2010 PriscilaNascimentoMarques PDF
2010 PriscilaNascimentoMarques PDF
2010 PriscilaNascimentoMarques PDF
So Paulo
2010
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA
So Paulo
2010
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
3. Psicologia.
4.
__________________________________________
Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Universidade de So Paulo
Orientador
__________________________________________
Profa. Dra. Elena Nikolevna Vssina
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Universidade de So Paulo
__________________________________________
Profa. Livre-docente Sylvia Leser de Mello
Instituto de Psicologia Universidade de So Paulo
So Paulo
2010
AGRADECIMENTOS
RESUMO
O presente trabalho consiste num esforo de aproximao entre literatura e psicologia que
procurou manter a integridade de ambas as pontas do dilogo. O objetivo foi estudar o
romance Crime e castigo de Dostoivski, com foco na anlise do protagonista, Rodion
Rasklnikov. Para uma satisfatria compreenso da construo da subjetividade deste
personagem fez-se necessrio visualiz-lo em suas relaes intersubjetivas. Assim, a anlise
foi estruturada em captulos, cada qual destacando o dilogo entre duas vozes, a do
protagonista e a de outra personagem para que fossem explicitadas as contradies e
implicaes deste dilogo no processo de autoconscincia de Rasklnikov. Foram analisadas
as relaes do protagonista com Marmieldov, Razumkhin, Ljin, Porfri, Svidriglov e
Snia. Alm disso, foram tecidas consideraes acerca do eplogo, considerando suas
particularidades formais e funcionais em relao ao restante do romance. A entrada da
psicologia est na tentativa de reconstituio do efeito esttico do romance a partir da
estruturao potica do texto, de modo que o protagonista seja considerado em sua
ficcionalidade, e no como paciente da clnica psicolgica, conforme os pressupostos tericometodolgicos da psicologia da arte de Vigotski. Para compreenso da organizao formal do
texto lanou-se mo da teoria polifnica de Bakhtin, bem como de outros autores da
eslavstica, mais ou menos congruentes a essa viso. Por fim, so apresentadas, em anexo,
tradues de cinco textos da eslavstica norte-americana e inglesa, todos precedidos por uma
nota introdutria sobre os textos e seus autores.
Palavras-chave: Literatura russa, Psicologia da arte, Dostoivski, Emoes, Polifonia.
Contato: [email protected]
ABSTRACT
This dissertation consists of an effort of bringing together literature and psychology, which
tries to keep the integrity of both areas. The objective was to study Dostoevskys novel Crime
and Punishment, with an analysis of its main character, Rodion Raskolnikov. For a satisfying
understanding of the construction of this characters subjectivity it was necessary to visualize
him in his intersubjective relations. Thus, the analysis was structured in chapters, in which we
underlined the dialogue between two voices, the protagonists and another characters, so
that we could explicit the contradictions and implications of this dialogue in the selfconscience process of Raskolnikov. The relations of the protagonist with Marmeladov,
Razumikhin, Luzhin, Porfiri, Svidrigailov and Sonia were analyzed. Besides, some notes were
taken on the epilogue, considering its formal and functional particularities. The psychological
goal rests in the attempt of reconstituting the novels aesthetic effect through the
understanding of its poetic structure, so that the protagonist is considered in his fictiousness
and not as a patient in the psychological office, according to the theoretical-methodological
presuppositions of Vygotskys psychology of art. For an understanding of the formal
organization of the text, we resorted to Bakhtins polyphonic theory, as well as to other
slavistic authors more or less congruent to this view. Finally, Portuguese translations of five
texts from the American and British slavistics were presented and preceded by an introductory
note on the texts and its authors.
Keywords: Russian literature, Psychology of art, Dostoevsky, Emotions, Poliphony.
SUMRIO
1. Introduo
01
08
09
16
21
3. Anlise
30
31
47
65
82
102
123
3.7 Eplogo
144
4. Consideraes finais
Referncias bibliogrficas
160
167
ANEXOS
174
175
199
211
236
267
1. Introduo
tivemos no horizonte a necessidade de dar plena voz ao texto literrio, de modo que se
chegasse quilo que Frayze-Pereira chama de psicologia implicada1, evitando-se, assim, o
lugar-comum da demonstrao da teoria ou aquilo que o mesmo autor chamaria de
psicologia aplicada. Essa a aposta da presente dissertao para construo de um dilogo
efetivo entre o fenmeno esttico e a cincia psicolgica.
Tal proposta encontra-se afinada ao programa de Psicologia da Arte desenvolvido por
Liev Semionovitch Vigotski (1896-1934), principalmente na obra Psicologia da arte (2001),
em que encontramos sua elaborao terica e metodolgica mais acabada, mas que, por sua
vez, ressoa textos anteriores, como A tragdia de Hamlet, prncipe da Dinamarca (1999).
Interdisciplinar por princpio, tal proposta nos exigiu um dilogo intenso com teoria e crtica
literrias, uma vez que elas nos permitem um aprofundamento, indispensvel para este
projeto, nas questes especficas da potica de Dostoivski. Recorreu-se a inmeros autores
estudiosos da obra dostoievskiana, os quais nos permitiram alavancar a anlise a um nvel que
superasse a ingenuidade dos psicologismos, mas que, ao mesmo tempo, contribusse para a
pretendida reconstituio da psicologia do texto. O principal desses autores foi, certamente,
Mikhail Bakhtin (1895-1975), cuja teoria do romance polifnico, presente em Problemas da
potica de Dostoivski (2008), aparece aqui como perspectiva fundamental que atravessa o
olhar sobre a obra.
Assim, as idias de Vigotski sero importantes para a orientao metodolgica, e no
como construtos tericos que se pretende verificar na fico analisada, ou seja, a psicologia
propriamente dita deve derivar do texto, ou, mais especificamente, de sua construo formal.
Bakhtin, por sua vez, aparecer como pano de fundo terico, isto , teremos no horizonte as
noes de polifonia e de dilogo, mas no buscaremos comprov-las (j que este foi o
1
Com efeito, trabalhando especificamente no campo das Artes Plsticas, a Psicanlise que exercitamos,
compatvel com a Arte, no aplicada, mas implicada, isto , derivada das artes ou engastada nelas, pois no
uma forma a se aplicar matria exterior, no um modelo que ajusta abstratamente o objeto artstico s suas
exigncias terico-conceituais. (FRAYZE-PEREIRA, 2005, p. 23)
WELLEK, Ren. A sketch of the history of Dostoevsky criticism. In: Discriminations: further concepts of
criticism. New Haven and London: Yale University Press, 1970. Traduo cf. ANEXO 1.
3
TERRAS, Victor. Dostoevskys Detractors. Dostoevsky studies. Vol 6, 1985. Traduo cf. ANEXO 2.
4
ROSENSHIELD, Gary. Crime and Punishment: The Techniques of the Omniscient Author. Lisse: The Peter de
Ridder Press, 1978. (Captulos 1, 9 e 10). Traduo cf. ANEXO 5.
5
MATLAW, Ralph. Recurrent imagery in Dostoevskij. Harvard Slavic Studies. v. III, 1957. Traduo cf.
ANEXO 4.
6
BELKNAP, R. L. Dostoevskii and Psychology. In: LEATHERBARROW, W.J. The Cambridge Companion to
Dosotevskii. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. Traduo cf. ANEXO 3.
proposto por Vigotski em seus textos sobre arte e psicologia. Tenciona-se, mais
especificamente, concentrar os esforos no estudo do protagonista da referida obra, isto ,
buscar compreender como se d a construo de sua subjetividade no texto. Para Leonid
Grossman, o mundo dostoievskiano marcado por uma particularidade: sua unidade orgnica,
pois, os tipos aos quais o romancista se afeioara no conheceram jamais o isolamento, a
separao, o rompimento com toda a famlia das suas personagens. Eles faziam eco uns aos
outros e estavam ligados pelos fios de uma ininterrupta proximidade interior (GROSSMAN,
1967, p. 136). Assim, tem-se que para uma satisfatria compreenso de Rasklnikov
imprescindvel visualiz-lo em suas relaes intersubjetivas. Tendo isso em vista, foi feita a
opo por estruturar a anlise em captulos, cada qual destacando duas vozes (a do
protagonista e a de outra personagem, com a qual ele dialoga), de modo a explicitar as
contradies e implicaes que esses dilogos suscitam no processo de autoconscincia de
Rasklnikov.
Partindo da indissociabilidade do par forma-contedo (prerrogativa essencial do
mtodo proposto por Vigotski), a especificidade do fenmeno artstico no ser negligenciada
na escolha do enfoque e procedimentos de anlise, isto , trabalhar-se- com a obra
respeitando suas propriedades intrnsecas. Em conformidade com o referencial terico
adotado, vale lembrar algumas formulaes de Bakhtin, o qual, ao destrinchar as propriedades
do romance dostoievskiano, elencou suas caractersticas fundamentais. Como se sabe, a noo
de romance polifnico chave nessa interpretao e seus principais elementos so o dilogo e
o processo de autoconscincia, sendo que o primeiro aponta para uma pluralidade de vozes
(eqipolentes e plenivalentes) que se entrecruzam e interagem entre si e consigo mesma, de
tal forma que o romance se constitui num grande dilogo entre os personagens e no interior
das mesmas. Esse modo de construir as personagens e suas idias promove o processo de
tomada de conscincia de si mesmo, dos outros e do mundo, por meio do dilogo.
4
Dessa forma, ao tomarmos o protagonista de Crime e castigo na forma pela qual ele
apresentado ao leitor, isto , de acordo com a perspectiva polifnica preciso ter em mente
que a personagem de Dostoivski toda uma autoconscincia (BAKHTIN, 1997, p. 50), a
qual focaliza a si mesma de todos os pontos de vista possveis (BAKHTIN, 1997, p. 48).
Partindo desse princpio, a dissertao busca analisar o processo de tomada de conscincia
tendo em conta as vrias vozes que dialogam entre si em busca da verdade. Entretanto,
observa-se que a verdade objetivada no uma assuno monolgica, derivada da conscincia
do autor, trata-se, contudo, da verdade da prpria conscincia do heri (BAKHTIN, 1997,
p. 55). Em Crime e castigo, conforme aponta Bakhtin,
As idias de Vigotski, a contraparte psicolgica de nossa fundamentao terica, sero apresentadas em mais
detalhes no terceiro item do captulo Do romance-pronturio forma viva. Nele sero dados maiores
esclarecimentos acerca de conceitos vigotskiano (como o de reao esttica) aqui abordados de modo mais
superficial.
Embora Snia seja mencionada anteriormente no romance, sua anlise ser apresentada ao final por estar
intrinsecamente ligada ao texto subseqente, isto , anlise do eplogo.
Les vrits les plus profondes et les plus rares que nous pouvons
attendre de lui [Dostoivski] sont dordre psychologique; et jajoute
que, dans ce domaine, les ides quil soulve restent le plus souvent
ltat de problmes, ltat de questions.
Andr Gide
Para Benedito Nunes: A expresso artstica tanto mais desinteressada quanto menos exclusivista e unilateral.
E sendo abrangente [...] que ela pode revelar-nos, na transparncia do mundo criado pelo artista, as
possibilidades latentes do ser humano, e dar-nos uma viso mais ntegra e compreensiva da realidade. Em suma,
revendo as possibilidades da conscincia moral e no adotando uma moral, que a arte cumpre a sua finalidade
tica (NUNES, 2002, p. 89).
10
o que defendem, por exemplo, Van der Veer e Valsiner: Ao mover-se da arte para a psicologia, Vygotsky
pode testar suas construes tericas derivadas de um domnio complexo em outro domnio. Seu trabalho com a
arte capacitou-o a tratar de problemas psicolgicos complexos e os autores deste livro gostariam de afirmar
de uma forma muito mais rigorosa, do que investigadores com formao em psicologia propriamente dita, na sua
poca ou na nossa. Foi um mrito e no um demrito para Vygotsky ter passado da crtica literria e da
educao para a psicologia. Sem duvida um tributo sua formao o fato de que suas idias eloqentes, mesmo
que s vezes msticas, continuem a nos fascinar na busca de nossa prpria sntese de idias (VAN DER VEER;
VALSINER, 1996, p. 47).
11
Para Gomide [...] limitar-se a apontar as contradies entre romance russo e antropologia criminal, na histria
das idias e dos gneros literrios, tarefa infrutfera. O mais importante verificar como essa forma de
apropriao consegue atingir problemas literrios relevantes a partir dos novos usos e significados de que passam
a dispor em novo contexto, frente a novo objeto de estudos. A leitura criminal do romance russo representa
limites evidentes, mas tambm algumas entradas originais (GOMIDE, 2008, p. 131).
12
Nesta pesquisa foram encontradas menes nos seguintes autores: WELLEK, 1970, p. 314; BELKNAP, 2002,
p. 134; FRANK, 1999, p. 238 e 241-5; GIBIAN, 1955; THOMAS, 1982, p. 675-6; KATZ, 1984, p. 86-8 e
SMITH, S.; ISOTOFF, A., 1935. Deste ltimo texto foi encontrada somente a referncia, sem que pudssemos
ter tido acesso ao seu contedo: SMITH, Stephenson; ISOTOFF, Andrei. The abnormal from within:
Dostoevsky. Studies in Psychology, I, Bull. 7, 1935, republicado em Psychoanalytic Review 22, 1935.
10
(BGUIN,
1991,
p.173).
No
famoso
tratado
de
psicologia
Psyche,
zur
13
Seu tremor nervoso transbordou num tremor algo febril; chegou a sentir calafrio; ficou com frio em meio a
todo aquele caloro. Como quem faz esforo, comeou de modo quase inconsciente, movido por alguma
necessidade interior, a fixar o olhar em todos os objetos que ia encontrando, como se estivesse em redobrada
procura de distrao, porem isso lhe saa mal e a todo instante ele caa em meditao. (p. 68-9)
11
Dostoivski chegou a elaborar duas verses em primeira pessoa, antes de chegar ao narrador onisciente em
terceira pessoa da verso final de Crime e castigo. O processo de construo de Crime e castigo relatado por
Frank no captulo De novela a romance de Dostoivski: os anos milagrosos (1865-1871), cf. Frank, 2003, p.
123-142)
12
abrir ao mal (BGUIN, 1991, p. 193). Tal entendimento da questo do mal encontra
ressonncias no pensamento de Dostoivski, especialmente conforme sua apreenso por
Nikolai Berdiaiev (1874 1948), para quem a liberdade, degenerando em arbitrariedade,
conduz ao mal, o mal ao crime, e o crime, enfim, por uma fatalidade interior ao castigo
(BERDIAEFF, s.d., p.106). esta liberdade que permite a Rasklnikov elaborar sua teoria
dos homens extraordinrios e questionar-se sobre o direito de matar. Para Berdiaiev esse
direito no existe, pois, conforme o prova uma experincia conduzida de maneira imanente,
a natureza humana criada imagem de Deus e porque tudo possui, em si, um valor
absoluto. (BERDIAEFF, s.d., 115-6). Wolf v na liberdade a fonte da motivao ambgua
para o crime de Rasklnikov: O crime de Rasklnikov o ato de um humano perplexo por
sua escolha e incapaz de escapar de seu livre arbtrio (WOLF, 1997, p. 180). Ainda de
acordo com Wolf, a escolha por um narrador onisciente em relao Rasklnikov contribui
para a representao do heri como algum livre, pois o protagonista acompanhado pelo
narrador, sem que este se antecipe ou lhe justifique.
Outro ponto que aproxima o romancista russo do psiclogo alemo refere-se ao
universo dos sentimentos, em particular do amor. Para Carus o sentimento responsvel pela
captao da idia e se constitui como uma ligao com o inconsciente. Tudo que fermenta
para alm dos limites da conscincia sobe, com um acento muito particular, da noite
inconsciente para a luz da vida consciente; e a esta melodia, a esta maravilhosa confidncia do
Inconsciente ao Consciente chamamos sentimento (Carus apud BGUIN, 1991, p.184).
por meio do sentimento que o ser humano pode alcanar as regies mais profundas em que
todas as almas esto em relao com sua unidade comum (BGUIN, 1991, p.185), e o amor,
na condio de forma mais elevada do sentimento, o primeiro resgate da existncia
separada, o primeiro passo da volta ao Todo (Carus apud BGUIN, 1991, p. 185). Para
Gibian,
13
Um aspecto importante da vida psquica, caro a ambos, refere-se ao papel dos sonhos.
Em Carus, eles possibilitam uma unio ntima entre consciente e inconsciente, sendo assim
considerado a atividade da conscincia na alma que volta esfera do inconsciente
(BGUIN, 1991, p. 186, grifo do autor). Quanto sua funo tem-se que a conquista da
conscincia pelo inconsciente no xtase ou no afastamento de si mesmo, pode, na realidade,
dentro de limites, nos dar vida e fora. (CARUS, 1970, p. 66-7). No caso de Crime e castigo,
as anlises de Katz demonstram como os sonhos de Rasklnikov reelaboram contedos
retirados do cotidiano e os reinterpretam a luz de um aspecto inconsciente de sua
personalidade,
configurando-se,
deste
modo,
como
palco
da
interseco
14
vitimizador, e que faz o profundo questionamento [Por que eles... mataram... a pobrezinha da
gua? p. 74] (KATZ, 1984, p. 98).
Outro ponto abordado por Carus, e que pode ser tratado comparativamente, refere-se
s doenas. Em funo do carter monista de seu pensamento, Carus no pode ver no
adoecimento um processo que atinge somente o corpo ou uma parte dele. Para a cura, ele
atribui papel fundamental s foras inconscientes:
Quando diante de desvios boa sade, ela [a conscincia] sempre nos conduz
de volta ao centro. Assim, podemos ver que a existncia orgnica inconsciente,
embora desconhea a doena, sustenta tudo que combate as enfermidades e
trabalha constantemente para o restabelecimento da sade. A isso se costuma
dar o nome de poder curativo da natureza. (CARUS, 1970, p. 71)
Frank assinala que a imagem de uma conscincia reguladora, cuja distoro provoca
um literal adoecimento do ego, tornou-se um importante tpico dos grandes romances de
Dostoivski (FRANK, 1999, p. 245). Para Gibian, Dostoivski apresenta concepo
semelhante sobre as doenas em suas personagens, tais como Ippolit, Lisa Khokhlakova,
Ilicha, Rasklnikov e outros (GIBIAN, 1955, p. 375). No caso do protagonista de Crime e
castigo, as justificativas objetivas (calor, cansao, bebida) que ele oferece para sua fraqueza
apenas mascaram a causa verdadeira, isto , a rebelio de seu subconsciente contra todo seu
modo de vida (GIBIAN, 1955, p. 375). Ainda conforme o mesmo crtico, Rasklnikov
aparece como exemplo do que Carus chama de doena da vontade, caracterizada por
oscilaes comportamentais de gnese inconsciente, bem como da apatia animalesca,
derivada do atrofiamento do inconsciente (GIBIAN, 1955, p. 376-7).
Apesar de tantas possveis aproximaes, os crticos se mostram cautelosos em falar
de uma influncia do pensamento de Carus sobre Dostoivski. Frank reconhece no interesse
do romancista pela Psyche de Carus uma tendncia permanente de seu pensamento. Para ele,
Dostoivski conservar para sempre vida curiosidade por obras eruditas que, ao mesmo
15
tempo em que demonstram pleno conhecimento e domnio das ltimas teses da cincia
moderna e da filosofia, persistem na tarefa de defender o idealismo e uma viso religiosa do
mundo (FRANK, 1999, p. 245). J Gibian discute a possibilidade de ambos terem chegado a
descobertas semelhantes independentemente e que Psyche tenha fortalecido as crenas de
Dostoivski sobre o funcionamento da mente humana, alm de lev-lo a desenvolver suas
idias sobre a importncia do inconsciente (GIBIAN, 1955, p. 382). Por fim, vale ressaltar
importncia da ateno dedicada por Dostoivski cincia psicolgica e sua presena na
formao tanto do Dostoivski-pensador quanto do Dostoivski-artista.
Para Ossip-Louri, por exemplo, o valor literrio das obras de Dostoivski menor
que sua importncia para a psicopatologia e a antropologia criminal15. J o neurologista
15
As obras de Dostoivski devem ser estudadas menos do ponto de vista literrio do que do ponto de vista da
psicopatologia e da antropologia criminal. Todas as formas de nevrose, epilepsia, obsesso, degenerescncia so
apresentadas. (OSSIP-LOURI, 1905: 180). Neste trabalho, todas as citaes de textos em lngua estrangeira
sero apresentadas com minha traduo.
16
17
De modo que a proposta freudiana consiste em fazer uma anlise do autor, sem
pretenses a compreender seu gnio literrio ou sua obra. No obstante, verificam-se
tentativas de aproximao do texto dostoievskiano to comprometidas com a interpretao de
um sujeito psicanaltico que, para encontrar tal sujeito, no hesita coloc-lo no div e
identificar-lhe desejos incestuosos e homossexuais, como faz Florance no artigo The
neurosis of Raskolnikov (FLORANCE, 1961, p. 57-76).
Discusses posteriores acerca da literatura dostoievskiana esforaram-se para garantir
uma maior autonomia ao campo esttico e trabalhar com o texto literrio sem forar o
estabelecimento de relaes entre fatos da vida do autor e o contedo de sua obra. Belknap,
por exemplo, afirma:
19
Uma forma de negao mais radical dessa leitura do romance como pronturio aparece
na completa rejeio da psicologia como elemento significativo do texto literrio. Wellek e
Warren (1962), nas derradeiras linhas de seu captulo sobre Literatura e Psicologia, afirmam
categoricamente a prescindibilidade desta cincia arte, j que aquela, em si mesma, no tem
qualquer valor artstico16. Ainda que reconhea a possibilidade de a psicologia ter aguado a
capacidade de observao do artista, ela em si prpria [...] apenas preparatria do ato de
criao; e, na obra em si prpria, a verdade psicolgica s ter valor artstico se realar a
16
20
coerncia e a complexidade: numa palavra, se for arte (WELLEK & WARREN, 1962, p.
111). Tal separao intransigente entre forma e contedo foi questionada por Todorov,
quando faz a seguinte afirmao sobre a crtica dostoievskiana:
Chega-se, desse modo, a um impasse quanto maneira de se olhar uma obra como a
de Dostoivski sem pecar contra sua complexidade e riqueza esttica, por um lado, e a fora
de seus debates ticos e contedos psicolgicos, por outro. Em meio a essa polmica, o
presente trabalho pretende resgatar a contribuio do psiclogo Liev Seminovitch Vigotski
(1896-1934), por considerar que sua proposta oferece uma alternativa aos psicologismos
desatentos questo esttica.
21
Para destacar a pertinncia do dilogo entre arte e psicologia, o estudioso lembra que
impossvel comentar uma obra sem fazer meno a processos psicolgicos (LEITE, 2002,
27), uma vez que os grandes autores foram homens de seu tempo e de seu grupo; todavia,
nesse tempo e nesse grupo descobriram e revelaram dramas permanentes de nosso esprito e
nossa carne (LEITE, 2002, p. 31). Ainda sobre o aspecto universal da arte, afirma:
[...] se a arte se reduzisse aos seus aspectos sociais, teria apenas o sentido de
luta, no momento de seu aparecimento, ou de documentrio, depois da
superao das condies em que nasceu. Se continua viva como obra de arte,
isso se deve, entre outra coisas, ao fato de exprimir, alm das condies sociais
em que apareceu, uma condio humana, valida em situaes muito diversas.
(LEITE, 2002, p. 32)
campo da psicologia, uma vez que foi escolhido como tema da tese de livre-docncia do
estudioso brasileiro em 1964. Alm disso, como poder ser verificado mais adiante, suas
idias, ou pelo menos a orientao que d ao debate, no se encontra de todo distante das
elaboraes de Vigotski, desenvolvidas ainda nas primeiras dcadas do sculo XX17.
O
projeto
vigotskiano
procurou
reconciliar
as
tendncias
psicolgicas
antipsicolgicas da esttica. Para ele o psiquismo do homem social visto como subsolo
comum de todas as ideologias de dada poca, inclusive da arte. Com isso se est
reconhecendo que a arte, no mais aproximado sentido, determinada e condicionada pelo
psiquismo do homem social (VIGOTSKI, 2001, p. 11). Assim, a necessidade da psicologia
para compreenso da arte consiste em que, para Vigotski, ela sistematiza um campo
totalmente especfico do psiquismo humano: o campo dos sentimentos (VIGOTSKI, 2001, p.
12), da decorre sua definio de arte como tcnica social dos sentimentos (VIGOTSKI, 2001,
p. 3)18. Talvez a principal marca da proposta de Vigotski seja sua sofisticada compreenso da
forma artstica como indissocivel do material, a qual foi assimilada dos tericos das artes das
vanguardas soviticas do incio do sculo XX. Alex Kozulin traa um excelente panorama do
pensamento vigotskiano acerca da psicologia da arte, ao identificar suas razes na tradio
filosfica hegeliana, em Potiebni, nos simbolistas, formalistas e outras correntes de
vanguarda nas artes. Os textos de Vigotski sobre arte fazem ecoar a concepo de funo
potica da linguagem literria de Eikhenbaun, o estranhamento e a distino entre fbula e
enredo, de Chklvski. No s ecoam como apresentam sugestivos debates com essas idias.
17
Carvalho (2007, p. 58-9) reconhece ainda outra possibilidade comparativa em Frayze-Pereira, particularmente
no que se refere s idias de Vigotski sobre arte e psicanlise, conforme elaboradas no captulo 4 de Psicologia
da arte.
18
Essa assuno de Vigotski encontra respaldo nas palavras de Alfredo Bosi: A cultura, porque trabalho e
projeto, transforma, conservando, o mpeto que levaria efuso imediata dos afetos. Assim sendo, como poderia
ser translcido o resultado de um percurso cuja natureza lembra menos a rota batida que o labirinto? (BOSI,
2003, 461-2). Ao dizer isso Bosi est defendendo a necessidade de interpretao do texto literrio, pois que este
no transparente. Assim defende que Refazer a experincia simblica do outro, cavando-a no cerne de um
pensamento que teu e meu, por isso universal, eis a exigncia mais rigorosa da interpretao. (BOSI, 2003, p.
479).
23
Tal mtodo foi denominado por Vigotski de objetivamente analtico, pois prev que o
estudioso recorra mais amide precisamente a provas materiais, s prprias obras de arte, e
com base nelas recriar a psicologia que lhes corresponde (VIGOTSKI, 2001, p. 26). O
interesse central de Vigotski a reao esttica. Sua proposta metodolgica tem em vista a
investigao dessa reao, pois que, para ele, o interjogo entre forma e contedo funciona
como estmulo que suscita uma resposta. Assim, o sentido de seu mtodo foi descrito, pelo
prprio autor, da seguinte maneira: da forma da obra de arte, passando pela anlise funcional
dos seus elementos e da estrutura, para a recriao da resposta esttica e o estabelecimento de
suas leis gerais (VIGOTSKI, 2001, p. 27). Desse modo, considera como principal axioma da
psicologia da forma artstica o fato de que s em sua forma dada a obra de arte exerce seu
efeito psicolgico (VIGOTSKI, 2001, p. 40, grifo do autor). E esse efeito esttico, na
medida em que se diferencia das emoes do cotidiano, no derivadas do contato com a arte.
Vigotski lembra que, para os formalistas, a psicologia do personagem deve ser
considerada apenas como material, isto , o material psicolgico, dado de antemo,
artificial e artisticamente reelaborado e enformado pelo artista em correlao com sua meta
esttica (VIGOTSKI, 2001, p. 61-2), de modo que o formalismo se constituiu como teoria
24
particular que deles se faz (BERNARDINI, 1993, p.11). Tambm Boris Schnaiderman, em
prefcio a Leonid Grossman (1967), trata da transformao da concepo de forma entre os
tericos formalistas, ao afirmar que esta noo evoluiu passando a ser considerada como
uma integridade dinmica e concreta, conforme expresso de Iri Tinianov (1967, p. 5).
Alm do dilogo com as concepes formalistas, Vigotski recorre formulao
schilleriana de forma viva, descrita na Carta XV de suas Cartas sobre a educao esttica da
humanidade:
A reao esttica, estudada por Vigotski, resultado da ao dessa forma viva, que,
pela tenso causada entre material e forma, proporciona a experincia do belo. Voltemos s
palavras de Alex Kozulin, que, com grande poder de sntese, elabora um esquema da
experincia esttica:
26
Em seguida faz uma anlise do texto Leve alento (Legkoe dikhanie) de Ivan
Bnin, em que busca compreender as relaes entre a disposio cronolgica dos
acontecimentos (fbula) e a disposio artstica elaborada por Bnin (enredo), de modo a
estabelecer a anatomia e a fisiologia da obra, isto , devemos perguntar para que o autor
enformou assim esse material, por que, com que objetivo secreto ele comea pelo fim e
termina como se falasse do incio, com que finalidade ele deslocou todos esses
acontecimentos (VIGOTSKI, 2001, p. 188). Conclui de forma semelhante anlise anterior
ao afirmar que na obra de arte h sempre certa contradio subjacente, certa
incompatibilidade interna entre o material e a forma, [...] o autor escolhe como que de
propsito um material [...] que resiste com suas propriedades a todos os empenhos do autor no
sentido de dizer o que quer. (VIGOTSKI, 2001, p. 199). J a anlise de Hamlet mais
19
Embora em A tragdia de Hamlet, prncipe da Dinamarca ele tenha denominado seu mtodo de crtica do
leitor, a qual no se alimenta de conhecimento cientfico ou de pensamento filosfico, mas de impresso
artstica imediata. uma crtica francamente subjetiva, que nada pretende, uma crtica de leitor (VIGOTSKI,
1999, p. XVIII), esta no se distancia completamente do mtodo objetivamente analtico, pois compartilha
algumas de suas principais caractersticas: no recorre biografia do autor, no se preocupa em refutar as idias
de outros crticos, e procura deixar a obra falar (VIGOTSKI, 1999, p. XIX-XXXIX). De acordo com Kozulin o
pano de fundo intelectual deste estudo inclui alm de Shakespeare, a anlise de James sobre a experincia
mstica, trabalhos crticos dos simbolistas russos, escritos filosficos de Liev Chestov e Valdmir Soloviv e os
romances de Dostoivski. O que se observa na passagem de um mtodo para outro uma tentativa de superar
certo subjetivismo da primeira proposta que se expressa na seguinte afirmao a arte nunca poder ser
explicada at o fim a partir de um pequeno crculo da vida intelectual, mas requer forosamente a explicao de
um grande ciclo da vida social (VIGOTSKI, 2001, p. 99) , bem como uma significativa ampliao de
interlocutores tericos. O pano de fundo intelectual se amplia para instaurar um importante dilogo com os
formalistas e a psicanlise.
27
complexa, pois, para ela, Vigotski elenca trs elementos: as fontes de que Shakespeare lanou
mo e a enformao inicial que ele deu ao mesmo material; a fbula e o enredo da prpria
tragdia; e as personagens. Observa que esses elementos esto em contradio na tragdia,
isto , esto orientados em vrios sentidos, mas unificados na figura do heri (VIGOTSKI,
2001, p. 244-5).
A literatura dostoievskiana, especificamente, comentada por Vigotski apenas aqui e
ali. Em sua sntese final de Psicologia da arte (no captulo Psicologia da arte), por exemplo,
Vigotski aborda o modo dinmico pelo qual os caracteres dos personagens so desenvolvidos.
Cita como exemplo os heris de Dostoivski: Sempre encontramos essa contradio interna
nos romances de Dostoivski, que se desenvolvem simultaneamente em dois planos um
mais baixo e um mais elevado onde assassinos filosofam, os santos vendem o corpo nas
ruas, os parricidas salvam a humanidade, etc. (VIGOTSKI, 2001, p. 292). Em A tragdia de
Hamlet, prncipe da Dinamarca, o autor faz inmeras referncias a personagens
dostoievskianos nas notas de rodap, chegando a estabelecer um paralelo direto entre Hamlet
e Rasklnikov, j que ambos estariam submetidos ao automatismo trgico, isto , alguma
coisa de fora deste mundo est no que ocorre, uma luz especial de fora deste mundo satura
todo o romance [Crime e castigo] como satura Hamlet (VIGOTSKI, 1999, p. 227).
No presente trabalho, pretende-se resgatar a proposta vigotskiana, como uma via para
colocar arte e psicologia efetivamente em dilogo. Para tanto, se fez necessrio um
aprofundamento acerca dos procedimentos literrios dostoievskianos presentes em Crime e
castigo, por meio de uma investigao de estudos crticos desta obra. Tal investigao ser
importante para ampliar as possibilidades interpretativas do texto, mas, de modo algum,
sobrep-lo. Seguindo a metodologia objetivamente analtica, a crtica ser tomada como ponto
de dilogo, sendo que o trabalho em si consistir na anlise do protagonista do romance em
28
suas relaes com outros personagens. Tem-se em vista que nessas relaes Rasklnikov
desvelado como carter dinmico.
29
3. Anlise
Neste captulo ser apresentada a anlise do romance, a qual foi subdividida para uma
contemplao mais focalizada da relao entre Rasklnikov e cada personagem. A
apresentao desses subitens respeita mais ou menos a ordem de aparecimento dos
personagens no romance, isto , Marmieldov, Razumkhin, Ljin, Porfri Pietrvitch,
Svidrigilov e Snia. A nica exceo a esse critrio a anlise de Snia, que foi colocada ao
final por estar intimamente ligada ao texto subseqente, ou seja, s consideraes sobre o
eplogo. Cada item ser precedido por uma ilustrao do artista Chmarinov (cf. referncias
bibliogrficas)20. Todas as citaes de Crime e castigo utilizadas no presente trabalho sero
retiradas da seguinte edio brasileira: DOSTOIVSKI, F. M. Crime e castigo. Traduo
Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34, 2001. No corpo da dissertao, a seguir do trecho
citado, ser colocada a pgina correspondente dessa edio. Para o texto original em russo, foi
consultado o sexto volume das Obras Completas Reunidas em Trinta Tomos. As citaes
desta edio sero seguidas pela sigla PN e pela pgina correspondente.
20
As ilustraes foram gentilmente disponibilizadas pelo professor No Silva, do curso de russo da USP.
30
31
32
21
O termo utilizado no original (PN, p. 12) tem sua raiz na palavra (alma), assim como
o adjetivo escolhido na traduo para o portugus animado" (do latim anima, alma).
22
A contradio ainda mais flagrante pela contigidade, no original, dos termos (inteligncia) e
(loucura, literalmente, sem inteligncia), cf. PN, p. 12.
33
Logo no incio dessa confisso, Marmieldov explicita suas impresses: [...] embora
a sua aparncia no seja das melhores, mesmo assim minha experincia distingue no senhor
um homem culto e sem hbitos de beber. (p. 29). importante observar que Marmieldov
vai alm do que a aparncia suscita; ele confia em sua experincia, naqueles seus pequenos
olhos escondidos sob plpebras inchadas. J neste momento, ele aparece inserido no campo
do emprico, do saber derivado da vida e no de abstraes (Experincia, meu caro senhor,
experincia em cima de experincia! p. 29), entretanto no se trata de um empirismo raso,
mas da vivncia que leva alm das aparncias, em direo de algo mais profundo. E
justamente nesse universo que Rasklnikov se propusera adentrar quando, desejoso de contato
humano, enfiou-se naquela taberna.
Tratando de si mesmo, Marmieldov no se desculpa por sua condio, no a justifica
com explicaes exteriores:
Meu caro senhor retomou ele em tom quase solene pobreza no defeito, e
isto uma verdade. Sei ainda mais que bebedeira no virtude. Mas a misria,
meu caro senhor, a misria defeito. Na pobreza o senhor ainda preserva a
nobreza dos sentimentos inatos, j na misria ningum o consegue, e nunca. Por
estar na misria um indivduo no expulso a pauladas, mas varrido do
convvio humano a vassouradas para que a coisa seja mais ofensiva; o que
justo, porque na misria eu sou o primeiro a estar pronto para ofender a mim
mesmo. Da o botequim! (p. 30)
Cf. Belov (1985, p. 62). O seguinte comentrio acerca da pea de Ostrvski explicita a intertextualidade da
passagem: A bondade a pedra de toque pela qual Ostrvski testa o carter, e ela pode estar escondida mesmo
sob um exterior bbado e degradado. O patife, Liubim Tortsov, tem uma forte alma russa e, ao final da pea,
desperta seu inflexvel e ganancioso irmo, o qual havia se deslumbrado pela paixo de imitar modas
estrangeiras, para seu valor nativo russo. (NOYES, 2006, p. 13). Para Apollon Grigriev, crtico russo prximo
de Dostoivski e tambm defensor do ptchvienitchestvo, as peas de Ostrvski so o melhor exemplo de uma
nova arte viva enraizada na realidade russa (cf. BILLINGTON, 1970, p. 752).
35
mais dois rapazes riem, provocando a seguinte reao de Marmieldov: No nada! Esses
sinais com a cabea no me perturbam, porque tudo j do conhecimento de todos e tudo o
que estiver encoberto ser revelado; e no com desprezo mas com humildade que considero
tudo isso. Assim seja! Assim seja! Eis o homem! (p. 31, grifos nossos). Nas expresses
destacadas, como aponta Belov (1985, p. 65), tem-se duas citaes bblicas (Marcos 4, 22 e
Joo 19, 5), cuja finalidade criar um tom proftico e elevado ao que dito. Marmieldov
demonstra estar plenamente consciente de como o outro o v, espera dele a pior das
apreciaes (chega a perguntar a Rasklnikov: [...] ousaria o senhor, olhando nesse
momento para mim, afirmar que eu no sou um porco? p. 31). Partindo desse
reconhecimento, ele aponta para uma realidade superior, representada pela vinda do Cristo
redentor (cf. apontam as citaes bblicas).
A confisso de Marmieldov revela seu ntimo, suas necessidades mais primordiais.
Nesse sentido, sua justificativa para a bebedeira bastante explcita: [...] na bebida que
procuro a compaixo e o sentimento. No a alegria, mas somente a dor que procuro... Bebo,
porque quero exclusivamente sofrer! (p. 32). Tal declarao, alm de explicitar as foras que
o impulsionam, traz tona um dos pontos mais fundamentais de aproximao entre esses
personagens. Com efeito, Marmieldov observa que foi a dor que o levou a travar contato
com Rasklnikov:
Assim, observa-se em ambos a presena da dor, particularmente de uma dor autoinfligida. Trata-se de um impulso em direo ao que pode haver de mais baixo e vil no ser
humano. No obstante, coexiste outro impulso no sentido do sentimento e da imagem da
36
No item 3.5, que analisa o par Svidrigilov/Rasklnikov, h um comentrio acerca da importncia do conceito
de obraz (imagem) em Dostoivski, o qual se faz presente na raiz do adjetivo obrazovanni (culto, educado).
37
Eastman (1955, p. 143-144) divide a cena com Marmieldov em seis partes que
alternam, de modo antinmico, momentos positivos e negativos. Primeiramente, ele descreve
sua unio Catierina por compaixo. Em seguida, trata de sua decadncia, da perda do
emprego e da prostituio da filha. Posteriormente, Marmieldov conta como sua vida se
transformou milagrosamente e toda ordem foi restabelecida quando conseguiu seu emprego
de volta. Pouco depois ele rouba o que restara do dinheiro recebido, gasta bebendo e ainda vai
Snia tirar-lhe os rendimentos que deveriam sustentar Catierina e os filhos. Por ltimo, ele
expe sua viso do perdo divino, da redeno dos pecadores. Na cena seguinte, aps revelar
suas aspiraes de remisso, explicita-se, j em casa com Catierina, seu rebaixamento fsico, o
castigo corporal do qual se diz desejoso.
Vale comentar novamente as ocorrncias pontuais, porm significativas, do riso ao
longo da cena na taberna. Como j foi dito, a narrao de Marmieldov entremeada pelo riso
dos ouvintes (jamais de seu interlocutor). Ele aparece em momentos de tenso e funciona
como uma reao de descarga diante da incongruncia. A primeira ocorrncia se d quando
ele fala do ofcio de sua filha. A audincia de Marmieldov aumenta com a chegada de novos
38
clientes taberna, no momento eufrico em que ele trata da reconquista do emprego. Seguese um momento de desorientao A taberna, a aparncia de viciado, as cinco noites passadas
nas lanchas de feno, aquela garrafa, e mais o amor mrbido pela mulher e pela famlia
desorientavam o ouvinte (p. 37). At esse ponto o ar de Marmieldov grave, seu tom
srio: Senhor meu, tudo isso pode servir de riso para o senhor e os demais, eu s fao
incomod-lo com a bobagem de todos esses detalhes miserveis da minha vida familiar, s
que para mim no motivo de riso! (p. 37). Sua narrao atinge um ponto importante
quando ele conta como ps tudo a perder roubando o dinheiro do ba de Catierina, e, quando
este acabou, indo casa de Snia em busca de mais dinheiro. Ento Marmieldov, o qual,
segundo Spiegel (2000, p. 48), quase nunca ri, solta uma gargalhada:
39
Num nvel simblico, ele volta a focalizar a percepo do leitor sobre o nmero
trs e o tema de Judas25. Alm disso, carrega aspectos subjetivos, psicolgicos,
pois proporciona a Marmieldov alguns momentos de alvio durante um perodo
de estresse emocional e tormenta mental extraordinrios, ainda que o alvio
obtido seja infernal e seu riso seja sem alegria. Por fim, mas no menos
importante, sinaliza sua sbita percepo de uma incongruncia descendente: a
compreenso de que, ao convidar Snia para sustentar seu alcoolismo hbito
este que em primeiro lugar criara a necessidade dela vender-se ele perverte o
propsito original e nobre de seu sacrifcio. (SPIEGEL, 2000, p. 98)
25
Spiegel analisa o paralelo existente entre o enredo envolvendo Marmieldov e aquele da traio de Judas por
meio da simbologia do nmero trs, associado a ambas as narrativas: O comeo da carreira de Snia como
prostituta particularmente significativo, pois Dostoivski escolheu fixar o preo de sua virgindade em trinta
rublos de prata (p. 35). Esta soma simblica refere-se ao dinheiro pago a Judas por sua traio a Jesus: trinta
moedas de prata (Mateus, 26:15). No coincidncia que no s as quantias, mas tambm sua composio
metlica sejam idnticas. (SPIEGEL, 2000, p. 97). Jean-Louis Backs (1994, p. 108), Johnson (1985, p. 127-8)
e Belov (1984, p. 70) tambm desenvolvem essa intertextualidade entre a narrativa dostoievskiana e a bblica.
Belov lista ainda uma srie de outras ocorrncias do nmero trs no romance.
