de emoções e desejos.

Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma
fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.
Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos
choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face
tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo
animar a outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno
mundo bem tratado e bem acarinhado. (QUEIRÓS, 1951, p. 17).

Nesse momento de sua vida, a leitura correspondia a uma prática caridosa, um


exercício de generosidade para com o esposo inválido: “durante as insônias do marido
não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos
Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoção” (QUEIRÓS, 1951, p. 18). Ler
significava dedicar-se e, a princípio, essa constante doação preenchia as horas de seu dia
e até mesmo os seus pensamentos. À semelhança do que ocorre na obra O primo
Basílio, a chegada de alguém, cuja forma de vida sinaliza um radical contraste, vem
tumultuar a morna existência da personagem central. Curiosamente, o homem que
invade a rotina de Maria da Piedade também é um familiar, especificamente um primo,
porém, não se trata do primo da protagonista (como ocorre no já citado romance), pois
Adrião é na verdade parente do marido dela.

A chegada do hóspede, ao vilarejo onde vivia Piedade, representava um grande


acontecimento, pois ele era um célebre romancista, muito conhecido e admirado em
Lisboa. Porém, para ela, essa novidade inspirava-lhe grande mal-estar, desconforto, já
49

que revolveria a sua rotina já traçada: “E a brusca invasão daquele mundano, com as
suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital,
dava-lhe a impressão apavorada duma profanação” (QUEIRÓS, 1951, p. 18).

A aproximação com o escritor vai-se tornando inevitável e aos poucos o


incômodo que sentira é substituído pelo prazer da convivência. Nota-se, por exemplo,
que a leitura que faz Adrião acerca de um moinho abandonado, onde os dois resolvem
passear, revela a Piedade toda a poesia de um lugar que para ela não tinha significado
algum. E é justamente esse novo olhar, diante de um cenário costumeiro, que vai
aproximá-los, envolvê-los:

Que paraíso, nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida,
e ouvindo cantar esses melros!
Ela corou outra vez do fervor da sua voz e recuou como se ele fosse já
arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela ideia,
pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma
felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para
o trabalho; depois o jantar na relva à beira da água; e à noite as boas palestras
ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus negros
de verão...
E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os
lábios, dum só beijo profundo e interminável. (QUEIRÓS, 1951, p. 20).

Realizar uma nova leitura de um cenário já conhecido, porém nunca percebido


de fato, representava para Piedade a possibilidade de uma leitura ainda mais profunda e
vasta: era o momento de reler a própria existência, de repensar o formato que seus dias
tomavam e porventura redefini-los.

O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em
Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago
e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar
honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica; e
antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências
possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e
moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios.
Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da natureza
que atravessava, subitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a
deliciosamente... (QUEIRÓS, 1951, p. 21)

É a chegada do novo que estabelece um parâmetro para a comparação, para a


percepção do desnível, do contraste entre a vida que Maria da Piedade levava e outras
formas de vida, outros ambientes que ela poderia descobrir, explorar. Não fosse a
chegada de Adrião, a leitura de mundo da personagem não sofreria alteração, sua rotina
provavelmente permaneceria do mesmo modo.
50

Em A Capital, no entanto, a chegada de Artur à pequena cidade de Oliveira de


Azeméis não modificou os hábitos da sua prima Cristina que, embora tenha
demonstrado forte inclinação afetiva para com ele, ainda assim não se influenciou pelos
gostos literários do rapaz.

— E que lês tu? Gostas de ler?


Cristina pareceu despertar e procurou um momento, mentalmente, a certeza
daquele gosto.
— Não me entretém muito... A D. Galateia às vezes trazia-me aí romances
que lhe vinham do Porto. Mas enfastiei-me... É uma trapalhada, e depois são
tudo mentiras...
Artur não respondeu, enojado. Achava-a estúpida, e feia, — com as suas
grossas mãos acariciando ternamente o gato gordo, os ombros roliços de
plebeia forte, e até o cabelo lhe parecia agora duma dureza rústica.
(QUEIRÓS, 1992, p. 121).

A pergunta de Artur sugere a busca por encontrar afinidades, naquele ambiente


provinciano, onde viera morar. E a leitura, além de instigar diversos temas de
conversação, seria ainda, naquele contexto, o requisito para identificar um gosto
comum, alguém para partilhar ideias acerca de obras lidas. Mas a resposta de Cristina
fê-lo reprovar a jovem, pois o critério para admirá-la e aproximá-la de si seria a
predileção por poetas e romancistas. E essa recusa maximizou os traços físicos da
prima, aos olhos de Artur, pois a rudeza de sua aparência afinava-se com a sua
ignorância intelectual, na observação do rapaz.

Na verdade nota-se, na personagem Cristina, uma configuração feminina um


pouco diferenciada do padrão de então, pois não a atraíam temas e produções
românticas; manifestava espírito prático e não encontrava essa objetividade na literatura
que lhe era oferecida. Por isso, enfastiava-se, perdia o interesse pelas intrigas amorosas
– “trapalhadas”, segundo ela – e afastava-se da leitura por sabê-la fictícia. Uma vez que
rejeitava o teor fantasioso dos enredos, atacava justamente o fato de não serem
verídicos, pois, na sua concepção, somente aquilo que se coadunasse com a realidade
imediata, que a circundava, teria sentido, ou seja, tudo o que não fosse relativo à vida
real (que ela conhecia) era repelido. Enquanto outras personagens queirosianas se
afastavam de seu cotidiano pela imersão na leitura – transportando-se assim para um
universo totalmente distanciado do habitual – Cristina diferenciava-se, pois refutava o
que não condizia com o seu ambiente.
51

Logo, ao ser indagada se gostava de versos, naturalmente expõe: “A mim


parecem-me sempre a mesma choradeira... São pieguices...” (QUEIRÓS, 1992, p. 122).
Temas sentimentais, que avultavam nos poemas, não a sensibilizavam e, neste aspecto,
ela se aproximava da personagem machadiana Quintília – anteriormente citada. Ambas
configuram-se como perfis femininos que não atendem ao padrão de romantismo das
leitoras oitocentistas. No caso de Quintília, havia também a rejeição ao casamento – que
representava o expediente para cumprimento do papel social da mulher, à época – de
maneira que tal personagem parecia estar bem à frente do seu tempo, pois escolhia
livremente seu destino. Já Cristina harmonizava-se à rotina do lugar onde vivia e ali a
leitura não era valorizada como algo produtivo, útil. Ao ver os vários livros que Artur
recebe, enviados de Coimbra por um amigo, ela não consegue conceber qual a utilidade
de tudo aquilo; mais uma vez a objetividade de seu caráter destoa do teor abstrato que
emanava daqueles objetos.

- Para que servem tantos livros?, perguntou Cristina, que compreendia ainda
a posse dum livro, o livro que se relê, que se tem à cabeceira da cama, - mas
tantos, com tantos nomes...
- Nem todo o mundo se pode divertir com galinhas! – disse Artur excitado.
Ela calou-se para o não descontentar, mas pareciam-lhe bem mais
interessantes os seus pintainhos abrindo o biquinho ao grão – que todos
aqueles versos, queixando-se e gemendo. (QUEIRÓS, 1992, p. 131).

A natureza, a criação de animais, compunham os focos de interesse da


personagem; a literatura, que tanto apetecia o seu primo Artur, lhe parecia algo
completamente sem propósito, sem conexão com o seu mundo, do qual ela não
pretendia se desvencilhar, ao contrário de outras figuras femininas da ficção de Eça –
Luísa, Piedade, Amélia, Leopoldina – cujas rotinas lhes traziam enorme desagrado,
fazendo-as encontrar na leitura um mecanismo de fuga. E Artur, cuja constituição em
muito se assemelha à dessas personagens, julgava absurdo o fato de alguém não se
deleitar ou menos se interessar pelos livros que tanto o agradavam. E eram essas leituras
que o transportavam para um mundo que ele desejava explorar: a capital – símbolo do
desenvolvimento intelectual, palco das artes, onde a sensibilidade e o requinte eram
aflorados, a ponto de tornar a rotina um verdadeiro deleite – tal era a sua idealização,
semelhante ao que encontrava nas suas leituras e ao modo como as desempenhava.

Mas a mentalidade em Oliveira de Azeméis, local onde fora viver antes de


finalmente partir para Lisboa, contrastava com a sua perspectiva. Naquela pequena
52

cidade, a arte – em especial os versos – eram considerados inúteis, pois o interesse era
todo voltado à administração da terra, à garantia do sustento, à praticidade das ações que
deveriam voltar-se a uma utilidade imediata: “[...] em lugar de perder tempo com
pieguices, devia entreter-se indo à fazenda olhar pelas terras, tirar as contas aos caseiros.
[...] E no fim não era preferível a todos os versos do mundo ir ver os pomares, as casas,
os celeiros, a criação, as colheitas?”. (QUEIRÓS, 1992, p. 135). A exortação de Cristina
era endossada pelas tias e pelos íntimos da família, de maneira que se entrevê o
questionar da utilidade da arte, especialmente em um contexto no qual se valorizava
unicamente os meios de sobrevivência.

Diante dos muitos livros que Artur recebe, sua tia chega a cogitar que ele venha
a se prejudicar, pelo “abuso de leituras” e faz-lhe um alerta: “– Tu vais tresler, menino...
Olha não te faça mal”. (QUEIRÓS, 1992, p. 131). Situação semelhante a que se vê em
D. Casmurro quando a mãe de Capitu justifica seu abatimento, julgando que “fora
excesso de leitura na véspera, antes e depois do chá, na sala e na cama, até muito depois
da meia-noite, e com lamparina...”. (ASSIS, 1995, p. 70).

Ao se considerar a trajetória da leitura durante os séculos XVIII e XIX, nos


contextos europeu e brasileiro, nota-se que a censura a certos tipos de textos ia muito
além de uma simples rejeição causada por dissidência de opiniões e de mundividência.
Abreu (1999) salienta que, em meados do século XVIII, acreditou-se que a leitura
oferecia males à saúde, pois o “esforço continuado de intelecção de um texto
prejudicaria os olhos, o cérebro, os nervos e o estômago” (p. 10). E, em um nível mais
drástico, destacavam-se os nocivos efeitos que supostamente afetavam não mais o
corpo, mas a alma, a moral. Neste bojo, estavam os textos literários, especialmente os
romances, pois “colocavam os leitores em contato com cenas e situações reprováveis,
subvertendo o sistema de valores morais no qual a sociedade deveria ancorar-se”
(ABREU, 1999, p. 11). O simples fato de se imaginar vivenciando certas aventuras,
narradas nos romances, já era tão condenável quanto torná-las reais.

Em A Capital, observa-se que era questionado também se certas leituras não


poderiam desvirtuar as crenças, a fé: “E Ricardina, que subira ao quarto [...] aterrou-se
diante daqueles muitos volumes amarelos, em que decerto se deviam tramar coisas
contra a religião...”. (QUEIRÓS, 1992, p. 131). A única espécie de livro recomendável
era aquele de edificação religiosa; até mesmo as instituições educacionais enfatizavam o
53

ensino religioso – ler, escrever e contar eram processos secundários, como afirma Watt
(2007). A igreja católica teve um papel fundamental na repressão à leitura,
considerando-a uma prática perniciosa e advertindo seus fieis a ficarem atentos ao
perigo infiltrado nos livros. Tal preocupação levou os religiosos à proibição da venda,
posse, composição e publicação das obras consideradas prejudiciais. Abreu (1999)
chama a atenção para o fato de que já havia a percepção de que os livros têm a
capacidade de difundir ideias de maneira mais efetiva e discreta, pois, um orador em
praça pública ou homens confabulando entre si seriam mais facilmente identificáveis e
passíveis de perseguição do que um leitor solitário “fechado em seu gabinete com um
livro herético” (ABREU, 1999, p. 13).

Exatamente quando se isolava em seu quarto para ler, a personagem Artur


causava grande desconforto aos parentes que não entendiam o seu interesse em tais
obras. Curiosamente, quando ele parte dali para Lisboa, imaginando que a sua natureza
lírica seria finalmente compreendida e valorizada, descobre novos focos de interesse nos
que o cercam: lucro, poder, ostentação do luxo, valorização da aparência e do status.
Assim, não consegue trazer para a vivência real, prática, as sensações, desejos e sonhos
projetados nas suas práticas de leitura.

Essa incompatibilidade entre a realidade vivida e aquela configurada a partir das


experiências de leitura é percebida também no conto queirosiano Um poeta lírico
(1902). É delineada, neste texto, uma personagem cujo gosto literário refinado
contrastava, segundo o narrador, com a simplicidade da profissão que exercia e,
exatamente por essa razão, tal homem, de vida modesta, despertava a atenção de quem
relatava sua história. Korriscosso era um criado do restaurante onde o narrador-
personagem estava hospedado e um dos primeiros contatos entre ambos dá-se
justamente quando o livro de poesias do hóspede some, fazendo-o suspeitar do
funcionário. No entanto, mesmo flagrando a obra em poder do criado, o narrador
interessa-se menos pelo roubo do que pelas leituras de Korriscosso:

[..] avistei, sobre a mesa, entre papéis, colarinhos sujos e um rosário - o meu
volume de Tennyson! Ele viu o meu olhar, o bandido! e acusou-se todo numa
vermelhidão que lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi
não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo logo à
moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um
dedo severo, um dedo de Providência irritada, disse-lhe:
− É o meu Tennyson...
54

Não sei que resposta ele tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado
também pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego
sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:
− Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se
entusiasmou... (QUEIRÓS, 1951, p. 15).

A motivação do roubo – a apreciação dos textos do poeta inglês – despertou a


atenção curiosa do narrador e o fez minimizar o erro de Korriscosso. A atração pela
leitura da poesia parecia mesmo justificar a posse do livro, ainda que por meios ilícitos.
Além disso, ao relatar a cena, ele considerava destoante a rotina simples de um criado
de restaurante e a leitura, o gosto por poesia.

Korriscosso corou mais: mas não era o despeito humilhado do salteador


surpreendido: era, julguei eu, a vergonha de ver a sua inteligência, o seu
gosto poético adivinhados - e de ter no corpo a casaca coçada de criado de
restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri,
responderam por ele; a brancura das margens largas desaparecia sob uma
rede de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino! − palavras
lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma
sensibilidade vibrante... (QUEIRÓS, 1951, p. 15).

Observa-se, nas cogitações do narrador, uma visão elitizada da arte, que estaria
ao alcance apenas daqueles que possuíssem uma condição social mais favorecida. Por
outro lado, vê-se também uma explícita associação entre leitura literária e capacidade
intelectiva, ideia que transparece nas formulações de Jouve (2002), ao afirmar que são
necessárias, a um leitor, certas competências, no trato com o texto, como por exemplo: o
domínio do código linguístico, a compreensão do emprego de termos e expressões nas
suas relações contextuais e ainda a competência ideológica, de maneira que possa até
mesmo vir a confrontar a visão do autor ou, ao menos, compreendê-la em profundidade.
Nesse sentido, o narrador do conto percebia que o criado possuía habilidades para uma
leitura eficiente, prova disso eram os comentários lisonjeiros sobre os poemas.

Outro ponto importante a explorar, no fragmento destacado, é o fato de que eram


lidas, nas anotações feitas por Korriscosso, ao lado dos poemas, informações não
necessariamente explícitas ali, ou seja, o narrador-personagem capta as reações
vibrantes que tinha o criado ao debruçar-se sobre os poemas de Tenysson. Isto só
reforçava o fato de que o humilde funcionário não era apenas um leitor, mas sim um
apreciador dos versos ingleses, o que o aproximava, de certo modo, do narrador, a ponto
de este ter conseguido descobrir detalhes da vida de Korriscosso. Era um poeta,
55

experimentara a riqueza, mas, as intempéries da vida o conduziram a uma rotina que o


desagradava:

É bem alimentado; as gorjetas são razoáveis; tem um velho colchão de molas,


− mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento, dolorosamente
feridas...
Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a
distribuir numa sala, a burgueses estabelecidos e glutões, costeletas e copos
de cerveja! (QUEIRÓS, 1951, p. 16).

Nota-se que a alma refinada e sensível de Korriscosso contrastava com o ofício


que desempenhava, pois não lhe era possível, naquele ambiente, exercitar suas
aspirações poéticas. A configuração dessa personagem – natureza sensível, gostos
refinados – permite perceber que seu desejo era vivenciar, no seu dia-a-dia, a arte, a
criatividade e a originalidade, isto é, gostaria de exercitar, na prática cotidiana, aquilo de
que se revestia o seu íntimo. Porém, o conto induz à reflexão acerca do dilema –
frequente até a atualidade – que faz a inclinação vocacional duelar com a necessidade de
sobrevivência. Esta última pode determinar o estilo de vida que se leva, instaurando
uma árida realidade que, no caso de Korriscosso, era oposta àquela encontrada nas suas
leituras:

Mas num restaurante como se pode exercer o gosto, a originalidade artística,


o instinto da cor, do efeito, do drama – a partir de nacos de rosbife ou de
presunto de Iorque?!... Depois, como ele disse, dar a comer, fornecer
alimento, é servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade
material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma fica fora, com o chapéu que
se pendura no cabide ou com o rolo de jornais que se deixou no bolso do
paletó.
E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para ele
senão para lhe pedirem salame ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus
lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para perguntar: - Mais
pão? Mais bife? - Esta privação de eloquência é-lhe dolorosa. (QUEIRÓS,
1951, p. 16).

Naquela situação de trabalho, lê-se o ser humano apenas no seu aspecto


orgânico, na sua constituição física. Tal ótica contraria os ideais poéticos da personagem
Korriscosso e o força a ler o universo ao seu redor de forma radicalmente objetiva,
situação na qual ele mesmo não se reconhece. Conflito semelhante é vivido por Artur (A
Capital), quando lhe censuram o fato de querer viver dedicado à escrita de poemas:
“[...] conselhos práticos, muito burgueses: ‘a vida não era poesia! Era necessário tratar
do pão!’ – Mas onde? Como? Ir rabiscar papel selado para casa de um tabelião? Ir
vender bareges a um balcão do Porto? – Era imbecilizar para sempre minhas
56

faculdades!” (QUEIRÓS, 1992, p. 114). Ambas as personagens rejeitam a praticidade e


o viver restrito à garantia da sobrevivência. Por isso, Korriscosso insiste em fazer sua
identidade aflorar:

Às vezes, encostado a uma janela, de guardanapo no braço, Korriscosso está


fazendo uma elegia; são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas,
horizontes celestes, flores de alma dolorida... É feliz; está remontando aos
céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de
estrela em estrela... De repente, uma grossa voz faminta berra de um canto:
− Bife e batatas!
Ai! As aladas fantasias batem o voo como pombas espavoridas! E aí vem o
infeliz Korriscosso, precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as
abas da casaca baloiçando, perguntar com o sorriso lívido:
− Passado ou meio cru?
Ah! É um amargo destino! (QUEIRÓS, 1951, p. 16).

O fragmento acima pode indicar, ao leitor do conto, dois aspectos que conduzem
a atenção ao ambiente ficcional em si mesmo, como também ao estilo, ao traço literário
de Eça. Primeiramente nota-se que a cena descrita reapresenta a realidade (no seu
caráter mais trivial e até mesmo com detalhes que denotam certa rudeza), contrastando
com o sublime da poesia. Todavia, observa-se também uma censura velada aos arroubos
românticos que se desprendem das construções metaforizadas, vistas nas expressões
poéticas da personagem. Nesse sentido, a referência aos detalhes mais ordinários
destaca a vertiginosa distância entre o universo idealizado e a crua realidade, sendo esta
última a que mais interessa a Eça de Queirós. É notória, inclusive, a sua rejeição às
construções literárias cujo foco são unicamente os enlevos do sentimento, como se
observa em uma das crônicas de As Farpas (1871-72):

E no meio das ocupações do nosso tempo, das questões que em roda de nós
de toda a parte se erguem como temerosos pontos de interrogação, estes
senhores vêm contar-nos as suas descrençazinhas ou as suas exaltaçõezinhas!
No entanto operários vivem na miséria por essas trapeiras, e gente do campo
vive na miséria por essas aldeias! E o Sr. Fulano e o Sr. Sicrano empregam
toda a sua ação intelectual em se gabarem que apanharam boninas no prado
[...], esfalfam-se os tipógrafos, arrasam-se os revisores, emprega-se uma
imensa quantidade de vida e de trabalho, para que o público saiba que o poeta
lírico [...] ama uma virgem pálida com olheiras! (QUEIRÓS, 1946, p. 27).

Nos textos queirosianos, esse estereótipo, comumente apresentado como


referência à típica caracterização romântica do feminino, é explorado em A Capital,
quando a personagem Cristina atesta para si mesma que seu perfil diverge daquele
descrito nos versos que tanto agradavam seu primo Artur:
57

[...] sentia, por instinto, que para o interessar devia ser pálida, delgada, e
enternecer-se com o luar: mas debalde se apertava, era sempre “gordalhufa”,
como dizia o Albuquerquezinho; e a lua só lhe representava a influência
regularizadora da umidade ou das secas; então, para compensar estas
inferioridades, eram desvelos ansiosos – tratando da sua roupa branca como
uma devota dos paramentos da capela; passando manhãs na cozinha, a fazer
“os petiscos” de que ele gostava... (QUEIRÓS, 1992, p. 153).

Como não correspondia aos parâmetros relativos à idealização feminina,


projetada nos poemas – atributos físicos e sensibilidade romântica – Cristina buscava
adequar-se a outros padrões imputados à mulher: o primor para com o desempenho dos
afazeres domésticos, naquilo que porventura agradaria a Artur. Poderia assim ser aceita
e compensar a “falha”, afinal, se não o deleitava, por meio de gostos literários comuns,
mostrar-lhe-ia outras qualidades, condizentes com o que se esperava do comportamento
feminino.

Porém, àquele primo só interessava o que era ditado por sua experiência de
leitura, por ideias e imagens que retirava das obras e que eram tomadas como referência
para a vida, pois, “a Artur o que lhe valia eram os livros!”. (QUEIRÓS, 1992, p. 140).
Logo, um perfil como o de Cristina jamais o impressionaria. Enquanto ele lia a lua
como um elemento com intensa carga poética, ela considerava, conforme fragmento já
citado, que era apenas um astro que influenciava estados da natureza, o que faz lembrar
a provocação que faz Manuel Bandeira, décadas mais tarde, no poema Satélite, em
crítica ao sentimentalismo romântico. Bandeira usa a expressão “astro dos loucos e
enamorados” (1963, p.6), retirada de um verso de Raimundo Correia, para referir-se à
lua e em seguida afirma que prefere encará-la como satélite – “gosto de ti assim, coisa
em si, satélite” (1963, p.6). Revela, assim, posição avessa aos exageros sentimentais da
literatura anterior à modernista. A visão prática, objetiva, acerca do astro, era
semelhante à demonstrada por Cristina.

Enquanto tal personagem não modificou sua conduta e perspectiva de vida, com
a chegada de Artur e sua influência literária, observa-se que as características, descritas
na apresentação da personagem Piedade, no conto No moinho, são radicalmente
transformadas à medida que a narrativa avança. E isto se deve à chegada de Adrião que,
embora tenha passado brevemente pelo convívio dessa mulher, despertou-a para novas
possibilidades de vida, oferecendo-lhe a oportunidade de repensar sua existência, muito
embora ainda sob o prisma da realização afetiva, já que outros meios de satisfação
pessoal eram, à época, vetados às mulheres. Quando a narrativa avança, vê-se que a
58

presença física de Adrião já não era mais necessária, pois a mudança no íntimo da
personagem já havia se instaurado e o modo que ela encontrava para alimentar seus
devaneios e desejos era a leitura:

Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa.


Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta
influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções
extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não
quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os
seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara e morrera dum
abandono. Essas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação
ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio
às suas. (QUEIRÓS, 1951, p. 21).

Piedade lia o amado através dos escritos dele, era como se o teor das obras a
aproximasse novamente daquele homem, de forma a trazer consolo e distração. A
identificação com as personagens dos romances também minimizava seu sofrimento,
pois ela via que não era a única a padecer. Mas, à medida que as leituras vão se
intensificando, Piedade volta a avaliar a própria existência, corroída pelo desgosto e
pela frustração. Como salienta Jouve (2002): “Existe de fato um nível de leitura em que,
por meio de certas ‘cenas’, o leitor reencontra a imagem de seus próprios fantasmas.
Assim, de fato, ele que é ‘lido’ pelo romance – o que está em jogo é a relação do
indivíduo com ele mesmo, de seu eu com seu inconsciente” (p. 52). No caso da
personagem queirosiana, a leitura impulsiona o desnudar da realidade ao seu redor; o
que antes era aceito com resignação, agora é repelido intensamente:

Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação desses lances de amor,


de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar
constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo
artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob
aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser
enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não
suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar
a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas,
dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos.
Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem
loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam
os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída
num mistério de noite romântica... (QUEIRÓS, 1951, p. 21)

Se a personagem Cristina (A Capital) mostra-se satisfeita com seu modo de vida


e não enxerga na leitura um mecanismo de expansão de ideias, anseios e perspectivas,
Piedade, por sua vez, aos poucos “revoluciona” sua rotina, transgredindo o papel de mãe
59

e esposa. Ela chega a abandonar a família, assumindo um comportamento radicalmente


avesso aos padrões da época, mas que, ao mesmo tempo, representava uma forma de
rebeldia ao alcance da mulher, naquele período. Ou seja, se o papel social da mulher
restringia-se aos deveres de esposa e mãe, a transgressão, a quebra de conduta também
se manifestava por esse viés; era, muitas vezes, o recurso de que dispunha para colocar-
se contra o que lhe era imposto, muito embora, em alguns casos, o fizesse sem se dar
conta disso.

Eça de Queirós, neste conto, como no romance O primo Basílio, explora um


tema muito corriqueiro à época: a influência da leitura de romances no comportamento
feminino oitocentista – aspecto também explorado no enredo de Madame Bovary
(1857), de Flaubert. O romance, aclamado no período de seu surgimento pelo forte teor
moralista que possuía, foi, mais tarde, considerado uma influência nociva para as
senhoras da época. À medida que se desenvolvia e apresentava novos temas, inclusive
tramas sentimentais, intrigas amorosas, o texto romanesco parecia ameaçar as
instituições mais essenciais, como a família e a religião. Acreditava-se que, através da
leitura, o público feminino se desligava do “mundo real” e poderia assim entregar-se à
fantasia, a aventuras e cenas emotivas que comprometiam os seus papéis de mãe e
esposa. Não era questionado se tais papéis satisfaziam a mulher, se eram realmente
esses os seus propósitos de vida; simplesmente suas atuações sociais já estavam
definidas e, consequentemente, de modo bastante restrito, uma vez que era sempre uma
mente masculina que as determinava. A ficção queirosiana explora bem esse tema e
percebe-se a estreiteza do universo feminino, cujo alargamento só se dava – e tantas
vezes precariamente – por meio da leitura acrítica de romances e textos afins. Quando,
por exemplo, a personagem Amaro (O crime do padre Amaro) censura as leituras de
Amélia, tal atitude sustenta o que Cunha (2004) informa ser a razão mais lógica para o
veto:

As razões dessa proibição são fruto, como sabemos, do sentimento de posse e


do prazer que resulta de ser a primeira vez que o eterno dominado o
experimenta, desejando por isso preservá-lo de eventuais ameaças. E estas
resumem-se, naturalmente, ao conhecimento de um mundo de que ele não é o
centro exclusivo. Saber o que vai pelo mundo [...] é, pois, ter acesso através
da leitura a mundos possíveis, tanto mais incômodos para o homem, quanto
mais reveladores para a mulher, particularmente, como é o caso, se essas
revelações põem em causa o poder de atração que o macho não aceita
partilhar. (CUNHA, 2004, p. 236).
60

A leitura de romances, portanto, poderia representar um meio de a mulher ter


acesso a outras formas de comportamento e de pensamento que porventura destoassem
da sua realidade mais próxima ou, nas palavras de Eça: “a santa tornava-se Vênus”
(1951, p. 21). Nesse sentido, a literatura marcava um veículo de expansão do universo
feminino e isto poderia não ser recomendável às senhoras de então, que deveriam
continuar exercendo sempre as mesmas atribuições sociais. Por outro lado, nota-se que
essa leitura literária – formas romanescas essencialmente românticas – mesmo
apresentando à mulher novas possibilidades de percepção, ainda assim trazia, quase
sempre, como marca feminina, a realização pessoal pelo casamento, pela via amorosa,
tendo uma presença masculina a direcionando. Desse modo, as mulheres manter-se-iam
absolutamente dependentes, limitadas a um tipo de vida que não lhes permitia agirem
por si mesmas, desenvolvendo as próprias convicções. E isto se manifestava no seu
comportamento de leitura, que se caracterizava, muitas vezes, por se apresentar sem
nenhuma visão crítica, expansiva.

Ler, alargar as perspectivas, ampliar o conhecimento, através do literário e para


além dele, significava romper com o direcionamento exclusivo para o âmbito
doméstico. Seria, pois, desestabilizado um padrão social para o feminino e a mulher
poderia ousar e buscar alçar voos mais altos. Por outro lado, a ficção também apresenta
alguns exemplos de figuras femininas que não somente aceitavam o padrão de vida que
lhe era imposto como também se satisfaziam com ele, esforçando-se, inclusive, por
conservá-lo. É válido, nesse sentido, considerar, mais uma vez, as atitudes de Mariana,
do conto Capítulo dos chapeús, de Machado de Assis. Essa personagem se destaca
exatamente por não desejar nem admitir nenhuma espécie de mudança, a começar pela
disposição de móveis e objetos em sua casa, que deveriam manter-se sempre do mesmo
modo:

A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e chácaras


próximas, Mariana sentia-se restituída a si mesma. Chegou finalmente;
entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos um vaso, que o
jardineiro trocara de lugar.
— João, bota este vaso onde estava antes, disse ela.
Tudo o mais estava em ordem, a sala de entrada, a de visitas, a de jantar, os
seus quartos, tudo. Mariana sentou-se primeiro, em diferentes lugares,
olhando bem para todas as coisas, tão quietas e ordenadas. Depois de uma
manhã inteira de perturbação e variedade, a monotonia trazia-lhe um grande
bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. (ASSIS, 1994, p. 36).
61

O que a personagem considerava “perturbação e variedade” era um passeio que


fizera com uma amiga por lojas e ruas do centro da cidade; o que poderia até ser
considerado diversão para algumas mulheres, perturbava a paz de Mariana, pois ela
preferia sempre estar em casa, na companhia do marido, envolta com a organização da
casa, com suas atribuições domésticas. Nem mesmo a leitura a transportava desse
universo particular:

Sentou-se ali mesmo com o Ivanhoé nas palmas, querendo ler e não lendo
nada. Os olhos iam até o fim da página e tornavam ao princípio, em primeiro
lugar, porque não apanhavam o sentido, em segundo lugar, porque uma ou
outra vez desviavam-se para saborear a correção das cortinas ou qualquer
outra feição particular da sala. Santa monotonia, tu a acalentavas no teu
regaço eterno. (ASSIS, 1994, p. 36).

Ao contrário das personagens queirosianas Luísa e Piedade, que ansiavam por


modificar seu cotidiano, vivenciando aventuras semelhantes àquelas lidas nos romances,
Mariana desfrutava da sua rotina sem sobressaltos. Apreciava a monotonia, o sossego, a
paz que ela alcançava na vivência doméstica e somente nesta.

Em outro texto machadiano – A senhora do Galvão (1884) – o estilo de vida


feminino oitocentista também é apreciado e preservado. Porém, nesse caso, a
manutenção das condições, que formatam o padrão aceito, relaciona-se não a um
temperamento retraído e uniforme, como era o de Mariana (Capítulo dos chapéus), mas
sim à vaidade, ao status social. E, mais uma vez, a leitura está presente no delinear da
constituição psíquica das personagens. Maria Olímpia descobre, por meio da leitura de
cartas anônimas, o adultério do seu marido. No entanto, ela oculta suas suspeitas a fim
de melhor elaborar o modo como reagiria à situação. Neste momento, a leitura surge
como estratégia de dissimulação: “Eram cinco horas e meia, quando o Galvão chegou.
Maria Olímpia, que então passeava na sala, tão depressa lhe ouviu os pés, fez o que
faria qualquer outra senhora na mesma situação: pegou de um jornal de modas e sentou-
se, lendo, com um grande ar de pouco caso”. (ASSIS, 1994, p. 80).

Embora as cartas insistissem em denunciar o comportamento do marido – que


também se revelava por meio de repetidas ausências – Maria Olímpia desconsidera o
conteúdo da correspondência anônima, a fim de conservar o seu casamento e a condição
de respeitabilidade social advinda dele: “[...] continuava a não crer nas cartas.
Ultimamente, não se dava mais ao trabalho de as refutar consigo; lia-as uma só vez, e
62

rasgava-as.[...] este Colombo teimava em não crer na América”. (ASSIS, 1994, p. 82).
A indiferença para com os escritos chegava a incomodar a pessoa que redigia as cartas,
pois não era notada nenhuma mudança no comportamento nem na rotina de Maria
Olímpia. Tal estranheza também foi lida pela protagonista: "‘Parece que é melhor não
escrever mais, uma vez que a senhora se regala numa comborçaria de mau gosto’. Que
era comborçaria? Maria Olímpia quis perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo e
não pensou mais nisso” (ASSIS, 1994, p. 82).

Embora ela fosse reunindo todas as evidências que comprovavam a infidelidade


do marido, preferia ignorar os fatos, para projetar socialmente uma imagem admirável,
já que “Maria Olímpia tinha a vocação da vida exterior” (ASSIS, 1994, p. 81) e
satisfazia-se em “beber, a tragos demorados, o leite da admiração pública” (p. 81), pois
essa “era a sua maneira de ser amada” (p. 81). Evidencia-se que o padrão social deveria
ser preservado a todo custo; interpelar o marido, a respeito das cartas, seria o mesmo
que admitir que fora traída, o que demandava um enfrentamento, e este poderia pôr em
risco a estabilidade do seu casamento. Quando a situação se inverte e é o marido quem
começa a desconfiar do fato de ela receber cartas, surge a oportunidade de apurar as
denúncias lidas: “Que melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão da verdade? A
carta era das mais explícitas.” (ASSIS, 1994, p. 82). Mas Olímpia finge desacreditar
totalmente no que havia lido, para não arriscar as conveniências que o seu perfil de
mulher casada comportava.

Em A ilustre casa de Ramires (1900), é uma personagem masculina – Gonçalo –


quem vê no casamento a solução para problemas financeiros, em uma clara intenção de
recuperar a opulência de seu estilo vida:

E depois que vida nobre e completa! A sua velha Torre restituída ao


esplendor sóbrio de outras eras; uma lavoura de luxo [...]; as viagens
fecundas às terras que educam!... e a mulher que forneceria estes regalos não
lhes amargava o gozo, como em tantos casamentos ricos, com a sua fealdade,
os seus agudos ossos, ou a sua pele relentada... Não! Depois do brilho social
do dia não o esperava na alcova um monstrengo – mas Vênus. (QUEIRÓS,
2010, p. 189).

Ao leitor do romance é permitido verificar que não apenas mulheres mas


também homens buscavam uniões de conveniência, marcadas por fortes compensações
financeiras, de maneira que, se a mulher escolhida ainda tivesse boa aparência, haveria
maior proveito. Eram bem semelhantes os planos de Artur (A Capital): antes de receber
63

a herança do padrinho e partir para Lisboa, tinha cogitado aproximar-se dos cidadãos
mais ilustres e abastados da pequena cidade, onde vivia, para assim poder viabilizar um
vantajoso casamento e ascender socialmente.

Por que não aplicar o seu talento, as suas maneiras, a fazer a conquista de
Oliveira de Azeméis? Os seus dois anos de Coimbra, o nome respeitado das
tias, habilitá-lo-iam a conhecer o Carneiro, os Guedes, poderia ir-lhes às
soirées: lá, estava certo de fazer uma sensação pela sua conversa, os seus
versos recitados ao piano [...], poderia propor os Amores de Poeta... Talvez
fosse o meio de fazer um casamento rico? (QUEIRÓS, 1992, p. 162).