40
alheia. Contudo, ao colocar-se nesse lugar de rebotalho da sociedade, ele acaba por desafiar o
outro a apiedar-se de sua condio, fato que reforado pelo seu discurso posterior acerca da
remisso dos pecados por um Deus misericordioso. Primeiramente Rasklnikov afetado e
responde a este apelo ao doar suas moedas de cobre, ato revelador de sua sensibilidade. Em
seguida, ele reage ao riso de Marmieldov repetindo suas palavras e seqestrando-as, de tal
modo que elas percam sua funo inicial e passem a servir para afast-lo dessa postura
piedosa. Ainda que as finalidades sejam opostas, o mecanismo o mesmo: o riso provoca o
distanciamento necessrio para que o falante no se reconhea no fato relatado, isto , no caso
de Marmieldov ele consegue se distinguir daquele sujeito cruel que rouba os ltimos
copeques da filha prostituda para depois dar vazo s suas mais profundas idias sobre a
misericrdia divina. J no caso de Rasklnikov tem-se o rechao da atitude filantrpica e o
reconhecimento da suposta canalhice humana, a qual, em ltima instncia, justifica a teoria
que leva ao crime. De modo que, o riso e a ironia que em um serve de transio para as idias
de redeno, no outro serve de mote para racionalizao e afastamento dessas mesmas idias.
Mais adiante, tem-se outra passagem em que Rasklnikov faz eco s falas de
Marmieldov, retirando-as de seu contexto original e, assim, ressignificando-as:
Compreende, ser que compreende, meu caro senhor, o que significa no ter mais para onde
ir? lembrou-se num timo da pergunta feita ontem por Marmieldov , porque preciso que
toda pessoa possa ir ao menos a algum lugar... (p. 61). Originalmente essa frase dita por
Marmieldov (p. 33) referindo-se s circunstncias nas quais sua esposa, Catierina Ivnovna,
aceitara casar-se com ele. J Rasklnikov, ao retomar a frase, est perturbado pelas notcias
trazidas pela carta de sua me, Pulkhria, em particular com a deciso de sua irm em casar-se
com Ljin sem amor, mas com vistas a salvar a famlia da runa. Tem-se um claro paralelo
entre a situao de Catierina e de Dnia, pois, numa primeira leitura, so elas que no tem
para onde ir e lanam mo das sadas matrimoniais que lhes so oferecidas. Contudo, tambm
41
Lida pelo prisma de Rasklnikov, a indagao aparece como abertura para a idia do
crime, que surge de repente, ainda que no seja nova, com fora de resoluo para os
impasses que se apresentam desde a leitura da carta. A repetio da expresso de repente
(, no original) por seis vezes nesse excerto aponta para a temporalidade do romance, isto
, para um tempo de transformaes, de crise, em que tudo est posto em questo. E
precisamente essa atmosfera do tudo pode acontecer que perpassa o clamor pela
necessidade de se ter para onde ir.
Depois de reviver o crime, visitando o apartamento da velha e ameaando ir
delegacia para resolver tudo (Parecia agarrar-se a tudo e deu um risinho frio pensando nisso,
porque certamente havia decidido sobre a delegacia e estava firmemente convicto de que
42
agora tudo iria terminar. p. 187), Rasklnikov ouve uma multido, murmrios e gritos.
Decide aproximar-se e observa que um homem acabara de ser atropelado. Ao aproximar-se
descobre que este homem Marmieldov. Assim, no exato momento em que perambulava
decidido a dar fim a sua histria, depara-se com o fim da histria do outro. O carter acidental
do acontecido com Marmieldov questionado. O cocheiro diz: Eu o avisto, est
atravessando a rua, cambaleando, por pouco no desaba grito uma vez, mais uma, uma
terceira, e a seguro os cavalos; mas ele me vai cair direitinho debaixo das patas deles! Como
se fosse de propsito, ele estava mesmo muito embriagado... (p. 188). Alm disso, a
confirmao da veracidade deste relato por outras testemunhas gera a suspeita de um suicdio
por parte de Marmieldov. Por fim, a primeira reao de Catierina ao saber da notcia
Achou o que procurava gritou Catierina Ivnovna em desespero e precipitou-se para o
marido. (p. 191) tambm deixa margem para que o ocorrido seja considerado, no
acidental, mas proposital. Essa hiptese defendida por Spiegel (2000, p. 96) e se fundamenta
na associao que o estudioso faz da figura de Marmieldov do traidor, do Judas,
particularmente pelas inmeras ocorrncias do nmero trs (e seus mltiplos) em
circunstncias ligadas ao personagem26.
Rasklnikov se envolveu ativamente no socorro de Marmieldov, e, quando j no
havia mais o que fazer, confessa a Catierina que considerava o falecido como seu amigo e
oferece vinte rublos viva. J de sada, encontra o delegado Nikodim Fomitch, que chama
ateno para o fato de Rasklnikov estar todo ensangentado. A imagem do sangue
analisada por Wasiolek como antinmica, sendo primeiramente um sinal de morte e depois
um sinal de vida (1959, p. 134). Por fim, seu estado assim descrito pelo narrador:
26
Durante o relato do atropelamento h pelo menos trs ocorrncias deste nmero: quantidade de vezes que o
cocheiro gritou para Marmieldov; Rasklnikov dando indicaes do local onde Marmieldov mora Fica aqui
perto, trs prdios depois (p. 189); e, mais adiante, ainda dando indicaes: O edifcio Kosell ficava a uns
trinta passos. (p. 189).
43
Descia a escada calmamente, sem pressa, todo febril, e, sem se dar conta,
tomado de uma sensao nova e imensa da vida plena e vigorosa que arremetia.
Essa sensao podia parecer-se com a sensao de um condenado morte, a
quem sbita e inesperadamente anunciam o perdo. (p. 198)
Esse ato espontneo de compaixo da sua parte e o contato com a pequena filha
de Marmieldov o trazem de volta vida. como se ele exorcizasse uma parte
do sonho (a morte da gua) pela expresso de outra (compaixo pela vtima).
[...] Ele volta vida ao aceitar abertamente os apelos da escolha moral, o amor,
a compaixo e a abertura para o outro. Mas ele tambm se abre para o impacto
que o outro pode exercer em sua vida emocional. (JONES, 1990, p. 84)
Embora no tenha sido capaz de salvar o corpo de Marmieldov, ele contribui para a
salvao de sua alma, trazendo-o a casa para morrer nos braos da filha e com seu perdo.
Vale lembrar que foi precisamente com o clamor por esse perdo que ele finaliza seu discurso
na taberna. particularmente significativa a comparao do estado de Rasklnikov ao de um
condenado morte. Antes de encontrar Marmieldov atropelado, Rasklnikov caminha
decidido a terminar tudo, aparentemente disposto a se entregar polcia. A oportunidade de
envolver-se nos ltimos instantes de Marmieldov aparece, na metfora do narrador, como
perdo, uma chance de resgatar-se por meio do engajamento no real e com o outro. A
possibilidade de ajudar e de ser estimado parece abrir horizontes para Rasklnikov, que
culminam na seguinte fala:
44
Uma anlise detida dessa passagem revela que aquilo que surge num crescente como
abertura de novas perspectivas na direo do contato com o outro, quase que uma antecipao
do eplogo, sofre uma sensvel transformao no sentido do fortalecimento daquelas mesmas
idias que fizeram com que ele se apartasse do outro e, em ltima instncia, o conduziram ao
crime. O elogio vida, que nasce do envolvimento com o humano (no resgate de
Marmieldov e depois na conversa com a menina Polina, filha de Marmieldov), poucas
linhas depois aparece como o elogio fora, alavancado pela necessidade da ao, a qual
pressuposta no prprio sentimento de compaixo27. De tal modo que, possvel inferir que
toda ao de Rasklnikov inclusive o crime seja, no limite, fruto desse impulso em
direo ao outro. Semelhante movimento explicitado novamente quando pede a Polina que
reze por ele, mas, logo em seguida, pensa: E pelo servo Rodion pedi, contudo, que rezasse
veio-lhe de sbito cabea , s que isso... numa eventualidade! acrescentou ele, e riu
imediatamente de sua extravagncia infantil. (p. 202). Assim, ele admite que v recorrer
misericrdia divina somente numa eventualidade, isto , implicitamente volta a apostar na
teoria dos homens extraordinrios, revelando ainda ter esperanas de que possa ser
extraordinrio e prescinda de tal misericrdia.
27
Vale lembrar que a palavra compaixo remete etimologicamente a sofrer com o outro, inclusive na lngua
russa (: - com; - sofrimento). Em relao ao aspecto ativo deste sentimento,
Abbagnano lembra que A emoo provocada pela dor de outra pessoa pode chamar-se C. [compaixo] s se for
um sentimento de solidariedade mais ou menos ativa, mas que nada tem a ver com a identidade de estados
emocionais entre quem sente C. e quem comiserado. (ABBAGNANO, 2007, p.181).
45
28
Snodgrass mostra concordncia com esta afirmao na seguinte passagem de sua anlise do romance:
Dostoivski geralmente revela as maiores verdades quando trabalha por meio de aluses e indiretas.
(SNODGRASS, 1960, p. 203).
46
29
47
Por algum motivo fizera amizade com Razumkhin. Alis, no que tivesse
feito amizade, que era mais comunicativo com ele, mais franco. Pensando
bem, com Razumkhin era impossvel outro tipo de relaes. Era um rapaz
extraordinariamente comunicativo e alegre, de uma bondade que chegava s
raias do simplrio. Alias por trs dessa simplicidade escondiam-se
profundidade e dignidade. Seus melhores colegas entendiam isso e gostavam
dele. No era nada tolo, embora s vezes fosse realmente simplrio. Tinha
uma aparncia expressiva: alto, magro, sempre mal barbeado, cabelos negros.
s vezes bancava o desordeiro e ganhava fama de forudo. Certa vez, noite,
em grupo, derrubou com um murro um guarda de uns doze vierchks de
altura. Podia beber at o infinito, mas tambm podia no beber nada; vez por
outra fazia diabruras de forma at suspeita, mas podia no fazer diabrura
nenhuma. Razumkhin era admirvel ainda porque nenhum fracasso jamais o
desconcertava e, parecia, nenhuma circunstncia ruim o deixava acabrunhado.
Podia acomodar-se at no telhado, suportar uma fome infernal e um frio
incomum. Era muito pobre e se mantinha decididamente por seus prprios
meios, ganhando algum dinheiro sabe-se l como. Conhecia o abismo das
fontes em que podia beber, naturalmente por meio do trabalho. Uma vez
passou o inverno todinho sem aquecer o quarto e afirmava que isso era at
mais agradvel porque no frio se dorme melhor. Presentemente tambm fora
forado a deixar a universidade, mas por pouco tempo, e com todas as foras
conseguiu reparar as circunstncias para poder continuar. (p. 66-7)
30
[...] o homem, seja quem ele for, sempre e em toda parte gostou de agir a seu bel-prazer e nunca segundo lhe
ordenam a razo e o interesse; pode-se desejar ir contra a prpria vontade e, s vezes, decididamente se deve
(isto j uma idia minha). Uma vontade que seja nossa, livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos,
nossa prpria imaginao, mesmo quando excitada at a loucura tudo isso constitui aquela vantagem das
vantagens que deixei de citar, que no se enquadra em nenhuma classificao, e devido qual todos os sistemas
e teorias se desmancham continuamente, com todos os diabos! E de onde concluram todos esses sabiches que o
homem precisa de no sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente,
precisa de uma vontade sensata, vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o
que custar essa independncia e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que essa vontade... (DOSTOIVSKI,
2000, p. 39)
49
perambular pela cidade, repetindo o trajeto inconsciente da ltima vez. Esconde as provas do
crime, passa novamente pelo bulevar onde encontrara a jovem que tentou salvar do assdio, e,
de repente: O que isso, pelo jeito eu vim com as prprias pernas casa de Razumkhin!
Novamente a mesma histria daquela vez... Ah, mas muito curioso: eu mesmo vim ou
simplesmente ia passando e dei uma chegada? (p. 124-5). Depois de dar aquilo que
imaginava ser o passo inicial para uma nova vida, Rasklnikov pode ir em busca do amigo
para ajud-lo a reconstruir sua trajetria. Assim ele expressa seus objetivos com a visita:
Bem, escuta: eu vim te procurar porque, alm de ti, no conheo ningum que
possa me ajudar... a comear... porque tu s o mais bondoso de todos eles, ou
seja, o mais inteligente, e podes examinar... Mas agora eu vejo que no preciso
de nada, ests ouvindo, de absolutamente nada... dos obsquios e da
colaborao de ningum... Eu me viro... sozinho... Bem, chega! Deixa-me em
paz! (p. 125)
chicoteado e ouvir os passantes rirem da situao (Ao redor, naturalmente, ouviu-se o riso.
p. 127). Para Spiegel, o encontro com carruagem na Ponte de Nicolai serve de eptome
para a histria do crime e do castigo de Rasklnikov (SPIEGEL, 2000, p. 77) e o riso do
grupo que assiste cena importante, pois
No original: ,
(PN, p. 90). Em traduo literal: Pareceu-lhe como se ele tivesse se separado com tesouras de tudo e de
todos, naquele minuto.
52
inteiramente pardo de to desbotado, cheio de buracos e manchas, sem abas e com a beira
mais feia quebrada para um lado (p. 22). Uma possvel interpretao simblica deste adorno
dada por Spiegel, quando ele associa chapu e mente, e nos permite verificar implicaes
profundas da preocupao de Razumkhin pela troca do chapu alemo por um russo.
Conforme o autor: Para essa interpretao a melhora das roupas de Rasklnikov, e de seu
chapu em particular, torna-se sinnimo de uma melhora geral de seu carter (SPIEGEL,
2000, p. 55). Alm disso, destaca-se ainda o fato do chapu anterior ser alemo:
Assim, o ato de Razumkhin o alinha com o povo da rua que rechaa o chapu
alemo de Rasklnikov, e, por conseguinte, suas idias estranhas. Para Spiegel No caso de
Rasklnikov, essa ligao entre o chapu e a cabea pode sugerir seu modo errneo de pensar:
o alvo mesmo de seus crticos e detratores (SPIEGEL, 2000, p. 54). No obstante,
importante observar a diferena entre Razumkhin e o bbado da rua: enquanto o primeiro age
de modo quase castrador32, substituindo o chapu, o segundo zomba dele, o rebaixa. Em seu
estudo sobre as dimenses do riso em Crime e castigo, Spiegel ressalta que Razumkhin um
dos poucos personagens que praticamente no ri, e justifica esse fato da seguinte forma:
32
Para Spiegel, com base em interpretaes freudianas, possvel identificar no chapu um smbolo flico e,
conseqentemente, a atitude de Razumkhin poderia ser tomada como castradora.
33
Citao de George W. Crile. The Origin and Nature of Emotions (Filadlfia, Pa. e Londres: W. B. Saunders
Company, 1915), p. 93.
54
Tais palavras fazem ressoar uma defesa insistente de uma determinada concepo
bastante complexa de ser humano, que privilegia a individualidade e a autenticidade da
experincia, em detrimento do reducionismo desta esfera do racionalismo mais estreito. No
obstante, a composio da figura de Razumkhin torna-se ainda mais complexa se lembramos
que Dostoivski derivou seu sobrenome do substantivo razum, isto , razo, em russo.
Colocado em perspectiva, este detalhe leva-nos a rever certas apreciaes crticas que
insistem em identificar em Dostoivski apologias ao irracionalismo34. A razo desrazoada de
34
56
Razumkhin deixa espao para as contradies, para uma forma de conhecimento que no se
pauta pela dicotomia certo X errado, mas que entende a ambos num processo dialtico mais
refinado, e, por isso mesmo, mais humano (ao menos no sentido moderno de humanidade).
Cada personagem em Crime e castigo demonstra uma maneira pessoal de lidar com a questo
O que a verdade?, e, a pardia feita por Razumkhin do aforismo cartesiano, encontra-se
no mago daquilo que Bakhtin nomeou como a polifonia do texto dostoievskiano. Para
Vladiv:
57
como ingenuidade da parte de Razumkhin, pode ainda derivar de hipteses mais sugestivas.
Considerando Rasklnikov como um sujeito cindido, dilacerado por duas foras que o
arrastam em sentidos opostos, possvel pensar que Razumkhin, numa opo que se pode
dizer consciente, escolhe ver a potencialidade construtiva do protagonista. Afinal,
Rasklnikov tambm, de certo ponto de vista bom. Mais adiante, j no encontro entre
Rasklnikov e Ljin, Razumkhin volta a comentar o caso da morte da velha. Para ele o
assassino: no nem astuto nem experiente, e na certa esse foi o seu primeiro passo. Imagina
um plano e um pulha astuto, e ters o inverossmil. Imagina um inexperiente, e vers que s o
acaso o salva da desgraa; e o que que o acaso no faz? (p. 163). Apesar da aparente
indiferena de Rasklnikov aos dilogos travados pelos presentes em seu cubculo, as
palavras de Razumkhin produzem nele ecos no muito claros. O amigo diz ao mdico que o
levaria ao Palcio de Cristal e ao jardim de Iusspov. Mais tarde, munido de uma grande
disposio de esprito, clamando pela vida (No importa como viver, mas apenas viver!...
p. 172), chega justamente ao Palcio de Cristal e se lembra que Razumkhin falava do
Palcio de Cristal. (p. 172).
Num novo encontro com Razumkhin, Rasklnikov reafirma sua rejeio a toda e
qualquer ajuda da parte do amigo. Aps isso, Razumkhin expressa, para si mesmo, a
desconfiana de que Rasklnikov tenha enlouquecido, fato que o leva a tentar permanecer
mais perto dele e, at mesmo, temer por sua vida (Mas e se... ento, como que vamos
deix-lo sair sozinho? possvel que se afogue... p. 181). Sua inquietao mostra-se
fundamentada logo em seguida, quando Rasklnikov, debruado na ponte do Rio Nieva, v
uma mulher tentar suicdio. Diante da cena, sentiu nojo. No, srdido... a gua... no vale
a pena (p. 183). A idia da loucura, depois Razumkhin confessa, partiu do mdico
Zssimov e, ao ver Rasklnikov comparecer sua festa, conforme havia pedido, Razumkhin
descarta tal hiptese, defendendo, ainda, que tu s trs vezes mais inteligente do que ele (p.
58
203). A relao entre medicina e loucura analisada por Backs como uma nomeao
reconfortante: Por um lado a palavra tranqiliza: estabelecer que algum louco, supor ou
simplesmente dizer isso d a impresso de termos resolvido um enigma (BACKS, 1994, p.
85). Todavia, como j revelaram as declaraes de Razumkhin, no se pode enclausurar o
homem em definies to taxativas, sob pena de se perder a complexidade. E a franqueza do
amigo toca Rasklnikov, que deixa aflorar toda a perturbao que lhe aflige:
59
Nesse sentido, Belknap observa que as relaes entre homem e mulher nos textos
dostoievskianos, quando recprocas, tendem a no se concretizar fisicamente, isto , o desejo
na obra de Dostoivski, caso seja fisicamente consumado, no correspondido, e, caso seja
correspondido, no consumado. (BELKNAP, 2002, p. 144).
Voltando questo da tcnica narrativa, observa-se uma longa passagem que
descreve o encontro de Razumkhin com Pulkhria e Dnia, do qual Rasklnikov no
participa. Ainda que o narrador no demonstre oniscincia em relao a estes personagens, ou
mesmo que esse tipo de cena se resuma praticamente apresentao dos dilogos e aes,
necessrio ressaltar que o romance no mantm exclusivamente o ponto de vista de
60
expediente. Os nicos contedos expressos por monlogo interior so o amor por Dnia e o
receio de que o amigo esteja enlouquecendo e, por isso, possa cometer algo contra si mesmo.
No obstante, de modo geral, seu raciocnio todo explicitado por suas palavras. Elabora
discursos em que explica o comportamento de Rasklnikov, geralmente justificando-o com
questes materiais, fisiolgicas, etc., fazendo com convico aquilo que o prprio
Rasklnikov se mostra incapaz de fazer. Indigna-se com o comportamento desconfiado e
arredio do juiz de instruo (Porfri Pietrvitch), e apressa-se em explicar a conduta do amigo:
Razumkhin no casual, dado o seu carter, mas provoca espanto em todos. Depois de
livrarem-se de Ljin, quando tudo parecia caminhar para uma resoluo, restavam ainda para
Rasklnikov questes essenciais a serem resolvidas. A ligao entre Razumkhin e
Rasklnikov mostra-se mais forte do que nunca:
-- De uma vez por toda: nunca me perguntes nada sobre nada. Nada tenho pra te
responder... No venhas minha casa. Eu apareo por aqui, pode ser... Deixame, mas a elas... no deixes. Ests me entendendo?
O corredor estava escuro; eles estavam parados ao lado de um lampio. Por
volta de um minuto olharam-se em silncio. Esse minuto ficou na memria de
Razumkhin pelo resto da vida. O olhar chamejante e fixo de Rasklnikov
parecia intensificar-se a cada instante, penetrando-lhe a alma, a conscincia.
Sbito Razumkhin estremeceu. Era como se alguma coisa estranha tivesse
passado entre eles... Uma idia qualquer se insinuou como se fosse uma aluso;
alguma coisa terrvel, hedionda e subitamente compreendida de ambas as
partes... Razumkhin empalideceu como um defunto.
-- Agora ests entendendo? disse de repente Rasklnikov com o rosto
distorcido por uma expresso dorida. Volta, vai para a companhia delas
acrescentou de sbito e, com uma rpida meia-volta, tomou a sada do prdio.
(p. 324, grifos do autor)
63
64
65
Uma anlise detida mostra que o texto, o qual tenta ser objetivo na descrio de Ljin,
acompanhado por um subtexto, que, por sua vez, reflete mais propriamente aquilo que a fala
da me deixa implcito. A passagem marcada por contrastes na descrio, fato que sustenta a
concluso de Snodgrass, segundo o qual debaixo da aberta defesa de Ljin, ela [Pulkhria]
66
35
Impossvel no lembrar a acidez com que o homem do subsolo fala do homem de ao: Repito, repito com
insistncia: todos os homens diretos e de ao so ativos justamente por serem parvos e limitados
(DOSTOIVSKI, 2000, p. 29)
67
Ser que entre elas todas as palavras foram pronunciadas francamente ou ambas
compreenderam que uma e outra tinham uma s coisa no corao e nos
pensamentos, de sorte que no tinham nada que dizer tudo em voz alta e dar
inutilmente com a lngua nos dentes. provvel que em parte tenha sido assim;
pela carta d pra ver: mame ele pareceu rspido, um pouquinho, e a ingnua
mame foi importunar Dnia com suas observaes. E esta naturalmente se
zangou e respondeu com enfado. Pudera! Quem no fica furioso quando a
coisa compreensvel at sem perguntas ingnuas e quando est decidido que j
no h mais o que dizer? (p. 56-7)
36
A raiz desta palavra remete ao epteto homem de ao ( ), com o qual Ljin foi descrito
anteriormente. Tambm tem sua origem em comum com o verbo fazer (). A urgncia na resposta
pergunta Que fazer? perpassa toda cultura russa do sculo XIX, a grande inquietao intelectual daquele
momento. No demais lembrar o romance de Tchernichvski (Que fazer?) e as inmeras vezes em que tal
questionamento aparece na boca de diferentes personagens literrios.
37
! (PN, p. 9). Na traduo
brasileira consultada: Eu aqui querendo me meter numa coisa dessas e com medo de bobagens! (p. 19).
38
Vide nota 31.
69
[...] Se a mim, por exemplo, disseram at hoje ama teu prximo, e eu amei, o
que resultou da? continuou Piotr Pietrvitch, talvez com excesso de
precipitao. Resultou que eu rasguei o cafet ao meio, dividi-o com o
prximo e ambos ficamos pela metade nus, seguindo o provrbio russo
Quando se caam muitas lebres ao mesmo tempo no se pega nenhuma. J a
cincia diz: ama acima de tudo a ti mesmo, porque tudo no mundo est fundado
no interesse pessoal. Se amas apenas a ti mesmo, realizas os teus negcios de
forma adequada e ficas com o cafet inteiro. J a verdade econmica acrescenta
que quanto mais negcios privados organizados houver numa sociedade e, por
assim dizer, cafets inteiros, tanto mais slidos sero seus fundamentos e tanto
mais organizada ser a causa comum. Logo, ao adquirir nica e exclusivamente
para mim, precisamente dessa forma eu adquiro como que para todos e levo a
que o prximo recebe um cafet um tanto mais rasgado, porm no mais de
favores privados isolados e sim como resultado do avano geral. A idia
simples, mas infelizmente demorou demais a ser implementada, empanada que
estava pelo entusiasmo e pelo esprito contemplativo e, pareceria, precisava-se
de um pouco de engenho para adivinhar... (p. 162)
Outro aspecto que liga o ideal de Ljin s noes que levaram Rasklnikov ao crime
consiste na posio de cada um diante dos preconceitos, conforma aponta Beebe (p. 596).
Na carta, Pulkhria define Ljin como inimigo de todos os preconceitos (p. 51). No
encontro, ele confirma a descrio ao dizer que foram erradicados e ridicularizados muitos
preconceitos nocivos (p. 161). J Rasklnikov, depois da conversa com Marmieldov, diz:
Bem, e se eu estiver equivocado [...] se de fato o homem [...] no for canalha? Quer dizer que
tudo o mais so preconceitos, simples temores estimulados, e que no existem obstculos de
nenhuma espcie, e que assim que deve ser! (p. 43). Nesses contextos, o termo preconceito
equivale s normas morais, as quais estabelecem o limite para a ao no mundo, e as mesmas
que Rasklnikov tenta ultrapassar com o crime. Alm disso, tem-se que a eliminao de tais
preconceitos se dar com base numa teoria (os homens ordinrios e extraordinrios, no caso
de Rasklnikov; a economia e a cincia no caso de Ljin). Beebe escreve sobre os trs
motivos de Rasklnikov, sendo que o primeiro deles estaria intimamente ligado a essa
duplicidade com Ljin:
70
importante ressaltar que Beebe faz, logo no incio de seu artigo, uma distino entre razo e motivo, sendo
que o primeiro consiste numa explicao consciente fornecida, antes, durante ou depois da ao pelo seu autor
ou por outrem. O segundo seria a verdadeira fora impulsionadora da ao, que , ao menos parcialmente,
inconsciente, e que pode ser compreendida somente como parte de um processo contnuo e em desenvolvimento
(BEEBE, 1989, p. 595). Para essa explicao Beebe recorre a Fredric Wertham.
71
arfando, como recentemente quando falara com Ljin (p. 180). De fato, assim podem ser
resumidas as reaes de Rasklnikov durante a cena: de primeiro indiferena, seguida da
destilao do veneno, e, por fim, uma espcie de frenesi.
Depois desse episdio, Rasklnikov pressiona a irm para terminar o noivado;
Ljin, por sua vez, escreve um bilhete pedindo para que o futuro cunhado se ausente na
ocasio de sua visita noiva. O irmo rejeita e condena o sacrifcio de Dnia, o noivo a fora
a sacrificar-se ainda mais. curioso que Dnia negue estar agindo de modo abnegado,
afirmando, ao contrrio, estou me casando simplesmente por mim (p. 242). O mesmo, mais
tarde, dir Rasklnikov a Snia: [...] eu quis matar sem casustica, matar para mim, s para
mim (p. 427). Se, por um lado, os motivos de Rasklnikov j fizeram correr muita tinta da
pena dos crticos, os de Dnia, por outro, parecem bastante claros aos olhos do irmo: Est
mentindo! [...] Bancando a orgulhosa! No quer reconhecer que sua finalidade o bem-fazer
()! (p. 242). Evidncias textuais respaldam essa interpretao, uma
vez que, na composio de sua personagem, Dostoivski tenha escolhido o prenome Avdtia,
cuja origem Evdoka (forma russa do grego ) que significa benevolncia
(). A leitura do bilhete de Ljin desperta em Rasklnikov um comentrio que
surpreende os presentes, pois o contedo em si no chega a ser questionado, mas o estilo de
sua escrita40. Segundo Rasklnikov, o texto est mal escrito e moda forense, prtica (no
original, novamente, o adjetivo ). Tal observao comunica sua percepo de Ljin
como um homem que se pretende prtico, ativo, mas que o faz sem a devida correo, e, alm
disso, com considervel artificialidade. Assim, pela anlise do estilo, Rasklnikov desvela o
carter de Ljin, isto , sua postura ameaadora e tendncia dominao por trs do discurso
supostamente polido. O acordo que ele prope para o casamento bastante diferente daquele
40
Tkhon tambm inicia seus comentrios sobre a Confisso de Stavrguin por uma crtica esttica ao seu
estilo, conforme Bakhtin (2008, p. 283). O estilo torna-se to ou mais importante do que o contedo stricto
sensu, pois revela a intencionalidade do discurso, isto , as direes, os alvos do dilogo, de forma a revelar mais
profundamente a subjetividade do falante.
72
oferecido por Svidrigilov. A unio no exigir de Dnia que ame Ljin, mas to-somente lhe
obedea. Alm disso, ela conta com a possibilidade de encaminhar a carreira de Rasklnikov.
Marchant ao comparar os dois pretendentes afirma:
73
senhor de si. Diferentemente de Rasklnikov, Ljin no sofre com a dvida quanto a ser
piolho ou Napoleo. No obstante, o paralelo entre ambos s pode ser realizado mediante a
viso interior de Ljin, dado que semelhantes confisses jamais seriam expressas to
abertamente.
Ainda segundo Rosenshield, outro aspecto realado entre esses personagens referese relao que ambos mantm com o dinheiro. Novamente, a questo da tcnica se impe:
Tambm Snodgrass atenta para a relao dos personagens de Crime e castigo com o
dinheiro. Para esse crtico, aqueles que oferecem ajuda financeira aos outros freqentemente
os prejudicam (algumas vezes de modo intencional). No caso de Rasklnikov, por exemplo,
ele
dvida quanto ao seu carter. A armadilha contra Snia arquitetada e executada logo aps
uma interessante conversa entre Ljin e Liebezitnikov. Sua anlise traz luz questes
relativas s idias utilitaristas discutidas no primeiro encontro com Rasklnikov. Se, nesse
primeiro momento, ele se diz partidrio das idias avanadas pela nova gerao, agora seu
posicionamento em relao a elas se modifica. A aproximao do leitor, promovida pela
mudana no modo da narrao, faz cair o vu que esconde a verdade de Ljin. Mesmo o
simplrio Liebezitnikov consegue perceber que Ljin no leva absolutamente a srio as
idias que ele propaga. O dilogo entre eles marcado pelo sarcasmo de Ljin, o qual se
mostra completamente indiferente alegada profundidade das noes defendidas pelo colega:
Piotr Pietrvich ria muito [...] Toda tolice estava no fato que Andrii Semenovitch
realmente se zangava. Ljin, por sua vez, se deleitava com isso e estava com uma vontade
especial de enfurecer Liebezitnikov (p. 382). A maneira de fazer uso do riso, conforme
Spiegel, fornece indicaes sobre a caracterizao de um personagem. Assim, o crtico
estabelece a seguinte comparao: Enquanto Svidrigilov e Porfri tendem a rir de modo no
salutar, injurioso e ofensivo, eles pelo menos exibem certa inteligncia, conscincia moral e
senso de humor. Ljin, por outro lado, no possui nenhum desses traos redentores.
(SPIEGEL, 2000, p. 43).
Ljin convoca Snia para uma conversa testemunhada por Liebezitnikov em que
lhe oferece uma nota de dez rublos e, sorrateiramente, coloca em seu bolso uma nota bancria
de cem rublos. Liebezitnikov aprova o ato filantrpico de Ljin, ainda que isso contrarie
suas prprias teorias. Mais tarde, ele quem desmascara a farsa montada por Ljin para
acusar Snia de roubo, e, ento, prontifica-se para dar seu testemunho em juzo, novamente
contrariando suas convices. Desse modo, Liebezitnikov demonstra ter uma sensibilidade
ao humano que extrapola o fanatismo ideolgico. Ljin, por seu turno, no capaz de
nenhuma dessas aberturas: no sai de si mesmo para aderir a uma teoria, nem apresenta
77
No original: -. , --, , ,
, , , . (PN, p. 287).
78
digna de nota a declarao de Marmieldov, segundo a qual [...] o senhor Liebezitnikov, em dia com as
novas idias, explicou h pouco que a compaixo em nossa poca est proibida at pela cincia e que j assim
que se procede na Inglaterra, onde existe a economia poltica. (p. 31)
43
No original: , , , ,
. [...] , (PN, p. 305).
79
(TODOROV, 1980, p. 145). O teatro de Ljin faz despertar em Rasklnikov uma necessidade
de restabelecer a justia e uma disposio rara para ele na maior parte do romance. Alm
disso, a situao precipita a aproximao entre Rasklnikov e Snia, bem como a prpria
confisso do crime a ela:
Desse modo, apesar dos possveis pontos de contato entre Rasklnikov e Ljin
apontados no incio, verifica-se que a explicitao do funcionamento do ltimo provoca
repulsa do primeiro e desperta nele um ativismo que permanecera enterrado, atrofiado sob
uma montanha de elucubraes. Entretanto, essa repulsa no o distancia do pensamento
utilitrio, mas faz com que ele se aproxime ainda mais dele. A existncia de algum como
Ljin, que desconsidere absolutamente o outro em favor dos prprios interesses, e que, com
isso, se aproveite de criaturas dceis e desamparadas como Snia e sua famlia, colocando-as
em risco, justifica para Rasklnikov o assassinato. Observou-se, acerca do primeiro encontro,
que ambos estavam de acordo quanto necessidade de superar os preconceitos morais e que
defendem a necessidade do corte do cordo umbilical com esses preconceitos. No obstante,
cada qual tem uma leitura particular e bastante diferente entre si dessas mesmas idias.
Rasklnikov as leva s suas ltimas conseqncias tal pensamento lhe confere o direito ao
assassinato. Ljin no chega a dar esse passo, porm, isso no impede que ele possa ser
considerado um dos personagens mais negativos do romance. Nele no h registro daquelas
80
81
82
Porfri mencionado pela primeira vez por Razumkhin, quando este enumera os
convidados recepo que dar por ocasio de sua mudana de apartamento. A meno vem
acompanhada da informao de que se trata do juiz de instruo local, ex-aluno da Escola de
Direito e parente distante de Razumkhin. Ficamos sabendo ainda que ele j se desentendera
com o mdico Zssimov. A seguir, ao comentar o desenrolar da investigao sobre a morte da
usurria e de Lisavieta, Razumkhin, mesmo afirmando que respeita Porfri, critica
veementemente o envolvimento de um pintor como suspeito no caso, alegando que aqueles
que o acusam no sabem explorar adequadamente os fatos e no levam em conta os dados
psicolgicos. Embora essa passagem possa dar margem a que Porfri seja considerado um juiz
de pouca percia, esse julgamento prematuro ponderado no momento em que Razumkhin
afirma acreditar ter sido um fregus de penhor que matara Alina e que Porfri no revela o
que pensa, mas mesmo assim est interrogando os empenhadores... (p. 163). Assim, ele
passa a aparecer como um sujeito misterioso, cujas intenes no so totalmente explcitas, e
que provavelmente no est totalmente convencido da hiptese de que o autor do duplo
homicdio seja o pintor. A seguir, Razumkhin conta que o juiz de instruo est querendo
conhecer Rasklnikov, isso se d na ocasio em que eles discutem a suspeita levantada por
Zamitov de que Rasklnikov esteja louco, isto , Porfri reaparece no dilogo em meio a uma
atmosfera de acusao, ao lado daqueles que desconfiam de sua sanidade. Mais tarde, numa
conversa com Zssimov, Razumkhin volta a falar das suspeitas que recaem sobre
Rasklnikov; o assunto desta vez a cena em que Rasklnikov faz insinuaes para Zamitov
sobre quem teria cometido os crimes. Aqui acrescentada a informao de que Porfri toma
conhecimento deste episdio.
A prxima meno Porfri feita pelo prprio Rasklnikov, quando ele diz a
Razumkhin que gostaria de reaver os objetos que empenhara com Alina. Ainda que fosse
83
possvel ir delegacia declarar os objetos, ele prefere um encontro direto com o juiz. No
caminho, Razumkhin descreve Porfri:
A esse tambm vai ser preciso entoar o cntico de Lzaro44 pensava ele
empalidecendo e com o corao a bater e cantar com naturalidade. O mais
natural seria no cantar nada. No cantar nada forado! No, forado seria outra
vez no natural... Ora, bolas, l a gente d um jeito... l a gente v... nesse
momento... ser bom ou no eu estar indo? A prpria mariposa voando contra a
vela. O corao est batendo, e isso que no bom!... (p. 256)
44
Conforme Belov: A expresso Cntico de Lzaro surgiu do Evangelho, da parbola sobre o mendigo
Lzaro, que ficava no porto de um homem rico e ficaria feliz em se satisfazer com as sobras que lhe cassem da
mesa. Antigamente mendigos invlidos, que imploravam por caridade, cantavam versos espirituais, mais
freqentemente versos sobre o pobre Lzaro, criados a partir do enredo evanglico. Tais versos eram cantados
em forma de lamentao e em tom melanclico. Da vem a expresso entoar o cntico de Lzaro usado no
sentido de queixar-se do destino, chorar, fingir-se infeliz e pobre. (BELOV, 1985, p. 149).
84
45
Tambm Johnson recorre a esta etimologia para ressaltar a importncia do juiz de instruo: H uma
suposio quase universal entre os crticos de que Porfri ajuda a guiar Rasklnikov regenerao espiritual. [...]
Assim, assume-se que Rasklnikov pode passar sem ele tanto quanto sem Snia. Porfri, como seu nome indica,
veste a cor prpura, o manto da autoridade suprema teocrtica do Imprio Bizantino, e, cedo ou tarde, a maioria
dos leitores tem de reconhecer isto. (JOHNSON, 1985, p. 76)
46
Como lembra Breschinski, Porfri Petrovitch o nico personagem importante de Crime e castigo que no
recebe sobrenome. Isso indica no apenas o isolamento de sua funo no romance e o mistrio fundamental de
sua imagem, que no revelada at o final, mas tambm a intimidade e espontaneidade da representao de
Porfri, que no precisa do estabelecimento de laos familiares. (Breschinski apud BELOV, 1985, p. 124-5).
85
Essa cena apresenta paralelo direto com aquela dos dois pintores saindo do prdio da
usurria momentos depois do crime ter sido cometido. Anteriormente esse episdio
comentado por Razumkhin47, quando este diz no acreditar que o crime possa ter sido
cometido por Nicolai, dada sua impossibilidade psicolgica para tal, de modo que o estado de
esprito do pintor configuraria prova irrefutvel de sua inocncia, a despeito dos indcios
materiais que contra ele depem. Entretanto, preciso lembrar que Razumkhin atenta para o
fato de Porfri seguir o mtodo das provas materiais, mais slido do que o universo pantanoso
da psicologia. Logo depois da primeira troca de palavras entre Rasklnikov e Porfri, tem-se a
descrio fsica do juiz:
47
Cf. a seguinte passagem da fala de Razumkhin em sua conversa com Zssimov: Agora observa com rigor
para ti mesmo: l em cima os corpos ainda esto quentes, ests ouvindo? Quentes, e assim foram encontrados!
Se os dois mataram, ou Nicolai sozinho, e aproveitaram para saquear o ba quebrando-o, ou apenas participaram
de alguma forma do saque, ento de que eu te faa s uma pergunta: semelhante estado de nimo ou seja,
ganidos, gargalhadas, briga de meninos no porto combina com machados, com sangue, com a astcia vil, com
cautela, com roubo? (p. 153)
86
srio. Alm disso, os pestanejantes clios quase brancos e o brilho aquoso ofuscam o olhar e
reforam a imagem misteriosa de Porfri. As constantes piscadelas percebidas todo tempo por
Rasklnikov condensam a ambivalncia de sua imagem, pois tal ato revela, ao mesmo tempo,
sua jocosidade e mistrio (seguindo a metfora da janela para a alma, tem-se que esta aparece
semicerrada). Ao relatar seu caso ao juiz, Rasklnikov reala sua dificuldade financeira,
levando a cabo o plano de entoar o cntico de Lzaro. A reao de Porfri, inicialmente, foi de
indiferena, mas, diante da insistncia do visitante, Porfri olhou para ele com um qu de
galhofa, apertando os olhos como se piscasse para ele (p. 260). A partir daqui o pesadelo
persecutrio de Rasklnikov se intensifica e ele passa a ouvir acusaes em tudo o que dito:
[...] no querem nem esconder que esto me seguindo como uma matilha e ces! Por isso me
cospem to francamente nas fuas! tremia de fria. Vamos, batam direto, mas no fiquem
brincando de gato e rato (p. 163). Na presena de Porfri, o drama da conscincia de
Rasklnikov vive momentos intensos. O agir dissimulado, o tom farsesco, a linha tnue que
separa realidade e delrio so as marcas da relao entre esses personagens. O que se torna
flagrante desse ponto em diante que Rasklnikov, que chega ao encontro do investigador
como autor e protagonista do teatro que ir enred-lo, torna-se ele mesmo o espectador que
no sabe mais onde comea ou acaba a fico.
A seguir tem-se o desdobramento de um debate iniciado na festa de Razumkhin sobre
o tema existe ou no o crime? (p. 265). discutido o papel do meio, isto , do ambiente
social, na ocorrncia de crimes. Razumkhin se posiciona francamente contrrio hiptese de
que o indivduo seja vtima de seu meio e chama ateno para o papel da natureza, que pode
ser traduzido pela histria viva ou o processo vivo da vida, uma vez que A alma viva exige
vida, a alma viva no obedece mecnica, a alma viva desconfiada, a alma viva
retrgrada! (p. 265). No debate, Porfri se alinha queles que defendem o papel do meio
(No, meu irmo, ests mentindo: o meio significa muito no crime; isso eu vou te
87
demonstrar p. 266), no obstante, Razumkhin lembra que nem tudo que Porfri diz deve
ser levado ao p da letra, e conta duas peas que havia pregado nos amigos, uma quando
contou que viraria monge e outra quando disse que iria se casar. Nesse momento, Porfri
menciona o artigo de Rasklnikov A respeito do crime, o qual nem mesmo o autor sabia
que havia sido publicado. Ao tratar do texto, Porfri se refere a ele como artiguinho e faz
uma sntese precisa das idias l apresentadas. O rebaixamento explicitado no uso do
diminutivo e a afirmao sem rodeios de que o texto trata da existncia do direito ao crime
por parte de uma categoria de indivduos deixa Rasklnikov atordoado. Por duas vezes ele
sorri diante daquilo que considera ser uma deturpao redobrada e proposital de sua idia,
depois admite que Pensando bem, reconheo que o senhor o exps quase fielmente; at
mesmo, se quiser, com absoluta fidelidade... (Era-lhe realmente agradvel concordar que fora
com absoluta fidelidade) (p. 268). Rowe observa o padro antinmico nessa resposta de
Rasklnikov:
Assim, Porfri parece (1) equivocado; (2) correto; (3) levemente equivocado. A
objeo de Rasklnikov, a qual ele desenvolve em grande extenso, que as
pessoas extraordinrias no esto de modo algum obrigadas a cometer crimes.
Porfri, claro, no havia dito nada desse tipo, mas poucos leitores pararo para
perceber isso. O suspense tem seu ritmo acelerado. Finalmente Rasklnikov
qualifica seu argumento da seguinte maneira: ao promoverem o bem, as pessoas
extraordinrias inevitavelmente provocam alguma destruio; preciso ento
comparar o escopo de suas idias aos seus efeitos destrutivos. O padro
(prolongado) ser (1) pessoas extraordinrias no so obrigadas a cometerem
crimes, mas (2) tais pessoas, por outro lado, devem cometer crimes porque
grandes aes inevitavelmente causam alguma destruio, mas (3) na medida
em que elas so obrigadas a trabalhar para o bem, esto indiretamente obrigadas
a cometer certos crimes. O terceiro passo se pode inferir facilmente, mas ele
nunca explicitamente expresso, contudo ele desenvolve simetricamente e
completa o significado da reao inicial de Rasklnikov verso capsuliforme
de Porfri sobre sua teoria. (ROWE, 1972, p. 290)
Seu esclarecimento da teoria termina com um clamor pela Nova Jerusalm. Porfri
pergunta-lhe se acredita mesmo nela e obtm uma firme resposta afirmativa. Nesse momento
Rasklnikov olha para o cho. Segundo Belov, a expresso Nova Jerusalm tem origem no
88
Remete especificamente aos dois primeiros versculos do captulo 21 deste livro: Ento vi novos cus e nova
terra, pois o primeiro cu e a primeira terra tinham passado; e o mar j no existia. Vi a Cidade Santa, a nova
Jerusalm, que descia dos cus, da parte de Deus, preparada como uma noiva adornada para o seu marido.
(Apocalipse, Bblia Sagrada NVI, 21: 1-2). Belov ainda lembra que, no exemplar do Evangelho pertencente
Dostoivski, esses versculos esto sublinhados a lpis. (BELOV, 1985 p. 156).
89
cho como a reconciliao com ela (GIBIAN, 1955, p. 991-2 e IVANOV, 1989, p. 587-8).
Assim, a avaliao deste olhar para o cho como antecessor do beijo configura mais um
elemento que ratifica a interpretao de Rosenshield.
Porfri instiga Rasklnikov a dar mais detalhes do seu pensamento acerca dos homens
extraordinrios e obtm uma exposio clara e objetiva de tais idias. medida que esclarece
a teoria, Rasklnikov sai do estado de excitao inicial e se torna meditativo. Responde a
todas as questes de Porfri sem rodeios e, diante da indignao de Razumkhin,
simplesmente ergueu para ele seu rosto plido e quase triste e nada respondeu (p. 272). O
tom se adensa ainda mais quando chegam ao assunto da conscincia, isto , do sofrimento
derivado do ato de ultrapassar os obstculos:
Essa confisso, que foge do tom da conversa, diz respeito ao lugar das emoes na
teorizao de Rasklnikov. Aqui que ele reconhece a capacidade de ser afetado, que deve
estar sempre presente nos homens verdadeiramente grandes. Nesse sentido, seu pensamento
se desvia daquela que a crtica reconhece como sua fonte principal, o texto de Napoleo III
Histoire de Jules Csar (cf. BELOV, 1985, p. 154 e LINDENMEYER, 1976, p. 45)49,
especialmente na seguinte passagem: Quando fatos extraordinrios atestam um gnio
eminente, o que pode ser mais contrrio ao bom senso do que emprestar-lhe todas as paixes e
todos os sentimentos da mediocridade? (NAPOLON III, 1865, p. 8). Inicialmente, as idias
de Rasklnikov so tratadas por ele e por Porfri como algo exterior e objetivo, entretanto esse
49
Evnin chama ateno para a importncia do debate gerado na imprensa russa por essa obra de Napoleo III
(EVNIN, 1974, p. 91-93). Alm de Histoire de Jules Csar, outra fonte identificada na crtica para a teoria de
Rasklnikov Max Stirner, particularmente O nico e sua propriedade de 1844, cf. Arban (1962, p. 130-2)
90
50
Belov (1985, p. 160) chama ateno para a intertextualidade entre o questionamento de Porfri e a seguinte
passagem do Ievguni Oniguin de Pchkin: ; / /
(Captulo 2, XIV). Arban tambm constata esse dilogo e lembra a importncia da
temtica do usurpador na literatura russa, citando o mesmo verso de Pchkin: Esse fascnio pelo tema do
Usurpador, que assinalei quando dos anos da infncia, foi sensvel aps a vitria sobre Napoleo, a ponto de ter
Pchkin, que morreu em 1838, escrito alguns versos, cuja presena aqui me parece indispensvel, pois
reacenderam ou talvez tenham acendido fagulhas no corao do grande pecador que, aos dez anos, sonhava
com a onipotncia. Traduzo-os como possvel, privados que ficam de todo poder encantatrio limitando-me
to-somente sua significao: Acreditamos todos que estamos a zero/ Que a Unidade apenas o eu-mesmo./
Cada um de ns se v na pele de Napoleo/ E quanto aos milhes de outros bpedes/ Por Deus, que no sejam
para mim seno um instrumento. (ARBAN, 1989, p. 130)
91
Porfri, declarado perito no mtodo das provas materiais, agora se depara com a
ausncia de tais evidncias e a necessidade de conduzir seu trabalho com base em intuies.
No obstante, sabido que ele resolveu um caso cujas provas no mais existiam. Rasklnikov
tem conscincia disso, ele reconhece que o outro tem a sua psicologia e que seu segredo no
est completamente a salvo. A capacidade de decifrar alguns dos movimentos de Porfri deixa
Rasklnikov empolgado (Estou comeando a tomar gosto por certos pontos! p. 279),
92
ainda assim, o sentimento dominante permanecia sendo a inquietao (Mas sbito, quase no
mesmo instante, ele ficou meio intranqilo, como se um pensamento inesperado e inquietante
o tivesse acometido. Sua intranqilidade aumentava. p. 279). Nesse momento, Rasklnikov
desiste de encontrar a me e a irm e resolve partir para seu cubculo, onde d vazo a seus
delrios persecutrios ao procurar por uma possvel prova inesperada e irrefutvel (p. 281)
que lhe incriminasse definitivamente. A sensao conspiratria tem seu pice quando um
estranho vai ao prdio procura de Rasklnikov e acusa-o de ser assassino. Alm do tema da
perseguio, outro elemento liga essa cena e o que se segue ao episdio com Porfri: o riso.
Ele aparece no rosto de Rasklnikov logo antes do aparecimento do estranho (Estava em p
como que mergulhado em meditao, e um sorriso estranho e meio sem sentido vagava em
seus lbios. p. 281) e depois no prprio estranho (Era impossvel distinguir, mas
Rasklnikov teve a impresso de que, tambm desta vez, ele sorria seu sorriso frio, odioso e
triunfante p. 282). Para Spiegel,
sintoma de uma poca. E essa atitude irnica provoca fortes reverberaes na subjetividade de
Rasklnikov, o faz rever todas as idias e eventos sob uma nova tica. Porm, mesmo
havendo tal reviso, no se pode falar em superao dessas idias. Elas so, ao contrrio,
reforadas. Rasklnikov continua transitando no eixo ordinrio x extraordinrio, a diferena
que dessa vez a balana pende mais do lado ordinrio.
No segundo encontro com Porfri, Rasklnikov decide para si mesmo que no h
nenhuma suspeita contra ele, uma vez que o investigador no poderia trat-lo com tanta
informalidade e dar-lhe tamanha liberdade como estava acontecendo. Resolveu, ento, que
tudo aquilo que na vspera acontecera com ele, Rasklnikov, fora mais uma viso, exagerada
por sua imaginao exasperada e doentia (p. 342). No obstante, sua resposta sensvel a esta
figura permanecia sendo a de profunda irritao e medo, a ele no era possvel manter-se
indiferente em relao ao outro. O discurso de Porfri de intimidade, o tom familiar, mas
seu comportamento inquieto: caminha de um lado a outro, fala sobre amenidades. Tal
procedimento enfurece Rasklnikov, que imediatamente procura decifr-lo:
A longa tirada segue e o suposto criminoso de que fala Porfri assemelha-se mais e
mais a Rasklnikov. Ele, inicialmente, opta por silenciar de modo que no se enrede e acabe
fornecendo provas. Entretanto, novamente desestabilizado pelo riso do juiz de instruo:
95
De minha parte eu lhe declaro que j estou saturado de tudo isso h muito
tempo. Se achar que tem o direito de me perseguir legalmente, ento persiga; de
me prender, ento prenda. Mas eu no admito que riam de mim na minha cara e
nem que me atormentem. (p. 353)
96
contato humano. Esta condio foi brilhantemente condensada por Porfri na imagem da
borboleta voando contra a vela (p. 350):
Se fosse possvel ir para algum lugar nesse instante e ficar totalmente s, ainda
que fosse para toda a vida, ele se consideraria feliz. O problema que
ultimamente, embora estivesse quase sempre s, no havia como sentir que
estava s. Acontecia-lhe de sair da cidade, tomar a estrada real, uma vez chegou
a um bosque; no entanto, quanto mais isolado era o lugar, mais fortemente ele
se dava conta de algo como a presena prxima e inquietante de algum, no
que ela fosse terrvel mas de certo modo era muito agastante, de sorte que ele
voltava o mais rpido para a cidade, misturava-se com a multido, entrava nas
tabernas, nos bares, ia Feira de Usados, Sinnaia. [...] havia algo que
reclamava soluo imediata, mas que no era possvel nem compreender nem
transmitir por palavras. Tudo se enredava em algum novelo. No, uma luta
seria melhor! O melhor seria Porfri de novo... ou Svidrigilov... Algum novo
desafio o quanto antes, um ataque de algum... Sim! sim! pensou ele. (p.
451)
Bakhtin certamente o crtico que trata com mais eficcia e insistncia o tema da
constituio do eu na e pela relao com o outro na obra de Dostoivski. Para ele, esse
conjunto de coisas no a teoria filosfica de Dostoivski, a sua viso artstica da vida da
conscincia humana, viso personificada numa forma rica de contedo (BAKHTIN, 2003, p.
343). No caso da relao com Porfri possvel dizer, considerando a passagem citada, que
ela traz tona a necessidade do enfrentamento, da luta, por parte de Rasklnikov, alm de
revelar sua inclinao pelo desconhecido. Com a confisso de Nikolai ele acredita ter surgido
uma sada, entretanto a lucidez de Porfri jamais o deixa descansar em paz; fica, ao
contrrio, a certeza de que ele ainda desvendar a verdade, mesmo que tenha esclarecido o
caso psicologicamente para Razumkhin:
Desde quando Porfri acreditou, ao menos por um minuto que Mikolka fosse o
culpado [...] Naquele momento foram pronunciadas entre eles tais palavras,
aconteceram tais movimentos e gestos, trocaram tais olhares, alguma coisa foi
dita com tal voz, chegaram a tais limites que, depois disso, nem Mikolka (que
Porfri j sabia de cor primeira palavra e ao primeiro gesto), nem Mikolka iria
abalar o prprio fundamento das convices dele. (p. 457)
97
Tais convices no deixam de ser uma sada para Rasklnikov, o qual, ao receber
uma inesperada visita de Porfri pensa, sem se surpreender com sua presena, Pode ser o
desfecho! (p. 457). A reao de Rasklnikov diante dessa sensao de tudo ou nada
transmitida pelo narrador por meio da seguinte metfora: s vezes um homem como esse
suporta meia hora de pavor mortal diante de um salteador, mas s lhe botarem a faca na
garganta de modo definitivo que a at o pavor passa (p. 457). Inicialmente Porfri d
mostras de que v recorrer ao seu antigo formalismo para encurralar e atormentar
Rasklnikov, mas, ao ler em seu rosto uma expresso sombria, o juiz advinha-lhe os
pensamentos e depe suas armas. J depois da acirrada batalha de nervos, da desigual queda
de braos, o investigador modifica drasticamente o tom: Devo-lhe uma explicao
continuou ele com um sorriso nos lbios e dando at uma palmadinha de leve no joelho de
Rasklnikov. Nunca notara nem suspeitara de semelhante expresso no rosto dele (p. 458).
No obstante, suas palavras no so, em princpio, totalmente claras e suscitam dvidas em
Rasklnikov: De que que ele est falando? [...] Ser que ele est realmente me
considerando inocente? [...] Rasklnikov sentiu o afluxo de algum medo novo. A idia de
que Porfri o considerasse inocente comeou repentinamente a assust-lo. (p. 460). Em
seguida Porfri oferece sua explicao, durante a qual demonstra uma grande sensibilidade e
empatia ao tipo irascvel de Rasklnikov, pois capaz de reconhecer todas as qualidades
fundamentais do seu carter e do seu corao (p. 459). As ambivalncias do carter de
Rasklnikov so captadas com bastante perspiccia pelo investigador:
98
primeira prova, dessa prova juvenil e ardente da pena. Fumaa, neblina, a corda
vibra na neblina51. Seu artigo absurdo e fantstico, mas ele transpira
sinceridade, nele existe uma altivez juvenil e ntegra, nele h a ousadia do
desespero; um artigo sombrio, mas isso bom. Li seu artiguinho e o guardei,
e... ao guard-lo naquele momento, ento pensei Bem, esse homem no vai
ficar nisso! Pois bem, agora me diga, depois de semelhante antecedente, como
no se deixar levar pelo conseqente! (p. 461)
51
Conforme Belov (1985, p. 204), trata-se de uma citao imprecisa retirada da seguinte passagem do Dirio de
um louco de Ggol: Eis o cu em remoinhos diante de mim: uma estrela cintilando ao longe; a floresta
galopando com as rvores negras e a Lua; a neblina azulada se estendendo no cho; uma corda tocando na
neblina; de um lado, o mar, do outro, a Itlia; l esto as isbs russas. (GGOL, 1990, p. 84-5). O excerto foi
retirado do ltimo registro do dirio, no qual a loucura do personagem est em seu pice. Tal registro constitui
um clamor desesperado por ser salvo, para que parem de maltrat-lo, culminando com um apelo por ser
resgatado por sua me. Com essa passagem de intertextualidade, Porfri sintetiza seus sentimentos em relao ao
artigo de Rasklnikov.
52
No qual ele reconhece a habilidade de Rasklnikov: E quando comeamos a discutir o seu artigo naquela
ocasio, quando o senhor passou a exposio dele a se verificou que cada palavra do senhor permite dupla
interpretao, como se houvesse outra por debaixo dela! (p. 462).
99
margem, e colocado de p. Para que margem? Como que eu vou saber? Eu apenas acredito
que o senhor ainda tem muita vida pela frente p. 469). Para Jones, Porfri
[...] tambm quer desempenhar um papel na reabilitao de Rasklnikov e
espera poder trazer tona aqueles aspectos da personalidade de Rasklnikov
que vo de encontro ao tipo de pessoa que imagina ser e que podem, ao mesmo
tempo, prover a base para uma vida emocional estvel no futuro. Seu objetivo
inicial , portanto, criar uma perturbao mental e emocional do tipo que
levanta dvidas sobre o significado do discurso e as intenes por trs dele.
(JONES, 1990, p.86)
Por fim, valeria a pena refletir sobre um ltimo ponto da relao entre esses
personagens. Apesar de todo controle que Porfri parece exercer sobre Rasklnikov, por mais
que a atuao do investigador tenha sido eficaz na excitao do carter persecutrio de
Rasklnikov, no ao juiz que ele vai para a derradeira confisso. Ao contrrio, quando
encurralado, o suspeito declarava abertamente sua inocncia. Alm de Porfri, o homem
desconhecido tambm o acusa de ser assassino, mas, diferentemente do modo como agiu com
o investigador, Rasklnikov incapaz de negar sua culpa. A confisso se d somente para
Snia, literalmente, e para Razumkhin, na forma de sugesto. possvel pensar a partir
destes dados que, se Porfri tem poder algum poder, ele no reconhecido por Rasklnikov
como legtimo, e mesmo a faceta mais humanitria revelada no ltimo encontro pelo juiz no
o toca como mais tarde acontecer com a compaixo devotada por Snia. Johnson faz uma
interessante anlise da representao de Porfri comparada s representaes do homem
desconhecido, de Mikolka e de Snia. Para ela o mecanismo do ltimo encontro revela que o
interesse prprio de Rasklnikov como condenado totalmente ordinrio justificar seu
ceticismo [de Profri]. Ele assegurar que tudo o que importa para qualquer pessoa salvar a
prpria pele, de tal modo que a falta de f de Porfri seja realmente a mais elevada sabedoria
(JOHNSON, 1985, p. 94). Assim, desta relao fica para o leitor uma importantssima
informao acerca do aspecto moral, e no simplesmente legal, do ato criminoso para
Rasklnikov, o qual no poder encontrar ressonncias em algum que no trate a questo
100
nesses termos. Em sua atuao, Porfri carrega nas tintas do sadismo e no utiliza o
conhecimento que tem sobre Rasklnikov, sua apurada percepo sobre ele, para impulsionar
a reflexo moral. Por outro lado, tal modus operandi contribui sobremaneira para o suspense
no romance, proporcionando os desvios e contrapontos necessrios para que temas como
sofrimento, culpa e compaixo apaream com fora total em outros momentos.
101
102
Imagine que esse insensato nutria h muito tempo uma paixo por Dnia, mas
disfarava tudo isso com grosseria e desprezo por ela. possvel que ele
mesmo sentisse vergonha e ficasse horrorizado ao ver-se, j em idade
avanada e pai de famlia, alimentando esperanas to levianas, e por essa
razo se tomasse de fria involuntria contra Dnia. Mas pode ser tambm que
com a grosseria do seu tratamento e as brincadeiras e mau gosto quisesse
apenas esconder dos outros a sua verdade. (p. 48)
em que Rasklnikov, ao ver um homem de uns trinta anos tentando aproximar-se de uma
jovem embriagada com certos objetivos (p. 62), exclama: Ei, voc a, Svidrigilov! O que
que est querendo? (p. 63). Para Keppler, Svidrigilov se constitui como um duplo de
Rasklnikov, do tipo viso do horror, cuja funo :
Mais tarde, Pulkhria vai ao encontro do filho e inicia a conversa, de modo um tanto
mrbido, comunicando a morte repentina de Marfa Pietrvna (esposa de Svidrigilov). A
culpa logo recai sobre o marido: Imagina, aquele homem horrvel parece que foi a causa da
morte dela. Dizem que a espancou terrivelmente. (p. 238). Acerca da vida conjugal do casal,
relatou-se:
esses personagens, j permitem delinear paralelos entre eles. O aspecto mais sugestivo desse
paralelo precisamente a ambigidade de seus caracteres. Em nenhum dos casos possvel
chegar a um juzo de valor definitivo acerca de suas ndoles. De forma que, a relao entre
ambos, pautada pela viso do horror, deve ser compreendida, no somente como o
enfrentamento por parte de Rasklnikov de sua face m e assassina, mas tambm de sua
sensibilidade, que, ao longo da maior parte do romance, sinnimo de fraqueza. Essa ligao
de complementaridade entre ambos refere-se no somente aos aspectos internos, mas tambm
aos fsicos. Enquanto Rasklnikov apresentado com um jovem taciturno, introvertido, de
belos olhos escuros e cabelos castanho-escuros, Svidrigilov:
Era um homem de uns cinqenta anos [...] O rosto largo, de maas salientes,
bastante agradvel, tinha uma cor fresca que no era de Petersburgo. Os
cabelos, ainda muito bastos, eram completamente louros, com um leve esboo
do grisalho, e a barba vasta e fechada, que descia como p, era ainda mais
clara que os cabelos da cabea. Os olhos, azuis, fitavam com jeito frio, fixo e
ponderado; um vermelho vivo lhe coloria os lbios. Em linhas gerais era um
homem magnificamente conservado e aparentava uma idade bem mais jovem.
(p. 254)
Entre tantos contrastes marcantes, tm-se os olhos: escuros versus azuis, beleza versus
frieza, fixidez e ponderao. O ostracismo exterior de Rasklnikov contrasta com a beleza de
seus olhos (revelando uma realidade profunda diferente), assim como a impulsividade, isto ,
a no resistncia aos desejos de Svidrigilov contrasta com a frieza de seu olhar.
Svidrigilov aparece diante de Rasklnikov em seu cubculo enquanto ele dorme. Est
sonhando que mata a velha, mas ela, ao invs de morrer, ri diante dele. Mesmo depois de
terminado, o sonho parece continuar para Rasklnikov: Esse sonho continua ou no
pensou ele e, de leve, sem se fazer notar, tornou a erguer os clios e dar uma espiada: o
desconhecido estava no mesmo lugar e continuava a examin-lo. (p. 288). como se
Svidrigilov surgisse diretamente do inconsciente de Rasklnikov e se misturasse aos seus
105
contedos. O nico ser que testemunha a realidade da cena a mosca grande que zumbia e
se debatia ao chocar-se em investida contra a vidraa (p. 288). possvel que essa imagem
represente o mpeto de Rasklnikov em direo a um objetivo que no se concretiza por
razes que ele no consegue enxergar. Embora essa metfora possa servir para outras cenas
no romance, aqui ela prefigura o movimento de Rasklnikov em relao Svidrigilov
vendo a si mesmo, ele investe contra a prpria imagem, identificada no outro. Svidrigilov
apresenta de imediato seus interesses: conhec-lo e pedir-lhe apoio em seu novo
empreendimento com Dnia. A recepo pouco amistosa de Rasklnikov leva Svidrigilov a
question-lo sem rodeios: [...] o que h, em tudo isso, em realidade, de to especialmente
criminoso de minha parte, julgando de forma racional, isto , sem preconceitos? (p. 291). As
palavras de Svidrigilov ecoam diretamente o pensamento de Rasklnikov, expresso bem
antes no romance:
senhor pura e simplesmente repugnante, tenha razo ou no (p. 292). Nessa passagem a
razo no vale mais como justificativa. O que move Svidrigilov a paixo, para a qual a
razo apenas suporte. O mesmo se d com Rasklnikov: a teoria dos Napolees e dos
piolhos aparece para encobrir um desejo de tomar o poder (e o sofrimento) e tornar-se sujeito
(pelo sofrimento). A capacidade de ler o outro mtua e Svidrigilov reconhece: [...] no
d para desnortear o senhor! [...] o senhor acertou precisamente o alvo da verdade! (p. 292).
Outro aspecto que se manifesta nessa conversa a relao com a figura feminina. Svidrigilov
acusado de espancar a esposa at a morte (assim como Rasklnikov, que tirou a vida de uma
mulher agredindo-a fisicamente), mas, alm de no reconhecer-se como culpado, justifica sua
violncia:
[...] entre as mulheres h aqueles casos em que elas acham muito, muito
agradvel serem ofendidas, apesar de toda a aparente indignao. Entre todas
elas acontece isso, esses casos; o ser humano, de um modo geral, chega at a
gostar muito, muito de ser ofendido, o senhor j observou isso? Mas isso
acontece particularmente com as mulheres. Pode-se at dizer que s assim elas
se contentam. (p. 293)
- [...] Eles dizem: T ests doente, logo, o que imaginas apenas um delrio
inexistente. S que nisso no h uma lgica rigorosa. Eu concordo que os
fantasmas s aparecem a doentes; no entanto isso s demonstra que os
fantasmas no podem aparecer seno a doentes e no que, em si mesmos, eles
no existam.
- claro que no! insistiu Rasklnikov com irritao.
- No? O senhor pensa assim? continuou Svidrigilov, olhando lentamente
para ele. Bem, e se a gente raciocinar assim (ajude-me): Os fantasmas so,
por assim dizer, farrapos e fragmentos de outros mundos, o seu princpio. O
homem sadio, naturalmente, no tem por que v-los, pois o homem sadio
uma pessoa mais terrena, logo, deve viver exclusivamente a vida daqui, para
se manter na plenitude e na ordem. No entanto basta ele adoecer um mnimo,
basta haver a mais leve infrao da ordem normal da terra no organismo para
que logo comece a manifestar-se a possibilidade de um outro mundo, de sorte
que, quando o homem morre inteiramente, a ele vai direto para o outro
mundo. (p. 299-300)
Svidrigilov reconhece que causar a morte no outro fez com que ele morresse tambm,
ao menos parcialmente, pela loucura. Essas palavras reverberam mais tarde em
Rasklnikov, quando ele admite ter matado a si mesmo (p. 428) e, antes ainda em Snia (o
108
que o senhor fez contra si prprio!, p. 420). Alm disso, pouco antes, no encontro com a
me, Rasklnikov admite sentir-se em contato com outro mundo: [...] tudo o que acontece ao
meu redor parece no ser coisa daqui... (p. 241). Em seguida Svidrigilov pinta seu quadro
da eternidade:
A eternidade sempre nos parece uma idia que no se pode entender, algo
enorme! Mas por que forosamente enorme? E de repente, em vez de tudo
isso, imagine s, l existisse um nico quarto, alguma coisa assim como o
quarto de banhos da aldeia, enegrecido pela fuligem, com aranhas espalhadas
por todos os cantos, e toda a eternidade se resume a isso. Sabe, s vezes me
parece que vejo coisas desse tipo. (p. 300)
53
No original: - . (PN, p.
221)
109
54
No original: ! , ! [...]
! (PN, p. 400)
110
A inteno manifesta por Svidrigilov para a visita era pedir a Rasklnikov que
informasse Dnia sobre seu propsito de oferecer-lhe dez mil rublos. Mas, como foi visto,
muito mais foi comunicado nessa conversa. Assim Rasklnikov descreve a Razumkhin sua
impresso do encontro:
No sei por qu, mas estou com muito medo desse homem. Ele veio
imediatamente aps o enterro da mulher. um homem muito estranho e
decidiu-se por alguma coisa... como se soubesse alguma coisa... Precisamos
proteger Dnia dele... eis o que queria dizer, ests ouvindo? (p. 305)
Ah, a voyage? Ah, sim!... de fato, eu lhe falei da voyage... Bem, essa uma
questo vasta... Ah, se o senhor soubesse, no obstante, do que est
perguntando!... acrescentou de repente em voz alta e desatou numa risada
111
112
claro que ele tem objetivos, e o mais provvel que sejam maus. Contudo,
mais uma vez um tanto estranho supor que viesse a entrar no assunto de
maneira to tola se tivesse ms intenes em relao a ti [Dnia] [...] No geral
ele me pareceu muito estranho e... at... com sinais aparentes de loucura. Mas
eu posso estar equivocado; pode ser que isso seja alguma espcie de
embromao. Pelo visto, ele est impressionado com a morte de Marfa
Pietrvna... (p. 320)
113
55
Do grego Arcdia. Segundo Massaud Moiss, a Arcdia era uma regio montanhosa do Peloponeso (Grcia),
considerada, na poesia pastoril da Antiguidade, verdadeiro paraso, habitada por seres eleitos, que se dedicavam
poesia e aos ingnuos prazeres domsticos [...] Durante a Renascena, tornou-se o lugar mtico para o cultivo
da vida intelectual e a realizao de uma felicidade plena, acima das paixes e dos impulsos materiais.
(MOISS, 1974, p.36)
114
famlia, vem morar na cidade grande, para, no final, retornar ao campo no cumprimento de
sua pena. Svidrigilov era da cidade antes de ser resgatado por Marfa Pietrvna, e, depois da
morte desta, volta Petersburgo.
Assim, Rasklnikov v-se ligado Svidrigilov, ainda que o considere um enigma: E
Svidrigilov? Svidrigilov um enigma... Svidrigilov o preocupa, verdade, mas no nesse
aspecto, de certo modo. Com Svidrigilov, possvel, tambm ainda haver de lutar.
Svidrigilov pode ser todo um desfecho tambm (p. 456). Rasklnikov busca nele uma
alternativa para suas preocupaes mais essenciais: atormentava-o alguma outra coisa,
muito, muito mais importante, extraordinria (p. 472):
Enquanto isso, apesar de tudo ele tinha pressa de ver Svidrigilov; no estaria
esperando dele alguma coisa nova, indicaes, uma sada? Ora, as pessoas se
agarram at a um fio de cabelo! No seria o destino, no seria algum instinto
que os colocava juntos? [...] No, no seria melhor experimentar Svidrigilov,
sondar o que est acontecendo? E ele no podia deixar de se dar conta
interiormente de que h muito tempo precisava de fato do outro para alguma
coisa. (p. 472-3, grifo do autor)
Com esse esprito um tanto fatalista, sem entender o que determina os acontecimentos,
Rasklnikov caminha sem rumo definido pelas ruas da cidade, at se deparar subitamente
com Svidrigilov numa taberna. Ele provoca, dizendo tratar-se de um milagre; j Rasklnikov
v no fato mero acaso. A verdade, revelada depois por Svidrigilov, que o encontro havia
sido marcado pelo prprio Rasklnikov dias antes. Tal circunstncia sintomtica do
funcionamento de Rasklnikov, uma vez que se trata de algum em busca de compreender
suas prprias motivaes, e que, esquecido de si, fantasia sobre o real, ilude-se. Segundo
Rosset a tcnica geral da iluso , na verdade, transformar uma coisa em duas (ROSSET,
2008, p. 23). O encontro combinado funciona como um orculo, que antecipa o que ir
acontecer, e Rasklnikov aparece como dipo, que executa o anunciado, mas no se
reconhece no que fez, pois:
115
Diga-me, por que eu iria me conter? Por que abandonar as mulheres, se eu sou
um apreciador delas? Pelo menos uma ocupao. [...] Nessa libertinagem, ao
menos, existe alguma coisa permanente, baseada inclusive na natureza e
imune fantasia, algo que permanece no sangue como um carvozinho
116
sempre incandescente, que arde eternamente, que persiste ainda por muito
tempo, e to cedo no se extingue, talvez nem com o passar dos anos.
Convenha, por acaso no uma espcie de ocupao? (p. 479)
Svidrigilov anseia por se ocupar de algo, haja vista todo o tdio que alega sentir. E,
mais do que isso, deseja que a natureza de sua ocupao seja certa, permanente, imune
fantasia. Da mesma maneira, Rasklnikov esperava que seu crime estivesse assentado em
algo permanente56, no seu livre-arbtrio, no fato de ser senhor de si mesmo. Svidrigilov funda
sua conduta numa existncia instintiva, cativa de seus impulsos sexuais, ao passo que
Rasklnikov no se contenta em meramente existir: Viver por existir? S que antes ele j
estivera milhares de vezes disposto a dedicar toda a sua existncia a uma idia, a uma
esperana, at a uma fantasia (p. 553). Svidrigilov perspicaz em perceber a diferena
entre eles:
Em seguida, Svidrigilov conta sua histria com Dnia, sobre como ela tentou ser sua
Snia:
56
Para Holquist: Rasklnikov procurou chegar a um conhecimento definitivo de si mesmo no crime; este foi
uma tentativa de criar um kairos secular, um momento que garantiria a validade de todos os outros.
(HOLQUIST, 1977, p. 93).
117
[...] o senhor est sempre soltando ais e mais ais! H um Schiller perturbando
a todo instante dentro do senhor. [...] Estou entendendo (alis, o senhor que
no se d ao trabalho: se quiser no fale muito); compreendo que questes o
senhor levanta: questes morais, no? Questes do cidado e do homem?
Deixe-as de lado; para que lhe servem agora? He-he! Porque o senhor
continua cidado e homem? Sendo assim, ento no devia ter se metido nisso;
nada de se meter com o que no da sua competncia. Ento meta uma bala
na cabea; ou no quer? (p. 494)
118
quarto de pssimas condies e deixa-se levar por pensamentos diversos e pesadelos. Essa
seqncia uma das poucas do romance em que Rasklnikov no est presente, e, portanto,
no narrada a partir do seu ponto de vista. Isso no acontece por acaso, mas revela, no
mbito formal, aquilo que acontece no nvel da relao entre esses personagens. Depois do
ltimo encontro entre eles, cada qual d um desfecho diferente para sua histria. Com os
sonhos de Svidrigilov temos a chance de penetrar fundo em sua subjetividade57 e perceber
claramente sua diametral oposio em relao Rasklnikov, pois que eles revelam com toda
clareza seu apodrecimento moral (diferentemente de Rasklnikov, cujos sonhos muitas vezes
revelam seus instintos para o bem, ou apontam os equvocos de seu caminho). Assim, como
vimos, por um lado, Rasklnikov se apresenta exteriormente com aspecto sombrio, mas
interiormente como algum que possui potencialidade para a beleza; j Svidrigilov, por outro
lado, possui um aspecto exterior mais luminoso, mas uma interioridade em frangalhos. Por
isso, ele, que tambm vive no limiar entre a vida e a morte, quem acaba por romper esse
limite de uma vez por todas cometendo suicdio.
Em sua ltima cena, Svidrigilov se posta em frente a um prdio com a torre dos
bombeiros (sede da polcia), diante de um guarda portando um capacete de cobre que,
segundo comparao do narrador, era como o de Aquiles. Esse personagem sem nome (o qual
passa a ser tratado por Aquiles) e estrangeiro encara Svidrigilov com olhar sonolento e
frieza e tambm encarado por este. Ele quer uma testemunha oficial para seu ato, e
encontra ningum menos que Aquiles. A referncia a mais esse elemento da tradio clssica
(afora a etimologia do nome) bastante sugestiva na composio da caracterizao do
personagem. Segundo Brando,
57
Vale lembrar que Svidrigilov e Rasklnikov so os nicos personagens cujos sonhos so apresentados no
romance.
120
Chama ateno, tambm, o fato deste personagem annimo ser judeu. Para Goldstein
essa cena possui um alcance simblico graas inusitada testemunha. Retomando as palavras
de Steinberg, atenta para a significao alegrica do episdio:
58
Segundo nota da edio em russo, traduzida na edio brasileira consultada, Vladmirka a estrada real que
atravessa a cidade de Vladmir, por onde passavam os prisioneiros gals em direo Sibria (cf. p. 508).
122
123
Que asneira foi essa que acabei de fazer? pensou. Ora, eles tm a Snia,
ao passo que eu mesmo estou precisando. Mas depois de refletir que j no
era possvel reaver o dinheiro e que, apesar de tudo, ele no o faria mesmo,
ps de lado o assunto e foi para casa. Ora, Snia precisa de cremes tambm
continuou, rua afora, com um riso sarcstico. Essa pureza custa dinheiro...
Hum! Sim, mas pode ser que Snietchka fique hoje a nenhum, porque o risco
um s, a caada ao bicho vermelho... a extrao do ouro... e ento eles todos
vo ficar na pindaba amanh, mesmo sem o meu dinheiro... que coisa, hein,
Snia! Entretanto, que tesouro eles conseguiram achar! E esto aproveitando!
E olhem que aproveitam mesmo! E se habituaram. Choram, mas se
habituaram. O canalha do homem se habitua a tudo! (p. 42-3)
Este movimento subjetivo difere dos dois anteriores, pois aqui a reflexo atua como
mediadora que o leva a observar que, diante dessa situao, no cabe uma ao impensada, ou
mera racionalizao. Rasklnikov conclui que o bbado e a prostituta no tm do que se
envergonharem, e que, ao cham-los de canalhas, ainda estava se pautando por aqueles
princpios morais que quer superar. Assim, enxerga no caso uma legitimao para suas
formulaes (que o leitor ainda desconhece) sobre o direito de cometer crimes e superar os
temores estimulados (normas morais e punio diante da transgresso delas). De um
engajamento irrefletido, a uma indiferena glida, Rasklnikov cai num engajamento
glido.
Para Rowe, Dostoivski cria efeitos antinmicos por meio de uma formulao em
trs estgios, a qual se assemelha ao movimento de um pndulo de um lado a outro e, por fim,
parcialmente de volta (ROWE, 1972, p. 287). Tal padro antinmico se reflete tanto em
episdios do romance, quanto no texto como um todo, e tem por funo promover harmonia
caracterizao, ambivalncia emocional, e uma tnue relao entre iluso e realidade.
(ROWE, 1972, p. 295).
No obstante, a re-contextualizao do caso faz com que ele seja visto sob um novo
prisma. Rasklnikov recebe uma carta de sua me, Pulkhria, por meio da qual descobre que
125
sua irm est prestes a se casar sem amor, numa tentativa de salvar a famlia, e,
principalmente, o irmo das dificuldades financeiras que o levaram a abandonar os estudos na
faculdade. O tema do sacrifcio por outrem colocado em perspectiva e, em nova atmosfera
emocional, Snia evocada:
Tratando a irm e Snia por apelidos carinhosos, Rasklnikov passa a ver a situao
de dentro, como um elemento dela, isto , como o outro pelo qual o sacrifcio feito. O
Rasklnikov que aqui se apresenta no mais o da compaixo, o da indiferena ou o
terrorista, mas o ressentido. Para Kehl, a raiz do seu ressentimento insinua-se a partir do
contraste entre a expectativa de realizao de grandes feitos e a mesquinhez de sua vida
(KEHL, 2004, p. 164)59.
No captulo VII da Segunda Parte do romance Marmieldov atropelado.
Rasklnikov que o resgata e leva para Catierina Ivanovna. Nesta ocasio, j depois de ter
cometido os assassinatos da usurria e de Lisavieta, v Snia pela primeira vez, vestida para o
trabalho. Ao sair, aps a morte de Marmieldov, Rasklnikov tem uma breve conversa com
59
Kehl articula ressentimento e sentimento de privao, o qual, segundo Lacan, se instaura a partir de uma
antecipao simblica que pr-ordena o real e institui ali uma falta. A antecipao simblica que paralisa e lana
no ressentimento o personagem de Dostoivski a alta expectativa da me a respeito do grande talento do rapaz
[...] Diante da dvida instituda por to grande aposta, na expectativa de que o mundo reconhea nele o ideal
sustentando pelo olhar da me, Rasklnikov torna-se ao mesmo tempo pretensioso e fraco. A antecipao
materna instalou o filho na espera passiva da realizao prometida, na falta da qual Rasklnikov se v privado de
reconhecimento (KEHL, 2004, p. 163-4). Sem deixar escapar o carter social desse sentimento, a psicanalista
ainda observa que o ressentimento de Rasklnikov [...] o ressentimento da sociedade russa conservadora,
tiranizada, provinciana, diante dos novos ares vindos de uma Europa que j se modernizava desde o sculo
anterior (KEHL, 2004, p. 161)
126
status que a descrio do olhar tem na narrativa dostoievskiana. Rosenshield afirma que
Dostoivski freqentemente usa os olhos como espelhos simblicos da alma
(ROSENSHIELD, 1978, p. 87)60 ao relembrar que a nica descrio fsica de Rasklnikov
presente no romance destaca a beleza de seus olhos: Alis ele era de uma beleza admirvel,
belos olhos escuros, cabelos castanho-escuros, estatura acima da mediana, esbelto, bem
constitudo (p. 20). O mesmo autor avalia que esta descrio pode revelar o potencial de
Rasklnikov para o bem (ROSENSHIELD, 1978, p. 87). Juntando essa observao
descrio do olhar de Snia possvel acrescentar que seus olhos (portadores de um poder de
atrao) tambm antecipam o papel desta personagem na transformao de Rasklnikov. J o
fato de Snia aparentar ser bem mais jovem do que realmente era, constitui um trao
compartilhado por Pulkhria, a qual, apesar dos quarenta e trs anos,
Rosenshield sustenta sua afirmao citando Belkin, segundo o qual os olhos, em todos os retratos de
Dostoivski so a parte mais importante e significativa do rosto. Por meio deles possvel penetrar a alma de
algum (Beklin apud ROSENSHIELD, 1978, P. 88)
61
Pulkhria, do latim pulchra, significa bela.
128
ideal moral, encarnados na figura feminina, que Rasklnikov se levanta. E, por isso,
Viatcheslav Ivanov entende que Crime e castigo est fundado no seguinte elemento mtico: a
revolta turbulenta da arrogncia e insolncia humanas (hybris) contra a vontade
primitivamente sagrada da Me-Terra (IVANOV, 1989, p. 587).
Em outro momento, imerso em pensamentos contraditrios acerca do crime e de seu
prprio carter, Rasklnikov pensa: Lisavieta! Snia! Pobres, dceis, de olhos dceis...
Amveis!... Por que elas no choram? Por que no gemem?... Elas do tudo... tm um olhar
dcil e sereno... Snia, Snia! Serena Snia!... (p. 286). Para Marchant, o desamparo
infantil de Lisavieta muito semelhante ao de Snia e ao de todas as outras crianas
desamparadas que Rasklnikov tenta proteger (MARCHANT, 1974, p. 7). Rasklnikov
mostra-se desnorteado ao reconhecer em Snia, e aqui tambm em Lisavieta, de um lado
tamanha bondade, e, de outro, completa passividade. Assim como na passagem em que
associa Dnia Snia, Rasklnikov exige, em pensamento, que elas se revoltem, que no se
submetam. Em seu discurso transparece uma defesa intransigente da preservao da
individualidade (no sentido moderno). A incompreenso e perplexidade de Rasklnikov
diante do modelo de subjetividade apresentado por essas mulheres so cruciais para o
desenvolvimento do romance. O que diferencia a individualidade moderna de Rasklnikov e a
subjetividade de Snia que esta ltima no se realiza apesar do outro (ou o
ultrapassando62), mas no outro.
62
Vale notar que, no ttulo original do romance Prestuplenie i nakazanie, o termo traduzido como crime
(prestuplenie) tem sentido mais abrangente que a palavra em portugus, pois sua raiz (o verbo prestupit) remete
ao ato de ultrapassar certo limite, transgredir (cf. ROSENSHIELD, 1978, p. 76). Para Shaw a palavra traduzida
por crime (prestuplenie) tem carter ainda mais sugestivo, pois pode significar crime no sentido jurdico,
transgredir, transgresso no sentido religioso, ou um sentido figurativo de passar alm ou atravs qualquer
fronteira ou obstculo ou expectativa estabelecidos pelo costume, tradio ou normas aceitas. O romance
questiona continuamente, de modo direto ou implcito, O que (o, um) crime? Qual (um, o) castigo?