Neste caso, as habilidades intelectuais que ele julgava possuir, aliadas ao drama
que compusera (Amores de Poeta), seriam os elementos que o fariam ingressar na
intimidade da alta burguesia local. E por meio de um casamento, estrategicamente
articulado, suas questões financeiras e desejo de prestígio social estariam sanados. Às
mulheres que optavam por tal mecanismo de ascensão ainda cabia o pretexto de não
poderem traçar livremente sua trajetória de vida, pois as próprias regras sociais as
limitavam. Porém, no caso das personagens Gonçalo e Artur, a velha máxima da “lei do
menor esforço” parece elucidar a questão.

Por outro lado, em Artur sobressaem traços de romantismo muito marcantes, de


modo que, mesmo desejando, naquele momento da narrativa, um casamento de
conveniência, fatalmente os sentimentos e a influência de suas leituras o fariam,
porventura, reavaliar a decisão. Como o enredo traz novos fatos e ele vem a elaborar
diferentes planos, o que fica muito claro é o perfil da personagem: sempre agindo sob a
condução de suas emoções, que se revelavam sempre intensas, arrebatadoras. Mas, elas
não brotavam naturalmente, havia sempre um poema ou um romance que ditavam o tom
dos seus pensamentos, desejos e também dos projetos que formulava. A personagem,
portanto, lia e inspirava-se, de modo a construir mentalmente as situações que
tencionava viver, imaginando como elas se dariam e embasando-se no seu repertório de
leituras.

Em vários momentos da narrativa, repete-se a prática de antecipação de cena,


mediante os devaneios de Artur. A sua imaginação romântica o faz detalhar
previamente cada situação que deseja viver ou mesmo aquelas que ele já tem como
certas. Vai, assim, adornando a cena mentalmente e se satisfazendo ou sofrendo com os
elementos que ele mesmo cria:
64

Artur ficou extremamente agitado; ia ver enfim essa coisa extraordinária – a


SOCIEDADE! Imaginava vagos diálogos, frases originais que diria, posições
em que se sentaria: e sentia já indefinidas cólicas a que se misturavam uns
sopros de vaidade alegre, e de timidez retraente. Se ela lá estivesse! [...] E
fumando pelo quarto, perdia-se em imaginações flutuantes, em que se
formava, se desmanchava, o romance fragmentado dos seus amores com ela
– até os crimes do marido, até um duelo possível!... (QUEIRÓS, 1992, p.
255, grifos do autor).

O delineamento da personagem é entrevisto mediante essas antecipações que


projeta, com relação às cenas que poderia vivenciar. Sempre há um traço de exagero,
atrelado a alguma emoção mais intensa que o instiga; comumente há também o
antegozo da situação, fazendo-o emocionar-se, pois sentia previamente, adiantava as
sensações que a vivência lhe provocaria. Na maioria das vezes, tais emoções só são
experimentadas quando ele imagina a cena, já que a realidade faz-se bem mais áspera
que as suas elaborações mentais. Por outro lado, ao compor detalhadamente as situações
que protagonizaria, ele revela claramente as influências de suas leituras românticas, com
as quais se afinava, a ponto de “reescrevê-las”, no exercício criativo de construção de
imagens e cenas:

Pensava na Concha – e à ideia de a ter seminua nos braços, sentiu uma viva
contração no estômago: imaginava-a alta, pálida, de olhos árabes, com os
ardores dum sangue sevilhano, e as melancolias duma existência transviada.
Desejava-a tanto, agora, que quase a amava: [...] olhava vagamente as
vitrines pensando no presente que lhe daria, quando ela, desinteressada e
amorosa, recusasse dinheiro, só lhe pedisse felicidade. (QUEIRÓS, 1992, p.
283).

Nesse momento da narrativa, Artur sequer havia sido apresentado à meretriz –


Concha; o encontro estava sendo arquitetado pelo amigo comum, Melchior. Mas o
protagonista antecipava quais seriam os traços físicos da mulher e acrescentava
pormenores que compunham seu temperamento: ardor, mas, ao mesmo tempo,
melancolia – para de algum modo justificar a “existência transviada” – e ela teria ainda
um sentimento genuíno que ele lhe despertaria, a ponto de fazê-la rejeitar compensações
materiais. Criava assim uma verdadeira personagem, ao modo de uma heroína
romanesca, regenerada pelo amor, pelos nobres sentimentos. Tal idealização feminina
saltava das páginas lidas por Artur e vinha povoar-lhe os sonhos e desejos.

Mais adiante, as antecipações recaem sobre ele mesmo, quando projeta imagens
de triunfo. E, assim, configura-se famoso, notável, vindo mais uma vez a antegozar o
65

sucesso que imagina conquistar com a sonhada encenação pública do drama que havia
escrito.

Que vida então! Os aplausos da multidão misturar-se-iam à doçura dos beijos


da Concha – porque ela amá-lo-ia mais célebre, namorado por outras, glória
nacional. E as felicidades seguir-se-iam todos os dias, como as horas: à noite
as palmas duma plateia eletrizada, depois a ceia com o bom Melchior, com
outros amigos; depois os delírios da Concha apaixonada; e de manhã, na
caixa do teatro, as librinhas a saltar! Ui! (QUEIRÓS, 1992, p. 339).

Sentia todas as sensações despertadas pelas imagens visualizadas e os


pormenores que elencava davam mais veracidade à antecipação. À maneira de quem
cria enredos, a personagem vai montando cada cena, detalhando e formatando as
situações, como se de fato as concretizasse. O subjetivismo de Artur dava o tom às
imagens mentais construídas e a base para sua idealização vinha das impressões que
suas leituras lhe causavam. Impregnava-se de sentimentalismo por meio delas e estendia
aos outros a sua predileção, pois, também compunha obras assemelhadas àquelas que
lia. Pretendia triunfar com o texto dramático que criara porque supunha que todos ao
seu redor eram leitores entusiastas, ao modo dele. Com essa perspectiva, transferia aos
demais as características e reações de leitura presentes nele mesmo e, por isso, nesse
exercício mental de projeção do futuro, só esperava sucesso absoluto, afinal, se ele se
orgulhava do seu texto, exacerbadamente amoroso, todos o aprovariam também. As
mesmas expectativas eram criadas ainda com relação ao livro de poemas que escrevera:
Esmaltes e joias. Não admitia rejeição às suas produções pois julgava todos os leitores
por si.

Supor as reações de leitura de alguém é um comportamento observado também


na personagem Nóbrega (Esaú e Jacó), quando, ao escrever uma carta, para pedir Flora
em casamento, idealiza qual será a atitude da jovem:

Tinha imaginado que ela, ao ler a carta, devia ficar tão pasmada e agradecida,
que nos primeiros instantes não pudera responder a D. Rita; mas logo depois
as palavras sairiam do coração às golfadas. “Sim, senhora, queria, aceitava;
não pensara em outra coisa”. Escreveria logo ao pai e à mãe para lhes pedir
licença; eles viriam correndo, incrédulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha
e D. Rita, não duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o
pai lho fosse dar em pessoa. (ASSIS, 1999, p. 172).

Por confiar sobejamente em si próprio, Nóbrega cria na aceitação da proposta


como um fato concreto e, desse modo, passa a antecipar as reações que teria Flora, ao
ler a carta. Ele elabora mentalmente toda a situação, atribuindo à moça arroubos
66

românticos, manifestos em euforia, o que contraria radicalmente o perfil de Flora, não


afeito a demonstrações de sentimentalismos, nem mesmo pelos gêmeos que de fato lhe
despertavam afeto. Na verdade, esse homem transfere o seu entusiasmo à jovem e passa
a visualizar até mesmo as reações dos “futuros sogros”. Em atitude semelhante à da
personagem queirosiana Artur, ele antecipa, faz projeções, constrói cenas, em um
processo imaginativo.

Considerando ainda a personagem Artur, nota-se que, ao verificar o insucesso de


seus planos e o fato de já haver consumido todos os recursos financeiros da herança
recebida, ele faz nova antecipação do futuro, imaginando que provocar a própria morte
seria a solução. Mais uma vez, vê-se o delineamento da personagem, sob fortes traços
românticos: o escapismo, a evasão pela morte, o exagero das emoções. Contudo, bem ao
gosto da narrativa queirosiana, o choque com a realidade imediata de algum modo o
“desperta”:

O rio agitado, na maré crescente, batilhava tristemente na escuridão contra as


escadas do Cais das Colunas: entre os botes amarrados, a água tinha
tenebrosidades frias [...]. Era só subir ao parapeito, saltar, estava livre! Seria a
agonia dum momento, uma sufocação estrebuchada, goles de água engolidos
– e a paz! Então pareceu-lhe que estava morto já, que o encontravam,
inchado, verde, todo coberto de lodo: reconhecê-lo-iam, e o mistério
dramático da sua morte encheria os jornais, dar-lhe-ia uma celebridade: os
Esmaltes seriam lidos, procurar-se-ia neles o segredo da sua resolução, como
num documento de amargura [...]; a Concha choraria, a baronesa amaria a sua
memória! – E aquela glória, em volta do seu cadáver, tentava-o
estranhamente: por que não? Por que não? Certos reflexos mais negros da
água chamavam-no, com intenções de pupilas humanas; reteve-o o horror do
frio, o sentir a roupa molhada colar-lhe ao corpo – e uma vaga inércia, como
a preguiça de tomar uma resolução tão forte – e ao mesmo tempo sentia-se
enternecido, com uma saudade romanesca da sua própria existência extinta...
Mas olhava a água, de pé, com a cabeça toda em febre.

Uma voz fina, muito lisboeta disse ao pé:

- O senhor viu tirarem-me o chapéu?

Era um sujeitinho barrigudo, nédio, de repas grisalhas que repetiu:

- Viu tirarem-me o chapéu?

- Eu? Não – disse Artur impaciente. (QUEIRÓS, 1992, p. 365).

A personagem cogita a morte como recurso para livrar-se dos dramas pessoais; a
alternativa, lida nos poemas românticos como um escape para a dor e melancolia, lhe
vinha à mente como modelo de ação. Mas não bastava morrer, era preciso criar todo um
67

enredo célebre para a ocasião, supondo as reações das pessoas e a repercussão do seu
ato, considerado por ele quase como uma deliberação heroica. Compunha os detalhes da
cena, como se escrevesse uma página romanesca e colocava-se na posição de receptor
da sua criação, enaltecendo-se. Porém, como é comum em textos queirosianos, a
circunstância física pesa mais que a resolução sentimental e, assim, Artur desiste do
intento por medo do frio, do encontro do corpo com a água gelada. A ação destemida,
que tencionava, perde força para o apelo do próprio corpo. Avulta ainda a sua habitual
passividade e ele começa a sentir saudade de si, fazendo transparecer a fragilidade das
suas decisões, característica que também reveste aquele ser. Agia movido pelo exagero
das emoções, mas, desde que elas não o levassem a situações de risco extremo, o que de
certo modo contraria sua afinidade com os heróis românticos.

Outro ponto a destacar, no mesmo fragmento, é o fato de que, ironicamente, é


uma situação bem trivial e até incômoda que vem arrancá-lo de suas elucubrações: um
estranho vem interrompê-lo, na hora extrema, para tratar de algo banal. Artur, portanto,
desconecta-se da visualização de uma morte gloriosa e incompreendida – que lhe traria
fama – para voltar-se a um reles inconveniente cotidiano que o traz de volta à realidade.
Nesse jogo da imaginação romântica versus vida prática, vão transparecendo os traços
de composição dessa personagem, cujo modo de ler marca a sua atuação, ou seja, o seu
modo de ser.

A confluência entre a constituição de agentes ficcionais e o seu desempenho


como leitores configura-se como um expediente de criação literária presente nas
narrativas de Eça e Machado. Sob tessituras diferentes, mas, convergindo neste ponto,
ambos os autores estabelecem estreitas relações entre o exercício da leitura e o
comportamento das personagens. Neste contexto, atribui-se à leitura uma operação que
demanda não apenas esforço intelectivo e concentração, mas, sobremaneira, um
envolvimento com o que é lido, tanto para tomá-lo como referência para as ações, como
também para (des)cumprir papéis sociais, associados a escolhas de leitura. Há ainda os
casos em que a leitura é subterfúgio, fuga, astúcia, projeção, enfim, ela está associada
frequentemente à composição das personagens e às tensões, planos, reflexões e
movimentos por elas vivenciados. Comportamentos e temperamentos vão-se
elucidando, ao longo das narrativas, sob formatos distintos, mas comumente por meio
dos mecanismos de leitura orquestrados pelos indivíduos ficcionais. Essa
correspondência harmoniosa, entre os modos de ser e os modos de ler, acaba por
68

configurar-se como “chave” de leitura para o receptor, que acompanha a trajetória


daqueles que se movimentam nas páginas de Eça e Machado.
69

3. Além da palavra escrita

Tenho folheado e lido atentamente o


Mundo, como um livro cheio de
ideias.
(Eça de Queirós).

3.1 Releitura: ler e contestar

Ler o literário significa permitir-se abandonar o costumeiro olhar diante de


pessoas, ambientes, quadros culturais e sociais para assim transcender a compreensão e
alargar a percepção a respeito dessas temáticas. Mas tal processo muitas vezes não está
isento de inquietações, ao contrário, o leitor, em contato com certas obras, é convidado a
questionar valores, crenças e opiniões, reconfigurando assim seus pensamentos e ideias,
ainda que esses lhe pareçam firmes, imutáveis.

Os significantes, no texto literário, são potencialmente capazes de revelar


significados de modo metafórico, associativo, acionando a capacidade do leitor de
reconhecer as elaborações artísticas da linguagem, que favorecem um efeito estético.
Mas, para além disso, certas criações literárias também instigam o receptor a uma
reflexão mais profunda, um convite a mergulhar em um universo construído e revelado
através da leitura.

É relevante, portanto, que a leitura literária abrigue contradições, polêmicas e


incertezas, instigando assim o receptor do texto a construir novos sentidos, instaurando
um diálogo constante com aquilo que lê e, consequentemente, com aquilo que o rodeia.
Na perspectiva de Proust (2011), a leitura “[...] é uma intervenção que, vinda de um
outro, se produz no fundo de nós mesmos” (p. 38).

Em O crime do padre Amaro (1880), os temas levantados permitem perceber a


necessidade do desenvolvimento de uma leitura atenta e ampla, para que se tenha uma
visão que transcenda a superfície contextual, enxergando assim fatos e características
que interferem no funcionamento social e no comportamento dos indivíduos. É
importante esclarecer que a leitura, nesse contexto, se configura como uma operação
que ultrapassa o decifrar do texto escrito e estende-se ao entendimento, à interpretação
de ambientes, maneiras de agir, temperamentos, hábitos, panoramas sociais, enfim, tudo
70

aquilo que é passível de ser compreendido em uma dimensão mais ampla, ou seja, para
além daquilo que é visível.

A personagem Amaro lê os pormenores da vida eclesiástica ao seu redor e


decide tornar-se padre, passando a representar um papel social que duplica sua imagem:
ele ostenta uma versão pública ilibada, respeitável, mas que é bem diferente da sua real
conduta hipócrita e egoísta. Além disso, o que o atraiu para a vida religiosa não foi a
vocação legítima, mas sim as benesses de que poderia dispor:

[...] não lhe desagradava ser padre, lembravam-lhe os padres que vira em casa
da senhora marquesa, pessoas brancas e bem tratadas, que comiam ao lado
das fidalgas e tomavam rapé em caixas de ouro; e convinha-lhe aquela
profissão em que se cantam bonitas missas, se comem doces finos, se fala
baixo com as mulheres – vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o
calor penetrante – e se recebem presentes em bandejas de prata. (QUEIRÓS,
2004, p. 32).

Na verdade, a real inclinação de Amaro era para o desejo, queria descobrir e


vivenciar os prazeres que o contato com uma mulher poderia lhe proporcionar. Tal
“vocação” era tão ardorosa que ele, por vezes, chegava a negligenciar os símbolos mais
sagrados da religião à qual servia, de modo que enxergava, numa imagem amplamente
reverenciada pelos católicos, um significado totalmente inusitado ou até mesmo vulgar:

[...] ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via


apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se
olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as
pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma
carne branca... [...] mas não se atrevia a revelar estes delírios, no
confessionário, ao domingo. (QUEIRÓS, 2004, p. 35) .

A conveniência era a única razão que conduzira Amaro à vida eclesiástica e


talvez por esse motivo ele não conseguisse apaziguar os seus desejos, seus impulsos
naturais. Por meio das descrições relativas a essa personagem, é possível entrever, no
discurso do narrador queirosiano, uma crítica às convenções religiosas, a exemplo do
celibato clerical, uma vez que tal norma de conduta vai de encontro aos preceitos
ideológicos do realismo-naturalismo europeu, que enfoca o ser humano no seu aspecto
orgânico, fisiológico, considerando, portanto, uma tarefa árdua e inútil a de vencer os
anseios do próprio corpo. Nessa perspectiva, o narrador minudencia as fantasias de
Amaro, como uma releitura do sagrado, uma distorção da imagem feminina venerada
pelos religiosos, enxergando-a como uma mulher comum, desejável.
71

Em D. Casmurro (1899), embora o narrador venha a se justificar para quem o lê,


vê-se também uma aproximação comparativa entre uma figura feminina e os elementos
que compõem a base do ritual católico:

Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam


a meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de
um altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia
ser o cálix, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que
ninguém aprende, e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por
sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver
menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os
nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica.
(ASSIS, 1995, p. 31).

Embora a atitude dessa comparação, que enaltece a personagem Capitu, seja


mais poética e bem menos “comprometedora” que os devaneios de Amaro diante da
litografia, ainda assim o narrador machadiano procura justificar o que expusera,
ressaltando a “limpeza da intenção” e a imagem “seráfica” atribuída ao casal. Buscava,
assim, um lirismo que não “corrompia” o sagrado e assim suavizava o traço profano que
lhe fora atribuído com a comparação. Desse modo, a “leitora devota” não se
incomodaria com tais menções, o que dificilmente ocorreria com o mesmo perfil de
leitor que percorresse o referido trecho do romance de Eça.

Essa releitura do sagrado também se faz presente, embora de forma diversa, no


conto Adão e Eva (1885), de Machado de Assis. Um tema caro às mais tradicionais
acepções religiosas é totalmente subvertido, logo no início da narrativa, quando a
personagem Veloso, o juiz-de-fora, apresenta uma surpreendente versão para a origem
do mundo:

— Aqui está como as cousas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus
que criou o mundo, foi o Diabo...
— Cruz! exclamaram as senhoras.
— Não diga esse nome, pediu D. Leonor. (ASSIS, 1994, p. 32).

A partir da espantosa declaração, o sr. Veloso vai tecendo a sua narrativa acerca
da criação do mundo, detalhando aspectos que tornavam a sua versão tão convincente
quanto a original. E esta inclusive passa a ser rebaixada a uma condição de
inautenticidade, uma vez que a personagem afirma que “as cousas no paraíso terrestre
passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do Pentateuco,
que é apócrifo”. (ASSIS, 1994, p. 34). Há uma nítida inversão de valores, de maneira
72

que o sagrado é questionado, abrindo margem à possibilidade de outra versão para os


fatos bíblicos. Brandão e Oliveira (2011) destacam, na escrita ficcional machadiana, um
processo que eles denominam “ruminação”, por influência do próprio escritor: “No caso
de Machado de Assis, em vários casos, a apropriação do alheio, a incorporação dos
textos lidos, a devoração das obras alheias fazem-se pela ruminação.” (BRANDÃO;
OLIVEIRA, 2011, p. 119). Tal processo compreende uma modalidade de leitura em que
o conteúdo lido é processado, gerando reflexões e por conseguinte a recriação, a
produção de outro texto; o original, portanto, é a base que “sustenta” uma nova versão,
proveniente da “leitura ruminante”2.

Considerando a escrita irônica de Machado, nota-se que o conto Adão e Eva


pode ser considerado uma paródia de um texto sagrado, de forma a ressignificá-lo
exatamente no seu aspecto inviolável. A sagração perde força, admitindo uma releitura
que contesta o discurso bíblico, o que revela também um questionamento dos dogmas
defendidos especialmente pelo catolicismo, pois a personagem Veloso narra sua versão,
sem qualquer constrangimento, mesmo estando diante de um típico representante da
Igreja, o frei Bento. Desse modo, o mito de Adão e Eva é reconfigurado, pois a serpente
não consegue persuadir Eva a experimentar o fruto proibido, e as consequências para a
humanidade passam a ser repensadas:

Eva estremeceu.
— Quem me chama?
— Sou eu, estou comendo desta fruta...
— Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
— Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida.
Anda, come e terás um grande poder na Terra.
— Não, pérfida!
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? [...] Que mais queres
tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem
será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela.
[...]
Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-as e confirmou a resposta de
Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma
outra ilusão da Terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro e deixaram a
serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:

2
Os autores Brandão e Oliveira (2011) esclarecem que fora o próprio Machado quem fez a associação
entre o ato de ler e o de ruminar. Na obra Esaú e Jacó, observa-se o seguinte alerta: “O leitor atento,
verdadeiramente ruminante tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os
fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida”. (ASSIS, 1999, p. 119).
73

— Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e
traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às
instigações do Tinhoso. (ASSIS, 1994, p. 35).

O conto machadiano parodia o mito bíblico: o primeiro casal que teria habitado a
Terra é destituído da culpa por todos os sofrimentos humanos; a ideia de “pecado
original” – crença clássica entre vários religiosos – deixa de existir. Desse modo, o texto
oferece ao leitor a possibilidade de divisar os escritos, considerados sagrados, como
uma narrativa que pode comportar tanto diferentes interpretações, como também
diferentes enredos. É ainda uma forma de relativizar o convencional contraste entre o
profano e o sagrado, atribuindo ao leitor a capacidade de ponderação, além do rasgo
crítico que lhe permita enxergar o que está instituído, sob novas leituras. Convém, nesse
sentido, apresentar o comentário final, feito pela personagem Veloso, em que este
apresenta as “vantagens” da sua versão para a criação do mundo, em detrimento do
formato tradicional:

E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:


— Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor,
se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na
verdade, uma cousa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de
Itapagipe? (ASSIS, 1994, p. 35).

Ainda que admita que sua tese não era verídica, ele sugere uma releitura acerca
do “pecado original”, uma vez que este passa a ser considerado como algo proveitoso.
Tal visão contradiz a crença religiosa que associa a falha de Adão e Eva ao sofrimento
do homem. Na ótica da personagem machadiana, “pecar” foi o meio pelo qual toda a
humanidade pôde ter acesso às delícias, aos prazeres do mundo; constitui-se, portanto,
como algo benéfico. Caso a proposta narrada fosse a verdadeira, a descendência de
Adão e Eva não teria povoado a Terra e desfrutado de seu esplendor, pois o obediente
casal teria ido habitar outras esferas. Assim, seja contrariando o sagrado ou atestando-o,
o texto machadiano permite a releitura dos seus significados, de forma bem-humorada,
satírica, bem ao gosto da paródia.

Tal temática também é observada em Esaú e Jacó (1904) quando o Conselheiro


Aires procura atribuir uma justificativa para a “desobediência” de Adão:

Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador que,
aliás, lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da
oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e
ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta quando sopra o vento.
74

Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a
liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. (ASSIS, 1999, p. 76).

Relê, portanto, a convencional submissão do homem às leis divinas,


contestando-a a partir do próprio discurso bíblico, pois este atribui a liberdade a Adão,
como condição primeira. Ora, uma vez livre, não poderia sujeitar-se constantemente a
normas. Desse modo, a personagem Aires acaba por constatar, na atitude do “primeiro
homem”, uma característica que se estenderia a toda a humanidade: na busca pela
liberdade de escolha, de ação e de pensamento, carrega em si um “velho instinto de
resistência à autoridade” (p. 76).

Ainda que a releitura do sagrado não seja relativa a ideias extraídas dos textos
bíblicos, como se verifica nos referidos textos machadianos, o romance de Eça de
Queirós, O crime do padre Amaro, também delineia as práticas religiosas do
protagonista (muitas delas associadas às suas experiências de leitura) de modo
contestador. As obrigações sacerdotais do jovem padre sofriam, muitas vezes, a
interferência do seu lado humano, carnal, o que o levava a colocá-las em discussão.

O universo eclesiástico de fato nunca havia despertado o interesse de Amaro, seu


ingresso no seminário e sua posterior rotina como padre eram um meio de garantia da
sobrevivência, sem maiores esforços; essa alternativa de vida lhe havia sido imposta e
ele aceitara, sem oferecer qualquer resistência. Porém, intimamente sabia que não
possuía inclinação para a vida religiosa e, especialmente, não conseguia negligenciar as
suas paixões, seus desejos físicos; estes sim definiam a sua real vocação. Os momentos
em que deveria se dedicar à leitura do livro de orações e textos, prescritos pela igreja
católica, davam-lhe a prova definitiva de que as ações cotidianas da jovem Amélia
despertavam muito mais a sua atenção que as leituras “sagradas”, de modo que estas
comumente ficavam comprometidas, porque o pároco distraía-se em constatar que
Amélia estava tão próxima, no quarto acima do seu:

Amaro abriu o seu Breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas
estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o teto,
através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o
tique-taque das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela
sacudia ao despir-se. (QUEIRÓS, 2004, p. 29).

Ainda que se esforçasse por ler o que lhe era devido, o padre não conseguia
resistir ao impulso de deleitar-se com os ruídos que ouvia do quarto de Amélia e que o
75

levavam a imaginar minúcias da intimidade da moça. Tal atitude reforça a tese,


defendida pelo naturalismo de Eça, de que o comportamento humano é regido pelos
instintos naturais. Por outro lado, ainda que não estivesse imbuído de desejo, Amaro
desconcentrava-se, nos momentos de leitura, bastando que um pequeno acontecimento
conduzisse sua atenção até Amélia. E, mais tarde, quando se preparava para deixar a
casa da jovem, pois ia morar sozinho, observava com tristeza o quarto onde dormira,
recordando-se não das leituras que ali realizava, mas do fato de poder, desse lugar, ouvir
a moça no cômodo superior: “[...] a cada momento parava, dava um ai triste, ficava a
olhar em redor o quarto [...], a larga cadeira forrada de chita onde ele lia o Breviário,
ouvindo, por cima, cantarolar Amélia.” (QUEIRÓS, 2004, p. 101).

Há ainda uma cena em que um livro é destituído de seu caráter “sagrado” e


configura-se de modo bem diverso, ao sabor das intenções ali projetadas. Um livro é
oferecido no intuito de promover um determinado efeito, ainda que a estratégia se
construa de forma sutil. O padre Amaro, ardorosamente interessado na jovem Amélia,
encontra na leitura um meio para seduzi-la, despertando-lhe desejos sem provocar a
desconfiança alheia, pois, aparentemente, a obra oferecida por ele era de cunho
religioso. É relevante destacar que fora primeiramente o próprio Amaro que se deixara
seduzir pelo livro, pois, na leitura que realizara, ele reconstruiu o sentido, atribuindo aos
escritos uma conotação sexual. As circunstâncias que o envolviam – o desejo por
Amélia e o fato de morar com ela na mesma casa – contribuíram para a subversão de
significados observada na sua leitura.
Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então
a ler os Cânticos a Jesus. É uma obrazinha beata, escrita com um lirismo
equívoco, quase torpe – que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é
invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes d’uma concupiscência
alucinada: “Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma
impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! Queima-
me! Vem! Esmaga-me! Possui-me!” E um amor divino, ora grotesco pela
intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem
páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a
cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos
frenéticos [...] vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas
resolvendo casos difíceis de jejuns e orações para as dores do parto. Um
bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas leem-no no
convento. Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos
sonoros, túmidos de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o
leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos [...] e parecia vê-la [...]
desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois
seios muito brancos. Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal
de a possuir. Começara então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos a Jesus.
(QUEIRÓS, 2004, p. 77).
76

Amaro deixou-se envolver pela linguagem apelativa que para ele tornou-se
sinônimo de sedução e, dessa forma, supôs para Amélia um efeito de leitura semelhante,
em que também ela interpretaria de maneira erotizada os escritos religiosos,
transformando as invocações, aparentemente fervorosas, em clamores lascivos. Tal
leitura poderia também influenciá-la a enxergar, no padre, a figura humana passível de
envolvimentos afetivos e desejos físicos.
Nota-se, no fragmento do romance, uma prática em que a associação de
significados é feita de forma livre e em consonância com os fatores (características
contextuais) que permeiam as personagens leitoras. E, para além do universo ficcional,
nota-se que a leitura de O crime do padre Amaro favorece que se observem as
construções linguísticas, delineadas de modo incisivo pela intrusão do narrador, levando
o receptor da obra a perceber a censura crítica atribuída a certos comportamentos de
religiosos, no que se refere ao trato com impulsos físicos, tão explicitamente expostos
por autores do realismo-naturalismo, como era o caso de Eça. Ler a obra permite a
percepção de que os desejos eram reprimidos publicamente – porque convinha ao
âmbito social – e instigados secretamente, inclusive através de práticas de leitura
representadas na trama e captadas pelo leitor real.

A confirmação da total ausência de vocação para a carreira eclesiástica também


pode ser percebida na leitura, feita por Amaro, acerca dos hábitos dos padres que com
ele conviviam, em Leiria. E isto não se dava pelo fato de ele censurar-lhes o caráter, a
conduta, mas sim por não identificar-se de modo algum com a rotina vivida na igreja,
pois o dia-a-dia ali lhe parecia tedioso, desinteressante: “[...] sentia-se muito pouco
padre, muito distante da panelinha eclesiástica: não lhe interessavam as intriguinhas do
cabido, [...] os roubos da Misericórdia, as turras da câmara eclesiástica com o governo
civil; e achava-se sempre alheio, mal informado.” (QUEIRÓS, 2004, p. 105). Por outro
lado, ao isolar-se na própria companhia, também não sentia alívio, pois se apoderava
dele a angústia daquela vida divorciada de seus desejos mais íntimos. A leitura, nesse
momento, surgia como fuga, distração, todavia, não se concretizava, pois ele havia
perdido a capacidade de concentração desde o período em que, ainda morando na casa
da senhora Joaneira (mãe de Amélia), comprometera suas práticas de leitura,
entregando-se às distrações relativas à jovem. Uma vez morando sozinho, já não
conseguia ler: “Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava só. Procurava ler, mas
77

os livros enfastiavam-no; desabituado da leitura, não compreendia ‘o sentido’.”


(QUEIRÓS, 2004, p. 105).

Ler o breviário, para Amaro, era muitas vezes uma ação penosa, o que indicava
sua inadequação aos preceitos da Igreja. Quando se viu obrigado a distanciar-se de
Amélia, passou a abrir mão das “leituras sagradas”, uma vez que elas representavam,
para ele, uma obrigação fatigante, custosa, e o pároco já se sentia injustiçado o
suficiente: “Deitava-se sem rezar às vezes; e não tinha escrúpulos: julgava que ter
renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler orações no
livro; celebrara o ‘seu sacrifício’ – sentia-se vagamente quite com o Céu!” (QUEIRÓS,
2004, p. 106). Por outro lado, mais adiante, ao voltar a frequentar a casa da senhora
Joaneira, como visita ilustre, sentiu-se bastante satisfeito por poder retomar o contato
com Amélia e a leitura do livro de orações passava agora a funcionar como uma espécie
de amuleto que lhe traria sorte: “E antes de sair rezou cuidadosamente o seu Breviário –
porque em presença daquele amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus
ou os santos escandalizados o viessem perturbar; e não queria, com desleixos de
devoção, dar-lhes razão de queixa.” (p. 109-110, grifos do autor). A leitura, portanto,
associava-se a um ritual que lhe tornaria imune aos castigos celestiais relativos aos
sentimentos “ilícitos” que ele nutria por Amélia.

Para além das leituras realizadas dentro do romance queirosiano, evidencia-se


que o receptor de O crime do padre Amaro é levado a refletir acerca de temas que até
hoje se caracterizam como polêmicos, delicados. A obra, portanto, revela um caráter
extremamente dissonante ao apresentar uma personagem que contesta avidamente
determinações seculares da Igreja, acerca do celibato clerical. O conceito de
dissonância, apresentado por Dias (2012), diz respeito à possibilidade de se questionar,
mediante o discurso literário, valores socioculturais sedimentados, ideias hegemônicas
que restringem a visão de mundo a perspectivas pouco abrangentes, porque pautadas,
muitas vezes, na ótica de um grupo social privilegiado. Curiosamente, Amaro não era
simplesmente um homem que refletia a respeito das normas de conduta atribuídas aos
padres, ele era um integrante do clero que não aceitava e criticava certas imposições,
utilizando argumentos bastante persuasivos nesse sentido:

E quem inventou isto? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo


dos seus claustros, da paz das suas escolas, mirrados como pergaminhos,
inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas tentações?
Que viessem ali duas, três horas ao pé da Ameliazinha, e veriam, sob a sua
78

capa de santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se ilude e se


evita, menos o amor! E se ele é fatal, por que impediram então que o padre o
sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá
procurar pelas vielas obscenas! – Porque a carne é fraca! (QUEIRÓS, 2004,
p. 114).

Embora o desabafo de Amaro fosse destinado apenas a si próprio, pois ele não o
dirigia às autoridades clericais acima dele, ainda assim, considerando a esfera
extraficcional, nota-se que o romance proporciona a oportunidade de se realizar uma
leitura reflexiva acerca de um tema ainda muito discutido. A fusão entre o narrador e a
personagem, nesse momento, favorece que o leitor perceba uma estratégia crítica da
obra que é a de contestar regras consagradas de conduta religiosa, incitando assim que o
ler transforme-se no pensar e/ou posicionar-se diante do que é colocado.

A argumentação interior do pároco enfocava que, para além da sua condição de


religioso, estava a sua condição de ser humano, dotado de desejos e sensações: “O seu
amor era pois uma infração canônica, não um pecado da alma: podia desagradar ao
senhor chantre, não a Deus; seria legítimo num sacerdócio de regra mais humana.”
(QUEIRÓS, 2004, p.115). A leitura que faz Amaro, acerca do celibato, propõe uma
“relativização do pecado”, que passaria a constituir-se como tal apenas segundo
determinado ponto de vista. Tal visão é absolutamente moderna para a época, já que O
crime do padre Amaro é um romance cuja publicação data da segunda metade do século
XIX; nesse sentido, observa-se que dissonância e literatura aliam-se, a fim de promover
uma releitura de certos preceitos enraizados na cultura religiosa tradicional.

Outro ponto revolucionário foi o fato de a personagem, a fim de descriminalizar


os próprios “pecados”, igualar, na mesma condição de homens, os integrantes da mais
alta cúpula da Igreja, no sentido de racionalizar que eles poderiam vir a cometer as
mesmas “infrações”: “Estava doido pela rapariga – era o positivo. Queria-lhe o amor,
queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o senhor bispo se não fosse velho faria o
mesmo, e o papa faria o mesmo!” (QUEIRÓS, 2004, p. 115). Os títulos religiosos, nesse
momento, não diferenciavam os indivíduos, pois a característica primordial de cada um
não era a posição hierárquica, mas sim a condição de ser humano, o que os tornaria
suscetíveis aos próprios anseios.

Amaro só se sentiu amedrontado, diante dos seus desejos, no momento em que


violou pela primeira vez os seus votos de castidade, quando era ainda muito jovem. Na
79

ocasião, ele, apavorado, receou sofrer os castigos da ira celeste, de modo que não
celebrou a missa no dia em que se sentiu pecador:

[...] acordara aterrado, por ter na véspera, pela primeira vez depois de padre,
pecado brutalmente sobre a palha da estrebaria com a Joana Vaqueira. [...]
Três vezes chegara à porta da igreja, três vezes recuara assombrado. Tinha a
certeza de que, se ousasse tocar na Eucaristia com aquelas mãos com que
repanhara os saiotes da Vaqueira, a capela se aluiria sobre ele, ou ficaria
paralisado vendo erguer-se diante do sacrário, de espada alta, a figura
rutilante de S. Miguel Vingador! (QUEIRÓS, 2004, p. 225).