(SHAW, 1973, p. 141). significativo tambm que, na descrio de Pulkhria, o narrador utilize este verbo para
falar de sua robustez moral era capaz de ceder muito, de concordar com muitas coisas, inclusive com aquelas
que contrariavam suas convices, mas sempre havia uma linha de honradez, de regras e convices extremas
que nenhuma circunstncia podia for-la a ultrapassar (p. 217). No original: [...]
, , , ,
, ,
129
Quando Snia visita Rasklnikov, logo aps eles terem se conhecido pessoalmente,
ela se mostra impressionada e constrangida com as condies de vida do jovem. Deduz que
ele, quando da morte de Marmieldov no dia anterior, havia dado a sua famlia todo o
dinheiro que possua. A comoo de Snia nesta cena contrasta com a reao de Rasklnikov
quando, mais adiante, ele lhe faz uma visita: Snia olhava em silencio para o seu hspede,
que examinara seu quarto com tanta ateno e sem-cerimnia, e por ltimo comeou a at a
tremer de pavor, como se estivesse diante de um juiz e senhor do seu destino. (p. 326).
Esse primeiro encontro de ambos a ss, comea com falas enigmticas de
Rasklnikov. No fica claro o que o motiva visita, mas significativo que ela tenha
acontecido logo aps ter estado com sua me, irm e Razumkhin, num encontro em que
Dnia desmancha o noivado com Ljin e que Razumkhin compartilha planos em conjunto
com a famlia de Rasklnikov, ocupando seu lugar. O fato que Rasklnikov rompe com a
famlia, coloca um substituto para si e vai ao encontro de Snia. Abandonando o tom obscuro
e de despedida (Vim visit-la pela ltima vez [...] possvel que no torne a v-la, p. 326),
Rasklnikov passa a expor fatos que conhece sobre a vida de Snia, dos quais soube por
Marmieldov, constrangendo a moa. Ao ser questionada sobre as atitudes de Catierina, Snia
reage:
Via-se que a haviam ferido terrivelmente no ntimo, que ela sentia uma terrvel
vontade de extravasar alguma coisa, dizer, interceder. Uma compaixo
insacivel, se que se pode falar assim, manifestou-se subitamente em todos
os traos do seu rosto. (p. 328)
Snia justifica o fato de Catierina lhe bater e Rasklnikov a ironiza (Bem, depois
disso d at para entender que a senhora... viva assim. disse Rasklnikov com um riso
amargo, p. 329). Entretanto, Snia arranca-lhe a mscara do sarcasmo: Mas o senhor
(PN, p. 158). Assim, tem-se que o crime de Rasklnikov consiste, mais
especificamente, no ato de ultrapassar o limite, que, neste caso, a vida do outro.
130
mesmo, eu sei, o senhor lhe deu at o ltimo centavo, ainda sem ter visto nada. Mas se tivesse
visto tudo, meu Deus! (p. 329). Mesmo assim, Rasklnikov no arrefece o tom e continua
desafiando a anfitri (Catierina Ivanovna est com tsica, na fase aguda; logo vai morrer [...]
E se, ainda com Catierina Ivanovna viva, a senhora adoecer e for hospitalizada, o que vai
acontecer ento? p. 330). Como resposta, Snia s tem o sentimento de desespero e os
apelos de que Deus no permitir que as desgraas insinuadas aconteam. Rasklnikov vai
ainda mais fundo: , mas pode ser que Deus absolutamente no exista respondeu
Rasklnikov at com certa maldade, desatou a rir e olhou para ela (p. 332). Em resposta,
Snia no o censura com palavras, mas com um olhar indescritvel e um pranto amargo. E eis
que Rasklnikov abandona a posio de ataque, para reverenciar a imagem de Snia e tudo
que ela simboliza:
Rasklnikov como indcios de loucura. Assim Rasklnikov avalia essa escolha: Ele se
deteve com obstinao nesse pensamento. Esse desfecho at lhe agradava mais que qualquer
outro. (p. 334). Essa constatao permite verificar que Rasklnikov se identifica com a
histria e as escolhas de Snia. De fato, ele tambm vive encurralado pelas dificuldades para
sobrevivncia prpria e de sua famlia. Alm disso, sua teorizao sobre os homens
extraordinrios e ordinrios, bem como seu teste para verificar a qual classe pertencia, no
passam de tentativas de que um milagre (ser Napoleo) acontea.
A cena tem seu ponto mais simblico no momento em que Rasklnikov pede a Snia
que leia passagem bblica sobre a ressurreio de Lzaro. Ele quer ouvir de sua boca uma
narrao sobre o milagre de Cristo e assim, conhecer sua convico mais ntima (Ele
compreendia bem demais como era difcil para ela, nesse momento, revelar e evidenciar todo
o seu ntimo. Compreendeu que, em realidade, esses sentimentos pareciam constituir o
segredo verdadeiro dela, p. 337, grifos do autor). E, enfim, Rasklnikov coloca-se ao lado de
Snia: Agora s tenho a ti acrescentou ele. Vamos seguir juntos... Eu vim te procurar.
Ns dois juntos somos malditos, ento vamos seguir juntos! (p. 339). Reconhece-se nela e,
por isso, quer unir seus destinos:
132
Aqui, Rasklnikov pede a Snia que substitua o anseio pelo milagre do perdo e da
ressurreio, pela ao prtica, custe o que custar. Para Motchulski, a leitura do Evangelho
provoca um acesso de orgulho diablico. Runa e destruio so colocadas em oposio
Ressurreio [...] o amor pelo poder permanece e desafia a humildade; a figura do homemdeus se ope a imagem do deus-homem (MOCHULSKY, 1989, p. 508). Seu delrio de ser
extraordinrio ganha novo flego, ainda maior por que na reunio com Porfri, que se segue
ao encontro com Snia, o pintor Nikolai confessa o crime. Mesmo assim, anseia por encontrar
Snia e confessar-se (conforme havia prometido no encontro anterior): hoje! hoje!
repetia consigo. Sim, hoje! Assim deve ser... (p. 366). Mas antes acontece o episdio em
que Ljin arma contra Snia para acus-la de roubo. O caso esclarecido pelo testemunho de
Liebezitnikov e finalizado com a explicitao de Rasklnikov sobre os verdadeiros motivos
da armao. Snia, por sua vez, ouvia tudo tomada de tenso, mas era como se tambm no
compreendesse tudo, como se estivesse despertando de um desmaio. S no desviava seus
olhos de Rasklnikov, sentindo que nele estava toda a sua proteo. (p. 412). A situao
63
Para Lukcs, Atrs dos caracteres opostos, encerra-se uma profunda afinidade. Rasklnikov diz com toda
razo a Snia que ela, com sua ilimitada disposio para o sacrifcio e com sua bondade desinteressada, que a
tinham levado ao ponto de prostituir-se para manter a famlia, tinha passado dos limites, no diferentemente dele,
que havia assassinado a velha usurria. S, acrescenta Dostoivski poeta, que a superao das etapas no caso de
Snia ocorre de modo mais autntico, mais humano, mais imediato e mais plebeu do que com Rasklnikov
(LUKCS, 1965, p. 160)
133
serve, a um tempo, para desmascarar Ljin e interceder por Snia, num ato de justia e amor.
Assim, Rasklnikov fortalece gradualmente sua ligao com Snia. Mas a confisso, e a
reao de Snia diante dela, que levar esta ligao a seu pice: Agora chegou a minha hora!
pensou Rasklnikov. Bem, Sfia Semenova, vamos ver o que voc vai me dizer agora!
(p. 414). No caminho, Rasklnikov se d conta de estar tomado pela necessidade de se
confessar, mesmo sem entender o porqu. Ele apenas sente o impulso em direo a
concretizar o lao entre eles. Para Motchulski nesse segundo encontro com Snia o indivduo
forte chega ao estgio final de seu autoconhecimento (MOCHULSKY, 1989, p. 508) e o
desnudamento das crenas e contradies de Rasklnikov se d diante daquela que j lhe
havia confiado suas convices mais ntimas. Tendo o ouvido falar sobre seu raciocnio e sua
teoria, Snia compreende que esse catecismo sombrio se tornara a f e a lei dele (p. 426) e,
assim, entende que ele animado por uma idia-sentimento, tanto quanto ela.
A situao com Ljin serve tambm de mote para Rasklnikov iniciar a conversa. A
partir da hiptese de que Ljin no fosse desmascarado, Snia fosse presa e Catierina
morresse, Rasklnikov questiona Snia sobre quem ela permitiria continuar vivendo, se
pudesse decidir a esse respeito, conferindo-lhe, assim, o mesmo direito que outorgara a si
mesmo, quando planejou o crime. Quer conduzir Snia pelos tortuosos caminhos de sua
racionalidade, na expectativa, talvez, de que ela possa compreend-lo, e, mais do que isso,
perdo-lo: Quando falei de Ljin e da Providncia, estava falando de mim... Estava pedindo
desculpas, Snia... (p. 417). O momento emocionalmente turbulento para Rasklnikov:
Uma sensao estranha e inesperada de algum dio corrosivo a Snia passoulhe de chofre pelo corao. Meio surpreso e assustado com essa sensao, ele
levantou de sbito a cabea e olhou fixamente para ela; mas deparou com um
olhar desassossegado e dorido de to preocupado; ali havia amor; o dio dele
sumiu como um fantasma. Era outra coisa; ele confundira um sentimento com
outro. Isso apenas significava que aquele momento havia chegado. (p. 418,
grifo do autor)
134
64
George Gibian analisa a tcnica literria da apresentao oblqua das idias, utilizada por Dostoivski, para
apresentar temas importantes para o todo romancesco em contextos rebaixados, ou seja, O dilogo acontece
numa atmosfera de bebedeira e galhofa; a verdade emerge de toda a complexa estrutura, e no de uma afirmao
direta ou de uma declarao abstrata (GIBIAN, 1955, p. 981). Nesse sentido, importante observar o carter
pouco verbal de Snia, uma vez que, segundo Gibian significativo que Snia, a personagem mais sbia do
livro, seja a mais inarticulada dentre os personagens principais do romance (GIBIAN, 1955, p. 980).
135
pudesse ser extraordinrio: E se eu passei tantos dias sofrendo por saber: Napoleo o faria ou
no? ento eu j percebia claramente que no sou Napoleo. (p. 427). A falta de
explicaes claras para os assassinatos permite que se considere a interpretao oferecida por
Vigotski de que Rasklnikov (assim como Hamlet) estivesse submetido ao automatismo
trgico. Suas explicaes racionais so insuficientes. Seu prprio estado de nimo no
momento do crime impede que ele seja tomado como um ato consciente. E para asseverar de
uma vez por todas a irracionalidade do crime, Rasklnikov mata no s a velha usurria, mas
tambm Lisavieta (cujo assassinato tem ares de efeito colateral indesejado, que escapa ao
plano meticulosamente elaborado).
Maurice Beebe identifica trs motivos para a ao de Rasklnikov: 1) desejo de fazer
justia, distribuindo a riqueza adquirida e tornando-se benfeitor da humanidade; 2) a noo de
homem extraordinrio, segundo a qual as atitudes so legitimadas pela conscincia e 3) desejo
de sofrer (BEEBE, 1989, p. 592-603). Na conversa com Snia, Rasklnikov apresenta esses
trs motivos em intensidades diferentes. A essa altura o primeiro tem pouca fora (Se eu
tivesse matado apenas porque estava com fome [...] agora eu estaria... feliz! p. 422). O
segundo mais explorado: por um lado ele afirma ter querido ousar, tomar o poder,
ultrapassar o limite, por outro, sabia desde o princpio que no passava de um piolho. A
existncia de uma verdade mais profunda apenas sugerida por Rasklnikov: Alis estou
mentindo Snia acrescentou faz tempo que ando mentindo... No nada disso; tu dizes
coisas justas. As causas so inteiramente, inteiramente, inteiramente outras! (p. 425).
Embora possa reconhecer que matou a si mesmo, ainda no este o momento em que ele se
sente capaz de carregar a cruz que Snia lhe oferece. O terceiro motivo no lhe totalmente
claro e Snia quem lhe apresenta essa possibilidade gradualmente. Assim termina o
encontro:
136
137
Mas Rasklnikov no pode deixar de notar que em si, coexistindo com essa lgica,
existe uma fora que o carrega para sentidos que ele mesmo no compreende. Por mais que
queira ver a si mesmo como um indivduo independente, sua sensibilidade lhe mostra que o
outro se faz onipresente (concordou de corao). Ainda assim, quer dar uma chance para a
possibilidade de ser um homem e no um piolho (p. 429), pois que o caminho apontado por
Snia no tem volta: Snia? Mais uma vez lhe pedir lgrimas? Demais, Snia era seu pavor.
Snia era a sentena implacvel, a deciso inaltervel. (p. 472). A ciso de Rasklnikov,
expressa em seu nome, aparece na contradio entre o que dizem seus pensamentos e
palavras, por um lado, e seus atos mais espontneos, por outro. Na base desta contradio
verificamos uma ciso entre razo e sentimento. Assim, no possvel encontrar uma
passagem especfica da transcrio do pensamento ou do discurso de Rasklnikov que
explicite sua deciso por entregar-se para a polcia. So suas atitudes que o carregam, semiconsciente, para tal: Ele parecia uma alma penada. No conseguia ficar um minuto no
mesmo lugar, concentrar a ateno em nenhum objeto; seus pensamentos se atropelavam, ele
138
bastante significativa e original essa mudana no tom. Como fora criativa, o riso
funciona como alternativa para sua apreenso to implacvel do mundo. Parece haver um
meio-termo entre aquele Rasklnikov que, num impulso, doava seu dinheiro aos
Marmieldov e aquele que se amaldioa depois de faz-lo. Agora ele brinca com a situao:
Uma mulher pede esmola com uma criana: curioso que ela me ache mais feliz do que ela.
Ento, seria o caso de dar uma esmola por brincadeira. (p. 533). ento que Rasklnikov,
em lgrimas, segue o conselho de Snia, ajoelhando-se diante do povo da praa Sinnaia e
beijando o cho. Esse gesto analisado por Gibian como um momento da reconciliao de
Rasklnikov consigo mesmo e com suas razes:
Ao reverenciar a terra e beij-la, Rasklnikov executa um ato simblico e noracional; o racionalista est marcando o incio de sua transformao em um ser
humano vivo, completo e orgnico, voltando a unir-se a todos os outros
homens na comunidade. Com seu crime e suas idias, ele se separou de seus
amigos, de sua famlia e nao, em uma palavra, se afastou da Me Terra. Por
139
meio do gesto de beijar a terra, ele est restabelecendo todos os seus laos.
(GIBIAN, 1955, p. 991-2)
Aqui suas aes no seguem a aritmtica que ele tanto propala em suas digresses.
Mesmo tendo a possibilidade de tratar o caso com Porfri (que acenara com a possibilidade de
estabelecer atenuantes para a pena), ele prefere ir diretamente delegacia e expor-se
publicamente: Se tenho de esvaziar essa taa, no d tudo no mesmo? Quanto mais amarga,
melhor. (p. 535). Sem manifestar-se para conseguir os tais atenuantes, Rasklnikov preso,
julgado e transferido para a Sibria. Snia o acompanha e passa a visit-lo constantemente,
mas a atitude de Rasklnikov ainda fria com ela. Snia informava a famlia de Rasklnikov
sobre seu estado por meio de cartas repletas de mincias, mas sem exposio de sentimentos e
esperanas. Os cuidados de Snia deixam-no agastado; Rasklnikov sente necessidade de
estar completamente s e tudo lhe parece indiferente: [...] ele fugia de todos, [...] na priso os
gals no gostavam dele (p. 552). Apesar de todo aparente alheamento, Rasklnikov adoece.
no corpo que se manifesta o afeto:
140
[...] que lhe importavam todos esses sofrimentos e torturas! [...] Iria
envergonhar-se da cabea raspada e da meia jaqueta? Diante de quem? De
Snia? Snia o temia, e era dela que iria sentir vergonha?
Ento o que era? Ele sentia vergonha at de Snia, que ele atormentava com o
tratamento desdenhoso e grosseiro que lhe dispensava. Mas no era de cabea
raspada e dos grilhes que se envergonhava: seu orgulho estava fortemente
ferido; era de orgulho ferido que estava doente. (p. 553)
Viver por existir? S que antes ele j estivera milhares de vezes disposto a
dedicar toda a sua existncia a uma idia, a uma esperana, at a uma fantasia.
No entanto sempre achara pouco existir; sempre quisera mais. Talvez tenha
sido s pela fora dos seus desejos que ento ele se considerou um indivduo a
quem era permitido mais que a outros. (p. 553)
Assim, Rasklnikov aparece como um ser desejante de algo maior, de poder ser
considerado sujeito de si mesmo. Diferentemente do que imagina, aquilo que o impulsiona
no somente a razo, mas idias-sentimentos. Com sua presena constante, Snia vence a
rejeio e comea a atingir Rasklnikov: no final essas visitas viraram hbito e quase uma
necessidade para ele (p. 550). Um episdio, semelhante cena na Sinnaia, na qual
Rasklnikov ajoelha e v que Snia o espreita, marca o incio dessa aproximao:
141
Snia quer dizer Sophia, que no pensamento russo ocupa uma posio muito
mais importante do que meramente aquela de seu significado literal,
sabedoria. [...] Sophia o feliz encontro entre deus e natureza, criador e
criatura. No pensamento ortodoxo, Sophia chega perto de ser considerado algo
similar ao quarto elemento divino. O amor por Sophia um amor exttico
generalizado por toda a criao, de modo que as imagens de flores, do verde,
de paisagens, rios, do ar, do sol e da gua ao longo de Crime e castigo podem
142
143
3.7 Eplogo
144
Uma anlise do eplogo de Crime e castigo requer, antes de qualquer coisa, que se
tenha em vista a definio e funo dos eplogos em geral. Para Moiss, em seu Dicionrio de
termos literrios, o eplogo do romance, iluminando a explicando a obra em sua totalidade,
encerra-a por completo e no admite qualquer continuao: o eplogo, no caso, equivale ao
derradeiro elo de uma corrente disposta em crculo (MOISS, 1974, p. 192). Rosenshield
lembra que ele no deve ser estruturalmente necessrio ao romance, mas desempenha o papel
de tornar explcito aquilo que no romance tenha sido somente sugerido (ROSENSHIELD,
1978, p. 117). Ainda segundo este autor, para executar tal tarefa de explicitao, o eplogo
deve diferir tonal e estruturalmente do romance. Quanto tcnica narrativa verifica-se a
preponderncia do sumrio em relao cena, para que o narrador possa atualizar de modo
mais breve e eficaz as histrias dos personagens principais (ROSENSHIELD, 1978, p. 118 e
JOHNSON, 1985, p. 129). No que se refere ao tempo narrativo, observam-se mudanas
importantes tambm. No caso de Crime e castigo, Rosenshield lembra que as seis primeiras
partes do romance levam doze dias, ao passo que o eplogo corresponde a nove meses
(simbolicamente o tempo necessrio para a gestao do novo Rasklnikov, para o seu
renascimento). Para Johnson, o eplogo promove para Rasklnikov uma liberao geral da
tirania do tempo (1985, p. 133).
De modo geral, a crtica se divide em dois grupos, um deles rejeita o eplogo como um
encerramento monolgico e inverossmil para o romance65. De outro lado esto os defensores
do eplogo, os quais encontram linhas de continuidade entre o que ele apresenta e o que foi
desenvolvido no romance. possvel dizer que esses grupos se caracterizam pela apreenso
que fazem do conceito de polifonia. Bakhtin, ao rejeitar o eplogo, o faz por identific-lo
65
Para uma reviso dos crticos do eplogo de Crime e castigo, cf. Rosenshield (1978, p. 112).
145
66
[...] quase todos os romances de Dostoivski apresentam um fim literrio-convencional, monolgicoconvencional (neste sentido sobremaneira caracterstico o fim de Crime e castigo) (BAKHTIN, 2008, p. 46).
146
Outra linha de continuidade que se verifica entre o eplogo e as seis partes do romance
diz respeito aos atos altrustas de Rasklnikov. O amigo Razumkhin relata no tribunal a ajuda
a um colega universitrio tuberculoso e ao pai deste, j a senhoria conta do salvamento de
crianas em um incndio. No romance, tm-se as atitudes de Rasklnikov para com a famlia
Marmieldov e a tentativa de ajudar uma jovem do assdio de um homem mais velho, alm de
outro fato, pouco lembrado na crtica, mas que corrobora com esta inclinao do protagonista
pelos humilhados e ofendidos, sobre a ligao com sua noiva. Perguntado pela me sobre
ela, responde:
[...] Ela era uma moa doente continuou ele, como se voltasse a cair em
meditao e baixando a vista vivia doente; gostava de dar esmola aos
pedintes, estava sempre sonhando em ir para um convento, e uma vez ficou
banhada em lgrimas quando comeou a me falar sobre isso; , ... me lembro...
me lembro muito. Feiaznha... Pra falar a verdade, eu mesmo no sei por que me
afeioei a ela naquele momento, parece que foi porque sempre estava doente...
Fosse ela coxa e corcunda, parece que eu teria gostado ainda mais dela... (Sorriu
meditativo). foi uma espcie de delrio de primavera. (p. 240-1)
67
Schnaiderman, tratando das revistas dirigidas pelos irmos Fidor e Mikhail Dostoivski, lembra que tais
publicaes defendiam o ptchvienitchestvo, tendncia contrria ao desenvolvimento burgus e s
147
148
observar que o eplogo desvela ainda essa faceta da narrao, isto , explicita a escolha do
modo de narrar, tema que tanto ocupou o autor na fase embrionria do romance.
O Rasklnikov descrito nas cartas de Snia ainda sombrio, mudo, ensimesmado, ou
seja, consistente com aquele que as seis primeiras partes deram a conhecer. Em sua relao
com Snia, h um esperado movimento de aproximao que se segue indiferena inicial. Ela
conta que [...] em particular no incio, no s no se interessara pelas visitas dela como
inclusive se sentira agastado com ela, estivera mudo e at grosseiro, mas que no final das
contas essas visitas viraram hbito e quase necessidade para ele (p. 550). No comeo do
segundo captulo do eplogo, a presena daquele Rasklnikov orgulhoso ainda mais
marcante:
Rasklnikov sobre ter a conscincia tranqila e no ter conseguido acabar com a prpria vida,
o narrador faz um comentrio que alude ao que pode haver por trs de tanta intranqilidade:
150
O personagem sem nome tratado, no texto original de Crime e castigo, por meschanin, palavra russa para
pequeno burgus.
151
152
No sonho do espancamento da gua, entre muitas possibilidades interpretativas, Rasklnikov aparece como
uma criana atnita diante da violncia contra o animal. O sonho do Osis fornece um contraponto mais
explcito ao caos apocalptico dos sonhos do eplogo. Ao sonhar com o espancamento da senhoria, novamente
atormentado pelo horror que a violncia gratuita lhe desperta.
153
Assim, possvel dizer que o narrador funciona como a instncia que dirige essa
aventura do conhecimento do outro, e, nesse sentido, pode-se constatar a afirmao de
Rosenshield, de que o narrador de Crime e castigo opera como porta-voz do autor implcito.
O narrador constitui o elo fundador da ficcionalidade do texto, pois, por meio das diferentes
tcnicas empregadas, capaz de representar a conscincia e atuar como tradutor da vida
mental e emocional em linguagem literria.
Tendo tomado contato com toda a potencialidade destruidora de seus pensamentos
utilitrio-racionalistas, Rasklnikov d o primeiro passo para uma efetiva refutao e
superao da teoria. Do sonho permanece uma forte impresso: A Rasklnikov atormentava
o fato de que o delrio disparatado se refletia de forma to triste e torturante em suas
lembranas, de que perdurasse tanto a impresso daqueles devaneios febris (p. 557). A partir
daqui uma srie de pequenos acontecimentos constituir a epifania de Rasklnikov, que lhe
descortinar um universo diferente e resgatar potencialidades at ento adormecidas. O
primeiro deles a apario de Snia, parecendo esperar algo; nesse instante alguma coisa
cortou o corao de Rasklnikov; ele estremeceu e depressa afastou-se da janela. (p. 557).
Depois, ele tem uma espcie de viso do paraso, quando, sentado margem de um rio ele
vislumbra uma terra banhada de sol, habitada por nmades, na qual h liberdade e o tempo
parece haver parado, como se ainda no tivessem passado o sculo de Abrao e seu rebanho
(p. 558).
Dessa seqncia em diante verifica-se uma alterao formal, a qual foi entendida por
Holquist como a passagem do romance policial para a forma simples do conto70. Para o
crtico, os eventos finais do romance no tratam de uma nova temporalidade, mas so
narrados numa nova temporalidade, em que o passado no contnuo ao presente, no o
70
No original o termo usado wisdom tale, que corresponde a conto, conforme a terminologia das formas
simples catalogadas por Andr Jolles (1976).
154
explica (HOLQUIST, 1977, p. 80). Para Jolles, existe no conto uma forma em que o
acontecimento e o curso das coisas obedecem a uma ordem tal que satisfazem completamente
as exigncias da moral ingnua (JOLLES, 1976: 200). Nele deve haver, portanto, subverso
da linearidade espao-temporal da histria: quando o conto adquire traos da Histria [...]
perde uma parte de sua fora. A localizao histrica e o tempo histrico avizinham-no da
realidade imoral e quebram o fascnio do maravilhoso natural e imprescindvel (JOLLES,
1976: 202) A verdade no pode ser encontrada no tempo histrico, horizontal, nos efeitos
presentes dos eventos passados.
O crime como um teste para descobrir a verdadeira identidade (seria Rasklnikov um
homem extraordinrio?) absurdo, pois o protagonista demonstra saber, s vezes de modo
intuitivo, outras vezes literalmente, que ele no passa de um homem ordinrio. Mas isso no
desmonta a teoria em si, no desconstri a idia de que tais categorias realmente existam. Nas
seis partes do romance, Rasklnikov recorre ao mtodo histrico de investigao, para chegar
a descobrir quem . Revive o crime, retorna a esta experincia para buscar pistas que lhe
indiquem, como num enredo policial, como foi capaz de levar tal ao a cabo. A confisso a
prova da derrocada de tal mtodo, de modo que o eplogo se mostra necessrio para que
Rasklnikov encontre sua histria, a forma capaz de lhe conferir meios de se decifrar:
155
Este episdio final considerado por alguns crticos como momento de converso
religiosa e o surgimento de Snia como a apario de um cone. No obstante, nos parece
mais prxima letra do romance a viso de Rosenshield sobre uma mudana na direo da
vida de Rasklnikov, o primeiro passo de uma renovao gradual e longa. Com a Bblia de
Snia nas mos Rasklnikov pensa: Ser que as convices dela podem no ser tambm as
minhas convices? Os seus sentimentos, as suas aspiraes, ao menos... (p. 561). A grande
transformao que ocorre est no modo de viver, o qual antes era analtico e agora
emocional (ROSENSHIELD, 1978, p. 120), porm a histria dessa renovao, segundo a
afirmao do narrador no ltimo pargrafo, tema de outro relato.
No caldeiro ideolgico de Crime e castigo nota-se a forte presena do universo do
transcendente, do outro mundo, como se verifica em Marmieldov, Snia e mesmo em
Svidrigilov, que se encontra sempre entre dois mundos. Rasklnikov afetado durante todo
o romance por essa questo, sendo que o prprio assassinato o impulsiona a lidar com a
passagem para o outro lado, isto , com a finitude. No obstante, no eplogo que esta
realidade se descortina com toda fora e Rasklnikov passa a efetivamente enxerg-la. O
156
reconhecimento dessa linha de fora, que j fazia parte de seu processo subjetivo, permite a
reintegrao daquele eu cindido. Esse processo no est em oposio forma polifnica, pois,
conforme nos lembra Thaden:
O autor romanesco no tenta criar gente real, tanto quanto figuras estilizadas
que se ampliam em arqutipos psicolgicos. [...] por isso que a estria
71
Conforme, por exemplo, as seguintes afirmaes retiradas deste artigo sobre a polifonia: desconcertante
pensar que Bakhtin prope uma teoria que apresenta um Dostoivski de certa forma inofensivo, que neutraliza
seus ensinamentos, que o torna um relativista. (WELLEK, 1980, p. 35); sobre a carnavalizao: Ele [Bakhtin]
ignora a profunda seriedade, as cores sombrias de um romance dostoievskiano, mesmo se considerarmos que
haja uma vvida esperana utopista no final do arco-ris. [...] Em todos os sentidos Dostoivski me parece
representar o oposto do esprito carnavalesco. Ele era um homem de profundo comprometimento, profunda
seriedade, espiritualidade e rgida tica, independentemente de quaisquer falhas em sua prpria vida.
(WELLEK, 1980, p. 37)
157
Essa mesma identificao do plano metafsico em Dostoivski faz com que Vigotski,
retomando outros crticos, aponte paralelos entre Rasklnikov e Hamlet, e mesmo entre os
autores Shakespeare e Dostoivski, os quais, para Viatcheslv Ivnov, eram artistasobnubiladores, servidores das revelaes supremas (VIGOTSKI, 1999, p. 195). Entre os
aspectos que unem essas obras, destaca a sensao de catstrofe decisria, o aspecto mstico e
o automatismo trgico. Sobre os protagonistas, afirma:
159
4. Consideraes finais
Neste derradeiro captulo, o objetivo ser esboar algumas consideraes gerais
suscitadas pelo romance, tendo em vista os resultados das anlises dos pares de personagens e
do eplogo. Um dos primeiros pontos que pode ser destacado diz respeito ao carter
contraditrio do personagem estudado, o protagonista Rodion Rasklnikov. Sua natureza
camalenica observada por inmeros crticos. Retomaremos aqui as palavras de Rahv, que
na passagem citada expressa esse aspecto sem deixar de notar habilidade de Dostoivski em
criar um personagem detentor de unicidade:
do sentido vida tornou-se problemtica, mas que ainda assim tem por inteno a totalidade
(LUKCS, 2000, p. 55). Rosenfeld atenta para o fato de que a fico o nico lugar em que
os ser humanos se tornam transparentes nossa viso por se tratarem de seres puramente
intencionais sem referncias a seres autnomos; de seres totalmente projetados por oraes
(ROSENFELD, 2007, p. 35). O que Dostoivski faz ao apresentar um sujeito no-transparente
aquilo que Rosenfeld considera como tarefa dos grandes autores. Estes levam a fico s
ltimas conseqncias, refazem o mistrio do ser humano, atravs da apresentao de
aspectos que produzem certa opalizao e iridescncia, e reconstituem, em certa medida, a
opacidade da pessoa real (ROSENFELD, 2007, p. 35). nesse sentido que Ortega y Gasset
reconhece em Dostoivski um realista que recorre forma da vida e no seu material:
72
Este artigo comentado por Bris Schnaiderman nos captulos M. Bakhtin, a Potica de Dostoivski,
Polifonia e Esttica da Obra Literria de Turbilho e semente (1983, p. 77-9 e 127-8). Nesse segundo texto,
Schnaiderman contextualiza as crticas de Hayman, apontando para o fato de que, em escritos posteriores, os
quais no haviam sido divulgados no Ocidente quando da publicao do artigo de Hayman, indicam a
preocupao de Bakhtin com a natureza ambivalente do riso (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 127-8)
161
Uma das maneiras de decifrar a totalidade de uma obra literria conferir-lhe uma
explicao psicolgica que a encerre e justifique todos seus elementos. Dauner, por exemplo,
entende que Crime e castigo pode ser lido como uma odissia psquica (DAUNER, 1958, p.
199) constituda pelo processo de individuao junguiano e compreendendo os quatro
estgios do processo analtico: confisso, explanao, educao e transformao. Entretanto,
tais estgios corresponderiam somente metade final do romance e a tentativa de identificlos desconsidera um fato patente que surge da anlise do processo de constituio da
subjetividade de Rasklnikov: trata-se da representao de um momento de crise, que,
portanto, no se desenvolve linearmente no tempo e que profundamente marcado por
descontinuidades e coexistncia de estados contraditrios. Nas nossas anlises foi possvel
observar que a compreenso de Rasklnikov no se d por meio de esquemas biogrficos, do
estabelecimento de uma histria linear. Sua voz se faz ouvir por intermdio do narrador (pelo
relato dos sonhos e acesso conscincia) e principalmente pelo dilogo com o outro. Nesse
dilogo todas as inconsistncias e ambigidades, isto , todas as facetas de sua subjetividade
cindida so desveladas. Nesse sentido, bastante adequada a distino que Bakhtin faz entre
os personagens do romance de aventura e do romance biogrfico, psicolgico-social, familiar
e de costumes, bem como a aproximao dos heris dostoievskianos ao primeiro. Se no
162
como precursor de toda a fico moderna, criador que foi de obras em que o
rompimento do determinismo causal do sculo XIX resulta numa prosa
estranhamente prxima poesia, rica de contrastes e de saltos, onde o sublime
se mistura com o ignbil e as idias mais elevadas, com a cotidiano mais
trivial. (SCHNAIDERMAN, 1982, p. 58)
Quando Nietzsche diz que Dostoivski o nico que me ensinou algo sobre
psicologia, participa de uma tradio secular que, no literrio, l o psicolgico,
o filosfico, o social mas no a prpria literatura ou o discurso; que no
percebe que a inovao de Dostoivski muito maior no plano simblico do
que no plano da psicologia, que aqui no passa de um elemento entre outros.
Dostoivski muda nossa idia da idia e nossa representao da representao.
(TODOROV, 1980, p. 138-9)
Lukcs afirma que as aes dos personagens dostoievskianos so aes de pessoas solitrias: pessoas que na
maneira de sentirem a vida, o seu ambiente e a si mesmos, reduzem-se completamente aos seus prprios
recursos, passando a viver introvertidamente com tal intensidade que o pensamento alheio transforma-se numa
terra incgnita. Para eles, o outro existe apenas como uma potncia estranha e ameaadora que ou os subjuga,
ou por eles subjugado. [...] De fato o isolamento e a solido das pessoas reduzem as relaes entre elas a uma
luta pela dominao. A experincia no nada mais que uma manifestao espiritual sublimada, a realizao
psquica das lutas pelo poder. (LUKCS, 1965, p. 151)
164
Para Kehl A difuso das formas ficcionais de todos os nveis, do grande romance realista ao folhetim, produz,
como efeitos no campo, todo um modo de se conceber a relao dos homens com seu destino uma relao
particularmente carregada de responsabilidade, na modernidade e organiza grosso modo, a produo de
sentidos para a vida, fundamentais em uma sociedade que recentemente deixou de ser regida por crenas em
uma ordem divina que predeterminaria o destino e o sentido da vida (KEHL, 2001, p. 64-5).
165
Assim, o que Dostoivski nos proporciona a viso do homem no homem, dos bastidores
da conscincia e da constituio da subjetividade. Mais importante ainda a clara percepo
que o romance lega de que tal processo de superao de si ou de transcendncia se realiza na
relao humana, ou seja, com a afirmao do outro e no na sua negao. E essa no uma
verdade que aniquiladora das outras, , ao contrrio, o pressuposto para o direto de existncia
de mltiplas verdades. Tudo isso fala muito de perto ao homem contemporneo, aquele que
aprendeu a racionalizar, mas que continuamente se v s voltas com as limitaes desse
artifcio. Explica, em grande medida, o fascnio que Crime e castigo exerceu em mim e em
tantos outros leitores mundo afora, mas no esgota os sentidos possveis que cada leitura
particular pode oferecer. Por fim, resta-nos expressar o desejo de que o esforo analtico e
sensvel realizado nesse trabalho possa, de alguma forma, contribuir para o enriquecimento do
contato com o texto dostoievskiano, este sim, insubstituvel.
166
5. Referncias bibliogrficas
170
SNODGRASS, William de Witt. Crime for punishment: the tenor of part one. The Hudson
Review. Vol. XIII, n2 Summer, 1960.
SPIEGEL, John (Jnos). Dimensions of laughter in Crime and Punishment. Londres:
Associated University Presses, 2000.
TERRAS, Victor. Reading Dostoevsky. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1998.
THADEN, Barbara Z. Bakhtin, Dostoevsky, and the Status of the I. Dostoevsky Studies.
Vol. 8, 1987.
THOMAS, George. Aspects of the Study of Dostoevskys Vocabulary. The Modern
Language Review. Vol. 77, no. 3 Julho, 1982.
TOASSA, Gisele. Emoes e vivncias em Vigotski: investigao para uma perspectiva
histrico-cultural. So Paulo, 2009. Tese de doutorado em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano. Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo.
TODOROV. Tzvetan. Notas de um subterrneo. In: Os gneros do discurso. So Paulo:
Martins Fontes, 1980.
VAN DER VEER, Ren; VALSINER, Jaan. Vygotsky: uma sntese. Traduo Ceclia C.
Bartalotti. So Paulo: Loyola, 1996.
VIGOTSKI, Liev Semionovitch. A tragdia de Hamlet, prncipe da Dinamarca. So Paulo:
Martins Fontes, 1999.
______. Psicologia da arte. So Paulo: Martins Fontes, 2001.
WASIOLEK, Edward. On the structure of Crime and Punishment. PMLA, vol. 74, n1 March,
1959.
WELLEK, Ren; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Europa-Amrica, 1962.
WELLEK, Ren. A sketch of the history of Dostoevsky criticism. In: Discriminations: further
concepts of criticism. New Haven and London: Yale University Press, 1970.
______. Bakhtins View of Dostoevsky: Poliphony and Carnivalesque. Dostoevsky
studies. Vol. 1, 1980.
WOLF, Peter Mcguire. Dostoevskys Conception of Man: Its Impact on Philosophical
Antropology. Pennsylvania, 1997. Tese de Doutorado em Literatura e Filosofia
Pennsylvania State University.
173
ANEXOS
174
175
crtico russo, acolheu seu primeiro romance, Gente pobre (1846)1, com elogios empolgados:
Honra e glria ao jovem poeta cuja Musa ama as pessoas dos stos e pores e diz aos
habitantes de palcios dourados: olhem, eles tambm so homens, tambm so seus irmos.
Mas o segundo romance de Dostoivski, O duplo2 (publicado apenas dois meses depois do
primeiro), desapontou profundamente a Bielnski. Era fantstico, ele reclamava, e o fantstico
pode ter seu lugar apenas em asilos de loucos e no na literatura. assunto para mdicos e
no para poetas. Essas frases marcaram o tom de muito da crtica russa inclusive nos dias
atuais. Dostoivski ora o anjo compassivo dos humilhados e ofendidos, ora o sonhador de
sonhos esquisitos, dissecador de almas doentes.
Essa reputao inicial de Dostoivski esmoreceu com seu exlio de dez anos na
Sibria. Somente aos poucos se recuperou porque ele havia desenvolvido um ponto de vista
poltico similar quele dos eslavfilos e parecia ter desertado dos radicais com os quais
supostamente simpatizava. Na dcada de 1860, Dostoivski ainda era tratado pela crtica
radical com aprovao e respeito, embora ele agora atacasse a viso estritamente poltica e
utilitria de literatura que esses crticos defendiam. Nikolai Dobrolibov (1836-61) resenhou
Humilhados e ofendidos3 (1861) num esprito semelhante ao de Bielnski. Ele foi receptivo ao
pathos social e compaixo pelos oprimidos, mas no conseguia considerar o livro como uma
obra de arte. Dmtri Pssariev (1840-68), o mais violento dos crticos radicais, percebeu que
Crime e castigo (1866) era uma investida contra os revolucionrios. Ainda que tenha elogiado
a humanidade e o poder artstico do autor, ele tentou negar as implicaes da mensagem
antiniilista de Dostoivski, ao argumentar que as teorias de Rasklnikov no tinham nada em
comum com aquelas da juventude revolucionria e que a raiz da doena de Rasklnikov no
estava em seu crebro, mas em seu bolso.
1
Dostoivski, F. M. Gente pobre. Traduo Ftima Bianchi. So Paulo: Editora 34, 2009. Todas as notas so da
tradutora.
2
Dostoivski, F. M. O duplo. Traduo Nina Guerra e Filipe Guerra. Lisboa: Presena, 2003.
3
Dostoivski, F. M. Humilhados e ofendidos. Traduo Klara Gourianova. So Paulo: Nova Alexandria, 2003.
177
4
5
178
que dedicou a Dostoivski um captulo de seu livro O romance russo6 (1886). De Vog
indicou os romancistas russos como um antdoto contra os naturalistas franceses, elogiando
particularmente Turguniev e Tolsti. Ele contrastou o pathos tico dos russos e a caridade
crist com o pessimismo determinista de Zola. Mas tratou Dostoivski com ar estranhamente
distante, quase confuso. Voici venir le Scythe, le vrai Scythe7, so as primeiras palavras do
captulo, e expresses como o Jeremias das prises, o Shakespeare do hospcio do o tom
de sua alarmada apreenso da esquisita religio do sofrimento de Dostoivski. De Vog
falou perceptivamente de Crime e castigo, mas todos os romances posteriores pareciam-lhe
monstruosos e impossveis de serem lidos8. To fortemente eles ofendiam o senso francs
de forma e estilo que ele at duvida que pudessem ser chamados romans: ele queria um novo
termo, como roussan. Quase simultaneamente apareceu um ensaio (1885, reimpresso na
Ecrivains franciss em 1889) do jovem e brilhante crtico Emile Hennequim (1859-88), que
tambm se concentrou na rejeio da razo por Dostoivski, em sua exaltao da loucura,
idiotia e imbecilidade e ignorou totalmente sua perspectiva posterior. O verstil e influente
crtico dinamarqus Georg Brandes, cujas Impresses da Rssia (1889)9 apareceram
simultaneamente numa traduo inglesa em Nova Iorque, no foi mais longe: Dostoivski
prega a moralidade do pria, a moralidade do escravo.
Foi por acaso que o solitrio filsofo alemo Friedrich Nietzsche (1844-1900)
descobriu Dostoivski. Em fevereiro de 1887 Nietzsche leu uma traduo francesa de
Memrias do subsolo10 e, imediatamente, reconheceu uma mente semelhante: o nico
psiclogo de quem ele tinha qualquer coisa a aprender sobre a psicologia do criminoso, a
6
Com traduo para o portugus de Brito Broca. VOG, Melchior. O romance russo. Rio de Janeiro: A noite,
1950. A edio conta ainda com um prefcio do tradutor.
7
Eis que chega o cita, o verdadeiro cita. VOG, op. cit., p. 181.