Até esse momento, os escrúpulos do pároco ainda eram latentes, porém, o que o
fez libertar-se do desconforto, e até mesmo encarar com naturalidade seu posterior
interesse por Amélia, foi exatamente a leitura que fez do ambiente eclesiástico em que
se inseria:

Agora tinha aberto os olhos em redor à realidade humana. Abades, cônegos,


cardeais e monsenhores não pecavam sobre a palha da estrebaria, não – era
em alcovas cômodas, com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluíam, e S.
Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os confortos do céu!
(QUEIRÓS, 2004, p. 225).

Neste ponto da narrativa, observa-se a ironia do discurso que minimiza a


gravidade da desobediência à norma do celibato clerical e ao mesmo tempo neutraliza a
acepção intimidadora das supostas punições que sofreriam os padres transgressores.
Essa mudança de perspectiva deve-se à astuta leitura que fazia Amaro acerca dos
hábitos dos padres ao seu redor e daqueles de que tinha notícia. Desse modo, o que
antes lhe parecia aterrorizante, suaviza-se, assumindo a condição de fato comum,
natural.

Outra leitura, dentro do romance, que apresenta diferentes interpretações para


um mesmo tema é a que faz o Dr. Gouveia, a respeito do amor. Ao conversar com João
Eduardo (ex-noivo de Amélia) acerca dos sentimentos desse rapaz, o médico – que na
obra é o representante da racionalidade – apresenta suas considerações:

- Ah! fez o doutor, é uma bela e grande coisa a paixão! O amor é uma das
grandes forças da civilização. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para
nos fazer a revolução moral... – E mudando de tom: - Mas escuta. Olha que
isso às vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente
um termo de que nos servimos, por decência, para designar outro órgão. É
precisamente esse órgão o único que está interessado, a maior parte das
vezes, em questões de sentimento. E nesses casos o desgosto não dura.
Adeus, espero que seja isso! (QUEIRÓS, 2004, p. 185).
80

Bem ao gosto das teorias científicas que orientavam os intelectuais e escritores,


na segunda metade do século XIX, a personagem apresenta outra versão para os
sentimentos supostamente amorosos. Embasa sua perspectiva nos impulsos naturais do
corpo humano e é precisamente esse mesmo argumento que é utilizado para destituir o
padre Amaro de qualquer culpa, no que se refere aos interesses desse homem por
Amélia: “Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a
importância dum Deus. [...] há de utilizar essa importância para satisfazer essas paixões
e com os pretextos do serviço divino... É natural”. (QUEIRÓS, 2004, p. 184). A
mentalidade racional do médico diferia das acepções da grande maioria dos habitantes
da cidade de Leiria, pois estes não conseguiam enxergar, nos líderes religiosos, traços
de humanidade e muito menos admitiam a hipótese de eles sentirem desejo, atração
física.

Por outro lado, a narrativa apresenta uma situação em que um dos líderes da
Igreja assumia sua condição de humano e entendia que a autoridade moral atribuída aos
clérigos não passava de mera convenção e/ou processo ritualístico. Entretanto, tais
posicionamentos eram admitidos apenas nos bastidores, em conversas íntimas e
desabafos:

Natário irritou-se:
- Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós, pelo fato de ser
padre, porque o bispo lhe impôs três vezes as mãos e porque lhe disse o
accipe, tem missão direta de Deus, - é Deus mesmo para absolver?!
[...]
- A confissão é a essência mesma do sacerdócio, soltou o padre Amaro com
gestos escolares, fulminando Natário. Leia Santo Inácio! Leia S. Tomás!
- Anda-me com ele! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando
Amaro. – Anda-me com ele, amigo pároco! Salta-me no cachaço do ímpio!
- Oh, senhores! berrou Natário furioso com a contradição, o que eu quero é
que me respondam a isto. E voltando-se para Amaro: - O senhor, por
exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão torrado, tomou o seu
café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no confessionário, às
vezes preocupado com negócios de família ou com faltas de dinheiro, ou com
dores de cabeça, ou com dores de barriga, imagina o senhor que está ali como
um Deus para absolver? (QUEIRÓS, 2004, p. 88).

O padre Natário enfoca a sua condição de humano e, consequentemente, o fato


de ser vulnerável às mais corriqueiras situações, desde dores no corpo até preocupações
financeiras. Desse modo, ele acaba por empreender uma releitura dos tradicionais
procedimentos da Igreja: a seriedade da confissão do fiel e o poder de absolvição
81

conferido ao padre. Natário aponta a enorme distância que haveria entre o ser divino e o
ser humano e este, devido às limitações impostas muitas vezes pelo próprio corpo,
logicamente não teria autoridade moral para destituir as culpas alheias. Tal discurso
contradiz drasticamente os valores da Igreja e representa uma postura bastante
dissonante, considerando que os argumentos vinham de um membro do clero, ainda que
não fossem proferidos em público. Era uma releitura de dogmas consagrados e uma
visão bem à frente do tempo, já que as tradições religiosas eram amplamente
defendidas, nos oitocentos.

Outro ponto relevante diz respeito à atitude de Amaro, ao defender a prática da


confissão e o poder, conferido ao padre, de perdoar as faltas aos fiéis. Tal
comportamento demonstra que o pároco inclinava-se a corroborar somente os dogmas
que não contrariassem suas conveniências e/ou que lhe permitissem angariar a
confiança da comunidade, de modo a obter assim um “passaporte” para livre acesso às
casas e à intimidade das pessoas, especialmente a de Amélia. Contudo, quando refletia
sobre a imposição da castidade aos sacerdotes, a opinião de Amaro, conforme já
comentado, diferia substancialmente dos preceitos estabelecidos.

Considerando ainda o fragmento anteriormente citado, observa-se que ele incita


o leitor empírico a refletir acerca da lógica, proposta pela personagem Natário, que não
diferencia o sacerdote do homem comum. Ao mesmo tempo, demonstra o fato de que,
na trama, tal ponto de vista, embora defendido ardorosamente na intimidade, era
radicalmente ocultado na vida pública, pois se afigurava muito revolucionário para a
época e, talvez, até mesmo para os dias atuais, em que as figuras eclesiásticas ainda
constituem-se, para muitos, como autoridades morais, como homens fora do comum.

A própria discussão acerca do celibato ultrapassa os limites do tempo, uma vez


que, embora a publicação do livro tenha chocado o público leitor da época, observa-se
que essa temática ainda provoca polêmica. Jauss (1994) enfatiza que uma produção
literária, ao ser publicada, depara-se com o “horizonte de expectativas”, correspondente
aos códigos vigentes e às experiências sociais de uma época. Desse modo, é exatamente
o processo de leitura que pode favorecer uma ruptura com o que é conhecido, ou mesmo
com visões que são culturalmente impostas. A arte não tem função de confirmar o
estabelecido, mas pode sim contrariá-lo, apresentá-lo sob novo ângulo.
82

Um novo enfoque de um tema também pode ser apresentado de forma sutil,


valendo-se do recurso da ironia para iluminar certos comportamentos e crenças, de
maneira a que se exponham traços de exagero e falta de embasamento crítico. É o que
se nota numa cena de Esaú e Jacó, quando a personagem Santos – pai dos gêmeos
Pedro e Paulo – em conversa com o “mestre” Plácido, sobre as desavenças entre os
filhos, vem a elaborar curiosos raciocínios acerca dos irmãos:

O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com


grandes fechos de metal. Abriu a Epístola de S. Paulo aos gálatas e leu a
passagem do capítulo II, versículo 11, em que o apóstolo conta que, indo a
Antioquia, onde estava S. Pedro, “resistiu-lhe na cara”.
Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando são belas
e examinadas quando são novas; a dele era a um tempo nova e bela.
Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:
- Sem contar que este número onze do versículo, composto de dois
algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece?
- Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dois, que é o próprio
número dos irmãos gêmeos.
Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial,
escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números
gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e
bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dois meninos
os próprios espíritos de S. Pedro e S. Paulo, que renasciam agora, e ele, pai
dos apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em
si mesmo, e os olhos ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a
chama da vida. Pai de apóstolos! E que apóstolos! (ASSIS, 1999, p. 41.).

O narrador machadiano parece zombar dos misticismos vagos, das deduções


aleatórias que insistem em parecer lógicas, convincentes ou, ao menos, críveis. A
personagem busca uma interpretação que enalteça a si e aos familiares, lendo no texto
bíblico indícios que comprovem seu raciocínio. Indivíduos centrais, das sagradas
escrituras, foram trazidos à intimidade familiar, como membros, componentes, sem
qualquer hesitação por parte de Santos. Quando certa teoria já foi assimilada e é
conveniente afirmá-la, qualquer detalhe pode ser convertido em elemento de reforço, de
evidência; assim, reconfigura-se o sagrado em proveito próprio.

É também em benefício próprio que uma personagem do mesmo romance, ao


receber uma esmola generosa da mãe dos gêmeos, resolve atribuir outro fim à quantia
recebida em prol da “missa das almas”:

Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que as almas
nunca viram sair das mãos dele. [...] De repente ouviu abrir a cancela em
cima, e uns passos rápidos. Ele, mais rápido, amarrotou a nota e meteu-a na
algibeira das calças; ficaram só os vinténs azinhavrados e tristes [...]. Na
83

igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz
débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dois mil réis... Os
dois mil réis, dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele, que, em
primeiro lugar, também tinha alma e, em segundo lugar, não recebera nunca
tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não
põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas. (ASSIS, 1999, p. 21).

A personagem, em diálogo consigo, justifica sua atitude mediante argumentos


que vai formulando, a fim de construir uma lógica convincente. Observa-se que a voz
era débil quando lhe lembrava que afanara a nota destinada à missa, porém, tornava-se
“menos débil” quando argumentava em favor de si. A ação do furto é relida,
reapresentada sob outra perspectiva, em que não era válido o fato de o recurso recebido
pertencer ao ritual da Igreja; o que valia era a lógica de que, se o dinheiro iria para a
missa das almas e quem o arrecadou também possuía alma, nada de tão ilícito se
configurava. Distorciam-se as ideias, formulava-se um raciocínio conveniente para
assim aplacar as vozes, pois, “todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência”.
(ASSIS, 1999, p. 21).

As releituras analisadas, a partir de exemplos de produções machadianas,


contestam temas considerados irretorquíveis, sagrados, mediante um discurso bem-
humorado, em que a crítica se infiltra sutilmente, ou tão somente convida o leitor a
repensar certas questões, desdobrando-as em possibilidades diferentes das acepções
costumeiras. Não há um embate mais incisivo, declarado no texto, mas sim
provocações, insinuações.

Já a ficção de Eça, em O crime do padre Amaro, desafiou as expectativas


projetadas pelos leitores do século XIX, ao apresentar temas que subvertem valores
sociais estabelecidos, incitando sua possível reinterpretação, de modo impetuoso,
combativo. Observa-se, por exemplo, a temática da hipocrisia religiosa, que contribuiu
para a repercussão do referido romance, instaurando uma ruptura com o horizonte de
leitura do público oitocentista, acostumado a narrativas mais “leves” e menos
polêmicas.

Dias (2012) esclarece que um escritor lança à sua obra um olhar dissonante,
quando apresenta temáticas e ideias que desarmonizam as convenções, questionando
sua lógica e seus efeitos. Isso se aplica tanto ao contexto de produção e recepção de
obras literárias quanto às novas leituras que elas podem suscitar, pois, como sugere
84

Jouve (2002): “o leitor real, para quem a ‘previsibilidade’ é sinônimo de ‘tédio’,


agradecerá ao narrador por ter desviado suas previsões” (p. 46).

Surpreender o leitor muitas vezes significa desviar o “curso” da narrativa,


percorrendo trajetos inesperados, oferecendo novas possibilidades de pensar as
temáticas apresentadas; dessa maneira, a leitura torna-se releitura.

3.2 Leitura e transcendência

Ler pode significar muito mais que apenas decifrar palavras, ordenamentos
frasais, textos. É uma operação que exige sagacidade por parte de quem a desempenha,
de modo a desvendar informações que muitas vezes não estão explícitas, o que requer
maior atenção a certas minúcias ou mesmo caracteres que sinalizam para uma gama de
informações que, a princípio, poderiam não ser perceptíveis.

Nesse sentido, observa-se que a leitura engloba não somente a compreensão e


interpretação de textos, mas a reflexão, os questionamentos e o posicionamento diante
dos escritos, de maneira que se possa ultrapassar, transcender o que está expresso. Essa
transcendência também se revela no próprio ato da leitura em si, pois não apenas o que
está grafado, representado em palavras, pode ser lido; há situações, ambientes,
indivíduos e segmentos sociais que também compreendem uma fonte viva de
significados a serem descobertos e /ou entendidos mais plenamente.

Na literatura, esse processo de apreensão de sentidos é ainda mais intenso, uma


vez que requer um interesse e uma habilidade do leitor na construção dos seus
“diálogos” com a obra. A experiência da leitura também pode ser convertida em tema
que se inscreve nas tramas ficcionais, favorecendo assim a percepção de personagens
leitoras que podem ou não ter êxito nas suas práticas de leitura, a depender do modo
85

como a desempenham. E, logicamente, caberá ao leitor real a captação dessas


informações diluídas no texto.

A fim de ilustrar essa dinâmica de leitura, convém considerar o romance O


crime do padre Amaro (1880). Nesta obra, a composição de cenas de leitura associa-se
diretamente às perspectivas de denúncia e crítica ali propostas. Repetidas vezes surgem
leitores e/ou ideias sobre a leitura que representam muito mais que o simples exercício
de decodificação e interpretação de escritos, mesmo porque não apenas a palavra
textualizada é lida, mas também ambientes, comportamentos, cenários sociais. Em
algumas situações, a leitura também é retratada como maldição, fuga ou mesmo
punição. Há casos ainda em que aparece como dissimulação, pretexto para a
concretização das intenções do protagonista.

Amaro encontra, no início da trama, uma razão para justificar a presença de


Amélia, na casa do sineiro da igreja – local escolhido para os seus encontros amorosos.
O sineiro tinha uma filha com limitações mentais e de locomoção, por isso, o padre,
aparentemente promovendo uma iniciativa benéfica, arquiteta seus planos e é
exatamente uma prática de leitura que dissimula a intenção oculta: “Achara subitamente
a explicação natural a dar às amigas sobre as visitas de Amélia à casa do sineiro: era
ensinar a ler à paralítica! Abrir-lhe a alma às belezas dos livros, da história dos mártires
e da oração!... [...] E matamos assim dois coelhos com uma só cacheirada!” (QUEIRÓS,
2004, p. 231).

Amaro constitui-se como leitor de visão ampla, embora se utilize disso para
beneficiar-se, desconsiderando valores éticos; por outro lado, ele só consegue a
deferência e a amabilidade de toda a sociedade à sua volta porque esta não consegue
decifrá-lo, presa que está à sua restrita capacidade de leitura da realidade circundante.

Um dos poucos que consegue decifrar o caráter do padre é o abade Ferrão, pois a
personagem João Eduardo, ainda que desconfiasse das intenções que lia no
comportamento de Amaro, não tinha evidências que comprovassem suas suspeitas. O
abade, porém, realiza uma leitura de Amaro com base nas cartas que este escreve a
Amélia, já no fim da narrativa, quando a moça se isola para que a sua gravidez não
fosse descoberta. Entre os representantes do clero, descritos no romance, Ferrão é o
único que manifesta nobreza de caráter, auxiliando e confortando Amélia
86

desinteressadamente e ainda apresentando-lhe a verdadeira face de Amaro, com base


nos escritos que esse mesmo homem compusera:

Chegara, com uma sutileza de teólogo, a demonstrar-lhe que no amor do


pároco não havia senão brutalidade e amor bestial; que, doce como era o
amor do homem, o amor do padre só podia ser uma explosão momentânea do
desejo comprimido; quando tinham começado as cartas do pároco, analisara-
lhas frase a frase, revelando-lhe o que elas continham de hipocrisia, de
egoísmo, de retórica, e de desejo torpe... (QUEIRÓS, 2004, p. 313).

A escrita de Amaro revela, ao abade Ferrão, significados ocultos que a leitora


Amélia não foi capaz de desvendar. Ele examina detidamente o texto do jovem padre,
mediante uma leitura que ultrapassa a palavra escrita; vai assim relacionando cada
formulação sentimental das cartas a uma interpretação muito divergente daquela que
poderia supor um leitor menos astuto. O sentimentalismo ali expresso, muito além da
declaração amorosa, sinaliza para aspectos vis atribuídos a Amaro e que estariam
camuflados sob uma retórica persuasiva e sedutora.

Logicamente, todos esses procedimentos de leitura inserem-se na trama narrada,


oferecendo ao leitor extradiegético a possibilidade de percebê-los, analisá-los,
posicionando-se a respeito. É válido, portanto, que se atribua ao leitor real uma
importância mais ativa, uma vez que a função social da arte literária se efetiva a partir
da relação existente entre ele e o texto. De acordo com Llosa (2004), a literatura só
existe quando é socialmente partilhada, através da experiência de leitura. O receptor
pode perceber na obra não um mero reflexo social, mas sim um convite ao confronto
com o estabelecido, uma reformulação de ideias e preceitos. Como expõe Jauss (1979),
o processo de recepção compreende a possibilidade de se renovar a percepção de
mundo. É no leitor que as perspectivas de reflexão e crítica se reverberam e, a depender
do modo como sua leitura se desenvolve, a sua maneira de conceber o mundo pode ter
maior ou menor abrangência.

Eça concentra, em O crime do padre Amaro, temáticas que incitam a reflexão, e


tal processo se concretiza mediante uma leitura atenta dos comportamentos e digressões
apresentados na trama. Considera-se, nesse sentido, a relação entre a leitura da obra e as
formulações críticas infiltradas ali pelo autor. Acrescenta-se a isto um curioso dado:
observando apenas o ambiente ficcional, nota-se que há uma personagem que, para
denunciar a hipocrisia do clero, também se vale da possibilidade de um pensar crítico
87

advindo da leitura. Assim como o autor português materializa, no romance, certos


raciocínios acerca das disparidades entre a atuação social e a vida íntima de alguns
representantes da moral e da religião, de modo semelhante, a personagem João Eduardo,
ao publicar um artigo em um jornal, denuncia as ilicitudes cometidas pelos religiosos da
região onde vivia. O texto do rapaz causa indignação e espanto em Leiria, como
também O crime do padre Amaro chocou os leitores à época de sua publicação.

João Eduardo resolveu exibir um panorama do clero de sua cidade, aborrecido


que estava, por perceber que perdera a possibilidade de casamento com a personagem
Amélia, por conta do envolvimento afetivo da moça com o pároco. Sob a alcunha de “o
liberal”, o jovem expõe os comportamentos lascivos, os excessos e as falsas virtudes
dos líderes religiosos de Leiria:

[...] era, numa forma brutal, uma galeria de fotografias eclesiásticas: a


primeira era a do padre Brito: - “Vede-o, (exclamava o liberal) grosso como
um touro, montado na sua égua castanha...”
- Até a cor da égua! Murmurou com uma indignação piedosa a Sra. D. Maria
da Assunção.
“Estúpido como um melão, sem sequer saber latim...”
O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! Oh! E o padre Brito, escarlate,
mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos. (QUEIRÓS, 2004, p.
125)

A leitura do artigo era feita em voz alta, pelo cônego Dias, e as reações às
informações demonstravam, por um lado, a indignação dos religiosos que ouviam e, por
outro, o terror que aquelas revelações causavam aos clérigos, já que as retratações eram
fiéis. O texto lido caracterizava cada um dos padres:

“Conheceis outro com cara de furão?”


Olhares de lado fixaram o padre Natário.
“Desconfiai dele: se puder trair-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos,
folga; [...] é a víbora mais daninha da diocese, mas com tudo isso muito dado
à jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro.”
(QUEIRÓS, p.126, grifos do autor)

Além da descrição física caricatural, o texto apontava aspectos do linguajar do


padre retratado, de modo que todos os leitores pudessem facilmente identificá-lo – a
expressão “rosas do canteiro” era usada por Natário para referir-se às suas duas
sobrinhas. As acusações do artigo também revelavam que, diferentemente dos demais
moradores da cidade, João Eduardo possuía ampla e crítica visão a respeito da conduta
dos eclesiásticos. Para compor a sua denúncia, recorreu à leitura que fazia dos
comportamentos do clero e apostou na grande repercussão que a recepção do artigo
88

traria. Ainda que sua motivação fosse prejudicar Amaro, por sentir que o padre lhe
roubara Amélia, mesmo assim provocou enorme escândalo, ao alertar a sociedade
acerca da hipocrisia atrelada à fé e às práticas religiosas. É o que se nota, por exemplo,
no perfil do cônego Dias, traçado nas linhas do “liberal”: “Cônego bojudo e glutão [...]
que foi expulso da freguesia do Ourém, outrora mestre de Moral num seminário e hoje
mestre de imoralidade em Leiria”. (QUEIRÓS, 2004, p. 126).

As críticas mais acirradas eram dirigidas ao padre Amaro e revelavam a astúcia


do autor do artigo em perceber as reais intenções do pároco, quando este realizava
frequentes visitas à casa da senhora Joaneira. Convém destacar novamente que João
Eduardo era o único que conseguia ler, naquele ambiente, as estratégias de sedução
empreendidas por Amaro e as reações apaixonadas de Amélia; os demais
frequentadores daquela casa sequer suspeitavam do que ocorria ali, diante deles.

A capacidade de interpretar os modos de agir dos indivíduos, de forma ampla e


profunda, compreende uma demonstração de latente habilidade crítica para perceber o
que está além do visível. É uma modalidade de leitura que se assemelha à leitura
literária, em que o receptor, quando de fato decifra as informações que a obra lhe traz,
apreende o não-dito do texto, capta o que não está explícito, transcendendo a superfície
linguística, em um processo de construção coerente de sentidos. Eco (1993), a respeito
da leitura literária, enfatiza que há, na construção artística, “estruturas semânticas
profundas que o texto não exibe, mas que o leitor propõe, hipoteticamente, como chaves
para a atualização completa do texto.” (p. 68). Desse modo, observa-se que a obra
literária manifesta uma certa “incompletude”, que deve ser decifrada e atualizada pelo
leitor, no processo de atribuição de significados. Considerando os habitantes de Leiria,
nota-se que, em sua maioria, eles apresentavam sérios comprometimentos como
leitores, pois não fosse o texto escrito por João Eduardo, jamais poderiam ler o
ambiente eclesiástico que tanto admiravam. A partir da leitura do artigo, a desconfiança,
a suspeita foi estimulada.

O cônego escarrou, aproximou mais o candeeiro, e declamou:


“Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências
de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há
donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado
ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!”
- Pouca vergonha! murmurou Amaro lívido.
“Dize, sacerdote de Cristo, onde queres arrastar a impoluta virgem? Queres
arrastá-la aos lodaçais do vício? Que vens fazer aqui ao seio desta respeitável
família? Por que rondas em volta da tua presa, como o milhafre em torno da
89

inocente pomba? Para trás, sacrílego! Murmuras-lhe sedutoras frases, para a


desviares do caminho da honra; condenas à desgraça e à viuvez algum
honrado moço que lhe queira oferecer a sua mão trabalhadora; e vais-lhe
preparando um honroso futuro de lágrimas. E tudo para quê? Para saciares os
torpes impulsos da tua criminosa lascívia...”
- Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro. (QUEIRÓS,
2004, p. 127)

As consequências relativas à leitura do artigo também indicavam que as


conveniências pessoais eram priorizadas e definiam as reações que eram manifestadas
socialmente, com relação ao teor do texto. É o que se percebe na atitude de João
Eduardo que, embora se deleitasse com a repercussão dos seus escritos, dissimulava
suas emoções para que não lhe atribuíssem a autoria do texto e assim poder manter-se
próximo a Amélia. “João Eduardo gozava prodigiosamente ‘daquele falatório que ia
pela cidade’. Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse
escandalizar a S. Joaneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu é que o
escrevi!” (QUEIRÓS, 2004, p. 132). O interesse pessoal o fazia silenciar e, de modo
semelhante, o Dr. Godinho, dono do jornal que publicara o artigo, sem admitir tal ato
publicamente, também mantinha uma atitude discreta por conveniência e declarava isso
apenas em uma conversa privativa com João Eduardo: “Eu não me convém ter turras
demais com o clero... E depois lá minha esposa tem seus escrúpulos... Enfim, é melhor e
é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no meu foro interior saboreei.”
(QUEIRÓS, 2004, p. 132). É bastante significativa a postura dessa personagem, pois,
uma leitura atenta dos seus dizeres permite perceber que, apesar de ter publicado as
críticas ao clero, com as quais concordava, o Dr. Godinho também age de forma
hipócrita, ao afirmar que, mesmo conhecendo as graves falhas de caráter daqueles
padres, ainda assim, preferia manter boas relações com eles.

Nota-se que, mesmo quando descortinadas as incoerências da Igreja, ainda assim


o seu poder perante a sociedade era reconhecido e temia-se enfrentá-la acintosamente.
Além disso, observa-se também que eram destinados à mulher, preferencialmente, os
hábitos religiosos, uma vez que estes, em sua maioria, reafirmavam a sua condição de
subserviência à autoridade masculina, seja o marido, o pai ou mesmo o líder da Igreja
responsável por exortá-la nos seus deveres de moralidade:

O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem
vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina,
sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o
seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem
discutir; obedecer-lhe. (QUEIRÓS, 2004, p. 182).
90

Os dizeres acima são de um médico, ou seja, um representante da ciência, da


racionalidade e, nesse momento, tal personagem fazia uma leitura de como se
processava, na religião católica, o exercício da fé. O Dr. Gouveia criticava a total
inércia, especialmente da mulher, no tocante às suas atitudes e decisões, uma vez que
ela se deixava conduzir, como convinha a uma religiosa e, portanto, “virtuosa”
representante do sexo feminino. O médico procurava convencer João Eduardo de que
não adiantava insistir na conquista de Amélia, porque os valores morais incutidos pela
religião eram tão drasticamente enraizados que, no instante em que ela descobriu a
autoria do artigo, passou a enxergá-lo como um homem vil, malévolo. A jovem tinha
uma percepção tão limitada do ambiente à sua volta, que jamais refletiu acerca de uma
possível plausibilidade no discurso de João Eduardo; a leitura que ela fazia de Amaro,
referenciada na concepção que tinha sobre a Igreja, misturava devoção, paixão e
submissão. Assim, envolver-se com esse homem era quase um privilégio, era como ser
íntima de uma divindade. Desse modo, ler o artigo não propiciou à personagem uma
mudança de perspectiva.

O modo de Amélia conceber os preceitos católicos era partilhado pelos


integrantes da sociedade, em Leiria, um microcosmo narrativo que representa o
macrocosmo – a sociedade oitocentista portuguesa e seus princípios. Embora a jovem
exagerasse no seu romantismo, comum às donzelas da época, a sua percepção religiosa
era bastante semelhante à dos demais habitantes do lugar – leitores deficientes que não
conseguiam enxergar as dimensões mais profundas de esclarecimento e compreensão
acerca do ambiente em que viviam e dos homens a quem respeitavam como líderes
morais. Apesar do escândalo provocado pela leitura do artigo do “liberal”, a maioria,
passado o pasmo inicial, posicionou-se em defesa dos padres. O sr. Carlos, dono da
botica, foi mais incisivo na censura ao texto, atribuindo-lhe um sentido político,
anarquista e inconsequente:

Eu já tinha observado, quando li o Comunicado: a religião é a base da


sociedade, e miná-la é, por assim dizer, querer aluir o edifício... É uma
desgraça que haja na cidade desses sectários do materialismo e da república
que, como é sabido, querem destruir tudo que existe; proclamam que os
homens e as mulheres se devem unir com a promiscuidade de cães e
cadelas... [...] não admitem que haja autoridades, e se os deixassem seriam
capazes de cuspir na sagrada hóstia. [...] quando um homem veste uma batina
deve ser respeitado... E o Comunicado, repito, é uma vergonha para Leiria...
E também lhe digo, com esses ateus, esses republicanos, não deve haver
consideração!... (QUEIRÓS, 2004, p. 170, 171).
91

O texto de João Eduardo havia traçado um panorama detalhado da conduta do


clero e denunciava severamente o fato de o discurso moral apregoado pelos padres ser
totalmente contrário às suas práticas cotidianas. Porém, os efeitos de leitura não
corresponderam à intenção discursiva, pois, para além dos argumentos linguísticos, há
os pressupostos culturais em que o receptor está imerso, e este, muitas vezes, não
admite qualquer iniciativa de reorientação de suas concepções. Como salienta Jouve
(2002): “toda leitura interage com a cultura e os esquemas dominantes de um meio e de
uma época” (p. 22). No caso da situação exposta em O crime do padre Amaro,
evidencia-se que essa interação provocou uma rejeição à possibilidade de se questionar
e repensar a reverência e a autoridade moral conferida àqueles eclesiásticos.

Ao longo da narrativa queirosiana, são apresentados pontos de vista que


divergem entre si, no tocante à maneira de conceber a fé, a religião e os ditames morais
impostos socialmente. Há, por exemplo, o embate entre o posicionamento anteriormente
citado – defendido pela personagem Carlos da botica e aclamado pelos demais cidadãos
– mas há também as ideias dissonantes do Dr. Gouveia, cuja leitura do ambiente
católico, em Leiria, aproxima-se daquela materializada no artigo do “liberal”:

[...] todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser
trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para
padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas
não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para
o senhor cura – és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que
tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados
verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem sido
perfeitos. Hás-de ter ouvido falar de Sócrates, dum outro chamado Platão, de
Catão etc... [...] Eu sou, segundo a doutrina católica, um dos grandes
desavergonhados que passeiam às ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto,
que matou a mulher com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo
processo de uma filhita de dez anos, é entre o clero um homem excelente,
porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas.
(QUEIRÓS, 2004, p. 183).

A exposição de diferentes pontos de vista acerca das mesmas temáticas, na obra


de Eça, instiga o leitor do romance a confrontar posicionamentos e questionar valores
sedimentados, considerados como “certezas inabaláveis”. Jouve (2002) relembra o fato
de que a função argumentativa está particularmente presente no “romance de tese”, que
procura comprovar hipóteses, agindo sobre o destinatário e buscando modificar seu
comportamento, sua visão de mundo. O crime do padre Amaro é considerado, pela
crítica, um romance de tese, em que há um forte apelo crítico, muito embora voltado a
92

temas que, à época, não admitissem nenhuma espécie de contestação. Mas o fato de o
livro expor visões que oferecem um novo olhar diante das “verdades instituídas”, já
estimulava, à sociedade dos oitocentos, um movimento, mínimo que fosse,
considerando o leitor mais conservador, em direção à reflexão, pois como expõe Jouve
(2002), o leitor, de modo mais ou menos incisivo, é sempre interpelado e cabe a ele
ponderar acerca dos argumentos lidos.

Considerando ainda que a mentalidade de uma época pode determinar as reações


à leitura e até mesmo a escolha do que ler, vale destacar, na citada narrativa portuguesa,
que uma vez descoberta a identidade do “liberal”, qualquer livro, que a ele pudesse estar
relacionado, passava a se configurar como uma “leitura maldita”:

[...] a voz de Natário, que se embrulhava no seu capote ao pé do aparador,


exclamou, muito severa:
- Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro?
[...] D. Maria da Assunção aproximou-se logo de olho reluzente, imaginando
que seria alguma dessas novelas, tão famosas, em que se passam coisas
imorais. E Amélia chegando-se também, disse, admirada de tal reprovação:
- Mas é o Panorama... É um volume do Panorama...
- Que é o Panorama vejo eu, disse Natário, com secura. Mas também vejo
isto. – Abriu o volume na primeira página branca e leu alto: “Pertence-me
este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me de recreio nos meus
ócios.” [...] Parece-me incrível que as senhoras não saibam que esse homem
[...] está ipso facto excomungado, e excomungados todos os objetos que lhe
pertencem!
Todas as senhoras, instintivamente, afastaram-se do aparador onde jazia
aberto o Panorama fatal, arrebanhando-se, num arrepiamento de medo,
àquela ideia da excomunhão que se lhes representava com um desabamento
de catástrofes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus vingador:
e ali ficaram mudas, num semicírculo apavorado, em torno de Natário, que,
de capotão pelos ombros e braços cruzados, gozava o efeito da sua revelação.
(QUEIRÓS, 2004, p. 209).

Dois aspectos desse fragmento são bastante relevantes para se compreender a


intensa relação entre a mentalidade do leitor e seus procedimentos de leitura. O primeiro
ponto é a referência feita à novela (e que se estende ao romance) como um gênero
textual nocivo, imoral. Logicamente a sua leitura não era recomendada às senhoras de
então pois poderia representar um perigo à sua “virtude”. Porém, observa-se que tal
crença atrelava-se ao fato de a mulher, nos oitocentos, ser considerada uma leitora
absolutamente passiva, influenciável. Portanto, fazia-se necessária uma intervenção
masculina, que se constituía como a diretriz moral que ditaria a conduta feminina,
quando na maioria das vezes instaurava apenas a subserviência. É o que se observa no
93

discurso da personagem Amaro, quando este não admite que Amélia tenha hábitos de
leitura, pois, quanto menos interesses e informações ela tivesse, mais fácil seria enredá-
la na sua estratégia de submissão: “Proibia-lhe até que lesse romances e poesias. Para
que se havia de fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo?” (QUEIRÓS,
2004, p. 242).

O segundo aspecto relevante, acerca do fragmento que expõe a aversão dos


religiosos ao livro pertencente a João Eduardo, diz respeito à atribuição contundente da
excomunhão. As acusações que o rapaz fizera contra o clero o baniam do convívio com
os católicos e, por conta disso, o seu livro também ganhava nova conotação: embora
fosse uma publicação aparentemente inofensiva (sem a pecha atribuída à novela,
conforme já comentado), o Panorama passava de obra comum à leitura maldita, pelo
simples fato de o padre ter lido o nome do dono do objeto na sua primeira página. As
reações apavoradas das fiéis comprovam que houve uma imediata e intensa aversão ao
livro, a partir da atribuição de sentido que ele acabara de receber.

O crime do padre Amaro traz a lume o fato de que muitas vezes o ser humano se
reveste com uma imagem virtuosa, de modo tão sagaz e convincente, que se torna difícil
ler-lhe a real face, enxergar os elementos que lhe compõem o caráter. Apenas a
personagem João Eduardo conseguiu ler plenamente o clero de Leiria, descortinando
assim as posturas hipócritas adornadas pelo discurso religioso. Entretanto, tal dinâmica
de leitura não é usual, corriqueira, muitas vezes é necessária uma astúcia no ler ou, de
outro modo, somente uma explícita revelação poderia denunciar o que de fato existe por
trás da dissimulação.

Observa-se isto, de maneira bem irreverente, no conto machadiano Galeria


póstuma (1883). Os sentimentos e opiniões da personagem Joaquim Fidélis só vêm à
tona mediante a leitura dos escritos que ele produzia secretamente. Neles é que estão as
suas mais genuínas ideias e estas destoavam radicalmente das expectativas e impressões
que ele causava em todos ao seu redor.

Um exemplo da discrepância entre a imagem exterior e o íntimo de Joaquim


pode ser observado na descrição bem-humorada do narrador machadiano, quando este
relata que o homem vem a falecer após uma noite em que aparentava divertir-se
bastante em uma festa. Pouco antes da morte, ele, como de costume, isolara-se para
escrever e “as últimas palavras eram estas: ‘Em suma, baile chinfrim; uma velha gaiteira
94

obrigou-me a dançar uma quadrilha; à porta um crioulo pediu-me as festas. Chinfrim!’ ”


(ASSIS, 2008, p. 124). Os amigos daquele homem jamais puderam ler o que lhe ia à
mente e sequer poderiam imaginar o quanto eram contrastantes as sensações que ele
trazia consigo e as que demonstrava publicamente.

É oportuno observar que o convívio social, muitas vezes, impõe certas “doses”
de dissimulação, a fim de que não se criem atritos a todo momento. É praticamente
impossível ser absolutamente sincero, mesmo porque a franqueza em excesso pode
ferir, desagradar ou mesmo gerar conflitos ainda mais drásticos, no trato social. Desse
modo, entende-se que a revelação fiel de tudo que vem à mente pode ser, no mínimo,
indelicada, inconveniente. Porém, no caso de Joaquim Fidélis, a questão é um pouco
mais complexa porque a dissimulação era uma constante, falseava as suas atitudes de
uma maneira geral. Somente quando o sobrinho Benjamin inicia uma leitura dos
escritos deixados por esse tio, a sua verdadeira face transparece.

À maneira do que ocorria com os moradores de Leiria (de O crime do padre


Amaro), nenhum integrante do círculo de amizades de Joaquim, ou mesmo o seu
sobrinho, com quem ele convivia mais intimamente, ninguém conseguiu ler a real figura
desse homem. Apenas a leitura de suas memórias secretas, realizada mais tarde entre os
amigos, foi capaz de desnudar o seu temperamento. Mas tal revelação não ocorreu
instantaneamente, pois as primeiras leituras indicavam tão somente reflexões políticas
de cunho ameno, portanto, a princípio, os textos foram recebidos com muita comoção e
exaltação: “[...] lê-lo era ainda conservá-lo. Tão reto caráter! Tão discreto espírito! [...]
O interesse do escrito adormeceu a dor do óbito. Era um livro digno do prelo. [...] Cada
um admirava o talento do finado, as graças do estilo, o interesse da matéria.” (ASSIS,
2008, p. 127).

A leitura pública dos escritos apenas reafirmava a imagem que Joaquim criara
entre os seus, ocasionando, inclusive, uma maior admiração e respeito por esse homem.
Mais adiante, é a personagem Benjamin quem vai descortinando a identidade do tio, à
medida que dá continuidade, sozinho, à leitura daquelas memórias. Vai percebendo
assim que havia minuciosas descrições sobre as pessoas do convívio de ambos e ele
teve a oportunidade de ler, pela ótica de Joaquim, os perfis traçados “com tal fidelidade
e perfeição, que a figura parecia fotografada”. (ASSIS, 2008, p. 128). A leitura que fazia
Joaquim acerca dos modos e feições de alguns indivíduos era tão precisa que indicava
95

aspectos que o próprio Benjamin não havia notado anteriormente, tanto a respeito do
próprio tio, que se revelava através do que escrevia, como também a respeito das
pessoas que eram descritas. Convém observar que a leitura alheia, em certos casos, pode
ampliar a leitura íntima, ou seja, às vezes é o olhar do outro que permite que alguém
note algo que, de outro modo, não enxergaria.

E assim o leitor Benjamin vai descobrindo o que realmente pensava o tio a


respeito dos seus amigos, como por exemplo, Diogo Vilares: “Dizem-me que não deve
nada a ninguém. Bom pai de família. Estúpido e crédulo. Com intervalo de quatro dias,
já lhe ouvi dizer de um ministério que era excelente e detestável: - diferença dos
interlocutores”. (ASSIS, 2008, p. 128). O sobrinho, ao ler os comentários, percebeu a
dissimulação de Joaquim, que sempre tratava com muita deferência todos aqueles com
quem convivia, muito embora intimamente os desprezasse. Notou também que se
tivesse continuado a ler em voz alta as memórias do tio, na presença dos amigos, teria
causado uma situação bastante embaraçosa. “A primeira sensação de Benjamin foi a do
perigo evitado. Se o Diogo Vilares estivesse ali?” (ASSIS, 2008, p. 128). Por outro
lado, a leitura das memórias instigou a curiosidade do sobrinho, pois surgia a
oportunidade de conhecer uma faceta de Joaquim jamais imaginada, pois este, embora
em nenhum dos seus textos descrevesse a si mesmo, compunha os perfis alheios, sendo
muito fiel a suas opiniões e impressões. E o modo como lia as pessoas e esboçava
“retratos”, acabava por desvendar traços do seu próprio perfil, uma vez que a criação
textual sempre carrega algo do seu produtor, ou como afirma Barthes (2006), o texto
compreende um processo de “tessitura” em que o sujeito criador se desfaz, se desintegra
nesse “tecido”, como “uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções
construtivas de sua teia.” (BARTHES, 2006, p. 75). Assim, Joaquim oferecia, no seu
modo de ler os outros, dados para que fosse feita a leitura de seu próprio temperamento,
inclusive no tocante à dissimulação. Desse modo, compreende-se a reação que tem
Benjamin ao ler as memórias desse homem: “- Estou lendo um coração, um livro
inédito. Conhecia a edição pública, revista e expurgada. Este é o texto primitivo e
interior, a lição exata e autêntica. Mas quem imaginaria nunca... Ora o tio Joaquim!”
(ASSIS, 2008, p. 129).

Como os perfis traçados emanavam coerência e exatidão, veio ao leitor


Benjamin o interesse aflito em descobrir, naquelas memórias, o seu próprio retrato
delineado. E ao ler as opiniões e sentimentos do tio a respeito dele, Benjamin pôde
96

conhecer a sua imagem na ótica alheia. Ter acesso a esse tipo de informação é algo
extremamente raro, uma vez que as convenções e, logicamente, as conveniências sociais
impedem que alguém possa saber, fielmente, quais as impressões que causa no outro. A
personagem, portanto, tem a chance de descobrir, sem qualquer esforço, o que o seu tio
pensava, secretamente, acerca dele, reconhecendo-se, inclusive, nessa opinião.

Desse modo, o conto machadiano relata uma experiência de leitura em que o


receptor acessa tanto as imagens íntimas que alguém cria e guarda consigo, como
também divisa a sua própria figura, na visão alheia. E, para além disso, nota-se que essa
leitura de si torna-se ainda mais plena quando a personagem Benjamin se dá conta de
que o texto refletia exatamente a sua essência, de modo que ele pôde, de fato, ler-se a si
mesmo. Ali já não era mais apenas a visão do tio, Benjamin se reconhecia nos escritos:

Quis reler e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de um


espelho. Levantou-se, foi à janela, mirou a chácara e tornou dentro para
contemplar outra vez as suas feições. [...] Se ali estivesse um público, é
provável que a mortificação do rapaz fosse menor, porque a necessidade de
dissipar a impressão moral dos outros dar-lhe-ia a força necessária para reagir
contra o escrito; mas, a sós, consigo, teve de suportá-lo sem contraste.
(ASSIS, 2008, p. 131).

Ler a si próprio, na leitura alheia, foi incômodo para a personagem porque mais
uma vez evidenciava-se que Joaquim tinha a habilidade de traçar, com bastante
fidelidade, os perfis daqueles que o rodeavam, de maneira que não cabiam contestações.
As características descritas não correspondiam à expectativa positiva, lisonjeira que
muitas vezes cada indivíduo tem, acerca da própria imagem. A leitura das memórias
frustrava e ao mesmo tempo alertava o rapaz acerca das suas limitações e falhas; de
outro modo talvez essas informações poderiam não vir à tona. “[...] a relação do leitor
com o texto é sempre receptiva e ativa ao mesmo tempo. O leitor só pode extrair uma
experiência de sua leitura confrontando sua visão de mundo com a que a obra implica”.
(JOUVE, 2002, p. 127). Nesse sentido, nota-se que as memórias ditavam determinado
ponto de vista, mas este só foi aceito como legítimo, no decurso da leitura feita por
Benjamin, porque tal personagem projetou algo de si nos escritos do outro, viu-se
descrito de um modo que o convenceu a tomar aquilo como verdade.

Benjamin também pôde acessar dados sobre o temperamento do tio de maneira


que passou a conhecê-lo mais intimamente, tendo como recurso a “galeria póstuma”
esboçada por esse homem. O êxito dessa experiência de leitura proporcionou a
Benjamin um novo olhar diante do tio; ele passava agora a recordar o cadáver de
97

Joaquim, reconhecendo naquela face um traço de ironia, característica nunca antes


percebida. A aparência do tio na morte desnudava o caráter que tivera em vida, de modo
que, na leitura do sobrinho, “já não era o homem, era o autor do manuscrito” (ASSIS,
2008, p. 132).

E a ironia estende-se ao desfecho da narrativa, uma vez que a imagem de


Benjamin, perante os outros, se modifica, pois ele foi obrigado a não mais permitir a
leitura pública dos comprometedores escritos de Joaquim. Caso continuasse a exibir as
memórias, seriam vários os leitores que descortinariam a verdadeira face do autor
daqueles textos. O sobrinho opta por ocultá-los, a fim de preservar a imagem do tio, na
configuração de respeito e admiração que esse homem sempre despertara. E a leitura
superficial, feita pelas pessoas do convívio de Joaquim, permanece, sendo porém
acrescida de uma nova leitura acerca de Benjamin: “- Que diferença do tio! Que
abismo! A herança enfunou-o! Deixá-lo! Ah, Joaquim Fidélis! Ah, Joaquim Fidélis!”
(ASSIS, 2008, p. 132). Novamente era realizada uma leitura deficiente: assim como a
imagem do tio era lida erroneamente, a figura do sobrinho também passa a ser
desvirtuada, quando, na verdade, a dissimulação desse último tornava-se até mesmo um
ato piedoso.

As personagens elaboradas por Machado de Assis, como também aquelas


compostas por Eça, incitam o leitor das obras a relacionar tais criações a figuras
encontradas nos meios sociais da época, bem como estabelecer questionamentos acerca
de parâmetros sociais e formulações íntimas que se estendem ao contexto atual.
Conforme esclarece Eco (1993), “um texto é um produto cujo destino interpretativo
deve fazer parte do seu próprio mecanismo generativo: gerar um texto significa atuar
segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro” (p. 57). Esses
movimentos configuram-se justamente como operações de leitura, nas quais se decifram
e se recriam dados, instaurando novas possibilidades de sentido, coerentes com o teor
do texto.
98

3.3 Lendo olhares, expressões e comportamentos

Considerando as possibilidades e mecanismos relacionados à habilidade de ler,


destaca-se que são passíveis de interpretação alguns elementos que não se estruturam
linguisticamente. Ainda que não estejam codificados sob os signos da escrita, tornam-se
legíveis justamente porque trazem em si farta gama de informações, abrindo margem a
ideias, conceitos e raciocínios os mais diversos.

Nas narrativas de Eça e Machado, o ato de ler, desempenhado por várias


personagens, ultrapassa a prática usual da decodificação de símbolos gráficos. Como já
discutido anteriormente, revela-se uma transcendência no exercício da leitura, quando
os agentes da ficção decifram e compreendem alguns comportamentos e reações de
outras personagens, nos momentos em que interagem entre si. Uma vez que é possível
extrair significados, a partir da observação apurada (leitura) dessas ações, nota-se que
elas se assemelham a escritos dos quais emanam sentidos. Assim, o êxito ou o insucesso
de algumas personagens muitas vezes está diretamente associado ao seu desempenho
como leitoras, inclusive no que se refere à leitura de gestos, olhares e expressões
daqueles que estão à sua volta. Tudo isso propicia também um aumento das
perspectivas que tem o leitor real, diante da narrativa, pois ele tem acesso às percepções,
impressões e juízos de valor colhidos por meio da leitura realizada pelas personagens.

A capacidade de elucidar mensagens, fora do âmbito da escrita, amplia os


domínios do ler e, desse modo, olhares, expressões e atitudes compreendem um
manancial de dados a serem explorados pelas personagens leitoras que, cada uma a seu
modo, descobrirá como associá-los às questões relevantes ao redor de si. Logicamente,
o leitor real acompanha tais movimentos, inscritos na trama ficcional, de maneira a
reconhecer ou não, nas leituras feitas pelas personagens, ideias pertinentes ou meras
suposições que acabam por desvendar não o “objeto” da leitura, mas aquele que lê.

No conto machadiano A senhora do Galvão (1884), no momento em que a


personagem Maria Olímpia se vê obrigada a mostrar ao marido as cartas que
denunciavam o envolvimento dele com outra mulher, o olhar de Galvão por certo
poderia confirmar a suspeita da esposa, porém, esta prefere evitar ler ali uma verdade
amarga:
99

Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na


cintura, para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando
ele, depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a
fisionomia composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não
adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou
quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como se
temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo. (ASSIS, 1994, p.
82).

Ler-lhe os olhos significaria ver-se obrigada a indagar sobre a informação que


eles traziam e exigir assim alguma explicação. Uma vez confirmada a suspeita, era
“necessário” tomar providências a respeito e, por isso mesmo, ela prefere recusar a
leitura, ignorar o mecanismo que a conduziria à elucidação dos fatos. Na verdade, a
personagem calcula que era mais cômodo fingir não acreditar na infidelidade do marido
e assim não arriscar os requintes e benesses que a sua condição de “bem casada” lhe
trazia. E, a fim de garantir que a sua estabilidade conjugal não seria ameaçada, revela-se
mordaz no ataque à suposta rival, quando a encontra em um evento social:

[...] depois de umedecer os lábios, como para chamar a eles todo o veneno
que tinha no coração: — Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem
seduzir mais algum marido?
A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olímpia acrescentou,
com os olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe respingasse lama
no triunfo. (ASSIS, 1994, p. 83).

Novamente são os olhos que revelam o conteúdo a ser lido, era o acréscimo às
palavras, no intuito não apenas de complementar as informações, mas também para
enfatizá-las. Não se tratava somente de um gracejo irônico, era um modo de revelar-se
ciente dos fatos, atenta e, principalmente, disposta a rebaixar, constrangendo a
“concorrente” ao extremo. Quem lê o conto também é convidado a ler esse olhar de
Maria Olímpia, traduzindo-o sem palavras, no exercício da construção de imagens que
se aproximem do significado que tal expressão facial deixaria transparecer.

Bosi (1993) destaca a efetiva comunicação, veiculada pelo olhar, quando afirma
que ele “condensa e projeta os estados e movimentos da alma. Às vezes a expressão do
olhar é tão poderosa e concentrada que vale por um ato.” (p. 78). Acrescenta-se às ideias
do autor o fato de que pode haver correspondência entre o olhar e um ato linguístico, de
modo que assim como este último é legível, aquele também o é. E a leitura do olhar se
faz mais desafiadora, pois requer que se capte um instante, retendo na memória uma
imagem fugaz que servirá de base para a elaboração de sentidos. Apesar de se constituir
100

um movimento efêmero, que logo se modifica, ainda assim a mensagem revelada no


olhar pode conter dados que instigam o leitor à busca por mais informações.

É o que ocorre quando Bento (D. Casmurro, 1899) angustia-se ao pensar que os
olhos de José Dias revelar-lhe-iam algo grave acerca da doença de sua mãe:

[...] eu temendo ler no rosto dele alguma notícia dura e definitiva. Só me


falara na doença, como negócio simples; mas o chamado, o silêncio, os
suspiros podiam dizer alguma coisa mais. O coração batia-me com força, as
pernas bambeavam-me, mais de uma vez cuidei cair. (ASSIS, 1995, p. 100).

A expressão facial traz em si vários elementos legíveis e, quando combinados a


outros dados (silêncio, suspiros), criam um panorama que se assemelha a um relato ou a
uma descrição verbalizada, ainda que não haja nenhuma palavra em questão. Mas,
àquele que observa cabe a capacidade de relacionar as informações, de modo a construir
sentido, para além do que de fato lhe foi revelado. Trata-se, portanto, de um exercício
de leitura que pressupõe exame dos fatos e imagens, combinado à associação de ideias,
para que se tenha assim uma compreensão mais apurada.

Há ainda o outro lado da questão: realiza-se uma modalidade de leitura não


apenas quando se interpreta o olhar de alguém, mas é possível que o olhar aguçado, à
procura de dados não concretizados em palavras, efetive-se também como um ato de
leitura. É nesse sentido que se pode compreender o olhar da prima Justina, ainda em D.
Casmurro, quando buscava confirmar a afeição de Bento por Capitu: “Só então senti
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me,
cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos.” (ASSIS, 1995, p. 42). Há
uma busca por sentidos para além da fala que se ouve, investigando o comportamento
do locutor, mediante um olhar tão atento e concentrado que parece combinar tato,
audição, olfato, visão, direcionando todos os sentidos na busca comum pelo
entendimento pleno.

Chauí (1993) relembra expressões cotidianas como “beber ideias ou opiniões


nesta ou naquela fonte” (p. 37), ou quando para manifestar suspeita diz-se que “uma
ideia não cheira bem” (p.37), de modo que essas expressões sinestésicas cumprem o
papel de trazer o invisível ao visível, isto é, transformar em imagem uma relação
subjetiva, a fim de se facilitar o entendimento. E é exatamente por meio da imagem
(visão) que muitas vezes adquire-se um saber não necessariamente advindo da
linguagem verbal.
101

O olhar usurpa os demais sentidos fazendo-se cânone de todas as percepções


[...]. O olhar apalpa as coisas, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas
delas não se apropria. “Resume” e ultrapassa os outros sentidos porque os
realiza naquilo que lhes é vedado pela finitude do corpo, a saída de si, sem
precisar de mediação alguma, e a volta a si, sem sofrer qualquer alteração
material. (CHAUÍ, 1993, p. 40).

Essa primazia do olhar, como fonte dinâmica de significados ou ainda como


mecanismo de busca por uma interpretação mais ampla é que o torna perfeitamente
associado ao fenômeno da leitura. Há sempre algo a se descobrir na expressão do olhar
de alguém, o que transforma o olhar numa espécie de escritura, passível de ser lida e
compreendida. Além disso, um olhar perscrutador, acerca das imagens e
comportamentos circundantes, realiza o mesmo movimento que possui um ato de leitura
minucioso e hábil.

Em A Capital (1925), logo que a personagem Artur chega a Oliveira de Azeméis


e começa a interagir com os moradores do lugar, através dos serões organizados por
suas tias, ele nota que era alvo do ciúme de Vasco, o dono da botica, pois este revelava,
nos olhos, a insegurança com relação a sua esposa:

Artur compreendeu imediatamente que o Vasco era um ciumento; via-o


mudo, de queixo rilhado, com os seus olhinhos de clorótica amarelada
cravados ansiosamente, ora nele, ora na grossa Galateia: e quando D.
Galateia, requebrando-se, o interrogava sobre os seus passeios aos arredores,
a sua visita à fábrica de vidros do Covo, Artur avistou o Vasco, retido a
distância pela tagarelice de Ricardina, sondar, de olho faiscante, a escuridão
debaixo da mesa, num terror de que já houvesse um terno roçar de joelho:
enfim, ao chá, veio bruscamente plantar-se entre ambos, como um áspero
muro eriçado de pregos. (QUEIRÓS, 1992, p. 127).

O olhar era a ferramenta de busca da personagem Vasco que, sem se envolver


nas conversações à sua volta, direcionava sua atenção ao comportamento de sua esposa
e de Artur, procurando ler ali algum indício de uma afeição que se iniciava, um
interesse suspeito que se instalava. E, na sua condição de ciumento, já alargava a
interpretação do que via, supondo haver elementos que confirmassem seu temor, como
o roçar de joelhos por baixo da mesa. Ele lia a cena da conversa entre Galateia e Artur, à
maneira de alguém que investiga pistas que corroboram a sua desconfiança. Desse
modo, as informações advinham da observação dos comportamentos, a partir dos quais
se elaboravam também os possíveis significados. Estes, na referida circunstância, eram
criados sob total influência do tipo de observador/leitor em questão.
102

Para além do exame do comportamento, nota-se também que a personagem


Artur (lida pelo Vasco) também realiza a leitura do olhar de quem a observa. É por meio
da interpretação desse olhar que é notada a desconfiança, ou seja, no instante em que
Vasco prestava constante atenção, a fim de ler uma cena, tal observador também
revelava algo de si, exatamente pelo modo como fixava o olhar.

Bosi (1993) explora os sentidos trazidos por expressões populares que em muito
revelam o estado de extrema atenção dedicada a alguém: “Estar de olho, ficar de olho,
não perder de olho e trazer de olho marcam um grau de interesse do sujeito que beira a
vigilância. O olho cioso é inventivo. A gelosia é uma grade estreita feita no olho da
parede pelo olho do amante que não suporta ver a amada sendo vista pelo olho do
outro.” (p. 78, grifos do autor). Assim, esse olhar inventivo equivale a um movimento
de leitura em que são criados sentidos, a partir daquilo que se tem sob observação
contínua, apurada. Restringe-se o campo do olhar, focando o objeto alvo de interesse e
criam-se suposições para o que se vê, alinhadas muitas vezes ao temperamento daquele
que está em “vigília”.

Nessa perspectiva, convém destacar os célebres “olhos de ressaca” (ASSIS,


1995, p. 160) da personagem Capitu, em D. Casmurro. Foram esses olhos que
favoreceram a Bento – muito embora sob influência da sua própria condição insegura –
a reafirmação de suas suspeitas, no tocante ao envolvimento entre a mulher e o amigo
Escobar. Na ocasião do velório deste homem, dos olhos de Capitu sobressaía a
“evidência” de que a relação com ele não havia sido meramente fraterna. Era o olhar
que fornecia os indícios; era o olhar que, apesar de um suposto esforço de dissimulação,
não ocultava a verdade interpretada por quem o analisava:

Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando


a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la
dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para
o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem
algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver
as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava
na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver
parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu
fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas
grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar
também o nadador da manhã. (ASSIS, 1995, p. 161).

A fixidez do olhar constituía-se como signo, passível de ser lido e


compreendido. Elaborava-se, portanto, um sentido, uma ideia a partir da observação e
103

análise. E esse olhar revelava-se na intensidade da expressão, mas, logo em seguida,


transformava-se, recuando e passando a ser furtivo, na suposta intenção de verificar se
alguém o percebera, se alguém notara a denúncia afetiva ali manifesta. Logo adiante, o
mesmo olhar volta a exibir uma contemplação intensa, de maneira a assemelhar-se ao
olhar da viúva, na mesma concentração de dor. Essa alternância entre o olhar fixo, o
recuo cauteloso de uma dissimulação e novamente o direcionamento do olhar, todo
entregue, simularia os movimentos do mar, a “ressaca” lida por Bento como símbolo do
arrebatamento de Capitu, naquela circunstância.

Os olhos dessa personagem já haviam sido considerados como elemento a ser


lido, decifrado. O agregado José Dias já os havia aproximado aos de uma “cigana
oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 1995, p. 55), na tentativa de definir a sinuosidade de
Capitu. Tratava-se de um ser que não se mostra por completo e que não cabe na
exatidão de um raciocínio, pois não se pode captar inteiramente quem de fato ela é.
Bento percebia a impossibilidade de demarcá-la em contornos nítidos e era exatamente
na expressão dos olhos que isso era confirmado:

[Os olhos] Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que
arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos
braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as
pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando
envolver-me, puxar-me e tragar-me. (ASSIS, 1995, p. 55).

Nesse sentido, a busca por associar significados às expressões e olhares da


personagem vai preenchendo a narrativa, de maneira que a imprecisão dos fatos –
manifesta nas suspeitas do protagonista – em muito se relaciona aos movimentos de
leitura que ele realiza, transformando em escritura o comportamento de Capitu. Quando
finalmente Bento expõe o que o aflige e afirma não ser o pai de Ezequiel, é a reação
imediata da mulher, não materializada em palavras, que lhe permitiria rechaçar as suas
próprias desconfianças. Porém, ele prefere ignorar o que vê e reafirmar o que já se
constituía, para ele, como verdade:

Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe


sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de
vista do nosso foro.[...] Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos
seus gestos, à dor que a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas
duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar. (ASSIS, 1995, p. 174).
104

Ainda que a reação de Capitu abrisse margem ao enfraquecimento da acusação,


a um hesitar diante de novo indício, nova evidência, mesmo assim Bento aposta no seu
arsenal de leituras outras, acerca das expressões e comportamentos da mulher, o que
para ele compunha um quadro comprobatório de culpa. Para Bosi (2007), Bento julgava
com olhos fechados, voltados apenas a si mesmo:

Nesse duelo inglório o olho que, por um momento ainda de abertura ao outro,
fora capaz de prestar atenção ao rosto lívido, estupefato, indignado, confuso
e sofrido da mulher, preferiu cerrar-se por um ato de ciosa vontade, sem
atender a coisa nenhuma, encasmurrando-se nas suas razões de honra ou
(como dirão os que já decidiram o pleito) nos seus mórbidos ciúmes de Otelo
brasileiro. Os olhos abertos contemplam; os olhos fechados, sem atender a
coisa nenhuma, tipificam, julgam, decretam. (p. 36, grifos do autor).

Se as ideias de Bento advinham da sua observação, da habilidade que


desenvolvera para ler, nos olhos e nos gestos da mulher, indícios de seu caráter e
personalidade, é curioso que quando tais pistas o conduzem a uma interpretação
diferente, quase oposta à que ele vinha tecendo, tais leituras sejam rejeitadas,
desvalorizadas. É como se só avultassem aos seus olhos os dados que viessem a
confirmar suas suspeitas, que já se faziam crenças.

As cenas seguintes compreendem mais um fator que aproxima a interpretação do


olhar a um ato de leitura, tendo na busca por sentidos um objetivo comum:

— Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da


igreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às
suas ordens.
Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto
de recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com a própria
incerteza em que eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo.
(ASSIS, 1995, p. 176).

Bento observa que o olhar de Capitu traduzia sua intenção de não concretizar a
separação, embora afirmasse que o faria; a ideia, na verdade, era instaurar o choque e a
seriedade da decisão que anunciava, na esperança de ver o recuo do outro. Essas eram
informações que ele encontrava na expressão que ela lhe lançava e não no que de fato
lhe dizia. Bento lia, portanto, no discurso da mulher, as entrelinhas que transpareciam
apoiadas nas informações fornecidas pelo olhar.

Ler a expressão de alguém nem sempre é tarefa desempenhada com sucesso,


pois pode haver limitações naquele que se propõe a ler, quando não consegue atribuir
105

significados ao que vê, relacionando ao contexto em que observa. Pode acontecer


também de o olhar analisado revelar-se incompreensível, insondável. O olhar e o
comportamento da personagem Flora (Esaú e Jacó) são exemplos dessa obscuridade,
quando há uma tentativa de desvendá-los, pela insistência do olhar de quem busca
significados ali:

Perpétua acrescentou que, mudado o regime, era natural que Paulo chegasse
primeiro à grandeza, - e aqui espetou bem os olhos. Era um modo de apanhar
os sentimentos de Flora, acenando-lhe com a elevação de Paulo, pois bem
podia ser que viesse a amar antes o destino que a pessoa. Não achou nada.
Flora continuou a não se deixar ler. (ASSIS, 1999, p. 147).

Na verdade, o que se observa é que Flora não se revela nem a si mesma,


evitando admitir, reconhecer o que lhe vai no íntimo. A experiência de ler a si própria
não se solidifica, porque ela mesma repele as reflexões que porventura lhe
esclareceriam as próprias aflições. E isto se dá mesmo quando intenta pedir auxílio
“celeste”:

Certamente, já lhe havia pedido que a livrasse daquela complicação de


sentimentos [...], daquela hesitação cansativa, daquele empuxar para ambos
os lados. Não foi ouvida. A causa seria talvez por não haver dado ao pedido a
forma clara que aqui lhe ponho, com escândalo do leitor. Efetivamente, não
era fácil pedir assim por palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não
formulou a súplica. Pôs os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para que a
imagem lesse dentro dela o seu desejo. Era demais; requerer o favor do céu e
obrigá-lo a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora e resolveu emendar a
mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o que não dizia a si mesma.
Pensava nos dois, sem confessar a nenhum. Sentia a contradição, sem ousar
encará-la por muito tempo. (ASSIS, 1999, p. 163).

É o narrador quem acusa o motivo pelo qual as súplicas de Flora permaneciam


sem solução: ela não organizava seus pensamentos e ideias, não os transferia para a
esfera da linguagem, não os elaborava em palavras, para que se fizessem menos difusos.
Assim, perdia-se na imprecisão dos seus sentimentos, sem conseguir refletir a respeito.
Essa transformação do pensar abstrato em uma ordenação facilitada e veiculada pela
linguagem daria à personagem a oportunidade de explorar a si mesma, em uma
experiência singular de leitura.

Quem consegue extrair algum significado da expressão de Flora é o Conselheiro


Aires e, mesmo assim, só o faz porque se revela um leitor habilidoso. É o que se nota
quando ele sugere que ela se afaste da cidade por um tempo:

- Para onde? Perguntou Flora ansiosa.


106

E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se lembrava, e


queria que ele mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto mais
longe, melhor. Foi o que ele leu nos olhos parados. É ler muito, mas os bons
diplomatas guardam o talento de saber tudo o que se lhe diz um rosto calado,
e até o contrário. (ASSIS, 1999, p. 165).

Liam-se elementos não pertencentes ao universo da escrita e decifravam-se


quase com exatidão, como se palavras fossem. Entretanto, tal operação só se faz
possível e eficaz porque o leitor em questão consegue mobilizar uma apurada
percepção, como também concatenar ideias com base no contexto que se lhe expõe e,
assim, construir significados coerentes e esclarecedores.

Essa sagacidade no olhar de quem lê remete à habilidade da percepção do


próprio Machado, pois, ao mesmo tempo em que expõe modos e características das
vivências sociais de seu tempo, com todas as sutilezas, mazelas, conveniências e
dissimulações, delineia também perfis ficcionais a partir dos quais se exploram e se
problematizam os recônditos da alma humana, traduzidos em ambiguidades, medos,
incertezas e astúcias. E tais elementos não são trabalhados isoladamente, ou agrupados
aos poucos, intencionalmente, a fim de reproduzir um caráter específico ou um tipo
social; na verdade, esses aspectos se embaralham, se alternam, surgem em maior ou
menor intensidade na composição de uma mesma personagem. Na construção desses
“indivíduos de papel”, a escrita machadiana ultrapassa o seu tempo, estendendo-se
àqueles que, em qualquer época, se interessem em percorrer inesperados caminhos, nas
leituras que não traduzem, mas rastreiam modos de ser e de sentir.

Bosi (2007) destaca que o “objeto principal de Machado de Assis é o


comportamento humano. Esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras,
pensamentos, obras e silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro
durante o segundo Império” (p.11). Ainda que haja temas, espaços, ambientes e também
expressões linguísticas condizentes com o século XIX, a sua escrita e os
comportamentos dos seres por ela apresentados não se restringem, não cabem em um
período único:

[...] uma força de universalização faz Machado inteligível em línguas,


culturas e tempos bem diversos do seu vernáculo luso-carioca e do seu
repertório de pessoas e situações do nosso restrito oitocentos fluminense
burguês. Se hoje podemos incorporar à nossa percepção do social o olhar
machadiano de um século atrás, é porque este olhar foi penetrado de valores e
ideais cujo dinamismo não se esgotava no quadro espaço-temporal em que se
exerceu. (BOSI, 2007, p. 12).
107

Considerando a esfera ficcional, vê-se que, na tentativa de explorar e mesmo de


lidar com angústias e incertezas, mediante observação do próprio comportamento, a
leitura de si mesmo torna-se uma estratégia útil. Porém, como já referido acerca da
personagem Flora, o próprio indivíduo pode criar barreiras que limitam sua percepção
sobre si, quando não admite, nem intimamente, a que se devem suas inquietações. Nas
narrativas de Eça, no entanto, há personagens mais nítidas, cuja composição se
apresenta não de forma exata, absolutamente precisa, mas, certamente de modo mais
definido, menos sinuoso. Nem por isso as inquietudes e instabilidades dos indivíduos
criados pelo autor português deixam ser percebidas por quem os lê, mas de fato seus
movimentos têm correspondência direta com as informações trazidas sobre eles.
Enquanto no texto machadiano há sempre espaço para a dúvida, para o ambíguo e
mesmo para o inesperado, nas produções de Eça os fatos seguem os trilhos traçados,
com margem para um ou outro desvio, porém, retomando comumente a rota. Nesse
sentido, a leitura de si, das próprias atitudes, transcorre com maior naturalidade, como
demonstra a reflexão de Gonçalo (A ilustre casa de Ramires – 1900):

Ali, no segredo do quarto apagado, bem o podia livremente gemer – ele


nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza da
carne, que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma
sombra, o forçava a recuar, a fugir... [...] Ah, vergonhosa carne, tão
espantadiça! (QUEIRÓS, 2010, p. 203, grifo do autor).

A atenção da personagem volta-se aos seus próprios atos, à sua conduta, e o


raciocínio flui, mesclado à voz do narrador que projeta, exterioriza os estados de alma
de que trata. É nítida a visão sobre si mesmo, a identificação dos caracteres que
integram o seu ser. Por outro lado, isto não impede que a personagem venha a
surpreender (até a si mesmo) quando age de modo contrário à sua natureza habitual. No
fim da narrativa, após várias situações que já haviam demonstrado o temperamento
manso e até covarde de Gonçalo, ele se vê mais uma vez insultado, ridicularizado e
manifesta inusitada reação. Instintivamente, ele é tomado por um “não sei quê que se
desprende dentro do seu ser, e transborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido, e lhe
enrija cada nervo de força destra, e lhe espalha na pele o desprezo e a dor, e lhe repassa
fundamente a alma de fortaleza indomável...” (QUEIRÓS, 2010, p. 212). Enfrenta,
portanto, o adversário, ferindo-o, golpeando- o com o seu chicote, o que difere
radicalmente das suas ações de outrora. Mas, é importante esclarecer que, embora a
personagem surpreenda o leitor com a sua atitude intempestiva, esta se originou de uma
108

reação marcada pelo impulso físico, orgânico, de um típico acesso de raiva, de fúria.
Logicamente, tal comportamento destoa do perfil cordato de Gonçalo, mas, ainda assim
remete à convencional ideia de que, mesmo um indivíduo pacífico e até medroso pode,
de repente, “explodir”, quando provocado repetidamente, negando assim uma
passividade perene.

Depreende-se disso que as personagens queirosianas não são absolutamente


previsíveis, contudo, diferem das de Machado porque estas têm forte marca de
imprecisão, de dubiedade, podendo levar o leitor a confundir-se ou a desconfiar das
condutas apresentadas, sem captá-las prontamente. Nas criações de Machado, há sempre
algo encoberto, oculto e no máximo alguns indícios ficam entregues aos raciocínios e
suposições do leitor. Em textos de Eça, os agentes ficcionais têm linhas de composição
que levam o leitor a relacionar as atitudes e reações manifestas ao que de fato se espera
deles. No caso da cena que conduz Gonçalo a um desvio do que lhe é característico,
nota-se, logo adiante, que o seu eu legítimo se impõe, levando-o a horrorizar-se com o
que acabara de fazer:

Então Gonçalo atentou no chicote, no sangue... Sangue de gente! Sangue


fresco, que ele arrancara!... E por entre o seu orgulho, uma piedade passou
que o empalideceu:
- Que desgraça, vejam que desgraça!
Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no horror de nódoas de sangue, que
o salpicassem. Sim, santo Deus! Sangue na polaina!... E imediatamente
ansiou por se despir, se lavar [...]. (QUEIRÓS, 2010, p. 213).

A reação súbita findara e ele reencontra a mansidão de sua natureza, passando a


sentir repulsa com relação ao ato que a contrariava. Não há, portanto, dubiedades a
serem exploradas a partir da essência da personagem. As contradições, quando ocorrem,
são momentâneas e orquestradas por impulsos físicos.

O temperamento da personagem queirosiana é tão claramente definido que se


admite a transparência do seu olhar, na revelação da correspondência com a sua
personalidade. É o que faz Artur (A Capital), ao supor que a sua fotografia, na capa do
livro que desejava publicar, indicaria às leitoras o romantismo que lhe invadia a alma:

[...] o coração lhe batia à ideia de ver o seu livro na vidraça dos livreiros com
uma capa cor-de-rosa; decidira juntar o seu retrato, numa atitude de cabeça
contemplativa; decerto uma mulher inteligente o amaria pela nobre
melancolia que os seus olhos revelavam, e a sua vida seria uma continuação
de beijos arrebatados e de rimas sonoras. (QUEIRÓS, 1992, p. 133).
109

Artur tem plena convicção de quem é, do que sente. Por isso assume, para si
mesmo, que o seu olhar expõe, sem reservas nem dúvidas, a sua índole, as suas
preferências, os seus sentimentos. E muitas vezes supunha que outras pessoas também
exibiriam, na expressão facial, o seu temperamento:

[...] imaginava a vida dum mundo superior, em que as faces são pálidas da
emoção contínua dos sentimentos romanescos; aí diplomatas cujos sorrisos
têm a frieza da razão de Estado, trocam ditos à Talleyrand, [...] ideais figuras
de beleza patrícia respiram ramos de violeta com olhares onde brilha, sob um
fluido, o ardor dos adultérios [...]. (QUEIRÓS, 1992, p. 148).