8
De Vog referiu-se a Os irmos Karamzov com as seguintes palavras: pouqussimos russos, segundo uma
confisso comum, tiveram a coragem de ler at o fim essa interminvel histria (1950: 221), e sobre
Dostoivski diz: um fenmeno de outro mundo, um monstro incompleto e poderoso, nico pela originalidade
e intensidade (1950: 222).
9
Brandes, Georg. Impressions of Russia. Nova Iorque: T. Y. Crowell & Co., 1889.
10
Dostoivski, F. M. Memrias do subsolo. Traduo Boris Schnaiderman. So Paulo: Editora 34, 2000.
179
11
Dostoivski, F. M. Crime e castigo. Traduo Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34, 2001.
180
12
Lukcs, G. Dostoievski. Traduo lio Gspari. In: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1965.
181
Bakhtin, M. Problemas da potica de Dostoivski. Traduo Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 2008.
182
Nos anos recentes, Dostoivski tem sido reimpresso mais amplamente e os estudiosos
soviticos tm discutido at mesmo as ltimas obras e a ideologia hostil com maior
compreenso. Uma tentativa mais deliberada tem sido feita a fim de recolocar Dostoivski
entre os cnones dos clssicos russos, para assimil-lo tradio geral do realismo e
humanitarismo social. Tal empreitada s poder ter xito parcial e custa das mais originais e
seminais caractersticas de Dostoivski, sua psicologia, seu antiniilismo, sua religio e seu
simbolismo.
Enquanto questes sociais, histricas e formais estavam sendo debatidas na Rssia
Sovitica, os imigrantes russos adotaram Dostoivski como profeta do apocalipse e filsofo
da religio ortodoxa. Nikolai Berdiaiev (1874-1949) e Viatcheslav Ivnov (1866-1949)
exaltaram Dostoivski a alturas vertiginosas. Em A viso de mundo de Dostoivski (Praga,
1923) Berdiaiev14 conclui: tamanha a importncia de Dostoivski que t-lo produzido ,
em si mesmo, uma justificativa suficiente para a existncia do povo russo no mundo: e ele
suportar testemunhar a favor deste compatriota no ltimo julgamento das naes. Berdiaiev
tem uma compreenso inquestionavelmente profunda das implicaes teolgicas e filosficas
das idias de Dostoivski e uma viso crtica de alguns de seus ensinamentos: ele no o
considera, por exemplo, um mestre de disciplina espiritual, mas, ao contrrio, tenta fazer do
conceito de liberdade, de escolha entre o bem e o mal, o centro do pensamento de
Dostoivski, e do seu prprio. Enquanto Berdiaiev quase ignora o Dostoivski-romancista,
Ivnov ele mesmo um importante poeta simbolista em seus ensaios (compilados em ingls
como Liberdade e vida trgica, 195215) interpreta os romances dostoievskianos como um
novo gnero, o romance-tragdia, e tenta definir suas normas peculiares. Na verdade, a
14
No Brasil esta obra ficou conhecida como O esprito de Dostoivski, com traduo de Otto Schneider pela
Editora Panamericana.
15
Ivanov, Vyacheslav. Freedom and tragic life: a study in Dostoevsky. Nova Iorque: Noonday Press, 1959.
183
nfase de Ivnov recai sobre os mitos presentes nos escritos de Dostoivski: ele v os
romances como vastas alegorias que profetizam um novo reino dos santos.
Enquanto esses dois grandes homens freqentemente foravam o significado de
Dostoivski para adapt-lo aos seus prprios propsitos, outros estudiosos russos emigrantes
de destaque estudaram seu pensamento e arte bem de perto. O trabalho requintado e difuso de
Dmitri Tchijvski (1894-1977) ajudou a esclarecer a psicologia e a tica de Dostoivski,
assim como as relaes do romancista com a histria do pensamento e da literatura. O ensaio
O tema do duplo (1929) feliz ao combinar uma compreenso dos problemas filosficos
com o conhecimento das relaes histricas. O mesmo esprito erudito perpassa o trabalho de
V. V. Zenkovski (1881-1962), cuja ampla Histria da filosofia russa (1948) compara o
pensamento de Dostoivski com o de seus predecessores e contemporneos. Dostoivski
(1946)16 de Konstantn Motchulski tambm se aproxima dos textos atuais. Seu longo livro
iluminado por uma afetuosa simpatia pelo simbolismo e pela religio ortodoxa, conclui
associando Dostoivski aos grandes escritores cristos da literatura mundial Dante,
Cervantes, Milton e Pascal. Motchulski interpreta meticulosamente figuras, cenas e
significados realmente presentes nos romances. Dostoivski (1942) de L. A. Zander, por outro
lado, tenta forosamente encaixar metforas e smbolos do autor nos moldes dos mitos.
Dostoivski deixa de ser romancista ou mesmo publicista: ele se torna um propagador de uma
sabedoria indefinvel sobre a boa terra e o noivo celeste, um mstico na tradio ortodoxa
russa.
Deste modo, as interpretaes antagnicas de Dostoivski na crtica russa permanecem
divididas por um abismo intransponvel. O compassivo pintor da misria de Petersburgo
confronta o produto do paraso logo na esquina. Os marxistas erroneamente descartam as
preocupaes centrais de Dostoivski, mas os escritores migr que acertadamente
16
Mochulsky, K. Dostoevsky: his life and work. Traduo Michael Minihan. Princeton: Princeton University
Press, 1967.
184
17
Mann, Thomas. Dostoevsky in moderation. In: Dostoevsky, F. M. The short novels of Dostoevsky. Nova
Iorque: Dial Press, 1945.
18
Dostoievski, F. M. O eterno marido. Traduo Boris Schnaiderman. So Paulo: Editora 34, 2003.
185
19
Johann Christian Reil (1759-1813) e Carl Gustav Carus (1789-1869). Sobre a relao de C. G. Carus e
Dostoivski cf. Gibian, George. C. G. Carus and Dostoevsky. American Slavic and East European Review. Vol.
14, n 13 (Oct., 1955), pp. 371-382. O item 2.1 da presente dissertao tambm aborda essa questo.
186
Somente na modificada atmosfera do sculo XX, quando Romain Rolland, Paul Claudel,
Charles Pguy e Andr Gide redescobriram a vida do esprito, Dostoivski pode se tornar um
mestre. Em 1908 Gide (1869-1951) viu que Dostoivski havia tomado o lugar de Ibsen,
Nietzsche e Tolsti: preciso dizer que um francs sente-se desconfortvel no primeiro
contato com Dostoivski ele lhe parece muito russo, muito ilgico, muito irracional, muito
irresponsvel. O prprio Gide superou esse desconforto. Em Dostoivski (1923) o crtico
enfatiza a psicologia de Dostoivski, sua ambigidade e seu indeterminismo, e busca apoio
para sua prpria preocupao central com a liberdade humana, com o acte gratuit. Jacques
Rivire (1886-1925), o editor de La Nouvelle Revue Franaise, expressa sua desconfiana em
relao aos mistrios de Dostoivski em um breve ensaio (1923): Na psicologia as
verdadeiras profundezas so aquelas que so exploradas. Marcel Proust contesta, afirmando
que o gnio de Dostoivski contrariamente ao que diz Rivire estava no mbito da
construo; mas, na conhecida passagem de A prisioneira20, Proust confessa que a
preocupao de Dostoivski com o assassinato algo extraordinrio, que o torna muito
estranho para mim. Surpreendentemente h pouca crtica francesa sobre Dostoivski: o livro
de Andr Suarez (1913) pode ser considerado uma rapsdia extravagante sobre um
Dostoivski mstico, sensualista e sofredor. Os ataques a Dostoivski por parte de Denis
Saurat e Henri Massis devem ser vistos no contexto da defesa do ocidente contra as foras
do caos, da anarquia e do irracionalismo oriental, as quais Dostoivski supostamente
representava.
No existencialismo francs Dostoivski aparece como um precursor e testemunha de
acusao: Cada um de ns responsvel por todos os outros, de todas as formas, e eu mais
do que todos: o ensinamento do irmo Markel, que pediu perdo at aos pssaros quase um
slogan para esses escritores. Hui clos de Sartre a contraparte do Bobk de Dostoivski.
20
187
Em O mito de ssifo21 (1942) de Camus a dialtica de Kirlov usada para apoiar a tese do
absurdo da criao, e em O homem revoltado22 (1952) Ivan Karamzov torna-se o proponente
de uma rebelio metafsica. A influncia de Dostoivski em autores to diversos como
Charles-Louis Philippe, Malraux, Mauriac, Sartre e Camus incalculvel. E mal comeou a
ser estudada. Mas, de modo geral, a maioria dos escritores franceses parece compreender mal
a posio final de Dostoivski. Os existencialistas vem somente o homem do subsolo em
Dostoivski e ignoram o testa, o otimista, e mesmo o utopista que ansiava por uma era
dourada um paraso na terra enquanto depreciava os sonhos socialistas de uma utopia
coletiva como um formigueiro monstruoso ou uma Torre de Babel.
Os alemes produziram de longe o maior corpo de interpretaes e estudos sobre
Dostoivski fora da Rssia. Karl Ntzel escreveu Vida (1925), uma biografia totalmente
documentada de Dostoivski, afora inmeros estudos sobre seu pensamento. O mais
consciencioso Die Philosophie Dostojewskis (1950) de Reinhard Lauth que analisa toda a
psicologia, a tica , a esttica e a metafsica de Dostoivski, e trata todas as suas declaraes
como se elas formassem uma exposio coerente de um sistema consistente. A hiptese
bsica parece equivocada, mas o livro o melhor e mais objetivo resultado de um longo
debate entre telogos e filsofos. Eduard Thurneysen foi o primeiro (1921) a interpretar
Dostoivski a partir dos conceitos da teologia da crise, que se baseava em Karl Barth, o
telogo calvinista. J Paul Natorp, um proeminente membro do movimento neo-kantiano,
descreveu Dostoivski (1923) como um pantesta: Ele aceita o mundo incondicionalmente:
ele ama o imediatismo de cada momento vivido. Tudo vive, somente a vida existe. Hans
Prager, em seu conhecido texto Viso de mundo de Dostoivski (1925), via o escritor
principalmente como filsofo do nacionalismo: Deus , para Dostoivski, simplesmente a
personalidade sinttica de uma nao. Romano Guardini, um estudioso jesuta alemo de
21
22
Camus, A. O mito de Ssifo. Traduo Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Camus, A. O homem revoltado. Traduo Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008.
188
FREUD, Sigmund. Dostoivski e o parricdio. In: Futuro de uma iluso / Mal-estar na civilizao e outros
trabalhos. Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. XXI.
189
sentia culpa pelo assassinato de seu pai por camponeses enquanto ele estava longe, na escola
de engenharia. O famoso protesto de Ivan (no citado por Freud) no julgamento Quem de
ns no deseja a morte de seu pai? refere-se antes ao reconhecimento da culpa universal. O
parricdio , para Dostoivski, o maior sintoma da decadncia social, trata-se de um
rompimento dos laos humanos que contradiz a obrigao ao perdo universal e a promessa
da ressurreio da carne com a qual Os irmos Karamzov termina. A viso freudiana
elaborada por escritores posteriores tem favorecido a reduo dos romances de Dostoivski a
documentos autobiogrficos e tem enfatizado os temas mrbidos, patolgicos e criminais em
Dostoivski.
O efeito de Dostoivski na literatura alem criativa dificilmente foi menor do que na
Frana. Os cadernos de Malte Laurids Brigge 24(1912) de Rilke impregnado de Dostoivski.
Os poetas expressionistas alemes receberam-no de forma entusiasmada como profeta de uma
irmandade universal. Numa curiosa pintura do grupo expressionista, Max Ernst retratou a si
prprio sentado no colo de Dostoivski25. Depois da Primeira Guerra Mundial, Dostoivski
tornou-se extremamente popular: s em 1921 mais de 200 mil cpias de seus romances foram
vendidas. A edio completa de Piper Verlag em Munique, com introdues de Arthur Mller
van den Bruck e de outros intrpretes apocalpticos da alma russa, difundiram ao mesmo
tempo uma imagem distorcida do autor, e o conhecimento de seus textos. Kafka certamente
aprendeu com Dostoivski (embora tenha aprendido mais com Ggol e Tolsti); Jakob
Wassermann escreveu imitaes virtuais dos romances de Dostoivski; e algo do esprito de
compaixo e de fraternidade universal de Dostoivski permeia os romances de Franz Werfel.
Hermann Hesse (1877-1962) mostra as marcas de Dostoivski em O lobo da estepe26 (1927) e
em outros textos, embora o panfleto Blick ins Chaos (1920) expresse seu temor em relao ao
24
Rilke, R. M. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Traduo Lya Luft. So Paulo: Novo Sculo, 2008.
Au rendez-vous des amis (1922) de Max Ernst. leo sobre tela. Museu Ludwig, Colnia, Alemanha.
26
Hesse, H. O lobo da estepe. Traduo Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 2000.
25
190
obscurantismo eslavo de Dostoivski. Thomas Mann expe a viso de Dostoivski como uma
combinao de criminoso-e-santo e pede moderao na admirao; mas certamente o
demnio de Adrian Leverkhn em Doktor Fautus (1947) deriva direta e explicitamente do
visitante miservel de Ivan Karamzov. Dostoivski demorou muito a alcanar o mundo
anglfono. Os irmos Karamzov foi traduzido por Constance Garnett somente em 1912,
quando ela comeou a traduo completa dos romances de Dostoivski que ainda padro e
insuperada (apesar de alguns poucos erros e lapsos derivados do puritanismo vitoriano). As
Recordaes da casa dos mortos27 foram traduzidas em 1881 (como Enterrados vivos) e
Crime e castigo em 1886. O livro de de Vog foi traduzido no ano posterior e parece ter sido
a fonte de muitas reaes crticas a Dostoivski na Inglaterra. R. L. Stevenson expressou
entusiasmo (numa carta, 1886) por Crime e castigo, que ele lera em traduo francesa e
recordou alguns de seus detalhes ao escrever Markheim (1885), a histria do assassinato de
um usurrio. Em 1882 Oscar Wilde considerou Humilhados e ofendidos como uma obra
altura de Crime e castigo. George Moore deprecia Dostoivski como sendo um Gaboriau
[um antigo romancista policial francs] com tempero psicolgico, mas estranhamente
escreveu um laudatrio prefcio Gente pobre (1894). George Gissing percebeu as afinidades
entre Dostoivski e Dickens e foi um dos primeiros a apreciar o humor de Dostoivski. J
Henry James referiu-se aos monstros frouxos e pudins fluidos de Tolsti e Dostoivski,
apontado a falta de composio, a provocao economia e da arquitetura por eles
promovida, mesmo quando reconhecia a slida e extrema qualidade de seus gnios.
Dostoivski despertou grande desagrado em Joseph Conrad e John Galsworthy. Conrad
considerou Os irmos Karamzov uma massa impossvel de substncia valorosa.
terrivelmente ruim, impressionante e irritante. Alm disso, eu no sei o que Dostoivski
significa ou revela, mas eu sei que ele muito russo pra mim. Soa como um falatrio raivoso
27
Dostoivski, F. M. Recordaes da casa dos mortos. Traduo Nicolau Peticov. So Paulo: Nova Alexandria,
2006.
191
vidas no passveis de serem vividas. Com similar displicncia Murry interpreta Svidrigilov
como o verdadeiro heri de Crime e castigo e alegoriza Os irmos Karamzov. Pode ser que
no houvesse realmente nenhum Smerdikov, assim como nenhum diabo, e ambos residissem
na alma de Ivan. Mas, ento, quem cometeu o assassinato? Nesse caso, certamente, pode ter
sido o prprio Ivan, ou, por outro lado, pode ser que no tenha existido nenhum assassinato.
Ainda assim, as duras palavras de D. S. Mirsky sobre o choramingo Pecksniffiano28 de
Murry no so justificveis. Murry est certo em sua principal reivindicao: de que a crena
de Dostoivski na regenerao da humanidade pressupe um milagre. Em sua opinio, ainda
que desajeitadamente elaborada, Dostoivski contemplou e procurou penetrar uma nova
conscincia e um novo modo de ser que ele considerava metafisicamente inevitvel para a
humanidade. Murry sentia orgulhosamente que o padro objetivo de Dostoivski
declarara-se atravs de mim como instrumento, embora devamos reconhecer a influncia
tanto de Merejkovski quanto de Chestov. A concepo de Murry sobre Dostoivski como
Sumo Sacerdote da autoconscincia intelectual explica a violncia com que D. H.
Lawrence, que ento se aproximava de Murry, reagiu adorao a Dostoivski. Eu no gosto
de Dostoivski. Ele como um rato, serpenteando em dio, nas sombras, e, para pertencer
luz, professa o amor, todo o amor. Lawrence pensa que Dostoivski, misturando Deus e
Sadismo, infame. Em duas cartas a Murry sua antipatia torna-se uma aguda vituperao
do que ele considera ser a obsesso de Dostoivski por ser infinito, ser Deus. A questo de
Dostoivski reside no seu desejo de que o ego individual, o eu conquistado, o eu consciente
torne-se infinito, semelhante a Deus, e seja absolvido de toda relao. Para Lawrence, os
romances parecem grandes parbolas, mas falsa arte. So somente parbolas. Todas as
pessoas so anjos cados, inclusive as mais desprezveis. Isso eu no posso suportar. As
pessoas no so anjos cados, so apenas pessoas. Quando Lawrence recebeu o livro de
28
193
Murry, ele mergulhou num acesso de desgosto. Dostoivski pode delicadamente enfiar a
cabea entre os ps de Cristo e balanar o traseiro no ar. Mas quando Lawrence planejara
representar Murry e Katherine Mansfield como Gerald Crich e Gudrun em Mulheres
apaixonada29s e encontrar um antdoto para Dostoivski no filsofo russo Rosanov e nos
romances de Verga, sua viso de Dostoivski tornou-se mais desinteressada e tolerante. A
introduo por ele escrita para uma traduo de O grande inquisidor no ano de sua morte
(1930) mostra uma apurada compreenso do argumento e sua implicao, embora Lawrence
interprete mal o final quando diz que Jesus beija de modo condescendente o Inquisidor.
Certamente Jesus Cristo no aceita os argumentos do Grande Inquisidor: ele os responde da
nica forma que a religio pode responder ao atesmo com silncio e perdo. O Inquisidor
refutado pelo beijo silencioso. Logo em seguida Alicha beija Ivan, da mesma forma que
Cristo fez com o Inquisidor, perdoando-no por seu atesmo e respondendo a sua revolta com
misericrdia crist. Ivan sabe disso quando diz: Isso plgio. Voc roubou isso do meu
poema.
O dilogo entre Murry e Lawrence sintomtico da forte reao emocional a
Dostoivski na Inglaterra durante e logo aps a Primeira Guerra Mundial. Um culto a
Dostoivski existiu por alguns anos, e, certamente, muitos romancistas ingleses demonstram
terem-no lido, tentado evocar seu tom ou formular personagens dostoievskianos. Os romances
da Rssia, de Hugh Walpole (1884-1941) A floresta negra (1916) e sua continuao A
cidade secreta (1919) podem servir de exemplo. Uma figura como Spandrell no
Contraponto30 (1928) de Aldous Huxley inconcebvel sem Stavrguin e Svidrigilov. Mas a
literatura crtica inglesa sobre Dostoivski reflete uma reao contra a interpretao
apocalptica de Murry e dos russos (Berdiiev e Ivnov) que foram ento traduzidos para o
29
30
194
ingls. A biografia de E. H. Carr (1931)31 pode ser caracterizada como excessivamente sbria
e imparcial; a fartamente lida Histria da literatura russa (1927) de D. S. Mirsky trata
Dostoivski de modo frio como um envolvente e interessante romancista de aventura, e
aceita, de modo geral, a nfase de Chestov em seu niilismo. Mirsky era um prncipe russo
com residncia temporria na Inglaterra, que importou as atitudes dos formalistas russos: sua
descrena em toda ideologia, sua nfase nas virtudes formais, seu amor por Puchkin,
Lirmontov e Tolsti. O conciso estudo psicolgico Dostoivski e sua criao (1920) de
Janko Lavrin, ou o aptico levantamento Personagens de Dostoivski (1950) de Richard
Curle, no podem ser acusados de extravagncia. O bom ensaio de Derek Traversi (1937)
pode inclusive parecer excessivamente severo na crtica ao misticismo de Dostoivski,
considerando-o infundado e falso e ao atribuir to duras conseqncias crticas arte de
Dostoivski por seu dualismo entre mente e corpo, Deus e o mundo. Traversi v apenas as
polmicas anticatlicas e ignora a paradoxal defesa que Dostoivski faz da Igreja Ortodoxa.
Recentemente a preocupao europia com a teologia de Dostoivski e com o que pode ser
chamado de concepo existencial de homem tambm comeou a aparecer na crtica inglesa.
Martin Jarret-Kerr exps a agonia da crena de Dostoivski em Estudos em literatura e
crena (1954); Colin Wilson, em The Outsider (1956) usou os heris de Dostoivski como
exemplos da busca pela identidade e de modo perceptivo os relacionou a Blake. D. S. Savage
discutiu de modo brilhante O Jogador (em The Sewanee Review, 1950) embora tenha
estranhamente ignorado a marcante figura da av jogadora; e Michael H. Futrell estudou a
relao entre Dostoivsky e Dickens (em The English Miscellany, ed. Mario Praz, 7 [1956])
com meticulosidade e bom senso. Mas, de modo geral, a crtica de Dostoivski na Inglaterra
definitivamente se aquietou desde a agitao dos tempos de Middleton Murry.
31
CARR, Edward Hallett. Dostoevsky (1821 1881): A new biography. New York: Houghton Mifflin, 1931.
195
A situao nos Estados Unidos um pouco diferente: uma vez que o impacto de
Dostoivski foi ainda mais tardio, seus maiores efeitos coincidem com a Segunda e no com a
Primeira Guerra Mundial. A influncia de Dostoivski nos escritores americanos mal
comeou a ser explorada, em parte porque difcil isol-la de seus muitos intermedirios.
Tragdia americana (1925) de Dreiser, por exemplo, gira em torno do mesmo problema
moral da culpa e do assassino inocente presente em Os irmos Karamzov. H ecos de Crime
e castigo em Santurio de Faulkner, e a atmosfera de muitos de seus romances pode nos
parecer dostoievskiana. O prprio Faulkner reconheceu a influencia de Dostoivski. Em 1941,
Carson McCullers fez um paralelo com a literatura do sul em termos bastante gerais: Nesta
abordagem da vida e do sofrimento os sulistas so gratos aos russos. A tcnica , em poucas
palavras, a seguinte: uma ntida e extremamente insensvel justaposio do trgico e do
cmico, do grandioso e do trivial, do sagrado e do obsceno, a inteireza da alma do homem
com detalhamento material.
A crtica americana de Dostoivski era quase inexistente antes da Segunda Guerra
Mundial. O ensaio de James Huneker (em Ivory Apes and Peacocks, 1925) ainda ecoa De
Vog e considera Dostoivski infinitamente inferior a Turgueniev. Havia uma boa
biografia de Avrahm Yarmolinsky (1934), que foi precedida por um estudo da ideologia de
Dostoivski (uma dissertao de Columbia, 1921). Yarmolinsky conta historia desse escritor
com compaixo, evitando tanto o estilo matreiro de Carr quanto o forado tom hagiogrfico
adotado por muitos russos e alemes. Com a obra Dostoivski, a feitura de um romancista
(1940) de E. J. Simmons os americanos receberam uma compilao confivel dos estudos
russos e alemes e um balano claro da carreira de Dostoivski como romancista e no
enquanto pessoa ou filsofo.
Cada vez mais, os crticos americanos se voltam a uma discusso sobre Dostoivski.
Os trs artigos de R. P. Blackmur (em Accent, 1942; Chimera, 1943 e em The Hudson
196
Review, 1948; publicados em Onze ensaios sobre o romance europeu [1964] com mais trs
novos ensaios sobre Os irmos Karamzov) so meditaes no estilo Henry James e perdem
progressivamente contato com os textos. Tolsti ou Dostoivski: um ensaio sobre o velho
criticismo32 (1959) de George Steiner recoloca de forma extensa e brilhante o velho contraste
entre os dois escritores, mas prejudica seu efeito ao interpretar O Grande Inquisidor como
uma alegoria do confronto entre Dostoivski e Tolsti. Dostoivski aparece com destaque
em muitos contextos: em Criao e descoberta (1955) de Eliseo Vivas, em A fnix e a aranha
(1957) de Renato Poggioli, em Poltica e o romance (1957) de Irving Howe, em A viso
trgica (1960) de Murray Krieger e em O significado da fico (1960) de Albert Cook. Uma
srie de artigos de Philip Rahv (Partisan Review, 1936, 1954 e 1960), so particularmente
satisfatrios por estarem fundamentados num conhecimento das discusses russas e animados
por uma viso central. Joseph Frank (em Sewanee review, 1961) d uma prvia do que
promete ser um distinto estudo crtico da obra de Dostoivski33.
Desde a Segunda Guerra Mundial e com o desenvolvimento de estudos acadmicos
sobre literatura russa, os americanos tm produzido um crescente nmero de ensaios, artigos,
e mesmo monografias acerca de aspectos especficos das idias, tcnicas, imagens, e uso de
citaes por parte de Dostoivski. A listagem de Ralph Matlaw das imagens recorrentes de
insetos em Dostoivski (publicado em Harvard Slavic Studies, 3 [1957]) e seu panfleto Os
irmos Karamzov: tcnica romanesca (1957); O homem do subsolo na literatura russa
(1958) de Robert L. Jackson, que traa a influncia do heri negativo de Dostoivski na
literatura russa subseqente, e seu A busca de Dostoivski pela forma: um estudo em sua
32
Com traduo para o portugus de Isa Kopelman e Luana Chnaiderman de Almeida: STEINER, George.
Dostoivski ou Tolstoi. Um ensaio sobre o velho criticismo. So Paulo: Perspectiva, 2007.
33
Wellek refere-se ao artigo Nihilism and Notes from Underground publicado no volume LXIX da Sewanee
Review (Janeiro Maro, p. 1-33). Aquilo que o autor acertadamente prev que se torne um distinto estudo
crtico hoje conhecido do pblico brasileiro com a traduo feita por Geraldo Gerson de Souza do amplo
estudo literrio-biogrfico realizado por Frank composto por cinco volumes: Dostoivski: as sementes da revolta
(1821 1849); Dostoivski: os anos de provao (1850 1859); Dostoivski: os efeitos da libertao (18601865); Dostoivski: os anos milagrosos (1865 1871) e Dostoivski: o manto do profeta (1871-1881), todos
editados pela Edusp.
197
198
199
Os detratores de Dostoivski
Ao longo de sua vida, Dostoivski no foi consagrado com crticas laudatrias1. Tanto
que, com o tempo, ele se tornou defensivo em relao qualidade artstica de seu trabalho e
se desculpou por ter tido que escrever de modo apressado, sem poder atentar para sutilezas
estilsticas. Qualquer um que conhea os cadernos de notas, rascunhos e verses preliminares
de Dostoivski sabe que isso no era verdade. No entanto, geraes de crticos utilizaram
esses comentrios para ratificar as avaliaes negativas que fizeram da arte deste escritor.
Houve crticos que viram Os irmos Karamzov como uma obra de um talento em declnio (ver F. M.
Dostoivski, Polnoe sobranie sochinenii v tridtsati tomakh [Moscou e Leningrado, 1976], vol. 15: 501). Mas o
mesmo foi dito de sua segunda obra. O duplo (ver V. G. Bielnski, "Vzgliad na russkuiu literaturu 1846 goda,"
Polnoe sobranie sochinenii [Moscou, 1952-59], vol. 10: 40)
200
Por exemplo, P. N. Tkachev escreveu, em sua resenha de O adolescente, que a importncia do Sr.
Dostoivski como artista , do ponto de vista puramente esttico, muito, muito pequena (citado em F. M.
Dostoivski, Polnoe sobranie sotchinenii v tridtsati tomakh [PSS daqui em diante], 17: 351. A. M.
Skabitchevski disse, numa resenha da mesma obra: como artista e romancista, este escritor extremamente
descuidado e, s vezes, mostra uma impressionante falta de habilidade [PSS, 17: 353]. E. L. Markov sugeriu,
num artigo de 1879, que Os demnios era o trabalho mais importante de Dostoivski, porm, no por conta de
suas qualidades artsticas, mas por causa da importncia dos problemas levantados (PSS, 12: 268). Esses
exemplos podem ser facilmente multiplicados.
3
N. A. Dobrolibov, em seu favorvel ensaio, Povo Oprimido (1861), disse: O Sr. Dostoivski
provavelmente no ter nenhuma objeo contra minha declarao de que seu romance [Humilhados e
ofendidos] est, por assim dizer, abaixo da crtica esttica (N. A. Dobrolibov, Sobrenie Sotchinenii v deviati
tomakh [Moscou e Leningrado, 1961-64], 7: 240.
4
Ver, por exemplo, a opinio de A. A. Chujko sobre o primeiro (PSS, 9: 417) e D. D. Minaev sobre o segundo
(PSS, 12: 260).
5
V. V. Nabokov v Dostoivski essencialmente como um escritor de histrias de mistrio, cujo efeito
depende inteiramente do enredo. Ver Vladmir Nabokov, Lectures on Russian Literature (Nova Iorque, 1981),
p. 109. Sobre as caractersticas gticas de Dostoivski, ver George Steiner, Tolstoy or Dostoevsky: An Essay
in the Old Criticism (Nova Iorque, 1959), pp. 190 ff [STEINER, George. Tolstoi ou Dostoivski: um ensaio
sobre o velho criticismo. So Paulo: Pespectiva, 2007].
6
P. N. Tkachev, numa resenha sobre Os demnios, intitulada Pessoas doentes e publicada sob o pseudnimo
de P. Nikitin, escreveu: Em Os demnios, a falncia criativa do autor de Gente pobre se torna evidente: ele
comea copiando registros de tribunal, distorcendo e falseando fatos, e ingenuamente imagina que esteja
criando uma obra de arte (Delo, 1873, Nos. 3 and 4). N. K. Mikhailvski, em sua reao a Os demnios, sugere
que foi um erro fazer do caso Nietchev o centro de uma obra que pretende ter relevncia geral ("Literaturnie i
jurnalnie zametki," Otetchestvennie zapiski, 1873, No. 2).
7
M. A. Antonovitch, por exemplo, em seu ensaio Um romance mstico-asceta (1881), faz uma avaliao
altamente negativa das qualidades artsticas de Os irmos Karamzov, cuja absoluta falta de naturalidade dos
personagens e suas aes ele censura. Ver PSS, 15: 503.
201
202
14
A perceptiva abstrao que Mikhailvski faz da matriz dos enredos de Dostoivski merece ser citada:
Dostoivski primeiramente priva seu personagem de Deus, e ento observa o que acontece com ele. O enredo
procede para demonstrar os terrveis efeitos da ausncia de Deus. Mas a questo que o autor arbitrariamente
direciona e manipula os resultados de seu experimento (ver PSS, 15: 502-03)
15
Ver, por exemplo, PSS 15: 508-09.
203
reveladores da essncia da condio humana do que a chamada mdia. Esta uma questo
fundamental sobre a qual Dostoivski discordava da maioria dos seus contemporneos16.
Maximilian Braun sabiamente sugeriu que o ponto forte do autor era precisamente a crise,
rara, mas ainda assim real, da vida humana, ao passo que a vida cotidiana lhe despertava
pouco interesse: galanteio e casamento, arranjar meios de sobrevivncia, criar uma famlia,
etc. Isso depende da Weltanschauung que se considera mais importante17.
As acusaes de naturalismo tambm so justificveis. Devem-se tanto ao uso que
Dostoivski faz de temas e detalhes do interesse jornalstico da poca, quanto freqente
figurao do pior lado da vida e das caractersticas mais desagradveis do comportamento
pessoal, sendo esta ltima observada com reprovao por Leontiev18.
Quanto aos personagens, bem verdade que muitos so baseados em identificveis
prottipos da vida real. Tambm procede que esses personagens, assim como alguns outros
aparentemente imaginrios, so prontamente percebidos como tipos, o que era intencional
da parte de Dostoivski. Os retratos, por exemplo, de Turguniev em Os demnios ou de
Eliseev em Os irmos Karamzov, so claramente reconhecveis e um tanto cruis. Eles
tambm so delineados de forma satrica, como tipos sociais. Mas isso dificilmente pode ser
considerado defeito esttico, assim como as stiras de Eurpedes e Scrates feitas por
Aristfanes, a menos que nos aferremos estreita concepo de romance realista, da qual se
exclui a stira sob a justificativa de que nela a realidade distorcida.
Mais sria a acusao de Saltikov de que em O idiota aparecem de um lado
personagens cheios de vida e verdade, e, de outro, tteres misteriosos precipitando-se
16
Isto afirmado explicitamente no prefcio do autor a Os irmos Karamzov (PSS, 14: 5).
Maximilian Braun, Dostoevskij (Gttingen, 1976), pp. 12-13.
18
K. Leontiev, Analiz, stil i veianie: O romanakh gr. L. N. Tolstogo (Braun University Press reprint,
Providence, R. I., 1965), p. 95.
17
204
loucamente como num sonho, feitos por mos trmulas com fria19. Impresses semelhantes
vm de Mikhailvski, Tolsti e outros que consideravam os personagens de Dostoivski
artificiais, falsos e descuidadamente executados. Kirlov, Stavrguin, Chtov, e Piotr
Verkhovenski so tidos como plidos, pretensiosos e artificiais por Mikhailovski20, ao passo
que Tolsti direciona a mesma invectiva a Os irmos Karamzov como um todo21.
Essas opinies podem ser explicadas pelo fato de que os personagens percebidos como
artificiais e falsos tivessem sido, de fato, criados como idias encarnadas. Eles devem suas
vidas idia que os possui. A gestalt social e psicolgica deles uma funo dessas idias. A
discordncia entre Dostoivski e aqueles crticos que preferem ver as idias como funo da
identidade social e psicolgica de um personagem de natureza bsica. Consiste, grosso
modo, na discordncia entre idealismo e positivismo.
O ataque mais prejudicial dirigido aos personagens de Dostoivski que todos falam
de modo semelhante como o autor. Isso tem sido dito como freqncia, desde Bielnski22 e
por leitores competentes como Tolsti23. Tal concepo vai de encontro opinio de muitos
crticos de que Dostoivski um mestre da individualizao, especialmente a partir da teoria
polifnica de Bakhtin24. Como essa contradio pode ser resolvida? um fato que
19
205
Dostoivski, nunca tendo sido um escritor vindo de seus cadernos de notas, no tivesse um
estilo cuidadoso no que se refere a criar um discurso social, regional ou ocupacional para seus
personagens.
Ele tambm deixa alguns de seus personagens expressar pensamentos que parecem
estar acima de suas cpacidades, e que so evidentemente parte do argumento ideolgico do
autor25. Alm disso, Dostoivski tende, mais do o que a maioria dos escritores, a introduzir
um subtexto literrio em seu dilogo, trao esse que desconstri sua autenticidade. A
justificativa para tudo isso que os romances de Dostoivski no so fundamentalmente
romances de costumes, ou mesmo romances sociais realistas, mas esto, ao contrrio,
prximos tradio que tem incio com o dilogo platnico. Trata-se de romances no s
sobre pessoas, mas tambm sobre idias.
A fama de ser um escritor pobre em termos estilsticos acompanhou Dostoivski desde
a publicao de seu primeiro trabalho. Nesse caso, as opinies negativas dos crticos resultam
de um mal-entendido que desaparece com as idias de Bakhtin. Ele mostrou que os textos de
Dostoivski criam um concerto polifnico de vozes vivas, sendo que uma delas a do
narrador. Conseqentemente, um estilo narrativo que fosse controlado, econmico e bem
integrado no era o que Dostoivski procurava. Ele ir escrever de modo elegante somente
quanto a voz em questo o exija26. Se desconsiderarmos o argumento polifnico, o modo
distintamente popular, meio coloquial, meio jornalstico de Dostoivski, que coloca suas
obras como um todo nas categorias roman-feuilleton e Trivialliteratur, pode ser
legitimamente visto como uma falha esttica, ou um trao inovador.
25
O alfaiate mais parece um orador do que um narrador simplrio, atrs dele aparece incessantemente o
prprio autor, que o usa como instrumento de algo como um tour de force narrativo, escreveu P. V. Annenkov
sobre a estria Um ladro honesto de Dostoivski em janeiro de 1849, publicado em Sovremennik (O
contemporneo).
26
A histria de Noites Brancas um exemplo caracterstico.
206
Mais recentemente cf. Dennis Patrick Slattery O idiota, O prncipe Fantstico de Dostoivski: uma
abordagem fenomenolgica (Nova Iorque, 1984).
28
Walter Nigg, "Nur schn, weil er lcherlich ist: Dostojewskijs 'Idiot'," in: Der christliche Narr (Zurique e
Stuttgart, 1956), pp. 349-403.
29
Ver PSS, 15: 498.
30
Nabokov, p. 104.
207
suas provas principalmente de So Toms de Aquino, mas, uma vez que ele deixa de revello, seus leitores podem pensar que esses pensamentos so do prprio narrador31. O sentido
deste comentrio espico de Saltikov , certamente, que Dostoivski tirou seu heri das
profundezas da abjeo e degradao com o exclusivo propsito de conduzi-lo f e salvao.
Sob o prisma cristo, no h nada errado com isso. difcil para um leitor que no
compartilhe as convices crists de Dostoivski ver Marmieldov, sua imagem de abjeo e
degradao, como o personagem mais positivo de Crime e castigo (excetuando Snia, que
uma santa), mas do ponto de vista cristo de Dostoivski ele exatamente isso.
Outras acusaes ao aspecto moral dos trabalhos de Dostoivski so tambm uma
questo de ideologia. Tais so as acusaes de melifluidade e Cristianismo cor-de-rosa. A
primeira refere-se f: um incrdulo, como Nabkov, considerar totalmente intolervel a
leitura do Evangelho que associa o assassino e a prostituta32; j o crente a considerar
edificante. A acusao de Leontiev sobre o Cristianismo cor-de-rosa aparentemente
correta para alguns escritos de Dostoivski, embora no para o esprito de toda sua obra.
Sobre a questo da verdade nos romances de Dostoivski, a principal acusao de
que ele lida com o excepcional, ao invs do tpico: uma afronta sria, dada sua insistncia de
que fosse um escritor realista33. Bielnski disse que os loucos (nesse caso, Golidkin), sendo
atpicos, pertencem a manicmios, no a romances34. Dostoivski, comentando anos mais
tarde esse romance, disse que previra, precisamente com esse personagem, um novo tipo
social importante35. Dostoivski e seus crticos repetiram discordncias anlogas em quase
todas as suas obras. O escritor estava confiante de que o futuro lhe daria razo: seus
personagens excepcionais seriam, um dia, reconhecidos como profetas do futuro russo,
31
208
36
209
Quanto acusao de que o autor desenvolveu seus dramas psicolgicos no vcuo, sem um
pano de fundo natural41, acredito que no haja fundamento para tal.
Um leitor cuidadoso perceber que cada cena munida de detalhes de estilo mais
habilmente escolhidos do que na maioria dos romances de sua poca. Alguns crticos
disseram que os detalhes externos, tais como comida, bebida, vestimenta e paisagens da
cidade ou campo esto ausentes em Dostoivski. Isto simplesmente no verdadeiro. Haveria
vasto material para um possvel artigo Sobre Comida e Bebida em Os irmos Karamzov,
por exemplo. Cada grande romance contm uma vasta quantidade de detalhes topogrficos,
detalhes do modo de vida (bit) e muitos personagens secundrios personalizados e
perfeitamente normais. Os muitos crticos que enfatizaram a qualidade dramtica dos
romances de Dostoivski, particularmente Nabkov42, so freqentemente cegos profuso
de caractersticas puramente romanescas nos trabalhos deste escritor.
41
Nabokov afirma: Se examinarmos de perto qualquer de seus trabalhos, Os irmos Karamzov, por exemplo,
notaremos que o pano de fundo natural e todas as coisas relevantes percepo dos sentidos quase no existem.
Qualquer paisagem que exista ser uma paisagem de idias, moral. O clima no existe em seu mundo, assim
como no importa muito como as pessoas se vestem (Nabokov, p. 104). Eu acredito que cada ponto de dessa
frase pode ser rebatido por um catlogo de passagens em que comida, bebida, vestimenta e detalhes
topogrficos so mencionados.
42
Nabkov, p. 104
210
211
Nota da tradutora
Robert Belknap professor emrito de lnguas eslavas na Universidade Columbia desde os
anos 50 e membro de um seminrio sobre psicanlise aplicada na mesma universidade.
Publicou The Genesis of The Brothers Karamazov: The Aesthetics, Ideology, and
Psychology of Making a Text (Evanston: Northwestern University Press, 1990) e The
Structure of The Brothers Karamazov (The Hague: Mouton, 1967). O presente texto aparece
no volume The Cambridge Companion to Dostoevskii (Ed. W. J. Leatherbarrow. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002) e trata das relaes de Dostoivski com a psicologia de
sua poca, e de como a psicologia aparece em seus romances. O texto se destaca por no
psicologizar a obra dostoievskiana, ao manter seu status ficcional. Alm disso, contm
observaes sobre procedimentos e estruturas recorrentes na obra do autor russo.
Dostoivski e a Psicologia
desses sistemas interagiu com suas idias sociais mais bsicas. Conhecia, por exemplo, a
teoria renascentista dos quatro humores que inferia o carter, o comportamento e o estado
mental do homem a partir do equilbrio ou desequilbrio dos quatro fludos do corpo: sangue,
fleuma, bile amarela e bile negra, os quais tornavam os homens sanguneos, fleumticos,
colricos ou melanclicos. Isso pode explicar, direta ou indiretamente, porque o fgado do
heri caracterizado como doente no incio de Memrias do subsolo (p. 15)1. Dostoivski
tambm teve acesso cincia antiga da fisiognomonia, que determinava o carter por meio
dos traos faciais, e popular teoria da frenologia de Joseph Gall (1758-1828), a qual remetia
nosso carter anatomia o crebro, refletida nas protuberncias ou depresses do crnio. Ele
conhecia a teoria de Pitgoras e asitica sobre as almas reencarnadas, e a teoria platnica da
alma tripartida em razo, emoo e apetites. Mas, assim como a maioria dos seus
contemporneos, ele criou suas doutrinas psicolgicas centrais a partir de duas grandes
tradies, ambas centenrias, mas desenvolvidas no pensamento do sculo XVIII: a tradio
dos neurologistas e dos alienistas.