Ao construir, nas suas idealizações, os detalhes da rotina burguesa em Lisboa, a


personagem assegura que os olhares e expressões traduzem as experiências de vida, os
desejos e sentimentos dos que compõem a sociedade. E mesmo quando, mais adiante,
vai percebendo que o romantismo é muito mais uma preferência sua que dos lisboetas,
ainda assim, é no rosto das pessoas que Artur busca informações. Há, por exemplo, uma
cena em que ele busca identificar reações à leitura do seu livro, já publicado: “Não
encontrava, nas fisionomias, nada que revelasse a impressão dada pelos seus versos: o
livro parecia passar sobre a cidade, como uma gota de água sobre gutta-percha”
(QUEIRÓS, 1992, p. 308).

A expressão facial, portanto, revela-se como fonte de significados, como


referente para análise de ideias, confirmação de indagações ou mesmo para o
surgimento de novos questionamentos. Há casos também em que ocorre um legítimo
processo de comunicação facilitado pelo decifrar do olhar, sem que haja necessidade de
uso da palavra. É o ocorre em Dom Casmurro quando o casal protagonista admite para
si o fim do casamento, pela leitura de olhares: “Já entre nós só faltava dizer a palavra
última; nós a líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva [...]”. (ASSIS,
1995, p. 168). Proferir uma palavra tornava-se, portanto, secundário, pois a informação,
o significado já havia sido encontrado na expressão do rosto, marcadamente pela
especificidade do olhar. Este, portanto, equivale a um enunciado, passível de ser
decodificado e interpretado.

Chauí (1993) salienta que “conhecer é clarear a vista, como se o saber


permitisse, enfim, olhar. Clarear a vista é ensiná-la a ver os signos da escrita e da leitura
[...]. Ver é pensar pela mediação da linguagem. Aqui, olhos e palavras não são rivais”.
(p. 39). Nota-se a estreita relação entre o ato de olhar e a compreensão dos signos
110

linguísticos, cujo entendimento e mesmo questionamento correspondem a processos de


leitura. Mas, para além disso, observa-se, com base nos exemplos extraídos das ficções
machadiana e queirosiana, que o olhar também pode configurar-se como signo,
possibilitando um convite à construção de sentidos. E esta operação exige tanto a
adequação coerente a um contexto – no qual se observa e se analisa o olhar – como
também um mínimo desprendimento das próprias e usuais percepções, para que seja
viável o desenvolvimento de novas perspectivas, novos entendimentos.

A personagem Artur (A Capital) é repreendido, já no fim da narrativa, pelo


companheiro Melchior, exatamente por “não ter olhos”, ou seja, por não ampliar a sua
visão. Assim poderia ter identificado, previamente, o engano de que fora vítima, quando
a sua mulher foge com o homem que se aproximara dele, amistosamente:

E imediatamente o Melchior enfureceu-se. E de quem era a culpa? Pra que


tinha metido o espanhol de portas adentro?
- Quem podia adivinhar?
- Quem podia adivinhar – exclamou o Melchior com tanta ira, que Artur
recuou temendo uma violência. – Bastava ter olhos! Pra que estava o
desavergonhado do andaluz, sempre no quarto? Mas você, com a sua boa fé
de Oliveira de Azeméis! É necessário conhecer Lisboa! É necessário ter
olho!”. (QUEIRÓS, 1992, p. 357).

A índole romântica e passiva de Artur impedia-o de “ter olhos”, de maneira que


ele não foi capaz de notar, com certa malícia, as alterações de comportamento do amigo
espanhol e de sua mulher, muito embora estes dissimulassem os seus interesses. Mas,
ler as atitudes alheias, compreendendo-as mais amplamente, requer algum grau de
astúcia, de sagacidade na percepção. E o ingênuo Artur revelava-se inábil neste sentido,
o que remete também à crítica queirosiana aos comportamentos românticos, que
conduziriam um indivíduo à alienação, por manter-se desconectado da realidade prática.
Uma vez que as ações da personagem apoiavam-se, constantemente, em devaneios e
ilusões, era-lhe difícil enxergar algo além das suas próprias criações sentimentais.

Por outro lado, seja por seu temperamento romântico, que lhe despertava o
ciúme, ou porque realmente conseguiu, por um momento, alargar o seu olhar, o fato é
que ele capta estranhas reações no comportamento de Melchior, no instante em que este
se indignava com a sua passividade. Artur parece seguir o conselho anterior do próprio
Melchior, passando a “ter olho”:
111

E viu de repente, na cólera de Melchior, não o interesse do amigo, mas o


despeito do amante. O quê? Também ele! Aquela suspeita foi-lhe dolorosa. E
andando, em silêncio, olhava pelo canto do olho o seu perfil espesso, a sua
figura grossa, o seu andar pesado – e ela dera-se, traíra-se, a um grotesco
daqueles? Era demais! Ao menos a paixão pelo Manolo tinha a sua
justificação: era bonito, era valente, era romanesco, era divertido! Mas este, o
Melchior – pelintra, caloteiro, covarde, debochado, imbecil, bêbado? Pouh.
Todos os defeitos do Melchior lhe apareciam agora disformes, monstruosos.
Envergonhou-se da sua amizade – e do seu amor. (QUEIRÓS, 1992, p. 358).

Curiosamente, mesmo quando consegue concatenar elementos que


descortinariam o verdadeiro caráter do Melchior, nota-se que os argumentos de Artur
têm embasamento emotivo, romantizado. Ele lê a imagem de Melchior como a de uma
personagem que antagoniza com o ideal masculino descrito em romances sentimentais.
Este perfil idealizado estaria demarcado na figura do Manolo, o que justificaria o
arrebatamento de sua mulher – envolvera-se com um “ente romanesco”, adornado por
características heroicas e atrativas. Porém, não era compreensível, para Artur, que ela se
aproximasse do extremo oposto ao modelo literário em questão. Assim, vê-se que a
personagem mais uma vez transfere aos outros um critério de escolha e de preferências
que é seu, elegendo como rival aceitável somente aquele que se assemelhasse às
personagens que ele lia e admirava.

Para além disso, percebe-se que, ao ler a cólera de Melchior e construir suas
suspeitas, nem mesmo assim Artur é capaz de interpelar o amigo ou ao menos insinuar-
lhe suas desconfianças, guardando-as para si, o que confirma sua natureza passiva e
temerosa. Outro ponto a destacar é o fato de o protagonista envergonhar-se da sua
amizade e do seu amor não necessariamente pela suposta traição, mas sim pelo fato de o
envolvimento não ter se configurado com as características lidas nos romances, pois
isso tornaria os fatos mais aceitáveis, justificáveis, no entendimento dele.

A maneira como Artur lê as atitudes alheias, sempre influenciado por suas


leituras, acaba tornando-o uma figura fácil de ser lida, a partir do seu próprio
comportamento. E ele mesmo tinha consciência disso, de modo que se deixava ler pelos
outros, supondo atrair a atenção alheia, como ocorre na cena em que acredita que a
publicação do seu livro causava intensas reações positivas:

No rumor das conversações parecia-lhe sentir o seu nome, trechos do livro


citados; deviam decerto olhá-lo, examiná-lo: e calculava os seus movimentos,
a maneira de se encostar na cadeira, de passar a mão pelos cabelos – para dar
de si a ideia mais favorável e como revelação pública do seu gênio íntimo.
(QUEIRÓS, 1992, p. 306).
112

Uma vez que julgava ser observado e admirado, concentrava-se em revelar,


pelos seus gestos, a imagem idealizada de si mesmo, visando a enaltecer sua própria
figura. Tal cena não apenas reafirma o constante estado de ilusão em que vivia a
personagem, como também indica que, nas produções queirosianas, os entes ficcionais
acabam por permitir que sejam entrevistos os traços que os compõem, mediante a leitura
de suas atitudes e intenções, que surgem quase sempre bem nítidas, na narrativa. É
perfeitamente viável, para o leitor empírico, perceber a personagem exatamente como é,
ainda que, em alguns momentos, ela contrarie o perfil que a emoldura. Estas situações
trarão surpresa ao leitor que acompanha os movimentos da personagem, embora tal
quebra de expectativa advenha, justamente, do fato de ela ter bem definidas as suas
características, a sua composição. Já nas obras de Machado, pode o leitor não ser
surpreendido exatamente porque ele se coloca comumente em estado de suspeição,
afinal, não sabe o que esperar de personagens que não se revelam inteiramente. Há
sempre algo no seu comportamento que pode se observar apenas de soslaio, pois não
fica completamente ao alcance da visão; as personagens machadianas revelam de si o
que uma porta entreaberta permite enxergar acerca de um ambiente – o mais é
indagação, construção, suposição.

O conto Singular Ocorrência (1884) apresenta uma mulher cujo comportamento


leva à dúvida, tanto o receptor do texto quanto o interlocutor ficcional, que ouve o relato
do narrador-personagem; este, por sua vez, também não arrisca emitir uma opinião
convicta. Todos são provocados a questionar e criar suas próprias “teorias” a respeito
dos fatos e, consequentemente, da índole de Marocas. O seu suposto envolvimento com
Leandro é aventado, mesmo existindo um relacionamento estável e bem afetivo entre
ela e Andrade. O narrador, revelando seu pasmo em supor que ela traíra o seu amigo,
reúne argumentos com base na leitura que fazia do comportamento de Marocas:
“Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta!
Maneiras tão acanhadas!” (ASSIS, 2008, p.131). Considerando os modos habituais
dessa mulher, ele se recusava a acreditar nos indícios que apontavam para sua relação
com Leandro. A austeridade do comportamento dela, inclusive, é destacada e
enaltecida, ao longo de toda a narrativa, como se de fato a ambiguidade fosse a chave da
questão: ao mesmo tempo em que se sobressaíam os seus ares sérios, pairava também a
incerteza sobre sua atitude.
113

Tal hesitação leva a personagem, que ouve o relato, a apostar na “nostalgia da


lama”, em referência ao texto do dramaturgo francês Augier, como possível explicação
para o comportamento de Marocas. Associava o suposto envolvimento com Leandro
como um breve e fortuito reencontro com a vida que ela levara no passado, ainda que
fosse uma conduta desaprovada socialmente. De qualquer modo, era criada uma
suposição, sem afirmações contundentes.

Quando, já no fim da narrativa, Andrade e Marocas se reconciliam, ainda assim


a dúvida não se esclarece; na verdade ela perde mesmo a sua importância: “– Tudo se
explicou? / - Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio,
não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique.” (ASSIS, 2008, p.133).
Embora os gestos, os modos e a leitura oriunda deles constituam elementos para se
montar uma imagem de uma personagem, o que se percebe é que as figuras das criações
machadianas não se demarcam com a nitidez que permita alcançar-lhes a totalidade; há
sempre algo sombreado, enevoado e inquietante. Bosi (2007), a respeito das temáticas
nos textos de Machado, destaca que “interessam-no cada homem e cada mulher na sua
secreta singularidade, e o ser humano no seu fundo comum”. (p. 155). Para além disso,
pode-se questionar se nesse fundo comum não reside exatamente a dubiedade inerente à
condição humana e que se manifesta sob vários formatos: diferentes e inesperados
comportamentos, variados sentimentos e reações que um mesmo indivíduo pode
expressar.

No tocante às personagens de Eça, convém acrescentar que o fato de elas


seguirem mais à risca um traçado descritivo, que lhes revela o perfil, tal condição não
anula as possibilidades de leitura que suas expressões, gestos e comportamentos
indicam. Tanto que, por exemplo, o próprio narrador-personagem de Um poeta lírico
(1902) assegura, ao observar o protagonista: “aquela face fatal e byroniana deve ter uma
história” (QUEIRÓS, 1951, p. 14). É exatamente a fisionomia do homem que desperta a
atenção do narrador, favorecendo, inclusive, que fosse feita uma associação entre uma
referência de leitura (poemas de Lord Byron) e a expressão de um indivíduo que
“exalava” lirismo. Foi também pela leitura do olhar que foi percebido o interesse, desse
mesmo homem, no livro pertencente ao narrador: “[...] recordei o olhar de gula e de
presa que cavara nele Korriscosso... Era um bandido!” (QUEIRÓS, 1951, p. 15).
Presume-se o roubo do livro apenas por recordar as intenções manifestas no olhar. Na
sequência, é fácil para o narrador vir a confirmar que seu livro realmente fora roubado,
114

porque a expressão do suspeito o denunciava: “Foi então que eu avistei, sobre a mesa,
entre papéis, colarinhos sujos e um rosário – o meu volume de Tennyson! Ele viu o meu
olhar, o bandido! E acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face chupada”
(QUEIRÓS, 1951, p. 15). Inquiria-se a culpa pelo olhar e este conduzia o acusado a
entregar-se pela expressão do rosto. Ainda que o perfil lírico e romântico de
Korriscosso, de certa forma, contribuísse para que não suspeitassem de sua atitude
ilícita, a leitura de sua face revelava o que de fato havia ocorrido. Quando são lidos os
olhares e expressões, decifram-se algumas peculiaridades das personagens queirosianas,
o que contribui para um entendimento mais pleno de sua formatação.

Em A Capital, a personagem Melchior, apesar de já conhecer o caráter passivo e


manipulável de Artur, sente-se, de certo modo, ameaçado pelas informações que leu em
seus gestos, em determinada ocasião: “Artur, agora, ia quase todas as manhãs ao
‘Século’, pretextando dar uma vista de olhos aos jornais: mas na sua presença, na sua
voz, na maneira de se sentar, Melchior sentia errar uma vaga acusação: já o temia como
um credor”. (QUEIRÓS, 1992, p. 309). O comum era esse homem não causar nenhuma
intimidação; entretanto, a leitura de suas maneiras, naquela ocasião, contrariou o que se
esperava dele: passava a cobrar, veladamente, que o amigo publicasse, no jornal em que
trabalhava, alguma crítica favorável ao seu livro. Suas intenções eram nitidamente
percebidas por Melchior, sem que lhe fosse emitida nenhuma palavra; fazia- se apenas a
leitura do que informavam os seus gestos e mesmo o tom de sua voz. Não havia
margem à dúvida, transpareciam ali os desejos de Artur.

Já em D. Casmurro, a leitura de olhares conduz à suspeita; tem-se uma ideia do


que parece acontecer, mas não há como afirmar e concluir com precisão. E isto não diz
respeito somente ao que se relata a respeito da personagem central, Capitu, mas há outra
figura feminina cuja expressão, em determinada cena, instiga a atenção, sem que se
arremate alguma certeza:

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às
relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos
de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e
intimativos, diziam outra coisa, e não tardou que se afastassem da janela,
onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em
caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando
que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dois
teimosos.
[...]
115

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela
apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume. (ASSIS, 1995. p.
157).

O olhar que convida, insinua ou mesmo seduz parece de fato atrair com uma
intenção específica, porém, não se pode negligenciar o fato de que o narrador que
“falava com os olhos à dona da casa” era o mesmo que interpretava os olhares daquela
mulher. Assim, há a incerteza com relação à expressão de Sancha – se de fato era ou
não convidativa – em razão de que apenas pelo olhar torna-se mais difícil precisar se
alguém realmente busca atrair o outro e, além disso, vê-se que o relato não é isento, pois
reflete a leitura que a personagem Bento mais uma vez realiza. Assim, a leitura do olhar
causa uma impressão no protagonista e suas ideias formatam-se como algo possível,
provável; entretanto, o simples fato de ele apresentar a cena a partir do que sentiu e
percebeu, já abre margem à dúvida. Também o mecanismo de leitura que ele utiliza – o
decifrar de olhares – não é absoluto, permite sempre uma lacuna, um espaço que foge à
exatidão.

Em textos de Machado, a imprevisibilidade de algumas personagens pode chegar


a rompantes extremos, que acabam por revelar aspectos que surpreendem o próprio
indivíduo que os sente. É o caso da cena em que Bento cogita entregar, ao filho
Ezequiel, o café envenenado que havia preparado para si:

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui


escrevendo este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e
bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como
de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa
dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei
eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso.
Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café. (ASSIS, 1995, p. 173).

No rosto do menino, ele lia o suposto envolvimento da mulher com outro


homem e, com base nas ideias que construía, notava em si o impulso de envenenar
Ezequiel. O próprio Bento admite que, se não tivesse olhado, observado diante de si a
figura da criança (que tanto lhe lembrava o amigo Escobar), não teria cogitado tal ato. A
leitura da imagem incitava o rompante, pois embora fosse o indivíduo quem conduzia o
próprio olhar, era o objeto por ele iluminado que despertava intenções difíceis de
admitir para si mesmo.

Por outro lado, o sujeito que olha é o mesmo que processa, interpreta, sente,
fazendo-se portanto responsável pela leitura que opera. Como esclarece Chauí (1993),
116

“porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós
para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.” (p.
33). Por mais que as imagens captadas pelo olhar “denunciem” algo àquele que observa,
ainda assim há toda uma construção interpretativa quando se lê o outro, ou aquilo que o
outro representa. Pode haver enganos e limitações nas criações de significado que se
processam, de maneira que, ao ler a imagem ou mesmo os comportamentos e
expressões de alguém, muitas vezes o observador em questão revela algo de si em maior
proporção que a descoberta feita sobre o outro. Considerando a personagem Bento, vê-
se que, ao longo de toda a trajetória narrativa, pouco a pouco transparece a sua
configuração como “indivíduo singular”, de que fala Bosi (2007):

O texto de Dom Casmurro mostra copiosamente que o narrador Bento


Santiago não se poupa a si mesmo aos olhos do leitor, confessando-se inteiro
nas suas fraquezas e tentações, com suas quedas pifiamente racionalizadas,
seus medos e superstições, suas covardias e promessas descumpridas, seus
ímpetos perversos, quando não criminosos [...] fazendo-o, em suma, de si
próprio um retrato que está longe do medalhão referto de dignidade ou do
cavalheiro impoluto. (p. 37).

Surge, gradativamente, o ente ficcional que se intitula “casmurro” e os traços de


sua composição se revelam, em vários momentos, através da sua maneira de ler, analisar
e compreender os comportamentos das outras personagens que com ele interagem.
Observando e interpretando as expressões e ações alheias, ele expõe muito de si mesmo.
Logicamente, isto não anula o fato de olhares, gestos e imagens indicarem fontes de
significados a serem explorados, mas, há que se fazer a ressalva de que, quando o
observador busca decifrar, ler fisionomias, interpreta-se com base naquilo que o
constitui como sujeito-leitor. Portanto, lê-se a partir das experiências e repertórios
advindos de outras leituras e vivências, mas também a partir da constituição psíquica,
em que pesam tendências, habilidades, caráter, temperamento.

O olhar como fonte de informações que viabiliza a construção de significados


constitui-se como objeto-alvo de leitura, esta concebida como atividade de compreensão
e expansão de ideias. “A percepção do outro depende da leitura dos seus fenômenos
expressivos dos quais o olhar é o mais prenhe de significações”. (BOSI, 1993, p. 77). E
embora o olhar tenha primazia na busca por conexões de significado, também os
comportamentos (ações, reações) e gestos são passíveis de serem lidos, pois contêm
carga de expressividade e contribuem para o entendimento mais profundo de uma
situação, de uma cena.
117

Muitas vezes dispensam-se as palavras porque, em determinadas circunstâncias,


a compreensão se dá de modo mais efetivo, mediante a observação atenta de expressões
ou de atitudes. Como não recordar a cena de A ilustre casa de Ramires, quando Gonçalo
capta o interesse afetivo de uma mulher, pelo modo como dispôs as frutas que lhe
enviava? “[...] considerou que os pêssegos, arranjados por ela, com parra que ela
apanhara na latada, sob toalha que ela escolhera no armário, formavam na sua mudez
cheirosa um recadinho sentimental”. (QUEIRÓS, 2010, p 180). Transmitia-se
mensagem, sem que fosse necessária a intermediação linguística.

Em outros casos, ainda que não haja um entendimento pleno de uma situação,
exatamente porque ela não se configurou apoiada em materializações de linguagem,
ainda assim provoca-se, instiga-se que se criem raciocínios e suposições, através da
leitura do olhar e/ou de comportamentos. Acrescenta-se a isso o fato de que o olhar,
quando astuto e esquadrinhador, configura-se como mecanismo de leitura, uma vez que
busca reunir dados, “pistas” que se converterão em ideias, sentidos. Todas essas
modalidades de leitura, como já demonstrado, destacam-se, na ficção de Eça e
Machado, como relevantes recursos, oferecidos ao leitor real, para a ativa compreensão
das obras, no tocante ao delineamento das personagens e à elaboração da sua trajetória,
na narrativa.
118

4. Leitura e criação literária

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro


com o fim de descansar da cavatina de ontem
para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas,
ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso,
querida; eu mudo de rumo.
(Machado de Assis)

4.1 A singularização do leitor: entre perfis e personagens

Diante de uma narrativa, o receptor, de modo quase automático, espera encontrar


ali personagens cujo delineamento se fará visível, ainda que isto nem sempre ocorra de
forma precisa, nítida. De qualquer modo, à medida que a leitura avança, vão surgindo
informações relativas aos agentes da ficção: caracteres físicos – embora, em alguns
casos, não estejam minudenciados – aspectos do temperamento, sendo que estes se
revelam gradativamente e, para além disso, vão-se esclarecendo também quais as
relações que as personagens estabelecem entre si e as implicações disso para a trama ou
para o episódio contado.

Anteriormente, observou-se como figuram, dentro da ficção de Eça e Machado,


personagens leitoras que se definem pelos seus comportamentos de leitura e como tal
ato, em suas diferentes acepções, atrela-se aos efeitos de sentido proporcionados pelas
obras. Porém, há que se fazer agora uma importante observação: a construção de
leitores, em certas passagens literárias, transcende a formatação habitual da categoria de
personagem ou, de outro modo, há diferentes maneiras de se compor perfis de leitores,
sem necessariamente enquadrá-los como personagens, pelo menos não na acepção usual
de que “as personagens vivem no enredo. Enredo e personagens exprimem, ligados, os
intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o
animam”. (ROSENFELD, 1998, p. 39).

Ao se considerar como personagem apenas o ente ficcional cuja atuação ocorre


nos limites espaço-temporais da obra, ainda que tais fronteiras se alarguem e absorvam
contextos de criação como a memória, os devaneios ou as representações oníricas, por
exemplo, ainda assim ficariam à margem “seres” que emergem, em determinadas obras,
apresentando aspectos que os aproximam da categoria de personagem, sem no entanto,
119

envolverem-se no enredo, como agentes. Não se está aqui fazendo referência à categoria
de narrador que, em certos casos, acaba por participar ativamente do enredo, não por
meio de ações propriamente, mas mediante comentários, digressões, emissões de juízo
de valor ou simplesmente por meio de irônicas sugestões, em uma tentativa de
manipulação do leitor (que se torna explícita aos que têm “olhos de ver”). Nesses casos,
pode-se perceber que, embora seja marcante essa participação, que muitas vezes se faz
como intervenção ousada e bem-humorada, ainda assim a função primordial é a de
narrar, a de apresentar os fatos e, logicamente, as personagens a eles relacionadas. Mas,
o que dizer de certos “entes” que surgem na narrativa, delineados sob características que
os aproximam de seres humanos reais, tal qual ocorre com as personagens, sem no
entanto, interagir com elas, ou seja, sem conviver com os agentes que se movem na
narrativa? Observe-se o que Rosenfeld (1998) define como recursos de caracterização:

os elementos que o romancista utiliza para descrever e definir a personagem,


de maneira a que ela possa dar a impressão de vida, configurando-se ante o
leitor; graças a tais recursos, o romancista é capaz de dar a impressão de um
ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza (p. 44).

Se a composição da personagem ocorre por meio da utilização de elementos que


a aproximam de um ser vivo, real, com traços que elucidam seu temperamento, sua
índole, o que dizer quando essa configuração é relativa ao leitor real? Poderia este
também ser delineado, mediante atribuição de características que o particularizam? Tal
estratégia de criação literária acaba por aproximar dois planos que, embora se
comuniquem, são também distintos: o ficcional e o extraficcional. É certo que a criação
literária incorpora muitos dados da realidade, utilizando-os como base para a construção
de situações vivenciadas nos romances e contos, porém, ao se configurar o leitor da
obra, de modo semelhante ao que se nota na composição de personagens, faz-se uma
mescla, de modo bastante inovador, entre o que é puramente ficção e o que a
transcende. Cria-se uma “ilusão de veracidade” uma vez que o leitor, além de ser
incitado a atentar para os meandros narrativos, como um expectador privilegiado,
também é definido, ganhando contornos e caracteres particulares.

É relevante esclarecer que tal técnica narrativa é mais um aspecto digno de


atenção, considerando as estratégias de construção de leitores nos textos machadianos e
queirosianos, constituindo-se também como um ponto que diferencia os dois escritores.
Nota-se que, nas criações do brasileiro, avultam não apenas personagens cujas leituras
interferem nos seus comportamentos (o que também se dá nas obras do autor português)
120

mas são demarcados também perfis de leitores reais que possivelmente se debruçariam
sobre tais narrativas e que são traçados à maneira de personagens.

Esses perfis são apresentados brevemente, mas de modo recorrente e ainda


revelam características bem específicas do leitor, como se observa no capítulo em que
as personagens Bento e Capitu (D. Casmurro, 1899) traçam planos para o futuro, ainda
na juventude:

Juramos novamente que havíamos de casar um com o outro, e não foi só o


aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das
nossas bocas amorosas... [...] Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos
limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça
perversa que na daquele casal de adolescentes. (ASSIS, 1995, p. 79).

Sem referência direta ao leitor da obra, ainda assim pode-se notar que ele é
definido como alguém cuja malícia se percebe facilmente, destacando-se a interferência
dessa característica na interpretação do episódio narrado. É delimitado um
comportamento de leitura de modo preciso, possibilitando entrever, neste trecho,
características de personalidade atribuídas ao leitor. Como é destacada a sua suposta
“mente perversa”, faz-se também um alerta ao modo de conduzir a leitura, para que uma
“astúcia desenfreada” não venha a interferir no julgamento daquela cena descrita. Vê-se
que o texto machadiano explora, de modo inovador, a ideia de que a leitura é sempre
afetada pelas experiências e até mesmo pelo temperamento e/ou constituição moral de
quem lê. Nas palavras de Barthes (2004):

Toda leitura procede de um sujeito e desse sujeito se separa apenas por


mediações raras e tênues, o aprendizado das letras, alguns processos
retóricos, para além dos quais é o sujeito que depressa se encontra na sua
estrutura própria, individual: ou desejante, ou perversa, ou paranoica, ou
imaginária, ou neurótica – e, bem entendido, também em sua estrutura
histórica: alienado pela ideologia, por rotinas de códigos. (p. 41,42).

Não há como dissociar, portanto, no ato da leitura, as marcas culturais, o


conhecimento prévio e até mesmo a configuração particular, em que pesem
preferências, ritmo e envolvimento com o que se lê, pois todos esses são aspectos
individuais, característicos de cada leitor.

No que se refere ao texto machadiano, curiosamente, embora tenha


singularizado o leitor, pondo em evidência sua suposta índole maliciosa, conforme o já
apresentado fragmento de D. Casmurro, encontra-se, no mesmo romance, uma
referência totalmente avessa, ou seja, presume-se que a leitura é realizada por alguém
121

cuja severidade nos julgamentos morais põe em dúvida a continuidade da leitura. É o


que se observa no trecho em que o narrador rememora algumas de suas sensações:
“Uma dessas, e das primeiras, quisera contá-la em latim. Não é que a matéria não ache
termos honestos em nossa língua, que é casta para os castos, como pode ser torpe para
os torpes. Sim, leitora castíssima, como diria meu finado José Dias, podeis ler o capítulo
até o fim, sem susto nem vexame”. (ASSIS, 1995, p. 87). Nota-se que, antes de narrar
determinadas lembranças suas, a personagem Bento esclarece a leitora, enfatizando que
os fatos a serem expostos não irão ferir os seus valores morais, nem causar-lhe qualquer
espécie de mal-estar. É criado, portanto, um perfil para quem lê a obra: trata-se de uma
mulher, possui rígidos princípios e pode, por isso, abandonar a leitura do livro, caso se
sinta desrespeitada. Ficam bem definidos os traços que singularizam o sujeito leitor e,
inclusive, contrastam com o perfil apresentado anteriormente, em que prevaleciam
caracteres como astúcia, malícia. De qualquer modo, o texto machadiano vai compondo
leitores que, à maneira de personagens, particularizam-se.

Ainda acerca desse fragmento, acrescenta-se que, não apenas nessa ocasião, mas
em várias passagens das narrativas de Machado, faz-se referência à mulher, como
leitora de romances. No século XIX, ler tal gênero era prática essencialmente feminina e
frequente nas classes sociais mais elevadas economicamente, pela maior disponibilidade
não só de tempo, como também pelo fato de possuírem maior poder aquisitivo para
comprar os livros. Outra razão apontada por Watt (2007) para o romance ser lido
constantemente por mulheres é a que está exposta a seguir:

As mulheres das classes alta e média podiam participar de poucas atividades


masculinas, tanto de negócios como de divertimento. Era raro envolverem-se
em política, negócios ou na administração de suas propriedades; tampouco
tinham acesso aos principais divertimentos masculinos, como caçar ou beber.
Assim, dispunham de muito tempo livre e ocupavam-no basicamente
devorando livros (WATT, 2007, p. 41).

Observa-se que, ao compor perfis de leitores reais, não apenas distinguem-se


figuras femininas, no tocante aos seus atributos de personalidade, mas também se supõe
a sua faixa etária, como se pode perceber no trecho em que são descritos os braços de
Capitu (D. Casmurro), em comparação aos da leitora:

De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile, os braços


é que... Os braços merecem um período.
Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que
houvesse iguais na cidade, nem os seus leitora, que eram então de menina, se
eram nascidos, mas provavelmente, estariam ainda no mármore, donde
vieram, ou nas mãos do divino escultor. (ASSIS, 1995, p. 140).
122

Faz-se nitidamente uma caracterização da leitora, mediante a idade que


supostamente possui e isto é ainda mais evidente em Esaú e Jacó (1904), pois, nesta
obra, tal dado é mais específico, como se verifica na cena em que se discute a consulta
que a mãe dos gêmeos protagonistas havia feito a uma adivinha, a fim de saber sobre o
futuro dos filhos: “Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a
leitora, além de não crer (nem todos creem) pode ser que não conte mais de vinte a vinte
e dois anos de idade, e terá a paciência de esperar. Natividade, de si para si, confessava
os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos filhos”. (ASSIS, 1999, p. 31).

Para além de supor a idade de quem o lê, nota-se que o narrador machadiano
também formata outro atributo que é o fato de a leitora não acreditar em adivinhações,
previsões. Tal aspecto é apresentado de modo mais incisivo, pois é assegurado que ela
não crê; é feita, portanto, uma afirmação em tom de convicção, o que não se vê na
referência à idade, em que ainda há alguma suposição. Mas, ao tratar do fato de a leitora
não se deixar enredar por profecias, nota-se maior segurança no relato, como se de fato
estivesse sendo delineada não a leitora, externa à obra e comumente desconhecida, mas
uma personagem com características próprias.

Convém esclarecer que, em termos literais, não há como definir quem lê a obra,
a menos que esta seja de antemão direcionada a alguém, como se vê por exemplo em
romances que se compõem mediante a estruturação de várias cartas – com destinatário
certo – mas que vão narrando os fatos e apresentando as personagens através desse
mecanismo. Nesses casos, é como se o leitor estivesse tendo acesso a uma
correspondência particular e desse modo conhecendo os agentes e os fatos ali narrados.
Mas, no caso das obras machadianas aqui referidas, a singularização do leitor é na
verdade um artificio de criação literária que, além de propiciar uma interação entre o
texto e o leitor real, atesta o fato de que são diversas as possibilidades de leitura, uma
vez que são também múltiplas as personalidades que a desempenham, cada uma a seu
modo e imersa em um contexto distinto. E isto não apenas se refere a diferentes
momentos históricos em que leitores se debruçam sobre a obra machadiana, mas
destaca-se também o fato de que, ainda que imersos em um mesmo panorama
sociocultural, variadas leituras ocorrem porque são também vários os temperamentos,
conhecimentos e experiências de quem lê, ou seja, constituem-se “personagens da vida
real”, com atributos e características singulares.
123

Falou-se há pouco que a leitura romanesca, nos oitocentos, era comumente


realizada por mulheres; entretanto, o texto machadiano não desconsidera a possibilidade
de ter como receptor um homem. E, como o destaque é a singularização do leitor,
observa-se que até um possível ofício para ele é traçado: “[...] pedi a Deus que me
perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, eu lhe rezaria dois mil padre-nossos. Padre
que me lês, perdoa este recurso; foi a última vez que o empreguei. A crise em que me
achava, não menos que o costume e a fé, explica tudo. Eram mais dois mil; onde iam os
antigos?” (ASSIS, 1995, p. 101). Trata-se de uma cena de D. Casmurro, em que
Bentinho recorre mais uma vez a uma promessa, a fim de ter um pedido seu atendido
por Deus, porém, como não cumpriu as que fizera anteriormente, sentia-se em dívida.
Ao narrar a situação, ele não apenas pressupõe um leitor que é padre, como antevê a
censura que este lhe faria pelas promessas não honradas e pede logo o perdão. Mais uma
vez, constrói-se um perfil de leitor, como se este atuasse à maneira de uma personagem
que vai posicionar-se, agir e reagir de acordo com as situações que surgem. E é tão
convincente tal efeito, que de fato o narrador dirige-se a ele com um específico pedido
de remissão de culpa, como se tal leitor estivesse de fato inserido na história.

Ainda com relação a perfis femininos e masculinos de leitores reais, evidencia-


se que no texto machadiano, para além de se delimitar os caracteres, como se fossem
demarcadas figuras ficcionais, ainda são estabelecidas as diferenças nos
comportamentos e reações de leitura que cada um pode apresentar:

Aires concordou rindo. Para Natividade valia por uma tentativa nova.
Confiava na ação do conselheiro, e para dizer tudo... Não sei se diga... Digo.
Natividade contava com a antiga inclinação do velho diplomata. As cãs não
lhe tirariam o desejo de a servir. Não sei quem me lê nesta ocasião. Se é
homem, talvez não entenda logo, mas, se é mulher creio que entenderá. Se
ninguém entender, paciência; basta saber que ele prometeu o que ela quis, e
também prometeu calar-se, foi a condição que a outra lhe pôs. (ASSIS, 1999,
p. 74,75).

Neste fragmento, oriundo do romance Esaú e Jacó, destaca-se a sagacidade


feminina para compreender as estratégias de ação de que pode se valer uma mulher,
quando se propõe a realizar um intento. A personagem Natividade queria contar com o
auxílio do amigo, o conselheiro Aires, para tentar unir os filhos e esperava lograr êxito
porque sabia que aquele homem, antigo admirador seu, não lhe negaria um desejo. É
enfatizado que a leitora perceberia a astúcia da personagem quando reverte, em seu
benefício e dos filhos, o apreço devotado pelo conselheiro, circunstância que talvez não
fosse percebida de imediato por um receptor masculino, uma vez que este não dispõe da
124

perspicácia feminina, segundo o narrador. Desse modo, verifica-se que embora o leitor
da obra machadiana seja particularizado em várias passagens, mediante caracterizações
bem específicas, há, em outros momentos, uma construção mais generalizada que
estabelece como se processa a leitura masculina e a feminina. Esta última teria a
vantagem de identificar certos pormenores mais sutis, embora bastante relevantes, que
poderiam passar despercebidos pelo leitorado masculino. Esse potencial feminino
estaria diretamente ligado à própria natureza da mulher, habituada a detectar
simultaneamente diferentes informações, “lendo as entrelinhas”.

Por outro lado, na mesma obra, pode-se encontrar uma alusão à leitora, em que
enfaticamente é definido o aspecto fulcral de sua leitura: “O que a senhora deseja,
amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse
particular nos livros.” (ASSIS, 1999, p. 58). Restringe-se, portanto, a leitura feminina à
mera expectativa pelo desenrolar de tramas amorosas, o que pode indicar que a
sagacidade em enxergar o que os homens não percebem, quando leem, está muitas
vezes associada a temas de cunho sentimental. O texto de Machado, como o Eça, em O
primo Basílio (1878), aponta as limitações do universo feminino que se estendem ao seu
comportamento como leitoras; a falta de espaço e de oportunidades de atuação na
sociedade oitocentista atrelava a perspicácia feminina apenas a temáticas afetivas, na
grande maioria dos casos. No texto do autor português, esse perfil de leitora é
construído na categoria de personagem e o desempenho desta, ao ler, acaba por definir
sua personalidade, seus modos e suas ações, o que irá interferir diretamente no enredo.
E, em relação ao perfil construído, nota-se que suas preferências de leitura e as reações
que manifesta ao ler são delineadas de modo mais detalhado, em que cada pormenor
faz-se útil à compreensão plena da personagem:

Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao


aparador, por detrás de uma compota, um livro um pouco enxovalhado, veio
estender-se na voltaire, quase deitada e, com o gesto acariciador e amoroso
dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada. Era a Dama das
camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em
solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia;
desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as
ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas,
forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heroicas, que o
vento do lago agita e faz viver. (QUEIRÓS, 2004, p.20)

A especificação da obra lida, na cena descrita, bem como a exposição do nome


do autor lido, na juventude, contribuem para a composição de Luísa, demonstrando que
125

ela possuía um interesse por criações que revelavam sentimentalismo e que continham
aventuras heroicas; tais aspectos a conduziam para um universo mais encantador que
aquele configurado na rotina da vida que levava. Os temas que lhe chamavam a atenção
eram exatamente os que mais destoavam daquilo que a rodeava no cotidiano e, desse
modo, ela se projetava para o cenário lido.

A leitura de romances, na composição das personagens queirosianas, surge


frequentemente como uma característica que revela o tédio a envolver os dias dessas
mulheres, impedidas de terem uma participação social efetiva, de modo que o seu
mundo definia-se pelas questões familiares e afetivas. Ler servia apenas para entreter-se
e muitas vezes, já que as temáticas eram normalmente de cunho romântico, serviam
também para estimular paixões, sentimentalismo. É o que se observa na descrição que
surge em O crime do padre Amaro (1880), relativa à esposa do tio do protagonista: “[...]
passava os seus dias lendo romances, as análises do teatro nos jornais, vestida de seda,
coberta de pó-de-arroz, o cabelo em cachos, esperando a hora em que passava debaixo
das janelas, puxando os punhos, o Cardoso, galã da Trindade.” (QUEIRÓS, 2004, p.
32).

Semelhante informação pode ser observada em outro trecho, da mesma obra,


quando é feita uma referência aos hábitos de leitura da personagem Amélia e de sua
mãe: “Riam; vinham as histórias do dia. O Cônego costumava trazer no bolso o Diário
Popular; Amélia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas correspondências
amorosas nos anúncios.” (QUEIRÓS, 2004, p. 76). Vê-se que as atenções femininas
estavam comumente associadas a temas afetivos e, quando se viam diante de um
exemplar de jornal, buscavam neste o que lhes era atrativo. O texto de Eça, portanto,
revela preferências e comportamentos de leitura apenas por meio dos caracteres que
compõem as personagens; nesse caso específico, as femininas. Já em Machado
encontram-se não apenas personagens leitoras que se revelam pelas opções e
desempenho ao ler, mas uma outra forma de composição muito semelhante àquela feita
com relação aos entes ficcionais: o esboço do leitor real, que é delineado,
particularizado, como se personagem fosse.

Tal efeito é tão marcante, no texto machadiano, que, em vários momentos, é


simulada uma interação entre quem narra e quem lê, de maneira que são apresentadas
reações de leitura, supostamente manifestadas por esse leitor configurado, construído
livremente pelo narrador. É como se, ao apresentar os fatos e as ideias, já se soubesse,
126

de antemão, o que tais escritos provocariam no receptor da obra, neste caso, D.


Casmurro:

Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar


fora este livro, se o tédio já não o obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas,
se não o fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na
mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há
nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e
maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca. (ASSIS,
1995, p. 74).

É válido esclarecer que a figura de um leitor é sugerida de modo incisivo, como


se todas as suas reações pudessem ser antevistas; contudo, não se trata aqui de uma
estratégia discursiva, no sentido proposto por Eco (1993), e que convém expor. O
teórico italiano destaca o fato de que, na comunicação face a face, os interlocutores
lançam mão de recursos extralinguísticos, a exemplo dos gestos e expressões, além de
procedimentos de redundância e feedback, a fim de promover uma comunicação mais
eficaz, em que vários sistemas de signos interagem e se complementam. Porém, ele
questiona o que acontece com o texto escrito e o compara a uma mensagem dentro de
uma garrafa lançada ao mar ou, em outras palavras, uma produção que é concebida e
depois submetida a uma variedade de atos interpretativos. A partir dessas considerações,
Eco (1993) ressalta que o texto prevê a cooperação do leitor e para isso o autor organiza
estratégias textuais, antevendo um “leitor-modelo capaz de cooperar na atualização
textual como ele, o autor, pensava, e de se mover interpretativamente tal como ele se
moveu generativamente” (ECO, 1993, p. 58). Prever o “leitor-modelo”, portanto, não
corresponde a somente admitir a existência de um receptor para a obra, mas sim
conduzir a escrita do texto de forma a construí-lo. Entretanto, considerando os exemplos
apresentados, relativos às narrativas machadianas, nota-se que, em tais situações, não se
elabora tão somente uma estratégia discursiva, mas tem-se a simulação de um leitor nos
moldes de criação de uma personagem, pois, é-lhe atribuído um conjunto de caracteres e
de comportamentos, precisamente, reações de leitura que se tornam visíveis quando se
expõem as suas opiniões, satisfações ou mesmo desagrados, diante do que lê.

Outro dado relevante é que não apenas o leitor-modelo corresponde a uma


estratégia textual, mas também o autor pode configurar-se, nos seus escritos, como um
modo de operação textual. Tal raciocínio conduz a duas possibilidades: a primeira é a de
que o autor – sujeito empírico que enuncia – formula o seu leitor-modelo e, ao inscrevê-
lo como estratégia textual, acaba por caracterizar a si mesmo enquanto sujeito do
enunciado, ou seja, revela “marcas” autorais particulares que podem ser reconhecidas
127

pelo leitor empírico. A outra possibilidade é a de que esse leitor real também pode
esboçar uma “hipótese de autor” com base nas estratégias textuais que tem diante de si.
Eco (1993) esclarece que o “autor-modelo” pode ser construído com base nas
informações que o leitor possui acerca do autor empírico; neste caso, é necessário frisar
que a elaboração de um autor-modelo não pode confundir-se com a busca por descobrir
a intenção do autor real; quando tal busca se torna um método de leitura, esta se torna
restrita e vaga. Observa-se, portanto, que “a cooperação textual é um fenômeno que se
realiza entre duas estratégias discursivas, não entre dois sujeitos individuais” (ECO,
1993, p. 66). Nesse sentido, compreende-se a grande inovação machadiana ao
transformar a interação texto-leitor, pois além dos artifícios de construção, circunscritos
ao enredo, são também simulados traços de personalidade e comportamentos de leitura
para o leitor empírico, transcendendo assim a esfera textual.

Em Esaú e Jacó, tal expediente de criação chega a produzir uma espécie de


embate entre o narrador e o leitor que o acompanha, de maneira tal que este último
figura com a imagem de alguém já impaciente com o desenrolar da narrativa. Por isso,
busca conduzi-la, aproximando-a de seu gosto, de seu interesse particular.

"Olhe que o senhor ainda nos não mostrou a dama ou damas que têm de ser
amadas ou pleiteadas por estes dois jovens inimigos. Já estou cansada de
saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez
que assisto às blandícias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa
ao amor, às duas, se não é uma só a pessoa..."
Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um
livro que está sendo escrito com método. A insistência da leitora em falar de
uma só mulher chega a ser impertinente. Suponha que eles deveras gostem de
uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a leitora me lembrou,
quando a verdade é que eu apenas escrevo o que sucedeu e pode ser
confirmado por dezenas de testemunhas? Não, senhora minha, não pus a pena
na mão, à espreita do que me viessem sugerindo. Se quer compor o livro,
aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler
somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre
dois capítulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas
aventuras. (ASSIS, 1999, p. 58,59).

Destaca-se do fragmento a simulação de diálogo travado entre narrador e uma


leitora. Esta manifestaria sua impaciência em acompanhar os dados do enredo que não
lhe apetecem, uma vez que, conforme já comentado anteriormente, esperava-se que o
leitorado feminino fosse aos romances apenas em busca das tramas amorosas, com seus
embaraços, obstáculos e indefinições. É o que se depreende da suposta fala da leitora,
que desconfia da afeição dos gêmeos por uma mesma pessoa, o que resultaria em uma
possível trajetória de disputa, estratégia e muito sentimentalismo, no afã de conquistar a
mulher em questão, como se observa em vários enredos folhetinescos. Com base nisso,
128

criam-se dizeres para quem lê a obra, de modo nítido, preciso, como se de fato houvesse
um contato direto entre quem escreve e quem faz a leitura. Esta, portanto, não é passiva,
mas realiza interferências, solicita novo andamento à narrativa. A “fala” da leitora é
mais um dado que a aproxima da categoria de personagem, pois, não apenas sua
imagem é definida, com caracteres e contornos precisos, mas vê-se que há também uma
participação direta de quem supostamente lê a obra, dando ao narrador uma espécie de
feedback, um retorno, manifestando impressões e sugestões acerca da leitura feita.

De maneira bem-humorada, mas quase ríspida, observam-se quais as reações do


narrador diante das observações de sua leitora. Ele censura a sua “impertinência”, não
admitindo a intervenção direta na composição da obra. Curiosamente, pode-se perceber
também que é vetada a ideia de criação literária ao gosto do público, ou seja, caso se
construa uma obra no intuito de atender às preferências dos leitores, perde-se tanto a
liberdade criadora do autor, como pode ser seriamente comprometida a qualidade
estética do texto, pois, como esclarece o narrador machadiano, trata-se de “um livro que
está sendo escrito com método” (ASSIS, 1999, p. 58). Assim, se há critérios e um modo
de elaboração, não há como escrever tendo como base elementos que poderão agradar
ao público; é preferível, portanto, que o sujeito que venha a entediar-se com a leitura,
“boceje entre dois capítulos” (p.59), mas, que a escrita não tenha amarras.

Logicamente não se está aqui negando a participação do leitor – que inclusive


faz-se decisiva – na construção literária. Mas, o fato é que o texto não irá moldar-se às
características de quem o interpreta, especialmente se a escrita em questão é literária.
Nesta arte, ao contrário, o leitor tem a possibilidade de alargar os seus horizontes de
compreensão e de reflexão, questionando, inclusive, todo o universo de informações e
significados que conhece. Opiniões, “verdades”, impressões e fatos podem ser
redescobertos, reinventados e problematizados quando diante de uma composição
artística cujas ideias, mesmo que venham a dialogar com o contexto de recepção em que
se insere o leitor, ainda assim permitem que ele redimensione o seu olhar acerca da
temática que lê. Jouve (2002) salienta que a relação entre texto e leitor configura-se de
forma dual, uma vez que se instaura de modo receptivo e ativo, ao mesmo tempo. A
experiência de leitura se efetiva muitas vezes de maneira a levar o leitor a enxergar um
determinado tema, sob ângulos de observação diferentes daqueles aos quais está
habituado.
129

Se o texto de Machado, como foi visto, constrói uma imagem do leitor real com
perfil bem definido e supõe-lhe as reações de leitura, em Eça também se encontram tais
suposições, mas que se dão entre personagens leitoras. É relevante destacar o episódio
em que Gonçalo (A ilustre casa de Ramires, 1900) resolve escrever um artigo anônimo
para denunciar as atitudes do Governador Civil que, por não obter reciprocidade em um
processo de conquista amorosa, resolve vingar-se no irmão da jovem, transferindo-o de
seu posto de trabalho “para os confins do Reino, para a mais árida e escassa das
províncias, por o não poder empacotar para a África no porão sórdido duma fragata!”
(QUEIRÓS, 2010, p. 87). Ao compor o texto, Gonçalo exalta-se, imaginando quais as
reações das pessoas ao descobrirem o ocorrido e vendo na leitura a chance de todos, na
redondeza, terem a chance de desnudar o caráter de seu inimigo André Cavaleiro, o
governador. Supunha chocar a todos, inclusive e principalmente a irmã Gracinha, que
nutria sentimentos por tal homem:

E não duvidava da eficácia do escândalo! Toda a cidade se revoltaria contra a


autoridade femeeira, que oprime, desterra um funcionário admirável - porque
a irmã do pobre senhor se recusou à baba dos seus beijos. E Gracinha?...
Como resistiria Gracinha àquele desengano - o seu antigo André abrasado
pela menina Noronha e por ela repelido com nojo e com mofa? Oh! o
escândalo era soberbo! Só restava que estalasse, bem ruidoso, sobre os
telhados de Oliveira e sobre o peito de Gracinha como trovão benéfico que
limpa ares corrompidos. E desse trovão, rolando por todo o Norte, se
encarregava ele com delícia. Libertava a cidade dum Governador detestável,
Gracinha dum sonho errado. E assim, com uma certeira penada, trabalhava
pro patria et pro domo! (QUEIRÓS, 2010, p. 86).

As reações de leitura eram antevistas, embora tais suposições estivessem muito


mais associadas aos desejos de vingança do protagonista que propriamente a uma ideia
mais precisa acerca das consequências da leitura do artigo. Nos textos queirosianos, é
comumente uma personagem quem cria expectativas e projeta ideias acerca da leitura de
outra personagem, ainda que tais previsões estejam estreitamente atreladas à perspectiva
de quem supõe antever o comportamento do outro. É o que se nota, no mesmo romance,
na cena em que Gonçalo tenta adivinhar como reagirá a irmã ao ler uma carta em que é
insinuado, mordazmente, o envolvimento dela com André Cavaleiro:

Mas a carta [...] feriria Gracinha no seu orgulho, no seu impressionável


pudor, mostrando à pobre tonta como o seu nome e mesmo o seu coração já
arrastavam enxovalhadamente, pela rasteira mexeriquice das Lousadas!...
Certeza tão humilhadora não apagaria um sentimento – que se não apagava
com humilhações mais íntimas, tanto mais dolorosas. Mas estimularia a sua
reserva e o seu desconfiado recato: - e agora que André se afastara para
Lisboa, operaria nela, surdamente, solitariamente, sem que a presença
tentadora lhe desmanchasse, a influência sossegadora e salutar. Assim o torpe
130

papel aproveitava a Gracinha como um aviso temeroso pregado na parede


[...] Gonçalo esfregou as mãos pensando - que em tão ditosa manhã talvez
esse mal redundasse em bem! (QUEIRÓS, 2010, p. 217).

São imaginadas as consequências que a leitura da carta provocaria, não apenas


nas reflexões de Gracinha, mas também no seu comportamento a partir dali. A
personagem Gonçalo apreende o conteúdo lido e supõe como ocorreria a leitura desse
mesmo texto, feita pela irmã. Enquanto em obras de Machado são presumidas as
reações do leitor empírico, na ficção queirosiana, tal projeção é operada pelas
personagens entre si, ou seja, é uma delas quem vai conjecturar como reagirá a outra
personagem.

Um exemplo ainda mais preciso ocorre em O primo Basílio, quando é revelada,


de forma irônica, a ingenuidade da personagem Luísa ao supor o tipo de leitor que era o
seu primo. Quando tenta resistir às suas investidas, ela cogita escrever-lhe uma carta,
pedindo que se afastasse; seleciona as palavras de modo a parecer “seca e fria; não diria
meu querido primo, mas simplesmente primo Basílio” (QUEIRÓS, 2004, p. 93, grifos
do autor). Diante dessa sua suposta aspereza, Luísa imaginava a reação dele, com base
num comportamento que na verdade era seu: “E que faria ele, quando recebesse a carta?
Choraria, coitado! Imaginava-o só no seu quarto de hotel, infeliz e pálido [...]”
(QUEIRÓS, 2004, p. 93). Luísa julgava o primo por si, transferia para ele um
comportamento passional típico da personalidade dela e, exatamente por isso, supunha
como reagiria Basílio, ao ler os seus escritos.

Para além de presumir o que a leitura provoca, seja no leitor real ou nas
personagens leitoras que atuam diretamente no enredo, há, nas produções de Eça e
Machado, mais um ponto, nesse sentido, digno de nota: são expostas certas orientações,
de maneira que se percebe, embora de modo sutil, uma tentativa de manipulação do
leitor. Neste caso, tanto os textos do autor português quanto os do brasileiro dirigem-se,
direta ou indiretamente, ao leitor empírico. Observe-se primeiramente o caso da ficção
de Machado.

Em Esaú e Jacó, quando é descrito o temperamento do conselheiro Aires, pouco


afeito a controvérsias e polêmicas, nota-se que há um apelo direto ao leitor para que não
julgue mal a atitude da personagem:

— Chega a propósito, conselheiro, disse Perpétua. Que pensa o senhor da


cabocla do Castelo?
131

Aires não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma coisa,
e fez um gesto de dois sexos. Como insistissem, não escolheu nenhuma das
duas opiniões, achou outra, média, que contentou a ambos os lados, coisa rara
em opiniões médias. [...] Mas este Aires, — José da Costa Marcondes Aires,
— tinha que nas controvérsias uma opinião dúbia ou média pode trazer a
oportunidade de uma pílula, e compunha as suas de tal jeito, que o enfermo,
se não sarava, não morria, e é o mais que fazem pílulas. Não lhe queiras mal
por isso; a droga amarga engole-se com açúcar. Aires opinou com pausa,
delicadeza, circunlóquios, limpando o monóculo ao lenço de seda, pingando
as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma
lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ela o parecer. Um dos
ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de acordo, assim
terceiro, e quarto, e a sala toda. Não cuides que não era sincero, era-o.
Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua,
escrevia-a. (ASSIS, 1999, p. 37).

O leitor, de uma posição privilegiada, tem acesso às estratégias da personagem


Aires, utilizadas no intuito de livrar-se de desagradáveis e enfadonhas querelas. Vê-se,
portanto, que o conselheiro age procurando conduzir as palavras e ideias de maneira a
não contrariar nem fomentar discussões, afinal, tinha “tédio à controvérsia” (p. 37). Tais
revelações, acessíveis apenas ao leitor real, poderiam resultar em certa censura à
personagem, uma vez que suas atitudes poderiam ser julgadas como dissimuladas,
convenientes à situação. Por isso, o astuto narrador busca convencer o leitor, embora
sutilmente, de que suas possíveis interpretações seriam precipitadas ou mesmo
desarrazoadas. Solicita-se, assim, ao receptor: “não lhe queiras mal” / não cuides que
não era sincero, era-o”. (p. 37).

Mais adiante, na mesma obra, tal artifício de criação é ainda mais persuasivo, já
que o leitor é alertado, a respeito do fato de estar equivocado nas suas conclusões a
respeito da personagem Flora:

O baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de
espaço a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam entendê-
la, os rapazes também não, e provavelmente Santos e Natividade menos que
ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos,
concluis que ela era... Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação
de contar a história com as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes
qual é ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e concluis mal.
Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as
doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de ofício.
(ASSIS, 1999, p. 126).

São presumidas as interpretações formuladas pelo leitor, em verdade, pela


leitora, já que o tema diz respeito a relações afetivas e ela é rotulada como “mestra de
amores ou aluna deles” (p. 126). Para além disso, é dado um alerta acerca da “má
condução” do julgamento relativo à personagem Flora e, logo em seguida, o narrador
132

empenha-se em refutar a suposta opinião de quem lê. Mais uma vez nota-se uma espécie
de embate entre criador e leitor, sendo que este é sempre singularizado, pois lhe são
atribuídos modos de pensar, juízos de valor, conclusões. Embora o receptor não atue
propriamente na narrativa machadiana, o apelo e o diálogo, que lhe são direcionados,
são tão marcantes e incisivos que, em vários momentos, ele assume funções de
personagem.

Considerando as bases que constituem o indivíduo leitor, é válido destacar o que


afirma Jouve (2002) acerca de como se processa a relação texto/leitor: “qualquer que
seja o tipo de texto, o leitor, de forma mais ou menos nítida, é sempre interpelado.
Trata-se para ele de assumir ou não para si próprio a argumentação desenvolvida” (p.
22). Quando o texto em questão é literário, esse apelo reveste-se de maior intensidade,
pois a própria linguagem, neste contexto, persuade, atrai e desafia o leitor a investigar
mais a fundo os sentidos “ocultos”. Como expõe Sartre (1993), “toda obra literária é um
apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o
desvendamento que empreendi por meio da linguagem” (p. 39). Machado, de modo
inovador e bem-humorado, faz desse apelo um expediente de criação literária,
compondo, singularizando o leitor que percorre os seus escritos e expondo suas supostas
reações à leitura, o que também configura um modo de introduzi-lo na narrativa.

Esse mecanismo que acaba por, de certo modo, inserir o leitor real na narrativa,
ocorre em D. Casmurro, de forma bem específica, quando é apresentado um raciocínio
a ser considerado e, consequentemente, aceito por quem lê:

Outra ideia, não, — um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciúme, leitor


das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo as
palavras de José Dias: "Algum peralta da vizinhança”. Em verdade, nunca
pensara em tal desastre. Vivia tão nela, dela e para ela, que a intervenção de
um peralta era como uma noção sem realidade; nunca me acudiu que havia
peraltas na vizinhança [...]. Separados um do outro pelo espaço e pelo
destino, o mal parecia-me agora, não só possível, mas certo. E a alegria de
Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro,
acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às ave-marias,
trocariam flores e...
E... quê? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo,
escusado é ler o resto do capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda
que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste,
compreenderás que eu, depois de estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me
pelo portão fora, descer o resto da ladeira, correr, chegar a casa do Pádua,
agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já
lhe dera o peralta da vizinhança. (ASSIS, 1995, p. 94).

Ainda que admita ter tido uma reação motivada por ciúme, mesmo assim o
narrador induz o leitor a concordar com ele, no que se refere às atitudes de Capitu. E o
133

faz de maneira a inverter o raciocínio, pois estimula quem lê a deduzir os fatos por si
mesmo; mas, em contrapartida, caso tal dedução não se afine àquela pretendida por
quem narra, adverte que “escusado é ler o resto do capítulo e do livro” (p. 94). Ora, se
fosse de fato encorajada a liberdade de associação e de opinião do leitor, este não seria
desestimulado a dar prosseguimento à leitura, apenas por não concordar com as
conclusões que lhe foram apresentadas. Na verdade, há uma espécie de manipulação
velada que instiga o leitor a perceber o que de fato seria trocado entre Capitu e o
“peralta da vizinhança”, para que assim fosse aceito e compreendido o impulso do
narrador em cobrar explicações à moça. Portanto, para além do apelo que comumente é
entrevisto e direcionado ao leitor, encontram-se, nesta obra machadiana, recursos de
manipulação empreendidos pela personagem que narra e acaba por evocar, nos seus
relatos, a participação de quem o acompanha, incitando-o a fazê-lo cúmplice de suas
ideias.

Rosenfeld (1998) afirma que “a personagem representa a possibilidade de


adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção,
transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos”. (p. 54).
Quando tal ente ficcional assume também as funções de narrador, como se vê em D.
Casmurro, a possibilidade de convencimento e identificação é ainda maior, pois todos
os fatos são apresentados segundo sua perspectiva. Como alerta Mello (1987),
referindo-se ao já citado romance de Machado, o narrador muitas vezes está “fingindo
cumprir a convenção de ajudar o leitor no bom entendimento do texto, mas na verdade
complicando ainda mais as coisas. Ultrapassam-se, assim, as expectativas dos leitores
mediante uma nova estética.” (p. 47).

Cabe ao leitor real a percepção das estratégias de persuasão que lhe são
destinadas e, a partir disso, construir sentido para o que lê. A respeito da liberdade do
leitor diante do literário, Jouve (2002) esclarece que, em geral, a obra aponta alguns
indícios que devem ser interpretados pelo leitor, em uma formulação de sentido que
considere o texto como um todo. Desse modo, elementos como a posição do narrador e
possíveis intervenções por ele realizadas, ao longo da obra, devem ser levados em conta
sempre com base na dimensão global do texto.

Em outro trecho, ainda de D. Casmurro, é admitida a tentativa de persuasão do


leitor sob um método específico: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular,
mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também.
134

Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.” (ASSIS,


1995, p. 52). Revela-se, portanto, uma estratégia de manipulação que é exatamente a
repetição de ideias, a fim de que sejam consideradas verdadeiras. Desse modo, o que for
relatado vai adquirir um tom mais convincente, mesmo porque não se estará lendo a
informação pela primeira vez, e essa sensação de reconhecimento da ideia pode, a
depender do leitor, gerar um efeito de convencimento, concordância.

Sob outra perspectiva, mas ainda considerando as estratégias de interação com o


leitor, apontam-se determinadas falhas de leitura que precisam ser consideradas com
cautela. É o caso das intervenções que surgem ao se relatar os primeiros cuidados com o
filho Ezequiel: “[...] a menor febrícula, toda a existência comum das crianças. A tudo
acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não era necessário dizer, mas há leitores
tão obtusos, que nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.”
(ASSIS, 1995, p. 146). Como o texto machadiano é sinuoso e rico em possibilidades,
pode-se indagar: seriam de fato os leitores obtusos por realmente não compreenderem o
que lhes é exposto, ou a falta de perspicácia é apontada pelo fato de que nem sempre
irão partilhar das ideias expressas? O fato é que, em D. Casmurro, o receptor é sempre
conduzido sob a ótica do protagonista narrador e, em várias situações, percebem-se
artifícios engendrados para obter-se a cumplicidade de quem lê.

No fim da narrativa, por exemplo, evidencia-se que, mais uma vez, o leitor é
instigado a tomar para si as conclusões que lhe são expostas:

O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de


Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso
incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-
me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para
que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu
creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina,
hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da
casca. (ASSIS, 1995, p. 184).

Basta um olhar mais atento e é possível entrever que a aproximação entre as


duas fases da vida da protagonista são o meio para declará-la “culpada”, atestando-lhe
uma índole duvidosa que já se manifestava desde a meninice. Mais uma vez nota-se a
engenhosidade do narrador que afirma que o leitor irá concordar com ele, caso se
lembre bem dos fatos contados, referentes à juventude de Capitu, ou seja, se não houver
concordância é porque houve falha de leitura, faltou astúcia suficiente para detectar, nas
ações da moça, as inclinações para o tipo de comportamento a se revelar no futuro. É
135

instigada uma conformidade entre as conclusões de quem apresenta os fatos e de quem


os lê; entretanto, a habilidade do leitor estará justamente na capacidade de perceber tais
“artimanhas” e considerá-las ou não na construção de sentido que empreende. Convém
acrescentar ainda que o primordial, no exercício da leitura, não seria julgar as ações da
personagem, mas sim perceber os artifícios e técnicas utilizados enquanto se narram os
fatos, para assim ver como tais recursos podem contribuir para um entendimento mais
amplo da obra como um todo. Um desses expedientes é exatamente o que vem sendo
tratado neste capítulo: a particularização e delineamento do leitor real.

Em textos queirosianos, embora de modo diverso, também são encontrados


recursos de persuasão para com o leitor. Abdala Jr. (2004) assinala que o narrador de O
crime do padre Amaro reúne elementos estilísticos que se impõem à atenção de quem lê
e ainda “procura comunicar o seu sistema de valores através de sua própria voz
narrativa. Ele parece não confiar na capacidade de seus personagens desempenharem
esse papel”. (p.4). Desse modo, o narrador vai induzindo o leitor, por meio de suas
intervenções e onisciência, a partilhar de suas ideias, sua crítica. É o que se nota, por
exemplo, nas divagações de Amaro acerca da relação entre a conduta íntima do
sacerdote e a prática de seu ofício; tais considerações são expostas através do narrador
e, por isso mesmo, o tom se torna mais incisivo, enérgico:

Todos os teólogos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi instituída para
administrar os sacramentos; o essencial é que os homens recebam a santidade
interior e sobrenatural que os sacramentos contêm; e contanto que eles sejam
dispensados segundo as fórmulas consagradas, que importa que o sacerdote
seja santo ou pecador? O sacramento comunica a mesma virtude. Não é pelos
méritos do sacerdote que eles operam, mas pelos méritos de Jesus Cristo. O
que é batizado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica
igualmente bem lavado da mácula original, ou bem preparado para a vida
eterna. Isto lê-se em todos os santos padres, estabeleceu-o o seráfico concílio
de Trento. Os fiéis nada perdem, na sua alma e na sua salvação, com a
indignidade do pároco. (QUEIRÓS, 2004, 232).

O leitor é levado a refletir ante os argumentos de Amaro, trazidos à tona pela


voz do narrador e condizentes com a perspectiva de denúncia e reforma social
propostas, especialmente, pelos primeiros romances do autor português. De modo
categórico, são expostas ideias que vão de encontro a perspectivas dominantes e o
receptor pode observar, claramente, que há uma intenção crítica perpassando o discurso.

Jouve (2002) fala a respeito de outra habilidade atrelada ao leitor, a


“competência ideológica” (p. 83) que diz respeito ao posicionamento tomado diante das
concepções apresentadas em uma produção literária: “A competência ideológica
136

determina a recepção das estruturas axiológicas da obra pelo leitor. Este, com efeito,
aborda o texto com seus próprios valores e pode, consequentemente, não aceitar a visão
ideológica do autor”. (JOUVE, 2002, p. 83). Acrescenta-se, a esta proposição, o fato de
que ela pode tomar dois caminhos: primeiramente, em uma perspectiva positiva,
observa-se que, confrontar a visão, exposta em um texto, pode revelar maturidade
intelectual, conhecimento e sensatez suficientes para não se aceitar passivamente o que
é lido, pois, para retrucar uma ideia, é necessário reunir argumentos e informações
relevantes. Entretanto, em uma segunda perspectiva, nota-se que a censura ou o
questionamento incisivo de uma abordagem, percebida por meio da leitura, pode revelar
um entendimento restrito, raso, a respeito de um tema, de modo que se impõe a seguinte
circunstância: o leitor acredita que o texto deve corroborar sua visão de mundo, do
contrário, ele rechaça combativamente o que leu, vetando a si mesmo a oportunidade de
renovar conceitos, ideias, crenças, opiniões.

As colocações do narrador de O crime do padre Amaro inserem ainda, na


referência ao olhar de uma personagem, ideias que estão em plena consonância com o
realismo/naturalismo de Eça, em que se destaca a influência dos aspectos orgânicos,
físicos, no comportamento do homem:

Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquela velha concubina de
autoridades civis e militares, que rolara a sua massa de gordura por todas as
torpezas seculares da cidade, conhecia as suas fragilidades, as
concupiscências que lhe ardiam sob a batina de pároco. [..] E o que o
incomodava era a ideia de ser observado por aqueles olhinhos cínicos, que
não se impressionavam nem com austeridade das batinas nem com a
responsabilidade dos uniformes, porque sabiam que por baixo estava
igualmente a mesma miséria bestial da carne... (QUEIRÓS, 2004, p. 225)

O arremate dado ao parágrafo reafirma a perspectiva que é insuflada no leitor ao


longo de toda a narrativa: as limitações humanas ante os apelos do corpo, circunstância
que, inclusive, iguala todos, independente do papel social exercido. Assim, nota-se um
apelo, uma tentativa de convencimento do leitor, de modo que este possa vir a partilhar
das ideias formuladas no texto. Considerando as construções machadianas, no entanto,
percebe-se que o envolvimento do leitor, a fim de que venha a concordar com as ideias
que lhe são apresentadas, se dá de forma indireta, como se ele fosse enredado sutilmente
por um discurso que, aparentemente, é despretensioso, não tenciona convencer.

Na escrita queirosiana, destaca-se também a mordaz ironia, que é um outro


recurso muito frequente em tais produções e que pode constituir-se como meio para
137

destilar ideias ainda mais provocativas e críticas. É o que se evidencia no fragmento a


seguir:

O cônego assim o ouvira. Então indignaram-se contra essa turba de mações,


de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é
respeitável — o clero, a instrução religiosa, a família, o exército e a riqueza...
Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram
necessárias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar
aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote. (QUEIRÓS, 2004, p. 356).

A voz do narrador mais uma vez se sobrepõe à das personagens, o que segundo
Abdala Jr. (2004), revela que elas “não têm autonomia: suas falas e pensamentos vêm
quase sempre circunscritos pelo seu discurso onisciente. [...] O narrador parece não
querer correr o risco de ceder à perspectiva de personagens que não teriam condições de
realizar a crítica social desenvolvida pela sua voz narrativa” (p.6). Seja por subestimar
as personagens, ou pelo simples fato de impor seu discurso, incorporando-o ao dos
agentes da narração – já que o atravessa – o fato é que o leitor é sempre interpelado,
“sacudido”, convidado à reflexão.

Apreender ou não aquilo que o texto propõe vai depender não apenas da rede de
significados ali inscrita, mas também dos modos pelos quais a leitura se desenvolve, isto
é, a maneira pela qual o leitor a exerce. Ele poderá, no exercício da recepção textual,
confrontar as próprias ideias com aquelas trazidas pela obra, de modo a transformar a
leitura em um ato que se realiza de modo particular. Nas palavras de Manguel (1997):
“Ler não é um processo automático de capturar um texto como um papel fotossensível
captura a luz, mas é um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e,
contudo, pessoal” (p. 54).

Uma vez que a operação do ler constitui-se de modo particular, compreende-se o


mecanismo machadiano de singularização do leitor real, de maneira a considerar
diferentes modos de se receber a obra, distintos mecanismos de compreensão e
construção de sentidos. Expõem-se impressões, opiniões e críticas atribuídas a quem lê
e elas são levadas em consideração, na continuidade da narração, ainda que para serem
contestadas, refutadas ou tão somente reafirmadas. O fato é que se utiliza um
mecanismo inovador de interação com o leitor, possibilitando perceber alguns artifícios
criados para envolvê-lo na trama, como se personagem fosse. Em textos queirosianos,
por outro lado, notam-se criações de perfis de leitores que de fato estão inseridos no
enredo, como agentes ficcionais; seu desempenho, ao ler, revela dados de sua
138

composição associada, muitas vezes, a uma estratégia de forte criticidade. De qualquer


modo, seja por meio da singularização do leitor real – recurso observado em textos
machadianos – ou mediante a construção de personagens leitoras – expediente
encontrado em Eça e em Machado – evidencia-se que a leitura surge como uma prática
reveladora de temperamentos, papéis sociais, crenças, posicionamentos ideológicos,
gostos, tendências e uma ampla gama de possibilidades. Todas estas características,
associadas ao ler, considerando tanto os leitores situados na ficção, como os empíricos,
permitem perceber também alguns mecanismos de criação literária em ambos os
autores, o que favorece um entendimento amplo das obras, além de um eficaz processo
de interação com o texto.

4.2 Leitor: coautor

Apesar de a escrita machadiana situar-se historicamente em um período literário


dito realista, em que as narrativas comumente traziam pontos de vista que procuravam
convencer, persuadir, mediante acirradas e contundentes críticas a sistemas sociais e a
comportamentos observados no panorama do século XIX, o que se nota é que o texto de
Machado traz um posicionamento diferente ao apresentar personagens e fatos ambíguos,
duvidosos e que nunca são inteiramente revelados. O narrador, portanto, hesita, duvida,
não afirma categoricamente, evocando assim a participação do leitor da obra, de modo
que relatos e cenas constituem-se verdadeiros desafios para quem se debruça sobre o
texto.