Filosoficamente, os neurologistas eram materialistas, como Leucipo, Demcrito e os
antigos epicuristas, mas esses pensadores levaram o materialismo muito alm do que suas
contrapartes modernas e acreditavam que as prprias percepes e idias eram na verdade
feitas de tomos que se descolavam dos objetos para o mundo, mantendo seu arranjo at que
se chocassem contra nossos olhos, ao passo que, um philosophe do sculo XVIII, como
Diderot, acreditava que a percepo e a conscincia residiam em nossos nervos ou em sua
atividade. No famoso Discurso com DAlambert, Diderot compara os poderes associativos da
mente s ressonncias harmnicas que fazem com que algumas cordas de instrumentos
vibrem quando tocadas, ao passo que outras no vibram. Os positivistas do sculo XIX eram
mais ingnuos e tentaram concretizar essa metfora, ao procurar com seus microscpios os
1
DOSTOIVSKI, Fidor Mikhilovitch. Memrias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. So Paulo: Editora
34, 2000. (nota da tradutora)
213
axnios dos nervos e as cargas eltricas que faziam os msculos contrarem-se. Os filsofos
admitiram ainda no terem visto os msculos vibrarem, mas acreditavam que brevemente a
cincia reduziria a totalidade da mente humana a um conjunto de vibraes observveis.
Claude Bernard (1813-78), que conduziu famosos experimentos com sapos e outros animais,
tambm escreveu a mais eloqente exposio do mtodo cientfico atribudo ao pensamento
positivista. O expoente russo mais influente dessa abordagem neurolgica sobre o
funcionamento da mente nunca existiu: Bazrov de Turguniev pode ter sido ficcional, mas o
niilismo que ele propagou moldou a compreenso e as atitudes da gerao posterior ao
aparecimento de Pais e filhos em 1862. Entre os cientistas reais, Ivan Setchenov (1829-1905)
era o mais proeminente na gerao de Dostoivski, e seu seguidor, Ivan Pavlov (1849-1936),
lanou as bases de todo o movimento behaviorista da psicologia mais recente.
Filosoficamente, Dostoivski rejeitava essa psicologia neurolgica, assim como toda
variedade de niilismo, racionalismo, positivismo, cientificismo, atesmo, socialismo,
internacionalismo e feminismo que os materialistas daquele momento tendiam a favorecer,
apesar disso, a curiosidade pela prpria epilepsia e pelas teorias de seus oponentes ideolgicos
o mantinha alerta em relao aos desenvolvimentos mdicos na rea da neurologia2. Em Os
irmos Karamzov, o insensvel sarcasmo de Dmtri d vazo impacincia do prprio autor
em relao complacncia simplista da psicologia positivista que ele ouviu de Rakitin, um
seminarista detestvel e oportunista:
James, L. Rice. Dostoevsky and the Healing Art: An Essay in Literature and Medical History (Ann Arbor:
Ardis, 1985)
214
eu tenha uma alma e seja uma imagem qualquer e semelhana sei l do que,
tudo isso so tolices. (p. 764-5)3
DOSTOIVSKI, Fidor Mikhilovitch. Os irmos Karamzov. Trad. Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34,
2008. (nota da tradutora)
4
S. V. Kovalevskaia. Vospominaniia i pisma (Reminiscncias e correspondncia) (Moscou: Goslitizdat, 1956),
p. 96.
215
Hoffmann, Dumas, Dickens, Edgar Allan Poe e os romancistas gticos ingleses, todos
utilizaram a tradio da hipnose para criar suas histrias, imagens e os relacionamentos entre
seus personagens. O olhar aterrador de Murin de A senhoria, de Rogjin em O idiota, ou de
Stavrguin em Os demnios, portanto, no precisou vir diretamente da contemplao descrita
ou praticada por qualquer hipnotizador; foi o ar literrio que Dostoivski respirou. O duplo
constitui a primeira figura elaborada de um homem desintegrando em sua loucura, e de um
mdico tentando trat-lo, mas toda a srie de histrias de Petersburgo que Dostoivski
escreveu na dcada de 1840 lida com personagens que parecem precisar de ajuda psicolgica,
cada qual com um conjunto diferente de sintomas, como se Dostoivski estivesse explorando
o mundo da psicopatologia de um modo cientfico. Tanto nO duplo e nas outras primeiras
histrias, quanto nas obras maduras de Dostoivski, a psicopatologia segue a tradicional
sintomatologia daquele momento: incapacidade de ver o todo, foco numa estrela, num boto
ou num conceito; atribuio de vontade s coisas inanimadas; atuao de posies tericas;
criao de e interao com um personagem no existente, que freqentemente incorporava
alguns componentes da identidade do doente; obscurecimento da fronteira entre fantasia e
realidade; e, finalmente, perda total de contato com a realidade.
Perto do final de sua carreira, quando Dostoivski comeou a descrever a febril
alucinao de Ivan Karamzov com o diabo, ele tentou fazer um texto sobre um alienista que
desconsiderava as doutrinas dos neurologistas, da mesma forma que, por outro lado, Bazrov
rejeitava a base intelectual de curandeiros como seu pai. Dostoivski cresceu num hospital de
caridade e, mais tarde, dividiu um alojamento com um mdico; e sua simpatia pelos
curandeiros era muito maior do que pelos pesquisadores cientficos que estavam recriando a
psicologia na sua poca. Mas, diferentemente de Bazarov ou dos alienistas, ele no ignorava
nenhuma dessas escolas oponentes da psicologia. A lista das leituras que pretendia fazer
freqentemente inclua os nomes de Carl Gustav Carus (1789-1869), George Henry Lewes
216
(1817-78) e outros estudiosos do psiquismo. Dostoivski era mais parecido com seu
contemporneo, Jean-Martin Charcot (1825-93), que fazia uso tanto da hipnose quanto da
neurologia na Salptrire de Paris a fim de produzir a grande sntese dessas duas escolas
psicolgicas. Quando o aluno de Charcot, Freud, criou um dos principais sistemas
psicolgicos do sculo XX, ele deu crditos no s aos seus mentores da Medicina, mas
tambm aos insights de Dostoivski, provavelmente sem perceber que eles tinham a mesma
base intelectual.
O romance psicolgico
O intelecto de Dostoivski operava muito melhor literariamente do que
sistematicamente. Em assuntos psicolgicos, assim como polticos, religiosos, educacionais e
outros, seus escritos jornalsticos contriburam para nosso pensamento principalmente na
forma anotaes ou notas de rodap sua fico, e no como a exposio de um corpo
coerente de conhecimento. O romance psicolgico tem um passado rico nos sculos XVII e
XVIII com os trabalhos de Madame de Lafayette, Abade Prvost, Samuel Richardson, JeanJacques Rousseau, entre outros, tendo sido constantemente desinventado por idelogos, e
reinventado por seus oponentes, pois as sutilezas da psicologia desafiam a maioria das
ideologias. No comeo dos anos 1860 o romance Que fazer? de Tchernichvski chamou a
ateno do pblico. Dostoivski se ops a ele no somente por sua poltica utpica e utilitria,
mas tambm por seu aspecto literrio. Consideremos a cena em que o narrador de
Tchernichvski pergunta que tipo de pessoa seu heri Lopakhin , e responde que ele do
tipo que, empobrecido e vestindo trapos, recusa-se a abrir caminho a um oficial dominador e
convencido, que encontra caminhando a passos largos pela rua. Ao invs disso, Lopakhin
pega o homem, joga-o na lama, ameaa afund-lo ainda mais, em seguida, levanta-o,
comportando-se como se o homem tivesse tido um acidente, e colocando-o de volta em seu
217
Zola, em seu ltimo ensaio, O romance experimental (1880), o ato gratuito permite ao
romancista conduzir uma parte do seu experimento com substncias qumicas puras, e
revelam a verdadeira natureza do psiquismo de um dado personagem. Dostoivski utiliza a
investigao da gratuidade para explorar a identidade de seus personagens irracionais.
Golidkin por vezes responde s palavras ou aes de seus colegas no escritrio ou de seu
mdico, mas ele se faz conhecer melhor quando simplesmente examina seu prprio nariz,
aluga uma carruagem, entra numa loja e no compra nada ou desastrosamente entra numa
festa para a qual no foi convidado. Essas aes no tm causa, e, por isso, esboam a
preocupao extraordinria com a prpria aparncia, que faz com que a iluso, a realidade ou
o truque do duplo o destrua. Em outros personagens, os atos gratuitos podem ser raros, mas
eles revelam o psiquismo com a mesma clareza. Fidor Karamzov geralmente age como um
empresrio astucioso, bem sucedido, at mesmo auto-indulgente, mas quando perturba uma
reunio importante com uma srie de histrias infames, ele revela a grande criatividade
cmica de sua mente corrompida. Da mesma forma, o crime de Rasklnikov
excessivamente determinado; ns sabemos sua reao ao noivado da irm com Ljin, sua
reao supersticiosa ao encontro casual com a idia de tal crime, seu desejo de ser parte da
elite autorizada a cometer crimes, etc, mas conhecemos Rasklnikov realmente quando ele
emerge, no fim do romance, com presentes para os Marmieldov, ao ajudar um estranho na
rua, correr na direo de um prdio em chamas para salvar crianas que no conhece, ou
mesmo em seu noivado com uma garota prxima da morte.
Estes atos gratuitos revelam Rasklnikov mais claramente do que os atos cujas causas
so identificveis. Eles tambm revelam uma interessante diferena entre Dostoivski e
Freud. Para Freud, o inconsciente no tem habilidade para analisar e moralizar. Em Crime e
castigo, o inconsciente profundamente moral; os sonhos de Rasklnikov e suas aes
impulsivas lutam contra a rejeio dos valores morais por sua mente racional. No h nada de
219
original no uso que Dostoivski faz da gratuidade para explorao de psicologias incomuns.
Poe, Laclos, Balzac e inmeros outros a utilizaram antes dele, mas Dostoivski a tornou um
importante instrumento para investigao de um dos elementos chave da psicologia, o qual
Poe chamou de perverso, e Dostoivski chamou de paradoxal.
Uma segunda forma de explorar o psiquismo fora do mbito das relaes causais
colocar o personagem numa posio de desamparo absoluto, em que nenhuma ao sua far
qualquer diferena. O que algum faz nesse momento expressa sua identidade pura.
Marmieldov coloca-se nessa posio e diz a Rasklnikov, voc sabe, por exemplo, de
antemo e em detalhes que essa pessoa, o mais bem-intencionado e mais til dos cidados,
no lhe vai emprestar de jeito nenhum [...] pois bem, mesmo sabendo de antemo que no vai
emprestar, ainda assim voc se pe a caminho e... (p. 31)5. A criatura dcil da estria
homnima se casa com o horrvel usurrio, quando a alternativa , aparentemente, igualmente
horrvel. A criana que Stavrguin estupra ou a criana abusada descrita por Ivan Karamzov
experimentam esta situao de total desamparo, que as permite expressar um desespero
suicida, a f no Deus de uma criana, ou o que quer que constitua o centro da identidade da
personagem criada por Dostoivski. Um importante personagem como Dmtri Karamzov
revela seu padro de dependncia particular e credulidade infantil quando visita Kuzma
Samsonov e Madame Khokhlakova, num momento quando no havia qualquer chance de que
eles, ou qualquer outro, pudessem oferecer-lhe dinheiro para salvar o que restava de sua
honra. Tais situaes so cruis e muitos leitores atriburam a Dostoivski uma mrbida
fascinao pela crueldade. Maksim Grki disse que o sadismo era o trao central de seus
romances e sua motivao para escrev-los, e que ele era nosso gnio mal6.
DOSTOIVSKI, Fidor Mikhilovitch. Crime e castigo. Traduo: Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34,
2001. (nota da tradutora)
6
Maksim Gorkii, O Karamazovshchien (On Karamazovism) in A. A. Belkin (ed.), F. M. Dostoevskii v russkoi
kritike (Dostoevskii in Russian Criticism) (Moscou: Goslitizdat, 1956), p. 391.
220
A psicologia de Dostoivski
Em geral, os leitores de Dostoivski tm tido dificuldade para explicitar a psicologia
prpria deste autor. Normalmente eles a subentendem a partir do comportamento ou do
discurso de seus personagens um grande engano, porque a fico de Dostoivski existe por
si mesma, no se constituindo como uma emanao de seu esprito. Quando Gorki chama
Dostoivski de sdico, ele no se reporta a nenhuma informao biogrfica. Dostoivski
poderia, s vezes, ser detestvel, mas no h qualquer evidncia de que ele gostasse de infligir
dor ou tivesse qualquer tipo de prazer sensual com a dor que ele to freqentemente
presenciou em sua vida. Outros leitores afirmam que Dostoivski acreditava que sofrer era
bom para o psiquismo, e, por isso, fazia com que seus personagens sofressem. Na maioria dos
seus escritos, entretanto, a dor entra no romance por motivos literrios. De fato, pode ser
argumentado que os personagens que sofrem em seus romances tornam-se moral e
espiritualmente piores depois de sofrerem. Certamente Varvra de Gente pobre era
heroicamente generosa em seu amor pelo moribundo Pokrovski, e, depois de sofrer, tornou-se
muito mais prtica na maneira de lidar com a adorao de Dievuchkin e de Bikov. A esposa
de Marmieldov em Crime e castigo era uma garota provinciana comum e frvola que se
casou por pena, e que, com o sofrimento, tornou-se um monstro aos berros cercado de ares
pretensiosos, exagerava a abstinncia alcolica de seu marido, conduziu sua enteada
prostituio, e gastou todo dinheiro que precisava desesperadamente em ridculas exquias.
Muitos dos personagens de Dostoivski falam em prol do sofrimento, mas as crticas de
Mikhail Bakhtin deixam claro que nunca se pode dizer Dostoivski diz, completando a
frase com uma citao de algum de seus personagens. Dostoivski no utiliza raisonneurs, ou
porta-vozes para suas prprias idias, embora alguns comentrios se aproximem mais delas do
que outros. Seu significado deve emergir do interjogo das falas e aes de muitos
personagens. Dentre seus personagens literrios, apenas um grupo defende o benefcio do
221
Dostoevskii and Parricide in Sigmund Freud, Complete Psychological Works (Londres: Hogarth Press,
1961), vol. 21, pp. 177-94. [FREUD, Sigmund. Dostoivski e o parricdio. In: Futuro de uma iluso / Mal-estar
na civilizao e outros trabalhos. Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas. Rio de Janeiro:
Imago, 2006, v. XXI.]
222
sofrem ataques durante o sono ou que o doente nunca se machuca durante um ataque, ou se
sente horrvel aps o mesmo, sendo que todas essas eram caractersticas da doena de
Dostoivski; assim, argumenta que Freud estava especulando desnecessariamente sobre
assuntos j conhecidos. Outros estudiosos inclusive levantaram dvidas acerca do assassinato
do pai de Dostoivski, embora evidncias, prs e contras um encobrimento por parte da
burocracia corrupta, que vieram tona h mais de 80 anos, paream ser de pouca importncia.
De qualquer forma, do ponto de vista psicolgico, a convico de Dostoivski sobre como seu
pai morreu importa mais do que aquilo que aconteceu de fato, e Freud no discute isso. Os
insights de Dostoivski certamente ajudaram Freud a formular a idia de que uma educao
normal leva um garoto a querer matar seu pai. Alguns desses insights provm da leitura que
Dostoivski fazia, de suas observaes e das profundezas de seu psiquismo, mas o artigo de
Freud deve nos alertar sobre os riscos de tomar a obra dostoievskiana como autobiogrfica.
A psicologia do crime
No incio do sculo XX, surgiram muitos artigos sobre a psicologia do crime de
Dostoivski, especialmente nos peridicos franceses de psicologia e criminologia.
Dostoivski conheceu mais criminosos do que a maioria dos autores, j que passou meia
dcada num campo de trabalhos forados, e suas Recordaes da casa dos mortos oferecem
muitos insights sobre a mente criminosa. Um dos casos mais significativos apresenta um
homem que assassinou um estranho para roubar algo sem valor, e depois voltou para abusar
do cadver, pois o ato de matar suscitou-lhe muita fria. Por muitos sculos a Rssia exilou
muitas de suas pessoas mais articuladas e um imenso volume de literatura de memrias
registra essas experincias; mas Dostoivski escreveu um dos poucos relatos de priso que
adentra a mente dos prisioneiros e oferece material de boa qualidade para o estudo do crime.
Em seus outros escritos, ele colocou sua compreenso direta da psicologia criminal em
223
contato com quela dos grandes mestres do romance europeu, com os quais ele aprendera sua
profisso: Hugo, Dickens e Balzac. A revista que pertencia a Dostoivski trouxe as primeiras
tradues de Edgar Allan Poe, o qual freqentemente considerado o inventor da estria de
detetive moderna, e Porfri Pietrvitch de Crime e castigo aparece entre os melhores desses
primeiros detetives. Porfri leu a teoria que Rasklnikov produziu a partir da obra Vida de
Jlio Csar de Napoleo III, segundo a qual o crime prerrogativa de uma pequena elite, cujo
valor para a humanidade coloca-a acima da punio e da culpa. Mas a teoria do prprio Porfri
sobre os grandes crimes confronta de modo provocativo a tese de Rasklnikov: o
comportamento criminoso resultado de uma doena que tem dois sintomas, a necessidade de
cometer um crime e de ser descoberto. Por essas razes, os criminosos se vangloriam de seus
delitos, voltam cena do crime, ostentam sua riqueza, provocam a polcia, ou, se tudo isso
falhar, se entregam. Porfri est completamente convencido de sua teoria. Ao sair com
Rasklnikov aps seu ltimo interrogatrio, afirma que ele muito provavelmente ir se
entregar, mas que, se no o fizer, pede-lhe um grande favor: que deixe um bilhete.
Dostoivski parecia tambm acreditar nessa teoria; ou pelo menos ele elegantemente a
confirma fazendo com que Rasklnikov, depois de muitos ensaios, se entregue, e
Svidrigilov, o assassino do controle, cometa suicdio.
O pensamento de Dostoivski sobre a psicologia do crime no pra em Crime e
castigo. Como jornalista, ele assistiu a julgamentos impressionantes, como o da mulher que
esfaqueou sua rival enquanto esta dormia, ou daquela que jogou seu filho pela janela do
quarto andar (a criana no sofreu ferimentos). Ele escreveu sobre esses casos e usou seus
elementos na fico. Gradualmente, a questo da culpa veio ocupar o centro de seu
pensamento. Ele sempre rejeitou a idia de que o meio social pudesse explicar ou mesmo
justificar o crime. Sua compreenso do ser humano como um agente paradoxalmente livre
num mundo de profundo determinismo tornou essa idia da moda repugnante para ele. Em Os
224
demnios, ele explorou um crime poltico que foi planejado para que a culpa compartilhada
garantisse a lealdade dos companheiros de conspirao. As psicopatologias dos criminosos
polticos continuam o padro que Dostoivski utilizou em Memrias do subsolo, em que a
nsia de um homem por reafirmar-se em relao prpria existncia produz seu horror pelas
doutrinas deterministas e de subordinao do homem natureza. Os conspiradores de Os
demnios tm um psiquismo e ideologias mrbidas, cada um, de certa forma, dramatizando o
outro. O suicdio de Kirlov constitui o reductio ad absurdum das afirmaes prnietzschianas da vontade, levando as inseguranas existenciais do Homem do Subsolo s suas
concluses lgicas, trata-se ainda de um suicdio psicolgico e filosfico, de um personagem
que perdeu a maioria das habilidades para viver e permitiu que suas obsesses cortassem seu
contato com a realidade. um homem louco com uma teoria louca. Mas a loucura permite
que nos livremos de alguns enigmas impostos pela obra de arte, e Dostoivski no queria
tornar a experincia de Os demnios tranqila para o leitor. No final do romance, um mdico
examina o crebro de Stavroguin e declara que no h qualquer loucura presente. Hoje em dia
nenhum mdico poderia fazer isso, mas os neurologistas de sculo XIX e seus seguidores
jornalsticos, como Dobrolibov, defendiam que todo caso de loucura estava associado a uma
leso observvel no crebro. Com Stravoguin, Dostoivski est prosseguindo suas
investigaes do surto de loucura aberrante, da mente de um aristocrata mimado que procura
quebrar todos os tabus, em troca, no de prazer, mas talvez da prpria culpa, uma modificao
das motivaes de Rasklnikov, a idia de um crime que demonstre a excepcionalidade de
algum.
O estudo de Dostoivski sobre a psicologia do crime culmina em Os irmos
Karamzov com a elaborao de uma psicologia da culpa. Ivan argumenta que a excomunho
dos criminosos seria a maior sano contra o crime, mas Zossima encontra uma mulher que
aparentemente assassinou seu marido e garante-lhe que a misericrdia divina se estende para
225
acabada, lembrando-o da ocasio em que ele precisou descartar cem pginas por ter comeado
prematuramente. Esta idia de um momento no-programvel e provavelmente inconsciente
no processo criativo que seja fundamental para a excelncia do todo subjaz seu estudo
jornalstico mais significativo sobre a psicologia da criao, o artigo intitulado Sr. ---bov e a
questo da arte. Neste artigo Dostoivski ataca Dobrolibov por afirmar que as estrias de
um escritor radical ucraniano, Marko Vovchok, embora fossem mal escritas, eram
politicamente corretas. Dostoivski reconhece que toda arte deva ser socialmente engajada, a
menos que tenha sido escrita por um louco, mas argumenta que ser ineficaz se no for bem
escrita. Ele continua dizendo que nunca ser bem escrita se estiver limitada pela censura ou
ideologia. Essa forte ligao entre a liberdade e o momento criativo central tambm
fundamenta o pensamento sobre a criao na fico de Dostoivski.
Dois romances de Dostoivski podem ser vistos como manifestos de esttica: Gente
pobre e O idiota. O Makar de Gente pobre, um explorado copista, um escritor no sentido
literal, que aspira s-lo no sentido criativo. A pureza de corao com que ele reage aos
grandes autores de seu tempo, Pchkin e Ggol, pertence a um mundo de total falta de
sofisticao, mas, enfim, ele cria um dos romances mais social e sensivelmente tocantes do
sculo XIX. Ele acredita que a arte seja algo maravilhoso e passa a adquirir um estilo
imitativo, mas sua mistura particular de estilos, burocrtica e literariamente pretensiosa, de
narrativa simples e profundamente pessoal, torna-se a voz de um personagem cujos
sentimentos crescem como resposta literatura na medida em que ele alivia a vida do pobre
funcionrio de Ggol ou do chefe da estao de Pchkin e nos faz experimentar como deve
ter sido para eles viver suas vidas como vtimas. Gente pobre investiga a psicologia da
recepo artstica como criadora da identidade humana. O idiota leva essa psicologia da
recepo muito alm e tambm explora a psicologia da criao. Prncipe Mchkin imita os
calgrafos do passado, e Aglaia, juntamente com suas irms, recorre a ele para ter o
227
diamante criador com o qual elas teriam as habilidades para elaborar uma obra de arte. O
general Ivolguin busca nos jornais e em outras fontes o germe das histrias incrveis que
conta, e Libediev mostra uma mente criativa mais original, embora ainda derivativa.
Entretanto, a principal investigao da psicologia da arte neste romance no envolve a
criao, mas o que a arte e a beleza fazem ao psiquismo. Quando Mchkin, Rogjin, Gania ou
Totski olham Nastcia Filppovna ou mesmo uma foto sua, a histria de suas vidas muda.
Mchkin tem vises quase msticas quando v uma paisagem espetacular, ou quando v um
homem perto de ser enforcado, Rogjin e Gania so filisteus e Totski um sensualista
mimado, mas todos reagem com o mesmo desejo pela posse da beleza. Quando tais pessoas
vem a Deposio de Holbein, elas reagem com igual poder. A obra de arte tem a capacidade
de destruir a f de algum, operando diretamente no psiquismo, assim como a viso de Hiplit
sobre a pura feira reflete tanto suas idias quanto seu estado psicolgico. A compreenso de
Dostoivski sobre o processo criativo era essencialmente romntica e sua compreenso sobre
a psicologia da percepo de certa forma aproximava-se mais da escola de pensamento
realista; mas, nessa rea, assim como em sua psicologia criminal, sua contribuio ao nosso
entendimento reside mais na clareza e integridade de impacto do que em novos insights sobre
a psicologia da arte e da beleza.
Amor e violncia
A psicologia em Dostoivski freqentemente relacionada quela qualidade especial
que os russos chamam de dostoivschina. Ela envolve melancolia, paradoxo, sofrimento,
obstinao, autopiedade, histeria e outras emoes exageradas e, por vezes, patolgicas, que
freqentemente aparecem na fico de Dostoivski. Curiosamente esses elementos esto entre
os menos exclusivos de seu repertrio. Eles so o material tpico dos escritores de prosa mais
populares do sculo XIX: Hoffmann, Dickens, Hugo, Sue, e todos os romancistas gticos e
228
do que pelo desejo. O ataque a Dnia pensado por Svidrigilov pode ser excepcional no uso
da violncia em prol do desejo, e no do poder. De todo modo, ele continua, a senhora
mesma me facilita extremamente a questo, Avdtia Romnovna (p. 503). A questo
provavelmente no o suicdio antecipado de Svidrigilov; j que esta deciso no tomada
at que Dnia o rejeite completamente. Ao invs disso, ele est dizendo que sua fraqueza
recm-adquirida confere-lhe algum poder sobre Dnia, assim como a impotncia desta na
aldeia combinada com um pouco de sorte conferiu-lhe o poder de rejeit-lo. De fato, com
esses dois fatores ele transforma aquele ataque armado unilateral, numa derrota completa
quando ela se livra da arma e retorna condio de desamparo. Nesse momento ela retoma
aquele mesmo poder que possua na aldeia. Ele coloca os braos em sua cintura e ela suplica:
Deixa-me sair, ele estremece e pergunta: Ento no me amas?, ela balana negativamente
a cabea e ele sussurra desesperado: E... no poders?... Nunca?. Quando ela responde:
Nunca, ele a deixa partir. Aqui temos o desejo que pode, em algum momento, ter sido
correspondido; o texto no oferece nenhuma evidncia slida para a negao raivosa de Dnia
ou para afirmao insinuante de Svidrigilov. Desde a morte de sua esposa, em todo o caso,
seu desejo no foi correspondido, e somente o poder levaria sua consumao fsica. Mas o
poder, nessa cena, funciona pelo avesso, como tende a acontecer na vida de Svidrigilov. Ele
mata a mulher que tem poder sobre ele, e as pessoas que ele mata assombram-no com a total
ineficcia da morte, assim como acontece com Rasklnikov em relao a Lisavieta e
usurria.
Sendo o poder aquilo que liga os mecanismos paralelos da violncia e do desejo em
Dostoivski, trata-se de um poder paradoxal. Os derrotados e os explorados sexualmente
herdam a terra. Em ambos os casos o poder da fraqueza torna-se central. Eu sugeriria que o
elemento unificador que explica a incompatibilidade da reciprocidade e do fsico possa ser
justamente esse paradoxo do poder nessas duas reas, desejo e agresso. Para Dostoivski, as
234
235
236
237
que uma outra testemunha relata a ocasio em que ele narra o entrecho de uma nova histria,
em que um proprietrio de terras, rico e tranqilo, subitamente recorda-se que, duas dcadas
antes, depois de uma noitada de bebedeira com companheiros devassos, estuprara uma garota
de dez anos2. A publicao da carta de Strkhov Tolsti, em 1913, proporcionou mais
evidncias de um evento particularmente repulsivo da vida de Dostoivski, mas o depoimento
completo contraditrio3. A recorrncia desta idia na obra de Dostoivski pode parecer
confirmar os rumores, mas dificilmente pode explicar a funo dessas cenas em sua obra. Tal
desejo aparece sob diferentes formas e em diversas circunstncias: quase claramente
expresso por Stavrguin; Svidrigilov considera-o sua forma favorita de devassido; exibido
por outra pessoa ainda em Crime e castigo, suscitando forte indignao de Rasklnikov;
Trussctzki (O eterno marido) demonstra uma afeio por jovens garotas; Ttski (O idiota)
muito provavelmente seduziu Nastcia Filppovna quando esta tinha quatorze anos e, com
isso, produz o mais bvio (mas no o nico) determinante de seu carter adulto. Nelli
(Humilhados e ofendidos) resgatada de uma carreira de prostituio forada, e, no fosse por
isso, teria compartilhado o destino de garotas vendidas por suas mes no Mercado do Feno,
conduta esta que Dostoivski considerava pavorosa (Notas de inverno sobre impresses de
vero); uma dica sobre esta atrao to desproporcional aparece na forma inversa e reversa
em O pequeno heri; e, nas notas preliminares de Os irmos Karamzov, Mitia teria cometido
um crime semelhante ao de Stavrguin4. Matricha, a vtima de Stavrguin, o acusa de ter
matado Deus, o que tambm implica em autodestruio e rompimento com seus
semelhantes. Personagens que cometem um crime parecido compartilham desta alienao, e
todos cogitam, tentam ou de fato cometem suicdio. Outros suicidas, bem ou mal sucedidos,
Thomas Mann, Dostoivski - em moderao, As novelas de Dostoivski (Nova Iorque, Dial Press, 1945), p.
xi.
3
Cf. A Iarmolinski, Dostoivski (Nova Iorque, 1934), pp. 415-420.
4
Ibid., p. 419. Eu no pude encontrar o episdio nas notas (F. M. Dostoivski, materiali i issledovan, pod red. A.
S. Dolinina, Leningrado, 1935).
238
que no compartilham desta predileo por jovens moas Terentiev, Kirlov, Smerdikov
envolvem-se com a morte de Deus, com o Mal, de outra maneira.
A prova mais clara desse parentesco fundamental entre os personagens
demoniacamente devassos de Dostoivski encontrada no fato de todos estarem associados
imagem de uma aranha. De modo geral, a meno a formas mais baixas de vida animal
insetos, moscas, besouros, baratas e rpteis amplia a imagem da aranha e serve para indicar
um conceito particular ou sries de conceitos5. Este complexo de imagens central e
recorrente no trabalho de Dostoivski, mas, assim como suas outras imagens, passou quase
sem meno. A famosa descrio de Svidrigilov da eternidade como um nico quarto,
alguma coisa assim como o quarto de banhos da aldeia, enegrecido pela fuligem, com aranhas
espalhadas por todos os cantos (p. 300)6 crucial para a estrutura de Crime e castigo, e foi,
de fato, bastante observada7. O animal de Terentiev considerado por um crtico o smbolo
central de O idiota8. A insetologia de Os irmos Karamzov foi investigada, e sua fonte e
significado foram ligados ao uso potico e noo filosfica da classificao dos insetos na
ordem moral, conforme Schiller9. Um escritor e crtico, que, possivelmente, mais justo com
Tolsti do que com Dostoivski, nota, de modo no mnimo eloqente, se no inteiramente
acertado, a existncia dessa imagem:
Ao longo deste ensaio as seguintes tradues sero utilizadas: bbotchka, borboleta, gad ou gadina, rptil,
mkha, mosca; voch, piolho; klop, inseto; zmei, serpente; komr, mosquito, bukachka, besouro;
nasekmoe, inseto; tcherv, minhoca; koziavka, besouro; tarakan ou tcherni tarakan, barata; juk,
besouro. Dostoivski usa o termo tarakani-prussaki somente uma vez, ao descrever o quarto de Smerdikov
(Pol. sob. khud. Proiz. [Leningrado, 1926-30], X, 278); koziavka utilizado uma vez em Memrias do subsolo
(IV, 144) e juk apenas para descrever o prendedor de gravatas de Rogjin (VI, 144). A partir daqui, esta edio
da obra de Dostoivski ser citada somente pelo nmero do volume e da pgina no texto.
6
Para as citaes desta obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Crime e castigo.
Traduo de Paulo Bezerra So Paulo: Editora 34, 2001.. (N. da T.)
7
Cf. particularmente R. Poggioli, Kafka e Dostoivski, O problema Kafka (Nova Iorque, New Directions,
1946), pp. 97-107.
8
K. Motchulski. Dostoivski (Paris, YMCA Press, 1947), pp. 297-298.
9
D. Tchijevski, Schiller e Os irmos Karamzov, ZfslP, VI (1929-30), 1-42.
239
Mais est-ce quil jamais assassin quelquun, Dostoevski? Les romans que
je connaisde lui pourraient tous sappler lHistoire dune crime. Cest une
obsession chez lui, ce nest pas naturel quil parle tujours de a. Je ne crois
pas, ma petite Albertine, je connais mal sa vie. Il est certain que comme tout le
monde il a connu le pch, sous une forme ou sous une autre, et probablement
sous une forme que les lois interdisent. En ce sens-l il devait tre un peu
criminel, comme ses hros, que ne le sont dailleurs pas tout fait, quon
condamne avec des circonstances attnuantes. Et ce netait mme peut-tre pas
la peine quil ft criminel. Je ne suis pas romancier; il est possible que les
crateurs soient tents par certaines formes de vie quils nont pas
personellment prouves11/12
10
240
Para as citaes desta obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Noites brancas.
Traduo Nivaldo dos Santos. So Paulo: Editora 34, 2007. (N. da T.)
241
mosca indefesa, que, em certo sentido, o representa (Matrina o domina, como faz a aranha
com a mosca). Durante o breve perodo em que ele imagina o casamento com Nstienka, a
casa est limpa. Imediatamente depois de o sonhador receber a fatdica carta anunciando o
retorno de Nstienka ao seu amor antigo, Matrina o informa: Eu j retirei toda a teia de
aranha do teto; agora voc j pode casar, convidar umas visitas, agora mesmo... (p. 80). O
pargrafo seguinte condensa todo o desenvolvimento da imagem e faz um resumo da histria:
Olhei para Matrina... Era uma velha ainda jovem, bondosa, mas, no sei por
qu, de repente ela me apareceu com o olhar apagado, com rugas no rosto,
encurvada, decrpita... No sei por qu, pareceu-me de repente que meu
quarto envelhecera tanto quanto a velha. As paredes e o piso haviam perdido a
cor, tudo se apagara; as teias de aranha tinham se proliferado. No sei por qu,
quando olhei pela janela, pareceu-me que a casa em frente tambm ficara
decrpita, apagada, que o reboco das colunas tinha descascado e cado, que as
cornijas estavam enegrecidas e rachadas, e que as paredes, de um amarelo
forte e brilhante, estavam todas manchadas... (p. 80-2)
Embora o sonhador insista em que no saiba o motivo, o leitor sabe. E um dos fatores
precipitantes para a viso do sonhador de seu futuro a eliminao daquilo com que ele foi
simbolicamente identificado na histria: a teia de aranha.
Algum crdito deve ser dado ao alegado intervalo de vinte anos entre o suposto ato
criminoso de Dostoivski e sua recordao, particularmente se este crime estiver associado
imagem da aranha. Ela freqentemente reaparece nas obras de 1861 e sempre utilizada com
o mesmo propsito. Na longa exposio das vises do Prncipe Valkovski (Humilhados e
ofendidos) a qual Leo Chestov considerou uma virada de Dostoivski em relao aos ideais
humanitrios da Escola Natural da dcada de 184014 o personagem aponta o vcio e o mal na
humanidade:
242
medida que Valkovski indica a amplitude de sua depravao, o narrador relata que
ele lembrava um rptil qualquer, uma enorme aranha que dava vontade de esmagar (p. 230).
Este o primeiro uso da imagem que ser mais proeminente em Crime e castigo e dominar
Os demnios. Ela reaparece e desenvolvida na representao de Gazin, um dos criminosos
de Recordao da casa dos mortos (tambm publicado em 1861):
15
Para as citaes desta obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Humilhados e
ofendidos. Traduo Klara Gourianova. So Paulo: Nova Alexandria, 2003. (N. da T.)
16
Para as citaes desta obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Recordaes da
casa dos mortos. Traduo de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1962. (N. da T.)
243
17
Para a citao foi usada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Memrias do subsolo. Traduo
Boris Schnaiderman. So Paulo: Editora 34, 2000. (N. da T.)
18
Sua esposa relata semelhante reao na Alemanha, O dirio da esposa de Dostoivski, editado por R. FlpMiller (Nova Iorque, 1928), pp. 255, 298.
19
L. Grossman, Tvortchestvo Dostoevskogo (Moscou, 1928), p. 89.
20
Tero de se comer uns aos outros, como aranhas em um pote (p. 120-1), Balzac, Honor de. O pai Goriot.
Trad. Marina Appenzeller. So Paulo: Estao Liberdade, 2002. (N. da T.)
21
Ibid., pp. 89 ff. Grossman tambm aponta para o uso do assez caus de Vautrin por Svidrigilov, Versilov,
Rasklnikov e em artigos de Dostoivski; mostra semelhanas nas descries a casa de Rogjin e a de Grandet.
Deixa escapar outros paralelos, incluindo o gesto caracterstico do Bispo em Bom cura para indicar que ele
seriamente considera uma proposta. Liagavi em Os irmos Karamzov copia este gesto. A. L. Bem, O.
Dostoevskom, III (Praga, 1929-36), 45ff. apresenta muitas passagens de A dama de espadas claramente
semelhantes Crime e castigo tanto em pensamento quanto em imagem.
244
numa brilhante anlise das Noites Egpcias de Pchkin, Dostoivski descreve Clepatra como
uma hiena, uma sdica, uma perversora da carne. Desnecessrio dizer que ela como uma
aranha que destri o macho depois do acasalamento (XIII, 217). Quando Dostoivski
retornou a esta obra em seu Discurso sobre Puchkin, em 1880, ele repete esta crtica quase
textualmente:
22
Para citaes do discurso foi utilizada a seguinte edio: Dostoivski, F. M. Dirio de um escritor. Rio de
Janeiro: Vecchi, [s.d.]. (N. da T.)
23
Grossman, Tvortchestvo Dostoevskogo, p. 75.
245
qual o senhor Golidkin se sente um verdadeiro insecto (p. 38)24. Esta metfora pode ser uma
projeo da parania de Golidkin j exibida na carruagem, mas tambm enfatiza sua
insignificncia, uma vez que, mais tarde, Dostoivski comenta, at uma simples melga, se
fosse possvel haver uma em Petersburgo nessa estao do ano, o conseguiria derrubar
facilmente com um golpe de asa (p. 117).
Depois do retorno de Dostoivski da Sibria, as imagens de insetos adquirem uma
importncia simblica e psicolgica maior. Em Aldeia de Stiepantchikov, Ejevikin, um
monomanaco autodeclarado, constantemente olha atrs de si, por sentir que algum vem
atrs de mim para dar-me um piparote como a uma mosca (p. 176)25. Em Memrias do
subsolo essa imagem usada de forma ainda mais extensiva: No consegui chegar a nada,
nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem heri nem inseto. (p.
17) Quando o homem do subsolo se imagina diminudo no escritrio ele descreve a situao
da seguinte maneira: Fui tratado como uma mosca (p. 63). Esta obra, que constitui o mais
abrangente tratamento da insignificncia e superfluidade do homem feito at hoje, tambm
indica o intelecto como aquilo que torna o homem superior aos animais. Um homem
inteligente, pensante no pode se reduzir insignificncia: Tenho agora vontade de vos
contar, senhores, queirais ouvi-lo ou no, por que no consegui tornar-me sequer um inseto.
Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui
digno (p. 18)
A primeira tentativa do homem do subsolo de afirmar sua individualidade e seu valor
ocorre num encontro na Avenida Nievski. L, ele sempre tem que dar passagem s pessoas
influentes: eu era uma mosca perante todo aquele mundo, mosca vil e desnecessria (p. 66).
Dar passagem a outrem um evento recorrente em Dostoivski. A mesma idia expressa
24
Para citaes desta obra foi utilizada a seguinte edio portuguesa: Dostoivski, F. M. O duplo. Traduo Nina
Guerra e Felipe Guerra. Lisboa: Presena, 2003. (N. da T.)
25
Para citaes dessa obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. A aldeia de
Stepantchikovo e seus moradores. Trad. Olivia Khenbhl. In: Noites Brancas e outras histrias. Rio de Janeiro:
Jos Olympio Editora, 1960. (N. da T.)
246
1. Crime e castigo
26
27
247
- [...] Agora, o fato de eu ter matado a velha, claro nisso eu fiz mal [...]
- Oh, no isso, no isso exclamou Snia com tristeza por acaso pode ter
sido assim?... no, no assim! [...]
- Acontece, Snia, que matei apenas um piolho, intil, nojento, nocivo.
- A pessoa um piolho!?
- Ora, eu tambm sei que no um piolho respondeu ele, fitando-a de
maneira estranha. (p. 425)
29
248
O piolho tem diferentes atributos em momentos distintos, pois depende dos problemas
ideolgicos do romance. Inicialmente, Rasklnikov sustenta que a vida da usurria no []
mais que a vida de um piolho, de uma barata (p. 80). No caminho a Porfri ele volta a
imagem para si mesmo, quando se autodenomina um piolho esttico, nada mais [...] Sim, eu
sou realmente um piolho continuou ele agarrando-se com maldade a esse pensamento,
escarafunchando nele, brincando e distraindo-se com ele [...] de todos os piolhos eu escolhi
o mais intil [...] Porque eu sou definitivamente um piolho [...] porque eu mesmo, possvel
sou ainda pior e mais torpe que o piolho morto, e pressenti de antemo que viria a dizer isso a
mim mesmo depois que o matasse! (p. 285). Quando Rasklnikov atribui torpeza e vileza ao
piolho, possvel reconhecer as mesmas conotaes ticas e emocionais atribudas ao inseto
pelo homem do subsolo, assim como aquelas das imagens de aranhas. De fato, Rasklnikov
descreve a usurria como um piolho sugador de sangue, mas ao confessar seu crime Snia,
ele atribui a si prprio o mesmo carter devastador, socialmente danoso e eticamente mau:
[...] eu me encafuei num canto do meu quarto como uma aranha (p. 425), [...] quanto a eu
vir ser benfeitor de algum ou passar a vida inteira como uma aranha, arrastando todos para a
rede e sugando a seiva de todos, isso, naquele instante, deve ter sido indiferente para mim!