Jouve (2002) enfatiza que o receptor está ao mesmo tempo “orientado” e “livre”,
no decorrer da leitura, porque a recepção de uma obra se desenvolve a partir de dois
polos: os “espaços de certeza e os espaços de incerteza” (p. 66). Os primeiros
correspondem às passagens mais explícitas do texto, mediante as quais se entrevê o
sentido de forma mais geral; já os “espaços de incerteza” remetem às passagens que,
para serem decifradas, solicitam a participação do leitor. Tais configurações de leitura
dialogam com a afirmação de Manguel (1997) de que “o papel dos leitores é tornar
visível aquilo que a escrita sugere em alusões e sombras” (p. 55). Essa escrita não
139

explícita, entremeada de figurações, desafia o leitor ao exercício da compreensão, por


meio da construção de sentidos.

Em Esaú e Jacó (1904), verifica-se uma perspectiva sinuosa, uma vez que se
nota, a todo momento, um narrador que se despoja de uma posição onisciente e vai
apresentando os fatos e o interior das personagens com as ressalvas de alguém que não
ousa assegurar, confirmar o que diz. O relato ganha, quase sempre, ares de incerteza,
dúvida, a ponto de o narrador admitir que não sabe se realmente os acontecimentos
ocorreram como ele presume. É o que se nota, por exemplo, no momento em que as
personagens Pedro e Paulo resolvem acordar entre si um prazo para esperarem a opção
de Flora por um deles: “O céu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam que
assinar; ou, se preferes, a natureza corrigia as índoles, e os dois rixosos começavam a
ajustar o ser e o parecer. Também não juro isto, digo o que se pode crer só pelo aspecto
das coisas”. (ASSIS, 1999, p. 154). O narrador, assumindo uma posição de expectador
comum, admite que os dados apresentados baseiam-se naquilo que consegue observar e,
quando revela determinados aspectos, não tão visíveis, faz questão de ponderar que se
trata de uma suposição, um palpite.

No que se refere aos sentimentos das personagens, diferentemente de uma


postura narrativa mais incisiva, nota-se, nessa obra, que os sentidos se deslocam entre o
que acontece e o que parece acontecer, destacando-se um tom que insinua e ao mesmo
tempo distancia do leitor qualquer ideia de verdade, de informação nítida e segura. As
considerações pairam no texto de maneira a, sutilmente, levar o leitor a conjecturar,
suspeitando aqui e ali para, mais adiante, ver suas suposições ora sendo confirmadas,
ora sendo totalmente frustradas. São significativas, nesse sentido, as considerações
acerca do tipo de sentimento que aproximava o conselheiro Aires da jovem Flora e
consequentemente dos gêmeos com um dos quais ela poderia casar-se:
Sentia-se curioso de saber se finalmente a moça escolhia a um dos gêmeos, e
qual destes. Vá tudo; tinha já pesar que não fosse algum, posto não lhe
importasse saber se Pedro ou Paulo. Quisera vê-la feliz, se a felicidade era o
casamento, e feliz o marido, sem embargo da exclusão, o excluído seria
consolado. Agora, se por amor deles, se dela, é o que propriamente se não
pode dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do véu, seria
preciso entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá se
descobriria acaso, entre as ruínas de meio celibato, uma flor descorada e
tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade dela... (ASSIS,
1999, p. 150).
140

Observa-se que o íntimo das personagens é sondado pelo narrador machadiano


mas este não se arvora em definir com precisão os recônditos do ser humano. Ao
contrário, permite que o leitor também empreenda essa operação reflexiva, na busca
pelo entendimento, ainda que parcial, das personalidades inscritas na ficção. Tal
parcialidade advém exatamente do fato de os caráteres e os temperamentos, de um
modo geral, dentro e fora da esfera ficcional, serem cheios de sutilezas, contradições e
isto não pode ser tratado de forma lógica, precisa. Como expõe Valladares (2013),
acerca da escrita machadiana: “Sem apresentar-nos uma visão maniqueísta em relação a
esses personagens, mas respeitando a complexidade deles por seus movimentos
próprios, aceitando suas diferenças, caminhamos por narrativas em que dificilmente
convivem o absoluto, o definitivo, os juízos de valor”. (p. 31).

Dessa maneira, nota-se que o ato de narrar acaba por definir-se não mais como
uma exposição plena de todos os detalhes e certezas acerca dos fatos, como era comum
nos oitocentos. A narrativa de Machado reveste-se de nuances menos esclarecedoras e
mais convidativas, uma vez que o leitor é desafiado a participar da construção de
sentidos, decifrando e atribuindo ideias ao que lê, como se observa no fragmento de
Esaú e Jacó (1904): “Ora, aí está a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e
não me ocorresse outra. [...] um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que
for menos claro ou totalmente escuro”. (ASSIS, 1999, p. 38).

É sugerida uma leitura participativa, dinâmica, de modo que o autor perderia o


estatuto de detentor único e exclusivo de toda a verdade acerca da narrativa, já que o
leitor é coadjuvante no processo criativo. A produção literária é entremeada de “não-
ditos”, ou seja, elementos e significados não expressos explicitamente, não manifestos
claramente na matéria textual e que serão decifrados e relacionados às temáticas
levantadas pelo texto através do desempenho do leitor. “Um texto, tal como aparece na
sua superfície (ou manifestação) linguística, representa uma cadeia de artifícios
expressivos que o destinatário deve atualizar” (ECO, 1993, p. 53). Essa atualização
requer a movimentação ativa e consciente por parte do leitor, o que configura um ato de
coprodução, na medida em que atualizar um texto significa desvendar os seus não-ditos,
construir sentidos, relacionar ideias.

Outro ponto importante a destacar diz respeito ao fato de que se pode, à primeira
vista, associar um relato duvidoso ao mundo ficcional, em que não há compromisso de
fidelização com o real; entretanto, as incertezas expostas em Esaú e Jacó podem trazer
141

ao leitor a sensação de estar diante de um relato verídico. A questão é que a hesitação ao


narrar, embora possa, para alguns, significar pouca intimidade com a matéria narrada,
na verdade permite aproximá-la dos relatos extraficcionais, pois nestes é comum o
expositor não se ater com exatidão a detalhes, que muitas vezes escapam à sua memória
ou são negligenciados por não parecerem relevantes. Também são frequentes as
narrações verídicas em que apenas se supõe conhecer as ideias, pensamentos e
sentimentos dos envolvidos, já que, logicamente, não se tem, fora da ficção, acesso ao
íntimo de alguém. Assim, o fato de esse narrador machadiano por vezes revelar que não
se lembra de certos detalhes, ao expor as situações vividas pelas personagens, pode
aproximar seu relato daqueles observados fora dos livros, nas situações mais cotidianas
em que alguém conta um fato e admite não recordar um pormenor e/ou não saber ao
certo quais eram os sentimentos do indivíduo cuja história está sendo exposta.

Tal característica pode ser ilustrada no fragmento a seguir: “Vinham de estar


com Aires no teatro, uma noite, matando o tempo. [...] Não sei que teatro foi, nem que
peça, nem que gênero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os três o
deixaram estirado no chão” (ASSIS, 1999, p. 151). Neste trecho, a personagem Aires
está em companhia dos gêmeos e essa aproximação entre eles era o foco de atenção, de
modo que os detalhes, acerca do local onde estavam, tornavam-se insignificantes. Em
outro fragmento, é justificada a atitude de Flora que, ao encontrar-se enferma, busca
acintosamente a presença de Natividade, mãe de Pedro e Paulo: “Queria Natividade
sempre ao pé de si, pela razão que já deu, e por outra que não disse, nem porventura
soube, mas podemos suspeitá-la e imprimir. Estava ali o ventre abençoado que gerara os
dois gêmeos. De instinto, achava nela algo particular” (ASSIS 1999, p. 173). Embora
Flora houvesse dito que o carinho de Natividade lhe era especial e necessário, nota-se
que há uma busca por razões mais profundas para o desejo da enferma em aproximar-se
da mãe dos rapazes. O narrador revela a sua suspeita sem deixar de observar que havia
algo de instintivo na atitude da jovem e isto não se poderia elucidar de modo preciso, o
que corrobora mais uma vez a ideia de sempre haver espaço para o indeterminado na
narrativa, que se faz atraente e desafiadora, ao leitor, exatamente por isso.

Em certos textos machadianos, as figuras femininas fazem-se dúbias, nebulosas


e, portanto, vão exigir do leitor a coparticipação, na tentativa de compreender, ao menos
em parte, tais personagens. Em Esaú e Jacó, o conselheiro Aires anuncia sua impressão
a respeito de Flora, definindo-a como “a inexplicável” e, por mais que ela tentasse
142

arrancar-lhe maiores esclarecimentos acerca dessa caracterização, mais confusa e


curiosa ficava. O máximo que é revelado, na narrativa, são algumas considerações que
ele tece, em conversa com Natividade, sobre a jovem:

Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável. Agora é tarde para
lhe expor os fundamentos da minha impressão; depois lhe direi. Note que
gosto muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma
pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao
mesmo tempo, de uma ambição recôndita... (ASSIS, 1999, p. 108).

As contradições que decifram e ao mesmo tempo obscurecem a figura de Flora


reafirmam que a leitura de Esaú e Jacó não revela convicções, assertivas. Mas, ao
contrário, há hesitação diante dos comentários, que são tecidos de modo ambíguo e
sinuoso, de maneira a convidar o leitor a tomar parte nos meandros da escrita. Nesse
sentido, acrescentam-se as considerações de Rosenfeld (1998):

O romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz


do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira
fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento
dos nossos semelhantes. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição
e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência;
é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No
romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor,
que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é,
na vida, o conhecimento do outro. Daí a necessária simplificação, que pode
consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos,
marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir
a impressão de complexidade e riqueza. (p.42)

Convém considerar também que não apenas as contradições de Flora ganham


destaque no texto, o próprio narrador, em alguns momentos, também nega a si mesmo.
Embora opte, frequentemente, por ocultar os pormenores relativos aos fatos que
apresenta, como já foi demonstrado anteriormente, ainda assim, em outras ocasiões, ele
admite que deseja detalhar o que conta:

No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi à casa do Doutor Plácido,


Rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de três janelas, com muito
terreno para o lado do mar. Creio que já não exista: datava do tempo em que
a rua era o Caminho Velho, para diferençar do Caminho Novo. Perdoa essas
minúcias. A ação podia ir sem elas, mas eu quero que saibas que casa era, e
que rua, e mais digo que ali havia uma espécie de clube, templo ou o que
quer que era espírita. (ASSIS, 1999, p. 35)

É revelado um modo de criação que não se faz dogmático, não se impõe como
um modelo de acerto, pois há alternâncias, ao longo do romance, que permitem perceber
traços estilísticos diferenciados, embora componham o mesmo texto. Dessa maneira, o
143

leitor pode defrontar-se tanto com momentos em que o centro de atenção direciona-se
totalmente ao interior da personagem – e nessas ocasiões o pormenor parece ser
dispensável – mas também há momentos, ainda que não sejam tão frequentes, em que
cada detalhe que compõe a cena narrada é minuciosamente caracterizado.

Trazendo a lume o fato de que, na escrita machadiana, há passagens narrativas


marcadas pelo detalhamento, mas que em geral tal técnica é menos prestigiada, essa
observação favorece que sejam percorridas as páginas críticas de Machado, quando, em
tom severo, avaliou o romance O primo Basílio. Nota-se, no célebre texto, que a censura
do escritor brasileiro recaía sobre a usual tendência de Eça em descrever, minudenciar
os ambientes, os espaços e as características físicas das personagens, criando uma
“reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis”. (ASSIS, 1994, p. 72).
Embora não fosse ainda o autor de Esaú e Jacó e D. Casmurro, percebe-se que a
estratégia narrativa, que inclusive se estende à composição de personagens, é a de
valorizar as motivações interiores dos agentes ficcionais, os caracteres que delineiam
sua configuração moral e personalidade, influenciando também as suas ações, dispostas
na trama. Ainda que surjam momentos descritivos mais detalhados, a obra machadiana
de fato valoriza mais a interioridade, os elementos que compõem temperamentos, perfis
morais e psicológicos.

A esse respeito convém acrescentar que, em Esaú e Jacó, admite-se o quanto é


laborioso tratar das questões íntimas das personagens, transformando em palavras o que
lhes vai no âmago. E, sem perder o tom sinuoso – que evoca a participação do leitor –
acaba por indicar que certos sentimentos e sensações não se definem sequer por quem
os traz dentro de si. É o que se nota quando é narrada a noite dos delírios de Flora, em
que ela acredita penetrar a alma de cada um dos gêmeos:

Unicamente, — e aqui toco o ponto escabroso do capítulo, — achou cá


alguma coisa indefinível que não sentira lá; em compensação sentiu lá outra
que não se lhe deparou cá. Indefinível, não esqueças. E escabroso porque
nada há pior que falar de sensações sem nome. Crede-me, amigo meu, e tu,
não menos amiga minha, crede-me que eu preferia contar as rendas do
roupão da moça, os cabelos apanhados atrás, os fios do tapete, as tábuas do
teto e por fim os estalinhos da lamparina que vai morrendo... Seria
enfadonho, mas entendia-se. (ASSIS, 1999, p. 144).

Todas as minúcias elencadas são ironicamente citadas como elementos cuja


compreensão se dá sem maiores dificuldades, de modo até cômodo para o leitor. Porém,
a ideia é discorrer sobre a subjetividade humana, os aspectos menos acessíveis e, por
144

isso mesmo, mais profundos, complexos e singulares. Por outro lado, o fato de haver
descrições pormenorizadas não inviabiliza a configuração de personalidades e suas
respectivas índoles na ficção; a questão é que os estilos de composição literária são
diferentes e as questões a serem enfatizadas, em uma obra, também se distinguem, de
autor para autor. Há, inclusive, situações em que os detalhes de um ambiente sinalizam
para um determinado temperamento que está sendo apresentado, como se houvesse uma
perfeita integração e uma interação entre a personagem e o ambiente/espaço em que ela
figura, como se observa em narrativas queirosianas.

Ainda com relação ao fragmento de Esaú e Jacó, apesar de haver ali a


constatação da dificuldade encontrada ao se tratar das dimensões subjetivas do ser
humano, pode-se observar, no entanto, que a arte possui essa habilidade de alcançar o
indefinível, promovendo-o por meio de artifícios diversos, inclusive metafóricos, a fim
de torná-lo perceptível, ainda que mediante novas sensações e/ou digressões.

No texto queirosiano, percebe-se um estilo literário diverso daquele encontrado


em Machado, de maneira que “predomina um outro tipo de linguagem, de orientação
mais épica (no sentido de mais descritiva), em que o mundo narrado é iluminado sob
vários ângulos e apresentado ao leitor como sendo composto de objetos interessantes
em si mesmos.” (FRANCHETTI, 2000, p. 52). Pode o detalhamento não estar
diretamente relacionado à construção do enredo, mas, ainda assim contribui
significativamente para a compreensão da arquitetura da obra como um todo, criando
um efeito de realidade que se traduz em um ambiente do qual emanam sensações,
impulsos, inerentes à natureza humana.

Embora se percebam modos de criação literária diferentes daqueles encontrados


em Machado – e talvez por isso mesmo seja válido investigar pontos de contato entre
ambos – vê-se que, no texto de Eça, o leitor também é convidado a participar das
construções de sentido, isentando-se de uma atitude passiva, diante do que lê. A usual
referência mais objetiva e que inclui a exposição de minúcias que compõem as cenas
narradas, permitindo a criação de imagens mais precisas, é característica que vai se
renovando e ganhando novos contornos, uma vez que as ideias e os sentidos, nos
escritos finisseculares do autor, começam a ser relativizados, perdendo um pouco o teor
de denúncia incisiva. Duarte (1997), a respeito de A ilustre casa de Ramires (1900),
enfatiza que o escritor português abandona uma postura em que a representação
pretende identificar-se à realidade e passa a apresentar os significados como relativos:
145

Deixando de lado as lições e abandonando o pragmatismo, sai da posição de


sábio e de mestre e, valorizando a ambiguidade, acentua o aspecto lúdico de
sua literatura, revelando a perspectiva de que é impossível afirmar um sentido
definitivo, dado o caráter fluido da linguagem. É então que complexifica a
trama narrativa de seus textos. (DUARTE, 1997, p. 292).

No referido romance, a personagem Gonçalo reflete de modo angustiante sobre


o fato de ter reatado, por conveniência política, as relações com seu inimigo André
Cavaleiro e avalia a sua atitude, que também tinha implicações na vida da irmã, outrora
enamorada do mesmo André. Nesse ínterim, surgem duas versões dos fatos que, ao
serem partilhadas com o leitor, sugerem-lhe novas reflexões ou até mesmo a adesão a
um ou outro ponto de vista, diante da mesma situação apresentada. Primeiramente,
Gonçalo aponta a responsabilidade dos envolvidos na suposta traição da irmã ao
marido:

Cólera contra a irmã que, calcando pudor, altivez de raça, receio dos
escárnios de Oliveira, tão fácil e estouvadamente como se calcam as flores
desbotadas de um tapete, correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas
ele lhe acenara com o lenço almiscarado! Cólera contra o Barrolo, o
bochechudo bacoco, que empregava os seus bacocos dias celebrando o
Cavaleiro, arrastando o Cavaleiro para o largo de El-Rei, escolhendo na
adega os vinhos mais finos para que o Cavaleiro aquecesse o sangue,
ajeitando as almofadas de todos os canapés para que o Cavaleiro saboreasse
estiradamente o seu charuto e a graça presente de Gracinha! Enfim cólera
contra si, que, pela baixa cobiça de uma cadeira em S. Bento, abatera a única
muralha segura entre a irmã e o homem da marrafa luzente – que era a sua
inimizade, aquela escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tão rijamente
reforçada e recaiada!... Ah! todos três horrendamente culpados! (QUEIRÓS,
2010, p. 187).

Neste fragmento, ficam claras as ideias de Gonçalo: ele reprova a atitude da irmã
– que cedera às investidas do Cavaleiro – e condena também o Barrolo, por mostrar-se
incapaz de ler, nos gestos daquele homem, o interesse por sua esposa. Nota-se também a
autocensura de Gonçalo, ao reconhecer que pusera o interesse político acima das
questões familiares. Contudo, logo adiante, na passagem de um parágrafo a outro da
narrativa, o protagonista passa a refletir sobre o caso de modo reverso, procurando
atenuar as culpas alheias, como também a sua. Isto revela a flexibilidade dos
raciocínios, que não se fazem absolutos, imperiosos:

Gracinha, coitada, sem filhos, com tão molengo e insosso marido, alheia a
todos os interesses da inteligência, indolente mesmo para uma costura ou
bordado - cedera, que mulher não cederia? À crédula e primitiva paixão que
lhe brotara na alma, nela se enraizara, lhe dera as suas únicas alegrias do
mundo e (influência ainda mais poderosa!) lhe arrancara as suas únicas
lágrimas! O Barrolo, coitado, era o Bacoco – e como o "pilriteiro" da cantiga,
incapaz de mais nobres frutos, só produzia os "pilritos" da sua Bacoquice. E
146

ele, coitado dele, pobre, ignorado, irresistivelmente se rendera à fatal lei de


acrescentamento, que o levara, como a todos leva na ânsia de fama e fortuna,
a furar precipitadamente pela porta casual que se abre, sem reparar na
estrumeira que atravanca os umbrais... Ah, realmente todos bem pouco
culpados diante de Deus que nos criou tão variáveis, tão frágeis, tão
dependentes de forças por nós ainda menos governadas do que o vento ou do
que o sol! (QUEIRÓS, 2010, p. 189).

Criam-se duas versões, dois olhares distintos para as mesmas circunstâncias e o


leitor, em companhia do protagonista, vai absorvendo tais argumentos, praticamente
opostos, para assim poder construir seu próprio pensamento a respeito ou simplesmente
concluir que, em questões dessa natureza, pode não haver uma única acepção que
satisfaça, ou seja, podem todos os raciocínios terem a sua cota de verdade. Construções
textuais semelhantes a que traz Eça, nesse romance, configuram situações narrativas que
não se delineiam de modo contundente e claro, mas necessitam da interferência do
leitor, não necessariamente a fim de elucidar o tema, mas porventura para problematizá-
lo ainda mais, abrindo margem a novas leituras.

No que concerne ao ideal de entrar para a política, elegendo-se deputado,


Gonçalo também manifestava opiniões conflitantes. De um lado, destacava-se a nobreza
de um caráter que buscava renunciar à ambição do cargo, já que este lhe chegaria
mediante artifícios dos quais não se orgulhava e, de outro lado, via-se que a carreira
pública seria o meio de ele melhorar de vida, ascender financeiramente, pois
enfraquecia o prestígio social que o seu tradicional e renomado sobrenome lhe
proporcionava:

Os dias rolavam – e no espírito de Gonçalo não se estabelecia serenidade. E


sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa intimidade vistosa com
o Cavaleiro – tanto pelo cuidado do seu nome, como pela conveniência da
sua eleição. Toda a sua altivez por vezes se revoltava: - "Que me importa a
eleição! Que valor tem uma encardida cadeira em S. Bento?...” Mas logo a
seca realidade o emudecia. A eleição era a única fenda por onde ele lograria
escapar do seu buraco rural; e, se rompesse com o Cavaleiro, esse vilão,
vezeiro a vilanias, imediatamente, com o apoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro candidato por Vila-Clara... Desgraçadamente ele era um
desses seres vergados que dependem. E a triste dependência de onde
provinha? Da pobreza – dessa escassa renda de duas quintas, abastança para
um simples, mas pobreza para ele, com a sua educação, os seus gostos, os
seus deveres de fidalguia, o seu espírito da sociabilidade. (QUEIRÓS, 2010,
p. 188,189 – grifos do autor).

Vão-se revelando os duelos íntimos que se travavam no protagonista, de maneira


que nenhuma acepção lhe confortava e tais digressões permitem ao leitor a compreensão
dos contrastes que se infiltram no temperamento de Gonçalo, a ponto de impedirem que
147

se estabeleça uma definição singular para a personagem. Na verdade, abundam nele


certas dubiedades e inseguranças que contribuem para que o seu caráter seja bastante
verossímil, afinal, qual personalidade é absolutamente constante, desprovida de
qualquer incoerência?

Outro trecho marcante, nesse sentido, é aquele em que finalmente sai o resultado
da eleição e Gonçalo confirma sua vitória, mas esta, uma vez declarada, parece não
mais embevecê-lo:

Deputado! Deputado por Vila-Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse


resultado, tão miúdo, tão trivial - todo o seu esforço tão desesperado, tão sem
escrúpulos, lhe parecia ainda menos imoral que risível. Deputado! Para quê?
Para almoçar no Bragança, galgar de tipoia a ladeira de S. Bento, e dentro do
sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate,
bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias. (QUEIRÓS,
2010, p. 250).

Pode-se observar que há considerável mudança de perspectiva quando a


personagem analisa se os sacrifícios a que se impôs, para eleger-se deputado, realmente
eram compensadores. Ele parece concluir que sua rotina continuaria tediosa e não
visualiza meios de servir ao país, de ser-lhe útil. Gonçalo lança um olhar de descrença
para a política e talvez até mesmo para si próprio, já que, embora eleito, não enxergava
algo que pudesse realizar, a fim de angariar algum benefício à vida daqueles que lhe
confiaram o voto. A elaboração de tais reflexões favorece perceber a relativização do
discurso que, por sua vez, vai incitar a participação mais efetiva do leitor, na construção
de sentidos e na compreensão do ente ficcional.

A insegurança configura-se como aspecto marcante da personalidade de Gonçalo


e isto se estende, inclusive, à narrativa que ele cria antes de se eleger – uma novela em
que enaltece os seus antepassados – com a intenção de atrair para si maior visibilidade e
prestígio político. A esse respeito, salienta Reis (1997) que Eça satirizou, de modo mais
enfático, no texto inaugural de As Farpas essa aproximação entre a esfera literária e a
política, em que o escritor valia-se do que produzia como veículo para ascensão social e
poder. Mais adiante, em A ilustre casa de Ramires, o tema volta à cena, embora de
modo mais sutil.

Ao assumir a posição de escritor, a personagem Gonçalo logo vai em busca de


referências de leitura que lhe assegurassem tanto a matéria narrativa em si mesma, como
um estilo literário a ser perseguido, com base em outros criadores. O momento em que
148

ele descreve um ambiente, na sua novela, indica que tomava de “empréstimo” alguns
trechos de outros autores: “Gonçalo adornara a soturna sala afonsina com alfaias tiradas
do tio Duarte, de Walter Scott, de narrativas do Panorama. Mas que esforço!”
(QUEIRÓS, 2010, p. 48). O tio Duarte havia escrito um poema a respeito das façanhas
de Trutesindo Ramires, antepassado de Gonçalo, e a leitura dessa obra serviu como
modelo para a criação do texto do protagonista, sem qualquer constrangimento íntimo
por apropriar-se da iniciativa e da escrita alheias:

Na realidade só lhe restava transpor as formas fluidas do Romantismo de


1846 para a sua prosa tersa e máscula, de ótima cor arcaica, lembrando O
Bobo [...]. E era um plágio? Não! A quem, com mais seguro direito do que a
ele, Ramires, pertencia a memória dos Ramires históricos? A ressurreição do
velho Portugal, tão bela no Castelo de Santa Ireneia, não era obra individual
do tio Duarte - mas dos Herculanos, dos Rebelos, das Academias, da
erudição esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e mesmo o
Bardo, delgado semanário que perpassara, durante cinco meses, há cinquenta
anos, numa vila de Província?... Não hesitou mais, seduzido. E enquanto se
despia, depois de beber aos goles um copo d'água com bicarbonato de soda,
já martelava a primeira linha do conto [...]: - "Era nos Paços de Santa Ireneia,
por uma noite de inverno..." (QUEIRÓS, 2010, p. 21,22).

Embora só tenha encontrado a segurança e a comodidade necessárias para a


criação da sua obra, após se utilizar do poema do tio, Gonçalo ainda assim demonstrava
valorizar o traço literário que acreditava desenvolver ao transformar, em prosa, os fatos
narrados no poema épico já lido. E essa valorização é percebida por meio de nova
referência de leitura, quando ele compara a sua obra, ainda em criação, com o romance
histórico O bobo (1843), de Alexandre Herculano. Acrescenta-se ainda o fato de ele, em
nenhum momento, cogitar qualquer referência à leitura do poema, como fonte para a
sua criação, mas, ao contrário, escolhera-o exatamente por sabê-lo desconhecido do
público.

Gonçalo valia-se dos dados históricos reunidos pelo tio Duarte, porém, ainda
assim, a sua experiência de criação não transcorre com a tranquilidade que ele previu, já
que, em vários momentos, pesava-lhe a dificuldade de organizar a escrita, tornando-a
distanciada dos arroubos românticos do poema original e que já estariam ultrapassados.
Assim, “[...] no calor e silêncio de junho, labutava, empurrando a pena como lento arado
em chão pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole
[...].” (QUEIRÓS, 2010, p. 24). Ao longo do romance, em vários momentos, é exposto
o laborioso projeto de Gonçalo, ao tentar converter para um tom mais incisivo e robusto
os versos sentimentais do poema do tio:
149

[...] levado no harmonioso sulco do tio Duarte, também ele, nas linhas
primeiras do Capítulo, esboçara o velho abatido sobre um escanho, com
lágrimas reluzentes sobre as barbas brancas [...]. Mas, agora, este choroso
desalento não lhe parecia coerente com a alma tão indomavelmente violenta
do avô Trutesindo. O tio Duarte, [...] romântico plangente de 1848, inundara
logo de prantos românticos a face férrea de um lidador do século XII, dum
companheiro de Sancho I! Ele porém devia restabelecer os espíritos do
Senhor de Santa Ireneia dentro da realidade épica. E, riscando logo esse
descorado e falso começo de Capítulo, retomou o lance mais vigorosamente,
enchendo todo o castelo de Santa Ireneia duma irada e rija alarma.
(QUEIRÓS, 2010, p. 119)

Essa transposição de estilos literários desafiava o escritor Gonçalo, fazendo-o


apoderar-se da sua própria escrita, sentindo-se verdadeiramente criador, inclusive com
reações de autocrítica, em que avaliava e julgava o seu texto. Como expõe Duarte
(1997), “o autor implícito do romance desmistifica o escritor como inspirado demiurgo”
(p. 294), uma vez que ficava exposto um árduo trabalho de elaboração atrelado à escrita
literária; esta, portanto, não se definia como uma simples operação conduzida por uma
força inspiradora, mas sim como exercício que exigia esmero. O exercício de leitura
como coautoria, nesse caso, atrela-se não a uma prática vinculada somente ao leitor real,
mas estende-se à personagem que lê e transforma tal ato em base para a construção da
escrita.

E para além dos obstáculos que encontrava, na sua prática de leitura e reescrita,
Gonçalo por vezes sofria interrupções que o transportavam do passado glorioso do seu
avô Trutesindo para o presente ordinário, trivial. E este lhe reclamava atenções e a
resolução de problemas cotidianos que muito destoavam das aventuras heroicas
descritas na sua novela:

- O Sr. Dr. não poderia descer cá baixo à cozinha?


Gonçalo embasbacou para o Bento, pestanejando, sem compreender:
- À cozinha?...
- É que está lá a mulher do Casco a levantar uma celeuma. Parece que lhe
prenderam o homem esta tarde... [...]
- Lá vou, homem, lá vou! Não me maces também... Impossível trabalhar
nesta casa! Outra noite perdida! (QUEIRÓS, 2010, p. 119,120).

Essas interrupções selavam o contraste entre a rotina dos antigos Ramires –


repleta de façanhas – e a vida de Gonçalo, cuja fidalguia já entrava em decadência, pelo
natural avanço histórico. É importante acrescentar também que a criação da novela
acabava por atestar as diferenças de temperamento entre os antepassados – destemidos,
aventureiros – e a personalidade de Gonçalo, marcada pela covardia, pela insegurança.
Como observa Franchetti (1997), “É a vivência da escrita que lhe permite tomar
150

consciência da abjeção presente, por contraste com um passado de fantasias.” (p. 473).
Tal experiência é partilhada com o leitor da obra, para quem avultam tais oposições.
Apesar de estar, a todo momento, envolvido com os atos de bravura do avô Trutesindo,
ele procura se safar de toda situação que denote algum perigo. É significativa, nesse
sentido, a cena em que se vê ameaçado pelo homem com quem havia travado um acordo
financeiro e depois desistido, faltando-lhe com a palavra dada:

Erguera o cajado... - Mas, num lampejo de razão e respeito, ainda gritou, com
a cabeça a tremer para trás, através dos dentes cerrados:
- Fuja, Fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo Mendes Ramires correu à cancela entalada nos velhos umbrais de
granito, pulou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o
muro, numa carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha, junto aos
milheirais, uma figueira brava, densa em folha, alastrara dentro dum
espigueiro de granito destelhado e desusado. Nesse esconderijo de rama e
pedra se alapou o Fidalgo da Torre, arquejando. (QUEIRÓS, 2010, p. 98)

A criação literária de Gonçalo, ao mesmo tempo em que revela os feitos


ancestrais de seus familiares, desnuda também o caráter do protagonista que, além de
possuir uma natureza mais pacífica – embora adornada com reações covardes – também
vive um momento histórico que já exige certas sutilezas e maleabilidades no trato
social, diferentemente da época em que as querelas eram todas resolvidas em sangrentos
embates. Por outro lado, em situações extremas, como a descrita no fragmento acima,
em que o adversário não abre margem ao diálogo e ameaça a integridade física do
fidalgo, este instintivamente foge, livrando-se de enfrentar a disputa física e de correr
qualquer risco, ao contrário do fariam seus antecessores. Como expõe Dantas (2010), a
novela atua como uma paródia da vida de Gonçalo, forjando nele a problematização do
seu anti-heroísmo e do quanto seus atos estavam em desacordo com os de seus
antepassados.

Contudo, o hábito de escrever acaba trazendo a Gonçalo a predileção por criar,


distorcer fatos inerentes à própria vida. E isto era absolutamente conveniente para ele,
pois, apesar de admitir para si próprio a covardia de seus atos, ele simulava, para os
demais ao seu redor, um outro temperamento, em que se destacavam gestos de
heroísmo:

E em cima no quarto, apenas o Bento entrara para o vestir, recomeçou a sua


epopeia, mais carregada, mais terrífica [...] O Casco! O José Casco das
Bravais, bêbedo, rompendo para ele, sem o conhecer, com uma foice enorme,
a berrar - "Morra, que é marrão!...” E ele na estrada, diante do bruto, de
bengalinha! Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco de
pinheiro... Então arremete desabaladamente, brandindo a bengala, gritando
151

pelo Ricardo e pelo Manuel como se ambos o escoltassem - e ataranta o


Casco, que recua, se some pela azinhaga, a cambalear, a grunhir...
- Hem, que te parece? Se não é a minha audácia, o homem positivamente me
ferra um tiro de espingarda!
O Bento, que quase se babava, com o jarro esquecido a pingar no tapete,
pestanejou, confuso, atônito:
- Mas o Sr. Dr. disse que era uma foice!
Gonçalo bateu o pé, impaciente:
- Correu para mim com uma foice. Mas vinha atrás do carro... E no carro
trazia uma espingarda. O Casco é caçador, anda sempre de espingarda...
Enfim estou aqui vivo, na Torre, por mercê de Deus. E também porque
felizmente, nestes casos, não me falta decisão! (QUEIRÓS, 2010, p. 100,
grifos do autor).

A mesma cena, anteriormente descrita, é narrada ao criado sob nova versão,


Gonçalo agora é quem aterroriza e afugenta o adversário, impondo-lhe a sua coragem, a
sua altivez. Curiosamente, acaba por confundir-se com os detalhes de sua “epopeia”,
mas, a fim de não ser desmascarado e com habilidades de criador, logo consegue
suavizar o deslize para não tornar falaciosa a sua aventura. Ele lê os fatos da maneira
que lhe convém – e naturalmente os enaltece – relatando-os sem pudor e orgulhando-se
de assemelhar-se, ao menos na fantasia, aos seus antepassados ilustres.

Enquanto a personagem Gonçalo esforça-se por exaltar a própria figura e


agradar àqueles que ouvem a sua narrativa, no texto de Machado de Assis – Esaú e Jacó
- nota-se exatamente o contrário, pois, ao supor que o relato não está satisfazendo quem
o lê, o narrador reclama para si o direito de poder contar livremente os episódios, sem a
necessidade de contentar. Vai, portanto, delineando as ações como supostamente
ocorreram e não com o empenho de deleitar o leitor ou, mais precisamente, a leitora,
maior consumidora de romances, no século XIX. É o que demonstra o fragmento
abaixo, já comentado anteriormente, mas, que merece ser retomado:

Não, senhora minha, não pus a pena na mão, à espreita do que me viessem
sugerindo. Se quer compor o livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem
um admirador; mas, se quer ler somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em
linha; dou-lhe que boceje entre dois capítulos, mas espere o resto, tenha
confiança no relator destas aventuras. (ASSIS, 1999, p. 58,59).

Ao advertir a leitora de que deve manter-se quieta, enquanto acompanha os


escritos, o narrador parece reduzir a operação de ler à passividade, a um deixar-se
conduzir pelo “relator destas aventuras” (p. 59). Entretanto, o que se observa, ao longo
de todo o romance, é que o leitor é convidado a participar das formulações de sentido,
152

imaginando e compondo dados narrativos, em parceria com quem os apresenta. As


frequentes incertezas, as dubiedades e o ar sempre reticente do narrador sinalizam para
um trabalho de coautoria, em que o leitor também associa ideias e tira suas próprias
conclusões acerca do que lhe é exposto. Logo, a admoestação do narrador machadiano
diz respeito mais ao fato de ele não admitir que seu relato seja montado ao sabor das
preferências de quem o lê, sem, no entanto, inviabilizar a interatividade com o receptor.

Outro ponto a destacar é o fato de que a referência à leitora pressupõe que ela
pode vir a bocejar, em alguns momentos da narrativa, por desinteressar-se de dados da
trama que não sejam aqueles relativos a aventuras amorosas. A leitura feminina, nos
oitocentos, estava fortemente relacionada a temas voltados à emotividade, às intrigas e
cenas em que o amor, os sentimentos fossem o conteúdo predominante. Entretanto, tal
predileção não determina o curso da narrativa, ao contrário, é rechaçada a possibilidade
de conotações românticas:

Ainda não lhes disse que a alma de Natividade era azul. Aí fica. Um azul
celeste, claro e transparente [...] Não, leitor, não me esqueceu a idade da
nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta
anos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de cor. Uma vez que lhe
não atribuas ao azul da alma nenhuma significação romântica, está na conta.
(ASSIS, 1999, p. 47).

Apesar de identificar qual o interesse do leitorado feminino na obra, é frustrada a


possível expectativa por sentimentalismos, pois logo se advertia que as expressões
metaforizadas – a exemplo de “alma azul” – não tinham teor romântico. Frustra-se
também a possível expectativa por um relacionamento amoroso entre os protagonistas.
Afinal, Flora não opta por um dos gêmeos e acaba morrendo sem vivenciar
propriamente nenhuma aventura afetiva. A ideia, na verdade, é que a trama seguiu por
si, desde o início, sem que se lhe segurassem as rédeas e direcionassem o enredo para
uma versão que talvez agradasse mais à mulher da época. É como se as personagens
agissem de forma autônoma, como mostra, por exemplo, o momento em que são
narrados os primeiros anos de vida dos irmãos Pedro e Paulo:

A operação de desmamar podia fazer-se em meia linha [...]. Poucas linhas


bastariam para as amas-secas, porquanto não diria se eram altas nem baixas,
feias ou bonitas. [...]. Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa
de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos vê-los, querida. Com
pouco, estão crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; eles que
abram a ferro ou língua, ou simples cotovelos, o caminho da vida e do
mundo. (ASSIS, 1999, p. 43,44).
153

O narrador mais uma vez despoja-se de uma supremacia normalmente atribuída


a quem apresenta um enredo e põe em destaque a autonomia das personagens, que não
atuariam como títeres, mas iriam se impor, ao longo do texto. Essas observações
conferem à obra um tom de veracidade, não no sentido de que os episódios descritos
tenham acontecido de fato, mas trazendo à narrativa uma firme impressão de se estar
diante de uma criação que emana movimento, vida, dinamismo. E o leitor real, por sua
vez, pode projetar-se, como expectador privilegiado, para dentro da trama que lhe é
contada, porque, apesar de as personagens parecerem agir por si mesmas, de modo
independente, o que se observa, na verdade, é que, para compreendê-las, decifrá-las, é
necessário um exercício de leitura ativa. Esta se torna muito semelhante a um processo
de criação, neste caso, coautoria, pois, como discutido no primeiro capítulo, a
construção da personagem se dá também por um efeito de leitura.

A crítica feita por Machado ao romance O primo Basílio toca exatamente nessa
questão: a de a protagonista parecer-lhe absolutamente passiva, um verdadeiro títere,
muito embora tal perspectiva se aproxime mais de uma crítica de natureza moral que
propriamente da exposição de um defeito na construção da narrativa e da personagem,
conforme já comentado no primeiro capítulo. De qualquer modo, a ficção machadiana,
especialmente no que se refere a textos produzidos após 1878 (ano da publicação de O
primo Basílio), apresenta personagens que parecem agir de modo autônomo, o que pode
revelar uma criação literária distanciada de preceitos de época ou predileções do
leitorado. Simular a independência da personagem, como se fosse um indivíduo real,
com liberdade de ação, indica também uma forma livre de narrativa, sem amarras, sem
adequações às expectativas de quem lê.

No romance Esaú e Jacó, há trechos, como o já referido “entrego-os a si


mesmos; eles que abram a ferro ou língua, ou simples cotovelos, o caminho da vida e do
mundo” (ASSIS, 1999, p. 44), em que se cria uma ideia nítida de que as personagens
agem por si mesmas e suas ações apenas são relatadas pelo narrador. Há também outros
momentos em que os agentes ficcionais são “convidados” a participar da construção
narrativa: “há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela,
ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o
enxadrista e os seus trebelhos”. (ASSIS, 1999, p. 38). Produz-se, portanto, a sensação
de que as personagens se constroem solidamente, em uma parceria com o criador,
podendo, inclusive, sugerir caminhos para a sua trajetória no enredo.
154

Para além disso, favorecendo um efeito de realidade bem marcado, ainda em


Esaú e Jacó, há momentos em que a narrativa parece fluir por si, com foco nas ações
das personagens, como se o narrador se isentasse de uma participação mais efetiva:

Também eu, se é lícito citar alguém a si mesmo, também eu acho que a dança
é antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos anos longos e
grisalhos, mas também outra que não digo, por não valer a pena. Ao cabo,
não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não
seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui
integralmente com suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto,
sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo. (ASSIS, 1999, p.
88).

Embora desvie de si o foco de atenção da narrativa, o fato é que os apartes de


quem conta a história vão sistematicamente compondo e dando profundidade tanto às
personagens, como ao enredo, por meio das instâncias de reflexão levantadas. A leitura,
nesse ínterim, vai-se tornando convidativa, incitando a participação do leitor como
agente, em um processo de coautoria.

Não apenas o leitor real é atraído a envolver-se com o que lê, mas as próprias
personagens sofrem um apelo, como se de fato pudessem ter a liberdade de decidir o
que e quando ler. É o que ocorre, por exemplo, quando Bento (D. Casmurro), após
expor reflexões íntimas, adverte uma das personagens do enredo, a respeito do teor de
suas conjecturas.

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou se o houver lido até aqui,
abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimá-lo, para não lhe dar a
tentação de abri-lo outra vez. Se apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é
sua; não respondo pelo mal que receber. (ASSIS, 1995, p. 165,166).

O protagonista refere-se diretamente à personagem Sancha, supondo que ela


poderá ser leitora da narrativa que ele constrói. Para não provocar constrangimentos,
sugere que ela não leia a obra, pois ali ele apresenta uma passagem em que supõe ser
alvo do interesse afetivo dessa mulher. Sente-se, inclusive, seduzido por ela e expõe
suas sensações. Outro elemento que deveria tornar essa leitura imprópria para Sancha é
o fato de que Bento também registra, na sua narrativa, a desconfiança da traição de
Capitu com Escobar, marido dessa outra senhora. Assim, cria-se uma mescla entre
ficção e realidade, colocando no mesmo patamar o leitor real da obra D. Casmurro e
uma personagem que emerge do próprio enredo, como leitora do livro também. E a ela é
dada a liberdade de decidir se avança ou não na leitura da obra, em uma perfeita
simulação de sua total autonomia.
155

Invoca-se também a personagem Flora (Esaú e Jacó), a fim de que a narrativa


pudesse avançar, mediante a sua participação: “Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma
coisa, verso ou prosa, que exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um
verso do Fausto, adequado – Ai, duas almas no meu seio moram”. (ASSIS, 1999, p.
140). O verso traduziria o que vai no íntimo da personagem e, para além disso, sugere-
se a sua autonomia, como se ela pudesse intervir e sugerir citações que metaforizassem
seus sentimentos. A esse respeito, convém expor as colocações de Rosenfeld:

A personagem é um ser fictício, — expressão que soa como paradoxo. De


fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No
entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da
verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício,
isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da
mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se
baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser
fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste.
(1998, p. 40, grifos do autor).

É, portanto, estabelecida uma conexão entre ficção e realidade, por meio da


composição de personagens cuja independência lhes soa característica, como se de fato
não fossem guiadas por um narrador. Ainda, em outro caso, quando os entes ficcionais
agem de modo dúbio, contraditório e inseguro, isto também os assemelha a indivíduos
reais.
De qualquer modo, o que se destaca é o fato de a construção literária, em Eça e
Machado, explorar e aprofundar as operações do ler. Isto se revela tanto nas ações que
se articulam dentro do enredo, como para além dele, envolvendo o leitor real em uma
posição não apenas de expectador privilegiado mas também – e principalmente – como
coautor, atuando na construção de sentidos.
Convém considerar ainda o que expõe Chartier (1999) a respeito da leitura de
uma maneira geral: “todo leitor diante de uma obra a recebe em um momento, uma
circunstância, uma forma específica e, mesmo quando não tem consciência disso, o
investimento afetivo ou intelectual que nela deposita está ligado a este objeto e a esta
circunstância” (p. 70). Desse modo, percebe-se que haverá, por parte do receptor, uma
intervenção própria no que se refere à construção de sentidos para aquilo que lê; nota-
se, portanto, que o leitor também desempenha uma ação criadora e esta, embora não
ocorra na mesma proporção da atividade de autoria, ainda assim ganha relevância no
instante em que o receptor atribui significados aos escritos de outrem.
156

Conclusão

Pensar a arte como “uma maneira particular de significar” (JOUVE, 2012, p. 14)
traz a lume dois importantes pressupostos, ao se considerar a criação literária: primeiro
a extraordinária potencialidade comunicativa da linguagem, elaborada de forma a
revelar e atualizar inesperadas possibilidades, dentro de um sistema linguístico. Em
seguida, destaca-se o fato de essa formulação, esse arranjo textual inédito e convidativo,
não prescindir da “cumplicidade” de um leitor, não apenas para fruir os efeitos estéticos
provocados, mas também para relacionar e potencializar, em diferentes desdobramentos,
os temas que a construção literária fomenta.

São exatamente essas questões que afastam a ideia de inutilidade da arte, pois,
embora não haja um ganho imediato, considerando fins práticos, torna-se possível, por
meio de produções artísticas, divisar aspectos da existência humana, que muitas vezes
passam despercebidos, pelo automatismo das rotinas. Por estar vinculado a uma cultura
específica, por desempenhar determinada profissão, vivendo em uma região e
pertencendo a certas comunidades sociais, muitas vezes o indivíduo encapsula-se,
mesmo sem se dar conta, e acaba por restringir o alcance do seu conhecimento de
mundo e da sua capacidade perceptiva. A arte, portanto, instiga a abertura de “canais”
que viabilizam o aflorar da sensibilidade, da criticidade e a ampliação da habilidade de
(res)significar dados da existência.

No tocante às narrativas literárias, nota-se que, ao acompanhar a movimentação


de personagens, inseridas em contextos diversos e sob o desenrolar de um enredo
específico, o receptor da obra se depara com conflitos, temperamentos, contrastes,
situações inusitadas ou mesmo fatos cotidianos que ganham novas dimensões, rupturas,
digressões, enfim, uma vasta gama de elementos que lhe permitem alargar sua
percepção acerca de si mesmo e do outro.

Romances e contos, por exemplo, abarcam contextos socioculturais, em que se


inserem os indivíduos ficcionais, de maneira que o leitor tem a possibilidade de
conhecer tal panorama, alargando saberes, divisando diferentes perspectivas. E, para
além disso, há a oportunidade de reflexão acerca de questões inerentes à condição
humana e que se expandem em múltiplos aspectos, proporcionando assim variados
raciocínios e ponderações.
157

Nesse sentido, a leitura compreende uma operação rica em possibilidades,


especialmente quando se considera a leitura literária. A atuação do leitor faz-se
absolutamente necessária para identificar e construir sentidos oferecidos pelo texto. Este
não se reduz à sua materialidade, deixa-se apreender pelo receptor, para assim expressar
ideias, estimular conexões com outras fontes de conhecimento. E, uma vez que um
movimento de recriação se dá na interação entre texto e leitor, é importante destacar o
fato de que os temas presentes, em narrativas literárias, não são comunicados de forma
direta, objetiva, mas sim mediante as implicações de uma trama, nas particularidades
das cenas e ainda por meio das relações entre as personagens.

Com base nisso, é possível realçar dois pontos relevantes: primeiro a crucial
participação do leitor na busca pela compreensão ampla da obra, conectando segmentos
e fazendo associação de ideias, no decifrar do não-dito do texto. Depois, o fato de que a
operação do ler, desempenhada por personagens, no interior de certas narrativas,
também pode converter-se em elemento-chave para a identificação do perfil desses
indivíduos e dos seus modos de interação, no âmbito ficcional. Esse é, inclusive, um
ponto de contato entre as narrativas de Eça e Machado, pois, é possível entrever ali que
a construção das personagens embasa-se nos seus comportamentos como leitoras, ou
seja, elas se revelam a partir do que leem e do modo como o fazem.

E essa leitura não se restringe à decodificação e interpretação de textos escritos,


mas amplia-se a outras modalidades e objetos-alvo. Assim, além de referências a
escritores e estéticas literárias do “mundo real”, que são elementos importantes na
delimitação das preferências e da personalidade dos indivíduos ficcionais, há ainda a
habilidade de ler para além da palavra, quando se interpretam olhares, expressões e
atitudes, atribuindo-lhes significados. Revelam-se, por meio das dimensões do ler,
figurações de leitores, em variadas composições que muito contribuem para o
entendimento das obras, bem como para a identificação de traços literários de Eça e de
Machado, formatados em distintos mecanismos.

Os modos de criação da personagem, em ambos os autores, apontam para


elaborações de linguagem que têm em comum a relação entre o perfil da personagem e
sua habilidade nas situações de leitura; ao mesmo tempo, notam-se também diferentes
estratégias de composição. Os textos de Machado, distanciados do modelo realista
oitocentista, apresentam personagens que se revelam e se ocultam, nas dobras textuais, à
medida que a narrativa avança. E a relação desses agentes ficcionais com a leitura tanto
158

descortina, para o leitor real, alguns indícios do temperamento deles e demais aspectos
de sua construção, como também contribui para a identificação de contrastes e lacunas
que incitam a imaginação de quem lê.

Já as narrativas de Eça trazem personagens cujo delineamento é mais nítido,


detalhado, sem inviabilizar, é bom que se frise, as possibilidades de leitura às quais tais
seres remetem. Por mais que sejam precisos, no texto, os elementos de caracterização e
de particularização da personagem queirosiana, ainda assim haverá variadas
perspectivas de entendimento porque estas se atrelam às habilidades e estratégias
desenvolvidas pelo leitor empírico. Mesmo parecendo haver uma formatação definitiva
da personagem, o próprio mecanismo que orienta a operação do ler não permite uma
exatidão, pois cada leitura é administrada pela subjetividade do indivíduo leitor, de
modo que sempre se fará única.

Elementos, que despertam a atenção de alguém, podem parecer desinteressantes


a outro e, para além disso, a multiplicidade de discursos, que atravessam o exercício do
ler, sempre irá favorecer que um ou outro aspecto, em cada leitura, seja enaltecido,
mesmo quando se trate de um mesmo leitor, em diferentes momentos, diante de uma
mesma obra. Assim, seja na busca por decifrar perfis sinuosos, inscritos em meandros
narrativos desafiadores e convidativos, ou seja diante de perfis mais precisos, cujas
minúcias parecem erigir um indivíduo real (na acepção literal do termo), o fato é que a
participação do leitor compreende um fator decisivo, na construção de sentidos para a
narrativa.

Tal raciocínio conduz à perspectiva de que a personagem pode ser pensada como
um efeito de leitura, uma vez que é o leitor da obra quem irá, a partir das informações
fornecidas pelo texto, reunir ideias a ponto de criar uma imagem mental representativa
do ser ficcional. Essa criação pode não ser permanente, em razão do próprio movimento
de leitura que vai iluminando novos aspectos relativos à constituição da personagem. O
leitor vai, portanto, concatenando os segmentos textuais, ativando ideias, fazendo
associações e selecionando as possibilidades de sentido mais coerentes, compondo
assim a figura ficcional, do modo como a concebeu.

O processo de figuração da personagem tanto diz respeito à sua particularização


dentro de um contexto em que ela se movimentará, na interação com outros, como
também se vale das referências do leitor, que encontrará, nesse indivíduo que lhe é
apresentado, características que estarão em consonância com o que se espera designar
159

como atributo humano. O repertório de outras leituras e saberes em geral, portanto,


serão ativados no desenvolver da leitura, promovendo assim uma experiência ativa e
singular de compreensão do texto. E as cenas em que as personagens surgem também
como leitoras contribuem significativamente, na revelação de informações a seu
respeito.

Nesse sentido, pode-se definir, como um expediente de criação literária, a


composição de personagens leitoras cujo comportamento, nessa circunstância, define
seu temperamento, suas preferências, seu modo de posicionar-se em variadas situações
e até mesmo o seu papel social. É um ponto que aproxima as narrativas de Eça e
Machado, pois em ambas a leitura se inscreve, favorecendo a percepção dos aspectos e
características que constituem a personagem e ao mesmo tempo elucidando os temas e
discursos críticos que permeiam os textos. Cumprem-se padrões sociais ou rompe-se
com eles, projetam-se situações, questiona-se a própria rotina e a atuação profissional,
afirmam-se valores, enfim, com base nas relações que têm com a leitura e por meio da
habilidade que revelam ou não como leitoras, as personagens ganham contornos
específicos. Seus modos de ler associam-se estreitamente com seu modo de ser, pois,
mesmo sob composições e perfis diferentes, considerando as criações de Eça e
Machado, é possível descortinar a constituição desses seres mais amplamente, por meio
da observação do seu desempenho, como leitores. Tal operação afirma-se como uma
estratégia de leitura para quem, externamente, acompanha a maneira como as
personagens se relacionam com a leitura e as implicações disso no desenvolvimento do
enredo, na interação entre os indivíduos ali inscritos.

Pensando ainda sobre os domínios do ler, compreendem-se os sentidos de uma


obra como dados que são por ela sugeridos. Contudo, especialmente por ser o literário
um produto de elaboração linguística bem particular, tais significações não “se
manifestam diretamente, mas obliquamente, por meio de conexões que não são
(sempre) imediatamente visíveis.” (JOUVE, 2012, p. 106). Nessa perspectiva,
acompanhando os movimentos de leitura das personagens – criações dos referidos
autores - observam-se situações em que ler converte-se em ação interpretativa que
transcende a palavra escrita, sob estratégias distintas.

Considerar, por exemplo, a leitura como contestação significa submeter ideias,


valores e crenças a novas leituras, desestabilizando “verdades”, questionando discursos
hegemônicos e sua validade, em contextos práticos. Este é mais um comportamento de
160

leitura manifesto nas personagens de contos e romances aqui estudados, pois elas por
vezes contrariariam princípios consolidados, viabilizando uma releitura, uma
atualização de ideias. Mediante o questionamento incisivo e mordaz, verificado, por
exemplo, nas críticas de Amaro aos posicionamentos da Igreja, ou por meio do tom
paródico e bem-humorado de personagens do conto Adão e Eva ou do romance Esaú e
Jacó, o fato é que a maneira como são tratados alguns temas e valores socioculturais se
configura como uma reformulação de ideias, ou seja, como uma releitura. Esta,
inclusive, convida o leitor real a repensar, reavaliar ou ao menos conhecer novas
diretrizes de pensamento acerca de determinadas questões. Desarticulam-se, por
exemplo, certas visões acerca do sagrado, isto é, a respeito de concepções religiosas
estáveis que direcionam muitos adeptos até hoje. Curiosamente, no período oitocentista,
como se verifica nas obras em questão, tais temas – polêmicos – já levantavam
discussões, propiciando a contestação de crenças, em processos de releitura.

A identificação de comportamentos e atuações sociais que divergem


drasticamente dos valores e ações, manifestos na intimidade, também se revela, nas
obras, como uma dinâmica de leitura. E o excessivo contraste entre o perfil público e o
privado acaba por definir as habilidades de leitura dos que conseguem enxergar tais
discrepâncias, através do exercício atento e sagaz da observação interpretativa.

Ao mesmo tempo, notam-se também as dificuldades de percepção daqueles que


não identificam indícios de dissimulação, hipocrisia ou simplesmente “máscaras
sociais” – estas últimas seriam indispensáveis ao convívio saudável, pois a franqueza
excessiva, por exemplo, em vez de constituir-se como virtude, pode revelar indiscrição
e até falta de civilidade. Mas, para detectar tais nuances ou mesmo para identificar casos
extremos de ocultação de caráter, faz-se necessário um exercício habilidoso de leitura,
um certo traquejo na captação de informações para além do que está visível. Esses
procedimentos do ler dão às personagens de Eça e Machado contornos bem específicos,
pois é o seu desempenho, também nessa dimensão de leitura, que fará transparecer
aspectos de sua personalidade, do panorama social em que se inserem e do modo como
ali interagem, com maior ou menor êxito em suas iniciativas, a depender do alcance de
sua condição de leitor.

Essa transcendência do ler ainda atribui a situações, comportamentos e até a


olhares e expressões, o estatuto de escritura, sendo passíveis, portanto, de serem
decifrados, interpretados, havendo, inclusive, expansão de ideias acerca do que é
161

percebido. A palavra por vezes é dispensada, instigando a personagem a ler,


especialmente no olhar dos que a rodeiam, informações decisivas ou, pelo menos,
provocações, suspeitas, desconfianças. Em narrativas queirosianas veem-se indivíduos
que se permitem ler, mediante suas expressões, comportamentos e olhares;
frequentemente, eles também leem os outros, mas, a partir de si mesmos, transferindo
características suas ao comportamento alheio. E nesses aspectos incluem-se as
preferências de leitura, como se observa no comportamento de Artur (A Capital), cuja
predileção por autores românticos compromete a sua sagacidade na observação e
avaliação de atitudes dos que com ele interagem. Esse componente, da formatação da
personagem, corresponde ao traço crítico de Eça, na associação entre sentimentalismo e
limitação perceptiva, em que pesam a alienação e a passividade.

Nos textos machadianos, decifrar comportamentos e sobretudo olhares torna-se


tarefa mais árdua que pode, inclusive, induzir à precipitação ou mesmo ao erro de
interpretação, comprometendo a movimentação futura da personagem que tenta efetivar
tal operação de leitura. Também a sinuosidade e a ambiguidade, que revestem vários
perfis criados pelo autor brasileiro, transparecem na dificuldade que alguns têm quando
tentam ler a si próprios, “auscultando” a própria personalidade, como ocorre com Flora
(Esaú e Jacó). Além da dificuldade de autocompreensão, ela também cria barreiras para
que outros a compreendam, como declarava o Conselheiro Aires, ao destacar a
impossibilidade de desvendá-la. De modo semelhante, nesse sentido, está Capitu (D.
Casmurro), cujos olhos oblíquos atraem, confundem, sem deixar transparecer nada em
definitivo; mesmo porque a personagem é apresentada sob total influência da
perspectiva do outro, o seu consorte, cujas habilidades para interpretação acabam por
revelar o próprio perfil, muito mais que o da mulher que ele buscava desvendar.

Configura-se, assim, mais uma dimensão da leitura, aquela que busca decifrar
informações e mensagens que não se codificam linguisticamente, mas que se constituem
fontes de significado: olhares, gestos, atitudes. E, para além disso, o olhar que
empreende um exame minucioso de fisionomias e expressões, a fim de encontrar ali
sentidos relevantes, corresponde a um ato de leitura, pois compreende uma ação em que
se combinam observação, inferências e construção de ideias.

As diferentes dimensões que tem a leitura, identificadas e analisadas em


narrativas de Eça e Machado, favorecem a verificação de que a figura do leitor é
singularizada, por meio de mecanismos bem distintos. Nos textos de ambos figuram
162

personagens leitoras cuja relação com a leitura define a sua composição, mas, somente
nas criações do autor brasileiro, até mesmo o leitor real é particularizado, ganhando
atributos bem específicos, à maneira de uma personagem. Com essa técnica, faz-se uma
mescla entre as esferas ficcional e extraficcional, criando uma ilusão de veracidade, pois
é simulado, frequentemente, um perfil de leitor, como se a obra se destinasse a um
indivíduo específico. Porém, à medida que a narrativa avança, novos perfis surgem –
descritos brevemente, mas em interação com quem narra – como se, em diferentes
momentos, o narrador se dirigisse a um leitor em particular. Há, portanto, uma
singularização do leitor real, cujo delineamento o aproxima da categoria de personagem.
Sobressaem dados como idade, ofício que desempenha, temperamento, ou mesmo
crenças que possui; e todos esses aspectos interferem no modo de apresentação dos
fatos, pois estes são narrados considerando e simulando que se tem uma específica
configuração de leitor, acompanhando cada momento da trajetória narrativa.

Nas narrativas de Machado, supõe-se qual a reação de leitura do receptor que é


singularizado, enquanto nos textos de Eça, a imagem de leitor figura na categoria de
personagem e esta, por vezes, projeta quais as reações de leitura de outras personagens,
em situações e cenas diversas. Nas obras dos dois escritores, a leitura se inscreve como
prática reveladora de índoles, papeis sociais, personalidades. E está sempre associada a
mecanismos de criação literária que transparecem na construção de personagens que
figuram como leitores ou na singularização do leitor real. Este, inclusive, é sempre
instigado a participar, interagir, como se pode verificar nas alusões feitas diretamente a
ele, observadas no texto machadiano, ou ainda por meio da intrusão e das digressões do
narrador queirosiano, que também incitam um maior envolvimento por parte de quem
lê.

Mas a participação do leitor real não é evocada apenas nas referidas


circunstâncias. A própria articulação dos segmentos textuais oferece a possibilidade de
inferir, recriar. Em Esaú e Jacó, os relatos e cenas são apresentados de modo impreciso,
marcados pela hesitação, como se a todo momento houvesse suposições. Também o
íntimo das personagens é apenas sondado, não é admitida nenhuma certeza, nenhuma
declaração mais categórica. Desse modo, o leitor é convidado a empreender operações
de reflexão, relacionando fatos e ideias, na busca por um entendimento, ainda que
parcial, acerca das personalidades e situações inscritas na ficção. O leitor torna-se
coautor, pois sempre há espaços a serem preenchidos, numa apropriação dinâmica
163

daquilo que é apresentado, ou seja, mediante uma compreensão produtiva e criativa, a


respeito do que é lido.

O romance A ilustre casa de Ramires, por sua vez, convida o leitor a participar
em coautoria, porque em vários momentos há ali uma relativização de sentidos, por
meio da apresentação de raciocínios que se flexibilizam, oscilando entre uma e outra
perspectiva, em diferentes apreciações de um mesmo fato. Essa obra faz transparecer
um tom menos incisivo e menos combativo, na narrativa de Eça, caso se considerem
romances anteriores, como O crime do padre Amaro e O primo Basílio. Assim, por
meio da apresentação de visões diferentes associadas às mesmas circunstâncias, o leitor
vai construindo suas próprias conclusões, ainda que seja pelo fato de atestar o grau de
coerência de cada uma das versões que o texto apresenta.

A coautoria delimita-se não apenas como um processo que envolve o leitor real
em uma construção mais efetiva de sentidos para a obra, mas também, dentro da
narrativa, quando uma personagem, que atua como escritor, vale-se do ato de ler como
fonte de onde extrai dados para a sua produção escrita. Gonçalo (A ilustre casa de
Ramires) acaba estendendo à própria vida a experiência de reescrever cenas, adulterar
textos – que era afinal o seu recurso para a criação de uma novela – e assim modifica
também a apresentação das suas experiências pessoais, enaltecendo-se, em total
desacordo com os fatos.

Essa “liberdade criadora” é observada em textos de Machado sob outro viés:


uma espécie de deliberação de autonomia para as personagens, que parecem agir de
modo independente, na condução de sua trajetória. Porém, o que se nota, na verdade, é
que, para a compreensão mais ampla desses seres, é imprescindível um exercício atento
e ativo de leitura, em que o receptor atuará, marcantemente, na formulação de sentidos
para aquilo que lhe é apresentado.

Percebe-se, portanto, que os movimentos e estratégias de leitura são bastante


explorados e aprofundados em criações dos dois escritores. Notam-se tanto as ações e
relações que a leitura estabelece ao se inscrever nos enredos e no traçado das
personagens, como também o apelo atrativo que se faz, sob diferentes métodos, ao leitor
empírico, convocando- o a interagir e a construir sentidos.
164

Finalmente, cabem ainda alguns questionamentos que se fazem corriqueiros


quando se está a estudar obras já vastamente exploradas: por que inquiri-las, para que
investigá-las, se tanto já foi dito sobre elas? Ainda haveria algo por dizer?

Primeiramente, ocorre que nenhum discurso, ainda que tenha a pretensão, é


inédito, pois é sempre atravessado por outros discursos que também pressupõem
diferentes leituras, compreendendo um mosaico de referências. Por mais que se criem
novas discussões e diferentes olhares sobre um texto, os raciocínios e ideias defendidas
serão sempre marcados por pressupostos culturais e pelo repertório de leituras e
vivências do enunciador, o que torna o produto das reflexões conhecido e original, ao
mesmo tempo. Desse modo, a análise de obras, amplamente conhecidas e estudadas, se
constrói, revelando o olhar de um sujeito-leitor que vai associá-las em aproximações e
diferenças, à sua maneira, embora levando em consideração outras abordagens.

Para além disso, outro ponto que justifica o estudo de obras “clássicas” é
exatamente o fato de o fenômeno da leitura se manifestar em diferentes dimensões,
desdobrando-se a ponto de permitir sempre algo a ser notado, a ser examinado e
discutido nos textos. Como afirma Calvino (2013): “um clássico é um livro que nunca
terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. (p. 11). E essa infinidade de temas,
apoiada em diferentes possibilidades de leitura, sempre atrairá novos interessados e
também estudos que se farão usuais e novos, ao mesmo tempo.

O mais atrativo em textos literários, especialmente naqueles cuja tessitura


operou-se por hábeis mãos, como as de Eça e Machado, é a capacidade de explorar as
possibilidades humanas, infiltradas em um universo de incertezas, contradições, sonhos,
emoções, angústias, medos, escolhas, realizações... Nesse panorama, relativizam-se
convicções, desestabilizam-se verdades, pois há sempre algo por descobrir e por revelar
acerca de um indivíduo. E é na ficção, mediante estratégias de leitura, que essas
possibilidades ganham relevo. Logo, “o interesse do conteúdo manifesto [na obra
literária] pode provir de outro motivo que não sua novidade: sua essencialidade.
Algumas obras apontam, com efeito, para dimensões fundamentais do ser humano, às
quais, por definição, somos sempre sensíveis”. (JOUVE, 2012, p. 123, grifo do autor).
165

Referências

ABDALA JR, Benjamin. A distância crítica do narrador naturalista. Prefácio a O crime


do padre Amaro. São Paulo: Ática, 2010. p. 3-7.

ABREU, Márcia. Prefácio a Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado


de Letras, 1999, p. 9-19.

AGUIAR e SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1988.

ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v.2.

ASSIS, Machado de. Eça de Queirós: O primo Basílio. ____________ Obra completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v.3.

ASSIS, Machado de. D. Casmurro. São Paulo: Ática, 1995.

ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Ática, 1999.

ASSIS, Machado de. Contos de Machado de Assis – dissimulação e vaidade. Org. João
Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: Record, 2008.

ASSIS, Machado de. Machado de Assis: seus trinta melhores contos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2009.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da Tarde. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1963.

BARTHES, Roland. Da leitura. ________ O rumor da língua. São Paulo: Martins


Fontes, 2004.

BARTHES, Roland. O efeito de real. ________. O rumor da língua. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p. 181-90.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. Aguiar, Flávio [et al]. O olhar. Org. Adauto
Novaes. São Paulo: Companhia das letras, 1993.

BOSI, Alfredo. Machado de Assis – o enigma do olhar. São Paulo: Martins Fontes,
2007.

BRANDÃO, Ruth Silviano; OLIVEIRA, José Marcos R. Machado de Assis leitor –


uma viagem à roda de livros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CANDIDO, Antonio. Timidez do romance. _______. A educação pela noite e outros


ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 82-99.
166

CARNEIRO, Flávio. Machado de Assis: autor do século XXI? Disponível em:<


http://www.flaviocarneiro.com.br/obra/machadodeassis.html>. Acesso em: 12 de nov,
2015.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora


Unesp, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. Aguiar, Flávio [et al]. O olhar.
Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das letras, 1993.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2012.

CUNHA, Maria do Rosário. A inscrição do livro e da leitura na ficção de Eça de


Queirós. Coimbra: Almedina, 2004.

DANTAS, Francisco José Costa. Um fidalgo partido ao meio. Prefácio A ilustre casa de
Ramires. São Paulo: Ática. 2010, p. 3-6.

DUARTE, Maria do Rosário da Cunha. A inscrição da leitura na ficção queirosiana: O


primo Basílio. Encontro Internacional de Queirosianos: 150 anos com Eça de Queirós,
3., 1997, São Paulo. Anais do III Encontro Internacional de Queirosianos: 150 anos
com Eça de Queirós. São Paulo: USP, 1997, p.348-54.

DIAS, André. Lima Barreto e Dostoiévski: vozes dissonantes. Niterói: Editora da UFF,
2012.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura – uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
ECO, Humberto. Leitura do texto literário – lector in fabula. Lisboa: Editorial Presença,
1993.
FRANCHETTI, Paulo. Gonçalo Mendes Ramires e Oliveira Martins: reportuguesando
Portugal. Encontro Internacional de Queirosianos: 150 anos com Eça de Queirós, 3.,
1997, São Paulo. Anais do III Encontro Internacional de Queirosianos: 150 anos com
Eça de Queirós. São Paulo: USP, 1997. p. 469- 476.

FRANCHETTI, Paulo. Eça e Machado: críticas de ultramar. Cult – Revista Brasileira


de Literatura, São Paulo, ano IV, p. 48-53, set. 2000.

ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. JAUSS, Hans Robert. [et al]. A
literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.
83-132.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São
Paulo: Ática, 1994.
167

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. JAUSS, Hans Robert.
[et al]. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979, p. 43-61.

JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora Unesp, 2002.


JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola, 2012.
LLOSA, Mário Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: 34, 2000.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Veto e transgressão na literatura ocidental.


MELLO, Maria Elizabeth Chaves de; ROUANET, Maria Helena. A difícil comunicação
literária. Rio de Janeiro: Achiamé, 1987.

PAIVA, Aparecida. A leitura censurada. ABREU, Márcia. Leitura, história e história


da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999, p. 411-27.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Campinas: Pontes Editores, 2011.


QUEIRÓS, Eça de. Contos. Porto: Lello & Irmão, 1951.
QUEIRÓS, Eça de. A Capital. Edição crítica. Lisboa: Imprensa nacional – casa da
moeda, 1992.

QUEIRÓS, Eça. O crime do padre Amaro. São Paulo: Ática, 2004.


QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: Ática, 2004.
QUEIRÓS, Eça de. O primitivo prólogo das Farpas. ________. Uma campanha alegre.
Porto: Lello & Irmão, 1946, v.1, p. 11-38.

QUEIRÓS, Eça de. O problema do adultério. _________. Uma campanha alegre.


Porto: Lello & Irmão, 1946, v.2, p. 193-216.

QUEIRÓS, Eça de. A ilustre casa de Ramires. São Paulo: Ática, 2010.

REIS, Carlos. Eça de Queirós e a literatura como ficção. Encontro Internacional de


Queirosianos: 150 anos com Eça de Queirós, 3., 1997, São Paulo. Anais do III Encontro
Internacional de Queirosianos: 150 anos com Eça de Queirós. São Paulo: USP,
1997.p.17-28.

REIS, Carlos. Pessoas de livro – Estudos sobre a personagem. Coimbra: Imprensa da


Universidade de Coimbra, 2015.

ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. CANDIDO, Antonio. A personagem


de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998.
168

SANTIAGO. Silviano. Eça, autor de Madame Bovary. Uma literatura nos trópicos:
ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 49-65.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1993.

SMITH, Murray. A dualidade das personagens. Org. Macedo, Ana Gabriela [et al].
Estética, cultura material e diálogos intersemióticos. Editora da universidade do Minho,
2012.

VALLADARES, Henriqueta do Couto Prado Valladares. Esaú e Jacó – Olhares sobre a


leitura. São Paulo: Realizações, 2013.

VIEIRA, Cristina Maria da Costa. A construção da personagem romanesca: processos


definidores. Lisboa: Colibri, 2008.

WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Você também pode gostar