(p. 427). Essa passagem assume particular importncia no somente porque, em partes, iguala
Rasklnikov usurria, mas tambm porque aparece depois da famosa descrio que
Svidrigilov faz da eternidade aracndea. O uso que Rasklnikov faz dessa imagem
novamente indica e justifica a alegao de Svidrigilov de que entre ns existe algum ponto
em comum (p. 298). Uma outra ligao imagtica entre os dois est na revelao de
Svidrigilov sobre ter ouvido a confisso de Rasklnikov. Quando o jovem atribui motivos ao
outro para dar dinheiro s crianas de Marmieldov, Svidrigilov pergunta: Mas ser que o
senhor no admite que eu possa agir simplesmente por humanidade? Bem, ela no era um
piolho [...] como certa velhota usurria. (p. 445)
249
A muito custo tomou flego mas, estranho, era como se o sonho ainda
continuasse: a porta do quarto estava escancarada e entrada, postado, um
homem inteiramente desconhecido o examinava fixamente [...] Passaram-se
uns dez minutos. Ainda estava claro, mas j anoitecia. No quarto o silncio
reinava absoluto. Nem da escada chegava um nico som. Apenas uma mosca
grande zumbia e se debatia ao chocar-se investida contra a vidraa. Por fim
isso se tornou insuportvel: Rasklnikov soergueu-se num repente e sentou-se
no sof. Ento, fale, o que o senhor deseja?
Eu bem que sabia que o senhor no estava dormindo, e apenas fazia de conta
respondeu estranhamente o desconhecido, rindo calmamente. Arkadi
Ivnovitch Svidrigilov, permita-me apresentar-me... (p. 287-8)
30
Bem, O Dostoievskom, pp. 45ff, nota a existncia dessa mosca em A Dama de espadas.
250
2. O idiota
Em Minha explicao necessria, Hippolit Terentiev relata um sonho seu:
Eu adormeci acho que uma hora antes da chegada dele e vi que estava em
um quarto (no o meu). O quarto era mais alto e maior que o meu, melhor
mobiliado, claro; armrio, cmoda, sof e minha cama, grande e larga e
coberta por um cobertor de seda verde e acolchoado. Mas nesse quarto eu
notei um animal terrvel, um monstro. Era uma espcie de escorpio, mas no
era escorpio, era mais nojento e muito mais horrendo e, parece, justamente
porque esses bichos no existem na natureza, e porque ele me apareceu de
propsito, e porque nisso existiria como que algum segredo. Eu o examinei
muito bem: era marrom e cascudo, um bicho rptil, de uns quatro verchoks de
comprimento, a cabea com uns dois dedos de espessura que afinava
gradualmente na direo do rabo, de maneira que a ponta do rabo no tinha
mais do que um dcimo de frao de verchok. Do peito, a um verchok da
cabea, saam duas patas a quarenta e cinco graus, uma de cada lado, cada
uma de dois verchoks de comprimento, de sorte que todo o bicho, visto de
cima, parecia um tridente. No examinei a cabea mas vi dois bigodinhos, no
longos, na forma de duas agulhas fortes, tambm marrons. Tinha dois
bigodinhos iguais na ponta do rabo e na ponta de cada uma das patas, logo,
oito bigodinhos ao todo. O bicho corria muito rpido pelo quarto, apoiando-se
nas patas e no rabo, e quando corria o tronco e as patas serpenteavam com
uma rapidez incomum, apesar da casca, e dava muito nojo olhar para aquilo.
Eu estava com um terrvel medo de que ele me picasse; ouvi dizer que era
venenoso, no entanto eu me angustiava mais com o fato de saber: quem o teria
enviado ao meu quarto, o que queriam fazer comigo e qual era o segredo
daquilo? Ele se escondia debaixo da cmoda, debaixo do armrio, arrastava-se
para os cantos. Eu me sentei numa cadeira com as pernas encolhidas. Ele
atravessou rapidamente todo o quarto de banda e sumiu em algum lugar perto
ta minha cadeira. Eu olhava ao redor tomado de pavor, porm como estava
251
31
252
Sabe-se quo comovente foi a experincia de ver essa imagem em Basel para o prprio
Dostoivski32. Hippolit descreve a pintura em detalhe, e pergunta:
Nesse caso, o animal aparece especificamente como uma tarntula, e no uma aranha
qualquer, mas no se trata de um caso excepcional. Enquanto escrevia O idiota em Florena
em 1870, Dostoivski teve seu primeiro contato direto com essa espcie. Em Dirio de um
escritor ele relata essa experincia, e, aps minimizar o perigo de uma picada, fala do
desconforto de eventualmente dormir num quarto em que houvesse a piccola bestia:
253
33
Nessa passagem o autor do artigo se equivoca ao incluir essa citao (no original
, ) como exemplo de utilizao de imagem de aranha, pois o termo gadina significa rptil,
conforme consta na traduo utilizada em portugus, ver tambm nota 5. (N. da T.)
254
enfurecer com a sorte obscura e surda, que decidira me esmagar como uma mosca (p. 437) e
decide combat-la cometendo suicdio. Terentiev agora se considera um proscrito e o expressa
fazendo analogia com a imagem da mosca: De que me serve toda essa beleza [Pvlovsk]
quando em cada minuto, em cada segundo eu devo e agora sou forado a saber que at essa
minscula mosquinha ali, que est zunindo ao meu lado numa rstia de sol, at ela participa
de todo esse banquete e desse coro, conhece seu lugar, ama-o e feliz (p. 463-4). Mchkin
particularmente afetado por esta formulao, pois ela expressa plenamente suas prprias
idias informes de quando sofria na Sua. a essncia da experincia do prprio Mchkin,
sua unio com a natureza e os profundos efeitos de suas reminiscncias. (p. 474).
A imagem da mosca tambm usada com outros propsitos no romance. No
simplesmente um smbolo paradoxal da unio com a natureza, ou da separao desta. Quando
Iepantchin conta o mais repreensvel ato de sua vida, ele compara a velha em sua solido a
uma mosca qualquer, carregando nos ombros a maldio do sculo (p. 181). usada
coloquialmente: Se bem que aqui basta que uma mosca passe voando e j se fica sabendo
(p. 625). E faz sua mais significativa apario quando o zunido de uma mosca o nico som
no quarto enquanto Rogjin e Mchkin observam o corpo de Nastcia Fillippovna (p. 672)34.
3. Os demnios
Depois da noite com Stavrguin que explicita para Lisa o vazio absoluto do heri de
Os demnios, ela comenta, antes de sair, sempre achei que voc me levaria para algum lugar
onde morasse uma enorme aranha m, do tamanho de uma pessoa, e que ali passaramos toda
34
Para comentrios sobre essa cena ver Allen Tate, A mosca pairante de Dostoivski, Sewanee Review, 51
(1943), 353-369.
255
a vida olhando para ela com medo. assim que passar o nosso amor recproco (p. 512)35.
Essa imagem extraordinariamente apropriada para caracterizar Stavrguin e traz tona a
insinuao de que ele seja responsvel pelo assassinato de Liebidkin. A aranha do tamanho
de uma pessoa fora vista antes na descrio de Gazin, em que estava associada ao possvel
abuso de crianas. NOs demnios essa imagem carrega, alm desse significado, um outro
mais amplo. As aranhas tm uma importncia irrevogvel na mente de Stavrguin e so
repetidamente utilizadas para lembr-lo da sua inerente falncia espiritual. A confisso de
Stavrguin crucial para a compreenso desta faceta de seu carter. Enquanto Matricha
est se enforcando, Stavrguin tenta passar o tempo sem nenhuma demonstrao de
envolvimento pessoal. Uma mosca zumbia sobre minha cabea e insistia em me pousar no
rosto. Apanhei-a, segurei entre os dedos e soltei-a pela janela (p. 672-3). O episdio difere
consideravelmente daquele em que Tio Toby liberta uma mosca em A vida e as opinies do
cavalheiro Tristram Shandy36, pois aqui a mosca encontra uma libertao que Stavrguin no
conceder ao infinitamente mais importante ser humano. Ele se retira da janela para
permanecer despercebido; tenta, sem sucesso, ler um livro; depois comea a olhar para uma
minscula aranha vermelha numa folha de gernio37. Cochila brevemente. Ao acordar,
lembra-se imediatamente do zunido da mosca e da aranha. Mais tarde, na confisso, ele sonha
com a Idade de Ouro, e, no momento em que tomado por uma alegria sem precedentes,
acorda. Tenta manter o sentimento de xtase. Os raios oblquos do sol poente infiltram-se
atravs de uma folhagem verde da floreira. Um ponto de luz assume para ele a forma de uma
aranha vermelha (p. 677) e, a partir deste momento, ele se d conta de sua prpria runa. A
justaposio do bem supremo na Idade do Ouro e do mal supremo (ou seria simplesmente um
vazio absoluto?) em Stavrguin claramente criada pelo smbolo da aranha. Que o uso desta
35
Para citaes desta obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. Os demnios. Traduo
Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34, 2005. (N. da T.)
36
Edio em portugus: Sterne, L. A vida e as opinies do cavalheiro Tristram Shandy. Traduo Jos Paulo
Paes. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. (N. da T.)
37
Krachetchnogo krasnenkogo pautchka. O uso de diminutivo aqui pode decorrer da atitude de Stavrguin.
256
imagem proposital pode ser facilmente demonstrado pela sua ausncia na narrativa de
Versilov sobre a Idade de Ouro (O adolescente) e pela troca da imagem da corrupo por uma
triquina nojenta na ltima verso do sonho do Homem Ridculo (p. 117)38, em que, de modo
bastante significativo, ao pensar em uma jovem criana, este homem decide no se suicidar. E
Stavrguin s pode caracterizar seu ato como vil, rastejante e abominvel.
A imagem da aranha usada com efeito similar na primeira conversa de Kirlov com
Stavrguin. Kirlov descobre que tudo bom e que o homem somente infeliz por no saber
que feliz. Stavrguin contesta, e o cerne de sua questo remete Confisso: E se algum
morre de fome, se algum ofende e desonra uma menina, isso bom? (p. 239). Kirlov
responde que sim, e, ampliando seu conceito, afirma: Rezo por tudo. Veja, aquela aranha
est subindo pela parede; olho agradecido por estar subindo [...] Stavrguin o acompanhava
com ar carrancudo e enjoado, mas no havia galhofa em seu olhar. (p. 240). No obstante, a
imagem de aranha no somente um smbolo do mal ligado a Stavrguin. Representa tambm
o mal poltico dos revolucionrios. O destino de Chatov est traado, mas os membros do
grupo suspeitam que Piotr Stiepanovitch est simplesmente brincando com eles. Assim
Dostoivski descreve as reaes destes membros: Sentiam que de repente haviam cado
como moscas na teia de uma enorme aranha; estavam furiosos, mas tremiam de medo (p.
536). E, logo depois, continuando a imagem, Piotr despeja sua raiva em Kirilov pela desero
de Stavrguin. Ameaando-o com terrveis conseqncias se ele no cometesse suicdio, Piotr
grita: vou [...] enforc-lo como uma mosca, esmag-lo... est entendendo? (p. 546). A
imagem reaparece como smbolo da falncia espiritual no discurso manaco sobre a
degenerao da Rssia: As estradas de ferro comeram todos os capitais e envolveram a
Rssia como uma teia de aranha (p. 475). Em O idiota, Dostoivski expressou essa idia de
forma diferente, nos seguintes termos: as fontes da vida e a estrela Absinto do
38
A pgina corresponde seguinte edio em portugus: Dostoivski. F. Duas narrativas fantsticas. A dcil e
O sonho de um homem ridculo. Traduo Vadim Nikitim. So Paulo: Editora 34, 2003. (N. da T.)
257
Apocalipse, que caiu na terra sobre as fontes das guas (p. 344). Libediev expande sua
interpretao para igualar as estradas de ferro falta de valores espirituais: As estradas de
ferro propriamente ditas no vo turvar as fontes da vida, mas em seu conjunto tudo isso
maldito, tudo isso o estado de esprito dos nossos ltimos sculos, no seu mbito geral,
cientfico e prtico, tudo isso pode ser efetivamente maldito (p. 416).
O episdio da Confisso e a conversa de Stavrguin com Kirlov determinam ainda
um esquema de cores simblico em Os demnios. A pequena aranha avermelhada de
Stavrguin, que podemos considerar como smbolo de sua maldade, repousa sobre uma folha
verde. Kirilov tambm menciona uma folha (posteriormente Ivan Karamzov ter uma
lembrana semelhante); e, embora negue implicaes alegricas, a folha representa a viso
ideal do bem na ideologia invertida de Kirilov:
Voc j viu uma folha, uma folha de rvore? [...] H poucos dias vi uma
amarela, meio verde, com as bordas podres. Arrastada pelo vento. Quando eu
tinha dez anos fechava os olhos de propsito no inverno e imaginava uma
folha verde, viva, com as nervuras, e o sol brilhando. Eu abria os olhos e no
acreditava porque era muito bonito, e tornava a fech-los [...] A folha bonita.
Tudo bonito. (p. 238)
olha como se eu fosse algum sol e a si mesmo como um inseto qualquer comparado a mim
(p. 244). Piotr, no captulo Ivan Czarivitch, ao expressar sua necessidade pessoal e poltica
por Stavrguin, diz: Sem voc sou uma mosca, uma idia dentro de uma garrafa, um
Colombo sem Amrica (p. 409). Na sua carta de despedida para Daria, Stavrguin
novamente remete imagem: Sei que preciso me matar, varrer-me da face da terra como um
inseto torpe; mas tenho medo do suicdio porque temo mostrar magnanimidade (p. 652).
Outras trs imagens so usadas em Os demnios. A primeira a barata. Lebidkin a
utiliza simbolicamente (e Dostoivski alcana um efeito cmico) no poema que pretende
descrever a si prprio, bem como o estado poltico e espiritual da Rssia (p. 181-2). Stiepn
Trofimovitch a utiliza para descrever sua derrota: eu mesmo j estou totalmente esmagado
como... como uma barata (p. 127). A segunda imagem da cobra ou serpente. O captulo A
sapientssima serpente caracteriza Stiepan Stiepanovitch. Quando Chatov pega a mo de
Erkel, imediatamente antes deste ltimo conduzi-lo morte, ele estremeceu, como se tivesse
tocado em algum rptil horrvel (p. 556). A terceira imagem, e possivelmente a mais
importante, a do verme. utilizada primeiramente por Lebidkin, o qual indicou sua relao
com o movimento e menciona sua fonte: sou um escravo, sou um verme e no Deus, e s
isso que me distingue de Dierjvin (p. 269). A palavra verme, aqui, usada com uma
conotao totalmente diferente do que em Dierjvin e outros escritores do sculo XVIII, que a
utilizam como a mais baixa ligao na Grande Cadeia do Ser39. Piotr Stiepanovitch usa a
imagem com as nuances psicolgicas de Lebidkin quando diz a Stavrguin: Voc o chefe,
o sol e eu sou seu verme... (p. 408). Maria Lebidkina lana mo da imagem mais
39
Em Dierjvin, os versos so: Ia tsar ia rab ia tcherv ia Bog! [Sou tsar sou servo sou verme sou
Deus]. Tal uso quase um lugar-comum na expresso potica do sculo XVIII: em An Gott de Klopstock
... dem Wurm, der Mensch heisst; em Night Thoughts de Young Midway from nothing to the deity! / A
worm! A God!; em An die Freude de Schiller Wollust ward dem Wurm gegeben, / Und der Cherub steht
vor Gott. A primeira frase deste conceito est provavelmente em J, 25: 6 [Se nem a lua brilhante e nem as
estrelas so puras aos olhos dele / muito menos ser o home, que no passa de larva, o filho do homem, que no
passa de verme!].
259
ativamente. Suas cenas com Stavrguin tm profundo significado religioso e folclrico40. Ela
considera seu verdadeiro salvador (o Stavrguin que ela uma vez conheceu?) um falco. Mas
Stavrguin traz o mal e a destruio mesmo para ela, e ela reconhece: Assim que vi tua cara
vil quando ca e tu me seguraste, foi como se um verme se metesse em meu corao: mas no
ele, pensei, no ele! (p. 277).
4. O adolescente
O adolescente geralmente considerado um fracasso, mas, a despeito de suas
improbabilidades e inpcia, extremamente rico e significativo ao recapitular idias que
aparecem anteriormente na obra de Dostoivski, e ao apresentar novas. Dolgoruki , de
muitas formas, parecido com o homem do subsolo e com Rasklnikov, mas ele percebe ter-se
reeducado no prprio processo de escrita de suas memrias. Ele cresce para alm de sua
distoro pueril das idias e aprende um novo equilbrio das relaes com as pessoas. Mais
importante ainda a reavaliao de seu relacionamento com Versilov, a qual, em grande
medida, resulta do fato de serem rivais na disputa por uma mesma mulher. A relao de
Dolgoruki com ela ou sua viso desta relao freqentemente expressa em termos de
aranhas. Depois do primeiro encontro, ele se apaixona, mas suspeita que ela o destruir:
Pergunto-me se a aranha pode odiar a mosca que ela espreita e apanha. Querida mosca!
Parece-me que se ama sua vtima; pelo menos, pode am-la. Assim sendo, amo minha inimiga
(p. 39)41. Quando Dolgoruki finalmente percebe, pela simbologia de um sonho, que a base de
seu amor o desejo sexual, ele associa o sonho com a vergonha. A explicao para a
existncia do sonho aparece logo em seguida: Era que eu tinha uma alma de aranha! (p.
361). De modo semelhante, o Prncipe Serguei, que uma cpia muito fraca de Stavrguin,
40
Ver, respectivamente, V. Ivanov, Liberdade e a vida trgica (Londres, Harvill Press, 1952), pp. 42-45, e W. L.
Komarowitsch, Die Urgestalt der Brder Karamasoff (Munique, 1928), pp. 141 ff.
41
Para citaes dessa obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. O adolescente. Trad.
Ldo Ivo. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1962. (N. da T.)
260
doente e perdendo o sono, subitamente esclarece a Dolgoruki, Estou sempre a sonhar com
aranhas (p. 395). Novamente h uma associao entre mal e sexo, representada em termos
agora familiares.
5. Os irmos Karamzov
O nome Karamzov se tornou na Rssia um smbolo de devassido e dissipao. Duas
personagens no romance esto especificamente ligadas imagem da aranha, embora de
formas muito distintas. Dmtri tenta descrever a si mesmo e o mal quando conta a Aliocha
sobre a primeira visita que recebeu de Katierina Ivanovna. A idia subjacente poderia ter sido
explicitamente expressa pelo homem do subsolo, mas Dmitri somente a cogita:
A primeira idia que tive foi uma idia karamazoviana. Uma vez, meu irmo,
uma lacraia me picou, e isso me fez passar duas semanas acamado e com
febre; mas dessa vez sinto de repente a lacraia, esse inseto perverso, me picar
no corao, ests entendendo? Eu a medi com o olho. Tu a viste? bela. ,
mas no era desse jeito que ela estava bela naquele momento. Estava bela
naquele instante porque era nobre, enquanto eu era um patife, porque ela
estava na grandeza de sua generosidade e do sacrifcio pelo pai, ao passo que
eu era um percevejo. E eis que de mim, um percevejo e um patife, ela
dependia toda, toda, inteirinha, de corpo e alma. Em todos os detalhes. Eu te
digo francamente: essa idia, a idia da lacraia, apossou-se de tal forma de
meu corao que ele por pouco no se esvaiu s de angstia. Pareceria que no
havia mais lugar para nenhuma luta: era agir precisamente como um
percevejo, como uma tarntula perversa, sem nenhuma d... (p. 169-71)42
42
Para citaes dessa obra foi utilizada a seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Os irmos
Karamzov. Trad. Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34, 2008. (N. da T.)
43
Conforme o Russian-English Biological Dictionary (Ed. C. W. Dumbleton. Edinburgo e Londres: Oliver &
Boyd, 1964, p. 455) o termo utilizado no original () indica uma ordem de aracndeos chamada solifugae.
Sendo assim, as opes utilizadas tanto na edio em portugus (lacraia) quanto por Rosenshield (phalange) no
so totalmente precisas. (N. da T.)
261
caracterizao mais ampla, capaz de manter lado a lado o ideal da Madona com o de Sodoma.
Mas restou uma pista do plano original: Fidor, na presena de Zossima, chama Dmtri de
corruptor da inocncia e Dmtri informa a Aliocha, Embora o velhote tenha mentido sobre
a seduo de inocentes, no fundo, porm, isso de fato aconteceu em minha tragdia, ainda que
s uma vez, e mesmo assim sem se consumar. O velhote, que me censura com invencionices,
no conhece esse fato (p. 165). Fidor poderia facilmente ser associado com o ato, pois sua
acusao claramente um mecanismo projetivo.
A luxria to caracterstica de todos os Karamzov indicada, em partes, pela
associao de cada membro (e o meio-membro Smerdikov) com insetos44. Dmitri
desenvolve longamente esta idia em sua Confisso de um corao ardente. Cita o que
acredita ser An die Freude de Schiller (na verdade, trata-se de uma mistura de dois poemas
de Schiller) na traduo de Jukovski, que termina com os versos: Lascvia aos insetos,/ E
colocou o anjo perante Deus. (p. 162). Dmtri desenvolve a idia em seguida: Meu irmo,
eu sou esse inseto, isso foi dito especialmente ao meu respeito. E todos ns, Karamzov,
somos assim; at em ti, anjo, esse inseto vive e em teu sangue gera tempestades. So
tempestades, porque a lascvia uma tempestade, mais que uma tempestade! (p. 162).
Aliocha admite ser tambm consumido pela luxria (p. 165). As palavras inseto e
percevejo so bastante recorrentes e sempre associadas vileza e luxria: Eu gostava da
devassido, gostava da desonra da devassido. Gostava da crueldade: por acaso eu no sou
um percevejo, no sou um inseto perverso? Est dito um Karamzov! [...] Da torpeza do
campo emporcalhado pelas moscas, passaremos minha tragdia, tambm ao campo
emporcalhado pelas moscas, ou seja, por todo tipo de baixeza. (p. 164-5). O campo, deve ser
lembrado, o prprio homem, pois, na formulao de Dmtri, A lutam o diabo e Deus, e o
campo de batalha o corao dos homens (p. 162).
44
262
uma mosca (p. 796). Ele diz a Ivan: [...] a vida inteira me considerou um mosquito, e no
gente (p. 816). Uma mosca aparece como figura de linguagem no comeo do julgamento:
Na sala ficou tudo em silncio, dava pra ouvir o vo de uma mosca (p. 855-6), mas, mesmo
aqui, ela tem valor simblico. At as referncias aparentemente realsticas aos piolhos tem
sentido mais profundo. A tripla meno aos mujiques piolhentos (p. 553, 576 e 866) por
Trifon Borisovitch, indica sua indiferena a qualquer coisa que no seja ganho monetrio.
Grigori, durante o julgamento, relata que, no fosse por ele, Mitia teria sido devorado pelos
piolhos (p. 859), e que Dmtri lhe agradecido por este servio (p. 863). A afirmao inicial
de Mitia obviamente uma conseqncia do descuido engendrado pela luxria de Fidor.
Alm disso, particularmente apropriada a recusa de Dmtri em falar com o promotor em
Mokroe, o qual se encravava nele como percevejos (p. 628)
Uma outra srie de imagens comea com a execrao de Fidor e Dmtri
freqentemente repetida por Ivan: um rptil devorando outro rptil (p. 205, 262, 791, 888).
Ivan aplica o mesmo termo a Smerdikov (p. 805) e, ao tocar o dinheiro roubado por
Smerdikov, Ivan [...] pegou o embrulho, fez meno de desfaz-lo, mas de repente retirou
os dedos como se houvesse tocado em algum rptil repugnante, horrendo (p. 808). Dmtri faz
uso semelhante da imagem quando alega ser o mais baixo de todos os rpteis, no por conta
do assassinato, mas por ter tomado o dinheiro de Katierina (p. 665). Para a prpria Katierina
seria terrvel tocar nesse monstro... como num rptil (p. 777), mas ela se associa s imagens
ao dizer a Aliocha, O senhor talvez v querer me pisotear depois do interrogatrio de
amanh (p. 776). E, num outro comentrio de duplo sentido, depois do depoimento de
Katierina, Grushenka grita para Dmtri: [...] tua serpente te arruinou (p. 895). Talvez todos
os habitantes da cidade estejam envolvidos, no somente no brado de Ivan Quem no
deseja a morte do pai? (p. 888) mas tambm na relutncia do narrador em revelar o nome
da cidade, Skotoprigonevsk, estbulo.
264
Amai toda a criao de Deus, no conjunto e em cada gro de areia. Amai cada
folha, cada raio de Deus. Amai os animais, amai as plantas, amai todas as
coisas. Amars toda e qualquer coisa e nas coisas alcanars a compreenso
do mistrio de Deus. (p. 433)
Esta uma soluo, uma soluo mstica. Mas, embora a viso de Dostoivski fosse
essa, sua mente era racional e seu mtodo dramtico. Muito do seu pensamento culmina neste,
seu maior romance, mas nem sempre encontra soluo a. Ao contrrio, encontra seu
refinamento mximo numa srie de brilhantes paradoxos, dos quais a vida de Zossima e O
grande inquisidor so os principais exemplos. As imagens que traamos na obra de
Dostoivski so utilizadas de modo mais extensivo em seu ltimo romance e adquirem
265
significado ainda maior. O mal apreendido por Dmtri de forma diferente de qualquer outro
personagem, mas ele encontra em si mesmo uma fora para equilibrar aquela representada
pela aranha. Sua associao mesma com uma srie de imagens utilizadas por Svidrigilov,
Stavrguin e outros personagens demonacos envolvidos no abuso de crianas (pelo menos
como parte de sua destruio moral) tem sua contraparte na faanha das crianas com as quais
Aliocha visto, graas s quais, numa conversa com Ivan, ele renunciaria religio. Dmtri,
que mais culpado, e culpado em vrios sentidos, tambm encontra uma viso redentora,
diferente das de Zossima e Ivan, em seu sonho com o beb nu e faminto, que chora:
[...] por que esto a em p essas mes vtimas de incndio, por que as pessoas
so pobres, por que o beb pobre, por que a estepe nua, por que eles no se
abraam, no se beijam, por que no cantam canes alegres, por que a
desgraa negra as deixou to escuras, p que no alimentam o beb?
E ele sente em seu ntimo que, embora fique perguntando feito louco e toa,
quer sem falta perguntar justamente assim e justamente assim que precisa
perguntar. E sente ainda que em seu corao se agita um enternecimento que
jamais o habitara, que tem vontade de chorar, que quer fazer algo em prol de
todas as pessoas para que a criana pare de chorar, para que a me do beb, de
rosto ressequido e escuro, tambm pare de chorar e a partir desse instante
ningum mais derrame lgrimas, e que isso seja feito agora, nesse exato
momento, sem demora e apesar dos pesares, com toda a impetuosidade dos
Karamzov. [...]
- Tive um sonho bom, senhores pronunciou de um modo meio estranho, de
cara nova, como que iluminada pela alegria.(p. 663-4)
266
267
Captulo 1 - INTRODUO
O artigo de Pierre R. Hart, Looking over Raskolnikovs Shoulder: The narrator in Crime and Punishment,
Criticism, 13 (1971), 166-79, , at o momento, o trabalho mais informativo sobre o assunto. A maioria dos
outros trabalhos sobre a narrao em Crime e castigo pode ser encontrada em comentrios esparsos em muitos
livros e artigos. Ver, por exemplo, Julius Mier-Graefe, Dostoevsky: The Man and His Work, traduzido por
Herbert H. Marks (New York: Harcourt: 1928, p. 112; Joseph Warren Beach, The Twentieth Century Novel:
268
269
sofisticao de suas tcnicas. Elas raramente, se que alguma vez o fizeram, distinguem autor
implcito, narrador e o Dostoivski histrico, descuido crtico este que levou a graves
interpretaes errneas. Poucos identificariam o narrador de O adolescente, Arkadi
Dolgoruki, com o autor implcito ou o Dostoivski histrico; mas crticos tm visto
Dostoivski no somente no narrador de Os demnios, como tambm em Makar Divuchkin,
o heri de Gente pobre3. Tampouco o autor implcito dos romances de Dostoivski sempre
idntico ao autor histrico. Quando artisticamente necessrio, Dostoivski apresenta suas
idias mais estimadas numa chave ambgua. As idias de Chatov sobre a Ortodoxia Russa
virtualmente idnticas s de Dostoivski so apresentadas com tanto ceticismo quanto o
delrio suicida de Kirilov.
A viso mais difundida sobre os narradores de Dostoivski consiste em que eles so
essencialmente objetivos, servindo a assim chamada funo informativa4. De acordo com
essa opinio, Dostoivski um romancista dramtico, que prefere mostrar a contar, e quando,
ocasionalmente, narra, seus relatos so meramente resumos sbrios e concisos das
informaes necessrias. Em outras palavras, diferente de escritores como George Eliot,
Dickens ou Ggol, Dostoivski raramente assume o papel de um autor onisciente intruso.
Contudo, a afirmao de que os narradores de Dostoivski so objetivos uma posio que
no resiste anlise crtica. Se por objetividade compreendemos pouca intruso autoral, ento
verdade que Crime e castigo mais objetivo de que a maioria dos romances russos e
europeus contemporneos Dostoivski. Mas no to objetivo quanto muitos romances em
Para uma identificao explcita entre Dostoivski e Divuchkin ver Likhatchv, Letopisnoe vremia u
Dostoivskogo, em Potica drevnerusskoi literatury (L.: Nauka, 1967), pp. 321-2.
4
Ver, por exemplo, Lunatchrski, O mnogogolosnosti Dostoivskogo, em F. M. Dostoivski v russkoi
kritike: Sbornik statei, Ed. A. A. Belkin (M.: GIXL, 19560), p. 413; G. I. Tchulkov, Kak rabotal Dostoivski
(M.: Sov. Pisatiel, 1939), pp. 81, 146; Evnin, Prestuplenie i nakazanie, p. 109; L. P. Grossman, Dostoivski
khudojnik, em Tvortchestvo Dostoievskogo, pp. 353-4 [Dostoivski artista. Trad. Boris Schnaiderman. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.]; Karantchi, p. 142; M. M. Bakhtin. Problemi poetiko Dostoievskogo, 2
edio (M. Sov. Pisatiel, 1963) p. 336 [Problemas da potica de Dostoivski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janiero: Forense Universitria, 2008.]; Fridlender, p. 190; V. I. Etov, Manera povestvovania v romane
Dostoivskogo Idiot, Vestnik Moskovskogo universiteta, 21, n 1 (1966), 74.
270
terceira pessoa escritos durante o sculo XX, ou mesmo to objetivo quanto freqentemente
se defende. De fato, eu pretendo demonstrar que o narrador em Crime e castigo, por uma
variedade de meios, sendo alguns sutis e outros bvios, desempenha um papel essencial na
estrutura retrica do romance.
Mesmo as melhores anlises dos narradores dostoievskianos so arruinadas por srias
falhas analticas. Van der Eng, por exemplo, argumenta que Dostoivski usa tcnicas
diferentes para protagonistas e personagens secundrios5. Ele sustenta que o autor emprega
oniscincia tradicional ao lidar com personagens menores e que protagonistas so
apresentados por meio do discurso, ao e transcrio da conscincia, ou seja, objetiva e
dramaticamente. Muito embora a confuso que van der Eng faz entre narrador e autor
implcito torne seu argumento inaplicvel para o todo da obra de Dostoivski, sua descrio
parece, primeira vista, um tanto adequada para o narrador de Crime e castigo. Entretanto, a
diviso dos personagens em dois grupos altamente discutvel. So Marmieldov,
Svidrigilov e Porfri Pietrvitch realmente mais importantes que Katierina Ivanovna, Ljin e
Razumkhin? Alm disso, van der Eng deixa de observar que Dostoivski freqentemente
utiliza tcnicas tradicionais para os ditos personagens principais e tcnicas dramticas para os
menores.
A abordagem mais radical dos romances de Dostoivski foi formulada por Mikhail
Bakhtin, o qual, j em 1929, defendeu que o tratamento da narrao feito por Dostoivski
marcou um estgio revolucionrio no desenvolvimento do romance6. Embora as
generalizaes de Bakhtin sejam exageradas e sua terminologia imprecisa, sua obra , no
obstante, provocativa. Bakhtin v a diferena essencial entre o romance dostoievskiano
(polifnico) e o tradicional (monofnico) na relao entre a dramatis personae e aquilo que
5
Johannes J. van der Eng, Dostoievskij romancier: Rappports entre sa vision du monde et ses procds
littraires (The Hague: Mouton, 1957), pp. 75-91.
6
A segunda edio do trabalho de Bakhtin (ver nota 4) difere pouco no argumento essencial em relao edio
de 1929.
271
ele denomina voz do autor. Enquanto no romance tradicional, a voz do autor um centro
dominante estrutural e avaliativo ao qual todas as outras vozes (pontos de vista) esto
subordinadas; no romance polifnico, a voz do autor igual, e no mais importante, do que as
vozes dos principais personagens. Para Bakhtin, Dostoivski criou um novo tipo de romance
ao incorporar o ponto de vista do narrador monofnico conscincia de seu heri, equipandoo, assim, com a perspectiva e o conhecimento do narrador intrusivo tradicional. Uma vez que
a primazia da voz do autor teve de ser eliminada para que o heri se tornasse completamente
independente, Dostoivski transformou seu narrador num narrador objetivo, um mero
disseminador de informaes.
Considerando que Bakhtin raramente distingue os termos autor, voz do autor e
narrador, difcil, em muitas situaes, entender seu sentido exato7. Alm disso, os
problemas criados por essa imprecisa terminologia so acrescidos de sua falha em aplicar
essas vises sistematicamente principal fico de Dostoivski. Quando usamos suas teorias
para elucidar o ponto de vista nos ltimos romances, chegamos a resultados decepcionantes.
Pode o narrador ter um ponto de vista igual quele dos personagens e ainda ser simplesmente
um disseminador de informao? Em Os demnios, qual ponto de vista do narrador igual ao
de Stavrguin? O do cronista? O autor onisciente? Embora seja possvel argumentar que o
ponto de vista de Stavrguin to importante quanto o do cronista, certamente no to
vlido quanto o do autor onisciente. verdade que o ponto de vista do narrador-protagonista
de O adolescente, Arkadi Dolgoruki, possa no ser mais vlido do que o de outros
personagens, mas o narrador aqui extremante subjetivo, longe de ser um mero disseminador
de informaes. De fato, pareceria que os narradores de Dostoivski simplesmente reduziriam
o impacto de seus pontos de vista ao tentar abertamente imp-los aos outros. o narrador
aparentemente objetivo de Crime e castigo, o narrador que menos visivelmente tenta submeter
Os termos em russo so avtor (autor), golos avtora (voz do autor), rasskaztchik ou povestvovatel (narrador).
272
o ponto de vista dos personagens ao seu prprio, que acaba sendo o mais bem sucedido em
faz-lo. Tudo que acontece em Crime e castigo est subordinado a um ponto de vista elevado
decifrvel e cuidadosamente trabalhado, e, ao contrrio do que Bakhtin defende, o romance
no mais polifnico do que as obras dos contemporneos de Dostoivski. Assim, a alegao
de que Dostoivski aumentou a objetividade de seu narrador para assegurar a mesma validade
a todos os pontos de vista do romance errnea no caso de Crime e castigo e tem pouca,
seno nenhuma, aplicabilidade aos outros grandes romances de Dostoivski.
Na verdade, as observaes do prprio Dostoivski na escolha do narrador para Crime
e castigo so mais elucidativas de que as dos crticos. Num apontamento de seu caderno feito
um ms antes da primeira parte do romance ser mandada para o editor, Dostoivski cogitou a
possibilidade de uma narrao em terceira pessoa8. At ento, Crime e castigo havia sido uma
confisso em primeira pessoa. Neste apontamento, Dostoivski prope um narrador
onisciente, infalvel e invisvel que no deixaria seu heri (Rasklnikov) por um momento
sequer. Na verso final do romance, o narrador , de fato, onisciente e infalvel; no um
personagem na histria, mas uma conscincia divina superior, que, em consonncia com a
prtica ficcional estabelecida no sculo XIX, sabe tudo que acontece tanto no mundo externo
quanto nas mentes dos personagens. As informaes e opinies do narrador simplesmente no
so passveis de questionamento. Elas so confirmadas pelo enredo, pelo simbolismo e pela
estrutura do romance. Dessa forma, o narrador , em todo romance, um porta-voz do autor
implcito.
Este narrador, contudo, no invisvel; nem fica com Rasklnikov do incio ao fim.
Dostoivski deve ter mudado de idia em relao ao plano original algum tempo antes de
8
Nesta nota Rosenshield informa que as citaes do romance e do caderno de notas foram por ele traduzidas a
partir da seguinte edio original: F. M. Dostoievski, Prestuplenie i nakazanie, Ed. L. D. Opulskaia e G. F.
Kogan. Literaturnie pamiatniki; M.: Nauka, 1970, p. 541. Me nossa traduo recorreremos edio em
portugus: Dostoivski, F. M. Crime e castigo. Traduo Paulo Bezerra. So Paulo: Editora 34, 2001. Assim
como no texto de Rosenshield, pontos no espaados sero utilizados para indicar as elipses de Dostoivski
(pontos de supresso); pontos espaados indicaro minhas elipses. Todas as tradues do russo so minhas. (N.
da T.
273
Foi mencionado que o escasso uso de comentrios fortes sobre Rasklnikov torna a
apresentao do protagonista mais dramtica e vvida. Outra razo relaciona-se com a maneira
pela qual Rasklnikov desenvolvido ao longo da obra.
um lugar-comum da crtica a afirmao de que o romance realista russo do sculo
XIX enfatiza a caracterizao custa do enredo1. Tal julgamento tem obviamente menos
relevncia para Dostoivski do que para escritores como Gontcharv, Tolsti e Turguniev,
mas poucos questionariam sua aplicabilidade Crime e castigo. Ainda assim, poderia
surpreender muitos leitores anglo-americanos o fato de que o drama psicolgico de Crime e
castigo quase nada tem a ver com desenvolvimento de carter para alguns, condio sine
qua non da grande fico. Realmente, no h qualquer desenvolvimento do carter no
romance. claro que Rasklnikov passa por uma mudana inquestionvel no eplogo, no
entanto, trata-se mais de uma transformao miraculosa do que um processo psicologicamente
motivado e demonstrado. Rasklnikov no se emenda gradualmente, ele ressurge dos mortos,
passa por uma transformao que desafia as leis do tempo e de causalidade s quais a maioria
dos romances oitocentistas adere. Ele essencialmente a mesma pessoa cativa de antes do
crime. Apesar de debilitado e abatido, ele preserva seu orgulho ilimitado e sustenta suas
teorias racionalistas at o ltimo captulo do eplogo. O drama de Crime e castigo resulta no
do desenvolvimento do carter, mas de uma longa e lenta revelao da personalidade de
Rasklnikov. E a reside a explicao para Dostoivski ter restringido o uso de comentrios
fortes sobre Rasklnikov. Pois fica claro que qualquer tentativa por parte do narrador em
categorizar muito rigidamente ou explicar de modo muito simplrio a essncia de seu heri
D. S. Mirsky, em History of Russian Literature from the Earliest Times to the Death of Dostoevsky (Nova
Iorque: Knopf, 1927), p. 218-19, afirma que outra caracterstica que . . . lhes tpica [aos realistas] como escola
a relativa negligncia da construo e do interesse narrativo, e a concentrao nos interesses extra-narrativos,
nos personagens e na introspeco. A esse respeito, o romance russo, especialmente Tolsti, estava muito longe
do romance europeu da poca e foi superado pelos romancistas ocidentais somente na obra final de Henry James,
na obra de Proust e de James Joyce.
275
Mas isso ainda eram mincias sobre as quais ele nem tinha comeado a
pensar, e tambm no tinha tempo para isso. Pensava no principal, e adiava as
mincias at o momento em que ele mesmo estivesse convencido de tudo. Mas
este ltimo lhe parecia terminantemente inexeqvel. Pelo menos era o que
parecia a ele mesmo. Nunca podia, por exemplo, imaginar que um dia parasse
de pensar, se levantasse e simplesmente caminhasse para l... at mesmo
aquele seu ensaio recente (isto , a visita que fizera com a inteno de estudar
definitivamente o lugar) ele apenas esboara, mas nem de longe para valer,
fizera por fazer: deixa eu ir l, articulou ele, experimentar, por que ficar nesse
devaneio!? e no mesmo instante no se conteve, mandou tudo s favas e
saiu de supeto, furioso consigo mesmo. Enquanto isso, porm, parecia que j
havia concludo toda a anlise no sentido da soluo moral da questo: sua
casustica estava afiada como uma navalha, e em si mesmo ele j no
encontrava objees conscientes. Mas no ltimo caso ele simplesmente no
acreditava em si mesmo e procurava de modo obstinado e servil objees por
todos os lados e s apalpadelas, como se algum o forasse e o arrastasse para
tal. O ltimo dia, que comeara to por acaso e resolvera tudo de uma s vez,
agia sobre ele de maneira quase inteiramente mecnica: como se algum o
segurasse pelo brao e o arrastasse, de forma irresistvel, cega, como uma
fora antinatural, sem objees. Como se uma nesga de sua roupa tivesse
cado debaixo de uma roda de mquina e esta comeasse a trag-lo. (p. 84-5)3
Para exemplos de comentrios narrativos diretos sobre Rasklnikov discutidos em captulos anteriores, ver pp.
21-2, 53-4, 57-8, 63-7, 87-8.
3
As citaes de Crime e castigo foram retiradas da seguinte edio em portugus: Dostoivski, F. M. Crime e
castigo. So Paulo: Editora 34, 2001, com traduo de Paulo Bezerra (N. da T.)
276
mincias cuidaram de si mesmas; se ele tivesse planejado com mais cuidado, ou errado
menos, dificilmente teria tido mais sucesso. Mas Rasklnikov no grato por seu sucesso,
uma vez que este sarcasticamente revela sua inpcia e insignificncia: ele provou a si mesmo
ser uma mera pardia do seu ideal napolenico.
Entretanto, a ironia do narrador se torna evidente somente na quarta frase. Depois de
afirmar que Rasklnikov no conseguia acreditar que era capaz de levar o plano a termo, o
narrador comenta: Pelo menos era o que parecia a ele mesmo. A implicao clara:
Rasklnikov est to equivocado em relao a suas prprias capacidades quanto sobre o que
vai acontecer. O comentrio interpolado, chamando ateno para a patente falta de
autoconhecimento de Rasklnikov, claramente revela a atitude condescendente do narrador
em relao a seu heri e, ao mesmo tempo, possibilita uma introduo irnica ao comentrio
mais importante que se segue.
O narrador reserva sua mais forte censura para justificativa moral de Rasklnikov para
seu crime. Ele parece ter dvidas apenas sobre a execuo do ato e no sobre suas implicaes
morais. Aqui, da mesma forma que na quarta frase, uma expresso avaliativa parecia
revela a atitude irnica do narrador em relao posio moral de Rasklnikov. Mas a
expresso pode ser tambm uma forma de criar surpresa retrica. como se o prprio
narrador se impressionasse com o fato de que, para Rasklnikov, as questes morais so mais
fceis de resolver do que as prticas. O uso da palavra casustica tem sentido especialmente
condenatrio; pois o termo russo (kazuistika) tem toda a fora negativa de sua contraparte em
ingls: a aplicao equivocada de princpios ticos para casos individuais de conduta ou
conscincia. A aproximao que o narrador faz entre a casustica de Rasklnikov e uma
navalha sugere seu perigo potencial e, pelo menos metaforicamente, liga o pensamento
distorcido de Rasklnikov ao assassinato que ele em breve cometer.
278
280
No possvel concordar totalmente com Pierre Hart, o qual argumenta que o narrador
insere um comentrio neste ponto para enfatizar o carter repulsivo e a monstruosidasde do
feito de Rasklnikov4. Certamente, h sangue suficiente para tornar esse comentrio
suprfluo. Interromper a ao neste ponto para moralizar sobre o bvio parece muito pouco
caracterstico do mtodo de Dostoivski com Rasklnikov. Nesta passagem, Rasklnikov est
to revoltado com os eventos quanto o narrador. Este diz que Rasklnikov foi incapaz,
naquele momento, de ver e julgar a situao mais corretamente, mas no que ele no tivesse
sido afetado por seu feito repulsivo. De fato, ele experimenta essa repugnncia em muitas
ocasies, mesmo antes do crime. Alis, esta parece ser a principal fora impedindo-o de
cometer o crime. Ao deixar o prdio da usurria depois da visita-ensaio, Rasklnikov
exclama: Oh, Deus! Como tudo isso repugnante! Ser possvel, ser possvel que eu...
No, isso um absurdo, um contra-senso! acrescentou decidido. Ser possvel que
tamanho horror me tenha ocorrido? Contudo, de que baixeza meu corao capaz! O
principal: isso srdido, nojento, abjeto, abjeto... (p. 26). E, em seu pesadelo da gua
cruelmente espancada, Rasklnikov experimenta um terror comparvel quele que sentido no
assassinato real. Ele acorda do sonho gritando: Meu Deus! [...] Ser, ser que eu vou pegar
mesmo o machado, que eu vou bater na cabea, vou esmigalhar o crnio dela... vou deslizar
no sangue viscoso, quente, arrebentar o cadeado, roubar e tremer; esconder-me, todo banhado
de sangue... com o machado... Meu Deus, ser possvel? (p. 75). Essa repulsa continua muito
depois do assassinato. Por isso, uma vez que os sentimentos do narrador no so
essencialmente diferentes dos de Rasklnikov, seu comentrio naquele ponto no parece
particularmente intrusivo.
A funo desta passagem, ento, deve ser procurada em outra parte. Deve-se
reconhecer que ela contm um comentrio, mas este daquele tipo com o qual j estamos
4
Pierre R. Hart, Looking over Raskolnikovs Shoulder: The Narrator in Crime and Punishment, Criticism, 13
(1971), 170.
281
Embora o ponto de vista do narrador nesta passagem tenha muito em comum como o
do leitor, h tambm muitas diferenas significativas. J foi mencionado o sutil
enfraquecimento da enfatuada auto-imagem de Rasklnikov pelo narrador. Alm disso, ele
parece mostrar compaixo por este jovem rapaz, que ele sabe ter entrado em um processo de
sofrimento, do qual o crime no passa de um estgio. se [Rasklnikov] pudesse ao menos
perceber todas as dificuldades [...] bem possvel que ele largasse tudo e dali mesmo fosse
denunciar-se. Sentimos que o narrador est nos contando que Rasklnikov est violentando
tanto a si mesmo quanto a sua vtima. O heri pode afirmar que no sente a menor ponta de
culpa, mas ele recua com horror e repugnncia diante de seu ato; esta violncia que
Rasklnikov perpetra contra si mesmo e o sofrimento que ela vaticina que suscitam a
compaixo do narrador.
Dostoivski, entretanto, no restringiu o comentrio narrativo sobre Rasklnikov
somente ao eu da experincia. Se o fizesse, a obra provavelmente teria resultado mais
regular, mas certamente teria sacrificado algo de sua riqueza e complexidade. O narrador em
Crime e castigo fala no de um Rasklnikov, mas de dois: daquele que vivencia os eventos, e
daquele que est separado do crime pelo tempo e por um novo mundo de experincia. As
passagens de reminiscncias e os comentrios explcitos do eplogo nos introduzem em um
mbito temporal totalmente diferente; mudam no apenas nossa perspectiva temporal, como
tambm nossa viso de Rasklnikov.
Ao longo do romance encontramos vinte afirmaes em que o narrador alude a um
tempo no qual os eventos so relembrados muito depois. Essas passagens de reminiscncias
variam de tamanho, contedo e estilo: algumas so curtas e sutilmente integradas narrativa;
outras chegam a um pargrafo inteiro e distinguem claramente passado e presente.5 Embora
seja possvel interpretar essas afirmaes como vestgios do antigo plano de narrao em
Crime e castigo p. 28, 75, 78, 81, 89, 92, 95-6, 100, 107, 123, 131, 131, 175, 324, 360, 407, 420, 449, 473, 520.
283
primeira pessoa, um exame atento mostra que elas diferem de suas contrapartes do caderno de
notas tanto na forma quanto na funo.
Conforme foi ilustrado no Captulo 2, o principal foco dos cadernos de notas est no
eu que recorda; conseqentemente, o momento da escrita sentido de forma mais vvida do
que o momento do crime. Na verso final, a situao se inverte: o passado (momento do
crime) ofusca consideravelmente o momento em que Rasklnikov olha para suas experincias
anteriores, perodo este realmente nebuloso, que pode ser um passado mais recente, o presente
ou mesmo o futuro. Alm disso, os narradores so bastante diferentes: nos cadernos de notas
Rasklnikov nos relata suas lembranas; na verso final essas recordaes so reportadas por
um narrador onisciente. A menor nfase que a verso final concede ao Rasklnikov que
recorda, entretanto, no deve nos levar a subestimar a importncia dessas passagens de
reminiscncias, pois elas exercem um papel crucial na estrutura avaliativa e temporal do
romance.
Talvez a passagem de reminiscncia mais impressionante seja aquela que introduz a
ltima parte do romance. Svidrigilov acaba de revelar que escutou a confisso de
Rasklnikov Snia. Os fatos pressionam. No causa espanto que Rasklnikov se lembre de
ter vivido esse perodo como se tivesse envolto numa nvoa impenetrvel. Seu encontro com
Porfri Petrovitch e Svidrigilov somente afrouxam sua j tnue ligao com a realidade.
284
pavor ou pnico. Mas ele tambm se lembrava de que havia minutos, horas e,
talvez, at dias cheios de uma apatia que se apoderava dele como se fora em
contraposio ao pavor anterior uma apatia semelhante ao estado de
indiferena mrbida dos outros mortais. (p. 449, grifos nossos)
Mais tarde, quando rememorava esse perodo e tudo o que lhe aconteceu
nesses dias, minuto a minuto, ponto por ponto, trao por trao, sempre o
invadia uma perplexidade que chegava superstio, devido a uma
circunstncia que, no fundo, embora no fosse muito incomum, depois lhe
pareceu constantemente uma espcie de predestinao do seu destino.
No havia meio de entender e explicar para si mesmo porque ele, cansado,
atribulado, voltou para casa pela praa Sinnaia, por onde lhe seria
dispensvel passar, j que era muito mais vantajoso retornar pelo caminho
mais curto e direto. A volta era pequena, mais indiscutvel e totalmente
desnecessria. claro que dezenas de vezes lhe acontecera voltar para a casa
sem se lembrar das ruas por onde passara. Mas por que, sempre se perguntava,
por que aquele encontro na Sinnaia (por onde ele no tinha nenhuma
necessidade de passar), to importante, to decisivo para ele e ao mesmo
tempo to sumamente casual, coincida agora com essa hora, com esse minuto
de sua vida, justamente com esse seu estado de nimo e precisamente com
essas circunstncias em que s ele, o tal encontro, poderia produzir o efeito
mais decisivo e mais definitivo em todo o seu destino? Como se ali estivesse
de propsito sua espera! (p. 75-6)
285
escolhido sua vtima somente um ms e meio antes do incio do romance, sabemos que a
justificativa moral para o crime contemplado estava estabelecida num artigo que ele terminou
antes de deixar a universidade seis meses antes do crime. E ainda mais impressionante a
confisso de Rasklnikov Dnia de ter explicado todas as suas idias a sua antiga noiva,
cuja morte data de mais de um ano antes dos eventos do romance.
Mesmo que os acontecimentos ao redor do crime no passem de coincidncia, o
prprio assassinato era inevitvel. Se no fosse Aliona Ivanovna, teria sido outra pessoa. Mais
um ms trancado naquele sto, faminto, deprimido e febril, Rasklnikov teria afiado tanto
sua casustica a ponto de racionalizar o assassinato de algum muito menos repulsivo fsica e
moralmente do que a velha usurria. No espanta que haja uma ponta de ironia na afirmao
do narrador de que Rasklnikov acreditava que um incidente, embora no muito incomum,
tivesse determinado seu destino.
O narrador tambm alude a reminiscncias de outros personagens. Embora estas no
sejam tratadas com a mesma ironia que as de Rasklnikov, parecem cobrir o mesmo perodo.
Por exemplo, Razumkhin lembra-se por toda a vida do momento no corredor em que
Rasklnikov o encarrega de cuidar de sua me e irm. Zamitov recorda a estranheza do seu
encontro com Rasklnikov no Palcio de Cristal e Snia lembra-se do momento em que
Rasklnikov confessa pela primeira vez ter assassinado Lisavieta: At mesmo depois, mais
tarde, quando ela recordava esse instante, sentia-se estranha e maravilhada: por que naquela
ocasio justamente ela percebera de forma to imediata que j no havia quaisquer dvidas?
(p. 420). Expressa quase exatamente como a de Rasklnikov, a recordao de Snia projeta
sua vida to longe no futuro quanto a dele. Mais do que isso: a prpria aplicabilidade do
mesmo sistema temporal a Snia e outros personagens garante sua realidade objetiva para o
romance como um todo. No se trata de um mero instrumento para enfatizar a confuso do
Rasklnikov da experincia, mas uma parte integral da estrutura retrica do romance.
287
Essas passagens de reminiscncia podem, de fato, indicar que o texto uma confisso,
conforme relatada a uma terceira pessoa. Tomemos, por exemplo, um breve trecho de
reminiscncia que introduz a cena na qual o campons Nicolai aparece diante de Porfri e
Rasklnikov e confessa ter cometido o crime: Mais tarde, ao rememorar esse instante,
Rasklnikov viu toda a cena da seguinte maneira (p. 360). Podemos, a partir dessa
afirmao, concluir que o narrador seja, talvez, um escritor para quem um Rasklnikov
regenerado tenha reportado todas as suas experincias e o autorizado a escrever sua biografia
como lio para outros? Seria Crime e castigo uma tentativa inicial de Dostoivski em
escrever a primeira parte de seu estimado projeto A vida de um grande pecador? As amplas
implicaes dessa viso so, de fato, intrigantes, e certamente uma rea que exige mais
estudos.
Alm de projetarem os eventos para longe do escopo do romance, as passagens de
reminiscncias prefiguram o eplogo, que, por sua vez, torna explcita as implicaes das
lembranas de Rasklnikov. Assim, juntamente com o eplogo, elas formam um sistema
temporal coerente e irnico que atravessa todo o romance e responde suas questes implcitas:
Qual o destino de Rasklnikov? Haver alguma esperana para aqueles que foram
corrompidos pelo orgulho e as heresias racionalistas do Ocidente? Rasklnikov, ao fim e ao
cabo, mais do que um assassino isolado ou mesmo um tipo social; ele o smbolo de um
estgio na vida espiritual e intelectual do desenvolvimento do homem. Ele a tentativa mais
bem sucedida de Dostoivski de construir, no um super-homem, mas um homem comum.
A relao entre o eplogo e as passagens de reminiscncias complexa. Embora
sejamos informados logo no comeo de que o heri est recordando os acontecimentos muito
depois de sua ocorrncia, apenas gradualmente percebemos que tais passagens levam-nos
muito alm do tempo do eplogo, em direo a um mbito temporal nebuloso, que o narrador
diz pertencer a uma outra histria. Portanto, elas pressupem no s a priso de Rasklnikov,
288
mas, tambm, o longo processo de regenerao. No obstante, este processo est longe de
completar-se. O Rasklnikov que recorda ainda no possui a percepo do narrador sobre o
crime e suas causas; pois esse conhecimento s poder vir depois dos vrios anos de
sofrimento profetizados pelo narrador na ltima pgina do eplogo.
A regenerao de Rasklnikov, certamente, no est explcita nas passagens de
reminiscncias; est implcita e s pode ser percebida no conjunto com outras cenas e
afirmaes do romance. E isso dificilmente poderia ser diferente. Insistir na ressurreio de
Rasklnikov nas passagens de reminiscncias reduziria o suspense psicolgico e destruiria o
efeito da converso miraculosa, e at inesperada, do eplogo. Entretanto, se tomadas junto
com certos acontecimentos e cenas, as passagens de reminiscncias formam um esboo mais
do que sugestivo do destino de Rasklnikov, a tal ponto bvio que torna o eplogo um
sumrio como provavelmente foi planejado e no um choque. Conhecemos os traos
religiosos de Rasklnikov: suas oraes quando criana, seu sentimento inexplicvel diante da
catedral de So Isaac, sua crena literal na Nova Jerusalm e seu desejo de ouvir a passagem
da ressurreio de Lzaro. Tambm testemunhamos sua necessidade compulsiva de confessar,
ou mesmo expiar, seu crime: seu desmaio na delegacia, seu desafio aos pintores no
apartamento de Aliona Ivanovna; suas revelaes Snia e, finalmente, sua confisso a Ili
Petrovitch. Tambm estamos cientes todo o tempo do quase alegrico papel da salvadora de
Rasklnikov, Snia Marmieldov, e sentimos que seu esforo no ser vo. Essas cenas do
substncia para as vagas insinuaes contidas nas reminiscncias do futuro de Rasklnikov.
Mas o efeito recproco. Visto em termos da perspectiva temporal dupla criada pelas
passagens de reminiscncias, todo o simbolismo, fatos e episdios que indicam a
transformao de Rasklnikov no eplogo adquirem maior credibilidade artstica. O simples
fato de sabermos que o Rasklnikov que recorda significativamente diferente daquele que
vivencia faz com que a esperana que Snia sustenta em relao a ele seja seriamente
289
considerada pelo leitor. Nossas sensibilidades esto preparadas, ao menos levemente, para o
renascimento de Rasklnikov no eplogo.
Se a principal funo das passagens de reminiscncias prefigurar o eplogo, qual ser
ento a funo do eplogo propriamente dito? Ser apenas a de confirmar nossas intuies, ou
ele acrescenta algo nossa compreenso da personalidade de Rasklnikov e das implicaes
do seu destino? E quo importante o papel do narrador no eplogo? O que, por exemplo, ele
faz no eplogo que deixa de fazer antes no romance? A maioria dos crticos tem demonstrado,
compreensivelmente, pouca preocupao pelo narrador no eplogo; em geral, eles mostram-se
insatisfeitos com os fatos em si, e, conseqentemente, sentem pouca necessidade de examinar
como eles so apresentados6. A maioria dos crticos obviamente se ope falha de
Dostoivski em no apresentar a converso de Rasklnikov de modo detalhado e psicolgico,
como fizera com o plano do crime, sua execuo e a provao subseqente. Mas,
considerando que uma converso miraculosa dificilmente pode ser representada assim, o que
os crticos do eplogo esto, de fato, dizendo que a prpria converso carece de
No conheo nenhum crtico sovitico que tenha considerado o eplogo artisticamente satisfatrio. Crticos
ocidentais tampouco ficaram particularmente contentes com ele. Cf., por exemplo, John Middleton Murry,
Fyodor Dostoevsky: A Critical Study (Londres: Martin Secker, 1923), pp. 122-3; Julius Meier-Graefe,
Dostoevsky: The Man and His Work, trad. Herbert H. Marks (Nova Iorque: Harcourt, 1928), pp. 134-8; Ernest J.
Simmons, Dostoevsky: The Making of a Novelist (1940; reedio Londres: John Lehmann, 1950), pp. 152-5.
Konstantin Mochulsky, Dostoevsky: His Life and Work, trad. Michael A. Minihan (Princeton: Princeton
University Press, 1967), p. 312, embora um adepto da antropologia crist de Dostoivski, considera o eplogo
uma mentira devota. H tambm aqueles que acreditam que todos os eplogos so artisticamente inadequados.
V. B. Chklovski, Povesti o proze: Razmichlenia i razbori (M.: GIXL, 1966), II, 220-1, sustenta que os
romancistas usam eplogos por serem incapazes de completar suas histrias adequadamente. Joseph Warren
Beach, The Twentieth Century Novel: Studies in Technique (Nova Iorque: Appleton, 1932), p. 249, afirma que o
leitor do sculo XX no aprecia esse tratamento esboado [do eplogo] de acontecimentos futuros, ele no se
importa em saber como cada personagem recebeu a devida recompensa por sua vida virtuosa. Ele gosta de um
desfecho claro e definitivo. As observaes do narrador em A aldeia Stepantchikovo sobre o eplogo desta obra
indicam que Dostoivski estava bastante consciente das armadilhas dos eplogos, e, portanto, podemos supor que
ele teve boas razes para inclu-lo em suas duas maiores obras, Crime e castigo e Os irmos Karamzov. A
novela chega ao seu trmino. Os noivos se casaram, e o gnio do Bem impera como senhor absoluto na casa,
encarnado na pessoa de Fom Fomitch. Poderamos, ao chegar aqui, espraiamo-nos em explicaes; mas
realmente, todo esclarecimento ser demais. Pelo menos essa a minha opinio. Em lugar das aludidas
explicaes, ainda direi umas palavras acerca da sorte ulterior de todos os heris de meu relato: sem esse
pormenor, sabe-se, no se pode dar como concluda nenhuma novela, pois assim o ordenam os cnones
(Dostoivski, F. M. Noites Brancas e Outras Histrias. Trad. Olvia Krhenbl. Rio de Janeiro: Jos Olympio,
1960).
290
291
292
H muito ele andava doente; mas no eram os horrores da vida de gal, nem o
trabalho, nem a comida, nem a cabea raspada, nem o uniforme de retalhos
que o quebrava: oh! que lhe importavam todos esses sofrimentos e torturas!
Ao contrrio, ele estava at contente com o trabalho: exaurido fisicamente
pelo trabalho, ao menos conseguia algumas horas de sono tranqilo. E que
significava a comida para ele essas sopas de repolho sem nada e com
baratas? Freqentemente nem isso tinha antes, quando era estudante. A roupa
agasalhava e estava adaptada ao seu modo de vida. Os grilhes ele nem
chegava a sentir em seu corpo. Iria envergonhar-se da cabea raspada e da
meia jaqueta? Diante de quem? De Snia? Snia o temia, e era dela que ele
iria sentir vergonha?
Ento o que era? Ele sentia vergonha at de Snia, que ele atormentava com o
tratamento desdenhoso e grosseiro que lhe dispensava. (p. 553)
envergonhar-se de sua cabea raspada ou de sua roupa em retalhos; mas, como o narrador
perspicazmente aponta, numa afirmao que coloca todo o precedente em chave irnica,
Rasklnikov estava envergonhado at mesmo diante de Snia, e a torturava por estar
consciente disso. O uso desta tcnica no eplogo indica que mesmo nesse ponto o heri no
sofreu nenhuma mudana significativa. Ironia sutil e mordaz continua sendo a forma mais
apropriada para o ainda impenitente e infinitamente orgulhoso Rasklnikov.
Em algumas passagens posteriores, o narrador aumenta sua distncia em relao ao
protagonista, apresentando os pensamentos deste em monlogo interior. Rasklnikov
permanece impenitente e, mais do que nunca, convencido de estar perecendo sem razo; de
que seu feito criminoso somente sob a perspectiva legal, e, ainda, somente por no ter sido
coroado com sucesso. Ele acredita, como antes, que o poder faz a razo: No entanto, aqueles
homens agentaram os seus passos e por isso estavam certos, mas eu no agentei e, portanto,
no tinha o direito de me permitir esse passo (p. 554). Assim como na passagem anterior, o
narrador imediatamente rebaixa a posio do heri depois de transcrever seus pensamentos:
Eis em que ele no reconhecia seu crime: apenas no fato de no o ter agentado e ter
confessado a culpa (p. 554). Novamente, o narrador condena a desvirtuada escala de valores
de Rasklnikov. Para enfatizar ainda mais a crtica do narrador, Dostoivski destaca o breve
comentrio fazendo dele um pargrafo independente. Trata-se de um comentrio
indubitavelmente forte, mas est longe de ser raro. O narrador trata Rasklnikov da mesma
forma no restante do romance.
Na segunda pgina deste ltimo captulo (na verdade, imediatamente depois da
observao do narrador discutida acima) h uma passagem de ordem totalmente distinta.
Ele sofria tambm ao pensar: por que no se matara naquele momento? Por
que ficou parado acima do rio e preferiu confessar sua culpa? Ser que existe
tamanha fora nesse desejo de viver e to difcil super-lo? Svidrigilov, que
tinha medo de morrer, no o superou?
294
Mas esse trecho muito mais que um eco; ele confere a essa cena um sentido de concluso,
de profecia realizada. As esperanas mais acalentadas de Snia se realizaram; alm disso, os
argumentos de Rasklnikov contra sua f em Deus foram esmagados quando ele tenta
considerar seu ponto de vista. A ressurreio de Lzaro se tornou uma realidade vital para a
Petersburgo do sculo XIX, e, por conseguinte, para todos os tempos.
O narrador parece exultar com a ressurreio de Rasklnikov, assim como havia
mostrado afinidade com f de Snia na leitura da passagem sobre Lzaro; igualmente nesta
cena, o tom perfeitamente harmonizado com a mensagem: completamente desprovido da
ironia com a qual Rasklnikov tratado ao longo do romance. Se a passagem de Lzaro
prefigura essas afirmaes explcitas do eplogo, elas, por sua vez, conferem s profecias
anteriores maior credibilidade artstica.
O comentrio mais franco do narrador sobre Rasklnikov aparece na ltima pgina do
eplogo. Aqui ele toma o partido da emoo e do sentimento em detrimento da lgica estril: a
aprovao aberta do novo Rasklnikov evidente em cada palavra.
Embora haja poucos trabalhos tericos sobre o eplogo como dispositivo narrativo,
considera-se, em geral, que ele no deva ser estruturalmente necessrio histria. Na prtica,
a funo da maioria dos eplogos tornar explcito aquilo que no romance tenha sido somente
sugerido. Mas o eplogo no somente uma concluso explicativa, uma concluso que
difere do romance tanto tonal quanto estruturalmente; pois tudo nele elaborado para conferir
uma nota de finalidade e um senso de resoluo quilo que precede. Tambm funciona como
garantia de que aquilo que estava sugerido no romance no seja mal compreendido alguns
podem at dizer, e tm dito sobre Crime e castigo, que uma concesso para leitores menos
perceptivos7. Em todo caso, trata-se do momento em que todas as coisas se tornem evidentes,
e, nesse sentido, o eplogo de Crime e castigo no uma exceo.
Talvez a caracterstica estilstica mais notvel do eplogo que o distingue do romance
a preponderncia do sumrio. Enquanto a maioria das cenas do romance concebida
dramaticamente, o eplogo , em grande medida, dedicado a reportar o que acontece depois
que Rasklnikov entrega-se para a polcia. Embora contenha uma quantidade considervel de
discurso narrado e mesmo uma passagem de monlogo interior, ele inclui somente trs linhas
de dilogo, o que talvez explique porque os leitores sentiram que o eplogo difere to
radicalmente de tudo que o precede. O uso intenso do sumrio no eplogo deliberado: a
nica forma de o narrador poder atualizar de modo conciso as histrias dos personagens
principais, especialmente daqueles cujo destino importante para a estrutura temtica do
romance. Aqui tambm o eplogo no traz surpresas, mas torna explcito o que estava
sugerido no romance: Snia segue Rasklnikov para Sibria e se torna instrumento de sua
ressurreio; Dnia e Razumkhin se casam e Pulkhria Alexandrovna morre sofrendo pelo
filho.
297
Para um discusso sobre as diferenas entre os sonhos de Rasklnikov no eplogo e os outros quatro do
romance, ver J. Thomas Shaw, Raskolnikovs Dreams, Slavic and East European Journal, 17 (1973), 139-44.
[Ainda sobre esse assunto, cf. Katz, M. Dreams and the unconscious in nineteenth century Russian fiction.
Hanover and London: University Press of New England, 1984. N. da T.]
299
Para uma interessante discusso sobre a natureza da converso de Rasklnikov no eplogo, ver A. Boyce
Gibson, The religion of Dostoevsky (Londres: SCM Press Limited, 1973), pp. 88-103.
300
Os ltimos captulos, em que foram enfocados os vrios mtodos usados pelo narrador
para influenciar o julgamento do leitor sobre os personagens e acontecimentos, no foram
construdos para demonstrar que Crime e castigo relatado de modo mais subjetivo do que a
maioria dos romances escritos no mesmo perodo. Mesmo se a objetividade for definida como
a ausncia de um narrador que faz generalizaes acerca da vida e que comenta os mritos e
fraquezas de seus personagens, Crime e castigo deve ainda ser considerado um dos romances
mais objetivos da segunda metade do sculo XIX.
301
Essa a tese central do texto pr-revolucionrio de Viatcheslav Ivnov, Freedom and Tragic Life: A Study in
Dostoevsky, traduo Norman Cameron (Nova Iorque: Noonday, 1957). Nos ltimos doze anos esse texto
tornou-se amplamente aceito na Unio Sovitica, com indubitvel influncia da segunda edio de Problemas da
Potica de Dostoivski (1963) de M. M. Bakhtin, embora sua tese tenha sido apresentada praticamente da mesma
forma que na primeira edio do livro (de 1929).
302
Emma se sente trada: ela pensou que, ao menos no casamento, seus sonhos mais
acalentados se realizariam. Mas Carlos no nenhum Prncipe Encantado. Para sua tristeza,
ele no usa um casaco preto de veludo de cauda longa e tampouco possui um chal suo com
sacada. Para mostrar que Emma acredita no ser culpada por sua crescente insatisfao com
Carlos, Flaubert emprega muitas comparaes elegantes. Ele compara o que seria a resposta
afetuosa e plena de Emma, caso Carlos fizesse o gesto correto, a uma fruta caindo da rvore
quando sacudida. Certamente no Emma que faz essa comparao; uma vez que ela chama
ateno por ser bastante diferente dos milhares de clichs que Emma absorveu com a leitura
Para citao foi utilizada a seguinte edio em portugus: FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Trad.
Arajo Nabuco. So Paulo: Abril Cultural, 1970. (N. da T.)
303
de fico romntica e sentimental. Mas no se pode ter certeza. Entretanto, a ltima frase do
pargrafo, que trata da crescente indiferena de Emma por Carlos, claramente representa o
ponto de vista avaliativo do narrador.
O segundo pargrafo contm dois mtodos contrastantes de transcrio. As ltimas
duas frases, por exemplo, representam com bastante acuidade o que Emma est pensando;
concebvel que ela possa usar exatamente as mesmas palavras: Carlos nunca tivera
curiosidade [...] enquanto residia em Ruo, de ir ao teatro ver os atores de Paris. Na primeira
frase, contudo, a descrio, feita pelo narrador, da conversa de Carlos dificilmente poderia ser
atribuda a Emma. Tanto a estrutura da frase quanto o contedo da comparao esto alm de
sua capacidade. Pois, a esta altura do romance, a rua simboliza, para Emma, no a grosseria
da cidade, mas seu refinamento cultural. Mais tarde, ela chegar a se orgulhar de caminhar
pelas ruas de Ruo nos braos de seu amante somente no final do romance ela percebe que a
cidade, assim como Carlos, no mais uma soluo para seus problemas. Estilisticamente, a
comparao tambm aponta para a presena do narrador. Flaubert realiza a metfora ao fazer
as idias de todos caminharem pela rua plana da conversa de Carlos. Os trs substantivos,
cuidadosamente localizados no final da frase, levam o pensamento sua concluso com uma
cadncia elegantemente entoada.
Freqentemente Flaubert no procura ocultar a personalidade do narrador na descrio
da conscincia de Emma: Quanto lembrana de Rodolfo, enterrara-a bem no fundo do
corao; e l estava, mais solene e imvel que uma mmia real num subterrneo. Mas uma
exalao escapava desse grande amor embalsamado, atravessava tudo, perfumava de ternura a
atmosfera de pureza em que ela pretendia viver. (p. 163). Esta pode ser uma pardia, mas
possvel suspeitar que a passagem reflete o romantismo do narrador mais do que o
sentimentalismo de Emma. Embora passagens como essa no apaream em cada pgina de
304
Madame Bovary, elas existem em nmero suficiente para fazer com que o romance seja
narrado de forma menos objetiva do que Crime e castigo.
Se considerarmos Madame Bovary nosso teste de objetividade, podemos dizer que
Crime e castigo realmente objetivo. De fato, difcil conceber um romance narrado de
forma mais objetiva, dado o perodo em que foi escrito, visto que a maioria dos romances do
sculo XIX apresenta, como parte de sua estrutura bsica, um narrador significativamente
personalizado, seno dramatizado. O que impressiona no narrador de Crime e castigo que
Dostoivski o entrelaou to habilmente no texto, que ele, s vezes, completamente
negligenciado. Somente certa quantidade de exames crticos pode revelar que ele, de fato,
carrega todas as funes tradicionais do narrador onisciente.
O narrador de Crime e castigo no apenas comenta a ao dos personagens, mas
confere ao romance uma unidade de viso, freqentemente ausente em obras construdas com
estilo mais conscientemente objetivo e impessoal. O simbolismo, o enredo e a caracterizao
no so os nicos elementos ficcionais que garantem essa unidade e a fazem pulsar com a
vida. Talvez to vital seja o tom da voz do romancista, a presena dramtica, que E. M.
Forster3 e Wolfgang Kayser4 argumentaram ser to importante.
Estudiosos e crticos de Crime e castigo elogiaram-no repetidamente por sua notvel
unidade, que impressiona ainda mais quando comparada com outras grandes obras de
Dostoivski5. A maioria dos comentadores defende que essa unidade resulta da concentrao
Aspects of the novel (Nova Iorque: Harcourt, 1927), p. 125-6. [Aspectos do romance. So Paulo: Globo, 2005].
Entstehung und Krise des modernen Roman, 2 ed. (Stuttgart: J. B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1955),
p. 34: Ein fr den Roman wesentliches Formprinzip ist der Erzhler, vielleicht das wesentlichste. [Um
princpio formal essencial do romance o narrador, talvez o mais essencial.].
5
Cf. Joseph Warren Beach, The Twentieth Century Novel: Studies in Technique (Nova Iorque: Appleton, 1932),
p. 157-161; G. I. Tchulkov, Kak rabotal Dostoivski (M.: Sov. Pisatel, 1939), p. 141-2; Konstantin Mochulsky,
Dostoevsky: His Life and Work, trad. Michael A. Minihan (Princeton: Princeton Univ. Press, 1967), p. 298-300;
V. B. Chklovski, Za i protiv: Zametki o Dostoivskom (M.: Sov. Pisatel, 1957), p. 173-4; L. P. Grossman,
Dostoivski khudojnik. In: Tvortchcestvo F. M. Dostoivskogo, ed. N. L. Stepanov (M.: AN SSSR, 1959), p.
392 [Dostoivski Artista, trad. Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967]; F. I. Evnin,
Roman Prestuplenie i nakazanie in: Tvortchcestvo F. M. Dostoivskogo, p. 165-6; M. M. Bakhtin, p. 20-31;
V. I. Etov, Priemi psikhologuitcheskogo analiza v romane Prestuplenie i nakazanie Vestnik Moskovskogo
universiteta, Seriia 10, Filologuiia, n 3 (1967), p. 3.
4
305
quase exclusiva do autor no heri. Mochulsky, talvez o proponente mais articulado dessa
posio, v Rasklnikov como o centro dinmico a partir do qual todos os outros elementos
do enredo, tema e caracterizao, recebem suas definies6. Embora essa interpretao seja
um tanto bvia, ela permanece vlida: Crime e castigo foi concebido como a histria de um
homem e um destino, e a opinio crtica aceitou essa viso.
Alguns estudiosos consideraram essa resposta muito simplista. L. P. Grossman, por
exemplo, mostrou que, embora Crime e castigo nos deixe com a impresso de um todo
admiravelmente unificado, ele constitudo por um amlgama de materiais heterogneos.
Aspectos de esboo psicolgico, de mistrio do assassinato e de romance gtico so
livremente combinados com confisses, passagens bblicas, cartas e debates filosficos.
Como Dostoivski pde ele se pergunta de maneira to fcil e bem sucedida combinar
elementos dos mais discrepantes e aparentemente incompatveis tanto da narrativa ficcional
quanto no-ficcional? A resposta ele afirma deve ser encontrada no enredo, e no na
caracterizao. Dostoivski cria unidade artstica ao submeter os materiais heterogneos de
sua estria ao dinamismo de seu enredo. Desse modo, capaz de construir um romance de
grande importncia metafsica em torno das impressionantes intrigas do roman feuilleton.
Para Grossman, a velocidade estonteante dos acontecimentos no permite ao leitor focar os
tijolos individuais da estrutura. quase como se o enredo fosse um cadinho no qual os
elementos se fundem, perdendo sua forma e funo originais7. De fato, qualquer um que tenha
sido apanhado pelo enredo de Crime e castigo pode facilmente apreciar a hiptese original de
Grossman. Embora seja difcil de demonstrar, trata-se de um complemento interessante e
necessrio interpretao, talvez um tanto unilateral, de Mochulsky.
Mochulsky, p. 298.
L. P. Grossman, Potika Dostoivskogo (M.: Gos. akad. khud. nauk, 1925), p. 74-80; e Dostoivski
khudojnik, p. 371-85.
7
306
Bakhin, p. 20-1.
Cf. A. V. Lunatchrski, O mnogogolosnosti Dostoivskogo In: F. M. Dostoivski v russkoi kritike: Sborknik
statei, Ed. A. A. Belkin (M.: GIXL, 1956).
9
307
todos os pontos de vista ao seu. Por fim, a esse ponto de vista elevado e pessoalizado que
Crime e castigo deve sua admirvel unidade.
Essa unidade altamente intensificada pela habilidade do narrador de usar o eplogo,
no s como meio de tornar explcito o que estava implcito no romance, como de sintetizar o
material heterogneo da histria. Pois somente no eplogo que o passado, o presente e o
futuro aparecem como um padro cuidadosamente arranjado por um ponto de vista elevado. O
eplogo conclui o jogo moral do narrador; o momento da revelao de toda a amplitude de
seu conhecimento. E isso inclui o conhecimento de tudo o que se passou e do que vir.
O ponto de vista elevado de Crime e castigo compreende no somente um sistema de
valores pelo qual os personagens so julgados, mas a viso de mundo que subjaz esse mesmo
sistema. Pois, ainda que sejam relatados de modo objetivo, os acontecimentos de Crime e
castigo no se passam somente no mundo objetivo. Nas ltimas frases da passagem final do
romance, o narrador fala do encontro de Rasklnikov com uma forma de ser desconhecida
para a dialtica do intelecto racional fechado em si mesmo: Mas aqui j comea outra
histria, a histria de renovao gradual de um homem, a histria do seu paulatino
renascimento, da passagem progressiva de um mundo a outro, do conhecimento de uma
realidade nova, at ento totalmente desconhecida. Isto poderia ser o tema de um novo relato
mas este est concludo (p. 561).
O novo mundo e a realidade no sonhada no existem somente no futuro de
Rasklnikov, eles esto na fundao de todos os acontecimentos do romance. Trata-se de uma
realidade superior que a um tempo transcendente e imanente, e que se revela com toda fora
no eplogo. No constitui, todavia, um plano de existncia encontrado com freqncia no
romance oitocentista, e isso talvez explique porque tantos crticos consideraram imperfeita a
caracterizao de Snia, rejeitaram o eplogo como artisticamente injustificado e ignoraram a
308
importncia da realidade metafsica na obra. Para eles, Crime e castigo, como qualquer
romance do sculo XIX, tem seu fundamento no mundo dos fenmenos.
Para maioria da crtica dos gneros narrativos, o romance definido no somente em
termos formais de caracterizao, enredo, simbolismo e afins, mas pela natureza de seu
universo ficcional. considerado, em geral, uma narrativa em prosa que apresenta seus
personagens em papis sociais como diz Fielding, trata-se de um pico cmico em prosa. E,
como tal, freqentemente visto, diferentemente da estria romanesca, como tendo um forte
fundamento na realidade material objetiva. Nesse sentido, a estria romanesca tem uma
latitude muito maior do que o romance. Assim, Northrop Frye, em sua Anatomia da crtica,
eloqentemente expressou a diferente abordagem da caracterizao entre os gneros:
O autor romanesco no tenta criar gente real, tanto quanto figuras estilizadas
que se ampliam em arqutipos psicolgicos. [...] por isso que a estria
romanesca irradia to freqentemente um brilho de intensidade subjetiva que o
romance no tem, e por isso que uma sugesto de alegoria est
constantemente insinuando-se por volta de suas orlas. Certos elementos da
personalidade so libertados na estria romanesca, os quais naturalmente a
tornam um tipo mais revolucionrio do que o romance.10
Anatomia da crtica. Trad. Pricles Eugnio da Silva Ramos. So Paulo: Cultrix, 1973, p. 299.
Dostoivski sempre foi profundamente consciente de que, no fundo, seu realismo estava mais prximo do
idealismo do que do realismo de seus contemporneos. Como todos os idealistas, ele defende que seu idealismo
mais real do que o realismo dos chamados realistas. Para suas inmeras afirmaes sobre o realismo em sua
prpria obra e nas obras de outros, cf. Sven Linnr, Dostoevskij on Realism (Estocolmo: Almquist and Wiksell,
1967).
11
309
12
Para uma discusso da representao artstica do milagre em Dostoivski ver L. A. Zander, Dostoevsky, trad.
Natalie Duddington, (Londres, SCM Press, 1948), p. 15-25.
310
respeitosa, fazer-lhe reverncia e beij-lo. Ele se lembra de como amava a igreja para a qual
era levado duas ou trs vezes por ano para assistir a uma missa em memria de sua av.
Tambm no estranho que ele parasse no meio do caminho para a universidade
precisamente no local onde a cpula da Catedral de So Isaac brilhasse com o mais
deslumbrante esplendor. Paralisado, ele olha admirado esse panorama realmente magnfico e
sempre chegando quase a surpreender-se com uma impresso vaga e sem soluo (p. 128).
Embora esse espetculo lhe causasse frio depois do assassinato, estamos conscientes de que
Rasklnikov carrega dentro de si as sementes de uma nova realidade, as quais, no passado,
foram lanadas por esta bela viso, e que iro florescer quando ele tiver expiado sua
transgresso13.
Especialmente significativa, em relao s crenas de Rasklnikov, a cena em que
ele explica seu artigo sobre o crime Porfri. Ele menciona a Nova Jerusalm e pergunta se
Rasklnikov acredita nela. Porfri pressiona:
Crticos soviticos interpretaram a Nova Jerusalm dessa passagem como uma aluso
utopia socialista de Saint-Simon14. Mas essa interpretao no explica satisfatoriamente as
outras respostas de Rasklnikov para as questes que lhe so colocadas; pois ele diz a Porfri
que no apenas acredita em Deus, mas tambm na ressurreio de Lzaro dos mortos. Porfri
13
H outros fatos importantes que apontam para o lado religioso latente de Rasklnikov. Depois do sonho com o
espancamento da gua, Rasklnikov reza a Deus para mostrar-lhe o caminho pelo qual ele pudesse renegar esse
maldito... sonho meu (p. 75). Ele pede a Politchka (p. 200) para rezar por ele quando ela o convida para as
exquias de seu padrasto (Marmieldov). No fim do romance, com profunda seriedade, ele pede me que reze
por ele (p. 522).
14
Cf., por exemplo, V. Ia. Kirpotin, Razotcharovanie i kruchenie Rodiona Raskolnikova (M.: Sov. Pisatel, 1972)
p. 111; G. F. Kogan, CP, p. 756.
311
obviamente compartilha as mesmas dvidas do leitor, por isso, Dostoivski o faz perguntar a
Rasklnikov se ele acredita na ressurreio de Lzaro literalmente. Rasklnikov responde
afirmativamente. Alm disso, a cena em que Snia l essa passagem mostra que. pelo menos
alguma parte dele, est falando a verdade quando ele diz acreditar literalmente. O pedido de
Rasklnikov para que Snia leia o excerto constitui uma evidncia psicolgica de seu anseio,
ainda que reprimido, por acreditar na possibilidade de salvao.
Mas a cena de Lzaro faz mais do que simplesmente oferecer uma prova da
religiosidade latente de Rasklnikov; ela revela a viso religiosa subjacente ao romance por
meio do narrador:
- Eis tudo sobre a ressurreio de Lzaro sussurrou ela com voz entrecortada
e severa, e ficou imvel, virada para um lado, sem se atrever e como se
sentisse vergonha de levantar os olhos para ele. Seu tremor febril ainda
continuava. O toco de vela h muito se extinguia no castial torto, iluminando
frouxamente naquele quarto miservel um assassino e uma devassa, que se
haviam unido estranhamente durante a leitura do livro eterno. Transcorreram
uns cinco minutos ou mais. (p. 338-9)
Conforme foi mostrado no Captulo 6, essa passagem claramente indica que o narrador
acredita na validade da Bblia e, conseqentemente, nas implicaes que ela tem tanto para o
heri quanto para a herona. A linguagem solene, no h ironia. Uma vez que ele provou ser
absolutamente confivel anteriormente, o leitor compelido a aceitar as verdades bblicas
como vlidas, no somente para a cena de Lzaro, mas para todo o romance. Suspendemos
nossa descrena, pois o ponto de vista do narrador no , como defende Bakhtin, apenas mais
uma opinio, mais um ponto de vista elevado, que o leitor passa a aceitar e confiar.
As frases do narrador no eplogo com relao experincia de Rasklnikov de uma
realidade at ento desconhecida constituem a viso de mundo metafsica do romance. Seu
relato exultante da transformao de Rasklnikov e a viso menos crtica das crenas de Snia
garantem ao leitor que a realidade religiosa, ainda que sutilmente representada no romance, ,
312
313